Ebook - Sociedade, Cultura e Diversidade - Estudos em Ciências Humanas, Volume 1

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Editora Chefe

Patrícia Gonçalves de Freitas


2024 by Editora e-Publicar Editor
Copyright © Editora e-Publicar Roger Goulart Mello
Copyright do Texto © 2024 Os autores Diagramação
Copyright da Edição © 2024 Editora e-Publicar Patrícia Gonçalves de Freitas
Direitos para esta edição cedidos à Editora e-Publicar Projeto gráfico e edição de arte
pelos autores Patrícia Gonçalves de Freitas

Revisão
Os Autores

Open access publication by Editora e-Publicar

SOCIEDADE, CULTURA E DIVERSIDADE: ESTUDOS EM CIÊNCIAS HUMANAS,


VOLUME 1.

Todo o conteúdo dos capítulos desta obra, dados, informações e correções são de
responsabilidade exclusiva dos autores. O download e compartilhamento da obra são
permitidos desde que os créditos sejam devidamente atribuídos aos autores. É vedada a
realização de alterações na obra, assim como sua utilização para fins comerciais.
A Editora e-Publicar não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços
convencionais ou eletrônicos citados nesta obra.

Conselho Editorial

Adilson Tadeu Basquerote Silva – Universidade Federal de Santa Catarina


Alessandra Dale Giacomin Terra – Universidade Federal Fluminense
Andrelize Schabo Ferreira de Assis – Universidade Federal de Rondônia
Bianca Gabriely Ferreira Silva – Universidade Federal de Pernambuco
Cristiana Barcelos da Silva – Universidade do Estado de Minas Gerais
Cristiane Elisa Ribas Batista – Universidade Federal de Santa Catarina
Daniel Ordane da Costa Vale – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Danyelle Andrade Mota – Universidade Tiradentes
Dayanne Tomaz Casimiro da Silva - Universidade Federal de Pernambuco
Deivid Alex dos Santos - Universidade Estadual de Londrina
Diogo Luiz Lima Augusto – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Edilene Dias Santos - Universidade Federal de Campina Grande
Edwaldo Costa – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Elis Regina Barbosa Angelo – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Érica de Melo Azevedo - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro
Ernane Rosa Martins - Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás
Ezequiel Martins Ferreira – Universidade Federal de Goiás
Fábio Pereira Cerdera – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Francisco Oricelio da Silva Brindeiro – Universidade Estadual do Ceará
Glaucio Martins da Silva Bandeira – Universidade Federal Fluminense
Helio Fernando Lobo Nogueira da Gama - Universidade Estadual De Santa Cruz
Inaldo Kley do Nascimento Moraes – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia - UESB
Jaisa Klauss - Instituto de Ensino Superior e Formação Avançada de Vitória
Jesus Rodrigues Lemos - Universidade Federal do Delta do Parnaíba
João Paulo Hergesel - Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Jose Henrique de Lacerda Furtado – Instituto Federal do Rio de Janeiro
Jordany Gomes da Silva – Universidade Federal de Pernambuco
Jucilene Oliveira de Sousa – Universidade Estadual de Campinas
Luana Lima Guimarães – Universidade Federal do Ceará
Luma Mirely de Souza Brandão – Universidade Tiradentes
Marcos Pereira dos Santos - Faculdade Eugênio Gomes
Mateus Dias Antunes – Universidade de São Paulo
Milson dos Santos Barbosa – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Paraíba
- IFPB
Naiola Paiva de Miranda - Universidade Federal do Ceará
Rafael Leal da Silva – Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Rodrigo Lema Del Rio Martins - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Willian Douglas Guilherme - Universidade Federal do Tocantins

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

S678

Sociedade, cultura e diversidade: estudos em ciências humanas


- Volume 1 / Organização de Adilson Tadeu Basquerote Silva,
Willian Douglas Guilherme, Patrícia Gonçalves de Freitas. –
Rio de Janeiro: e-Publicar, 2024.

Livro em Adobe PDF


ISBN 978-65-5364-321-5

1. Ciências humanas. 2. Sociologia. 3. Cultura. I. Silva, Adilson


Tadeu Basquerote (Organizador). II. Guilherme, Willian
Douglas (Organizador). III. Freitas, Patrícia Gonçalves de
(Organizadora). IV. Título.

CDD 101

Elaborada por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166

2024
Editora e-Publicar
Rio de Janeiro, Brasil
[email protected]
www.editorapublicar.com.br
Apresentação

É com grande satisfação que a Editora e-Publicar apresenta a obra intitulada “Sociedade,
Cultura e Diversidade: Estudos em Ciências Humanas, Volume 1”. Neste livro engajados
pesquisadores contribuíram com suas pesquisas. Esta obra é composta por capítulos que
abordam múltiplos temas da área.

Desejamos a todos uma excelente leitura!

Editora e-Publicar.
Sumário
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................... 10
REFLEXÕES SOBRE O TEMPO E A ETERNIDADE NA FILOSOFIA DE SANTO
AGOSTINHO........................................................................................................................... 10
José Bruno Martins Leão

CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................... 18
DO TRADICIONAL À MODERNIDADE, A RESILIÊNCIA DOS RITOS DE INICIAÇÃO
COM ROSTOS DO PASSADO NO DISTRITO DE GURUÉ, ZAMBÉZIA,
MOÇAMBIQUE.......................................................................................................................18
Arcanjo Tinara Nharucué

CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................... 32
O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO OBTIDO A PARTIR DA REALIZAÇÃO DOS
RITOS DE INICIAÇÃO NO DISTRITO DE GURUÉ, ZAMBÉZIA, MOÇAMBIQUE....... 32
Arcanjo Tinara Nharucué

CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................... 44
OS LAZERES EM JUBIABÁ – CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA E
CONHECIMENTO GERACIONAL ....................................................................................... 44
Danilo da Silva Ramos

CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................... 51
AS IDENTIDADES FEMININAS NA SÉRIE COISA MAIS LINDA .................................... 51
Emely Kauany Cardoso
Éverly Pegoraro

CAPÍTULO 6 ........................................................................................................................... 66
ESTADO, EDUCAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO SOCIAL: AS POLÍTICAS
CURRICULARES E DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM MINAS GERAIS ........... 66
Maria das Graças Soares Floresta
Fernando Selmar Rocha Fidalgo
Rayane Oliveira da Silva

CAPÍTULO 7 ........................................................................................................................... 87
O IMPACTO DA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL NAS ESCOLHAS DE CARREIRA:
REFLEXÕES A PARTIR DO “PROJETO DE VIDA” .......................................................... 87
Danila Rabelo Batista
Mateus Souza de Oliveira

CAPÍTULO 8 ........................................................................................................................... 99
A ARQUITETURA PERSUASIVA NOS TRÓPICOS AMERICANOS: AS ORIGENS E
INFLUÊNCIAS DO BARROCO NO BRASIL....................................................................... 99
DOI 10.47402/ed.ep.c240611078215 Christian Fausto Moraes dos Santos
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gessica de Brito Bueno
Rodrigo Perles Dantas
CAPÍTULO 9 ......................................................................................................................... 118
CICLOS INFINITOS E O APOCALIPSE: O ANTROPOCENO, O ETERNO RETORNO E
CONTRAFACTUAL NA SÉRIE DARK .............................................................................. 118
DOI 10.47402/ed.ep.c240611089215 Christian Fausto Moraes dos Santos
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gessica de Brito Bueno
Rodrigo Perles Dantas

CAPÍTULO 10 ....................................................................................................................... 133


AS TRANSFORMAÇÕES DO MAL-ESTAR NA SOCIEDADE E SEUS EFEITOS NOS
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO .................................................................................... 133
DOI 10.47402/ed.ep.c2406110910215 Gabriel Vianna Schlatter
Mariana Machado Felin

CAPÍTULO 11 ....................................................................................................................... 154


O CLITÓRIS E AS MULHERES .......................................................................................... 154
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111011215 Jéssica Natane Pessoa de Lima

CAPÍTULO 12 ....................................................................................................................... 163


ANÁLISE DAS PRIMEIRAS PÁGINAS DE CINCO JORNAIS BRASILEIROS NA
PANDEMIA DA COVID-19: NOTAS INTRODUTÓRIAS ................................................ 163
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111112215 Telma Alvarenga
Leonel Azevedo de Aguiar

CAPÍTULO 13 ....................................................................................................................... 173


FAMÍLIA E AMBIGUIDADES: REFLEXÕES SOBRE O CUIDADO E A CONVIVÊNCIA
COMPULSÓRIA NA PANDEMIA ...................................................................................... 173
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111213215 Luciana Cristina Teixeira de Souza

CAPÍTULO 14 ....................................................................................................................... 182


NOTAS DE PESQUISA E PROPOSIÇÕES SOBRE AS ATIVIDADES LABORATIVAS
DAS MULHERES DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO NO
BRASIL .................................................................................................................................. 182
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111314215 Marcela Fernanda da Paz de Souza

CAPÍTULO 15 ....................................................................................................................... 194


A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA POPULAR COMO FERRAMENTA DE MUDANÇA ... 194
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111415215 Maria Cristina Soriano Nunes
Walcler de Lima Mendes Junior

CAPÍTULO 16 ....................................................................................................................... 207


SOB O SIGNO DAS NARRATIVAS DIGITAIS E OS MULTILETRAMENTOS:
CARACTERÍSTICAS E POTENCIALIDADES .................................................................. 207
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111516215 Neide Araujo Castilho Teno

CAPÍTULO 17 ....................................................................................................................... 220


ANÁLISE SOBRE O COMPORTAMENTO DE CONSUMO CONSIDERANDO OS
ATRATIVOS TURÍSTICOS DAS CIDADES DE ARACAJU/SE E SALVADOR/BA ..... 220
DOI 10.47402/ed.ep.c2406111617215 Taís Alexandre Antunes Paes
CAPÍTULO 1
REFLEXÕES SOBRE O TEMPO E A ETERNIDADE NA FILOSOFIA DE SANTO
AGOSTINHO

José Bruno Martins Leão

RESUMO
O artigo analisa a concepção de tempo e eternidade na obra de Santo Agostinho, com foco principal em seu livro
"Confissões". O problema de pesquisa consiste em compreender como Agostinho articula as noções de tempo e
eternidade, e como essa articulação se relaciona com sua visão teológica e filosófica. A metodologia utilizada
envolveu uma extensa revisão de bibliografia sobre a filosofia agostiniana. Através da revisão de bibliografia, foi
possível situar a obra de Agostinho dentro do contexto filosófico e teológico de sua época, identificando as
principais influências e debates em torno de suas ideias. A análise textual da obra do autor permitiu identificar os
principais argumentos e conceitos relacionados ao tempo e à eternidade, destacando a complexidade e a
originalidade de sua abordagem. Por fim, evidenciou-se a singularidade da filosofia agostiniana, especialmente no
que diz respeito à relação entre tempo, eternidade e divindade. Os resultados alcançados com o artigo apontam
para uma concepção de tempo e eternidade em Agostinho que se diferencia das visões predominantes em sua
época. Enquanto o tempo é caracterizado por sucessivos movimentos passageiros, a eternidade é vista como
imutável e atemporal. Essa distinção é fundamental para a compreensão da relação entre Deus e o mundo,
conforme descrito pelo autor. Assim, o estudo da filosofia agostiniana sobre o tempo e a eternidade não apenas
contribui para o entendimento da obra do autor, mas também para reflexões mais amplas sobre a natureza do tempo
e a relação entre o divino e o humano.

PALAVRAS-CHAVE: Santo Agostinho; Tempo; Eternidade; Confissões.

1 INTRODUÇÃO

A filosofia de Santo Agostinho é marcada por uma profunda reflexão sobre o tempo e a
eternidade, temas centrais de sua obra. Agostinho, considerado um dos mais importantes
pensadores cristãos, aborda em suas obras a relação entre tempo e eternidade, destacando a
incomparabilidade da eternidade, que é imutável, com o tempo, que é composto por sucessivos
movimentos passageiros. Em seu livro "Confissões", Agostinho explora essas questões de
forma profunda e complexa, buscando compreender a natureza do tempo e sua relação com a
eternidade à luz da sabedoria divina.

O problema de pesquisa que motiva este artigo é a compreensão da concepção


agostiniana de tempo e eternidade e sua relevância para a filosofia e a teologia. A obra de
Agostinho é vasta e complexa, e sua abordagem do tempo e da eternidade levanta questões
profundas sobre a natureza da realidade e a relação entre Deus e o mundo. Nesse sentido, o
objetivo deste artigo é analisar criticamente a concepção agostiniana de tempo e eternidade,
examinando suas implicações filosóficas e teológicas.

A metodologia de pesquisa utilizada neste artigo inclui uma revisão da bibliografia


sobre o tema, com foco na obras de Santo Agostinho e em comentários acadêmicos sobre sua

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Humanas, Volume 1.
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filosofia. A revisão de bibliografia foi essencial para contextualizar a obra de Agostinho dentro
do contexto filosófico e teológico de sua época, bem como para identificar as principais
questões e debates em torno de sua concepção de tempo e eternidade.

Os resultados alcançados com este artigo incluem uma análise aprofundada da


concepção agostiniana de tempo e eternidade, destacando sua originalidade e sua influência na
filosofia e na teologia ocidentais. Além disso, o artigo contribui para a compreensão da obra de
Agostinho como um todo, ressaltando a importância de sua reflexão sobre o tempo e a
eternidade para a compreensão da natureza da realidade e da relação entre o divino e o humano.

2 METODOLOGIA

A metodologia de pesquisa utilizada para este estudo envolveu uma revisão de


bibliografia, com o objetivo de contextualizar a obra de Santo Agostinho dentro do panorama
filosófico e teológico de sua época. Para isso, buscou-se identificar as principais questões e
debates em torno da concepção de tempo e eternidade do autor. A revisão de bibliografia foi
essencial para fundamentar teoricamente a análise crítica realizada no artigo.

Fez-se uma análise da obra de Santo Agostinho que trata do tema do tempo e da
eternidade, com foco especial em seu livro "Confissões". Foram identificados os principais
argumentos e conceitos apresentados pelo autor, bem como suas fontes e influências filosóficas.
Essa análise textual permitiu uma compreensão mais aprofundada da posição de Agostinho em
relação ao tempo e à eternidade.

3 O TEMPO E A ETERNIDADE PARA SANTO AGOSTINHO

Com Santo Agostinho (354-430 d.C.), os objetos da filosofia são observados à luz da
sabedoria divina, face o caráter teológico da sua obra. Nessa senda, em “Confissões”, Agostinho
(2015, p. 301) adverte que todo aquele que se confunde quanto ao tempo e à eternidade, de fato,
não compreendeu como se realiza o que se faz por Deus e em Deus, posto que “esforça-se por
saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volta ao redor das ideias, ideias da
sucessão dos tempos passados e futuros”.

Agostinho (2015, p. 301) sugere àquele que ainda não compreendeu as relações entre
tempo e eternidade “que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade
imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo que
nunca para”. Com tal proceder, poder-se-á entender “que a duração do tempo não será longa,
se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora, estes não podem alongar-se
simultaneamente”.

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Dessa comparação preambular, entende-se que, enquanto a eternidade é incomparável,
porque imutável, o tempo, por outro lado, compõe-se de sucessivos movimentos passageiros e
identificáveis. Disso, vê-se que a imutabilidade pertence tão somente à eternidade, enquanto,
ao tempo, resta-lhe uma composição cadenciada e sucessiva de movimentos, que, aliás, passam
e não poderão existir de forma simultânea.

De outra banda, Agostinho (2015, p. 301) sublinha que, “na eternidade, ao contrário,
nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente”. Nessa linha, ver-se-
á “que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido de um passado, e
todo o passado e futuro são criados e dimanam daquele que sempre é presente”. Por
conseguinte, “a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo nem futuro nem
passado”.

Dito de outro modo, pode-se inferir que da eternidade imutável, na qual tudo é presente
e nada passa, decorrem os conceitos de passado e futuro, que passam, uma vez que o tempo em
si nunca é todo presente. Ao contrário, é o presente que determina o passado e o futuro, de sorte
que todo o futuro se caracteriza por sempre ser precedido pela realidade própria do passado,
numa ideia de sucessão contínua de movimentos passageiros, nunca parando ou existindo
concomitantemente; razão por que “o tempo não pode medir a eternidade” (AGOSTINHO,
2015, p. 301).

Agostinho (2015, p. 301-302) bem retrata essa diferença entre o tempo para Deus, que
é eterno e imutável (eternidade), e o tempo que passa para todas as criaturas do artífice
onipotente. Então, dirigindo-se ao Criador, o teólogo evidencia a eternidade ao assim declarar:
“Precedeis, porém, todo o passado, alteando-vos sobre ele com a vossa eternidade sempre
presente. Dominais todo o futuro porque está ainda para vir. Quando ele chegar, já será
pretérito. Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo e os vossos anos não morrem”
(AGOSTINHO, 2015, p. 302).

Além disso, reconhece-se a figura do eterno hoje, que se encontra na eternidade própria
do Criador do céu e da terra, em contraste com o sucessivo passar do tempo, que marca a
temporalidade inerente à existência das criaturas, conforme se verifica destes termos:

Os vossos anos não vão nem vêm. Porém, os nossos vão e vêm, para que todos
venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem
os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos
nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os vossos anos
são como um único dia, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se
quotidiano, mas é um perpétuo hoje, porque este vosso hoje não se afasta do amanhã,
nem sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade. Por isso geraste coeterno vosso

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Humanas, Volume 1.
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Filho a quem dissestes: “Eu hoje te gerei” (AGOSTINHO, 2015, p. 302, grifos do
autor).

Do excerto acima, verifica-se que, no caso da concepção temporal defendida por Santo
Agostinho, toda e qualquer medida de tempo se aplica ao conceito de passado e futuro,
constituídos por muitos movimentos passageiros sucessivamente apresentados à percepção do
homem, ou qualquer outra criatura proveniente do artífice onipotente. Essas porções de tempo,
todavia, não se relacionam à eternidade, posto que o eterno é incompatível com qualquer
espécie de delimitação, como, por exemplo, anos, meses, dias; de forma a existir um hoje
perpétuo para Deus, ininterruptamente presente na eternidade, e um hoje transitório, para
aqueles que igualmente conhecem o ontem e expectam pelo amanhã.

Uma vez explicitada o contraste precípuo entre o tempo e a eternidade, resta trazer a
lume a questão proposta por Agostinho (2015, p. 303-304): “Que é, pois, o tempo?”. Acerca de
tal indagação histórica, o próprio teólogo, em face da complexidade da temática, responde isto:
“Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei.
Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobrevivesse, não haveria
tempo futuro, e, se agora nada houvesse, não existia o tempo presente”.

Ainda, Agostinho (2015, p. 304) propõe a classificação do tempo em longo ou breve, “e


isto só podemos afirmar do futuro ou do passado”. Com isso, continua o autor, “chamamos
longo ao tempo passado, se é anterior ao presente, por exemplo, cem anos. Do mesmo modo,
dizemos que o tempo futuro é longo, se é posterior ao presente, também cem anos”. Por outro
lado, chamamos breve ao passado, se dizemos, por exemplo, ‘há dez dias’; e ao futuro, se
dizemos ‘daqui a dez dias”.

Entretanto, Agostinho (2015, p. 304-305) alerta que “o passado já não existe e o futuro
ainda não existe”. Por tal motivo, o autor sugere que “não digamos: ‘é longo’; mas digamos do
passado: ‘foi longo’; e do futuro: ‘será longo’”. Não satisfeito com essas formatações
linguísticas, estabeleceu, ainda, este questionamento: “O tempo longo, já passado, foi longo
depois de passado ou quando ainda era presente?”.

Em resposta, Agostinho (2015, p. 305) explica que “só então podia ser longo (nesse
momento presente), quando existia alguma coisa capaz de ser longa. O passado já não existia;
portanto não podia ser longo aquilo que totalmente deixara de existir”. Por consequência, “não
digamos, pois, ‘o tempo passado foi longo’ porque não encontraremos aquilo que tivesse podido
ser longo, visto que já não existe desde o instante em que passou”; ao contrário, “digamos antes:
‘aquele tempo presente foi longo’, porque só enquanto foi presente é que foi ‘longo’”,

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Humanas, Volume 1.
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porquanto “ainda não tinha passado ao não ser, e portanto existia uma coisa que podia ser longa.
Mas logo que passou, simultaneamente deixou de ser longo, porque deixou de existir”.

Em seguida, passa-se à questão relacionada à possibilidade de se verificar se o tempo


presente foi longo ou não. Para tanto, retoma-se o interstício de cem anos como critério de
análise:
Considera primeiro se cem anos podem ser presentes. Se o primeiro ano está
decorrendo, este é presente, mas os outros noventa e nove são futuros, portanto ainda
não existem. Se está decorrendo o segundo ano, um é passado, outro presente e os
restantes futuros. Se apresentarmos como presentes qualquer dos anos intermediários
da série centenária, notamos que os que estão antes dele serão passados, e os que estão
depois serão futuros. Pelo que, cem anos não podem ser presentes (AGOSTINHO,
2015, p. 305).

Dado que cem anos não podem ser considerados presentes, em vista da quantidade de
anos que se antecedem ou se sucedem no curso do parâmetro temporal centenário, segue-se
com a verificação referente ao ano que está passando, no sentido de se constatar se também
pode ser tido como presente, ou não, a depender do emprego dos conceitos de passado e futuro.
Assim, “se o primeiro mês está passando, os outros são futuros. Se estamos no segundo mês, o
primeiro já passou e os outros ainda não existem. Logo nem o ano que está decorrendo pode
ser todo presente, e se não é todo presente, não é um ano presente” (AGOSTINHO, 2015, p.
305).

Da mesma forma, Agostinho (2015, p. 305-306) assevera que “o ano compõe-se de doze
meses; um mês qualquer é presente enquanto decorre; os outros são passados ou futuros. Nem
sequer, porém o mês que está decorrendo é presente, mas somente o dia”. Em sequência, “se é
o primeiro dia, todos os outros são futuros; se é o último, todos os outros são passados; se é um
dia intermediário, está entre dias passados e futuros”.

No entanto, nem sequer o dia pode ser concebido inteiramente como presente.
Agostinho (2015, p. 306) percorre a mesma lógica analítica: “O dia e a noite compõem-se de
vinte e quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como futuras, e a última tem
a todas como passadas”. Por conseguinte, tem-se que, “com respeito a qualquer hora
intermediária são pretéritas aquelas que a precedem, e futuras as subsequentes”.

Analisados os anos, os meses e os dias, segue-se com a exame da hora. Agostinho (2015,
p. 306) demonstra que “uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela já
debandou é passado. Tudo o que ainda resta é futuro”. Então, nota-se que, “se pudermos
conceber um espaço de tempo que não seja susceptível de ser subdividido em tais partes, por
mais pequeninas que sejam, só a este podemos chamar tempo presente”; porém, admite-se que

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Humanas, Volume 1.
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“este voa tão rapidamente do futuro ao passado que não tem nenhuma duração. Se a tivesse,
dividir-se-ia em passado e futuro. Logo, o tempo presente não tem nenhum espaço”.

Sendo assim, conforme o ensinamento agostiniano, ainda que decomposto


gradualmente em momentos ou instantes cada vez mais estreitos e, em tese, temporalmente
identificáveis, depreende-se que o tempo presente não conserva o espaço ou intervalo
minimamente suficiente a ponto de ser possível a constatação imediata enquanto presente, de
sorte que, à medida que tão logo o tempo se apresenta, com igual velocidade é sucedido pelo
instante seguinte, transformando-se, aquele, em momento passado, não preenchendo, com isso,
as condições temporais necessárias para ser classificado como tempo longo.

Analisado o presente, sobre o futuro, Agostinho (2015, p. 306) também apregoa que
“deste tempo não dizemos que é longo, porque ainda não existe. Dizemos: ‘será longo’. E
quando será? Se esse tempo ainda agora está por vir, nem então será longo, porque ainda não
existe nele aquilo que seja capaz de ser longo”. De todo modo, nem mesmo o futuro pode ser
considerado um tempo longo, tendo em conta que ainda está por vir e, com isso, ainda não é,
porquanto “só poderá começar a ser no instante em que ele nasce desse futuro – que ainda não
existe – e se torna tempo presente, porque só então possui capacidade de ser longo. Mas com
as palavras que acima deixamos transcritas, o tempo presente clama que não pode ser longo”
(AGOSTINHO, 2015, p. 306).

Ademais, Agostinho (2015, p. 308) busca entender a localização do pretérito e do futuro,


na tentativa de situá-los onde realmente se encontram, em vista dos caracteres atribuíveis a cada
qual, conforme exposto alhures. Mesmo admitindo a ausência de total compreensão, o teólogo
atesta: “sei todavia que em qualquer parte onde estiverem, aí não são futuras nem pretéritas,
mas presentes. Pois, se também aí são futuras, ainda lá não estão; e, se nesse lugar são pretéritas,
já lá não estão”. Diante disso, “em qualquer parte onde estiverem, quaisquer que elas sejam,
não podem existir senão no presente” (AGOSTINHO, 2015, p. 308).

Noutro ponto, Agostinho (2015, p. 308) translada as peculiaridades de passado e futuro,


aplicando-os na prática da premeditação, a fim de se verificar o que realmente se encontra em
cada momento integrante do ato de vaticinar a respeito dos acontecimentos durante o curso do
tempo. A esse respeito, “sei com certeza que nós, a maior parte das vezes, premeditamos as
nossas ações futuras e essa premeditação é presente, ao passo que a ação premeditada ainda não
existe, porque é futura”. Logo, “quando empreendermos e começarmos a realizar o que

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premeditamos, então essa ação existirá, porque já não é futura, mas presente” (AGOSTINHO,
2015, p. 308).

Outrossim, para Agostinho (2015, p. 310), “[...] os três tempos são: presente das coisas
passadas, presente das presentes, presente das futuras”; e, desse raciocínio, acrescenta-se “três
tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas,
visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.

Por tal razão, Agostinho (2015, p. 320) relata que o refletir sobre passado, presente e
futuro requer três coisas: expectação, atenção e memória; de sorte que “aquilo que o espírito
espera, passa através do domínio da atenção para o domínio da memória”. Então, desse diálogo,
vê-se que as coisas futuras, por ainda não existirem, são expectadas; as coisas pretéritas, por já
não existirem, conservam-se na alma por meio da memória das coisas passadas; e, em arremate,
o presente, que, por carecer de espaço, permanece sob a vigilância da atenção que perdura.

Observa-se, portanto, o diálogo entre presente, passado e futuro nas lições agostinianas
supra retratadas. Passado e futuro não existem, pois, enquanto um já se foi, o outro ainda não o
é, de modo que são recordados pela memória ou objeto de expectativa do ser humano, que se
encontra igualmente sob a influência do pleno transcurso do tempo. O presente, no entanto, não
possui duração o bastante para ser considerado separadamente como uma dimensão temporal
verificável, dada a velocidade com que os mais ínfimos instantes abandonam a realidade
presente e se deslocam para o passado, numa sucessão contínua de movimentos passageiros,
diferenciando-se, pois, da eternidade, que não passa e é imutável, sendo sempre presente.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com Santo Agostinho (354-430 d.C.), os objetos da filosofia são observados à luz da
sabedoria divina, face ao caráter teológico de sua obra. Em "Confissões", Agostinho (2015, p.
301) adverte que quem se confunde quanto ao tempo e à eternidade não compreende como o
que se faz por Deus e em Deus se realiza, esforçando-se por saborear as coisas eternas, mas
com o pensamento ainda voltado às ideias da sucessão dos tempos passados e futuros. Sugere
então, àquele que ainda não compreendeu as relações entre tempo e eternidade, que pare um
momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade imutável, para que veja como a
eternidade é incomparável se confrontada com o tempo que nunca para.

A partir dessa comparação, entende-se que, enquanto a eternidade é incomparável por


ser imutável, o tempo compõe-se de sucessivos movimentos passageiros e identificáveis. Daí,
a imutabilidade pertence à eternidade, enquanto ao tempo resta uma composição cadenciada e

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sucessiva de movimentos, que passam e não podem existir simultaneamente. Agostinho (2015,
p. 301) sublinha que, na eternidade, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é
todo presente. Nessa linha, observa-se que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro
está precedido de um passado, sendo ambos criados e dimanando daquele que sempre é
presente. A eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo nem futuro nem
passado.

Da eternidade imutável, na qual tudo é presente e nada passa, decorrem os conceitos de


passado e futuro, que passam, uma vez que o tempo em si nunca é todo presente. Ao contrário,
é o presente que determina o passado e o futuro, de sorte que todo o futuro se caracteriza por
sempre ser precedido pela realidade própria do passado, numa ideia de sucessão contínua de
movimentos passageiros, nunca parando ou existindo concomitantemente; razão por que "o
tempo não pode medir a eternidade" (AGOSTINHO, 2015, p. 301). Agostinho (2015, p. 301-
302) destaca que os anos do Criador não vão nem vêm, permanecendo sempre o mesmo, ao
contrário dos anos das criaturas, que vão e vêm, para que todos venham.

Portanto, o contraste entre o tempo e a eternidade evidencia que todo e qualquer medida
de tempo se aplica ao conceito de passado e futuro, constituídos por muitos movimentos
passageiros sucessivamente apresentados à percepção do homem, ou qualquer outra criatura
proveniente do artífice onipotente. Essas porções de tempo, todavia, não se relacionam à
eternidade, posto que o eterno é incompatível com qualquer espécie de delimitação, como anos,
meses, dias; existindo um hoje perpétuo para Deus, ininterruptamente presente na eternidade, e
um hoje transitório para aqueles que conhecem o ontem e esperam pelo amanhã.

REFERÊNCIA

AGOSTINHO, S. Confissões. Tradução de J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. 6. ed.


Petrópolis/RJ: Vozes, 2015.

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CAPÍTULO 2
DO TRADICIONAL À MODERNIDADE, A RESILIÊNCIA DOS RITOS DE
INICIAÇÃO COM ROSTOS DO PASSADO NO DISTRITO DE GURUÉ, ZAMBÉZIA,
MOÇAMBIQUE

Arcanjo Tinara Nharucué

RESUMO
Os ritos de iniciação no distrito de Gurué, conhecidos como Ovula (sexo feminino) e Oweleliwa (sexo masculino),
fornecem instruções sobre papéis de género e vida familiar, incluindo os detalhes da actividade sexual e
reprodutiva. Neste contexto, este artigo pretende analisar a resiliência dos ritos de iniciação no contexto da
modernidade. Empregou as teorias da Construção Social da Realidade, desenvolvida por Berger e Luckmann
(2004) e, o Imaginário Social de Cornelius Castoriades (1987). No que concerne aos procedimentos
metodológicos, o estudo privilegiou a abordagem qualitativa e utilizou o delineamento do estudo de caso. As
conclusões deste artigo mostram que, as comunidades do distrito de Gurué dependem da vida comunitária, por
isso, é importante destacar que a família é mantida pelos valores da tradição através das cerimónias de iniciação.

PALAVRAS-CHAVE: Ritos de iniciação; Tradicional; Modernidade; resiliência;


Moçambique.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo intitulado “Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de


iniciação com rostos do passado no Distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique” tem como
objetivo analisar a resiliência dos ritos de iniciação no contexto da modernidade.

O exercício da cidadania é mais do que apenas um status social que confere direitos e
responsabilidades, mas também uma identidade compartilhada que é uma expressão de
pertencimento à comunidade. As comunidades existem quando os membros pertencem, se
relacionam e se identificam com ela. Estes geralmente compartilham conexões emocionais com
o grupo e sentem que o grupo é importante para eles e que eles são importantes para o grupo
(OSTERMAN, 2000, p. 324).

Os ritos de iniciação no distrito de Gurué, conhecidos como Ovula (sexo feminino) e


Oweleliwa (sexo masculino), fornecem instruções sobre papéis de género e vida familiar,
incluindo os detalhes da atividade sexual e reprodutiva. Desempenham um papel importante na
transferência de normas culturais entre gerações fornecendo, deste modo, uma oportunidade
única para examinar as normas e crenças culturais que traduzem formas de conduta, prescrevem
maneiras de agir, pensar, ser e viver em coletivo.

Como alertam Bagnol e Mariano (2011), a pertença a um grupo religioso, o nível de


educação, a classe social, entre outros fatores, podem modificar significativamente a visão do

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mundo e desta forma influenciar a partilha e adopção de novas concepções sobre saúde,
sexualidade e reprodução, propiciando novas formas de ser e de se comportar.

No contexto moçambicano, os ritos de iniciação ainda hoje estão muito presentes em


algumas comunidades, apesar da influência da colonização sofrida durante anos, do sistema de
educação formal que traz outras racionalidades e explicações para os factos e as coisas, outra
forma de conhecer, de experimentar e de explicar o mundo.

E assim, apesar das progressivas mudanças tecnológicas, da comunicação, da estrutura


do poder político e económico, do conhecimento e das habilidades, bem como dos valores
culturais, dos sistemas e práticas, os rituais estão presentes e são a peça fundamental de coesão
social, de construção de si e do outro.

Autores como Bagnol e Mariano,(2011), Osório (2015) e Bonnet (2002), descrevem


Moçambique, como um país multiétnico e multicultural, contido dentro da dinâmica da
diversidade de grupos étnicos que implica a existência de várias tradições e práticas culturais
que foram corroídas com o advento da colonização e com todo o processo por ela trazido e
mantido até os dias atuais pós-independência.

Portanto, o país, possui cerca de 20 (vinte) grupos étnicos e cada um deles tem a sua
própria forma de ser e estar, por conseguinte, há várias cerimónias de iniciação e há diferentes
maneiras de realização. Pois, a vida dos indivíduos resulta de um processo que envolve várias
etapas, desde o nascimento até a morte. Em cada uma destas etapas, existem momentos
significativos vividos por estes, pelas suas famílias, bem como pelas comunidades nas quais se
encontram integrados.

É aqui onde residem os rituais que constituem um momento significativo para quem
deles participa e que não só se insere mas traduzem e fortalecem os hábitos, os valores e as
crenças de um grupo existente em várias regiões. Estes assumem formas distintas e representam
o momento em que os indivíduos passarão a assumir um novo papel e lugar social.

Assim, as cerimónias de iniciação são parte integrante do saber ser e estar individual e
coletivo, em particular nos países africanos, na medida em que servem a um propósito vital que
é a transmissão, de geração a geração, de hábitos, crenças, valores e costumes. A partir disso,
constrói-se o sentimento forte de pertencimento através da manutenção e participação de
instituições sociopolíticas e religiosas que asseguram meios de comunicação eficazes entre as
diferentes gerações.

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Ora, as mudanças sociais estão associadas a transformações em diversas esferas da
vida dos indivíduos. Para o efeito, a reflexão sobre a resiliência dos ritos de iniciação se dá face:
(i) às mudanças sociais, (ii) à modernização e modernidade, (iii) às tatuagens e circuncisão
masculina, (iv) à observância do calendário escolar e, (v) às mudanças climáticas.

1.1 A resiliência dos ritos de iniciação face às mudanças sociais

O pertencimento a contextos relacionais, culturais e materiais, explica a interconexão


entre o Eu e a mudança social 1. O pertencer à um grupo social permite, ao individuo, ter uma
alternativa à teorização estrutural de cima para baixo, caracterizada por um foco em como as
mudanças na sociedade exigem que se adapte. Na vida quotidiana, o sentimento de pertença
permite compreender a interação mútua entre a mudança social e o Eu (SIMMEL, 1950).

Quando visto sob uma perspectiva do quotidiano, o mundo não muda sem o nosso
conhecimento, não se acorda numa manhã para descobrir essa mudança além do
reconhecimento. Em vez disso, a mudança tende a ser constante e incremental, e é introduzida
aos poucos em nossas vidas na forma de, por exemplo, novas tecnologias, novas práticas
institucionais, novas formas de pensar sobre uma determinada realidade social.

Além disso, teóricos como Durkheim (2012) e Giddens (2003) atribuem certa
direcionalidade e coerência à mudança social. No entanto, essas mudanças não parecem
incorporar uma lógica abrangente e, geralmente, é apenas em retrospectiva que pode identificar
uma narrativa que nos permite entender diferentes desenvolvimentos como interligados, e como
parte de algo mais amplo como a mudança social que transforma ou transformou a nossa
sociedade em uma direcção particular.

Assim sendo, a reação dos indivíduos as mudanças sociais tem a ver com a forma como
as alterações se dão, se elas são graduais ou não, e se apenas a algum aspecto relativo aos
hábitos, rotinas e formas de pensar. Se é confrontado com escolhas que muitas das vezes não
dependem exclusivamente de um querer individual. E ao adoptar novas formas de se comportar,
ser, pensar ou até de resistência à elas, os indivíduos contribuem para novas transformações
sociais.

O enfoque na pertença permite-nos examinar quem participa dos argumentos reflexivos


que contribuem para as mudanças na sociedade, quem é excluído destas e com base em que

1
O social é, portanto, aqui definido não em termos de estruturas sociais abstratas ou de uma “cultura” reificada,
mas como algo feito de relações concretas, imaginadas ou virtuais que tem com indivíduos, coletivos, o reino
simbólico ou abstrato das “culturas”, objetos, bem como nossos ambientes construídos e naturais (GIDDENS,
2003).

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fundamentos, e, por fim, os efeitos que essa inclusão e exclusão têm para o Eu. Em outras
palavras, é importante perceber como um sentimento de pertencimento pode ser alcançado e
por quem.

A pertença não deve, entretanto, ser vista como automaticamente superior à não
pertença. Não pertencer pode, de facto, ser o mais produtivo dos dois em termos de mudança
social se, como resultado do questionamento de quem e como os indivíduos constroem
identidades e modos de vida alternativos. Assim, também é crucial examinar quem não pertence
e como as experiências de não pertencimento contribuem para a mudança social.

Aqui se destaca os argumentos de Simmel (1950) e Elias (1994) de que o Eu e a


sociedade não podem ser considerados como duas entidades separadas.

Se vemos o mundo de perto, vemos individuais e suas características, mas à medida


que nos afastamos, nossa perspectiva muda e os indivíduos desaparecem, e o que
vemos em vez disso é a sociedade. Nós interpretamos isso como vendo duas entidades
separadas, mas ambas são, na verdade, visões da mesma coisa vistas de forma
diferente, dependendo de nossa distância (SIMMEL, 1950, p. 9).

Enquanto as explicações estruturais da mudança social postulam uma distinção entre o


Eu e a sociedade comparável à divisão cartesiana interior-exterior, Norbert Elias afirma que a
sociedade se forma a partir de relações entre o “eu”, o “tu”, o “nós” e o “eles” e a dependência
que há uns dos outros. Não há como conceber indivíduos e a sociedade separados já que os dois
são componentes da mesma existência. As sociedades são constituídas por indivíduos ligados
por teias de interdependências dos mais variados níveis. O Eu é um modo de estar em sociedade,
e não algo separado dela (ELIAS, 1994).

Não se assiste aos fatos sociais de uma determinada sociedade, sem que os indivíduos
vivenciem dela, pois, eles estão nela e, vivem nela. E uma das formas pelas quais se vive esse
ser na sociedade é por meio do sentimento de pertencimento ou da falta dele. Perspectiva essa
que oferece uma janela para estudar a complexidade da inter-relação entre as mudanças ao nível
social quanto individual (MERLEAU-PONTY, 1962).

As mudanças sociais estão associadas à transformação em várias esferas da vida.


Muitos países ao nível mundial passaram por grandes mudanças estruturais nas últimas décadas
com implicações na reestruturação, nos sistemas de normas e valores sociais, disseminação da
mídia, tecnologia, mudança no sistema educacional, e da composição populacional.
Moçambique vem testemunhando rápidas transformações na paisagem social, em particular,
nos últimos anos. Os processos de globalização e o avanço das novas tecnologias vêm
impactando significativamente as redes sociais locais.

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Entretanto, e apesar da dinâmica social, o objetivo central e as características
principais dos ritos de iniciação permanecem as mesmas. Isto é, as mudanças (observância do
calendário escolar, rompimento da circuscisao tradicional, redução do período de reclusão) não
trouxeram uma “ruptura radical” e podem estar associadas a fatores como missões religiosas,
programas políticos, mudanças ambientais, sociais e económicas.

1.2 A resiliência dos ritos de iniciação face à modernidade e modernização

As transformações presentes na contemporaneidade trazem em si mudanças que alteram


em parte ou na sua globalidade os sistemas sociais. É essa natureza mutável da ordem que
explica as diferenças entre as sociedades tradicional e a moderna (GIDDENS, 2003, p. 23).

Na tradicional, o indivíduo por estar vinculado ao “lugar” (aldeia, cidade) tem muito
pouco acesso aos eventos que ocorrem em lugares distantes. Como resultado, a experiência e a
consciência estão sempre situadas espacialmente e as instituições são fundamentadas em
costumes e hábitos locais. Assim, esse acesso limitado faz com que o indivíduo se referencie
ao local, e o mundo exterior tem pouca influência sobre as configurações sociais e significações
do mundo-vida.

O que a modernidade faz, no entanto, é aproximar o mundo que estava fora do alcance
por meio da “produção global, comércio, mídia” conexões globais que permitem o
compartilhamento instantâneo de dados (GIDDENS, 2003, p. 23). Assim, os indivíduos nas
sociedades tradicionais, não estão mais exclusivamente vinculados aos hábitos e costumes do
lugar, e suas ações se estendem para além do território familiar.

A mudança global e a ação local estão, por conseguinte, estão entrelaçadas. Isso dá conta
das alterações que se observam nas comunidades, onde o “mundo” está na “ponta dos dedos” e
com ele vem uma infinidade de outras actividades, hábitos e ideias que podem ser aproveitadas,
impactando costumes e crenças. Conforme Entrevistado 5 (2019):

As coisas mudaram muito nos últimos anos, muita coisa apareceu nas nossas vidas e
que não esperávamos que isso acontecesse tão rápido. Falo das escolas primárias do
governo que estão cada vez mais próximas de nós e ensinando os nossos filhos outras
culturas do país e do mundo lá fora. Falo também do aparecimento dos painéis solares
que nos fazem assistir a televisão e nela encontramos outras maneiras de como as
pessoas vivem na cidade e em outros cantos, assim como é possível encontrar
telefones em muitas pessoas aqui na comunidade e que diariamente falam com
pessoas de fora e ouvem o que está acontecendo por lá. Tudo isso faz-nos pensar sobre
nós e no que fazemos como pessoas com costumes e formas de ver o mundo
(Entrevistado 5, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

Uma das características da modernidade é a sua natureza “plástica” que implica numa
transformação infindável de hábitos, normas, valores e costumes como resultado da aquisição

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de novas informações, conhecimentos e recursos. Essa revisão e transformação, que parece sem
fim, é o que aumenta o dinamismo da cultura, uma vez que esta abraça o mundo moderno
(GIDDENS, 2003).

A modernização diz respeito a um processo de racionalização constante, o que a faz


estar mais susceptível a mudanças. Entretanto, as sociedades tradicionais estão conscientes das
consequências que essas modificações podem vir a promover no modo de vida de seu grupo
social. Sua resistência, portanto, aponta para uma outra racionalidade que não é privilégio do
indivíduo moderno Conforme Entrevistado 3 (2019).

Fizemos muitas mudanças na condução dos ritos de iniciação, posso dar o exemplo
de uma mudança que foi feita à nossa revelia, que é calendarizar os meses para a
prática dos ritos de iniciação, de modo que, os iniciados não percam as aulas ou então
possam abandonar a escola. O que antes fazíamos era algo sem programação que
dependia da nossa vontade e da disponibilidade dos meninos, não olhávamos essas
coisas de escola ou qualquer outro programa do governo, porque a iniciação é também
uma escola, então significa que a escola veio romper um pouco com os nossos hábitos
e costumes na realização dos ritos de iniciação (Entrevistado 3, 2019, informação
verbal concedida em 07/02/2019).

Nas comunidades em estudo, os indivíduos ainda participam e vivenciam ativamente


dos costumes e práticas tradicionais, os festivais são observados e até usados como atrações
turísticas. Alguns que vivem em áreas urbanas viajam até às regiões rurais (terra natal) para
realizar ou presenciá-los. Portanto, a modernização não necessariamente quebra os laços com
as tradições, crenças e histórias ancestrais, ela pode manter, assim como promover
“ajustamentos”. Afinal, “tudo o que se apresenta, no mundo social-histórico, está
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico” (CASTORIADIS, 1982, p. 142).

Há aí, portanto, uma relação de interdependência: o sentido de coerência social atribuído


pela sociedade a si mesma precisa do simbólico para “passar do virtual a qualquer coisa a mais”
(CASTORIADIS, 1982, p. 154). E, ao mesmo tempo, os símbolos só possuem sentido por se
pautarem em uma matriz socialmente partilhada, a capacidade imaginária “de ver em uma coisa
o que ela não é, de vê-la diferente do que é” (CASTORIADIS, 1982, p. 154).

Mas o imaginário social não se resume a um fenómeno social de cunho exclusivamente


simbólico, mesmo porque a sociedade também está ligada à sobrevivência material do grupo.
Há aspectos essencialmente funcionais que precisam ser considerados, como a organização da
sociedade e a produção de bens (CASTORIADIS, 1982).

1.3 A resiliência dos ritos de iniciação face às tatuagens e circuncisão masculina

Uma sociedade só pode existir se uma série de funções são constantemente


preenchidas (produção, gestação e educação, gestão da colectividade, resolução dos

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litígios etc.), mas ela não se reduz só a isso, nem suas maneiras de encarar seus
problemas são ditadas de uma vez por todas por sua ‘natureza’, ela inventa e define
para si mesmas tanto novas maneiras de responder às suas necessidades, como novas
necessidades. [...] Os actos reais, individuais ou colectivos, o trabalho, o consumo, o
amor, a natalidade, os inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma
sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, não directamente)
símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica
(CASTORIADIS, 1982, p. 141-142).

A título de exemplo de processos de mudança são as tatuagens e circuncisões


masculinas. Através das entrevistas, sabe-se que, em tempos passados, as iniciadas deviam sair
das cerimónias com o corpo tatuado, sobretudo as laterais da barriga, as pernas e a cintura,
usando instrumentos cortantes como lâminas, facas, arames e agulhas. Esta conduta constituía
uma prática corriqueira e objetivava embelezar o corpo feminino e fazer com que, no futuro, o
marido se encantasse por ela. E mais, essas tatuagens também são um símbolo de sedução para
“apimentar” a relação sexual, Conforme Entrevistado 6 (2019):

No passado, as meninas saiam dos ritos de com o corpo delas preparado e embelezado
a partir das tatuagens que se faziam no corpo delas, ou melhor em algumas partes do
corpo delas como por exemplo nas pernas, cintura e barriga, era uma forma de mostrar
a ela que o corpo de uma mulher não pode ser rígido, deve conter algumas ondas que
permitem que o homem possa apalpar nos momentos mais íntimos quando casarem.
Pois os homens também são preparados nas suas iniciações que só podem casar
mulheres que tem tatuagens e missangas no seu corpo (Entrevistado 6, 2019,
informação verbal concedida em 07/02/2019).

Esta prática foi abolida passando a ser opcional. A sua eliminação está ligada a
problemas de saúde, uma vez que se usa o mesmo instrumento para todas as jovens. Este facto
fez com que governo moçambicano e Organizações Não Gorvenamentais-ONGs realizassem
palestras de sensibilização ao nível das comunidades, alertando para os perigos de partilha dos
instrumentos cortantes e, acima de tudo, das feridas criadas no corpo, que, em várias situações,
provocavam infecções graves. Essa prática permanece para aquelas que assim desejam e deve
se providenciar instrumentos pessoais e, se possível, com uma orientação de técnicos da área
da saúde.

O imaginário social compreende complexos de significado que, ao responder à pergunta


“quem somos nós”, está enfatizando o papel constitutivo da identidade, como condição
fundamental da razão e do fazer humano. As atividades humanas, em todos os seus aspectos,
objetos produzidos, fins, ferramentas, modalidades, e outros, não apenas indicam uma
participação mediada no mundo sócio-histórico, mas uma participação cuja orientação é
determinada a partir de fins do imaginário social (CASTORIADIS, 1982, p. 142).

Nos últimos anos essa questão de tatuagens no corpo das iniciadas já não se faz
durante as cerimónias de iniciação. Todas as comunidades foram ditas pelos líderes

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comunitários para evitar, porque se pensar que ao usamos os materiais de desenho e
corte estejamos a transmitir algumas doenças para elas. Como não tínhamos meios de
limpar o sangue ou trocar os materiais, muitas vezes, usávamos a mesma agulha para
três ou quatro pessoas, então disseram para não mais fazermos, isso. Entretanto a
prática como tal não foi abolida, as pessoas podem continuar a fazer tatuagens, só não
o fazem durante as cerimónias de iniciação e apelamos a não partilhar os instrumentos
cortantes (Entrevistado 4, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

Este é o mesmo cenário, verificado quanto à circuncisão masculina. Atualmente, ela é


praticada pelos técnicos de saúde nos respectivos centros ou em caravanas comunitárias,
mediante o pedido dos pais ou encarregados de educação, desde que o menino tenha uma idade
igual ou superior a 10 anos. Todos os informantes deste estudo relataram que houve mudanças
significativas na forma como as cerimónias de iniciação são realizadas no concernente à
circuncisão masculina, seguindo novos trâmites de caravanas móveis, conforme entrevistado 1
(2019).
Antigamente a circuncisão era o prato forte nas cerimónias de iniciação, fazia parte
ou pacote de aprendizagem, onde este momento simbolizava a força destes para
superarem todas as dificuldades da vida, era feito a sangue frio e ninguém devia
chorar, pois era um exame para descobrirmos se este menino está maduro e preparado.
Mas também não conhecíamos hospitais e nem sabíamos se isso era possível fazer no
hospital, a nossa vida era rodeada das soluções que temos nas nossas matas e nos rios,
uma vida que se cura com remédios tradicionais (Entrevistado 1, 2019, informação
verbal concedida em 06/02/2019).

Estes depoimentos nos remetem a Castoriadis (1982), ao analisar o mundo sócio-


histórico como um contexto formativo não intencional dentro do qual toda a atividade humana
está ocorrendo. As atividades sociais são sempre contextualizadas e as suas manifestações
fazem sempre parte de um quadro de fundo imposto que lhes impõe limites, impede-os ou
transforma-os.

Os elementos do Eu que delimitam a percepção do pertencimento envolvem não apenas


a identificação do sujeito com o seu lugar de nascimento, mas também abrangem as várias
formas de fundamentação de integração, envolvimento e aceitação das normas comunitárias
que são, ao mesmo tempo, sedimentadas durante todo o processo da sua vida, e passíveis de
mudanças, de acordo com os momentos e fases que este possa atravessar.

Assim, é por meio do pertencimento que os iniciados desenvolvem o seu Eu em


diferentes esferas de convivência, pois abrange os laços familiares e comunitários, que vão se
estreitando através de vínculos, referências, vivências e experiências com outros membros da

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comunidade, desenvolvendo sentimento e valores de pertença ao lugar 2. Este sentimento é uma
forma de incentivar os indivíduos a valorizarem e cuidarem do lugar que estão inseridos. A
ideia de pertencimento institui uma construção e reconstrução do Eu que o fará a refletir mais
sobre a vida e as condições existenciais no tempo e espaço onde se encontra inserido.

Neste sentido, pode-se destacar o uso de medicamentos tradicionais que eram aplicados
na ferida e levavam muito tempo para cicatrizar e, por vezes, deixava sequelas e defeitos nos
órgãos genitais dos iniciados. Atualmente, como a circuncisão é feita no ambiente hospitalar,
os meninos recém-circuncidados recebem medicamentos do hospital para auxiliar no processo
de cicatrização. Portanto, a grande mudança, de acordo com estes informantes, é o facto de que
atualmente os indivíduos simplesmente vão ao hospital para serem circuncidados, conforme
Entrevistado 4 (2019).

Esse pacote da prática de circuncisão nos rapazes durante os ritos de iniciação, se


calhar se fazia porque as comunidades não tinham acesso aos serviços de saúde, nem
posto de saúde e muito menos caravanas de saúde passavam que pudessem nos ensinar
mecanismos mais viáveis de condução dessas práticas, só tínhamos um hospital na
vila que a distância é de 50 Km e não havia transporte, teríamos que ir a pé para lá e
não tínhamos conhecimento de que isso se fazia lá no hospital, nem o que era
necessário. Por isso mesmo que arriscávamos a saúde dos nossos meninos com essas
atitudes, veja que muitos deles perderam a vida durante a realização da circuncisão,
perdiam sangue e saltitavam de um lado para outro por não aguentar de tanta dores
(Entrevistado 4, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

Antes, por se fazer recurso a instrumentos cortantes não convencionais, como catanas,
facas, lâminas e agulhas, em detrimento do uso de material cirúrgico, alguns jovens chegavam
a perder os órgãos genitais, provocavam disfunção, adquiriam doenças graves como o HIV, e
até mesmo perdiam a vida. Assim, ela passa a ser feita num momento posterior, por
profissionais de saúde, como forma de salvaguardar a saúde e o bem-estar dos participantes
conforme Entrevistado 5 (2019).

Houve uma campanha muito forte do governo central junto com as autoridades
tradicionais de modo que se fizessem campanhas de sensibilização em torno da
circuncisão masculina tradicional e convencional. O que acontecia anteriormente é
que as comunidades faziam a circuncisão dos meninos durante os ritos de iniciação,
sem com isso obedecer às normas convencionais, como resultado muitos desses
perderam a vida e outros contraíram anomalias nos órgãos genitais. Então, a
campanha era mesmo de sensibilizar a estes a optarem pela circuncisão convencional
ao invés da tradicional, e chegou-se a conclusão que anualmente seriam feitas duas
caravanas nas comunidades, durante o período interrupto das aulas (Entrevistado 5,
2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

2
O lugar é balizado pelo tripé: percepção, experiência e valores. Sendo assim, os lugares preservam e são
carregados de valores que são apreendidos através de experiências do mundo vivido (BUTTIMER, 1982, p. 178).

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O advento da epidemia de HIV/SIDA foi um fator determinante para que houvesse um
desencorajamento da experimentação sexual após as cerimónias de iniciação, bem como a
partilha de indumentos cortantes. Este procedimento, geralmente acontece depois de
campanhas que decorrem durante o ano letivo. Aliás, uma das mudanças na realização dos ritos
de iniciação está diretamente ligada à observância do período escolar em vigor no país.

1.4 A resiliência dos ritos de iniciação face à observância do calendário escolar

No passado, permanecia-se no mínimo um mês no campo de instrução, e não existia um


período do ano estabelecido para tal, bastava apenas uma decisão das autoridades comunitárias
para o caso dos rapazes, e o aparecimento da primeira menstruação, para o caso das raparigas,
conforme entrevistado 1 (2019).

Há muito tempo, demorava-se muito nos ritos de iniciação. Era normal os meninos
ficar lá por cerca de dois meses, e nem havia tempo determinado para a realização,
bastava ter-se um número suficiente de iniciados, encaminhava-se para lá. Mas agora
essas coisas de permanecerem muito tempo na mata já passou, pois as populações
precisam desses meninos para ajudarem na família e não só, também porque
frequentam a escola. Então, houve muita campanha de sensibilização desde 2010
sobre os ritos de iniciação na escola e nos comités das comunidades. Por isso, o
governo decidiu que os mesmos só podiam ser circuncidados no período de férias para
não perderem as aulas (Entrevistado 1, 2019, informação verbal concedida em
06/02/2019).

Muitos pais e encarregados de educação não respeitavam o período escolar dos filhos.
Eles retiravam as crianças da escola e as submetiam a reclusão, o que fazia com que perdessem
aulas ou até o ano escolar. Atualmente, constata-se que as comunidades incentivam aos
iniciados a se empenharem bastante e garantem que todas as cerimónias sejam concluídas antes
do início das aulas, por isso que a duração das mesmas foi reduzida de dois meses para uma a
duas semanas. O restante dos conhecimentos ritualísticos passa a ser feito em casa.

Não existe dia, semana ou mês para levar o seu filho aos ritos de iniciação, no caso
das meninas era automático, no mesmo dia que ela atingia a puberdade era levada de
imediato. Mesmo que esta estivesse a frequentar a escola, era obrigada a largar tudo
e ir à reclusão por mais de um mês, perdendo desta forma as aulas e até o semestre.
Quando regressasse, esta não voltava mais à escola, de um lado porque já tinha
perdido aulas, e do outro lado porque se sentia crescida para permanecer na mesma
sala com os colegas não iniciados, isso fez com que muitos iniciados, sobretudo os do
sexo feminino abandonassem a escola ainda cedo (Entrevistado 6, 2019, informação
verbal concedida em 07/02/2019).

O imaginário social, enquanto rede de sentidos, liga símbolos que são significantes a
significados. Esses sistemas sancionados resultam das atividades da razão e da imaginação dos
sujeitos. Ou seja, é, esse “algo” socialmente partilhado, um conjunto de princípios e
determinações que permite à sociedade reunir-se e criar suas instituições, que são “sistemas

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simbólicos sancionados” (CASTORIADIS, 1982, p. 142) com base nos quais modos de fazer
ou não fazer são colocados para a sociedade e seus membros.

É importante referir que a revisão do tempo de reclusão está ligada aos elevados índices
de desistências e abandono escolar, e também ao fato de se tornarem adultos após o término do
rito. Assim, como adultos não podem mais se juntar a outros que não passaram pelo mesmo
processo sendo considerados crianças.

Anualmente, tínhamos em média de 60% de desistências escolares em todas escolas


primárias sediadas nas comunidades rurais, e a justificativa central era a prática dos
ritos de iniciação. Por isso, fizemos uma reflexão conjunta e decidimos que tínhamos
que sentar com as lideranças comunitárias, de modo que chegássemos a um
entendimento sobre a continuidade destas práticas. Obedecendo o calendário escolar
vigente, os submetidos não colocariam em risco o seu aproveitamento pedagógico, foi
assim que se decidiu que deviam ser praticados no período de férias escolares e no
máximo duas semanas de reclusão (Entrevistado 8, 2019, informação verbal
concedida em 08/02/2019).

Entretanto, há outros fatores que não envolvem apenas a escola, mas também
envolvem questões relacionadas com os custos de realização da iniciação, incluindo o facto de
que a alimentação tem de existir durante os eventos.

1.5 A resiliência dos ritos de iniciação face às mudanças climáticas

Constata-se hoje que as condições de produção agrícola do distrito alteraram. As


comunidades locais, maioritariamente camponesas, não têm campanhas agrícolas desejáveis se
comparado com o passado, em que os rios eram caudalosos e o solo mais fértil. Mas também
pode estar associado à degradação e desgaste do solo.

As coisas mudaram, neste momento agente só cultiva a terra e nada sai, não há comida
como tínhamos no passado, tínhamos água nos rios e nas pequenas montanhas, quase
todo ano, agora só conseguimos ter água no período chuvoso e não chega para dar
conta das nossas culturas: Por causa dessas mudanças, muitas vezes, decidimos adiar
as cerimónias de iniciação dos nossos filhos para serem realizadas no período de
colheita, pelo menos para conseguir vender, comprar comida e vestuário da cerimónia
e também para poder pagar os mestres dos ritos de iniciação (Entrevistado 6, 2019,
informação verbal concedida em 07/02/2019).

Este fator obrigou, também, a comunidade a adiar as cerimónias para o período de


colheita de milho, feijão ou mapira, de modo que as famílias possam custear todo o processo
de iniciação das crianças. A redução do período cerimonial ocorreu, também, para poupar os
gastos com alimentação. E muitas vezes, elas gastam em média 2 a 3 sacos de milho pelo
período de reclusão quando este é feito acima de um mês, conforme entrevistado 2 (2019).

Reduzimos os dias de permanência na reclusão porque muitas famílias não estavam a


conseguir suportar as despesas. Há muito tempo era fácil, tínhamos muita mata em
redor e havia animais selvagens, a terra não estava cansada e conseguíamos produzir
grandes quantidades de comida que era necessária para suportar esses eventos. Mas,

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nos dias actuais, as comunidades passam fome devido à seca e infertilidade das
machambas, é por isso que essas cerimónias são adiadas por mais tempo por causa da
fome e espera-se que as mesmas sejam realizadas no memento em que colhemos os
produtos mais importantes da machamba como é o caso da mandioca, milho, feijão e
mapira, com esses alimentos é possível suportar as cerimónias, não por muito tempo,
mas pelo período limite de duas semanas (Entrevistado 2, 2019, informação verbal
concedida em 06/02/2019).

Por isso, a maioria dos iniciados frequentam os ritos bem mais tarde em relação ao
período estipulado, por exemplo 6 a 8 meses depois. Há falta de recursos para comprar
alimentos e presentes, incluindo roupas e sapatos, principalmente, aqueles que serão usados na
cerimónia de enceramento.

2 CONCLUÇÃO

No distrito de Gurué, aspectos como família, unidade, laços matrimoniais, continuidade


cultural e educação holística destinada à transmissão de valores de geração em geração, coesão
social e harmonia, bem como o fato de que a iniciação em si faz parte da cultura local foram
aspectos salientes que levaram à sobrevivência da prática desses ritos de iniciação.

Os resultados demonstram que as cerimónias de iniciação são realizadas em todas as


comunidades do distrito de Gurué e estas incluem tanto os meninos (Oweleliwa) como as
meninas (Ovula). Entretanto, as questões que envolvem a condução das cerimónias de iniciação
são bastante delicadas e, em alguns casos, é difícil para os atores sociais envolvidos falarem
abertamente sobre todo o processo.

Os ritos de iniciação representam um aspecto importante e integral do Eu na vida


quotidiana, porque marcam a transição de uma fase para outra, e na ausência desta prática, os
indivíduos não são vistos como sendo responsáveis e nem membros plenos do grupo. Por sua
vez, os que já passaram pela iniciação desfrutam de todos os privilégios e responsabilidades na
sua família e na comunidade em geral.

Como notou-se, há modificações ocorridas na realização dos ritos de iniciação devido a


vários fatores e à eles se associa as influências das mudanças climáticas. As cerimónias
sobrevivem em meio as alterações sociais e económicas, no entanto, os valores-chave da prática
foram mantidos. Os símbolos e rituais contribuíram para a criação e manutenção de uma
cosmologia inclusiva e para a preservação de um sistema através da repetição. Isto não
significava que os ritos ignorem novos elementos, mas a visão geral do mundo neles expressa
mostra a manutenção da sua prática.

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O estudo compreendeu, que as comunidades do distrito de Gurué dependem da vida
comunitária, por isso, torna-se imperativo manter a importância dos ritos de iniciação para
permitir a continuidade harmoniosa da vida comunitária. Também é importante destacar que a
família constituída através do casamento é mantida pelos valores da tradição através das
cerimónias de iniciação.

REFERÊNCIAS

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de Guy Reynaud; revisão técnica de Luiz Roberto Salinas Fortes. – Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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OSTERMAN, K. 2000. The Need for Belonging in the School Community. São Paulo: Atlas,
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YIN, R. Estudo de Caso: Planejamento e Métodos. Porto Alegre: Bookman, 2005.

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ENTREVISTA CONCEDIDA

ENTREVISTADO 1. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 06/02/2019).

ENTREVISTADO 2. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 06/02/2019).

ENTREVISTADO 3. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 06/02/2019).

ENTREVISTADO 4. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

ENTREVISTADO 5. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

ENTREVISTADO 6. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).

ENTREVISTADO 7. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 08/02/2019).

ENTREVISTADO 8. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 08/02/2019).

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CAPÍTULO 3
O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO OBTIDO A PARTIR DA REALIZAÇÃO
DOS RITOS DE INICIAÇÃO NO DISTRITO DE GURUÉ, ZAMBÉZIA,
MOÇAMBIQUE

Arcanjo Tinara Nharucué

RESUMO
Os ritos de iniciação no distrito de Gurué, conhecidos como Ovula (sexo feminino) e Oweleliwa (sexo masculino),
iniciação ilustram as formas complexas que várias comunidades culturais elaboram e respondem à transição, às
normas, aos valores, às expectativas, à reprodução e à transmissão de conhecimentos de uma geração para a outra.
Assim, o presente artigo tem como foco ampliar o conhecimento existente em relação à ideia da noção de
pertencimento que o sujeito obtém a partir da realização dos ritos de iniciação. No que concerne aos procedimentos
metodológicos, o estudo privilegiou a abordagem qualitativa e utilizou o delineamento do estudo de caso. As
conclusões deste artigo mostram que Os ritos de iniciação influenciam o pertencimento do indivíduo ao grupo
através dos seus efeitos no modo de ser, estar e agir, que torna-se um ser culturalmente significativo e reconhecido
como actor em um mundo social.

PALAVRAS-CHAVE: Ritos de iniciação; Sujeito; Pertencimento; Identidade; Moçambique.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como foco ampliar o conhecimento existente em relação à ideia
da noção de pertencimento que o sujeito obtém a partir da realização dos ritos de iniciação.

As cerimónias de realização dos ritos de iniciação são vistas como uma marca de
identidade, onde, o indivíduo não iniciado, automaticamente, fica sem identidade e não tem
acesso à sociedade com responsabilidade e é tratado como uma criança. Eles sofrem rejeição
social e não têm direito a qualquer responsabilidade comunitária. Alguns destes fatores têm
repercussões ao nível psicológico que contribuem para motivar os indivíduos a iniciarem e
adoptarem comportamentos condizentes com os benefícios e privilégios que lhes são conferidos
pela passagem no processo da iniciação.

