Estruturas Psicanaliticas Completo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 107

ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS

AULA 2

Profª Juliana Santos


CONVERSA INICIAL

Nesta etapa, vamos dar continuidade ao tema do diagnóstico diferencial


da clínica psicanalítica. Para a psicanálise, o que lhe interessa, de fato, são as
estruturas que constituem os fenômenos. Portanto, ao estabelecer um
diagnóstico diferencial, como propôs Freud, estamos falando de uma ruptura
com a psiquiatria que apresenta a cada nova edição do manual uma descrição
nosográfica ampliada para estabelecer um diagnóstico. Assim, para pensarmos
sobre a constituição estrutural que orienta o diagnóstico da clínica psicanalítica,
temos que retomar os pensamentos iniciais de Freud.
Freud, no Projeto para uma psicologia científica (1895), nos apresenta a
fundação do aparelho psíquico através da primeira experiência de satisfação,
onde a relação mãe-filho é uma fonte contínua de excitação e satisfação sexual
que se intensifica a cada toque e faz despertar, na criança, a pulsão sexual. E é
dessa relação primitiva e arcaica, na qual a criança se considera o objeto de
amor exclusivo dessa relação, que Freud extrai o complexo de Édipo, como
sendo, este, o fundamento da fantasia do sujeito, pois, como afirma Nasio (2007)
na abertura de seu livro Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa:
“não, o Édipo nada tem a ver com sentimento e ternura, mas com corpo, desejo,
fantasias e prazer. Provavelmente, pais e filhos amam-se ternamente e podem
se odiar, mas, no coração do amor e do ódio familiar, medra o desejo sexual”.
São, portanto, os efeitos da vivência edípica no psiquismo que, quando
recalcado, desmentido ou foracluído, vão traçar o destino do sujeito e posicioná-
los dentro ou fora da partilha dos sexos. Então, para esta aula, iremos nos deter
de forma minuciosa sobre a teoria do complexo de Édipo que foi formulada por
Freud em 1900 e que, desde então, sustenta a sua tese sobre a constituição
psíquica, visto que o complexo de Édipo é o complexo nuclear da constituição
das neuroses, como também da sexualidade humana.

O Édipo é a experiência vivida por uma criança de cerca de quatro anos


que, absorvida por um desejo sexual incontrolável, tem de aprender a
limitar seu impulso e ajustá-lo aos limites de seu corpo imaturo, aos
limites de sua consciência nascente, aos limites de seu medo e,
finalmente, aos limites de uma lei tácita que lhe ordena que pare de
tomar seus pais por objetos sexuais. Eis então o essencial da crise
edipiana: aprender a canalizar um desejo transbordante. No Édipo, é a
primeira vez na vida que dizemos ao nosso insolente desejo: “Calma!
Fique mais tranquilo! Aprenda a viver em sociedade!” Assim,
concluímos que o Édipo é a dolorosa e iniciática passagem de um

2
desejo selvagem para um desejo socializado, e a aceitação igualmente
dolorosa de que nossos desejos jamais serão capazes de se satisfazer
totalmente. (Nasio, 2007, p. 10)

TEMA 1 – O ÉDIPO REI

A peça do Édipo rei foi a inspiração de Freud para a sua teoria do


complexo de Édipo. A peça retrata a história do jovem Édipo que, em dúvida
quanto à sua origem, vai em busca de um oráculo. Este, lhe adverte sobre o seu
destino e profetiza dizendo que Édipo mataria o seu pai e se casaria com a sua
mãe. Horrorizado com a fala do oráculo, Édipo abandona sua cidade em Corinto,
onde vivia com seus pais Pólibo e Peribéia, e vai em direção a Tebas, a fim de
evitar o cumprimento da tão sinistra profecia enunciada pelo oráculo.
No caminho para Tebas, Édipo se envolve numa briga com um
desconhecido, tendo como resultado a morte do homem. Prosseguindo seu
caminho, encontra-se com uma Esfinge às portas de Tebas, que lhe propõe um
enigma, pelo qual, se Édipo o decifrasse, a cidade se livraria da peste que a
assolava, caso contrário, seria devorado. Tendo decifrado o enigma, Édipo é
acolhido como herói, recebendo em troca o trono de Tebas, que estava vago
devido à morte do rei Laio. Juntamente com o trono, Édipo recebe a mão da
rainha Jocasta.
Com o passar do tempo, a cidade passa a ser assolada por uma nova
peste, onde os sacerdotes declaram que o motivo da peste vinha por conta de
um acolhimento dado a um culpado. Desse modo, enquanto o culpado se
mantivesse encoberto, a peste seguiria dizimando a população.
Édipo ordena, então, que houvesse uma investigação em busca do
culpado. No transcorrer da investigação, eis que na cidade chega um adivinho,
vindo de Tirésias, e ele dá indícios de que o culpado seria ninguém menos que
o próprio Édipo. Ao final, depois da revelação de que Édipo seria um filho
adotado por Pólibo e Peribéia, fica evidente que seus verdadeiros pais são Laio
e Jocasta. Com isso, a trágica verdade emerge: rei Édipo, parricida e incestuoso.

1.1 A tese do complexo de Édipo

Antes mesmo de publicar a sua tese do complexo de Édipo na


Interpretação dos sonhos, Freud, em 1987, já havia abordado o tema com Fliess,
seu amigo de correspondências, porém vale ressaltar que a construção

3
conceitual do complexo de Édipo como operador clínico foi elaborado ao longo
de toda a sua obra.
Édipo assassinou o seu pai e casou-se com a sua mãe e, para Freud, o
efeito trágico da peça se efetua ao ecoar nos espectadores o reconhecimento de
seus desejos criminosos, a saber: o assassinato do pai e o incesto com a mãe.
Garcia Roza, em seu livro Introdução à metapsicologia Vol. II (2008), enfatiza
que a verdade do parricídio e do incesto só emerge para Édipo no final do
processo, pois entre a certeza do rei Édipo (ser herói) e a verdade do criminoso,
interpõe-se um processo que transforma o primeiro momento no segundo, sendo
este o produtor-revelador da verdade de Édipo.
Em primeiro lugar, para Freud, o complexo de Édipo vem vinculado à
interdição do incesto, diferentemente do que ocorreu na peça, onde após
assassinar o pai, Édipo casa com a mãe e tem quatro filhos. Mas o que se segue
da peça mostra que Édipo, ao descobrir seu ato incestuoso, fura seus olhos, se
autocegando, o que, para Freud, configura-se uma punição, que equivale ao que
ele nomeou de castração, uma consequência lógica da vivência edipiana.
O mito de Édipo forneceu a Freud a estrutura de um desejo criminoso que
se articula a uma proibição de um impossível de ser suportado. Por outro lado,
por se tratar de um desejo, o sujeito se divide — rejeitando na consciência o
desejo proibido e conservando no inconsciente, “entre não querer saber e um
saber que não cessa de se escrever”, como declara Quinet em seu livro Édipo
ao pé da letra (2015).
Portanto, a condição de não saber do Édipo é a condição legitima do
inconsciente, enquanto saber não-sabido, isto é, o saber inconsciente do qual o
sujeito não quer conscientemente saber. Assim, o destino do complexo de Édipo
tende sempre ao recalque, que resulta, como veremos, em algumas
consequências psíquicas.

TEMA 2 – O COMPLEXO DE CASTRAÇÃO

Freud (1924) explica a relação do complexo de Édipo com o complexo de


castração nos textos A organização genital infantil e A dissolução do complexo
de Édipo. No primeiro texto, Freud apresenta a primazia do falo como
característica da organização sexual infantil, onde o órgão genital masculino
representa o falo. Freud então instaura a fase fálica no desenvolvimento sexual,

4
onde explica que o pênis está em posse comum a ambos os sexos, portanto, o
falo é universal.
Mas com o surgimento da imagem “acidental” do órgão genital feminino,
faz emergir a primeira negação da falta de pênis e, posteriormente, a conclusão
de que ele esteve lá, mas foi arrancado. Assim, para o menino, ele conclui que
ele também pode ser castrado (ameaça de castração).
Para a menina, a visão do pênis faz com que repare na sua falta
(castrada). Dessa forma, Quinet (2015) declara: “Doravante, o falo imaginário,
objeto ameaçado de perda para um, e objeto de inveja para outro, é inscrito na
subjetividade, para ambos os sexos como faltante (-). Nesse momento, que
representa o declínio do Édipo para os meninos e a entrada no drama edípico
das meninas, Freud estabelece o surgimento do supereu, como o herdeiro do
complexo de Édipo, cujas exigências serão paradoxais, pois ao mesmo tempo
que exige que se cumpra a lei, ordena a sua transgressão. Veremos isso adiante.
Mas o que precisamos destacar por ora é que tal momento que constitui
o complexo de castração é o momento de instauração da lei, pois, em termos, é
a ameaça a castração que valida a vivência edipiana e funda a relação do ser
humano através da interdição universal, a lei do incesto.

2.1 O efeito trágico da epopeia edipiana

No texto Para além do princípio de prazer, Freud (1920) retoma a


dimensão trágica do Édipo para mostrar que na repetição transferencial e nas
relações amorosas, o que se repete é o que se encontra na própria estrutura do
complexo de Édipo, que se conjuga com o complexo de castração, onde Quinet
sublinha o “ser-para-o-sexo”:

O laço da afeição, que via de regra liga a criança ao genitor do sexo


oposto, sucumbe ao desapontamento, a vã expectativa de satisfação,
ou ao ciúme pelo nascimento de um novo bebê, prova inequívoca da
infidelidade do objeto da afeição da criança. Sua própria tentativa de
fazer um bebê, afetuada com trágica seriedade, fracassa
vergonhosamente. A menor quantidade de afeição que recebe, as
exigências crescentes da educação, palavras duras e um castigo
ocasional mostram-lhe por fim toda extensão do desdém que lhe
concederam. (Freud citado por Quinet, 2015, p. 30)

5
Trata-se da experiência que está para além do princípio do prazer, o gozo
oriundo daquilo que escapa a simbolização do complexo de Édipo, que mais
tarde Lacan textualiza pelo não inscrição da relação sexual.

