PPBIO Mata Atlantica

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 19

Interior da Mata de restinga, na

Reserva Biológica da Praia do Sul,


Ilha Grande,
50 Angra dos Reis, RJ
^
mata atlantica
^
mata atlantica
O desafIO de transformar um passado de devastacao em
~
~ '
um futuro de conhecimento e conservacao
'
Márcia C. M. Marques, Ana Carolina Lins e Silva,
Henrique Rajão, Bruno Henrique P. Rosado, Claudia Franca Barros,
João Alves de Oliveira , Ricardo Finotti, Selvino Neckel-Oliveira
André Amorim, Rui Cerqueira, Helena de Godoy Bergallo.

“Ali ficamos um pedaço, bebendo e folgando, ao longo dela, entre esse arvoredo, que é tan-
to, tamanho, tão basto e de tantas prumagens, que homens as não podem contar.” Carta
de Pero Vaz de Caminha ao rei de Portugal, D. Manoel I

A Mata Atlântica é a formação florestal mais antiga do Brasil, estabelecida há pelo


menos 50 milhões de anos, quando três fatores passaram a ocorrer juntos: a existên-
cia do oceano Atlântico, a formação de sistemas de montanhas na borda atlântica da
América do Sul e o aumento da temperatura na Terra, permitindo o surgimento de
florestas costeiras exuberantes, com folhas grandes e sempre verdes. É uma floresta
tropical úmida, e uma das mais imponentes florestas do mundo, com flora e fauna
singulares e ampla diversidade de formas de vida e ecossistemas. O clima é quente
e chuvoso, proporcionado pelos movimentos de ar que se deslocam no continente,
influenciados pelo oceano Atlântico.

51
Conhecendo a Biodiversidade
CLIMA E RELEVO
Longe de serem homogêneas, as características geológicas, geomorfológicas e clima-
tológicas variam ao longo da Mata Atlântica. No Rio Grande do Sul e em parte de Santa
Catarina, os terrenos são relativamente planos e estendem-se das planícies longas do
litoral para os planaltos no centro e oeste. Do norte de Santa Catarina até Espírito Santo
e Minas Gerais, grandes maciços montanhosos, também chamados de “mares de mor-
ros”, geram uma variação altitudinal importante e separam as regiões mais próximas do
litoral daquelas mais interiores. Nesta região, as serras do Mar e da Mantiqueira retêm
grande parte da umidade vinda do mar, conferindo um caráter muito úmido às encostas
voltadas para o litoral. Já nas áreas de baixada próximas ao mar, a planície litorânea pode
ser muito extensa e os depósitos marinhos arenosos recentes possibilitam a ocorrência
de restingas e brejos marinhos. Em direção a oeste, as serras são substituídas por planal-
tos. No litoral nordeste, a partir do vale do rio Doce até o Rio Grande do Norte, o Grupo
Barreiras é a unidade geológica predominante. Os terrenos planos são abruptamente
rompidos no litoral, gerando falésias. No interior da região, ao norte do rio São Francis-
co, planaltos e chapadas acima de 500 m de altitude formam “ilhas úmidas” devido às
chuvas orográficas que garantem condições privilegiadas de umidade e temperatura.

BIODIVERSIDADE
A Mata Atlântica é uma das florestas com maior número de espécies de animais e plan-
tas por unidade de área, tendo entre 1% e 8% de toda a flora e fauna mundiais. Na
Mata Atlântica ocorrem 261 espécies de mamíferos (40% do total de espécies do Brasil),
688 de aves (38%), 200 de répteis (29%) e 280 de anfíbios (35%). Das 32.831 espécies
de Angiospermas (plantas com flores e frutos) registradas no Brasil, 15.511 ocorrem na
Mata Atlântica, sendo que 8.443 são endêmicas. De 627 espécies da fauna ameaçadas
de extinção no Brasil, 61% ocorrem na Mata Atlântica. Em relação à flora, apresenta
1.544 espécies ameaçadas de extinção, sendo o bioma brasileiro com maior número de
espécies ameaçadas.

