Artigo - J W Sette Ferreira - São Paulo o Mito Da Cidade Global
Artigo - J W Sette Ferreira - São Paulo o Mito Da Cidade Global
Artigo - J W Sette Ferreira - São Paulo o Mito Da Cidade Global
RESUMO: A "cidade-global" vem sendo difundida como o único modelo urbano capaz de garantir
a sobrevida das cidades no "novo" contexto da "globalização da economia". A cidade de São Paulo
não foge desse rótulo. Entretanto, os dados empíricos mostram que ela não apresenta nenhum dos
atributos típicos da "cidade-global". Isso não impede que o discurso dominante do pensamento
único neoliberal, que tem como paralelos urbanos as teorias da "Cidade-Global", do "Planejamento
Estratégico" e do "Marketing de cidades", imponha uma visão – mais ideológica do que real –
segundo a qual esses modelos seriam as únicas opções de urbanização aceitáveis. Apoiando-se
nessa falsa realidade, os empreendedores urbanos da cidade conseguem canalizar os recursos
públicos de forma a sustentar a construção de supostas "centralidades globais terciárias”,
desviando assim as políticas públicas das prioridades prementes ligadas à uma demanda social
cada vez mais dramática. Uma análise mais pormenorizada mostra que a dinâmica de produção do
espaço em São Paulo é baseada em coalizões entre as elites urbanas locais e o Poder Público,
que não tem nada de "moderna", e muito menos de "global", sendo na verdade a expressão
urbana das tradicionais e arcaicas relações sociais típicas do "patrimonialismo" brasileiro.
ABSTRACT: Throughout the world the global-city has been considered the only urban model able
to guarantee the survival of the city within the new context of economic globalization, and the city of
São Paulo is no exception. However, empirical data demonstrate that this city has none of the
typical “global-city” attributes: it does not take an active part in world economic flows, it does not
suffer from a structural de-industrialization, it lacks an advanced service industry leading other
economic activities, and so forth. Nonetheless, the prevailing dialogue dominating single neo-liberal
thought imposes an ideological discourse according to which this model would be the only
acceptable option for the urbanization of São Paulo.
Based on this false reality, urban developers successfully channel public investments to support the
construction, for example, of a “total business district” in the area of the Pinheiros River, thus
directing urgent public priority policies away from widening social inequalities. In a city where nearly
half of the population is deprived of the basic rights of citizenship and is not even able to take part in
formal urban dynamics, some groups of developers associated with public authorities are able to
create a “city within the city”: a veritable “First World” island built within an urban matrix comprised
of the traditional, archaic social relations of the urban underdevelopment of a country that still has to
overcome the difficulties of its colonial heritage.
Key-words: global-city, globalization, production of the urban space, peripheral urbanization, real-
estate market.
1
São Paulo, cidade-global: o fato mediático
“São Paulo será, talvez, no Brasil, a principal candidata a cidade mundial”. Com essas
palavras, durante um encontro internacional sobre cidades, em 1995 (Almeida, 2001)1, o
então presidente Fernando Henrique Cardoso consolidava uma interpretação sobre as
cidades contemporâneas que iria rapidamente tornar-se unanimidade nos meios
empresarias, acadêmicos e governamentais.
Essa suposta “vocação” da cidade de São Paulo para ser “cidade-global” passou então a
ser discutida na academia, propagandeada pela mídia, festejada pelo capital imobiliário e
incentivada pelo poder público, usando-se como prova o fato de que vêm surgindo na
cidade, desde meados da década de 80, novos bairros “de negócios”, concentrações de
edifícios que a nomenclatura “globalizada” convencionou chamar de “inteligentes”,
justamente pela sua tecnologia de conexão com as mais avançadas técnicas da
comunicação global. Assim como as cidades norte-americanas têm seus business
districts, em São Paulo também temos um World Trade Center e outros tantos centros
empresariais sofisticados, concentrados na região do Rio Pinheiros e da Avenida Luiz
1
Fernando Henrique Cardoso, Seminário Internacional Centro XXI, São Paulo, 1995, reproduzido in Marco
Antonio R. de Almeida (apresentação). O centro das Metrópoles: reflexões e propostas para a cidade
democrática do século XXI. Terceiro Nome / Viva o Centro / Imprensa oficial do Estado, São Paulo, 2001.
2
Ver autores como Friedmann, Smith & Feagin, Knox & Taylor, Timberlake, Sassen, Castells, Borja, Güell e
Veltz, entre outros. Vale observar que estamos nos referindo à definição de “cidade-global” que ganhou força
conceitual nos meios acadêmicos de urbanismo, e que se preocupa sobremaneira com as novas
configurações espaciais voltadas ao terciário moderno, dando pouca importância – ou nenhuma – às gritantes
desigualdades sociais que caracterizam as cidades modernas do mundo subdesenvolvido. Há outras
definições, bem mais aceitáveis, dentre as quais a de Milton Santos, para quem a noção de “cidade-global”
envolve também os antagonismos da desigualdade e da exclusão associados a essas grandes metrópoles, e
que devem ser considerados numa nova dinâmica de espaço e tempo própria justamente aos novos tempos
da globalização.
3
A nomenclatura varia para essas categorias secundárias: “Cidades-globais de influência regional”, “Cidades-
Globais de segunda ordem”, etc.
2
Carlos Berrini, uma área que alguns especialistas gostam de chamar de “nova
centralidade globalizada” da cidade.
As motivações que levaram cada um dos setores citados a patrocinar a nova classificação
“global” da maior metrópole brasileira são aparentemente variadas. A academia parece ter
seguido a velha tradição, em especial nos meios urbanísticos, de reproduzir quase que
automaticamente por aqui teorias e interpretações em voga nos grandes centros
universitários do exterior – e portanto capazes de dar destaque fácil e rápido à obras
acadêmicas que os reproduzam – e que até hoje nunca se mostraram capazes de
sustentar uma interpretação eficaz da nossa realidade urbana desigual, em um processo
de importação intelectual que reitera o descompasso já apontado por Schwarz quando
propôs a matriz das “idéias fora de lugar”. Na realidade, esse procedimento parece
destinar-se a reproduzir e difundir por aqui teorias que sustentem academicamente os
interesses de hegemonia das classes dominantes nacionais. No caso da teoria da
“cidade-global” desdobraram-se teorias mais instrumentais, também discutidas pela
academia, verdadeiras “receitas” para alavancar a competitividade urbana global,
inspiradas na reengenharia empresarial e nas modernas técnicas de propaganda, e que
ficaram conhecidas como “Planejamento Estratégico” e “Marketing de cidades” (Vainer,
2000).
Para o mercado imobiliário, que se insere no grupo social das “classes dominantes”, a
participação nesse esforço de construção da imagem de uma “cidade-global” parece
natural, pela mobilização que ele representa em torno de possibilidades de investimentos
e rentabilidade em um cenário recessivo. Se o modelo da “cidade-global” favorece as
classes dominantes, é porque favorece essencialmente, como veremos, oligarquias
arcaicas que atuam no mercado imobiliário. É sem dúvida o mercado quem tem mais a
ganhar, e vem ganhando, com esse processo. A mídia, quanto a ela, sempre serviu no
Brasil à reprodução dos mesmos interesses dominantes. Reforçando o coro da “cidade-
global” paulistana, são inúmeros os artigos na grande imprensa5, especializada ou não,
festejando a “vocação global” da cidade e suas “inquestionáveis” comprovações, como os
cerca de 4 milhões de "turistas de negócios", a modernidade dos nossos Business
Districts, a “substituição” da indústria pelos serviços, a moderna e "internacionalizada"
rede hoteleira, a proliferação dos edifícios “inteligentes”, e assim por diante.
