Ebook - Sociedade, Cultura e Diversidade - Estudos em Ciências Humanas, Volume 1
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Revisão
Os Autores
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Conselho Editorial
S678
CDD 101
2024
Editora e-Publicar
Rio de Janeiro, Brasil
[email protected]
www.editorapublicar.com.br
Apresentação
É com grande satisfação que a Editora e-Publicar apresenta a obra intitulada “Sociedade,
Cultura e Diversidade: Estudos em Ciências Humanas, Volume 1”. Neste livro engajados
pesquisadores contribuíram com suas pesquisas. Esta obra é composta por capítulos que
abordam múltiplos temas da área.
Editora e-Publicar.
Sumário
CAPÍTULO 1 ........................................................................................................................... 10
REFLEXÕES SOBRE O TEMPO E A ETERNIDADE NA FILOSOFIA DE SANTO
AGOSTINHO........................................................................................................................... 10
José Bruno Martins Leão
CAPÍTULO 2 ........................................................................................................................... 18
DO TRADICIONAL À MODERNIDADE, A RESILIÊNCIA DOS RITOS DE INICIAÇÃO
COM ROSTOS DO PASSADO NO DISTRITO DE GURUÉ, ZAMBÉZIA,
MOÇAMBIQUE.......................................................................................................................18
Arcanjo Tinara Nharucué
CAPÍTULO 3 ........................................................................................................................... 32
O SENTIMENTO DE PERTENCIMENTO OBTIDO A PARTIR DA REALIZAÇÃO DOS
RITOS DE INICIAÇÃO NO DISTRITO DE GURUÉ, ZAMBÉZIA, MOÇAMBIQUE....... 32
Arcanjo Tinara Nharucué
CAPÍTULO 4 ........................................................................................................................... 44
OS LAZERES EM JUBIABÁ – CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA E
CONHECIMENTO GERACIONAL ....................................................................................... 44
Danilo da Silva Ramos
CAPÍTULO 5 ........................................................................................................................... 51
AS IDENTIDADES FEMININAS NA SÉRIE COISA MAIS LINDA .................................... 51
Emely Kauany Cardoso
Éverly Pegoraro
CAPÍTULO 6 ........................................................................................................................... 66
ESTADO, EDUCAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO SOCIAL: AS POLÍTICAS
CURRICULARES E DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES EM MINAS GERAIS ........... 66
Maria das Graças Soares Floresta
Fernando Selmar Rocha Fidalgo
Rayane Oliveira da Silva
CAPÍTULO 7 ........................................................................................................................... 87
O IMPACTO DA INTELIGÊNCIA EMOCIONAL NAS ESCOLHAS DE CARREIRA:
REFLEXÕES A PARTIR DO “PROJETO DE VIDA” .......................................................... 87
Danila Rabelo Batista
Mateus Souza de Oliveira
CAPÍTULO 8 ........................................................................................................................... 99
A ARQUITETURA PERSUASIVA NOS TRÓPICOS AMERICANOS: AS ORIGENS E
INFLUÊNCIAS DO BARROCO NO BRASIL....................................................................... 99
DOI 10.47402/ed.ep.c240611078215 Christian Fausto Moraes dos Santos
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gessica de Brito Bueno
Rodrigo Perles Dantas
CAPÍTULO 9 ......................................................................................................................... 118
CICLOS INFINITOS E O APOCALIPSE: O ANTROPOCENO, O ETERNO RETORNO E
CONTRAFACTUAL NA SÉRIE DARK .............................................................................. 118
DOI 10.47402/ed.ep.c240611089215 Christian Fausto Moraes dos Santos
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gessica de Brito Bueno
Rodrigo Perles Dantas
RESUMO
O artigo analisa a concepção de tempo e eternidade na obra de Santo Agostinho, com foco principal em seu livro
"Confissões". O problema de pesquisa consiste em compreender como Agostinho articula as noções de tempo e
eternidade, e como essa articulação se relaciona com sua visão teológica e filosófica. A metodologia utilizada
envolveu uma extensa revisão de bibliografia sobre a filosofia agostiniana. Através da revisão de bibliografia, foi
possível situar a obra de Agostinho dentro do contexto filosófico e teológico de sua época, identificando as
principais influências e debates em torno de suas ideias. A análise textual da obra do autor permitiu identificar os
principais argumentos e conceitos relacionados ao tempo e à eternidade, destacando a complexidade e a
originalidade de sua abordagem. Por fim, evidenciou-se a singularidade da filosofia agostiniana, especialmente no
que diz respeito à relação entre tempo, eternidade e divindade. Os resultados alcançados com o artigo apontam
para uma concepção de tempo e eternidade em Agostinho que se diferencia das visões predominantes em sua
época. Enquanto o tempo é caracterizado por sucessivos movimentos passageiros, a eternidade é vista como
imutável e atemporal. Essa distinção é fundamental para a compreensão da relação entre Deus e o mundo,
conforme descrito pelo autor. Assim, o estudo da filosofia agostiniana sobre o tempo e a eternidade não apenas
contribui para o entendimento da obra do autor, mas também para reflexões mais amplas sobre a natureza do tempo
e a relação entre o divino e o humano.
1 INTRODUÇÃO
A filosofia de Santo Agostinho é marcada por uma profunda reflexão sobre o tempo e a
eternidade, temas centrais de sua obra. Agostinho, considerado um dos mais importantes
pensadores cristãos, aborda em suas obras a relação entre tempo e eternidade, destacando a
incomparabilidade da eternidade, que é imutável, com o tempo, que é composto por sucessivos
movimentos passageiros. Em seu livro "Confissões", Agostinho explora essas questões de
forma profunda e complexa, buscando compreender a natureza do tempo e sua relação com a
eternidade à luz da sabedoria divina.
2 METODOLOGIA
Fez-se uma análise da obra de Santo Agostinho que trata do tema do tempo e da
eternidade, com foco especial em seu livro "Confissões". Foram identificados os principais
argumentos e conceitos apresentados pelo autor, bem como suas fontes e influências filosóficas.
Essa análise textual permitiu uma compreensão mais aprofundada da posição de Agostinho em
relação ao tempo e à eternidade.
Com Santo Agostinho (354-430 d.C.), os objetos da filosofia são observados à luz da
sabedoria divina, face o caráter teológico da sua obra. Nessa senda, em “Confissões”, Agostinho
(2015, p. 301) adverte que todo aquele que se confunde quanto ao tempo e à eternidade, de fato,
não compreendeu como se realiza o que se faz por Deus e em Deus, posto que “esforça-se por
saborear as coisas eternas, mas o seu pensamento ainda volta ao redor das ideias, ideias da
sucessão dos tempos passados e futuros”.
Agostinho (2015, p. 301) sugere àquele que ainda não compreendeu as relações entre
tempo e eternidade “que pare um momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade
imutável, para que veja como a eternidade é incomparável, se a confronta com o tempo que
nunca para”. Com tal proceder, poder-se-á entender “que a duração do tempo não será longa,
se não se compuser de muitos movimentos passageiros. Ora, estes não podem alongar-se
simultaneamente”.
De outra banda, Agostinho (2015, p. 301) sublinha que, “na eternidade, ao contrário,
nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca é todo presente”. Nessa linha, ver-se-
á “que o passado é impelido pelo futuro e que todo o futuro está precedido de um passado, e
todo o passado e futuro são criados e dimanam daquele que sempre é presente”. Por
conseguinte, “a eternidade imóvel determina o futuro e o passado, não sendo nem futuro nem
passado”.
Dito de outro modo, pode-se inferir que da eternidade imutável, na qual tudo é presente
e nada passa, decorrem os conceitos de passado e futuro, que passam, uma vez que o tempo em
si nunca é todo presente. Ao contrário, é o presente que determina o passado e o futuro, de sorte
que todo o futuro se caracteriza por sempre ser precedido pela realidade própria do passado,
numa ideia de sucessão contínua de movimentos passageiros, nunca parando ou existindo
concomitantemente; razão por que “o tempo não pode medir a eternidade” (AGOSTINHO,
2015, p. 301).
Agostinho (2015, p. 301-302) bem retrata essa diferença entre o tempo para Deus, que
é eterno e imutável (eternidade), e o tempo que passa para todas as criaturas do artífice
onipotente. Então, dirigindo-se ao Criador, o teólogo evidencia a eternidade ao assim declarar:
“Precedeis, porém, todo o passado, alteando-vos sobre ele com a vossa eternidade sempre
presente. Dominais todo o futuro porque está ainda para vir. Quando ele chegar, já será
pretérito. Vós, pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo e os vossos anos não morrem”
(AGOSTINHO, 2015, p. 302).
Além disso, reconhece-se a figura do eterno hoje, que se encontra na eternidade própria
do Criador do céu e da terra, em contraste com o sucessivo passar do tempo, que marca a
temporalidade inerente à existência das criaturas, conforme se verifica destes termos:
Os vossos anos não vão nem vêm. Porém, os nossos vão e vêm, para que todos
venham. Todos os vossos anos estão conjuntamente parados, porque estão fixos, nem
os anos que chegam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos
nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existirem. Os vossos anos
são como um único dia, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se
quotidiano, mas é um perpétuo hoje, porque este vosso hoje não se afasta do amanhã,
nem sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade. Por isso geraste coeterno vosso
Do excerto acima, verifica-se que, no caso da concepção temporal defendida por Santo
Agostinho, toda e qualquer medida de tempo se aplica ao conceito de passado e futuro,
constituídos por muitos movimentos passageiros sucessivamente apresentados à percepção do
homem, ou qualquer outra criatura proveniente do artífice onipotente. Essas porções de tempo,
todavia, não se relacionam à eternidade, posto que o eterno é incompatível com qualquer
espécie de delimitação, como, por exemplo, anos, meses, dias; de forma a existir um hoje
perpétuo para Deus, ininterruptamente presente na eternidade, e um hoje transitório, para
aqueles que igualmente conhecem o ontem e expectam pelo amanhã.
Uma vez explicitada o contraste precípuo entre o tempo e a eternidade, resta trazer a
lume a questão proposta por Agostinho (2015, p. 303-304): “Que é, pois, o tempo?”. Acerca de
tal indagação histórica, o próprio teólogo, em face da complexidade da temática, responde isto:
“Se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me fizer a pergunta, já não sei.
Porém, atrevo-me a declarar, sem receio de contestação, que, se nada sobrevivesse, não haveria
tempo futuro, e, se agora nada houvesse, não existia o tempo presente”.
Entretanto, Agostinho (2015, p. 304-305) alerta que “o passado já não existe e o futuro
ainda não existe”. Por tal motivo, o autor sugere que “não digamos: ‘é longo’; mas digamos do
passado: ‘foi longo’; e do futuro: ‘será longo’”. Não satisfeito com essas formatações
linguísticas, estabeleceu, ainda, este questionamento: “O tempo longo, já passado, foi longo
depois de passado ou quando ainda era presente?”.
Em resposta, Agostinho (2015, p. 305) explica que “só então podia ser longo (nesse
momento presente), quando existia alguma coisa capaz de ser longa. O passado já não existia;
portanto não podia ser longo aquilo que totalmente deixara de existir”. Por consequência, “não
digamos, pois, ‘o tempo passado foi longo’ porque não encontraremos aquilo que tivesse podido
ser longo, visto que já não existe desde o instante em que passou”; ao contrário, “digamos antes:
‘aquele tempo presente foi longo’, porque só enquanto foi presente é que foi ‘longo’”,
Dado que cem anos não podem ser considerados presentes, em vista da quantidade de
anos que se antecedem ou se sucedem no curso do parâmetro temporal centenário, segue-se
com a verificação referente ao ano que está passando, no sentido de se constatar se também
pode ser tido como presente, ou não, a depender do emprego dos conceitos de passado e futuro.
Assim, “se o primeiro mês está passando, os outros são futuros. Se estamos no segundo mês, o
primeiro já passou e os outros ainda não existem. Logo nem o ano que está decorrendo pode
ser todo presente, e se não é todo presente, não é um ano presente” (AGOSTINHO, 2015, p.
305).
Da mesma forma, Agostinho (2015, p. 305-306) assevera que “o ano compõe-se de doze
meses; um mês qualquer é presente enquanto decorre; os outros são passados ou futuros. Nem
sequer, porém o mês que está decorrendo é presente, mas somente o dia”. Em sequência, “se é
o primeiro dia, todos os outros são futuros; se é o último, todos os outros são passados; se é um
dia intermediário, está entre dias passados e futuros”.
No entanto, nem sequer o dia pode ser concebido inteiramente como presente.
Agostinho (2015, p. 306) percorre a mesma lógica analítica: “O dia e a noite compõem-se de
vinte e quatro horas, entre as quais a primeira tem as outras todas como futuras, e a última tem
a todas como passadas”. Por conseguinte, tem-se que, “com respeito a qualquer hora
intermediária são pretéritas aquelas que a precedem, e futuras as subsequentes”.
Analisados os anos, os meses e os dias, segue-se com a exame da hora. Agostinho (2015,
p. 306) demonstra que “uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela já
debandou é passado. Tudo o que ainda resta é futuro”. Então, nota-se que, “se pudermos
conceber um espaço de tempo que não seja susceptível de ser subdividido em tais partes, por
mais pequeninas que sejam, só a este podemos chamar tempo presente”; porém, admite-se que
Analisado o presente, sobre o futuro, Agostinho (2015, p. 306) também apregoa que
“deste tempo não dizemos que é longo, porque ainda não existe. Dizemos: ‘será longo’. E
quando será? Se esse tempo ainda agora está por vir, nem então será longo, porque ainda não
existe nele aquilo que seja capaz de ser longo”. De todo modo, nem mesmo o futuro pode ser
considerado um tempo longo, tendo em conta que ainda está por vir e, com isso, ainda não é,
porquanto “só poderá começar a ser no instante em que ele nasce desse futuro – que ainda não
existe – e se torna tempo presente, porque só então possui capacidade de ser longo. Mas com
as palavras que acima deixamos transcritas, o tempo presente clama que não pode ser longo”
(AGOSTINHO, 2015, p. 306).
Outrossim, para Agostinho (2015, p. 310), “[...] os três tempos são: presente das coisas
passadas, presente das presentes, presente das futuras”; e, desse raciocínio, acrescenta-se “três
tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas,
visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras”.
Por tal razão, Agostinho (2015, p. 320) relata que o refletir sobre passado, presente e
futuro requer três coisas: expectação, atenção e memória; de sorte que “aquilo que o espírito
espera, passa através do domínio da atenção para o domínio da memória”. Então, desse diálogo,
vê-se que as coisas futuras, por ainda não existirem, são expectadas; as coisas pretéritas, por já
não existirem, conservam-se na alma por meio da memória das coisas passadas; e, em arremate,
o presente, que, por carecer de espaço, permanece sob a vigilância da atenção que perdura.
Observa-se, portanto, o diálogo entre presente, passado e futuro nas lições agostinianas
supra retratadas. Passado e futuro não existem, pois, enquanto um já se foi, o outro ainda não o
é, de modo que são recordados pela memória ou objeto de expectativa do ser humano, que se
encontra igualmente sob a influência do pleno transcurso do tempo. O presente, no entanto, não
possui duração o bastante para ser considerado separadamente como uma dimensão temporal
verificável, dada a velocidade com que os mais ínfimos instantes abandonam a realidade
presente e se deslocam para o passado, numa sucessão contínua de movimentos passageiros,
diferenciando-se, pois, da eternidade, que não passa e é imutável, sendo sempre presente.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com Santo Agostinho (354-430 d.C.), os objetos da filosofia são observados à luz da
sabedoria divina, face ao caráter teológico de sua obra. Em "Confissões", Agostinho (2015, p.
301) adverte que quem se confunde quanto ao tempo e à eternidade não compreende como o
que se faz por Deus e em Deus se realiza, esforçando-se por saborear as coisas eternas, mas
com o pensamento ainda voltado às ideias da sucessão dos tempos passados e futuros. Sugere
então, àquele que ainda não compreendeu as relações entre tempo e eternidade, que pare um
momento e arrebate um pouco do esplendor da eternidade imutável, para que veja como a
eternidade é incomparável se confrontada com o tempo que nunca para.
Portanto, o contraste entre o tempo e a eternidade evidencia que todo e qualquer medida
de tempo se aplica ao conceito de passado e futuro, constituídos por muitos movimentos
passageiros sucessivamente apresentados à percepção do homem, ou qualquer outra criatura
proveniente do artífice onipotente. Essas porções de tempo, todavia, não se relacionam à
eternidade, posto que o eterno é incompatível com qualquer espécie de delimitação, como anos,
meses, dias; existindo um hoje perpétuo para Deus, ininterruptamente presente na eternidade, e
um hoje transitório para aqueles que conhecem o ontem e esperam pelo amanhã.
REFERÊNCIA
RESUMO
Os ritos de iniciação no distrito de Gurué, conhecidos como Ovula (sexo feminino) e Oweleliwa (sexo masculino),
fornecem instruções sobre papéis de género e vida familiar, incluindo os detalhes da actividade sexual e
reprodutiva. Neste contexto, este artigo pretende analisar a resiliência dos ritos de iniciação no contexto da
modernidade. Empregou as teorias da Construção Social da Realidade, desenvolvida por Berger e Luckmann
(2004) e, o Imaginário Social de Cornelius Castoriades (1987). No que concerne aos procedimentos
metodológicos, o estudo privilegiou a abordagem qualitativa e utilizou o delineamento do estudo de caso. As
conclusões deste artigo mostram que, as comunidades do distrito de Gurué dependem da vida comunitária, por
isso, é importante destacar que a família é mantida pelos valores da tradição através das cerimónias de iniciação.
1 INTRODUÇÃO
O exercício da cidadania é mais do que apenas um status social que confere direitos e
responsabilidades, mas também uma identidade compartilhada que é uma expressão de
pertencimento à comunidade. As comunidades existem quando os membros pertencem, se
relacionam e se identificam com ela. Estes geralmente compartilham conexões emocionais com
o grupo e sentem que o grupo é importante para eles e que eles são importantes para o grupo
(OSTERMAN, 2000, p. 324).
Portanto, o país, possui cerca de 20 (vinte) grupos étnicos e cada um deles tem a sua
própria forma de ser e estar, por conseguinte, há várias cerimónias de iniciação e há diferentes
maneiras de realização. Pois, a vida dos indivíduos resulta de um processo que envolve várias
etapas, desde o nascimento até a morte. Em cada uma destas etapas, existem momentos
significativos vividos por estes, pelas suas famílias, bem como pelas comunidades nas quais se
encontram integrados.
É aqui onde residem os rituais que constituem um momento significativo para quem
deles participa e que não só se insere mas traduzem e fortalecem os hábitos, os valores e as
crenças de um grupo existente em várias regiões. Estes assumem formas distintas e representam
o momento em que os indivíduos passarão a assumir um novo papel e lugar social.
Assim, as cerimónias de iniciação são parte integrante do saber ser e estar individual e
coletivo, em particular nos países africanos, na medida em que servem a um propósito vital que
é a transmissão, de geração a geração, de hábitos, crenças, valores e costumes. A partir disso,
constrói-se o sentimento forte de pertencimento através da manutenção e participação de
instituições sociopolíticas e religiosas que asseguram meios de comunicação eficazes entre as
diferentes gerações.
Quando visto sob uma perspectiva do quotidiano, o mundo não muda sem o nosso
conhecimento, não se acorda numa manhã para descobrir essa mudança além do
reconhecimento. Em vez disso, a mudança tende a ser constante e incremental, e é introduzida
aos poucos em nossas vidas na forma de, por exemplo, novas tecnologias, novas práticas
institucionais, novas formas de pensar sobre uma determinada realidade social.
Além disso, teóricos como Durkheim (2012) e Giddens (2003) atribuem certa
direcionalidade e coerência à mudança social. No entanto, essas mudanças não parecem
incorporar uma lógica abrangente e, geralmente, é apenas em retrospectiva que pode identificar
uma narrativa que nos permite entender diferentes desenvolvimentos como interligados, e como
parte de algo mais amplo como a mudança social que transforma ou transformou a nossa
sociedade em uma direcção particular.
Assim sendo, a reação dos indivíduos as mudanças sociais tem a ver com a forma como
as alterações se dão, se elas são graduais ou não, e se apenas a algum aspecto relativo aos
hábitos, rotinas e formas de pensar. Se é confrontado com escolhas que muitas das vezes não
dependem exclusivamente de um querer individual. E ao adoptar novas formas de se comportar,
ser, pensar ou até de resistência à elas, os indivíduos contribuem para novas transformações
sociais.
1
O social é, portanto, aqui definido não em termos de estruturas sociais abstratas ou de uma “cultura” reificada,
mas como algo feito de relações concretas, imaginadas ou virtuais que tem com indivíduos, coletivos, o reino
simbólico ou abstrato das “culturas”, objetos, bem como nossos ambientes construídos e naturais (GIDDENS,
2003).
A pertença não deve, entretanto, ser vista como automaticamente superior à não
pertença. Não pertencer pode, de facto, ser o mais produtivo dos dois em termos de mudança
social se, como resultado do questionamento de quem e como os indivíduos constroem
identidades e modos de vida alternativos. Assim, também é crucial examinar quem não pertence
e como as experiências de não pertencimento contribuem para a mudança social.
Não se assiste aos fatos sociais de uma determinada sociedade, sem que os indivíduos
vivenciem dela, pois, eles estão nela e, vivem nela. E uma das formas pelas quais se vive esse
ser na sociedade é por meio do sentimento de pertencimento ou da falta dele. Perspectiva essa
que oferece uma janela para estudar a complexidade da inter-relação entre as mudanças ao nível
social quanto individual (MERLEAU-PONTY, 1962).
Na tradicional, o indivíduo por estar vinculado ao “lugar” (aldeia, cidade) tem muito
pouco acesso aos eventos que ocorrem em lugares distantes. Como resultado, a experiência e a
consciência estão sempre situadas espacialmente e as instituições são fundamentadas em
costumes e hábitos locais. Assim, esse acesso limitado faz com que o indivíduo se referencie
ao local, e o mundo exterior tem pouca influência sobre as configurações sociais e significações
do mundo-vida.
O que a modernidade faz, no entanto, é aproximar o mundo que estava fora do alcance
por meio da “produção global, comércio, mídia” conexões globais que permitem o
compartilhamento instantâneo de dados (GIDDENS, 2003, p. 23). Assim, os indivíduos nas
sociedades tradicionais, não estão mais exclusivamente vinculados aos hábitos e costumes do
lugar, e suas ações se estendem para além do território familiar.
A mudança global e a ação local estão, por conseguinte, estão entrelaçadas. Isso dá conta
das alterações que se observam nas comunidades, onde o “mundo” está na “ponta dos dedos” e
com ele vem uma infinidade de outras actividades, hábitos e ideias que podem ser aproveitadas,
impactando costumes e crenças. Conforme Entrevistado 5 (2019):
As coisas mudaram muito nos últimos anos, muita coisa apareceu nas nossas vidas e
que não esperávamos que isso acontecesse tão rápido. Falo das escolas primárias do
governo que estão cada vez mais próximas de nós e ensinando os nossos filhos outras
culturas do país e do mundo lá fora. Falo também do aparecimento dos painéis solares
que nos fazem assistir a televisão e nela encontramos outras maneiras de como as
pessoas vivem na cidade e em outros cantos, assim como é possível encontrar
telefones em muitas pessoas aqui na comunidade e que diariamente falam com
pessoas de fora e ouvem o que está acontecendo por lá. Tudo isso faz-nos pensar sobre
nós e no que fazemos como pessoas com costumes e formas de ver o mundo
(Entrevistado 5, 2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).
Uma das características da modernidade é a sua natureza “plástica” que implica numa
transformação infindável de hábitos, normas, valores e costumes como resultado da aquisição
Fizemos muitas mudanças na condução dos ritos de iniciação, posso dar o exemplo
de uma mudança que foi feita à nossa revelia, que é calendarizar os meses para a
prática dos ritos de iniciação, de modo que, os iniciados não percam as aulas ou então
possam abandonar a escola. O que antes fazíamos era algo sem programação que
dependia da nossa vontade e da disponibilidade dos meninos, não olhávamos essas
coisas de escola ou qualquer outro programa do governo, porque a iniciação é também
uma escola, então significa que a escola veio romper um pouco com os nossos hábitos
e costumes na realização dos ritos de iniciação (Entrevistado 3, 2019, informação
verbal concedida em 07/02/2019).
No passado, as meninas saiam dos ritos de com o corpo delas preparado e embelezado
a partir das tatuagens que se faziam no corpo delas, ou melhor em algumas partes do
corpo delas como por exemplo nas pernas, cintura e barriga, era uma forma de mostrar
a ela que o corpo de uma mulher não pode ser rígido, deve conter algumas ondas que
permitem que o homem possa apalpar nos momentos mais íntimos quando casarem.
Pois os homens também são preparados nas suas iniciações que só podem casar
mulheres que tem tatuagens e missangas no seu corpo (Entrevistado 6, 2019,
informação verbal concedida em 07/02/2019).
Esta prática foi abolida passando a ser opcional. A sua eliminação está ligada a
problemas de saúde, uma vez que se usa o mesmo instrumento para todas as jovens. Este facto
fez com que governo moçambicano e Organizações Não Gorvenamentais-ONGs realizassem
palestras de sensibilização ao nível das comunidades, alertando para os perigos de partilha dos
instrumentos cortantes e, acima de tudo, das feridas criadas no corpo, que, em várias situações,
provocavam infecções graves. Essa prática permanece para aquelas que assim desejam e deve
se providenciar instrumentos pessoais e, se possível, com uma orientação de técnicos da área
da saúde.
Nos últimos anos essa questão de tatuagens no corpo das iniciadas já não se faz
durante as cerimónias de iniciação. Todas as comunidades foram ditas pelos líderes
Neste sentido, pode-se destacar o uso de medicamentos tradicionais que eram aplicados
na ferida e levavam muito tempo para cicatrizar e, por vezes, deixava sequelas e defeitos nos
órgãos genitais dos iniciados. Atualmente, como a circuncisão é feita no ambiente hospitalar,
os meninos recém-circuncidados recebem medicamentos do hospital para auxiliar no processo
de cicatrização. Portanto, a grande mudança, de acordo com estes informantes, é o facto de que
atualmente os indivíduos simplesmente vão ao hospital para serem circuncidados, conforme
Entrevistado 4 (2019).
Antes, por se fazer recurso a instrumentos cortantes não convencionais, como catanas,
facas, lâminas e agulhas, em detrimento do uso de material cirúrgico, alguns jovens chegavam
a perder os órgãos genitais, provocavam disfunção, adquiriam doenças graves como o HIV, e
até mesmo perdiam a vida. Assim, ela passa a ser feita num momento posterior, por
profissionais de saúde, como forma de salvaguardar a saúde e o bem-estar dos participantes
conforme Entrevistado 5 (2019).