52
^
mata atlantica
Antes da colonização do país, a Mata
Atlântica distribuía-se por grande parte
do território brasileiro, na região litorânea
desde o norte do Rio Grande do Norte até
o Rio Grande do Sul, e também no interior,
penetrando pelo continente sul-america-
no no sentido leste-oeste. Aproximada-
mente 70% da população brasileira atual-
mente moram na região de ocorrência da
Mata Atlântica, resultado de uma história
de ocupação que ocasionou uma drástica
redução de sua área a percentuais entre
11% e 16% da cobertura original. Dos frag-
mentos que existem atualmente, apro-
ximadamente 80% são pequenos, com
menos de 50 hectares, e apenas 9% estão
em unidades de conservação de proteção
integral. É, portanto, juntamente com o
Cerrado, o bioma mais degradado e amea-
çado do Brasil.
Devido à sua importância mundial para
Floresta Ombrófila Densa
a conservação da biodiversidade e para o
Floresta Ombrófila Mista
desenvolvimento sustentável, a Organiza-
Floresta Estacional Semidecidual
Remanescentes ção das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (Unesco) reconhece a
Mata Atlântica como Reserva da Biosfera
Distribuição pretérita das principais formações
e duas de suas regiões como Patrimônios
da Mata Atlântica e seus remanescentes (Fonte: Naturais Mundiais, a Reserva do Sudeste
SOS Mata Atlântica, 2015) da Mata Atlântica, que engloba os estados
do Paraná e São Paulo, e a Costa do Des-

53
Conhecendo a Biodiversidade
cobrimento, que se estende pelo litoral da
Bahia e do Espírito Santo. O bioma é de-
clarado Patrimônio Nacional no artigo 225
da Constituição Federal e é o único a ter
uma legislação específica, a Lei da Mata
Atlântica1. Por ser uma das áreas biologi-
camente mais insubstituíveis e importantes
no mundo, com pouco mais de sete mil es-
pécies endêmicas de plantas, e por sua alta
vulnerabilidade, comprovada pela avan-
çada redução e fragmentação da sua área
original, é também considerada uma região
prioritária (hotspot) para conservação.
As grandes variações ao longo de toda sua
extensão promovem uma diversidade de
condições ambientais, influenciando tanto
a biodiversidade quanto a aparência (fito-
fisionomia) da vegetação. Por este motivo,
a Mata Atlântica não é considerada uma
única floresta homogênea. Reconhece-se,
Floresta Ombrófila Mista (Floresta
na região litorânea do Nordeste e Sudeste, de Araucária) na região do Parque
onde os efeitos do oceano Atlântico deter- Nacional de São Joaquim, SC
minam um clima quente e úmido, a chama-
da Floresta Ombrófila Densa, ou Floresta Ombrófila Mista, ou Floresta com Araucá-
Pluvial Atlântica, caracterizada por uma ria, caracterizada pela presença marcante
flora tropical, com uma diversidade de for- da araucária, uma espécie de pinheiro de
mas de vida vegetal e animal. Na região Sul, clima temperado. Já no interior do país, em
em climas úmidos e frios, ocorre a Floresta clima sazonal, com verões quentes e úmi-

1 Lei nº 11428/2006, regulamentada pelo decreto 6660/2008

54
^
mata atlantica
cursos d’água), passando por terras baixas
e subindo as encostas montanhosas, rece-
bendo as denominações de sub-montana,
montana e alto-montana, esta última atin-
gindo mais de 1.000 m de altitude. Por esta
classificação mais detalhada da vegetação
brasileira, a Mata Atlântica é composta por
13 formações florestais.
Associados ao bioma estão, ainda, ecos-
sistemas importantes no funcionamento e
na diversidade das florestas, tais como as
restingas, vegetação com influência mari-
nha que ocorre nas planícies litorâneas do
nordeste ao sul do país; os manguezais,
vegetação com influência fluvio-marinha
que ocorre nas regiões de desembocadu-
ra dos rios no mar; os campos de altitude,
nas regiões mais altas dos grandes maci-
ços de montanhas da Serra do Mar e da
Serra da Mantiqueira; e os campos suli-
Interior de mata de restinga, na Reserva
Biológica da Praia do Sul, na Ilha Grande, RJ nos, entremeados à Floresta de Araucária,
em partes do sul do país.
Outra forma de compartimentar a Mata
dos e invernos frios e secos, ocorre a Flo- Atlântica é observando a distribuição das
resta Estacional (Semidecidual e Decidual), suas espécies. Pesquisadores que anali-
caracterizada por uma flora tropical rica saram padrões de endemismo propuse-
que perde parte das folhas durante o inver- ram dividir o bioma em oito sub-regiões
no. Todas essas florestas podem ser ainda biogeográficas, sendo cinco áreas de en-
divididas de acordo com a posição altitudi- demismo (quatro nas florestas úmidas
nal, desde aluvial (dentro dos terraços dos do Nordeste e a cadeia de montanhas