4
São Paulo (Cidade) – SEMPLA. O uso do solo segundo o cadastro territorial e predial. São Paulo, Sempla,
2002
5
Ver, por exemplo, Nely Caixeta. Cadê a fábrica que estava aqui? Revista Exame, edição 661, 06/04/1998,e
Os efeitos da concentração. Revista Veja, Edição Especial, maio de 2002.
3
européias e norte-americanas, e de alta competitividade, a possibilidade de alavancar
parcerias milionárias com o setor privado para a construção de pólos urbanos capazes de
atrair grandes empresas e negócios globais mostrou-se uma via de salvação para
prefeitos submersos em graves crises de governabilidade. Otília Arantes (2000) já
mostrou como grandes investimentos culturais tornaram-se uma ótima oportunidade de se
construir as infra-estruturas necessárias para transformar cidades quase falidas em pólos
de atração do grande capital global. Assim ocorre também com os grandes eventos
internacionais, como jogos olímpicos e exposições universais. Centros de convenções,
modernos aeroportos, rede hoteleira de primeira linha, atrações turísticas e culturais,
segurança, são justamente os atributos que os teóricos exigem das “cidades-globais”, e
que de repente tornaram-se objetivos a alcançar, justificados por algum grande evento,
em uma simbiose de interesses políticos e imobiliários. O planejamento estratégico
urbano tornou-se especialmente útil, para tais fins e, de Paris a Nova York, passando por
Londres, Atlanta, Bilbao ou Lisboa, são inúmeras as cidades que experimentaram essa
receita de sucesso, que tem em Barcelona, palco de uma gigantesca operação de
reurbanização por conta dos jogos olímpicos de 1992, seu maior paradigma.
Em todos esses casos, vale notar, os interesses privados foram alavancados por
incentivos governamentais, através de importantes investimentos públicos. Na grande
operação de renovação das docas londrinas, as conhecidas London Docklands, por
exemplo, cerca de 1,3 bilhão de dólares de fundos públicos foram investidos no
empreendimento, que aliás acabou sendo um grande desastre imobiliário, salvo somente
em anos recentes, graças a mais investimentos públicos6. Em Barcelona, foram 5,5
bilhões de dólares públicos investidos na preparação dos jogos. Quase sempre, a
mobilização de importantes fundos públicos – em momentos de restrição orçamentária –
para alavancar projetos de renovação urbana, motivados ou não por grandes eventos
internacionais, foram legitimados junto à população justamente com o discurso de que tais
investimentos seriam a porta de entrada definitiva no chamado “arquipélago das cidades-
globais”, o que permitiria a atração de um volume de capital muito maior do que o
investido pelo Estado. Um prognóstico arriscado, como em qualquer operação capitalista:
os balanços, aliás, nunca são muito transparentes, e além do caso emblemático das
Docklands (onde uma das maiores incorporadoras do mundo acabou falindo), a cidade de
Montreal, por exemplo, até hoje amarga as dívidas das olimpíadas de 76, assim como em
Atlanta os jogos bancados pela gigante dos refrigerantes não foram nenhum grande
sucesso financeiro.
Assim como a teoria das “cidades-globais” atravessou os oceanos para pousar em nossas
universidades, esse conveniente discurso político também tomou conta das metrópoles
latino-americanas, e o planejamento estratégico tornou-se moda entre os chefes dos
executivos municipais, de qualquer perfil ideológico. Em um continente que sofre com as
opções macro-econômicas neoliberais de estabilização monetária adotadas na década de
90 e enormes restrições orçamentárias que dificultam sobremaneira os investimentos em
infra-estrutura, o planejamento estratégico e suas possibilidades de parcerias público-
privadas soaram como uma salvação para garantir aos prefeitos a “vitrine” necessária à
sua governabilidade, e também à sua reeleição. Grandes obras de infra-estrutura – de
repente possíveis graças a empréstimos privados específicos e ao empenho das agências
6
A aposta inicial dos empreendedores das Docklands, de utilização de um subdimensionado monotrilho aéreo
como única conexão de massa para a área, quase afundou a operação urbana. A salvação veio pela
extensão, com fundos públicos, do metrô convencional para os arredores da área. Ver a respeito ROSSITER,
Andrew; "Le redéveloppement des Dockiands de Londres : l'échec était-il inévitable?" Annales Littéraires de
l'Université de Besançon nº 566 - Les Cahiers du CREHU nº5, 1995
4
financeiras multilaterais especialmente empenhadas nesse tipo de ajuda – agradam aos
investidores, dão visibilidade aos governantes, geram empréstimos (negócios) para os
bancos financiadores internacionais, além de supostamente “capacitar” a cidade para
atrair os fluxos do capitalismo financeiro globalizado. Apoiados pelos próprios mentores
do planejamento estratégico barcelonês, que coincidentemente tornaram-se consultores
internacionais7, muitos prefeitos latino-americanos se lançaram, nesta última década, na
aventura da “cidade-global”, candidatando-se à sede dos jogos olímpicos, como São
Paulo e Rio de Janeiro, oferecendo-se para sediar filiais de grandes museus, como o
Guggenheim e a Cidade da Música no Rio, alavancando grandes operações de
urbanização voltadas para os interesses dos investidores imobiliários do setor terciário,
como o Eixo Tamanduatehy, de Santo André (SP), ou o festejado Puerto Madero, em
Buenos Aires.
A hipótese que se coloca neste artigo, baseando-nos no estudo do caso de São Paulo, é
a de que as motivações das prefeituras de cidades latino-americanas em buscar sua
governabilidade através da construção de uma imagem de “cidade-global” não são
simplesmente um alinhamento a uma tendência generalizada no continente, mas sim uma
máscara ideológica que escamoteia uma máquina a serviço da canalização de fundos
públicos para privilegiar os setores mais arcaicos do mercado imobiliário.
Desde já, uma ressalva deve ser feita, sobre a escolha de limitar esta reflexão à cidade de
São Paulo. Embora muitos autores brasileiros se detenham – com razão – em criticar o
“city marketing” e o Planejamento Estratégico em cidades de países industrializados, não
se pretende, neste artigo, entrar nesse julgamento, já que a realidade daqueles países é
completamente diferente da nossa e mereceria uma análise mais detalhada. Mesmo em
meio a uma forte crise econômica estrutural – que se origina ainda nos anos 70 na crise
gerada pela exaustão do modelo de Bretton Woods e a adoção do modelo de
endividamento, aos quais se sobrepôs a reestruturação produtiva gerada pela Revolução
da Informática – o dinheiro disponível para gastos públicos na Europa e nos EUA ainda é
exponencialmente maior do que no mundo subdesenvolvido. Aliás, os gastos públicos até
aumentaram na Europa na década de 90, supostamente no auge da globalização
neoliberal(Batista Jr, 2000). Além disso, os níveis de distribuição da renda naqueles
países faz com que, grosso modo, falar em mercado ainda significa falar na sociedade em
sua quase totalidade. Todos consomem e têm relativo acesso aos serviços e
equipamentos públicos (mesmo que em níveis diferentes e com um recente mas
consistente aumento da exclusão), e em certa medida isso permite a criação de espaços
públicos – mesmo que apoiados na instrumentação da cultura, como aponta Otília
Arantes – que ainda são minimamente democráticos em seu acesso e uso, apesar de
gerados por mega-empreendimentos financiados pelo capitalismo global.
7
A própria Saskia Sassen esteve em Bahia Blanca, Argentina, proferindo palestras sobre o planejamento
estratégico da cidade, junto com Jordi Borja, líder dos projetos de Barcelona, que também esteve em São
Paulo por diversas vezes, assim como em Santo André. Manuel Castells, destacado pensador do
Planejamento Estratégico, ao lado de Borja, também compareceu repetidamente à cidade de São Paulo ao
longo da década de 90, como em outras cidades do continente.