Houve uma campanha muito forte do governo central junto com as autoridades
tradicionais de modo que se fizessem campanhas de sensibilização em torno da
circuncisão masculina tradicional e convencional. O que acontecia anteriormente é
que as comunidades faziam a circuncisão dos meninos durante os ritos de iniciação,
sem com isso obedecer às normas convencionais, como resultado muitos desses
perderam a vida e outros contraíram anomalias nos órgãos genitais. Então, a
campanha era mesmo de sensibilizar a estes a optarem pela circuncisão convencional
ao invés da tradicional, e chegou-se a conclusão que anualmente seriam feitas duas
caravanas nas comunidades, durante o período interrupto das aulas (Entrevistado 5,
2019, informação verbal concedida em 07/02/2019).
2
O lugar é balizado pelo tripé: percepção, experiência e valores. Sendo assim, os lugares preservam e são
carregados de valores que são apreendidos através de experiências do mundo vivido (BUTTIMER, 1982, p. 178).
Há muito tempo, demorava-se muito nos ritos de iniciação. Era normal os meninos
ficar lá por cerca de dois meses, e nem havia tempo determinado para a realização,
bastava ter-se um número suficiente de iniciados, encaminhava-se para lá. Mas agora
essas coisas de permanecerem muito tempo na mata já passou, pois as populações
precisam desses meninos para ajudarem na família e não só, também porque
frequentam a escola. Então, houve muita campanha de sensibilização desde 2010
sobre os ritos de iniciação na escola e nos comités das comunidades. Por isso, o
governo decidiu que os mesmos só podiam ser circuncidados no período de férias para
não perderem as aulas (Entrevistado 1, 2019, informação verbal concedida em
06/02/2019).
Muitos pais e encarregados de educação não respeitavam o período escolar dos filhos.
Eles retiravam as crianças da escola e as submetiam a reclusão, o que fazia com que perdessem
aulas ou até o ano escolar. Atualmente, constata-se que as comunidades incentivam aos
iniciados a se empenharem bastante e garantem que todas as cerimónias sejam concluídas antes
do início das aulas, por isso que a duração das mesmas foi reduzida de dois meses para uma a
duas semanas. O restante dos conhecimentos ritualísticos passa a ser feito em casa.
Não existe dia, semana ou mês para levar o seu filho aos ritos de iniciação, no caso
das meninas era automático, no mesmo dia que ela atingia a puberdade era levada de
imediato. Mesmo que esta estivesse a frequentar a escola, era obrigada a largar tudo
e ir à reclusão por mais de um mês, perdendo desta forma as aulas e até o semestre.
Quando regressasse, esta não voltava mais à escola, de um lado porque já tinha
perdido aulas, e do outro lado porque se sentia crescida para permanecer na mesma
sala com os colegas não iniciados, isso fez com que muitos iniciados, sobretudo os do
sexo feminino abandonassem a escola ainda cedo (Entrevistado 6, 2019, informação
verbal concedida em 07/02/2019).
O imaginário social, enquanto rede de sentidos, liga símbolos que são significantes a
significados. Esses sistemas sancionados resultam das atividades da razão e da imaginação dos
sujeitos. Ou seja, é, esse “algo” socialmente partilhado, um conjunto de princípios e
determinações que permite à sociedade reunir-se e criar suas instituições, que são “sistemas
É importante referir que a revisão do tempo de reclusão está ligada aos elevados índices
de desistências e abandono escolar, e também ao fato de se tornarem adultos após o término do
rito. Assim, como adultos não podem mais se juntar a outros que não passaram pelo mesmo
processo sendo considerados crianças.
Entretanto, há outros fatores que não envolvem apenas a escola, mas também
envolvem questões relacionadas com os custos de realização da iniciação, incluindo o facto de
que a alimentação tem de existir durante os eventos.
As coisas mudaram, neste momento agente só cultiva a terra e nada sai, não há comida
como tínhamos no passado, tínhamos água nos rios e nas pequenas montanhas, quase
todo ano, agora só conseguimos ter água no período chuvoso e não chega para dar
conta das nossas culturas: Por causa dessas mudanças, muitas vezes, decidimos adiar
as cerimónias de iniciação dos nossos filhos para serem realizadas no período de
colheita, pelo menos para conseguir vender, comprar comida e vestuário da cerimónia
e também para poder pagar os mestres dos ritos de iniciação (Entrevistado 6, 2019,
informação verbal concedida em 07/02/2019).
Por isso, a maioria dos iniciados frequentam os ritos bem mais tarde em relação ao
período estipulado, por exemplo 6 a 8 meses depois. Há falta de recursos para comprar
alimentos e presentes, incluindo roupas e sapatos, principalmente, aqueles que serão usados na
cerimónia de enceramento.
2 CONCLUÇÃO
REFERÊNCIAS
GIL, A. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
OSTERMAN, K. 2000. The Need for Belonging in the School Community. São Paulo: Atlas,
2000.
SIMMEL, G. The field of sociology. New York: The Free Press, 1950.
RESUMO
Os ritos de iniciação no distrito de Gurué, conhecidos como Ovula (sexo feminino) e Oweleliwa (sexo masculino),
iniciação ilustram as formas complexas que várias comunidades culturais elaboram e respondem à transição, às
normas, aos valores, às expectativas, à reprodução e à transmissão de conhecimentos de uma geração para a outra.
Assim, o presente artigo tem como foco ampliar o conhecimento existente em relação à ideia da noção de
pertencimento que o sujeito obtém a partir da realização dos ritos de iniciação. No que concerne aos procedimentos
metodológicos, o estudo privilegiou a abordagem qualitativa e utilizou o delineamento do estudo de caso. As
conclusões deste artigo mostram que Os ritos de iniciação influenciam o pertencimento do indivíduo ao grupo
através dos seus efeitos no modo de ser, estar e agir, que torna-se um ser culturalmente significativo e reconhecido
como actor em um mundo social.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como foco ampliar o conhecimento existente em relação à ideia
da noção de pertencimento que o sujeito obtém a partir da realização dos ritos de iniciação.
As cerimónias de realização dos ritos de iniciação são vistas como uma marca de
identidade, onde, o indivíduo não iniciado, automaticamente, fica sem identidade e não tem
acesso à sociedade com responsabilidade e é tratado como uma criança. Eles sofrem rejeição
social e não têm direito a qualquer responsabilidade comunitária. Alguns destes fatores têm
repercussões ao nível psicológico que contribuem para motivar os indivíduos a iniciarem e
adoptarem comportamentos condizentes com os benefícios e privilégios que lhes são conferidos
pela passagem no processo da iniciação.
3
Em qualquer sociedade, sempre que surge a possibilidade física da interação falada, um sistema de práticas,
convenções e regras de procedimentos entra em jogo funcionando como um meio de orientar e organizar o fluxo
de mensagens. Valerá algum entendimento sobre como e quando será permissível iniciar a fala, entre quem, e
quais tópicos de conversação serão abordados. Um conjunto de gestos significativos é empregado para iniciar uma
enxurrada de comunicação e como um meio para que pessoas se imputem como participantes legítimos
(GOFFMAN, 2011).
No distrito de Gurué, a realização dos ritos de iniciação estão enraizados numa tradição
profunda que caracteriza o saber ser e estar das comunidades locais e tendem a se concentrar
fortemente na preparação das gerações mais novas e para a vida futura. Resultam de uma
tradição centenária e que mesmo em períodos de excepção, como o colonialismo e a guerra
civil dos 16 anos, nunca deixaram de ocorrer. Eles são essencialmente cerimónias de transição
da infância para a adolescência, entre 10 e 14 anos de idade, para ambos os sexos, revestindo-
se de um grande reconhecimento social.
À medida que o indivíduo passa pelas fases da vida, progride através dos ritos. A
iniciação anda fundamentalmente de mãos dadas com a transformação e é uma questão-chave
em todas as comunidades referenciadas no estudo conforme o entrevistado 11 (2019):
Quando realizamos os ritos de iniciação é mesmo para ensinar os mais novos sobre os
momentos da vida, a partir do nosso passado, presente e aquilo que eles serão no
futuro como indivíduos crescidos. Estou a dizer que todas as pessoas devem passar de
um momento de ensinamento sobre as coisas da vida, por isso mesmo que os ritos de
iniciação constituem o momento em que ensinamos aos outros mecanismos de
respeito, responsabilidade, habilidades da vida e desafios que esses podem ter ao
longo das suas vidas e as formas como devem superar. É isso que também a
comunidade espera deles, saberem cuidar dos outros e responderem às chamadas que
eventualmente a comunidade lhes pode fazer em algum momento (Entrevistado 11,
2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).
Como nos alerta Castoriades (1982), a sociedade existe dentro da 'instituição', que é um
princípio estrutural-formal que designa a construção do social em geral. Assim, a instituição,
portanto, está por trás dos sujeitos como a convenção (nomos) da sociedade e como essa
condição transcendental para a definição de uma comunidade através da abertura de um mundo
significativo. Não se pode falar de seu status ontológico em nenhum sentido positivo fora de
um universo de significações imaginárias da sociedade 5.
A ideia de pertença está ligada ao sentimento de comunidade, uma vez que a pertença a
uma comunidade assenta numa série de semelhanças e cria diferenças e fronteiras com outras
comunidades 6, isto é, quando o foco recai sobre essas fronteiras, o sentimento de pertença torna-
se relevante (JENKINS, 2008, p. 135).
A vida existe porque há uma linguagem 7 comum, que se compartilha com os outros.
Através dela os indivíduos são capazes de definir e expressar em palavras a realidade, tal como
a percebem. Ela opera de acordo com suas próprias regras, que devem ser respeitadas. A
linguagem tem a capacidade de ligar diferentes zonas dentro da realidade da vida quotidiana e
integrando-os em um todo significativo (BERGER; LUCKMANN, 2004, p. 39).
4
A questão da necessidade de pertencimento humanoédefinido por Baumeister e Leary (1995), como sendo “uma
motivação que seres humanos têm para procurar e manter laços sociais profundos, positivos e recompensadores.
Dessa forma, ela se refere não só à necessidade de estar inserido em um grupo, mas à qualidade dos laços
estabelecidos com outros indivíduos e o sentimento de aceitação presente”.
5
Para Castoriades (1982), as significações imaginárias não existem para representar outra coisa. São as
articulações finais, a sociedade impôs ao próprio mundo as suas necessidades, os padrões organizadores que são
condições para a representatividade de tudo que a sociedade pode dar a si mesma.
6
Comunidade no sentido mais amplo indica um grupo de pessoas que vivem no mesmo espaço ou têm uma ou
mais características comuns. Pertencer a uma comunidade tende a levar a uma dupla percepção de “nós” e “eles”
(JENKINS, 2008, p. 135).
7
A linguagem como sistema de signos da sociedade humana que se origina na situação face a face. Onde, as
experiências comuns da vida quotidiana são mantidas principalmente pela significação linguística (BERGER;
LUCKMANN, 2004, p. 39).
O que se ensina nos ritos de iniciação é como se fosse uma ponte, em que para poderes
estar do outro lado do rio, deves passar pela ponte, então o objectivo dos ritos de
iniciação é exactamente ensinar os mais novos a passarem correctamente por esta
ponte, de modo que eles estejam capacitados de conhecimentos sobre as boas
maneiras de pertencer às comunidades e passarem a ser úteis aos mais velhos e às
gerações mais novas. É só com esse processo feito que às pessoas aqui da comunidade
é permitido fazer parte ou participar dos eventos e de algumas cerimónias importantes
da comunidade em que só podem estar lá presentes pessoas com o processo de
iniciação concluído e com comportamento aceite pelos mais velhos e outros membros
da comunidade (Entrevistado 15, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).
Neste contexto, a iniciação é uma parte vital do grupo social em estudo e os objetivos
dos mesmos é o sentimento de pertencimento, em forma de cerimónia de transição de em
estágio para outro, na vida social comunitária, que inclui, educar, socializar, transmitir a moral
e os valores, crenças e habilidades reconhecidas e conferidas pela comunidade. Assim, estas
cerimónias, para ambos os sexos, devem incluir pelo menos dois participantes, um iniciado e
um mestre.
A instrução, pois, tem características educativas que visam construir traços de carácter,
de forma que os iniciados estejam aptos (as) a enfrentar os desafios, do auto-controle, paciência,
força, castidade e virilidade, que são transmitidos através do ensino implícito, mas também
através da vivência de privações, punições e críticas contundentes.
Deste feito, os ritos de iniciação são construções socioculturais, atuam como reforço ao
comportamento individual e do grupo, por meio da repetição periódica. Isto é, comportamento
simbólico que é socialmente padronizado e repetitivo. Portanto, eles dão sentido à vida daqueles
(as) que deles participam, como também significam a sua existência facultando-lhes o
sentimento de pertencimento a algo que os transcende. Eles agem como uma força propulsora
para revitalizar as forças da vida coletiva. Eles são um meio de expressar os pontos de vista das
comunidades e suas aspirações.
Aqui, a noção do pertencimento deve ser entendida como um fator gerador de estímulo
que potencializa o processo de interiorização de normas e valores socioculturais dos indivíduos
que primam pelo convívio em comunidade. Ou seja, este influencia como o sujeito percebe e
se comporta no meio social. A valorização da aceitação e a necessidade de estabelecer laços
torna o indivíduo mais apto para operar no meio em que se encontra.
É neste contexto que os ritos de iniciação, por se tratar de uma cultura coletivista, tende
a promover relações sociais baseadas em reciprocidade mútua entre os indivíduos, com fortes
laços entre si, muitas vezes de base familiar. As interações sociais são geralmente centradas em
necessidades comuns ou capacidade de resposta a recursos contextuais (KITAYAMA et al.,
2010).
A reflexão sobre a relação sujeito e sociedade produziu inúmeros estudos nas mais
diversas áreas do conhecimento e tem sido alvo de discussões académicas.
Cada indivíduo singular está realmente preso; está preso por viver em permanente
dependência funcional de outros; ele é um elo nas cadeias que ligam á outras pessoas,
assim como todas as demais, directa ou indirectamente, são elos nas cadeias que as
prendem... São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém menos reais e
decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham
umas em relação às outras, a ela e nada mais, que chamamos de sociedade (ELIAS,
1994, p. 35).
Desta feita, a sociedade deve ser vista como algo indissociável do indivíduo e este dela.
Ela é composta por um emaranhado de sujeitos que entre si criam, dão vida, consolidam
relações interpessoais e interdependentes e, por conseguinte, a formam e a consolidam. Não há
sociedades sem indivíduos e um inexiste sem outro numa relação dialética. Assim, “o indivíduo
é parte de um todo maior, que ele forma junto com outros” (CASTORIADIS, 1982, p. 61).
Uma parte do nosso costume é a forma de encarar a vida, está dentro dos ensinamentos
dos ritos de iniciação, portanto qualquer pessoa da nossa comunidade só pode se
considerar pertencente a nós se realmente passar pela iniciação. Pois é lá onde esta
pessoa adquire conhecimentos do passado e do agora das nossas comunidades, a partir
dos ritos de iniciação que são o caminho para se inserir na vida da comunidade
(Entrevistado 11, 2019, informação verbal concedida em 10/02/2019).
Fazer ritos de iniciação é uma tradição que envolve os nossos costumes e hábitos. É
verdade que algumas coisas foram mudando com o tempo, mas a raiz deles contínua,
fazer com que os mais novos conheçam um pouco daquilo que se exige ser necessário
para homens e mulheres nas nossas comunidades, de modo que amanhã agente não
possa estar envergonhado de nos mesmos. Então tentamos ensinar um pouco daquilo
que fomos ensinados, recorrendo às condições existentes agora, porque nos obrigam
2 CONCLUÇÃO
Assim, existe um vínculo comum entre o indivíduo e a comunidade, e é por este meio
que este descobre a sua própria essência. Os ritos de iniciação não podem ser considerados
como uma entidade separada, a ser entendida e tratada individualmente, mas devem sempre ser
vistos como inseridos em um contexto social.
REFERÊNCIAS
BAGNOL, B.; MARIANO, E. Género, Sexualidade e Práticas Vaginais. S.l. UEM, 2011.
GIL, A. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
KITAYAMA, S.; DUFFY, S.; UCHIDA, Y. Self as cultural mode of being. In: KITAYAMA,
S.; COHEN, D. (Eds.). Handbook of cultural psychology (p. 136-174). NY, USA: The
Guildford Press, 2010.
SCHÜTZ A. Collected PapersI: The Problem of Social Reality (ed. and intro. Natanson M).
The Hague: Martinus Nijhoff, 1962.
ENTREVISTA CONCEDIDA
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo discutir, por meio da análise da obra 'Jubiabá', de Jorge Amado, as
possibilidades que o lazer proporciona para a construção da identidade e a transmissão de conhecimento para a
população negra, bem como a subversão necessária para que algumas pessoas negras tenham acesso ao lazer.
Como metodologia, foi realizada uma intersecção entre a análise do discurso e a análise de conteúdo. A
necessidade de trazer a literatura para construir trabalhos que coloquem a raça como ponto central de análise no
campo dos estudos do lazer, que possui uma produção incipiente especificamente sobre este tema, foi uma das
características condutoras do texto. O resultado demonstra que os discursos inseridos nesta obra específica nos dão
pistas sobre a maneira pela qual o lazer pode influenciar na trajetória histórica de um indivíduo e em sua
consciência racial.
1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
8
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – CAPES (Bolsa CAPES).
9
A primeira versão deste trabalho foi apresentada no III Congresso da Rede Internacional de Estudos Culturais
Interculturalidade e movimentos sociais: raça, classe e género e será publicado na coletânea do evento. Este texto
possui uma revisão deste primeiro conteúdo.
O trabalho em tela tem como objetivo analisar a obra “Jubiabá”, escrita por Jorge
Amado, publicada em 1935, discutindo os lazeres contidos na trajetória de Antônio Balduíno,
o Baldo. Em resumo, a obra narra a história de vida de Baldo, passando por todas as lutas que
ele enfrentou para se manter vivo e as marcas que como uma pessoa negra carrega nesta tarefa,
que é árdua e dura, porém, possui seus momentos magia, felicidade e plenitude.
Parto também com o movimento de refletir sobre os lazeres, em sua trajetória, foram
capazes de auxiliar na construção de sua identidade enquanto um homem negro. A justificativa
para sua escrita está enraizada em meus estudos sobre os lazeres da população negra. Acredito
que seja importante demonstrar como a vasta obra de Jorge Amado, especificamente neste
trabalho Jubiabá, pode trazer vestígios das relações que os lazeres que atravessaram os viveres
10
Existe uma série de outros autores e autoras que poderiam ser citados, mas devido as características deste
trabalho me limitei a citar os que aqui estão.
2 “NEGRO NÃO PODE FAZER NADA, NEM DANÇAR PARA SANTO. POIS VOCÊS
NÃO SABEM DE NADA. NEGRO PODE TUDO, NEGRO PODE FAZER O QUE
QUISER.” – CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NEGRA, CONHECIMENTO
GERACIONAL E LAZER
Baldo tem em pai Jubiabá uma figura que lhe transmite conhecimentos geracionais ao
longo da sua jornada, desta relação cabe destacar sua introdução no Candomblé, onde Jubiabá
era autoridade máxima e a importância da oralidade para a população negra, identificada por
conhecimentos transmitidos por Jubiabá à Baldo ao longo da história. É marcante na obra a
apresentação do Candomblé como espaço para socialização das pessoas negras, ao passo que
todos e todas terão suas responsabilidades no terreiro de pai Jubiabá, neste ponto, ressalto que
Carvalho (2011) indica como o aumento a repressão contra o Candomblé por parte do estado e
consequentemente da polícia no mundo real, em um momento que a prática era proibida por
lei, teve influência nas obras de Jorge Amado. O candomblé foi um espaço importante para
criação de redes de ajuda na obra, além de ser espaço para a construção da luta política, inclusive
quando Baldo faz uma fala com o intuito de fortalecer o sentimento de pertencimento de classe
naqueles e naquelas que estavam presentes, diz.
Os ricos mandam fechar a festa de Oxossi. Uma vez os polícias fecharam a festa de
Oxalá quando ele era Oxolufã, o velho. E pai Jubiabá foi com eles, foi pra cadeia.
Vocês se lembram, sim. O que é que negro pode fazer? Negro não pode fazer nada,
nem dançar para santo. Pois vocês não sabem de nada. Negro faz greve, para tudo,
para guindastes, para bonde, cadê luz? Só tem as estrelas. Negro é a luz, é os bondes.
Negro e branco pobre, tudo é escravo, mas tem tudo na mão. É só não querer, não é
mais escravo. Meu povo, vamos pra greve que a greve é como um colar. Tudo junto
é mesmo bonito. Cai uma conta, as outras caem também. Gente, vamos pra lá
(AMADO, 2008, p. 208).
Viveram a mesma vida solta dois anos. Dois anos correndo pela cidade, assistindo
partidas de futebol e lutas de boxe, brigando, penetrando no Cinema Olímpia, ouvindo
as histórias que o Gordo contava sem notar que estavam crescendo, ficando homens,
e que a cantiga que falava em sete ceguinhos não servia mais para eles que já estavam
uns negros fortes, enormes, derrubando mulatas no cais, malandreando na cidade
religiosa da Bahia. Começavam a fazer poucas esmolas e um dia foram presos como
malandros e desordeiros (AMADO, 2019, p. 56).
O samba atravessou todo o percurso de vida de Baldo, desde a infância até sua idade
adulta, cumprindo papel diferente em cada uma destas etapa. Chegou a servir como fonte de
renda para o personagem nos momentos em que compunha sambas para a venda. Em uma de
suas composições afirma que ele “amava somente dias coisas: malandragem e Maria. Em uma
passagem do livro é apontado que os sambas mantinham o caráter de ocorrer em vários espaços,
como por exemplo em casa de particulares, diz “vamos para a casa do Fabrício? – Minha gente”
Amado (2019). Ressalto que a apresentação dos trechos dos sambas que aparecem durante a
história, demonstra a importância da prática, ao passo que cumpre várias funções que vão desde
letras amorosas até as lutas da população negra, como exemplificado no trecho “ele vai
cantando baixinho um samba intitulado “A vitória da greve” Amado (2019).
A obra Jubiabá de Jorge Amado indica através da vida de Antônio Balduino, o Baldo,
como os lazeres vão aparecendo durante todo o percurso do personagem, demonstrando que o
lazer não pode estar dentro de linhas temporais severas entres os tempos de trabalho e não
trabalho, este binômio pode inclusive, em determinados momentos, reduzir a complexidade do
fenômeno. Cabe mencionar a potencialidade que estes lazeres trouxeram à Baldo a
possibilidade de se fortalecer como um homem negro e a necessidade de se tornar um
antirracista, esta afirmação também é apontada por Pavan e Oliveira (2016) ao analisarem o
filme baseado na obra.
Antônio Balduíno vai para a casa de Jubiabá. Agora olha o pai-de-santo de igual para
igual. E lhe diz que descobriu o que os ABC ensinavam, que achou o caminho certo.
[...] E Jubiabá, o feiticeiro, se inclina diante dele como se ele fosse Oxolufã, Oxalá
velho, o maior dos santos (AMADO, 2019, p. 228).
REFERÊNCIAS
BARROS, J. Fontes Históricas: uma introdução à sua definição, à sua função no trabalho do
historiador, e à sua variedade de tipos. Cadernos do Tempo Presente, [S. l.], v. 11, n. 02, p.
03–26, 2020. Disponível em: https://periodicos.ufs.br/tempo/article/view/15006. Acessado em:
Fev. 2024.
FARIAS, J. N.; SILVA, L. L. M. M.; SILVA, M. S. O uso de literatura como fonte histórica
e a relação entre a literatura e a história. In: X Congresso Internacional de Línguas e
Literatura, 2021, Universidade Estadual do Piauí. Anais do X Congresso Internacional de
Línguas e Literatura. Online, 2021. Pag. 1-11. Disponível em
https://editorarealize.com.br/artigo/visualizar/79120. Acessado em: Fev. 2024.
RESUMO
O artigo tem como objetivo analisar representações femininas na série Coisa Mais Linda, em relação às
identidades, às problemáticas e aos lugares delegados às mulheres da época retratada na obra, fins de 1950. A
produção conta a história de quatro personagens que resistem e lutam por espaço na sociedade carioca daquele
período, representando a busca feminina por direitos políticos, acesso ao mercado de trabalho e direito ao divórcio.
O estudo realizou-se a partir das concepções de identidade, representação e feminino, sendo analisadas três
sequências de cenas da primeira temporada da série, conforme a análise fílmico-compreensiva da narrativa seriada.
A realização de estudos sobre identidade e lugares sociais delegados ao feminino por meio de uma obra midiática,
possibilita entender como as representações interferem na forma como os indivíduos e, nesse caso, as mulheres,
se posicionam ou são posicionadas social e culturalmente. A compreensão de tais questões também é uma forma
de desconstruir estereótipos enraizados socialmente. Em Coisa Mais Linda, é possível analisar a perspectiva de
quatro mulheres que resistem em situações marcadas por machismo, patriarcado, busca feminina por direitos
políticos, acesso ao mercado de trabalho, desafios da maternidade e o direito ao divórcio.
1 INTRODUÇÃO
11
Programa de Iniciação Científica da Unicentro 2022-2023, Fundação Araucária. Versões prévias desta pesquisa
foram apresentadas no XXXII Encontro Anual de Iniciação Científica (EAIC) – Guarapuava, novembro de 2023.
E na 12° edição do Encontro de Pesquisa em Comunicação (12° ENPECOM) – Curitiba, novembro de 2023.
Esta pesquisa analisa a série Coisa Mais Linda, que tem como contexto justamente o
fim da década de 1950, no Rio de Janeiro. Lançada em 2019 na plataforma de streaming Netflix,
até o presente momento possui duas temporadas. A produção conta a história de quatro
mulheres que resistem e lutam por um espaço na sociedade carioca daquele período, marcada
por machismo, patriarcado, busca feminina por direitos políticos, acesso ao mercado de trabalho
e direito ao divórcio (BASSANEZI, 2007).
Cada uma das personagens retrata um aspecto do contexto social da época. Maria Luiza,
Malu (Maria Casadevall), é de São Paulo e muda-se para o Rio de Janeiro. É uma “moça de
família”, filha de Ademar, esposa de Pedro e mãe de Carlinhos, uma mulher rica e totalmente
dependente do pai. Ela vai ao Rio de Janeiro para abrir um restaurante com o marido, porém,
ao chegar na capital, descobre que Pedro havia roubado todo o dinheiro para o empreendimento.
Malu passa a trabalhar muito para recuperar o que lhe foi roubado e sofre a frustração de não
poder abrir o restaurante sem a autorização de um homem, pois na época apenas eles tinham
autoridade para ter seu próprio negócio. Durante esse tempo, ela conhece Adélia Araújo (Pathy
Dejesus), que passa a ser sócia do restaurante, uma mulher negra que mora no morro e trabalha
para sustentar a família. Lígia Soares (Fernanda Vasconcellos), amiga de infância de Maria
Luiza, também tenta ajudar, uma mulher rica, casada com um político e que tem o sonho de ser
cantora, algo que ela nunca conseguiu pela falta de apoio e permissão do marido. E a quarta
personagem é Thereza (Mel Lisboa), uma mulher liberal e independente, que retrata a entrada
das mulheres no mercado de trabalho da época e, ao lado de seu marido, o qual lhe dá apoio e
suporte, busca a liberdade feminina nos relacionamentos. É uma das personagens que mais fala
sobre o poder feminino e o feminismo. Todas, mesmo que diferentes, buscam por respeito e
autonomia, tanto financeiramente quanto nas relações afetivas. São representações de mulheres
que buscam uma sociedade sem machismo ou estereótipos.