TEMA 3 – TOTEM E TABU

Na peça grega Édipo rei, o assassinato do pai permitiu o gozo à mãe,


mesmo que tenha sido preciso pagar o preço dos olhos furados (castração real
no corpo). Anos depois, Freud elabora o texto de Totem e tabu (1913-14), onde
demonstra a interdição universal ampliando a discussão sobre o complexo de
Édipo, projetando-o no âmbito social.
Esse texto, segundo Quinet, é mais adequado do que o mito de Édipo,
pois, como vimos, o próprio Édipo não tinha o complexo de Édipo. Em Totem e
tabu, o pai da horda primitiva retinha o gozo total de todas as mulheres, enquanto
seus filhos eram proibidos de gozar sexualmente delas. O gozo do pai primitivo
era absoluto, e ameaça de castração os outros homens, pois ele era o único que
podia gozar, já que seu gozo estava excluído de interdição.
Certa vez, movidos pelo ódio da proibição, os filhos em comum acordo
assassinam o pai gozador. No entanto, depois do pai assassinado, os próprios
filhos restauram a interdição da endogamia e erguem um totem que simbolizava
o pai morto, erigindo a interdição do incesto, ou seja, não se goza com a mulher
do pai, esteja ele vivo ou morto. Nesse mito, verificam-se duas figuras do pai: o
pai gozador e o pai morto, que após a sua morte assume a função do pai
simbólico.
Freud, então, ressalta no texto a importância do assassinato do pai da
horda para que todos pudessem ter acesso ao gozo, mas não ao gozo supremo,
pois, com o pai morto, o acesso ao gozo supremo também foi excluído.
Quinet (2015) afirma que tanto na tragédia do Édipo rei, onde o parricídio
permite o gozo à mãe ao preço da castração no real do corpo (os olhos furados),
quanto no parricídio do pai da horda, onde se erige um totem que o representa
e reafirma que o gozo supremo está barrado para o sujeito, é a função do pai,
enquanto morto, ou seja, enquanto função simbólica, que faz barra o gozo da
mãe, pois o sentimento de culpa é que faz vigorar o olhar de vigilância e a voz
que critica sob a forma do supereu. Diz:

6
O gozo do pai desaparece com a sua morte e fica a Lei da interdição
do incesto e o nome (substituto do pai que é um animal) como
significante da lei e insígnia identificativa daquela “tribo”. Assim, o
Nome-do-Pai elaborado por Lacan a partir do mito de totem e tabu
nomeia o pai da lei e o pai da nomeação (função que Lacan atribuirá
ao Nome-do-Pai nos anos 1970). (Quinet, 2015, p. 26)

O pai é o personagem que ameaça com a castração para punir o sujeito


pelo desejo incestuoso. Quinet (2015) apresenta as articulações propostas por
Freud na seguinte ordem: 1º - desejo sexual com a mãe; 2º - ameaça da punição-
castração; 3º - desejo de assassinar o pai. Lacan, ao incidir sobre a teoria do
complexo de Édipo e o mito de totem e tabu, acrescenta que o pai é o portador
da lei, não só para proibir o incesto, mas o pai da Lei simbólica que funciona no
psiquismo com o significante do Nome-do-Pai, que articula a Lei e desejo [lei (do
pai) e desejo (pela mãe)].
Para além da lei civilizatória imposta pela figura do pai, como pai
simbólico, Lacan pontua que o pai de Totem e tabu é o pai gozador que submete
todos a seu poder. Tal representação constitui a figura do pai real que, em Freud,
recebe o nome de supereu, instância herdada pelo filho.

TEMA 4 – A RELEITURA DO ÉDIPO EM LACAN

A leitura que Lacan faz do complexo de Édipo rende novos horizontes


para a clínica, pois ele coloca o Édipo no centro do diagnóstico estrutural, isto é,
o complexo de Édipo surge como divisor de águas entre o campo da neurose e
psicose, isso significa que, sem o complexo de Édipo, o sujeito responderá a
partir da foraclusão do Nome-do-Pai.
O Édipo em Lacan corresponde, então, a uma primeira metaforização, do
desejo materno, pois como vimos em Freud, a mãe e o bebê inicialmente vivem
uma relação plena de amor, com a incisão da lei do pai, o bebê se separa da
mãe, e esse momento representa a entrada do sujeito na linguagem. Desse
modo, verificaremos que os desdobramentos do complexo de Édipo nos ensinos
de Lacan implicarão o sujeito na sua relação com o seu desejo, situando-o na
partilha dos sexos.
É, então, no seminário 5, As formações do inconsciente (1958), que Lacan
traz à tona o que sempre esteve na mira de Freud, a função do pai. O pai, como
um registro imaginário, tem a função de sustentar a lei simbólica através do
significante do Nome-do-Pai, interditando o gozo da mãe. Assim, Lacan nos

7
ensina a ler o Édipo pela “metáfora paterna” uma operação lógica dos
significantes que terá como resultado a inscrição do Nome-do-Pai no lugar do
Outro.

4.1. A metáfora paterna

A metáfora paterna é o modo como Lacan nos ensina a ler o


acontecimento edipiano. Em primeiro lugar, verificamos a preeminência do
simbólico sobre o imaginário e o real, e reordenando o campo das estruturas
clínicas.
A função simbólica do pai é apreendida pela linguagem, onde o pai se
transforma num significante que Lacan nomeou de Nome-do-Pai. O momento
fecundo que institui essa constituição pode ser pensado através do mito
freudiano de Totem e tabu, onde o pai morto provoca uma dívida simbólica, que
liga o sujeito a vida e a lei, destaca Antonio Quinet (2015).
Desse modo, a função paterna evocada por Lacan não é a do pai genitor,
e sim a função simbólica do significante do Nome-do-Pai que representa a lei
simbólica no lugar do Outro.
A importância do simbólico como um registro na organização psíquica é
abordada por Lacan no seminário 3, As psicoses (1956), onde a função da
estruturação da cadeia significante é destacada pelo seu arranjo especifico, que
operar por meio da metáfora. Ou seja, a metáfora opera pela lei de linguagem,
portanto, ela não ocorre por qualquer arranjo de significante, é preciso de um
vínculo posicional, internos ao significante, para que haja ordem das palavras e,
assim, gere um fundamento de sentido. Assim, é apenas por esse sentido, que
ordena a cadeia significante, que a metáfora pode cumprir sua função e precipitar
um novo sentido. “Para que vocês compreendam isso, basta lembrarem-se de
que Pedro mata Paulo não é equivalente a Paulo mata Pedro”, portanto, a
organização das palavras, da cadeia significante, é um sistema de linguagem de
coerência posicional.
Lacan afirma que o inconsciente funciona pela mesma lei de linguagem.
Assim, a metáfora é a substituição de significantes que se articulam na cadeia,
cuja função é criar um novo sentido a uma articulação já existente. Keylla
Barbosa, em seu artigo “De Jakobson a Lacan: a construção da metáfora
paterna”, declara:

8
Para que os significantes possam se substituir, eles devem estar
encadeados e deve haver uma identidade entre eles, porque a
identidade se dá pela posição, e, para haver pareamento posicional, é
indispensável uma cadeia significante articulada. Portanto, se a
metáfora se faz por uma articulação posicional, a condição para que
ela exista é que haja articulação significante e que, nesta articulação,
cada elemento ocupe a posição específica que lhe caiba. Um
significante resta e outro é elidido. O significante que cai no decorrer
desta operação não sai totalmente de cena. Ele se mantém em uma
relação metonímica com o restante da cadeia.

Portanto, é preciso sublinhar que na operação da metáfora, ela fica


subordinada à metonímia, pois é ela que garante o encadeamento para dar
origem a um novo sentido, ou seja, o significante metaforizado se mantém na
cadeia pela metonímia: “É a metonímia a responsável por fazer com que toda
significação remeta a outra e, deste modo, a cadeia não para de se articular”. A
fórmula da metáfora apresentada por Lacan em De uma questão preliminar é a
seguinte:

Onde se lê assim: os S são significantes, x é a significação desconhecida


e s é o significado induzido pela metáfora, que consiste na substituição, na
cadeia significante, de S’ por S. A elisão de S’ está representado pelo risco,
sendo essa a condição de sucesso da metáfora. No segundo termo da fórmula,
o símbolo I (inconsciente) nos lembra que S’ foi recalcado.
Vamos pelo exemplo de Antonio Quinet, que explica essa operação
assim: se digo: “Maria é uma flor” é porque há um significante que encontro tanto
em “Maria” quanto em “flor”: o significante “delicado”, podemos então escrever
através da operação:

Na metáfora paterna, o pai como significante que metaforiza o desejo da


mãe para a criança vai ser posto por Lacan a partir do seminário 3, onde o pai
totêmico, de Freud, passará assumir a função simbólica, instância da lei. Isso
significa que o pai, que funciona para o filho, não é o pai genitor, mas trata-se do
significante Nome-do-Pai.

9
O Nome-do-Pai é um significante e não uma pessoa, ele está no discurso
da mãe, declara Antonio Quinet (2015). Assim, Lacan propõe uma operação
simbólica, fundamental, que corresponde em Freud à epopeia edipiana, que
efetuara a inscrição do Nome-do-Pai, o significante que permite a simbolização
da procriação, isto é, da posição feminina e masculina na partilha dos sexos. Em
última análise, o significante do Nome-do-Pai é o significante que estrutura o
inconsciente como uma linguagem e instaura a ordem das leis de linguagem —
metáfora e metonímia, portanto, trata-se do significante primordial para a
organização psíquica.

4.1.2 A leitura da metáfora paterna

Se tomarmos a metáfora por fração, verificamos que, de início, temos a


relação mãe-bebê, onde o bebê está enredado ao Desejo-da-Mãe (DM), resume-
se o desejo por ele (o bebê) como desejo dela. O denominador X é o que significa
para o sujeito, portanto, uma incógnita, pois para o sujeito bebê, perante o desejo
da mãe: o que ela quer?

No segundo tempo, de um tempo lógico e não cronológico, o discurso da


mãe insere na relação o Nome-do-Pai, pelo qual este vem substituir o DM, pela
operação metafórica (trabalho, pai, corpo etc.); desse modo, X recebe uma
significação, ou seja, um valor fálico:

Assim, a operação de substituição metafórica resulta na inscreve o Nome-


do-Pai no lugar do Outro em A. Logo, o sujeito entra na lógica fálica, pois o falo
é significação dada ao desejo do Outro, que é marcado pela falta.

O falo, diz Quinet, entra em jogo como significante (ɸ) produto da


operação da metáfora paterna. Ele se distingue do falo imaginário, que é sempre

10
negativo (-φ), pois evoca nos homens a castração e nas mulheres a inveja desejo
de pênis. Lacan faz da metáfora paterna a sua releitura do Édipo freudiano.

TEMA 5 – OS TRÊS TEMPOS DO ÉDIPO

Ainda no seminário 5, As formações inconscientes (1958), Lacan introduz


uma nova forma de pensar o complexo de Édipo, distinguindo três tempos
lógicos.

• 1º tempo: momento em que a criança está totalmente identificada ao


objeto de desejo da mãe. O bebê=falo, uma equivalência simbólica que é
resultado do complexo de Édipo na mulher, pois daí resulta essa posição
de identificação com o falo materno. Antonio Quinet (2015) sublinha que
há nesse tempo três elementos: a criança, a mãe e o falo, sendo que a
criança equivalente ao falo.

Nesse tempo, a mãe está na posição do Outro absoluto, pois, para a


criança, ela é a única capaz de suprir as suas necessidades, dependendo
apenas da boa ou má vontade. Trata-se da lei do capricho, ressalta Quinet, na
qual a criança se encontra assujeitada, assim, “nesse primeiro tempo lógico do
Édipo, a mãe é para a criança um Outro absoluto. Se a criança jubilar, se ela
atinge o equivalente ao orgasmo, como diz Freud em Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade”, é porque ela responde de um lugar de objeto do desejo da mãe”
(Quinet, 2015, p. 40).

• 2º tempo: esse momento corresponde à inauguração da simbolização.


Lacan explica essa passagem através do brincar da criança e resgata o
jogo de carretel (fort-da), descrito por Freud em Além do princípio de
prazer. Trata-se da repetição feita de forma lúdica pela criança, onde ela
lança o carretel, fazendo desaparecer; depois puxa o carretel, fazendo
reaparecer. Tal repetição seria uma forma de simbolizar o
desaparecimento e o retorno da mãe que é enunciando pelas palavras
que representam o seu afastamento e o seu retorno (fort-da).