5
planejamento até mesmo quando aplicados em seus países de origem8. Mas por
questões de espaço e de foco, este artigo não se atém a essas questões, embora as
consideremos relevantes, mas sim à problemática transposição desses modelos
urbanísticos para a sociedade brasileira, cuja matriz é de extrema desigualdade social e
concentração da renda. Trata-se, aqui, de verificar se a “tábua de salvação” que já nos
seus países de origem é polêmica, por acaso permite, na realidade subdesenvolvida, criar
algum “efeito sinérgico” que resulte em investimentos emergenciais como saneamento
básico, habitação de interesse social, transporte público de massa, etc.
Há basicamente três formas pelas quais poderíamos averiguar se uma cidade responde
ao rótulo de “global”: a primeira delas é a verificação daqueles atributos segundo os quais
os teóricos qualificam uma cidade como "cidade-global". Tais autores defendem que as
cidades-globais abrigam um número significativo de sedes de grandes empresas
transnacionais, têm bolsas de valores de importância internacional, caracterizam-se por
uma economia que transitou majoritariamente para o setor de serviços, oferecem centros
de convenções, modernos aeroportos, rede hoteleira de primeira linha, e em decorrência
receberiam significativo fluxo de capital financeiro, de homens de negócios e de
mercadorias. A importância de cada um desses atributos constitui uma hierarquia entre
centros urbanos que se interconectam, formando o que alguns autores chamaram de
“arquipélago mundial de cidades-globais”.
A segunda maneira – que não exclui a primeira – seria verificando até que ponto é
significativo o surgimento na cidade de novas atividades terciárias de comércio e serviços
que estejam, como defendem, por exemplo, teóricos como Sassen e Castells10,
substituindo as atividades industriais do setor secundário, sendo esse processo
supostamente característico da “nova economia global” e das “cidades-globais”11. No
mesmo sentido, pode-se verificar qual a importância na economia da cidade desse novo
setor econômico – o “terciário avançado” – que segundo esses autores compreendem
atividades ligas à economia globalizada, como as de informática, assessoria jurídica a
8
Ver DUCHER, Daniel; "Docks de Londres: um modèle em trompe-l'oeil", in Urbanisme, n º 229, Paris: fevrier/
mars 1989; e “La outra cara Del Fórum de les cultures S.A.: Barcelona 2004, el fascismo posmoderno”,
Assemblea de Resistência al Fórum 2004, Espai em Blanc, Col-lectiu Ariadna Pi de l´Institut Catalã d
´Antropologia, Bellaterra, Barcelona, 2004.
9
Dados de 2004 da SEHAB/SP apontam 1.160.597 moradores de favelas, um censo de 2000 também da
SEHAB/SP indica 1.597.986 moradores de loteamentos irregulares e/ou clandestinos, e há uma estimativa de
cerca de 600.000 moradores de cortiços, e 8.000 moradores de rua, o que daria cerca de 35% da população
na informalidade. Acreditamos que tais números nunca consigam representar o total real, pela dificuldade
metodológica dos censos, estimando-se por isso um total de 40% da população na informalidade.
10
Ver, entre outros, Saskia Sassen (1998 e 1999) e Manuel Castells (1999).
11
Caracterizando a economia “pós-industrial”, Castells observa que: “A atividade econômica se desloca da
produção de bens para a produção de serviços. A morte do emprego agrícola é seguida do declínio
irreversível dos empregos industriais, em favor dos serviços que acabarão assegurando a maior parte dos
empregos” (Manuel Castells. La société en réseaux. Paris, Fayard, 1998. pg.242).
6
grandes empresas, marketing, comunicações, etc. Pode-se, por fim, verificar o quanto
novos “distritos terciários”, em especial a já citada região da Marginal Pinheiros,
efetivamente concentram empresas desse tipo, e qual sua importância relativa no total
das atividades econômicas da cidade.
A terceira forma de verificação seria a análise da origem do capital imobiliário que vem
efetivamente produzindo “centralidades terciárias globais” como a da região da Marginal
Pinheiros. Seriam grandes investimentos internacionais ligados aos fluxos de capital
financeiro globalizados que estariam financiando a construção dos nossos modernos
business districts, da rede hoteleira de negócios, dos centros de convenções, etc., assim
como ocorreu, por exemplo, nos conhecidos booms imobiliários terciários ocorridos na
década de 80 nos EUA, na Inglaterra e em cidades asiáticas como Bangkok, Hong-Kong,
Cingapura e Kuala-Lumpur?
É surpreendente afirmar que a cidade de São Paulo não se enquadra no rótulo de “global”
em nenhuma dessas três verificações possíveis, e nem os fenômenos geralmente
associados à sua “globalização” são propriamente novos, o que nos leva a dizer que a
construção da imagem da “cidade-global” paulistana não corresponde a dinâmicas reais,
mas sim parece responder a interesses específicos, que se utilizam dessa imagem de
forma ideológica para garantir sua hegemonia. É o que veremos a seguir.
A segunda forma citada acima merece uma análise mais detalhada. A idéia de que São
Paulo estaria passando, como no caso de algumas economias desenvolvidas estudadas
por Castells, de um perfil industrial para outro essencialmente terciário não sobrevive à
um estudo mais cuidadoso. Em primeiro lugar vale notar que, como qualquer grande
centro urbano desde os tempos da Roma antiga, São Paulo sempre teve mais atividades
terciárias de comércio e serviços do que industriais. A indústria paulistana esteve, desde a
década de 50, especialmente concentrada nos municípios da periferia, sobretudo na
região do ABCD. O município de São paulo, embora tenha abrigado – e ainda abrigue –
7
atividades industriais de porte, por outro lado sempre se caracterizou por receber em seu
território atividades terciárias "de comando", simplesmente pelo fato da cidade ser, há
mais de 50 anos, o pulmão do crescimento econômico do país e do continente. Até aí,
não haveria portanto nenhum fato novo na era da "globalização", e fica difícil entender
qual a novidade – equiparando-se o peso que as inovações tecnológicas dos edifícios
tinham em cada época – de uma concentração de edifícios terciários modernos na região
da Marginal Pinheiros, nos dias atuais, em relação à concentração de novos e modernos
(para a época) edifícios na avenida Paulista da década de 70, aliás em grande parte
também ocupada por sedes de empresas multinacionais. Como já disse Paulo Nogueira
Batsita Jr. (2000), referindo-se ao fenômeno da globalização, a idéia do “novo” como
legitimadora de um cenário econômico – no nosso caso, urbano – deve ser vista com
cuidado, pois esconde um peso ideológico, fazendo parecer novo o que nem sempre o é.
Assim, uma análise mais precisa da atividade industrial e do perfil dos empregos, para
verificar a hipótese de Castells, deve incorporar toda a região metropolitana (RMSP), que
inclui os municípios industriais do ABCD. De janeiro de 1985 a janeiro de 2002, o nível de
emprego na indústria caiu significativos 50,68%12, o que parece corroborar a tese de
Castells. Entretanto, o número de assalariados sem carteira aumentou, entre 1985 e
2000, cerca de 130%, sendo o segmento que mais cresceu na economia informal
Jacobsen et alii, 2000). Por outro lado, o nível de ocupação na indústria, medido pelo
Dieese, caiu 15,8%, bem menos do que o nível de emprego. Este último computa
pessoas efetivamente empregadas com carteira, enquanto que o nível de ocupação
engloba também pessoas exercendo atividades informais. Isso mostra que o fenômeno
mais significativo quanto ao emprego, na RMSP, é muito mais o aumento do setor
informal e a extrema precarização das relações trabalhistas do que propriamente uma
"substituição" de empregos industriais pelos de serviços. Na RMSP, cerca de 55% da
população ocupada está hoje na informalidade (Dupas, 1998). A realidade brasileira
parece ser, sem dúvida, bastante diferente das tendências observadas por Sassen ou
Castells nos países industrializados, e a precarização do emprego é, para autores como
Chico de Oliveira, a forma mais atual da exploração do trabalho e da acumulação
capitalista no Brasil.