A pergunta principal desta pesquisa é como a série Coisa Mais Linda representa
questões acerca da identidade feminina. Para isso, delineia-se o contexto da mulher na década
de 1950 para, então, analisar as questões vivenciadas pelas personagens, no que se refere a
subjetividades e lugares sociais para elas. Os conceitos que amparam o estudo são identidade,
Na segunda parte do texto, aborda-se a identidade cultural quanto aos lugares delegados
ao feminino, utilizando os conceitos de Hall (2016; 2002). “O fato de que projetamos a ‘nós
próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e
valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com
os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural” (HALL, 2000, p. 12).
Nesta pesquisa, o processo foi dividido em: pré-análise, quando se elenca quais cenas
serão analisadas; descrição de cena, com transcrição de diálogos, conforme Casetti e Di Chio
(2013) indicam; e apresentação da síntese interpretativa, que objetiva aproximar a
problematização teórica construída da sequência narrativa analisada.
A escolhas das cenas se dá pela relação com os temas elencados nesta pesquisa,
mostrando como mulheres são representadas frente à sociedade. A primeira análise mostra
como elas eram vistas não pela sua individualidade, mas pelo nome do pai ou do marido. Na
segunda sequência, isso é ainda mais enfatizado, pois além de serem vistas como pertencentes
a alguém, também precisavam da autorização dos mesmos para terem direitos básicos em suas
vidas. E a última cena foi escolhida por mostrar as mulheres sendo representadas como pessoas
que devem pensar sobre roupas, regras de etiqueta e formas de se portar para com os homens,
ou seja, como alguém que só pensa em futilidades e na aparência exterior. As três sequências
narrativas exemplificam os lugares delegados ao feminino e a identidade feminina,
problemática principal desta pesquisa.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
[...] precisamos examinar a mídia como um processo, como uma coisa em curso e uma
coisa feita, e uma coisa em curso e feita em todos os níveis, onde quer que as pessoas
se congreguem no espaço real ou virtual, onde se comunicam, onde procuram
persuadir, informar, entreter, educar, onde procuram, de múltiplas maneiras e com
graus de sucesso variáveis, se conectar umas com as outras (SILVERSTONE, 2002,
p. 16).
12
São aquelas pessoas que abertamente (e muitas vezes ofensivamente) manifestam opiniões contrárias a
produções midiáticas, geralmente em fóruns virtuais e públicos.
Significados e valores são assimilados, tanto a pessoas quanto a grupos, o que por
consequência contribui para que sejam delegados lugares específicos a cada um na sociedade.
Nesse contexto, a identidade cultural é uma forma de estabilizar o sujeito. “A identidade surge
não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma
falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais
nós imaginamos ser vistos por outros” (HALL, 2000, p. 39). É o caso de mulheres que se
identificam com outras mulheres devido a vivências, valores e significados semelhantes. Hall
(2016) argumenta como mulheres que, desde novas, são moldadas pela sociedade e que se
tornam parte de um mesmo grupo pelos fatores externos atribuídos a elas, nesse caso, o que
contém de semelhante é o que as torna parte do mesmo grupo, sejam esposas, noivas, mães,
avós, donas de casa, ou quaisquer outras funções que desde sempre foram atribuídas ao
feminino. E com isso surgem os preconceitos sobre aquelas que não aceitam as funções
socialmente delegadas a elas.
Fonseca (2004) detalha as batalhas que principalmente as mulheres pobres tinham que
passar na década de 1950 “em vez de ser admirada por ser ‘boa trabalhadora’, como o homem
em situação parecida, a mulher com trabalho assalariado tinha de defender sua reputação contra
a poluição moral, uma vez que o assédio sexual era lendário” (FONSECA, 2004, p. 433). A
pesquisadora complementa que a norma da sociedade ditava como as mulheres deveriam
permanecer em casa, ocupando afazeres domésticos, enquanto os homens sustentavam a
Balogh (2002) reitera como diversas séries de época têm ganhado espaço no circuito
midiático, retratando histórias e fatos que ocorreram em outros períodos.
Outro meio que tem sido explorado pelas minisséries brasileiras é a cobertura de
determinados períodos históricos com grande competência em termos do uso da
linguagem, da escolha dos recursos técnicos expressivos adequados. Essas
minisséries, além das tramas românticas de praxe, iniludíveis, terminam por ser
painéis de uma época, pinturas murais em movimento (BALOGH, 2002, p. 134).
Em Coisa Mais Linda, as representações das mulheres são feitas a partir de quatro
realidades. Para Nascimento (2018, p. 196), “por meio das narrativas ficcionais, o veículo
retrata a sociedade com suas questões devido à capacidade de alimentar um repertório cultural
comum por meio do qual as pessoas de classes sociais, gerações, sexo, raça e regiões diferentes
se posicionam e se identificam”. Percebe-se que a narrativa em análise se compromete em trazer
questões de raça, gênero, desigualdade social e violência contra mulheres, discutindo a
realidade vigente no período retratado. Cada representação permite obter novos significados
Na década de 1950, as mulheres não podiam trabalhar fora de casa, mas essas regras
sociais não se aplicavam às mulheres pobres, cuja realidade era diferente e que, mesmo cercadas
pela moralidade social, necessitavam trabalhar e prover o sustento familiar. “A norma oficial
ditava que a mulher devia ser resguardada em casa, se ocupando dos afazeres domésticos,
enquanto os homens asseguravam o sustento da família trabalhando no espaço da rua”
(FONSECA, 2004, p. 433).
Além de serem vistas apenas para ficar em casa, deveriam servir ao marido e à família,
aprendiam desde novas a obedecerem a um poder considerado maior, no caso a imagem
A identidade feminina terá tendência para ser uma incorporação de crenças face ao
feminino, de representações e de estereótipos, uma vez que é criada numa sociedade
que produz ideias e valores acerca do que significa ser mulher, logo, que cria
expectativas e prescreve comportamentos socialmente aceites para o feminino
(MOTA-RIBEIRO, 2005, p. 24).
Malu, ao sair da casa dos pais, é criticada pela família por deixar o filho e ir para São
Paulo para abrir o próprio negócio. Mesmo que o marido tenha abandonado o filho, não recebeu
as mesmas críticas que a mulher que deixa a criança com os pais e vai em busca de autonomia
pessoal e financeira. Outros exemplos são Thereza, que decide não ser mãe e, em vários
momentos, a sogra tenta argumentar sobre isso, e Lígia, a cunhada também recebe comentários
de que resta a ela ser a mulher que dará netos e aumentará a família.
A série Coisa Mais Linda é uma produção de Heather Rolth e Giuliano Cedroni.
Lançada em 2019 pelo streaming Netflix, conta com duas temporadas que totalizam 13
episódios. Coisa Mais Linda retrata a década de 1950 nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo,
mostrando a vida de quatro mulheres. Maria Luisa, uma mulher de família rica que se muda da
casa dos pais em São Paulo para o Rio de Janeiro atrás do marido Pedro. Os dois têm um filho,
Durante esse tempo, Malu conhece Adélia Araújo, mulher negra que mora em uma
favela do Rio de Janeiro e trabalha como empregada doméstica para sustentar a família. Ela
passa a ser sócia do restaurante de Malu e, juntas, buscam pela independência financeira,
mesmo sendo de mundos totalmente opostos. A amiga de infância de Malu, Lígia Soares,
também passa a ajudar as duas. Rica, casada com um político carioca, o sonho dela é ser cantora,
algo que não consegue alcançar pela falta de aprovação do marido e do julgamento da
sociedade. Lígia é cunhada de Thereza, uma mulher casada que conta com o apoio do marido
para conquistar a independência financeira e realização profissional. Ela trabalha como
jornalista em um jornal do Rio de Janeiro, local em que discute por diversas vezes com os
colegas homens que fazem parte da equipe.
Este recorte mostra como mulheres não têm voz e, quando conseguem opinar, não são
ouvidas. Neste caso do jornal, as duas mulheres são vistas como inferiores aos demais colegas.
Mesmo sabendo quais assuntos podem interessar ao público feminino, a decisão final é feita
por homens, que compreendem tão pouco do que diz ou não respeito aos gostos das mulheres.
Tais representações levam a refletir sobre os espaços no mercado de trabalho, dominado por
homens que detinham o poder de fala.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A série aqui discutida, Coisa Mais Linda, representa algumas visões dominantes da
década de 1950, mostrando como as mulheres possuíam funções sociais determinadas e
relacionadas aos cuidados domésticos e à criação de filhos, sendo vistas apenas para casar e
serem mães, servindo e respeitando às decisões masculinas, sejam elas do pai ou marido. Mostra
ainda a resistência feminina sobre os diferentes estereótipos colocados sobre elas. Adélia, Malu,
Lígia e Thereza possuem vivências diferentes, mas um propósito em comum, a independência
feminina.
REFERÊNCIAS
ALVES, I.; ALMEIDA, A. Introdução. Para o público que gosta de séries. In: ALVES, I.;
ALMEIDA, A. (Orgs.). Mulheres em seriados: configurações. Salvador:
EDUFBA/NEIM/CNPq, 2015, p. 7-30.
BASSANEZI, C. Mulheres nos Anos Dourados. In: PRIORE, M. Del. (Org.). História das
Mulheres no Brasil. 7. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 607-639.
COISA MAIS LINDA (seriado). 1ª temporada. Direção: Caio Ortiz, Hugo Prata e Julia
Rezende. Produção: Beto Gauss; Francesco Civita. Rio de Janeiro. Netflix, 2018. Streaming.
FONSECA, C. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, M. del. (Org.). História das Mulheres
no Brasil.7. ed. São Paulo: Contexto, 2004, p. 510-553.
JOST, F. Do que as séries americanas são sintoma. Porto Alegre: Sulina, 2012.
SANTI, H. C.; SANTI, V. C. Jr. Stuart Hall e o trabalho das representações. Revista
Anagrama. Ano 2, ed. 1, p. 1-12. set./nov. de 2008. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/ana-grama/article/download/35343/38063/41635. Acessado em:
Mar. 2024.
RESUMO
Trata este texto de uma análise das políticas curriculares e de formação de professores nos últimos 30 anos, em
Minas Gerais. O objetivo é focalizar os ajustes estruturais da educação pública impostos por uma série de
exigências e condicionantes, de caráter intervencionista direto, do novo modelo de desenvolvimento econômico
que, nas últimas décadas, ditou a receita estrutural e produziu efeitos sobre o papel do Estado no desenvolvimento
educacional. são retratados alguns elementos importantes das gestões governamentais no estado entre 1991 e 2021,
um ciclo da política educacional com características subjacentes e comparáveis importantes. O trabalho em si trata
de revisitar a temática do processo de formação do Estado Moderno, as políticas públicas e a educação para refletir
sobre como um certo discurso governamental, arranjos institucionais feitos e relações estabelecidas têm forjado
uma noção do que seja uma mudança educacional.
1 INTRODUÇÃO
A política educacional em MG tem sido objeto de estudo frequente, não só pela sua
localização geográfica, de estado de centro-sul do país, mas porque registra, em sua história,
elementos bastante interessantes se destacados no conjunto mais geral da História da Educação
Brasileira 13. Certo é que responde rápida e positivamente aos projetos nacionais e, até mesmo,
internacionais para a construção de uma propalada nova 14 educação e nova sociedade, o que
seria muito interessante, não fossem suas condições internas objetivas – econômicas e sociais.
Segundo Pinto e Melo (2021), elites e grupos políticos mineiros tem-se revezado na formação
de um poder político e econômico pela adesão às forças hegemônicas nacionais e tem
reproduzido, internamente, um quadro estrutural e conjuntural que sinalizam para a necessidade
sempre atual do debate sobre o papel do Estado na educação e as contradições dos processos
políticos mais amplos.
13
A rede de ensino pública mineira, uma das maiores do país, é constituída por mais de 16.700 estabelecimentos
de ensino, abarca mais de 160 mil professores/as e mais de 2.300.000 estudantes, de acordo com dados coletados
no site do Ministério da Educação. Esta configuração faz com que o sistema de ensino seja complexo e requeira
políticas assertivas, bem delineadas e com capacidade de abrangência para um território extremamente
heterogêneo em termos de sua geografia, realidades e demandas sociais.
14
Adota-se aqui, como preceito teórico-metodológico, uma descrição da palavra nova(s), novo(s), em formato
itálico, relacionando-a a uma mudança histórica, mas que guarda nuanças de estruturas já existentes, na forma
como Popkewitz (1997, p. 23) refere-se ao conceito de ruptura/continuidade histórica, referindo-se a padrões
institucionais sociais, em que esse novo se imbui de uma heterogeneidade que se expressa na coexistência de
novos e de velhos padrões estruturais, o que impõe estratégias de natureza material e simbólico-cultural para que
o novo se consolide.
São estas premissas que deram origem a esse texto, um exercício epistemológico, no
âmbito do projeto de pesquisa Estado, Educação e Regulamentação Social: Anotações
Baseadas nas Políticas Curriculares e de Formação de Professores em Minas Gerais,
desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), como parte do Estágio Pós-Doutoral, em que estão os autores
envolvidos. Este texto é uma síntese do conteúdo do livro intitulado Educação em Minas Gerais
– Poder e Conhecimento na história do Currículo e da Formação de Professores. São
destaque, aqui, algumas questões relativas às políticas curriculares e de formação de professores
desenvolvidas na rede de ensino estadual de Minas Gerais (MG), retratando, um período de 30
anos (1991 a 2021). Este período foi marcado pelos governos: Hélio Garcia (1991-1995);
Eduardo Azeredo (1995-1999); Itamar Franco (1998-2003); Aécio Neves (2003-2010);
Antônio Anastasia (2011-2014); Fernando Pimentel (2015-2019) e Romeu Zema (2019-atual),
um ciclo da política educacional com características subjacentes e comparáveis importantes. A
análise, grosso modo, é sobre como os padrões de regulamentação do campo da educação, o
discurso governamental e os arranjos institucionais em MG, tem forjado uma noção do que seja
a mudança educacional e, como isso faz parte do processo de formação do Estado Moderno.
Para aprofundar a reflexão, o recorte temporal inicia com o estudo feito por Floresta
(2000), que considera a política educacional dos anos de 1990 um divisor na história
educacional de MG. As informações contidas neste estudo ainda são frutíferos objetos de
investigação, se atualizadas, e podem fornecer elementos importantes para o que se pretende
neste trabalho e a posterior, pois permitem, pela análise interna, focalizar o ajuste estrutural da
educação em MG premido por uma série de exigências e condicionantes de caráter
intervencionista direto, segundo os quais, se deve efetivar a receita estrutural do novo modelo
de desenvolvimento ditada por países de Centro e por Organismos Multilaterais Internacionais
que se iniciou nos anos de 1990, mas que se aprimora no tempo atual. Se os anos de 1990 foram
Explícita é uma relação no interior da qual está posta uma forma de compreender como,
na organização da ação e do saber destas políticas, se dão os esquemas de representação que
produzem formas de pensar, agir, ser, conhecer educação. Há nelas símbolos discursivos
produzidos e aprimorados em articulações simbólicas que formam parte da mudança nas
relações institucionais permitindo novas formas de regulação social, transvestidas de inovação,
de sentido de progresso. Essa Epistemologia se expandiu pela estruturação dos programas e
pela forma como foram nomeados: participação, fortalecimento, capacitação, geração de
informações, comunicação, reorganização, responsabilidades, autonomia, desenvolvimento,
atendimento, melhoria, aprimoramento, são termos que compreendem um poder normativo do
que se constituiu como símbolos, estratégia de regulação social, dentro de um quadro analítico
bastante frutífero pela forma como foram distribuídas as regras, os padrões e os modelos de
verdades presentes em seus discursos e práticas, no âmbito do processo de formação do Estado.
As reflexões, no âmbito desse texto, supõem que o Estado não é mais do que uma
realidade compósita; é real, habita em todos, atua no encontro entre técnicas de dominação
advindas da sua estrutura administrativa e técnicas de si para constituir o sujeito aprisionado e
aprisionador, assim se proclamando o Estado governamentalizado a partir de uma certa
verdade, evidenciando a produção social da norma como poder de controle social e fundamento
de um determinado saber. Nenhuma das políticas que são analisadas agora prescinde de serem
instrumentos, tecnologias sociais utilizadas para esse processo de formação do Estado
[mineiro].
Antes, porém, deve-se voltar aos anos de 1980, conhecidos como o período da
redemocratização no Brasil, com a chegada de Tancredo Neves (1982-1984) ao Governo de
15
Ele foi Professor da UFMG que, em 1966, criou o curso pré-vestibular Pitágoras. Seis anos depois criou o
Colégio Pitágoras (1º e 2º graus), com aproximadamente 5 mil matrículas. No início dos anos 1990, criou a Rede
Pitágoras (um conjunto de 106 escolas associadas) e, em 1999, a Fundação Pitágoras para viabilizar projetos
educacionais em instituições públicas e privadas. No início dos anos 2000 nasceu a primeira Faculdade Pitágoras
em parceria com uma das maiores companhias de educação do mundo - a Apollo International (EUA). Em 2007,
com a abertura de capital do Pitágoras, foi um dos criadores da Kroton Educacional, um dos maiores grupos de
educação privada do Brasil, que, em 2014, com sua fusão com a Universidade Anhanguera, se tornou a maior
empresa educacional do mundo. Em 2018 com a associação entre Kroton e a Somos (atua na Educação Básica
com escolas próprias, cursos pré-vestibulares e idiomas, é dona das editoras Ática, Scipione e Saraiva, do Anglo,
da escola de inglês Red Ballon, entre outros negócios), foi criada a Saber, holding de Educação Básica. Em 2019
a Kroton passou por nova estruturação, ficando como marca mãe e nova holding de um grupo de quatro empresas:
Kroton, que segue com o mesmo nome e foco em cursos de ensino superior; Saber, que inclui cursos de línguas
e as escolas de ensino básico das quais a Kroton é dona; Vasta Educação, que vai oferecer serviços de gestão para
as escolas e material didático, incluindo eventual participação em licitações públicas; e a Platos, criada para
oferecer serviços de gestão para o ensino superior. O grupo terá ainda um braço de investimento em startups,
Cogna Venture.
16
O financiamento direto do BM se efetivou em 1994, num contrato da ordem de US$150 milhões já no governo
de continuidade de Eduardo Azeredo sendo Mares Guia o Vice-Governador. O Governo Aécio retomou a parceria
com o BM e recebeu um financiamento de US$ 976 milhões para investimento tanto em infraestrutura urbana
quanto em projetos sociais.
Popkewitz (1997) alerta sobre as arenas nas quais isto acontece: a superação da crise
está ligada à produção de um novo modo de regulamentação, à reconstituição de um novo
sistema burocrático do Estado, da reformulação da legalidade, da produção de textos públicos
que tornem a autoridade política menos normativa e mais científica, operando uma outra
competência profissional, capaz de corresponder ao novo modelo. Cria-se uma crise de
legitimidade e um processo de insulamento do Estado para atender às demandas a ele impostas.
A sensação é de que o propalado novo mundo, descrito nos anos de 1990 por Harvey (1996) ao
descrever a condição pós-moderna das mudanças sociais e políticas, permanece com sua
ditadura de significados e de aparências, mantém a tecnificação do espaço sociopolítico e
cultural, com seu cientificismo racional renovado, universalizando, cada vez mais,
comportamento e pensamento, como cada vez mais se universalizam o capital e as suas
estruturas.
Mas, o que marcou os Governos Aécio Neves (2003-2010) e Antônio Anastasia (2011-
2014) foi um programa governamental denominado Programa Choque de Gestão, (PCG),
resgatando conceitos da chamada New Public Management, constituído por ações de
racionalização de processos, modernização de sistemas, reestruturação do aparelho
administrativo e avaliação de desempenho institucional e individual, com o objetivo de reduzir
custos e melhorar a qualidade da gestão pública. No campo educacional o que marcou estas
gestões foram, pelo menos três programas: o Acordo de Resultados, a Escola de Formação
MAGISTRA e os Conteúdos Básicos Comuns (CBC).
Buscando seu próprio caminho, o governo mineiro aprovou o Plano Decenal de Minas
Gerais, no qual a formação continuada de professores/as era uma meta importante. Nesse
contexto, foi criada a Escola de Formação e Desenvolvimento Profissional de Educadores, a
MAGISTRA, que já na sua criação e localização institucional, suscita muitas reflexões. Ela
ficou diretamente vinculada ao gabinete do Governador, atuando de maneira independente em
relação à própria SEE/MG para oferecer cursos para professores/as e demais profissionais por
meio de parcerias público-privadas, seja com o Governo Federal, com outros governos
estaduais, municípios, mas, principalmente, organizações privadas nacionais e internacionais.
Uma das metas da MAGISTRA seria criar a Rede Mineira de Formadores, composta
por universidades e instituições de Ensino Superior públicas e privadas, para um plano de ações
colaborativas, mas este projeto não foi efetivado, pois não foi possível concretizar a
formalização dos contratos com a instituições credenciadas (sic!) (RODRIGUES, 2014). Em
2014, último ano do período Aécio-Anastasia, a MAGISTRA deixou de ser vinculada ao
A implementação dos CBC se desenvolvia em MG, havia uma mobilização geral para
sua implementação, especialmente, no âmbito das Superintendências Regionais de Ensino
(SRE) mas, mesmo assim, antes de se ter algum resultado efetivo sobre a superação de
dificuldades educacionais, veio a discussão, em nível nacional, de um currículo único para todo
o sistema brasileiro de Educação Básica, o que culminou com o lançamento em 2017, da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) que passou a protagonizar o pensamento educacional
brasileiro (BRASIL, 2017; BRASIL, 2019). MG foi um dos primeiros estados a aderir ao
As políticas educacionais devem ser submetidas a pelo menos duas vias interpretativas:
a) como política pública educacional no processo histórico do desenvolvimento da Educação;
b) como um conjunto de enunciados estruturado para a produção de uma dada subjetividade,
situando-a num campo específico da relação saber-poder e estruturante de um determinado
modelo de currículo escolar e de um “tipo” profissional. O lugar do qual se analisa todo esse
processo é o lugar das políticas educacionais públicas, altamente potentes para essa análise. De
identidade peculiar, estão sendo levadas a termo para fazer da educação, em todos os seus
níveis, uma atividade do Estado organizada em nível local, em períodos de expressiva reforma
do Estado Brasileiro e do estabelecimento de novos referenciais de sua formação, nomeando
supostas crises e instituindo acordos institucionais com diferentes segmentos do campo
educacional. É a leitura frontal sobre o processo de formação do Estado Moderno que tem
iluminado o entendimento das políticas curriculares e a formação de professores/as em MG, o
discurso educacional nelas presente, suas condições de emergência e transformação como uma
ligação entre os acontecimentos, alguns similares, outros díspares. Aqui se confirma a definição
de Popkewitz (1997), de que a política educacional se refere a padrões cognitivos e
historicamente formadores do indivíduo produzindo uma identidade que é a própria
administração social da individualidade, num contexto de redefinição do Estado,
empiricamente definido através dos padrões e relações em transformações onde ocorre a
regulação social. Cabe aqui reportar à nova ordem econômica e política, que reposicionou os
países na geopolítica internacional (HARVEY, 1997; CHESNAIS, 1997), reestabeleceu o papel
social da educação (ENGUITA, 1993) fundamentando-o na relação custo-benefício de acordo
com parâmetros de certificação e de credenciamento das instituições e dos indivíduos, para
estes últimos, a profissionalização, ou seja, torná-los mais profissionais, regulamentar e
disciplinar a administração do seu trabalho.
Nesse ponto de concluir, cabem duas ressalvas: foi no Governo Itamar Franco (1999-
2002) que proliferou o discurso mais contundente de críticas ao BM, aos financiamentos
volumosos e às referências curricular autônomo, mas embargado pelos objetivos dos acertos
funcionais e administrativos. É interessante observar que não houve uma política curricular
específica, mas uma intervenção no planejamento curricular pela formação dos/as professores,
uma regulação do Currículo pela formação dos/as professores/as. As políticas curriculares e de
formação de professores/as parecem trazer, no conjunto do desenvolvimento educacional de
MG, um deslocamento na estratégia do planejamento, pois são carreadas por políticas de fora
para dentro, como analisa Rodrigues (2014).
A própria BNCC foi uma mudança bem visível do Governo Brasileiro ao promover
uma redefinição técnico burocrática do Currículo Nacional, depois de anos com ações indiretas
de definição de parâmetros e diretrizes. O que se verifica, atualmente, é o retorno da ideia de
uma gestão por resultados (CORAZZA, 2016; SAVIANI, 2016), em que os/as professores/as
devem seguir prescrições altamente racionalizadoras da aprendizagem da BNCC, aplicar os
BRASIL. Ministério da Educação. Lei 9394/1996. LDB: lei de diretrizes e bases da educação
nacional. Brasília: Senado Federal, 1996.
CHESNAIS, F. A mundialização do capital. [Trad. Silvana Finzi Foá]. 3. ed. São Paulo:
Xamã, 1996.
CUNHA, L. A. Educação, Estado e Democracia no Brasil. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1991.
FOUCAULT, M. Nascimento da biopolítica. [Trad. Eduardo Brandão]. 4. ed. São Paulo, SP:
Martins Fontes, 2008.
PINTO, S. N. dos S.; MELO, S. D. G. Mudanças nas políticas curriculares do Ensino Médio no
Brasil: repercussões da BNCCEM no currículo mineiro. Educação em Revista, Belo Horizonte, n.
37, p. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0102-469834196. Acessado em: Mar. 2022.
RESUMO
A pesquisa aqui empregada aborda o impacto da inteligência emocional nas escolhas de carreira dos estudantes
oriundos do ensino profissionalizante. Dessa forma, tem como objetivo principal refletir como a inteligência
emocional, trabalhada no contexto do “Projeto de Vida”, influencia as escolhas de carreira dos estudantes. Para
alcançar esse objetivo, adotou-se uma abordagem qualitativa, envolvendo a realização de uma intervenção
pedagógica no contexto de um curso técnico em informática, seguida por análise de dados obtidos por meio de
entrevistas, questionários e observações. O referencial teórico destaca as contribuições de Goleman sobre
inteligência emocional e desenvolvimento pessoal. Os resultados apresentam uma compreensão mais profunda da
influência da inteligência emocional nas escolhas de carreira dos estudantes, destacando a importância da
autoconsciência, empatia e sociabilidade. A discussão analisa os resultados à luz do citado teórico e alguns
pesquisadores, evidenciando a relevância de integrar práticas que promovam a inteligência emocional no contexto
educacional. Dessa forma, os resultados obtidos revelaram a importância de considerar aspectos emocionais na
orientação profissional dos jovens, fornecendo subsídios valiosos para práticas educacionais mais eficazes.