55
Conhecendo a Biodiversidade
Floresta Estacional Semidecidual na Reserva Natural Vale, Linhares, ES

costeira da Serra do Mar) e três áreas leta de mariscos, frutos e de uma agricul-
de transição (denominadas São Francis- tura de baixo impacto, que pouco afetava
co, Florestas de Interior e Florestas de a diversidade da floresta. A chegada dos
Araucária). De modo mais simplificado, o colonizadores mudou o uso da terra, pas-
bioma pode ser separado em apenas dois sando inicialmente por uma economia ba-
blocos, um ao norte e um ao sul, com li- seada no extrativismo de pau-brasil e na
mite coincidindo com o vale do rio Doce, agricultura de subsistência. Já no século
no Espírito Santo. Observando as plantas XVI, iniciou-se o cultivo de cana-de-açúcar
nesses dois blocos, a flora do bloco ao em amplas áreas, principalmente no nor-
norte tem mais influência da Amazônia, deste do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo,
enquanto a flora ao sul é influenciada por onde a floresta começou a ser devastada
outras regiões, como os Andes. e substituída pela monocultura canavieira.
Com a descoberta de ouro em Minas Ge-
Breve história da devastação da Mata rais, a população aumentou e boa parte
Atlântica das florestas de Minas Gerais foi derruba-
Os europeus iniciaram a colonização do da. No século seguinte, deu-se início ao
Brasil pela Mata Atlântica, onde havia uma cultivo do café, primeiramente na cidade
população indígena com, possivelmente, do Rio de Janeiro, depois no vale do rio Pa-
alguns milhões de pessoas. Estes índios raíba do Sul, no Estado do Rio de Janeiro,
viviam principalmente da caça, pesca, co- e, posteriormente, no Estado de São Pau-

56
^
mata atlantica
lo. As matas foram substituídas pela nova áreas remanescentes estão imersas em
lavoura, ficando a floresta nativa restrita matrizes predominantemente agrícolas
aos morros mais íngremes. No século XX, ou urbanas, isolando fragmentos e impos-
houve grandes derrubadas para extração sibilitando o fluxo de espécies.
de madeira e plantação de café no Espí- Embora a devastação da Mata Atlântica
rito Santo e, com a colonização do Para- venha ocorrendo há cinco séculos, muito
ná, ocorreu a expansão das monoculturas, ainda se devastou em tempos recentes.
chegando-se à situação atual. Como exemplo, planos governamentais
Estudos mostram que a devastação não para expansão do cultivo de cana-de-açú-
foi aleatória, mas seguiu um padrão guia- car para produção de etanol, na década de
do pelo relevo. Inicialmente, as florestas 1970, devastaram boa parte dos últimos
aluviais, as de terras baixas e as sub-mon- remanescentes. No século XXI, as amea-
tanas foram devastadas, restando cober- ças ao bioma incluem, principalmente,
tura florestal nas áreas mais íngremes. As- corte seletivo para produção de carvão,
sim, muito do que foi destruído pode ter desmatamento ilegal de áreas florestadas,
tido espécies ou características que nem caça, coleta de espécies vegetais e invasão
sequer chegaram a ser descritas pela ciên- por espécies exóticas vegetais e animais.
cia. Boa parte do que restou ocupa en-
costas onde a declividade acentuada não Biodiversidade e processos ecológicos
permitiu outros usos do solo. As pequenas A biodiversidade da Mata Atlântica é re-