Castells verifica que no Canadá e nos EUA, "a categoria dos gerentes, especialistas e
técnicos, ou seja, as profissões 'informacionais' por excelência, ...representa cerca de um
terço da população ativa no início dos anos 90" (Castells, 1998: 256). Em São Paulo, as
empresas declararam à RAIS, em dezembro de 1999 (9 anos depois da análise de
Castells para a América do Norte), um total de 3.111.585 postos de trabalho. Desse total,
apenas 211.883 eram de empregos relacionados às especialidades citadas por Castells
(considerando-se até um escopo provavelmente maior de profissões13). Isto é, apenas
6,8% do total de postos de trabalho com carteira assinada. Se considerarmos que esse
postos representam apenas uns 50% da população ativa, já que o resto se encontra no
trabalho informal, temos que as profissões apontadas por Castells como típicas da
sociedade "informacional" representam apenas 3,4% da mão-de-obra ativa na cidade de
São Paulo. Por esses parâmetros, não há como falar, no nosso caso, de algum tipo de
“economia terciária" centrada nos empregos no setor de serviços.
12
Fonte: Dieese/Sistema SERVE, índice base jan.85=100 , jan.2002=49,32.
13
Foram consideradas as seguintes categorias: Engenheiros, arquitetos e assemelhados; Técnicos,
desenhistas técnicos, e assemelhados; Biologistas, engenheiros agrônomos e assemelhados; Economistas e
técnicos de administração; Trabalhadores de profissões científicas e assemelhados; Diretores de empresas e
Gerentes de empresas – Fonte: RAIS/Mte, 1999.
8
Além disso, mesmo que tenha havido um aumento de 14% dos empregos do setor de
serviços entre 1989 e 199914, o que permite pressupor alguma transferência do setor
industrial para o de serviços, é impossível dizer que esta tenha ocorrido majoritariamente
para os setores de "serviços avançados e globalizados", já que os dados da precarização
do emprego, citados acima, permitem supor que tenha havido uma transferência
significativa para serviços de baixa qualificação, ou até mesmo da indústria para a mesma
indústria (por meio da terceirização) que não têm nada a ver com os avanços da
"globalização".
Assim, talvez não seja errôneo dizer que São Paulo estaria vivendo, mesmo que de forma
muito concentrada na região da Avenida Berrini, o que Sassen aponta como "a formação
de um novo núcleo econômico urbano de atividades bancárias e ligadas à prestação de
serviços que acaba substituindo os núcleos orientados para as manufaturas" (Sassen,
1998:76). Porém parece-nos mais importante entender que esse processo é pouco
significativo se o compararmos ao que os especialistas apontam como o real fenômeno
contemporâneo na dinâmica do emprego na cidade: a total fragilização das relações de
trabalho e o crescimento significativo tanto do desemprego quanto do trabalho informal.
Mas, como já dito, essas idéias são transpostas sem muito cuidado para a realidade
brasileira, ganhando razoável destaque na mídia e nos meios especializados. Em
documento da Prefeitura de São Paulo, lê-se que a "fuga de indústrias portadoras de
processo produtivos baseados na exploração de mão-de-obra intensiva" é um dos fatores
que comprovam os "impactos da globalização sobre a economia das cidades"15. "Cadê a
fábrica que estava aqui?" era o título de artigo da Revista Exame de 5 de junho de 1998,
comentando o "esvaziamento industrial vivido pela capital paulista", um fenômeno,
segundo o texto, implicitamente ligado à "economia globalizada" à qual São Paulo teria de
estar se adaptando (para alcançar sua condição de "cidade-global", entenda-se). No
mesmo sentido, em caderno especial sobre as pespectivas para o século XXI, o Estado
de S.Paulo16, também comentava: "A cidade que já foi do café e depois, por muitos anos,
da indústria chega ao futuro prestadora de serviços e voltada para os negócios". A
associação dessa suposta tendência desindustrializante com o surgimento de um "centro
de negócios" voltado para o setor terciário na região da Marginal Pinheiros é ainda mais
claramente explorada pela revista Veja, em sua edição especial de maio de 2002. Em um
14
Dados da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo, 1999-2000.
15
São Paulo (cidade). Globalização e Desenvolvimento Urbano. PMSP/Sempla, 2000/2001, pg.18.
16
http://www.estado.estadao.com.br/edicao/especial/perspe/serv.html - caderno Especial "Século 21:
perspectivas”, sem data.
9
artigo intitulado "Os efeitos da concentração", a revista afirma que "mais de 40% das
indústrias foram embora" da cidade, concluindo que "em compensação, o tamanho da
economia de serviços triplicou". Para ilustrar tal fenômeno, uma foto que não deixa
dúvidas da localização escolhida pela economia de serviços: os modernos edifícios
inteligentes do Centro Empresarial Nações Unidas, na Marginal Pinheiros.
É inegável que a economia brasileira está passando, em especial nos últimos dez anos,
por um processo intenso de desmonte industrial, decorrente não de um novo “perfil”
econômico da era pós-fordista, mas sim das opções macro-econômicas liberais de
abertura do mercado e alta taxas de juros, que multiplicaram os processos de fusões e
aquisições de empresas nacionais por grupos estrangeiros, e deslocaram o comando de
suas operações empresariais para seus países de origem17. Ainda assim, o fenômeno da
desindustrialização da RMSP não é tão efetivo quanto se pretende. Em primeiro lugar, a
saída de muitas indústrias não se deve exatamente à “terciarização” da economia, mas à
deseconomia gerada pela intensa urbanização: valorização fundiária e escassez de
terrenos de grande porte para expansão das fábricas, trânsito caótico, alto custo de vida e
falta de segurança para os executivos e, dizem alguns, atividades sindicais “organizadas
demais”. Isso levou a um fortalecimento das cidades que compõe a chamada macro-
metrópole paulista, Campinas, São José dos Campos e Sorocaba, que receberam parte
significativa das indústrias (Nobre, 2000). Assim, trata-se mais de um processo de
“desconcentração e relocação industriais” do que de substituição da indústria por
atividades de serviços.
17
"A cada ano, o país recebe US$ 20 bilhões em investimentos diretos e 70% dos recursos são usados
para a compra de empresas existentes. Dados da consultoria Price Waterhouse Coopers revelam que o
número de fusões no Brasil saltou de 186, em 1990, para 561, no ano passado" in Guerra de Titãs, Istoé
Dinheiro, 27 de março de 2002.
10
industrial foi de apenas 5% nesse período18, e que a área total de estabelecimentos
industriais não decaiu mas, ao contrário, cresceu 12,47% entre 1991 e 200019.
