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KOHAN, Walter Omar. O Ensino Da Filosofia Frente À Educação Como Educação

Enviado por

Rosi Giordano
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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KOHAN, Walter Omar. O Ensino Da Filosofia Frente À Educação Como Educação

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COLEÇÃO FILOSOFIA NA ESCOLA

Coordenadores: Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch


Sílvio Gallo
Gabriele Cornelli
— Filosofia para crianças — À tentativa pioneira de Matthew Lipman
Walter Omar Kohan e Ana Míriam Wuensch (orgs.)
Márcio Danelon
- Filosofia para crianças na prática escolar
(organizadores)
Walter Omar Kohan e Vera Waksman (orgs.)
— Filosofia e infância — Possibilidades de um encontro
Walter Omar Kohan e David Kennedy (orgs.)
— Filosofia para crianças em debate
Walter Omar Kohan e Bernardina Leal (orgs.)
— Filosofia na escola pública
Walter Omar Kohan, Bernardina Leal e Álvaro Ribeiro (orgs.)
FILOSOFIA DO ENSINO
— Filosofia no ensino médio
Walter Omar Kohan e Sílvio Gallo (orgs.) DE FILOSOFIA
— Filosofia do ensino de filosofia
Sílvio Gallo, Gabriele Cornelli e Márcio Danelon (orgs.)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Filosofia do ensino de filosofia / Sílvio Gallo, Gabriele Cornelli,


Márcio Danelon (organizadores) . — Petró polis, RJ:
Vozes, 2003.
4
ISBN 85.326.2830-3

Vários autores.

1. Filosofia— Estudo e ensino L. Gallo, Sílvio. II. Cornelli, Gabrielle.


HI. Danelon, Márcio.

02-6837 CDD-107
7 EDITORA
Índices para catálogo sistemático: VOZES
1, Filosofia : Estudo e ensino 107 Petrópolis
2003
2. O ENSINO DA FILOSOFIA FRENTE À
EDUCAÇÃO COMO FORMAÇÃO*

WALTER OMAR KOHAN*"

A filosofia não tem


necessidade de defensores na
medida em que sua justificação é
assunto seu. Mas a defesa do
ensino da filosofia terá
necessidade de uma filosofia
crítica do ensino.
Georges Canguilhem, Nouvelle
Critique (1975).

1. Primeiras palavras
“Para que filosofia?” é uma dessas perguntas com história
abundante e futuro assegurado. É, além disso, uma pergunta
que muitos filósofos, e só eles, gostam de fazer. No fundo, pa-
rece tratar-se não só de uma questão de gosto, mas de inevitá-
vel busca de legitimação teórica de uma disciplina que, só
por
seu nome, não goza como outras desse privilégio. Tem-se que
justificar os para que da filosofia, porque sua utilidade e seu
sentido não costumam estar outorgados previamente, Talvez,

* Agradecimentos do Autor pela leitura ate nta deste trabalho a Laura


Agratti,
observações permititam melhorá- lo em vários aspectos. Tradução do espanhol cujas
Wanderson Flor do Nascimento,
por

** Doutor em Filosofia pela Universidade Iberoamericana (México)


sob orientação
de Matthew Lipman. Professor de Filosofia da Educação na Graduação
e Pós-gra-
duação da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília.
É Professor Coor-
denador do Projeto de Extensão A Filosofia na Escola na UnB.

33
dp

por isso, o interesse de quem se dedica à filosofa costuma ser losofia não pode prescindir da filosofia. É isso que Cangui-

À
discutir para fora, com os “não filósofos”, esta pergunta. Não lhem sugere na epígrafe. :

O
é habitual que os filósofos se encontrem entre si para discutir

AEE
A pergunta “para que ensinar filosofia?” interessa não só à
questões como estas. É que, ainda que discordem na forma de