A vida dos indivíduos é um processo de desenvolvimento que envolve várias etapas


desde a concepção até a morte, sendo que cada uma destas tem efeitos significativos no
indivíduo e também na sociedade na qual se encontra. Quase todas as culturas 3 ritualizam os
marcos importantes ao longo da sua vida, desde o nascimento, a infância, a idade adulta, o

3
Em qualquer sociedade, sempre que surge a possibilidade física da interação falada, um sistema de práticas,
convenções e regras de procedimentos entra em jogo funcionando como um meio de orientar e organizar o fluxo
de mensagens. Valerá algum entendimento sobre como e quando será permissível iniciar a fala, entre quem, e
quais tópicos de conversação serão abordados. Um conjunto de gestos significativos é empregado para iniciar uma
enxurrada de comunicação e como um meio para que pessoas se imputem como participantes legítimos
(GOFFMAN, 2011).

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casamento e a morte. Há padrões e formas de comportamento que se transcendem na forma de
arte, música ou histórias.

No distrito de Gurué, a realização dos ritos de iniciação estão enraizados numa tradição
profunda que caracteriza o saber ser e estar das comunidades locais e tendem a se concentrar
fortemente na preparação das gerações mais novas e para a vida futura. Resultam de uma
tradição centenária e que mesmo em períodos de excepção, como o colonialismo e a guerra
civil dos 16 anos, nunca deixaram de ocorrer. Eles são essencialmente cerimónias de transição
da infância para a adolescência, entre 10 e 14 anos de idade, para ambos os sexos, revestindo-
se de um grande reconhecimento social.

Os ritos de iniciação propiciam ao sujeito o sentimento de pertença à comunidade em


que este se encontra. Esta reflexão inclui dois vértices: (i) O Eu e a prática dos ritos de iniciação:
Um caminho em busca do pertencimento e (ii) O sujeito e o sentimento de pertença obtido a
partir dos ritos de iniciação.

1.1. O Eu e a prática dos ritos de iniciação: Um caminho em busca do pertencimento

Como foi anteriormente evidenciado, as cerimónias de iniciação são um fórum


sociocultural no qual os adultos transmitem aos mais novos atitudes e crenças da comunidade
a partir do código de comportamento considerado adequado para a transição de um estágio de
vida para outro.

À medida que o indivíduo passa pelas fases da vida, progride através dos ritos. A
iniciação anda fundamentalmente de mãos dadas com a transformação e é uma questão-chave
em todas as comunidades referenciadas no estudo conforme o entrevistado 11 (2019):

Quando realizamos os ritos de iniciação é mesmo para ensinar os mais novos sobre os
momentos da vida, a partir do nosso passado, presente e aquilo que eles serão no
futuro como indivíduos crescidos. Estou a dizer que todas as pessoas devem passar de
um momento de ensinamento sobre as coisas da vida, por isso mesmo que os ritos de
iniciação constituem o momento em que ensinamos aos outros mecanismos de
respeito, responsabilidade, habilidades da vida e desafios que esses podem ter ao
longo das suas vidas e as formas como devem superar. É isso que também a
comunidade espera deles, saberem cuidar dos outros e responderem às chamadas que
eventualmente a comunidade lhes pode fazer em algum momento (Entrevistado 11,
2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

A afirmação acima, corrobora com Baumeister e Leary (1995) ao descreverem que em


todas as sociedades constata-se a necessidade que os indivíduos têm de pertencer a algo, a
grupos sociais. Tal necessidade, está ligada a uma dimensão vinculada ao próprio sujeito, uma
motivação bastante forte para buscar conexões e serem aceites pelo Outro, a partir do processo

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de pertencimento 4, que motiva a busca por relações sociais profundas e positivas presente em
todos os indivíduos. E quando há essa ausência constata-se consequências negativas, tanto
psicológicas quanto fisiológicas.

Como nos alerta Castoriades (1982), a sociedade existe dentro da 'instituição', que é um
princípio estrutural-formal que designa a construção do social em geral. Assim, a instituição,
portanto, está por trás dos sujeitos como a convenção (nomos) da sociedade e como essa
condição transcendental para a definição de uma comunidade através da abertura de um mundo
significativo. Não se pode falar de seu status ontológico em nenhum sentido positivo fora de
um universo de significações imaginárias da sociedade 5.

Com os ritos de iniciação pretendemos transmitir a todos os indivíduos da nossa


comunidade os conhecimentos comuns entre homens e mulheres sobre como devem
ter uma vida aceite na comunidade. Não pode haver diferenças de comportamentos
ou conhecimentos entre indivíduos do mesmo sexo, é por isso mesmo que realizamos
os ritos de iniciação como forma de harmonizar ou padronizar conhecimentos
comuns, de modo que a nossa comunidade seja segura com indivíduos que respeitam
e sabem se comportar de acordo com o que nós como comunidade desejamos para
eles (Entrevistado 12, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

A ideia de pertença está ligada ao sentimento de comunidade, uma vez que a pertença a
uma comunidade assenta numa série de semelhanças e cria diferenças e fronteiras com outras
comunidades 6, isto é, quando o foco recai sobre essas fronteiras, o sentimento de pertença torna-
se relevante (JENKINS, 2008, p. 135).

A vida existe porque há uma linguagem 7 comum, que se compartilha com os outros.
Através dela os indivíduos são capazes de definir e expressar em palavras a realidade, tal como
a percebem. Ela opera de acordo com suas próprias regras, que devem ser respeitadas. A
linguagem tem a capacidade de ligar diferentes zonas dentro da realidade da vida quotidiana e
integrando-os em um todo significativo (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 39).

4
A questão da necessidade de pertencimento humanoédefinido por Baumeister e Leary (1995), como sendo “uma
motivação que seres humanos têm para procurar e manter laços sociais profundos, positivos e recompensadores.
Dessa forma, ela se refere não só à necessidade de estar inserido em um grupo, mas à qualidade dos laços
estabelecidos com outros indivíduos e o sentimento de aceitação presente”.
5
Para Castoriades (1982), as significações imaginárias não existem para representar outra coisa. São as
articulações finais, a sociedade impôs ao próprio mundo as suas necessidades, os padrões organizadores que são
condições para a representatividade de tudo que a sociedade pode dar a si mesma.
6
Comunidade no sentido mais amplo indica um grupo de pessoas que vivem no mesmo espaço ou têm uma ou
mais características comuns. Pertencer a uma comunidade tende a levar a uma dupla percepção de “nós” e “eles”
(JENKINS, 2008, p. 135).
7
A linguagem como sistema de signos da sociedade humana que se origina na situação face a face. Onde, as
experiências comuns da vida quotidiana são mantidas principalmente pela significação linguística (BERGER;
LUCKMANN, 2004, p. 39).

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Após a realização da cerimónia de iniciação, o indivíduo passa a não poder ser vedado
a realizar ou fazer parte de certos atos ou eventos comunitários que inicialmente estavam fora
do seu alcance. Significa que, esta conduta constitui um aspecto importante e integral do Eu na
vida quotidiana e, na ausência, os indivíduos não são vistos como sendo responsáveis e nem
membros plenos do grupo. Por sua vez, os que já passaram pela iniciação desfrutam de todos
os privilégios e responsabilidades em suas famílias e na comunidade em geral. Neste ditame, a
iniciação é uma marca de unidade e identificação comunitária.

Logo, depara-se com o imaginário social que compreende complexos de significado


que, ao responder à pergunta “quem somos nós”, estão enfatizando o papel constitutivo do Eu,
como condição fundamental da razão e do fazer humano. As atividades humanas, em todos os
seus aspectos, objetos produzidos, fins, ferramentas, modalidades, etc., não apenas indicam
uma participação mediada no mundo sócio-histórico, mas uma participação cuja orientação é
determinada a partir de fins do imaginário social. Dessa forma, Castoriadis (1982) abre espaço
para ver a constituição do mundo sócio-histórico por meio da participação mediada do fazer
humano, conforme o entrevistado 15 (2019).

O que se ensina nos ritos de iniciação é como se fosse uma ponte, em que para poderes
estar do outro lado do rio, deves passar pela ponte, então o objectivo dos ritos de
iniciação é exactamente ensinar os mais novos a passarem correctamente por esta
ponte, de modo que eles estejam capacitados de conhecimentos sobre as boas
maneiras de pertencer às comunidades e passarem a ser úteis aos mais velhos e às
gerações mais novas. É só com esse processo feito que às pessoas aqui da comunidade
é permitido fazer parte ou participar dos eventos e de algumas cerimónias importantes
da comunidade em que só podem estar lá presentes pessoas com o processo de
iniciação concluído e com comportamento aceite pelos mais velhos e outros membros
da comunidade (Entrevistado 15, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

Neste contexto, a iniciação é uma parte vital do grupo social em estudo e os objetivos
dos mesmos é o sentimento de pertencimento, em forma de cerimónia de transição de em
estágio para outro, na vida social comunitária, que inclui, educar, socializar, transmitir a moral
e os valores, crenças e habilidades reconhecidas e conferidas pela comunidade. Assim, estas
cerimónias, para ambos os sexos, devem incluir pelo menos dois participantes, um iniciado e
um mestre.

Nas comunidades em estudo, como já destacado, os participantes de ambos sexos, são


retirados da comunidade para um lugar secreto e isolado, longe das tarefas quotidianas. Como
se viu, o período no acampamento não é para diversão, mas sim um momento em que se
experimenta um amadurecimento emocional por meio de situações difíceis e de humilhações,
para que possam lidar com os diversos desafios da vida adulta. Apesar de tal tratamento, a

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atitude geral apresentada pelos (as) participantes é a de aceitação das normas estabelecidas
como parte do processo de transição para a nova fase da existência, conforme o entrevistado 13
(2019).
Todo o processo de iniciação deve acontecer longe da casa dos iniciados, longe dos
olhos dos pais ou encarregados de educação, das crianças e de todos aqueles que não
foram iniciados. Por isso mesmo, construímos pequenos abrigos no interior da mata
para podermos ficar isolados dos demais, a fim de que estes iniciados não tenham
vontade de regressar à casa para ver os seus pais ou amigos e que se concentrem
exclusivamente nos ensinamentos que vão recebendo sobre os objectivos da iniciação
(Entrevistado 13, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

A instrução, pois, tem características educativas que visam construir traços de carácter,
de forma que os iniciados estejam aptos (as) a enfrentar os desafios, do auto-controle, paciência,
força, castidade e virilidade, que são transmitidos através do ensino implícito, mas também
através da vivência de privações, punições e críticas contundentes.

Deste feito, os ritos de iniciação são construções socioculturais, atuam como reforço ao
comportamento individual e do grupo, por meio da repetição periódica. Isto é, comportamento
simbólico que é socialmente padronizado e repetitivo. Portanto, eles dão sentido à vida daqueles
(as) que deles participam, como também significam a sua existência facultando-lhes o
sentimento de pertencimento a algo que os transcende. Eles agem como uma força propulsora
para revitalizar as forças da vida coletiva. Eles são um meio de expressar os pontos de vista das
comunidades e suas aspirações.

Aqui, a noção do pertencimento deve ser entendida como um fator gerador de estímulo
que potencializa o processo de interiorização de normas e valores socioculturais dos indivíduos
que primam pelo convívio em comunidade. Ou seja, este influencia como o sujeito percebe e
se comporta no meio social. A valorização da aceitação e a necessidade de estabelecer laços
torna o indivíduo mais apto para operar no meio em que se encontra.

Através do vínculo, as relações interpessoais se estabelecem dando significados a


assimilação e interiorização de normas vigentes que vão para além da simples memorização ou
reprodução de conteúdos. Esse fator também funciona como gerador de sentimento de bem-
estar e auto-estima, da presença do indivíduo na comunidade.

O sentimento de pertença, abrange a relação do sujeito com o contexto ambiental do


qual participa e com as redes de relacionamento com as quais interage. Este opera
transformações ao mundo a que pertence e o mundo, por sua vez, também proporciona
transformações a esse sujeito, numa relação dialética, que entende o seu contexto enquanto

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parte indissolúvel de sua composição subjetiva e estimula de forma potencializada as
aprendizagens inerentes a essa interação.

1.2 O sujeito e o sentimento de pertença obtido a partir dos ritos de iniciação

Pertencer refere-se aos processos dinâmicos do indivíduo de construir conformidade


com sistemas de valores políticos específicos e localizações sociais em múltiplos níveis que
determinam as relações deste com grupos, comunidades, instituições e entidades e, igualmente,
possibilitam uma experiência de envolvimento (BAUMEISTER; LEARY, 1995; YUVAL-
DAVIS, 2011).

A orientação social de um indivíduo refere-se à maneira como este vê a si em relação


aos que o cercam (por exemplo, parentes ou amigos), sua comunidade e até mesmo a sociedade
em geral (KITAYAMA et al., 2010). Este, estrutura fundamentalmente a maneira como vê o
seu lugar ao seu redor e no mundo social, que papéis se esperam que desempenhe ou cumpra,
e qual comportamento é socialmente aceite de acordo com a sua posição social.

O Eu e a orientação social são inseparáveis, pois constituem as componentes da auto-


identidade do indivíduo, orientam o comportamento social deste e, tem uma significativa
importância, ao incorporar uma variedade de codificações, expectativas e crenças. Assim, as
normas e práticas sociais defendidas por uma cultura particular moldam ou estruturam a vida
social dos indivíduos.

É neste contexto que os ritos de iniciação, por se tratar de uma cultura coletivista, tende
a promover relações sociais baseadas em reciprocidade mútua entre os indivíduos, com fortes
laços entre si, muitas vezes de base familiar. As interações sociais são geralmente centradas em
necessidades comuns ou capacidade de resposta a recursos contextuais (KITAYAMA et al.,
2010).

Diante do material de campo, das observações feitas no terreno, das entrevistas


realizadas vê-se que o sistema de ensino tradicional é um factor-chave e que funciona como
fonte de valores que a sociedade reconhece. Os mestres dos ritos conduzem a iniciação a fim
de transmitir um conhecimento que se constitui em um distintivo cultural que identifica
diferentes grupos/comunidades.

Anualmente, dezenas de meninas e meninos são submetidos ao processo de iniciação


nas comunidades em estudo, retratando as crenças, costumes e o pertencimento comunitário.
Assim, após o término das solenidades, os iniciados não mais podem brincar com aqueles que
não tenham passado pelo ritual. Eles e elas adquirirem conhecimentos e saberes que os

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diferenciariam de quem ainda não as vivenciou, mostrando uma clara cisão dentro da própria
comunidade, estabelecem hierarquias e relações.

A reflexão sobre a relação sujeito e sociedade produziu inúmeros estudos nas mais
diversas áreas do conhecimento e tem sido alvo de discussões académicas.

Cada indivíduo singular está realmente preso; está preso por viver em permanente
dependência funcional de outros; ele é um elo nas cadeias que ligam á outras pessoas,
assim como todas as demais, directa ou indirectamente, são elos nas cadeias que as
prendem... São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém menos reais e
decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham
umas em relação às outras, a ela e nada mais, que chamamos de sociedade (ELIAS,
1994, p. 35).

Desta feita, a sociedade deve ser vista como algo indissociável do indivíduo e este dela.
Ela é composta por um emaranhado de sujeitos que entre si criam, dão vida, consolidam
relações interpessoais e interdependentes e, por conseguinte, a formam e a consolidam. Não há
sociedades sem indivíduos e um inexiste sem outro numa relação dialética. Assim, “o indivíduo
é parte de um todo maior, que ele forma junto com outros” (CASTORIADIS, 1982, p. 61).

O imaginário social, enquanto rede de sentidos:

Consiste em ligar símbolos (significantes) a significados (representações, ordens,


injunções ou incitações para fazer ou não fazer, consequências e significações, no
sentido amplo do termo) e fazê-los valer como tais, ou seja, a tornar esta ligação mais
ou menos forçosa para a sociedade ou o grupo considerado (CASTORIADIS, 1982,
p. 61).

Logo, esses sistemas sancionados resultam de atividades racionais e do imaginário.


Neles aparecem crenças e fantasias, desejos e necessidades, sonhos e interesses, raciocínios e
intuições, ou seja, uma gama de elementos fundantes do processo de simbolização. O
imaginário social não é, pois, reflexo da realidade, mas sim, seu fragmento. Ele institui de forma
histórica e culturalmente, o conjunto das interpretações, de experiências individuais, vividas e
construídas coletivamente, na medida em que, valores, normas e interdições, como códigos
coletivos, são internalizados, apropriados pelos agentes sociais.

Basicamente os ritos de iniciação desempenham o papel de integração dos indivíduos


na comunidade, antes de esses serem iniciados. É como se não pertencessem à
comunidade, então eles só podem ser iniciados para estarem ao nível dos outros e a
partir daí integrá-los na comunidade como forma destes poderem viver em harmonia
com os outros, em outras palavras, você só pode pertencer a comunidade se passar
dos ritos de iniciação, que é a principal condição, assim todos estão falando da mesma
coisa (Entrevistado 12, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

Tanto as significações sociais imaginárias quanto as instituições se cristalizam ou se


solidificam, e é isso que se chama de imaginário social instituído. Ele assegura a continuidade
das sociedades, a reprodução e a repetição das mesmas formas que a partir daí regulam a vida

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dos indivíduos e que permanecem o tempo necessário para que uma mudança histórica lenta ou
uma nova criação maciça venha transformá-las ou substituí-las radicalmente por outras
(CASTORIADIS, 1982).

Tudo que se apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente entrelaçado


com o simbólico. Não se esgota nele. Os atos reais, individuais ou coletivos, o trabalho, o
consumo, a guerra, o amor, a natalidade, os inumeráveis produtos materiais sem os quais
nenhuma sociedade poderia viver um só momento, não são (nem sempre, são diretamente)
símbolos. Mas uns e outros são impossíveis fora de uma rede simbólica de significações
(CASTORIADIS, 1982).

Por isso, a necessidade de pertencimento influencia a maneira como o sujeito percebe e


se comporta no meio social. A valorização da aceitação e a necessidade de estabelecer laços
tornam os indivíduos adaptados para se integrarem num determinado grupo/comunidade, onde
podem legitimar seu Eu em suas diferentes formas de convivência.

Entende-se que as significações imaginárias partem de um simbólico para existir, o qual


é construído histórica e coletivamente, contornando as formas de agir e de pensar das
sociedades. Portanto, quando se fala de significações imaginárias, trata-se de algo que está no
nível prático da vida coletiva (real), não à fantasia ou alucinação.

Portanto, o ato de pertencer significa partilhar características, vivências e experiências


com outros membros, desenvolvendo sentimento de pertença, que pode ser percebido em
analogia aos processos de socialização primária e secundária (BERGER; LUCKMANN, 2004).

Os ritos de iniciação no qual auferimos durante a realização do trabalho de campo,


demonstram essa dualidade da relação indivíduo e grupo social, na medida em que nele se
expressam crenças e costumes que definem o lugar do sujeito, através da realização de práticas
ritualísticas. É o espaço onde os indivíduos constroem ideias de “quem somos”, “o que
fazemos”, “de onde somos” e “para onde vamos” que são retratados em costumes e tradições.

Uma parte do nosso costume é a forma de encarar a vida, está dentro dos ensinamentos
dos ritos de iniciação, portanto qualquer pessoa da nossa comunidade só pode se
considerar pertencente a nós se realmente passar pela iniciação. Pois é lá onde esta
pessoa adquire conhecimentos do passado e do agora das nossas comunidades, a partir
dos ritos de iniciação que são o caminho para se inserir na vida da comunidade
(Entrevistado 11, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

O Eu formado a partir dos ritos de iniciação resulta da interação entre o indivíduo e a


sociedade. No entanto, é a partir da relação com diversas esferas culturais que o Eu se estabelece

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Humanas, Volume 1.
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conforme (HALL, 2006). Existem três concepções distintas a saber: do sujeito do iluminismo,
o sujeito sociológico e o sujeito pós-moderno.

No iluminismo o sujeito é um indivíduo centrado e unificado. Tudo lhe é pré-


estabelecido ao nascer, como verdade e destino irrefutáveis. Enquanto a concepção de sujeito
sociológico é o retrato da complexidade do mundo moderno desconstruído da autonomia que
lhe foi inferida no iluminismo, pautado na interação do Eu e dos “indivíduos as quais lhe são
caras”, que lhe imbuíam os valores, signos, símbolos que culturalmente permeiam o mundo em
que habitam sem muitas inconstâncias e que lhe soa previsível, impactando em certa
estabilidade. Na pós-modernidade, o sujeito se depara com outro cenário, solapado por uma
avalanche de informações, de transformações e repleto de inseguranças e dúvidas, seu Eu é
interpelado constantemente pela efemeridade dos aspectos da vida contemporânea, na qual nada
é reconhecido como inabalável e uno, tudo é líquido (HALL, 2006).

O pertencimento relaciona-se aos laços familiares, grupais e comunitários, o ser membro


de uma dada sociedade/grupo. E outras relações que vão se estabelecendo criam vínculos,
referências e valores formais e informais nos quais o indivíduo participa a partir de um
reconhecimento mútuo. Isto é, constitui-se pelas relações comunitárias, pelas construções de
referências, valores de pautas de condutas e distribuição de poderes que são inerentes à pertença
grupal.

O pertencimento teria pois três níveis de significações: (i) o primeiro é referente às


estruturas analíticas que exploram a noção de pertencimento pela análise de posições sociais,
dos processos de identificação, dos elos emocionais e dos valores éticos e políticos; (ii) o
segundo denomina-se como estruturas políticas de pertencimento, que enfoca as políticas de
inclusão e de como as estruturas se inserem nas diversas ações e projetos como, por exemplo,
pelo direito ao exercício da cidadania e as ações participativas, evidenciando-se, portanto o
direito de status no grupo de pertencimento; (iii) o terceiro nível estrutura a mecânica de
pertencimento em projetos políticos que compreendem determinadas características de um
indivíduo. Eles são selecionados por distintos significados específicos por possuírem ou não
tais características. Assim, é através desses três níveis de estrutura que os processos de
pertencimento se constroem (YUVAL-DAVIS, 2006).

Fazer ritos de iniciação é uma tradição que envolve os nossos costumes e hábitos. É
verdade que algumas coisas foram mudando com o tempo, mas a raiz deles contínua,
fazer com que os mais novos conheçam um pouco daquilo que se exige ser necessário
para homens e mulheres nas nossas comunidades, de modo que amanhã agente não
possa estar envergonhado de nos mesmos. Então tentamos ensinar um pouco daquilo
que fomos ensinados, recorrendo às condições existentes agora, porque nos obrigam

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Humanas, Volume 1.
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a pensarmos como fazer os ritos de iniciação olhando para nós nesse momento, o que
de certa forma era diferente no passado (Entrevistado 14, 2019, informação verbal
concedida em 10/02/2019).

Logo, os indivíduos adquirem conhecimento e experiência sobre uma determinada


cultura, através da vivência de práticas quotidianas que lhes conferem uma dinâmica no
processo social. Portanto, o grau de pertencimento de um sujeito pode ser observado nas formas
de organização social e de associação vivenciadas pelos sujeitos. Quando se está identificado a
um grupo específico, seja de parentesco ou de vizinhança, torna-se, ao mesmo tempo, um
membro reconhecido pela comunidade como um todo e como pertencente a mesma cultura
(BAGNALL, 2009).

2 CONCLUÇÃO

O significado sociológico do pertencimento implica em concepções do que é, em última


análise, “bom, apropriado ou desejável”, isto é, não significa apenas o que os indivíduos
querem, mas o que eles “deveriam querer”. Os valores culturais de uma comunidade são,
portanto, coisas que os seus integrantes acham que vale a pena e podem legitimar. Como tal,
quando estão as comunidades em estudo determinando que vale a pena realizar os ritos de
iniciação para seus membros, isso expressa o grau de pertencimento que estes têm com o
grupo/comunidade, para garantir a continuidade de sua história coletiva.

A realização dos ritos de iniciação no Distrito de Gurué inspira-se não só na necessidade


de pertença, mas também no sentido do valor dos mesmos como altamente estimados e
fortemente mantidos na socialização dos indivíduos. Valores esses que incluem solidariedade,
interdependência e harmonia social.

O sentimento de pertencimento baseado em experiências, geralmente aponta para algo


relacionado com o Eu. Isto é, pertencer a um determinado grupo/comunidade evoca a noção de
lealdade que pode ser expressa através de rituais que são criados, perpetuados e modificados,
de modo a dar maior importância à compreensão identitária nos níveis individual e coletivo.

Os ritos de iniciação influenciam o pertencimento do indivíduo ao grupo através dos


seus efeitos no modo de ser, estar e agir. Por meio desse processo de inculturação, o indivíduo
como uma entidade biológica torna-se um ser culturalmente significativo que é reconhecido
como ator em um mundo social.

Por isso mesmo, a pessoalidade é sempre fundamentada nas complexidades de


entendimentos consensuais e rotinas comportamentais habituais e relevantes para ser um
indivíduo em um determinado contexto cultural. Tais entendimentos e práticas influenciarão a

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Humanas, Volume 1.
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forma e o funcionamento dos processos que compreendem ao indivíduo ser sujeito e ator social
numa determinada comunidade.

Assim, existe um vínculo comum entre o indivíduo e a comunidade, e é por este meio
que este descobre a sua própria essência. Os ritos de iniciação não podem ser considerados
como uma entidade separada, a ser entendida e tratada individualmente, mas devem sempre ser
vistos como inseridos em um contexto social.

REFERÊNCIAS

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Educação, Cidadania e Exclusão: Gênero E Pobreza: Imagens da Escola, 3. Rio de Janeiro:
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2009.

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de Guy Reynaud; revisão técnica de Luiz Roberto Salinas Fortes. – Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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Tradução de Fábio Rodrigues R. da Silva. Petrópolis, Vozes, 2011.

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Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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London: mSage, 2006a.

YUVAL-DAVIS, N. The politics of belonging: intersectional contestations. London: mSage,


2011.

ENTREVISTA CONCEDIDA

ENTREVISTADO 4. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação com


rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista concedida a
Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

ENTREVISTADO 12. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação


com rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista
concedida a Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

ENTREVISTADO 13. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação


com rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista
concedida a Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

ENTREVISTADO 14. Do tradicional à modernidade, a resiliência dos ritos de iniciação


com rostos do passado no distrito de Gurué, Zambézia, Moçambique. [Entrevista
concedida a Arcanjo Nharucue]. Gurue, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).

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CAPÍTULO 4
OS LAZERES EM JUBIABÁ – CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA E
CONHECIMENTO GERACIONAL 8

Danilo da Silva Ramos 9

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discutir, por meio da análise da obra 'Jubiabá', de Jorge Amado, as
possibilidades que o lazer proporciona para a construção da identidade e a transmissão de conhecimento para a
população negra, bem como a subversão necessária para que algumas pessoas negras tenham acesso ao lazer.
Como metodologia, foi realizada uma intersecção entre a análise do discurso e a análise de conteúdo. A
necessidade de trazer a literatura para construir trabalhos que coloquem a raça como ponto central de análise no
campo dos estudos do lazer, que possui uma produção incipiente especificamente sobre este tema, foi uma das
características condutoras do texto. O resultado demonstra que os discursos inseridos nesta obra específica nos dão
pistas sobre a maneira pela qual o lazer pode influenciar na trajetória histórica de um indivíduo e em sua
consciência racial.

PALAVRAS-CHAVE: Negritude; Lazer; Literatura.

1 NOTAS INTRODUTÓRIAS

A construção da história é feita a partir da definição do historiador e/ou da historiadora


de quais fontes irá utilizar, pois, a sua problematização auxilia na definição dos caminhos a se
percorrer durante a escrita. São vários elementos que podem servir como fontes historiográficas,
cada qual com suas debilidades e potencialidades, a exemplo posso citar os jornais, documentos
oficiais dos governos, obras de arte, fotografias, documentos cartoriais, mapas e outros. A
produção literária de cada período também pode ser utilizada como fonte para a historiográfica,
como indica Barros (2020) e Farias et al. (2021) que fazem uma crítica ao historiadores e
historiadoras pela pouca utilização da literatura como fonte para os trabalhos neste campo do
conhecimento científico, ao passo que com a devida “crítica das fontes” tem possibilidade de
auxiliar na construção da História. Em minha percepção este é um tipo de fonte que,
historiadores e historiadoras, pode-se utilizar em trabalhos, pois fornecem em certa medida
horizontes que não estão presentes nos jornais, documentos oficiais e outros. Tendo sempre o
cuidado ao tratar estas fontes, ao passo que não estão ilesas aos dogmas de seu produtor,
podendo até mesmo refletir os padrões de seu período histórico no momento de sua criação.

8
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES (Bolsa CAPES).
9
A primeira versão deste trabalho foi apresentada no III Congresso da Rede Internacional de Estudos Culturais
Interculturalidade e movimentos sociais: raça, classe e género e será publicado na coletânea do evento. Este texto
possui uma revisão deste primeiro conteúdo.

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A possibilidade de utilizar a literatura como fonte historiográfica está ancorada em ações
que são de um campo da microescala de atuação de seus produtores e canonicamente nas
possibilidades indicadas pela Escola dos Annales, a partir dos anos 70, movimento
historiográfico surgido na Europa Ocidental e que trouxe consigo uma revolução nas fontes na
história cultural, como indicado por Chartier (1990) e Barros (2010). Este movimento teve
grande impacto sobre a historiografia ocidental como indicado pelo último autor.

O movimento de dedicar trabalhos inteiros sobre as discussões dos lazeres em obras da


literatura ainda é pouco explorado pelos historiadores e historiadoras desta dimensão da
historiografia. Como exemplo, posso citar os trabalhos de Melo (2006) faz a opção de usar, por
exemplo, o cinema e a literatura para analisar a construção de um ideário de identidade nacional
a partir de dois dos maiores jogadores da história do futebol mundial, Garrincha e Pelé.
Mostrando a potencialidade das fontes literárias sobre os lazeres para os trabalhos acadêmicos,
Ramos (2022) irá discutir os lazeres presentes em alguns contos selecionados da obra “Olhos
D`agua” de Conceição Evaristo, trazendo a tona os elementos que confundem a ficção com a
realidade e suas intersecções com o campo dos estudos do lazer 10. Cabe destacar que em ambos
os trabalhos citados os autores indicam as limitações dos textos literários, como por exemplo
seu carácter ficcional e que são verdadeiros espelhos da realidade daqueles que os produz, ou
seja, expressam as ideologias de seus autores e autoras em seu tempo e espaço, contendo todas
as relações interseccionais cabíveis aos criadores e criadoras da literatura.

O trabalho em tela tem como objetivo analisar a obra “Jubiabá”, escrita por Jorge
Amado, publicada em 1935, discutindo os lazeres contidos na trajetória de Antônio Balduíno,
o Baldo. Em resumo, a obra narra a história de vida de Baldo, passando por todas as lutas que
ele enfrentou para se manter vivo e as marcas que como uma pessoa negra carrega nesta tarefa,
que é árdua e dura, porém, possui seus momentos magia, felicidade e plenitude.

Parto também com o movimento de refletir sobre os lazeres, em sua trajetória, foram
capazes de auxiliar na construção de sua identidade enquanto um homem negro. A justificativa
para sua escrita está enraizada em meus estudos sobre os lazeres da população negra. Acredito
que seja importante demonstrar como a vasta obra de Jorge Amado, especificamente neste
trabalho Jubiabá, pode trazer vestígios das relações que os lazeres que atravessaram os viveres

10
Existe uma série de outros autores e autoras que poderiam ser citados, mas devido as características deste
trabalho me limitei a citar os que aqui estão.

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Humanas, Volume 1.
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das pessoas, podem influenciar de diversas maneiras as jornadas destas pessoas, ressalvados as
críticas já indicadas anteriormente. Como metodologia, realizei a leitura da obra e busquei
compor minha abordagem a partir do discurso literário presente nela, destacando a presença
dos momentos de lazer. Como base teórica para essa finalidade, faço referência ao trabalho de
Caprioli e Moraes (2017), onde indicam que os processos para análise documental da literatura
devem se atentar para mobilizar os termos escolhidos pelos literários para apresentar aquela
realidade proposta, onde irão se confundir os tempos históricos (passado, presente e futuro).

2 “NEGRO NÃO PODE FAZER NADA, NEM DANÇAR PARA SANTO. POIS VOCÊS
NÃO SABEM DE NADA. NEGRO PODE TUDO, NEGRO PODE FAZER O QUE
QUISER.” – CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA, CONHECIMENTO
GERACIONAL E LAZER

Baldo tem em pai Jubiabá uma figura que lhe transmite conhecimentos geracionais ao
longo da sua jornada, desta relação cabe destacar sua introdução no Candomblé, onde Jubiabá
era autoridade máxima e a importância da oralidade para a população negra, identificada por
conhecimentos transmitidos por Jubiabá à Baldo ao longo da história. É marcante na obra a
apresentação do Candomblé como espaço para socialização das pessoas negras, ao passo que
todos e todas terão suas responsabilidades no terreiro de pai Jubiabá, neste ponto, ressalto que
Carvalho (2011) indica como o aumento a repressão contra o Candomblé por parte do estado e
consequentemente da polícia no mundo real, em um momento que a prática era proibida por
lei, teve influência nas obras de Jorge Amado. O candomblé foi um espaço importante para
criação de redes de ajuda na obra, além de ser espaço para a construção da luta política, inclusive
quando Baldo faz uma fala com o intuito de fortalecer o sentimento de pertencimento de classe
naqueles e naquelas que estavam presentes, diz.

Os ricos mandam fechar a festa de Oxossi. Uma vez os polícias fecharam a festa de
Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia.
Vocês se lembram, sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada,
nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, para tudo,
para guindastes, para bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes.
Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é
mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto
é mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente, vamos pra lá
(AMADO, 2008, p. 208).

O Candomblé como espaço para religiosidade, sociabilidade e construção de identidade


racial através da transmissão geracional de conhecimento, tornando-se como potencial para
transformações sociais, também foi analisado por Souza et al. (2017) onde apontam a partir da

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análise do discurso que a manutenção da prática é uma demonstração do poder da população
negra.

O botequim, Lanterna dos Afogados, foi outro espaço de sociabilidade presente em


diversos momentos da obra. Lá foi o local onde se cantaram sambas sobre o período da
escravidão e das lutas do povo negro, espaço para a busca por amores, além disto, foi um local
para conversas regadas a bebida. Em síntese, é caracterizado como espaço onde as pessoas

Discutiam longos cruzeiros marinheiros loiros e negros. Mestres de saveiros


conversavam sobre as feiras do Recôncavo para onde levariam os seus barcos cheios
de frutas. Tocavam violão, cantavam sambas, contavam histórias de arrepiar nas
noites imensas de estrelas. E mulheres desciam da Ladeira do Taboão para a Lanterna
dos Afogados (AMADO, 2018, p. 58).

Neste trecho acima notam-se as possibilidades que existiam em um botequim como


transmissão de conhecimento, consumo de álcool, trocas de experiências, circulação de ideias
políticas, formação de identidade, paquera e daí por diante. Nestes locais, cabe destacar, havia
seus próprios códigos comportamentais. Desta maneira, é possível inferir que para Amado
(2019) os botequins eram pertencentes à cultura popular e consequentemente parte dos lazeres
da população negra. Assim, devido a seu caráter, os botequins foram marginalizados na
realidade, Queirós (2016) demonstra como eles cumpriram um papel histórico, por serem
espaços de sociabilidade, nas primeiras greves do período da Primeira República em Porto
Alegre, Rio Grande do Sul. Nesta esteira, e em outro tempo histórico, Thompson (1987) irá
demarcar a potencialidade subversiva dos botequins, analisando que sua existência e raiz foram
suficientes para as marginalizações vindas das classes exploradoras. Ainda sobre este trecho,
cabe indicar que o botequim é caracterizado como espaço que contêm pessoas de diversas raças.

Na passagem de apresentação da infância de Antônio Balduino, o autor irá indicar o


elemento da violência com uma constância em seu cotidiano. Em parte, observa-se como um
elemento de necessidade, com um caráter de banditismo como apresentado por Hobsbawm
(1981) falando sobre outra realidade, mas especificamente tratando de um banditismo que pode
ser considerado como heroísmo. Em alguns momentos da juventude do personagem principal,
infiro em alguns momentos a violência como um elemento de diversão. Como necessidade é
perceptível em alguns trechos em que Baldo e sua gangue furtavam para se alimentar e inclusive
conseguir recursos para se divertir em festas, como na passagem “Antônio Balduíno pegou os
dez mil-réis, guardou a navalha e o grupo todo abriu na carreira, se espalhando pelas ruas
próximas. Faziam estas violências quando estava próximo o carnaval, a festa do Bonfim, as
festas do Rio Vermelho” (AMADO, 2019). E mesmo nas péssimas condições de vida de sua

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Humanas, Volume 1.
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infância e de seus companheiros, sempre houve espaço para o lazer, um lazer marginal não em
formato, mas em sua forma (ao passo que quebravam várias regras para o acesso), notem a
possibilidade de criação de vínculo através destes espaços, além da percepção do uso dos
espaços pela condição socio racial, como no trecho abaixo indicado.

Viveram a mesma vida solta dois anos. Dois anos correndo pela cidade, assistindo
partidas de futebol e lutas de boxe, brigando, penetrando no Cinema Olímpia, ouvindo
as histórias que o Gordo contava sem notar que estavam crescendo, ficando homens,
e que a cantiga que falava em sete ceguinhos não servia mais para eles que já estavam
uns negros fortes, enormes, derrubando mulatas no cais, malandreando na cidade
religiosa da Bahia. Começavam a fazer poucas esmolas e um dia foram presos como
malandros e desordeiros (AMADO, 2019, p. 56).

O samba atravessou todo o percurso de vida de Baldo, desde a infância até sua idade
adulta, cumprindo papel diferente em cada uma destas etapa. Chegou a servir como fonte de
renda para o personagem nos momentos em que compunha sambas para a venda. Em uma de
suas composições afirma que ele “amava somente dias coisas: malandragem e Maria. Em uma
passagem do livro é apontado que os sambas mantinham o caráter de ocorrer em vários espaços,
como por exemplo em casa de particulares, diz “vamos para a casa do Fabrício? – Minha gente”
Amado (2019). Ressalto que a apresentação dos trechos dos sambas que aparecem durante a
história, demonstra a importância da prática, ao passo que cumpre várias funções que vão desde
letras amorosas até as lutas da população negra, como exemplificado no trecho “ele vai
cantando baixinho um samba intitulado “A vitória da greve” Amado (2019).

Baldo foi também boxeador, campeão, e é apresentado as dificuldades de ascensão


social neste esporte, bem como a quantidade de questões que influencia a vida do personagem
que não o permite se desenvolver como um atleta profissional, mesmo tendo talento. Mas que
ao longo de sua vida servirá para a autodefesa e trabalho, quando se junta ao circo e fazendo
lutas de exibição durante os espetáculos.

3 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRABALHO

A obra Jubiabá de Jorge Amado indica através da vida de Antônio Balduino, o Baldo,
como os lazeres vão aparecendo durante todo o percurso do personagem, demonstrando que o
lazer não pode estar dentro de linhas temporais severas entres os tempos de trabalho e não
trabalho, este binômio pode inclusive, em determinados momentos, reduzir a complexidade do
fenômeno. Cabe mencionar a potencialidade que estes lazeres trouxeram à Baldo a
possibilidade de se fortalecer como um homem negro e a necessidade de se tornar um
antirracista, esta afirmação também é apontada por Pavan e Oliveira (2016) ao analisarem o
filme baseado na obra.

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Humanas, Volume 1.
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Infiro a potência da literatura como fonte para nós historiadores e historiadoras, onde a
ficção se mistura com a realidade, esta obra foi queimada em praça pública pelo governo
Vargas, conforme apontado por Dravet (2013). A literatura e a historiografia do lazer podem
ser armas para o povo negro, pois, os lazeres podem ser subversivos em vários sentidos, ao
passo que em meu prisma, são uma necessidade humana conforme apontado por Gomes (2013).
A história de Baldo termina com o reconhecimento de seu crescimento pelo pai de santo Jubiabá
como indicado no trecho abaixo:

Antônio Balduíno vai para a casa de Jubiabá. Agora olha o pai-de-santo de igual para
igual. E lhe diz que descobriu o que os ABC ensinavam, que achou o caminho certo.
[...] E Jubiabá, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxolufã, Oxalá
velho, o maior dos santos (AMADO, 2019, p. 228).

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CAPÍTULO 5
AS IDENTIDADES FEMININAS NA SÉRIE COISA MAIS LINDA 11

Emely Kauany Cardoso


Éverly Pegoraro

RESUMO
O artigo tem como objetivo analisar representações femininas na série Coisa Mais Linda, em relação às
identidades, às problemáticas e aos lugares delegados às mulheres da época retratada na obra, fins de 1950. A
produção conta a história de quatro personagens que resistem e lutam por espaço na sociedade carioca daquele
período, representando a busca feminina por direitos políticos, acesso ao mercado de trabalho e direito ao divórcio.
O estudo realizou-se a partir das concepções de identidade, representação e feminino, sendo analisadas três
sequências de cenas da primeira temporada da série, conforme a análise fílmico-compreensiva da narrativa seriada.
A realização de estudos sobre identidade e lugares sociais delegados ao feminino por meio de uma obra midiática,
possibilita entender como as representações interferem na forma como os indivíduos e, nesse caso, as mulheres,
se posicionam ou são posicionadas social e culturalmente. A compreensão de tais questões também é uma forma
de desconstruir estereótipos enraizados socialmente. Em Coisa Mais Linda, é possível analisar a perspectiva de
quatro mulheres que resistem em situações marcadas por machismo, patriarcado, busca feminina por direitos
políticos, acesso ao mercado de trabalho, desafios da maternidade e o direito ao divórcio.

PALAVRAS-CHAVE: Cultura da mídia; Série de época; Representação.

1 INTRODUÇÃO

Os anos dourados, um dos emblemas da década de 1950. Uma época de transformações


sociais, urbanas e tecnológicas, após a 2ª Guerra Mundial. No Brasil, além de ser conhecido
como um período de boa vida, o retorno do tradicional e dos bons costumes também se destacou
(BASSANEZI, 2007). Foi uma era em que as mulheres deveriam retornar aos “bons modos” e
viver aquilo que a sociedade considerava tradicional. Moças deveriam dedicar seu tempo a
afazeres domésticos, eram encorajadas pela sociedade a acharem ótimos pretendentes, para
então casar-se. Além disso, já deveriam estar preparadas para o papel de dona de casa e mãe.
As mulheres tinham um único objetivo, cuidar da família e da casa. Aquelas que fizessem o
oposto ficavam mal faladas na sociedade e eram categorizadas como rebeldes, como detalha
Bassanezi (2007). Já o papel do homem era o de achar uma boa esposa, casar, gerar filhos e
sustentar a família, além de ter a liberdade de ir e vir. Mulheres eram encorajadas a evitar
conflitos com os maridos e, em casos de traição, deveriam aceitar a situação e buscar reforçar
o matrimônio, pois os atos eram justificados pelo fato de homens terem prazeres e desejos mais
intensos que as mulheres, explica Bassanezi (2007). Esse papel de mulher e boa esposa era

11
Programa de Iniciação Científica da Unicentro 2022-2023, Fundação Araucária. Versões prévias desta pesquisa
foram apresentadas no XXXII Encontro Anual de Iniciação Científica (EAIC) – Guarapuava, novembro de 2023.
E na 12° edição do Encontro de Pesquisa em Comunicação (12° ENPECOM) – Curitiba, novembro de 2023.

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Humanas, Volume 1.
51
reforçado por toda a sociedade, elas aprendiam desde crianças que sua finalidade era essa, e
permanecer solteira não era uma opção. A autora destaca que, mesmo sendo uma época de
transformações do mercado de trabalho e destaque de novas indústrias, aquelas que buscavam
um trabalho frequentemente eram criticadas, pois isso mostrava que seriam desleixadas com
afazeres domésticos e cuidados matrimoniais.

Esta pesquisa analisa a série Coisa Mais Linda, que tem como contexto justamente o
fim da década de 1950, no Rio de Janeiro. Lançada em 2019 na plataforma de streaming Netflix,
até o presente momento possui duas temporadas. A produção conta a história de quatro
mulheres que resistem e lutam por um espaço na sociedade carioca daquele período, marcada
por machismo, patriarcado, busca feminina por direitos políticos, acesso ao mercado de trabalho
e direito ao divórcio (BASSANEZI, 2007).

Cada uma das personagens retrata um aspecto do contexto social da época. Maria Luiza,
Malu (Maria Casadevall), é de São Paulo e muda-se para o Rio de Janeiro. É uma “moça de
família”, filha de Ademar, esposa de Pedro e mãe de Carlinhos, uma mulher rica e totalmente
dependente do pai. Ela vai ao Rio de Janeiro para abrir um restaurante com o marido, porém,
ao chegar na capital, descobre que Pedro havia roubado todo o dinheiro para o empreendimento.
Malu passa a trabalhar muito para recuperar o que lhe foi roubado e sofre a frustração de não
poder abrir o restaurante sem a autorização de um homem, pois na época apenas eles tinham
autoridade para ter seu próprio negócio. Durante esse tempo, ela conhece Adélia Araújo (Pathy
Dejesus), que passa a ser sócia do restaurante, uma mulher negra que mora no morro e trabalha
para sustentar a família. Lígia Soares (Fernanda Vasconcellos), amiga de infância de Maria
Luiza, também tenta ajudar, uma mulher rica, casada com um político e que tem o sonho de ser
cantora, algo que ela nunca conseguiu pela falta de apoio e permissão do marido. E a quarta
personagem é Thereza (Mel Lisboa), uma mulher liberal e independente, que retrata a entrada
das mulheres no mercado de trabalho da época e, ao lado de seu marido, o qual lhe dá apoio e
suporte, busca a liberdade feminina nos relacionamentos. É uma das personagens que mais fala
sobre o poder feminino e o feminismo. Todas, mesmo que diferentes, buscam por respeito e
autonomia, tanto financeiramente quanto nas relações afetivas. São representações de mulheres
que buscam uma sociedade sem machismo ou estereótipos.

A pergunta principal desta pesquisa é como a série Coisa Mais Linda representa
questões acerca da identidade feminina. Para isso, delineia-se o contexto da mulher na década
de 1950 para, então, analisar as questões vivenciadas pelas personagens, no que se refere a
subjetividades e lugares sociais para elas. Os conceitos que amparam o estudo são identidade,

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representação e feminino, a partir de Hall (2016; 2002), Lipovetsky (2000) e Santaella (2008).
A metodologia de pesquisa é a análise de narrativa seriada, amparada nas obras de Casetti e Di
Chio (2013) e Azubel (2018).

Discute-se na primeira parte da pesquisa a cultura de séries e a cultura da mídia,


baseando-se em Kellner (2010), Jost (2012), Silva (2014) e Silverstone (2002), salientando o
papel da cultura da mídia como algo que reforça e auxilia a sociedade a modelar visões,
estereótipos e regras. “A cultura da mídia almeja grande audiência, por isso, deve ser eco de
assuntos e preocupações atuais, sendo extremamente tópica e apresentando dados hieroglíficos
da vida social contemporânea” (KELLNER, 2001, p. 9). Tais argumentos complementam-se
com as observações de Silverstone (2002) sobre comunicação e cotidiano: “os significados
oferecidos e produzidos pelas várias comunicações que inundam nossa vida cotidiana saíram
de instituições cada vez mais globais em seu alcance e em suas sensibilidades e
insensibilidades” (SILVERSTONE, 2002, p. 17). Nesta perspectiva, o indivíduo constrói-se e
renova-se em sentidos moldados a partir de representações, portanto, compreende-se o papel
que se estabelece com a mídia e a importância que possui. Ao estudar sobre identidade e lugares
sociais delegados ao feminino por meio de uma narrativa midiática, é possível entender como
as representações interferem na forma como os indivíduos e, nesse caso, as mulheres, se
posicionam ou são posicionadas social e culturalmente. Compreender essas questões também é
uma forma de desconstruir estereótipos enraizados socialmente.

Na segunda parte do texto, aborda-se a identidade cultural quanto aos lugares delegados
ao feminino, utilizando os conceitos de Hall (2016; 2002). “O fato de que projetamos a ‘nós
próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e
valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com
os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural” (HALL, 2000, p. 12).

Na sequência, são analisadas três sequências de cenas dos episódios da primeira


temporada da série Coisa Mais Linda. Os recortes escolhidos centram-se nas experiências da
personagem Malu, buscando independência financeira e, ao mesmo tempo, dependendo do
homem para isso. Por fim, analisa-se uma interação de Thereza no ambiente de trabalho,
dominado pelo masculino. As sequências escolhidas demonstram as necessidades femininas de
decidirem os próprios lugares que a elas foram delegados.

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2 METODOLOGIA

A metodologia utilizada nesta pesquisa é a análise fílmico-compreensiva da narrativa


seriada de Azubel (2018) que, por sua vez, ampara-se na análise fílmica da narrativa, de Casetti
e Di Chio (2013).
Formas narrativas consonantes com o espírito pós-moderno do tempo:
micronarrativas capazes de conterem conhecimento sobre o mundo, formas de
manifestação da pluralidade das personas/personagens, espaços de bricolagem de
universos sincrônicos (real e ficcional), histórias barrocas que acentuam a
progressividade, formas oficiosas de leitura do societal que colocam em cena a
(a)lógica da harmonia conflitual (AZUBEL, 2017, p. 159).

Nesta pesquisa, o processo foi dividido em: pré-análise, quando se elenca quais cenas
serão analisadas; descrição de cena, com transcrição de diálogos, conforme Casetti e Di Chio
(2013) indicam; e apresentação da síntese interpretativa, que objetiva aproximar a
problematização teórica construída da sequência narrativa analisada.

A escolhas das cenas se dá pela relação com os temas elencados nesta pesquisa,
mostrando como mulheres são representadas frente à sociedade. A primeira análise mostra
como elas eram vistas não pela sua individualidade, mas pelo nome do pai ou do marido. Na
segunda sequência, isso é ainda mais enfatizado, pois além de serem vistas como pertencentes
a alguém, também precisavam da autorização dos mesmos para terem direitos básicos em suas
vidas. E a última cena foi escolhida por mostrar as mulheres sendo representadas como pessoas
que devem pensar sobre roupas, regras de etiqueta e formas de se portar para com os homens,
ou seja, como alguém que só pensa em futilidades e na aparência exterior. As três sequências
narrativas exemplificam os lugares delegados ao feminino e a identidade feminina,
problemática principal desta pesquisa.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os conceitos de identidade e representação relacionam-se e exercem papel fundamental


na visão de mundo e significados próprios que são criados. Nesse contexto, a mídia exerce um
papel fundamental sobre o tema:

[...] precisamos examinar a mídia como um processo, como uma coisa em curso e uma
coisa feita, e uma coisa em curso e feita em todos os níveis, onde quer que as pessoas
se congreguem no espaço real ou virtual, onde se comunicam, onde procuram
persuadir, informar, entreter, educar, onde procuram, de múltiplas maneiras e com
graus de sucesso variáveis, se conectar umas com as outras (SILVERSTONE, 2002,
p. 16).

É por meio da cultura da mídia que são compartilhados e divididos significados,


construídos sentidos e definições que estão presentes no meio em que se vive. De forma direta

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ou indireta, ela auxilia a modelar visões e comportamentos. Assim, como Silverstone (2002),
Kellner (2001) também argumenta que a mídia ecoa assuntos e preocupações atuais, tornando-
se uma arena em que diferentes discursos circulam.

E é no cotidiano que a cultura da mídia está, por meio de canais de comunicação,


músicas, cinema, tv ou jornais. Um exemplo são as produções midiáticas com temáticas atuais.
Ao discorrer sobre Coisa Mais Linda e a forma com que as mulheres da série são retratadas,
percebe-se um espaço de representações sobre situações que existem na sociedade e que afetam
o feminino em questões de identidade cultural, pertencimento e familiaridade com os assuntos
retratados. Muitas vezes, a proximidade que as pessoas sentem com personagens ou temáticas
podem decorrer de uma familiaridade com o tema ou personagem, levando a reflexões sobre
posicionamentos identitários e a desconstrução de estereótipos. Como afirma Jost (2012, p. 32),
é “encontrar nesses mundos construídos a familiaridade reconfortante de uma atualidade que é
também a nossa, as contradições humanas que conhecemos e, enfim, os heróis que, como o
telespectador, chegam à verdade mais pela imagem do que pelo contato direto”.

Os avanços tecnológicos e as respectivas transformações na indústria cultural fizeram


com que as pessoas pudessem ter maior facilidade de escolher o que querem ou não consumir.
Para Silva (2014, p. 247) “seria leviano ignorar que vivemos em um contexto cultural e
tecnológico singular, em que a facilidade de acesso a diferentes séries, inclusive de épocas
passadas, vislumbra a formação de um conjunto de novos espectadores cujo repertório está
sendo formado por uma tela conectada”. Mittel (2012, p. 35) acrescenta que as “transformações
tecnológicas distantes da tela da televisão também impactaram a narrativa televisiva. A
ubiquidade da internet permitiu que os fãs adotassem uma inteligência coletiva na busca por
informações, interpretações e discussões de narrativas complexas que convidam à participação
e ao engajamento”. Séries que abordam pautas atuais podem fazer com que os comentários e
interações de fãs ou haters 12 sejam mais intensos, o que por consequência facilita que aquele
produto, no caso a série, ganhe maior destaque. “Um mundo é apresentado, no interior do qual
os públicos encontram uma representação dos seus próprios interesses, preocupações e
interrogações: este modo de apresentação é aquele através do qual a realidade é representada
pela ficção” (ESQUENAZI, 2011, p. 160).

12
São aquelas pessoas que abertamente (e muitas vezes ofensivamente) manifestam opiniões contrárias a
produções midiáticas, geralmente em fóruns virtuais e públicos.

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55
3.1 A cultura da mídia e as identidades femininas

Significados e valores são assimilados, tanto a pessoas quanto a grupos, o que por
consequência contribui para que sejam delegados lugares específicos a cada um na sociedade.
Nesse contexto, a identidade cultural é uma forma de estabilizar o sujeito. “A identidade surge
não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma
falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais
nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2000, p. 39). É o caso de mulheres que se
identificam com outras mulheres devido a vivências, valores e significados semelhantes. Hall
(2016) argumenta como mulheres que, desde novas, são moldadas pela sociedade e que se
tornam parte de um mesmo grupo pelos fatores externos atribuídos a elas, nesse caso, o que
contém de semelhante é o que as torna parte do mesmo grupo, sejam esposas, noivas, mães,
avós, donas de casa, ou quaisquer outras funções que desde sempre foram atribuídas ao
feminino. E com isso surgem os preconceitos sobre aquelas que não aceitam as funções
socialmente delegadas a elas.

São as características sociais que definem a identidade feminina. Alves e Almeida


(2015, p. 29) salientam que “a construção social reserva ‘características’ diferentes no
engendramento da mulher bem como do homem. O discurso da sociedade produz uma
‘característica’ distintiva entre pessoas passivas ou fortes, cuidadoras ou provedoras”. A série
Coisa Mais Linda retrata isso, pois as personagens passam por imposições de lugares sociais.
Malu, que é mãe e não deve deixar o filho com os pais, porque “não é papel de mulher buscar
um trabalho”. Lígia, que desde nova aprendeu que mulheres devem cuidar da casa e do marido,
e que aquele espaço foi delimitado para ela. Se abdicar disso, causará grandes problemas.
Adélia, que cresceu trabalhando muito e sustentando a família, quando recebe uma
oportunidade de ser sócia de Malu, sente o medo de sair daquele espaço que sempre foi dela, o
de mãe que deve prover o sustento da família, algo que para a época somente mulheres pobres
faziam, afinal em outro contexto, eram os homens que tinham a função de trazer o sustento para
casa.

Fonseca (2004) detalha as batalhas que principalmente as mulheres pobres tinham que
passar na década de 1950 “em vez de ser admirada por ser ‘boa trabalhadora’, como o homem
em situação parecida, a mulher com trabalho assalariado tinha de defender sua reputação contra
a poluição moral, uma vez que o assédio sexual era lendário” (FONSECA, 2004, p. 433). A
pesquisadora complementa que a norma da sociedade ditava como as mulheres deveriam
permanecer em casa, ocupando afazeres domésticos, enquanto os homens sustentavam a

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família, o que reforça os estereótipos sobre as mulheres. Tal argumento relaciona-se com os
conceitos de Hall (2016), sobre como são formados estereótipos sobre o outro a partir do que é
conhecido e vivenciado. “Entendemos o mundo ao nos referirmos a objetos individuais, pessoas
ou eventos em nossa cabeça por meio de um regime geral de classificação em que - de acordo
com a nossa cultura - eles se encaixam” (HALL, 2016, p. 190).

Lipovetsky (2000) apresenta argumentação semelhante à de Fonseca (2004), ao analisar


os valores imperativos da época: “um lar bem cuidado, limpo, agradável, prende, ao que se diz,
o marido; desvia o pai do cabaré e das tentações de fora; regenera a família” (LIPOVETSKY,
2000, p. 215). Fonseca (2004) detalha o papel de cada um no matrimônio e como a sociedade
vem se adaptando, ao incluir mais mulheres em trabalhos que uma vez já foram considerados
apenas para homens. Nesse mesmo sentido, Lipovetsky (2000) constata: “o fato de que um
marido tenha uma posição social superior à da esposa parece estar de acordo com a ordem das
coisas; a situação inversa nem sempre parece natural” (LIPOVETSKY, 2000, p. 292).

As representações feitas na série aqui estudada reforçam como a sociedade da época


ditava as ações das mulheres, retratando de forma ficcional o que até o presente momento ocorre
com frequência. É certo que, com o passar dos anos, as mulheres conquistaram grande espaço
na sociedade e no mercado de trabalho, mas os preconceitos ainda existem e as séries de época
retratam isso. Narrativas ficcionais como estas ajudam a entender as transformações, os avanços
e o que ainda precisa ser alterado.

3.2 Representações femininas em séries de época

Balogh (2002) reitera como diversas séries de época têm ganhado espaço no circuito
midiático, retratando histórias e fatos que ocorreram em outros períodos.

Outro meio que tem sido explorado pelas minisséries brasileiras é a cobertura de
determinados períodos históricos com grande competência em termos do uso da
linguagem, da escolha dos recursos técnicos expressivos adequados. Essas
minisséries, além das tramas românticas de praxe, iniludíveis, terminam por ser
painéis de uma época, pinturas murais em movimento (BALOGH, 2002, p. 134).

Em Coisa Mais Linda, as representações das mulheres são feitas a partir de quatro
realidades. Para Nascimento (2018, p. 196), “por meio das narrativas ficcionais, o veículo
retrata a sociedade com suas questões devido à capacidade de alimentar um repertório cultural
comum por meio do qual as pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes
se posicionam e se identificam”. Percebe-se que a narrativa em análise se compromete em trazer
questões de raça, gênero, desigualdade social e violência contra mulheres, discutindo a
realidade vigente no período retratado. Cada representação permite obter novos significados

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para os fatos contemporâneos, demonstrando que a luta delas por identidade e espaço social é
longa e necessária.

A narrativa seriada em análise demonstra que a sociedade retratada da década de 1950


se pauta em divisões binárias, com definições de certo ou errado, bom ou ruim, ou ainda entre
boa mulher/má mulher, mulher direita/mulher louca, o que reforça o argumento já apresentado,
a partir de Hall (2016) e Lipovetsky (2000), sobre significados e identidades socialmente
construídos. Como afirma Hall (2016, p. 154) “embora não consigamos trabalhar sem elas, as
oposições binárias podem ser acusadas de reducionistas e demasiadamente simplificadoras,
engolindo todas as distinções em sua estrutura binária e um tanto rígida”.

É nesse contexto de construções binárias e de estereótipos que se fortalecem os


estigmas, em que não há um meio termo, e é colocado o diferente como algo impuro ou anormal.
É o caso da personagem Malu: a definição de boa mãe por estar em casa com a família, e de
mãe ruim ao sair do lar, deixar o filho com os pais e buscar emprego. Por viver em um sistema
classificatório, em que são julgados o que deve prevalecer ou não, Hall (2016) argumenta que
a cultura depende do significado que é dado às coisas, pois uma construção social é aceita e
reconhecida daquela forma. Nesse caso, pode-se refletir sobre como a representação de uma
mulher em série brasileira pode produzir sentido, em que o que é normal para alguns grupos
sociais, em outros o significado e a representação podem ser errados ou ruins. Ou ainda como
as mulheres da sociedade contemporânea ainda são julgadas em padrões semelhantes aos
encontrados na década de 1950. Santi e Santi (2008), ao discorrer sobre os conceitos de Stuart
Hall, explicam que “são significados construídos e partilhados socialmente. Eles que atribuem
o certo e errado, os conceitos e valores” (SANTI; SANTI, 2008, p. 6). São os significados
produzidos que ajudam a organizar condutas, neste caso, como mulheres devem se portar e
como devem ser.

Na década de 1950, as mulheres não podiam trabalhar fora de casa, mas essas regras
sociais não se aplicavam às mulheres pobres, cuja realidade era diferente e que, mesmo cercadas
pela moralidade social, necessitavam trabalhar e prover o sustento familiar. “A norma oficial
ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, se ocupando dos afazeres domésticos,
enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua”
(FONSECA, 2004, p. 433).

Além de serem vistas apenas para ficar em casa, deveriam servir ao marido e à família,
aprendiam desde novas a obedecerem a um poder considerado maior, no caso a imagem

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masculina, que era quem ditava as regras e o que era certo ou não dentro de casa, e na sociedade
também. Para Hall (2016, p. 11), “os indivíduos podem até se distinguir por suas características
étnicas, raciais, de classe social e gênero, mas não conseguem ter significado a não ser quando
se identificam com as posições construídas pelo discurso (sujeitas àquelas – as posições, às
regras deste – o discurso)”. Nesse momento, o indivíduo pode ser reduzido somente a algumas
características pré-concebidas e até mesmo estereotipadas. No caso das representações em
Coisa Mais Linda, as mulheres da época eram reduzidas às características de mãe e esposa.

A identidade feminina terá tendência para ser uma incorporação de crenças face ao
feminino, de representações e de estereótipos, uma vez que é criada numa sociedade
que produz ideias e valores acerca do que significa ser mulher, logo, que cria
expectativas e prescreve comportamentos socialmente aceites para o feminino
(MOTA-RIBEIRO, 2005, p. 24).

Bassanezi (2004) destaca o papel e a importância da maternidade na década de 1950,


quando a vida doméstica deveria ser prioridade na vida da mulher: “ser mãe, esposa e dona de
casa era considerado o destino natural das mulheres. Na
ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da
essência feminina; sem história, sem possibilidades de contestação” (BASSANEZI, 2004, p.
510). Badinter (1985) discorre sobre o mesmo assunto, argumentando que a maternidade e o
amor que a acompanha estariam inscritos na essência feminina. “Desse ponto de vista, uma
mulher é feita para ser mãe, e mais, uma boa mãe. Toda exceção à norma será necessariamente
analisada em termos de exceções patológicas. A mãe indiferente é um desafio lançado à
natureza, a anormal por excelência” (BADINTER, 1985, p. 15).

Malu, ao sair da casa dos pais, é criticada pela família por deixar o filho e ir para São
Paulo para abrir o próprio negócio. Mesmo que o marido tenha abandonado o filho, não recebeu
as mesmas críticas que a mulher que deixa a criança com os pais e vai em busca de autonomia
pessoal e financeira. Outros exemplos são Thereza, que decide não ser mãe e, em vários
momentos, a sogra tenta argumentar sobre isso, e Lígia, a cunhada também recebe comentários
de que resta a ela ser a mulher que dará netos e aumentará a família.

3.3 Mulheres em Coisa Mais Linda

A série Coisa Mais Linda é uma produção de Heather Rolth e Giuliano Cedroni.
Lançada em 2019 pelo streaming Netflix, conta com duas temporadas que totalizam 13
episódios. Coisa Mais Linda retrata a década de 1950 nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
mostrando a vida de quatro mulheres. Maria Luisa, uma mulher de família rica que se muda da
casa dos pais em São Paulo para o Rio de Janeiro atrás do marido Pedro. Os dois têm um filho,

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Carlinhos. O casal decide abrir um restaurante na capital carioca, o esposo vai para a cidade
para cuidar da construção e Malu fica na casa dos pais com o filho. Após muitas ligações não
atendidas, ela decide ir ao Rio de Janeiro para saber como estão as obras, mas ao desembarcar
depara-se com um espaço abandonado. É ali que descobre que Pedro nunca iniciou as obras e
que fugiu com o dinheiro que seria destinado a construção. Neste momento, ela decide abrir o
próprio negócio sem a ajuda do marido, mas acaba descobrindo que, para ter o seu espaço,
precisaria da autorização e financiamento cedido apenas para homens. Na época, apenas eles
tinham autoridade para ter empreendimento.

Durante esse tempo, Malu conhece Adélia Araújo, mulher negra que mora em uma
favela do Rio de Janeiro e trabalha como empregada doméstica para sustentar a família. Ela
passa a ser sócia do restaurante de Malu e, juntas, buscam pela independência financeira,
mesmo sendo de mundos totalmente opostos. A amiga de infância de Malu, Lígia Soares,
também passa a ajudar as duas. Rica, casada com um político carioca, o sonho dela é ser cantora,
algo que não consegue alcançar pela falta de aprovação do marido e do julgamento da
sociedade. Lígia é cunhada de Thereza, uma mulher casada que conta com o apoio do marido
para conquistar a independência financeira e realização profissional. Ela trabalha como
jornalista em um jornal do Rio de Janeiro, local em que discute por diversas vezes com os
colegas homens que fazem parte da equipe.