1 INTRODUÇÃO
2 METODOLOGIA
Além disso, a pesquisa possui um caráter descritivo, conforme definição de Gil (2010,
p. 28), que tem como “objetivo primordial a descrição das características de determinada
população ou fenômeno ou o estabelecimento de relações entre as variáveis”. Dessa forma, o
trabalho descreve o cotidiano escolar da educação profissional, a relação entre as variáveis
“Projeto de Vida”, escolhas profissionais e inteligência emocional, contribuindo para o cenário
da educação. Essa perspectiva, conforme Gil (2010, p. 27), “envolvem levantamento
bibliográfico e documental, entrevista não padronizadas e estudos de caso”. Isso exige uma
análise tanto dos teóricos quanto da realidade estudada.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
No desenrolar da intervenção, foi optado por iniciar com uma dinâmica participativa
denominada "O que eu te ensino e o que tu me ensinas". Essa dinâmica de apresentação foi
conduzida em sala de aula, onde os alunos foram organizados em duplas e tiveram a
oportunidade de apresentar seus colegas ao grupo. O destaque da dinâmica recaiu sobre a
reciprocidade do aprendizado no cotidiano, permitindo que cada aluno não apenas descrevesse
seu colega, mas também salientasse as valiosas lições que aprendia com ele diariamente,
promovendo habilidades como empatia e sociabilidade.
Para dar início à abordagem da temática de inteligência emocional, foi escolhido uma
estratégia envolvente: a exibição do filme “Divertida Mente” (Inside Out) que apresenta a
fascinante jornada emocional de Riley, uma garota que enfrenta desafios significativos após se
mudar com sua família para uma nova cidade. Através de uma série de eventos emocionantes
e reveladores, o filme explora como as emoções moldam as experiências e as escolhas de vida
Dessa forma, essa exibição proporcionou aos alunos uma oportunidade única de
explorar as complexidades das emoções humanas de maneira lúdica e cativante. Após a
exibição, foi dada início a uma socialização da temática do filme, estimulando os alunos a
compartilharem suas percepções sobre o que o filme ensinou acerca da inteligência emocional,
promovendo o desenvolvimento das competências de comunicação e reflexão crítica.
A discussão do filme foi outro momento importante, proporcionando uma reflexão sobre
as emoções retratadas na animação. Embora abordar emoções possa ser desafiador, os alunos
expressaram suas impressões sobre o filme e como se identificaram com os personagens,
especialmente considerando a fase de escolhas profissionais no ensino médio.
Dessa forma, esta pesquisa não apenas busca compreender a importância da inteligência
emocional no processo de tomada de decisões profissionais entre os estudantes, mas também
evidencia como o “Projeto de Vida”, aliado às práticas pedagógicas, contribui para o
desenvolvimento dessas competências cruciais na vida dos jovens.
Além disso, a pesquisa forneceu subsídios para a revisão das ações estratégicas na
jornada pedagógica, ressaltando a importância de integrar práticas que promovam a inteligência
emocional ao longo do ano letivo. A pesquisa, portanto, não apenas atendeu aos objetivos
específicos, mas também às demandas atuais da educação, promovendo uma visão mais
abrangente e integrada do desenvolvimento educacional.
Neste sentido, vale ressaltar que algumas profissões indicadas pelos estudantes estavam
fora do contexto do curso técnico em informática, como psicologia e agronomia. No entanto, a
dinâmica e o filme provocaram uma reflexão que ajudou os alunos a lidar com seus medos e
dúvidas em relação às escolhas profissionais, tornando-os mais seguros ao entenderem que
esses sentimentos fazem parte da vida dos jovens do ensino médio.
Vale ressaltar que os achados revelaram que os alunos que desenvolveram habilidades
emocionais, como autoconhecimento, empatia e controle emocional, demonstraram uma
tendência maior a fazer escolhas de carreira mais alinhadas com seus interesses pessoais e
valores individuais.
Essa reflexão foi possível mediante a observação direta das interações dos alunos
durante as atividades do projeto, como a dinâmica de apresentação e discussão do filme.
Durante esses momentos, foi perceptível como os estudantes que demonstravam um maior
domínio das competências emocionais também apresentavam uma maior clareza e confiança
em relação às suas escolhas profissionais.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo alcançou seu objetivo de refletir como a inteligência emocional, trabalhada
no contexto do “Projeto de Vida”, influencia as escolhas de carreira dos estudantes, fornecendo
subsídios importantes para orientar práticas educacionais mais eficazes. Os resultados obtidos
contribuíram tanto de forma teórica quanto prática, evidenciando a importância crucial dessa
temática no contexto educacional contemporâneo.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2018.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
SANT’ANNA, I. M. Por que avaliar? Como avaliar? Critérios e instrumentos. 10. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.
CAPÍTULO 8
A ARQUITETURA PERSUASIVA NOS TRÓPICOS AMERICANOS:
AS ORIGENS E INFLUÊNCIAS DO BARROCO NO BRASIL
RESUMO
O barroco enquanto movimento artístico que nasceu no final do século XVI, teve um longo período de
sobrevivência e manifestação, tendo se disseminado por diferentes espaços territoriais. O barroco ficou conhecido
como arte da contrarreforma, por ter sido desenvolvido em meio ao catolicismo como forma de reconquistar os
convertidos ao protestantismo. Esse estilo artístico nasceu em meio a grandes transformações culturais e políticas
na Europa. O Estado Moderno estava se formando, o absolutismo ganhava aparência, as Américas estavam sendo
invadidas, a reforma e contrarreforma se consolidavam. O barroco era entendido como um estilo apelativo e
persuasivo, devido sua exuberância e beleza. Isso fez com que ele fosse utilizado para diferentes fins. A partir
dessas colocações o presente texto pretende trazer algumas explorações sobre essa estética arquitetônica. Em um
primeiro momento, após a introdução, a ideia é debater as teorias e origens do barroco, de forma a expor como ele
se manifestou em diferentes estados e culturas europeias. Em seguida o texto segue em sentido de teorizar a
manifestação do barroco lusitano, sendo a partir dele que houve a possibilidade de aparição do mesmo no Brasil,
já que isso ocorreu a partir do processo colonial que Portugal instaurou na América. A terceira etapa se centrou no
debate em torno de quais foram as formas que o barroco assumiu no Brasil, suas similaridades com o modelo
lusitano, assim como suas particularidades que evocam tanto o processo colonial, quanto os motivos e
interpretações significativos que foram aplicados nas edificações a partir do contato e ofício de culturas autóctones.
1 INTRODUÇÃO
O que aparece de comum no pensamento sobre arte no decorrer do tempo é que esse
conceito foi sendo utilizado como via de organização e ordenação de diferentes elementos
produzidos ou de atividades estabelecidas naquele contexto. Isso é, um sistema que organiza e
classifica. Tais sistemas de interpretação e elaboração do mundo não se deram de forma
harmônica ou estática. A arte enquanto atividade, ofício e teoria é caracterizada pelo
movimento. Isso significa que tentar ordená-la em construtos estabelecidos, isso é, criar
diferentes caixas classificatórias de forma a encaixar um conjunto de atividades que ocorriam
em um dado contexto em uma caixa que seja comum a elas, é um processo artificial
(CARAMELLA, 1998, p. 15-16).
Em relação àquilo que é arte, por quase todo o século XX, a ideia era de que o elemento
artístico eram as manifestações estético-morfológicas materializadas em superfícies que
compõem o cotidiano e a realidade, como a pintura, a escultura, a arquitetura, o desenho e a
música. Esse tipo de classificação privilegia algumas linguagens em detrimento de outras. No
entanto esse conceito foi expandido. Hoje pode-se delimitar a arte como as manifestações de
ordem estética ou comunicativa, que pode utilizar diferentes linguagens para sua existência.
Isso significa que de fato nem tudo é arte. A construção de uma calçada feita apenas de forma
utilitária, ou a construção de um moinho hidráulico para a moagem de grãos não são
manifestações artísticas. Esses elementos são de ordem utilitária e possuem elaborações
próprias para seus fins. No entanto, quando há a adição de uma manifestação simbólica sobre
esses elementos, seja de ordem material semiótica, ou apenas no aspecto de comunicação
imaginativa, esse elemento passa a ser um exemplar artístico, mesmo tendo uma origem
utilitária. Esses aspectos que determinam a arte citados precisam ir além de uma mera aplicação
A segunda questão diz respeito às categorias que a disciplina de História da Arte cria
sobre períodos espalhados no tempo. O campo da história da arte faz suas divisões a partir de
eixos de interesse e de processos significativos em diferentes períodos no tempo. Quando se é
dito que o barroco tem seu início no final do século XVI e que ele se esgotou em meados do
século XVIII, isso não quer dizer que a manifestação do barroco desapareceu. O que se deu foi
um processo de mudanças de interesse, onde houve o surgimento de elementos teóricos e
simbólicos novos. O barroco continuou sendo produzido, mas não mais necessariamente como
esfera de interesse central. Portanto as periodizações dependem não apenas de aspectos
semióticos e morfológicos que produzem a estética. Dependem necessariamente de elementos
teóricos e significativos produzidos em um dado tempo (CARAMELLA, 1998, p. 18).
No século XXI, a disciplina de História da Arte não tem a possibilidade se dar ao luxo
de contentar-se com periodizações que englobem apenas elementos clássicos de longo prazo.
Enquanto disciplina ela necessitou se reformular a fim de englobar outras manifestações que
vão além daquelas que são materiais, ou seja, produtos imateriais. Não só isso, esse campo
necessitou de um movimento de fora para dentro. Isso é, foram necessárias críticas a uma visão
eurocêntrica de arte, em busca de criar periodizações específicas à cada cultura e a cada
momento. A arte humana do século XVII não é barroca, mas sim a europeia. Na África, nas
Américas ou Ásia outras produções ocorriam de acordo com ciclos próprios internos e suas
relações com influências externas. Como via de sobrevivência esse campo precisou criar
olhares hermenêuticos que abandonassem bases eurocentradas (MACHADO, 2008, p. 526-
527).
Se a história da arte tem suas nuances próprias e ela estuda diferentes produções
artísticas no tempo, há a possibilidade de estudar, unicamente, a história de um desses produtos.
A arquitetura é um dos elementos mais clássicos considerados como produção de arte. Isso
significa que ela possui historicidade própria. Para se compreender tal historicidade, é preciso
primeiramente que a ideia de arquitetura seja configurada. A arquitetura é a ciência de construir
edificações. Ela é propriamente a história das edificações e dos espaços elaborados para usos
cotidianos. Ela pode ter tanto um sentido utilitário de sobrevivência, quanto pode ser elaborada
diante de necessidades e interesses simbólicos que estão estruturalmente interiorizados em um
grupo e sua cultura (GLANCEY, 2001, p. 9).
O barroco enquanto movimento artístico tem sua origem situada no final do século XVI.
Por muito tempo o barroco foi pensado como um modelo que negava os pressupostos de
retomadas clássicas da arte renascentista, ou foi situado como um movimento que perverteu e
subverteu o renascimento. No entanto o barroco não negava os pressupostos clássicos. Tais
elementos foram apropriados por esse movimento de forma a tangencia-los para os usos
políticos e religiosos do período, ou seja, a persuasão no lado religioso, assim como a imposição
e evidência do poder no lado político (TOLEDO, 1983, p. 95).
A Itália não foi um espaço com soberanos entre os séculos XVI e XVIII. O que se nota
são duques, como em Veneza, e na mesma medida senadores como em Florença. No entanto,
em locais como França, Inglaterra, Alemanha e Áustria, nota-se o barroco sendo utilizado
enquanto elemento de poder político nas construções. No caso francês há o exemplar do palácio
de Versalhes. Nesse caso, os detalhes barrocos estão mais associados à dimensão das grandes
proporções do que de fato aos elementos decorativos externos (GOMBRICH, 1999, p. 448). O
barroco francês é na mesma medida a exposição do poder e da beleza. Não exatamente em
sentido de exagero que busca sufocar os estímulos daqueles que visualizam tal espaço. A ideia
era transmitir a mensagem do poder através da suavidade das formas, mas na mesma medida
expor o poder por meio da monumentalidade apresentada (TADGELL, 1988, p. 107-108). O
palácio era uma espécie de centro de irradiação do poder. Dele partiam os jardins e também
uma série de avenidas e prédios públicos (GYMPEL, 2001, p. 56-57).
O estilo espanhol ficou conhecido como Plateresco. Isso porque ele foi financiado pela
prata. Essa arquitetura bebeu largamente do modelo italiano. Isso se deu porque muitos
arquitetos vindos da Itália foram contratados pelos monarcas espanhóis. Enquanto um estado
ferrenhamente defensor do catolicismo, a Espanha usou ao máximo seus elementos decorativos.
O céu exposto não era apenas paraíso. Ele se impunha. Se expandia sobre os fiéis que deveriam
observar seus detalhes, mas mais do que isso deveriam se submeter à ordem da fé e da igreja.
No espaço colonial o barroco espanhol buscou também sua imposição mais do que a persuasão
dos povos americanos originários. No entanto é notável como ele se adaptou à geografia, cultura
e traços dos locais em que foi implantado. Motivos autóctones foram assim incorporados. É
nesse sentido que houve o barroco sísmico na América Central, enquanto que no México houve
o Plateresco, e nas colônias do sul o modelo italiano foi mais presente (BLUNT, 1988, p. 299-
316). No caso das colônias portuguesas também é notável a imposição da fé. No entanto os
colonizadores lusos não se utilizaram puramente de ferramentas violentas, de forma que
aplicaram os elementos persuasivos do barroco.
Lisboa enquanto cidade capital possui uma geografia de encontros entre o mar e suas
colinas. Os contatos entre as águas e as pedras sempre estiveram registrados em seus motivos
decorativos. É nesse sentido que o barroco lusitano sempre evocou elementos de suas colônias.
A igreja de Santa Engrácia em Lisboa evoca os aspectos do barroco intermediário em sua
composição. É uma fachada ampla, que deu curvas ao clássico, que evoca a monumentalidade
do poder (PEREIRA, 1992, p. 33).
A grande obra do barroco português e que marca o período Joanino de produção barroca,
entre 1707 e 1750, foi o convento e palácio de Mafra. Essa estrutura palaciana, combinada com
fundações religiosas, assumiu grandes proporções, evocando, com profusão, o uso do mármore,
de forma que essa edificação evocava a monumentalidade do barroco. A grande função desse
espaço estava associada às pretensões do absolutismo, isso é, exaltar a glória do rei e de Deus.
Mafra foi uma espécie de escola de arquitetura para os lusitanos. O espaço permitiu novas
definições e percursos para o século XVIII e sua manifestação do barroco (PEREIRA, 1992, p.
50-70).
Tendo o barroco dominado o cenário europeu por cerca de duzentos anos é impossível
pensar o processo de colonização do Brasil, sem relacioná-lo com as edificações que foram
estabelecidas nesse território. O maneirismo e em seguida o barroco, marcaram os primeiros
300 anos da experiência colonial brasileira, portanto evocar essa estética e estilo permite
compreender aspectos do processo colonial.
As construções jesuíticas foram aquelas que mais incorporaram valores das populações
autóctones. Os grupos originários realizaram múltiplas práticas arquitetônicas, de forma que,
sob o mando e organização dos jesuítas, o maneirismo foi amplamente utilizado. Isso é visível
em igrejas como a catedral de Salvador, a Igreja de Santo Alexandre em Belém ou no colégio
jesuítico de Paranaguá (TOLEDO, 1983, p. 133).
No caso das edificações franciscanas o que se nota são espaços religiosos que possuíam
grandes claustros, com um grande espaço na frente do tempo, assim como a presença de um
cruzeiro nesse espaço livre. As talhas douradas e o amplo uso de azulejaria, principalmente em
tons azulados, são marcas da arquitetura franciscana no Brasil (TOLEDO, 1983, p. 146-155).
As regiões de Salvador, Recife e Rio de Janeiro foram marcadas de maneira mais latente
pelo barroco em suas composições grotescas e densamente decoradas com elementos de ouro e
sobrecarregados pela dimensão da persuasão. Enquanto isso a região mineradora,
principalmente a região de Minas Gerais foi marcada pela questão de um barroco mais suave,
com linhas orgânicas e delicadas. A presença do rococó se fez mais marcante na região
(CURTIS, 1970, p. 22).
É difícil que um retrato do barroco brasileiro seja estipulado. No entanto é plausível que
ele seja pensado enquanto uma estética de conversão sobre as populações nativas indígenas,
assim como de imposição de poder sobre a população negra africana que foi subjugada ao
processo diaspórico compulsório. Porém o barroco com suas edificações também servia como
estilo que exaltava a presença católica no espaço americano, como se fosse solo virgem a ser
Salvador por ter sido a primeira capital colonial do Brasil acabou adquirindo múltiplas
formas das estéticas advindas de Portugal. O maneirismo e o barroco se tornaram disseminados
no espaço da capital. O joanino também foi amplamente aplicado na capital colonial, no entanto
é interessante situar como os estilos formaram miscelâneas arquitetônicas na cidade
(OLIVEIRA, 2014, p. 22-26).
O Rio de Janeiro sempre fora uma região importante enquanto porto de escoamento de
riquezas coloniais. No entanto no século XVIII a cidade recebeu grandes incrementos
financeiros e artísticos, já que ela se tornou o principal porto de saída do ouro da região de
Goiás e Minas Gerais. O barroco joanino se proliferou na primeira metade do século XVIII,
enquanto que na segunda metade o rococó tomou a cena, até que a vinda da família real o
substituiria pelo neoclássico (OLIVEIRA, 2014, p. 27-32).
A cidade de Ouro Preto possui uma dimensão lúdica, que evoca aspectos idílicos em
sua composição. Em grande medida isso se deu pela composição dessa vila. As igrejas,
construções civis, e residências que eram como palacetes se proliferaram pelas colinas, de
forma que isso não se deu com um planejamento prévio, havendo certa dinâmica
descentralizada. A cidade de Ouro Preto era mais dispersa do que a malha adensada tradicional
lusitana (BAETA, 2017, p. 333-344).
No caso do Piauí a ocupação da terra se deu na segunda metade do século XVIII. Esse
processo se deu a partir da expansão do gado Baiano, de forma que isso se deu a partir da
transposição da produção em relação ao rio São Francisco. No caso do Piauí o barroco
apresentou sempre composições pesadas, com fachadas em composição geométrica, com torres
de tendência piramidal (TOLEDO, 1983, p. 309-311).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se existem fases temporais do barroco, também é notável que sua manifestação regional
lhe proporcionou diferenciações estéticas de acordo com seu florescimento cultural e
geográfico. A arquitetura barroca surge em um momento de sensações de transformações
político-econômicas, assim como de uma profunda crise religiosa na Europa. Enquanto estética
No caso do Brasil, o barroco foi na mesma medida uma estética persuasiva para a
conversão das massas ditas “pagãs”, principalmente no caso dos jesuítas, quanto foi também
um artificio de imposição sobre esses grupos, como no caso dos franciscanos. No entanto o
barroco brasileiro não se manifestou apenas na esfera religiosa enquanto elemento de conversão
e afirmação católica. Suas raízes se estenderam às edificações civis, militares e até mesmo
produtivas. É preciso situar que enquanto estética do período que afirmava a identidade lusitana
nos séculos XVII e XVIII, esse estilo se propagou nas edificações brasileiras nessa mesma
época, a partir da ideia de afirmação da colonização, da dimensão de pertença à cultura lusitana
e na mesma medida enquanto estética habitual do período.
REFERÊNCIAS
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ZANINI, W. (Org.). História Geral da Arte no Brasil, Volume 1. 1 ed. São Paulo: Instituto
Walther Moreria Salles, 1983, p. 88-298.
CAPÍTULO 9
CICLOS INFINITOS E O APOCALIPSE:
O ANTROPOCENO, O ETERNO RETORNO E CONTRAFACTUAL NA SÉRIE
DARK
RESUMO
O conceito de tempo presente cunhado na década de 1980 diz respeito aos fenômenos históricos vivenciados pelas
massas mundiais no mundo da globalização. As sensações desse regime de historicidade envolvem a aceleração
do tempo, aumento exponencial dos estímulos e experiências e imediatismos. Tais elementos estão associados ao
consumo desenfreado de recursos naturais. Com isso há quem defenda que uma nova era geológica,
potencialmente catastrófica se instaurou, sendo conhecida como antropoceno. Todos esses elementos aparecem
com aplicação direta ou derivada na famosa alemã de suspense e ficção científica, Dark. O universo narrativo do
seriado é composto de elementos cíclicos que envolvem a temática do eterno retorno e do infinito. No entanto o
mundo de Dark possui um apocalipse em seu interior, que funciona tanto quanto começo e fim do ciclo. Seus
personagens buscam continuamente romper esse processo por meio de alterar os fatos no tempo de forma a criar
novos futuros possíveis que não sejam o apocalipse. Esse breve ensaio busca fazer uma reflexão sobre o
presentismo e suas marcas em uma fonte midiática ultra contemporânea. Para isso em um primeiro momento serão
debatidas as percepções que diferentes contextos socioculturais tiveram com o tempo e sua passagem. Em seguida
o texto segue em busca de situar como alguns conceitos caros aos historiadores, como o eterno retorno e o
contrafactual, são utilizados na série de forma a criar um universo impossível que possui suas próprias condições,
gerando alterações nas três direções do tempo (Passado, Presente e Futuro). O enfoque do trabalho se encaminha
em situar como há elementos teleológicos na série, como uma espécie de predestinação, onde a mudança dos fatos
não aparentam surtir efeito. Esse aspecto aparece como uma espécie de alusão às condições consolidadas no século
XXI, ou seja, aos fenômenos do antropoceno. A ideia é retratar que tal qual na série o apocalipse só pôde ser
superado por meio de medidas bruscas que exigiram sacrifícios, as condições que parecem se encaminhar para um
cataclisma climático-ambiental na realidade humana, também só podem ser vencidas por meio de atitudes
concretas que visem alterar essencialmente as condições produtivas do sistema global.
1 INTRODUÇÃO
No mundo Romano há certa similaridade, mas a história não era essencialmente aos
heróis e seus valores para o presente. O que se nota era justamente a ideia da história de uma
cidade, de um grande local de interesse que era o cento dessa cultura. Claramente isso significa
um raciocínio que indaga aspectos do passado desse local. No entanto os ciclos cosmológicos
e da natureza, com suas estações, evocavam a dimensão de um ciclo contínuo que se deslocava
em sentido de circularidade. A capital enquanto centro se manteria sempre como o apogeu do
império. O ciclo manteria as sucessivas passagens desse local, mas sempre sem um
deslocamento real em sentido de desestruturação (MARQUES, 2008, p. 54-56).
Essa percepção de tempo tem elementos passadistas, porém ela tem a condição própria
de propor um limite ao tempo. Retoma-se elementos do passado por meio de ritos de renovação,
mas na mesma medida há um pensamento sobre o futuro, onde o ano mil seria o fim da
experiência terrena. É nesse sentido que a ideia de tempo espiralado acaba sendo uma definição
útil para o pensamento sobre o litúrgico (HARTOG, 2013, p. 83-85).
Com a passagem ano mil, a entrada na Era Moderna, a expansão de mundo na visão
europeia entre os séculos XVI e XVIII, e o advento do capitalismo após a revolução industrial,
o século XIX se abriu com o desenvolvimento de uma nova perspectiva sobre o tempo, ou seja,
um outro regime de historicidade: O Futurismo (POMIAN, 1993, p. 17-19).
Entre os românticos a percepção era de que o presente que viviam tinha trazido
condições materiais e simbólicas adversas. Os românticos tinham interesse em construir o
sentimento nacional. Era preciso produzir uma apreensão total do passado, para que pudesse
construir a ideia nacional, a partir da dimensão de igualdade civil (BOURDÉ; MARTIN, 1983,
p. 83-87). É uma percepção que não tinha interesse em refazer o passado ou retomá-lo, mas sim
de evocar elementos do passado para se construir um futuro alternativo àquele que parecia estar
se consolidando.
Por outro lado, havia aqueles que viam o futuro a partir de uma percepção otimista. Os
adventos de máquinas à vapor e as novas tecnologias que surgiram a partir de industrias química
e elétricas, fez com que o otimismo chegasse ao auge na Europa, no último terço do século
XIX, período conhecido como Belle Époque. A esperança no progresso contínuo onde as
tecnologias garantiriam felicidade aos povos, fazia com que a percepção naquele dado presente,
fosse continuamente orientada ao futuro, ou seja, era preciso continuamente criar as condições
para o futuro esperado. Esse tipo de percepção estava geralmente associada ao mundo aos
adeptos do capitalismo (PROST, 2008, p. 102-103).
Essa condição de crise deu espaço na década de 1980 para o surgimento de uma nova
percepção temporal, uma onde o presente se tornou obsessão e seus eventos passaram a engolir
elementos do passado e do futuro (HARTOG, 2013, p. 142-144).
O excesso de estímulos nesse mesmo espaço de tempo faz com que as atenções dos
indivíduos se concentrem em fenômenos do imediato. Os diferentes contemporâneos
permitiram diferentes formas de percepção do presente. No caso do contemporâneo do século
XXI até os dias atuais a percepção é a de que o presente assumiu os interesses e concentrações
sobre questões do tempo (AGAMBEN, 2009, p. 62-64). O que há aí é o presentismo enquanto
regime de historicidade. O presente de excesso de estímulos faz torna os elementos do passado
confusos, criando a sensação de distância, enquanto que o futuro é direcionado ao presente, já
que as atenções e busca de interesse incidem continuamente sobre eventos que se dão nesse
imediato (HARTOG, 2013, p. 153).
Uma das maneiras para a concretização de reflexões sobre como culturas lidam com o
tempo, é através da utilização direta de fontes. O presentismo, enquanto regime vigente, criou,
e continua criando, uma série de vestígios que trazem debates sobre o tempo (HARTOG, 2017,
p. 233-235). Quando o mundo do entretenimento é pensado a partir de filmes, séries, livros,
jogos e outras mídias, é notável o quanto o tempo é conjugado e trabalhado, enquanto temática
de discussão, em sentido de criar uma série de narrativas. Isso fica bem visível também na série
alemã Dark, que foi produzida e divulgada pela empresa de Streaming de Mídia, Netflix.
A série contém 26 episódios que foram distribuídos em três temporadas. Ela foi lançada
originalmente em 2017 pela divisão alemã da empresa Netflix. Seu fim se deu em 2020. A série
articula diferentes temporalidades que estão conectadas no tempo por loops e portais temporais.
A série tem uma trama que envolve viagens no tempo, apocalipse tecnológico-temporal e
Na segunda temporada, que foi lançada em 2019, uma série de elementos vão se
encaixando. Ao que tudo aparenta há um apocalipse em curso. A temporada começa expondo
o ano de 2020, situando que há um apocalipse em curso que ocorrerá em seis dias. O Jonas
original está no futuro buscando uma maneira de voltar ao passado. Enquanto isso é mostrada
uma versão dos amigos de Jonas em 1921 construindo os túneis do tempo, o que demonstra
No apocalipse Jonas mais velho é enviado para 1888 enquanto que Jonas mais novo,
após o apocalipse, foi enviado para uma realidade alternativa, como um universo paralelo. Jonas
mais velho percebe que isso não foi o que aconteceu com ele, quando ele mesmo jovem. Isso
significa que duas linhas do tempo acabam existindo simultaneamente. Enquanto Jonas mais
velho está preso no passado, ele veio a se tornar Adam, o antagonista do seriado. Enquanto isso
Jonas mais velhos está no mundo alternativo buscando saídas para o loop temporal contínuo.