EN
filósofos, mas também a educadores. No séc. XVI, Montaigne
respondê-la, não costumam ter dúvidas sobre sua importân- disse que a filosofia deve ser uma matéria na educação dos pe-

tocha!
cia. Contudo, nunca é demais apresentar a pergunta a outros, quenos para formar pessoas mais inteligentes, felizes e ajniza-
a aqueles que ainda não descobriram sua significatividade. das, mais livres de espírito (1984: cap. 26). Se não se quer tor-

tt
Esta pretensão pode levar à organização de eventos que tra- nar às crianças seres servis e tímidos, afirma Montaigne, de-

EG
tam exclusivamente desta questão e os resultados muitas vezes ve-se dar-lhes a oportunidade de fazer algo por si mesmas. O

AS
não são convincentes. Referindo-se a um congresso recente- ensino da filosofia é aqui a peça-chave de uma formação hu-

AD
mente ocorrido em Granada, na Espanha, com o título “Para manista para a autonomia, oposta aos valores da educação je-
que filosofia?”, o filósofo espanhol M. Reyes Mate comenta suítica dominante na época.
que serviu apenas “para marcar distâncias, entre os exposito- Na modernidade do séc. XVIII, Kant afirma a importância
res e ouvintes, entre a biblioteca e a rua, entre a profissão e a do ensino da filosofia, que ele entende como um ensinar a filo-
vida” (1996: 667). É o que costuma acontecer com as pergun- sofar. Para Kant (1995), os sentidos mais plenos deste ensino
tas dos filósofos: de tão interessantes e importantes que são, não estão dados pela transmissão de um suposto saber acaba-
poucos acabam por perguntá-las. do, fechado, completo, portanto externo ao sujeito que o
Em épocas em que não se organizavam em congressos de aprende, mas pelo exercício da razão na observação e investi-
filosofia, os filósofos escreviam ir extenso sobre esta pergunta gação de seus princípios universais.
para o grande público. Dadas as implicações educacionais da Em nosso século, as respostas à pergunta “para que ensinar
filosofia, como dirá José Gaos em uma das ep ígrafes deste tra filosofia?” têm se multiplicado. Um caso interessante resulta na
balho, em muitos casos, as perguntas “Para que filosofia?” e ênfase que muitas dessas respostas concedem à palavra “críti-
“Para que ensinar filosofia?”, que não são a mesma pergunta, ca”, Constatamos que, em diversas tradições, o ensino da filo-
se tornam muito próximas, até um ponto que quase se confun- sofia está ligado à formação de uma consciência ou capacidade
dem. Esta ligação é percebida, por exemplo, no modo em que crítica. Contudo, essa atitude crítica é entendida de diversas
Platão tematiza estas questões em seus Diálogos. Em À Repti- formas em função do marco teórico de referência. Por exem-
blica, afirma que a filosofia é um alvo de estudos que tem plo, na tradição analítica, ela está associada, frequentemente,
como conteúdo um Bem transcendente, que os governantes
ao desenvolvimento de certas habilidades de pensamento (Sal-
devem conhecer para instaurar, com legitimidade, uma pólis merón, 1992: 120-2); no pragmatismo, está ligada a um julgar
justa (A República, VVIM. Ali, os conhecimentos objetivos da com critério, a um apreciar com cuidado (Dewey, 1925; Lip-
filosofia têm um caráter duplamente educacional, enquanto man, 1998); entre os primeiros membros da Escola de Fran-
ensinam a quem os aprende e enquanto este ensinará aos ou- ckfurt, a consciência crítica é entendida como oposição à natu-
tros cidadãos no exercício da função de governo. Deste modo, ralização das idéias, saberes e valores dominantes (Horkheimer,
os sentidos políticos e pedagógicos da filosofia se superpõem. 1990: 289); no marxismo de nossos dias, está usualmente liga-
Através de sua história, a filosofia tem estado sempre ligada ao da à transformação do mundo (Sánchez Vázquez, 1997: 416);
ensino de si mesma, além de ser ela mesma uma paidéia no entre alguns pós-estruturalistas, é entendida como um pôr em
exercício da crítica (Derrida, 1990: 158, 166). O ensino da fi- questão as evidências; um trazer à luz o pensamento que se