Lacan aponta nessa brincadeira uma tentativa de poder representar a


mãe de forma simbólica pelo objeto e fonemas entonados. Pois, ao enunciar o
par de fonema “ooo”, que Freud interpreta por fort (longe), e “aaa”, por da (aqui),

11
é fundada a sua entrada na linguagem, posto que é possível situar o par
significantes (S1 – S2) base da cadeia significante, por onde se desloca o sujeito.
Quinet diz assim:

Ela (a criança) entra no binarismo significante (S1 – S2), fundamento


da cadeia significante, por onde se desloca o sujeito. A mãe, podendo
ser simbolizada por um significante, passa do status de objeto
primordial ao de signo. A relação da criança com ela deixa de ser
imediata, pois há uma mediação simbólica pela linguagem. (Quinet,
2015, p. 40-41)

É preciso enfatizar que no segundo tempo do Édipo, essa operação que


efetua a simbolização da ausência da mãe não ocorre de forma espontânea, é
necessário que surja a intervenção de um quarto termo que possa inscrever a lei
de interdição. Trata-se do significante do Nome-do-Pai, que se impõe barrando
o desejo da mãe, interditando a posse da criança como objeto e significando
para a criança que o desejo da mãe está para além dessa relação.
O Nome-do-Pai, portanto, o pai enquanto uma função simbólica, entra em
cena para metaforizar o lugar de ausência da mãe. Se no primeiro tempo o Outro,
encarnado pela mãe, era um Outro pleno e absoluto, com a interdição do Nome-
do-Pai o Outro é barrado e, assim, a lei simbólica se instaura para o sujeito, pela
qual o Outro em A, passa a se constituir como lugar de lei, do pacto da fala.
O segundo tempo do Édipo, portanto, equivale à castração simbólica, o
recalque originário, pelo qual a criança perde a sua identificação ao falo da mãe,
ou pelo menos recalca. O falo é elevado ao nível de significante de desejo da
mãe, pois a ela o falo falta também (A). Quinet declara assim:

O Nome-do-Pai, inscreve-se no Outro, lugar ocupado anteriormente


pela mãe, não simbolizada, permite a articulação entre o complexo de
castração e o acesso ao simbólico no processo do Édipo. Por
intermédio da metáfora paterna, a significação do falo é evocada no
imaginário do sujeito. Antes disso, não havia tal possibilidade. Mas o
preço de tornar-se significante é o próprio desaparecimento do falo. O
efeito da castração simbólica aparece no imaginário como falta: (-φ).
(Quinet, 2015, p. 41)

Dessa forma o falo é elevado ao nível de significante (ɸ), como desejo do


Outro, não como (-φ), que é a sua forma imaginarizada. O falo, diz Quinet, é o
significante que permitirá ao sujeito atribuir significações a seus significantes, ou
seja, é o significante que, por excelência, permite ao sujeito situar-se na ordem
simbólica e na partilha dos sexos. “O sujeito passa de uma posição de ser falo a
uma posição de falta-a-ser, entrando na dialética do ter ou não ter”.

12
• 3º tempo: configura-se pelo declínio do complexo de Édipo, onde o
menino passa da posição inicial de ser o falo à posição de ter o falo,
podendo a partir daí dar uma significação ao seu pênis. Nesse sentido, a
figura do pai, enquanto marido da mãe, é tomado como modelo de
identificação do Ideal do eu, cuja matriz simbólica é o significante do
Nome-do-Pai. A mulher se situará como o objeto de desejo do homem,
ser o falo.

5.1 A problemática do falo

A assimetria que há no Édipo, entre menina e menino, deve ser entendida


pela assunção do falo, isto é, ter ou não o falo como o elemento pivô, na qual a
identificação sexual (e não genital) do sujeito se organiza e se diferencia. Patrick
Valas (2001) nos ajuda a alcançar esse discernimento em seu livro As
dimensões do gozo, que diz assim:

• a menina entra no Édipo através do complexo de castração, isto é,


como castrada, e ela sai pela angústia, que funciona para ela como
equivalência da castração, pois na realidade a ela o falo só falta
simbolicamente; ela não está privada de nenhum órgão;
• o menino entra no Édipo pela angústia de castração, angústia de ser
castrado, e sai pelo complexo de castração, o que significa que paira
sempre sobre ele o temor de ser castrado - Freud precisa que se trata
essencialmente de um temor que se enraíza no narcisismo.

A posição de ter o falo ou ser castrado, é importante que se entenda, não


se designa pela realidade anatômica, mas sim entre a presença e ausência de
um único termo — o simbólico. A função simbólica que pode dizer ao homem
tem o falo, enquanto a mulher se diz castrada. Isso porque o pênis, enquanto
forma, é sede de um gozo privilegiado, que, como situa Patrick, Freud o designa
muito bem, pois é a parte de libido que permanece fixada ao corpo próprio,
porque sempre há uma parte de libido que não é transferida para o objeto.
O falo, como definido por Lacan, “é a significação, nenhuma outra
significação, que não a própria significação", dito de outra maneira, por Patrick
valas: “o falo como significado é justamente o objeto que dá à criança a
significação das idas e vindas da mãe, isto é, o falo enquanto ela não o tem e
enquanto a criança o atribui a ela, na sua fantasia”. Sendo assim, o falo torna-se
pivô da economia do desejo, na medida que ele é o desejo sexual (o que falta a
mãe).

13
Lacan faz a distinção de dois falos, o falo como significante do desejo
resultado da inscrição simbólica (ɸ) e o falo significado, que é o objeto imaginário
da castração (-φ). Suas articulações se inscreve no processo da metáfora
paterna, que se efetua no processo edipiano, onde um laço vem se estabelecer
entre eles, por suas funções respectivas, como situa Patrick, não são
intercambiáveis, naquilo que Lacan chama de heteróclito do complexo de
castração — termo que aparece para lembrar que os elementos reais,
imaginários e simbólicos que o organizam são heterogêneos.

NA PRÁTICA

A nova leitura de Lacan sobre o complexo Édipo deu ao conceito uma


afinação precisa para a clínica, pois a referência edípica passou a se situar no
centro da escuta para o diagnostico diferenciado das estruturas clínicas. Pois é
só partir da escuta da epopeia edípica do sujeito que podemos pensar na
hipótese de um diagnóstico diferencial. Na psicose, o sujeito não viveu o
complexo de Édipo, a inscrição do Nome-do-Pai foi foracluído.
Mas, na prática, como ouvir a história edipiana na clínica? Claro que o
sujeito não fala declaradamente sobre a sua relação edipiana, pois ela é
inconsciente. Ela em suas relações transferenciais. Por exemplo: nas entrevistas
preliminares, o analista deve investigar as relações do sujeito, se ele é casado,
se namora, com quem vive, se tem muitos amigos etc. Essas relações sociais
apontam para o modo como o sujeito se posiciona no laço social.
Certa vez, uma mulher de 49 anos, divorciada, sem filhos, formada em
história, mas nunca exerceu a profissão, buscou análise, pois dizia que estava
muito cansada da vida. Tudo lhe cansava, não tinha ânimo para nada, queria
dormir e não falar com ninguém. Aparentemente, parecia um quadro de
depressão, mas, ao ser questionada sobre o tempo que vinha se sentindo assim,
ela responde que sempre foi assim, nunca viu sentido na vida.

14
Sobre o seu casamento, diz que na faculdade conheceu um rapaz muito
bonito e que ele gostou dela, pois ela sempre chamou muita atenção. Assim,
eles começaram a namorar, ficaram noivos, sem saber o real motivo, pois
brigavam muito, ele vivia na praia e não gostava de trabalhar, mas que mesmo
assim se casaram, pois queria ter um casamento bem chique e eles juntos
faziam um belo casal. O casamento durou menos de um ano, um dia ele saiu e
não voltou mais. O seu pai conseguiu anular o casamento e, depois dele, nunca
quis ficar com ninguém.
O decorrer de suas sessões foi marcado por relatos de intrigas familiares.
Ela declaradamente odeia a sua mãe, chegando a agredi-la fisicamente, e nutre
um amor sexual pelo seu pai. Suas declarações não passam por nenhum crivo
de censura.
Portanto, nesse curto recorte de um caso clínico, é possível notar que no
discurso da paciente, o desejo como causa é esvaziado, pois a vivência edipiana
que funda o desejo através da interdição do incesto não ocorreu. Nesse caso, a
hipótese do diagnóstico estrutural é de uma psicose com delírios paranoicos.

FINALIZANDO

1. O mito de Édipo forneceu a Freud a estrutura de um desejo criminoso que


se articula a uma proibição de um impossível de ser suportado. Mas, por
outro lado, por se tratar de um desejo, o sujeito se divide — rejeitando na
consciência o desejo proibido e conservando no inconsciente, “entre não
querer saber e um saber que não cessa de se escrever”, como declara
Quinet (2015).
2. O complexo de castração é o momento de instauração da lei, pois, em
termos, é a ameaça de castração que valida a vivência edipiana e funda
a relação do ser humano através da interdição universal, a lei do incesto.
3. No mito de Totem e tabu, o pai é o personagem que ameaça com a
castração para punir o sujeito pelo desejo incestuoso. Quinet (2015)
apresenta as articulações proposta por Freud na seguinte ordem: 1º -
desejo sexual com a mãe; 2º - a ameaça da punição-castração; 3º - desejo
de assassinar o pai. Lacan, ao incidir sobre a teoria do complexo de Édipo
e o mito de totem e tabu, acrescenta que o pai é o portador da lei, não só
para proibir o incesto, mas o pai da Lei simbólica que funciona no

15
psiquismo com o significante do Nome-do-Pai, que articula a Lei e desejo
[lei (do pai) e desejo (pela mãe)].
4. Na releitura do complexo de Édipo em Lacan, ele vai resumir o complexo
de Édipo na metáfora paterna, onde o Nome-do-Pai surge como um novo
termo que vem barrar o gozo do Outro, destruído a identificação da
criança com o falo da mãe. E elabora os três tempos lógicos do Édipo: 1º)
A criança está identificada ao falo materno (mãe-bebê-falo); 2º) A criança
perde a identificação ao falo e recalca, simbolizando a ausência da mãe
pelo Nome-do-Pai (recalque originário); 3º) A saída do complexo de Édipo,
onde a questão do falo é colocada entre o ser e o ter.
5. A problemática do falo: Lacan faz a distinção de dois falos, o falo como
significante do desejo resultado da inscrição simbólica (ɸ) e o falo
significado, que é o objeto imaginário da castração (-φ).

16
REFERÊNCIAS

BARBOSA, K. De Jakobson a Lacan: a construção da metáfora paterna. Ágora:


Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 23, n. 3, p. 29-37, 2020. Disponível
em: <https://doi.org/10.1590/1809-44142020003005>. Acesso em: 10 maio
2022.

FREUD, S. As neuroses de defesa. In: Obras completas. Vol. I. Rio de Janeiro:


Imago, 1996.

_____. Conferência XXXI. A dissecção da personalidade. In: Obras completas.


Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In:


Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

_____. Livro 5: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


1999.

NASIO, J. D. Édipo, o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de


Janeiro: Zahar.

QUINET, A. Édipo ao pé da letra: fragmentos de tragédia e psicanálise. Rio de


Janeiro: Zahar, 2015.

_____. Os outros em Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

VALAS, P. As dimensões do gozo: do mito da pulsão à deriva do gozo. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

17
ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS
AULA 3

Profª Juliana Santos


CONVERSA INICIAL

Em conteúdos anteriores, vimos que o mito do Édipo é a tentativa de dar


forma a uma estrutura, ou seja, ele é a ficção do nosso envolvimento com o
registro simbólico. O falo em sua função imaginária coloca o sujeito diante da
questão do próprio sexo, na medida em que ele se inscreve como falta (-φ). A
castração, contudo, só opera se o Outro trasmitir a lei da interdição.
A intervenção do Nome-do-Pai no Outro é a releitura do Édipo feita por
Lacan, que se configura em um tempo lógico em que a identificação imaginária
da criança com o falo da mãe será recalcada. Assim, o falo passa para o nível
de significante do desejo do Outro, instituindo a castração no Outro.
Portanto, é o Nome-do-Pai inscrito no lugar do Outro, como lei simbólica,
que coloca o sujeito na ordem simbólica, permitindo a inauguração da cadeia do
significante no inconsciente. Essa situação pode ser vista, também, no esquema
L. Vejamos:
S a

a’ A

Lacan declara que tudo que acontece com o sujeito depende do que
acontece em A. Então, se o Outro foi barrado pelo Nome-do-Pai, as questões do
sexo e da existência do sujeito se colocaram no Outro em A (tesouro do
significante); assim, as questões ficaram barradas pelo muro da linguagem (a-
a’), eixo narcísico. Desse modo, o sujeito neurótico só terá acesso a elas pelas
formações do inconsciente (lapso, sonho, ato-falho).
Portanto, o neurótico paga um preço para entrar na linguagem, e o preço
é o Édipo, que lhe condenará à falta através da castração simbólica. Não pagar
esse preço equivale a escolher o campo da psicose.
Nesta etapa, primeiramente vamos desenvolver um breve estudo sobre a
evolução conceitual da constituição das estruturas clínicas, isolando os
principais mecanismos que caracterizam cada estrutura na teoria freudiana. Em
seguida, vamos estabelecer o desenvolvimento conceitual proposto por Lacan.