No episódio 1 da primeira temporada (sequência 48’31” – 49’05”), observa-se o


enfrentamento de Malu com o pai (Ademar). Ele vai até o Rio de Janeiro para buscar a filha,
pois sem o marido ela não poderia ficar sozinha, afinal para sociedade da época isso mancharia
o nome de Malu e de toda a família. Os dois estão conversando e Malu recusa-se a voltar a
morar com os pais em São Paulo. “A minha vida inteira sempre girou em torno de ser a ‘filha
do Ademar’. Depois, a ‘esposa do Pedro’. Agora vou ser a ‘pobre viúva’? A ‘coitadinha’,
‘desquitada’? Não! Eu quero criar a minha própria identidade, pai. E eu quero que ninguém
consiga tirar isso de mim”. O pai, com olhar de desaprovação, responde: “a gente vai voltar pra
São Paulo agora, a sua vida é lá Maria Luiza”. Ela, sem responder, apenas olha para o pai, que
conclui: “você ainda vai me agradecer quando se der conta que está louca por conta de tanto
sofrimento”. Ele sai do quarto onde ocorre a conversa e ela fica sentada na cama, em silêncio.

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Figura 1: O pai de Malu vai buscá-la no Rio de Janeiro e os dois discutem.

Fonte: Netflix (2019, Ep.1, 48’31”).

Na fala de Malu, observa-se a urgência da personagem em construir sua identidade


própria. Uma vez que, em boa parte da vida, a identidade dela foi construída a partir dos outros.
Como Mota-Ribeiro (2005, p. 24) afirma, “a identidade feminina não diz respeito a uma
essência do feminino (natural e imutável), mas, pelo contrário, a uma construção cultural. A
identidade feminina é assim, mas poderia perfeitamente ser de outra forma - porque o seu
fundamento não é natural, mas puramente social e cultural”. Portanto, a constituição da
identidade da mulher acaba sendo baseada e formada pelo homem. No caso de Malu,
primeiramente pelo pai e pelo nome de família, depois pelo marido e pela responsabilidade
como mãe, que parece recair apenas sobre ela. Em nenhum momento da narrativa, questiona-
se as atitudes relapsas de Pedro como esposo e pai. Fonseca (2004) explica que a liberdade e
direito das mulheres eram determinados pelo masculino, que ditava o que é ou não destinado
ao feminino, determinando, assim, a identidade feminina.

No segundo episódio da primeira temporada, na sequência de cenas analisadas (42’31”


– 43’14”), Maria Luiza está tentando abrir o clube de música e, para isso, precisa de ajuda
financeira. Ela vai ao banco e não consegue um empréstimo, pois só era concedido perante
autorização de um homem. Malu falsifica a assinatura do marido para dar continuidade no
empreendimento, como se o marido tivesse autorizado a retirada do dinheiro. Esse trecho da
narrativa evidencia a problematização dos autores desta pesquisa, sobre a dependência
subjetiva, financeira e social das mulheres naquele período. Como a ela não era permitido
trabalhar e até mesmo existir no mercado de trabalho, não havia a possibilidade de ser dona de
um empreendimento.

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Figura 2: Maria Luiza falsifica a assinatura do marido para conseguir o financiamento bancário de um negócio.

Fonte: Netflix (2019, Ep. 2, 42’31").

A terceira cena analisada (episódio 3 da primeira temporada, sequência 06’10” –


07’46”) mostra o ambiente de trabalho das mulheres. Thereza é uma repórter de um jornal
carioca. Na equipe, ela e Helô (Tayla Ayala) são as únicas mulheres em um periódico que, em
diversos momentos da série, é representado como conservador e que buscava se adequar à
sociedade da época. Thereza está em uma reunião com a equipe e compartilha a ideia para uma
reportagem. “A minha sugestão é falar sobre essas mulheres que estão trabalhando na
construção de Brasília. Elas são um terço da força de trabalho e ninguém fala absolutamente
nada sobre elas na imprensa. Eu entrevistei essa mulher aqui, ela saiu do Rio Grande do Norte,
dirigindo um caminhão, grávida de sete meses pra chegar lá. E ela...”. Nesse momento ela é
interrompida por Gustavo (Wagner Molina), que começa a cochichar e rir com o colega do
lado. Thereza para de falar e pede para que ele compartilhe o que pensa. Gustavo responde:
“você pode continuar, Thereza”. Ela insiste que ele fale o que pensa. “Mulher nenhuma vai se
interessar por isso Thereza, só ‘sapatão’ vai ler isso gente”. Todos os homens riem do
comentário e ela pergunta qual a sugestão dele, que responde: “eu sei lá, alguma coisa que tenha
sobre tecido, coisa de nova estação, de tendência, eu não sei Thereza. Ou quem sabe como ser
generosa no seu decote, alguma coisa assim”. No mesmo momento, Helô arruma a blusa que
está usando e percebe-se um sentimento de constrangimento vindo dela. O chefe interrompe:
“chega de gastar latim com isso. Thereza, a ideia é boa, acho que tá na hora de falar de Brasília
mesmo, é o assunto do momento. Então, que tal voltar a focar no perfil daquela Miss Brasília.
Como é o nome dela? Marta não sei de quê?”.

O colega Gustavo responde a dúvida do chefe, falando o sobrenome da moça e


desenhando com as mãos uma silhueta feminina curvilínea. Por fim, o chefe inicia uma
conversa com Helô: “e a pequena aqui, é sua primeira vez, né? Então eu acho que você tem que
escrever um artigo sobre como uma moça deve se compor... Não, não, qual a roupa ideal para

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se usar no primeiro encontro”. Helô não responde e olha para Thereza, que está expressando
desgosto no olhar.

Figura 3: Thereza sugere uma pauta na reunião do jornal.

Fonte: Netflix (2019, Ep. 3, 06’10”).

Este recorte mostra como mulheres não têm voz e, quando conseguem opinar, não são
ouvidas. Neste caso do jornal, as duas mulheres são vistas como inferiores aos demais colegas.
Mesmo sabendo quais assuntos podem interessar ao público feminino, a decisão final é feita
por homens, que compreendem tão pouco do que diz ou não respeito aos gostos das mulheres.
Tais representações levam a refletir sobre os espaços no mercado de trabalho, dominado por
homens que detinham o poder de fala.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A série aqui discutida, Coisa Mais Linda, representa algumas visões dominantes da
década de 1950, mostrando como as mulheres possuíam funções sociais determinadas e
relacionadas aos cuidados domésticos e à criação de filhos, sendo vistas apenas para casar e
serem mães, servindo e respeitando às decisões masculinas, sejam elas do pai ou marido. Mostra
ainda a resistência feminina sobre os diferentes estereótipos colocados sobre elas. Adélia, Malu,
Lígia e Thereza possuem vivências diferentes, mas um propósito em comum, a independência
feminina.

Mesmo que a série represente a década de 1950, os desafios enfrentados pelas


protagonistas abordam questões ainda presentes na atualidade, propondo reflexões sobre as
mudanças ocorridas desde então. Pode-se observar como representações das mulheres do
período revelam formas de ser e agir que ainda são, em muitos aspectos, similares no contexto
contemporâneo, em quesitos como matrimônio, desigualdade social, racismo, estupro e
feminicídio.

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Humanas, Volume 1.
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A narrativa demonstra como mulheres podem ser negligenciadas, sem voz, sem escolhas
ou direitos. Produções midiáticas de época são espaços que auxiliam a romper esse contexto,
ao propiciar diversificadas representações femininas, propiciando compreender o passado e
refletir sobre identidades e espaços delegados às mulheres.

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CAPÍTULO 6
ESTADO, EDUCAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO SOCIAL:
AS POLÍTICAS CURRICULARES E DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM
MINAS GERAIS

Maria das Graças Soares Floresta


Fernando Selmar Rocha Fidalgo
Rayane Oliveira da Silva

RESUMO
Trata este texto de uma análise das políticas curriculares e de formação de professores nos últimos 30 anos, em
Minas Gerais. O objetivo é focalizar os ajustes estruturais da educação pública impostos por uma série de
exigências e condicionantes, de caráter intervencionista direto, do novo modelo de desenvolvimento econômico
que, nas últimas décadas, ditou a receita estrutural e produziu efeitos sobre o papel do Estado no desenvolvimento
educacional. são retratados alguns elementos importantes das gestões governamentais no estado entre 1991 e 2021,
um ciclo da política educacional com características subjacentes e comparáveis importantes. O trabalho em si trata
de revisitar a temática do processo de formação do Estado Moderno, as políticas públicas e a educação para refletir
sobre como um certo discurso governamental, arranjos institucionais feitos e relações estabelecidas têm forjado
uma noção do que seja uma mudança educacional.

PALAVRAS-CHAVE: Estado; Política Educacional.

1 INTRODUÇÃO

Março de 2022. A Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais (SEE/MG) lança


o Edital de Credenciamento, SEE N° 01/2022, cujo objeto é o

Credenciamento de Instituições Educacionais de Ensino Superior (IES), públicas e


privadas, para oferecer aos servidores da Secretaria de Estado de Educação - SEE
vagas nos cursos de pós-graduação lato sensu (especialização e MBA), na modalidade
EaD, e stricto sensu (mestrado e doutorado), nas modalidades presencial,
semipresencial/híbrida e EaD, por meio do Projeto de Formação Continuada e
Desenvolvimento Profissional dos Servidores da Educação, sob demanda, futura e
eventual, conforme especificações, exigências e quantidades estabelecidas neste
Edital (MINAS GERAIS, 2022).

Este Edital é parte do Programa Trilhas do Futuro – Educadores, no âmbito do qual


está o Projeto de Formação Continuada e Desenvolvimento Profissional dos Servidores da
Educação. O Projeto consiste em oferecer aos/às servidores/as da SEE/MG 23.000 vagas em
Cursos de Pós-Graduação Lato Sensu (Especialização e MBA), na modalidade EaD, em 33
áreas temáticas diferentes; 1.430 vagas em Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu (Mestrado),
em 10 áreas diferentes; 475 vagas em Cursos de Pós-Graduação Stricto Sensu (Doutorado),
em 7 áreas diferentes, com investimento inicial de R$190 milhões, efetivando contratos da
ordem de R$140 milhões. Embora sua relevância para um sistema educacional como o de
Minas Gerais (MG) (MINAS GERAIS, 2022a), uma análise preliminar desse projeto comprova

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Humanas, Volume 1.
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algumas hipóteses preocupantes, pois exclui a participação das Instituições de Educação
Superior Públicas do estado no desenvolvimento dos cursos, já que prevê um contrato bilateral
no qual as instituições contratadas figurariam como executoras, sem possibilidade de
interveniência de suas Fundações de Apoio, o que impede a participação das universidades
federais. Esta atitude denota uma escancarada privatização da política educacional, em relação
à formação continuada dos/as professores/as do estado, favorecendo o desencadeamento da
presença da privatização exógena, que consiste na incorporação do setor privado nos centros
públicos de educação.

Esta ação do Governo Zema (2019-atual) consolida a hipótese de um discurso


governamental, assumidamente, de viés liberal, já identificado em outras ações e que revela seu
comprometimento com a efetivação de medidas que ele chamou de “positivas”, o que vem, de
pronto, garantir que os serviços públicos não precisariam ser ofertados diretamente pelo poder
público, mas por organizações e empresas do setor privado.

A política educacional em MG tem sido objeto de estudo frequente, não só pela sua
localização geográfica, de estado de centro-sul do país, mas porque registra, em sua história,
elementos bastante interessantes se destacados no conjunto mais geral da História da Educação
Brasileira 13. Certo é que responde rápida e positivamente aos projetos nacionais e, até mesmo,
internacionais para a construção de uma propalada nova 14 educação e nova sociedade, o que
seria muito interessante, não fossem suas condições internas objetivas – econômicas e sociais.
Segundo Pinto e Melo (2021), elites e grupos políticos mineiros tem-se revezado na formação
de um poder político e econômico pela adesão às forças hegemônicas nacionais e tem
reproduzido, internamente, um quadro estrutural e conjuntural que sinalizam para a necessidade
sempre atual do debate sobre o papel do Estado na educação e as contradições dos processos
políticos mais amplos.

Guedes (2003) também analisa que a educação em MG é

13
A rede de ensino pública mineira, uma das maiores do país, é constituída por mais de 16.700 estabelecimentos
de ensino, abarca mais de 160 mil professores/as e mais de 2.300.000 estudantes, de acordo com dados coletados
no site do Ministério da Educação. Esta configuração faz com que o sistema de ensino seja complexo e requeira
políticas assertivas, bem delineadas e com capacidade de abrangência para um território extremamente
heterogêneo em termos de sua geografia, realidades e demandas sociais.
14
Adota-se aqui, como preceito teórico-metodológico, uma descrição da palavra nova(s), novo(s), em formato
itálico, relacionando-a a uma mudança histórica, mas que guarda nuanças de estruturas já existentes, na forma
como Popkewitz (1997, p. 23) refere-se ao conceito de ruptura/continuidade histórica, referindo-se a padrões
institucionais sociais, em que esse novo se imbui de uma heterogeneidade que se expressa na coexistência de
novos e de velhos padrões estruturais, o que impõe estratégias de natureza material e simbólico-cultural para que
o novo se consolide.

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Humanas, Volume 1.
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Marcada por uma efetiva assimilação das mudanças sociais, políticas, e econômicas
decorrentes dos padrões de desenvolvimento implementados pelo poder central, tendo
como resultado profundas implicações para as políticas educacionais de forma geral
e, para as políticas de capacitação de professores, de forma específica. Embora a regra
no país nas relações entre poder local e poder central seja a integração dos poderes
estaduais às determinações governamentais do poder central, em Minas esse processo
possui características específicas na medida em que o estado não só vem incorporando
as novas determinações como consegue antecipar em determinados momentos,
algumas medidas referentes aos padrões de desenvolvimento a serem implementados,
em cada período de nossa história recente (GUEDES, 2003, p. 57).

São estas premissas que deram origem a esse texto, um exercício epistemológico, no
âmbito do projeto de pesquisa Estado, Educação e Regulamentação Social: Anotações
Baseadas nas Políticas Curriculares e de Formação de Professores em Minas Gerais,
desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), como parte do Estágio Pós-Doutoral, em que estão os autores
envolvidos. Este texto é uma síntese do conteúdo do livro intitulado Educação em Minas Gerais
– Poder e Conhecimento na história do Currículo e da Formação de Professores. São
destaque, aqui, algumas questões relativas às políticas curriculares e de formação de professores
desenvolvidas na rede de ensino estadual de Minas Gerais (MG), retratando, um período de 30
anos (1991 a 2021). Este período foi marcado pelos governos: Hélio Garcia (1991-1995);
Eduardo Azeredo (1995-1999); Itamar Franco (1998-2003); Aécio Neves (2003-2010);
Antônio Anastasia (2011-2014); Fernando Pimentel (2015-2019) e Romeu Zema (2019-atual),
um ciclo da política educacional com características subjacentes e comparáveis importantes. A
análise, grosso modo, é sobre como os padrões de regulamentação do campo da educação, o
discurso governamental e os arranjos institucionais em MG, tem forjado uma noção do que seja
a mudança educacional e, como isso faz parte do processo de formação do Estado Moderno.

Trata-se, neste texto, Discurso como em Foucault (1995), um conjunto de Enunciados,


como uma unidade elementar de discurso. O Enunciado não é, em si mesmo, uma unidade, mas
uma função que entrecruza as estruturas e unidades, fazendo com que apareçam conteúdos
concretos, por isso, ele fala em “produção de fatos discursivos” por sujeitos (individuais e
coletivos) a partir de seu lugar no lócus social, ao representarem e ao disseminarem, por saberes
vários, ideias, princípios, escolhas. Não se trata de uma ou outra frase gramatical ou um ato de
linguagem, mas um conteúdo com função enunciativa, apoiado numa mesma formação
discursiva, uma modalidade do real que deve ser apreendida e, mais do que um processo formal
de descrição de fatos é uma produção histórica, a circulação de pensamentos e de ações
cotidianas, com elementos parciais e ou integrais destes fatos. Nascem das escolhas de ideias,
de pensamentos e de ações e implicam estruturas de sentimento, se constituindo nas capacidades

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individuais e coletivas de compreensão do mundo. É uma estrutura sócio-histórica do
conhecimento e de como este vai se socializar, portanto, subjazem operações de poder que é
quando prevalece o discurso mais poderoso. O conceito de mudança está em Popkewitz (1997,
p. 232-234) ao esboçar uma teoria da mudança educacional, num feito epistemológico no qual
“os conceitos e as práticas da escolarização são apresentadas como padrões sociais
historicamente formados”. Ele assegura que a visão de mudança é tanto política, quanto
conceitual, se referindo ao progresso como melhoramento social que pode ser expresso sob
vários pontos de vista, das autoridades e classes dominantes ou de novos falantes como
representantes da sabedoria dos projetos progressistas.

Assim, o entendimento do que seja mudança se torna um problema de epistemologia


social, e sua afirmação não deve ser vista como uma palavra que faz referência ou fixa alguma
coisa, mas formas de prática social sujeita a investigação social. A referência é o conjunto de
circunstâncias histórico-sociais nas quais uma determinada política nasce, tal como propõe a
Escola dos Annales Francesa, criada no final dos anos 20: ler os acontecimentos como uma
crônica do tempo histórico com seus ritmos diferentes, que pode se referir a um simples
acontecimento, conjuntural ou estrutural ou ser uma análise de processos de longa duração.
Busca-se compreender as formas de interagir de padrões tradicionais e as transformações
ocorridas mediante processos de produção e reprodução social, utilizando, como critério de
confrontação, a análise da ruptura com o passado e o que parece estável no presente.

Marques e Bragança (2012) auxiliam nesta compreensão,

A reforma curricular promovida em Minas Gerais [Aécio Neves] tem muita


semelhança com os processos de reforma educativa que se verificaram em vários
países no final dos anos de 1990 e no início do século XXI. As mudanças partem de
uma nova concepção de Estado que foi sendo introduzida em diversos países, cujos
programas e concepções foram simultaneamente sendo transferidos para os sistemas
educacionais (MARQUES; BRAGANÇA, 2012, p. 109).

Para aprofundar a reflexão, o recorte temporal inicia com o estudo feito por Floresta
(2000), que considera a política educacional dos anos de 1990 um divisor na história
educacional de MG. As informações contidas neste estudo ainda são frutíferos objetos de
investigação, se atualizadas, e podem fornecer elementos importantes para o que se pretende
neste trabalho e a posterior, pois permitem, pela análise interna, focalizar o ajuste estrutural da
educação em MG premido por uma série de exigências e condicionantes de caráter
intervencionista direto, segundo os quais, se deve efetivar a receita estrutural do novo modelo
de desenvolvimento ditada por países de Centro e por Organismos Multilaterais Internacionais
que se iniciou nos anos de 1990, mas que se aprimora no tempo atual. Se os anos de 1990 foram

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definidores de um modus operandi de organizar o sistema educacional público em MG, de lá
pra cá, o que se vê são arremedos de políticas estruturantes que perseguem os mesmos objetivos,
vez ou outra, mudando seus slogans, estratégias e instrumentos. Um olhar retrospectivo mostra
que, desde então, foi implantado um bem planejado modelo que conjuga legalidade e
legitimidade, estratégias bem articuladas e importante sistema de avaliação externa, nomeando
os problemas, as causas e as soluções para a educação, um design capaz de intervir nas relações
de trabalho, criar uma competência institucional e profissional e uma evidente relação entre as
formações sociais e os significados aí presentes. Tais políticas educacionais não são só um
conjunto de propostas de macro gestão da educação com suas objetividades, seus programas,
ações locais, mas práticas sociais envolvendo sujeitos localizados em diferentes pontos do
processo, oferecendo a eles concepções, denominações, atuando em suas vontades e desejos,
operando referenciais epistemológicos e instituindo saberes.

Para tratar disto, alguns apontamentos sobre as políticas curriculares e de formação de


professores nos últimos trinta anos de estruturação do sistema educacional de MG, fazem parte
do exercício teórico metodológico de reestabelecer concepções sobre as noções de Estado e do
processo de formação do Estado Moderno, como garantia de que, por estes conceitos, se pode
falar sobre regulamentação social e, neste âmbito, de educação. Ao final, o interesse é mostrar
alguns incômodos que provocam a reflexão sobre como as políticas públicas para a educação
são instrumento e estratégia de produção de uma sociedade, de um determinado modelo de
Estado, de constituição social de todos e de cada um. E que, de aparente lugar comum, tais
políticas possuem suas próprias condições internas e uma função de governo, denotam uma
ideia de redenção diante do binômio sucesso-fracasso educacional e explicitam o caráter nuclear
de uma Ciência da Reforma que reproduz, em nível regional, um discurso estruturante do
pensamento social do que seja a mudança educacional, como analisa Popkewitz (1997). Este
mesmo autor ressalta que estudos regionais da mudança são úteis para uma consideração das
relações estruturais que orientam, pois permitem uma metáfora para o pensamento sobre as
práticas detalhadas das instituições e como elas se interrelacionam na produção do poder,
considerando-se a multiplicidade de formas sociais que ocorrem em locais históricos
específicos.

2 A FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS EM MINAS GERAIS – ENGAJAMENTO,


NORMATIVIDADE INSTITUCIONAL E CAPACIDADE ADMINISTRATIVA

Nos últimos trinta anos, vem se desenvolvendo, em MG, um modelo de gestão


educacional voltado para a criação de uma cultura institucional com princípios e práticas de

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racionalidade administrativa, que conjuga parâmetros de eficiência, produtividade e
competitividade interna, repetindo, nesse tempo, uma relação custo-benefício pautada por
fatores externos e articulada a um discurso sobre a profissionalização. Para demonstrar essa
hipótese, as políticas estruturantes são consideradas as mais relevantes nas últimas três décadas
e que traduzem a receita estrutural do modelo de desenvolvimento educacional que, neste
estado, se constituiu. Embora tenham sido propostas por diferentes governos, em circunstâncias
político-sociais diversas, possam parecer não unidimensionais nem lineares, são práticas
acumuladas que mantém uma certa identidade e dão organicidade ao sistema educacional.
Revelam uma perspectiva histórica de causalidade e tem, como principal elemento de
identidade a sua natureza produtora de uma verdade progressista, preocupação imanente no
campo educacional em MG, desde sempre.

Explícita é uma relação no interior da qual está posta uma forma de compreender como,
na organização da ação e do saber destas políticas, se dão os esquemas de representação que
produzem formas de pensar, agir, ser, conhecer educação. Há nelas símbolos discursivos
produzidos e aprimorados em articulações simbólicas que formam parte da mudança nas
relações institucionais permitindo novas formas de regulação social, transvestidas de inovação,
de sentido de progresso. Essa Epistemologia se expandiu pela estruturação dos programas e
pela forma como foram nomeados: participação, fortalecimento, capacitação, geração de
informações, comunicação, reorganização, responsabilidades, autonomia, desenvolvimento,
atendimento, melhoria, aprimoramento, são termos que compreendem um poder normativo do
que se constituiu como símbolos, estratégia de regulação social, dentro de um quadro analítico
bastante frutífero pela forma como foram distribuídas as regras, os padrões e os modelos de
verdades presentes em seus discursos e práticas, no âmbito do processo de formação do Estado.

As reflexões, no âmbito desse texto, supõem que o Estado não é mais do que uma
realidade compósita; é real, habita em todos, atua no encontro entre técnicas de dominação
advindas da sua estrutura administrativa e técnicas de si para constituir o sujeito aprisionado e
aprisionador, assim se proclamando o Estado governamentalizado a partir de uma certa
verdade, evidenciando a produção social da norma como poder de controle social e fundamento
de um determinado saber. Nenhuma das políticas que são analisadas agora prescinde de serem
instrumentos, tecnologias sociais utilizadas para esse processo de formação do Estado
[mineiro].

Antes, porém, deve-se voltar aos anos de 1980, conhecidos como o período da
redemocratização no Brasil, com a chegada de Tancredo Neves (1982-1984) ao Governo de

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MG, para uma gestão rápida, pois seria candidato à presidência da república e deixaria no
comando do estado o Vice-Governador, Hélio Garcia (1985-1986). Sob o discurso da mudança
por mobilização, estes governadores buscaram uma redefinição da estrutura administrativa
educacional, tentando superar o modelo anterior que, no espaço social e político, esteve
condicionado ao Estado Militar. A principal ação destas gestões foi o Plano Mineiro de
Educação, promovendo a chamada Reforma dos Intelectuais. Embora isto, o estado chega ao
final dos anos 1980 com uma série de problemas políticos e sociais [e educacionais], para os
quais colaborou o incerto deixado por Tancredo Neves pelo curto tempo à frente do governo e
o estilo, aparentemente, desatento de Hélio Garcia, deixando pairar no ar um projeto
educacional que, como mobilização social, pode ter sido importante, porém, como mudança na
educação, deixou dúvidas. Também é importante mencionar que outra faceta dessa fase
antecessora à que se analisa está no período da racionalização modernizadora do Governo
Newton Cardoso (1987-1990), que impôs um projeto de mudança decretada rompendo os
pactos firmados pelo governo anterior e criando uma evidente desestabilidade no sistema
educacional pelos embates com os/as professores/as, desarticulando e reprimindo os avanços
nas relações de trabalho, na organização do trabalho pedagógico, na formação de professores/as
e no Currículo (FLORESTA, 2000).

Embora os Governos Tancredo Neves/Hélio Garcia tivessem contribuído ao propor um


pacto com os/as profissionais da educação, foram as ações políticas do Governo Newton
Cardoso que deixaram em aberto o espaço necessário para que os anos de 1990 trouxessem uma
feição de novo pacto. A política educacional desenhada pelo Governador novamente eleito,
Hélio Garcia (1991-1994) e pelo seu Secretário de Educação, Walfrido Mares Guia Neto 15, a
quem deu autonomia total para um projeto de inovação educacional, deveria superar, em

15
Ele foi Professor da UFMG que, em 1966, criou o curso pré-vestibular Pitágoras. Seis anos depois criou o
Colégio Pitágoras (1º e 2º graus), com aproximadamente 5 mil matrículas. No início dos anos 1990, criou a Rede
Pitágoras (um conjunto de 106 escolas associadas) e, em 1999, a Fundação Pitágoras para viabilizar projetos
educacionais em instituições públicas e privadas. No início dos anos 2000 nasceu a primeira Faculdade Pitágoras
em parceria com uma das maiores companhias de educação do mundo - a Apollo International (EUA). Em 2007,
com a abertura de capital do Pitágoras, foi um dos criadores da Kroton Educacional, um dos maiores grupos de
educação privada do Brasil, que, em 2014, com sua fusão com a Universidade Anhanguera, se tornou a maior
empresa educacional do mundo. Em 2018 com a associação entre Kroton e a Somos (atua na Educação Básica
com escolas próprias, cursos pré-vestibulares e idiomas, é dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva, do Anglo,
da escola de inglês Red Ballon, entre outros negócios), foi criada a Saber, holding de Educação Básica. Em 2019
a Kroton passou por nova estruturação, ficando como marca mãe e nova holding de um grupo de quatro empresas:
Kroton, que segue com o mesmo nome e foco em cursos de ensino superior; Saber, que inclui cursos de línguas
e as escolas de ensino básico das quais a Kroton é dona; Vasta Educação, que vai oferecer serviços de gestão para
as escolas e material didático, incluindo eventual participação em licitações públicas; e a Platos, criada para
oferecer serviços de gestão para o ensino superior. O grupo terá ainda um braço de investimento em startups,
Cogna Venture.

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72
expectativas e estratégias, os governos antecessores. Ali nascia um jeito novo de gestão da
educação pública com performance estabelecida a partir do nível macro da reorganização do
sistema, como alertam Harvey (1996), Chesnais (1996) e Enguita (1993).

É necessária uma pausa neste ponto para registrar a chegada, em 1991, de um


personagem importante do processo de desenvolvimento educacional de MG, o Banco Mundial.
Governador e Secretário de Educação, no segundo mês de mandato, foram a Washington (EUA)
para solicitar o apoio do Banco Mundial (BM) para um audacioso projeto de reforma
educacional. O BM sinalizou positivamente mas, como estratégia de controle em nível macro,
como se disse anteriormente, apresentou um protocolo de exigências que delinearia a política
educacional para o período de 1991-1994, reunida no programa Pró-Qualidade. Esta política
estruturada em 1991, sob a batuta do BM, se consolidaria no Governo Eduardo Azeredo (1995-
1998), com Mares Guia Neto como Vice-Governador. Esta estratégia se repetiu nas gestões dos
Governadores Aécio Neves (2003-2010) e Antônio Anastasia (2011-2014), sendo a regulação
externa estabelecida com o BM uma das características comuns destas gestões. O BM foi um
personagem importante 16 em ambos os governos, não só ditando os entendimentos e delineando
as ações, mas se fazendo presente fisicamente em uma sala própria ao lado do gabinete dos
governadores, no Palácio da Liberdade, àquela época, sede do governo mineiro. Isto escancara
o acirramento dos elementos de gerencialismo monitorado, que marcou o discurso das gestões
de 1991-1998, e retornou com força entre 2003-2014, relacionando, diretamente,
eficiência/eficácia e racionalidade do sistema de ensino e a qualidade educacional, a regulação
direta, aprimorando-se parcerias com o setor privado, com a grande mídia nacional, e com
assinaturas importantes de empresas de avaliação e de pesquisa (FLORESTA, 2000). No
entanto, o que diferencia a atuação do BM no período 1991-1998 do período 2003-2014, foi o
seu discurso marcante sobre a formação de professores/as, muito presente no primeiro período
e totalmente ausente no segundo período (CUNHA, 1991; GENTILINI, 1993; GRECO, 1996).

No conjunto do desenvolvimento educacional de MG nos últimos trinta anos, a primeira


política que foi criada para reestabelecer a relação Estado-Educação em MG, na perspectiva da
formação de professores e do Currículo, como se referência do ponto de vista teórico-
metodológico, é o Programa de Capacitação de Professores (PROCAP), criado em 1994, para
formar em serviço e a distância, cerca de 90 mil professores/as, com fundamentos vindos dos

16
O financiamento direto do BM se efetivou em 1994, num contrato da ordem de US$150 milhões já no governo
de continuidade de Eduardo Azeredo sendo Mares Guia o Vice-Governador. O Governo Aécio retomou a parceria
com o BM e recebeu um financiamento de US$ 976 milhões para investimento tanto em infraestrutura urbana
quanto em projetos sociais.

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diagnósticos do BM e que descrevem um quadro ainda em reflexão nos dias de hoje. O
diagnóstico para o PROCAP foi feito pelo BM, com base em estudos conduzidos por ele próprio
e num amplo programa de avaliação realizado nos anos 1991-1993, conduzido pela Fundação
Carlos Chagas (FLORESTA, 2000). Acentuou esta avaliação não só a precariedade no
comando de técnicas de ensino, a inadequação da formação, a necessidade de alcance da
proficiência em leitura e escrita, mas nenhuma responsabilização dos/as professores/as pelo
fracasso escolar o que viria a ser tema de políticas deste período e dos próximos (BANCO
MUNDIAL, 1994).

O PROCAP teve continuidade no Governo Itamar Franco (1999-2002) mas, antes


mesmo de ser submetido a uma avaliação mais orgânica e, se fosse o caso, a uma reestruturação,
foi deixando de ser prioridade e sendo esvaziado, pois a decisão desse governo foi pela criação
de um novo programa, o Projeto Veredas - Formação Superior de Professores (PV), concebido
no marco do Programa Anchieta de Cooperação Interuniversitária (PACI), no âmbito da Red
Unitwin/UNESCO de Universidades en Islas Atlánticas de Lengua y Cultura Luso-española
(Red ISA). O governo mineiro desinvestiria num programa de formação continuada, cuja
estrutura estava criada e a classe de professores/as mobilizada, para investir num programa de
formação inicial. Não seria em nada prejudicial, ao contrário, se o Governo Itamar mantivesse
os dois programas, cujos objetivos eram específicos e não conflitavam. Mesmo resgatando
princípios relevantes, como a valorização do magistério, a capacitação dos professores, a
democratização da escola, a qualidade da educação e a universalização do acesso; e tenha
inovado em muitos aspectos, o Projeto Veredas representou uma continuidade de “novo tipo”;
pois preservou os aspectos fundamentais da reforma mineira dos anos de 1990 e não prescindiu
de ser uma estratégia para alavancar índices de produtividade educacional, nos marcos do
neoliberalismo de terceira via, por meio da formação massiva e acelerada de professores/as,
mantendo, em seu discurso, referências das exigências para a formação do trabalhador para o
novo mundo do trabalho e o novo modelo de competências, como ressaltam Floresta e Vaz de
Mello (2008).

Ao assumir, o Governador Aécio Neves (2003-2010), alegando ter encontrado grave


crise fiscal e administrativa e que as prioridades seriam outras e decidiu encerrar o Projeto
Veredas que continuou para oferta de uma segunda turma, mas num esforço isolado de algumas
universidades que buscaram convênios diretos com prefeituras. Segundo Floresta e Vaz de
Mello (2008), para oferta desta segunda turma houve uma grande espera, pois o Secretário de
Governo de Aécio Neves, Bonifácio Andrada, atrasou em quase um ano a liberação do contrato

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com as universidades interessadas para uso do material didático e da proposta pedagógica.
Interessante observar, no relato das autoras que, coincidentemente, neste período, a
Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC), cujo dono era o próprio Bonifácio
Andrada, expandiu sua rede para oferta do Curso Normal Superior, buscando com êxito
convênios com prefeituras.

Popkewitz (1997) alerta sobre as arenas nas quais isto acontece: a superação da crise
está ligada à produção de um novo modo de regulamentação, à reconstituição de um novo
sistema burocrático do Estado, da reformulação da legalidade, da produção de textos públicos
que tornem a autoridade política menos normativa e mais científica, operando uma outra
competência profissional, capaz de corresponder ao novo modelo. Cria-se uma crise de
legitimidade e um processo de insulamento do Estado para atender às demandas a ele impostas.
A sensação é de que o propalado novo mundo, descrito nos anos de 1990 por Harvey (1996) ao
descrever a condição pós-moderna das mudanças sociais e políticas, permanece com sua
ditadura de significados e de aparências, mantém a tecnificação do espaço sociopolítico e
cultural, com seu cientificismo racional renovado, universalizando, cada vez mais,
comportamento e pensamento, como cada vez mais se universalizam o capital e as suas
estruturas.

Mas, o que marcou os Governos Aécio Neves (2003-2010) e Antônio Anastasia (2011-
2014) foi um programa governamental denominado Programa Choque de Gestão, (PCG),
resgatando conceitos da chamada New Public Management, constituído por ações de
racionalização de processos, modernização de sistemas, reestruturação do aparelho
administrativo e avaliação de desempenho institucional e individual, com o objetivo de reduzir
custos e melhorar a qualidade da gestão pública. No campo educacional o que marcou estas
gestões foram, pelo menos três programas: o Acordo de Resultados, a Escola de Formação
MAGISTRA e os Conteúdos Básicos Comuns (CBC).

O Acordo de Resultados foi o resgate de uma estratégia baseada no discurso da


responsabilização, ou accountability dos/as professores/as, como a obrigação de responder
pelos resultados educacionais, definidos, sendo que o que importava era o alcance dos índices
estipulados e a posição do estado em rankings externos de avaliação da educação, na
perspectiva dos estudos comparados em educação. Crosso e Magalhães (2016) analisam esta
política, segundo eles, falsamente fundamentada na maior eficiência dos processos de formação
e de reorganização das escolas e na melhoria da qualidade da Educação. Ao que indica,
aprimorada, uma lógica privatizante nas políticas educacionais em MG, onde o corpo docente

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e a formação ofertada se tornaram alvo de gestões por resultado, em que os/as professores/as
foram conduzidos a seguir prescrições curriculares estabelecidas por especialistas externos, sua
qualificação se reduziu a como aplicar conteúdos e sua avaliação foi feita por métricas que
relacionavam o desempenho de estudantes à qualidade do/a professor/a.

Marques e Bragança (2012) analisam que,

Buscava-se, a partir das diretrizes um currículo voltado para as competências básicas


como mecanismo de atingir maior ênfase na capacidade de continuar aprendendo, em
detrimento do tradicional currículo enciclopédico. Para Zibas (2005), formar a partir
de competências era um modelo de seleção e treinamento da área empresarial que
estava sendo transferido naquele momento para o setor público como novo pilar da
educação brasileira. Domingues, Toschi e Oliveira (2000) chamam a atenção para um
elemento da reforma, aquela que previa a necessidade de adequação curricular
atendendo às demandas e exigências do processo produtivo com a introdução de um
currículo diversificado e flexibilizado. [...] A introdução desses mecanismos, capazes
de contabilizar uma suposta qualidade educacional, é um modelo similar ao já usado
nas práticas empresariais, ou seja, com julgamento dos resultados apresentados. Essa
nova visão de mundo, sendo introduzida na escola, revela o caráter de uma estratégia
de ação política usada nos Estados com pressupostos neoliberais. Essa é uma forma
de compreender a sociedade, a qual seus ideólogos acreditam que, pela introdução de
novos mecanismos gerenciais e reformas administrativas, é possível promover nas
escolas a democracia e a qualidade educacional. Para a educação, esse discurso
neoliberal aponta para um tecnicismo reformado. [...] Em síntese: a reforma curricular
do governo Aécio Neves foi um plano trazido de outros setores para dentro do setor
escolar e atende a uma realidade de mudanças sendo as suas diretrizes implantadas no
Brasil e em vários países, buscando mudar o padrão cultural das escolas para aquilo
que se vê como necessário pelos pensadores políticos desse governo. A implantação
dessas modalidades e de suas iniciativas apresenta-se para o governo como os
principais pontos positivos rumo à nova realidade numa visão de que os entraves
devem ser corrigidos com novos planos e orientações de gestão (MARQUES;
BRAGANÇA JUNIOR, 2012, p. 103-105).

Buscando seu próprio caminho, o governo mineiro aprovou o Plano Decenal de Minas
Gerais, no qual a formação continuada de professores/as era uma meta importante. Nesse
contexto, foi criada a Escola de Formação e Desenvolvimento Profissional de Educadores, a
MAGISTRA, que já na sua criação e localização institucional, suscita muitas reflexões. Ela
ficou diretamente vinculada ao gabinete do Governador, atuando de maneira independente em
relação à própria SEE/MG para oferecer cursos para professores/as e demais profissionais por
meio de parcerias público-privadas, seja com o Governo Federal, com outros governos
estaduais, municípios, mas, principalmente, organizações privadas nacionais e internacionais.

Uma das metas da MAGISTRA seria criar a Rede Mineira de Formadores, composta
por universidades e instituições de Ensino Superior públicas e privadas, para um plano de ações
colaborativas, mas este projeto não foi efetivado, pois não foi possível concretizar a
formalização dos contratos com a instituições credenciadas (sic!) (RODRIGUES, 2014). Em
2014, último ano do período Aécio-Anastasia, a MAGISTRA deixou de ser vinculada ao

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Gabinete do Governador e se ligou à Subsecretaria de Educação Básica da SEE/MG (MINAS
GERAIS, 2020, n.p.).

Rodrigues (2014) aborda os impasses da implementação da MAGISTRA, dentre os


quais, destaca uma grande distância entre o que foi planejado e o efetivamente implementado,
colocando no centro de sua crítica, o insucesso na execução orçamentária, a estrutura física e
tecnológica parcialmente instaladas, a dificuldade na oferta dos cursos prejudicada porque não
foi possível criar a Rede Mineira de Formadores. No que se refere ao conteúdo da formação,
esse Autor também destaca problemas pedagógicos para aproximar a formação ao contexto da
prática docente e acertar a oferta de conteúdo às demandas do público-alvo da formação. E,
continua,
A necessidade de uma política de divulgação das ações da Escola de Formação está
relacionada ao seu modelo de construção. A construção da Magistra pode ser
considerada como uma política implementada no modelo Top/Down, ou seja, de cima
para baixo. Pela forma que a Magistra foi apresentada ao seu próprio público,
percebemos que entre a primeira formulação, que ficou consubstanciada na Lei nº
180, a elaboração da proposta pedagógica (2011) e a montagem da equipe e da
estrutura física da Escola de Formação, todo o processo se deu no formato “de cima
para baixo”, ou seja, sem o envolvimento maior de setores mais amplos, seja dentro
do órgão central da SEE/MG, suas superintendências e, principalmente, entre os
professores, principais beneficiários da política (RODRIGUES, 2014, p. 81).

Uma outra política importante do período Aécio-Anastasia, e que precisa ser


evidenciada aqui, é a dos Conteúdos Básicos Comuns (CBC). Antes, porém, é necessário
registrar que, nas décadas de 1960/1970, as escolas públicas de MG tinham guias curriculares,
com a especificação de conteúdos, objetivos e atividades de avaliação. Nos anos que se
seguiram, não houve uma ação direta de definição de conteúdos curriculares, mas a adesão a
políticas curriculares nacionais como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e às
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), ambas intervenções indiretas no planejamento
curricular. Assim, os CBC não só inaugurariam um tempo de inovação para o sistema
educacional de MG, como seriam a baliza por meio da qual, a formação de professores seria
pensada a partir de então.

A implementação dos CBC se desenvolvia em MG, havia uma mobilização geral para
sua implementação, especialmente, no âmbito das Superintendências Regionais de Ensino
(SRE) mas, mesmo assim, antes de se ter algum resultado efetivo sobre a superação de
dificuldades educacionais, veio a discussão, em nível nacional, de um currículo único para todo
o sistema brasileiro de Educação Básica, o que culminou com o lançamento em 2017, da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) que passou a protagonizar o pensamento educacional
brasileiro (BRASIL, 2017; BRASIL, 2019). MG foi um dos primeiros estados a aderir ao

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projeto da BNCC e a elaborar o seu Currículo Referência para a Educação Infantil e Ensino
Fundamental, em 2019 (MINAS GERAIS, 2019) e o seu Currículo Referência para o Ensino
Médio, em 2021 (MINAS GERAIS, 2021). Necessário contextualizar que a BNCC chegou em
MG já no Governo Fernando Pimentel (2015-2018), reproduzindo, de pronto, o movimento que
se dava no âmbito federal: uma curva acentuada à direita, retraçando o caminho do
planejamento educacional para uma versão mais conservadora (FLORESTA; FERNANDES,
2022).

Garcia-Reis e Callian (2021, p. 7) consideram que a SEE/MG reproduz em seu Currículo


Referência o mesmo gênero textual da BNCC, destacando o conjunto das determinações
externas “provenientes de fatos indiscutíveis e evoluções” aos quais estaria submetido. E
continuam,
Sobre o estatuto atribuído ao professor no Currículo Referência, observamos que,
muitas vezes, é dada a ele uma posição de adjuvante ou instrumento de um processo
de ensino [...] o estatuto de agente, e não de ator, na atividade do trabalho docente
permanece, uma vez que a compreensão é a de que esse trabalho é quase que
mecânico, de aplicação de conteúdos, metodologias e princípios prescritos. O
professor [...] é aquele que desenvolve e executa aquilo que está posto, e o estatuto de
ator do processo educativo recai sobre o próprio documento (GARCIA-REIS;
CALLIAN, 2021, p. 7).

Novamente, Pinto e Melo (2021), destacam a presença de setores privados na


formulação das políticas educacionais, cada vez mais voltadas a atender interesses econômicos
externos. Para as Autoras, a BNCC faz parte deste ideário, como uma imposição de
competências e performances pelos/as professores/as analisam o contexto e o processo de
implementação da BNCC em MG,

A partir do momento em que é imposta às escolas uma lista de competências e


habilidades contidas em uma Base Curricular Nacional, construídas fora de seu
contexto local, se evidencia o mecanismo pelo qual passa a ser controlado não
somente o que se ensina, mas também como se ensina. (...) Nesse cenário, a formação
inicial de professores também é alvo de tentativas constantes de reformulações, com
vistas a completar o projeto de educação em curso. O atual plano curricular de Minas
Gerais contempla o conteúdo da Base e reforça esse olhar sobre a formação docente,
induzindo uma experiência voltada para a aplicabilidade prática dos conteúdos das
políticas, em detrimento do conhecimento como objeto de reflexão, análise crítica e
pesquisa. No que corresponde à formação continuada, o documento aponta a
estruturação de um processo de aperfeiçoamento, atualização e aprofundamento de
conhecimentos relacionados aos componentes do novo ensino médio, que se constitui
da formação básica geral e de itinerários formativos. Para tanto, essa formação vem
sendo planejada a partir das seguintes premissas: Produção de materiais de orientação
prática para os professores (cadernos pedagógicos), pautados nas metodologias ativas
e que considere as experiências próprias da rede; Desenvolvimento de programas
específicos de formação continuada de educadores para o desenvolvimento dos
itinerários formativos; Adequação com base no Currículo Referência dos cursos e
ações formativas destinadas aos profissionais da educação; Aspectos de
interdisciplinaridade estabelecidos nas DCNEM e na BNCCEM (...). Diante do
exposto, considera-se em curso um projeto bem orquestrado em prol do esvaziamento

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da educação pública no país, com abertura cada vez maior para a sua privatização
(PINTO; MELO, 2021, p. 7).

No documento da BNCC, e o que dela deriva no Currículo Referência de MG, há um


conjunto rico de imagens que têm o potencial de remontar, inclusive, à história educacional do
estado de MG, (re)traçando uma linguagem de significação que está aí desde sempre. Esta é
uma arquitetura necessária de se fotografar: considerando os insistentes fatores econômicos e
sociais de MG, as descontinuidades das políticas educacionais, a desigualdade escolar, a sentida
desvalorização dos/as professores/as, a precariedade das escolas públicas. Recorrente foi a
decisão da SEE/MG, no Governo Pimentel, de contratar o Instituto Reúna para uma leitura
crítica do plano de currículo que tinha, como premissa, atender as definições da política
curricular nacional”, mantendo a mesma lógica de transformação da educação pública em
mercado educacional, e não inovando na sua prática de priorizar determinações externas, como
mencionam Pinto e Melo (2021).

O que se tem, hoje, em MG? A BNCC, protagonista do pensamento educacional e das


ações da SEE/MG, está sendo implementada no estado, um processo esse tomado de assalto
pela crise na educação em todo o mundo, provocada pela Pandemia da Covid-19, que obrigou
o fechamento de todas as escolas por meses. Ainda é prematura qualquer análise sobre os reais
impactos da implementação da BNCC nas escolas. O atual Governo de Romeu Zema (2019-
2022), embora surpreendido por estes fatos, de encontrar uma política curricular inovadora (em
certo sentido) e uma crise educacional pelo fechamento das escolas e pelo retorno incerto das
aulas presenciais, somente em 2022, após três anos de mandato, não instituiu uma política
curricular e de formação de professores/as própria é que inicia uma política para a formação de
professores/as.

Santos e Pereira (2022) analisam

As formações em parcerias com as instituições privadas são constituídas a partir do


ano de 2020, o que nos leva a inferir que a chegada do Zema ao poder como um
mecanismo de privatização no governo impulsiona a abertura de outras formas de
privatizar a educação, como a privatização exógena, ao termos a oferta de cursos por
2 instituições privadas. Os riscos que corremos diante da acentuação da participação
do setor privado em fornecer serviços públicos são muitos, tendo em visto que há
sérios conflitos de interesses, pois enquanto o público está diretamente ligado a um
propósito social o privado está na busca de novas oportunidades de lucro. Portanto,
enfatizamos a importância das pesquisas de mapeamento no contexto atual, para que
conheçamos os diferentes modos de privatização e as empresas que têm ingressado
no sentido de nos organizarmos com ações propositivas, na perspectiva de uma
contrarreforma (SANTOS; PEREIRA, 2022, p. 4).

E é o que se segue acompanhando.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As políticas educacionais devem ser submetidas a pelo menos duas vias interpretativas:
a) como política pública educacional no processo histórico do desenvolvimento da Educação;
b) como um conjunto de enunciados estruturado para a produção de uma dada subjetividade,
situando-a num campo específico da relação saber-poder e estruturante de um determinado
modelo de currículo escolar e de um “tipo” profissional. O lugar do qual se analisa todo esse
processo é o lugar das políticas educacionais públicas, altamente potentes para essa análise. De
identidade peculiar, estão sendo levadas a termo para fazer da educação, em todos os seus
níveis, uma atividade do Estado organizada em nível local, em períodos de expressiva reforma
do Estado Brasileiro e do estabelecimento de novos referenciais de sua formação, nomeando
supostas crises e instituindo acordos institucionais com diferentes segmentos do campo
educacional. É a leitura frontal sobre o processo de formação do Estado Moderno que tem
iluminado o entendimento das políticas curriculares e a formação de professores/as em MG, o
discurso educacional nelas presente, suas condições de emergência e transformação como uma
ligação entre os acontecimentos, alguns similares, outros díspares. Aqui se confirma a definição
de Popkewitz (1997), de que a política educacional se refere a padrões cognitivos e
historicamente formadores do indivíduo produzindo uma identidade que é a própria
administração social da individualidade, num contexto de redefinição do Estado,
empiricamente definido através dos padrões e relações em transformações onde ocorre a
regulação social. Cabe aqui reportar à nova ordem econômica e política, que reposicionou os
países na geopolítica internacional (HARVEY, 1997; CHESNAIS, 1997), reestabeleceu o papel
social da educação (ENGUITA, 1993) fundamentando-o na relação custo-benefício de acordo
com parâmetros de certificação e de credenciamento das instituições e dos indivíduos, para
estes últimos, a profissionalização, ou seja, torná-los mais profissionais, regulamentar e
disciplinar a administração do seu trabalho.

É possível entender como estas políticas provocam alterações de comportamentos dos


profissionais que estão desempenhando funções simples, como dar aulas e aplicar provas, e que
precisam seguir parâmetros de novo tipo. A mudança significativa de paradigma no campo da
Educação, implica uma mudança individualizada, até mesmo sobre a forma como
compreendem o trabalho educativo. Essas estratégias, na verdade, constituem uma resposta às
questões emergentes da prática social e vem corresponder a demandas de organização e controle
do trabalho, como prerrogativa para obter consentimento da classe trabalhadora aos princípios
da nova educação, ou seja, conformar a força de trabalho e produzir um novo homem.

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Esse texto vem mostrar que as transformações que acontecem em MG, há pelo menos
três décadas, tem sido tentativas de ajuste institucional do aparelho burocrático-administrativo
do estado, adequando-o a novas relações entre a burocracia estatal e as demandas de uma
conjuntura mais ampla. Obviamente, que isso não tem prescindido de embates entre interesses
de classes dominantes que reivindicam um estado mais eficiente e menos “caro”, como foi
defendido por vários dos governadores aqui citados, mas também níveis mais elevados de
competitividade educacional, e os interesses das classes menos favorecidas que clamam por
resgatar dívidas sociais, embate esse que se dá numa insistente realidade desigual, onde a
educação pública é um grande senão e tem sido usada como elemento dos discursos políticos
desde sempre.

Claro está que as políticas curriculares e de formação de professores em MG têm se


constituído dentro do que Freitas (2018) chama de reforma do alinhamento à lógica empresarial
justificando torná-la mais eficiente, mais eficaz, com assimilações rápidas e respostas eficazes.
Dois aspectos se fazem escancarados no contexto: de um lado uma educação que veio se
consumando com setor de serviços, como já dizia Enguita (1993), ideário esse que se consolida
no atual governo, são mantidas condições precárias de trabalho, de outro, a infraestrutura
permanece deficiente e os/as professores/as são submetidos/as a uma formação fragmentada,
reproduzindo tanto uma linguagem institucional, quanto epistemológica, posta numa retórica
que possui uma qualidade instrumental que se manifesta nos conjuntos de relações
específicas dos sistemas de percepções, avaliações das práticas e nos padrões produzidos.

Dos processos às estratégias, o que se vê em MG nestes trinta anos, é o uso de


instrumentos e um discurso, à primeira vista, para justificar uma crise sistêmica na Educação e
a necessidade de mudança, uma disputa discursiva em torno da política educacional. A par de
se ter indícios da ineficácia do sistema educacional de MG, considerando os estudos realizados
sobre a perda de resultados escolares e de recursos financeiros, pode-se concluir, as relações
estruturais estabelecidas nos processos de gestão educacional em MG são práticas acumuladas,
não unidimensionais e nem lineares, mas que mantém uma certa continuidade, ao mesmo
tempo, expressam diferentes níveis de movimentos e uma perspectiva histórica de causalidade,
no conjunto das transformações e rupturas que ocorreram em nível nacional e internacional,
revelando uma identidade produtora de uma verdade progressista.

Ao reformular os projetos educacionais, modificar as formas de interagir de padrões


institucionais, mediante processos de produção de um discurso instrumental de reprodução
social, o governo mineiro tem se valido, historicamente, de critérios de confrontação com o

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passado e com o que parece estável e natural no presente. Não opera somente na substituição
de padrões de ideias e de práticas organizadas, mas reconforma valores e interesses que
transcendem à sua dimensão micro, referindo-se a determinadas condições postas para a
educação. A justificativa as novas tendências da educação e as experiências internacionais, o
uso de indicadores externos de produtividade, grandes investimentos na produção de
diagnósticos coordenados por instituições ligadas tanto a pesquisas de opinião pública, quanto
a pesquisas na área de avaliação educacional e auditorias são destaque, assim como contratos
com empresas privadas, o que traz um tom de eficiência.

Evidencia-se, na realidade educacional mineira, a adoção de uma política educacional


de governo, não uma política sustentável de estado, que não tenha descontinuidade com a
alteração do cenário político do estado. No mesmo prisma, o que se conseguiu fazer, em alguns
momentos, foi uma certificação em massa e criação de uma grande área de investimento para o
setor privado. Havia o interesse numa redistribuição racionalizada do conhecimento e numa
racionalização da gerência de pessoal que condiziam com a necessidade de maior controle sobre
a capacitação, sobre mensuração de resultados para acelerar a investida econômica na relação
custo-benefício e que sempre estiveram presentes, e isso faz com que o discurso de valorização
dos/as professores/as se torne contraditório, em relação aos princípios básicos estabelecidos que
tratam da valorização do/a profissional da educação, como “agente do aprendizado”, expressão
deixada por Walfrido Mares Guia Neto nos anos 1990.

Nesse ponto de concluir, cabem duas ressalvas: foi no Governo Itamar Franco (1999-
2002) que proliferou o discurso mais contundente de críticas ao BM, aos financiamentos
volumosos e às referências curricular autônomo, mas embargado pelos objetivos dos acertos
funcionais e administrativos. É interessante observar que não houve uma política curricular
específica, mas uma intervenção no planejamento curricular pela formação dos/as professores,
uma regulação do Currículo pela formação dos/as professores/as. As políticas curriculares e de
formação de professores/as parecem trazer, no conjunto do desenvolvimento educacional de
MG, um deslocamento na estratégia do planejamento, pois são carreadas por políticas de fora
para dentro, como analisa Rodrigues (2014).

A própria BNCC foi uma mudança bem visível do Governo Brasileiro ao promover
uma redefinição técnico burocrática do Currículo Nacional, depois de anos com ações indiretas
de definição de parâmetros e diretrizes. O que se verifica, atualmente, é o retorno da ideia de
uma gestão por resultados (CORAZZA, 2016; SAVIANI, 2016), em que os/as professores/as
devem seguir prescrições altamente racionalizadoras da aprendizagem da BNCC, aplicar os

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Humanas, Volume 1.
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conteúdos na forma como ela apresenta e se submeterem a treinamentos de “como aplicar o
conteúdo e suas provas, que avaliam os alunos como também servem de métrica para dizer da
qualidade do professor” (SANTOS; PEREIRA, 2022, p. 2). Imprime, com isso, uma relação
saber-poder, do que é considerado o conhecimento legítimo de todas as coisas, da vida, do
mundo, das pessoas, dos comportamentos ideais; de um discurso que explica as coisas como
elas devem ser acreditadas, de uma vigilância e da correção dos pensamentos e das práticas,
estratégias e tecnologias sociais que são base da governabilidade e da Biopolítica, essa que
permite que se construam relações que formulam o grau de autonomia dos sujeitos, intervindo
nas diversas dimensões da vida, refazendo mecanismos finais da vigilância, nem sempre
exigindo a presença física daquele que vigia, pois a vigilância já estaria estruturada e
interiorizada.

Para finalizar, destacam-se duas reflexões: os programas criados sofreram


descontinuidades sistemáticas, denotando a eles o caráter de políticas de governos e não uma
política de Estado, assim, a SEE/MG sempre que implementou algum programa de formação
de professores/as, se deparou com um volume muito grande de profissionais a serem
formados/as, portanto, seus programas eram sempre de massa. Embora tenham sido, em todo o
tempo, parte importante do discurso governamental, os/as professores/as, ao serem
responsabilizados/as como “agentes do desenvolvimento e responsáveis pelo fracasso escolar,
foram expostos a um dispositivo da Biopolítica que se desenvolveu em MG, muito mais do que
personagens de suas próprias histórias profissionais. Mesmo que não fossem da própria cultura
educacional de MG (FLORESTA, 2000); e foi no Governo Fernando Pimentel (2015-2018)
que se anunciou a necessidade de estabelecer políticas públicas que contemplassem os/as
trabalhadores/as da educação de forma definitiva, resolver a precariedade do quadro funcional
pelo pagamento do piso nacional do magistério, nomeação de aprovados/as em concursos e
ampliação do número de profissionais com habilitação adequada, embora haja dúvidas sobre se
ter conseguido realizar tais políticas. O que se desconfia é que as duas últimas gestões
(Fernando Pimentel, 2015-2018 e Romeu Zema (2019-2022), num outro prisma, não renovaram
as estratégias, marcadas pela ausência de uma política curricular e de formação de
professores/as de identidade próprias, sendo que a primeira esteve voltada para ações de
regulamentação funcional no âmbito da SEE/MG.As políticas curriculares ficaram submetidas
ao que se propôs para o processo de trabalho, não se consolidando, em MG, um projeto de
desenvolvimento

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83
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CAPÍTULO 7
O IMPACTO DA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL NAS ESCOLHAS DE CARREIRA:
REFLEXÕES A PARTIR DO “PROJETO DE VIDA”

Danila Rabelo Batista


Mateus Souza de Oliveira

RESUMO
A pesquisa aqui empregada aborda o impacto da inteligência emocional nas escolhas de carreira dos estudantes
oriundos do ensino profissionalizante. Dessa forma, tem como objetivo principal refletir como a inteligência
emocional, trabalhada no contexto do “Projeto de Vida”, influencia as escolhas de carreira dos estudantes. Para
alcançar esse objetivo, adotou-se uma abordagem qualitativa, envolvendo a realização de uma intervenção
pedagógica no contexto de um curso técnico em informática, seguida por análise de dados obtidos por meio de
entrevistas, questionários e observações. O referencial teórico destaca as contribuições de Goleman sobre
inteligência emocional e desenvolvimento pessoal. Os resultados apresentam uma compreensão mais profunda da
influência da inteligência emocional nas escolhas de carreira dos estudantes, destacando a importância da
autoconsciência, empatia e sociabilidade. A discussão analisa os resultados à luz do citado teórico e alguns
pesquisadores, evidenciando a relevância de integrar práticas que promovam a inteligência emocional no contexto
educacional. Dessa forma, os resultados obtidos revelaram a importância de considerar aspectos emocionais na
orientação profissional dos jovens, fornecendo subsídios valiosos para práticas educacionais mais eficazes.

PALAVRAS-CHAVE: Inteligência Emocional; Autoconsciência; Empatia; Sociabilidade.

1 INTRODUÇÃO

No âmbito da Educação Profissional e Tecnológica, a inovação pedagógica assume um


papel crucial na melhoria contínua dos cursos oferecidos. Nesse contexto, o presente Projeto de
Intervenção (PI) concentra-se no componente curricular “Projeto de Vida” do curso técnico em
informática. Este componente visa orientar os estudantes na construção de seus projetos
pessoais e profissionais, sendo fundamental para seu desenvolvimento.

Diante desse cenário, surge a necessidade de investigar o impacto da inteligência


emocional no processo de tomada de decisões profissionais dos alunos da Educação
Profissional e Tecnológica. Especificamente, busca-se refletir como a inteligência emocional,
trabalhada no contexto do “Projeto de Vida”, influencia as escolhas de carreira dos estudantes.

Essa pesquisa se concentra na análise da relação entre inteligência emocional e escolhas


profissionais, especialmente no contexto da Educação Profissional e Tecnológica. O
componente curricular “Projeto de Vida”, serve como pano de fundo para explorar como as
competências socioemocionais dos alunos impactam suas trajetórias profissionais, destacando
a importância do desenvolvimento integral dos estudantes.

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A justificativa para este estudo reside na importância de promover o desenvolvimento
integral dos alunos, preparando-os para os desafios do mercado de trabalho contemporâneo.
Investir na formação socioemocional dos estudantes é crucial não apenas para o seu sucesso
individual, mas também para o avanço da sociedade como um todo. Assim, este projeto visa
contribuir para a melhoria da qualidade da educação oferecida pela Educação Profissional e
Tecnológica.

Além disso, esta pesquisa contribuirá para o avanço do conhecimento na área da


Educação Profissional e Tecnológica, destacando a relevância da inteligência emocional no
contexto educacional atual. Os resultados obtidos poderão orientar práticas pedagógicas mais
eficazes e fornecer insights valiosos para educadores, gestores e demais profissionais
envolvidos na formação dos alunos.

2 METODOLOGIA

Este estudo adota uma abordagem qualitativa, inserindo-se no tipo de pesquisa


descritiva em pesquisa-intervenção. Marconi e Lakatos (2017), explicam que a pesquisa
qualitativa analisa e interpreta aspectos mais profundos, descrevendo a complexidade do
comportamento humano e fornecendo análises detalhadas sobre as investigações, atitudes e
tendências de comportamento. Assim, busca-se compreender a complexidade e as nuances de
fenômenos sociais, realizando entrevistas semiestruturadas com a coordenadora pedagógica e
o professor do componente curricular “Projeto de Vida” na Unidade escolar.

Além disso, a pesquisa possui um caráter descritivo, conforme definição de Gil (2010,
p. 28), que tem como “objetivo primordial a descrição das características de determinada
população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre as variáveis”. Dessa forma, o
trabalho descreve o cotidiano escolar da educação profissional, a relação entre as variáveis
“Projeto de Vida”, escolhas profissionais e inteligência emocional, contribuindo para o cenário
da educação. Essa perspectiva, conforme Gil (2010, p. 27), “envolvem levantamento
bibliográfico e documental, entrevista não padronizadas e estudos de caso”. Isso exige uma
análise tanto dos teóricos quanto da realidade estudada.

A intervenção foi conduzida na Unidade Escolar de Educação Profissional e


Tecnológica da rede Estadual de Ensino do Estado da Bahia, especificamente no Centro
Territorial de Educação Profissional do Semiárido Nordeste II, localizado no município de
Ribeira do Pombal – BA. O espaço de pesquisa foi escolhido devido à sua representatividade
no contexto da educação profissional na região.

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O público-alvo foi uma turma composta por 20 estudantes, com idades entre 15 e 18
anos, sendo 8 meninas e 12 meninos, e além disso, majoritariamente provenientes da zona
urbana. Apresentavam características colaborativas, participando ativamente de todas as
atividades propostas. Importante notar que se trata de uma turma do 2º ano do ensino médio,
período marcado por incertezas em relação ao futuro e, mais especificamente, às escolhas
profissionais. A escolha desse grupo se deu pela relevância do momento de transição para o
mercado de trabalho e pela oportunidade de investigar as influências do componente curricular
“Projeto de Vida” nesse processo.

A estratégia de coleta de dados incluiu observação participante durante as aulas,


registros em diário de campo e entrevistas semiestruturadas com a coordenadora pedagógica e
o professor do componente curricular “Projeto de Vida”. As observações foram realizadas em
três momentos distintos: o momento inicial (primeiro momento da aula), o desenvolvimento
(segundo momento da aula) e o fechamento (terceiro momento da aula). Este método permitiu
uma análise aprofundada das práticas pedagógicas adotadas e das interações entre os alunos e
os conteúdos abordados.

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

A pesquisa em questão proporcionou uma análise abrangente e profunda sobre a


inteligência emocional e seu impacto no desenvolvimento pessoal e profissional dos estudantes.
Este estudo não apenas explorou os fundamentos teóricos da inteligência emocional, mas
também ofereceu insights sobre sua aplicabilidade prática no contexto educacional
contemporâneo. Ao discutir os resultados à luz das contribuições de renomados teóricos, como
Goleman (2011) e Damom (apud ARAUJO; ARANTES; PINHEIRO, 2020), destacando a
relevância crescente da inteligência emocional no ambiente escolar e profissional.

Além disso, esta pesquisa abordou a integração de ferramentas digitais no processo


educacional (OLIVEIRA; SILVA, 2023), reconhecendo o papel vital da tecnologia na
ampliação das oportunidades de aprendizagem. A seguir, é apresentada uma análise
aprofundada dos resultados obtidos e suas implicações para a formação de estudantes mais
conscientes, emocionalmente inteligentes e preparados para enfrentar os desafios do mundo
contemporâneo.