34 35

gestos
oculta em todas as instituições, um “tornar difíceis os tão pode determinar, diz “Sócrates”, a gênese, o ponto de par-
por demais fáceis” (Foucault, 1981). tida, a causa, da justiça e da injustiça na Atenas de seu tempo
(1, 376d); esse exame situa tal causa nos relatos de Homer
Neste trabalho não pretendemos analisar desta Hesíodo que sustentam a educação tradicional na Grécia, tex-
o e
sentidos concedidos contemporancamente ao ensino mi ; 4 tos que afirmam valores contrários aqueles que devem
sofia. O que nos importa, entretanto, é papi a ma reger
na pólis. Se se quer pensar em uma cidade mais justa, é precis
nha comum que diferentes percursos filosóficos têm A e o
o mudar os textos com os quais se educa em Atenas, nos diz
tilhado no momento de pensar os sentidos edu Pages Pla-
ia eia tão. Ao discutir que relatos serão incluídos para substituir aos
sofia. Referimo-nos à idéia de que o ensino ga o
y Go tradicionais, “Sócrates” faz o seguinte comentário com Adi-
serviço da formação ou fabricação de certo idea
manto a respeito daqueles textos com os quais as crianças en-
Em outras palavras, que a filosofia contribui para um Pen
dá tram em contato em primeiro lugar:
formativa, fabricadora. Para analisar este espaço sans
servado ao ensinar filosofia, vamos trabal har em qua pi
Por conseguinte, sabes que o princípio de toda a obra é o
Sem
mentos. Em um primeiro momento, precisaremos em qe principal, especialmente nos menores e mais tenros; porque é
)e A
tido, no ocidente, a educação tem estado, ie semp : então que se forma e imprime o tipo que alguém quer disse-
ciada à idéia de formação ou fabricação, pelo pa gra minar em cada pessoa (Platão, A República H, 377 a-b).
República de pi Em um pq ig pp Gácid
tc Os primeiros momentos são os mais importantes da vida,
s exemplos sobre como a filosolia
sao apr o pre diz “Sócrates”. Por isso afirma que não se permitirá que os
acatada com esta pe-
nento, nos deteremos na idéia de quenos escutem relatos que contenham mentiras e opiniões
pg - contrárias às que se esperam deles no futuro. Porque, se pensa-
npariaiiá ia e filosofias formativas. rã
da mos a vida como uma seqgiiência em desenvolvimento, como
algumas propostas para situar a experiência
um devir progressivo, como um fruto que será resultado das se-
uma lógica educacional não formativa.
mentes plantadas, tudo o que venha depois dependerá desses
primeiros passos. Tem-se aí a sua importância extraordinária
2. A educação a serviço da formação ,
pelas marcas indeléveis que se recebem na tenra idade (11, 378 e).
O papel desempenhado pela Por isso, ter-se-á que cuidar especialmente desses primeiros tra-
educação em todas as utopias | ços, não tanto pelo que eles são, mas pelo que deles irá devir,
a

políticas, desde a antigilidade até pelo que gerarão em um tempo posterior, Por fim, estas peque-
nossos dias, mostra bem como nas criaturas serão os futuros guardiões, governantes da pólis.
pode parecer natural querer Tem-se que pensar nisso ao desenhar sua educação, diz Platão.
=D

começar um mundo novo com Não importa tanto o que são, mas o que serão, o que podem ser
aqueles que são novos por e o que devem ser. Os novos são algo a ser. No caso deste relato
nascimento e por natureza. platônico, estas crianças devem ser, no futuro, reis que filoso-
Hannah Arendt, À crise da fem, filósofos que governem de modo justo a pólis.
educação (1961). Neste texto de A República, é “alguém” externo, um ou-
No livro II de A República, Platão discute de que forma tro, o educador, o filósofo, o político, o legislador, o fundador
devem ser educados os guardiões de sua pólis. O exame da
ques- da pólis, quem vai pensar e plasmar em cada um O que quer