As coisas se repetem e há um ciclo infinito. Mas isso não significa que os agentes no
interior da trama não busquem alterar a ordem das coisas e os percursos. Isso porque o
apocalipse sempre está na iminência de ocorrer em 2020. Enquanto os eventos vão se sucedendo
na terceira temporada, o que fica aparente é que há uma maneira de se quebrar o ciclo. O que
Jonas descobre é que o ciclo existe devido ao fato que um cientista chamado H.G. Tanhaus fez
uma experiência temporal que saiu errada.
Tanhaus em seu universo havia perdido seu filho e neta durante uma tempestade. Seu
luto se tornou um drama contínuo em sua vida, até que ele decidiu construir uma máquina do
tempo para salvar seu filho. Sua experiência deu errado criando duas linhas do tempo paralelas
que coexistiam. O que Jonas precisava fazer era encontrar uma maneira, um ponto em comum,
nas duas temporalidades, que lhe levasse ao universo de Tanhaus, que seria a linha do tempo
correta. Ao fim da série Jonas consegue essa proeza e impede que o filho de Tanhaus morre de
forma trágica. Esse feito faz com que as duas linhas temporais alternativa sumam, garantindo
continuidade na linha do tempo correta.
A série Dark funda sua própria mitologia e organiza o aspecto temporal a sua maneira.
No entanto é interessante os elementos de eterno retorno que geram continuidade e repetição
dos eventos do loop cíclico, assim como é relevante o apocalipse enquanto elemento de fim
nesse processo. Interessa que o espaço de experiência dos protagonistas pode ser continuamente
moldado, conforme o interesse deles, e isso altera tanto as expectativas quando os próprios fatos
envolvendo os processos (KOSELLECK, 2006, p. 308-310).
Como foi situado anteriormente, com o advento do tempo presente após a década de
1990, um novo regime de historicidade se instaurou. Esse regime acelerado e imediatista, ficou
conhecido como presentismo. Lidar com fontes que pensam sobre essa temporalidade e suas
condições, significa realizar uma análise que incide sobre fontes que foram produzidas nesse
período (DOSSE, 2012, p. 10-12). A utilização da mídia audiovisual enquanto fonte histórica
exige a premissa de compreensão de que algo desse tipo, principalmente de narrativa ficcional,
contém dados e traços de realidade, mas não é a realidade em si. Isso é, a obra incorpora e
debate aspectos da realidade, justamente porque ela parte de ideias e narrativas que circulam
no contexto de sua produção (MORETTIN, 2007, p. 39-42).
A série se encontra enquanto uma evidência. Ela contém uma série de aspectos do tempo
de sua produção (HARTOG, 2017, p. 151). No caso da série Dark é interessante e dimensão de
que a evidência e as experiências são a base do próximo passo. No mundo real, a experiência
vivenciada fornece caminhos e interesses a serem designados. A experiência é fonte de
produção de expectativas. O que é interessante é que a experiência permite diferentes
interpretações e apreensões, mas o fato em si não pode ser moldado (KOSELLECK, 2006). No
caso da série Dark a questão é diferente. Ao se saber a experiência e suas evidências, o
protagonista e outros personagens têm a possibilidade de moldar o próprio fato passado. Isso é,
a experiência gerou uma determinada realidade que não é bem recebida pelos personagens,
então o interesse não é em mudar as condições do presente em sentido de gerar um novo futuro.
Os personagens querem moldar o passado para dessa maneira criar uma nova realidade em seu
devido presente.
Isso ocorre porque os processos no tempo deixam marcas duradouras. Como foi citado,
a interpretações podem mudar e tais apreensões moldam as ações futuras, no entanto certos
eventos deixam marcas profundas, como camadas sedimentares que sustentam estruturas,
instituições e hábitos (KOSELLECK, 2014, p. 21-23). Quando essa ideia é aplicada sobre a
série Dark fica evidente para os personagens que certas condições do presente não poderiam
O que é interessante na série, é que apesar da continuidade da mudança dos fatos e das
medidas, há um elemento de eterno retorno cíclico. Ao mesmo tempo que o apocalipse acontece
todas as vezes em 2020, evocando um eterno retorno, há na mesma medida um ciclo, já que as
temporalidades estão ligadas e seus eventos, por mais que mudem, acabam sempre gerando
resultados cristalizados.
Mais acima foram comentadas as condições elaboradas sobre o mundo a partir da década
de 1990. Isso é, aceleração do tempo e do desenvolvimento tecnológico, compressão do tempo,
imediatismo e excesso de informações, ou seja, todos aspectos que compõem as condições do
presentismo. Se essas são condições de percepção temporal, há de se propor que existem bases
materiais para esses acontecimentos. Isso significa dizer basicamente que esse processo é
derivado da aceleração da exploração desenfreada e predatória de recursos geoambientais, que
suscitam em implicações negativas para o clima, fauna e flora do planeta. É nesse sentido que
O que está se propondo é a ideia de que o globo terrestre entrou em uma nova fase
geológica, onde as condições do planeta são afetadas diretamente por um fator, a atividade
antrópica. Esse ritmo desenfreado de produção acabou por gerar desafios ao planeta. Não é mais
a qualidade de vida ou condições de trabalho que estão sendo questionadas tal qual no começo
do século XX, mas sim a própria condição de existência da vida humana. O consumo e uso dos
recursos vem acarretando desafios de longo prazo. A mudança climática vem sendo o principal
elemento elencado como adversidade da prosperidade da vida humana. Isso porque a mudança
de ritmos do clima gera consequências exponenciais sobre diferentes áreas necessárias para a
sobrevivência dos humanos. As produções rurais podem se tornar insustentáveis, a água potável
pode se tornar inexistente e a qualidade do ar pode se tornar inviável para a sobrevivência
(SILVA; ARBILLA, 2018, p. 1625).
Alguns autores defendem que isso não seja fruto necessariamente da atividade humana
por si só, mas sim pelo sistema produtivo humano que o globo vive no século XXI, ou seja, as
formas de capitalismo do tempo imediato. É nesse sentido que alguns autores utilizam o termo
capitaloceno para pensar essa nova era geológica (HARAWAY, 2016, p. 141). No entanto
existe a perspectiva de que esse aspecto seja mais profundo. Não que se negue o papel do
capitalismo predatório em relação à construção dessa nova Era geológica. Mas sim a ideia de
que mesmo que os sistemas produtivos fossem outros, com maior distribuição material e justiça
social, a exploração ambiental poderia também ser desenfreadas. Portanto independente do
termo, o que se pode dizer é que há uma perspectiva de papel humano nessa Era geológica, ou
seja, a atividade humana é determinante gerando o antropoceno.
Na série o apocalipse acontece, mas suas condições são justamente revertidas no longo
prazo. Na série há uma mudança contínua dos fatos, algo impossível de ser tomado no universo
humano real. Os fatos para nós são inalteráveis, mas as condições podem ser moldadas, porque
elas dependem de medidas em atitudes que são feitas no presente. A ideia de que após o caos
pode haver segurança é algo similar aos grupos ambientais que entendem que o cataclisma é
certeiro para reversível. Tais paralelos situam como as condições de um dado tempo são
refletidas em objetos de mídia. Nesse caso o presente e o presentismo marcam presença nos
horizontes da série.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda época histórica produz fontes que contêm traços e elementos que são
caracteristicamente datados. Isso porque diferentes vestígios deixados no tempo, são
produzidos a partir de diferentes tempos presentes que já se tornaram passado. Isso é, evidências
elencaram aspectos do seu próprio contexto de produção. A série Dark não foge dessa condição.
O eterno retorno está presente no imaginário de diferentes culturas. Ele funciona tanto
como elemento sensitivo onde o imaginário cultural entende que certos elementos do passado
tendem a retornar, quanto pode ser um traço estrutural do grupo, onde há expressamente o
interesse de retomar elementos do passado para que presente e futuro possam ter um arranjo
similar ao que já foi vivenciado.
Tais traços na série Dark levam à reflexão de como produtos midiáticos contêm aspectos
da temporalidade em que são produzidos. Em um tempo onde há o interesse contínuo por
REFERÊNCIAS
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DARK (Seriado). Direção: Baran bo Odar. Produção: Baran bo Odar. Alemanha: Netflix, 2017.
3 Temporadas (26 horas).
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CAPÍTULO 10
AS TRANSFORMAÇÕES DO MAL-ESTAR NA SOCIEDADE E SEUS EFEITOS NOS
PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO
RESUMO
Neste trabalho busca-se fazer uma análise das transformações pelas quais o mal-estar contemporâneo tem passado
ao longo dos anos. Analisa-se o mal-estar a partir de três tempos, iniciando-se pela época de Sigmund Freud, com
o mal-estar na civilização, o qual centraliza-se no conflito psíquico a partir da renúncia pulsional, necessária para
viver em sociedade. Em um segundo tempo, analisa-se a modernidade líquida, de Zygmunt Bauman, com as
transformações ligadas à formação de laços mais frouxos nas relações e à efemeridade dos valores que são tomados
como referência pela sociedade. Por fim, avalia-se a sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, na qual se faz
presente uma cobrança pelo uso ilimitado de todas as liberdades de escolha, levando o sujeito a vivenciar uma
angústia por tentar aproveitar tudo o que está a sua disposição. A partir da proposição de mal-estar destes três
autores, discutem-se os efeitos no processo de subjetivação do sujeito, tomando como base os aportes
psicanalíticos pertinentes. Por fim, compilam-se algumas contribuições dos autores estudados sobre como viver
em equilíbrio na contemporaneidade.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho adota uma revisão bibliográfica narrativa, a qual busca sistematizar e
analisar criticamente como evoluiu o conceito de mal-estar a partir da concepção original de
Freud (1930/2010a). Associado a essa evolução, procura-se identificar, tomando-se como
referência os processos de subjetivação, quais os efeitos do mal-estar no sujeito, considerando-
se a indissociabilidade deste em relação à cultura. Dessa forma, propõe-se que determinadas
estruturações psíquicas, compreendidas a partir dos aportes psicanalíticos, têm em sua formação
um atravessamento inegável da cultura na qual estão inseridas.
Por fim, avalia-se a sociedade do cansaço, de Byung-Chul Han, onde se faz presente
uma cobrança pelo uso ilimitado de todas as liberdades de escolha, levando o sujeito a vivenciar
uma ansiedade por tentar aproveitar tudo o que está a sua disposição. A partir da proposição de
Entretanto, o contexto social em que Freud vivia e que acabou por determinar a maior
parte dos seus estudos, veio se transformando ao longo do tempo. Em seu tempo, a clínica
encontrava mais frequentemente um determinado tipo de paciente, qual seja, pacientes
histéricas, com estruturas predominantemente neuróticas (GIOVANNETTI, 2018). Novas
configurações sociais se estabeleceram e, continuamente, mudaram as formas de se relacionar
na sociedade, assim como as referências que orientam como um indivíduo pode se considerar
socialmente integrado e realizado.
2.1 Civilização
A vida civilizada teria como objetivo controlar essas pulsões, por meio de normas e leis
que limitariam a busca pelo prazer e a expressão da agressividade. Para Freud (1930/2010a),
no entanto, a impossibilidade de satisfazer essas pulsões traria consequências negativas para a
psique humana, gerando um mal-estar que se manifestaria de diversas formas, tais como a
ansiedade, a depressão, a insatisfação crônica e a sensação de vazio existencial. O ser humano,
ao se ver privado de uma satisfação plena de seus desejos e impulsos, acabaria submetido a uma
vida de repressão e frustração, o que geraria um sofrimento psíquico constante (FREUD, 1930;
2010a). Assim, cria-se um paradoxo: por um lado, para viver em segurança na sociedade, faz-
se necessário renunciar à uma parte da satisfação pulsional; mas, por outro, a renúncia pulsional
coloca o sujeito diante da frustração que provoca o mal-estar.
O autor argumenta, ainda, que a civilização em si mesma seria responsável por uma
série de violências e injustiças, como a exploração econômica, a guerra, a opressão política e a
desigualdade social, as quais também gerariam sofrimento psíquico (FREUD, 1930; 2010a).
Para ele, o indivíduo é colocado em uma posição de impotência diante dessas forças maiores,
o que resultaria em uma sensação de desamparo e vulnerabilidade.
Por outro lado, uma sociedade que tem regras claras de convívio e que, por meio da
cultura, impõe formas esperadas de ser para os indivíduos, também apresenta algumas
vantagens. Uma delas é uma tendência ao estabelecimento de laços fortes nos relacionamentos,
desenvolvidos a partir da noção de pertencimento. A cultura é o condutor que leva o indivíduo,
sistematicamente, a compreender e adotar valores e formas de agir aceitas nos grupos de
referência. Toma tempo e esforço habilitar-se a ser aceito no grupo, mas, uma vez que isso
ocorra, o indivíduo também passa a ser sustentado e mantido pela sociedade a qual pertence.
Em meados do século XIX, havia uma intensa repressão, particularmente no que tangia
à sexualidade. Segundo Fuks e Rudge (2018) "O estado de alma de quem efetivamente vivia os
efeitos do progresso da civilização iluminista era descrito como 'nervoso' pelas artes e a
filosofia" (FUKS; RUDGE, 2018, p. 2). A cultura impunha um fardo de tudo conhecer e
dominar, tornando-se uma "fábrica de neuroses", principalmente nas classes mais altas da
Europa da época (FUKS; RUDGE, 2018). Já naquela época, os textos dirigidos às classes com
maior formação e cultura pleiteavam uma volta a uma condição mais humana, queixando-se
dos sintomas produzidos pelo progresso, sendo que "o nervosismo era uma figura obsediante
em discursos e obras literárias" (FUKS; RUDGE, 2018, p. 2). Essa configuração, associada a
uma cultura rígida de repressão de desejos e expressão da sexualidade, fazia emergir mais
frequentemente a estrutura clínica da neurose, em particular, da histeria.
A neurose se refere a uma estrutura psíquica em que o ego ainda é capaz de manter uma
relação saudável com a realidade, mesmo que haja conflitos internos (FREUD, 1898; 1996a).
O sujeito neurótico vive em um estado de ambivalência em relação aos seus desejos e
necessidades. O sofrimento geralmente se manifesta na forma de sintomas que expressam o
conflito psíquico que envolve os desejos inconscientes e as defesas mobilizadas contra eles. Os
sintomas, nesse caso, são formações de compromisso, cuja expressão simbólica denuncia os
conflitos recalcados, sendo considerados como uma forma de defesa contra a angústia (FREUD,
1894; 1996b).
A neurose, como estrutura clínica predominante na época de Freud, tinha como atenção
fundamental da análise o trabalho sobre o recalque e a impossibilidade de realização do desejo.
O analista buscava ressignificar o desejo, sublimando-o ou possibilitando a construção, para o
Mesmo para um contexto mais atual, de uma sociedade mais flexível, o que é mais
sentido pelo neurótico é justamente aquilo que lhe constitui, e que Birman (2016) sugere como
sendo "uma nostalgia do Pai". Isto é, os neuróticos querem um Pai que os proteja, mas ao qual
se submetem. Esta proposição está alinhada à relação do indivíduo com a sociedade,
originalmente proposta por Freud (1930; 2010a) no mal-estar da civilização, centrada no
antagonismo entre proteção e liberdade. O que o neurótico necessita, segundo Birman (2016),
é de um contexto estável e previsível, onde regras claras possibilitariam um processo de análise
que favorecesse a redução da angústia diante dos conflitos, mais do que das incertezas.
2.2 Liquidez
Assim, os sujeitos acabaram por se tornar incapazes de elaborar um projeto de vida que
represente sua identidade, delegando essa tarefa interior a algo externo, que os conduz, ao invés
de emergir deles mesmos. Resume o efeito dessa incerteza da seguinte forma: "um ambiente
líquido-moderno é inóspito ao planejamento, investimento e armazenamento de longo prazo"
(BAUMAN, 2008, p. 63).
O autor ainda explica que a analogia à liquidez está associada à ambivalência entre a
transformação constante e a permanência, assim como um líquido, que muda de forma de
acordo com o recipiente, mas mantém a sua essência como elemento. Para Bauman (2001), a
modernidade sempre se preocupou em "derreter" a ordem social sólida estabelecida,
transformando-a e flexibilizando-a conforme os interesses e demandas dos tempos atuais. Daí
a noção de algo que se transforma e muda, mas, ao mesmo tempo, se mantém e conserva parte
do original.
A versão coletiva desse lugar ideal seria, de acordo com Dunker (2015), o equivalente
simbólico do condomínio. Este é um lugar onde se poderia estar mais bem adaptado, justamente
por estar entre os iguais, criteriosamente selecionados, sendo que o muro do condomínio
representaria a estrutura que separa os excluídos.
Por outro lado, o indivíduo no condomínio, apesar de imerso em um contexto com regras
de convívio estáveis, ainda poderia estar ligado a múltiplos grupos, tendo, então, liberdade de
expressão e escolhas individuais ampliadas. A diferença da época de Freud, entretanto, é que
os grupos de referência estariam embasados em regras particulares, com contratos de adesão
espontânea, e não coletivas, oriundas de um histórico cultural que as tivesse lapidado.
O autor também lembra que os laços humanos e as comunidades foram substituídos por
redes, as quais têm diferenças no sentido de pertencimento associado a cada uma destas
(BAUMAN, 2001). Para ele, a comunidade é o lugar no qual o indivíduo nasce e está imerso e
que, portanto, o precede. Essa perenidade, ainda que circunstancial, denotaria estabilidade e
permitiria ao indivíduo vivenciar contextos com regras claras de reconhecimento e aceitação.
As redes, porém, têm uma característica que lhes é peculiar, qual seja, a facilidade de se
conectar e desconectar. Permitem, por um lado, uma hiper conexão, uma possibilidade de se
ligar a muitos e diversos, porém, limitam a possibilidade do indivíduo se valer de referenciais
coerentes, estáveis e claros.
Esta mudança na forma de ser e estar no mundo acabou por modificar as demandas de
tratamento na clínica psicanalítica, uma vez que outras formas de sofrimento entraram em cena.
De modo mais ou menos concomitante às propostas de Bauman (2001), tornam-se presentes
Na literatura psicanalítica, esses casos têm sido referidos também como borderlines,
tendo a origem do termo no status psicodinâmico de pacientes na fronteira entre a neurose e a
psicose (EIZIRIK et al., 2015). Estes pacientes possuem um caráter impulsivo, com o
envolvimento simultâneo de dois (ou mais) estados afetivos, em geral contraditórios, que
coexistem de forma dissociada. Caracterizam-se também pela presença de sentimentos de
vazio, uso de mecanismos de defesa primitivos, devido a debilidades nas funções do ego,
embora com manutenção do teste de realidade (EIZIRIK et al., 2015).
Green (2019) formaliza esse conceito para a psicanálise, propondo que existiriam
apenas duas grandes organizações psíquicas, as quais seriam a neurose e a não neurose. Esta
última se referiria a todas as estruturas psíquicas que se organizam a partir de distúrbios na
constituição do narcisismo. Minerbo (2019) propõe que "nas organizações não neuróticas, as
fronteiras egóicas são tão frágeis que qualquer estímulo é vivido como excessivo e
desestruturante" (MINERBO, 2019, p. 93). Para ela, o não neurótico procura um objeto externo
ao qual possa se ligar, na expectativa que este possa prover algum sentido e ordem para sua
vida psíquica. O não neurótico também estaria sujeito às angústias de esvaziamento narcísico,
onde a autoestima se dissolve e o sujeito sente-se sem valor.
O autor destaca que o bem supremo a ser buscado migrou da alma aristotélica para o
corpo, gerando um estresse que somatiza e que pode se transformar em síndromes, como a do
pânico e o medo da morte. No campo dos sentimentos, nota um aumento das distimias e das
depressões, gerando o que chama de desvitalização do sujeito. A necessidade de validação
externa resulta no que Birman (2020) classifica como uma despossessão de si, isto é, uma falta
de domínio de si mesmo em detrimento do julgamento do outro. Como consequência, sugere
que o indivíduo perdeu a capacidade de ter utopia e de sonhar a partir dos seus desejos.
Por essa razão, no "amor líquido" de Bauman (2004), o romper de relações, que era mais
trabalhoso no off line, e que é muito fácil no online, desestrutura aqueles que têm no objeto
externo a sua referência de integração dos processos psíquicos. Os relacionamentos não são
mais sólidos, mas sim, feitos para não durar, gerando, mesmo durante o convívio, uma "angústia
de quem ama". Nas patologias do vazio, a angústia de quem ama é a angústia pela perda do
outro, e, devido à falta de fronteira, configura-se como uma angústia de aniquilamento.
Para o autor, o amor é mais falado do que vivido e as incertezas quanto à sua
profundidade, fidelidade e duração são cada vez maiores (BAUMAN, 2004). Fica claro para
Esse contexto ainda perdura nos tempos atuais. Entretanto, a liberdade de expressão e a
individualização, que surgiram inicialmente como uma contracultura ao controle exacerbado
da civilização, acabaram por ganhar dimensões extremas. A ampliação da capacidade de
conexão dos seres humanos, a facilidade de produção visual e a deterioração do papel do estado,
acabaram por gerar um novo contexto sociocultural que passou a afetar os indivíduos de novas
maneiras. A liberdade tem seu papel alterado novamente e o indivíduo que tudo podia, agora
tudo deve explorar. É a sociedade do cansaço.
2.3 Cansaço
Um dos filósofos contemporâneos que descreve esse novo tempo é Byung-Chul Han,
coreano radicado na Alemanha, que cunhou o termo "sociedade do cansaço". Para Han (2015),
a sociedade de hoje não se limita apenas a oferecer total liberdade de escolha, mas demanda
que o indivíduo procure explorar todas e cada uma delas ao máximo. O que vale hoje, portanto,
é o desempenho, isto é, a capacidade de otimizar a exploração de oportunidades. Para o autor,
o sujeito se explora apaixonadamente, "e, visto que, em última instância, está concorrendo
consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir" (HAN, 2015, p. 86). Aqueles
indivíduos que não conseguem alcançar as expectativas se deprimem e se sentem culpados
pelos seus fracassos, buscam a culpa dentro de si e não na sociedade.
Se antes a sociedade era considerada tirânica, por explorar sem piedade o indivíduo,
hoje a auto exploração, de acordo com Han (2015), é um recurso mais eficiente do que a
exploração pelo outro. O autor sugere que, hoje em dia, o controle e a coerção são realizados
por uma exploração voluntária, acompanhada de uma exibição de conquistas, as quais gerariam
o que ele chama de auto iluminação. Em uma sociedade que também é a da transparência, se
vive no "panóptico" (HAN, 2015, p. 49), onde se vê e se é visto por todos, numa exposição
voluntária. Dessa forma, vive-se em uma sociedade orientada para a liberdade, mas na qual o
ato de ser livre acaba sendo expresso como uma compulsão. O "eu", como projeto
Estas propostas também estão alinhadas com a perspectiva de Han (2022), que afirma
que se vive em uma sociedade narcisista, na qual as pessoas investem sua libido em suas
próprias subjetividades. Com isso, sujeitos narcisistas não conseguiriam definir claramente seus
próprios limites, percebendo o mundo "apenas como uma sombra de si mesmo" (HAN, 2022,
p. 52). Nesse caso, as fronteiras entre o indivíduo e o outro estariam difusas, gerando uma
incapacidade de reconhecer e aceitar o outro em sua alteridade.
A busca pelo sucesso, nesse caso, seria uma espécie de tentativa de confirmação de si
mesmo pelo outro. Sonoda (2013) sugere que a vida, na atualidade, seria como cada um por si:
Fortes (2007) complementa essa visão, trazendo a noção de insuficiência, percebida pelo
sujeito, que, conscientemente, considera-se responsável por sua própria vida, mas que se
percebe impotente quando avalia o possível em comparação ao impossível. A noção de
insuficiência surge quando "o sujeito se sente aquém de toda essa exigência de desempenho,
não se vendo preparado para a emancipação e a responsabilidade que lhe são demandadas pelo
contexto do individualismo" (FORTES, 2007, p. 85). Na verdade, além do desempenho, essa
responsabilidade por si mesmo estaria compelindo o sujeito a "tornar-se ele mesmo", advindo
disso a depressão, a qual seria "uma espécie de fadiga, de vazio de um sujeito que se sente
cansado dessa busca incessante de uma produção de si" (FORTES, 2007, p. 86).
Han (2017) sugere que a depressão advinda desse insucesso seria um sintoma de uma
estrutura narcisista não atendida em suas demandas. Ao contrário do "Eros", que tira o sujeito
de si para investir no outro, a depressão faria o sujeito desmoronar em si mesmo. De acordo
com o autor, um dos principais motivos que impediria o cultivo de Eros na sociedade
contemporânea seria a perda da habilidade de se estabelecer relações reais. "Temos muitas
conexões, mas poucas relações", é como resume Han (2022, p. 90).
Um contexto tão complexo e demandante como este, abre espaço para que outros
comportamentos individuais, analisados sob o prisma das estruturas clínicas, possam se
manifestar mais frequentemente. Um comportamento psicótico poderia ser, eventualmente, a
única alternativa para se defender da presença constante de contradições nos valores de
referência desse tipo de sociedade.
A psicose se refere a transtornos mentais em que o ego perde sua capacidade de mediar
a relação entre a realidade interna e a realidade externa, levando a uma ruptura com a realidade
compartilhada (FREUD, 1924; 2011). É uma estrutura psicopatológica mais grave, que se
caracteriza pela criação de um mundo próprio e delirante, que seja capaz de atender aos desejos
que o mundo real não pode prover.
Reforçando o direcionamento para essa estrutura clínica como alternativa para lidar com
um contexto como o descrito, Birman (2016) destaca que a falta de referências sólidas,
substituídas por demandas contraditórias, ocorrem continuamente num mundo de redes, pois
um mesmo comportamento, repudiado por um grupo, pode ser amplamente aceito por outro.
Além disso, sugere que as variações de humor no mundo contemporâneo são exacerbadas
devido às frequentes frustrações a que os indivíduos ficam expostos, uma vez que se torna cada
vez mais difícil atender às expectativas sociais. Muitas destas frustrações e variações de humor
são representadas pela passagem ao ato, associadas à agressividade e, muitas vezes, à violência.
Para o indivíduo, estes atos violentos poderão ser vistos como ameaças à sua segurança
e estabilidade, reforçando o movimento de fuga e evitação desses contextos.
Consequentemente, gerariam isolamento, distanciamento da realidade e, possivelmente, um
comportamento psicótico, associado à paranoia ou episódios depressivos. Todos os indivíduos
têm um código interior onde se antecipam aos possíveis perigos, o que os torna saudavelmente
paranoicos, mas, na psicose, podem representar uma pressão insustentável, que leva à ruptura
(BIRMAN, 2020).
Além de expor o indivíduo a situações de violência e exclusão social, alguém que adote
um comportamento mais psicótico conta, cada vez menos, com a possibilidade de acolhimento
e compreensão (DUNKER, 2015). Esses fatores podem agravar a fragmentação do eu e a
desconexão com a realidade, contribuindo para o sofrimento psíquico característico da psicose.