Mas é quanto ao suposto “surgimento” do chamado “terciário avançado” e sua
concentração nos novos “distritos de negócios”, como a festejada região da Marginal
Pinheiros, que os dados empíricos revelam uma situação ainda menos consolidada. De
fato, se selecionarmos, dentre o conjunto de atividades empresariais classificadas pelo
IBGE20, aquelas relacionadas ao “terciário avançado”21, veremos que essa região, tão
propagandeada como a nova “centralidade terciária” paulistana, na verdade não tem uma
concentração significativa de empresas do setor, e comparativamente perde em
importância para o centro de negócios surgido ainda na década de 70, a Avenida Paulista,
embora esta seja reiteradamente apontada pelo mercado como “em decadência”. Assim,
do total de empresas atuando na cidade no setor “terciário avançado”, apenas 3,46%
delas se situava, em 1999, na referida “centralidade global” da região da Marginal
Pinheiros22. Em compensação, apenas a Avenida Paulista, no mesmo ano, abrigava
2,20% das empresas do setor23.
Se considerarmos que as regiões da Paulista e da Marginal Pinheiros reúnem apenas
5,66% (3,46% + 2,20%) das empresas do "terciário avançado" da cidade de São Paulo,
cabe uma pergunta óbvia: onde estão as outras quase 95%? Espalhadas por toda a
cidade, e não concentradas em uma única “centralidade”. Em 1999, por exemplo, 1.187
empresas declararam a RAIS em são Paulo, sob a classificação "atividades de assessoria
em gestão empresarial", um ramo típico do que se entende por "terciário avançado". Pois
bem, essas 1187 empresas estavam localizadas em 619 endereços diferentes, apenas 11
delas (0,92% do total) estando na região da Marginal Pinheiros, enquanto que a avenida
Ipiranga sozinha, na região central, pouco associada à atividades “globalizadas”,
apresentava 13 registros. Em outro exemplo, na área de "consultoria em sistemas de
informática", contou-se 323 empresas declarantes, que se distribuem em 236 logradouros.
Ou seja, 73,7% dessas empresas estão dispersas em ruas diferentes. É verdade que,
neste caso, a "região da marginal Pinheiros" lidera a concentração de empresas, com 13
registros. Ainda assim, essas 13 empresas representam apenas 4 % do total. Da mesma
forma, a Paulista aparece com o maior número de registros em um mesmo logradouro,
porém apenas 11, ou seja 3,39% do total. O mesmo nível de espraiamento territorial se
verifica na análise para outros setores do “terciário avançado”, como "banco de dados",
"outras atividades auxiliares da intermediação financeira", e "processamento de dados".
A concentração do “terciário avançado” na região da Marginal Pinheiros mostra-se ainda
menos significativa quando se considera o total de empresas da cidade de todos os
setores econômicos. Neste caso, as empresas do “terciário avançado” representam
apenas 0,50% do total! Embora seja um setor que empregue bastante, ainda assim, o
número de postos de trabalho que essas mesmas empresas oferecem é de apenas
0,95% do total de empregos da cidade. Mais uma vez, a Avenida Paulista surge com uma
18
São Paulo (cidade), op.cit.
19
São Paulo (cidade). O uso do solo segundo o cadastro territorial e predial: distritos municipais de São Paulo
1991-2000. PMSP/Sempla, 2002.
20
Cadastro Nacional de Atividades Empresarias – Cnae-IBGE.
21
Trata-se de um conjunto de atividades de serviço às empresas com atuação global, que compreende, na
classificação proposta pelos autores citados, por exemplo, empresas de consultoria empresarial, informática,
consultoria jurídica empresarial, marketing, comunicação, etc.
22
Trata-se das avenidas Faria Lima, Berrini, Águas Espraiadas e Nações Unidas (Mg. Pinheiros), e de
algumas ruas transversais, assim como do bairro da Chácara Santo Antonio.
23
Dados analisados a partir do Cadastro Empregador – Município de São Paulo, RAIS/Caged – Cegetip-
Ministério do Trabalho e Emprego, in João Sette Whitaker Ferreira, op. cit.
11
força insuspeita para quem dá ouvidos aos rumores de sua “degradação”, com valores
próximos ao do conjunto de avenidas da região da Marginal Pinheiros (Ferreira, 2003).
Esses dados tornam-se ainda mais surpreendentes se verificarmos que entre os bancos e
as companhias de seguro, empresas-modelo da economia financeira globalizada, poucos
são aqueles, dentre os de maior porte, que escolheram a “centralidade terciária” da região
da Marginal Pinheiros para instalar suas sedes: dos 48 maiores bancos atuando no Brasil,
somente 7 têm suas sedes na região, e das 28 maiores companhias de seguro (de
tamanho suficiente para constar entre as 1000 maiores empresas do país em
faturamento), somente 3 estão lá instaladas.
Tais números evidenciam que, além da atividade do “terciário avançado” não estar
significativamente concentrada em áreas específicas, como supostamente ocorre nos
business districts norte-americanos, ela na verdade é muito menos importante, e até
quase insignificante – no que diz respeito ao seu número e aos empregos que geram – no
conjunto das atividades empresariais da cidade, do que supõem as teorias que defendem
a “cidade-global” e a “transição” econômica para o terciário. Mesmo quanto ao
faturamento, das mil maiores empresas atuando no Brasil, apenas 124, ou 12,4%, são do
“terciário avançado”, sendo todas as maiores do setor industrial. A verdade é que, no
contexto latino-americano de economias supostamente em fase de “globalização”, pelo
menos a cidade mais importante do continente não parece apresentar um fortalecimento
significativo dos modernos setores econômicos ligados à economia global, e com certeza
não de forma a justificar a enorme publicidade que vem sendo feita em torno do advento
da “cidade-global” paulistana.
12
Wilderode (2000), os fluxos de investimentos japoneses nos EUA passaram de cerca de
U$ 5 bilhões em 1970-71, para U$75 bilhões no período 1980-85 (Wilderode, 2000).
Além da desregulação das economias, David Harvey (1992) já mostrou que, quando há
crise de superprodução, da qual decorre uma queda nas taxas de lucros, ocorre uma
transferência de capitais ociosos do setor produtivo estagnado para o setor imobiliário,
que serve como escoadouro para os investimentos. A edificação do Empire State
Building, em Nova York, por exemplo, iniciou-se poucos meses antes do grande crack na
bolsa de 1929, e o hoje destruído World Trade Center, também em Nova York, assim
como a torre da Sears, em Chicago, as mais altas do mundo na época, também
começaram a ser construídas pouco antes da crise do petróleo do início da década de 70.
Isso ocorreu bem mais recentemente nas cidades da Ásia, quando a crise na economia
japonesa nos anos 80 levou os investidores daquele país a canalizarem seu capital no
setor imobiliário nos países próximos, promovendo o boom das cidades acima citadas.
Vale notar que, entretanto, nas cidades asiáticas, embora fique clara a relação entre a
economia global e o impulso imobiliário de escritórios, não ficou demonstrado que essa
dinâmica tenha de alguma forma promovido uma maior justiça social e urbana. As
intensas e aceleradas atividades imobiliárias em Bangkok, por exemplo, que levaram a
produção anual de escritórios a mais de um milhão de metros quadrados em 1994 e a de
apartamentos residenciais a mais de 150 mil unidades 24, aceleraram também a
valorização imobiliária em níveis astronômicos. A produção foi muito maior do que a
demanda no pequeno e subdesenvolvido país asiático, gerando uma “bolha especulativa”
que rapidamente estourou, com a quebra generalizada das empresas de incorporação.
Foi esse, aliás, o estopim da hoje famosa “crise asiática” que assolou a economia global
em 1997, tendo reflexos inclusive no Brasil. O aspecto nocivo desse tipo de atividade
imobiliária internacionalizada não se restringiu, porém, às economias subdesenvolvidas:
no final da década de 90, a falência da mega-incorporadora canadense Olympia & York,
em decorrência do fracasso empresarial do maior empreendimento da requalificação das
docas londrinas, em Canary Wharf, mostrou a fragilidade das “centralidades terciárias
globais” e da suposta demanda à qual elas supostamente responderiam.