36 E

que este seja. É a idéia de educação como formação, o dar uma dos novos de que fala H. Arendt na epígrafe, a tentação de fa-
forma a outro. Dar forma. Formá-lo. Qual forma? No caso de zer da educação uma tarefa eminentemente política e da polí-
Platão, em última instância é a forma das formas, são as idéias, tica o sentido final de uma educação. Educa-se para politizar
os a priori, os modelos, os paradigmas, os em si transcenden- Os novos, para fazê-los participantes de uma pólis que se defi-
tes que indicarão a direção da formação. Assim formadas, as ne para eles. O novo, cada nascimento, gera esperança é
crianças poderão set os cidadãos que queremos que sejam. medo. Entre uma e outro, a partir de seu cultivo, abriga-se
tma educação a serviço da política e uma política com fins
Neste registro, as crianças não interessam por serem crian-
educativos (Arendt, 1961; 176).
ças, mas porque serão adultos no futuro. E, nós, os adultos do
presente, os fundadores da pólis, os que sabemos da ausência
de certezas € os riscos desse chegar a ser, queremos o melhor 3. À filosofia a serviço da formação e da política
para eles que é, ao mesmo tempo, o que nós consideramos me-
lhor, o melhor para nós, o que não temos podido ser, mas que- Temos visto que toda filosofia
- remos fazer que os outros sejam. Podemos, inclusive, acompa- é, por sua natureza e em certo
nhá-los, ajudá-los, nesse caminho. Para isso os educaremos, sentido, pedagógica — de onde
desde a mais tenra idade. Neste acompanhar aos novos (hoi podemos inferir que o filósofo,
néoi) encontra sentido a educação: na passagem de um mundo todo filósofo, também é, em um
velho que já não queremos a um mundo novo — novo para nós, certo sentido, um pedagogo.
claro, velho para os novos —, que os outros trarão com nossa José Gaos, “Filosofia e
ajuda; ou nós tratemos com sua ajuda, como você prefira. pedagogia”, In: Filosofia da
filosofia e história da filosofia
Encontramos aqui os elementos clássicos que definem (1947).
uma pedagogia formativa (Larrosa, 1996: 21). Por um lado,
Em À República não só a educação, mas também a filoso-
educa-se para desenvolver certas disposições que, se conside-
fia está a serviço da formação e da política. Duplamente. Por
ra, existem em bruto, em potência; por outro lado, educa-se
um lado, a filosofia forma a quem entra em contato com ela, a
para com-formar, pata dar forma a, a um modelo prescritivo,
educação é assim quem nela transita. Por outro lado, estes transeuntes da fogos
que tenha sido estabelecido previamente. À
1996: 423), not-. fia que detêm seu conhecimento, aqueles que conhecem as rea-
entendida como uma tarefa moral (Larrosa,
que deve ser. Se- lidades em si mesmas, governarão a pólis em função de seus
mativa, como um ajustar a cada um a aquilo
processam o de- conhecimentos filosóficos. Mais ainda: se acaso se recusassem
gundo essa orientação, são os ideais os que
e pretendessem permanecer contemplando aqueles ideais, se-
senvolvimento de uma prática educacional. No caso de Pla-
riam obrigados a governar aos outros. Pois, finalmente, o esta
tão, esses ideais são, a priori, independentes de nossa vontade,
do os formou para isso. Os governantes devem filosofar, os fi-
e permitirão o império, neste mundo, da razão, do bem, da
lósofos devem governar, para que a pólis seja mais racional
justiça, da harmonia, da beleza. Ás crianças, ao final, são nossa
melhor, mais justa, mais harmoniosa, mais bela. Não têm ou-
oportunidade de realizar estes ideais e sua educação nossa me-
lhor ferramenta para tal fim. tra opção. Deste modo, a filosofia se torna uma tarefa eminen-
temente política e o exercício da política uma forma de filoso-
Esta educação de A República — como toda educação for- fia. Filosofa-se para politizar os novos, para fazê-los partici-
mativa — não resiste à tentação de se apropriar da novidade pantes de uma pólis que se define para eles.