57
Conhecendo a Biodiversidade
sultado de vários processos que ocorre- lação das espécies com o ambiente e sua
ram ao longo do tempo evolutivo, além influência sobre o meio propicia a existên-
daqueles gerados pela forma com que as cia do nicho ecológico, cada espécie ocu-
espécies ocupam os nichos disponíveis. pando um papel particular. A distribuição
Embora sua biodiversidade seja impres- dos nichos no espaço geográfico faz com
sionante, estudos recentes mostram que, que cada espécie tenha uma distribuição
possivelmente, muito mais espécies de- própria sobre a superfície da Terra. Estas
vam ocorrer. Para árvores, por exemplo, ideias permitem compreender como mu-
calcula-se que apenas 0,01% das áreas danças ambientais são capazes de afetar a
protegidas tenham tido suas árvores ca- distribuição e a abundância das espécies e
talogadas ao longo dos mais de 70 anos processos ecossistêmicos, como o ciclo de
de estudos na Mata Atlântica. Isso permi- nutrientes e sais minerais, o ciclo hidroló-
te estimar que seriam necessários outros gico, o ciclo das chuvas, a evaporação, as
100 anos para que 1% de toda a área seja cheias e enchentes dos rios e o estoque de
avaliada. Programas amplos de levanta- carbono. Tais processos têm enorme im-
mento de diversidade, como o Programa portância para a vida humana.
de Pesquisa em Biodiversidade (PPBio), Um dos compartimentos essenciais em
são essenciais para se conhecer a biodi- inúmeros processos ecológicos é o solo.
versidade e prever os possíveis impactos A formação de solos depende, essencial-
da perda de espécies para os sistemas mente, de cinco fatores: clima, tipo de
biológicos. rocha matriz, relevo, tempo de formação
A biodiversidade está relacionada com os e biota. De modo geral, os solos da Mata
processos ecológicos que acontecem nos Atlântica são distróficos, ou seja, com
ecossistemas. A partir de uma perspectiva poucos nutrientes, com pH ácido e com
de funcionalidade, tais processos podem alto grau de lixiviação (muita modificação
ser classificados como processos relaciona- da composição do solo e muito transpor-
dos às respostas das espécies às variações te de nutrientes para outras áreas). Como
nas condições e recursos, ou como proces- existe uma variação grande na topografia
sos relacionados aos efeitos das espécies e no clima ao longo do bioma, há também
(papéis funcionais) nos ecossistemas. A re- diferentes combinações dos fatores que

58
^
mata atlantica
Região de agricultura no limite de remanescente florestal no norte do Paraná

dirigem a formação do solo. O resultado ao longo de uma variação altitudinal entre


é uma alta heterogeneidade de tipos de 100 m e 1.000 m acima do nível do mar,
solo, de decomposição de matéria orgâni- cientistas observaram reduções nas emis-
ca, de fluxo de gases e de variação na dis- sões de óxido nitroso (N2O), um dos gases
ponibilidade de água e nutrientes. de efeito estufa, provenientes do solo.
Embora os processos relacionados aos Esta menor emissão de N2O nas encostas
solos (chamados de processos edáficos) das montanhas pode ser decorrente das
ainda sejam uma das “caixas-pretas” da temperaturas mais baixas e da baixa taxa
ecologia, a importância de avaliar seu fun- de decomposição da matéria orgânica
cionamento é amplamente reconhecida, nestes locais. Essa combinação de fatores
uma vez que processos relacionados à de- edáficos ao longo de variação altitudinal
composição, estoque de carbono e regu- na Mata Atlântica pode explicar, por exem-
lação da água são essenciais para a elabo- plo, por que as plantas apresentam maior
ração de melhores teorias que expliquem investimento em raízes finas em florestas
o funcionamento de florestas tropicais. Na montanas, o que deve maximizar a absor-
Mata Atlântica, estudos têm avaliado a re- ção de nutrientes em função das baixas ta-
lação dos solos com alterações diretas na xas de decomposição neste ambiente.
estrutura e funcionamento da vegetação Outro componente da “caixa-preta” está
e de organismos associados. Por exemplo, relacionado ao papel de microrganismos