3.1 Descrição do Processo Intervencionista

A intervenção pedagógica realizada no âmbito do curso Técnico em Informática,


durante a disciplina “Projeto de Vida”, em 21 de novembro de 2023, foi uma experiência

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enriquecedora e transformadora. Este evento, que se estendeu das 07:00 às 10:40, transcendeu
a tradicional oferta de conhecimento, proporcionando aos estudantes não apenas um ambiente
educacional, mas um espaço reflexivo e inspirador, inclusive marcado por um intervalo de 20
minutos para um lanche merecido.

No contexto desse encontro, a escolha cuidadosa da temática foi a Inteligência


Emocional, explorando suas interconexões com as decisões que moldam o percurso profissional
dos jovens. Com uma carga horária total de 4 tempos de 50 minutos cada, a abordagem visava
não apenas transmitir conhecimento teórico, mas também estimular ativamente a
autodescoberta e o desenvolvimento emocional dos alunos, alinhando-se à Competência 8 da
BNCC (BRASIL, 2018), que trata do Autoconhecimento e Autocuidado. O “Projeto de Vida”,
como parte integrante do currículo, está intimamente ligado ao desenvolvimento das
competências socioemocionais.

Segundo Damom (apud ARAUJO; ARANTES; PINHEIRO, 2020, p. 24), o “Projeto de


Vida”, representa uma intenção duradoura e significativa de alcançar metas que afetam tanto o
indivíduo quanto o mundo ao seu redor. Nessa ótica, o conceito de Quociente de Inteligência
Emocional, proposto por Goleman (2011), reforça essa perspectiva ao enfatizar a importância
de habilidades emocionais essenciais, como empatia, autoconhecimento e sociabilidade, para o
sucesso pessoal e interpessoal, desempenhando um papel crucial ao capacitar os estudantes a
tomarem decisões conscientes e a impactarem positivamente suas próprias vidas e as daqueles
ao seu redor.

No desenrolar da intervenção, foi optado por iniciar com uma dinâmica participativa
denominada "O que eu te ensino e o que tu me ensinas". Essa dinâmica de apresentação foi
conduzida em sala de aula, onde os alunos foram organizados em duplas e tiveram a
oportunidade de apresentar seus colegas ao grupo. O destaque da dinâmica recaiu sobre a
reciprocidade do aprendizado no cotidiano, permitindo que cada aluno não apenas descrevesse
seu colega, mas também salientasse as valiosas lições que aprendia com ele diariamente,
promovendo habilidades como empatia e sociabilidade.

Para dar início à abordagem da temática de inteligência emocional, foi escolhido uma
estratégia envolvente: a exibição do filme “Divertida Mente” (Inside Out) que apresenta a
fascinante jornada emocional de Riley, uma garota que enfrenta desafios significativos após se
mudar com sua família para uma nova cidade. Através de uma série de eventos emocionantes
e reveladores, o filme explora como as emoções moldam as experiências e as escolhas de vida

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de Riley, destacando a importância do autoconhecimento, da empatia e do equilíbrio emocional
na navegação das complexidades do crescimento e da mudança.

No cerne de “Divertida Mente” está a reflexão sobre como as experiências emocionais


moldam as escolhas de vida e o desenvolvimento pessoal. Ao explorar o papel fundamental das
emoções na tomada de decisões e na formação da identidade, o filme oferece uma narrativa
envolvente e comovente que ressoa com públicos de todas as idades. Ao final, é destacado a
importância de abraçar todas as nossas emoções, pois cada uma desempenha um papel essencial
em nossa jornada de autodescoberta e crescimento.

Dessa forma, essa exibição proporcionou aos alunos uma oportunidade única de
explorar as complexidades das emoções humanas de maneira lúdica e cativante. Após a
exibição, foi dada início a uma socialização da temática do filme, estimulando os alunos a
compartilharem suas percepções sobre o que o filme ensinou acerca da inteligência emocional,
promovendo o desenvolvimento das competências de comunicação e reflexão crítica.

O contexto educacional contemporâneo, conforme apontado por Oliveira e Silva (2023),


é marcado pelos avanços tecnológicos, os quais têm impactado significativamente os processos
de ensino e aprendizagem. Os autores destacam que as recentes gerações são denominadas
nativos digitais, enquanto as anteriores são consideradas imigrantes digitais. Nesse sentido, as
ferramentas virtuais utilizadas nas aulas possibilitam a incorporação de tecnologias digitais da
informação e comunicação (TDIC) no apoio aos processos educacionais. Esse cenário
evidencia a importância de adaptar as práticas pedagógicas para aproveitar as novas
possibilidades e enfrentar os desafios proporcionados pela tecnologia.

Dessa forma, no desfecho da intervenção, foi adotada uma abordagem interativa e


autoavaliativa para consolidar o entendimento dos alunos sobre inteligência emocional. Além
disso, foi disponibilizado um quiz como ferramenta virtual eficaz para estimular a reflexão
sobre competências emocionais e identificar áreas passíveis de aprimoramento, enfatizando a
importância da autoconsciência e do controle emocional. Essa prática se alinha com a
preocupação do ambiente educacional em promover uma análise abrangente e ajustes
necessários nas práticas pedagógicas, em sintonia com os avanços tecnológicos que “[...] têm
impactado significativamente os processos de ensino e aprendizagem” (OLIVEIRA; SILVA,
2023, p. 1784).

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Figura 1: Quiz.

Fonte: Dados da pesquisa (2023).

A avaliação desempenha um papel fundamental no processo educacional, sendo adotada


com um caráter formativo. Sua finalidade é fornecer feedback construtivo, estabelecendo um
diálogo significativo que propicie uma análise abrangente. Esse enfoque possibilita ajustes
necessários nas práticas pedagógicas e nas estratégias didáticas, promovendo, assim, um
ambiente de ensino e aprendizagem equitativo, evidenciando a preocupação com o
desenvolvimento integral dos alunos (SANT’ANNA, 2004; HAYDT, 1998).

Goleman (2011) argumenta que a inteligência emocional fornece o potencial para


aprender a lidar com emoções e interações sociais, enquanto a competência emocional reflete
o domínio dessas habilidades de forma que se traduzam em capacidades profissionais. Esse
autor também que as competências emocionais são habilidades aprendidas e que possuir o
potencial básico não garante competência total. Dessa forma, é essencial realizar uma
autoavaliação para identificar as áreas que precisam ser desenvolvidas e adquirir as habilidades
necessárias para lidar eficazmente com diferentes situações emocionais e profissionais.

No âmbito dos recursos empregados durante a intervenção, destaca- se a utilização de


tecnologias como a televisão e o datashow. Esses dispositivos foram essenciais para a projeção

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de slides, proporcionando uma apresentação visual dinâmica e envolvente. Além disso, a
televisão foi conectada à rede Wi-Fi para viabilizar a reprodução do filme, enriquecendo a
abordagem do tema. Essa diversidade de recursos visou não apenas facilitar a transmissão de
informações, mas também promover uma aprendizagem mais envolvente e significativa para
os estudantes, alinhando-se com a ideia de promover a inclusão digital e a utilização
responsável da tecnologia.

3.2 Uma Análise Intervencionista

Durante a atividade pedagógica desenvolvida na pesquisa de campo, que incluiu


entrevistas, questionários e observações, foi possível obter uma compreensão mais profunda do
cotidiano da educação profissional. Isso permitiu identificar as potencialidades, fragilidades e
desafios dessa modalidade educacional, bem como conhecer o perfil do corpo docente, a
dinâmica da escola e as peculiaridades dos estudantes, incluindo seus sonhos e aspirações.

Nesse contexto, o foco do trabalho concentrou-se no “Projeto de Vida”, um componente


curricular essencial no ensino médio. Segundo Damom (apud ARAUJO; ARANTES;
PINHEIRO, 2020), a construção de um projeto desse requer que os jovens se conheçam e
compreendam o mundo ao seu redor, o que possibilita a identificação de necessidades,
problemas e conflitos em seu contexto. Essa compreensão é fundamental não apenas para a vida
do jovem, mas também para sua comunidade e para a sociedade como um todo.

Dentro do “Projeto de Vida”, a temática escolhida foi a inteligência emocional, com


ênfase no Quociente de Inteligência Emocional de Goleman (2011). Essa abordagem ressaltou
a importância dos aspectos emocionais para o sucesso, como empatia, autoconhecimento e
sociabilidade, contribuindo para a construção de projetos de vida sólidos e escolhas conscientes.

A primeira atividade, intitulada "O que eu te ensino? E o que tu me ensinas?",


estabeleceu o tom do trabalho a ser desenvolvido. Essa dinâmica permitiu que os alunos
observassem as características uns dos outros, promovendo o desenvolvimento da empatia e
sociabilidade proposto por Goleman (2011). Os alunos participaram ativamente,
compartilhando características interessantes e reveladoras.

A discussão do filme foi outro momento importante, proporcionando uma reflexão sobre
as emoções retratadas na animação. Embora abordar emoções possa ser desafiador, os alunos
expressaram suas impressões sobre o filme e como se identificaram com os personagens,
especialmente considerando a fase de escolhas profissionais no ensino médio.

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Humanas, Volume 1.
93
Além disso, a participação ativa dos alunos ao discutir suas futuras profissões foi
notável, revelando suas escolhas e incertezas em relação às trajetórias profissionais. Foi
observado que muitos alunos, mesmo matriculados em um curso técnico de informática,
aspiram seguir carreiras em outros campos profissionais, o que destaca a importância de
explorar diversas opções e tomar decisões conscientes sobre o futuro.

Durante a aplicação do quiz de inteligência emocional, foi notável a receptividade


positiva dos alunos, demonstrando uma maturidade emocional surpreendente. Observou-se que
não apenas expressaram empatia, mas também se dispuseram a apoiar uns aos outros,
enfrentando dúvidas e medos com coragem. Essa dinâmica evidenciou como o “Projeto de
Vida” proposto contribui de forma significativa para o desenvolvimento dessas competências
vitais.

A interação entre os alunos durante o quiz destacou não apenas a compreensão e


aplicação das competências emocionais, mas também a capacidade de colaboração e apoio
mútuo. Isso vai de encontro à visão de Oliveira e Silva (2023) sobre o impacto das tecnologias
na sociedade, mostrando como a integração de ferramentas digitais, como o quiz, pode não só
medir, mas também promover o desenvolvimento de habilidades socioemocionais essenciais.

A experiência com a prática pedagógica na educação profissional e tecnológica trouxe


aprendizados tanto no aspecto pedagógico quanto humano. Ficou evidente que os sonhos dos
jovens são universais, independentemente do contexto educacional, seja na educação regular
ou nos cursos tecnológicos.

Dessa forma, esta pesquisa não apenas busca compreender a importância da inteligência
emocional no processo de tomada de decisões profissionais entre os estudantes, mas também
evidencia como o “Projeto de Vida”, aliado às práticas pedagógicas, contribui para o
desenvolvimento dessas competências cruciais na vida dos jovens.

Ao analisar os resultados, percebeu-se que a introdução à inteligência emocional teve


um papel fundamental, estabelecendo uma base teórica para a exploração das escolhas
profissionais. Elementos como autoconhecimento, automotivação, controle emocional, empatia
e sociabilidade emergiram como fatores determinantes nas decisões de carreira dos estudantes.

Ao que se refere ao nível de inteligência emocional, a pesquisa revelou variações


significativas entre os participantes, o que dialoga diretamente com as Competências 8 da
BNCC (BRASIL, 2018), enfatizando a importância do autoconhecimento e autocuidado para o
desenvolvimento pessoal e profissional.

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Humanas, Volume 1.
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A pesquisa intervencionista adotada neste estudo possibilitou o desenvolvimento de
habilidades práticas nos estudantes, como a reflexão sobre suas próprias emoções, a
compreensão das escolhas profissionais e a conexão com a comunidade. Esse enfoque está
alinhado à necessidade de formar cidadãos críticos e conscientes, contribuindo para a
Competência 8 da BNCC (BRASIL, 2018).

A articulação entre conhecimentos teóricos sobre inteligência emocional e práticas do


cotidiano dos estudantes enriqueceu a compreensão sobre a importância desse aspecto em suas
escolhas profissionais. A pesquisa não se limitou a abordar teorias, mas procurou integrar esses
conhecimentos ao contexto real dos participantes.

Os resultados também apontaram desafios enfrentados pelos estudantes no processo de


tomada de decisões profissionais, apresentando propostas de enfrentamento em linha com a
perspectiva da pesquisa intervencionista como agente de transformação. A análise crítica dos
resultados identificou pontos fortes, como a integração teoria-prática, e áreas passíveis de
aprimoramento, destacando a necessidade de estratégias mais eficazes na promoção da
inteligência emocional.

3.3 Reflexões Discursivas

A pesquisa contribuiu não apenas para a compreensão teórica da inteligência emocional,


mas também para considerações práticas sobre o desenvolvimento pessoal e profissional dos
estudantes. Ao discutir os resultados à luz dos teóricos apresentados, é importante ressaltar que
no cenário educacional atual, uma variedade de ferramentas digitais está à disposição,
oferecendo um leque diversificado de possibilidades. Desde computadores até aplicativos, esses
instrumentos têm o potencial de ampliar a aprendizagem, desde que estejam integrados a
abordagens pedagógicas coerentes. Além disso, é crucial destacar que a própria noção de
educação está transcendendo os limites tradicionais das salas de aula, estendendo-se para os
ambientes digitais presentes no cotidiano dos alunos.

Ao analisar os resultados à luz das contribuições de Goleman (2011) e Damom (apud


ARAUJO; ARANTES; PINHEIRO, 2020), é possível entender melhor as complexidades da
inteligência emocional no contexto educacional. A análise crítica e a reflexão conjunta
proporcionaram insights valiosos para a formação de cidadãos mais conscientes e
emocionalmente inteligentes. As escolhas profissionais foram contextualizadas em relação à
relevância social, abrindo espaço para a formação de cidadãos que consideram o impacto de
suas decisões na comunidade e no ambiente de trabalho.

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A relação entre a atividade pedagógica desenvolvida durante a pesquisa de campo, a
observação e a aula prática proporcionou uma compreensão mais aprofundada do cotidiano da
educação profissional. Identificaram-se as potencialidades, fragilidades e desafios desse
contexto, assim como o perfil dos docentes, a dinâmica da escola e as peculiaridades dos
discentes.

Os resultados também evidenciaram a eficácia das atividades propostas, como a


atividade de apresentação e a dinâmica da partilha do filme, na promoção da empatia,
sociabilidade e reflexão sobre escolhas profissionais. Esses momentos refletiram o
desenvolvimento de habilidades socioemocionais fundamentais, conforme discutido por
Goleman (1996).

A variação significativa no nível de inteligência emocional entre os participantes,


conforme revelado na pesquisa, atendeu aos objetivos específicos e dialogou diretamente com
as Competências 8 da BNCC. A pesquisa intervencionista evidenciou o desenvolvimento de
habilidades práticas nos estudantes, contribuindo para a Competência 8, que destaca a
importância do autoconhecimento e autocuidado para o desenvolvimento pessoal e profissional.

A articulação entre conhecimentos teóricos e práticos enriqueceu a compreensão sobre


a importância da inteligência emocional nas escolhas profissionais dos estudantes. A pesquisa
não apenas abordou teorias, mas também procurou integrar esses conhecimentos ao contexto
real dos participantes.

Os resultados identificaram desafios enfrentados pelos estudantes no processo de


tomada de decisões profissionais, e propostas de enfrentamento foram apresentadas, alinhadas
à perspectiva da pesquisa-ação como agente de transformação. A análise crítica dos resultados
contribuiu para a identificação de pontos fortes e áreas passíveis de aprimoramento, destacando
a necessidade de estratégias mais eficazes na promoção da inteligência emocional.

Além disso, a pesquisa forneceu subsídios para a revisão das ações estratégicas na
jornada pedagógica, ressaltando a importância de integrar práticas que promovam a inteligência
emocional ao longo do ano letivo. A pesquisa, portanto, não apenas atendeu aos objetivos
específicos, mas também às demandas atuais da educação, promovendo uma visão mais
abrangente e integrada do desenvolvimento educacional.

Em relação à inclusão digital, a pesquisa estabeleceu uma articulação entre


conhecimentos teóricos e práticos, superando as barreiras existentes e destacando a importância
dessa integração. O chamado para a ação, apresentado nas considerações finais, reforça a

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necessidade de integrar a inteligência emocional como elemento central no desenvolvimento
educacional, formando cidadãos capazes de tomar decisões conscientes, éticas e socialmente
responsáveis.

Neste sentido, vale ressaltar que algumas profissões indicadas pelos estudantes estavam
fora do contexto do curso técnico em informática, como psicologia e agronomia. No entanto, a
dinâmica e o filme provocaram uma reflexão que ajudou os alunos a lidar com seus medos e
dúvidas em relação às escolhas profissionais, tornando-os mais seguros ao entenderem que
esses sentimentos fazem parte da vida dos jovens do ensino médio.

Vale ressaltar que os achados revelaram que os alunos que desenvolveram habilidades
emocionais, como autoconhecimento, empatia e controle emocional, demonstraram uma
tendência maior a fazer escolhas de carreira mais alinhadas com seus interesses pessoais e
valores individuais.

Essa reflexão foi possível mediante a observação direta das interações dos alunos
durante as atividades do projeto, como a dinâmica de apresentação e discussão do filme.
Durante esses momentos, foi perceptível como os estudantes que demonstravam um maior
domínio das competências emocionais também apresentavam uma maior clareza e confiança
em relação às suas escolhas profissionais.

Portanto, os resultados deste estudo confirmam a hipótese inicial de que a inteligência


emocional, quando integrada ao “Projeto de Vida”, exerce uma influência significativa sobre
as escolhas de carreira dos estudantes. Essa constatação ressalta a importância de incluir o
desenvolvimento emocional como parte integrante do currículo educacional, visando preparar
os jovens não apenas para o sucesso acadêmico, mas também para uma vida profissional
satisfatória e gratificante.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este estudo alcançou seu objetivo de refletir como a inteligência emocional, trabalhada
no contexto do “Projeto de Vida”, influencia as escolhas de carreira dos estudantes, fornecendo
subsídios importantes para orientar práticas educacionais mais eficazes. Os resultados obtidos
contribuíram tanto de forma teórica quanto prática, evidenciando a importância crucial dessa
temática no contexto educacional contemporâneo.

Por um lado, a pesquisa permitiu uma compreensão mais profunda da influência da


inteligência emocional nas decisões de carreira dos jovens, destacando sua relevância no

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Humanas, Volume 1.
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ambiente educativo. Por outro lado, identificou-se potencialidades e desafios na implementação
de estratégias que visam fomentar o desenvolvimento dessa habilidade nos estudantes.

Entretanto, é imperativo reconhecer algumas limitações do estudo, como a amostra


restrita de participantes e a ausência de acompanhamento longitudinal dos mesmos. Ademais,
é possível que tenha ocorrido um viés de resposta que influenciou os resultados, sugerindo a
necessidade de abordagens mais diversificadas e aprofundadas em futuras investigações.

Para avançar nessa área, recomenda-se a realização de estudos longitudinais que


acompanhem os estudantes ao longo do tempo, além da diversificação da amostra para abarcar
diferentes contextos socioeconômicos e culturais. Adicionalmente, a avaliação do impacto de
intervenções específicas no desenvolvimento da inteligência emocional pode fornecer insights
para orientar práticas educacionais futuras.

Em síntese, este estudo representa um marco importante na compreensão da relação


entre inteligência emocional e escolhas de carreira dos estudantes. No entanto, há espaço para
novas pesquisas que ampliem e aprofundem esse conhecimento, visando promover o
desenvolvimento integral dos jovens e aprimorar as práticas educacionais voltadas para este
fim.

REFERÊNCIAS

ARAÚJO, U. F.; ARANTES S. V.; PINHEIRO, V. Projetos de vida: fundamentos


psicológicos, éticos e práticos educacionais. 1. ed. São Paulo: Summus, 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.

GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.

GOLEMAN, D. Inteligência emocional: a teoria revolucionária que redefine o que é ser


inteligente. Tradução: Emotional intelligenc. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.

HAYDT, R. C. Avaliação do processo ensino-aprendizagem. São Paulo: Editora Ática, 1998.

MARCONI, M. A.; LAKATOS, E. M. Fundamentos de metodologia científica. 8. ed. São


Paulo, SP: Atlas, 2017.

OLIVEIRA, M. S. de; SILVA, M. D. F. da. A formação com tecnologia digital: potencializando


a aprendizagem geométrica. Boletim de Conjuntura (BOCA), Boa Vista, v. 15, n. 45, p. 183–
200, 2023. Disponível em: https://revista.ioles.com.br/boca/index.php/revista/article-
/view/2063. Acessado em: Fev. 2024.

SANT’ANNA, I. M. Por que avaliar? Como avaliar? Critérios e instrumentos. 10. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.

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DOI 10.47402/ed.ep.c240611078215

CAPÍTULO 8
A ARQUITETURA PERSUASIVA NOS TRÓPICOS AMERICANOS:
AS ORIGENS E INFLUÊNCIAS DO BARROCO NO BRASIL

Christian Fausto Moraes dos Santos


Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gessica de Brito Bueno
Rodrigo Perles Dantas

RESUMO
O barroco enquanto movimento artístico que nasceu no final do século XVI, teve um longo período de
sobrevivência e manifestação, tendo se disseminado por diferentes espaços territoriais. O barroco ficou conhecido
como arte da contrarreforma, por ter sido desenvolvido em meio ao catolicismo como forma de reconquistar os
convertidos ao protestantismo. Esse estilo artístico nasceu em meio a grandes transformações culturais e políticas
na Europa. O Estado Moderno estava se formando, o absolutismo ganhava aparência, as Américas estavam sendo
invadidas, a reforma e contrarreforma se consolidavam. O barroco era entendido como um estilo apelativo e
persuasivo, devido sua exuberância e beleza. Isso fez com que ele fosse utilizado para diferentes fins. A partir
dessas colocações o presente texto pretende trazer algumas explorações sobre essa estética arquitetônica. Em um
primeiro momento, após a introdução, a ideia é debater as teorias e origens do barroco, de forma a expor como ele
se manifestou em diferentes estados e culturas europeias. Em seguida o texto segue em sentido de teorizar a
manifestação do barroco lusitano, sendo a partir dele que houve a possibilidade de aparição do mesmo no Brasil,
já que isso ocorreu a partir do processo colonial que Portugal instaurou na América. A terceira etapa se centrou no
debate em torno de quais foram as formas que o barroco assumiu no Brasil, suas similaridades com o modelo
lusitano, assim como suas particularidades que evocam tanto o processo colonial, quanto os motivos e
interpretações significativos que foram aplicados nas edificações a partir do contato e ofício de culturas autóctones.

PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura; Barroco; Brasil Colonial; Era Moderna; História da Arte.

1 INTRODUÇÃO

Tratar da disciplina da arte, independente de qual objeto ou manifestação que seja


escolhida, exige que conceitos e categorias sejam elencados previamente para o processo
investigativo. A análise dos elementos dessa disciplina e atividade podem se dar a partir de
diferentes categorias como por vias poéticas, morfológicas, estéticas e também históricas.
Como o enfoque desse ensaio incide sobre as duas últimas categorias mencionadas, há a
necessidade que aspectos da disciplina de História da Arte fiquem elucidados.

O conceito daquilo que é considerado “arte” tem sua própria historicidade. Na


antiguidade greco-romana e no mundo medieval europeu, as artes englobavam ofícios teóricos.
Na Era Moderna, com mais especificidade no renascimento italiano, a arte são os elementos
teóricos aplicados em ofícios práticos. A ideia de arte enquanto embelezamento e persuasão foi
aos poucos se manifestando do século XVI em diante. No século XVIII enciclopedistas, como
Diderot e D’Alembert, entendiam que arte era o campo de produção de elementos materiais que

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Humanas, Volume 1.
99
passassem a sensação de embelezamento e decoração, desde que presumisse aspectos de
verossimilidade (CARAMELLA, 1998, p. 24-36).

O que aparece de comum no pensamento sobre arte no decorrer do tempo é que esse
conceito foi sendo utilizado como via de organização e ordenação de diferentes elementos
produzidos ou de atividades estabelecidas naquele contexto. Isso é, um sistema que organiza e
classifica. Tais sistemas de interpretação e elaboração do mundo não se deram de forma
harmônica ou estática. A arte enquanto atividade, ofício e teoria é caracterizada pelo
movimento. Isso significa que tentar ordená-la em construtos estabelecidos, isso é, criar
diferentes caixas classificatórias de forma a encaixar um conjunto de atividades que ocorriam
em um dado contexto em uma caixa que seja comum a elas, é um processo artificial
(CARAMELLA, 1998, p. 15-16).

O processo de ordenação citado acima é a tentativa que a disciplina da história da arte


busca realizar sobre objetos e atividades realizadas no tempo. A ideia de estilos de um tempo,
ou de uma estética comum pertencente à duas edificações, são conceitos teorizados por essa
disciplina. No entanto a História da Arte se encontra em uma encruzilhada dupla. A primeira
delas é a dimensão de delimitar o que é e o que não é arte (CARAMELLA, 1998, p. 16). A
segunda problemática deriva da primeira. A partir da delimitação do que é arte, como essa
disciplina consegue delimitar as periodizações de estilos, estéticas e significações daquilo que
é produzido no mundo artístico? (MACHADO, 2008, p. 523).

Em relação àquilo que é arte, por quase todo o século XX, a ideia era de que o elemento
artístico eram as manifestações estético-morfológicas materializadas em superfícies que
compõem o cotidiano e a realidade, como a pintura, a escultura, a arquitetura, o desenho e a
música. Esse tipo de classificação privilegia algumas linguagens em detrimento de outras. No
entanto esse conceito foi expandido. Hoje pode-se delimitar a arte como as manifestações de
ordem estética ou comunicativa, que pode utilizar diferentes linguagens para sua existência.
Isso significa que de fato nem tudo é arte. A construção de uma calçada feita apenas de forma
utilitária, ou a construção de um moinho hidráulico para a moagem de grãos não são
manifestações artísticas. Esses elementos são de ordem utilitária e possuem elaborações
próprias para seus fins. No entanto, quando há a adição de uma manifestação simbólica sobre
esses elementos, seja de ordem material semiótica, ou apenas no aspecto de comunicação
imaginativa, esse elemento passa a ser um exemplar artístico, mesmo tendo uma origem
utilitária. Esses aspectos que determinam a arte citados precisam ir além de uma mera aplicação

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Humanas, Volume 1.
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estética pelo gosto. Há a necessidade da composição significativa nessa adição, que dê sentido
na materialização do traço simbólico (CARAMELLA, 1998, p. 16-18).

A segunda questão diz respeito às categorias que a disciplina de História da Arte cria
sobre períodos espalhados no tempo. O campo da história da arte faz suas divisões a partir de
eixos de interesse e de processos significativos em diferentes períodos no tempo. Quando se é
dito que o barroco tem seu início no final do século XVI e que ele se esgotou em meados do
século XVIII, isso não quer dizer que a manifestação do barroco desapareceu. O que se deu foi
um processo de mudanças de interesse, onde houve o surgimento de elementos teóricos e
simbólicos novos. O barroco continuou sendo produzido, mas não mais necessariamente como
esfera de interesse central. Portanto as periodizações dependem não apenas de aspectos
semióticos e morfológicos que produzem a estética. Dependem necessariamente de elementos
teóricos e significativos produzidos em um dado tempo (CARAMELLA, 1998, p. 18).

No século XXI, a disciplina de História da Arte não tem a possibilidade se dar ao luxo
de contentar-se com periodizações que englobem apenas elementos clássicos de longo prazo.
Enquanto disciplina ela necessitou se reformular a fim de englobar outras manifestações que
vão além daquelas que são materiais, ou seja, produtos imateriais. Não só isso, esse campo
necessitou de um movimento de fora para dentro. Isso é, foram necessárias críticas a uma visão
eurocêntrica de arte, em busca de criar periodizações específicas à cada cultura e a cada
momento. A arte humana do século XVII não é barroca, mas sim a europeia. Na África, nas
Américas ou Ásia outras produções ocorriam de acordo com ciclos próprios internos e suas
relações com influências externas. Como via de sobrevivência esse campo precisou criar
olhares hermenêuticos que abandonassem bases eurocentradas (MACHADO, 2008, p. 526-
527).

A ampliação da análise da História da Arte bebe de pressupostos que vêm sendo


debatidos desde a primeira metade do século XX. Erwin Panofsky delimitava a história da arte
como um campo de estudo da produção humanística. O autor não estava pensando
necessariamente em ampliação das interpretações de sua área. Porém essa ideia permite que
essa disciplina expanda seus olhares em sentido de observar os aspectos artísticos de produções
que vão além do material, ou seja, incorporando o imaterial (PANOFSKY, 1999, p. 33-35).
Além disso sendo a arte um processo humanístico, ela necessita observar as produções em larga
escala, considerando seus contextos socioculturais. As periodizações e categorias devem ser
elaboradas a partir de entendimentos internos dos grupos e suas produções no tempo, sem que
isso se dê enquanto imposição que vem de fora. Isso é, para se compreender a arte de um dado

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lugar e contexto não se pode aplicar conceitos e categorias que são eurocentrados (MACHADO,
2008, p. 527).

Se a história da arte tem suas nuances próprias e ela estuda diferentes produções
artísticas no tempo, há a possibilidade de estudar, unicamente, a história de um desses produtos.
A arquitetura é um dos elementos mais clássicos considerados como produção de arte. Isso
significa que ela possui historicidade própria. Para se compreender tal historicidade, é preciso
primeiramente que a ideia de arquitetura seja configurada. A arquitetura é a ciência de construir
edificações. Ela é propriamente a história das edificações e dos espaços elaborados para usos
cotidianos. Ela pode ter tanto um sentido utilitário de sobrevivência, quanto pode ser elaborada
diante de necessidades e interesses simbólicos que estão estruturalmente interiorizados em um
grupo e sua cultura (GLANCEY, 2001, p. 9).

A arquitetura é necessariamente a arte de construir e das edificações. Isso significa que


ela vai desde elementos simples e pequenos, até as construções arquitetônicas e monumentais
(GLANCEY, 2001, p. 9-10). É interessante que antes de existirem construções, ou edificações,
os primeiros hominídeos utilizavam o espaço natural como forma de sobrevivência. A
utilização de espaços fechados, que protegiam das condições climático-ambientais, como
cavernas, começou a 2,5 milhões de anos, de forma que esses foram os primeiros lares
existentes. Esses espaços, no entanto, não se configuravam como edificações. Eles locais eram
considerados lares (PEREIRA, 2005, p. 13).

A arquitetura de fato é o ato de construir ao lado de suas edificações. Esse campo de


produção possui uma linguagem própria. As primeiras cabanas produzidas tinham um sentido
utilitário, mas na mesma medida possuíam traços dependentes da cultura e contexto em que
foram produzidas. Isso é perceptível nas formas que as edificações foram constituídas, assim
como em relação à valores estéticos (PEREIRA, 2005, p. 12-13).

Entre as primeiras sociedades as edificações eram pouco variadas no interior do grupo.


A grande diferença se dava entre os lares das pessoas comuns daqueles e as moradias das
lideranças locais. No entanto as populações cresceram e à medida que se tornaram mais
complexas é possível notar um aumento na variedade de tipos de edificações. Nota-se templos
religiosos de escala monumental, estruturas palacianas privadas de ordem privada para os
dignitários locais, edificações civis de uso amplo e institucional, assim como variedades dos
prédios usados enquanto moradas, que dependiam de condições de hierarquia social no interior
do grupo (GLANCEY, 2001, p. 10).

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Humanas, Volume 1.
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As designações morfológico-estéticas também ficaram mais evidentes e variadas com o
tempo. Um grupo com sua cultura possui noções técnicas e utilitárias que são aplicadas em seus
cotidianos. Esses traços também são utilizados nas construções. Na mesma medida pensa-se
que os aspectos ontológicos do grupo, ou seja, a maneira como o grupo constitui, interpreta e
entende o mundo também fazem parte do conjunto de aplicações sobre elementos artísticos,
isso envolvendo a linguagem arquitetônica. As edificações não são meros elementos utilitários,
elas envolvem ideais, desejos e intenções do grupo. A maneira como um determinado edifício
é constituído envolve interesses de um líder, ideais de crenças do grupo, gostos estéticos e
desejos de manifestações significativas no mundo (PEREIRA, 2005, p. 19).

Diante dessas colocações, para se compreender a arquitetura de um dado período, é


preciso entender seus valores morfológicos e estéticos, assim como as motivações por trás da
elaboração das construções nesse determinado estilo. Isso significa entender elementos
políticos e culturais, que envolvem dimensões ideológicas e de poder, que são direcionados à
construção de edificações e geram estéticas próprias, vinculadas a um dado período. Tais traços
estão interiorizados na construção, de forma que a edificação expressa continuamente esses
valores e ideais.

A partir desses pressupostos é possível abordar a manifestação da arquitetura barroca


no Brasil. No entanto primeiramente existe a necessidade de que o barroco em si seja
contextualizado e teorizado. Em seguida, como ele chegou ao Brasil por vias portuguesas, é
preciso que o barroco lusitano seja expressado e compreendido. Por fim há a possibilidade de
delimitar os traços da arquitetura barroca brasileira, situando suas influências e detalhes
específicos.

2 ARQUITETURA PERSUASIVA: AS TEORIAS DO BARROCO E SUAS


MANIFESTAÇÕES EUROPEIAS

O barroco enquanto movimento artístico tem sua origem situada no final do século XVI.
Por muito tempo o barroco foi pensado como um modelo que negava os pressupostos de
retomadas clássicas da arte renascentista, ou foi situado como um movimento que perverteu e
subverteu o renascimento. No entanto o barroco não negava os pressupostos clássicos. Tais
elementos foram apropriados por esse movimento de forma a tangencia-los para os usos
políticos e religiosos do período, ou seja, a persuasão no lado religioso, assim como a imposição
e evidência do poder no lado político (TOLEDO, 1983, p. 95).

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103
No renascimento as formas geométricas, como frontões triangulares e fachadas
quadradas, ao lado da retomada do uso de pilares que iam dos traços dóricos aos coríntios, se
tornaram bem usuais. Tal movimento teve evidência entre o final do século XIV e o primeiro
terço do século XVI. Diante de novas experiencias que ocorreram no século XVI, o estilo da
renascença se esgotou. As reformas protestantes conquistando massas de camponeses, a
chegada e invasão de europeus nas américas e o advento do poder soberano criando os Estados
Modernos que reivindicavam consolidar suas monarquias nacionais.

Os sinais de mudanças não desembocaram automaticamente no barroco. Entre a


renascença e o barroco houve o momento confuso onde os traços clássicos foram utilizados em
sentido de ruptura de suas regras. O maneirismo é necessariamente o movimento artístico que
propôs o anticlássico. O barroco derivou dos modelos antigos e renascentistas. Ele apareceu
enquanto modelo que se sujeitou às necessidades e desejos de seu tempo. O maneirismo surge
em um momento de questionamento da igreja a uma série de pressupostos do humanismo. Os
artistas do maneirismo não buscavam manter as formas clássicas. Suas interpretações geraram
produtos antiéticos, em termos de normas clássicas, com regras próprias. As curvas, os
alongamentos e a multiplicidade de pilares, causaram efeitos inéditos. A simetria não era mais
uma necessidade. As estruturas arquitetônicas ganham composições que lembrar torres, mas
que não se destoam das fachadas, gerando apenas uma impressão na composição frontal do
edifício (HAUSER, 1993, p. 16-19).

Se a arte renascentista havia apresentado sua perfeição, os novos artistas buscaram


modelos próprios. No entanto o maneirismo não supria as necessidades, desejos e anseios do
novo tempo que vinha se instaurando. Se os valores clássicos não persuadiam as massas, o
maneirismo não gerava a ordem buscada pelos poderes políticos e religiosos (GOMBRICH,
1999, p. 362-363). É nesse sentido que o barroco aparece enquanto o modelo artístico que bebe
do clássico, mas cria suas regras de exageros, onde aplica elementos do renascimento, mas de
forma a gerar uma tensão sobre eles. Os elementos decorativos se exageraram, as curvas se
ampliaram e tomaram corpo ao lado de pilares coríntios, além disso as fachadas ganharam torres
verdadeiras (TOLEDO, 1983, p. 95).

O barroco, enquanto movimento artístico, ficou conhecido como a arte da


contrarreforma. Esse foi o movimento arquitetônico que planejou elaborar igrejas de dimensões
palacianas de forma que elas estivessem disponíveis às massas. Esse foi um movimento artístico
voltado à persuasão (GOMBRICH, 1999, p. 365). No entanto o barroco foi utilizado também
pela dimensão política. As diferentes cortes, que se pretendiam absolutas, visaram produzir

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edificações públicas e palacianas que expunham, impunham e reforçavam seus poderes
(TOLEDO, 1983, p. 94).

Os elementos lineares deram espaço ao pictórico e à dramaticidade. A profundidade,


que existia no renascimento, mas tinha pouco significado, foi aprofundada e ganhou maiores
sentidos na composição das obras. As formas fechadas que geravam retratos determinados em
si mesmos, deram abertura à composição aberta, onde as obras se abriam ao infinito e ao
processo imaginativo. O barroco pode ser periodizado em três momentos próprios. Há o inicial,
onde ele ainda buscava se consolidar, sendo dependente do classicismo. O Médio, onde a
arquitetura ganha formas exageradas, e muitas vezes ditas enquanto grotescas, onde as
decorações geram espaços sufocantes. Por fim há a fase final, alinhada ao rococó, onde as
formas se suavizam e ganham organicidade curva. É nesse último momento que o clássico foi
se retomando, dando abertura na segunda metade do século XVIII para o neoclassicismo
(TOLEDO, 1983, p. 94-98).

O mundo do barroco pode ser expressado em três dimensões distintas, porém


complementares. Há o aspecto arquitetônico e como as construções foram elaboradas. Existe a
dimensão da iconosfera barroca, onde os elementos imagéticos e pictóricos pretendiam a
ampliação das formas. Por fim há a dimensão espacial, em como o espaço físico citadino foi
elaborado, de forma a se pensar na elaboração da capital (PEREIRA, 2005, p. 156). O barroco
em seus 150 anos de dispersão espaciotemporal, assumiu muitas formas e se fez valer de acordo
com objetivos próprios regionais, de acordo com as culturas em que se manifestou. Suas bases
estéticas, teóricas e objetivas foram preconizadas por noções comuns. Isso é, foi um movimento
relacionado à persuasão e ao poder. No entanto sua forma de aplicação arquitetônica dependeu
dos interesses locais e dos regionalismos (BLUNT, 1988, p. 13).

Tendo em mente as colocações básicas do barroco, é interessante expressar certos dados


regionais que ele assumiu no interior da Europa. O barroco é dito como tendo surgido na Itália
no final do século XVI, tendo sido a Igreja de Gesú, em Roma, o primeiro exemplar desse estilo.
O barroco em sua magnitude plena se deu na segunda metade do século XVII. O arquiteto
Borromini construiu uma série de igrejas como se fossem estruturas palacianas e teatrais. A
pompa e a ostentação visavam justamente produzir elementos de convencimento e a sensação
de maravilhamento. Os principais interesses da arquitetura barroca italiana se concentraram na
decoração de interiores. No caso italiano nota-se a proliferação de palacetes de menor escala,
de forma que as igrejas foram os principais exemplares voltados à persuasão no caso italiano
(GOMBRICH, 1999, p. 436-445).

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105
As igrejas utilizavam elementos clássicos, ao lado de composições curvas. Nota-se a
sensualidade sendo utilizada enquanto composição que evocava o prazer do paraíso e da fé. A
igreja era uma estrutura teatral que convocava sua audiência (BLUNT, 1988, p. 27). Borromini
a serviço da igreja pensou em conciliar os elementos decorativos à força de atração das massas.
É nesse sentido que a dimensão teatral se consolidou enquanto opção de interesse (GLANCEY,
2001, p. 78). A arquitetura buscou teorizar as formas, a fim de garantir elementos com linhas
retas e formas geométricas. O barroco teve como critério encantar os sentidos. O triunfal seria
uma forma de atração, de forma a instigar os indivíduos a fazerem parte do espaço teatral
(GYMPEL, 2001, p. 53).

A Itália não foi um espaço com soberanos entre os séculos XVI e XVIII. O que se nota
são duques, como em Veneza, e na mesma medida senadores como em Florença. No entanto,
em locais como França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, nota-se o barroco sendo utilizado
enquanto elemento de poder político nas construções. No caso francês há o exemplar do palácio
de Versalhes. Nesse caso, os detalhes barrocos estão mais associados à dimensão das grandes
proporções do que de fato aos elementos decorativos externos (GOMBRICH, 1999, p. 448). O
barroco francês é na mesma medida a exposição do poder e da beleza. Não exatamente em
sentido de exagero que busca sufocar os estímulos daqueles que visualizam tal espaço. A ideia
era transmitir a mensagem do poder através da suavidade das formas, mas na mesma medida
expor o poder por meio da monumentalidade apresentada (TADGELL, 1988, p. 107-108). O
palácio era uma espécie de centro de irradiação do poder. Dele partiam os jardins e também
uma série de avenidas e prédios públicos (GYMPEL, 2001, p. 56-57).

Outro eixo de produção de edificações barrocas, foram aquelas produzidas na


Alemanha, Áustria e na Boêmia. Nesse espaço foi onde os elementos do barroco francês e
italiano se uniram de forma que geraram os exemplares barrocos mais consistentes. O excesso
decorativo é uma consistência no barroco dessa região de forma que esses detalhes ficam
expressos nos modelos. A exuberância não foi contida, de forma que certos detalhes foram
colocados enquanto grotescos, devido ao tamanho números de detalhes. Os espaços são
irradiantes, com excesso do dourado, das folhas de ouro, das esculturas, elementos em
perspectiva em todo o espaço, assim como pinturas ilustrando o espaço. Nota-se o interesse
pelo deslumbrante e o maravilhoso (GOMBRICH, 1999, p. 451-452).

A exuberância consolidada tinha a intenção de deixar evidente a presença da riqueza. O


imperador romano-germânico conseguia assim manter os elementos da persuasão barroca, mas

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na mesma medida tinha a possibilidade de deixar a riqueza em aparência (GYMPEL, 2001, p.
58-61).

O caso inglês se desenvolveu de maneira mais tardia e esteve associado ao arquiteto


Cristopher Wren, que incorporou tais elementos na primeira metade do século XVIII. A
dispersão do barroco pela Europa atingiu até mesmo solos protestantes. No entanto o barroco
inglês não possui o fantástico ou o deslumbre em sua ornamentação. Ela é imponente e espalha
seu poder, porém faz isso de forma fria, com traços mais austeros do que dos exemplares das
outras localidades. A dimensão da igreja não é voltada para entupir os sentidos da comunidade
religiosa. Isso não significa gerar um deslumbre sobre o outro mundo. A ideia se centrava em
evocar um espírito religioso e cívico. A comunidade sentiria os elementos do poder, enquanto
que a igreja serviria como o local de reunião e comunhão religiosa da comunidade, como um
momento de reflexão entre os membros do grupo (GOMBRICH, 1999, p. 457-461).

A tendência da monumentalidade sem os excessos decorativos e seus deslumbres


também incidiu sobre as últimas produções do barroco na França, isso visível na igreja de Los
Invalidés em Paris. As formas ganham corpo de interesse de forma que elas são evocadas de
forma mais similares aos valores clássicos. Nota-se nesse barroco os prenúncios do
neoclassicismo. As diferentes partes que compõem o edifício possuem começo e fim, não sendo
amalgamadas de forma que parecem uma composição única como no barroco austríaco
(GYMPEL, 2001, p. 61). Os valores protestantes fizeram com que a arquitetura barroca se
adaptasse de outra forma no espaço britânico. É nesse sentido que o barroco inglês se deu de
forma mais austera. O simbólico da riqueza não era evocado nos valores e elementos do
cotidiano (GLANCEY, 2001, p. 84-85).

A arquitetura barroca flamenga e holandesa tinha uma tendência residencial e não


palaciana. Nota-se prédios alongados, finos e altos. O que hoje aparentam ser uma série de
apartamentos, eram no período edificações de residências únicas (GYMPEL, 2001, p. 90-91).
É preciso situar que no caso belga as curvas e elementos decorativos externos foram
empregados em um período turbulento. Enquanto a Espanha queria manter seu controle sobre
o local, disputando simultaneamente o espaço religioso, é preciso situar que havia os
protestantes no local. Nesse sentido o barroco se afirmava enquanto modelo católico. O barroco
holandês se aproximava à elementos do modelo inglês. A grande diferença é a presença de
aspectos decorativos exteriores. No entanto as partes internas tendiam também à austeridade.
O caso holandês possui o modelo barroco mais geométrico, apresentando figuras de ordem
linear (BLUNT; DOWNES, 1988, p. 147-163).

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Por fim há de se pensar no caso espanhol. A exploração de recursos minerais nas
Américas fez com que a península ibérica não realizasse grandes investimentos em suas
produções manufatureiras. A indústria nesses espaços só veio a deslanchar na segunda metade
do século XIX. No entanto o grande acúmulo de minerais permitiu que essas coroas fizessem
gastos exorbitantes em suas estruturas palacianas e suas igrejas. Portanto o barroco se tornou
exuberante, luxuoso e com detalhes imponentes em sentido não apenas de monumentalidade,
mas na mesma medida impositivos, em sentido de expressar o poder e sua truculência
autocrática (GLANCEY, 2001, p. 89).

O estilo espanhol ficou conhecido como Plateresco. Isso porque ele foi financiado pela
prata. Essa arquitetura bebeu largamente do modelo italiano. Isso se deu porque muitos
arquitetos vindos da Itália foram contratados pelos monarcas espanhóis. Enquanto um estado
ferrenhamente defensor do catolicismo, a Espanha usou ao máximo seus elementos decorativos.
O céu exposto não era apenas paraíso. Ele se impunha. Se expandia sobre os fiéis que deveriam
observar seus detalhes, mas mais do que isso deveriam se submeter à ordem da fé e da igreja.
No espaço colonial o barroco espanhol buscou também sua imposição mais do que a persuasão
dos povos americanos originários. No entanto é notável como ele se adaptou à geografia, cultura
e traços dos locais em que foi implantado. Motivos autóctones foram assim incorporados. É
nesse sentido que houve o barroco sísmico na América Central, enquanto que no México houve
o Plateresco, e nas colônias do sul o modelo italiano foi mais presente (BLUNT, 1988, p. 299-
316). No caso das colônias portuguesas também é notável a imposição da fé. No entanto os
colonizadores lusos não se utilizaram puramente de ferramentas violentas, de forma que
aplicaram os elementos persuasivos do barroco.

Os elementos arquitetônicos que irradiavam a persuasão foram acompanhados por


mudanças na estrutura e na paisagem urbana das grandes cidades europeias. O barro
acompanhou mudanças políticas que vinham se dando desde a virada do século XVI. A
construção do Estado Moderno e a reivindicação do soberano da ordem, e controle, do seu
poder e domínio levantaram demandas da afirmação de sua autoridade. Uma dessas
manifestações foram os rearranjos que manifestaram no espaço citadino. Se o rei era a figura
representativa do Estado, o local onde ele residia era base de onde suas medidas se
proliferavam. A cidade-sede do governo monárquico, se tornou a capital. Enquanto espaço de
poder, a estrutura urbana se alterou. A cidade-capital do barroco passa a ter praças
monumentais, ruas mais largas para as carruagens, jardins e edificações palacianas e a evidência
dos monumentos simbólicos do poder monárquico (BAETA, 2017, p. 42-48).

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A cidade do barroco assume diferentes tonalidade do poder e da persuasão, no entanto,
a capital reivindica ser o centro de operações e a sede do poder do estado. Os elementos
monumentais assumem a dimensão simbólica da monumentalidade. Tal qual o rei é o centro do
poder, financiando os interesses de sua corte que lhe permite sustentação, a capital é o centro
do estado, que gerencia suas funções e guia seus percursos. A capital barroca não é mero
elemento funcional que se organizou com o tempo diante de necessidades ou organicidades.
Ela foi planejada para ser recheada de símbolos que evocam a figura do poder soberano, criando
tanto significados da imposição do poder, quanto da dimensão da persuasão religiosa (ARGAN,
2004, p. 71-86).

O teatro, a ópera, as grandes avenidas, os passeios urbanos, as edificações palacianas e


as praças monumentais do século XVII traziam a correlação entre o idílico e o poder. Cada
cidade encontrou a sua maneira de concretizar os interesses soberanos, isso já proposto
previamente a partir da ideia de como o barroco se manifestou em alguns estados europeus
(PEREIRA, 2005, p. 165-169).

3 O BARROCO LUSITANO: AZULEJOS PERSUASIVOS E TRAÇOS GRANÍTICOS

O barroco em Portugal teve manifestações mescladas, devido à influência do


maneirismo, desde as primeiras décadas do século XVII. Diferentes aspectos que se
manifestaram na arte de edificações de Portugal se deram devido aos costumes marítimos, à
organização rochosa geográfica do pequeno estado ibérico e em grande medida às heranças
advindas da influência moura, como os motivos Moçárabes. O barroco português fez uma
intensa combinação entre o uso de rochas graníticas que permitiam destaques à pinturas
brancas, ao lado do uso combinado da azulejaria (TOLEDO, 1983, p. 107-113).

A arquitetura barroca portuguesa evoca decorações fantasiosas sem paralelos em


qualquer outro local da Europa. Desde o manuelino, a arquitetura portuguesa demonstrava as
incorporações em sua arquitetura daquilo que percorria o imaginário social no período. Os
incursos de recursos metálicos valiosos, advindos do Brasil, para Portugal causaram
transformações nas edificações lusitanas. Os detalhes e o uso proliferado do ouro, enquanto
riqueza decorativa, representam esses aspectos. A arquitetura lusitana dos seiscentos se
apresenta com inúmeros motivos decorativos intensos, porém se faz enquanto período de
definição. O barroco português apresentou sua definição na virada do século XVII ao XVIII,
onde aos poucos o estilo joanino se firmou (BLUNT, 1988, p. 317-323).

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O período de experimentação do barroco em Portugal (1650-1690) trazia uma série de
combinações entre elementos clássicos, maneiristas e as curvas das fachadas barrocas que iam
se sobrepondo às linhas clássicas. O período de experimentação foi complexo já que ele é
sucessor à Guerra dos 30 anos e às Guerras espanholas. A união das coroas não foi benéfica
para o estado português, o que trouxe o breve número de trabalhos no período de
experimentação (PEREIRA, 1992, p. 15-25).

Lisboa enquanto cidade capital possui uma geografia de encontros entre o mar e suas
colinas. Os contatos entre as águas e as pedras sempre estiveram registrados em seus motivos
decorativos. É nesse sentido que o barroco lusitano sempre evocou elementos de suas colônias.
A igreja de Santa Engrácia em Lisboa evoca os aspectos do barroco intermediário em sua
composição. É uma fachada ampla, que deu curvas ao clássico, que evoca a monumentalidade
do poder (PEREIRA, 1992, p. 33).

A grande obra do barroco português e que marca o período Joanino de produção barroca,
entre 1707 e 1750, foi o convento e palácio de Mafra. Essa estrutura palaciana, combinada com
fundações religiosas, assumiu grandes proporções, evocando, com profusão, o uso do mármore,
de forma que essa edificação evocava a monumentalidade do barroco. A grande função desse
espaço estava associada às pretensões do absolutismo, isso é, exaltar a glória do rei e de Deus.
Mafra foi uma espécie de escola de arquitetura para os lusitanos. O espaço permitiu novas
definições e percursos para o século XVIII e sua manifestação do barroco (PEREIRA, 1992, p.
50-70).

As influências barrocas que se manifestaram no Brasil vieram de diferentes fontes


portuguesas. Se por um lado locais como na Bahia nota-se a presença de elementos
quinhentistas associados ao maneirismo, no caso da arquitetura barroca de Minas Gerais as
influências se associam ao norte de Portugal. O norte lusitano incorporou os elementos do
barroco na primeira metade do século XVIII. Ali a geografia granítica e a forte presença do
mar, evocaram de maneira contundente os destaques entre os detalhes brancos e o uso do granito
escuro (PEREIRA, 1992, p. 122-124).

A decadência do barroco e suas persistências em Portugal variaram entre as décadas de


1750 e 1780. É notável que após o terremoto de 1755, a cidade de Lisboa passou por uma série
de reinvenções. O estilo barroco tardio era tido como o estilo dominante no período, no entanto
a cidade foi pensada a partir de uma malha de ruas e avenidas que tinham elaborações
geométricas. A tendência lentamente incidiu em direção à produção do neoclassicismo em

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Portugal, movimento esse que levou mais tempo para chegar ao Brasil (PEREIRA, 1992, p.
151-158).

Tendo o barroco dominado o cenário europeu por cerca de duzentos anos é impossível
pensar o processo de colonização do Brasil, sem relacioná-lo com as edificações que foram
estabelecidas nesse território. O maneirismo e em seguida o barroco, marcaram os primeiros
300 anos da experiência colonial brasileira, portanto evocar essa estética e estilo permite
compreender aspectos do processo colonial.

4 O BARROCO TROPICAL: A PRESENÇA DA ARQUITETURA BARROCA NO


BRASIL

Quando a colonização portuguesa do espaço brasileira é pensada, muito se coloca que


os primeiros aldeamentos e vilarejos eram realizados sem qualquer forma de planejamento ou
organização. Esse aspecto foi amplamente defendido por autores da década de 1930 como
Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, que tomaram tais conclusões a partir de
comparações realizadas com cidades coloniais brasileiras e cidades coloniais espanholas. No
entanto tais elementos ignoram às práticas e costumes lusitanos consolidados por séculos. Isso
é, a relação dos portugueses com o mar, assim como a perspectiva de que em um primeiro o
espaço colonial brasileiro era pensado como local de geração econômica, portanto não havia
uma perspectiva futurista de grandes planejamentos urbanos. As elaborações estavam atreladas
às necessidades e interesses imediatos. Dessa forma os planejamentos e edificações se
vinculavam à experiência momentânea (TOLEDO, 1983, p. 114).

A organização dos redutos populacionais se relacionava com o grupo que o havia


planejado. É notável as diferentes edificações como os espaços fortificados para a defesa
colonial, os redutos indígenas de catequese sob à forma de missões, os engenhos que tinham
funções industriais e na mesma medida serviam como residências de grandes proporções, assim
como edificações coloniais que compunham núcleos de aldeamentos (TOLEDO, 1983, p. 114).

O primeiro grupo de destaque que realizou práticas arquitetônicas no Brasil, foram os


jesuítas. Suas construções evocavam elementos simples, contendo traços simples do barroco,
ao lado de elementos do maneirismo. A região de Pernambuco, Salvador na Bahia e o Rio de
Janeiro, foram alguns dos primeiros locais de destaque da manifestação do barroco no Brasil
(TOLEDO, 1983, p. 131). Esses primeiros redutos religiosos incorporavam aspectos que
traziam elementos clássicos, com fachadas retangulares e frontões triangulares, mas de forma

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que tinham composições na fachada que aparentavam torres que tendiam ao maneirismo
(COSTA, 2010, p. 136-145).

As construções jesuíticas foram aquelas que mais incorporaram valores das populações
autóctones. Os grupos originários realizaram múltiplas práticas arquitetônicas, de forma que,
sob o mando e organização dos jesuítas, o maneirismo foi amplamente utilizado. Isso é visível
em igrejas como a catedral de Salvador, a Igreja de Santo Alexandre em Belém ou no colégio
jesuítico de Paranaguá (TOLEDO, 1983, p. 133).

As construções jesuíticas de maneira alguma se mantiveram apenas em elementos de


simplicidade. Os espaços suntuosos internos contrastavam em muitos momentos com os
elementos externos sóbrios. No entanto no século XVII os cenários arquitetônicos foram se
alterando na medida em que o barroco foi sendo introduzido na realidade artística brasileira
(BURY, 1991, p. 82).

No caso das edificações franciscanas o que se nota são espaços religiosos que possuíam
grandes claustros, com um grande espaço na frente do tempo, assim como a presença de um
cruzeiro nesse espaço livre. As talhas douradas e o amplo uso de azulejaria, principalmente em
tons azulados, são marcas da arquitetura franciscana no Brasil (TOLEDO, 1983, p. 146-155).

As edificações beneditinas seguiram outras linhas e influências no Brasil. É notável que


essas edificações tinham elaboração menos monumentais, sendo mais modestas, além de que
tinham composições menos decoradas. O clássico aparece com maior contundência nessas
edificações, de forma que as linhas retas se destacam em meio à modelos curvos orgânicos
(TOLEDO, 1983, p. 156-163).

As regiões de Salvador, Recife e Rio de Janeiro foram marcadas de maneira mais latente
pelo barroco em suas composições grotescas e densamente decoradas com elementos de ouro e
sobrecarregados pela dimensão da persuasão. Enquanto isso a região mineradora,
principalmente a região de Minas Gerais foi marcada pela questão de um barroco mais suave,
com linhas orgânicas e delicadas. A presença do rococó se fez mais marcante na região
(CURTIS, 1970, p. 22).

É difícil que um retrato do barroco brasileiro seja estipulado. No entanto é plausível que
ele seja pensado enquanto uma estética de conversão sobre as populações nativas indígenas,
assim como de imposição de poder sobre a população negra africana que foi subjugada ao
processo diaspórico compulsório. Porém o barroco com suas edificações também servia como
estilo que exaltava a presença católica no espaço americano, como se fosse solo virgem a ser

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cristianizado. Devido às diferenças que esse modelo tinha entre construção civil, militar,
utilitária e religiosa (inclusive dentro das ordens religiosas) é possível levantar a presença desse
estilo em algumas cidades coloniais brasileiras.

Quando se pensa na região de Pernambuco, as cidades de Olinda e Recife evocam a


melhor representação da associação tripla do barroco português. Isso significa a união da talha
dourada, dos azulejos e das pinturas de composição única. Muito se nota nessas duas cidades a
evocação de motivos portugueses tal qual em Portugal, onde houve amplo emprego da estética
joanina (OLIVEIRA, 2014, p. 17-22).

Salvador por ter sido a primeira capital colonial do Brasil acabou adquirindo múltiplas
formas das estéticas advindas de Portugal. O maneirismo e o barroco se tornaram disseminados
no espaço da capital. O joanino também foi amplamente aplicado na capital colonial, no entanto
é interessante situar como os estilos formaram miscelâneas arquitetônicas na cidade
(OLIVEIRA, 2014, p. 22-26).

O Rio de Janeiro sempre fora uma região importante enquanto porto de escoamento de
riquezas coloniais. No entanto no século XVIII a cidade recebeu grandes incrementos
financeiros e artísticos, já que ela se tornou o principal porto de saída do ouro da região de
Goiás e Minas Gerais. O barroco joanino se proliferou na primeira metade do século XVIII,
enquanto que na segunda metade o rococó tomou a cena, até que a vinda da família real o
substituiria pelo neoclássico (OLIVEIRA, 2014, p. 27-32).

O barroco em Minas Gerais esteve precisamente ligado com a dimensão da mineração.


Ele possui detalhes de grande interesse e se difere daqueles citados das outras cidades. Isso se
deu primeiramente porque ele foi um modelo que se manifestou no interior e não no litoral. O
segundo motivo se relaciona com a questão da periodização. Isso é, a forma com que ele
apareceu esteve atrelada à transição do barroco ao rococó, portanto as curvas e linhas suaves,
não grotescas, tomaram corpo em meio às edificações, tendo composição orgânica
(OLIVEIRA, 2014, p. 33-39).

A cidade de Ouro Preto possui uma dimensão lúdica, que evoca aspectos idílicos em
sua composição. Em grande medida isso se deu pela composição dessa vila. As igrejas,
construções civis, e residências que eram como palacetes se proliferaram pelas colinas, de
forma que isso não se deu com um planejamento prévio, havendo certa dinâmica
descentralizada. A cidade de Ouro Preto era mais dispersa do que a malha adensada tradicional
lusitana (BAETA, 2017, p. 333-344).

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O barroco se manifestou também em regiões que não eram centros econômicos de
destaque. Em alguns estados atuais do Nordeste é bem perceptível a presença da estética barroca
em diferentes edificações. No caso do Ceará é notável que muito provavelmente houve a
elaboração de edificações já no começo do século XVIII. No entanto é preciso comentar a
dimensão de que as edificações do barroco cearense se desenvolveram entre 1750 e 1850. As
igrejas aparentam ter consolidações pesadas e um tanto primitivas para o barroco do período,
enquanto que em alguns casos as formas barrocas assumiram linhas suaves e elegantes
(TOLEDO, 1983, p. 300-308).

No caso do Piauí a ocupação da terra se deu na segunda metade do século XVIII. Esse
processo se deu a partir da expansão do gado Baiano, de forma que isso se deu a partir da
transposição da produção em relação ao rio São Francisco. No caso do Piauí o barroco
apresentou sempre composições pesadas, com fachadas em composição geométrica, com torres
de tendência piramidal (TOLEDO, 1983, p. 309-311).

Há por fim o caso do Maranhão. Uma série de edificações e elaborações urbanas já se


iniciaram no século XVII, de forma que o principal centro urbano era São Luís. Apesar dessas
considerações é preciso situar que os incursos materiais e investimentos na malha urbana se
acentuaram na segunda metade do século XVIII, fazendo com que a cidade se tornasse um
grande centro urbano. Nesse período a cidade se tornou o quarto maior centro urbano da
América portuguesa e a terceira indústria nacional. Apesar da diversidade da riqueza, o
Maranhão preservou muito pouco de sua arquitetura religiosa barroca. Na arquitetura civil, o
uso combinado de azulejos com o traçado das ruas, fez com a cidade adquirisse aos poucos
características lusitanas (TOLEDO, 1983, p. 312-317).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Barroco, enquanto movimento artístico e estética, teve a possibilidade de perseverar


por longos duzentos anos. Devido sua longevidade esse estilo assumiu diferentes formas no
decorrer de sua duração, tendo sua fase formativa, o modelo definitivo, o tardio e por fim ele
desembocou no rococó, onde nota-se formas mais suaves que viriam a tender ao
neoclassicismo.

Se existem fases temporais do barroco, também é notável que sua manifestação regional
lhe proporcionou diferenciações estéticas de acordo com seu florescimento cultural e
geográfico. A arquitetura barroca surge em um momento de sensações de transformações
político-econômicas, assim como de uma profunda crise religiosa na Europa. Enquanto estética

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persuasiva, impositiva e na mesma medida expositiva de uma série de valores e simbolismos
de poder, o barroco teve serventia múltipla, se manifestando nos locais de acordo com interesses
e necessidades.

A manifestação do barroco na Ásia, em cidades como Pangim na Índia, ou em Macau


na China, e nas Américas, fez parte do processo de invasão, ocupação e colonização europeia
sobre esses locais. Uma justificativa poderia ser o fato de que no período de colonização o
renascimento já estava em sua fase tardia, dando abertura ao maneirismo e ao barroco. Essa
justificativa tem sentido pela ideia de hábitos e formas estéticas de um dado tempo, mas é
preciso situar o interesse simbólico pela manifestação do barroco sobre esses espaços que foram
ocupados.

Ao se pensar o espaço americano do final do século XV e no decorrer do século XVI, o


que se nota é uma multitude de culturas que ocupavam esse amplo espaço. Essas populações
possuíam cosmovisões, crenças, ontologias, saberes e práticas que não bebiam das fontes
cristãs, devido à impossibilidade de qualquer conexão prévia nesse sentido. Quando os
europeus cristãos chegaram nesse espaço e se deparam com tais culturas, uma série de interesses
surgiram, tanto de ordem cultural e religiosa, quanto em quesitos econômicos.

Dentro dos aspectos religiosos, o interesse se centrou na conversão dessa população, de


forma a cristalizar a obra religiosa sobre esse novo espaço. Isso não significava apenas
converter as populações pelo uso de agressões físicas, simbólicas e psicológicas, mas na mesma
medida deixar marcas da cristandade a partir da dimensão material. É nesse sentido que as
igrejas se proliferaram no espaço americano, de forma que apresentaram estilos múltiplos, mas
sempre evocando os símbolos da cristandade.

No caso do Brasil, o barroco foi na mesma medida uma estética persuasiva para a
conversão das massas ditas “pagãs”, principalmente no caso dos jesuítas, quanto foi também
um artificio de imposição sobre esses grupos, como no caso dos franciscanos. No entanto o
barroco brasileiro não se manifestou apenas na esfera religiosa enquanto elemento de conversão
e afirmação católica. Suas raízes se estenderam às edificações civis, militares e até mesmo
produtivas. É preciso situar que enquanto estética do período que afirmava a identidade lusitana
nos séculos XVII e XVIII, esse estilo se propagou nas edificações brasileiras nessa mesma
época, a partir da ideia de afirmação da colonização, da dimensão de pertença à cultura lusitana
e na mesma medida enquanto estética habitual do período.

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O barroco brasileiro certamente tem sua composição fundamentada a partir do modelo
lusitano. No entanto é preciso situar que o emprego da mão de obra negra escravizada e na
mesma medida das populações indígenas autóctones deixaram marcas nas formas e símbolos
dos espaços arquitetônicos. O que se pode propor é que o barroco brasileiro possui sincretismos
na forma que as edificações foram produzidas. Talvez o local mais visível dessas marcas seja
em Ouro Preto com suas igrejas, onde, inclusive, as formas estabelecidas deram espaço para a
abertura de novas tendências de forma exímia como o rococó.