38 39

ta a prioridade que o neopragmatismo de Richard Rorty de-


Muitas águas têm corrido sob a ponte da filosofia, mas fende da democracia a respeito da filosofia (Rorty, 1991)
não tem mudado significativamente a cor das águas. O ensino
da filosofia continua sendo enquadrado em uma lógica de for-
mação. Pensemos nos já citados Montaigne e Kant, ou, mais 4. A imfância formada
contemporaneamente, em ferventes defesas do ensino da filo-
[Á criança] como os mortos,
sofia nas escolas devido a seus fins formativos: a filosofia ao
serviço de uma cidadania crítica, tolerante, responsável, plu-
como as mulheres, como as
massas, como o objeto, como
ralista, enfim, todos os adjetivos que se queira outorgar, aos
mais adequados ao contexto”. todas as categorias expulsas da
razão dominante, conserva todos
Um exemplo nítido de uma filosofia com intencionalidade os meios para vingar-se e colocar
formativa é o programa Filosofia para crianças de Matthew aos donos da realidade um
Lipman. Ali a prática da filosofia está ao serviço de uma edu- problema insolúvel.
cação para a democracia, entendida como investigação delibe- Jean Baudrillard, O continente
rativa (Lipman, 1998). Segundo Lipman, levar a filosofia às negro da infância (1995),
crianças se justifica porque ela lhes oferece, pelo menos, três Hannah Arendt afirmou a essência da educação radica na
ferramentas que os participantes de toda democracia necessi-
natalidade, no fato de que seres humanos nascem no mundo
tam: 1) um trato rico e variado com conceitos gerais e contro- (1961: 174). Que nasce algo novo no mundo significa que o
“versos como verdade, justiça e liberdade; 2) uma elevação de mundo e o recém-chegado são mutuamente estranhos; não há
seus processos reflexivos a um pensar de ordem superior (que
continuidade entre eles, mas tuptuta. A educação é uíma tenta-
reúne as dimensões crítica, criativa e ética do pensar); 3) um tiva por matizar essa tensão, entre o novo e o velho, o revolu-
diálogo significativo que abre as portas para a elaboração de cionário e o conservador, o privado e o público; nasce alguém
juízos criteriosos (Lipman, 1998: 6-7). Nesta proposta é a ló- sem voz (in-fans) que precisa falar para comunicar uma novi-
gica da democracia (uma democracia) que define os sentidos dade que o mundo não quer escutar porque indica sua própria
do ensino da filosofia. Levar a filosofia às crianças, com sua negação; educar é fazer possível a emergência dessa voz de
história, com seus métodos e seus temas se justifica, para Lip-
a ocasio- forma que a novidade possa ser comunicada em um mundo
man, pelas vantagens sociais que essa prática venha
são, antes hostil a ela. À tensão não é fácil de superar e o fio costuma
nar (Lipman, 1988: 198). Aqui também as crianças romper-se no ponto mais frágil: o da novidade; os que já estão
de mais nada, futuros cidadãos da democracia; como tais, pre-
no mundo, os que educam, acabam sempre por determinar
cisam da filosofia, não tanto pelo que são, mas pelo que po- um futuro político que, pata os novos, os recém-chegados
dem chegar a ser. Desta maneira, uma democracia idealizada, será sempre velho. O problema da educação tem sido visto ã
bem entendida, matca a direção da prática da filosofia. Sem partir desta perspectiva, como o de encontrar a melhor manei-
falar da educação nem das crianças, esta mesma lógica susten- ra de fazer com que os novos falem a língua que os velhos pen-
sam que eles devem falar.
: ae o problema também pode ser visto como o problema
da últi-
1. Temos acompanhado de perto esta discussão a propósito das ambigiiidades e q qual será rá a a língua
lí que falarão
â os sem voz, o que pressupõeÕ
ma Lei Nacional de Ditetrizes e Bases da Educação a respeito da inclusão da filoso-
fia como disciplina obrigatória no ensino médio (Lei 9.394/96). Organizamos um ouvir o que esses que não falam têm a dizer sobre a sua própria
debate sobre esta questão em Gallo, 5. & Kohan, W. (2000).