59
Conhecendo a Biodiversidade
~ de habitats e endemismo na Mata Atlantica
Especializacao ^
'

Uma das características mais marcantes da Mata Atlântica


é o alto grau de endemismo, tipo de distribuição geográ-
fica onde as espécies são restritas a regiões muito especí-
ficas. Isso acontece porque, uma vez que surja uma nova
espécie, ela pode ter preferência por uma determinada
condição ambiental ou habitat específico. As aves são um
bom exemplo. Cerca de 80% de todas as espécies de aves
endêmicas habitam florestas úmidas. Isso é mais marcan-
te nas famílias dos mutuns (Cracidae), pica-paus (Picidae),
arapaçus (Dendrocolaptidae), chocas (Thamnophilidae),
anambés e arapongas (Cotingidae), tangarás (Pipridae) e
saíras (Thraupidae).
As pequenas choquinhas (família Thamnophilidae), por
exemplo, estão representadas na Mata Atlântica por seis es-
pécies que ocorrem nos blocos sul e norte do bioma, desde
o Rio Grande do Sul até o estado de Alagoas, desde o nível
do mar até os picos mais elevados das Serras do Mar e da
Mantiqueira, ou seja, das terras baixas à região alto-montana.
As espécies apresentam distribuições bem restritas. A cho-
quinha-carijó (Drymophila malura), a trovoada-de-bertoni (D.
rubricollis) e a choquinha-da-serra (D. genei) ocorrem apenas
do extremo sul do Brasil até os estados do Sudeste, e a trovoa-
da (D. ferruginea) e o pintadinho (D. squamata) estendem-se
também até os estados da Bahia e Alagoas. Porém, em uma
mesma região, essas espécies apresentam claras preferências Choquinha-da-serra
Drymophila genei
altitudinais, algumas restritas às baixadas litorâneas, como é
Trovoada
o caso do pintadinho, e outras espécies endêmicas das partes
Drymophila ferruginea
mais altas das serras do Sudeste, como a choquinha-da-serra.
Pintadinho
Drymophilaru bricollis

60
^
mata atlantica
em processos ecológicos. Resultados recen- como climáticas, hidrológicas, socioeco-
tes apontam que cada espécie de árvore da nômicas e agrícolas, todas relacionadas
Mata Atlântica seleciona, através de suas à entrada de água no sistema e deman-
características, um conjunto específico de da para um dado processo. Dependendo
bactérias que ocorrem nas folhas e no solo da demanda, a entrada de água via pre-
em contato com as raízes. Essa descoberta cipitação pode estar aquém do necessá-
abre novas perguntas, não apenas sobre uma rio. Por exemplo, como assumir que uma
riqueza de espécies ainda oculta, mas tam- precipitação anual de 2.000 mm na Mata
bém sobre o que faz a mediação das relações Atlântica é suficiente? Suficiente para qual
de interdependência entre microrganismos processo? Se a demanda da vegetação e
e a vegetação, e sobre os papéis ecológicos de atividades humanas for superior a esse
das comunidades de microrganismos em limite, ocorre uma seca tanto ecológica
processos como decomposição, ciclagem de quanto hidrológica, mas que não necessa-
nutrientes e defesas das plantas. riamente ocorrem simultaneamente.
Se o conhecimento sobre estrutura da As árvores da Mata Atlântica são suscetíveis
vegetação da Mata Atlântica é pequeno, à variação sutil na disponibilidade de água e
há ainda menos informação sobre pro- apresentam mecanismos de maximização
cessos funcionais da vegetação. Apenas da economia de água em períodos de me-
recentemente alguns dogmas científicos nor precipitação. Adicionalmente, sabe-se
começaram a ser superados em relação ao que em florestas tropicais montanas a maior
conhecimento, um deles sobre os proces- radiação solar e menor pressão atmosféri-
sos ambientais relacionados à água. A água ca aumentam a taxa de evapotranspiração
não é comumente considerada um fator (soma do que evapora direto da água e do
limitante na Mata Atlântica e, portanto, a solo e corpos d’água com a água proveniente
existência de uma estação seca foi, de certo da transpiração das plantas) e tornam os am-
modo, negligenciada. bientes mais secos. Nesse sentido, na floresta
O erro em assumir que não há eventos montana, a economia de água das árvores é
de seca na Mata Atlântica começa por não ainda mais acentuada, e as estratégias de uso
contemplar a existência dos vários concei- de água são similares às de plantas que
tos de seca. As secas podem ser definidas ocorrem em ambientes mais secos, como