Da mesma forma que o caso da psicose, o contexto social atual, que dificulta a
constituição narcísica de uma forma mais estruturada, pode acabar por estimular
comportamentos mais próximos de uma estrutura perversa. Vale e Cardoso (2020), por
exemplo, propõem que "a problemática perversa tem em seu fundamento um ego
narcisicamente ferido, que precisa manter-se ilusoriamente unificado, afirmando-se em sua
onipotência infantil" (p. 1). Sugerem que, no perverso, haveria um objeto interno "indomável"
sobre o qual deseja ter controle, mas não consegue. Assim, uma visão mais atual da perversão
propõe que "o ego do sujeito busca recobrar a atividade, passando então ao ato, dominando o
objeto externo e afirmando-se onipotentemente, numa tentativa de superar a situação de
passividade" (VALE; CARDOSO, 2020, p. 8).
O fetiche, por sua vez, é a escolha de um objeto externo para a satisfação da libido,
sendo que os autores que estudaram a estrutura após Freud consideram que, tendo o perverso
um objeto claramente definido, seu desejo pode ser mais facilmente atendido. Como
consequência da satisfação da libido pelo objeto do fetiche, no perverso não há espaço para o
desejar, uma vez que não há espaço para a falta. Além disso, o outro, objeto do fetiche é tratado
como coisa, não é considerado e seu desejo pouco importa ao perverso. Essa forma de ver o
mundo, tão focada em seu fetiche, é que dá espaço às fantasias perversas de assumir o lugar da
Lei.
3 VIVER NA CONTEMPORANEIDADE
O contexto contemporâneo impõe ao sujeito uma série de desafios para que este possa
se manter estruturado. Cabe, neste ponto, trazer à tona uma reflexão de como se pode buscar
alternativas para ressignificar o que se presencia, resgatando uma subjetividade própria, de
modo a tentar dar sentido à existência.
A vida qualificada, neste caso, seria aquela que se diferencia de uma vida puramente
biológica, cuja função se limitaria à sobrevivência, e passa ser construída e simbolizada a partir
de uma reflexão pessoal sobre as escolhas de valor por parte do indivíduo (BIRMAN, 2016).
Sua proposta se baseia na busca de lugares de pertencimento, nos quais o indivíduo é
referenciado por um coletivo que o aceita, valida e, ao mesmo tempo, permite se constituir
também a partir das suas crenças. Para Birman (2020), seria preciso resgatar a solidariedade, a
empatia e o compromisso com o outro, a fim de construir uma sociedade mais justa e mais
humana, capaz de oferecer um sentido coletivo que reduza o sofrimento psíquico gerado pelo
mal-estar na atualidade.
Bauman (2004) também traz que a fragilidade dos laços humanos na sociedade
contemporânea é um reflexo da própria natureza da modernidade líquida, a qual exige uma
constante adaptação e mudança. No entanto, é possível superar o sofrimento psíquico causado
Alinhados com essa proposta, Safatle et al. (2018) sustentam que a superação das
patologias do social requer uma transformação radical nas estruturas políticas, econômicas e
culturais da sociedade contemporânea. Seria preciso resgatar o sentido coletivo, a solidariedade
e a justiça social, a fim de construir uma sociedade mais humana e mais justa, que pudesse
oferecer um sentido de pertencimento e de realização coletiva, capaz de superar o sofrimento
psíquico gerado.
Nesse sentido, Bauman (2008) sugere que os indivíduos sejam agentes cuidadores da
sua própria vida, compreendendo melhor o que podem mudar, assim como os contextos a que
devem se adaptar. Dunker (2015) ainda ressalta que, mesmo nestes contextos determinantes, o
mundo está cheio de "brechas de significação", isto é, que existem outras formas de ser feliz
que não no condomínio. Para ele, é necessário abandonar as ideias superegóicas de felicidade,
buscando uma vida de significados, uma vida com menos e não com mais.
Refletir sobre si e sobre a vida, conforme sugerem os autores, pode ser difícil de definir
ou ensinar. Uma alternativa, como propõe Han (2017), talvez seja pensar em como não fazer
essa busca. De acordo com o autor, vive-se em um mundo de dados, onde a massa de
informações, analisadas pelos softwares, abandona a reflexão e se faz presente na forma de
barulho, de ruído (HAN, 2017). "Das informações, apenas tomamos conhecimento. [...] São
totalmente inconsequentes", isto é, nelas não há reflexão. A busca deve ser por um sentido, o
qual surge através do pensar e do refletir, uma vez que "o pensamento necessita de silêncio"
(HAN, 2017, p. 43).
Conhecer e refletir são colocados pelo autor lado a lado com vivenciar e experimentar.
A sociedade da informação é fundamentada em vivências e não em experiências; vivências são
coletivas, massificadas, enquanto experiências são únicas (HAN, 2017). O autor traz,
novamente, o componente de Eros, como o elemento que é transformador, referindo-se a uma
libido que se dirige ao outro, ao invés de uma sexualidade voltada exclusivamente ao prazer,
em que a libido se dirige egoisticamente para si. Da mesma forma que outros autores, coloca a
compreensão da alteridade como elemento chave do aprender sobre si e sobre o outro,
defendendo que é Eros quem conduz o pensamento pelo intransitado, pela relação com o outro
(HAN, 2017). O risco de uma vida limitada a vivenciar e não a buscar experiências completas
Estas, portanto, são formas pelas quais os autores nos levam a trabalhar os sofrimentos
que se fazem manifestos no mundo contemporâneo. Cada uma delas pode ser aplicada desde o
nível do indivíduo até o de uma sociedade mais complexa, demandando, naturalmente, esforços
de diferentes intensidades em cada um desses caso.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na sociedade de hoje, essa angústia clama por atenção; quer ser tratada. Todos os
autores trabalhados mencionaram a psicanálise como um caminho para trabalhar esse paradoxo.
O que diferencia o viver por viver do experimentar-se para crescer e evoluir é a reflexão sobre
o que foi vivido. Este convite à reflexão é a essência do processo psicanalítico.
Cabe a cada um que deseje equilíbrio na sua relação com a sociedade, buscar construir
a sua identidade. Esta terá maior coerência na medida em que possa se constituir a partir de
experiências de relacionamento em que o outro é compreendido em sua subjetividade.
Espera-se que essas reflexões possam colaborar com a prática clínica psicanalítica,
fornecendo insights e outras formas de ver o sofrimento psíquico, auxiliando terapeutas e
analisandos a melhor lidar com os mal-estares da contemporaneidade.
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CAPÍTULO 11
O CLITÓRIS E AS MULHERES
RESUMO
O debate central neste artigo é mostrar como é vista a sexualidade feminina ao longo da história, sendo motivo
de discussões, estudos e pesquisas, muitas vezes sendo silenciada. Ao recapitular alguns momentos da história,
pode-se notar as diferentes práticas sociais e a importância de como é visto e interpretado o corpo feminino e seu
funcionamento. O que é proposto aqui é problematizar os discursos feitos pelos médicos e anatomistas em relação
ao clitóris e a revolução clitoriana na década de 1979. Estas óticas permitem problematizar os discursos
socioculturais sobre o corpo feminino ao longo da história. Para tal, como referencial teórico, recorreu-se à
Margareth Rago, Michel Foucault, Berenice Bento, entre outros, para o embasamento da pesquisa.
Com base na História Cultural, será analisado aqui como o corpo feminino foi
representado ao longo da história com base nos debates sobre o clitóris e a anatomia feminina.
Tendo oclitóris como o foco de estudo dessa pesquisa, foi-se observado como as mulheres
foram descobrindo seu corpo, “descobrindo” o prazer e como foi silenciado esse prazer ao longo
da história, já que o corpo feminino foi construído pelos discursos médicos como sendo um
corpo “doente e histérico”.
No início do século XIX, o órgão que definirá a essência da mulher ainda não tinha
nome próprio. Galeno referia-se a ele usando o nome que utilizava para os testes masculinos,
“oschis” (RAGO, 2002, p. 183). No século XVII, Regnier de Graaf (anatomista holandês)
chamava o ovário pelo nome latino, “testiculi”, onde no século seguinte, Pierre Rousel, autor
do “Systeme et moral de La femme”, um dos autores mais influentes do período denomina os
dois corpos ovários em cada lado do sistema que cada um adota (RAGO, 2002, p. 184). Ele
acreditava que tinha “descoberto” o clitóris, que já tinha sido descoberto por Colombo, porém
tinha sido esquecido.
Em 1844, o alemão Georg Kobelt enfim o “deflora”: publica uma série de desenhos,
onde a medicina não podia mais ignorá-lo. Em meio aos discursos médicos que a genitália
Feminina foi definida através dos séculos. Também dessas falas sobre o que é o clitóris e como
Ao longo da história o corpo é representado por meio de discursos sendo ele feminino
ou masculino, sendo fruto de uma construção sociocultural em que ele se insere, o corpo sempre
foi produtor de grandes discussões é inegável, desde a sua identidade a valores sociais.
A norma de gênero repete que somos o que nossas genitálias formam. Esse sistema,
fundamentado na diferença sexual, nos faz acreditar que deve haver uma concordância
entre gênero, sexualidade e corpo. Vagina-mulher-emoção- maternidade-procriação-
heterossexua-lidade; pênis-homem-racionalidade- paternidade-procriação-heterosse-
xualidade. As instituições estão aí, normatizando, policiando, vigiando os possíveis
deslizes, os deslocamentos. Mas os deslocamentos existem (BENTO, 2006, p. 13).
De acordo com o meu sexo biológico vou assumir meu papel social, pois é assim que se
aprende, sendo esse ensinamento uma construção cultural. Com os meus hormônios e genitália
me represento socialmente como mulher mas a representação do corpo feminino quanto corpo
que me diz que sou “mulher” sempre teve essa representação? Seria o corpo uma construção
sociocultural? Lembrando que Simone de Beauvoir diz em 1949: não se nasce mulher, torna-
se mulher. Onde assumo minha identidade “mulher”, vou descobrindo o meu corpo com
cautelas, sim! Pois a partir do momento que me identifico como mulher eu tenho que ter
cuidados até as descobertas sob meu próprio corpo, assim como alguns discursos machistas faz
com que as mulheres tenham pudor do seu próprio corpo. Onde passa-se a dar valores,
representações ao seu corpo, constituindo um sujeito de acordo com os valores aprendidos
social e culturalmente, assim como Michel Foucault mostra a seguir:
Toda ação moral, é verdade, comporta uma relação com o real no qual ela se efetua e
uma relação ao código a o qual se refere; mas implica também em uma certa relação
a si; esta não é simplesmente “consciência de si”, mas constituição de si como ‘sujeito
moral’, na qual o indivíduo circunscreve aparte de si mesmo que constitui o objeto
desta prática moral, define sua posição quanto aos preceitos que segue, que fixa um
certo modo de ser que valeria como uma realização moral de si mesmo e, para isto,
age sobre si mesmo, trata de se conhecer, se controlar, se testar, se aperfeiçoar, se
transformar (FOUCAULT, 1984, p. 351).
Caberá a natureza construir dois corpos diferentes e a sociedade dar nomes a eles e poder
um sobre o outro? “E gênero adquire vida a partir das roupas que compõem o corpo, dos gestos,
dos olhares, ou seja, de uma estética definida como apropriada” (BERENICE, 2006, p. 90).
Sendo assim a história do corpo está ligada ao dispositivo da construção do biopoder, sendo ele
o corpo, construído ao longo da história. Berenice Bento cita que “Scott definiu gênero como
(1) um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) uma forma primaria de dar significado as relações de poder” (BENTO, 2006, p. 75).
Se parar para pensar como a mulher vai conhecer ou até mesmo descobrir seu corpo ao
longo do tempo é um tanto interessante, além dos discursos controladores sob ela, que muitas
vezes em meio a essa sociedade de controle passa a ter medo de conhecer-se, ou seja conhecer
seu próprio corpo. Se recorrer-se a alguns séculos atrás, onde a Igreja cobria o corpo da mulher,
o pudor fazia com que ela ficasse longe de seu corpo, tinha um certo controle para não pecar,
pois diziam-se que seu corpo era propicio ao pecado, onde suas vontades sexuais são
demonizadas, e sua vagina era só para a reprodução, vista como um tesouro da natureza, pois
era o símbolo da maternidade, prazer era pecado. Sendo assim a mulher não passava de um
vazo receptor de espermas. Ao longo da história a mulher foi conhecendo e tendo direito pelo
seu corpo apesar da o pressão que ela ainda tem por parte da sociedade por ter uma vagina, por
ser mulher, por ter emoções, por ser procriadora. Será que a mulher é o que a sua genitália é?
Foucault diz que a noção de “sexo”:
Uma sociedade que cobra muito sobre a vida do outro, principalmente quando o outro
se trata da mulher, de sua sexualidade. A partir de pensamentos estabelecidos pela sociedade
como “normal”, é difícil de uma pessoa construir sua singularidade, a partir do medo dos
olhares inquisitórios, já que os dispositivos sociais passam a considerar o diferente como
anormal, mas o que será o anormal? Se pensar que o anormal não existe, pois o normal não
existe, o ser humano não é igual a um objeto, feito do mesmo jeito, com as mesmas medidas,
O poder seria essencialmente o que, ao sexo, dita sua lei. O que quer dizer,
primeiramente, que o sexo se encontrado por ele sob um regime binário: lícito e ilícito,
permitido e proibido. O que significa, em seguida, que o poder prescreve ao sexo uma
‘ordem’, que funciona ao mesmo tempo como forma de inteligibilidade: o sexo se
decifra a partir de sua relação com a lei. O que quer dizer, enfim que o poder age
pronunciando a regra: a tomado do poder sobre o sexo se faria pela linguagem ou
melhor por um ato de discurso criando, do fato mesmo que se articula, um estado de
direito. Ele fala, e é a regra (FOUCAULT, 1976, p. 119).
Para Foucault
[...] A noção de ‘sexo ’permitiu regrupar segundo uma unidade artificial os elementos
anatômicos, as funções biológicas, as condutas, as sensações, os prazeres e permitiu
o funcionamento desta unidade fictícia como princípio causa, sentido omnipresente,
segredo a ser descoberto em toda parte: o sexo pode assim funcionar como significante
único e como significado universal (FOUCAULT,1976, p. 204).
O clitóris não só se limita a dar o prazer, é algo bem mais complexo, mas ele proporciona
o prazer feminino, sendo ele já visto ao longo da história também como o causador da histeria
feminina. Em alguns textos renascentistas de estudiosos como Baker Brown, Georg Kobelt,
entre outros, em que o clitóris é concebido como um órgão que faz o prazer das mulheres e sem
o qual elas “não teriam desejo nem prazer e nem nunca poderiam conceber” (RAGO, 2002, p.
168) se tornam separados a ideia de desejo e prazer. Hoje sabe-se que ele sim é uma das fontes
de prazer. Porém o clitóris era tido como a causa da histeria feminina “clitóris e histeria”. É
possível ver um pouco como era retratada essa histeria no filme Hysteria, 2001, que vai mostrar
que a histeria era o problema da época, em1880. O filme mostra que as mulheres histéricas,
eram histéricas por não terem prazer ou por falta de uma boa manipulação no clitóris. Assim,
constata-se que a mulher conhecer seu corpo era fundamental, o que vai fazer ela ter uma vida
diferente dos discursos controladores. O filme também mostra como surge o vibrador, que é
mais para suprir as necessidades femininas, para tratar da “histeria” proporcionando prazer.
Algumas cenas do filme mostram que as seções “médicas” tinham como objetivo de estimular
o sistema nervoso através do clitóris. Mas só foi em 1952 que o diagnóstico de histeria acabou.
O clitóris que era visto como um meio de tratar da histeria feminina, pois esta por muito
tempo foi vista como uma doença das mulheres. Os médicos vinculavam a histeria ao útero e
só depois que vão ver que ela está relacionada ao cérebro e que qualquer pessoa está sujeita a
ter, e não só as mulheres:
Com os movimentos feministas o clitóris passa a ser visto em 1979 como a libertação
feminina, a “Revolução Clitóriana”. Muito diferente dos conservadores que viam orgasmo
clitóriano como uma ameaça à heterossexualidade. Nota-se que o dispositivo da sexualidade
tem como razão de ser não apenas reduzir, mas proliferar, inovar, anexar, inventar, penetrar os
corpos de maneira cada vez mais detalhada e de controlar as populações de forma cada vez
mais global (FOUCAULT, 1976, p. 141).
Com a “revolução clitoriana” nos anos 1970 o pequeno órgão da mulher, foi cada vez
mais associado à anormalidade e ao lesbianismo. Onde os médicos alegavam que a necessidade
sexual da mulher, indicava como desejável a relação tradicional, em que procurava ter orgasmo
vaginal. No ano de 79 as feministas radicais, lésbicas assumidas e mulheres emancipadas
proclamavam sua independência sexual em relação do império do falo. Acusando os homens
de desconhecerem o corpo e a sexualidade feminina.
com pudores, vista só como mãe dos seus filhos, a figura de mãe, dessexualizando-a
(OLAVARRIETA, 1929). A mulher passou a entender mais seu corpo, aprestar mais a atenção
nele, passam a ver que elas são responsáveis pelos seus próprios orgasmos, que não precisam,
mais de um homem para sentir prazer como elas já estavam a costumadas a ouvir, esse discurso
que diz que a mulher precisava do falo do homem pra ter prazer, colocando a mulher como
inferior ao homem. Mas o clitóris foi peça fundamental para a redefinição social da figura
mulher, o clitóris e política se encontram, trazendo muito para se pensar.
É importante de se pensar o corpo como uma “arma”, sendo ele uma forma de
reivindicações, assim como as feministas usavam e usam dele para expressar através do auxílio
da arte, de seu corpo, para as performances para lutar por suas conquistas. Assim marcando a
questão política do corpo, onde a mulher deixa bem claro que o seu corpo lhe pertence, e que
ela pode estar onde ela quiser, tentando desconstruir o discurso patriarcal, onde o corpo pode ir
e vir, assim como o corpo masculino, pois o feminino tem suas limitações por causa desse
discurso machista e patriarcal. Foucault, fala que: “É pelo sexo, com efeito, ponto imaginário
fixado pelo dispositivo da sexualidade, que cada um deve passar para ter acesso à sua própria
inteligibilidade [...] à totalidade de seu corpo [...] à sua identidade” (FOUCAULT, 1984, p. 60).
Porém há muito tempo ouvia-se que a mulher não deveria frequentar todos os ambientes que o
homem, sendo ela limitada à casa, o lar, seu lugar. Essa ditadura fez com que as feministas
pensassem em defesa da sua liberdade, liberdade politicamente de seu corpo.
Pois mulheres são pessoas, merecem direitos iguais assim como os homens têm direitos
e deveres, as mulheres também têm que ter, não é porque ela é uma mulher que ela vai ser vista
como inferior ou até mesmo como propriedade, ela é dona do seu corpo! São questões como
Com a mulher conhecendo seu corpo, ela passa a se inserir no espaço cultural, passa a
falar sobre tais assuntos que por muito tempo elas eram excluídas, passam a ver o poder
simbólico do clitóris, o quanto ele representa para sua libertação. Logo, falar de seu corpo de
seu clitóris é um ato político e ajuda as mulheres a gerar discussões como essa e a tencionar e
questionar e lutar pela abolição de práticas absurdas e cruéis como a circuncisão.
Em meio a essa discussão, sobre a política do corpo uma argentina Mariela Acevedo
criou uma revista de história em quadrinhos: Clítoris (em espanhol, o acento fica no i). A revista
discute questões sociais e é uma forma de levar o conhecimento para todos, pois vai falar sobre
temas importantes e que devem ser discutidos.
Por muito tempo a sexualidade feminina foi silenciada e mostrada até mesmo em alguns
momentos de forma errada, onde o principal objetivo desta pesquisa foi mostrar uma historia
que não era mostrada e quando era, chegava para poucos. Pouco se via até mesmo nos livros de
anatomia quando se tratava do corpo feminino. Foi importante ressaltar que o corpo é algo mais
amplo do que se pode imaginar. Assim como o prazer não está relacionado só ao clitóris, mas
sendo ele umas das fontes de prazer rejeitadas e silenciadas ao longo da história.
REFERÊNCIAS
CHALKER, R. A verdade sobre o clitóris: o mundo secreto ao alcance da sua mão. Rebecca
Chalker; tradução Cristiana Serra. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001. 192 pp.
CLITÓRIS, PRAZER PROIBIDO. Michèle Domencke. França: Cats & Dogs filmes,
Syliconenet Arte France, 2003. 1 DVD (45 mim).
FLOR DO DESERTO. Sherry Hormann. Reino Unido: Waris Dirie, Cathleen Miler. 2009.
1DVD (2 h 7 mim).
HYSTERIA. Tanya Wexler. Reino Unido: Sony pictures classics, 2001. 1 DVD (95 min).
CAPÍTULO 12
ANÁLISE DAS PRIMEIRAS PÁGINAS DE CINCO JORNAIS BRASILEIROS NA
PANDEMIA DA COVID-19:
NOTAS INTRODUTÓRIAS
Telma Alvarenga
Leonel Azevedo de Aguiar
RESUMO
O objetivo deste artigo é apresentar os percursos iniciais de uma pesquisa exploratória que visa analisar, a partir
das Teorias do Jornalismo, a cobertura jornalística do primeiro ano da Covid-19 no Brasil. Foram escolhidos, como
objetos de pesquisa, veículos de cinco regiões: A Crítica (Norte), Correio (Nordeste), O Globo (Sudeste), Zero
Hora (Sul), Correio Braziliense (Centro-Oeste). Neste trabalho, de forma introdutória, como parte de uma pesquisa
mais ampla, foram analisadas 15 primeiras páginas em três momentos distintos. Juntas, elas formam um mosaico
de notícias, que, revisitadas, pode ajudar a construir a memória da pandemia, uma memória ainda em construção.
A hipótese é que parte desta memória social compartilhada emerge do jornalismo, que atua simultaneamente como
agente e veículo de produção de memória.
1 INTRODUÇÃO
Em outro artigo, Barsotti e Aguiar (2020), destacam que a seleção das notícias para
compor a primeira página não é uma tarefa imprevisível e que pode ser prevista e encaixada em
rotinas de produção da informação jornalísticas, além de enfatizarem que o trabalho jornalístico
implica em diversas interações sociais que compõe a “teia de facticidade” (TUCHMAN, 1978).
Apesar da queda de circulação e audiência dos jornais impressos, ano a ano, nota-se que
as primeiras páginas ainda detêm capital simbólico (MOUILLAUD, 1997). Nas redes sociais,
pelas quais o público brasileiro prefere consumir notícias (CARRO, 2022), as homepages são
lembradas diariamente: reproduzidas pelos próprios veículos jornalísticos em seus perfis,
compartilhadas e comentadas pelos usuários. Nas manchetes, chamadas e reportagens, estão
gravados os sintomas de uma época que, revisitados, podem ajudar a compreendê-la, com todas
as nuances e controvérsias próprias de uma história registrada no fluxo dos acontecimentos.
O passado recente da pandemia da Covid-19 está gravado nos fragmentos das chamadas
e manchetes dos jornais, nas fotografias estampadas nas primeiras páginas e nas reportagens.
Desse mosaico de notícias e imagens, que já foi chamado – conforme elencam Barsotti e Aguiar
(2018) – de “colagem” (GIDDENS, 2002), “cozido” (WEBER, 2002), “justaposição”
(ANDERSON, 1991) e “montagem” (HUYSSEN, 2015), poderá emergir a memória social dos
primeiros 365 dias de uma pandemia que abalou o planeta.
Para a pesquisa mais ampla ainda em desenvolvimento, o primeiro recorte temporal, vai
de fevereiro a março de 2020, quando a pandemia chegava ao país, provocando as primeiras
mortes. O segundo recorte abrange o mês de julho de 2020, quando a pandemia atingiu seu pico
naquele ano. Desde o começo da pandemia, julho registrou o maior número de mortes por
Covid-19 em um único mês no país: 32.912 vidas perdidas. Por fim, o terceiro recorte temporal
situa-se entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, quando as notícias sobre a vacina traziam
alguma esperança de que o pesadelo chegaria ao fim. Neste trabalho, espelhou-se esses três
períodos de modo extremamente reduzido: para o primeiro período, um dia de fevereiro de
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Mouillaud (1997) enxerga o jornal como um operador sócio simbólico, que produz
sentido diariamente por meio da constituição de um todo cujas partes estejam coordenadas. Ou
seja, também no pensamento do autor está presente a ideia de produção de memória e de sentido
do jornalismo por meio de fragmentos:
O sentido se constrói dia após dia [...]. Trabalho de coerência no espaço, mas também
no tempo: assiste-se à invenção do que Umberto Eco, a partir de Aristóteles, chama
de a “intriga”, quer dizer, “a procura e o estabelecimento de uma coerência, de uma
unidade em uma diversidade, para nós, caótica”. Trata-se de constituir um todo cujas
partes estejam coordenadas (MOUILLAUD, 1997, p. 50-51).
A relação entre jornalismo e memória também emerge dos estudos de Zelizer (1992),
que sustenta que a narrativa do passado será sempre constituída em parte como aquela que a
mídia escolheu lembrar.
Cabe trazer aqui também as reflexões de Schudson (2014). Para o autor de livros sobre
a História da imprensa norte-americana, o papel do jornalismo na construção da memória vai
3 RESULTADOS DA PESQUISA
Para este artigo, que faz parte de uma pesquisa mais ampla ainda em desenvolvimento,
nossa preocupação foi realizar uma pesquisa exploratória para atestar a viabilidade de analisar
a cobertura jornalística do primeiro ano da Covid-19 no Brasil dividindo-a por veículos de cinco
regiões – A Crítica (Norte), Correio (Nordeste), O Globo (Sudeste), Zero Hora (Sul), Correio
Braziliense (Centro-Oeste) – em três momentos distintos. Para a pesquisa exploratória
apresentada neste estudo, analisou-se as manchetes e chamadas das primeiras páginas dos cinco
jornais, em três dias diferentes, cada um correspondendo a um determinado período a ser
analisado futuramente: 1º de fevereiro de 2020, o começo; 1º de julho de 2020, o primeiro dia
do mês em que a pandemia atingiria seu pico naquele ano; 31 de janeiro de 2021, com a
expectativa pela vacina. Foram analisadas, portanto, 15 primeiras páginas.