2
TEMA 1 – ESTRUTURAS CLÍNICAS EM FREUD

As estruturas clínicas no campo da psicanálise dizem respeito à posição


do sujeito na linguagem. São elas: neurose, psicose e perversão. Ao dar ouvidos
ao sofrimento das histéricas que apresentavam sintomas de conversão
somática, Freud observou que as formações dos sintomas, dos atos falhos, dos
chistes e sonhos tinha gênese inconsciente. Por conta disso, ele se questionou
a respeito da organização do psiquismo, declarando que a própria neurose podia
se estruturar por conjecturas diferentes, não estando restrita à histeria. Nesse
sentido, Freud passa a se interessar pela “escolha da neurose”.
Na carta 125 (Freud, 1996b, p. 331), endereçada a Fliess, Freud declara:
“Tenho diante de mim o problema da “escolha da neurose”. Quando é que uma
pessoa se torna histérica em vez de paranoica?”. Já no texto A disposição à
neurose obsessiva uma contribuição ao problema da escolha da neurose, de
1913 (Freud, 1996a, p. 193), encontramos o seguinte questionamento: “por que
é que esta ou aquela pessoa tem de cair enferma de uma neurose específica e
de nenhuma outra. Este é o problema da ‘escolha da neurose’”.
Assim, se traçamos uma linha de desenvolvimento da teoria freudiana,
veremos que a questão da escolha da estrutura sempre esteve presente em sua
obra. Nos textos sobre a etiologia das neuroses, Freud apresenta a sua tese
inicial, que estabelece cronologicamente as ocorrências sexuais infantis
traumáticas. Cada neurose teria um requisito específico que determinaria a
origem do mecanismo de defesa.

Quadro 1 – Neuroses

Ia Ib A II B III
Até 4 anos Até 8 (De 8 a 10 Até 14
(de 13 a 17 Até X
anos anos) anos
anos)
Pré- Segunda Pré- Maturidade
Puberdade
consciente Infantil dentição puberdade
Histeria Cena Recalque Recalque
N. obsessiva Cena Recalque Recalque
Paranoia Cena Recalque

Portanto, o momento da ocorrência do evento sexual na infância seria


determinante para a escolha da neurose, como demonstra o anterior. Camilia
Alvarenga Côrtes (2016, p. 28) descreve:

3
Na histeria, as cenas ocorreriam no primeiro período da infância, época
em que os resíduos de memória não são traduzidos em imagens
verbais. Assim, o resultado do despertar dessas cenas nas fases A e
B é sempre uma conversão, pois a tradução é impedida pela atuação
conjunta da defesa como excesso de sexualidade. Na neurose
obsessiva, as cenas seriam referentes a uma época em que já existe
tradução em palavras, e seu despertar, nas épocas II e III, provoca a
formação de sintomas psíquicos. Na paranoia, as cenas ocorrem na
época II, sendo despertadas em III, na maturidade, e a defesa
manifesta-se pela desconfiança.

Assim, o trauma sexual infantil coloca em função o mecanismo de defesa,


que funcionaria como o operador da estrutura. Porém, essa teoria não se
sustenta por muito tempo, pois para tanto Freud teria que admitir um abuso
sexual em todas as crianças.
Mais adiante, Freud, em Interpretação dos sonhos (1900), conceitualiza a
primeira tópica do aparelho psíquico, cujo funcionamento se baseia em três
sistemas: inconsciente, pré-consciente e consciente. Cada sistema exerceria
uma função específica. No surgimento da enfermidade, as instâncias estariam
em desarmonia, por conta da ocorrência de circunstâncias externas. Esse
discernimento leva Freud à elaboração do mecanismo do recalque, evidenciando
a sua relação com o desejo proibido – o Édipo.
Em 1911, na análise do “Caso Schreber”, um caso de paranoia, Freud
chega a mais uma constatação importante. Ele declara que, no cerne do conflito
paranoico, existe um desejo homossexual. Para explicar a sua descoberta,
Freud desenvolve o conceito do narcisismo, momento em que o sujeito toma
para si o seu próprio corpo como objeto amoroso, para só depois passar à
escolha de um objeto de amor. Segundo Freud, na paranoia há uma fixação
libidinal nesse estádio.
Logo, a história do desenvolvimento da libido está relacionada com o
modo como o recalque se efetua, a partir de uma distinção em três fases: fixação,
recalque propriamente dito e retorno do recalcado. Sobre a fixação, Côrtes
(2016, p. 40) declara:

A fixação é a condição necessária de todo recalque, caracterizando-se


pela inibição de um determinado componente pulsional no
desenvolvimento, que é deixado para trás, em um estádio mais infantil,
comportando-se como se pertencesse ao sistema inconsciente, como
recalcada. Tais fixações pulsionais formam a base para a disposição à
enfermidade posterior.

O recalque provém de um sistema mais desenvolvido do eu, que segundo


Freud se caracteriza por um processo ativo, enquanto a fixação é passiva.
Contudo, para que haja um recalque, é necessário repressão por parte do
4
sistema consciente, que exerce uma certa atração por parte do sistema
inconsciente. O retorno do recalcado diz respeito ao fracasso do recalque, que
produz efeitos patológicos no sujeito, quando os sintomas se fundem no ponto
de fixação da libido.
Na última parte da teoria freudiana, que se formalizou com a elaboração
da segunda tópica, Freud – com destaque para o texto Neurose e psicose, de
1924 – retoma a instância do eu para pensar a sua relação com o Id e todos os
outros elementos, aos quais o eu se submete simultaneamente. O autor
estabelece aí uma nova distinção entre neurose e psicose: “a neurose é o
resultado de um conflito entre o eu e o id, ao passo que a psicose é o desfecho
análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o mundo externo”
(Freud, 1996e, p. 89). Sobre o tema, Côrtes (2016, p. 44) traz o seguinte
esclarecimento:

Desta forma, a neurose seria decorrente de uma recusa do eu em


acolher ou conduzir a uma resolução motora uma pulsão oriunda do Id,
o que é realizado através do recalque. Porém, como o conteúdo
recalcado usa algumas vias para escapar disso, ocorre a formação do
sintoma, que se opõe ao eu e contra o qual este irá lutar a partir de
então, como antes lutou contra a moção pulsional. Disso resultaria o
quadro da neurose. Quanto ao mecanismo da psicose, [...] Freud
afirma que haveria uma perturbação entre as relações do eu com o
mundo externo. Segundo ele, este dominaria o eu pelas percepções
atualizáveis ou pelas lembranças de percepção passadas, o “mundo
interno”, que teria como função representar a realidade externa
internamente.

A tentativa de distinguir o mecanismo da neurose e da psicose sempre


esteve presente em Freud. Contudo, os mecanismos específicos da psicose não
chegaram a ser isolados, assim como foi feito com o recalque na neurose e com
o fetiche na perversão. Quem estabeleceu essa conceituação foi Lacan.

TEMA 2 – ESTRUTURAS CLÍNICAS EM LACAN

Lacan entra na psicanálise justamente pela porta da psicose, o caminho


inverso de Freud, que entrou pela histeria. Mesmo respeitando as elaborações
freudianas a respeito dos mecanismos de neuroses, perversões e psicose, ele
avança sobre outras dimensões, localizando as estruturas subjetivas de cada
uma delas.
De fato, a psicose não ocupou um lugar central nas obras de Freud. No
entanto, ele nunca deixou de abordá-la ao longo de sua teorização. E foi
exatamente a partir das pegadas deixadas por Freud que Lacan encontrou os

5
elementos necessários para o seu estudo, levando a cabo a sua tese a respeito
do mecanismo próprio da psicose.
Lacan (1988) dedicou um seminário às psicoses, partindo dos termos
Verneinung e Verwerfung, que são retomados da obra freudiana e devidamente,
distinguidos. O primeiro termo diz respeito ao mecanismo responsável por operar
no psiquismo o fenômeno de negação, enquanto o segundo opera uma exclusão
(Verwerfung). Essa distinção será importante para a compreensão da escolha
de estrutura e também para definir o mecanismo específico da psicose – afinal,
segundo Lacan, a Verwerfung é um acontecimento anterior ao Verneinung, cujo
mecanismo pressente o juízo, que diz respeito à censura que opera o recalque.
A Verwerfung é, então, o ponto de partida de Lacan para construir a sua
tese sobre o mecanismo da psicose. Ele declara tratar-se de uma falha no
registro simbólico, situado na origem da vida psíquica, sendo portanto o primeiro
tempo lógico do processo de estruturação do sujeito, anterior ao recalque e à
formulação do juízo.

2.1 Origem da vida psíquica

Lacan, assim como Freud, também buscou compreender o momento


primitivo da origem da simbolização. Sobre isso, ele afirma: “na relação do sujeito
com o simbólico, há a possibilidade de uma Verwerfung primitiva, ou seja, que
alguma coisa não seja simbolizada, que vai se manifestar no real” (Lacan, 1988,
p. 100). Lacan levanta a hipótese de que no início da vida psíquica poderia
ocorrer uma rejeição primitiva.
Na origem da vida psíquica, Freud estabeleceu a ocorrência de uma
afirmação, a Bejahung (afirmação). A Bejahung deve ser entendida como um
processo primário, um primeiro juízo ou, dito de outro modo, uma aceitação do
simbólico ou da realidade – “Há, portanto, na origem, Bejahung, isto é, afirmação
do que é, ou Verwerfung” (Lacan, 1988, p. 101).
É aí, na origem, que Lacan localiza todas as espécies de acidentes, em
relação aos quais o sujeito terá que se arranjar para o resto da vida, tentando se
aproximar daquilo que ele admitiu que fosse: “Um homem quando ele se vê
sendo do sexo masculino, ou uma mulher em caso inverso” (Lacan, 1988, p.
102). Nesse sentido, Lacan (1998, p. 389) declara sobre a Bejahung: “não é outra
coisa senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha a se

6
oferecer à revelação do ser”. Desse modo, pode-se compreender que a
Bejahung é uma aceitação de um registro simbólico primordial.
No caminho contrário à Bejahung, temos a Verneinung (negação). Trata-
se da negação que, como afirma Freud no texto A negativa, só pode ser
produzida de algo que, primeiramente, foi afirmado. Assim, a Verneinung é
tributária da afirmação primeira e de ordem do simbólico, não pelo seu valor
simbólico, mas sim pelo seu valor de existência, tendo se constituído por aquilo
que foi expulso, não como se fosse algo inexistente, mas como aquilo que foi
negado – por isso, pode ser encontrado, de modo lógico, pela palavra
inconsciente, pois pode se articular no discurso.
Desse modo, para Freud, a negação se constitui como um modo de tomar
conhecimento do recalcado pelo “não”; ou seja, o não tem o valor de signo da
marca, visto que o juízo gera processos a partir dos quais é realizada a inclusão
no eu ou a expulsão para fora do eu, tudo em complacência com o princípio de
prazer. Portanto, a Verneinung opera em consonância com a Behajung, pela qual
o seu produto pode ser recortado pelo simbólico.
Assim, o efeito da expulsão produzida pela Verneinung é posto em
comparação com a expulsão produzida pelo Verwerfung. Desde aí, Lacan
passará a pensar o início da psicose. Diz assim: “A Verwerfung não está no
mesmo nível da Verneinung. Quando, no início da psicose, o não simbolizado
reaparece no real, há respostas do lado do mecanismo da Verneinung, mas elas
são inadequadas” (Lacan, 1988, p. 106). Isso significa dizer que o sujeito, ao se
deparar com alguma coisa do mundo exterior que não foi primitivamente
simbolizada, é incapaz de produzir uma Verneinung, já que não se trata de um
sentimento que originalmente suprimiu de uma Bejahung, mas daquilo que
nunca existiu.
A Verwerfung não é encontrada na história do sujeito; afinal, como nos
ensina Lacan, ela corta qualquer manifestação simbólica na abertura do ser, pois
trata-se daquilo que não existiu propriamente, ou seja, “nada existe senão na
medida em que não existe” (Lacan, 1998b, p. 394). Isso equivale a dizer que,
não pode se constituir como um saber inconsciente. Assim, o seu caráter é
formado através da percepção da realidade do sujeito, ou, pela formula
lacaniana: “O que não veio à luz do simbólico, aparece no real” (Lacan, 1998b,
p. 390).