61
Conhecendo a Biodiversidade
processos através dos quais os ecossiste-
mas naturais e as espécies mantêm a vida
humana. Atualmente são reconhecidos 24
serviços ecossistêmicos, que podem ser
agrupados em quatro principais catego-
rias: serviços de provisão, como alimento
e água; serviços de regulação, como a re-
gulação de enchentes e secas, degradação
dos solos e doenças; serviços de suporte,
como a formação dos solos, a produção
de oxigênio e os ciclos de nutrientes; e
Corpo reprodutivo do fungo
Phallus indusiatus serviços culturais, como o ecoturismo e
a recreação, o valor espiritual e religioso
restingas e florestas secas. Esses resultados e outros benefícios não materiais. Todos
reforçam estudos que dizem que em época estes serviços trazem benefícios à huma-
passadas, mais secas, a Mata Atlântica se nidade e, para que possam ser gerados, é
restringiu à base das montanhas, nas terras necessário que os processos que ocorrem
baixas (a cerca de 100 m acima do nível do nos ecossistemas e a própria diversidade
mar), enquanto em áreas montanhosas deu biológica sejam conservados nos ambien-
lugar a uma vegetação campestre. Por, pos- tes naturais.
sivelmente, estarem próximas ao limite de Assim como outras florestas tropicais, a
tolerância fisiológica, as áreas montanhosas Mata Atlântica tem importante papel no
são mais vulneráveis a eventos de seca, que fornecimento de serviços ambientais para
podem se tornar mais frequentes com as a população humana. Considerando que
mudanças climáticas. se distribui ao longo de 17 estados brasi-
leiros, abrigando grande parte da popu-
Serviços ambientais e benefícios da bio- lação do país, os serviços oferecidos pela
diversidade Mata Atlântica representam uma parcela
Os serviços ambientais ou ecossistêmicos importante das condições de vida no Bra-
podem ser definidos como as condições e sil. Além disso, dada a grande variedade

62
^
mata atlantica
de ecossistemas, a complexidade de seu A Mata Atlântica desempenha papel im-
funcionamento, bem como a particulari- portante na regulação dos serviços locais,
dade de sua biota, a Mata Atlântica tem regionais e globais de água e clima, por
um papel singular na entrega de serviços, meio de diferentes funções interligadas.
os quais não podem ser substituídos pelos A cobertura vegetal e o solo dessa flo-
entregues por outros ecossistemas. restas estocam grande volume de água e
Florestas tropicais armazenam, abaixo ou a transportam para o ar via transpiração,
acima do solo, cerca de um terço do total resfriando a atmosfera e proporcionando
de carbono de reservas mundiais economi- a formação de nuvens e precipitação. A
camente importantes, como as reservas de derrubada das matas interfere neste ciclo,
petróleo, gás e carvão. Florestas tropicais, pois impede o armazenamento da água
intactas e secundárias, também seques- no solo, gerando enchentes e grandes pre-
tram continuamente o carbono atmosféri- juízos aos seres humanos. Quando o ciclo
co resultante de emissões de gases do efei- da água é mantido pelas áreas florestais, o
to estufa. O acúmulo de carbono, medido clima torna-se ameno, favorecendo a pro-
pela biomassa aérea, varia entre as fitofi- dução agrícola e a própria permanência
sionomias, com florestas montanas acumu- das populações humanas nas regiões pró-
lando mais que as submontanas, que por ximas à floresta, ou mesmo nas cidades.
sua vez acumulam mais que florestas de A Mata Atlântica também é importante
terras baixas e as restingas. A fragmentação para a formação do solo e sua proteção,
pode alterar drasticamente esse processo, através do controle da interceptação da
reduzindo a um terço o total de carbono água sobre o solo e da regulação do flu-
sequestrado. Embora essa situação de alta xo de sedimentos. Em condições naturais,
fragmentação e perturbação seja recor- os solos florestais retêm sedimentos no
rente em diferentes regiões do país, estu- ecossistema, controlando a perda de nu-
dos mostram que a restauração da Mata trientes em escala local. Em áreas onde
Atlântica pode reverter esse quadro, sendo a cobertura vegetal foi removida ou con-
possível triplicar a quantidade de carbono vertida em sistemas agrícolas, o solo é
sequestrado em áreas florestais em rege- erodido, com uma constante remoção
neração em apenas 60 anos. de sedimentos das camadas mais super-