O barroco no Brasil faz parte de um “universo” artístico cultural amplo e disseminado,


que possui características locais, mas tem em sua composição valores artísticos de um
movimento maior. Compreender as edificações barrocas brasileiras exige uma interpretação do
processo colonial particular do Brasil, assim como a evocação dos aspectos gerais e amplos da
própria arte e estética desse estilo.

REFERÊNCIAS
ARGAN, G. C. Imagem e Persuasão: Ensaios Sobre o Barroco. 1 ed. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.

BAETA, R.E. A Cidade Barroca na Europa e na América Ibérica. 1 ed. Salvador: EDUFBA,
2017.

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DOI 10.47402/ed.ep.c240611089215

CAPÍTULO 9
CICLOS INFINITOS E O APOCALIPSE:
O ANTROPOCENO, O ETERNO RETORNO E CONTRAFACTUAL NA SÉRIE
DARK

Christian Fausto Moraes dos Santos


Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gessica de Brito Bueno
Rodrigo Perles Dantas

RESUMO
O conceito de tempo presente cunhado na década de 1980 diz respeito aos fenômenos históricos vivenciados pelas
massas mundiais no mundo da globalização. As sensações desse regime de historicidade envolvem a aceleração
do tempo, aumento exponencial dos estímulos e experiências e imediatismos. Tais elementos estão associados ao
consumo desenfreado de recursos naturais. Com isso há quem defenda que uma nova era geológica,
potencialmente catastrófica se instaurou, sendo conhecida como antropoceno. Todos esses elementos aparecem
com aplicação direta ou derivada na famosa alemã de suspense e ficção científica, Dark. O universo narrativo do
seriado é composto de elementos cíclicos que envolvem a temática do eterno retorno e do infinito. No entanto o
mundo de Dark possui um apocalipse em seu interior, que funciona tanto quanto começo e fim do ciclo. Seus
personagens buscam continuamente romper esse processo por meio de alterar os fatos no tempo de forma a criar
novos futuros possíveis que não sejam o apocalipse. Esse breve ensaio busca fazer uma reflexão sobre o
presentismo e suas marcas em uma fonte midiática ultra contemporânea. Para isso em um primeiro momento serão
debatidas as percepções que diferentes contextos socioculturais tiveram com o tempo e sua passagem. Em seguida
o texto segue em busca de situar como alguns conceitos caros aos historiadores, como o eterno retorno e o
contrafactual, são utilizados na série de forma a criar um universo impossível que possui suas próprias condições,
gerando alterações nas três direções do tempo (Passado, Presente e Futuro). O enfoque do trabalho se encaminha
em situar como há elementos teleológicos na série, como uma espécie de predestinação, onde a mudança dos fatos
não aparentam surtir efeito. Esse aspecto aparece como uma espécie de alusão às condições consolidadas no século
XXI, ou seja, aos fenômenos do antropoceno. A ideia é retratar que tal qual na série o apocalipse só pôde ser
superado por meio de medidas bruscas que exigiram sacrifícios, as condições que parecem se encaminhar para um
cataclisma climático-ambiental na realidade humana, também só podem ser vencidas por meio de atitudes
concretas que visem alterar essencialmente as condições produtivas do sistema global.

PALAVRAS-CHAVE: Antropoceno; Contrafactual; Eterno Retorno; Série Dark; Tempo


Presente.

1 INTRODUÇÃO

O tempo, enquanto processo e matéria, vem sendo debatido continuamente desde o


mundo antigo com suas diversas sociedades, até os dias de hoje, onde o mundo acelerado da
globalização debate a natureza desse fenômeno dentro da ciência física, assim como os
historiadores discutem os efeitos desse ritmo veloz sobre a percepção dos indivíduos
pertencentes às sociedades de massa.

Se no tempo imediato há a preocupação com os ritmos desenfreados que o tempo


assumiu, ou a percepção social sobre ele, no mundo greco-romano o interesse incidia sobre
como o fenômeno temporal se sucedia. Observando as histórias de Homero, Heródoto, Hesíodo

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Humanas, Volume 1.
118
e Tucídides, nota-se sempre narrativas que evocam características épicas e heroicas. O passado
conteria os valores valiosos para os gregos que serviriam de guia para o presente, como uma
ideia de evocar esses elementos anteriores para o presente, em sentido de realçar o que já se deu
(MARQUES, 2008, p. 51-53).

No mundo Romano há certa similaridade, mas a história não era essencialmente aos
heróis e seus valores para o presente. O que se nota era justamente a ideia da história de uma
cidade, de um grande local de interesse que era o cento dessa cultura. Claramente isso significa
um raciocínio que indaga aspectos do passado desse local. No entanto os ciclos cosmológicos
e da natureza, com suas estações, evocavam a dimensão de um ciclo contínuo que se deslocava
em sentido de circularidade. A capital enquanto centro se manteria sempre como o apogeu do
império. O ciclo manteria as sucessivas passagens desse local, mas sempre sem um
deslocamento real em sentido de desestruturação (MARQUES, 2008, p. 54-56).

A linearidade do tempo, no entanto não é descartada no mundo Romano. Virgílio


evocou em sua quarta Écloga uma série de expectativas com o que viria a ocorrer no futuro. No
entanto ele tinha confiança que o direcionamento do futuro era em sentido de retomada dos
grandes momentos da cultura romana, como se fosse a abertura de um novo ciclo (MARQUES,
2008, p. 61).

A percepção do tempo de que os elementos do passado eram referências e guias ao


presente, que inclusive eram elementos de retorno no futuro, evocam uma concepção e
valorização da experiência temporal de tipo passadista. A ideia de passadismo está associada
ao conceito de regime de historicidade. O regime de historicidade é a forma que uma
determinada cultura em um contexto específico se relaciona com a experiência temporal, assim
como a maneira como essa é valorizada. No caso de uma sociedade passadista a ideia é de que
as referências e guias estão no tempo que já se foi. A sociedade e sua organização social tomam
como base elementos de renovação, mas uma baseada em aspectos do passado que são
privilegiados no processo. É nesse sentido que a circularidade se consolida. É um ciclo de altos
e baixos, onde momentos benéficos e adversidades se retomam de forma sempre a se
relacionarem com exemplos que já ocorreram (HARTOG, 2013, p. 49-55).

Há momentos onde os aspectos relacionados à forma que uma sociedade enxerga o


tempo e sua passagem se tornam confusos. No tempo litúrgico, que surgiu das interpretações
dos primeiros grandes nomes da igreja cristã, como Tertuliano, Santo Agostinho e Gregório, o

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grande, fica evidente a elaboração de uma percepção temporal que bebe das fontes romanas,
mas que não se sustenta apenas nesse aspecto (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 13-18).

A ideia de ciclos aparece no tempo litúrgico na perspectiva de que cada dia é um


recomeço e cada data marca um evento importante. Existem os dias, as semanas, os meses e os
anos. Eles se sucedem e evocam a dimensão da repetição, já que existe a valorização dos
eventos que já se deram e eles retornam sempre no ciclo. O momento de fechamento dos
eventos, é também o momento de abertura deles novamente. O ciclo é continuamente retomado
(HARTOG, 2013, p. 62-64). No entanto a temporalidade litúrgica não é circular. Ela não
pretende ter um fim e começo em si mesma. O tempo terreno haverá de ter fim. Há uma
ascensão contínua em sentido do tempo de Deus, que se daria no momento do apocalipse, onde
a redenção da carne haveria de garantir ascensão aos céus (BOURDÉ; MARTIN, 1983, p. 13-
18).

A ideia de tempos que se repetem, mas possuem um determinado direcionamento


evocam a condição de uma espiral ascendente. Os momentos circulares são os eventos de
repetição que vão dos ciclos cotidianos aos anuais, sendo continuamente renovados no processo
litúrgico. O ponto de linearidade, aplicado aos ciclos, cria a composição de espiral. A linha
existe na medida em que o fim chegará. Portanto há sentido e direção nessa percepção temporal
(FERREIRA, 2013, p. 40-42).

Essa percepção de tempo tem elementos passadistas, porém ela tem a condição própria
de propor um limite ao tempo. Retoma-se elementos do passado por meio de ritos de renovação,
mas na mesma medida há um pensamento sobre o futuro, onde o ano mil seria o fim da
experiência terrena. É nesse sentido que a ideia de tempo espiralado acaba sendo uma definição
útil para o pensamento sobre o litúrgico (HARTOG, 2013, p. 83-85).

Com a passagem ano mil, a entrada na Era Moderna, a expansão de mundo na visão
europeia entre os séculos XVI e XVIII, e o advento do capitalismo após a revolução industrial,
o século XIX se abriu com o desenvolvimento de uma nova perspectiva sobre o tempo, ou seja,
um outro regime de historicidade: O Futurismo (POMIAN, 1993, p. 17-19).

Após o ano mil e as sucessões de experiências que ampliaram a concepção de mundo,


em sentido de espaço geográfico e notificação de culturas e sociedades desconhecidas, o espaço
e o tempo foram ganhando orientação. Com a revolução industrial novas tecnologias passaram
a surgir, além de que a organização social de diferentes comunidades na Europa se alterou, em
sentido de organização e divisão do tempo de trabalho. O pensamento sobre o que seria futuro

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tomou conta do imaginário, isso perceptível em diferentes linhas de raciocínio, como os
românticos, os realistas e os positivistas (POMIAN, 1993, p. 19).

O deslocamento de uma realidade baseada em relações senhoriais onde o prestigio do


nascimento e da herança compunham as bases hierárquicas, para uma onde as relações materiais
de riqueza passaram a ditar as regras, fez com que as massas e uma série de intelectuais
desviassem seus olhares para o que haveria de ser no tempo que estaria por vir (HARTOG,
2013, p. 133-135). O futurismo se apresenta como regime de historicidade, onde o futuro
interessa no presente. Seja as lutas nacionais ou proletárias, os interesses capitalistas ou os
avanços tecnológicos, no século XIX as medidas realizadas se baseavam constantemente em
expectativas do que seria possível se concretizar no futuro. Era preciso tomar medidas no tempo
imediato para alavancar o futuro em disputa (POMIAN, 1993, p. 19).

Entre os românticos a percepção era de que o presente que viviam tinha trazido
condições materiais e simbólicas adversas. Os românticos tinham interesse em construir o
sentimento nacional. Era preciso produzir uma apreensão total do passado, para que pudesse
construir a ideia nacional, a partir da dimensão de igualdade civil (BOURDÉ; MARTIN, 1983,
p. 83-87). É uma percepção que não tinha interesse em refazer o passado ou retomá-lo, mas sim
de evocar elementos do passado para se construir um futuro alternativo àquele que parecia estar
se consolidando.

Por outro lado, havia aqueles que viam o futuro a partir de uma percepção otimista. Os
adventos de máquinas à vapor e as novas tecnologias que surgiram a partir de industrias química
e elétricas, fez com que o otimismo chegasse ao auge na Europa, no último terço do século
XIX, período conhecido como Belle Époque. A esperança no progresso contínuo onde as
tecnologias garantiriam felicidade aos povos, fazia com que a percepção naquele dado presente,
fosse continuamente orientada ao futuro, ou seja, era preciso continuamente criar as condições
para o futuro esperado. Esse tipo de percepção estava geralmente associada ao mundo aos
adeptos do capitalismo (PROST, 2008, p. 102-103).

Com o advento da primeira guerra mundial, o período complexo da crise do sistema


capitalista na década de 1920, assim como os processos de colonialismo e dos fascismos, que
suscitaram na segunda guerra mundial, a percepção futurista otimista se desintegrou na medida
que o futuro não necessariamente seria benéfico e nem a passagem do tempo significava
orientação ao progresso (PROST, 2008, p. 104). O período entre as décadas de 1940 e 1970 é
marcado pela crise do regime moderno. Isso é, o passado parecia não dar respostas nem

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conselhos úteis para se lidar com o cotidiano, mas na mesma medida o futuro não parecia trazer
soluções para as crises e dilemas enfrentados em um presente marcado por traumas (HARTOG,
2013, p. 136-139).

Essa condição de crise deu espaço na década de 1980 para o surgimento de uma nova
percepção temporal, uma onde o presente se tornou obsessão e seus eventos passaram a engolir
elementos do passado e do futuro (HARTOG, 2013, p. 142-144).

A globalização a partir da década de 1970 e a informatização tecnológica nas décadas


de 1980 e 1990 fizeram com que o número e o acesso de informações se ampliassem. A
sobrecarga de estímulos cotidianos a partir do terceiro milênio suscitou na sensação de
aceleração do tempo. O maior número de eventos assimilados em um espaço de tempo que
antes que antes continha menos estímulos, passou a dar a sensação de aceleração, mas na mesma
medida de compressão do tempo (HARTOG, 2013, p. 15-153).

O excesso de estímulos nesse mesmo espaço de tempo faz com que as atenções dos
indivíduos se concentrem em fenômenos do imediato. Os diferentes contemporâneos
permitiram diferentes formas de percepção do presente. No caso do contemporâneo do século
XXI até os dias atuais a percepção é a de que o presente assumiu os interesses e concentrações
sobre questões do tempo (AGAMBEN, 2009, p. 62-64). O que há aí é o presentismo enquanto
regime de historicidade. O presente de excesso de estímulos faz torna os elementos do passado
confusos, criando a sensação de distância, enquanto que o futuro é direcionado ao presente, já
que as atenções e busca de interesse incidem continuamente sobre eventos que se dão nesse
imediato (HARTOG, 2013, p. 153).

Uma das maneiras para a concretização de reflexões sobre como culturas lidam com o
tempo, é através da utilização direta de fontes. O presentismo, enquanto regime vigente, criou,
e continua criando, uma série de vestígios que trazem debates sobre o tempo (HARTOG, 2017,
p. 233-235). Quando o mundo do entretenimento é pensado a partir de filmes, séries, livros,
jogos e outras mídias, é notável o quanto o tempo é conjugado e trabalhado, enquanto temática
de discussão, em sentido de criar uma série de narrativas. Isso fica bem visível também na série
alemã Dark, que foi produzida e divulgada pela empresa de Streaming de Mídia, Netflix.

A série contém 26 episódios que foram distribuídos em três temporadas. Ela foi lançada
originalmente em 2017 pela divisão alemã da empresa Netflix. Seu fim se deu em 2020. A série
articula diferentes temporalidades que estão conectadas no tempo por loops e portais temporais.
A série tem uma trama que envolve viagens no tempo, apocalipse tecnológico-temporal e

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mudanças dos fatos e caminhos que já foram percorridos no passado. A partir dessas
colocações, esse breve ensaio se divide daqui em diante em três percursos. O primeiro deles é
a realização de uma breve síntese da série com seus acontecimentos. Em um segundo momento
se explora, a partir de um debate comparativo entre série e realidade, os conceitos de factual e
contrafactual no exercício da epistemologia da disciplina de história. Por fim a ideia é realizar
uma reflexão a partir dados tecnológicos expostos na série e a relação destes com o apocalipse
que ocorre, com a intenção de se pensar a presença do antropoceno, enquanto nova era
geológica que assume novas perspectivas e interesses cotidianamente.

2 VIAGENS NO TEMPO, LOOPS TEMPORAIS E APOCALIPSE: UMA SÍNTESE DA


SÉRIE DARK

A série se passa em 2019 e possui como protagonista o personagem Jonas Kahnwald,


que é um adolescente que vive no interior da Alemanha, na cidade de Winden no sudoeste do
país, e no momento estava cursando o ensino médio. A série estreada em 2017 tem sua trama
iniciada a partir do suicídio do pai de Jonas, Michael Kahnwald. Após um surto durante suas
férias, Jonas retorna às aulas e se reencontra com seus amigos. Os problemas começam de fato
quando Jonas e seus amigos visitam uma caverna logo no primeiro episódio. Após terem ouvido
um alto ruído, os garotos se assustam e começam a correr. O problema é que o mais novo do
grupo, Mikkel, desapareceu, o que engatilha os problemas na história.

A partir desse momento as questões complexas, suicídio, sumiço e o assassinato de uma


terceira criança, passam a se cruzar. Jonas decide reunir informações até o momento que seus
recursos lhe fazem retornar à caverna. Ali Jonas descobre uma porta pequena que dá acesso a
um longo corredor. Nessa porta está a inscrição Sic Mundus Creatus Est que traduzido é Assim
foi criado o Mundo. A porta é um corredor temporal que dá acesso à 1986. Mais à frente é
descoberto que há conexão também para 1953. No decorrer da temporada Jonas reúne resposta
até que no último episódio da primeira temporada ele decidiu resgatar Mikkel, que estava preso
em 1986, e leva-lo para o presente. A situação se complica e ele acaba sendo enviado ao futuro
em 2052, em um cenário pós-apocalíptico que não era esperado pelo protagonista.

Na segunda temporada, que foi lançada em 2019, uma série de elementos vão se
encaixando. Ao que tudo aparenta há um apocalipse em curso. A temporada começa expondo
o ano de 2020, situando que há um apocalipse em curso que ocorrerá em seis dias. O Jonas
original está no futuro buscando uma maneira de voltar ao passado. Enquanto isso é mostrada
uma versão dos amigos de Jonas em 1921 construindo os túneis do tempo, o que demonstra

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envolvimento de Jonas no processo. Aos poucos o que vai sendo elaborado é um contínuo fluxo
e repetição sobre os tempos analisados. Jonas vive um eterno e contínuo ciclo até se tornar mais
velho. Quando adulto ele consegue voltar ao passado e conversar com seu eu de 2019. Ali ele
engatilha o ciclo. Com isso Jonas mais velho segue um fluxo contínuo até a chegada do
apocalipse.

No apocalipse Jonas mais velho é enviado para 1888 enquanto que Jonas mais novo,
após o apocalipse, foi enviado para uma realidade alternativa, como um universo paralelo. Jonas
mais velho percebe que isso não foi o que aconteceu com ele, quando ele mesmo jovem. Isso
significa que duas linhas do tempo acabam existindo simultaneamente. Enquanto Jonas mais
velho está preso no passado, ele veio a se tornar Adam, o antagonista do seriado. Enquanto isso
Jonas mais velhos está no mundo alternativo buscando saídas para o loop temporal contínuo.

As coisas se repetem e há um ciclo infinito. Mas isso não significa que os agentes no
interior da trama não busquem alterar a ordem das coisas e os percursos. Isso porque o
apocalipse sempre está na iminência de ocorrer em 2020. Enquanto os eventos vão se sucedendo
na terceira temporada, o que fica aparente é que há uma maneira de se quebrar o ciclo. O que
Jonas descobre é que o ciclo existe devido ao fato que um cientista chamado H.G. Tanhaus fez
uma experiência temporal que saiu errada.

Tanhaus em seu universo havia perdido seu filho e neta durante uma tempestade. Seu
luto se tornou um drama contínuo em sua vida, até que ele decidiu construir uma máquina do
tempo para salvar seu filho. Sua experiência deu errado criando duas linhas do tempo paralelas
que coexistiam. O que Jonas precisava fazer era encontrar uma maneira, um ponto em comum,
nas duas temporalidades, que lhe levasse ao universo de Tanhaus, que seria a linha do tempo
correta. Ao fim da série Jonas consegue essa proeza e impede que o filho de Tanhaus morre de
forma trágica. Esse feito faz com que as duas linhas temporais alternativa sumam, garantindo
continuidade na linha do tempo correta.

A série Dark funda sua própria mitologia e organiza o aspecto temporal a sua maneira.
No entanto é interessante os elementos de eterno retorno que geram continuidade e repetição
dos eventos do loop cíclico, assim como é relevante o apocalipse enquanto elemento de fim
nesse processo. Interessa que o espaço de experiência dos protagonistas pode ser continuamente
moldado, conforme o interesse deles, e isso altera tanto as expectativas quando os próprios fatos
envolvendo os processos (KOSELLECK, 2006, p. 308-310).

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A partir do resumo construído e diante dos aspectos dos ciclos infinitos e da dimensão
que os fatos e vestígios podem ser alterados, há o interesse de debater a presença do eterno
retorno e da conceituação contrafactual que é feita enquanto exercício de abstração dos
processos históricos.

3 A MUDANÇA DOS FATOS EM CICLOS INFINITOS: O ETERNO RETORNO E O


CONTRAFACTUAL EM DARK

Como foi situado anteriormente, com o advento do tempo presente após a década de
1990, um novo regime de historicidade se instaurou. Esse regime acelerado e imediatista, ficou
conhecido como presentismo. Lidar com fontes que pensam sobre essa temporalidade e suas
condições, significa realizar uma análise que incide sobre fontes que foram produzidas nesse
período (DOSSE, 2012, p. 10-12). A utilização da mídia audiovisual enquanto fonte histórica
exige a premissa de compreensão de que algo desse tipo, principalmente de narrativa ficcional,
contém dados e traços de realidade, mas não é a realidade em si. Isso é, a obra incorpora e
debate aspectos da realidade, justamente porque ela parte de ideias e narrativas que circulam
no contexto de sua produção (MORETTIN, 2007, p. 39-42).

A série se encontra enquanto uma evidência. Ela contém uma série de aspectos do tempo
de sua produção (HARTOG, 2017, p. 151). No caso da série Dark é interessante e dimensão de
que a evidência e as experiências são a base do próximo passo. No mundo real, a experiência
vivenciada fornece caminhos e interesses a serem designados. A experiência é fonte de
produção de expectativas. O que é interessante é que a experiência permite diferentes
interpretações e apreensões, mas o fato em si não pode ser moldado (KOSELLECK, 2006). No
caso da série Dark a questão é diferente. Ao se saber a experiência e suas evidências, o
protagonista e outros personagens têm a possibilidade de moldar o próprio fato passado. Isso é,
a experiência gerou uma determinada realidade que não é bem recebida pelos personagens,
então o interesse não é em mudar as condições do presente em sentido de gerar um novo futuro.
Os personagens querem moldar o passado para dessa maneira criar uma nova realidade em seu
devido presente.

Isso ocorre porque os processos no tempo deixam marcas duradouras. Como foi citado,
a interpretações podem mudar e tais apreensões moldam as ações futuras, no entanto certos
eventos deixam marcas profundas, como camadas sedimentares que sustentam estruturas,
instituições e hábitos (KOSELLECK, 2014, p. 21-23). Quando essa ideia é aplicada sobre a
série Dark fica evidente para os personagens que certas condições do presente não poderiam

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ser alteradas de maneira profunda, porque tais condições dependiam de ações realizadas no
passado que levaram à tal cenário enfrentado no presente. A escolha então desses personagens
é de moldar o passado para que a realidade presente fosse reestruturada.

Esse exercício realizado na série é interessante na medida em que os historiadores


muitas vezes se colocam em posições similares, mas em movimento abstrativo. A história
contrafactual se baseia na ideia de analisar eventos do passado e mudar condições que realmente
se concretizaram. Essas mudanças podem ser de diferentes ordens. Pode-se pensar em moldas
as condições que engatilharam eventos. Outra perspectiva é reconstruir o evento de maneira
que se altere os resultados que se deram, ou seja, moldar as consequências gerando futuros
alternativos e possíveis que poderiam ter se concretizado (PESSOA JR., 2015, p. 26-27).

Enquanto movimento abstrativo a proposição contrafactual pode ser muito interessante


em movimentos pedagógicos. Sempre há o interesse em saber o que poderia ter sido caso os
acontecimentos fossem outros. É nesse sentido que o anacronismo é uma ferramenta potente
para se propor cenários alternativos. O anacronismo é o movimento de transpor conceitos,
ideias ou elementos materiais para uma realidade que não possui tais aspectos. No entanto o
anacronismo pode ter serventia em movimento imaginativos, desde que se compreenda bem os
processos anteriores e posteriores ao processo real. Isso porque mesmo em um movimento
abstrativo é preciso se ter lógica e sentido quando isso é feito em um plano de base científica
como a disciplina de história (LORAUX, 1996, p. 59-61).

A série remete à dimensão do contrafactual devido ao fato que os personagens mudam


os elementos do passado. O contrafactual nesse caso não é meramente abstrativo, é na realidade
um movimento de construção de um novo acervo de fatos. O que há no processo é a busca da
invenção do novo (BORNHEIM, 1996, p. 103-104).

O que é interessante na série, é que apesar da continuidade da mudança dos fatos e das
medidas, há um elemento de eterno retorno cíclico. Ao mesmo tempo que o apocalipse acontece
todas as vezes em 2020, evocando um eterno retorno, há na mesma medida um ciclo, já que as
temporalidades estão ligadas e seus eventos, por mais que mudem, acabam sempre gerando
resultados cristalizados.

Isso significa que mesmo diante da possibilidade de alteração do acontecimento, os


fenômenos de eterno retorno fazem com que o ciclo se mantenha. Há um movimento
teleológico na estrutura de Dark. O fim e o começo são sempre os mesmos, apesar da mudança
de aspectos anteriores. É nesse sentido que há o fenômeno do eterno retorno na estrutura espaço-

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temporal de Dark, pois os fins e começos sempre retornam criando um ciclo infinito de fim e
renovação (SILVA JR.; BONSANTO, 2020, p. 7-8).

O universo de Dark dialogia com conceitos da historiografia e os manipula a partir de


seus próprios interesses e das estruturas que são base desse universo. O elemento do
contrafactual que é caro para a historiografia para que ela possa exercer suas abstrações e
reconstruções imaginativas, tem possibilidade ser aplicado de maneira concreta no universo
Dark, já que seus eventos podem ser moldados (PESSOA JR., 2015, p. 26-27).

O interessante é como o elemento do contrafactual é rebatido pela força do ciclo em


Dark. Apesar da possibilidade de mudança, o universo da série tem uma condição teleológica
cíclica. O apocalipse e o começo dos eventos sempre se dão e sempre retornam mesmo com a
mudança dos eventos realizados. Essa é a condição estrutural espaço-temporal desse universo.
É nesse sentido que pode se propor que por mais que os fatos sejam reescritos os fins sempre
serão os mesmos. No tempo do mundo real, as consequências dos acontecimentos, dependem
diretamente dos eventos em si, porque eles funcionam como base sedimentar (KOSELLECK,
2014, p. 25). No caso da série, não importa tanto a base do acontecimento, já que o universo
funciona com seu tempo direcionado, que nesse caso é o fim. É nesse sentido que há a condição
teleológica.

4 O APOCALIPSE ATÔMICO-TEMPORAL: UMA ALUSÃO AO ANTROPOCENO

A grande problemática no interior da narrativa da série Dark, é o fato que há um ciclo


contínuo apocalíptico. O interessante é que, seja o apocalipse ou a existência das linhas do
tempo paralelas, as problemáticas espaço-temporais são fruto dos avanços tecnológicos, mas
mais especificamente do mal uso desses elementos. Eles fariam parte, na série, de um processo
acelerado e descontrolado, onde não haveria a possibilidade de mudanças de rumo. Essa
condição faz alusão a um conceito recente que diz respeito à uma nova era geológica: O
antropoceno.

Mais acima foram comentadas as condições elaboradas sobre o mundo a partir da década
de 1990. Isso é, aceleração do tempo e do desenvolvimento tecnológico, compressão do tempo,
imediatismo e excesso de informações, ou seja, todos aspectos que compõem as condições do
presentismo. Se essas são condições de percepção temporal, há de se propor que existem bases
materiais para esses acontecimentos. Isso significa dizer basicamente que esse processo é
derivado da aceleração da exploração desenfreada e predatória de recursos geoambientais, que
suscitam em implicações negativas para o clima, fauna e flora do planeta. É nesse sentido que

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o século XX deu bases para o surgimento de uma nova era geológico do planeta, uma onde
elementos topográficos, ambientais e climáticos são influenciados pela atividade humana,
sendo esse o antropoceno (ARTAXO, 2014, p. 15-17).

O que está se propondo é a ideia de que o globo terrestre entrou em uma nova fase
geológica, onde as condições do planeta são afetadas diretamente por um fator, a atividade
antrópica. Esse ritmo desenfreado de produção acabou por gerar desafios ao planeta. Não é mais
a qualidade de vida ou condições de trabalho que estão sendo questionadas tal qual no começo
do século XX, mas sim a própria condição de existência da vida humana. O consumo e uso dos
recursos vem acarretando desafios de longo prazo. A mudança climática vem sendo o principal
elemento elencado como adversidade da prosperidade da vida humana. Isso porque a mudança
de ritmos do clima gera consequências exponenciais sobre diferentes áreas necessárias para a
sobrevivência dos humanos. As produções rurais podem se tornar insustentáveis, a água potável
pode se tornar inexistente e a qualidade do ar pode se tornar inviável para a sobrevivência
(SILVA; ARBILLA, 2018, p. 1625).

Alguns autores defendem que isso não seja fruto necessariamente da atividade humana
por si só, mas sim pelo sistema produtivo humano que o globo vive no século XXI, ou seja, as
formas de capitalismo do tempo imediato. É nesse sentido que alguns autores utilizam o termo
capitaloceno para pensar essa nova era geológica (HARAWAY, 2016, p. 141). No entanto
existe a perspectiva de que esse aspecto seja mais profundo. Não que se negue o papel do
capitalismo predatório em relação à construção dessa nova Era geológica. Mas sim a ideia de
que mesmo que os sistemas produtivos fossem outros, com maior distribuição material e justiça
social, a exploração ambiental poderia também ser desenfreadas. Portanto independente do
termo, o que se pode dizer é que há uma perspectiva de papel humano nessa Era geológica, ou
seja, a atividade humana é determinante gerando o antropoceno.

A dimensão do antropoceno gera um deslocamento em sentido de futuro no interior do


presentismo. Isso porque o pensamento sobre a insustentabilidade do antropoceno gera a
sensação de um futuro que de fato não virá. Isso é, o futuro é projetado enquanto fim, e esse
fim parece estar cada vez mais próximo, ou seja, cada vez direcionado ao presente. Isso não
significa que o presentismo deixa de ser dominante enquanto regime de historicidade, mas sim
que o antropoceno é incorporado nessa lógica. Os problemas distópicos do futuro, são cada vez
mais trazidos ao presente. O fim é no futuro, mas o futuro parece ser cada vez mais iminente e
instantâneo, de forma que o apocalipse passa a sempre rondar o presente (LOPES; VIANA JR.,
2020, p. 16-17).

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128
Na série Dark o apocalipse acontece por mal uso da tecnologia. Seria uma espécie de
alusão aos usos egoístas das máquinas combinado ao elemento de exploração contínua da
natureza. O apocalipse acontece devido a um paradoxo temporal. Mas sua origem se dá por
ordem tecnológica. O apocalipse no universo da série está sempre iminente porque parte de
seus personagens sabe que ele ocorrerá e que as condições para superá-lo são difíceis ou quase
impossíveis. Quando as condições de produção do sistema atual são pensadas, o que se nota é
que, caso medidas significativas não forem tomadas, a tendência é que uma espécie de
cataclisma se instaure. Isso não significa necessariamente o fim da presença da espécie humana
na terra, mas sim que a forma de vida atual que existe irá se alterar significativamente.

Em Dark há um Loop. O apocalipse aconteceu e continuará se repetindo a não ser que


o ciclo seja quebrado. As chances para isso são mínimas, portanto, as atitudes precisam ser
expressas e imediatas. As condições ambientais do planeta já se alteraram significativamente e
há grupos que defendem que mesmo que medidas abruptas e urgentes sejam aplicadas, uma
espécie de futuro adverso já e certeza. No entanto isso não significa que essas medidas sejam
inefetivas. Elas podem ao menos assegurar que cenários climáticos e ambientais sejam menos
violentos, além de que procedimentos sustentáveis e restauradores podem assegurar novos
horizontes prósperos. Isso é, mesmo que o cenário se torne adverso, é possível reverter tais
aspectos a um prazo mais longo, de forma que isso viria após o momento entrópico (LOPES;
VIANA JR., 2020, p. 16-17).

Na série o apocalipse acontece, mas suas condições são justamente revertidas no longo
prazo. Na série há uma mudança contínua dos fatos, algo impossível de ser tomado no universo
humano real. Os fatos para nós são inalteráveis, mas as condições podem ser moldadas, porque
elas dependem de medidas em atitudes que são feitas no presente. A ideia de que após o caos
pode haver segurança é algo similar aos grupos ambientais que entendem que o cataclisma é
certeiro para reversível. Tais paralelos situam como as condições de um dado tempo são
refletidas em objetos de mídia. Nesse caso o presente e o presentismo marcam presença nos
horizontes da série.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Toda época histórica produz fontes que contêm traços e elementos que são
caracteristicamente datados. Isso porque diferentes vestígios deixados no tempo, são
produzidos a partir de diferentes tempos presentes que já se tornaram passado. Isso é, evidências
elencaram aspectos do seu próprio contexto de produção. A série Dark não foge dessa condição.

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129
Seus elementos dialogam com aspectos do mundo ultra contemporâneo. A dimensão do eterno
retorno e do contrafactual são elementos que a historiografia, e outros campos das ciências
humanas, utilizam para realizar uma série de raciocínios imaginativos.

O eterno retorno está presente no imaginário de diferentes culturas. Ele funciona tanto
como elemento sensitivo onde o imaginário cultural entende que certos elementos do passado
tendem a retornar, quanto pode ser um traço estrutural do grupo, onde há expressamente o
interesse de retomar elementos do passado para que presente e futuro possam ter um arranjo
similar ao que já foi vivenciado.

O Contrafactual é um movimento e raciocínio muito comum que as pessoas fazem no


dia a dia. As pessoas reimaginam continuamente suas vidas e criam cenários impossíveis a
partir de expectativas sobre elementos que não se concretizaram. Esse processo também
acontece sobre processos no tempo que são debatidos por áreas como a história, a geologia, a
arqueologia e a paleologia. Os historiadores pensam em cenários possíveis para conseguirem,
muitas vezes, compreender nuances e detalhes que compreendem os eventos.

Tais aspectos são recorrentes no imaginário popular, e são atribuídos à diferentes


elementos, como sobre os produtos de mídia. A série Dark possui tais aspectos, que são
inclusive traços recorrentes da estrutura de seu universo narrativo. Onde há a busca pela
mudança do fato, há o eterno retorno teleológico que sempre afirma o seu ciclo.

O elemento do apocalipse é um traço que aparece recorrentemente em uma série de


narrativas, sejam literárias ou midiáticas, de forma que isso também está contido no imaginário
popular. O aumento exponencial informativo colocou a sociedade global em contato mais
frequente com a ideia de fim da organização da vida contemporânea. Isso significa dizer que a
visão negativa de presente e futuro se instaurou, gerando a sensação de iminência de um
cataclisma. O apocalipse em Dark é referência direta à sensação de fim futuro que se torna cada
vez mais presentificado. A série não levanta esse elemento como uma forma de crítica. Ela
apenas faz uso de um aspecto recorrente do tempo imediato para compor sua narrativa. Há aí
uma ferramenta de identificação pelo telespectador. O sentimento, ou ideia, levantado não é de
ordem provocativa, onde a audiência irá refletir sobre as condições atuais do planeta. O efeito
que surte é de se pensar que existe a possibilidade de fim, de forma que isso lhe é comum, já
que isso é recorrente em seu cotidiano.

Tais traços na série Dark levam à reflexão de como produtos midiáticos contêm aspectos
da temporalidade em que são produzidos. Em um tempo onde há o interesse contínuo por

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mudanças na condição planetária, e na mesma medida existe certa obsessão com a possibilidade
de fim da aventura humana na terra, o seriado alemão agrega tais fatores em sua estruturação
narrativa, dando luz a um universo que reforça a dificuldade da mudança, mas que na mesma
medida o cenário de fim iminente só pode ser moldado por uma série de ações significativas,
tal qual se dá com a realidade concreta atual diante dos desafios climático-ambientais.

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DOI 10.47402/ed.ep.c2406110910215

CAPÍTULO 10
AS TRANSFORMAÇÕES DO MAL-ESTAR NA SOCIEDADE E SEUS EFEITOS NOS
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO

Gabriel Vianna Schlatter


Mariana Machado Felin

RESUMO
Neste trabalho busca-se fazer uma análise das transformações pelas quais o mal-estar contemporâneo tem passado
ao longo dos anos. Analisa-se o mal-estar a partir de três tempos, iniciando-se pela época de Sigmund Freud, com
o mal-estar na civilização, o qual centraliza-se no conflito psíquico a partir da renúncia pulsional, necessária para
viver em sociedade. Em um segundo tempo, analisa-se a modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, com as
transformações ligadas à formação de laços mais frouxos nas relações e à efemeridade dos valores que são tomados
como referência pela sociedade. Por fim, avalia-se a sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, na qual se faz
presente uma cobrança pelo uso ilimitado de todas as liberdades de escolha, levando o sujeito a vivenciar uma
angústia por tentar aproveitar tudo o que está a sua disposição. A partir da proposição de mal-estar destes três
autores, discutem-se os efeitos no processo de subjetivação do sujeito, tomando como base os aportes
psicanalíticos pertinentes. Por fim, compilam-se algumas contribuições dos autores estudados sobre como viver
em equilíbrio na contemporaneidade.

PALAVRAS-CHAVE: Mal-estar contemporâneo; Estruturas clínicas; Psicanálise.

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho adota uma revisão bibliográfica narrativa, a qual busca sistematizar e
analisar criticamente como evoluiu o conceito de mal-estar a partir da concepção original de
Freud (1930/2010a). Associado a essa evolução, procura-se identificar, tomando-se como
referência os processos de subjetivação, quais os efeitos do mal-estar no sujeito, considerando-
se a indissociabilidade deste em relação à cultura. Dessa forma, propõe-se que determinadas
estruturações psíquicas, compreendidas a partir dos aportes psicanalíticos, têm em sua formação
um atravessamento inegável da cultura na qual estão inseridas.

Estudou-se o mal-estar a partir de três tempos, iniciando-se pelo mal-estar na época de


Sigmund Freud, com o mal-estar na civilização, o qual centraliza o conflito psíquico a partir da
renúncia pulsional, necessária para viver em sociedade. Em um segundo tempo, analisa-se a
modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, com as transformações ligadas à formação de laços
mais frouxos nas relações e à efemeridade dos valores que são tomados como referência pela
sociedade.

Por fim, avalia-se a sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, onde se faz presente
uma cobrança pelo uso ilimitado de todas as liberdades de escolha, levando o sujeito a vivenciar
uma ansiedade por tentar aproveitar tudo o que está a sua disposição. A partir da proposição de

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mal-estar destes três autores, discutem-se os efeitos no processo de subjetivação do sujeito,
tomando como base os aportes psicanalíticos pertinentes.

Em cada um destes tempos, procurou-se compreender como a liberdade aumentou sua


participação na balança liberdade versus segurança, assim como na forma de afetar o processo
de subjetivação dos indivíduos. Procurou-se mostrar que a liberdade se transforma de um direito
de experimentar em uma obrigação por usufruir de tudo que esteja ao alcance dos indivíduos.
Em função dessa mudança, analisam-se as patologias psicanalíticas que emergiram de modo
mais notório na clínica de cada um desses tempos. Por fim, compilam-se algumas contribuições
dos autores estudados sobre como viver em equilíbrio na contemporaneidade.

2 A EVOLUÇÃO DO MAL-ESTAR NA SOCIEDADE

Os efeitos da vida em sociedade já vêm sendo estudados há muitos séculos,


prioritariamente sob a ótica da filosofia e da sociologia. As relações do homem com a
sociedade, antes de Freud, eram fundamentalmente analisadas sob a égide da ética e da moral,
privilegiando-se o olhar sobre uma forma de ser do indivíduo que permitisse a este estar em
harmonia com o outro, com ganhos coletivos (OLIVEIRA et al., 2018).

Foi somente com os novos conceitos de uma psicologia que reconhecesse o


inconsciente, marco fundamental do trabalho de Freud, que se iniciou uma análise sobre como
a inserção do indivíduo na sociedade poderia, ao mesmo tempo, defini-lo e afetá-lo. Freud
(1921/1990) postula, em Psicologia das Massas e Análise do Eu, que a psicologia individual é
indissociável da psicologia social, corroborando a ideia de que essa relação com a sociedade
impacta o processo de subjetivação. Dessa forma, entende-se que a estruturação psíquica de um
sujeito está intimamente relacionada com os diferentes modos de relações sociais estabelecidos
em uma determinada época. Este processo também está relacionado com a produção de mal-
estar, cujo efeito, no sujeito, é de produção de diferentes tipos de sofrimentos e angústias.

Entretanto, o contexto social em que Freud vivia e que acabou por determinar a maior
parte dos seus estudos, veio se transformando ao longo do tempo. Em seu tempo, a clínica
encontrava mais frequentemente um determinado tipo de paciente, qual seja, pacientes
histéricas, com estruturas predominantemente neuróticas (GIOVANNETTI, 2018). Novas
configurações sociais se estabeleceram e, continuamente, mudaram as formas de se relacionar
na sociedade, assim como as referências que orientam como um indivíduo pode se considerar
socialmente integrado e realizado.

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Considera-se, nesse estudo, três tempos desse processo de mudança, os quais não são
marcadamente distintos entre si, mas que se transformam notória e gradualmente. Para cada um
destes tempos, procurou-se avaliar a forma como a sociedade, através da cultura vigente,
manifesta-se ao indivíduo no que diz respeito à sua liberdade de escolha e às expectativas de
realização pessoal. Além disso, buscou-se analisar quais são as estruturas clínicas que emergem
de forma mais perceptível e predominante, em função desse contexto cultural.

2.1 Civilização

O estudo do mal-estar na modernidade foi formalmente trazido por Freud (1930/2010a)


a partir do texto "O Mal-Estar na Civilização", no qual ele explora as tensões entre o indivíduo
e a sociedade. Freud (1930/2010a) argumenta que o ser humano tem duas pulsões básicas: a
pulsão de vida (Eros), que se manifesta como a busca pelo prazer e pela satisfação, e a pulsão
de morte (Thanatos), que atua na tendência para a destruição e para o retorno ao estado
inanimado.

A vida civilizada teria como objetivo controlar essas pulsões, por meio de normas e leis
que limitariam a busca pelo prazer e a expressão da agressividade. Para Freud (1930/2010a),
no entanto, a impossibilidade de satisfazer essas pulsões traria consequências negativas para a
psique humana, gerando um mal-estar que se manifestaria de diversas formas, tais como a
ansiedade, a depressão, a insatisfação crônica e a sensação de vazio existencial. O ser humano,
ao se ver privado de uma satisfação plena de seus desejos e impulsos, acabaria submetido a uma
vida de repressão e frustração, o que geraria um sofrimento psíquico constante (FREUD, 1930;
2010a). Assim, cria-se um paradoxo: por um lado, para viver em segurança na sociedade, faz-
se necessário renunciar à uma parte da satisfação pulsional; mas, por outro, a renúncia pulsional
coloca o sujeito diante da frustração que provoca o mal-estar.

O autor argumenta, ainda, que a civilização em si mesma seria responsável por uma
série de violências e injustiças, como a exploração econômica, a guerra, a opressão política e a
desigualdade social, as quais também gerariam sofrimento psíquico (FREUD, 1930; 2010a).
Para ele, o indivíduo é colocado em uma posição de impotência diante dessas forças maiores,
o que resultaria em uma sensação de desamparo e vulnerabilidade.

A civilização, portanto, ao mesmo tempo em que é necessária para a sobrevivência e a


convivência humana, é fonte de um sofrimento psíquico constante, o qual só pode ser
amenizado por meio do equilíbrio entre as pulsões de vida e de morte, fruto de uma reflexão
individual sobre as normas e valores sociais que a define. Sonoda (2013, p. 647) destaca que

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"apesar de o homem civilizado ter trocado uma parcela de suas potencialidades de felicidade e
satisfação pulsional por uma parcela de segurança, isso não se traduz em uma garantia de
realização ou ausência de sofrimento".

Por outro lado, uma sociedade que tem regras claras de convívio e que, por meio da
cultura, impõe formas esperadas de ser para os indivíduos, também apresenta algumas
vantagens. Uma delas é uma tendência ao estabelecimento de laços fortes nos relacionamentos,
desenvolvidos a partir da noção de pertencimento. A cultura é o condutor que leva o indivíduo,
sistematicamente, a compreender e adotar valores e formas de agir aceitas nos grupos de
referência. Toma tempo e esforço habilitar-se a ser aceito no grupo, mas, uma vez que isso
ocorra, o indivíduo também passa a ser sustentado e mantido pela sociedade a qual pertence.

Em meados do século XIX, havia uma intensa repressão, particularmente no que tangia
à sexualidade. Segundo Fuks e Rudge (2018) "O estado de alma de quem efetivamente vivia os
efeitos do progresso da civilização iluminista era descrito como 'nervoso' pelas artes e a
filosofia" (FUKS; RUDGE, 2018, p. 2). A cultura impunha um fardo de tudo conhecer e
dominar, tornando-se uma "fábrica de neuroses", principalmente nas classes mais altas da
Europa da época (FUKS; RUDGE, 2018). Já naquela época, os textos dirigidos às classes com
maior formação e cultura pleiteavam uma volta a uma condição mais humana, queixando-se
dos sintomas produzidos pelo progresso, sendo que "o nervosismo era uma figura obsediante
em discursos e obras literárias" (FUKS; RUDGE, 2018, p. 2). Essa configuração, associada a
uma cultura rígida de repressão de desejos e expressão da sexualidade, fazia emergir mais
frequentemente a estrutura clínica da neurose, em particular, da histeria.

A neurose se refere a uma estrutura psíquica em que o ego ainda é capaz de manter uma
relação saudável com a realidade, mesmo que haja conflitos internos (FREUD, 1898; 1996a).
O sujeito neurótico vive em um estado de ambivalência em relação aos seus desejos e
necessidades. O sofrimento geralmente se manifesta na forma de sintomas que expressam o
conflito psíquico que envolve os desejos inconscientes e as defesas mobilizadas contra eles. Os
sintomas, nesse caso, são formações de compromisso, cuja expressão simbólica denuncia os
conflitos recalcados, sendo considerados como uma forma de defesa contra a angústia (FREUD,
1894; 1996b).

A neurose, como estrutura clínica predominante na época de Freud, tinha como atenção
fundamental da análise o trabalho sobre o recalque e a impossibilidade de realização do desejo.
O analista buscava ressignificar o desejo, sublimando-o ou possibilitando a construção, para o

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Humanas, Volume 1.
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analisando, de outras maneiras de satisfazê-lo. Dessa forma, a realização do desejo passaria a
ser socialmente aceitável e intrapsiquicamente tolerável. A neurose, embora tendo sua presença
na clínica contemporânea sido sobrepujada por outras patologias, ainda se faz muito presente,
com sintomas que expressam esse sofrimento de formas mais elaboradas. Como se verá a
seguir, no contemporâneo as formas de padecimento se fazem perceber pelas questões
identitárias e narcísicas, muitas vezes com sintomas ligados às compulsões e ao corpo.

Mesmo para um contexto mais atual, de uma sociedade mais flexível, o que é mais
sentido pelo neurótico é justamente aquilo que lhe constitui, e que Birman (2016) sugere como
sendo "uma nostalgia do Pai". Isto é, os neuróticos querem um Pai que os proteja, mas ao qual
se submetem. Esta proposição está alinhada à relação do indivíduo com a sociedade,
originalmente proposta por Freud (1930; 2010a) no mal-estar da civilização, centrada no
antagonismo entre proteção e liberdade. O que o neurótico necessita, segundo Birman (2016),
é de um contexto estável e previsível, onde regras claras possibilitariam um processo de análise
que favorecesse a redução da angústia diante dos conflitos, mais do que das incertezas.

Porém, a partir do final da segunda guerra mundial, muitas transformações começaram


a emergir na sociedade. O maior acesso ao trabalho por parte das mulheres, o advento da pílula
anticoncepcional, o crescimento exponencial dos meios de comunicação e tantos outros eventos
revolucionários acabaram por oferecer muitas oportunidades de crescimento e expressão
individual. Essas mudanças, caracterizadas por um aumento na liberdade individual de
escolhas, são analisadas no segundo tempo da sociedade moderna, aqui designado por
"liquidez".

2.2 Liquidez

As transformações nas formas de relacionamento humano na sociedade contemporânea


foram percebidas por muitos autores, sendo que um contexto recente da modernidade foi
analisado pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2001). Este autor argumenta que, ao longo dos
séculos, os relacionamentos humanos sempre foram baseados em laços sólidos e duradouros,
como os laços familiares, os laços de amizade e os laços amorosos. No entanto, com a chegada
do que denominou de "modernidade líquida", caracterizada pela fluidez e pela incerteza, esses
laços se tornaram cada vez mais frágeis e voláteis.

A vida líquida é "uma vida em condições precárias, vivida em condições de incerteza


constante" (BAUMAN, 2007, p. 8). A vida teria se tornado fragmentada, sem continuidade,
partida em episódios (BAUMAN, 2004), tendo como consequência a dificuldade de se fazer

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planos de longo prazo. Em função disso, o autor traz a proposta de que, em um mundo líquido,
o tempo é percebido como fragmentado, sem coesão, ao que convencionou chamar de "tempo
pontilhista". Nesse contexto, cada momento é único, sem relação com o que o antecedeu ou
com o que o seguirá, resultando em uma cultura que valoriza somente o agora, como no
consumismo, sem projeções para o longo prazo.

Assim, os sujeitos acabaram por se tornar incapazes de elaborar um projeto de vida que
represente sua identidade, delegando essa tarefa interior a algo externo, que os conduz, ao invés
de emergir deles mesmos. Resume o efeito dessa incerteza da seguinte forma: "um ambiente
líquido-moderno é inóspito ao planejamento, investimento e armazenamento de longo prazo"
(BAUMAN, 2008, p. 63).

O autor ainda explica que a analogia à liquidez está associada à ambivalência entre a
transformação constante e a permanência, assim como um líquido, que muda de forma de
acordo com o recipiente, mas mantém a sua essência como elemento. Para Bauman (2001), a
modernidade sempre se preocupou em "derreter" a ordem social sólida estabelecida,
transformando-a e flexibilizando-a conforme os interesses e demandas dos tempos atuais. Daí
a noção de algo que se transforma e muda, mas, ao mesmo tempo, se mantém e conserva parte
do original.

Em um mundo assim descrito, o indivíduo viveria numa constante recorrência de


rupturas e isolamentos, valendo essa concepção também para a forma de ver as psicopatologias,
a cultura e o modo de estar no mundo. Essa tendência ao isolamento, entretanto, acabaria por
levar o indivíduo a crer que não pertence ao lugar onde se encontra e, a fim de tentar suprir essa
necessidade de pertencimento, acabaria por "inventar" seu lugar ideal.

A versão coletiva desse lugar ideal seria, de acordo com Dunker (2015), o equivalente
simbólico do condomínio. Este é um lugar onde se poderia estar mais bem adaptado, justamente
por estar entre os iguais, criteriosamente selecionados, sendo que o muro do condomínio
representaria a estrutura que separa os excluídos.

Essa uniformização de crenças, entretanto, teria uma contrapartida: a fim de garantir os


iguais em comportamento e pensamento, muitas regras seriam necessárias, gerando-se uma
hipertrofia de regulamentos o que, na prática, implicaria em uma perda de liberdade e um novo
e maior sofrimento. O excesso de regras de conduta, fortemente monitoradas pela figura de
controle representada pelo síndico, acaba por gerar o aparecimento do "narcisismo das pequenas
diferenças" (DUNKER, 2015, p. 20). Isto é, mais uma vez, o diferente passa a ser o foco das

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atenções, sendo que agora a tolerância à singularidade é ainda menor, dadas as regras criadas
pelo próprio grupo. Viver no condomínio, entretanto, pode se constituir em uma grande ilusão:
ao eleger estar somente entre iguais, o indivíduo não necessita se deparar com as diferenças, ou
seja, estará protegido, mas não exercitará a alteridade.

Por outro lado, o indivíduo no condomínio, apesar de imerso em um contexto com regras
de convívio estáveis, ainda poderia estar ligado a múltiplos grupos, tendo, então, liberdade de
expressão e escolhas individuais ampliadas. A diferença da época de Freud, entretanto, é que
os grupos de referência estariam embasados em regras particulares, com contratos de adesão
espontânea, e não coletivas, oriundas de um histórico cultural que as tivesse lapidado.

O que estaria mais premente, portanto, seria a ausência de referenciais socialmente


estáveis, sendo que, no mundo líquido de Bauman (2001), isto seria gerador de ansiedade, dado
que não haveria indicações claras de quais são as condutas aceitáveis. Bauman (2001) destaca
que se torna necessário reinventar a vida continuamente, mudar de identidade várias vezes ao
longo do tempo, uma vez que não há configurações sociais e de valores que sejam duradouras.

O autor também lembra que os laços humanos e as comunidades foram substituídos por
redes, as quais têm diferenças no sentido de pertencimento associado a cada uma destas
(BAUMAN, 2001). Para ele, a comunidade é o lugar no qual o indivíduo nasce e está imerso e
que, portanto, o precede. Essa perenidade, ainda que circunstancial, denotaria estabilidade e
permitiria ao indivíduo vivenciar contextos com regras claras de reconhecimento e aceitação.
As redes, porém, têm uma característica que lhes é peculiar, qual seja, a facilidade de se
conectar e desconectar. Permitem, por um lado, uma hiper conexão, uma possibilidade de se
ligar a muitos e diversos, porém, limitam a possibilidade do indivíduo se valer de referenciais
coerentes, estáveis e claros.

Um dos aspectos nefastos da liquidez de conexões é que, apesar da facilidade do ir e vir


das redes sociais, frequentemente se fazem presentes padrões sociais conservadores, que beiram
à radicalização, tais como os preconceitos de raça, gênero, classe social, instrução e outras
tantas discriminações. Nesse caso, a liberdade de expressão sem limites pode gerar um
julgamento com o qual o indivíduo não seja capaz de lidar.

Esta mudança na forma de ser e estar no mundo acabou por modificar as demandas de
tratamento na clínica psicanalítica, uma vez que outras formas de sofrimento entraram em cena.
De modo mais ou menos concomitante às propostas de Bauman (2001), tornam-se presentes

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outras concepções clínicas, principalmente trazidas por Green (1990), que dizem respeito às
não-neuroses e, em particular, à clínica do vazio.

Autores pós-freudianos, há algum tempo, vinham relatando uma predominância de


estruturas não neuróticas na clínica, também conhecidas como casos-limites, distúrbios
narcísicos e patologias psicossomáticas (GREEN, 2019). Os casos-limites são, de fato,
estruturas-limites indeterminadas, compostas por diversas patologias perversas, depressivas,
maníacas e outras, as quais lutam por assumir a integralidade da estrutura clínica do indivíduo
(GREEN, 1990). Essa indeterminação promove a desorganização no interior do aparelho
psíquico e dificulta a apropriação e o desenvolvimento adequado de significados e sentidos de
vida, gerando lutos, angústias de separação e de intrusão, além de sentimentos de futilidade e
de vazio (GREEN, 1990).

Na literatura psicanalítica, esses casos têm sido referidos também como borderlines,
tendo a origem do termo no status psicodinâmico de pacientes na fronteira entre a neurose e a
psicose (EIZIRIK et al., 2015). Estes pacientes possuem um caráter impulsivo, com o
envolvimento simultâneo de dois (ou mais) estados afetivos, em geral contraditórios, que
coexistem de forma dissociada. Caracterizam-se também pela presença de sentimentos de
vazio, uso de mecanismos de defesa primitivos, devido a debilidades nas funções do ego,
embora com manutenção do teste de realidade (EIZIRIK et al., 2015).

Green (2019) formaliza esse conceito para a psicanálise, propondo que existiriam
apenas duas grandes organizações psíquicas, as quais seriam a neurose e a não neurose. Esta
última se referiria a todas as estruturas psíquicas que se organizam a partir de distúrbios na
constituição do narcisismo. Minerbo (2019) propõe que "nas organizações não neuróticas, as
fronteiras egóicas são tão frágeis que qualquer estímulo é vivido como excessivo e
desestruturante" (MINERBO, 2019, p. 93). Para ela, o não neurótico procura um objeto externo
ao qual possa se ligar, na expectativa que este possa prover algum sentido e ordem para sua
vida psíquica. O não neurótico também estaria sujeito às angústias de esvaziamento narcísico,
onde a autoestima se dissolve e o sujeito sente-se sem valor.

A forma de se lidar com o vazio, na mutabilidade do mundo líquido seria, conforme


sugerem Morais et al. (2022), tentando evadir-se da dor, "buscando alternativas que mascarem
nosso íntimo e não nos permitam o aprofundar-se, culminando ao mesmo tempo em uma fluidez
e superficialidade de relações consigo e para com o outro" (MORAIS et al., 2022, p. 4). Na
clínica do vazio, são comuns as passagens ao ato, assim como uma transferência de

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responsabilidade ao corpo para lidar com um número cada vez maior de sentimentos de
desamparo e desespero.

Como consequência, abre-se espaço para as somatizações e as adições, como formas de


atender às demandas do vazio. Minerbo (2019) traz exemplos contemporâneos dessas ações,
mencionando fenômenos sociais atuais, como a violência adolescente nos reality games e o
body art, onde o corpo se torna a forma de expressão que tenta simbolizar e dar um sentido
mais duradouro à existência e a definir identidades.

Birman (2020) considera ter havido um empobrecimento da capacidade de pensar, assim


como da linguagem, os quais eram os mecanismos principais para se trabalhar as frustrações
sociais. Assim, propõe que, se não é possível dar destino às intensidades individuais através do
pensamento e da linguagem, resta apenas corpo e ação, fazendo o indivíduo a passagem ao ato
(BIRMAN, 2020).

O autor destaca que o bem supremo a ser buscado migrou da alma aristotélica para o
corpo, gerando um estresse que somatiza e que pode se transformar em síndromes, como a do
pânico e o medo da morte. No campo dos sentimentos, nota um aumento das distimias e das
depressões, gerando o que chama de desvitalização do sujeito. A necessidade de validação
externa resulta no que Birman (2020) classifica como uma despossessão de si, isto é, uma falta
de domínio de si mesmo em detrimento do julgamento do outro. Como consequência, sugere
que o indivíduo perdeu a capacidade de ter utopia e de sonhar a partir dos seus desejos.

Do mesmo modo, a melancolia é outro sofrimento que se constitui a partir da dificuldade


de relações do indivíduo com o próprio corpo e com a dimensão temporal (PINHEIRO, 2012).
Para a autora, esses pacientes "têm com o olhar do outro uma relação que não é mediada por
um olhar que possam ter de si mesmos. Tomam a si mesmos como sendo aquilo que os outros
veem deles" (PINHEIRO, 2012, p. 19). O olhar do outro passa a ser o seu atestado de existência.

Por essa razão, no "amor líquido" de Bauman (2004), o romper de relações, que era mais
trabalhoso no off line, e que é muito fácil no online, desestrutura aqueles que têm no objeto
externo a sua referência de integração dos processos psíquicos. Os relacionamentos não são
mais sólidos, mas sim, feitos para não durar, gerando, mesmo durante o convívio, uma "angústia
de quem ama". Nas patologias do vazio, a angústia de quem ama é a angústia pela perda do
outro, e, devido à falta de fronteira, configura-se como uma angústia de aniquilamento.

Para o autor, o amor é mais falado do que vivido e as incertezas quanto à sua
profundidade, fidelidade e duração são cada vez maiores (BAUMAN, 2004). Fica claro para

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ele que "a vida líquida é uma sucessão de reinícios e, precisamente por isso, é que os finais
rápidos e indolores tendem a ser os momentos mais desafiadores e inquietantes" (BAUMAN,
2007, p. 8). A angústia, portanto, não é a de perder o outro, mas, a si mesmo.

Esse contexto ainda perdura nos tempos atuais. Entretanto, a liberdade de expressão e a
individualização, que surgiram inicialmente como uma contracultura ao controle exacerbado
da civilização, acabaram por ganhar dimensões extremas. A ampliação da capacidade de
conexão dos seres humanos, a facilidade de produção visual e a deterioração do papel do estado,
acabaram por gerar um novo contexto sociocultural que passou a afetar os indivíduos de novas
maneiras. A liberdade tem seu papel alterado novamente e o indivíduo que tudo podia, agora
tudo deve explorar. É a sociedade do cansaço.

2.3 Cansaço

As transformações analisadas por Bauman (2001) mostram o início de uma inversão na


balança que contrapõe a lei social à liberdade individual. Entretanto, autores contemporâneos
sugerem que essa inversão se exacerbou, levando a liberdade da individualização a um extremo
nunca visto na sociedade.

Um dos filósofos contemporâneos que descreve esse novo tempo é Byung-Chul Han,
coreano radicado na Alemanha, que cunhou o termo "sociedade do cansaço". Para Han (2015),
a sociedade de hoje não se limita apenas a oferecer total liberdade de escolha, mas demanda
que o indivíduo procure explorar todas e cada uma delas ao máximo. O que vale hoje, portanto,
é o desempenho, isto é, a capacidade de otimizar a exploração de oportunidades. Para o autor,
o sujeito se explora apaixonadamente, "e, visto que, em última instância, está concorrendo
consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir" (HAN, 2015, p. 86). Aqueles
indivíduos que não conseguem alcançar as expectativas se deprimem e se sentem culpados
pelos seus fracassos, buscam a culpa dentro de si e não na sociedade.

Se antes a sociedade era considerada tirânica, por explorar sem piedade o indivíduo,
hoje a auto exploração, de acordo com Han (2015), é um recurso mais eficiente do que a
exploração pelo outro. O autor sugere que, hoje em dia, o controle e a coerção são realizados
por uma exploração voluntária, acompanhada de uma exibição de conquistas, as quais gerariam
o que ele chama de auto iluminação. Em uma sociedade que também é a da transparência, se
vive no "panóptico" (HAN, 2015, p. 49), onde se vê e se é visto por todos, numa exposição
voluntária. Dessa forma, vive-se em uma sociedade orientada para a liberdade, mas na qual o
ato de ser livre acaba sendo expresso como uma compulsão. O "eu", como projeto

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individualmente idealizado, desencadeia compulsões internas na forma de mais auto
otimizações.

Outro estudioso do mal-estar na sociedade contemporânea, Joel Birman (2016), discute


as raízes e implicações do mal-estar para o sofrimento psíquico. Este autor também argumenta
que a sociedade atual é marcada por uma série de transformações profundas, as quais têm
origem na drástica redução de referenciais de valor, comuns para toda a sociedade. Isto se deve
a um enxugamento do papel do Estado como elemento regulador, mostrando que os gestores
atuais passam a ser controladores de um estado mínimo e não criadores de políticas sociais.

Com isso, reflete, se passaria ao que chamou de radicalização da sociedade de risco


(BIRMAN, 2016). Se o Estado não é mais o regulamentador do bem-estar social, toma corpo o
que o autor denota como assédio moral, já que não há mais instâncias seguras de mediação
(BIRMAN, 2016). Antes, fazendo uma analogia com a psicanálise, o interdito estava regulado
pelo Estado e o papel do analista era trabalhar eventuais excessos de controle, de modo que o
paciente pudesse melhor conviver com esse contexto. Hoje, é preciso compreender que o mal-
estar na sociedade é insuperável e que o papel do analista é ajudar o analisando a trabalhar com
seus sintomas e produzir um saber que o liberte. De acordo com o autor, é preciso retirar "as
consequências políticas que o desamparo originário impõe, para realizar a gestão do mal-estar
no social" (BIRMAN, 2005, p. 222).

Atualmente, como não há reguladores sociais coletivamente reconhecidos, a angústia se


origina da dificuldade de as pessoas lidarem com as suas próprias intensidades. Dunker (2015)
resume essa contradição dizendo que "sofremos porque estamos com excesso de experiências
improdutivas de determinação" (DUNKER, 2015, p. 363). Dito de outra forma, "pertencemos,
mas não ao que nos identifica em nossa subjetividade" (DUNKER, 2015, p. 363). Este excesso
de experiências, muitas vezes manifesto sob a forma de consumo, surge como um contraponto
ao sentimento de vazio (FORTES, 2007). Esta autora sugere que "a impulsividade excessiva
não é o contrário da inibição, mas a máscara pela qual a apatia é dissimulada, uma reação
secundária" (FORTES, 2007, p. 88).

A globalização, a tecnologia, o individualismo e a crise de valores seriam, ao mesmo


tempo, causa e consequência desta falta de um referencial reconhecido pela sociedade e que
agravariam esse mal-estar. A falta de uma visão compartilhada de mundo levaria a um
sentimento de vazio existencial e a uma sensação de que a vida não tem sentido (BIRMAN,
2020). Esse autor argumenta, ainda, que a sociedade contemporânea é marcada pela pressão

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constante por sucesso e realização pessoal, o que geraria uma intensa competição e um
individualismo exacerbado, muito alinhado com a proposta de Han (2015).

Para Birman (2016), o sofrimento psíquico na sociedade contemporânea está


relacionado à falta de uma fonte de segurança, de algo que lide com o caos associado à
incapacidade de determinar o que vai acontecer. A angústia, oriunda dessa lacuna, tem sido
combatida com tentativas de reestruturar referências de valor através de sistemas de controle e
vigilância, com um estado mais policialesco e com a Justiça estando mais presente como
elemento decisor do que é certo ou errado, ético ou não-ético. Quando estas abordagens falham,
sobra espaço para a presença do fundamentalismo radical, muitas vezes teológico e, outras,
político, gerando o que o autor denomina de uma guerra dentro de cada estado social, marcada
pela violência e pela crueldade. O mais grave desse contexto é que o outro, o diferente, passa a
ser visto como um inimigo, pois ameaça as referências às quais os indivíduos se apegam
(BIRMAN, 2020).