40 41

ao
. Eis o paradoxo de uma edu cação não prevista, aberta imagem da imensidão, dos múltiplos nascimentos

me
a. da vida. À
novo, àe
li diferença: ouvir uma outra língua, ainda não falad infância não é uma etapa de vida, não são os prime
iros anos da
voz atra- existencia, mas uma reserva que nos permite dinam
Os filósofos têm-se ocupado bastante destes sem izar a vida

mire
formativas, uma água que sai da sombra, um estado aními
vés da história. Quase sempte com perspectivas 5a
co que permi
reviver a liberdade, que se dinamiza em um devan te
z o fragmento eio benfei-
para cumprir um projeto pedagógico. Talve tor, quando os homens nos deixam em paz (1997
ça que joga
de Heráclito, que se vale da imagem de uma crian : 150. 169

e,
Zaratustra de 175 -7). A infância precisa ser deixada em paz,
para ilustrar a lógica do tempo e o começo do cia das crianças, mas também a nossa infân
não só a end

ii
morfose
Nietzsche, onde a criança é a possibilidade de meta nos acompanha, a novidade e o aconteciment
cia, a que sempre
sejam exemplos
que se situa a partir de um ponto extramotal,

DEE
o que nenhuma
em potência, mas educação totalitária é capaz de mitigar.
nos quais a infância não é apenas adultez
se sustente
afirmação de alguma outra coisa, de algo que não E verossímil o encontro entre filosofia e infância?
De que
o tempo , à infância
em uma lógica adulta dominante. Ao mesm forma? Alguém poderia pensar que é um despr
opósito ensinar
ser desen-
não aparece nesses exemplos como algo que deva filosofia às crianças em um contexto como
o nosso em que o
dade entre in- ensino da filosofia nem sequer está consolidado
volvido, orientado, processado, não há continui em seus últi-
Larrosa, fi-
fância e mundo nem entre infância e adultez. Jorge mos anos no ensino médio. É possível que o
seja. Contudo
o estas idéias este despropósito pode ter um sentido educativo
lósofo espanhol contemporâneo, tem explorad é não formati-
sabe mos
afirmando a infância como enigma, aquilo que nem vo, não só para as crianças. O que é a infância
afinal? Como a
s saberes,
nem tematizamos, como algo que escapa a nosso i-
filosofia, uma forma de resistência. Afirma a possi
bilidade da
a nossas tentat
nossos poderes e nossas vontades, que resiste novid ade, um começo, irrompe no mundo com sua
diferença.
. Luta por criar-se a si mesma. É um símbolo, temos
vas de controlá-lo e dominá-lo (Larrosa, 1999) dito, de um
ssado, que porvir, de uma educação que não é possível
A infância como enigma sugere que temos fraca o
antecipar, É uma
possibilidade, possibilita pensar. Parece uma impos
ças, um mund sibilidade
não conseguimos construir, através das crian mas é sempre possível. É pura eventualidade, ocorrência
estra-
melhor. Imagem da alteridade, a infância resiste às nossas tecimento. É toda possibilidade, a possibilid
, acon-
Ela enfre nta nossa s pre-
tégias pedagógicas mais sofisticadas. n
ade de pe
viva “a capacidade de ruptura com a significação
nossa ee
tensões por mitigar sua alteridade, repudia como diz Guattari (1991: 18). Ainda que se
dominante”
crian ça traz consi go, se incomoda sinta bem no a
para a novidade que cada po de uma criança que brinca, a infância, assim
mundo melhor. À in entendida. não
com nossas sãs intenç ges de construir um tem idade,
sos idea
fância não é apenas o objeto educacional de nossos
.
ideais
de indeterminaç ão, Quem sabe, a experiência da filosofia ajude a mant
Como imagem de afirmação, de novidade, er viva
r que nenhuma esta infância nas crianças, chamadas hoje a
de liberdade, a infância é uma figura do porvi pior das infantili-
pode antecipar. É zações, a que tira delas sua outredade, seu
educação que seja sensível a essa novidade enigma, sua amea-
ação do novo. ça. Quem sabe essa experiência da filosofia
uma possibilidade para pensar uma nova educ também contribua
na imagem a preservar nossa infância, a infância dos adultos,
Esta concepção da i nfância aparece | também pensar. Quem sabe, com isso, manteria viva árnbém
a do nosso
(Bachelard, 1997:
bachelardiana da infância como devaneio própria infância, a infância da filosofia, o que ela a sua
pm ão,
preci isa da solid tem de im-
149), na figura do poeta, uma figura que previsível, inesperado, impossível. Talvez sejam
livre, sem limites, suficientes
que conhece a fortuna de sonhar; existência sentidos para seu ensino, qualquer que seja a
idade dos que en-