Além disso, o caso londrino mostrou que as apostas dos mercados imobiliários em
projetos de renovação urbana em áreas centrais (que se tornaram modelos repetidos em
muitas cidades latino-americanas), sempre com o comprometimento de fundos públicos,
além de resultarem na expulsão das populações mais pobres do local e sua substituição
por camadas mais ricas (Ducher, 1989), trazem a contradição da crença em um "efeito
sinérgico" de alavancagem econômica em sociedades em crise, o que se reverteu, tanto
no caso de Bangkok como no de Londres, na falência de grandes incorporadoras.
Mas se nos casos acima comentados das cidades asiáticas é possível entrever, mesmo
que sem evidências de que tenha sido uma vantagem para elas, uma ligação entre a
economia globalizada e a produção imobiliária, esse argumento não pode ser usado para
reforçar a idéia da condição de São Paulo como uma "cidade-global". Isso porque apesar
da intensa propaganda sobre uma suposta internacionalização do setor imobiliário
terciário, o fato real é que os agentes mais atuantes são, na sua quase totalidade,
tradicionais incorporadores locais.
Mesmo a presença de importantes empresas transnacionais no “distrito de negócios” da
marginal Pinheiros não é indicativa de nada. Uma análise mais detalhada mostrou que
mais de 95% das empresas pesquisadas na região são apenas locatárias, incluindo-se ai
24
À guisa de comparação, em 1996, um ano em que o mercado esteve especialmente aquecido, a média de
lançamentos de habitações no mercado formal na cidade de São Paulo foi de 30.000 unidades (fonte:
EMBRAESP).
13
as maiores multinacionais. Tais empresas pouco ou nada participam do processo de
incorporação e produção imobiliária, podendo inclusive retirar-se da região e do país com
relativa agilidade. Mesmo no que diz respeito à incorporação, durante a década de 90,
das mega-obras terciárias que tornaram a região famosa, como o Centro Empresarial
Nações Unidas, o World Trade Center ou o Shopping D&D, o capital envolvido era
essencialmente nacional, oriundo de fundos de pensão nacionais25, a maior parte deles de
empresas públicas, em função de regulamentações mais permissivas quanto à variedade
dos investimentos desses fundos. Os empreendedores e construtores locais, estimulados
por uma nova linha de financiamento abundante por parte dos fundos – cujos critérios de
decisão de investimentos em determinadas obras e localidades foram em muitas ocasiões
criticados pela sua falta de transparência – especializaram-se num novo e mais dinâmico
setor de incorporação, voltado para o imobiliário comercial e de serviço, pois eram os que
mais garantiam retorno e rentabilidade aos fundos.
No ramo hoteleiro, a sensação de internacionalização é exacerbada pelo fato de que os
empreendedores trabalham com bandeiras, autorizações para uso de marcas
estrangeiras, o que aliás ocorreu também no caso do World Trade Center, cujo vínculo
com o homônimo norte-americano é apenas de direito de uso do nome. Hotéis
freqüentemente citados como exemplos da internacionalização do setor, como Meliá,
Blue Tree ou Renaissance, são empreendimentos tocados por empresários nacionais,
embora a mídia construa freqüentemente imagem contrária. A revista Veja de 4 de julho
de 2001 trazia um artigo cujo sub-título era claro: "grupos estrangeiros investem bilhões
de dólares e melhoram a qualidade da hotelaria no Brasil". O texto que seguia era um
enaltecimento à abertura liberal e seus efeitos sobre o ramo hoteleiro e a produção
urbana: "A abertura do mercado, que operou transformações significativas em vários
setores, livrou a hotelaria nacional do cheiro de mofo". A situação, em alguns casos, beira
o inadmissível: o Hotel Renaissance, por exemplo, um dos mais festejados ícones da
“cidade-global”, era um empreendimento da brasileira Encol, financiado pela Caixa
Econômica Federal. Com a falência da Encol, a Caixa repassou as ações para o Funcef,
fundo de pensão do banco, para fugir do constrangimento de termos um dos mais
sofisticados hotéis da cidade nas mãos de um banco estatal cujo papel deveria ser o de
prover financiamento para a habitação social no Brasil.
Já no meio da década de 90, alterações nas regras dos fundos de pensão os levaram a
diminuir novamente seus investimentos no setor imobiliário. Paulatinamente, foram
substituídos por fundos de investimentos imobiliários, também nacionais, que agrupam
atualmente pequenos e médios investidores pulverizados, muitas vezes individuais. Esse
é aliás um dos meios de financiamento de parte dos novos hotéis destinados a atender à
demanda dos homens de negócios da economia globalizada, inclusive alguns de redes
internacionais, como a francesa Accord, que embora citada na Veja como um exemplo da
internacionalização do setor, financia dessa maneira suas unidades Íbis e Fórmula 1.
Por outro lado, a presença de algumas empresas estrangeiras atuando no país no ramo
de consultoria imobiliária também ajudou a difundir a idéia da "internacionalização" do
setor. Entretanto, empresas como a CB Richard Ellis ou a J.L. La Salle, e outras do
25
É relativa até mesmo a idéia, defendida por alguns autores, de que o surgimento de mega-obras terciárias
é fruto de uma “financeirização” do setor imobiliário, mesmo que em escala interna. A participação dos fundos
de pensão no setor, na década de 9º, foi resultado muito mais da flexibilização de algumas regulamentações
de controle da ação dos fundos, do que a sua entrada consciente no setor, em busca de alguma lucratividade
diferenciada. Esse fenômeno durou pouco, reverteu-se com novas alterações nas regulamentações, e é
consenso entre muitos especialistas da área que o setor financeiro tem pouco ou nenhum interesse no
mercado imobiliário, tido aliás como por demais desorganizado, pouco lucrativo e de risco considerável. Essa
é uma das razões, aliás, pelas quais não se consegue, no Brasil, alavancar um mercado secundário de
financiamento habitacional por um mercado hipotecário e securitizado como ocorre, por exemplo, nos EUA.
14
mesmo ramo, são apenas gerenciadoras e consultoras imobiliárias, a maioria atuando no
país há décadas, e não fazem incorporação ou construção.
Isso não significa dizer que não esteja ocorrendo atualmente alguma internacionalização
do setor imobiliário. Uma importante construtora norte-americana vem atuando na cidade
há alguns anos, promovendo incorporações de peso, e alguns poucos hotéis estão se
implantando com o aporte de financiamentos externos. Vale observar, entretanto, que
estamos falando de um movimento ainda incipiente, que ocorre quase uma década depois
que o discurso da “cidade-global” tenha começado a ser construído. A verdade é que não
se pode ainda considerar uma efetiva globalização dos fluxos de financiamento imobiliário
em São Paulo, fato corroborado por especialistas do setor consultados. Segundo a
pesquisa PAEP/Seade: "[a participação estrangeira] no caso da construção civil, é
praticamente inexistente, urna vez que as empresas de capital exclusivamente nacional
são responsáveis por mais de 97% da receita bruta" (Comin, 1999).
26
Adota-se aqui a definição marxista do termo, retomado no Brasil por Marilena Chauí, e no caso urbano, por
Flávio Villaça: a ideologia é a construção e difusão de uma versão da realidade que não é obrigatoriamente
verdadeira, mas que interessa às classes dominantes para reforçar sua hegemonia.
27
Embora as associações de moradores das áreas exclusivamente residenciais tenham significativo poder de
mobilização e reivindicação, até mesmo pela sua situação social privilegiada e seu conseqüente poder de
pressão e de inserção na mídia, e consigam, apenas dentro dos limites da cidade formal, alavancar disputas
significativas contra as forças do mercado imobiliário.