Outros autores que investigam as patologias da sociedade contemporânea argumentam


que a sociedade atual é marcada por uma série de problemas sociais. Diferenciam, inicialmente,
o conceito de mal-estar do de sofrimento, considerando que o primeiro está ligado a um aspecto
filosófico, de condição no mundo, enquanto o segundo diz respeito a um aspecto social
(SAFATLE et al., 2018). Propõem que os sujeitos se tornam indivíduos que preferem localizar
problemas no outro e, na sequência, excluí-lo.

Nesse contexto, o sentido de pertencimento passa a ser buscado através do consumo e


do cultivo à imagem de felicidade, a qual é medida pela quantidade de bens materiais que se
possui e pela imagem que se projeta para os outros. Essa cultura gera uma pressão constante
para se adequar aos padrões estéticos e comportamentais, o que levaria a um sofrimento
psíquico decorrente da falta de autenticidade e da perda de identidade (SAFATLE et al., 2018).

Estas propostas também estão alinhadas com a perspectiva de Han (2022), que afirma
que se vive em uma sociedade narcisista, na qual as pessoas investem sua libido em suas
próprias subjetividades. Com isso, sujeitos narcisistas não conseguiriam definir claramente seus
próprios limites, percebendo o mundo "apenas como uma sombra de si mesmo" (HAN, 2022,
p. 52). Nesse caso, as fronteiras entre o indivíduo e o outro estariam difusas, gerando uma
incapacidade de reconhecer e aceitar o outro em sua alteridade.

A busca pelo sucesso, nesse caso, seria uma espécie de tentativa de confirmação de si
mesmo pelo outro. Sonoda (2013) sugere que a vida, na atualidade, seria como cada um por si:

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"É o sujeito o responsável por seu ‘fracasso’. Deprimidos, panicados e outros, são, hoje, um
grupo tão incômodo como foi o grupo das histéricas na época vitoriana" (SONODA, 2013, p.
9).

Fortes (2007) complementa essa visão, trazendo a noção de insuficiência, percebida pelo
sujeito, que, conscientemente, considera-se responsável por sua própria vida, mas que se
percebe impotente quando avalia o possível em comparação ao impossível. A noção de
insuficiência surge quando "o sujeito se sente aquém de toda essa exigência de desempenho,
não se vendo preparado para a emancipação e a responsabilidade que lhe são demandadas pelo
contexto do individualismo" (FORTES, 2007, p. 85). Na verdade, além do desempenho, essa
responsabilidade por si mesmo estaria compelindo o sujeito a "tornar-se ele mesmo", advindo
disso a depressão, a qual seria "uma espécie de fadiga, de vazio de um sujeito que se sente
cansado dessa busca incessante de uma produção de si" (FORTES, 2007, p. 86).

Han (2017) sugere que a depressão advinda desse insucesso seria um sintoma de uma
estrutura narcisista não atendida em suas demandas. Ao contrário do "Eros", que tira o sujeito
de si para investir no outro, a depressão faria o sujeito desmoronar em si mesmo. De acordo
com o autor, um dos principais motivos que impediria o cultivo de Eros na sociedade
contemporânea seria a perda da habilidade de se estabelecer relações reais. "Temos muitas
conexões, mas poucas relações", é como resume Han (2022, p. 90).

Um contexto tão complexo e demandante como este, abre espaço para que outros
comportamentos individuais, analisados sob o prisma das estruturas clínicas, possam se
manifestar mais frequentemente. Um comportamento psicótico poderia ser, eventualmente, a
única alternativa para se defender da presença constante de contradições nos valores de
referência desse tipo de sociedade.

A psicose se refere a transtornos mentais em que o ego perde sua capacidade de mediar
a relação entre a realidade interna e a realidade externa, levando a uma ruptura com a realidade
compartilhada (FREUD, 1924; 2011). É uma estrutura psicopatológica mais grave, que se
caracteriza pela criação de um mundo próprio e delirante, que seja capaz de atender aos desejos
que o mundo real não pode prover.

Os sintomas da psicose têm um papel diferente do que na neurose, sendo considerados


uma tentativa do sujeito de restaurar um mundo de significados que foram perdidos (FREUD,
1905; 2021). Os delírios e alucinações, por exemplo, podem ser entendidos como uma forma
de o sujeito tentar dar sentido a uma realidade que se tornou incompreensível para ele. Freud

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(1924; 2011) também propõe que a libido do psicótico volta-se para si, podendo assumir
comportamentos de grandiosidade, por exemplo, sendo que os eventos do mundo passam a ter
o indivíduo como centro.

Reforçando o direcionamento para essa estrutura clínica como alternativa para lidar com
um contexto como o descrito, Birman (2016) destaca que a falta de referências sólidas,
substituídas por demandas contraditórias, ocorrem continuamente num mundo de redes, pois
um mesmo comportamento, repudiado por um grupo, pode ser amplamente aceito por outro.
Além disso, sugere que as variações de humor no mundo contemporâneo são exacerbadas
devido às frequentes frustrações a que os indivíduos ficam expostos, uma vez que se torna cada
vez mais difícil atender às expectativas sociais. Muitas destas frustrações e variações de humor
são representadas pela passagem ao ato, associadas à agressividade e, muitas vezes, à violência.

Para o indivíduo, estes atos violentos poderão ser vistos como ameaças à sua segurança
e estabilidade, reforçando o movimento de fuga e evitação desses contextos.
Consequentemente, gerariam isolamento, distanciamento da realidade e, possivelmente, um
comportamento psicótico, associado à paranoia ou episódios depressivos. Todos os indivíduos
têm um código interior onde se antecipam aos possíveis perigos, o que os torna saudavelmente
paranoicos, mas, na psicose, podem representar uma pressão insustentável, que leva à ruptura
(BIRMAN, 2020).

Além de expor o indivíduo a situações de violência e exclusão social, alguém que adote
um comportamento mais psicótico conta, cada vez menos, com a possibilidade de acolhimento
e compreensão (DUNKER, 2015). Esses fatores podem agravar a fragmentação do eu e a
desconexão com a realidade, contribuindo para o sofrimento psíquico característico da psicose.

Da mesma forma que o caso da psicose, o contexto social atual, que dificulta a
constituição narcísica de uma forma mais estruturada, pode acabar por estimular
comportamentos mais próximos de uma estrutura perversa. Vale e Cardoso (2020), por
exemplo, propõem que "a problemática perversa tem em seu fundamento um ego
narcisicamente ferido, que precisa manter-se ilusoriamente unificado, afirmando-se em sua
onipotência infantil" (p. 1). Sugerem que, no perverso, haveria um objeto interno "indomável"
sobre o qual deseja ter controle, mas não consegue. Assim, uma visão mais atual da perversão
propõe que "o ego do sujeito busca recobrar a atividade, passando então ao ato, dominando o
objeto externo e afirmando-se onipotentemente, numa tentativa de superar a situação de
passividade" (VALE; CARDOSO, 2020, p. 8).

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A perversão, como posição subjetiva, é uma estrutura clínica que se caracteriza pela
recusa ou denegação da castração. No texto sobre o fetichismo, Freud (1927; 2014) comenta
que a posição perversa não era expressa por seus pacientes como um problema, isto é, mostrava-
se egossintônica. O perverso, ao mesmo tempo que reconhece a existência da castração, a
recusa, negando-a no outro e em si. É essa ambiguidade que é chamada de clivagem no eu
(ego), a qual é contornada através da escolha de um objeto externo que a represente e substitua.

O fetiche, por sua vez, é a escolha de um objeto externo para a satisfação da libido,
sendo que os autores que estudaram a estrutura após Freud consideram que, tendo o perverso
um objeto claramente definido, seu desejo pode ser mais facilmente atendido. Como
consequência da satisfação da libido pelo objeto do fetiche, no perverso não há espaço para o
desejar, uma vez que não há espaço para a falta. Além disso, o outro, objeto do fetiche é tratado
como coisa, não é considerado e seu desejo pouco importa ao perverso. Essa forma de ver o
mundo, tão focada em seu fetiche, é que dá espaço às fantasias perversas de assumir o lugar da
Lei.

Indivíduos com um comportamento mais perverso podem se aproveitar do fato de que


os relacionamentos online são práticas aceitas para a procura de um companheiro, de modo
muito semelhante à tendência de comprar pela internet. Bauman (2008) comenta que os sites
de namoro se assemelham a sites de catálogos. Tal como um produto, assim que um
relacionamento deixa de atender às expectativas, também as pessoas são descartadas e
substituídas, valendo isso tanto para amizades como para o amor por um companheiro. Não há
a preocupação em investir na duração dos relacionamentos, pois a superficialidade das relações
em uma cultura imediatista, demanda necessidades que devem ser satisfeitas na hora.

Numa relação perverso-narcísica, as estratégias do perverso têm como objetivo invadir


o espaço mental do outro, desvalorizando-o, desqualificando-o e, mais ainda, dessubjetivando-
o. A principal arma utilizada, "muito mais do que violências físicas, é o discurso, até a
destituição da subjetividade do outro" (VALE; CARDOSO, 2020, p. 2). Esse processo de
dessubjetivação anula a possibilidade do outro existir como indivíduo, desconsiderando,
portanto, sua condição de sujeito. Estes autores ponderam que, em seu limite, o narcisismo
perverso pode conduzir o sujeito a um fechamento no amor de si mesmo, sem lugar para o
outro, até o extremo da sua própria destruição.

Assim, parecem ser as patologias do narcisismo e do excesso que tomam um maior


espaço na clínica da atualidade e do futuro próximo. As neuroses seguem atuais na clínica,

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entretanto se fazem presentes de modo diferente, com novas nuances. Em ambos os casos, o
excesso pulsional, não voltado para fora do indivíduo, mas dirigido para dentro de si mesmo,
parece ser uma das questões principais a serem trabalhadas na clínica contemporânea.

3 VIVER NA CONTEMPORANEIDADE

O contexto contemporâneo impõe ao sujeito uma série de desafios para que este possa
se manter estruturado. Cabe, neste ponto, trazer à tona uma reflexão de como se pode buscar
alternativas para ressignificar o que se presencia, resgatando uma subjetividade própria, de
modo a tentar dar sentido à existência.

Os próprios autores que trazem e descrevem os mal-estares contemporâneos, arriscam-


se a sugerir algumas abordagens para lidar com esses contextos. Birman (2016), por exemplo,
sugere que o caminho para se lidar com o mal-estar na atualidade pode se dar através da
psicanálise. Esta teria a missão de restaurar a subjetividade, trazendo para o indivíduo a
conscientização da sua capacidade de criar uma vida simbólica e qualificada.

A vida qualificada, neste caso, seria aquela que se diferencia de uma vida puramente
biológica, cuja função se limitaria à sobrevivência, e passa ser construída e simbolizada a partir
de uma reflexão pessoal sobre as escolhas de valor por parte do indivíduo (BIRMAN, 2016).
Sua proposta se baseia na busca de lugares de pertencimento, nos quais o indivíduo é
referenciado por um coletivo que o aceita, valida e, ao mesmo tempo, permite se constituir
também a partir das suas crenças. Para Birman (2020), seria preciso resgatar a solidariedade, a
empatia e o compromisso com o outro, a fim de construir uma sociedade mais justa e mais
humana, capaz de oferecer um sentido coletivo que reduza o sofrimento psíquico gerado pelo
mal-estar na atualidade.

Esse olhar para o outro, com empatia e compromisso, busca um equilíbrio na


distribuição da energia libidinal, que é limitada, e que precisa ser distribuída entre o eu e o outro
(FREUD 1917; 1996c). É preciso uma dose de energia dirigida a si, para uma formação
adequada do componente narcísico, mas esta não deve ser extrema a ponto de o indivíduo se
tornar autocentrado, desconsiderando o outro. Da mesma forma, uma dose deve ser dirigida ao
outro, para que a sociedade seja mais justa, mas não em excesso, a ponto de se perder a
identidade e viver no vazio.

Bauman (2004) também traz que a fragilidade dos laços humanos na sociedade
contemporânea é um reflexo da própria natureza da modernidade líquida, a qual exige uma
constante adaptação e mudança. No entanto, é possível superar o sofrimento psíquico causado

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por essa liquidez, através da busca por novas formas de estabelecer laços humanos mais
profundos e duradouros, que resistam às incertezas e às transformações do mundo atual.

Alinhados com essa proposta, Safatle et al. (2018) sustentam que a superação das
patologias do social requer uma transformação radical nas estruturas políticas, econômicas e
culturais da sociedade contemporânea. Seria preciso resgatar o sentido coletivo, a solidariedade
e a justiça social, a fim de construir uma sociedade mais humana e mais justa, que pudesse
oferecer um sentido de pertencimento e de realização coletiva, capaz de superar o sofrimento
psíquico gerado.

Nesse sentido, Bauman (2008) sugere que os indivíduos sejam agentes cuidadores da
sua própria vida, compreendendo melhor o que podem mudar, assim como os contextos a que
devem se adaptar. Dunker (2015) ainda ressalta que, mesmo nestes contextos determinantes, o
mundo está cheio de "brechas de significação", isto é, que existem outras formas de ser feliz
que não no condomínio. Para ele, é necessário abandonar as ideias superegóicas de felicidade,
buscando uma vida de significados, uma vida com menos e não com mais.

Refletir sobre si e sobre a vida, conforme sugerem os autores, pode ser difícil de definir
ou ensinar. Uma alternativa, como propõe Han (2017), talvez seja pensar em como não fazer
essa busca. De acordo com o autor, vive-se em um mundo de dados, onde a massa de
informações, analisadas pelos softwares, abandona a reflexão e se faz presente na forma de
barulho, de ruído (HAN, 2017). "Das informações, apenas tomamos conhecimento. [...] São
totalmente inconsequentes", isto é, nelas não há reflexão. A busca deve ser por um sentido, o
qual surge através do pensar e do refletir, uma vez que "o pensamento necessita de silêncio"
(HAN, 2017, p. 43).

Conhecer e refletir são colocados pelo autor lado a lado com vivenciar e experimentar.
A sociedade da informação é fundamentada em vivências e não em experiências; vivências são
coletivas, massificadas, enquanto experiências são únicas (HAN, 2017). O autor traz,
novamente, o componente de Eros, como o elemento que é transformador, referindo-se a uma
libido que se dirige ao outro, ao invés de uma sexualidade voltada exclusivamente ao prazer,
em que a libido se dirige egoisticamente para si. Da mesma forma que outros autores, coloca a
compreensão da alteridade como elemento chave do aprender sobre si e sobre o outro,
defendendo que é Eros quem conduz o pensamento pelo intransitado, pela relação com o outro
(HAN, 2017). O risco de uma vida limitada a vivenciar e não a buscar experiências completas

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com outros seres humanos seria como "o amor sem Eros, sem seu impulso espiritual, o qual
degenera em mera sensorialidade" (HAN, 2017, p. 41).

Estas, portanto, são formas pelas quais os autores nos levam a trabalhar os sofrimentos
que se fazem manifestos no mundo contemporâneo. Cada uma delas pode ser aplicada desde o
nível do indivíduo até o de uma sociedade mais complexa, demandando, naturalmente, esforços
de diferentes intensidades em cada um desses caso.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho procurou acompanhar as transformações que o mal-estar sofreu ao longo


do tempo, buscando compreender tanto a origem dessas mudanças quanto as formas com que
os indivíduos foram afetados. Percebe-se um nítido movimento da balança que contrapõe
liberdade versus segurança, onde se nota que o prato da primeira recebeu muito mais peso ao
longo dos anos.

Entretanto, como ocorre em qualquer excesso, o prato da liberdade não apenas


transbordou, mas também começou a demandar mais e mais atenção, transformando-se em
exigências pelo seu uso. Estabeleceu-se uma contradição, um paradoxo que pode ser traduzido
como uma "liberdade obrigatória". O sujeito está obrigado a viver sua liberdade, sendo que a
angústia nasce da culpa por não poder explorá-la em seu máximo.

Na sociedade de hoje, essa angústia clama por atenção; quer ser tratada. Todos os
autores trabalhados mencionaram a psicanálise como um caminho para trabalhar esse paradoxo.
O que diferencia o viver por viver do experimentar-se para crescer e evoluir é a reflexão sobre
o que foi vivido. Este convite à reflexão é a essência do processo psicanalítico.

É através do refletir sobre si e sobre a sua subjetividade que se pode construir


referenciais internos de valor e, a partir destes, criar um projeto de vida. O analista, como
personagem que ensaia experimentações, propicia ao analisando a possibilidade de levar sua
busca por uma vida com significado além do setting terapêutico. Se este profissional
compreender as formas com que o mal-estar se transformou ao longo do tempo, poderá
compreender melhor as angústias subjacentes aos sintomas que escuta.

Ao se conduzirem convites à reflexão, tão necessária para transformar vivências em


experiências significativas, é possível beber das propostas de sociólogos, filósofos e
psicanalistas que já se depararam com essas angústias e compartilharam ideias de como abordá-
las. Embora haja muitos pontos em comum, cada estrutura clínica tem uma ênfase distinta na

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forma a ser trabalhada. Isto é, embora o contexto possa ser o mesmo, a maneira como esse afeta
o indivíduo se expressa de modo distinto em cada organização psíquica.

Comum a todas elas, entretanto, parece estar presente o pertencer, legitimamente, a um


grupo que seja capaz de constituir e ser constituído pelo indivíduo. Um coletivo que seja capaz
de oferecer alguma perenidade, mesmo nos tempos atuais, e que aceite indivíduos justamente
porque estes irão enriquecê-lo. Mais ainda, um coletivo que construa algo de valor a partir de
crenças compartilhadas por integrantes capazes de conviver com a alteridade.

Cabe a cada um que deseje equilíbrio na sua relação com a sociedade, buscar construir
a sua identidade. Esta terá maior coerência na medida em que possa se constituir a partir de
experiências de relacionamento em que o outro é compreendido em sua subjetividade.

Espera-se que essas reflexões possam colaborar com a prática clínica psicanalítica,
fornecendo insights e outras formas de ver o sofrimento psíquico, auxiliando terapeutas e
analisandos a melhor lidar com os mal-estares da contemporaneidade.

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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111011215

CAPÍTULO 11
O CLITÓRIS E AS MULHERES

Jéssica Natane Pessoa de Lima

RESUMO
O debate central neste artigo é mostrar como é vista a sexualidade feminina ao longo da história, sendo motivo
de discussões, estudos e pesquisas, muitas vezes sendo silenciada. Ao recapitular alguns momentos da história,
pode-se notar as diferentes práticas sociais e a importância de como é visto e interpretado o corpo feminino e seu
funcionamento. O que é proposto aqui é problematizar os discursos feitos pelos médicos e anatomistas em relação
ao clitóris e a revolução clitoriana na década de 1979. Estas óticas permitem problematizar os discursos
socioculturais sobre o corpo feminino ao longo da história. Para tal, como referencial teórico, recorreu-se à
Margareth Rago, Michel Foucault, Berenice Bento, entre outros, para o embasamento da pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Sexualidade; Clitóris.

1 INTRODUÇÃO: UM POUCO DA HISTÓRIA DO CLITÓRIS

Com base na História Cultural, será analisado aqui como o corpo feminino foi
representado ao longo da história com base nos debates sobre o clitóris e a anatomia feminina.
Tendo oclitóris como o foco de estudo dessa pesquisa, foi-se observado como as mulheres
foram descobrindo seu corpo, “descobrindo” o prazer e como foi silenciado esse prazer ao longo
da história, já que o corpo feminino foi construído pelos discursos médicos como sendo um
corpo “doente e histérico”.

Em 1559, Readolus Colombus, ou Mateo Renaldo Colón, havia “descoberto” a fonte do


prazer feminino. O clitóris, foi considerado um “mini pênis” e sede dos “deleites das mulheres”
(RAGO, 2002, p. 183). Para os fantasiosos contistas do período, a mulher e o homem tinham
os mesmo genitais “comparados”, por algum tempo, durante o século XIX. Será que realmente
o clitóris é esquecido ou silenciado por ser a maior libertação da mulher, onde ela tem sua
independência sexual? Onde ela se emancipa do falo? Para Rago, o clitóris é silenciado física
e discursivamente em períodos de maior controle sobre a mulher, sobretudo naqueles em que
ela é associada à figura sacralizada de mãe, sendo, portanto, totalmente dessexualizada (RAGO,
2002, p. 183). Pode-se conferir alguns estudos que trazem discursos e interpretações médicas
sobre o corpo feminino, precisamente o clitóris. Há releituras do corpo feminino a partir de
releituras de oticas médicas, como Renaldo Colombo (anatomista italiano), Vesalius Galeno,
Regnier Graaf, Pierre Rossuel, Julien Joseph Verey e Thomas W. Laqueur.

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O corpo feminino ao longo do tempo foi sexualizado, mas para entender que o corpo foi
sexualizado, será analisado o que é sexualidade para Michel Foucault. Sexualidade é o conjunto
dos efeitos produzidos nos corpos, nos comportamentos, nas relações sociais, por um certo
dispositivo pertencente a uma tecnologia política complexa (FOUCAULT, 1988, p. 139). Sendo
assim, será analisado como o corpo feminino é qualificado e desqualificado por essa prática ao
longo da história. Nesse contexto histórico, é observado os discursos médicos em relação ao
corpo feminino e seu funcionamento. Assim como meados dos séculos anteriores, a mulher era
percebida inferior ao homem, acreditava-se que tinha os mesmos órgãos genitais que ele por
algum tempo, com a diferença de estarem dentro e não fora. Porém o clitóris era visto como um
pequeno pênis atrofiado, fazendo dessa questão anatômica um discurso de inferioridade da
mulher sob o homem. Era comum esse discurso de que a mulher era inferior ao homem, sendo
embasado na sua anatomia, nota-se que alguns discursos de médicos que mostravam que a
mulher era inferior ao homem, a partir das leituras dos corpos, assim como Galeno apresenta
em sua leitura. Segundo ele, a mulher não passava, no fundo, no fundo, de um homem com
problemas na formação dos órgãos genitais. Galeno, que desenvolveu o modelo mais
importante sobre a natureza homólogo entre os órgãos reprodutivos do macho e da fêmea, no
século IId. C. (RAGO, 2002), afirmava que a mulher tem testículos acompanhados de canais
seminais iguais aos do homem, um de cada lado do útero, com a única diferença de que os
macho estão contidos no escroto e os da fêmea não. Se todos eram de apenas sexo, segundo a
lógica de Galeno, então só se tinha homens ou mulher?! (Clitóris, prazer proibido) Tendo só
um só sexo, por que a necessidade de fazer da figura feminina como inferior, se todos eram
iguais segundo essa lógica?

No início do século XIX, o órgão que definirá a essência da mulher ainda não tinha
nome próprio. Galeno referia-se a ele usando o nome que utilizava para os testes masculinos,
“oschis” (RAGO, 2002, p. 183). No século XVII, Regnier de Graaf (anatomista holandês)
chamava o ovário pelo nome latino, “testiculi”, onde no século seguinte, Pierre Rousel, autor
do “Systeme et moral de La femme”, um dos autores mais influentes do período denomina os
dois corpos ovários em cada lado do sistema que cada um adota (RAGO, 2002, p. 184). Ele
acreditava que tinha “descoberto” o clitóris, que já tinha sido descoberto por Colombo, porém
tinha sido esquecido.

Em 1844, o alemão Georg Kobelt enfim o “deflora”: publica uma série de desenhos,
onde a medicina não podia mais ignorá-lo. Em meio aos discursos médicos que a genitália
Feminina foi definida através dos séculos. Também dessas falas sobre o que é o clitóris e como

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Humanas, Volume 1.
155
ele era representado ao logo do tempo pelos discursos médicos, sabe-se o que ele proporciona?!
Segundo a fala da Dra. O´connell, no documentário (clitóris, prazer proibido), ela mostra que
o clitóris é bem maior do que se pensa, é um órgão mais complexo. Thomas Laqueur no século
XVIII chama a atenção para o fato que a construção cultural da fêmea em relação ao macho,
expressa em termos de realidades concretas do corpo, estava mais profundamente enraizada em
assunções sobre a natureza da política e da sociedade (RAGO, 2002, p. 185).

1.1 Corpo feminino

Ao longo da história o corpo é representado por meio de discursos sendo ele feminino
ou masculino, sendo fruto de uma construção sociocultural em que ele se insere, o corpo sempre
foi produtor de grandes discussões é inegável, desde a sua identidade a valores sociais.

A norma de gênero repete que somos o que nossas genitálias formam. Esse sistema,
fundamentado na diferença sexual, nos faz acreditar que deve haver uma concordância
entre gênero, sexualidade e corpo. Vagina-mulher-emoção- maternidade-procriação-
heterossexua-lidade; pênis-homem-racionalidade- paternidade-procriação-heterosse-
xualidade. As instituições estão aí, normatizando, policiando, vigiando os possíveis
deslizes, os deslocamentos. Mas os deslocamentos existem (BENTO, 2006, p. 13).

De acordo com o meu sexo biológico vou assumir meu papel social, pois é assim que se
aprende, sendo esse ensinamento uma construção cultural. Com os meus hormônios e genitália
me represento socialmente como mulher mas a representação do corpo feminino quanto corpo
que me diz que sou “mulher” sempre teve essa representação? Seria o corpo uma construção
sociocultural? Lembrando que Simone de Beauvoir diz em 1949: não se nasce mulher, torna-
se mulher. Onde assumo minha identidade “mulher”, vou descobrindo o meu corpo com
cautelas, sim! Pois a partir do momento que me identifico como mulher eu tenho que ter
cuidados até as descobertas sob meu próprio corpo, assim como alguns discursos machistas faz
com que as mulheres tenham pudor do seu próprio corpo. Onde passa-se a dar valores,
representações ao seu corpo, constituindo um sujeito de acordo com os valores aprendidos
social e culturalmente, assim como Michel Foucault mostra a seguir:

Toda ação moral, é verdade, comporta uma relação com o real no qual ela se efetua e
uma relação ao código a o qual se refere; mas implica também em uma certa relação
a si; esta não é simplesmente “consciência de si”, mas constituição de si como ‘sujeito
moral’, na qual o indivíduo circunscreve aparte de si mesmo que constitui o objeto
desta prática moral, define sua posição quanto aos preceitos que segue, que fixa um
certo modo de ser que valeria como uma realização moral de si mesmo e, para isto,
age sobre si mesmo, trata de se conhecer, se controlar, se testar, se aperfeiçoar, se
transformar (FOUCAULT, 1984, p. 351).

Sendo assim, a mulher comportando-se enquanto “mulher” na sociedade, sendo ela


controlada por ser mulher, vista como mãe, sendo ela privada do poder da sexualidade.

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Contudo, ao logo da história as mulheres vão tendo conhecimento do seu corpo, por mais que
escutem, aprendam discursos cerceadores:

Nesse processo analítico, a identidade feminina fragmenta-se e o gênero se apresenta


em toda a sua plasticidade. Passamos a nos mover em terrenos mais escorregadios,
em que o conceito de identidade passa a nos orientar de maneira bastante nebulosa,
ainda que criativa e instigadora (BENTO, 2006, p. 15).

Caberá a natureza construir dois corpos diferentes e a sociedade dar nomes a eles e poder
um sobre o outro? “E gênero adquire vida a partir das roupas que compõem o corpo, dos gestos,
dos olhares, ou seja, de uma estética definida como apropriada” (BERENICE, 2006, p. 90).
Sendo assim a história do corpo está ligada ao dispositivo da construção do biopoder, sendo ele
o corpo, construído ao longo da história. Berenice Bento cita que “Scott definiu gênero como
(1) um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) uma forma primaria de dar significado as relações de poder” (BENTO, 2006, p. 75).

Se parar para pensar como a mulher vai conhecer ou até mesmo descobrir seu corpo ao
longo do tempo é um tanto interessante, além dos discursos controladores sob ela, que muitas
vezes em meio a essa sociedade de controle passa a ter medo de conhecer-se, ou seja conhecer
seu próprio corpo. Se recorrer-se a alguns séculos atrás, onde a Igreja cobria o corpo da mulher,
o pudor fazia com que ela ficasse longe de seu corpo, tinha um certo controle para não pecar,
pois diziam-se que seu corpo era propicio ao pecado, onde suas vontades sexuais são
demonizadas, e sua vagina era só para a reprodução, vista como um tesouro da natureza, pois
era o símbolo da maternidade, prazer era pecado. Sendo assim a mulher não passava de um
vazo receptor de espermas. Ao longo da história a mulher foi conhecendo e tendo direito pelo
seu corpo apesar da o pressão que ela ainda tem por parte da sociedade por ter uma vagina, por
ser mulher, por ter emoções, por ser procriadora. Será que a mulher é o que a sua genitália é?
Foucault diz que a noção de “sexo”:

[...] Permitiu reagrupar segundo uma unidade artificial os elementos anatômicos, as


funções biológicas, as condutas, as sensações, os prazeres e permitiu o funcionamento
desta unidade fictícia com o princípio, causa, sentido omnipresente, segredo a ser
descoberto em toda parte: o sexo pode assim funcionar como significante único e
como significado universal (FOCAULT, 1994, p. 168).

Uma sociedade que cobra muito sobre a vida do outro, principalmente quando o outro
se trata da mulher, de sua sexualidade. A partir de pensamentos estabelecidos pela sociedade
como “normal”, é difícil de uma pessoa construir sua singularidade, a partir do medo dos
olhares inquisitórios, já que os dispositivos sociais passam a considerar o diferente como
anormal, mas o que será o anormal? Se pensar que o anormal não existe, pois o normal não
existe, o ser humano não é igual a um objeto, feito do mesmo jeito, com as mesmas medidas,

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como os objetos de fabricas, sendo assim não é normal, a partir do momento que cada um tem
uma subjetividade, não há igualdade, sendo assim o normal também não existe.

A construção do corpo feminino, a representação social da mulher sendo está centrada


função de procriadora, assim como nos discursos da Igreja. Esse corpo feminino, com seus
hormônios e seu órgão genital, o clitóris. Sendo o clitóris o principal ponto dessa discussão, a
fundação do sexo biológico. Como analisa Foucault:

O poder seria essencialmente o que, ao sexo, dita sua lei. O que quer dizer,
primeiramente, que o sexo se encontrado por ele sob um regime binário: lícito e ilícito,
permitido e proibido. O que significa, em seguida, que o poder prescreve ao sexo uma
‘ordem’, que funciona ao mesmo tempo como forma de inteligibilidade: o sexo se
decifra a partir de sua relação com a lei. O que quer dizer, enfim que o poder age
pronunciando a regra: a tomado do poder sobre o sexo se faria pela linguagem ou
melhor por um ato de discurso criando, do fato mesmo que se articula, um estado de
direito. Ele fala, e é a regra (FOUCAULT, 1976, p. 119).

Para Foucault

[...] A noção de ‘sexo ’permitiu regrupar segundo uma unidade artificial os elementos
anatômicos, as funções biológicas, as condutas, as sensações, os prazeres e permitiu
o funcionamento desta unidade fictícia como princípio causa, sentido omnipresente,
segredo a ser descoberto em toda parte: o sexo pode assim funcionar como significante
único e como significado universal (FOUCAULT,1976, p. 204).

O poder não se dá, ele se exerce, diz Foucault (1994, p. 235-236).

O clitóris não só se limita a dar o prazer, é algo bem mais complexo, mas ele proporciona
o prazer feminino, sendo ele já visto ao longo da história também como o causador da histeria
feminina. Em alguns textos renascentistas de estudiosos como Baker Brown, Georg Kobelt,
entre outros, em que o clitóris é concebido como um órgão que faz o prazer das mulheres e sem
o qual elas “não teriam desejo nem prazer e nem nunca poderiam conceber” (RAGO, 2002, p.
168) se tornam separados a ideia de desejo e prazer. Hoje sabe-se que ele sim é uma das fontes
de prazer. Porém o clitóris era tido como a causa da histeria feminina “clitóris e histeria”. É
possível ver um pouco como era retratada essa histeria no filme Hysteria, 2001, que vai mostrar
que a histeria era o problema da época, em1880. O filme mostra que as mulheres histéricas,
eram histéricas por não terem prazer ou por falta de uma boa manipulação no clitóris. Assim,
constata-se que a mulher conhecer seu corpo era fundamental, o que vai fazer ela ter uma vida
diferente dos discursos controladores. O filme também mostra como surge o vibrador, que é
mais para suprir as necessidades femininas, para tratar da “histeria” proporcionando prazer.
Algumas cenas do filme mostram que as seções “médicas” tinham como objetivo de estimular
o sistema nervoso através do clitóris. Mas só foi em 1952 que o diagnóstico de histeria acabou.

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158
O filme, Hysteria conta o surgimento do brinquedo sexual, que se tornou o objeto mais
usado no mundo segundo dados relatados na película. É importante deixar claro que a falta de
conhecimento do psiquiatra no filme, submetiam mulheres com sintomas de depressão, a passar
por uma massagem na vulva para sanar o problema assim tido como histeria (uma doença
feminina). Até 1952, mulheres eram diagnosticadas com histeria, quadro clínico que surgia no
útero. Os sintomas: ninfomania, frigidez, melancolia, ansiedade; tratamentos: nos casos mais
graves, internação e esterilização. A histeria foi desconstruída e sua universalidade, sua unidade
como entidade mórbida ou categoria de doença e, o que é mais importante, sua própria
existência em qualquer tempo ou lugar foram postas em questão (MITCHELL, 2006, p. 26).

O clitóris que era visto como um meio de tratar da histeria feminina, pois esta por muito
tempo foi vista como uma doença das mulheres. Os médicos vinculavam a histeria ao útero e
só depois que vão ver que ela está relacionada ao cérebro e que qualquer pessoa está sujeita a
ter, e não só as mulheres:

Acompanhando a história da histeria na Europa, podemos ver uma troca de definição


da mulher como fêmea biológica por sua definição como caracterologicamente
“feminina”. A associação natural de que histeria é igual a útero problemático deu lugar
a uma explicação ideológica da feminilidade. Isso abriu caminho ao preconceito
contra a mulheres que, embora abertamente muito menos severo, não era menos
maligno que o que acompanhara a troca semelhante da explicação natural da histeria
no mundo clássico pela transformação de histeria em bruxaria na Idade Média
(MITCHELL, 2006, p. 28).

Com os movimentos feministas o clitóris passa a ser visto em 1979 como a libertação
feminina, a “Revolução Clitóriana”. Muito diferente dos conservadores que viam orgasmo
clitóriano como uma ameaça à heterossexualidade. Nota-se que o dispositivo da sexualidade
tem como razão de ser não apenas reduzir, mas proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar os
corpos de maneira cada vez mais detalhada e de controlar as populações de forma cada vez
mais global (FOUCAULT, 1976, p. 141).

Com a “revolução clitoriana” nos anos 1970 o pequeno órgão da mulher, foi cada vez
mais associado à anormalidade e ao lesbianismo. Onde os médicos alegavam que a necessidade
sexual da mulher, indicava como desejável a relação tradicional, em que procurava ter orgasmo
vaginal. No ano de 79 as feministas radicais, lésbicas assumidas e mulheres emancipadas
proclamavam sua independência sexual em relação do império do falo. Acusando os homens
de desconhecerem o corpo e a sexualidade feminina.

No ano 1997, o jornal Folha de São Paulo noticiou a publicação de um romance, O


anatomista (1996) de autoria do psicanalista argentino Federico Andahazy. Com o anatomista,

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Humanas, Volume 1.
159
o clitóris volta a cena novamente. Dessa vez tocando mais coma moral da sociedade, pois vai
mostrar que as mulheres sentem prazer, e que não são tão frágeis como a sociedade pensava, a
sociedade mostrava a mulher com o sexo frágil, através de um discurso que, as mulheres por
natureza, haviam predestinadas ás tarefas da reprodução, e as que se recusavam a essa função
deveriam ser percebidas como “desviantes” ou “associais”. Era o caso das feministas,
consideradas mulheres que recusavam sua condições e seu espaço natural; a maternidade e o
lar e desejavam ser homens, ou quase como homens, mais um discurso machista construído
sobre as mulheres. A mulher que a sociedade mostrava era a mulher que não fazia sexo. Uma
mulher

com pudores, vista só como mãe dos seus filhos, a figura de mãe, dessexualizando-a
(OLAVARRIETA, 1929). A mulher passou a entender mais seu corpo, aprestar mais a atenção
nele, passam a ver que elas são responsáveis pelos seus próprios orgasmos, que não precisam,
mais de um homem para sentir prazer como elas já estavam a costumadas a ouvir, esse discurso
que diz que a mulher precisava do falo do homem pra ter prazer, colocando a mulher como
inferior ao homem. Mas o clitóris foi peça fundamental para a redefinição social da figura
mulher, o clitóris e política se encontram, trazendo muito para se pensar.

1.2 Clitóris e política

É importante de se pensar o corpo como uma “arma”, sendo ele uma forma de
reivindicações, assim como as feministas usavam e usam dele para expressar através do auxílio
da arte, de seu corpo, para as performances para lutar por suas conquistas. Assim marcando a
questão política do corpo, onde a mulher deixa bem claro que o seu corpo lhe pertence, e que
ela pode estar onde ela quiser, tentando desconstruir o discurso patriarcal, onde o corpo pode ir
e vir, assim como o corpo masculino, pois o feminino tem suas limitações por causa desse
discurso machista e patriarcal. Foucault, fala que: “É pelo sexo, com efeito, ponto imaginário
fixado pelo dispositivo da sexualidade, que cada um deve passar para ter acesso à sua própria
inteligibilidade [...] à totalidade de seu corpo [...] à sua identidade” (FOUCAULT, 1984, p. 60).
Porém há muito tempo ouvia-se que a mulher não deveria frequentar todos os ambientes que o
homem, sendo ela limitada à casa, o lar, seu lugar. Essa ditadura fez com que as feministas
pensassem em defesa da sua liberdade, liberdade politicamente de seu corpo.

Pois mulheres são pessoas, merecem direitos iguais assim como os homens têm direitos
e deveres, as mulheres também têm que ter, não é porque ela é uma mulher que ela vai ser vista
como inferior ou até mesmo como propriedade, ela é dona do seu corpo! São questões como

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Humanas, Volume 1.
160
essas que foram primordiais para os movimentos feministas. Pois as mulheres historicamente
tiveram seus direitos excluídos, onde as feministas começam essa luta, sendo uma luta política,
onde buscam a liberdade em parte de seu próprio corpo, de sua subjetividade. Sendo essa luta
vista em várias culturas, como pode-se ver na pratica desumana chamada “circuncisão” através
do filme Flor do deserto (2010). A história do filme vai ser contada a partir da história de vida
da personagem, mostrando como é o drama das mulheres que viviam nessa cultura e como eles
cultivavam esta pratica. O filme vai mostrar que as mulheres que eram cortadas, eram vistas
como mulheres boas, essa pratica é feita nas meninas enquanto crianças, onde o clitóris é
decepado como prova de virgindade, além de na noite de núpcias o marido faz outro corte,
porém muitas não chegam nem a casar, pois acabam morrendo ainda criança, em função de
infecção que acabam tendo na hora da retirada do clitóris, pois é feito em qualquer lugar e sem
nenhuma higiene.

Com a mulher conhecendo seu corpo, ela passa a se inserir no espaço cultural, passa a
falar sobre tais assuntos que por muito tempo elas eram excluídas, passam a ver o poder
simbólico do clitóris, o quanto ele representa para sua libertação. Logo, falar de seu corpo de
seu clitóris é um ato político e ajuda as mulheres a gerar discussões como essa e a tencionar e
questionar e lutar pela abolição de práticas absurdas e cruéis como a circuncisão.

Assim surge a necessidade do feminismo, para esclarecer e reivindicar os direitos das


mulheres, que elas podem mais do que muitas pensam, e que elas podem estar em qualquer
lugar. Sendo elas donas de si, seu corpo suas políticas.

Em meio a essa discussão, sobre a política do corpo uma argentina Mariela Acevedo
criou uma revista de história em quadrinhos: Clítoris (em espanhol, o acento fica no i). A revista
discute questões sociais e é uma forma de levar o conhecimento para todos, pois vai falar sobre
temas importantes e que devem ser discutidos.

Figura 1: Capa n. 3 HQ Clítoris. Figura 2: Capa n. 4 HQ Clítoris.

Fonte: Uol (2010). Fonte: Uol (2010).

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2 CONCLUSÃO

Um dos resultados mais significantes desta pesquisa foi a oportunidade da compreensão


de como é tratado o corpo feminino e de como era representado aos discursos médicos que, por
muitas vezes, eram bem preconceituosos por se tratar do corpo feminino.

Por muito tempo a sexualidade feminina foi silenciada e mostrada até mesmo em alguns
momentos de forma errada, onde o principal objetivo desta pesquisa foi mostrar uma historia
que não era mostrada e quando era, chegava para poucos. Pouco se via até mesmo nos livros de
anatomia quando se tratava do corpo feminino. Foi importante ressaltar que o corpo é algo mais
amplo do que se pode imaginar. Assim como o prazer não está relacionado só ao clitóris, mas
sendo ele umas das fontes de prazer rejeitadas e silenciadas ao longo da história.

REFERÊNCIAS

BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transe-xual: Rio de


Janeiro: Garamond, 2006

CHALKER, R. A verdade sobre o clitóris: o mundo secreto ao alcance da sua mão. Rebecca
Chalker; tradução Cristiana Serra. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. 192 pp.

CLÍTORIS E O DEBATE SOBRE IGUALDADE DE GÊNERO. Uol. 2010. Disponível em:


https://revistatrip.uol.com.br/tpm/mariela-acevedo-criadora-da-revista-clitoris-publicacao-
argentina-de-quadrinhos-e-genero. Acessado em: Out. 2016.

CLITÓRIS, PRAZER PROIBIDO. Michèle Domencke. França: Cats & Dogs filmes,
Syliconenet Arte France, 2003. 1 DVD (45 mim).

FLOR DO DESERTO. Sherry Hormann. Reino Unido: Waris Dirie, Cathleen Miler. 2009.
1DVD (2 h 7 mim).

FOUCAULT, M. 1984. História da sexualidade: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal,


1976, v. 1.

HYSTERIA. Tanya Wexler. Reino Unido: Sony pictures classics, 2001. 1 DVD (95 min).

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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111112215

CAPÍTULO 12
ANÁLISE DAS PRIMEIRAS PÁGINAS DE CINCO JORNAIS BRASILEIROS NA
PANDEMIA DA COVID-19:
NOTAS INTRODUTÓRIAS

Telma Alvarenga
Leonel Azevedo de Aguiar

RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar os percursos iniciais de uma pesquisa exploratória que visa analisar, a partir
das Teorias do Jornalismo, a cobertura jornalística do primeiro ano da Covid-19 no Brasil. Foram escolhidos, como
objetos de pesquisa, veículos de cinco regiões: A Crítica (Norte), Correio (Nordeste), O Globo (Sudeste), Zero
Hora (Sul), Correio Braziliense (Centro-Oeste). Neste trabalho, de forma introdutória, como parte de uma pesquisa
mais ampla, foram analisadas 15 primeiras páginas em três momentos distintos. Juntas, elas formam um mosaico
de notícias, que, revisitadas, pode ajudar a construir a memória da pandemia, uma memória ainda em construção.
A hipótese é que parte desta memória social compartilhada emerge do jornalismo, que atua simultaneamente como
agente e veículo de produção de memória.

PALAVRAS-CHAVE: Teorias do Jornalismo; Jornalismo; Memória; Covid-19.

1 INTRODUÇÃO

No dia 26 de fevereiro de 2020, o Brasil registrava o primeiro caso de Covid-19 no país.


A partir desse dia, por cerca de dois anos, a pandemia não sairia mais das páginas dos jornais.
Pela imprensa, o país acompanhou o sofrimento dos parentes das vítimas, a bravura dos médicos
e enfermeiros nos hospitais, as descobertas da ciência, a corrida por uma vacina, o
negacionismo e os escândalos na área da Saúde que acabaram provocando a abertura de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Congresso Nacional.

A memória da Covid-19 é uma memória em construção. Não é exagero afirmar que


parte desta memória social compartilhada emergirá da imprensa, que atua simultaneamente
como agente e veículo de produção de memória (SCHUDSON, 2014). Do ponto de vista
histórico, a primeira página vem funcionando como estratégia comunicacional para capturar o
interesse do público para o produto jornalístico e, simultaneamente, para evidenciar a
credibilidade do campo jornalístico para realizar o agendamento dos temas de interesse público
para o debate da sociedade (AGUIAR; BARSOTTI, 2017).

Em outro artigo, Barsotti e Aguiar (2020), destacam que a seleção das notícias para
compor a primeira página não é uma tarefa imprevisível e que pode ser prevista e encaixada em
rotinas de produção da informação jornalísticas, além de enfatizarem que o trabalho jornalístico
implica em diversas interações sociais que compõe a “teia de facticidade” (TUCHMAN, 1978).

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163
Portanto, é nesta perspectiva que o fazer jornalístico é gerido não apenas pelas rotinas
produtivas estabelecidas em cada empresa, mas também “pelos constrangimentos
organizacionais, por valores-notícia compartilhados pela comunidade dos jornalistas, pelas
escolhas do gatekeeper e pelas diversas forças sociais, dentro de contextos históricos
específicos” (BARSOTTI; AGUIAR, 2020, p. 197).

Apesar da queda de circulação e audiência dos jornais impressos, ano a ano, nota-se que
as primeiras páginas ainda detêm capital simbólico (MOUILLAUD, 1997). Nas redes sociais,
pelas quais o público brasileiro prefere consumir notícias (CARRO, 2022), as homepages são
lembradas diariamente: reproduzidas pelos próprios veículos jornalísticos em seus perfis,
compartilhadas e comentadas pelos usuários. Nas manchetes, chamadas e reportagens, estão
gravados os sintomas de uma época que, revisitados, podem ajudar a compreendê-la, com todas
as nuances e controvérsias próprias de uma história registrada no fluxo dos acontecimentos.

O passado recente da pandemia da Covid-19 está gravado nos fragmentos das chamadas
e manchetes dos jornais, nas fotografias estampadas nas primeiras páginas e nas reportagens.
Desse mosaico de notícias e imagens, que já foi chamado – conforme elencam Barsotti e Aguiar
(2018) – de “colagem” (GIDDENS, 2002), “cozido” (WEBER, 2002), “justaposição”
(ANDERSON, 1991) e “montagem” (HUYSSEN, 2015), poderá emergir a memória social dos
primeiros 365 dias de uma pandemia que abalou o planeta.

Neste artigo, o objetivo principal foi apresentar os resultados de uma pesquisa


exploratória que visa atestar a viabilidade de analisar, à luz das teorias do jornalismo, a
cobertura jornalística do primeiro ano da Covid-19 no Brasil, por veículos de cinco regiões – A
Crítica (Norte), Correio (Nordeste), O Globo (Sudeste), Zero Hora (Sul), Correio Braziliense
(Centro-Oeste) – em três momentos distintos.

Para a pesquisa mais ampla ainda em desenvolvimento, o primeiro recorte temporal, vai
de fevereiro a março de 2020, quando a pandemia chegava ao país, provocando as primeiras
mortes. O segundo recorte abrange o mês de julho de 2020, quando a pandemia atingiu seu pico
naquele ano. Desde o começo da pandemia, julho registrou o maior número de mortes por
Covid-19 em um único mês no país: 32.912 vidas perdidas. Por fim, o terceiro recorte temporal
situa-se entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, quando as notícias sobre a vacina traziam
alguma esperança de que o pesadelo chegaria ao fim. Neste trabalho, espelhou-se esses três
períodos de modo extremamente reduzido: para o primeiro período, um dia de fevereiro de

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2020; para o segundo período, um dia de julho de 2020; e, para o terceiro período, um dia de
janeiro de 2021.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A premissa dessa pesquisa é que os discursos jornalísticos são dispositivos que


produzem representações sociais da realidade. A investigação sobre os processos de produção
da informação jornalística contemporânea diante da maior tragédia sanitária dos últimos 100
anos, em todo o planeta, deve se dar com base nas teorias do jornalismo. Entre elas, a teoria do
gatekeeping, a teoria do newsmaking e a do agendamento.
A primeira teoria serviu para explicar o processo de produção da informação jornalística como
uma série de escolhas: dentre os inumeráveis acontecimentos, só se tornam notícia aqueles que
passam por diversos gates; isto é, pelas áreas de decisão em relação às quais o gatekeeper – o
editor de primeira página – tem o poder de decidir o que deve se tornar notícia.

Segundo Traquina (2001), as pesquisas de newsmaking aparecem nos anos 1970 e a


sociológica norte-americana Gaye Tuchman é uma das principais teóricas dessa corrente, que
refuta a chamada teoria do espelho, segundo a qual o jornalismo retrata fielmente a realidade.
Para a socióloga, as notícias não são um retrato fiel da realidade, mas ajudam a constitui-la
como um fenômeno social partilhado; ou seja, o jornalismo é um dispositivo que também
contribui com o processo de construção social da realidade. Como explica Traquina (2001):

As notícias devem ser encaradas como o resultado de um processo de interação social.


As notícias são uma construção social onde a natureza da realidade é uma das
condições, mas só uma, que ajuda a moldar as notícias. As notícias também refletem:
1) os constrangimentos organizacionais; 2) as narrativas que governam o que os
jornalistas escrevem; 3) as rotinas que orientam o trabalho e que condicionaram toda
a atividade jornalística; e 4) as identidades das fontes de informação com quem falam
(TRAQUINA, 2001, p. 122).

Uma das hipóteses da pesquisa é que o discurso jornalístico, na contemporaneidade,


torna-se cada vez mais central na produção da memória social ao produzir sentido sobre a
realidade social, substituindo na sociedade midiatizada o papel moderno que cabia à História.

O jornalismo também ajudaria a fazer a conexão entre o particular e o universal. Barbosa


(2005) nota que, com a massificação dos jornais, a sociedade se via refletida e se encontrava
com ela mesma por meio das notícias. A autora invoca o pensamento de Heller, para quem “o
homem de uma dada época, o humano genérico, é sempre representado pela comunidade
através da qual passa o percurso, a história da humanidade” (HELLER, 2000, p. 21). Heller
observa que todo homem sempre teve uma relação consciente com essa comunidade; nela

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formou sua consciência coletiva – a consciência de nós –, além de configurar-se também sua
própria consciência individual – consciência do eu.

O papel do jornalista se confundiria com o do historiador de que tratava Benjamin, que


criticava o historicismo positivista do século XIX e sua crença na possibilidade de conhecer o
passado tal como ele de fato aconteceu. “Articular historicamente o passado não significa
conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de perigo” (BENJAMIN, 1987, p. 224). O pensador alemão afirma
ainda que a “história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio,
mas um tempo saturado de agoras” (BENJAMIN, 1987, p. 229).

Analisando reportagens do Jornal Nacional durante a pandemia, Gomes e Ribeiro


(2021) concluem que as narrativas midiáticas manifestam o imaginário disruptivo que
estabelecerá, em uma relação dialética com o esquecimento, o processo de constituição da
memória de uma nação. As autoras sustentam que, “ainda que por meio de fragmentos e de
forma ínfima, são levadas a recolher as quase memórias da História que se desenha para o futuro
desse século” (GOMES; RIBEIRO, 2021, p. 115).

Mouillaud (1997) enxerga o jornal como um operador sócio simbólico, que produz
sentido diariamente por meio da constituição de um todo cujas partes estejam coordenadas. Ou
seja, também no pensamento do autor está presente a ideia de produção de memória e de sentido
do jornalismo por meio de fragmentos:

O sentido se constrói dia após dia [...]. Trabalho de coerência no espaço, mas também
no tempo: assiste-se à invenção do que Umberto Eco, a partir de Aristóteles, chama
de a “intriga”, quer dizer, “a procura e o estabelecimento de uma coerência, de uma
unidade em uma diversidade, para nós, caótica”. Trata-se de constituir um todo cujas
partes estejam coordenadas (MOUILLAUD, 1997, p. 50-51).

A relação entre jornalismo e memória também emerge dos estudos de Zelizer (1992),
que sustenta que a narrativa do passado será sempre constituída em parte como aquela que a
mídia escolheu lembrar.

A narrativa do passado americano [ou de qualquer passado contemporâneo] será em


parte a narrativa do que a mídia escolheu lembrar, a narrativa sobre como as memórias
da mídia se tornaram a da própria América [ou de qualquer outro país]. Se não pela
autoridade dos jornalistas, então certamente pela autoridade de outras comunidades,
indivíduos e instituições que reivindicarão seus pontos de vista. É a partir desta
competição que a história [e alguém pode acrescentar, cultura e memória] é feita
(ZELIZER, 1992, p. 214).

Cabe trazer aqui também as reflexões de Schudson (2014). Para o autor de livros sobre
a História da imprensa norte-americana, o papel do jornalismo na construção da memória vai

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além dos eventos de grande repercussão. Schudson (2014) argumenta que o jornalismo é, ao
mesmo tempo, veículo e agente da memória social ao mostrar, sobretudo, como as pessoas
agem no seu cotidiano. Ou seja, o ordinário é tão importante quanto o notório, articulando a
relação entre mídia e cotidiano.

Na sociedade midiatizada pelos processos de informatização e virtualização, entretanto,


cabe o questionamento: até que ponto links e posts de notícias contribuirão para a formação de
memória ou para o esquecimento devido à efemeridade dos seus suportes e mensagens? Barsotti
(2018) se propôs a refletir sobre a articulação entre memória e esquecimento no jornalismo.
Para a autora, permanece no imaginário dos jornalistas por ela entrevistados a função social de
produzirem primeiras páginas memoráveis, mesmo diante do cenário contemporâneo de
consumo de notícias majoritariamente pelas redes sociais. A autora nota que o simbolismo da
primeira página ainda permanece mesmo diante das transformações no cenário de mídia:

Primeiras páginas foram gritadas por pequenos jornaleiros nas ruas,


mas seus gritos não foram efêmeros como várias notícias do dia fadadas ao
esquecimento diante do fluxo incessante de acontecimentos que se sucedem dia após
dia nas capas de jornais. Seus ecos são conservados e contribuem
para construir a memória social. Primeiras páginas são reproduzidas como
documentos históricos em filmes, livros e exposições. E, até hoje, apesar da queda de
circulação e audiência dos impressos, elas são lembradas nas redes sociais, sejam
reproduzidas pelos próprios veículos, sejam compartilhadas pelos usuários
(BARSOTTI, 2018, p. 148-149).

3 RESULTADOS DA PESQUISA

Para este artigo, que faz parte de uma pesquisa mais ampla ainda em desenvolvimento,
nossa preocupação foi realizar uma pesquisa exploratória para atestar a viabilidade de analisar
a cobertura jornalística do primeiro ano da Covid-19 no Brasil dividindo-a por veículos de cinco
regiões – A Crítica (Norte), Correio (Nordeste), O Globo (Sudeste), Zero Hora (Sul), Correio
Braziliense (Centro-Oeste) – em três momentos distintos. Para a pesquisa exploratória
apresentada neste estudo, analisou-se as manchetes e chamadas das primeiras páginas dos cinco
jornais, em três dias diferentes, cada um correspondendo a um determinado período a ser
analisado futuramente: 1º de fevereiro de 2020, o começo; 1º de julho de 2020, o primeiro dia
do mês em que a pandemia atingiria seu pico naquele ano; 31 de janeiro de 2021, com a
expectativa pela vacina. Foram analisadas, portanto, 15 primeiras páginas.

No dia 1° de fevereiro de 2020, um sábado, a epidemia ainda era um assunto para a


editoria internacional. Só um dos cinco jornais que são objetos desta pesquisa levou o tema à
manchete do dia: Brasil deve crescer menos com Coronavírus na China, foi a manchete do
Correio Braziliense. O jornal O Globo também estampou o assunto em sua primeira página,

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mas em uma chamada pequena: EUA bloqueiam estrangeiros que viajam da China. A Crítica
também tratou do assunto em uma chamada na primeira página para uma matéria sobre
brasileiros vivendo na China: Coronavírus - resgate de brasileiros é improvável. O jornal Zero
Hora publicou uma chamada pequena, mas já com uma notícia nacional: Casos suspeitos de
coronavírus sobem para 12 no Brasil. Na capa do jornal Correio, da Bahia, não havia nenhuma
menção à pandemia.

Cinco meses depois, no dia 1° de julho de 2020, a Covid-19 foi objeto de duas chamadas
na capa do jornal O Globo. A situação no país já era tão crítica que os brasileiros foram
impedidos de entrar nos países da União Europeia. Europa confirma veto à entrada
de brasileiros, foi a chamada do jornal carioca, seguida de outra, sobre o desemprego
provocado pela crise gerada pela pandemia: Na pandemia, 7,8 milhões perderam trabalho. A
Crítica também deu duas chamadas para a pandemia na primeira página. Nenhuma delas como
o assunto principal do dia. Mas um selo vermelho no alto da primeira página alertava: País tem
mais de 59 mil mortes por Covid. No meio da primeira página, ao lado de uma chamada sobre
a marca dos 700 gols de Messi, uma chamada menor, com foto do prefeito de Manaus usando
uma máscara, dava a notícia: Prefeito está internado com covid-19. No jornal Correio, a notícia
sobre a pandemia disputou espaço com uma foto impressionante de um carro todo furado de
balas, decorrente de um tiroteio envolvendo guerra do tráfico, mas ganhou a manchete, que
falava sobre as medidas de isolamento social: Mais sete dias de restrições com novo cerco ao
Centro. No Correio Braziliense, a pandemia também não ganhou a manchete do dia, que
chamava para uma matéria sobre a queda do Ministro da Educação: Decotelli cai antes de tomar
posse no MEC. O ministro havia sido nomeado cinco dias antes. Mas a Covid ganhou destaque
no meio da primeira página, com uma foto (a maior da capa) de um hospital e a chamada: Em
alerta, DF tem quase 50 mil casos de Covid-19. A pandemia também foi assunto de uma
chamada bem menor: Cinema encara o vírus. O Zero Hora também optou por dar na manchete
a queda do ministro Decotelli. O espaço para a Covid ficou restrito a duas chamadas pequenas
na parte de baixo da primeira página. Ambas as chamadas abordam assuntos de Economia:
Planalto oficializa novas parcelas de auxílio emergencial e Desemprego sobe para 12,9% em
maio e atinge 12,7 milhões de pessoas.

Pouco mais sete meses depois, no dia 31 de janeiro de 2021, a pandemia era assunto de
uma manchete trágica em A Crítica. O jornal estampou no alto da primeira página a foto de
uma escavadeira abrindo covas em um cemitério, com o título: Vírus avança e órgãos solicitam
fechamento. No subtítulo, a informação de que o estado, no dia anterior, registrara o maior

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número de pessoas internadas desde o início da pandemia: 718. No mesmo dia, O Globo
destacava, em sua primeira página, quatro notícias sobre a pandemia. A principal notícia estava
na manchete: Variante do coronavírus se espalha, e Reino Unido se isola. Duas chamadas
menores levavam para matérias sobre a vacina: Paes e Dória fecham parceria por CoronaVac
e Mutações do vírus não ameaçam eficácia da vacina. Uma quarta chamada levava para o
obituário da atriz Nicette Bruno, que falecera no dia anterior, por complicações provocadas pela
Covid-19. No jornal Zero Hora, a manchete era para a vacina – Garantidos mais 54 milhões de
vacinas para o país –, mas o alto da primeira página foi dedicado ao turismo, com uma bela
foto de uma lancha no meio de uma lagoa, no pôr do sol: Entre dunas e lagoas. No Correio
Braziliense, a manchete e as três principais chamadas não eram sobre a pandemia. Tratavam de
esportes e política. Ao contrário do drama exposto na primeira página de A Crítica, as chamadas
sobre a Covid-19 tinham um tom mais otimista. Duas delas sobre a chegada da vacina: Idosos
de 80 anos terão de pegar fila e Mais de 14 milhões de vacinas a caminho. Uma terceira notícia
estampada na primeira página relacionada à pandemia também era positiva: Escolas
particulares voltam às aulas. No jornal Correio, a primeira página quase inteira foi tomada pela
chamada para uma matéria sobre Detox Digital. O jornal destinou para a pandemia uma
chamada bem menor, embora no alto da primeira página: Tratamento da Covid-19 - médicos
apostam em tratamentos não convencionais. Embaixo, em uma linha, com pouco destaque,
uma chamada com menor destaque: Crise sanitária - Polícia Federal abre inquérito para
investigar ministro Pazuello.

4 DISCUSSÕES

Por essa amostra exploratória inicial, de 15 capas, é possível apresentar algumas


conclusões sobre o processo de produção jornalística no cenário da pandemia da pandemia da
Covid-19. A primeira é sobre a escolha de cada veículo por um assunto diferente para estampar
a manchete, mesmo quando o macrotema era a Covid-19. Embora, em sua maioria, as 15 capas
analisadas tratassem da pandemia, os acontecimentos escolhidos para estar na primeira página
e o destaque dado a eles, conforme apresentado, foram sempre diferentes, nas capas analisadas.

As Teorias do Jornalismo demonstram que esse processo de escolha e de hierarquização


dos acontecimentos, não passa apenas pela escolha pessoal dos jornalistas que ocupam posições
de comando nas redações, pelas crenças ou gostos pessoais dos jornalistas e dos editores de
primeira página (os gatekeepers), mas por outras questões como a política editorial e fatores de
mercado. Essas questões estão vinculadas à teoria dos constrangimentos organizacionais,

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Humanas, Volume 1.
169
originada dos estudos do sociólogo norte-americano Warren Breed (1999), na década de 1950,
sobre o funcionamento do controle nas redações de jornal.

Ao analisar o estudo pioneiro de David White (1999), Mauro Wolf (2009) aponta que
as normas ditadas pela cultura profissional prevaleceram estatisticamente sobre as preferências
pessoais no processo de seleção das notícias. Aguiar e Barsotti (2012) entendem que o processo
de seleção das notícias não é uma ação pessoal do gatekeeper, dependente de avaliações
subjetivas e arbitrárias.

Ou melhor, os gates – áreas de decisão – são regidos pelos critérios de noticiabilidade.


Esses critérios resultam de uma articulação entre a cultura profissional dos jornalistas
– com suas normas técnicas e prescrições éticas –, os constrangimentos
organizacionais, as rotinas produtivas da empresa jornalística e a relação estrutural
entre a mídia e as fontes de informação, com suas posições institucionais (AGUIAR;
BARSOTTI, 2012, p. 8).

Essa análise preliminar também dá pistas sobre as diferenças regionais no enfrentamento


da pandemia e de como essas diferenças retratadas no mosaico de notícias formado pelos jornais
podem ser reveladoras dos diversos brasis que cabem nesse país com dimensões continentais.
Um exemplo claro é o do dia 31 de janeiro de 2021, quando a chegada da pandemia ao país
estava perto de completar um ano. O clima dos jornais do Sudeste e Sul era de esperança com
a chegada da vacina, enquanto em Manaus morriam centenas de pessoas que foram necessárias
abrir covas rasas nos cemitérios.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As manchetes e as notícias escolhidas para estampar as primeiras páginas dos jornais,


com o passar do tempo, se transformam em importantes documentos históricos e ajudam a
contar a história da pandemia: do assombro com as notícias vindas da China e da Europa à
expectativa pela vacina, passando pela grave crise que a doença provocou no país, na saúde, na
política, na economia e na cultura.

A ideia de fragmentos constituidores de história está presente nas observações do


jornalista Alberto Dines. Para ele, nas primeiras páginas dos jornais, estão presentes fragmentos
intermitentes e esgarçados que se transformam em História:

Nas manchetes e destaques, neste sistema de hierarquizar e relacionar o novo com o


que é sabido, estão resumidas a arte e a ciência do jornalismo. Apesar de tanto esmero,
ultrapassada a vigência e a vibração da edição, ela torna-se dispensável e descartável.
Passado algum tempo, o milagre: a fênix renasce, aqueles fragmentos intermitentes e
esgarçados somam-se e transformam-se em História (DINES, 1997, p. 6).

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170
Este artigo, de forma introdutória, procurou mostrar que nas primeiras páginas dos
principais jornais brasileiros, ao longo do primeiro ano da Covid-19, estão as condições de
possibilidade que nos levarão a construir a memória do primeiro ano da pandemia.

Fica a hipótese a ser trabalhada na pesquisa mais ampla que a releitura das notícias –
que emergem como fragmentos de memória –, de várias partes do país, pode ser reveladora da
forma desigual com que a pandemia afetou as cinco regiões. Também fica claro que o
jornalismo é um lugar de produção de memória e, como tal, um poderoso instrumento na luta
contra o esquecimento, os silenciamentos, os apagamentos e o uso político da memória. Ou,
como diz Jeanne-Marie Gagnebin (2006), é tarefa altamente política lutar contra o
esquecimento e a denegação, assim como também é uma empreitada política afrontar contra a
repetição do horror que se reproduz constantemente.