7
É o caso do “homem dos lobos”, em que a alucinação, o conteúdo
maciçamente simbólico (castração), aparece no real, pelo fato de não existir na
pré-história do sujeito. Trata-se de um significante inconsciente, mas de um
inconsciente que permanecerá exterior ao sujeito, ao qual ele estará ligado
(Lacan, 1998b, p. 394).

TEMA 3 – VERWERFUNG

Quando na origem não há a Bejahung, o que se encontra lá é a


Verwerfung, que funciona como um mecanismo de rejeição primitiva, que se
difere da Verneinung (negação) e se contrapõe de forma fundamental a
Verdrangung (recalque), por ser anterior ao juízo. Lacan define: “Ao nível dessa
Bejahung pura, primitiva, que pode realizar-se ou não, estabelece-se uma
primeira dicotomia – o que teria sido submetido à Bejahung, à simbolização
primitiva, terá diversos destinos, o qual cai sob o golpe da Verwerfung primitiva
terá um outro” (Lacan, 1988, p. 100)
O termo Verwerfung é usado por Freud desde os Estudos sobre histeria,
para se referir à recusa do eu em relação às representações insuportáveis, de
modo que se comportam como se ela nunca houvesse existido. No entanto, de
acordo com o exemplo empregado por Freud, o preço pago por essa defesa
implica em uma psicose (quadro de confusão alucinatória). Porém, ele não
enunciou essa ideia nesses termos, pois o mecanismo da psicose ainda não
tinha sido elaborado.
Amelia Imbriano (2010) destaca uma noção da Verwerfung inserida por
Freud em 1915, a partir de uma distinção entre estímulos internos e externos:
“Enquanto que as últimas podem ser aludidas por meio da fuga, as primeiras
(estímulos pulsionais que provem do interior do organismo) não são suscetíveis
de uma evitação desse tipo” (Imbriano, 2010, p. 68, tradução nossa). Segundo
Imbriano, Freud buscava aí uma equivalência, que encontra no exercício de
repudio do eu, usando o termo Verwerfung. Dito de outro modo, a Verwerfung
seria uma forma de rejeitar uma identificação no eu – isto é, tal rejeição seria o
resultado de uma expulsão de um conteúdo de experiência fora do eu.
Em 1918, Freud apresenta o caso do “homem dos lobos”, em que a
questão da castração aparece vinculada ao mecanismo em que o sujeito “nada
quer saber”. Nesse ponto, o termo Verwerfung é utilizado pela primeira vez como
um mecanismo diferente da Verdrangung:
8
Já nos é de conhecimento a atitude que o nosso paciente adotou, de
início, em relação ao problema da castração. Ele a rejeitou e apegava-
se à sua teoria de relação sexual pelo ânus. Quando digo que ele o
havia rejeitado, o primeiro significado da frase é o de que ele não queria
saber nada dela no sentido da repressão. Com isso não se pronunciava
nenhum juízo sobre a sua existência, pois era como se não existisse.
(Freud, 1996d, p. 78)

Nesse sentido, Roland Broca (2017) declara que o sujeito, nesse caso, foi
posto antes da descoberta da diferença sexual, pois havia rejeitado a
significação genital. Freud havia enunciado no mesmo texto: “Todo processo se
torna assim característico do modo como trabalha o inconsciente. Uma
repressão [Verdrangung] é algo diferente de uma rejeição [Verwerfung]”. (Freud
1996d, p. 74).
Nessa ocasião, a Verwerfung é posta em oposição à Verdrangung, pois
trata-se de um mecanismo anterior ao juízo, pelo qual, segundo Lacan, o sujeito
recusa o acesso ao mundo simbólico, pois se trata da própria ausência desse
registro, uma vez que a Bejahung faltou.
Lacan se interessa pelo caso do homem dos lobos, pois encontra nele os
argumentos que precisava para formular a sua tese sobre o conceito da
Verwerfung. Assim, ao analisar a alucinação do dedo cortado do homem dos
lobos, pôde demonstrar uma significação que lhe era desconhecida, já que se
tratava de um inconsciente externo ao sujeito.

3.1 Análise do caso do homem dos lobos

Lacan trabalha com um relato de caso clínico apresentado por Freud,


conhecido como o homem dos lobos. O paciente faz um relato de quando ainda
era criança. Ele conta que estava brincando com uma faca e cortou o dedo
mindinho, que ficou preso à mão apenas por um pedacinho de pele. Tomado
pela angústia, debruçou-se sobre um banco, sem coragem de olhar para o dedo
ou pedir socorro para a babá, que estava ao seu lado. A babá, conforme ele
conta, era a sua principal confidente; contudo, naquele momento, não foi capaz
de ajudá-lo a aplacar tamanha angústia. Assim, ele relata que ficou quieto e não
falou nada sobre o ocorrido.
Lacan (1988) destaca no caso a ausência da fala, pois para ele o que
sucede é uma suspensão total da possibilidade de dispor de um significante.
Descreve, ainda, a existência de uma imersão temporal, pois mesmo se
esforçando para voltar à superfície do tempo comum, o seu esforço não resulta

9
em nada: “acabou, não falemos mais disso”. Segundo Lacan, esse é o sentido
de quando Freud havia estabelecido o “especialíssimo não saber nada da coisa,
mesmo no sentido do recalcado”, que por sua vez leva à seguinte interpretação:
“o que é recusado na ordem simbólica ressurge no real” (Lacan, 1988, p. 22).
Lacan declara que, diferentemente do recalcado e do retorno do
recalcado, que são a mesma coisa e estão sempre aí articulados em sintomas e
outros fenômenos, o que foi rejeitado no sentido Verwerfung passa a ter um
destino completamente diferente.
O destino tomado pela Verwerfung passa a ocupar o ensino de Lacan
(1988), visto que o próprio Freud havia declarado que uma repressão
(Verdrangung) é algo diferente de uma rejeição (Verwerfung). Seguindo os
interesses freudianos, Lacan traz para o campo de seus estudo o termo da
Verwerfung, que traduz por foraclusão. A partir dessa interpretação, ele elabora
a sua tese a respeito daqueles que caem do galope da Verwerfung.

TEMA 4 – FORACLUSÃO

A base da tese de Lacan sobre o mecanismo da psicose tem seu


fundamento nos processos primitivo da Verwerfung, pois é aí, a partir desse
termo freudiano, que ele estabelece o cerne do seu discernimento a respeito do
conceito da foraclusão.
O termo foraclusão, como foi traduzido para o português, tem origem na
língua francesa (forclusion), que carrega um sentido do campo jurídico. A
tradução literal para o português é prescrição, que significa “perda do direito de
exercer ou validar um ato”.
Como vimos, Lacan considerou o surgimento da Verwerfung pela
ausência da Bejahung (afirmação primordial). Desse modo, a falta dessa
afirmação primordial precipita no psiquismo a “rejeição de um significante
primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então nesse nível”
(Lacan, 1988, p. 178). Nesse sentido, trata-se de um significante que surgiu, mas
foi prescrito e perdeu o seu valor.
A Verwerfung será interpretada como foraclusão: “A Verwerfung será tida
por nós, portanto, como foraclusão do significante” (Lacan, 1998a, p. 564)
A foraclusão é uma operação psíquica cuja consequência no sujeito é
estrutural. Assim como o recalque (Verdrangung) na neurose e a recusa

10
(Verleugnung) na perversão, a foraclusão refere-se a um modo de acesso à
linguagem, mas que diz respeito à psicose.
Mas do que se trata a foraclusão? A explicação é encontrada na metáfora
patena, pois é o significante do Nome-do-Pai que é foracluído no lugar do Outro.

4.1 A foraclusão do Nome-do-Pai

O Nome-do-Pai, como vimos na metáfora paterna, é o significante


fundamental que se inscreve na neurose, mas que na psicose é foracluído.
Porém, o que é o pai nos ensinos de Lacan, enquanto significante, Nome-do-
Pai? A resposta a essa questão só pode ser encontrada na função simbólica do
pai, problema central da psicanálise e ponto mais fecundo de toda obra de Freud,
que por sua vez remonta a uma questão edipiana, o conceito central das diversas
indagações clínicas.
O Nome-do-Pai é o significante primordial. Por isso, se torna fonte de toda
significação, pois garante que o significante possa ser atado ao significado e,
assim, sustentar a realidade. Vamos considerar a seguinte uma representação:

S Bejahung NP = S1
S S S S S S2

S S S S S S = cadeia significante

S Verwerfung
S S S

S S S Significante qualquer = S

Quando o significante do Nome-do-Pai se localiza no lugar do Outro, o


sujeito pode endereçar a questão do seu ser (sexualidade, morte etc.) a essa
função simbólica que ele representa.
Na experiência psicótica, o significante do Nome-do-Pai é foracluído, o
que significa que a metáfora paterna não aconteceu. Portanto, o sujeito não
ascende à linguagem pela via do simbólico. Segundo Lacan (1995), o sujeito
transita do registro imaginário (estádio do espelho) ao simbólico através de sua
vivência edipiana, momento em que o Nome-do-Pai surge para barrar o gozo da
mãe, fazendo emergir o falo como significante do desejo do Outro. No entanto,
11
na psicose, ao invés da emergência do falo, como causa de desejo do Outro, o
sujeito permanecerá preso em uma identificação arcaica ao desejo da mãe.
Outro Nome-do-Pai Outro Nome-do-Pai foracluido

Cçs
Criança

A foraclusão do Nome-do-Pai, é importante ressaltar, não se trata de um


fenômeno, visto que não está no nível de observação. Trata-se de uma hipótese
que Lacan define como falha no nível do Outro, na psicose, sendo esse o motivo
fundamental que a separa, de modo estrutural, da neurose. A identificação da
foraclusão é feita pelos seus efeitos, ou seja, é pela foraclusão que se explica os
fenômenos da psicose: “É num acidente desse registro e do que ele realiza, a
saber, na foraclusão do Nome-do-Pai no lugar do Outro, e no fracasso da
metáfora paterna, que apontamos a falha que confere à psicose sua condição
essencial, com a estrutura que a separa da neurose” (Lacan, 1999, p.582).
Portanto, nos fenômenos psicóticos ocorre o efeito da foraclusão do
Nome-do-Pai no simbólico. Podemos compreender também que, pelo fracasso
da metáfora paterna, o falo não vai estar no nível de significante do desejo do
Outro. Sendo assim, o “ser do ente” do sujeito, que precisa ser significado, não
está implicado na significação fálica – com isso, o sujeito psicótico não entra na
lógica fálica da cadeia significante. Com efeito, o simbólico que produz o
significante é vazio; o imaginário que produz o significado é concreto; e o real
onde se encontra o ser do ente do sujeito não é uma incógnita. Assim o sujeito
psicótico se arranja para suprir a ausência do Nome-do-Pai.