15
na cidade. Vale sempre lembrar que, "global" ou não, estamos tratando de uma cidade
que mantém quase 4 milhões de habitantes na informalidade habitacional.
Entretanto, a idéia de uma coalizão entre as elites imobiliárias e o Poder Público para
promover o crescimento da cidade nos vetores que lhes interessem tem paralelos
indiscutíveis na dinâmica da produção do espaço paulistano, quando se trata,
obviamente, da construção da cidade formal, e não das periferias esquecidas. Também
aqui em São Paulo, verifica-se historicamente um significativo favorecimento ao vetor
sudoeste na aplicação dos investimentos públicos em infra-estrutura urbana, privilegiando
as elites em seu deslocamento pela cidade, e promovendo uma importante valorização
fundiária e imobiliária, cuja rentabilidade é evidentemente apropriada por essas mesmas
elites. Esse processo, já apontado por vários autores (Villaça, 2000; Campos Fº, 1989),
envolve especulação imobiliária associada à uma inversão de prioridades na alocação
dos investimentos públicos, que se concentram nos bairros de elite em detrimento das
periferias muito mais necessitadas. Assim, em um exemplo do patrimonialismo brasileiro,
pelo qual o Estado mantém uma perversa proximidade com as elites hegemônicas, os
fundos públicos urbanos se tornaram objeto da disputa entre setores dominantes.
É exatamente esse processo que ocorre no setor imobiliário de escritórios. Várias "frentes
imobiliárias", todas atuando dentro desse vetor privilegiado, disputam entre si a captação
de recursos públicos que favoreçam a valorização de sua área. Nesse contexto, os
grupos interessados em promover determinado setor organizam-se para fazer a devida
pressão e lograr uma coalizão com o poder público que garanta a vinda dos investimentos
desejados. Essas “máquinas de crescimento” contam com a participação de
empreendedores imobiliários, políticos interessados nos dividendos eleitorais das obras e
em alguns casos nas possibilidades de ganhos escusos, e de alguns festejados
arquitetos, que não só se beneficiam financeiramente das grandes obras, como
alimentam sua publicidade no circuito fashion desse setor profissional, ganhando mais
clientes e contratos. Nesse processo, a justificativa da “cidade-global” como instrumento
necessário para a “modernização” da cidade nestes novos tempos “globais” torna-se um
discurso poderoso.
O Centro, a Avenida Paulista, a região da Marginal Pinheiros, cada uma delas tem sua
organização de empreendedores imobiliários – às vezes até associações –, empenhadas
na mesma tarefa de atrair para si os fundos públicos que poderão garantir a
"revitalização" (entenda-se, a revitalização do valor fundiário e imobiliário) de suas áreas.
Sob o argumento, às vezes bastante forte, de que cada uma dessas regiões, por razões
diversas, esteve ou está "abandonada", e por isso "degradada" e merece seu quinhão de
investimentos públicos, cada um desses grupos irá atuar junto ao Estado para fazer valer
seus interesses, utilizando-se sempre do argumento de que cada uma é a melhor região
para representar a “cidade-global” conectada ao capital globalizado.
Nesse processo, as periferias excluídas, que demandam por investimentos públicos em
infra-estrutura, continuam dramaticamente sem receber atenção, quando a situação
demandaria uma completa reversão das prioridades desses investimentos, quase
cessando os fluxos para as áreas mais privilegiadas. A gravidade da situação da
população excluída exige um congelamento dos privilégios às áreas abonadas, tal o
volume de investimentos demandado para reverter o quadro de pobreza existente.
Enquanto isso não ocorrer, teremos a continuação do processo histórico de valorização e
re-valorização da cidade formal – através das intervenções urbanas nas áreas
“degradadas” para a construção de “centralidades terciárias” – que expulsa a população
pobre para sempre mais longe. O recente concurso do “Bairro Novo” mostrou como esse
procedimento está enraizado até mesmo nas mentes dos nossos planejadores: em uma
16
área vazia, central, de cerca de um milhão de metros quadrados, o Poder Público pouco
atentou, no edital do concurso, para a necessidade de exigir um número significativo (pelo
menos 30%) de habitações sociais. O resultado foi a premiação de projetos que quase
não as consideraram, porém previram pesados investimentos públicos – inclusive
enterrando uma linha férrea – que só servirão para valorizar ainda mais a área, para a
felicidade de seus proprietários, que viram-se “premiados” por terem deixado seus
terrenos vazios por anos, contrariamente ao Estatuto da Cidade. Sintomaticamente, a
Prefeitura já anunciou a primeira obra a ser feita na área: a construção de um hotel com
centro de convenções na Avenida Matarazzo28.
Mas na competição entre empreendedores para canalizar investimentos para sua “frente
imobiliária”, é a região da Marginal Pinheiros que vem levando vantagem. Em março e
junho de 1995, respectivamente, foram aprovadas na Câmara Municipal duas importantes
Operações Urbanas, as da Nova Faria Lima e da Águas Espraiadas, ambas
"coincidentemente" situadas em pontos estratégicos dessa "frente imobiliária". O papel
das Operações Urbanas e as obras delas decorrentes no favorecimento direto aos
empreendedores foi naturalmente assimilado pelos setores ligados à produção da cidade,
como mostra um insuspeito artigo da revista Projeto Design 29 de 2001, comentando os
projetos hoteleiros empreendidos pelo Sr. Alcides Diniz no terreno que é hoje da Rede
Globo: "o fator fundamental para que construções no terreno se materializassem... foi a
abertura da avenida Águas Espraiadas, vizinha ao lote".
Como pela lei os recursos arrecadados nas Operações Urbanas com a venda de solo-
criado devem ser exclusivamente aplicados na melhoria da infra-estrutura viária da
própria área da operação, têm-se a impressão de que as avenidas saem "de graça" para
a cidade, financiadas pela iniciativa privada. Entretanto, se a operação urbana se propõe
a "vender" solo-criado para arrecadar fundos para a melhoria viária, estima-se que ela só
possa ser feita em áreas onde o mercado tenha interesse em comprar, sem o que a
operação torna-se, no jargão do mercado, um "mico". Assim, as decisões de políticas de
planejamento urbano acabam subordinando-se aos interesses do mercado e, para evitar
“micos”, o Poder Público acaba tendo de fazer investimentos prévios para sinalizar ao
mercado que a área valerá o investimento. E esses investimentos nunca são computados
nos custos das operações, evidentemente. Somente na gestão Paulo Maluf (1993-1996),
a região da Faria Lima e da Marginal Pinheiros recebeu, em cerca de três anos, pouco
mais de R$ 4 bilhões em obras, a maioria municipais30.
Corroborando o fato de que são governos conservadores e comprometidos com os
interesses das elites que geralmente patrocinam esses processos, Marques e Bichir
(2001) mostram que as gestões Maluf e Pitta foram as que mais se empenharam em
patrocinar investimentos de valorização das "frentes imobiliárias", destinando às áreas
das classes altas 50% dos recursos da Secretaria de Vias Públicas. Segundo Nobre, "a
Secretaria de Vias Públicas recebeu no primeiro quadrimestre de 1995 quase a metade
do orçamento da prefeitura (46%), enquanto a área social, da habitação, da educação, da
saúde e bem-estar juntas receberam 21% (Jornal da Tarde, 1995)" (Nobre, 2000).
Entretanto, a força ideológica do argumento da necessidade da construção da “cidade-
global” parece ser tanta que mesmo gestões “populares” continuam promovendo-a: além
28
O Estado de S. Paulo, 26 de setembro 2004. Agradeço ao prof. Nuno Fonseca pela indicação.