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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111213215

CAPÍTULO 13
FAMÍLIA E AMBIGUIDADES:
REFLEXÕES SOBRE O CUIDADO E A CONVIVÊNCIA COMPULSÓRIA NA
PANDEMIA

Luciana Cristina Teixeira de Souza

RESUMO
Nesse texto convida-se à reflexão acerca dos impactos sociofamiliares de um dos períodos mais extemporâneos
vivenciados neste quarto do século 21, em razão da contingência do isolamento social advindo da pandemia da
Covid19 e que assolou grande parte da humanidade naqueles memoráveis e desafiadores anos de 2020-2022.
Cenário que exige um necessário exercício de posicionalidade circunstancial crítica e reflexiva para situar o
contexto estabelecendo elos de ligação entre a discussão central sobre o tema família e as reflexões inevitavelmente
geradas durante o período de confinamento social, haja vista as decorrências observadas em grande parte das
relações familiares demandantes de cuidados especiais. O olhar metodológico se fez a partir da perspectiva
epistemológica feminista do 'standpoint', proposta por Haraway (1995) tendo em conta os pressupostos da
valorização do saber localizado e autobiográfico, buscando refletir sobre as interfaces que envolvem a
complexidade do objeto eleito e a própria convivência familiar no período referido. Utiliza-se, para tanto, de relatos
das experiencias da própria autora no grupo familiar ao qual pertence. De início contextualiza-se o problema; em
seguida, confronta com algumas ideias conceituais expondo os indicadores que apontam a presença do mesmo e
como esse se configura um problema social merecedor de atenção e análise das ciências humanas. Por último,
problematiza-se algumas considerações acerca da família como espaço social que porta, além das tensões e
conflitos geracionais e de gênero, redes de solidariedade e ajuda mútua na dinâmica interna de suas relações
cotidianas.

PALAVRAS-CHAVE: Família; Pandemia; Cuidados; Saberes situados.

1 INTRODUÇÃO

O presente texto, que se intersecta com outras experiências relatadas por mulheres
cuidadoras, propõe, através da perspectiva de construção de um conhecimento situado,
contribuir, em alguma medida, para as reflexões e debates no cenário pós pandemia acerca dos
impactos observados nas relações familiares durante aquele período.

Durante o período pandêmico, instaurou-se um tempo marcado por uma sociabilidade


extemporânea, obrigando muitos membros familiares à convivência compulsória entre seus e
suas entes por razões que demandaram atenção e cuidados especiais frente aos riscos de
contaminação. Cenário marcado por tamanha complexidade que exigiu um necessário exercício
de posicionalidade crítica e reflexiva para situar o contexto, estabelecendo elos de ligação entre
a discussão sobre o tema ‘família’ e as reflexões inevitavelmente geradas durante o período de
confinamento social, haja vista as decorrências observadas em grande parte das relações
familiares sob tal condição particular.

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173
Tendo em conta os pressupostos postulados pela epistemologia feminista como a
valorização do saber localizado proposto por Haraway (1995), Harding (1998) entre outras
autoras, ao assegurar que nenhum conhecimento está desconectado de seu contexto, tampouco
da subjetividade de quem o emite, a escolha de um tema para reflexão não é descolada das
experiências, da ideologia e acepções da/o pesquisadora/r. Por essa razão justifica-se a opção
analítica por observar, da posição de dentro da própria família da autora, vários aspectos
descritos pelas teóricas que discutem tal tema.

2 METODOLOGIA

O caminho metodológico se constituiu a partir das lentes perspectivistas do 'standpoint',


defendido por Haraway (1995) tendo em conta a importância da reflexividade e do potencial
investigativo das narrativas autobiográficas, buscando estabelecer as interfaces que envolvem
a complexidade do objeto eleito confrontado com a própria experiência. As teorias de
perspectiva (também chamadas de standpoint theories) 17 são desenvolvidas a partir da acepção
de que o lugar de onde se fala e se vê (a perspectiva) vai determinar a fala e a visão do mundo
e sobre o mundo. Haraway defende, por exemplo, que o lugar dos/as subjugados/as e das
minorias marginalizadas representam uma visão privilegiada da realidade - uma vantagem
epistêmica (HARAWAY, 1995). A teórica propõe especificar desde que ponto se parte e, dessa
maneira, se faz explícito o posicionamento político já que os pontos de vista nunca são neutros.
Tal postura trata de romper a desigualdade entre quais sujeitos podem conhecer a realidade e
quais não podem. Essa ideia é a base da influência do feminismo perspectivista.

Desse modo, ao iniciar as leituras e discussões acerca das noções conceituais em torno
da família como instituição social, foi inevitável remontar as autorreflexões sobre própria
experiência pessoal no núcleo familiar de origem, para o qual essa autora retornou, e enunciar
os cruzamentos presentes no referencial teórico adotado. Estar posicionada na condição de filha
cuidadora de duas idosas, constituiu o lugar de privilégio analítico para as abordagens no âmbito
do conhecimento situado. Utiliza-se, portanto, das referências do retorno compulsório à
convivência parental naquele período, frente à necessidade de cuidados, para tecer as análises
e reflexões que seguem acerca das relações e tensões familiares.

17
As teorias de perspectiva possuem “como fonte original as considerações de Hegel sobre a ‘dupla visão’ do
escravo em relação ao seu ‘senhor’, ou seja, sobre a vantagem de perspectiva daqueles na posição de subordinados”
(HARTSOCK, 1986 apud SARDENBERG, 2002, p. 114).

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3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

No período pandêmico mais desafiador que antecedeu à chegada das vacinas, tal
experiência não diferiu daquela vivida pela grande maioria das mulheres, localizada em
determinada posição de classe e raça privilegiadas, diante de um novo cotidiano em que se
encontravam irmanadas e enredadas no imenso desafio de conciliar a jornada de trabalho diária
- naquele momento em home office -, com as tarefas domésticas e de cuidados– histórica e
culturalmente mal repartidas entre os pares por gênero - antes terceirizadas e atribuidas a outras,
também, mulheres trabalhadoras em sua maioria negra, mas situadas à margem dessa condição.
Muitas dessas mulheres, por sua vez, enfrentavam o desafio, ainda maior, da manutenção da
própria sobrevivência e de suas famílias em razão do desemprego gerado pela crise e a ausência
do amparo suficiente das políticas de proteção dos Estados neo ou ultraliberais em muitos
países, tanto mais no Brasil de 2020. Isso, levando em conta que neste país as famílias
monoparentais femininas se apresentam em maior número, segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios - PNAD (IBGE, 2015). O que significa dizer que a base de sustentação
econômica das familias de formação monoparental chefiadas por mulheres depende
majoritariamente dessas.

Entretanto, em que pese observar uma grande diversidade de experiências na pandemia,


definidas por distintos lugares sociais de ocupação das mulheres, mais nitidamente o de raça e
classe, o novo cenário daquele tempo evidenciara, de modo ainda mais contudente, a condição
dos/as idosos/as diante dos desafios - agora maiores -, a superar em razão das imposições, dos
limites e de condicionamentos sociais, não tão novos, mas dessa vez deliberadamente
autorizados e institucionalizados, no que toca a suas existências.

Não bastassem as contingências decorrentes das vulnerabilidades da saúde física e


mental observadas especificamente nesse grupo de pessoas diante da contaminação pela
covid19 - mas também por isso - , individuos acima de 60 anos viram, nesse momento, suas
vidas ostensivamente monitoradas e controladas pelo Estado e pela sociedade em geral, em
razão de terem ‘alçado’ à categoria de grupo de risco, eleito pela Organização Mundial da Saúde
– OMS.

Do mesmo modo, a diversidade de experiências da população idosa é diretamente


proporcional a sua situacionalidade de classe e raça. Porém, além do grupo de idosos/as que se
encontrava abrigado pelo Estado àquela altura, contando com uma condição cada vez mais
precarizada da maioria dos abrigos públicos num país que preconiza o Estado mínimo, a

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população idosa que partilhava da convivência familiar, ou mesmo morava sozinha, também
sofreu grande mudança de rotina no seu cotidiano.

Nota-se que mesmo aquelas pessoas mais velhas que antes desfrutavam de uma vida
social independente, passaram a contar de forma compulsória com o auxilio possível e solidário
de familiares, amigos, vizinhos, etc, a fim de viabilizar o abastecimento e a gestão doméstica
de seus lares e outras demandas cotidianas, uma vez que sua mobilidade espacial foi fortemente
reprimida, mais do que qualquer outro grupo etário na quarentena.

O outro grupo de idosos que já dependia de cuidados terceirizados, em razão de suas


limitações física ou mental, do mesmo modo, sofreu as consequências de tal reorganização na
estrutura da sua condição de existência. Entretanto, contar menos ou mais com o apoio ou o
tipo de suporte disponível também variava de acordo com as condições, não somente socio-
econômicas, mas também com as relações interpessoais socio-afetivas pré-existentes àquele
contexto de pandemia, dentro do grupo social do qual já fazia parte.

Portanto, é possivel sugerir que a política dos afetos e o arcabouço das subjetividades
construídos coletiva e individualmente pelos sujeitos nas relações intrafamiliares, ocupam lugar
definidor, embora não determinante, das escolhas e tomadas de decisão sobre quem cuida de
quem e como se cuida também.

É desse ponto de vista que provoca-se a reflexão sobre a trama paradoxal enredada pelas
relações familiares convidando ao debate nesse texto, uma vez que a autora encontrava-se
imersa nesse retorno à realidade do cohabitar e conviver compulsoriamente no grupo familiar
de origem para cuidar das idosas, cozinhar, limpar e amar. Mas, também, padecer. Vivenciar
um cotidiano que exigia habilidades para o reencontro com, agora, novas pessoas, pertencentes
a outras gerações, comportando distintos anseios e visões de mundo. Habilidades necessárias,
portanto, para mediar conflitos, sobretudo, geracionais, mas não somente; negociar interesses e
estabelecer relações o mais dialógicas possíveis.

Uma observação que elucida a análise dos comportamentos por dentro das famílias,
sobretudo no período da pandemia, é dita por Motta (1998)

A família é também o lugar social dos afetos radicais – onde as relações são quase
simbióticas, as afeições mais doces e os embates entre os sexos/gêneros e as gerações
podem ser mais dolorosos. Onde se encontram os modelos de sentimentos em estado
mais depurado: os amores, as aceitações ilimitadas, as mais fundas solidariedades; ou
as rejeições mais chocantes, os conflitos cotidianizados, ressentimentos
“inexplicáveis” e ódios. Explícitos ou recalcados. A família é o “nosso grupo”,
primeiro, primário, fundamental, que é preciso preservar a todo custo da dissolução –
mas também dos olhares externos. Por isso, seu estudo, sua observação, sua análise
do ponto de vista das relações que a constituem, ou parecem constituí-la, é muito

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difícil. Relações de gênero (principalmente entre marido e mulher), de gerações (pais
e filhos, avós, netos), e intrageracionais (os irmãos) são, freqüentemente, tornadas
opacas à análise do/a pesquisador/a. E não apenas pelo desejo, consciente ou
inconsciente, dos indivíduos, de preservar a privacidade do grupo; também porque
essas relações são carregadas de ambigüidade, nas suas contradições entre afetividade
e poder/dominação, ou entre afetos polares, que podem não ser claros até para os que
os vivenciam (MOTTA, 1998, p. 71).

Ocorre que, justo por isso, nesse cenário familiar redesenhado em muitos agrupamentos,
não apenas as relações de solidariedade e os laços afetivos se estreitaram. Tal ambiguidade
presente no interior das famílias pressupõe considerar, também, os jogos de poder, os conflitos,
as alianças e as trocas entre os indivíduos que partilham aquele mesmo território físico e
socialmente constituído.

Em que pese aquele momento tenha afortunadamente criado oportunidades para a


aproximação afetiva e de cuidados entre sujeitos nas diversas famílias, por outro lado, há
experiências que demonstram acirramentos de conflitos diversos aflorados pelas tensões da
convivência e cuidados obrigatórios, para além das tensões já provocadas pelo contexto de
confinamento, das dúvidas e incertezas quanto ao futuro. Cenário que legou impactos na saúde
física e mental constatados em estudos e manifestados em muitas pessoas ao redor.

Conquanto, um dos elementos que podem explicar o potencial aumento das tensões
intra-familiares surge em constatações de pesquisas já executadas durante o período pandêmico,
como aquela realizada pela Sempreviva Organização Feminista e Gênero e Número (2020), que
concluiu que 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de outra pessoa durante a
pandemia.

A pesquisa apresenta dados minunciosos sobre quem são os sujeitos desse cuidado que
passaram a ficar a cargo majoritariamente das mulheres. Além das crianças, encontram-se
adultos e idosxs saudáveis e não saudáveis. Mas o que mais chama a atenção é que 41% das
mulheres entrevistadas que conseguiram ficar em casa, afirmaram perceber que houve
diminuição da participação de outras pessoas nos trabalhos domésticos. Ou seja, por esse dado
a divisão sexual do trabalho se acirrou em muitos lares durante a quarentena, aprofundando
ainda mais a desigualdade de gênero já observada no âmbito da divisão das tarefas domésticas.

Desse modo, com tamanho desequilibrio no volume de trabalho entre sujeitos


conviventes 24h por dia, não é de se estranhar que potencialmente aflorem conflitos e
tensionamentos gerados por eventuais cobranças, insatisfações e muito cansaço fisico e mental.

Por outro lado, em que pese saber da importância dos conflitos intergêneros motivados
pelas assimetrias dos lugares de gênero na divisão social do trabalho, não apenas público, mas

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especialmente no doméstico, há outros conflitos de interesses que costumam ser negligenciados
nos estudos relativos às relações familiares, sobretudo quando não existem sujeitos socializados
por distinção de gênero em tais grupos. Ou seja, em familias que possuem apenas sujeitos
pertencentes ao mesmo gênero, quais conflitos de relações poderiam existir em arranjos
familiares com tal configuração?

Uma pista para essa reflexão, encontra-se nos estudos sobre os conflitos intragênero,
intra e intergeracionais. A respeito dos últimos, explica Marialice Foracchi, ao afirmar que o
conflito de gerações é dialético porque se dá no questionamento e na reprodução de valores; na
institucionalização, na normatização para além da família, “mas também em torno de
formulações sociais, exigências e expectativas de fidelidade entre as gerações” (FORACCHI,
1972, p. 24).

Ademais, Lins de Barros (1987) percebe a família como sendo uma arena dos conflitos
intergeracionais a partir das mudanças de responsabilidades e corrobora com o pensamento de
Foracchi apresentando as contradições e a complexidade nas relações da família nuclear
afirmando que “a existência do conflito nos grupos sociais advém, na sua cooperação, da
própria característica da natureza humana, que não permite ao indivíduo se relacionar com outro
apenas por um laço” (BARROS 1987, p. 47).

Tais observações explicam determinados choques criados entre a expectativa e a


realidade no contexto da convivência entre gerações distintas, mas o que dizer quando sujeitos
conviventes pertencem a mesma geração e ao mesmo grupo de gênero e, ainda assim, entram
em conflito de expectativas ou interesses?

Ocorre que, além dos conflitos intergeracionais, estão presentes nessa conivência
cotidiana intensiva, os conflitos intrageracionais e, também, o intragênero forjados por distintos
interesses, rivalidades e jogos de poder existentes em muitas relações familiares em disputa por
atenção, seja para suprir carências, seja por mera demonstração de poder Além de outras
demandas de cunho subjetivo e que acabam por ser afloradas no contexto de confinamento e
presenças físicas partilhadas compulsoriamente num mesmo espaço, nem sempre amplo e
confortável. Mas, por outro lado, observa-se, também, relações, ora de cumplicidade, ora de
concessão e até alianças entre conviventes diante de interesses comuns desvelados.

No que toca os conflitos intragênero, é importante ter em mente a prevalência de uma


engrenagem patriarcal (LERNER, 1990) que ainda estrutura a sociedade, via de regra, operando
em diversas frentes para a manutenção de uma dada ordem de coisas que reificam papéis de

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poder bastante antagônicos no território da família. Mais além, necessário se faz lembrar que o
patriarcado contemporâneo assume muitas roupagens e, desse modo, sujeitos adversos àquele
universalmente eleito como detentor de poder - o patriarca da família, do sexo masculino, no
exercício de pai-cônjuge -, também podem assumir o papel de opressor/a, sem, no entanto,
deixar de estruturar a ordem social dominante na qual se mantém inseridas/os.

Aqui a noção cristalizada de patriarcado entendida conforme a relação dominação-


exploração exclusivamente do homem sobre a mulher, sofre uma fratura, uma vez que essa não
daria conta de compreender como a construção de gênero pode se dar sobre qualquer identidade
de sexo, estando outros sujeitos, inclusive do mesmo sexo, com identidades variadas de gênero
e orientação sexual, tão vulneráveis quanto as mulheres cis 18, à violência de gênero.

Nesse sentido, vale dizer dos diversos deslocamentos de papeis de poder


desempenhados na pandemia, que variam desde o abuso de autoridade de filhos e filhas contra
suas mães e pais idosos ordenando e reprimindo sua autodeterminação, passando por relações
de opressão praticadas por entes cuja situacionalidade na hierarquia social mais privilegiada na
família o fazem pensar estar credenciado à oprimir outros familiares os quais dependem
financeira ou emocionalmente dos primeiros, até as situaçãoes mais graves de violência
intrafamiliar enfrentadas por muitos sujeitos de gênero e gerações diversas e mais vulneráveis,
ainda mais expostos em razão do confinamento, cuja permanência no território familiar
representava forte ameaça a suas vidas e integridades.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como visto, a grande complexidade que marca a dinâmica da familia como grupo social
e um dos principais operadores do patriarcado, não logrou ser o objeto central de análise desse
texto. Contudo, para desenvolver qualquer reflexão sobre tal tema, revelou-se fundamental
considerar a importância de enxergar o/a sujeito/a a partir do que este herdou das gerações
anteriores e buscar compreender, sobretudo, os rebates dessa herança ligados à
transgeracionalidade e à intergeracionalidade.

Tal esforço de reflexão poderá auxiliar no exercício de desenvolver empatia e


compreensão sobre comportamentos e atitudes, sobretudo das pessoas mais velhas, cuja história
de vida nem sempre esteve acessível à maioria dos familiares. O paradoxo do confinamento

18
Aquelas nascidas com o sexo biológico correspondente à sua identidade de gênero.

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talvez tenha sido, também, a oportunidade para acessar essas memórias e, assim, construir
novas cumplicidades.

Fato é que a família, notadamente, é um dos temas mais cobiçados e discutidos não só
nas ciências como na sociedade em geral. Nas mesas de bar, em reuniões de família e/ou
amigas/os, nas salas de espera dos consultórios e dentro dos próprios, nas praças e nas escolas,
o assunto está presente. É também amplamente debatido pelos meios de comunicação escrita
como livros, revistas e jornais. No cinema, na internet e na televisão, esse tem sido um tema
recorrente. Nas redes sociais são incontáveis os grupos de família que se formam (e se
deformam) diariamente. Haverá sempre um palpite, uma opinião, ou mesmo uma “fofoca” a
ser esmiuçada quando o assunto são as famigeradas relações familiares. E, diretamente
proporcional às opiniões, surgem prováveis e correspondentes conflitos internos.

Desse modo, é de se esperar que tamanho interesse gere distintas formas de significar,
elaborar e perceber a família por diferentes ângulos, em que pese a prevalência (ou o retorno),
pela ofensiva conservadora, do discurso de um modelo hegemônico, normatizado e reconhecido
como ideal, ainda que matizado por muitas nuances. Ademais, tais interpretações são
traduzidas, também, pela academia na sua própria linguagem e forma de comunicar.

Entretanto, nessa reflexão buscou-se tanto menos dar conta de teorias ou adotar
conceituações acerca das noções de família e mais refletir sobre experiências cotidianas reais,
possíveis, ou não, de convivência parental, que venham possibilitar desconstruções idealizadas
e sacralizadas de modelos de familia e, assim, contribuir para estabelecer relações mais
humanizadas, plurais, dialógicas e empáticas, quiçá amorosas, efetivamente prenhes de redes
de solidariedades, construídas em processo, ainda que naquele momento tenha se dado de forma
deliberadamente compulsória em razão da contigência pandêmica enfrentada e que acometeu
grande parte da humanidade neste quarto de século.

Que esse texto possa representar um manifesto pela escolha do exercício pleno da vida
cada vez mais em comunidade, independente dos laços biológicos que ligam os sujeitos, mas
que esses/as possam, também, desfrutar do mesmo privilégio, quando possível de se construir.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Jorge Zahar, 1987. p. 105-138.

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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111314215

CAPÍTULO 14
NOTAS DE PESQUISA E PROPOSIÇÕES SOBRE AS ATIVIDADES LABORATIVAS
DAS MULHERES DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO NO
BRASIL

Marcela Fernanda da Paz de Souza

RESUMO
As comunidades remanescentes de quilombo estão na centralidade de pesquisa em razão da importância histórica
e cultural no país. A identidade étnica deste grupo de comunidade tradicional apresenta suas características
relacionadas à ancestralidade, ao significado e sentido atribuído ao território, ao conhecimento transmitido
intergeracionalmente, produção, alimentação e cuidados com a saúde. Nas terras de quilombo, a força de Dandara
permanece e as mulheres apresentam-se em papeis responsáveis pelo cultivo, pelo ensino e pelo fortalecimento da
tradição. Estudos indicam, contudo, que o grupo feminino perpassa caminhos de luta por melhores condições de
acesso à saúde, a uma vida sustentável, bem como, as reinvindicações pela titularidade das terras. Estas condições
de vida das mulheres quilombolas são pesquisadas de forma exploratória nas bases de pesquisa Scielo, Scopus e
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Capes na década de 2010 e 2020. Esta reflexão apresenta as
orientações gerais da pesquisa financiada pelo Programa Bolsa de Produtividade da Universidade do Estado de
Minas Gerais.

PALAVRAS-CHAVE: Mulher Quilombola; Estudo Exploratório; Participação.

1 INTRODUÇÃO

As mulheres das comunidades remanescentes de quilombo historicamente enfrentam a


desigualdade, a pobreza e a exclusão social. Nestes grupos étnicos, elas assumem uma dupla
responsabilidade na divisão sexual do trabalho, pois se dedicam às atividades produtivas
peculiares da própria cultura e economia quilombola (GROSSI; OLIVEIRA; BITENCOURT,
2018), como artesanato, agricultura familiar, pecuária, pesca, sendo elas as responsáveis pelo
conhecimento transmitido geracionalmente. Em uma perspectiva de família ampliada, são as
mulheres que cuidam dos filhos, pais, sogros, quando não contam com o apoio das filhas jovens
(MACHADO, 2007).

Esta população possui o perfil educacional caracterizado pela baixa escolaridade, com
uma estrutura física escolar inadequada, muitas vezes, sem esgoto e energia elétrica, o que
resulta na ausência de capacitação profissional para o ingresso em carreiras promissoras
(CARRIL, 2017). Outro ponto é mesmo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, estes estudantes continuam a ter na prática
escolar um currículo escolar com pouca abrangência étnica-racial (SILVA; MENEZES, 2018).

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Humanas, Volume 1.
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É possível verificar os moradores de distintas comunidades quilombolas no estado ficam
dependentes de um sistema de transporte eficaz e o acesso a boas estruturas de prestação de
serviços de saúde (MINISTÉRIO PÚBLICO DE MINAS GERAIS, 2016).

É neste contexto que as mulheres, diante da situação de pobreza e da vulnerabilidade,


da busca pela autonomia financeira e do bem-estar que elas têm procurado em atividades
laborais fora da comunidade remanescente de quilombo em que vivem condições dignas de
vida (VANINI, 2018). Mesmo que em muitas realidades, a via do emprego comece pela
informalidade e pelas ocupações que estão na base da estrutura social. Este movimento também
não ocorre sem tensão entre o mundo citadino e o simbolismo e a tradição do quilombo
(BASTOS, 2009; 2010).

O objeto desta pesquisa se encontra neste âmbito, as mulheres das comunidades


remanescentes de quilombo no Brasil. Este recorte é realizado a fim de estudar as atividades
laborais das mulheres que atuam em ocupações que não estejam obrigatoriamente vinculadas
às atividades produtivas do quilombo.

A técnica metodológica em aplicação é a revisão bibliográfica sobre a comunidade


remanescente de quilombo compreendida entre os anos de 2014 a 2023, mapeada na base da
Scielo, Scopus e do Catálogo de Teses & Dissertações da Capes. Este estudo amplia o conjunto
de informações concernentes à atuação profissional das mulheres quilombolas, dentro e fora da
comunidade, à realidade socioeconômica vivenciada por elas na comunidade, e a própria
condição de povo assistido pelas políticas sociais.

Pretende-se somar esforços àquelas ações governamentais já em curso para propiciar


uma atividade laboral digna e uma melhoria na qualidade de vida das comunidades destes
grupos pesquisados - como os programas sociais Programa Brasil Quilombola (PBQ) Programa
Bolsa Família (PBF), Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
(PRONAF); à atuação dos movimentos negros e de gênero, da Coordenação Nacional de
Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e das diferentes
organizações distribuídas no território nacional e no Estado de Minas Gerais; das igrejas e
pastorais da terra, terreiros, expressões religiosas afrodescendentes.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1 Conhecendo as comunidades tradicionais

As comunidades tradicionais são formadas por grupos caracterizados pela relação que
possuem com o território, com a produção e por sua organização social. Costa Filho e Mendes

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(2013) utilizou o Decreto 6.040, de 7 de fevereiro de 2007, Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, para conceitualizar estas
comunidades:
Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem
formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição (Decreto 6.040, art. 3º, § 1º apud COSTA FILHO; MENDES, 2013, p.
12).

A dimensão do território pode ser vislumbrada em uma identificação de simbolismo e


de ligação com os antepassados. É naquele solo que os membros cultivam o próprio alimento,
criam os animais, dedicam-se ao artesanato. O significado, o cuidado e o conhecimento sobre
a terra e o cultivo são transmitidos geracionalmente aumentando a relação de pertencimento ao
grupo étnico (COSTA FILHO; MENDES, 2014).

A esfera da produção das comunidades tradicionais implica em distintas relações que


envolvem a atividade produtiva orientada às práticas sociais, que incluem os ritos e as festas,
ao consumo, à troca entre os membros internos e entre grupos étnicos. Há uma lógica de
produção orientada sob o ritmo comunitário, mais do que uma lógica de mercado. O
conhecimento transmitido é importante, pois o cultivo está ligado, para além das técnicas
produtivas, às condições da natureza, às relações míticas (COSTA FILHO; MENDES, 2014, p.
7).

Nas comunidades tradicionais a organização social possui como base central as


famílias, as quais comumente são ampliadas. É possível verificar os conflitos entre os próprios
membros, outras comunidades ou grupos étnicos. Na construção destes relacionamentos
sociais, a forma de estabelecer a diferenciação ocorre a partir de uma autoidentificação. A
análise da organização social deve ser realizada de forma interlaçada com as observações
tecidas sobre o território à medida que este é formado por uma aglutinação de sítios familiares.
Estes sítios familiares devem atender “às necessidades morais, sociais, culturais e econômicas
próprias” (COSTA FILHO; MENDES, 2014, p. 7).

A caracterização de uma determinada comunidade tradicional e, no caso deste projeto,


das comunidades remanescentes de quilombo, torna-se mais clara quando se pontua a
identidade étnica e o pertencimento.

Entende-se por identidade étnica os traços diferenciadores que os próprios grupos


atribuem para si próprios por meio dos processos de organização social que permitem delinear
os limites entre (expressão utilizada por Lapierre) entre o “nós” e os “outros”. As práticas de

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exclusão e de diferenciação são engendradas por meio destes limites. A noção de pertencimento
é apresentada por Gorczevski e Martin (2011), como uma característica psicossocial. É por
meio dele que ocorre o autorreconhecimento dos indivíduos e dos grupos no compartilhamento
de uma identidade específica.

No que tange a este projeto, esta compreensão é fundamental, pois adota-se o conceito
de quilombo indicado por Arruti (2006): a própria autoidentificação dos grupos rurais negros
como remanescentes dos quilombos.

A identidade étnica quilombola se situa em uma abordagem mais ampla, “sendo que os
conceitos de afrodescendência e etnia se configuram como um enfoque político-cultural,
construído na relação histórica de uma ascendência africana diversa” (LIMA, 2008, p. 38).

É importante destacar as observações de Souza e Araújo (2010) que indicam que nos
anos recentes as comunidades afrodescendentes e os grupos étnicos estão ampliando seu espaço
de visibilidade. Em razão das lutas é que houve a normatização do reconhecimento destes povos
e do papel das mulheres quilombolas.

3 COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO E A MULHER


QUILOMBOLA: RESISTÊNCIA E TRABALHO

O Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de 2022 identificou 1.327.802


pessoas quilombolas. O recenseamento indicou um grande avanço para a garantia dos direitos
das comunidades quilombolas, pois permite uma delimitação de quantas são estas comunidades,
território que estão localizadas, a real situação sociodemográfica, bem como, indica a condição
de titulação das terras. Estas informações fortalecem e incidem em materiais claros sobre os
quais poderão ocorrer o desenho de políticas públicas para estes povos. Na ocasião do Censo,
a maioria de 95, 67%, 1.270.360 não estavam em territórios já titulados. Na região Nordeste
vivem grande parte da população quilombola, 70,31%; Sudeste, 14, 43%; Norte, 9,83%;
seguidos das regiões Centro-oeste e Sul (BRASIL, 2022).

A noção de quilombo reporta à reflexão de um povo minoritário, cuja


identidade quilombola significa em uma complexa arma nesta batalha desigual de
sobrevivência material e simbólica. Estas identidades trazem consigo novas relações de
diferenças (SCHMITT; TURATTI; CARVALHO, 2002).

Nos quilombos, as mulheres são centrais nas múltiplas atividades produtivas nas
comunidades tradicionais. Elas atuam durante todo o dia, cuidam do manejo ambiental, são
determinantes para a transmissão geracional de conhecimento produtivo, cultural e social do

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grupo étnico ao qual pertencem. A responsabilidade dos “cuidados com a saúde dos membros
da família, cuidado com a criação de animais em seus quintais, com a roça, transporte de água,
lenha e de produtos de roçado, dentre outros” (MACHADO, 2007, p. 486) indica que as
mulheres destas comunidades são imprescindíveis para a manutenção do grupo.

A relação de gênero, território e trabalho nas comunidades quilombolas demonstra a


permanência da luta pelos direitos.

O território não é simplesmente uma certificação, pois representa valores, a história e


cultura de um povo, cujos antepassados sofreram com a escravidão. Na
contemporaneidade, novos desafios se encontram, como as novas formas de
escravidão. Desempenham as atividades domésticas e são responsáveis pelos
cuidados dos filhos, trabalham fora e ainda mobilizam a comunidade para reivindicar
melhorias na sua qualidade de vida. São guerreiras do tempo presente que não se
curvam diante das tramas de opressão (GROSSI; OLIVEIRA; BITENCOURT, 2018,
p. 11).

Os resultados parciais dos estudos do Grupo de Estudos e Pesquisa em Violência


(NEPEVI) da PUC-RS/CNPq sobre a mulher quilombola e a divisão sexual do trabalho (2018)
demonstraram que são as mulheres os alicerces físicos e de funcionamento da comunidade. São
elas as responsáveis pelos serviços domésticos, com o abandono de muitos homens do território
ou prisão, o grupo feminino assume a criação dos filhos e o cuidado dos anciãos. Um aspecto
que elucida este projeto é que conforme o GEPEV no mercado de trabalho, as quilombolas
permanecem em situação subalterna. Diante do sistema capitalista, a mulher destas
comunidades vê seu trabalho ser desvalorizado social e produtivamente. Na atualidade, novas
formas de relações de exploração podem ser observadas entre as quilombolas, o território e a
sociedade (GROSSI; OLIVEIRA; BITENCOURT, 2018).

O estudo ‘Subsídios para a elaboração e implementação de políticas públicas com


recorte de gênero e raça na agricultura familiar’ (KELMA, 2006) demonstra que entre as
principais atividades produtivas às quais as mulheres quilombolas atuam, encontram-se: a
agricultura de subsistência; o extrativismo; a pesca artesanal e pecuária; o beneficiamento de
alimentos; o turismo ecológico; o artesanato; a saúde e uso de plantas medicinas; a segurança
alimentar e nutricional. Entretanto, conforme o estudo há diversas dificuldades que as mulheres
quilombolas enfrentam na esfera da produção que implicam em uma venda dos produtos com
um preço inferior àqueles da cidade, além de criar uma relação de dependência com os
responsáveis em venderem os produtos na cidade:

– Dificuldade de acesso à comunidade, devido às grandes distâncias e ao relevo


acidentado de várias destas áreas;
– Dificuldade no escoamento da produção para comercialização nos centros urbanos;

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– Falta de uma poupança que possibilite a compra de alimentos no início da safra e o
acúmulo de um volume maior de produção para venda;
– Envolvimento em conflitos fundiários pela posse e uso da terra;
– Condições financeiras das comunidades abaixo do nível de pobreza;
– Baixo índice de escolaridade (KELMA, 2006, p. 13).

A dificuldade de acesso à educação em muitas comunidades quilombolas é um dos


grandes desafios que contribui para a reprodução das condições de desigualdade deste grupo
(GROSSI, 2019). À medida que a educação amplia as oportunidades e as possibilidades de
inserção no mercado de trabalho ou, ainda, permite uma formação capaz de dar dinamismo
econômico aos bens produzidos nos próprios quilombos, a participação das mulheres nas
atividades educativas formais potencializa as chances da superação da pobreza que estas
comunidades ainda permanecem (KELMA, 2006).

Embora a agricultura familiar seja um dos motes da atividade produtiva e esteja


abrangida no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e no
Plano Brasil Quilombola 19 (PBQ) um dos desafios que algumas comunidades quilombolas
enfrentam é a necessidade de comercializarem a produção para a sobrevivência do grupo, mas
se deparam com tecnologias que não permitem o aumento da colheita, ou a viabilidade de
participação de uma feira livre para a venda do produto (LUCENA; LIMA; PEREIRA, 2016).

De acordo com o Guia de cadastramento de famílias quilombolas (2011) 20 os grupos


que sobrevivem economicamente da prática agrícola dependem dos ciclos entressafras para
conseguir um retorno financeiro. As atividades das mulheres em ocupações informais são
principalmente realizando o trabalho doméstico, como diaristas. Nas comunidades elas se
dividem em uma jornada dupla de trabalho, no roçado e em casa. O Guia também ressalta que
em razão da renda ser variável em razão da atividade agrária, o cadastro nos programas sociais
deve continuar, pois a transferência direta de renda complementa o orçamento (BRASIL, 2011).

Diante das condições de trabalho e de vida no quilombo e com as novas perspectivas


educacionais, as mulheres quilombolas de diversas comunidades estão em um processo de
participação das atividades laborativas na cidade (BASTOS, 2010).

Muitos fatores contribuem para a movimentação dos jovens do campo para a cidade.
O desejo de dar continuidade aos estudos, de ter opções de lazer, de buscar uma vida
melhor através de um trabalho remunerado associa-se às questões relacionadas à
lógica de reprodução familiar, às relações de hierarquia, à herança. Neste sentido, os
jovens que vivem no campo levantam questões que desafiam a estrutura da sociedade
brasileira. Pensar nas idas e vindas desses jovens significa pensar na estrutura

19
- O Programa Brasil Quilombola possui quatro eixos: Eixo 1-Acesso à terra; Eixo 2- Infraestrutura e Qualidade
de Vida; Eixo 3: Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local; Eixo 4 – Direitos e cidadania.
20
- Os programas sociais dos governos federal, estadual e municipal – das cidades abrangidas neste estudo - para
as comunidades quilombolas serão apresentadas no desenvolvimento do projeto.

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fundiária do país, na distribuição desigual dos serviços públicos, entre outros
(BASTOS, 2010, p. 4).

Observa-se, também, que a participação em movimentos sociais e o incentivo à


escolarização que os programas e as políticas sociais germinam entre as mulheres, aquelas mais
jovens procuram encontrar um trabalho na cidade, ainda que seja no emprego doméstico ou em
ocupações mais precárias. As mulheres quilombolas não desejam a vida de seus familiares,
querem mais da vida, novas experiências e também melhorar o padrão de vida (BASTOS,
2010). É nesta perspectiva analítica que a pesquisa será realizada, diagnosticando as atividades
laborativas das mulheres quilombola que possivelmente estão em busca da sobrevivência e da
emancipação.

3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O estudo de base exploratória é realizado com base na revisão de literatura nas bases
indexadas Scielo, Scopus e na Biblioteca Digital Brasileira para Teses e Dissertações (BDTD),
referentes ao período de 2014 a 2023. Delimitou-se este período, pois o mesmo abrange
momentos políticos e sociais de elaboração de desenhos de políticas institucionais e ações
promovidas pelos movimentos negro, quilombola, de gênero em prol das comunidades
tradicionais, como os grupos autoidentificados remanescentes de quilombo.

As palavras chaves que serão usadas na busca são: gênero; mulher; trabalho; produção,
quilombo. A partir deste levantamento de dados, serão identificados os artigos que tratam do
tema proposto. Posteriormente, haverá uma análise aprofundada na qual os artigos serão
sistematizados conforme o objeto de pesquisa que apresentam.

Esta sistematização ocorrerá com ênfase na relação entre os termos da busca, os


quilombos pesquisados, as atividades laborais exercidas dentro e fora da comunidade, os
movimentos sociais e os desenhos de programas sociais citados, entre as demais questões a
serem abordadas nos artigos, no que se refere ao propósito da pesquisa. Será observada também
a própria metodologia de realização do artigo e a base teórica empregada.

As etapas dos métodos de pesquisa e os procedimentos metodológicos incluem:


pesquisa bibliográfica- a) - O Levantamento bibliográfico sobre as comunidades remanescentes
de quilombo e as atividades econômicas das mulheres quilombolas. As pesquisas estão em
curso nos artigos científicos bases Scielo, Scopus, Biblioteca Digital Brasileira para Teses e
Dissertações (BDTD); b) - Mapeamento dos nomes das instituições públicas e privadas, das
organizações não-governamentais; das fundações públicas; dos movimentos sociais e dos

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coletivos que possuem informações sociodemográficas e culturais das comunidades
pesquisadas; análise de dados, os artigos estão analisados pormenorizadamente, com ênfase:

a) - Nome e localização geográfica do quilombo; b) - Atividades produtivas dentro do


quilombo; c) - Participação das mulheres nas atividades produtivas no quilombo e externa à
comunidade quilombola; d) -Motivação das mulheres para buscarem outras atividades
profissionais e as considerações sobre os dados – a) – discorrer sobre o cenário das comunidades
quilombolas, com base na revisão de literatura e na identificação das políticas públicas
governamentais com ênfase nas comunidades quilombolas.

3.1 Viabilidade da pesquisa

Em conjunto com um amplo leque de normatizações federais que fortalecem os direitos


das comunidades quilombolas e das demandas específicas dos diversos grupamentos, bem
como, a própria identificação da atual realidade sociodemográfica, econômica e sanitária destas
comunidades, mapeadas no Censo (BRASIL, 2022), esta pesquisa em curso, permitirá que se
conheçam as configurações socioeconômicas destes grupos étnicos em um cenário econômico
em que as atividades remuneratórias das mulheres provêm, também, de ocupações que não
possuem obrigatoriamente e necessariamente relação com os trabalhos realizados na
comunidade de origem. Os resultados poderão indicar as possíveis demandas deste grupo,
implicando em uma contribuição para formas complementares de execução dos programas
sociais já em curso pela gestão pública e pelas organizações não governamentais. O resultado
provavelmente auxiliará as comunidades no processo de titulação das terras. Verifica-se a
importância de uma sistematização das informações das políticas sociais de emprego para as
comunidades tradicionais por parte do governo, das microrregiões e de municípios que possuem
estas comunidades, pois muitas práticas de gestão podem ser utilizadas como modelos a serem
implementados em outros municípios da mesorregião. Este arranjo ainda pode subsidiar outros
estudos afins, à medida que a ampliação dos dados socioeconômicos e culturais relativos às
microrregiões e às cidades cuja mão de obra de mulheres de grupos étnicos é maior indicará
pontos para se refletir sobre os direitos aos quais estão submetidas no trabalho. Outro aspecto
que demonstra a importância da pesquisa é a compreensão das razões que impulsionaram estas
mulheres a se dedicarem a outras atividades laborativas, pois demonstrarão os papeis
socioeconômicos e culturais femininos nas comunidades na atualidade concomitantemente à
tradição enraizada e marcadamente presente entre os remanescentes de quilombo. Enfatiza-se,
ainda mais, a importância da pesquisa em razão da vocação acadêmica da Universidade do

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Humanas, Volume 1.
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Estado de Minas Gerais em produzir conhecimento para somar esforços na construção de uma
sociedade mais equitativa, cidadã e com os reconhecimentos e efetividades de direitos.

4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

A compreensão atribuída ao espaço rural e aos apresentam a sua importância à medida


que elas influenciam nas (re) construções das relações de gênero e no tecido cultural rural
(LITTLE; PANELLI, 2003). Conforme Suárez, é histórica a situação de invisibilidades das
mulheres, cujos obstáculos fazem com que muitas experimentem uma vida desprovida de
direitos e de protagonismo social. O fator biológico, reprodutivo, somado à divisão de tarefas,
acarretou na não participação das mulheres no trabalho e na vida pública. Os processos sociais
permitiram, então, que o universo masculino fosse priorizado com distintas oportunidades
(SUÁREZ, 2008).

Desta forma, um dos pontos já mapeados na pesquisa é a atuação feminina em redes de


mulheres e homens quilombolas. Um conceito importante a ser apresentado é o de participação,
que é amplo e complexo (SIMÕES; SIMÕES, 2015). O conceito da participação pode
apresentar diversas abordagens e fases. Todas, contudo, com o objetivo de fortalecimento de
homens e de mulheres. É importante neste projeto verificar que a participação se fortaleceu no
país com a Constituição da República de 1988. Os movimentos sociais foram fortalecidos, e a
luta da mulher do campo foi sintomática (AGUIAR, 2016). Esta presença já estava presente
desde o período militar com a presença feminina nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e
nas pastorais. Essas experiências foram fundamentais para a atuação feminina no processo de
abertura democrática. “A participação política e as intervenções dos movimentos de mulheres
rurais no espaço público, em geral, vêm contribuindo significativamente para o seu
reconhecimento como sujeitos de direito” (AGUIAR, 2016, p. 261).

Os grupos remanescentes de quilombo possuem um importante papel histórico, com


suas identidades afrodescendentes cultural, produtiva e territorial. A participação das mulheres
quilombolas, grupo feminino tradicionalmente discriminado de forma interseccional, com
sobreposição de categorias de opressão, permite verificar as condições de emancipação de
gênero das integrantes.

Verificando-se em estudos diversos as condições da mulher no campo como a


desigualdade entre homens e mulheres, as situações de violência, assim como, o papel na
agricultura familiar e em formas de economia alternativas (PASTÓRIO; ROESLER, 2011;
COSTA; LOPES; SOARES, 2015) é importante verificar quais são as formas utilizadas por

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estas mulheres para o fortalecimento destas redes de participação. As atividades associativas,
em organizações e sindicatos, e movimentos sociais rurais, são formas que estas mulheres
podem robustecer sua voz e vez (AMARAL, 2008), seja nas situações de precariedade, seja
para a construção e/ou afirmação identitária. Este fortalecimento permite as mulheres tentarem
romper com as condições de subalternidade e privação pelas quais passam em muitos
quilombolas (CONAQ, 2024).

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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111415215

CAPÍTULO 15
A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA POPULAR COMO FERRAMENTA DE MUDANÇA

Maria Cristina Soriano Nunes


Walcler de Lima Mendes Junior

RESUMO
A participação política popular é fundamental para a sociedade contemporânea. Consiste na intervenção do
cidadão para que as demandas coletivas sejam atendidas, mediante o acionamento de órgãos e instituições públicas
responsáveis. A participação política popular pode ocorrer de forma individual ou em grupo; de forma permanente
ou transitória; de modo previamente organizado ou eventual. No Brasil, a Constituição Federal do Brasil de 1988
reconheceu em diversos artigos a legitimidade da participação popular, assegurando-a como um direito
constitucional. Neste trabalho investigou-se, por meio de duas entrevistas com dois líderes das associações de
moradores dos bairros de Guaxuma e de Garça Torta, a relação entre a participação política popular e a efetiva
conquista de direitos, particularmente os sociais. Investigou-se como é a forma de organização das reuniões das
associações de bairro e qual a sua periodicidade, quais os temas mais tratados, como se dá a adesão às reuniões e
o engajamento dos moradores às reivindicações, a definição da estratégia de ação diante de uma demanda da
comunidade, o caminho traçado pela associação para a reivindicação institucional, como se concretiza a articulação
com o poder público e o saldo das reivindicações.

PALAVRAS-CHAVE: Participação política popular; Cidadania; Cidadão; Democracia;


Democracia eletrônica.

1 INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO

O tema da participação política popular é fundamental na constituição da modernidade,


entendida como marco de separação entre o Estado soberano e a sociedade formada por
cidadãos de direitos. Considerando a dinâmica da sociedade atual, a participação política de
organizações de classe popular adquire uma importância cada vez maior. Em uma sociedade
tomada por vieses individualista e competitivo, pensar na coletividade torna-se um desafio.

Por meio da participação política popular, a sociedade organizada aciona as instituições


governamentais e expressa suas reivindicações. Luta pela conquista de direitos básicos, como
o direito de ir e vir, materializado em um transporte público acessível e de qualidade,
saneamento básico, condições de moradia, escola para os filhos, trabalho digno. Também pode
reivindicar algo para a comunidade, uma área de lazer, segurança. Em resumo, pode fazer
sugestões de melhoria, pode fazer críticas e reclamações, pode solicitar o atendimento de uma
demanda, pode cobrar, pode fiscalizar, pode opinar, pode denunciar.

A Constituição Federal do Brasil de 1988, também conhecida como “Constituição


Cidadã”, reconheceu em diversos artigos a legitimidade da participação popular, assegurando-
a como um direito constitucional. A possibilidade de participação política popular está

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intimamente ligada à construção da democracia em qualquer país. Em um governo autoritário,
uma das primeiras atividades reprimidas diz respeito à organização de grupos sociais com
posições antagônicas aos interesses do ditador. As pessoas são caladas só lhes restando
obedecer às ordens governamentais.

2 REVISÃO TEÓRICA E CONCEITUAL

2.1 Absolutismo, revoluções burguesas, formação dos estados nacionais, industrialização,


urbanização: Uma contextualização

A participação popular na administração pública é tema bastante atual e recorrente nos


dias de hoje. Ainda está longe de ser considerada ideal, mas, é perceptível o crescimento da
conscientização do cidadão a respeito da necessidade de participar e influir diretamente na
administração pública. No entanto, nem sempre foi assim, visto que, na história da civilização
moderna ocidental, a participação popular era algo inadmissível até o século XVIII.

Na Europa, vivia-se o período absolutista, em que o rei governava na condição de


soberano absoluto, conforme vontades e conveniências próprias, submetendo-se a quase
nenhum regimento, a não ser o próprio código de costumes da corte ou negociações dentro do
ambiente de Corte, em que o povo se encontrava excluído. Seu poder era exercido sem a
existência de outras entidades para fiscalizar e controlar a sua atuação governamental.

De acordo com Dallari (2004), havia a divisão da sociedade em classes, composta


basicamente pelos nobres, pela Igreja e pelas pessoas comuns, que, por sua vez, se subdividiam
entre (1) burgueses, proprietários de meios de produção, empresas de navegação etc., (2)
trabalhadores e camponeses não proprietários. Os nobres eram os membros da Corte,
funcionando como única instancia política na sociedade Absolutista. Os burgueses eram os
proprietários ricos, mercadores, financistas, comerciantes. Os pobres eram os trabalhadores que
viviam do valor do seu trabalho, camponeses, pequenos artesãos, carregadores, estivadores,
caixeiros viajantes, marinheiros, soldados etc.

O absolutismo, surgido após a crise do feudalismo no século XVI, foi o sistema político
predominante na Europa do século XVI ao século XVIII, no qual o poder estava centralizado
nas mãos do rei, com nenhuma ou o mínimo de interferência de outros setores da sociedade. O
rei controlava desde as áreas econômica e jurídica até a religião.

O absolutismo está associado à formação dos Estados Nacionais e ao crescimento da


burguesia. Para a burguesia, o desenvolvimento de suas atividades comerciais necessitava da
participação política na forma de um governo centralizado, que possibilitasse a criação de uma

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moeda estável e reconhecida por outras economias de negociantes estrangeiros, proteção do
produto nacional através da taxação de importações, dentre outras medidas que fortalecessem
a atividade comercial local.

A burguesia apoiou a formação dos estados absolutistas porque se sentia prejudicada


pelos senhores feudais, pois era obrigada a pagar altos tributos e não tinha condições favoráveis
ao desenvolvimento das atividades comerciais.

Segundo Dallari (2004), com o passar do tempo, a burguesia já não estava mais satisfeita
com o governo dos reis absolutistas. Considerando a necessidade de participação política,
enquanto classe produtiva, além dos riscos representados pelo autoritarismo do Soberano, da
opressão, da exploração e das injustiças praticadas pelos reis e pela nobreza. Os burgueses, com
apoio da classe trabalhadora, engendraram uma série de revoluções, conhecidas como
revoluções burguesas.

De acordo com Dallari (2004), foi nesse momento e nesse ambiente que nasceu a
moderna concepção de cidadania. O cidadão é o sujeito em pleno exercício de seus direitos
civis e políticos e que também possui deveres para com a sociedade. Então cidadania é a
qualidade de ser cidadão e de poder participar ativamente do governo de seu país, seja por meios
formais ou informais.

Com o fim do absolutismo, tem-se o surgimento dos Estados Modernos, ou Estados


Liberais, ou Estados Nacionais. O poder passou a ser dividido com outras instâncias
governamentais. Nesse contexto, pode-se falar no Sistema de Freios e Contrapesos, também
conhecido como Teoria da Separação dos Poderes, conforme proposto por Montesquieu.

Para Montesquieu, o Estado é subdividido em três poderes: o Poder Legislativo; o


Poder Executivo das coisas, que se traduz no poder Executivo propriamente dito; e o
Poder Executivo dependente do direito civil, que é o poder de julgar. Os Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário devem ter suas atribuições divididas, para que cada
poder limite e impeça o abuso uns dos outros. Montesquieu (2000, p. 168) leciona
que: “Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado dos Poderes
Legislativo e Executivo. Se estivesse unido ao Poder Legislativo, o poder sobre a vida
e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse
unido ao Poder Executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor (PELICIOLI,
2006, p. 26).

O Estado no exercício de sua soberania não é mais proprietário do povo, visto que, no
antigo regime, o indivíduo era caracterizado na condição de servo, súdito ou escravo, sob o jugo
do monarca. O indivíduo moderno caracterizado pelo conceito de cidadão compreende alguém
provido de direitos civis e políticos, que pode votar e ser votado, influindo direta ou
indiretamente nos rumos da sociedade e do poder soberano.

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196
2.2 A participação política popular como ferramenta de mudança social

O ser humano é um ser gregário. Nasceu para viver em sociedade, e não isoladamente.
Segundo Dallari (1999), da convivência com seus semelhantes, depende a própria
sobrevivência do ser humano, tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista de
interações humanas. Do ponto de vista material porque precisa trabalhar, precisa de moradia,
de alimentos, de vestuários, e ninguém produz tudo de que necessita, precisando, portanto, do
que os outros produzem. E do ponto de vista de interações humanas porque o ser humano
precisa se comunicar, interagir, tem necessidade de afeto, de proteção, de aceitação, de
validação, de acolhimento.

A Constituição Federal de 1988 representou um marco fundamental no que diz respeito


à consolidação da democracia e ao surgimento de instrumentos de controles sociais à disposição
do cidadão. Convém recordar que essa Constituição também é conhecida como Constituição
Cidadã, dada a extensa lista de poderes e prerrogativas concedidas aos cidadãos para o exercício
de suas liberdades e garantias individuais e coletivas e a extensa lista de direitos individuais e
sociais.
A Constituição brasileira ficou conhecida como Constituição Cidadã, porque
apresenta cláusulas essenciais à manutenção e ao fortalecimento da democracia, como
o pluralismo político, o voto direto e secreto, a garantia dos direitos políticos
individuais, o princípio da anterioridade da lei eleitoral e as condições de elegibilidade
do cidadão que concorre a determinado cargo eletivo (TSE, 2022, n.p.).

A participação política popular pode ocorrer de forma individual ou em grupo; de forma


permanente ou transitória; de modo previamente organizado ou eventual. Pode utilizar-se dos
canais formais de comunicação institucional ou por meios informais de mobilização social. No
momento em que o cidadão adota essa postura ativa, ele está acompanhando e fiscalizando as
ações governamentais. E fiscalizar as ações governamentais é um direito e um dever do cidadão.
Isso é exercer a cidadania. De acordo com Dallari (2004), todo brasileiro, no exercício de sua
cidadania, tem o direito de influir nas decisões do governo.

A participação pode ser permanente, quando alguém integra um grupo, uma associação
de forma permanente como membro, ou pode ser esporádica, quando alguém integra um grupo
para reivindicar algo e, após alcançado, se afasta do grupo. Ou quando um grupo se forma para
uma demanda específica e, após resolvida demanda, o grupo se extingue. Todas são formas de
participação política.

A associação confere maior visibilidade de suas reivindicações perante às autoridades


competentes e até mesmo perante os meios de comunicação de massa, considerando que falam

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em nome de uma coletividade. Confere, ainda, maior proteção aos seus membros, uma vez que
os atos são praticados em nome da associação, e não em nome de uma pessoa individualmente.
Sendo assim, ninguém fica “visado” diretamente por aqueles que são alvo de reivindicações,
visto que a ação foi movida por uma associação, ou seja, um grupo de pessoas.

A associação de moradores pode ser definida como a reunião de pessoas que entre si
guardam um vínculo territorial – moram num mesmo bairro, numa mesma região e
compartilham de um interesse comum – que é fazer o bem para a coletividade de
pessoas que moram naquela localidade. Juridicamente, a associação de moradores se
caracteriza por ser uma pessoa jurídica de direito privado (possui CNPJ) na
modalidade associação (art. 44, I, do Código Civil Brasileiro). Essa pessoa jurídica
constitui-se de pessoas que se organizam para fins não econômicos, sendo vedado
estabelecer entre os associados direitos e obrigações recíprocos entre si. Ou seja, todos
os associados devem estar ali em total igualdade de condições, com direitos e deveres
iguais, embora possa haver categorias especiais de associados. A associação precisa
elaborar um estatuto – documento de constituição, estabelecendo a sua denominação,
sua finalidade, o endereço de sua sede, além da forma como irá se organizar.
Importante destacar que não se pode confundir a associação de moradores com a
associação que existe dentro do condomínio particular. Na verdade, legalmente
ambas são pessoas jurídicas de direito privado do tipo associação, no entanto,
distinguem-se quanto à finalidade. A associação que há dentro dos condomínios tem
como finalidade a administração, manutenção, zeladoria, regras de convivência, etc.,
das áreas comuns daquele loteamento particular específico. Já na associação de
moradores, como veremos adiante, visa-se o bem estar dos moradores de todo o
bairro, inclusive dos moradores de eventuais condomínios que se localizem naquele
bairro (POLITIZE, 2023, n.p.).

A associação, na condição de bem coletivo, garante a continuidade das atividades


reivindicatórias de uma comunidade, porque mesmo que determinadas pessoas saiam da
associação, outras entrarão e continuarão na luta pelo bem comum. Ao passo que lutando
sozinhas, a chance de desistência das pessoas é grande, e dificilmente surtirá os efeitos
desejados. E as pessoas lutando sozinhas podem desistir da causa pelos mais variados motivos,
seja por pressões ou ameaças externas, seja por acharem que não estão conseguindo a
visibilidade necessária, ou por não estarem atingindo os objetivos, ou por motivações pessoais,
enfim, ao passo que uma luta coletiva tem mais chance de obter êxito e ter continuidade.

De acordo com Bonavides (2003), a democracia é um direito do cidadão, assim como


os direitos individuais e sociais, e último direito da condição política do homem. Sob essa ótica,
viver numa democracia e ter sua participação política garantida não são benefícios que o
governo concede ao povo, mas sim direitos que são seus, lhe pertencem, sendo indisponíveis.

É como se a participação popular conferisse legitimidade à democracia. A questão da


participação e legitimidade democrática é objeto de análise por Marques (2010), em seu artigo
Participação política, legitimidade e eficácia democrática. O autor questiona por quais motivos
promover a participação dos cidadãos agrega legitimidade ao regime democrático. Questiona,

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Humanas, Volume 1.
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ainda, quais são os mecanismos e características da participação que podem ser tomados como
elementos fundamentais para se garantir a legitimidade. Para o autor, a defesa de regimes
democráticos se tornou uma posição-padrão, estando as divergências fundamentadas na
quantidade e qualidade desejável de democracia e de seus valores.

A garantia de participação do cidadão está positivada em diversas passagens da


Constituição Federal de 1988. O parágrafo 3º do artigo 37, por exemplo, diz que “a lei
disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta”.
Outros artigos também estabelecem diretrizes de participação popular por meio de conselhos
de saúde, conselhos de educação, onde o acompanhamento e a fiscalização populares sobre as
políticas públicas e seus resultados se tornam evidentes. A participação do cidadão nesses
conselhos não se trata de uma concessão, mas sim de uma exigência legal para a composição
daqueles. O artigo 198, inciso III, da Constituição Federal determina a participação da
comunidade nas ações e serviços públicos de saúde, e essa participação ocorrerá por meio dos
conselhos de saúde mencionados acima.

O plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (descritos nos incisos I, II e III do artigo


14 da Constituição Federal), e a ação popular (descrita no inciso LXXIII do artigo 5º da
Constituição Federal) são outros exemplos de garantias de participação popular. As liberdades
de expressão, de reunião e de associação, garantidas pelos incisos IV, XVI, XVII, XVIII do
artigo 5º da Constituição Federal também garantem que os cidadãos façam manifestações de
rua, protestos, passeatas e outras formas de manifestações a fim de reivindicar direitos, resistir
à lesão ou ameaças a eles, denunciar abusos de autoridades, lutar por melhores condições de
vida.

3 TRABALHO EMPÍRICO E MÉTODO

Como unidade de análise desta pesquisa, foi escolhida a associação de bairro. Para a
etapa de campo, foram selecionadas duas associações que representam os bairros de Guaxuma
e Garça Torta, em Maceió, Alagoas. Para compor a parte empírica do trabalho, realizou-se duas
entrevistas com dois líderes comunitários dos bairros de Guaxuma e de Garça Torta, ambos no
Litoral Norte de Maceió, Alagoas.

No bairro da Guaxuma, foi realizada uma entrevista com a presidenta da associação de


moradores, Dona E.M. e mais uma integrante da associação, a Sra. M.E., realizada no dia 21
de agosto de 2023. A entrevista ocorreu na sede da associação, no bairro da Guaxuma.

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No bairro da Garça Torta, foi realizada uma entrevista com o presidente da associação
de moradores, Sr. J.C.A. e mais um integrante da associação, o Sr. J., realizada no dia 23 de
agosto de 2023. A entrevista ocorreu na sede da associação, no bairro da Garça Torta. As
entrevistas tinham como mote principal a ação de enfrentamento da comunidade diante dos
problemas cotidianos. O objetivo do trabalho era identificar como a comunidade se organiza
para reivindicar às autoridades competentes a solução de suas demandas, e se estas demandas
são realmente atendidas ou não.

As associações foram visitadas e no local foram realizadas entrevistas com os seus


presidentes, na presença dos respectivos assessores. A entrevista com as representantes da
associação de moradores de Guaxuma durou cerca de duas horas e meia, e a entrevista com os
representantes da associação de moradores da Garça Torta durou cerca de seis horas. A
condução das entrevistas ocorreu de forma receptiva e amistosa, com os entrevistados
demonstrando interesse em falar de suas questões e compartilhar as experiências como
lideranças locais.

A ferramenta escolhida para coleta e extração de dados foi a entrevista do tipo


semiestruturada, que possui um roteiro prévio de perguntas relacionadas ao objetivo da
pesquisa, apresenta uma maior flexibilidade quanto às ações e compreensão do pesquisador,
que fica livre para alterar ou não as perguntas no decorrer das respostas do entrevistado,
seguindo um fluxo mais orgânico de acordo com os rumos que a entrevista toma (MANZINI,
2004 apud CASTRO; OLIVEIRA, 2022).

Para a entrevista, foi formulado e aplicado um questionário com seis perguntas básicas,
porém, como se trata de uma entrevista do tipo semiestruturada, outras dúvidas e perguntas
foram surgindo de acordo com a própria dinâmica da entrevista, seguindo por mais caminhos
além dos previamente planejados.

Pretende-se investigar quais os procedimentos adotados pela comunidade para a


mobilização diante de um problema em comum dos moradores do bairro. Além disso, buscando
responder a um dos objetivos dessa pesquisa, questiona-se o quanto o acesso ao poder público
ocorre de forma simples ou não, também, se ocorre engajamento da comunidade na
reivindicação e se este conjunto de atuações surtiria efeitos concretos na vida dos moradores.

O público-alvo da entrevista foram representantes de associações de moradores de


bairros do Litoral Norte de Maceió. Como critério de inclusão, foram escolhidos os bairros de
Guaxuma e Garça Torta por estarem em pleno processo de transformação espacial, com a

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recente duplicação da via principal e com o processo intenso de expansão imobiliária, o que
inevitavelmente causa profundas mudanças tanto do aspecto espacial, quanto dos aspectos
social, econômico, histórico, cultural. Bonavides (2003) defende uma democracia em que a
participação do cidadão seja garantida e de fato influencie as ações governamentais. Mas, para
que influencie, é necessário que participe ativamente e frequentemente, o que não acontece no
bairro Guaxuma, em Maceió. Segundo a liderança da associação, sequer são feitas reuniões
mensais, que, conforme afirma, não há necessidade, visto que o acesso à associação é livre e os
moradores podem a qualquer momento apresentar a sua demanda. Outra maneira de
apresentarem suas demandas é quando encontram a líder da associação nas ruas do bairro. Ou
seja, não há reuniões mensais nem uma maneira formal de apresentar a demanda à associação.
Já no bairro Garça Torta, o líder da associação realiza uma reunião uma vez por mês, sempre à
noite para que as pessoas possam participar.

Em Guaxuma, os temas mais tratados, segundo a líder da associação do bairro da


Guaxuma, apontam para as questões cotidianas, relacionadas ao transporte público, segurança,
impacto ambiental e saneamento. Isto é, questões e reinvindicações que vão chegando à
associação pelos moradores.

Já no bairro de Garça Torta, o líder da associação informa aos moradores sobre quais
são os novos parceiros que estão ajudando a comunidade de alguma forma, sobre doações de
empresários de materiais didáticos para as crianças, os benefícios que chegaram para a
comunidade, as informações sobre a duplicação da via AL -101 Norte, dentre outros. Além da
pauta elaborada pelo líder da associação, este sugere ainda que as pessoas tragam um assunto
para ser abordado na reunião, e caso haja urgência ou relevância, será debatido.

Há em curso um processo de transformação espacial que vem ocorrendo nos bairros do


Litoral Norte de Maceió: a expansão imobiliária. O Litoral Norte de Maceió, que compreende
os bairros de Cruz das Almas, Jacarecica, Guaxuma, Garça Torta, Riacho Doce, Pescaria e
Ipioca, tem recebido novos empreendimentos residenciais verticais (prédios) e horizontais
(condomínios) destinados ao público de renda mais elevada. Os bairros considerados nobres,
como Ponta Verde, Pajuçara, Jatiúca já atingiram um grau de saturação considerável de seus
espaços. Então a cidade de Maceió está num processo de “crescimento” em direção aos bairros
do Litoral Norte de Maceió.

Tais bairros sofrem com diversos problemas urbanos como dificuldade de transporte,
saúde, infraestrutura urbana, educação, segurança pública, dentre outros problemas. Nestes

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201
bairros, é comum encontrar a existência de práticas culturais e saberes populares que são
passados de geração em geração, e que estão intimamente associadas ao local onde ocorrem.

Estas áreas urbanas passaram a ter uma valorização no mercado devido a chegada de
novos empreendimentos residenciais e comerciais. Os antigos moradores são obrigados a
conviver com as transformações socioespaciais que ocorrem progressivamente nos bairros.
Esse processo é conhecido como gentrificação, em que áreas urbanas experimentam um
processo contínuo de modificação de seu cenário urbano e de seu perfil social e econômico,
provocando a expulsão de antigos moradores e a valorização imobiliária.

As construtoras compram terras e diversos imóveis, que são derrubados para construção
do novo empreendimento, e, assim, toda a memória daquelas edificações antigas é destruída.
Imóveis antigos passam a conviver com novos empreendimentos. Isso muitas vezes aprofunda
a segregação, visto que expulsa de seus bairros de origem pessoas que têm uma história com o
local, uma relação de identidade com o local.

As transformações são profundas. A demanda de água aumenta, a demanda de


esgotamento sanitário aumenta, a demanda de novas linhas de ônibus aumenta, o fluxo de
pessoas aumenta, ampliando a necessidade de reforço da segurança nos locais. Por fim vale
citar o impacto ambiental caracterizado pela explosão demográfica. Em um terreno que antes
abrigava três ou quatro domicílios, são construídas edificações que ultrapassam vinte andares
visto que o código de obras, que estabelece um patamar máximo de dez andares nos bairros de
Jatiúca e Ponta Verde, foi liberado nos bairros do Litoral Norte da cidade.

A liderança da associação do bairro da Guaxuma relata que a expansão imobiliária está


provocando transformações na vida dos antigos moradores do bairro. Como exemplo, cita o
fechamento do acesso à praia pelos responsáveis pelos novos empreendimentos. A liderança
procurou o poder público e conseguiu que fosse deixada uma passagem para a praia para os
moradores e visitantes do local. Já a liderança do bairro da Garça Torta comenta sobre os
desafios que a expansão imobiliária tem trazido aos antigos moradores. Poluição sonora,
aumento do trânsito de veículos, sujeira e lotação das praias causada pelo aumento demográfico.
Mas há, dentro da associação, quem aponte benefícios, como o aumento do turismo, gerando
mais empregos, a formação e contratação da mão de obra local para trabalhar nos novos
empreendimentos e negócios.