42 43

sinam e dos que aprendem, nestes tempos em que uma visão Podemos seguir e repensar o próprio ensino da filosofia,
monolítica do real pretende esgotar todo o campo do possível. Se não é ao serviço da formação, como podemos pensar seuis
sentidos? Ensinar filosofia para quê se não é para formar cidas
5. Uma lógica não formativa para o ensino da filosofia dãos para um mundo melhor? Nas próximas linhas tentare-
mos dar algumas pistas que permitam desenvolvimentos pos-
Um filósofo não se define teriores. Não estamos em condições de responder tamanhas
somente como um indivíduo a petguntas, mas, sim, sugerir algumas linhas de trabalho.
quem houvesse acontecido algo,
Parece-nos que esta questão está estreitamente ligada à
iluminação, êxtase, duelo,
concepção de filosofia que se afirma quando se ensina. Neste
intuição, possessão e outras crises
sentido, temos defendido, em outros trabalhos”, que ensinar
que tão bem conhecem os poetas e
filosofia bem pode ter que ver com promover experiências de
os místicos. Tampouco é uma
pensamento filosófico. A noção de experiência de pensamen-
alma quebrantada que tomaria por
to nos parece fundamental enquanto delimita um espaço que
objeto de reflexão a sacudida que
alude as clássicas dicotomias entre professor de filosofia e filó-
o perturbou, para compreendê-la,
desde fora, dominando-a pela sofo; filosofia e filosofar, teoria e práxis. Uma experiência de
pensamento é uma prática teórica, intersubjetiva, irrepetível,
razão. É antes um espírito que
intransferível, uma forma de exercer o pensar que chamamos
decide transformar sua existência
de “filosófica” quando dá ênfase à crítica, à criação, à difereri=
por meio da inteligência ça, à resistência e a uma interlocução com uma história de
continuada e vivida do que lhe
ocorre, compreensão que ele deve
pensamentos que no ocidente tem mais de 26 séculos.
conquistar não contando com Para que, então, impulsionar experiências de pensamento
nada mais que suds próprias filosófico? Sócrates é sempre uma forte inspiração em filoso-
forças. fia. Por ser um fundador e deixar abertas as portas da cidade
Roger-Pol Droit, Na companhia fundada. Pelo que ele tem dito e pelo que se tem dito dele. Por
dos filósofos (1999). não haver escrito nada e ensinar a outros a escrevê-lo. Por eti:
sinar na filosofia. Pelas experiências de pensamento filosófico
Recapitulemos. Estamos num Encontro de Professores de que parece ter impulsionado na cidade.
Filosofia, para pensar sobre o seu ensino. Procuremos proble-
matizar os sentidos outorgados a esse ensino. Traçamos uma Sócrates, nos parece, sugere um espaço para problemati-
linha que nos permite reconhecer uma história onde a educa- -zar as relações entre filosofia e política. É a imagem de umã
ção e a filosofia têm sido fortemente impregnadas pela idéia possibilidade da filosofia em sua relação com a política, uma
de formação. A filosofia tem sido ensinada, basicamente, para afirmação de uma prática filosófica, não política, da política.
formar pessoas, para fazer algo de alguém. Esta estratégia Mostra que, entre filosofia e política, há mais tensões que coiil=
pressupõe uma idéia de infância ligada à maleabilidade, à au-
sência de forma e à consequente necessidade de ser informa-
da. Procuramos oferecer, na parte anterior, elementos que 2. Temos desenvolvido maisa fundo esta idéia em “Fundamentos à prática da filosofia
permitam pensar “outra” infância. na escola pública”, 1: Kohan, W., Leal, B. & Ribeiro, À. (orgs.) (2000). Filosofia
na escola pública. Petrópolis: Vozes, p. 21-73,