63
Conhecendo a Biodiversidade
ficiais e inúmeros impactos negativos so-
bre os serviços ecossistêmicos. Os efeitos
incluem redução da qualidade do solo,
eutrofização (aumento drástico na quan-
tidade de nutrientes), contaminação e se-
dimentação de reservatórios e cursos de
água (devido ao transporte superficial de
sedimentos) e o aumento das emissões de
gases de efeito estufa. A restauração da
vegetação nativa pode reverter parte das
perdas. Portanto, um controle efetivo dos
solos sob as florestas é essencial para a
entrega de serviços para as pessoas.
A ciência vem demonstrando que ecos- Delimitação de parcela aquática no
módulo Rapeld na Reserva biológica
sistemas mais diversos em espécies for-
Augusto Ruschi, em Santa Teresa, ES
necem maior quantidade ou qualidade de
serviços ambientais. Essa relação é espe- sedimentos pela ação de suas raízes etc.).
cialmente importante em ecossistemas Exemplo de espécie-chave para o serviço
como a Mata Atlântica, onde a diversida- de produção são as abelhas nativas, que,
de de espécies e o endemismo são altos. ao se deslocarem da floresta para as áreas
A ação positiva da diversidade se dá pelo agrícolas vizinhas, realizam a polinização
efeito dominante de algumas espécies e aumentam substancialmente a produ-
chave, que fornecem uma quantidade ção de espécies agrícolas, como frutífe-
grande de serviços (por exemplo, espé- ras e grãos. Além disso, a rica variedade
cies de árvores gigantes que sequestram de flora e fauna que interagem entre si e
carbono em sua biomassa), ou pelo soma- com o ambiente assegura a renovação e
tório dos serviços variados desempenha- a resiliência da floresta, atuando positiva-
dos por múltiplas espécies (algumas com mente na própria manutenção das espé-
maior efeito sobre o sequestro de carbo- cies. Como consequência, é assegurado
no, outras realizando o aprisionamento de o armazenamento de material genético

64
^
mata atlantica
único de produtos potencialmente úteis à essa situação com ações que permitam re-
população humana. cuperar as áreas que já foram devastadas,
A Mata Atlântica fornece ainda serviços assim como rever o código de forma que a
culturais para a população que vive nas suas Mata Atlântica seja restaurada e que todos
proximidades. Algumas das áreas protegi- possam usufruir de seus serviços. Políticas
das da Mata Atlântica possuem importante públicas que não incentivam a restauração
estrutura de ecoturismo, que pode ser a dos ecossistemas e a manutenção da biodi-
principal atividade econômica de algumas versidade terão consequências graves para
regiões, como acontece em vários pontos a humanidade – consequências que já se
do litoral brasileiro. Embora em situações fazem sentir nos eventos de enchentes e
raras, devido ao alto grau de fragmenta- falta d’água em diferentes partes do Brasil.
ção em que a Mata Atlântica se encontra, A segurança hídrica, energética e alimentar
algumas florestas remanescentes também do país dependerá, cada vez mais, da res-
servem parcialmente como meio de subsis- tauração das florestas.
tência para populações locais.
Apesar de sua importância, recentemente
Estratégias de conservação e uso sus-
houve retrocesso na lei de proteção dos re-
tentável
manescentes florestais. O Código Florestal
aprovado em 20122 permitiu uma redução O desmatamento e a consequente frag-
da cobertura vegetal exigida nas margens mentação são algumas das principais
dos rios e topos de montanhas no Brasil, ameaças à Mata Atlântica. As áreas rema-
estabelecendo faixas mínimas de vegeta- nescentes sofrem tanto com expansão de-
ção de acordo com o tamanho da proprie- sordenada das cidades e com a instalação
dade rural. Estima-se que as mudanças de empreendimentos hidrelétricos e de
promovidas por essa lei reduzam drasti- mineração, quanto com a ampliação dos
camente os serviços providos pela Mata plantios de árvores exóticas para cons-
Atlântica, especialmente a qualidade de trução civil e carvão vegetal. De 1985 a
hábitat, o estoque de carbono e a reten- 2000, essas atividades contribuíram com
ção de sedimentos. É necessário reverter a destruição de aproximadamente mil km2