Tem-se uma situação em que o cidadão sem recursos está pressionado entre a força do
capital privado e o Estado. Possivelmente, esse capital privado, representado pelos empresários,

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202
iria usar a ação de doação de reforma da praça como futura barganha. Por outro lado, o Estado,
numa tentativa de regular o uso do espaço público, busca embargar melhorias no mobiliário e
equipamento urbano.

A revitalização da praça do Conjunto Elias Pontes Bonfim em Guaxuma alcançou certa


visibilidade na mídia, tendo sido publicada matéria em um sítio de notícias quando os
moradores bloquearam uma via da região em protesto e incendiaram objetos, impedindo a
passagem de veículos.

A líder da associação de moradores contou que a comunidade reivindicava há muito


tempo a revitalização da praça, sem obter sucesso. Como resposta da instituição pública que
procuravam, ouviram que a obra de revitalização iria ser feita, que os moradores aguardassem,
que o material estava em falta, mas em breve chegaria. Mas a obra prometida nunca se iniciou.

Então a associação do bairro, com o apoio dos moradores, aceitou a ajuda de um grupo
de empresários para revitalizar a praça. Pelo relato da líder comunitária, o poder público tentou
parar a obra, afirmando que somente este poderia fazê-la. No entanto, a população enfrentou a
ordem institucional e conseguiu impor que a obra fosse feita pelo grupo de empresários
parceiros da comunidade.

Esse é um exemplo claro em que uma comunidade conseguiu pressionar e impor sua
vontade, para que um problema comum fosse resolvido, ainda que não fosse por meio do poder
público.

Em relação à mobilização popular para conter escavadeiras que desviaram curso de


riacho em direção a um condomínio em Garça Torta, o líder da associação de moradores
questiona como esses empreendimentos conseguem a licença ambiental dos órgãos públicos
para construir nesses locais, visto vários locais são áreas de mangues ou áreas de berçários de
espécies animais. Qual a relação existente entre empreendimentos à beira mar destinados a um
público de renda mais elevada e a concessão de licenças ambientais, desconsiderando as áreas
de preservação?

Será que os moradores conseguirão conter o avanço desses empreendimentos?


Conseguirão conter o avanço do capital? Certamente não. O que os moradores podem fazer é
dirimir os impactos por meio de uma participação política, organizada e permanente, como a
possibilitada por meio das associações de bairro, que, embora não tenham a expressão que
deveriam ter, possuem a vantagem serem organismos reconhecidos estatutariamente e de terem
continuidade no tempo.

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203
A líder da associação do bairro Guaxuma considera o saldo de atendimento das
reivindicações positivo, avaliando em 90% de sucesso na solução das demandas pelo poder
público. No entanto, nem todas as demandas foram atendidas pelo poder público, a exemplo da
própria revitalização da praça do bairro, que foi feita por um grupo de empresários parceiros.
Em outra parte de seu relato, a líder da associação afirma que demora para obter uma resposta
positiva, o que reflete uma situação de conformismo da população em relação ao tempo para
que uma demanda popular seja solucionada.

Já o líder da associação do bairro Garça Torta não tem uma visão tão positiva assim. Ele
afirma que geralmente espera horas para ser atendido pelo representante do poder público, e
quando se trata de secretário municipal ou estadual, sequer é atendido. Relata também que é
difícil a associação encaminhar um ofício com uma solicitação ao poder público e esta
solicitação ser atendida, sendo necessário, às vezes, um vínculo político com algum governante
ou autoridade para ajudar. Essa ajuda certamente irá se refletir adiante no pedido de votos para
apoiar algum candidato político, em troca da ajuda fornecida à comunidade para solucionar
algum problema. E isso desconfigura a noção do que é ser cidadão, do que é exercer a cidadania,
do que é participação política popular.

Desse modo, pôde-se perceber que apesar das conquistas, ainda está longe do ideal o
saldo obtido pelas associações de moradores dos bairros de Guaxuma e Garça Torta no sentido
de terem seus objetivos plenamente alcançados. Entretanto, é preciso reconhecer que a
participação política popular em grupo, de forma permanente e organizada, pareceu ser a que
mais tem chances de obter visibilidade e êxito.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A conquista da participação e exercício político da sociedade civil organizada pode ser


entendida como um direito reivindicado e muitas vezes ignorado pelo poder público. É um
direito garantido em diversas passagens constitucionais. Um direito que o cidadão tem por viver
no regime democrático. Numa tirania, o povo é calado, oprimido. Mesmo em uma democracia,
não se está totalmente blindado de situações de opressão e silenciamento. Pode-se classificar a
falta de acesso digno à saúde, educação, emprego e renda, habitação, como formas de opressão.

Com base em todo o exposto, conclui-se que a participação política exercida pelo
cidadão organizado em associações é algo fundamental para um funcionamento mais justo a
sociedade e, por consequência, para o fortalecimento da democracia. Pode-se inferir, ao longo
do que foi apresentado, que a mudança social está intimamente ligada à participação política

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popular. Ressalta-se que a mudança social apresentada neste trabalho, através das ações e
organização das associações de bairro, é a que traz uma melhoria material da qualidade de vida
das pessoas, isto é, um tipo de mudança que não produz ruptura com o modo de produção
estabelecido por uma organização de Estado e sociedade capitalistas. A mudança social visando
o bem-estar das pessoas é possível, sobretudo por meio da participação política popular, seja
na forma de associações de bairro, como desenvolvido nesta apresentação, seja por
organizações justificadas por outros fatores, como grupos étnicos, culturais, indenitários.

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CONSTITUIÇÃO CIDADÃ, SÍMBOLO DA DEMOCRACIA, COMEMORA 34 ANOS.


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ASSOCIAÇÃO DE MORADORES: QUAL O SEU PAPEL? Politize. 2023. Disponível em:


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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111516215

CAPÍTULO 16
SOB O SIGNO DAS NARRATIVAS DIGITAIS E OS MULTILETRAMENTOS:
CARACTERÍSTICAS E POTENCIALIDADES

Neide Araujo Castilho Teno

RESUMO
Expressões como era digital era da informação tornaram usual na contemporaneidade para designar os avanços
tecnológicos advindos da revolução da informática. Com o aparecimento das mídias vivencia se novas formas de
comunicação e o avanço de recursos multimodais. Os sujeitos encontram se diante de outra forma de interações
humanas, de renovações de ideias, de ações e pensamentos marcando a história da humanidade. Nesse contexto,
que as narrativas ganham novos potenciais, visto que a dinâmica que envolve o processo de produção ganha novos
ambientes, contornos e sentidos. As narrativas passam a ser chamadas de Narrativas digitais, por serem
organizadas nos meios tecnológicos que vão além da linguagem escrita. Este artigo tem a finalidade de caracterizar
as narrativas digitais e suas potencialidades no contexto da formação de professores considerando a teoria dos
multiletramentos. Trata de um estudo de cunho bibliográfico com discussões teóricas por meio das vozes e
interlocuções de estudiosos que tratam das narrativas digitais e a teoria dos multiletramentos. Recorreu-se aos
estudos de trabalhos de Jenkins (2008), Santaella (2010), Cope e Kalantzis (2000; 2009), Oliveira et al. (2006),
Prado et al. (2017) Moura e Franco (2021) entre outros. As discussões teóricas realizadas no estudo contribuíram
para conhecer as propriedades do ambiente digital, o contexto de produção das narrativas e movimento que os
meios tecnológicos provocam na vida do cotidiano.

PALAVRAS-CHAVE: Narrativas digitais; Avanços tecnológicos; Teoria dos


Multiletramentos.

1 INTRODUÇÃO

A era digital ou as novas tecnologias, ciberespaço são expressões utilizadas para


assinalar a presença dos avanços tecnológicos instrumentalizados pela informática e pela
internet. São expressões que tornaram usual na contemporaneidade e em contextos de ensino
e tem provocado mudanças nas práticas pedagógicas, nas interações e um desafio diante dessa
outra forma de interações humanas, de renovações de ideias, de ações e pensamentos marcando
a história da humanidade.

As chamadas Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) estão


presentes na sociedade trazendo potencialidades e alterações nas condutas e nas concepções
dos sujeitos, uma vez que a TDIC autenticam outras formas de experienciar e compartilhar
ações. Vivencia se a era de comunicação caraterizada por espaços digitais utilizando de
diferentes linguagens. Discute se linguagens como dinâmica e plurais envolvendo conteúdos
verbais, orais, simbólicos, musicais, gestuais, conhecida como pluralidade semiótica
“viabilizada pelas novas tecnologias digitais de informação e comunicação, ao mesmo tempo

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em que enriquece uma ideia apresentada em diferentes semioses, cria mais complexidade para
ser tratada pelo sujeito” (XAVIER, 2015, p. 75).

Diante desses avanços que se investiga o conceito das narrativas digitais e suas
potencialidades para a formação de professor, visto que a dinâmica que envolve toda produção
textual na escola envolve novos ambientes e sentidos. As narrativas que antes eram um modo
de contar histórias orais passam a ser chamadas de Narrativas digitais, por serem constituídas
nos meios tecnológicos envolvendo diferentes linguagens. Este artigo tem a finalidade de
caracterizar as narrativas digitais e suas potencialidades no contexto da formação de professores
considerando a teoria dos multiletramentos.

A narrativa digital tem sido estudada com diversas nomenclaturas e abordagens: ora
como narrativas digitais, ora com digital storytelling, ou narrativa multimídia, digital narratives.
O estudo que se desenvolve concentrou no termo “narrativa digital” dada sua frequência nos
estudos educacionais e pelas principais referências teóricas da pesquisa.

Trata de um estudo de cunho bibliográfico com discussões teóricas por meio das vozes
e interlocuções de estudiosos que tratam das narrativas digitais e a teoria dos multiletramentos.
Nesse sentido, estudiosos como Jenkins (2008), Santaella (2010), Cope e Kalantzis (2000,
2009), Oliveira et al. (2006), Moura e Franco (2021), Prado et al. (2017), entre outros
subsidiaram o estudo.

2 NARRATIVAS DIGITAIS E OS MULTILETRAMENTOS : INTERLOCUÇÕES


COM ESTUDIOSOS

O diálogo inicia refletindo sobre os ensinamentos que Benjamin, (1994) traz para a
narrativa. Do ponto de vista filosófico as narrativas benjaminianas carregavam aspectos de
conselho e sabedoria, por isso fundia se na questão do interesse, transmitida oralmente de
geração para geração. As narrativas, nesta ótica, concebiam como uma maneira de registrar
fatos, ressignificar, e apontando para registros do cotidiano vivido e experienciado pelos
sujeitos e seu coletivo (BENJAMIN, 1994).

As narrativas banjaminianas envolve marcas “do narrador, como a mão do oleiro na


argila do vaso” (BENJAMIN, 1994, p. 220), como envolve relatos de Heródoto, afiançando a
pluralidade e a atemporalidade da narrativa: “Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e
depois de muito tempo ainda é capaz de se desenvolver” (BENJAMIN, 1994, p. 204). Os sinais
das narrativas trabalham com sutilezas psicológicas, e estão vinculadas a tradição e à
experiência do seu criador como um artificio artesanal.

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Arrisco-me a dizer que a narrativa sob esta premissa não está esquecida, mas na
contemporaneidade ela se apresenta com outro nome, outra forma de apresentar-se, e no limiar
dos avanços tecnológicos as narrativas surgem como narrativas digitais. As novas mídias
defendem outros formatos de linguagens e de movimentações dos sujeitos.

Centrada na união das novas tecnologias e dos recursos tecnológicos digitais de


informação e comunicação, a narrativa digital tem sido considerada como um modo de registrar,
compartilhar aspectos do mundo e da vida utilizando diversas linguagens digitais e nomeadas
como “distintas formas de produzir um texto, procedentes das práticas das linguagens
midiáticas” (PRADO et al., 2017, p. 1172).

A convergência digital, termo utilizado por Jenkins (2009, p. 332) “palavra que define
mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias circulam em
nossa cultura”, refere se a diferentes formatos de textos na mídia conservando a estrutura de
narrativa. São exemplos de convergência digital o acesso à internet pela televisão, uso das
maquinas filmadoras, dos smartphones, das câmeras, dos vídeos, as diferentes plataformas
instituindo uma nova cultura. Um conceito considerado mais amplo é o definido pelo estudioso
como “a uma situação em que múltiplos sistemas midiáticos coexistem e em que o conteúdo
passa por ele fluidamente” (JENKINS, 2009, p. 333).

A realidade das salas de aula no século XXI , não se distancia dessa convergência digital
como ferramenta pedagógica, auxiliando os professores em sua prática diária. Nessa
perspectiva, as contações de histórias infantis digitais ganham outros desenhos, diante das
inovações tecnológicas, os diferentes aplicativos proporcionam ludicidade, movimentos e
maior interatividade, alterando assim, as relações sociais e a formato dos textos escritos. Em
outras palavras, as narrativas digitais se constituem na junção entre o ato de contar uma história
em um contexto de multimídia.

Algumas características apontadas por Jenkins (2009) na convergência midiática estão


relacionadas as caraterísticas das narrativas digitais. Três eventos interligados entre si fazem
parte da convergência: o uso de diferentes mídias, a produção cultural participativa, e a
inteligência coletiva. Assim, para entender a cultura participativa busca se exemplos na
realização de enquetes, votações, busca de comentários e seleciona expressões como “curtir,
amei, haha” ou reações midiáticas, gestos símbolos que compõem a multimodalidade nas
narrativas digitais.

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Outro exemplo editado por Jenkins (2009) como cultura participativa, são as narrativas
de práticas coletivas de comunidades de fãs que, extraindo utilidade das tecnologias digitais
interativas, partilham interesses e conteúdo. O fandom, o fanfic é uma das amostras mais
representativas da cultura participativa, uma vez que a finalidade desses gêneros textuais é estar
envolvido coletivamente em um mesmo universo lúdico.

Da mesma maneira está a explicação para a inteligência coletiva enquanto caraterística


das narrativas digitais, à medida que um grupo de sujeitos adquirem a novos conhecimentos
usando a mesma linguagem e dinâmica social. Segundo Jenkins (2009), nenhuma pessoa detém
todo saber, mas há a possibilidade de unir habilidades em torno de interesses mútuos,
acrescentam novos conhecimentos à inteligência coletiva formada por um grupo.

Pierre Lévy (2003, p. 28), define inteligência coletiva como “[...] uma inteligência
distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta
em uma mobilização efetiva das competências”, sempre pautada no reconhecimento e o
enriquecimento mútuo das pessoas. Por exemplo uma acurada #hahstag fica entre as primeiras
no Twitter, diversas pessoas debatem o mesmo assunto e juntas têm um acréscimo da
capacidade intelectual. Os estudos e publicações de Lévy (2007) sobre a inteligência coletiva
tem dado destaques para criar um mecanismo de caráter semântico, independentes das
linguagens naturais e que seja capaz de relacionar os conteúdos presentes nos ambientes
digitais.

Segue a discussão com a questão de diferentes mídias denominadas de transmidia,


quando se lê o mesmo conteúdo ou noticia em mídias diferentes. Uma reportagem ou noticia
vista da televisão e a mesma mensagem editada no facebook da mesma mídia. Santaella (2010)
em suas pesquisas colocar em destaque os diferentes sentidos de convergência principalmente
no universo das mídias e das linguagens, e apresenta uma visão mais ampla sobre a
convergência apontando que não é possível distanciar de uma convergência tecnológica total “
pois o texto da cultura comporta-se como um denso palimpsesto. Sob as camadas visíveis, as
invisíveis continuam agindo. À convergência tecnológica soma-se a convergência de tempos e
espaços” (SANTAELLA, 2010, p. 79).

E para entender as narrativas digitais e a indústria do entretenimento provenientes da


cultura da convergência, que o estudioso Jenkins (2009) criou o conceito de narrativa
transmídia. Esse termo transmídia não se refere tão somente ao uso de diferentes mídias ou
canais de circulação; mas pelo fato de lidar com a linguagem narrativa podendo expandir os

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fatos ou acrescentar partes da narrativa expressas em cada meio, até porque a finalidade
narrativa transmídia é submergir o público nos acontecimentos para que esses sujeitos adotem
um papel de protagonista no processo de expansão.

Jenkins (2009) explica cultura da convergência como uma quebra de paradigma, ou seja,
a existência da substituição das velhas mídias de massa pelas novas mídias digitais. De acordo
com Jenkins a cultura da convergência tem estrito relacionamento com a cultura regularizada
por diferentes mídias e que provoca um comportamento específico em cada público. De acordo
com este estudioso:
A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A
convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados,
gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática
opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. Lembrem-
se a convergência refere-se a um processo, não a um ponto final. [...] Prontos ou não,
já estamos vivendo numa cultura da convergência (JENKINS, 2009, p. 43).

Embora deve-se a Jenkins (2009) a defesa do conceito de narrativa transmídia, ou


transmedia storytelling a estudiosa Santaella (2010) apresenta uma visão mais ampla sobre a
convergência. Entende a estudiosa que não se pode negar que esta, cada vez mais encontra se
próximo de uma convergência tecnológica total, embora “é preciso colocar em relevo os
diferentes sentidos de convergência que, especialmente no universo das mídias e das
linguagens, não quer significar o apagamento das diferenças”, pois para entender a
convergência tecnológica tem que refletir acerca de dois pontos: a convergência de tempos e
espaços (SANTAELLA, 2010, p. 79).

A narrativa transmídia surge na contemporaneidade como estratégia narrativa advinda


da ideia da convergência de Jenkins (2008) como uma transformação cultural ocasionada
pela participação coletiva na circulação de diferentes conteúdo:

A narrativa transmidiática refere-se a uma nova estética que surgiu em resposta à


convergência das mídias – uma estética que faz novas exigências aos consumidores e
depende da participação ativa de comunidades de conhecimento. A narrativa
transmidiática é a arte da criação de um universo (JENKINS, 2008 , p. 47).

Santaella (2018) corrobora com a temática transmidia apostando na linguagem da


narrativa e adverte que outros discursos como jornalístico, científico pode até ser considerado
“transmídia”, desde que seu conteúdo esteja presente em múltiplas mídias; todavia, não se
constituirão narrativas transmídia, se lhe faltar a “cauda longa da narrativa, ou seja, falta-lhes
a isca do fisgamento que destinos possíveis e imaginários – privilégios da narrativa –
provocam no ser humano” (SANTAELLA, 2018, p. 79).

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Essa mesma estudiosa ao definir os perfis cognitivos dos tipos e leitores, pressupõe
leitores de textos impressos, de imagens, de mapas, de sinais, e de leitores de diferentes signos
oriundos do computador. E nessa linha apresenta três tipos de perfis: contemplativo, movente
e imersivo Santaella (2004) como uma maneira de ampliar as questões relacionadas a leitura de
imagens e outros tipos de signos. Essa expansão da leitura para além dos textos escritos é o que
valida a crescente relação entre as linguagens verbal, visual e sonora e a noção de leitor ubíquo.

Portanto, o que se está chamando de leitor ubíquo não é outra coisa a não ser uma
expansão inclusiva dos perfis cognitivos dos leitores que o precederam e que o leitor ubíquo
tem por tarefa manter ativo a comunicação. Ademais, trata de um leitor da cultura digital, um
leitor que tem de apreender como o sentido emerge em contextos coletivos e colaborativos, e
atua numa cultura aberta, baseada em apropriação, transformação, ou seja o “acesso passa a se
dar em qualquer momento e em qualquer lugar” (SANTAELLA, 2013, p. 276).

A entendimento de leitor ubíqua sugere a ideia de sujeitos presentes em qualquer tempo


e lugar, próximo ou remoto. Segundo Santaella (2013) encontra se os ubíquos, com maior
frequência entre os jovens que interagem entre si mediados pelas redes sociais digitais.

Igualmente, pode se pensar nas narrativas digitais como prática de ensino, significa
convidar alunos a conhecer tanto os aspectos dos recursos tecnológicos e as potencialidades das
diferentes linguagens, os modos semióticos para construção de sentidos em sociedade. As
narrativas digitais pensadas nos processos formativos de quem narra mesmo que tenham
diferentes recortes contextuais e temporais, deve vir acompanhadas de símbolos gráficos
típicos da linguagem das tecnologias digitais de informação, bem como a convergências das
novas mídias. Valido dizer da importância a dessas manifestações verbais, imagéticas, gestual,
sonora e na função que desempenha.

Alguns entrelaçamentos entre narrativas digitais e o processo de formação docente são


evidenciados por Josso (2007) e Oliveira et al. ( 2006) estudiosas que tem sido referência para
compreender o processo de formação por meio de narrativas trazendo o “si”, os outros, os
tempos e os espaços que oportunizam essa construção. E ao narrar sua história e trazer sua
experiência de formação a narrativa surge como um discurso “em que se imbricam significações
diversas, que formam redes e criam uma realidade social no embate com diferentes
interlocutores (reais ou internalizados) para legitimar sentidos” (OLIVEIRA et al., 2006. p.
552).

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212
Essa rede de significações para as estudiosas representam os sentidos atribuídos ao
mundo, principalmente em tempos informatizados “não como soma, mas como um “sistema”
em que cada sentido é determinado na sua relação com os outros; um mundo de
significados”(OLIVEIRA et al., 2006, p. 554). Na construção da identidade para as estudiosas
há sempre uma relação do concreto ou do virtual, como um acontecimento social e coletivo.

E nessa linha de raciocínio, as narrativas digitais favorecem discursos mais amplos que
se materializam na construção do sujeito enquanto produtor de sua trajetória.

Josso (2007) apropria se das narrativas como uma possibilidade de descobertas da


formação marcadas pelas experiências saberes e uso da profissão, e inclui as tecnologias digitais
como um recurso de representação dos sujeitos envolvidos na cibercultura no processo de
formação.

Uma das implicações que emerge na discussão está justamente na gama de significados
e na gama de possibilidades que as novas tecnologias trouxeram para a revisão das práticas
pedagógicas. As narrativas se antes era o modo escrito que determinava os sentidos, com as
narrativas digitais outros modos e formatos foram acrescentados o que denominou se de
multimodais. Sobre a multimodalidade os ensinamentos de Cope e Kalantzis (2000) muito
contribuem para entender os significados expressos, ou seja, chega se na criação do design,
enquanto multimodais.

Os recursos tecnológicos foi o responsável para o estabelecimento dessa nova maneira


de representar o mundo e de formatos diferentes dos modelos tradicionais. Os novos espaços
tecnológicos de comunicação sugerem uma remodelagem da mensagem dada as características
que a mídia oferece. Fragmentos da tela passam a constituir opções de leitura e num percurso
hipertextuais pode se chegar a significados mais complexos (COPE; KALANTZIS, 2000).

Os processos semióticos alimentam a compreensão de multimodalidades, e transportam


o sujeito a repensar a produção baseada somente na linguagem escrita, ademais são esses
processos que se consubstanciam as construções textuais e movimentam as transformações nos
processos de produção de narrativas. Essa proposição esta referenciada nos estudos do New
London Group (GNL), que explicam os efeitos sociocultural instituidores de linguagens
narrativas digitais e desenvolvidas com os usos das tecnologias.

As contribuições do GNL residem sobretudo na questão do multi que vai além das
implicações linguísticas e verbais. As narrativas digitais entram nesse aspecto do multi à
medida que aspectos multimodais da linguagens estão presentes no construto textual (escrita,

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213
gestual, visual, audiovisual), assim como recorrer a multiplicidade de significações dos
contextos e culturas trazidos pelas narrativas (COPE; KALANTZIS, 2000).

E quando se fala em formação de professores e processos de ensino e aprendizagem de


multiletramentos busca se nos argumentos de (COPE; KALANTZIS, 2000) explicações para
os vários formatos de texto ligados às TDIC e suas linguagens. Os estudiosos chamam atenção
dos formadores educacionais para a necessidade de trazer para o contexto da sala de aula
explicações sobre essas novas e variadas formas de textos acoplados as tecnologias de
multimídia.E como exemplo apresenta a relação semiótica entre imagem e escrita apontadas
nos estudos linguísticos coma denominação de design visual.

O design, na acepção de Cope e Kalantzis (2000), compreende em uma maneira a


multimídia. O conceito de design surgiu para rebater os entendimentos anteriores as
tecnologias, de que o ensino só se concretizava numa visão estática da linguagem, por isso os
designs propõem incluir uma concepção mais dinâmica, menos excludente pois o sujeito pode
tornar produtor do seu próprio conhecimento.

Para os estudiosos, entender a noção de design dois sentidos devem ser observados: o
sentido de estrutura morfológica e o sentido de ato de construção. O segundo sentido apontado
“ato da construção” são essências nas narrativas digitais pois trata na ação de representar os
significados para si, por exemplo, realizar uma leitura , ou ver uma imagem, registrar momentos
da vida em fotografias Cope e Kalantzis (2009). A teoria do design, teoria proposta a partir da
Pedagogia dos Multiletramentos focaliza o processo da transformação com as novas formas de
comunicação com ênfase para a multimodalidade e a pluralidade de sentidos.

As narrativas digitais apresentam interface com essa nova maneira de olhar o


aprendizado das línguas como prática social, e a pedagogia dos multiletramentos acercar-se de
uma proposta desenvolvida pelo Grupo de Nova Londres (New London Group) – GNL entre
1995 e 1996. Essa abordagem não é um método de ensino, mas com relação aos aspectos
linguísticos essa pedagogia está muito próxima da contemporaneidade, pois o século XXI tem
sido marcado por grandes avanços tecnológicos o que tem demandado dos sujeitos
conhecimentos de múltiplas linguagens para interagir e estar habilitados para multiletramentos.

Essa proposta dos multiletramentos tiveram seu início em estudos de pesquisadores


australianos Bill Cope e Mary Kalatantzis (2009) conhecidos como (Grupo de Nova Londres),
e são os responsáveis por trabalhos e releituras da pedagogia, incluindo cada vez mais aspectos
relacionados as práticas digitais. Após passar por várias sistematizações e quatro movimentos

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214
pedagógicos, todos vinculados aos estudos de Mary Kalantzis e Bill Cope (2009) em diferentes
momentos. A partir de 2009, no artigo de Bill Cope e Mary Kalantzis sob o título
“Multiliteracies: New literacies, new learning”, surge com o intento de substituir oficialmente
os quatro movimentos didáticos propostos no manifesto de 1996.

A leitura desse texto não se volta estritamente para cultura digital e produção de sentidos
na Web 2.0 , todavia traz o termo ubiquidade 21 ponderando que o ambiente digital promove a
integração de sentidos, práticas e modalidades. Nesse sentido, que entende que a realização dos
movimentos pedagógicos, não são excludentes, eles se cruzam durante qualquer momento do
processo de ensino. No processo da contextualização das narrativas digitais é que visualiza a
sobreposição dos designs, vistos nos seus três aspectos: os designs disponíveis (Available
design), os desenhos -designs (Designing) e os redesenhos (Redesigned).

Nessa mesma linha de raciocino de Cope e Kalantzis (2009), a pesquisadora Rojo


(2013) traz uma contribuição acerca desse movimento dos desenhos –designs e chama
atenção para o modelo de análise dos designs. Explica a estudiosa que o pressuposto de análise
ainda encontra se fundamentado no signo verbal, e não prestando cuidado em considerar as
outras semioses, promovendo de certo modo fragmentações e descontextualização para
tarefas de analises multissemiótico crítico efetivo.

Para pensar os multiletramentos e os designs embora não haja necessariamente uma


linearidade entre esses movimentos apresentados, acredita-se que numa unicidade entres eles,
pois de alguma maneira , a prática situada (situated practice) pode constituir o ponto de partida,
e a prática transformadora (transformed practice) pode funcionar como ponto de chegada,
configurando assim, uma nova pratica situada para a construção de novas práticas
transformadoras Tulio e Schlude (2000). Fato é, que os movimentos se entrecruzam fazendo
referência um ao outro retratando um processo cíclico de aprendizagem.

Para ilustrar os movimentos dos design Tulio e Schlude (2000) apresenta uma proposta
de representação gráfica da Pedagogia dos Multimetramentos, demonstrando as relações entre
as práticas (situada e transformadora).

21
Discussões acerca da ubiquidade e pedagoia dos multiletramentos encontra se nos livros Literacies (2012) e A
pedagogy of multiliteracies: learning by design (2015). No Brasil, autores como Roxane Rojo aproximam as duas
perspectivas de letramentos digitais e multimodais em trabalhos como Multiletramentos na Escola (2012) e Escola
Conectada (2013).

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Figura 1: Proposta de representação gráfica da Pedagogia dos Multiletramentos.

Fonte: Tulio e Schlude (2000, p. 8).

Essa proposta elaborada pelos estudiosos Tulio e Schlude (2000) tem a intenção
didatizar os movimentos pedagógicos de cada momento já mencionados.

De acordo com Cope e Kalantzis (2009) em narrativas digitais as significações podem


ser mutáveis e dinâmicas conforme os diferentes canais de comunicação e plataformas digitais
utilizadas. Moura e Franco (2021) corrobora com a assertiva explicitando que “abrangência e a
multiplicidade de recursos disponíveis ao sujeito fazem com que toda narrativa seja única e
híbrida”. Assim, pode se inferir que a variedade de designs que vai possibilitar o desenho e a
multiplicidade de semioses para dar sentido a realidade vivida quer individual ou coletiva.

Nessa ideia da dinamicidade há que concordar com Cope e Kalantzis (2000), quando
assevera que os designs se decompõem em significados tantos que no tocante aos sentidos eles
negociam com os sujeitos as reconstruções por meio dos seus design.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ensaio de Pinheiro (2021) publicado na Revista Linguagem em Foco, sob o título


“A Pedagogia dos multiletramentos 25 anos depois: algumas (re)considerações” faz um
releitura sobre o manifesto “A Pedagogy of Multiliteracies: Designing Social Futures”, de
autoria de um grupo de pesquisadores Austrália, da Inglaterra e dos Estados Unidos (New
London Group). Com essa publicação faço as considerações finais do texto que ora foi
construído destacando as contribuições do design termo cunhado pelos estudiosos e uma

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216
maneira de mostrar ao leitor exemplos da interligação das narrativas digitais com a
multimodalidade.

Não se pode descaracterizar que as tecnologias digitais da informação e da comunicação


(TDICs), após COVID -19 alcançaram um impacto crescente na educação e na pratica dos
professores e alunos, e com a reapropriação do termo design nas diferentes dimensões
(profissional, social, pessoal) já anunciava uma nova construção de sentido para as narrativas
digitais. E para exemplificar acerca da contribuição dos designs recorro ao ensaio de Pinheiro
(2021) para mostrar por meio de exemplos o cenário político nacional recente.

Um exemplo foram as narrativas sobre a “ mobilização de alcance nacional, ocorrida no


Brasil em 2018, cuja principal rede social utilizada foi o WhatsApp greve dos caminheiros”
(PINHEIRO, 2021, p. 14) , e a outra foi o “uso de fake news na eleição presidencial, ocorrida
nos meses de outubro e novembro de 2018, cujos efeitos foram intensos e nefastos para o todo
o processo eleitoral” (p. 15). Dois pontos desses ensaios chamam a atenção: a presença de
narrativas digitais retiradas do site do Sindicato da Indústria de Especialidades Têxteis do
Estado de São Paulo (Sitex), e as narrativas de mensagens grupos fechados (não públicos) de
WhatsApp, que após socializadas criaram redes.

São narrativas presentes na mídia digital composta de imagens, personagens,


movimentos, com características sociotécnicas do WhatsApp, que contribuíram para entender
a noção de designs. Embora o exemplo de (PINHEIRO, 2021) sobre os designs disponíveis são
de ordens do discurso específicas, de um determinado espaço social, mas constituem marcas
associadas a atividades semióticas. O que o estudioso chamou de “letrado crítico”, pode se
dizer de um “sujeito social inocente” pois um leitor critico não pode consumir tudo que está nas
mídias, “mas buscar compreender e avaliar os diferentes mecanismos que regem a produção,
reprodução e difusão desses conteúdos” (PINHEIRO, 2010, p. 211).

As transformações que vivencia na contemporaneidade solicita uma atenção maior que


vai para além das tecnologias digitais, a forma como está sendo colocada para chamar atenção
da sociedade por meio das narrativas. Quanto mais o usuário apresenta o domínios das mídias
mais habilidades para a construção da narrativa digital, pois “ quanto mais o sujeito se apropria,
faz uso de recursos e se conecta, mais significados constrói em suas intervenções” (MOURA;
FRANCO, 2021, p. 215).

A construção da narrativa digital não se apresenta de modo uniforme para todos os


usuários, cada um constrói seu caminho conforme suas potencialidades com a mídia. Ele que

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define os modos semióticos e apresenta suas ideias e para isso recorre a diferentes finalidades
de narrativas digitais: compartilhando experiências coletivas ou individuais, divulgando
campanhas, registrando eventos, compartilhando a narrativa com o público no ambiente online,
ente outras. O texto cumpre sua finalidade quando apresenta as perspectivas teóricas das
narrativas digitais e sua relação com multimodalidade.

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Humanas, Volume 1.
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DOI 10.47402/ed.ep.c2406111617215

CAPÍTULO 17
ANÁLISE SOBRE O COMPORTAMENTO DE CONSUMO CONSIDERANDO OS
ATRATIVOS TURÍSTICOS DAS CIDADES DE ARACAJU/SE E SALVADOR/BA

Taís Alexandre Antunes Paes

RESUMO
O turismo abrange diversos agentes sociais que em conjunto ofertam atrativos e serviços que atendam aos
interesses e expectavas dos seus consumidores que podem contribuir para a geração de vantagem competitiva
(MORRISON, 2019). Os turistas e visitantes, buscam experiências turísticas memoráveis e uma análise sobre o
comportamento de consumo pode favorecer e contribuir para que o destino atenda tais necessidades com o
planejamento de ações mercadológicas. Desta forma, o presente estudo objetivou realizar um levantamento e
análise dos atrativos turísticos das cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA, entendendo sua relação com o
comportamento de consumo. Este esrtudo caracterizou-se como sendo descritivo e exploratório com pesquisas
efetuadas nas bases de dados do Google Places, site TripAdvisor e entrevistas realizadas com a comunidade local,
setor público, setor privado e turistas nas cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA. O levantamento dos dados
apresentou categorias e subcategorias de atrações com resultado de 496 atrativos para a cidade de Aracaju e 756
para a cidade de Salvador. Observou-se que as praias e atividades vinculadas à cultura local são os atrativos que
mais representam ambos os destinos. Entretanto, verifica-se que Aracaju e Salvador apresentam outras
potencialidades turísticas que podem ser estimuladas e fazerem parte das ações mercadológicas destas localidades.

PALAVRAS-CHAVE: Atrativos turísticos; Destinos; Comportamento de consumo.

1 INTRODUÇÃO

Os destinos turísticos apresentam grande complexidade de relações, uma vez que


envolve diversos agentes sociais (comunidade local, setor privado, setor público e visitantes)
que, em conjunto, promovem a prestação do serviço. A complexidade das interações e relações
evidencia o aspecto dinâmico do turismo e a necessidade de compreender melhor esta atividade,
visto que a mesma pode denotar um alto envolvimento por parte de determinados turistas.

Aliado a isso, tem-se um conjunto de organizações privadas e públicas, a comunidade


local, a infraestrutura, a disponibilidade de atrativos turísticos, os turistas e os visitantes que
estão interagindo uns com os outros, consolidando a imagem e reputação do destino.

Todavia, tal destino necessita ser competitivo e promover experiências turísticas


agradáveis, permitindo que os seus visitantes vivenciem determinadas emoções, repercutindo
em boas memórias e sensações, gerando satisfação e experiências positivas e memoráveis.
Além disso, existe o reconhecimento de que experiências turísticas também podem contribuir
para o desenvolvimento da sua identidade quando indivíduos vivenciam novos contextos e
situações socais (MEDEIROS et al., 2021). Dessa forma, ferramentas mercadológicas podem
estimular ações, informações e comunicações sobre a localidade de forma planejada e integrada
com a comunidade local.

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Assim, o presente estudo tem como objetivo central realizar um levantamento e análise
dos atrativos turísticos, provenientes das bases de dados Google Places, site TripAdvisor e de
entrevistas realizadas nas cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA, e entender sua relação com o
comportamento de consumo. Estes estudos contribuem para que as localidades turísticas
possam melhor determinar e estabelecerem estratégias públicas de investimento para atingir a
demanda desejada. As localidades apresentam diversos atrativos turísticos, entretanto, nem
sempre estes estão de acordo com a imagem percebida e desejada pela população ou públicos
de interesse. Neste sentido, análises sobre estas perspectivas são relevantes para as localidades
e para estudos comportamentais que devem ocorrer de maneira constante e sistemática.

2 ATRATIVOS E DESTINOS TURÍSTICOS

Para o Ministério do Turismo (MINISTÉRIO DO TURISMO, 2007, p. 27), um atrativo


turístico é composto de “locais, objetos, equipamentos, pessoas, fenômenos, eventos ou
manifestações capazes de motivar o deslocamento de pessoas para conhecê-los. Estes podem
ser naturais; culturais; atividades econômicas; ou eventos programados”. Para Ballina (2017) o
atributo principal para entender a gestão de um destino deve ser a imagem transmitida e
percebida. O destino se gera a partir das experiências dos turistas ao escolher e desfrutar dele.
Este deve concentrar cinco componentes principais: atrações; acesso; serviços; informação; e
a promoção.

Na concepção de Morrison (2012) o conceito de destino turístico é delimitando de


acordo com as seguintes características: uma área geográfica com fronteiras administrativas;
locais com acomodação; atrativos de acesso aos visitantes; existência de esforços e ações de
marketing turístico; uma administração do destino de forma coordenada; uma imagem do
destino existente na mente do turista; existência de leis e regulamentações governamentais; e a
coordenação de vários stakeholders (setor privado, setor público, ONGs e a comunidade)
envolvidos no processo.

Aliado e relacionado aos destinos e atrativos estão os turistas e visitantes destas


localidades, já que a escolha por conhecer e vivenciar o estilo e o modo de vida de um
determinado destino requer pesquisa e tomada de decisão na busca de informações para
respaldar as decisões de pré-compra, em virtude das diversas opções de destinos turísticos que
chamam a atenção de um indivíduo.

Sendo assim, a atividade turística apresenta uma variedade de relações que remete aos
destinos, que necessitam serem bem planejados e estruturados, para que possam atender às

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necessidades dos turistas e da comunidade local. É devido à tais variáveis, em termos de
planejamento de marketing estratégico, que se torna importante que o destino defina a sua
natureza em sua profundidade e amplitude e, assim, construa as pré-condições corretas para um
planejamento de marketing de sucesso a nível local (SARANIEMI; KYLÄNEN, 2011).

De acordo com Sanchez (2017), os destinos turísticos devem trabalhar com a


informação, uma vez que esta abarca a escolha do destino, o planejamento, a reserva e a
experiência turística. Aqueles destinos turísticos que desejam ser relevantes para o viajante,
necessitam entender o comportamento destes, suas preferências, gostos e formas de atuar, para
a construção de estratégias e táticas necessárias.

Além disso, é relevante que os destinos turísticos determinem e estabeleçam os


elementos, atrativos e característicos que constituem seus diferenciais competitivos,
objetivando a formação de uma imagem que se sobressaia em relação aos demais, visto que a
construção de uma imagem diferenciada é um importante aspecto para a busca de vantagem
competitiva (GÂNDARA, 2008; OLIVEIRA et al., 2021).

Paula (2010) e Domareski-Ruiz, Gândara e Chim-Miki (2015) indicam que a


competitividade ente destinos turísticos não depende somente de vantagens comparativas
estáticas (recursos naturais, localização, disponibilidade de mão-de-obra, etc), mais também de
vantagens competitivas dinâmicas (inovações tecnológicas, gestão organizacional, gestão de
marketing, acesso à informação e conhecimento). Assim, tais aspectos são requisitos
interdependentes e de complementaridade na busca da competitividade.

Destarte, verifica-se que são diversos os destinos turísticos que existem a nível mundial,
e atrair turistas e visitantes para as suas localidades não é tarefa fácil. Os indivíduos, atualmente,
apresentam acesso a uma grande quantidade de informações que os tornam mais exigentes e
seletivos na escolha de um local para viajar, sendo a experiência turística um fator relevante
para que o destino se consolide. Desta forma, para que os destinos turísticos sejam competitivos
é necessário que as potencialidades turísticas da localidade sejam evidenciadas e valorizadas
além das percepções comportamentais dos indivíduos observadas.

No entendimento de Ballina (2017) o comportamento de consumo em turismo deve


considerar o segmento de mercado que está adquirindo o produto turístico; possível
emotividade da compra; como ocorre o processo de tomada de decisão de aquisição do produto;
o fato da obtenção e do consumo não ocorrerem simultaneamente; a existência de múltiplas
influências no processo de compra; sensação de risco percebido; e o excesso de informações,

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tanto comerciais quanto subjetivas. Verifica-se nestes parâmetros o destaque para a
emotividade que pode envolver o processo de tomada de decisão de consumo e que, por se
relacionar, muitas vezes, com as motivações dos consumidores que apresentam expectativas e
buscam experiências de viagem e de consumo, dependendo da forma como é trabalhado o
marketing turístico, pode gerar insegurança e percepção de risco.

Nessa concepção, para que o destino turístico ganhe competitividade e cresça de forma
sustentável é necessário um esforço conjunto dos prestadores de serviços e das organizações
públicas e privadas que fazem parte da localidade. E que a qualidade da oferta turística atenda
ou mesmo supere as expectativas dos visitantes estimulando que eles retornem ao destino e que
o recomende, evitando a dissonância cognitiva.

3 METODOLOGIA

O presente estudo é de caráter descritivo e exploratório com levantamento e


categorização dos principais atrativos turísticos (a oferta turística) das cidades de Aracaju/SE e
Salvador/BA, disponíveis no google places e no site TripAdvisor. Além destas bases de dados
foi realizada uma pesquisa presencial com turistas que visitavam os destinos; comunidade local;
setor privado (restaurantes, agências de viagens, hotéis e pousadas); e o setor público
(Secretarias de Turismo) nas cidades de Aracaju e Salvador, buscando realizar um levantamento
dos atrativos turísticos que tais públicos consideravam como relevantes nas localidades
pesquisadas no primeiro semestre de 2023. A observância dos atrativos disponíveis no google
places e no site TripAdvisor foram também realizadas no mesmo período das entrevistas, porém
houve uma atualização de tais dados em novembro de 2023.

A pesquisa presencial foi realizada na cidade de Aracaju com 123 indivíduos


distribuídos da seguinte forma: 38 turistas, 23 do setor público, 37 pessoas da comunidade e
25 pessoas do setor privado. Para a cidade de Salvador foram entrevistadas 103 pessoas, sendo
31 turistas, 33 do setor público, 23 pessoas da comunidade e 16 pessoas do setor privado. Estas
entrevistas serviram como base de informações sobre os atrativos turísticos das localidades.
Desta forma, os dados coletados basearam-se em amostras não-probabilísticas.

O google places é uma ferramenta do Google que permite que o usuário busque
informações sobre várias cidades relacionadas ao que fazer, onde comer, se hospedar, opções
de compras e serviços diversos (ex. caixas eletrônicos, salões de beleza, locadoras de veículos,
farmácias, hospitais, entre outros). Tal ferramenta permite que o usuário realize avaliações dos
atrativos turísticos e poste comentários e fotos do local.

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Humanas, Volume 1.
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Já a plataforma do TripAdvisor, uma das mais utilizadas por diversos viajantes para
obterem informações turísticas, pela garantia da qualidade dos dados sobre hotéis, restaurantes,
atrativos turísticos etc. (FILIERI; ALGUEZAUI; MCLEAY, 2015; RAGUSEO; NAIROTTI;
PAOLUCCI, 2017; GANZAROLLI; NONI; BAALEN, 2017; ALEXANDRE; BLANK;
HALE, 2018). O sítio eletrônico atua como intermediário entre o serviço turístico por parte dos
fornecedores e viajantes, onde o valor é gerado para o usuário através da informação
apresentada por fatos objetivos, visando contribuir para a decisão de compra ou escolha de um
destino ou serviço turístico (RAGUSEO; NAIROTTI; PAOLUCCI, 2017; SCHUSTER, 2017).

O Tripadvisor disponibiliza atrações referentes a vários destinos de turismo, utilizando


a conta do Facebook ou do Google dos usuários para permitir a conexão. Além disso, o mesmo
é uma mídia de recomendação colaborativa (AFUAH; TUCCI, 2012; ALEXANDRE; BLANK;
HALE, 2018), ou seja, os usuários indicam as suas percepções sobre os prestadores de serviços
turísticos. Tais avaliações são classificadas em um sistema de ranking, que é baseado nas
postagens de recomendações, comentários e análises dos clientes, para avaliar produtos,
serviços e atrativos desse setor, como isto pode ser classificado como publicidade, esta
ferramenta de marketing conta com mais credibilidade que a propaganda, pois se trata de
depoimentos gratuitos, e não pagos como a propaganda se caracteriza.

Quanto aos questionários, estes foram elaborados, considerando cinco perguntas


relacionadas aos aspectos turísticos, em um deles o respondente só poderia escolher uma opção
de resposta, uma vez que era um questionamento estruturado e os demais eram questionamentos
abertos. Estes versaram sobre o que motivava mais a pessoa a viajar; tipo de atividade que mais
interessava; locais de preferência na cidade e redondezas; atrativos turísticos que representavam
a cidade; e que atrativos indicariam para outras pessoas.

4 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Conforme supracitado, o levantamento e categorização dos atrativos turísticos foram


realizados nas bases de dados do google places, site TripAdvisor e de entrevistas realizadas nas
cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA.

Tendo em vista o Google Places, as opções disponibilizadas de categorias relacionadas


a atrativos turísticos foram: restaurantes, bares, atrações, vida noturna e compras em shopping
centers. Considerando tais categorias, para a cidade de Aracaju, foi possível verificar 130
opções de restaurantes, bares e relacionados a vida noturna; 32 atrações turísticas (praças,
parques, museus, memoriais e praias) e 2 shopping centers. A cidade de Salvador apresentou:

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280 opções de restaurantes, bares e relacionados a vida noturna; 93 atrações turísticas (praças,
parques, museus, memoriais e praias) e 35 opções de shoppings.

No aplicativo ou site do TripAdvisor os tipos de atrações turísticas são classificados em


cinco tipos de categorias de atrativos (pontos turísticos de interesse; museus; natureza e
parques; zoológicos e aquáticos e diversão e jogos) que resultaram em 67 opções para a cidade
de Aracaju. Além de 10 opções de locais para compras e 216 sugestões de restaurantes.
Referente à cidade de Salvador o site disponibiliza 201 opções de atrativos, 36 locais para
compras e 528 opções de restaurantes na cidade.

De acordo com os dados das entrevistas de Aracaju os respondentes indicaram que as


principais motivações de viagem eram conhecer novos lugares e pessoas; e o descanso. Os
menos citados foram os parques e a vida noturna. Tokaechuk, Maurer e Bosnjak (2015)
destacaram que entre os principais motivos de viagens em turismo está a busca por elementos
hedônicos, de diversão e prazer.

As atividades de maior interesse foram as praias e a cultura local. Os locais de


preferências mais citados foram as praias e os parques. Relativo aos atrativos que representam
as cidades, os mais elencados foram as praias e os mercados municipais. E em último lugar
ficaram as galerias. Sobre os atrativos que indicariam, as praias se apresentam em primeiro
lugar, em seguida estão os museus. Tais dados corroboram com os aspectos motivacionais
apresentados por Swarbrooke e Horner (2016) em que existem as motivações culturais e físicas
(ex. relaxamento, saúde, banho de sol etc.).

É possível perceber, pelas entrevistas, o grande interesse dos pesquisados pelas praias e
a representatividade delas na identificação do destino, sendo esse atrativo o que representaria a
localidade. Também, é perceptível uma valorização cultural pelos respondentes em relação às
tradições e os costumes locais identificados através dos museus, mercados municipais,
gastronomia, entre outros. Ainda é possível observar o interesse pelos aspectos ambientais do
destino quando são citadas as praias, parques e praças.

Na cidade de Aracaju os parques urbanos são comumente frequentados por turistas,


visitantes e moradores locais, tanto para a prática de atividades físicas como para o lazer e a
diversão. Estes parques urbanos destacam-se, de acordo com Rodrigues e Santos (2018), por
oferecerem atratividades relacionadas à paisagem, manifestações culturais, historicidade,
arquitetura e atividades lúdicas, que os caracterizam como espaços de lazer, sociabilidade e/ou
preservação ambiental em meio ao espaço urbano.

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O atrativo praias além de ser um ambiente natural e aberto ao público, é um local em
que os indivíduos se sentem mais livres, sendo este um lugar de lazer e descanso. Tal interesse
a nível social acaba por influenciar e repercutir no marketing turístico do destino, assim como
em outras cidades do litoral do Nordeste. A imagem das localidades estudadas confirma a
relevância dos atrativos relacionados a de sol e mar, não havendo um grande diferencial em
relação a outros destinos turísticos da região litorânea do Nordeste brasileiro.

Para que a localidade obtenha diferencial competitivo é importante que esta possa se
diferenciar das outras investindo em gastronomia, aspectos culturais locais, prestação de
serviços de qualidade, entre outros. Sobre os aspectos culturais de Aracaju, evidencia-se a
presença da culinária típica, em que se sobressai o caranguejo, a mangaba, o cuscuz, a carne de
sol, o pirão de leite e o amendoim.

O amendoim, por exemplo, segundo Leal (2022) está presente nos espaços turistificados
e não turistificados de Aracaju, como um alimento que é consumido pela população local e que
gera a curiosidade dos visitantes e turistas que chegam à localidade, pois o amendoim não é
torrado e sim verde e cozido em água, sal e limão. Tal iguaria é adquirida para provar ou para
levar como recordação alimentar (LEAL, 2022). Este amendoim verde cozido foi reconhecido
pela Assembleia Legislativa através da Lei n.7.682/2013, como Patrimônio Imaterial do Estado
de Sergipe.

Como se pode notar a gastronomia local representa a identidade de um destino com


características sensoriais, socioculturais, simbólicas e econômicas (MOREIRA; GOSLING,
2021) favorecendo experiências turísticas e o contato com outros costumes e culturas. Aspectos
estes que deveriam serem estimulados e mais bem divulgados pelo destino Aracaju
representado a sua riqueza gastronômica.

Além da culinária típica, estão as festividades religiosas, como a festa de São João e o
dia de Nossa Senhora da Conceição (ÍNDICE DE COMPETITIVIDADE DE ARACAJU,
2015). Relativo a Salvador observam-se as festas de largo, relacionadas a aspectos religiosos e
culturais tradicionais, a questão histórica devido a idade da cidade e ao fato de ter sido a
primeira capital do Brasil, e as raízes africanas de boa parte da população.

Tendo em vista as percepções dos entrevistados de Salvador, é possível averiguar que


as principais motivações de viagens se referem a conhecer novos lugares, culturas e pessoas e
a busca pelo descanso. Em último lugar aparecem as compras.

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As atividades de interesse citadas foram as culturais e de sol e mar. Os locais de maior
preferência foram as praias e o centro histórico do Pelourinho. Considerando os atrativos que
os pesquisados acreditam que representam a cidade estão: o centro histórico do Pelourinho e as
praias. Outros atrativos naturais como parques, praças, entre outros, apesar de terem sido
citados, não foram muito representativos quando se observa o interesse pelo atrativo praia. O
aspecto cultural com a representatividade do Pelourinho é evidenciado com frequência.

Entre os atrativos culturais, o Índice de Competitividade de Salvador (2015) destaca,


com maiores fluxos turísticos, o Pelourinho, Farol da Barra e a Igreja do Bomfim, além de
eventos programados, como o Carnaval e a Lavagem do Bomfim. Existe o incentivo relativo à
atividade artesanal e a culinária típica, como patrimônios imateriais registrados pelo
estado e patrimônio artísticos e culturais tombados pelo Governo do Estado, IPHAN (Instituto
do Patrimônio e Artístico Nacional) e UNESCO (Organização das Nações Unidas para a
Educação, Ciência e Cultura), já o caso da Praça Municipal, Terreiro de Jesus, Igreja de São
Francisco, Largo do Pelourinho, Largo de Santo Antônio e Largo do Boqueirão, estes entram
como patrimônios materiais e históricos (IPHAN, 2020).

Analisando o atrativo praia, este é proeminente, pois corrobora com um perfil de


entrevistado que busca viajar com a família que, geralmente, procura atividades de lazer com
infraestrutura adequada para um bom momento de diversão.

Segundo Vera, Ladeira e Costa (2013) a praia é um local onde a realização de lazer e
consumo se fazem presentes, no qual os princípios de Marketing devem ser utilizados, buscando
elaborar estratégias para dar ênfase a certas peculiaridades dos produtos e serviços oferecidos
nesse ambiente. Estes mesmos autores relatam em seu estudo, que em 2010, barracas de praias
foram demolidas na cidade de Salvador e que tal acontecimento apresentou uma repercussão
negativa por parte dos frequentadores (moradores e turistas), pois a existência delas exercia
influência na escolha das praias e motivava a frequência das mesmas.

Verifica-se que ambas as cidades, Aracaju e Salvador, apresentam perfis de interesses


semelhantes entre os pesquisados que destacam a praia como o principal atrativo turístico
preferido e, também, a valorização da cultura local. O que se percebe, todavia, é que em Aracaju
há uma valorização maior de atrativos relacionados a natureza e os parques da cidade são bem
frequentados por moradores locais. Entretanto, os aracajuanos necessitam valorizar mais a sua
cultura local e se sentirem pertencentes a ela. Este aspecto é mais bem notado para a cidade de

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Salvador, em que a valorização dos aspectos culturais sejam eles baseados nos seus patrimônios
materiais ou imateriais são fortemente observados nas divulgações desta cidade.

Assim, a forma como a cidade deseja ser conhecida e vista apresenta uma grande
influência dos meios de comunicação e as estratégias mercadológicas utilizadas. E estes
aspectos podem ser percebidos nos atrativos turísticos que são disponibilizados por bases de
dados como o google places e site TripAdvisor, por exemplo.

Quando se verificam os atrativos citados nas entrevistas e os atrativos turísticos que são
apresentados nas bases de dados do google places e site TripAdvisor é possível observar e
determinar as categorias e subcategorias de atrativos e perceber os atrativos turísticos que
chamam mais a atenção e se destacam nas preferências dos indivíduos, indicando um perfil de
consumidores. Esta determinação do perfil de consumidores pode influenciar diretamente as
ações mercadológicas de ambas as localidades.

Considerando e excluindo os atrativos apresentados no google places e no site


TripAdvisor, que estavam desatualizados e as listagens de opções repetidas, e considerando as
entrevistas realizadas, houve 496 atrativos turísticos relacionados a cidade de Aracaju e 756
atrativos turísticos para a cidade de Salvador. Destaca-se, entretanto, que tanto o Google Places
quanto o site TripAdvisor levam em consideração, para a definição dos atrativos disponíveis, a
percepção e a avaliação dos usuários.

Ao se observar as categorias e subcategorias de atrativos da cidade de Aracaju verifica-


se uma grande variedade de tipos de praias, museus, teatros, igrejas, praças e parques. As
subcategorias praias variam de praias urbanas para as mais específicas, como as de naturismo,
podendo atingir uma grande diversidade de públicos e interesses a exemplo da prática de
esportes. Interesse também pode ser averiguado em relação aos teatros, porém, a cidade de
Aracaju recebe poucas opções de peças, shows entre outros. Assim, observa-se uma demanda
potencial que poderia ser estimulada com a oferta de maiores opções de gêneros teatrais,
evitando que as pessoas se desloquem para outros destinos.

Já em relação aos monumentos, são apresentados os que são evidenciados nas fontes de
dados citadas, são eles: faróis; memoriais; estátuas e esculturas; pontes; arcos e coretos. Sobre
os centros históricos os destacados não se encontram no município de Aracaju, porém em
cidades vizinhas como São Cristóvão e Laranjeiras. Ou seja, diferentemente da cidade de
Salvador, em Aracaju, o seu centro histórico não é referenciado nas bases de dados.

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Apesar do centro histórico de Aracaju não ter sido evidenciado nas referidas bases de
dados, nas entrevistas presenciais os mercados municipais são citados como locais a serem
visitados. Tais mercados constituem parte do complexo que denota o centro histórico da cidade.
Pesquisas como a de Santos, Jesus e Santos (2018) relatam a relevância do centro histórico para
a promoção de lazer e turismo utilizado tanto pelos turistas, visitantes quanto por moradores.

Na pesquisa realizada por Santos, Jesus e Santos (2018) 63,33% dos turistas informaram
que o interesse inicial, em conhecer o centro histórico de Aracaju, está associado ao desejo de
desfrutar de sua diversidade cultural considerando o artesanato e a gastronomia local. Sendo
assim, as informações disponibilizadas no Google Places quanto no site TripAdvisor deveriam
melhor enaltecer e divulgar o referido centro histórico como um local público a ser visitado. A
plataforma do TripAdvisor e as agências de receptivo apenas inserem os Mercados públicos e
o centro de turismo nos roteiros turísticos locais e os demais atrativos turísticos, que compõe o
centro histórico de Aracaju, ficam subutilizados o que denota a relevância de roteiros turísticos
culturais na cidade de Aracaju que ofertem outros atrativos turísticos além do segmento de
turismo sol e praia (SANTOS; JESUS; SANTOS, 2018).

Sobre as atividades de entretenimento os destacados foram: passeio pelos bairros,


estádios de futebol; espaços culturais; kartódromos e a Hidrelétrica de Xingó. Destacam-se
como entretenimento atividades culturais e atividades específicas como o kartódromo e a visita
à hidrelétrica de Xingó, que se localiza em Canindé de São Francisco.

Diferentemente do destino de Salvador as categorias calçadões e orlas foram destacadas


para a cidade de Aracaju, aspecto que não ocorreu em Salvador. Atrativos naturais bem
específicos foram destacados como: lagoas, cânion de Xingó; Foz de rios; Croa do Goré e as
cachoeiras. Denotando atrativos turísticos que podem gerar um diferencial competitivo para o
destino, com atividades mercadológicas planejadas e direcionadas.

As localidades e associações, apesar de não se localizarem na cidade de Aracaju, e sim


em seus arredores, foram evidenciadas: Quilombo Mocambo; Doceiras de São Cristóvão;
Marisqueiras; e as Catadoras de mangaba. Indicando associações que representam a identidade
e valorização cultural da comunidade local.

Também relativamente a valorização cultural estão os eventos como o Carnaval em


Salvador, e o São João em Aracaju e o interesse por espaços para apresentações culturais e
artísticas. Na cidade de Aracaju, o São João conta com uma grande participação dos moradores
que frequentam as apresentações artísticas em várias partes da cidade, com atividades que

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duram todo o mês de junho.

Neste sentido, averígua-se uma grande variedade de atrativos que podem ser trabalhados
pelo destino considerando os seus públicos-alvo. Saraniemi e Kylänen (2011), relatam que para
que o planejamento estratégico ocorra de forma adequada, é primordial que o destino defina a
sua natureza em sua profundidade e amplitude e, assim, construa as pré-condições corretas para
um posicionamento adequado e de sucesso junto a seus públicos de interesse, através de
esforços conjuntos entre os setores, públicos, privados e a comunidade local.

Com a identificação de determinados comportamentos de consumo é possível, como


aborda Sánchez (2017), o mercado turístico apresentar uma maior capacidade de identificação
das necessidades dos clientes permitindo que estratégias mercadológicas sejam desenvolvidas,
favorecendo a adaptação de produtos e serviços as expectativas da demanda.

Semelhante à cidade de Aracaju, o destino de Salvador apresenta uma diversidade de


opções de praias, museus, teatros e igrejas. Nota-se que devido à importância histórica da cidade
de Salvador, as opções referenciadas de museus e igrejas são maiores em relação à cidade de
Aracaju. As opções de gêneros teatrais também passam a serem mais disponíveis, pois a cidade
de Salvador apresenta mais opções de apresentações culturais que são evidenciadas no Centro
Histórico do Pelourinho e no Teatro Castro Alves, por exemplo.

Com relação aos monumentos soteropolitanos, os destacados foram: fortes (Forte de


Santa Maria e Forte de São Diogo, ambos localizados na praia do porto da barra; Forte de Santo
Antônio da Barra no farol da barra; Forte de São Marcelo na Bahia de Todos os Santos; e o
Forte de Nossa Senhora de Mont Serrat, na Rua da Boa Viagem); faróis (da Barra, de Itapuã os
mais citados), elevador Lacerda, memoriais, estátuas/esculturas e chafariz. Bem específicos da
cidade. O centro histórico destacado é o Pelourinho e relativo a opções de entretenimento se
diferenciam da cidade de Aracaju os atrativos a brinquedoteca e o Terminal Turístico Náutico
da Bahia.

Entre os atrativos estão as lagoas (a do Abaeté a mais citada) e as cachoeiras, uma vez
que a maioria das cachoeiras se encontram na Chapada Diamantina. Sobre as localidades
diversas foram citadas como sendo relevantes para visitação. Sendo muitas delas locais em que
existem atrativos naturais a exemplo das cachoeiras e ambientes para a prática de esportes como
escaladas, trilhas, dentre outros.

Os eventos citados abrangeram o Carnaval, São João e espaços para apresentações


culturais e artísticas. Da mesma forma que a cidade de Aracaju, a cidade de Salvador apresenta

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uma grande oferta de atrativos culturais e tal valorização cultural e da identidade local é
estimulada, valorizada e preservada no destino. A representatividade em relação ao quantitativo
e as opções de bares e restaurantes foi perceptível nas bases de dados analisadas, assim como
de locais para compras.

Considerando os dados apresentados, percebe-se que a cidade de Salvador é bastante


visitada, sendo, inclusive, a que recebe mais turistas no Nordeste. Em contrapartida, Aracaju se
encontra como sendo a 28ª cidade a ser visitada no Brasil, a última do Nordeste (FIPE/MTUR,
2020). Mesmo Aracaju sendo uma cidade que oferece potencialidades turísticas naturais,
arquitetônicas, culturais, entre outras, ela não apresenta a mesma procura, comparada à
Salvador, ainda que sejam estados vizinhos. Assim, observa-se que, apesar das semelhanças,
essas duas cidades se distinguem em relação aos indicadores que evidenciam suas atividades
turísticas, cujas características demandam olhares diferentes que merecem ser investigados.

O aspecto da personalidade de um destino é destacado por Schuster (2017), que aborda


como as características e traços de um destino turístico estão associados à sua personalidade,
buscando a diferenciação e a autenticidade de atrativos, o que o torna distinto em relação aos
demais (ZHOU; DENG, 2012). Destarte, para que o destino apresente competitividade turística
e se diferencie perante as demais localidades, faz-se necessário um gerenciamento e
planejamento da sua oferta de atrativos turísticos que lhes conceda um posicionamento
adequado, respeitando a comunidade local, os turistas e visitantes. Um destino turístico bem-
sucedido reside no seu potencial para reduzir a sua substituição (HUDSON; RITCHIE, 2009)
e atrair turistas e visitantes atendendo às suas expectativas.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A atividade turística está relacionada à prestação de serviços, que abrange, em um


determinado destino, aspectos de infraestrutura, serviços de acomodação, alimentação, lazer,
transportes etc. Ponderando a complexidade da atividade turística, compreende-se que todos os
serviços prestados influenciam na satisfação dos turistas e visitantes. Ou seja, não basta o
destino turístico investir na melhoria dos atrativos, é essencial que invista, também, em
infraestrutura, transportes, acessibilidade, tecnologia, entre outros.

Tais requisitos são primordiais para que o destino turístico seja competitivo e possa
atrair visitantes, gerando visibilidade e investimentos empresariais. Entretanto, o destino só será
interessante para o turista e o visitante se este gerar satisfação e proporcionar uma experiência
valorosa para eles.

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Na percepção do turista ou do visitante, são diversas as variáveis que podem influenciar,
motivar ou desmotivar a aquisição de um produto ou serviço turístico e a sua escolha por
conhecer um determinado destino.

Assim, compreender os fatores que influenciam a tomada de decisão por um destino


turístico permite atender às necessidades e expectativas dos consumidores, gerando satisfação.
Com a compreensão sobre os interesses e percepções dos turistas é possível desenvolver ações
e estratégias mercadológicas mais apropriadas para a realidade de cada destino. Além disso, é
fundamental que o destino invista em atrativos turísticos que possam o diferenciar de outras
localidades para que ganhe um diferencial competitivo.

Conforme pôde ser observado através das categorias e subcategorias de atrativos


provenientes das bases de dados do Google Places, site TripAdvisor e das entrevistas realizadas
nas cidades de Aracaju e Salvador, outros atrativos turísticos, não relacionados às praias, podem
ser trabalhados e receberem comunicações direcionadas, estimulando outros interesses
turísticos.

Neste sentido, estudos mais aprofundados e com um maior público de entrevistados


podem ocorrer respaldando ou observando novas mudanças comportamentais. Inclusive
analisando modificações nas bases de dados do Google Places e site TripAdvisor que se
vinculam as preferências dos indivíduos.

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