4.2 O ponto de basta

O pai, como função simbólica, é elaborado por Lacan no seminário 3.


Porém, no seminário 5, que data do mesmo período do texto De uma questão
preliminar a todo tratamento possível da psicose (1958), a função simbólica do
pai é lida através da metáfora paterna.
O Nome-do-Pai é o significante que metaforiza o desejo da mãe. Trata-
se, portanto, de uma simbolização primordial que produz a significação fálica,
que confere sentido ao ser do sujeito, ordenado na cadeia significante. Portanto,

12
a significação fálica é a via em que todo significante pode se atar a outro
significante, pois é ele que confere estabilidade de sentido à cadeia. Essa função
é chamada por Lacan de “ponto de basta”, isto é, algo que detém o deslizamento
do significado sobre o significante, permitindo assim a sustentação de uma
significação. Veja o que Lacan diz:
S
SSSSSS
s s s s s s

Observem bem do que se trata aqui, que é, no nível mais fundamental,


exatamente a mesma coisa que a longa metáfora comum no terreno
maníaco. De fato, a fórmula da metáfora que lhes forneci não quer dizer
nada senão isto: existem duas cadeias, os S do nível superior, que são
significantes, ao passo que encontramos abaixo deles tudo o que
circula de significados ambulantes, porque eles estão sempre
deslizando. A amarração de que falo, o ponto de basta, é tão somente
uma história mística, pois ninguém jamais pode alinhavar uma
significação num significante. Em contrapartida, o que se pode fazer é
atar um significante num sÍgn-ificante e ver no que dá. Nesse caso,
sempre se produz alguma coisa de novo, a qual, às vezes, é tão
inesperada quanto uma reação química, ou seja, o surgimento de uma
nova significação. (Lacan, 1998a, p. 202)

A partir desses termos, Lacan concebe a noção de sujeito como um efeito


do significante, de modo que os fenômenos que decorrem da foraclusão não
podem ser equivalentes a um déficit de simbólico, pois a foraclusão implica,
justamente, no retorno do simbólico no real.

TEMA 5 – PERVERSÃO

As estruturas clínicas da psicanálise só podem ser pensadas a partir do


complexo de Édipo – ou, como dito por Lacan, a partir da metáfora paterna.
Portanto, a questão da perversão não é diferente.
Freud examinou a perversão a partir de diversos aspectos. O maior
escândalo de sua elaboração foi romper a fronteira entre perversão e
normalidade. Segundo Freud, a perversão é o resultado da Verleugnung, isto é,
da negação da castração no Outro, não no sentido da foraclusão, tampouco
como resposta de um recalque, pois trata-se de um tempo que surge a partir do
complexo de Édipo.
No texto Fetichismo (1996c), Freud concebe o mecanismo da perversão
por uma dupla posição a um só tempo: reconhece que a mãe é castrada, ou seja,
não tem o falo, mas nega esse reconhecimento:

13
O fetiche é um substituto do pênis da mulher (da mãe) em que o
menininho outrora acreditou e que - por razões que nos são familiares
- não deseja abandonar. O que sucedeu, portanto, foi que o menino se
recusou a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher
não tem pênis. Não, isso não podia ser verdade, pois, se uma mulher
tinha sido castrada, então sua própria posse de um pênis estava em
perigo, e contra isso ergueu-se em revolta a parte de seu narcisismo
que a Natureza, como precaução, vinculou a esse órgão específico.
(Freud, 1996c, p. 95)

Segundo Lacan (1995, p. 158), a relação de objeto, apresenta a estrutura


do perverso a partir do fetiche. Ele ocupa a forma mais paradigmática na
perversão, cuja função é de véu ou cortina. O esquema é assim:

Objeto Nada
Sujeito

Cortina

Philippe Julien (2003, p. 112) explica que o véu esconde o Nada que fica
para além do Objeto enquanto desejo do Outro: “a mãe não tem o falo. Mas, ao
mesmo tempo e mesmo assim, o véu é o lugar onde se projeta a imagem fixa do
falo simbólico: a mãe tem o falo”.
Portanto, a imagem fálica projetada no véu, que esconde ao mesmo
tempo que designa o Nada, é o que o sujeito coloca diante dele, e onde podemos
localizar as seguintes perversões:

Fetichismo
Masoquismo Objeto Nada
Sujeito Voyeurismo
Homossexualidade Feminina

Véu

• Fetichismo: coloca véu sobre a falta fálica da mãe.


• Masoquismo: para o sujeito, o Outro é aquele que tem o chicote na mão,
como potência fálica.
• Voyeurismo: ele visa o desejo do Outro, introduz-se em seu mundo
privado. “O sujeito é fenda, fissura do véu que separa o escondido do
mostrado, o privado do público do espaço do Outro” (Julien 2003, p. 112).

14
De acordo com a crença perversa, todos tem o falo. Já ná
homossexualidade feminina, o que a mulher deseja na outra está para além de
ser amada por ela – é o que lhe falta.

NA PRÁTICA

Quem assistiu a série Motel Bates vai se lembrar da história de Norma e


Norman, mãe e filho que adquirem um motel em uma pequena cidade, onde vão
morar em busca de uma nova vida após a morte misteriosa do pai da família.
Norma era uma mulher bonita, sedutora, com um emocional complicado,
que se dedicava totalmente aos cuidados com o seu filho. No entanto, nem
sempre foi assim, pois teve um filho quando era mais jovem, que cresceu sem
os seus cuidados. Por outro lado, a relação com Norman, seu filho mais novo,
era excessivamente afetiva.
Norman era um jovem inteligente, bonito e às vezes tímido, com um
vínculo intenso, praticamente simbiótico com a mãe. Nessa relação entre mãe-
filho podemos encontrar o desejo da mãe, não metaforizado pelo significante do
Nome-do-Pai. Assim, a criança permanece identificada ao desejo materno, não
se diferenciando do outro. Afinal, é através da interdição do Nome-do-Pai que a
criança pode se separar da mãe, em busca de uma satisfação individual, se
diferenciando do Outro.
Normam era invadido o tempo todo pelo olhar da mãe, sentindo-se preso
a esse olhar onipotente, que tudo via. Quando entra um outro elemento na
relação, o xerife, Normam não consegue se sustentar, pois o seu eu estava
ligado, quase colado ao desejo da mãe. A perda desse olhar leva Normam a um
surto.

FINALIZANDO

A escolha da estrutura: vimos que Freud sempre se indagou a respeito do


modo como uma pessoa se constitui dentro de um tipo de estrutura clínica. No
início, suas investigações a respeito da etiologia se pautavam em
acontecimentos de ordem sexual. No último momento do seu ensino, Freud
estabelece uma distinção entre neurose e psicose: a neurose é o resultado de
um conflito entre o eu e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de
um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o mundo externo.

15
A tese de Lacan: vimos que Lacan busca, na origem da vida psíquica,
ocorrências fundamentais, isto é, mecanismos operantes que resultam na
constituição estrutural do sujeito. Ele pinça da teoria freudiana os temos
Verwerfung e Verneinung, buscando compreender as últimas consequências de
tais mecanismo.
A Verwerfung é uma rejeição primordial anterior a qualquer formulação de
juízo, que teria sido submetido à Bejahung, à simbolização primitiva, com
diversos destinos, que sob o golpe da Verwerfung primitiva terá um outro. O
destino da Verwerfung será apontado por Lacan como o mecanismo específico
da psicose.
A foraclusão: a Verwerfung será interpretada por Lacan como foraclusão,
pois a tese lacaniana recai sobre a simbolização primitiva do significante
primordial para organizar o psiquismo, a saber: o Nome-do-Pai, que foi
foracluído, ou seja, rejeitado da simbolização.
O fetiche: estrutura perversa elaborada por Freud a partir do objeto de
fetiche, que é colocado no lugar da castração do Outro.

16
REFERÊNCIAS

BROCA, R. El sujeito psicótico em el discurso analítico. Buenos Aires: Logos


Kalós, 2017.

CÔRTES, C. A. Psicose na psicanálise, escolha ou determinação? Curitiba:


Juruá, 2016.

FREUD, S. A disposição à neurose obsessiva: uma contribuição ao problema da


escolha da neurose. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996a.
v. 12.

_____. Carta 125. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.
v. 1.

_____. Fetichismo. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996c.
v. 21.

_____. História de uma neurose infantil. In: _____. Obras completas. Rio de
Janeiro: Imago, 1996d. v. 17.

_____. Neurose e psicose. In: _____. Obras completas. Rio de Janeiro: Imago,
1996e. v. 19.

IMBRIANO, A. Las enseñanzas de las psicoses. Buenos Aires: Letra viva,


2010.

JULIEN, P. Pisicose, perversão, neurose: a litura de Jacques Lacan. Rio de


Janeiro: Companhia de letras, 2003.

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose In:


_____. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998a.

_____. Livro 3, as psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

_____. Livro 4, a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.

_____. Livro 5, as formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

_____. Resposta ao comentário de Jean Hyppolite. In: _____. Escritos. Rio de


Janeiro: Zahar, 1998b.

17
ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS
AULA 4

Profª Juliana Santos


CONVERSA INICIAL

Em conteúdos anteriores, buscamos percorrer as trilhas de Freud e Lacan


para entendermos de que modo as estruturas clínicas se constituem. Freud se
indagava a respeito de por que uma pessoa “escolheria” a neurose ao invés da
psicose. Através dessa indagação, ele, ao longo de sua teorização, foi
encontrando alguns mecanismos que operam no início da vida psíquica e
condicionada à subjetividade em sua forma de apreender a realidade.
Freud, ainda que não tenha usado o termo estrutura, deixou pegadas para
que Lacan pudesse fundamentar a sua tese sobre a constituição das estruturas
clínicas. Isso porque foi através da interpretação do texto A negação (1925) que
Lacan apreende o conceito da Bejahung, uma afirmação primordial, que opera
no psiquismo a verificação de posse e de realidade das representações
internalizadas, atribuindo um juízo de existência.
A Bejahung é, portanto, a operação mais primordial de todas. Na sua
contraposição, está o que Freud nomeou de Austossung (expulsão), que,
segundo Lacan, é o campo do o real “na medida em que ele é o domínio que
subsiste fora da simbolização” (Lacan, 1954, p. 384). Contudo, se a Bejahung é
pura afirmação, para que ela se constitua como tal, algo tem que ser expulso, ou
melhor negado. A negação é, então, a forma possível da Bejahung se constituir
e se produzir no campo da consciência. Desse modo, o não viabiliza a existência
de um Bejahung.
É nesse sentido que Freud elabora a sua teoria da constituição da neurose
e perversão, onde é sob a égide da negação, da castração propriamente, que a
afirmação se institui por outras vias, isto é, pela via do recalque na neurose e por
via do desmentido na perversão.
Assim, para esta etapa, iremos nos deter nas ocorrências dessa
afirmação primária — a Bejahung, priorizando a ocorrência do recalque da
castração, em que o neurótico, para negar sua existência na consciência,
perpetua essa afirmação no inconsciente. E é daí que o sujeito se divide: por um
lado, pela força em que essa afirmação se institui; e por outro lado, por um não
querer saber nada sobre isso. E aí está a fórmula do conflito neurótico, que se
dá entre os impulsos do id e do ego.

2
Portanto, se as investigações acerca das neuroses sempre tiveram nos
holofotes da clínica psicanalítica, cabe-nos agora nos aprofundar sobre essa
estrutura, a fim de compreendermos o modo como o sujeito neurótico lida com a
sua realidade.