44 4s
+

mesma na política, em uma postulação de um dever ser, em


plêmentaridades. É o próprio Sócrates que problematiza a di-
certo modo, imune à problematização filosófica. Sua pedago-
mensão política da filosofia afirmada em A República: ele não
gia não podia não refletir esse estado e a filosofia foi sendo en-
parece afirmar nenhuma política positiva, não mostra nenhum sinada com sentidos não filosóficos. Quando se ensina filoso-
projeto político pelo qual educar, mas é, contudo, um dos
fia para aficmar uma política — ou uma moral, uma pedagogia,
poucos, se não é o único ateniense que, segundo o próprio
uma religião, que para este caso é o mesmo, são todas ordens
Platão, se dedica “à verdadeira arte da política? (Gorgias,
determinantes —, se impossibilita a filosofia porque a moral, a
521d), o único que a pratica nesse tempo, o único que faz polí-
pedagogia, a política e a religião são pata a filosofia um pro-
tica de verdade e que, ao mesmo tempo, por essa razão é con-
blema e não um ponto de chegada. Quando se buscam finali-
denado à morte pela política instituída. Sócrates se opõe às di-
dades morais, políticas, pedagógicas, religiosas, a filosofia se
versas políticas positivas — às democracias, às oligarquias, às ti-
torna impossível. Por outro lado, quando a filosofia é possível,
ranias — através do exercício da filosofia. Ele faz da filosofia
a moral, a política, a pedagogia e a religião são um espaço va-
uma tarefa eminentemente política e da política uma forma de
zio, uma interrogação, um intervalo.
exercício da filosofia. Afitma um sentido radical para a filoso-
fia política, que não se encontra na fundamentação de uma Se o ensino da filosofia quer voltar à filosofia, precisa in-
utopia, mas em uma forma de vida sustentada pela pergunta, verter seu platonismo político, recusar a formação política
pela aporia, pelo não saber. Pratica uma política e uma filoso- dos cidadãos. Entendida como experiência do pensamento fi-
fia filosóficas, não políticas no seu sentido estreito e estrito. losófico, esse ensino não admite nenhuma ordem determinan-
te. Pensa o impensável. Suspeita que o impossível é possível.
Sócrates é também uma figura que nos permite pensar a
Dá testemunho da soberania da pergunta. Afirma a diferença,
prática e a dimensão pedagógica da filosofia como substanti-
as outras bases da ordem, suas outras possibilidades, seus pon-
vamente não formativas, no sentido que temos dado a este ter-
tos negros, seus enfrentamentos, suas exclusões, seus devires.
mo neste trabalho. Sócrates, o menos platônico, o dos primei-
ros diálogos — por exemplo, o do Eutífron, Críton e Apologia — Como pensar os sentidos deste ensino da pergunta, da di-
não patece ter em vista nenhum projeto político, nenhum tipo ferença, da resistência? Como se dá esta experiência em uma
de cidadão. Só questiona os modos da política afirmados em instituição superpovoada de ordens determinantes como a es-
Atenas. Resiste a eles. Os interroga. Os desoculta. cola? E possível ensinar filosofia, no sentido aqui especifica-
do, na escola, ou em qualquer instituição? É possível uma edu-
Mas depois de Sócrates veio Platão e a pergunta se tornou
cação filosófica da filosofia? É possível educar na filosofia?
resposta, a resistência se tornou proposta € O desocultamento
Como vocês sabem, em filosofia sempre é interessante acabar
se fez realidade absoluta. Platão entendeu a filosofia política
com perguntas.
como a afirmação de uma utopia, de um direcionamento co-
mum por vir, essa pólis justa onde cada parte cumpre sua fun-
ção que lhe corresponde (A República IV, 432). Os filósofos Referências bibliográficas
que vieram depois foram seduzidos mais por Platão do que ARENDT, Hannah (1961). “The crises of education”. In: Between
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