2 Lei de Proteção da Vegetação Nativa (Lei nº 12.651/2012)

65
Conhecendo a Biodiversidade
anuais de Mata Atlântica. Mesmo que na A recuperação dessas áreas possibilita o
última década tenha havido redução de crescimento gradual da floresta, que pode
80% na taxa anual de desmatamento, mui- recuperar algumas das suas características
to precisa ser feito para zerar a destruição funcionais e estruturais, e assim contribuir
e estabelecer estratégias de conservação para melhoria dos serviços ambientais.
e uso sustentável do bioma. Áreas restauradas também podem ser
As soluções para a conservação da Mata usadas como corredores ecológicos que
Atlântica passam pela proteção dos re- ligam unidades de conservação. Assim,
manescentes de floresta nativa, através associando-se a proteção em unidades de
da criação de novas unidades de conser- conservação à restauração ecológica, po-
vação, e pela restauração ecológica de de-se aumentar as chances de proteger a
áreas degradadas e abandonadas prin- biodiversidade e os serviços ecossistêmi-
cipalmente por atividades agropastoris. cos deste importante bioma brasileiro.

Sugestões de leitura
A história da Mata Atlântica, desde sua formação há milhões de anos até os tempos atuais, in-
cluindo o impacto que sofreu após a chegada dos colonizadores europeus, está bem descrita no
livro do historiador Warren Dean intitulado “A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata
Atlântica Brasileira”, da Companhia das Letras. O autor nos leva a uma viagem no tempo, da
chegada dos colonizadores passando pelos ciclos econômicos que foram destruindo o bioma.
Em 2009, Milton Ribeiro e colaboradores publicaram na revista Biological Conservation o marco
atual da dimensão da perda e a distribuição dos remanescentes da Mata Atlântica, em artigo
intitulado “The Brazilian Atlantic Forest: How much is left, and how is the remaining forest distri-
buted? Implications for conservation”. Essas obras ajudarão o leitor a compreender o processo
de devastação da Mata Atlântica e as prioridades para sua conservação.

66
^
mata atlantica
PPBIO MATA ATLÂNTICA

A pesquisa em biodiversidade é estratégica para o país e o Programa de Pesquisa em Bio-


diversidade (PPBio) objetiva exatamente articular os diferentes setores e competências
para ampliar, disseminar e utilizar as informações sobre a diversidade biológica brasilei-
ra. Há hoje no Brasil duas redes de pesquisa PPBio na Mata Atlântica, criadas em 2012
e formadas por mais de uma centena de pesquisadores em diferentes regiões do Brasil.
Essas redes mantêm pesquisa integrada utilizando protocolos padrão, organizam cursos
de capacitação, atuam de maneira coordenada nas melhorias das coleções científicas,
promovem a difusão do conhecimento científico e a articulação com outros setores da
sociedade. As pesquisas buscam responder questões como: quantas e quais são as es-
pécies da Mata Atlântica? Quais fatores determinam a distribuição da biodiversidade?
Como variam as comunidades biológicas no tempo? De que maneira as espécies serão
capazes de responder a eventos climáticos extremos, cada vez mais intensos e frequen-
tes? Qual o papel da floresta na regulação do clima? Perguntas como estas apenas po-
dem ser respondidas se os esforços de pesquisa forem integrados e de longa duração.

Pesquisadores, professores e alunos da rede PPBio Mata Atlântica em


reunião de avaliação e planejamento no Instituto de Pesquisas Jardim
Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), Rio de Janeiro, RJ

67
Conhecendo a Biodiversidade

Você também pode gostar