TEMA 1 – A NEUROSE

A neurose é o resultado de um conflito psíquico no qual resulta em


bloqueio das descargas necessárias, criando, desse modo, um estado
recalcado. Otto Fenichel (2004, p.119) afirma que, por definição, “o conflito
neurótico é um conflito que surge entre uma tendência que luta pela descarga e
outra tendência que tenta impedir esta última”.
Para entendermos a origem do conflito neurótico, vamos retomar o Projeto
para uma psicologia científica (1985), em que Freud apresenta a perspectiva
econômica do aparelho psíquico, aferindo à consciência o processo de descarga
do excesso de energia psíquica. Contudo, na evocação de lembranças muito
penosas, a consciência fica incapaz de reagir a essas representações, daí ela
se defende pela operação do recalque.
O recalque é, portanto, um mecanismo de defesa característico da
neurose, cujo objetivo é, essencialmente, afastar da consciência as ideias
incompatíveis. Porém, diante da queixa de seus pacientes, Freud se deu conta
que a operação do recalque é ineficiente e de que tais representações
insuportáveis retornam à consciência pelas formações inconscientes, a qual
Freud nomeou de sintoma.
Na Carta 105 (1899, p. 329), Freud destaca que “o sintoma surge ali onde
o pensamento recalcado e o pensamento recalcador conseguem juntar-se na
realização do desejo”. Desse modo, o sentido do sintoma é um par contraditório
de realização de desejo, conclui Freud.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, (1905), Freud nos indica
que a amnésia infantil se produz por uma ação do recalque e, por isso, tais
lembranças poderiam ser trazidas de volta em análise, já que elas não foram
apagadas. Nesse ponto, ele afirma que os neuróticos sofrem da mesma amnésia
infantil e, que, na sexualidade adulta seria um resíduo dessas experiências
infantis, que resistiria à recordação em virtude da moralidade impressa.

3
Assim, a sexualidade desempenha um papel fundamental na etiologia das
neuroses, pois é nesse encontro inevitavelmente traumático, que o sujeito
constitui sua defesa pela escolha de uma neurose.

1.1 O recalque

Freud concebeu o recalque como um mecanismo de defesa no qual as


representações insuportáveis são retidas e separadas da consciência, tal
operação estaria a serviço do princípio do prazer e se organiza no sistema
inconsciente. Com o desenvolvimento da teoria até a segunda tópica, o aparelho
psíquico é formulado em três instâncias: o eu, o id e o superego. Nessa nova
organização, o eu e o superego participam de determinada parcela inconsciente.
Desse modo, o recalcado é apenas parte do inconsciente, e não a parte inteira
dele, como se pensava antes.
A partir do conceito de pulsão de morte, o recalque passa por uma
revisão. No texto Inibição, sintoma e angústia (1926), o recalque é articulado a
“fora-da-lei”, visto que ele está submetido à lei do id, não a serviço do princípio
de prazer. Entretanto, o eu segue impondo uma censura, mas as moções
pulsionais não cessam de buscar a satisfação (Freud, 1926, p. 150). Assim, o
sujeito é impelido a uma compulsão à repetição inconsciente.

TEMA 2 – PULSÃO E FANTASIA

Freud, após comunicar à sociedade a existência da sexualidade infantil,


pôde conceber a teoria da pulsão como uma atividade primária. Nesse sentido,
a pulsão é posta como uma quantidade de energia que exerce força constante
em busca de satisfação, que só se encontra ao ser descarregada pelas zonas
erógenas (boca e ânus). É sob esse ponto de evacuação que a pulsão cria uma
fixação.
Assim, o corpo é uma superfície onde se inscrevem as primeiras marcas,
sede dos investimentos pulsionais. É a partir das incidências da linguagem que
o corpo perde a sua relação com a natureza e se transforma em um corpo
simbólico. O resultado dessa operação é a perda do objeto, isto é, a renúncia
pulsional imprescindível para a entrada no campo simbólico. Contudo, as zonas

4
erógenas não deixaram de buscar esse reencontro com o objeto perdido da
satisfação.
É nesse sentido que Freud declara que o neurótico sofre por
reminiscência. Ele se recusa a renunciar o objeto perdido, o objeto da satisfação
plena. Trata-se de das Ding, a coisa freudiana inominável, que se apresenta no
campo simbólico como falta.
Portanto, é em torno desse vazio que o sujeito vai se constituir no campo
simbólico, se utilizando dos sistemas de linguagem (metáfora e metonímia)
inconscientemente para tentar tamponar sua falta. A partir daí, surgem vários
objetos que vão sendo inseridos na cadeia significante e que têm por aspiração
o “eu ideal” (i(a)), a imagem plena. Trata-se do investimento feito na fantasia que
tenta articular o sujeito e o objeto.

2.1 A clínica da fantasia

Freud se deparou com a fantasia desde o início de sua prática clínica com
as histéricas. De início, chegou a acreditar nas cenas de sedução, as quais suas
pacientes relatavam nas entrelinhas. Mas, com o desenvolvimento da sua teoria,
pôde se dar conta que se tratava de uma realidade que não se conjectura com
o real, mas de uma realidade psíquica. Alessandra Fernandes Carreira (2009)
explica assim:

É justamente em função de seu caráter traumático que a


verossimilhança dessas cenas, narradas pelas histéricas freudianas,
não pôde ser tomada como inverdade, mas como ficção que dá
estrutura à verdade. Tal verdade é reiterada na enunciação que
subsiste nos enunciados dessa ficção e os engendra, fixando o sujeito
em um instante eterno e inenarrável: instante em que ele (não) é
tomado pelo desejo do Outro. (Carreira, 2009)

A fantasia passa a assumir o ponto crucial da escuta clínica, pois nela se


constitui um saber inconsciente onde o sujeito busca responder à questão sobre
o seu ser, tentando encobrir a falta inerente a ele.

2.2 Do Édipo à fantasia fundamental

Já sabemos que a constituição psíquica do sujeito se situa na vivência


edipiana, onde ocorrem os três tempos lógicos do Édipo. No primeiro tempo, a
criança está identificada ao objeto desejado da mãe (o falo materno), sendo

5
assim, a relação mãe-bebê plena; o segundo tempo ocorre a partir da presença
de um terceiro elemento, que faz a criança perceber que o desejo da mãe não
está dirigido apenas para ela, mas a mãe deseja outra coisa, geralmente o pai.
A interpretação da criança de que a mãe deseja o pai faz emergir uma rivalidade
imaginária com o pai, pois, para a criança, o pai tem o falo, que falta à mãe.
Assim, conforme nos ensina Lacan, é a função paterna, através do significante
Nome-do-Pai, que introduz a falta na relação mãe-bebê. A criança, então, perde
a identificação ao falo materno e recalca; começa o terceiro tempo lógico, onde
a criança se dá conta da castração da mãe e, assim, da sua própria castração e
vai em busca de ter falo. Portanto, o falo é elevado ao nível simbólico, fazendo
de todos castrados, inclusive o pai.
Ocorre que a criança, ao perder sua identificação ao falo, irá demandar
ao Outro, tesouro do significante, que responda sobre o seu desejo. Contudo, o
que surge desde aí é a pergunta: que quer você? (Lacan, 1960, p. 829).
O vazio pela falta de resposta do Outro indica que o Outro também é
faltoso, pois não existe nada que supra essa incompletude do Outro, portanto,
declara Lacan (1960, p. 833): “não há Outro do Outro”. Desse modo, o sujeito se
constitui pela falta do Outro, advindo como um falta-a-ser, pois do Outro não
receberá a resposta para o seu desejo. A falta, portanto, é irremediável, sendo
assim, a fantasia se forma para dar conta dela.
Portanto, a fantasia pode ser considerada o produto da operação do
complexo de Édipo, cujo registro é imaginário, mas que se articula ao simbólico,
e sua montagem inconsciente se ergue na tentativa de sanar o vazio deixado à
questão “Che Vuoi?”.
Coutinho Jorge (2010) afirma que a fantasia é um elemento que se
instaura para a criança como uma verdadeira contrapartida ao gozo que ela
perdeu. Assim, ela se constrói, essencialmente, como uma fantasia de
completude.

TEMA 3 – A FANTASIA FUNDAMENTAL

Freud (1919), em seu texto Bate-se numa criança, onde ele privilegia o
espancamento, mas poderia ser qualquer outra coisa, afirma que a fantasia
fundamental é uma fantasia origem edipiana, cuja dissolução desse complexo

6
faz emergir a fantasia como um resíduo que irá determinar a posição do sujeito
em seu modo de gozo.
O mecanismo principal que organiza a estrutura fantasmática, declara
Nasio (1993), está sempre encoberto por uma frase organizada em torno de um
verbo fácil de identificar no relato do paciente. O autor diz, ainda, que a
identificação do sujeito à posição de objeto, de fato, está no verbo da frase:
morder, espancar, sujar, ignorar etc.
Para entendermos isso, voltemos ao texto Bate-se numa criança, onde
Freud nos indica três tempos da fantasia:

1. Uma criança é espancada: é o relato de uma primeira cena emergente,


onde o relator não faz parte da cena, portanto, ela não é uma cena
masoquista nem sádica: bate-se.
2. Estou sendo espancada pelo meu pai: o relator da cena coincide com a
criança espancada. É uma cena de masoquismo, mas, segundo Freud,
trata-se de uma cena que nunca existiu, assim, diz respeito a uma
construção de análise.
3. Provavelmente estou olhando: o relator surge na cena apenas no lugar de
quem olha, não coincidindo com a criança espancada. Há presença de
excitação sexual masturbatória cujo caráter é sádico manifesto.

Freud, que de início considerou o sadismo de caráter primário, resultado


da rivalidade com a figura do pai, em 1920, com o conceito de pulsão de morte,
dá um passo atrás e reconhece no texto O problema econômico do masoquismo
(1924), que na origem está o masoquismo e permanecerá na base da estrutura
do sujeito. Portanto, com a nova leitura do masoquismo primário, podemos
entender que sobre o mecanismo da fantasia há um masoquismo nuclear, assim:
uma cena primária (deixa um traço de memória); depois, com a dissolução do
Édipo, a criança vai se identificar ao objeto da cena (a criança espancada), ou
seja, retroativamente (S1-S2), construindo a sua fantasia de base masoquista,
onde se vincula o gozo; e no terceiro tempo, o que caracteriza essa fase é que
a fantasia está fortemente ligada a uma excitação sexual e seu modo de gozo
resquícios dessas experiências. Sobre esse texto, Coutinho Jorge declara:

Os três tempos da fantasia “Uma criança é espancada” parecem,


assim, caminhar precisamente na seguinte direção: do amor ao gozo.
Da posição de sujeito, $, que a criança ocupa no primeiro tempo, para

7
a posição de objeto, a, que se delineia no segundo tempo e se
configura rapidamente no terceiro. (Coutinho Jorge, 2010, p. 108)

Portanto, a fantasia não se trata de um devaneio, ela porta o desejo.


Sendo assim, é a forma como o sujeito tenta encadear o seu desejo na cadeia
de significantes. Mas, em contrapartida, é justamente nessa tentativa de
passagem ao significante que o recalque é gerado.
Surge, então, o sintoma para encobrir a verdade do sujeito e, na clínica
psicanalítica, ele recebe voz para denunciar o desejo recalcado e desvelar o
modo de gozo da estrutura. Portanto, é dessa forma que o sujeito se apega ao
seu sintoma. Lacan situa o sintoma numa estreita relação com o corpo, que se
impõe para além das construções imaginárias e simbólicas que atravessam o
sujeito, pois há algo da dimensão do real, do sem sentido que não entra no
campo da linguagem do Outro.