29
do jornalista Adilson Melendez, Projeto-Design nº 255, maio de 200.
30
Trata-se das obras de construção dos túneis sob o Rio Pinheiros e o parque do Ibirapuera, de melhoria da
Avenida Juscelino Kubitschek, de canalização do córrego Águas Espraiadas e construção de avenida do
mesmo nome, e da melhoria dos trilhos, construção de novas estações e importação de novos trens com ar
condicionado na linha de trem urbano ao longo do Rio Pinheiros, que serve justamente a “centralidade
terciária”.
17
do citado “Bairro Novo”, tivemos recentemente em São Paulo novos túneis – só para
carros – abertos na área da Avenida Faria Lima, que também beneficiou-se com um
concurso para a “reconversão urbana” do popular Largo da Batata para moldes
arquitetônicos mais adequados à “moderna” avenida terciária.
O que impressiona é que, ao contrário do propagandeado, a Operação Urbana Faria Lima
não se pagou – mesmo só considerando as obras da avenida – com os recursos que
gerou com a outorga onerosa. O custo previsto das obras a realizar na área da operação
era, segundo documento da Sempla de dezembro de 2000, de US$ 150 milhões,
incluindo US$ 120 milhões para as desapropriações, o que daria, em valores de outubro
de 2002, o montante de R$ 378.116.275,2031. No final de 2000, a Sempla anunciava ter
arrecadado U$ 42 milhões, ou seja, R$ 105.872.557, em valores de outubro de 2002,
apenas um terço do necessário para cobrir os gastos. Cerca de um ano depois, em
setembro de 2001, já na gestão Marta Suplicy, documento do grupo de estudo formado
para analisar a operação urbana32 dava conta de uma arrecadação de 217.229.987
UFIRs, correspondente a R$ 275.294.020,30 em valores de outubro de 2002. Percebe-se
um déficit, se acreditarmos nos documentos oficiais, entre os gastos com as obras viárias
(R$ 378.116.275,20) e o capital arrecadado com a venda de solo-criado (de R$
275.294.020,30), de mais de cem milhões de reais!
Além disso, para efetuar as melhorias viárias na área da operação, é necessário
promover uma série de desapropriações. Embora seus custos sejam oficialmente
computados nos valores acima mencionados, também não é dito que essas
desapropriações geram inúmeros processos contra a prefeitura, e conseqüentemente, um
significativo volume de precatórios que, em compensação, não entram na soma final. No
caso da Operação Urbana Faria Lima, nem mesmo uma Comissão Parlamentar de
Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo, no ano de 2002, foi capaz de definir o total
específico das dívidas relativas às desapropriações na avenida. Em entrevista à Revista
Istoé, em 16 de maio de 2001, o então Secretário de Finanças do Município, o economista
João Sayad, declarou que o total de precatórios devidos pelo município estaria em torno
de R$ 4,5 bilhões. Segundo informações reservadas da mesma secretaria, desse total, de
2,5 a 3 bilhões seriam referentes a cerca de 3000 precatórios relativos à desapropriações.
Sabendo que na avenida Faria Lima ocorreram cerca de 400 desapropriações, e que os
cerca de 3000 precatórios relativos a desapropriações somariam cerca de R$ 3 bilhões
(em valores de maio de 2001), uma regra de três indicaria que seria de cerca de 400
milhões de Reais o montante devido em processos de desapropriação na avenida. Em
valores de outubro de 2002, teríamos então, a acrescentar aos 100 milhões dos custos de
obra não cobertos, mais um montante de R$ 497,45 milhões. No total, a operação Urbana
Faria Lima, apesar do discurso de que ela "se pagaria" através da parceria com a
iniciativa privada, custou aos cofres públicos, até aqui, mais de meio bilhão de reais! Isso
sem contar os custos de túneis sob o Parque do Ibirapuera e do Rio Pinheiros, e da
renovação da avenida JK, que estranhamente não entram na soma dos custos da
Operação Urbana, apesar de serem adjacentes a ela, e promoverem ainda mais
valorização na área.
Como era de se esperar, foi a região da Vila Funchal, diretamente beneficiada por essas
obras, a que mais cresceu em área construída de escritórios no final da década de 90. Na
31
São Paulo (cidade). Operação Urbana Faria Lima. PMSP/Sempla, 2000/2001, pg.7. Atualização dos valores
para novembro de 2003 pelo índice IGP-DI, segundo fatores de conversão FUNDAP, Indicadores DIESP, São
Paulo, v.11, n º 92, set/nov. 2002. Válido para todos os cálculos do parágrafo.
32
Sempla – Diretoria de Projetos Urbanos. Estudo para fixação de critérios e procedimentos de referência
para propostas interessadas à área indiretamente beneficiada da Operação Urbana Faria Lima. Grupo de
Trabalho inter-secretarias, criado pela portaria 131 do Gabinete da Prefeita, Setembro de 2001.
18
outra ponta da avenida, um artigo do jornal O Estado de S.Paulo de 25/06/95 não deixa
dúvidas quanto aos benefícios pouco “globais” que a valorização da região significava: "A
região do Largo da Batata, dominada por casas simples e comércio popular, terá
valorização mínima de 100% quando as obras da Faria Lima estiverem concluídas. Entre
os proprietários que vão se beneficiar com a explosão imobiliária da área está o
advogado e empresário Calim Eid, coordenador de duas campanhas eleitorais de Paulo
Maluf, e que tem pelo menos 20 imóveis na região"33.
Abertura de avenidas, de túneis de utilidade discutível, modernização de linhas e
estações de trens, interligações viárias entre bairros de negócios, entre esses bairros e o
aeroporto, são alguns dos exemplos de como se canalizam investimentos públicos que
sorrateiramente servirão de combustível para se vender a imagem onipotente da "São
Paulo Cidade-Global", permitindo a construção de hotéis, “edifícios inteligentes” e outras
mega-obras terciárias que só irão beneficiar os mesmos e arcaicos grupos de investidores
imobiliários locais.
Mais do que globais, as dinâmicas que dirigem a produção da cidade de São Paulo são a
representação do mais arcaico patrimonialismo, ou seja, da apropriação do público pelos
setores privados dominantes, em prol de seus próprios interesses. No Brasil, em todos os
momentos em que se colocou um contexto de construção autônoma de um capitalismo
voltado para dentro, as elites nacionais optaram sistematicamente pela re-imposição de
sua hegemonia interna, promovendo a expatriação dos excedentes (Deák, 199X). Em
outros países periféricos, a ausência de uma indústria nacional minimamente significativa
relegou às elites um papel de simples coadjuvante interno dos agentes do comércio
internacional, Aqui, pelo contrário, a reiterada aliança estratégica da burguesia com o
capital internacional consolidou uma economia dependente, mas que permitiu
internamente uma total e onipotente hegemonia das elites na consolidação de uma
sociedade estruturalmente desigual (Sampaio Jr., 1999). O discurso da globalização, foi
incorporado pelas elites como o instrumento mais apropriado, no novo contexto do
capitalismo financeiro, para perpetuar uma nova imposição de incorporação dos
progressos técnicos do capitalismo hegemônico que somente a ela beneficiará e lhe
garantirá a manutenção de sua hegemonia interna. Nas cidades, e em especial na
suposta ”cidade-global” de São Paulo, aplica-se ideologicamente uma matriz de
"modernidade" que não tem nenhuma intenção de enfim tentar superar a desigualdade
estrutural herdada de nossa matriz colonial. A continuar assim, nunca se responderá à
demanda por soluções que promovam enfim uma cidade socialmente justa.
Referências Bibliográficas
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proceso urbano-regional. Madrid, Alianza Editorial, 1995.
33
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