Cinco meses depois, no dia 1° de julho de 2020, a Covid-19 foi objeto de duas chamadas
na capa do jornal O Globo. A situação no país já era tão crítica que os brasileiros foram
impedidos de entrar nos países da União Europeia. Europa confirma veto à entrada
de brasileiros, foi a chamada do jornal carioca, seguida de outra, sobre o desemprego
provocado pela crise gerada pela pandemia: Na pandemia, 7,8 milhões perderam trabalho. A
Crítica também deu duas chamadas para a pandemia na primeira página. Nenhuma delas como
o assunto principal do dia. Mas um selo vermelho no alto da primeira página alertava: País tem
mais de 59 mil mortes por Covid. No meio da primeira página, ao lado de uma chamada sobre
a marca dos 700 gols de Messi, uma chamada menor, com foto do prefeito de Manaus usando
uma máscara, dava a notícia: Prefeito está internado com covid-19. No jornal Correio, a notícia
sobre a pandemia disputou espaço com uma foto impressionante de um carro todo furado de
balas, decorrente de um tiroteio envolvendo guerra do tráfico, mas ganhou a manchete, que
falava sobre as medidas de isolamento social: Mais sete dias de restrições com novo cerco ao
Centro. No Correio Braziliense, a pandemia também não ganhou a manchete do dia, que
chamava para uma matéria sobre a queda do Ministro da Educação: Decotelli cai antes de tomar
posse no MEC. O ministro havia sido nomeado cinco dias antes. Mas a Covid ganhou destaque
no meio da primeira página, com uma foto (a maior da capa) de um hospital e a chamada: Em
alerta, DF tem quase 50 mil casos de Covid-19. A pandemia também foi assunto de uma
chamada bem menor: Cinema encara o vírus. O Zero Hora também optou por dar na manchete
a queda do ministro Decotelli. O espaço para a Covid ficou restrito a duas chamadas pequenas
na parte de baixo da primeira página. Ambas as chamadas abordam assuntos de Economia:
Planalto oficializa novas parcelas de auxílio emergencial e Desemprego sobe para 12,9% em
maio e atinge 12,7 milhões de pessoas.
Pouco mais sete meses depois, no dia 31 de janeiro de 2021, a pandemia era assunto de
uma manchete trágica em A Crítica. O jornal estampou no alto da primeira página a foto de
uma escavadeira abrindo covas em um cemitério, com o título: Vírus avança e órgãos solicitam
fechamento. No subtítulo, a informação de que o estado, no dia anterior, registrara o maior
4 DISCUSSÕES
Ao analisar o estudo pioneiro de David White (1999), Mauro Wolf (2009) aponta que
as normas ditadas pela cultura profissional prevaleceram estatisticamente sobre as preferências
pessoais no processo de seleção das notícias. Aguiar e Barsotti (2012) entendem que o processo
de seleção das notícias não é uma ação pessoal do gatekeeper, dependente de avaliações
subjetivas e arbitrárias.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fica a hipótese a ser trabalhada na pesquisa mais ampla que a releitura das notícias –
que emergem como fragmentos de memória –, de várias partes do país, pode ser reveladora da
forma desigual com que a pandemia afetou as cinco regiões. Também fica claro que o
jornalismo é um lugar de produção de memória e, como tal, um poderoso instrumento na luta
contra o esquecimento, os silenciamentos, os apagamentos e o uso político da memória. Ou,
como diz Jeanne-Marie Gagnebin (2006), é tarefa altamente política lutar contra o
esquecimento e a denegação, assim como também é uma empreitada política afrontar contra a
repetição do horror que se reproduz constantemente.
REFERÊNCIAS
BARSOTTI, A.; AGUIAR, L. A. de. As rotinas produtivas dos jornais: entre o imaginário e as
teorias do jornalismo. Revista Brasileira de História da Mídia, v. 9, n. 1, p. 183-201, jan./jun.
2020. Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.php/rbhm/article/view/8543. Acessado em:
Nov. 2023.
BARSOTTI, A.; AGUIAR, L. A. de. Mudanças nos modos de leitura das notícias e perda de
importância da home page. Alceu-Revista de Comunicação, Cultura e Política, v. 18, n. 36,
p. 122-141, jan./jun. 2018. Disponível em: https://revistaalceu.com.puc-
rio.br/alceu/article/view/108. Acessado em: Nov. 2023.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1987.
CARRO, R. Digital News Report 2022/Brazil. Reuters Institute for the Study of Journalism,
2022. Disponível em https://reutersinstitute.politics.ox.ac.uk/digital-news-report/2022> .
Acessado em: Jul. 2023.
DINES, A. Prefácio. In: DINES, A. (Org.). 100 páginas que fizeram história: grandes
momentos do jornalismo brasileiro nos últimos 80 anos. São Paulo: LF&N, 1997, p. 6-7.
GAGNEBIN, J.M. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
TRAQUINA, N. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2001.
TUCHMAN, G. Making news: a study in the construction of reality. New York: Free Press,
1978.
ZELIZER, B. Covering the body: the Kennedy assassination, the media and collective
memory. Chicago: University of Chicago Press, 1992.
CAPÍTULO 13
FAMÍLIA E AMBIGUIDADES:
REFLEXÕES SOBRE O CUIDADO E A CONVIVÊNCIA COMPULSÓRIA NA
PANDEMIA
RESUMO
Nesse texto convida-se à reflexão acerca dos impactos sociofamiliares de um dos períodos mais extemporâneos
vivenciados neste quarto do século 21, em razão da contingência do isolamento social advindo da pandemia da
Covid19 e que assolou grande parte da humanidade naqueles memoráveis e desafiadores anos de 2020-2022.
Cenário que exige um necessário exercício de posicionalidade circunstancial crítica e reflexiva para situar o
contexto estabelecendo elos de ligação entre a discussão central sobre o tema família e as reflexões inevitavelmente
geradas durante o período de confinamento social, haja vista as decorrências observadas em grande parte das
relações familiares demandantes de cuidados especiais. O olhar metodológico se fez a partir da perspectiva
epistemológica feminista do 'standpoint', proposta por Haraway (1995) tendo em conta os pressupostos da
valorização do saber localizado e autobiográfico, buscando refletir sobre as interfaces que envolvem a
complexidade do objeto eleito e a própria convivência familiar no período referido. Utiliza-se, para tanto, de relatos
das experiencias da própria autora no grupo familiar ao qual pertence. De início contextualiza-se o problema; em
seguida, confronta com algumas ideias conceituais expondo os indicadores que apontam a presença do mesmo e
como esse se configura um problema social merecedor de atenção e análise das ciências humanas. Por último,
problematiza-se algumas considerações acerca da família como espaço social que porta, além das tensões e
conflitos geracionais e de gênero, redes de solidariedade e ajuda mútua na dinâmica interna de suas relações
cotidianas.
1 INTRODUÇÃO
O presente texto, que se intersecta com outras experiências relatadas por mulheres
cuidadoras, propõe, através da perspectiva de construção de um conhecimento situado,
contribuir, em alguma medida, para as reflexões e debates no cenário pós pandemia acerca dos
impactos observados nas relações familiares durante aquele período.
2 METODOLOGIA
Desse modo, ao iniciar as leituras e discussões acerca das noções conceituais em torno
da família como instituição social, foi inevitável remontar as autorreflexões sobre própria
experiência pessoal no núcleo familiar de origem, para o qual essa autora retornou, e enunciar
os cruzamentos presentes no referencial teórico adotado. Estar posicionada na condição de filha
cuidadora de duas idosas, constituiu o lugar de privilégio analítico para as abordagens no âmbito
do conhecimento situado. Utiliza-se, portanto, das referências do retorno compulsório à
convivência parental naquele período, frente à necessidade de cuidados, para tecer as análises
e reflexões que seguem acerca das relações e tensões familiares.
17
As teorias de perspectiva possuem “como fonte original as considerações de Hegel sobre a ‘dupla visão’ do
escravo em relação ao seu ‘senhor’, ou seja, sobre a vantagem de perspectiva daqueles na posição de subordinados”
(HARTSOCK, 1986 apud SARDENBERG, 2002, p. 114).
No período pandêmico mais desafiador que antecedeu à chegada das vacinas, tal
experiência não diferiu daquela vivida pela grande maioria das mulheres, localizada em
determinada posição de classe e raça privilegiadas, diante de um novo cotidiano em que se
encontravam irmanadas e enredadas no imenso desafio de conciliar a jornada de trabalho diária
- naquele momento em home office -, com as tarefas domésticas e de cuidados– histórica e
culturalmente mal repartidas entre os pares por gênero - antes terceirizadas e atribuidas a outras,
também, mulheres trabalhadoras em sua maioria negra, mas situadas à margem dessa condição.
Muitas dessas mulheres, por sua vez, enfrentavam o desafio, ainda maior, da manutenção da
própria sobrevivência e de suas famílias em razão do desemprego gerado pela crise e a ausência
do amparo suficiente das políticas de proteção dos Estados neo ou ultraliberais em muitos
países, tanto mais no Brasil de 2020. Isso, levando em conta que neste país as famílias
monoparentais femininas se apresentam em maior número, segundo a Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios - PNAD (IBGE, 2015). O que significa dizer que a base de sustentação
econômica das familias de formação monoparental chefiadas por mulheres depende
majoritariamente dessas.
Nota-se que mesmo aquelas pessoas mais velhas que antes desfrutavam de uma vida
social independente, passaram a contar de forma compulsória com o auxilio possível e solidário
de familiares, amigos, vizinhos, etc, a fim de viabilizar o abastecimento e a gestão doméstica
de seus lares e outras demandas cotidianas, uma vez que sua mobilidade espacial foi fortemente
reprimida, mais do que qualquer outro grupo etário na quarentena.
Portanto, é possivel sugerir que a política dos afetos e o arcabouço das subjetividades
construídos coletiva e individualmente pelos sujeitos nas relações intrafamiliares, ocupam lugar
definidor, embora não determinante, das escolhas e tomadas de decisão sobre quem cuida de
quem e como se cuida também.
É desse ponto de vista que provoca-se a reflexão sobre a trama paradoxal enredada pelas
relações familiares convidando ao debate nesse texto, uma vez que a autora encontrava-se
imersa nesse retorno à realidade do cohabitar e conviver compulsoriamente no grupo familiar
de origem para cuidar das idosas, cozinhar, limpar e amar. Mas, também, padecer. Vivenciar
um cotidiano que exigia habilidades para o reencontro com, agora, novas pessoas, pertencentes
a outras gerações, comportando distintos anseios e visões de mundo. Habilidades necessárias,
portanto, para mediar conflitos, sobretudo, geracionais, mas não somente; negociar interesses e
estabelecer relações o mais dialógicas possíveis.
Uma observação que elucida a análise dos comportamentos por dentro das famílias,
sobretudo no período da pandemia, é dita por Motta (1998)
A família é também o lugar social dos afetos radicais – onde as relações são quase
simbióticas, as afeições mais doces e os embates entre os sexos/gêneros e as gerações
podem ser mais dolorosos. Onde se encontram os modelos de sentimentos em estado
mais depurado: os amores, as aceitações ilimitadas, as mais fundas solidariedades; ou
as rejeições mais chocantes, os conflitos cotidianizados, ressentimentos
“inexplicáveis” e ódios. Explícitos ou recalcados. A família é o “nosso grupo”,
primeiro, primário, fundamental, que é preciso preservar a todo custo da dissolução –
mas também dos olhares externos. Por isso, seu estudo, sua observação, sua análise
do ponto de vista das relações que a constituem, ou parecem constituí-la, é muito
Ocorre que, justo por isso, nesse cenário familiar redesenhado em muitos agrupamentos,
não apenas as relações de solidariedade e os laços afetivos se estreitaram. Tal ambiguidade
presente no interior das famílias pressupõe considerar, também, os jogos de poder, os conflitos,
as alianças e as trocas entre os indivíduos que partilham aquele mesmo território físico e
socialmente constituído.
Conquanto, um dos elementos que podem explicar o potencial aumento das tensões
intra-familiares surge em constatações de pesquisas já executadas durante o período pandêmico,
como aquela realizada pela Sempreviva Organização Feminista e Gênero e Número (2020), que
concluiu que 50% das mulheres brasileiras passaram a cuidar de outra pessoa durante a
pandemia.
A pesquisa apresenta dados minunciosos sobre quem são os sujeitos desse cuidado que
passaram a ficar a cargo majoritariamente das mulheres. Além das crianças, encontram-se
adultos e idosxs saudáveis e não saudáveis. Mas o que mais chama a atenção é que 41% das
mulheres entrevistadas que conseguiram ficar em casa, afirmaram perceber que houve
diminuição da participação de outras pessoas nos trabalhos domésticos. Ou seja, por esse dado
a divisão sexual do trabalho se acirrou em muitos lares durante a quarentena, aprofundando
ainda mais a desigualdade de gênero já observada no âmbito da divisão das tarefas domésticas.
Por outro lado, em que pese saber da importância dos conflitos intergêneros motivados
pelas assimetrias dos lugares de gênero na divisão social do trabalho, não apenas público, mas
Uma pista para essa reflexão, encontra-se nos estudos sobre os conflitos intragênero,
intra e intergeracionais. A respeito dos últimos, explica Marialice Foracchi, ao afirmar que o
conflito de gerações é dialético porque se dá no questionamento e na reprodução de valores; na
institucionalização, na normatização para além da família, “mas também em torno de
formulações sociais, exigências e expectativas de fidelidade entre as gerações” (FORACCHI,
1972, p. 24).
Ademais, Lins de Barros (1987) percebe a família como sendo uma arena dos conflitos
intergeracionais a partir das mudanças de responsabilidades e corrobora com o pensamento de
Foracchi apresentando as contradições e a complexidade nas relações da família nuclear
afirmando que “a existência do conflito nos grupos sociais advém, na sua cooperação, da
própria característica da natureza humana, que não permite ao indivíduo se relacionar com outro
apenas por um laço” (BARROS 1987, p. 47).
Ocorre que, além dos conflitos intergeracionais, estão presentes nessa conivência
cotidiana intensiva, os conflitos intrageracionais e, também, o intragênero forjados por distintos
interesses, rivalidades e jogos de poder existentes em muitas relações familiares em disputa por
atenção, seja para suprir carências, seja por mera demonstração de poder Além de outras
demandas de cunho subjetivo e que acabam por ser afloradas no contexto de confinamento e
presenças físicas partilhadas compulsoriamente num mesmo espaço, nem sempre amplo e
confortável. Mas, por outro lado, observa-se, também, relações, ora de cumplicidade, ora de
concessão e até alianças entre conviventes diante de interesses comuns desvelados.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, a grande complexidade que marca a dinâmica da familia como grupo social
e um dos principais operadores do patriarcado, não logrou ser o objeto central de análise desse
texto. Contudo, para desenvolver qualquer reflexão sobre tal tema, revelou-se fundamental
considerar a importância de enxergar o/a sujeito/a a partir do que este herdou das gerações
anteriores e buscar compreender, sobretudo, os rebates dessa herança ligados à
transgeracionalidade e à intergeracionalidade.
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Aquelas nascidas com o sexo biológico correspondente à sua identidade de gênero.
Fato é que a família, notadamente, é um dos temas mais cobiçados e discutidos não só
nas ciências como na sociedade em geral. Nas mesas de bar, em reuniões de família e/ou
amigas/os, nas salas de espera dos consultórios e dentro dos próprios, nas praças e nas escolas,
o assunto está presente. É também amplamente debatido pelos meios de comunicação escrita
como livros, revistas e jornais. No cinema, na internet e na televisão, esse tem sido um tema
recorrente. Nas redes sociais são incontáveis os grupos de família que se formam (e se
deformam) diariamente. Haverá sempre um palpite, uma opinião, ou mesmo uma “fofoca” a
ser esmiuçada quando o assunto são as famigeradas relações familiares. E, diretamente
proporcional às opiniões, surgem prováveis e correspondentes conflitos internos.
Desse modo, é de se esperar que tamanho interesse gere distintas formas de significar,
elaborar e perceber a família por diferentes ângulos, em que pese a prevalência (ou o retorno),
pela ofensiva conservadora, do discurso de um modelo hegemônico, normatizado e reconhecido
como ideal, ainda que matizado por muitas nuances. Ademais, tais interpretações são
traduzidas, também, pela academia na sua própria linguagem e forma de comunicar.
Entretanto, nessa reflexão buscou-se tanto menos dar conta de teorias ou adotar
conceituações acerca das noções de família e mais refletir sobre experiências cotidianas reais,
possíveis, ou não, de convivência parental, que venham possibilitar desconstruções idealizadas
e sacralizadas de modelos de familia e, assim, contribuir para estabelecer relações mais
humanizadas, plurais, dialógicas e empáticas, quiçá amorosas, efetivamente prenhes de redes
de solidariedades, construídas em processo, ainda que naquele momento tenha se dado de forma
deliberadamente compulsória em razão da contigência pandêmica enfrentada e que acometeu
grande parte da humanidade neste quarto de século.
Que esse texto possa representar um manifesto pela escolha do exercício pleno da vida
cada vez mais em comunidade, independente dos laços biológicos que ligam os sujeitos, mas
que esses/as possam, também, desfrutar do mesmo privilégio, quando possível de se construir.
REFERÊNCIAS
MOTTA, A. B. da. Reinventando fases, a família do idoso. Dossiê Gênero, Família e Fases do
Ciclo de Vida. Caderno CRH, Salvador-BA, n. 29, p. 69-87, jul./dez, 1998. Disponível em:
https://periodicos.ufba.br/index.php/crh/article/view/18694/12067. Acessado em: Abr. 2024.
CAPÍTULO 14
NOTAS DE PESQUISA E PROPOSIÇÕES SOBRE AS ATIVIDADES LABORATIVAS
DAS MULHERES DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBO NO
BRASIL
RESUMO
As comunidades remanescentes de quilombo estão na centralidade de pesquisa em razão da importância histórica
e cultural no país. A identidade étnica deste grupo de comunidade tradicional apresenta suas características
relacionadas à ancestralidade, ao significado e sentido atribuído ao território, ao conhecimento transmitido
intergeracionalmente, produção, alimentação e cuidados com a saúde. Nas terras de quilombo, a força de Dandara
permanece e as mulheres apresentam-se em papeis responsáveis pelo cultivo, pelo ensino e pelo fortalecimento da
tradição. Estudos indicam, contudo, que o grupo feminino perpassa caminhos de luta por melhores condições de
acesso à saúde, a uma vida sustentável, bem como, as reinvindicações pela titularidade das terras. Estas condições
de vida das mulheres quilombolas são pesquisadas de forma exploratória nas bases de pesquisa Scielo, Scopus e
Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da Capes na década de 2010 e 2020. Esta reflexão apresenta as
orientações gerais da pesquisa financiada pelo Programa Bolsa de Produtividade da Universidade do Estado de
Minas Gerais.
1 INTRODUÇÃO
Esta população possui o perfil educacional caracterizado pela baixa escolaridade, com
uma estrutura física escolar inadequada, muitas vezes, sem esgoto e energia elétrica, o que
resulta na ausência de capacitação profissional para o ingresso em carreiras promissoras
(CARRIL, 2017). Outro ponto é mesmo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, estes estudantes continuam a ter na prática
escolar um currículo escolar com pouca abrangência étnica-racial (SILVA; MENEZES, 2018).
2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
As comunidades tradicionais são formadas por grupos caracterizados pela relação que
possuem com o território, com a produção e por sua organização social. Costa Filho e Mendes
No que tange a este projeto, esta compreensão é fundamental, pois adota-se o conceito
de quilombo indicado por Arruti (2006): a própria autoidentificação dos grupos rurais negros
como remanescentes dos quilombos.
A identidade étnica quilombola se situa em uma abordagem mais ampla, “sendo que os
conceitos de afrodescendência e etnia se configuram como um enfoque político-cultural,
construído na relação histórica de uma ascendência africana diversa” (LIMA, 2008, p. 38).
É importante destacar as observações de Souza e Araújo (2010) que indicam que nos
anos recentes as comunidades afrodescendentes e os grupos étnicos estão ampliando seu espaço
de visibilidade. Em razão das lutas é que houve a normatização do reconhecimento destes povos
e do papel das mulheres quilombolas.
Nos quilombos, as mulheres são centrais nas múltiplas atividades produtivas nas
comunidades tradicionais. Elas atuam durante todo o dia, cuidam do manejo ambiental, são
determinantes para a transmissão geracional de conhecimento produtivo, cultural e social do
Muitos fatores contribuem para a movimentação dos jovens do campo para a cidade.
O desejo de dar continuidade aos estudos, de ter opções de lazer, de buscar uma vida
melhor através de um trabalho remunerado associa-se às questões relacionadas à
lógica de reprodução familiar, às relações de hierarquia, à herança. Neste sentido, os
jovens que vivem no campo levantam questões que desafiam a estrutura da sociedade
brasileira. Pensar nas idas e vindas desses jovens significa pensar na estrutura
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- O Programa Brasil Quilombola possui quatro eixos: Eixo 1-Acesso à terra; Eixo 2- Infraestrutura e Qualidade
de Vida; Eixo 3: Inclusão Produtiva e Desenvolvimento Local; Eixo 4 – Direitos e cidadania.
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- Os programas sociais dos governos federal, estadual e municipal – das cidades abrangidas neste estudo - para
as comunidades quilombolas serão apresentadas no desenvolvimento do projeto.
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O estudo de base exploratória é realizado com base na revisão de literatura nas bases
indexadas Scielo, Scopus e na Biblioteca Digital Brasileira para Teses e Dissertações (BDTD),
referentes ao período de 2014 a 2023. Delimitou-se este período, pois o mesmo abrange
momentos políticos e sociais de elaboração de desenhos de políticas institucionais e ações
promovidas pelos movimentos negro, quilombola, de gênero em prol das comunidades
tradicionais, como os grupos autoidentificados remanescentes de quilombo.
As palavras chaves que serão usadas na busca são: gênero; mulher; trabalho; produção,
quilombo. A partir deste levantamento de dados, serão identificados os artigos que tratam do
tema proposto. Posteriormente, haverá uma análise aprofundada na qual os artigos serão
sistematizados conforme o objeto de pesquisa que apresentam.
4 CONSIDERAÇÕES PARCIAIS
REFERÊNCIAS
COSTA, M. C.; LOPES, M. J. M.; SOARES, J. S. F. Violência contra mulheres rurais: gênero
e ações de saúde. Esc. Anna Nery [online], Rio de Janeiro, vol. 19, n. 1, jan.-mar. 2015.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ean/v19n1/1414-8145-ean-19-01-0162.pdf. Acessado
em: Out. 2018.
COSTA FILHO, A.; MENDES, A. B.V. Cartilha sobre Direitos de Povos e Comunidades
Tradicionais. Belo Horizonte: Ministério Público de Minas Gerais, 2013. Disponível em:
https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/wp-content/uploads/2014/04/Cartilha-Povostradici-
onais.pdf. Acessado em: Set. 2019.
LITTLE, J.; PANELLI, R. Gender Research in Rural Geography. Gender, Place and Culture,
Abingdon, vol. 10, n. 3, set. 2003. Disponível em: https://www.tandfonli-
ne.com/doi/abs/10.1080/0966369032000114046. Acessado em: Mar. 2024.
MINAS GERAIS. Lei nº 21.147, de 14 de janeiro de 2014. Institui a política estadual para o
desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais de Minas Gerais. Diário
Oficial do Estado de Minas Gerais: Belo Horizonte, MG, ano 122, n. 9, p. 2 – Caderno 1, 15
jan. 2014. Disponível em: http://jornal.iof.mg.gov.br/xmlui/handle/123456789/111485.
Acessado em: Mar. 2024.
VANINI, E. Após 130 anos da abolição, mulheres quilombolas se colocam à frente da luta
por direitos. 2018. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ela/gente/apos-130-anos-da-
abolicao-mulheres-quilombolas-se-colocam-frente-da-luta-por-direitos-22669863. Acessado
em: Out. 2019.
CAPÍTULO 15
A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA POPULAR COMO FERRAMENTA DE MUDANÇA
RESUMO
A participação política popular é fundamental para a sociedade contemporânea. Consiste na intervenção do
cidadão para que as demandas coletivas sejam atendidas, mediante o acionamento de órgãos e instituições públicas
responsáveis. A participação política popular pode ocorrer de forma individual ou em grupo; de forma permanente
ou transitória; de modo previamente organizado ou eventual. No Brasil, a Constituição Federal do Brasil de 1988
reconheceu em diversos artigos a legitimidade da participação popular, assegurando-a como um direito
constitucional. Neste trabalho investigou-se, por meio de duas entrevistas com dois líderes das associações de
moradores dos bairros de Guaxuma e de Garça Torta, a relação entre a participação política popular e a efetiva
conquista de direitos, particularmente os sociais. Investigou-se como é a forma de organização das reuniões das
associações de bairro e qual a sua periodicidade, quais os temas mais tratados, como se dá a adesão às reuniões e
o engajamento dos moradores às reivindicações, a definição da estratégia de ação diante de uma demanda da
comunidade, o caminho traçado pela associação para a reivindicação institucional, como se concretiza a articulação
com o poder público e o saldo das reivindicações.
1 INTRODUÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO
O absolutismo, surgido após a crise do feudalismo no século XVI, foi o sistema político
predominante na Europa do século XVI ao século XVIII, no qual o poder estava centralizado
nas mãos do rei, com nenhuma ou o mínimo de interferência de outros setores da sociedade. O
rei controlava desde as áreas econômica e jurídica até a religião.
Segundo Dallari (2004), com o passar do tempo, a burguesia já não estava mais satisfeita
com o governo dos reis absolutistas. Considerando a necessidade de participação política,
enquanto classe produtiva, além dos riscos representados pelo autoritarismo do Soberano, da
opressão, da exploração e das injustiças praticadas pelos reis e pela nobreza. Os burgueses, com
apoio da classe trabalhadora, engendraram uma série de revoluções, conhecidas como
revoluções burguesas.
De acordo com Dallari (2004), foi nesse momento e nesse ambiente que nasceu a
moderna concepção de cidadania. O cidadão é o sujeito em pleno exercício de seus direitos
civis e políticos e que também possui deveres para com a sociedade. Então cidadania é a
qualidade de ser cidadão e de poder participar ativamente do governo de seu país, seja por meios
formais ou informais.
O Estado no exercício de sua soberania não é mais proprietário do povo, visto que, no
antigo regime, o indivíduo era caracterizado na condição de servo, súdito ou escravo, sob o jugo
do monarca. O indivíduo moderno caracterizado pelo conceito de cidadão compreende alguém
provido de direitos civis e políticos, que pode votar e ser votado, influindo direta ou
indiretamente nos rumos da sociedade e do poder soberano.
O ser humano é um ser gregário. Nasceu para viver em sociedade, e não isoladamente.
Segundo Dallari (1999), da convivência com seus semelhantes, depende a própria
sobrevivência do ser humano, tanto do ponto de vista material, quanto do ponto de vista de
interações humanas. Do ponto de vista material porque precisa trabalhar, precisa de moradia,
de alimentos, de vestuários, e ninguém produz tudo de que necessita, precisando, portanto, do
que os outros produzem. E do ponto de vista de interações humanas porque o ser humano
precisa se comunicar, interagir, tem necessidade de afeto, de proteção, de aceitação, de
validação, de acolhimento.
A participação pode ser permanente, quando alguém integra um grupo, uma associação
de forma permanente como membro, ou pode ser esporádica, quando alguém integra um grupo
para reivindicar algo e, após alcançado, se afasta do grupo. Ou quando um grupo se forma para
uma demanda específica e, após resolvida demanda, o grupo se extingue. Todas são formas de
participação política.
A associação de moradores pode ser definida como a reunião de pessoas que entre si
guardam um vínculo territorial – moram num mesmo bairro, numa mesma região e
compartilham de um interesse comum – que é fazer o bem para a coletividade de
pessoas que moram naquela localidade. Juridicamente, a associação de moradores se
caracteriza por ser uma pessoa jurídica de direito privado (possui CNPJ) na
modalidade associação (art. 44, I, do Código Civil Brasileiro). Essa pessoa jurídica
constitui-se de pessoas que se organizam para fins não econômicos, sendo vedado
estabelecer entre os associados direitos e obrigações recíprocos entre si. Ou seja, todos
os associados devem estar ali em total igualdade de condições, com direitos e deveres
iguais, embora possa haver categorias especiais de associados. A associação precisa
elaborar um estatuto – documento de constituição, estabelecendo a sua denominação,
sua finalidade, o endereço de sua sede, além da forma como irá se organizar.
Importante destacar que não se pode confundir a associação de moradores com a
associação que existe dentro do condomínio particular. Na verdade, legalmente
ambas são pessoas jurídicas de direito privado do tipo associação, no entanto,
distinguem-se quanto à finalidade. A associação que há dentro dos condomínios tem
como finalidade a administração, manutenção, zeladoria, regras de convivência, etc.,
das áreas comuns daquele loteamento particular específico. Já na associação de
moradores, como veremos adiante, visa-se o bem estar dos moradores de todo o
bairro, inclusive dos moradores de eventuais condomínios que se localizem naquele
bairro (POLITIZE, 2023, n.p.).
Como unidade de análise desta pesquisa, foi escolhida a associação de bairro. Para a
etapa de campo, foram selecionadas duas associações que representam os bairros de Guaxuma
e Garça Torta, em Maceió, Alagoas. Para compor a parte empírica do trabalho, realizou-se duas
entrevistas com dois líderes comunitários dos bairros de Guaxuma e de Garça Torta, ambos no
Litoral Norte de Maceió, Alagoas.
Para a entrevista, foi formulado e aplicado um questionário com seis perguntas básicas,
porém, como se trata de uma entrevista do tipo semiestruturada, outras dúvidas e perguntas
foram surgindo de acordo com a própria dinâmica da entrevista, seguindo por mais caminhos
além dos previamente planejados.
Já no bairro de Garça Torta, o líder da associação informa aos moradores sobre quais
são os novos parceiros que estão ajudando a comunidade de alguma forma, sobre doações de
empresários de materiais didáticos para as crianças, os benefícios que chegaram para a
comunidade, as informações sobre a duplicação da via AL -101 Norte, dentre outros. Além da
pauta elaborada pelo líder da associação, este sugere ainda que as pessoas tragam um assunto
para ser abordado na reunião, e caso haja urgência ou relevância, será debatido.
Tais bairros sofrem com diversos problemas urbanos como dificuldade de transporte,
saúde, infraestrutura urbana, educação, segurança pública, dentre outros problemas. Nestes
Estas áreas urbanas passaram a ter uma valorização no mercado devido a chegada de
novos empreendimentos residenciais e comerciais. Os antigos moradores são obrigados a
conviver com as transformações socioespaciais que ocorrem progressivamente nos bairros.
Esse processo é conhecido como gentrificação, em que áreas urbanas experimentam um
processo contínuo de modificação de seu cenário urbano e de seu perfil social e econômico,
provocando a expulsão de antigos moradores e a valorização imobiliária.
As construtoras compram terras e diversos imóveis, que são derrubados para construção
do novo empreendimento, e, assim, toda a memória daquelas edificações antigas é destruída.
Imóveis antigos passam a conviver com novos empreendimentos. Isso muitas vezes aprofunda
a segregação, visto que expulsa de seus bairros de origem pessoas que têm uma história com o
local, uma relação de identidade com o local.
Tem-se uma situação em que o cidadão sem recursos está pressionado entre a força do
capital privado e o Estado. Possivelmente, esse capital privado, representado pelos empresários,
Então a associação do bairro, com o apoio dos moradores, aceitou a ajuda de um grupo
de empresários para revitalizar a praça. Pelo relato da líder comunitária, o poder público tentou
parar a obra, afirmando que somente este poderia fazê-la. No entanto, a população enfrentou a
ordem institucional e conseguiu impor que a obra fosse feita pelo grupo de empresários
parceiros da comunidade.
Esse é um exemplo claro em que uma comunidade conseguiu pressionar e impor sua
vontade, para que um problema comum fosse resolvido, ainda que não fosse por meio do poder
público.
Já o líder da associação do bairro Garça Torta não tem uma visão tão positiva assim. Ele
afirma que geralmente espera horas para ser atendido pelo representante do poder público, e
quando se trata de secretário municipal ou estadual, sequer é atendido. Relata também que é
difícil a associação encaminhar um ofício com uma solicitação ao poder público e esta
solicitação ser atendida, sendo necessário, às vezes, um vínculo político com algum governante
ou autoridade para ajudar. Essa ajuda certamente irá se refletir adiante no pedido de votos para
apoiar algum candidato político, em troca da ajuda fornecida à comunidade para solucionar
algum problema. E isso desconfigura a noção do que é ser cidadão, do que é exercer a cidadania,
do que é participação política popular.
Desse modo, pôde-se perceber que apesar das conquistas, ainda está longe do ideal o
saldo obtido pelas associações de moradores dos bairros de Guaxuma e Garça Torta no sentido
de terem seus objetivos plenamente alcançados. Entretanto, é preciso reconhecer que a
participação política popular em grupo, de forma permanente e organizada, pareceu ser a que
mais tem chances de obter visibilidade e êxito.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base em todo o exposto, conclui-se que a participação política exercida pelo
cidadão organizado em associações é algo fundamental para um funcionamento mais justo a
sociedade e, por consequência, para o fortalecimento da democracia. Pode-se inferir, ao longo
do que foi apresentado, que a mudança social está intimamente ligada à participação política
REFERÊNCIAS
BONAVIDES, P. O estado social e sua evolução rumo à democracia participativa. In: SOUZA
NETO, C. P. de; SARMENTO, D. Direitos Sociais: Fundamentos, Judicialização e Direitos
Sociais em Espécie. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.
SANTOS, G. O estado de natureza em Rousseau. Espaço Plural, [S. l.], v. 12, n. 25, p. 11–25,
2012. Disponível em: https://e-revista.unioeste.br/index.php/espacoplural/article/view/7262.
Acessado em: Mar. 2024.
VILALBA, H. G. O contrato social de Jean-Jacques Rousseau: uma análise para além dos
conceitos. Revista Eletrônica de Pesquisa na Graduação em Filosofia, Marília/SP, Vol. 6,
nº 2, 2013. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletroni-
cas/FILOGENESE/heliovilalba.pdf. Acessado em: Mar. 2024.
CAPÍTULO 16
SOB O SIGNO DAS NARRATIVAS DIGITAIS E OS MULTILETRAMENTOS:
CARACTERÍSTICAS E POTENCIALIDADES
RESUMO
Expressões como era digital era da informação tornaram usual na contemporaneidade para designar os avanços
tecnológicos advindos da revolução da informática. Com o aparecimento das mídias vivencia se novas formas de
comunicação e o avanço de recursos multimodais. Os sujeitos encontram se diante de outra forma de interações
humanas, de renovações de ideias, de ações e pensamentos marcando a história da humanidade. Nesse contexto,
que as narrativas ganham novos potenciais, visto que a dinâmica que envolve o processo de produção ganha novos
ambientes, contornos e sentidos. As narrativas passam a ser chamadas de Narrativas digitais, por serem
organizadas nos meios tecnológicos que vão além da linguagem escrita. Este artigo tem a finalidade de caracterizar
as narrativas digitais e suas potencialidades no contexto da formação de professores considerando a teoria dos
multiletramentos. Trata de um estudo de cunho bibliográfico com discussões teóricas por meio das vozes e
interlocuções de estudiosos que tratam das narrativas digitais e a teoria dos multiletramentos. Recorreu-se aos
estudos de trabalhos de Jenkins (2008), Santaella (2010), Cope e Kalantzis (2000; 2009), Oliveira et al. (2006),
Prado et al. (2017) Moura e Franco (2021) entre outros. As discussões teóricas realizadas no estudo contribuíram
para conhecer as propriedades do ambiente digital, o contexto de produção das narrativas e movimento que os
meios tecnológicos provocam na vida do cotidiano.
1 INTRODUÇÃO
Diante desses avanços que se investiga o conceito das narrativas digitais e suas
potencialidades para a formação de professor, visto que a dinâmica que envolve toda produção
textual na escola envolve novos ambientes e sentidos. As narrativas que antes eram um modo
de contar histórias orais passam a ser chamadas de Narrativas digitais, por serem constituídas
nos meios tecnológicos envolvendo diferentes linguagens. Este artigo tem a finalidade de
caracterizar as narrativas digitais e suas potencialidades no contexto da formação de professores
considerando a teoria dos multiletramentos.
A narrativa digital tem sido estudada com diversas nomenclaturas e abordagens: ora
como narrativas digitais, ora com digital storytelling, ou narrativa multimídia, digital narratives.
O estudo que se desenvolve concentrou no termo “narrativa digital” dada sua frequência nos
estudos educacionais e pelas principais referências teóricas da pesquisa.
Trata de um estudo de cunho bibliográfico com discussões teóricas por meio das vozes
e interlocuções de estudiosos que tratam das narrativas digitais e a teoria dos multiletramentos.
Nesse sentido, estudiosos como Jenkins (2008), Santaella (2010), Cope e Kalantzis (2000,
2009), Oliveira et al. (2006), Moura e Franco (2021), Prado et al. (2017), entre outros
subsidiaram o estudo.
O diálogo inicia refletindo sobre os ensinamentos que Benjamin, (1994) traz para a
narrativa. Do ponto de vista filosófico as narrativas benjaminianas carregavam aspectos de
conselho e sabedoria, por isso fundia se na questão do interesse, transmitida oralmente de
geração para geração. As narrativas, nesta ótica, concebiam como uma maneira de registrar
fatos, ressignificar, e apontando para registros do cotidiano vivido e experienciado pelos
sujeitos e seu coletivo (BENJAMIN, 1994).
A convergência digital, termo utilizado por Jenkins (2009, p. 332) “palavra que define
mudanças tecnológicas, industriais, culturais e sociais no modo como as mídias circulam em
nossa cultura”, refere se a diferentes formatos de textos na mídia conservando a estrutura de
narrativa. São exemplos de convergência digital o acesso à internet pela televisão, uso das
maquinas filmadoras, dos smartphones, das câmeras, dos vídeos, as diferentes plataformas
instituindo uma nova cultura. Um conceito considerado mais amplo é o definido pelo estudioso
como “a uma situação em que múltiplos sistemas midiáticos coexistem e em que o conteúdo
passa por ele fluidamente” (JENKINS, 2009, p. 333).
A realidade das salas de aula no século XXI , não se distancia dessa convergência digital
como ferramenta pedagógica, auxiliando os professores em sua prática diária. Nessa
perspectiva, as contações de histórias infantis digitais ganham outros desenhos, diante das
inovações tecnológicas, os diferentes aplicativos proporcionam ludicidade, movimentos e
maior interatividade, alterando assim, as relações sociais e a formato dos textos escritos. Em
outras palavras, as narrativas digitais se constituem na junção entre o ato de contar uma história
em um contexto de multimídia.
Pierre Lévy (2003, p. 28), define inteligência coletiva como “[...] uma inteligência
distribuída por toda parte, incessantemente valorizada, coordenada em tempo real, que resulta
em uma mobilização efetiva das competências”, sempre pautada no reconhecimento e o
enriquecimento mútuo das pessoas. Por exemplo uma acurada #hahstag fica entre as primeiras
no Twitter, diversas pessoas debatem o mesmo assunto e juntas têm um acréscimo da
capacidade intelectual. Os estudos e publicações de Lévy (2007) sobre a inteligência coletiva
tem dado destaques para criar um mecanismo de caráter semântico, independentes das
linguagens naturais e que seja capaz de relacionar os conteúdos presentes nos ambientes
digitais.
Jenkins (2009) explica cultura da convergência como uma quebra de paradigma, ou seja,
a existência da substituição das velhas mídias de massa pelas novas mídias digitais. De acordo
com Jenkins a cultura da convergência tem estrito relacionamento com a cultura regularizada
por diferentes mídias e que provoca um comportamento específico em cada público. De acordo
com este estudioso:
A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A
convergência altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados,
gêneros e públicos. A convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática
opera e pela qual os consumidores processam a notícia e o entretenimento. Lembrem-
se a convergência refere-se a um processo, não a um ponto final. [...] Prontos ou não,
já estamos vivendo numa cultura da convergência (JENKINS, 2009, p. 43).
Portanto, o que se está chamando de leitor ubíquo não é outra coisa a não ser uma
expansão inclusiva dos perfis cognitivos dos leitores que o precederam e que o leitor ubíquo
tem por tarefa manter ativo a comunicação. Ademais, trata de um leitor da cultura digital, um
leitor que tem de apreender como o sentido emerge em contextos coletivos e colaborativos, e
atua numa cultura aberta, baseada em apropriação, transformação, ou seja o “acesso passa a se
dar em qualquer momento e em qualquer lugar” (SANTAELLA, 2013, p. 276).
Igualmente, pode se pensar nas narrativas digitais como prática de ensino, significa
convidar alunos a conhecer tanto os aspectos dos recursos tecnológicos e as potencialidades das
diferentes linguagens, os modos semióticos para construção de sentidos em sociedade. As
narrativas digitais pensadas nos processos formativos de quem narra mesmo que tenham
diferentes recortes contextuais e temporais, deve vir acompanhadas de símbolos gráficos
típicos da linguagem das tecnologias digitais de informação, bem como a convergências das
novas mídias. Valido dizer da importância a dessas manifestações verbais, imagéticas, gestual,
sonora e na função que desempenha.
E nessa linha de raciocínio, as narrativas digitais favorecem discursos mais amplos que
se materializam na construção do sujeito enquanto produtor de sua trajetória.
Uma das implicações que emerge na discussão está justamente na gama de significados
e na gama de possibilidades que as novas tecnologias trouxeram para a revisão das práticas
pedagógicas. As narrativas se antes era o modo escrito que determinava os sentidos, com as
narrativas digitais outros modos e formatos foram acrescentados o que denominou se de
multimodais. Sobre a multimodalidade os ensinamentos de Cope e Kalantzis (2000) muito
contribuem para entender os significados expressos, ou seja, chega se na criação do design,
enquanto multimodais.
As contribuições do GNL residem sobretudo na questão do multi que vai além das
implicações linguísticas e verbais. As narrativas digitais entram nesse aspecto do multi à
medida que aspectos multimodais da linguagens estão presentes no construto textual (escrita,
Para os estudiosos, entender a noção de design dois sentidos devem ser observados: o
sentido de estrutura morfológica e o sentido de ato de construção. O segundo sentido apontado
“ato da construção” são essências nas narrativas digitais pois trata na ação de representar os
significados para si, por exemplo, realizar uma leitura , ou ver uma imagem, registrar momentos
da vida em fotografias Cope e Kalantzis (2009). A teoria do design, teoria proposta a partir da
Pedagogia dos Multiletramentos focaliza o processo da transformação com as novas formas de
comunicação com ênfase para a multimodalidade e a pluralidade de sentidos.
A leitura desse texto não se volta estritamente para cultura digital e produção de sentidos
na Web 2.0 , todavia traz o termo ubiquidade 21 ponderando que o ambiente digital promove a
integração de sentidos, práticas e modalidades. Nesse sentido, que entende que a realização dos
movimentos pedagógicos, não são excludentes, eles se cruzam durante qualquer momento do
processo de ensino. No processo da contextualização das narrativas digitais é que visualiza a
sobreposição dos designs, vistos nos seus três aspectos: os designs disponíveis (Available
design), os desenhos -designs (Designing) e os redesenhos (Redesigned).
Para ilustrar os movimentos dos design Tulio e Schlude (2000) apresenta uma proposta
de representação gráfica da Pedagogia dos Multimetramentos, demonstrando as relações entre
as práticas (situada e transformadora).
21
Discussões acerca da ubiquidade e pedagoia dos multiletramentos encontra se nos livros Literacies (2012) e A
pedagogy of multiliteracies: learning by design (2015). No Brasil, autores como Roxane Rojo aproximam as duas
perspectivas de letramentos digitais e multimodais em trabalhos como Multiletramentos na Escola (2012) e Escola
Conectada (2013).
Essa proposta elaborada pelos estudiosos Tulio e Schlude (2000) tem a intenção
didatizar os movimentos pedagógicos de cada momento já mencionados.
Nessa ideia da dinamicidade há que concordar com Cope e Kalantzis (2000), quando
assevera que os designs se decompõem em significados tantos que no tocante aos sentidos eles
negociam com os sujeitos as reconstruções por meio dos seus design.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
COPE, B.; KALANTZIS, M. Multiliteracies: Literacy learning and the design of social
futures. London: Routledge, 2000.
JENKINS, H. Cultura da Convergência. trad. Susana Alexandria. São Paulo: Aleph, 2008.
KRESS, G. R. Design and transformation, new theories of meaning. In: COPE, B.;
KALANTZIS M. Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. London &
New York: Routledge, 2000.
LÉVY, P. A inteligência coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 4. ed. São Paulo:
Loyola, 2003.
ROJO, R.. Pedagogia dos multiletramentos: diversidade cultural e de linguagens na escola. In:
ROJO, R.; MOURA, E. (Orgs.). Multiletramentos na Escola. São Paulo: Parábola, 2012.
CAPÍTULO 17
ANÁLISE SOBRE O COMPORTAMENTO DE CONSUMO CONSIDERANDO OS
ATRATIVOS TURÍSTICOS DAS CIDADES DE ARACAJU/SE E SALVADOR/BA
RESUMO
O turismo abrange diversos agentes sociais que em conjunto ofertam atrativos e serviços que atendam aos
interesses e expectavas dos seus consumidores que podem contribuir para a geração de vantagem competitiva
(MORRISON, 2019). Os turistas e visitantes, buscam experiências turísticas memoráveis e uma análise sobre o
comportamento de consumo pode favorecer e contribuir para que o destino atenda tais necessidades com o
planejamento de ações mercadológicas. Desta forma, o presente estudo objetivou realizar um levantamento e
análise dos atrativos turísticos das cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA, entendendo sua relação com o
comportamento de consumo. Este esrtudo caracterizou-se como sendo descritivo e exploratório com pesquisas
efetuadas nas bases de dados do Google Places, site TripAdvisor e entrevistas realizadas com a comunidade local,
setor público, setor privado e turistas nas cidades de Aracaju/SE e Salvador/BA. O levantamento dos dados
apresentou categorias e subcategorias de atrações com resultado de 496 atrativos para a cidade de Aracaju e 756
para a cidade de Salvador. Observou-se que as praias e atividades vinculadas à cultura local são os atrativos que
mais representam ambos os destinos. Entretanto, verifica-se que Aracaju e Salvador apresentam outras
potencialidades turísticas que podem ser estimuladas e fazerem parte das ações mercadológicas destas localidades.
1 INTRODUÇÃO
Sendo assim, a atividade turística apresenta uma variedade de relações que remete aos
destinos, que necessitam serem bem planejados e estruturados, para que possam atender às
Destarte, verifica-se que são diversos os destinos turísticos que existem a nível mundial,
e atrair turistas e visitantes para as suas localidades não é tarefa fácil. Os indivíduos, atualmente,
apresentam acesso a uma grande quantidade de informações que os tornam mais exigentes e
seletivos na escolha de um local para viajar, sendo a experiência turística um fator relevante
para que o destino se consolide. Desta forma, para que os destinos turísticos sejam competitivos
é necessário que as potencialidades turísticas da localidade sejam evidenciadas e valorizadas
além das percepções comportamentais dos indivíduos observadas.
Nessa concepção, para que o destino turístico ganhe competitividade e cresça de forma
sustentável é necessário um esforço conjunto dos prestadores de serviços e das organizações
públicas e privadas que fazem parte da localidade. E que a qualidade da oferta turística atenda
ou mesmo supere as expectativas dos visitantes estimulando que eles retornem ao destino e que
o recomende, evitando a dissonância cognitiva.
3 METODOLOGIA
O google places é uma ferramenta do Google que permite que o usuário busque
informações sobre várias cidades relacionadas ao que fazer, onde comer, se hospedar, opções
de compras e serviços diversos (ex. caixas eletrônicos, salões de beleza, locadoras de veículos,
farmácias, hospitais, entre outros). Tal ferramenta permite que o usuário realize avaliações dos
atrativos turísticos e poste comentários e fotos do local.
4 RESULTADOS E DISCUSSÃO
É possível perceber, pelas entrevistas, o grande interesse dos pesquisados pelas praias e
a representatividade delas na identificação do destino, sendo esse atrativo o que representaria a
localidade. Também, é perceptível uma valorização cultural pelos respondentes em relação às
tradições e os costumes locais identificados através dos museus, mercados municipais,
gastronomia, entre outros. Ainda é possível observar o interesse pelos aspectos ambientais do
destino quando são citadas as praias, parques e praças.
Para que a localidade obtenha diferencial competitivo é importante que esta possa se
diferenciar das outras investindo em gastronomia, aspectos culturais locais, prestação de
serviços de qualidade, entre outros. Sobre os aspectos culturais de Aracaju, evidencia-se a
presença da culinária típica, em que se sobressai o caranguejo, a mangaba, o cuscuz, a carne de
sol, o pirão de leite e o amendoim.
O amendoim, por exemplo, segundo Leal (2022) está presente nos espaços turistificados
e não turistificados de Aracaju, como um alimento que é consumido pela população local e que
gera a curiosidade dos visitantes e turistas que chegam à localidade, pois o amendoim não é
torrado e sim verde e cozido em água, sal e limão. Tal iguaria é adquirida para provar ou para
levar como recordação alimentar (LEAL, 2022). Este amendoim verde cozido foi reconhecido
pela Assembleia Legislativa através da Lei n.7.682/2013, como Patrimônio Imaterial do Estado
de Sergipe.
Além da culinária típica, estão as festividades religiosas, como a festa de São João e o
dia de Nossa Senhora da Conceição (ÍNDICE DE COMPETITIVIDADE DE ARACAJU,
2015). Relativo a Salvador observam-se as festas de largo, relacionadas a aspectos religiosos e
culturais tradicionais, a questão histórica devido a idade da cidade e ao fato de ter sido a
primeira capital do Brasil, e as raízes africanas de boa parte da população.
Segundo Vera, Ladeira e Costa (2013) a praia é um local onde a realização de lazer e
consumo se fazem presentes, no qual os princípios de Marketing devem ser utilizados, buscando
elaborar estratégias para dar ênfase a certas peculiaridades dos produtos e serviços oferecidos
nesse ambiente. Estes mesmos autores relatam em seu estudo, que em 2010, barracas de praias
foram demolidas na cidade de Salvador e que tal acontecimento apresentou uma repercussão
negativa por parte dos frequentadores (moradores e turistas), pois a existência delas exercia
influência na escolha das praias e motivava a frequência das mesmas.
Assim, a forma como a cidade deseja ser conhecida e vista apresenta uma grande
influência dos meios de comunicação e as estratégias mercadológicas utilizadas. E estes
aspectos podem ser percebidos nos atrativos turísticos que são disponibilizados por bases de
dados como o google places e site TripAdvisor, por exemplo.
Quando se verificam os atrativos citados nas entrevistas e os atrativos turísticos que são
apresentados nas bases de dados do google places e site TripAdvisor é possível observar e
determinar as categorias e subcategorias de atrativos e perceber os atrativos turísticos que
chamam mais a atenção e se destacam nas preferências dos indivíduos, indicando um perfil de
consumidores. Esta determinação do perfil de consumidores pode influenciar diretamente as
ações mercadológicas de ambas as localidades.
Já em relação aos monumentos, são apresentados os que são evidenciados nas fontes de
dados citadas, são eles: faróis; memoriais; estátuas e esculturas; pontes; arcos e coretos. Sobre
os centros históricos os destacados não se encontram no município de Aracaju, porém em
cidades vizinhas como São Cristóvão e Laranjeiras. Ou seja, diferentemente da cidade de
Salvador, em Aracaju, o seu centro histórico não é referenciado nas bases de dados.
Na pesquisa realizada por Santos, Jesus e Santos (2018) 63,33% dos turistas informaram
que o interesse inicial, em conhecer o centro histórico de Aracaju, está associado ao desejo de
desfrutar de sua diversidade cultural considerando o artesanato e a gastronomia local. Sendo
assim, as informações disponibilizadas no Google Places quanto no site TripAdvisor deveriam
melhor enaltecer e divulgar o referido centro histórico como um local público a ser visitado. A
plataforma do TripAdvisor e as agências de receptivo apenas inserem os Mercados públicos e
o centro de turismo nos roteiros turísticos locais e os demais atrativos turísticos, que compõe o
centro histórico de Aracaju, ficam subutilizados o que denota a relevância de roteiros turísticos
culturais na cidade de Aracaju que ofertem outros atrativos turísticos além do segmento de
turismo sol e praia (SANTOS; JESUS; SANTOS, 2018).
Neste sentido, averígua-se uma grande variedade de atrativos que podem ser trabalhados
pelo destino considerando os seus públicos-alvo. Saraniemi e Kylänen (2011), relatam que para
que o planejamento estratégico ocorra de forma adequada, é primordial que o destino defina a
sua natureza em sua profundidade e amplitude e, assim, construa as pré-condições corretas para
um posicionamento adequado e de sucesso junto a seus públicos de interesse, através de
esforços conjuntos entre os setores, públicos, privados e a comunidade local.
Entre os atrativos estão as lagoas (a do Abaeté a mais citada) e as cachoeiras, uma vez
que a maioria das cachoeiras se encontram na Chapada Diamantina. Sobre as localidades
diversas foram citadas como sendo relevantes para visitação. Sendo muitas delas locais em que
existem atrativos naturais a exemplo das cachoeiras e ambientes para a prática de esportes como
escaladas, trilhas, dentre outros.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tais requisitos são primordiais para que o destino turístico seja competitivo e possa
atrair visitantes, gerando visibilidade e investimentos empresariais. Entretanto, o destino só será
interessante para o turista e o visitante se este gerar satisfação e proporcionar uma experiência
valorosa para eles.
REFERÊNCIAS
AFUAH, A.; TUCCI, C. L. Crowdsourcing as a solution to distant search. Academy of
Management Review, n. 3, v. 37, p. 355–375. 2012. Disponível em:
https://www.jstor.org/stable/23218093. Acessado em: Ago. 2023.
HUDSON, S.; RITCHIE, J. Branding a memorable destination experience. The case of brand
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RAGUSEO, E.; NAIROTTI, P.; PAOLUCCI, E. Haw small hotel can drive value their way in
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Management. v. 54, p. 745-756, 2017. Disponível em: https://doi.org/10.1016/
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VERA, L. A. R.; LADEIRA, R.; COSTA, A. da. S. A retirada das barracas de praia da orla de
Salvador na perspectiva de turista e moradores. Caderno Virtual de Turismo, v. 13, n. 3, p.
ZHOU, L.; DENG, N. Exploring the role of tourism destination personality in destination
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Systems and Service Management, n. 9, 2012. Disponível em:
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