TEMA 4 – A HISTERIA

Para a psicanálise, a histeria é, antes de mais nada, um dos modos como


o sujeito neurótico se enlaça e tece a suas relações com os outros a partir de
suas fantasias. Coutinho Jorge (2010) declara que a fantasia é uma espécie de
matriz psíquica que funciona mediatizando o encontro do sujeito com o real.
Desse modo, a fantasia constitui o princípio da realidade de cada sujeito. “Essa
fantasia, em que o sujeito é preso, é, como tal, o suporte do que se chama
expressamente, na teoria freudiana, o princípio de realidade” (Lacan citado por
Coutinho Jorge, 2010, p. 77).
Isso significa que o histérico, assim como qualquer sujeito neurótico, vai
se posicionar na relação afetiva com o outro de acordo com lógica de sua
estrutura, condicionado, sempre, por sua fantasia inconsciente sem que ele
tenha poder sobre isso.
A fantasia inconsciente diz respeito a algo traumático inerente à
sexualidade do histérico, contudo, Coutinho Jorge e Travasso (2021) sublinham
que se trata de um trauma contingencial, visto que não há como não ocorrer,
pois refere-se à falta de inscrição da diferença sexual no inconsciente. Sendo
assim, a própria concepção do sexo é, inevitavelmente, traumática. “Trata-se
aqui do real inerente ao pulsional, do inassimilável inerente à sexualidade, com
sua intensidade e excesso” (Coutinho Jorge; Travasso, 2021).

8
Freud descobre um paradoxo da sexualidade histérica, no qual aponta
para uma grande necessidade sexual, no mesmo passo que demostra uma
profunda aversão ao sexo. Assim, constata que o sujeito histérico erotiza o corpo
e amortece o órgão sexual. Na histeria, o corpo é sexualizado, exceto o próprio
sexo. Nesse sentido, os sintomas histéricos ocorrem geralmente no corpo,
obedecendo ao significante inconsciente. No texto Fragmento da análise de um
caso de histeria, Freud (1905, p. 37) declara: “Eu tomaria por histérica, sem
hesitação, qualquer pessoa em quem uma oportunidade de excitação sexual
despertasse sentimentos preponderantes ou exclusivamente desprazerosos,
fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos”.
A inibição sexual histérica, contudo, não significa um retraimento, destaca
Nasio (1991), pois, na verdade, trata-se de um movimento ativo de rechaço. Diz
mais em A Histeria:

A impotência, a ejaculação precoce, o vaginismo ou a frigidez, todos


são distúrbios característicos da vida sexual do histérico, os quais, de
uma maneira ou de outra, exprimem a angústia inconsciente do homem
de penetrar no corpo da mulher, e a angústia inconsciente da mulher
de se deixar penetrar. O paradoxo do histérico diante da sexualidade
caracteriza-se, portanto, por uma contradição: de um lado, há homens
e mulheres excessivamente preocupados com a sexualidade,
procurando erotizar toda e qualquer relação social, e de outro, eles
sofrem — sem saber por que sofrem — por ter que passar pela
experiência do encontro genital com o sexo oposto. (Nasio, 1991, p.
45)

É preciso compreender, o quanto antes, que a sexualidade histérica não


é uma sexualidade genital, mas um “simulacro de sexualidade”, visto que seu
gozo está mais em criar sinais sexuais que raramente vão estar articulados ao
ato sexual que ele enuncia. “E, no entanto, se há um desejo a que o histérico se
atém é o de que esse ato (sexual enunciado por ele) fracasse; mais exatamente,
ele se apega ao desejo inconsciente de não realização do ato” (Nasio, 1991, p.
18), pois para o histérico, o desejo é que o desejo continue insatisfeito.
Mas, por que sustentar um desejo insatisfeito, se deveríamos ir em busca
de satisfação? Nasio (1991, p. 15) responde:

o histérico é fundamentalmente um ser de medo que, para atenuar sua


angústia, não encontrou outro recurso senão manter incessantemente,
em suas fantasias e em sua vida, o doloroso estado de insatisfação,
pois, para ele, o perigo pressentido que o levaria a seu aniquilamento
é “o perigo de viver o gozo máximo”.

Portanto, a questão da histeria é posta por Nasio da seguinte forma:

9
Pouco importa que ele imagine esse gozo máximo como o gozo do
incesto, o sofrimento da morte ou a dor da agonia; e pouco importa que
imagine os riscos desse perigo sob a forma da loucura, da dissolução
ou do aniquilamento de seu ser: o problema consiste em evitar a
qualquer preço qualquer experiência que evoque de perto ou de longe
um estado de plena e absoluta satisfação. Esse estado, de resto
impossível, é pressentido pelo histérico, no entanto, como o perigo
supremo de um dia ser arrebatado pelo êxtase e gozar até a derradeira
morte. (Nasio, 1991, p. 16)

O sujeito histérico é aquele, então, que para se defender de um gozo


máximo, ele se mantém num estado fantasmático de insatisfação. O histérico se
afasta da ameaça do gozo, construindo inconscientemente um cenário
fantasmático, do qual tenta provar a si mesmo que há falta e, portanto, o seu
gozo permanecerá insatisfeito.
A realidade histérica, consequentemente, terá os moldes de sua fantasia.
Desse modo, as pessoas de seu convívio também serão portadoras da falta, pelo
qual o histérico desenvolve, de formas aguçadas, meios incessantes de busca,
para poder apontar a falta do outro.

4.1 O caso Dora

O caso Dora é o caso clínico de histeria mais paradigmático da


psicanálise. Dora era uma jovem de 18 anos quando chegou para receber o
tratamento psicanalítico. Segundo relato de Freud, Dora apresentava todos os
sintomas que caracterizavam uma pequena histeria: enxaquecas, tosse nervosa,
perda da voz, abatimento e tédio da vida. Mas o fato que levou o pai de Dora a
buscar ajuda de Freud foi ter encontrado uma carta de despedida endereçada
aos seus pais, pois ela “não podia mais suportar a vida”, somada a um ataque
de perda de consciência.
A trama que rodeia a vida de Dora é formada pela relação conturbada
com a sua mãe, pois ela se recusa a ajudar nos afazeres domésticos; pela
relação com o pai, que manteve uma relação de amante com a Sra. K; pelo Sr.
K, que a cortejava e ela fingia não ver, pois, por causa da relação de amantes
entre o seu pai e a Sra. K, Dora se colocava como objeto de troca dessa relação.
Dora admite à Freud que era cúmplice dessa relação amorosa
extraconjugal de seu pai, pois todas as vezes que visitavam a Sra. K, cuidava de
seus dois filhos para deixá-los sozinhos.

10
Dora e a Sra. K eram amigas, confidentes e conselheiras. Nas vezes em
que Dora dormia na casa da Sra. K, o Sr. K deixava o quarto para que elas
dormissem na mesma cama, já que entre as duas não havia nada que não
pudessem ser conversado. Dora elogiava o corpo, a pele e a aparência da Sra.
K para Freud, o que lhe parecia mais um relato de amantes do que uma mulher
se referindo a uma rival.
Nessa relação com a família K, Dora relata a Freud que, quando tinha 14
anos, o Sr. K a convidou para encontrar-se com ele e a Sra. K, para juntos irem
à procissão. Ocorre que quando Dora chega à loja do Sr. K, ele estava sozinho,
e quando os dois vão sair, ele abraça Dora e lhe dá um beijo na boca. Dora conta
que sente uma violenta repugnância. Nadiá P. Ferreira e Marcus A. Motta (2014)
destacam essa cena e apontam para o horror histérico:

Esse beijo, um segredo só revelado na análise, opera, segundo Freud,


um trauma sexual que se conecta com outras experiências sexuais
traumáticas da infância. Referindo-se a esse episódio, Jacques-Alain
Miller comenta que o horror que Dora passa a sentir por um homem
sexualmente excitado e o nojo, que provém do recalque da parte
erógena dos lábios, permitem “afirmar que a interpretação que Freud
realiza centra-se no mau encontro de Dora com o gozo sexual”.
(Ferreira; Motta, 2014, p. 15)

Um segundo episódio é relatado por Dora. Ela conta que num passeio à
beira do lago com o Sr. K, ele a beija novamente e lhe faz uma declaração de
amor. Dessa vez, Dora lhe bofeteia e sai correndo. Passados uns dias, Dora
conta à mãe o que ocorre. Esta, por sua vez, relata ao seu marido. Contudo, o
Sr. K, ao ser procurado pelo pai de Dora, nega a acusação e diz ser fruto da
imaginação de Dora. O Sr. K tinha ao seu favor a denúncia de que Dora, junto
com sua esposa, tinham o hábito de ler livros inapropriados para a idade dela.
Freud aponta para a traição da Sra. K com a sua amiga, pois revelara o
segredo das duas, mas o que surpreende Freud é que Dora, no lugar de sentir
ódio de sua amiga, sente ciúmes da relação amorosa que ela tinha com o pai.
Lacan (1951), em seu texto Intervenção sobre a transferência, assinala
para a inversão dialética estabelecida por Freud, pois ele se dá conta de que o
repentino ciúme de Dora pelo pai mascara, na verdade, uma fascinação pela
Sra. K, motivo pelo qual Dora se mantém leal, mesmo depois da traição e ela
própria se passando por mentirosa.

11
Numa primeira interpretação dada por Freud, ele acreditou que se tratava
de um amor recalcado pelo Sr. K. Mas, com a cena do lago, esse amor, por
motivos ainda desconhecidos, fez desencadear uma violenta resistência,
fazendo ressurgir o amor infantil. Já na última interpretação, Freud descobre a
face homossexual da neurose histérica, de modo que, a nível inconsciente, o
ciúme de Dora pela Sra. K é, de fato, fruto de sua identificação com o homem.
“Essas correntes afetivas masculinas, ou, melhor dizendo, ginecofílicas, devem
ser consideradas típicas da vida amorosa inconsciente das jovens histéricas”
(Freud citado por Ferreira; Motta, 2014, p. 16).
No seminário 4, Lacan (1957) sublinha que o laço libidinal que liga Dora à
Sra. K trata-se de uma identificação histérica à imagem viril. Portanto, ela, por
via do Sr. K, na medida em que está identificada imaginariamente ao Sr. K, está
ligada à Sra. K. Assim, conforme nos explica Ferreira e Motta, entre Dora e a
Sra. K, é muito mais do que uma paixão, mas trata-se de uma questão histérica:
o que é uma mulher?

Muito mais que uma paixão, o que liga Dora à Sra. K. é uma questão:
o que é ser mulher? É a partir dessa questão, encarnada na Sra. K.,
que Dora se situa em uma relação triangular. Todos, ou seja, ela, seu
pai e o Sr. K., idolatram a Sra. K. Dora, de certa forma, é
condescendente com o assédio do Sr. K. Mas ela o esbofeteia quando
ele lhe diz que a Sra. K. não é nada para ele. (Ferreira; Motta, 2014, p.
17)

Freud apreende, a partir do caso Dora, que a estrutura da fantasia


histérica é atravessada pelo desejo da bissexualidade que se enuncia através
da questão do impossível do sexo: sou homem ou mulher?

TEMA 5 – NEUROSE OBSESSIVA

Que a psicanálise foi inventada pelo encontro de Freud com as histerias,


todo mundo já sabe, mas o que é menos evidenciado é que Freud “inventou” a
neurose obsessiva. Pois bem, Maria Anita Carneiro (2011, p. 23), em seu livro
Um certo tipo de mulher, enfatiza que Freud foi o pai da neurose obsessiva: “sua
cria, surgida do rigor da pesquisa e do cuidado meticuloso com o diagnóstico
diferencial”. Ao contrário da histeria que os sintomas se manifestam
primordialmente no corpo, na neurose obsessiva, o sujeito sofre dos
pensamentos.

12
Na neurose obsessiva, o encontro com o sexo, que é sempre traumático,
é acompanhado com um excesso de gozo, que posteriormente, ao surgir na
consciência, será acompanhado de culpa e autorrecriminação. Desse modo,
será recalcado, e o afeto é deslocado para uma ideia substitutiva. O sujeito
obsessivo passará, então, a ser atormentado por uma autorrecriminação sobre
fatos aparentemente fúteis e irrelevantes.

Freud diz que, na verdade, a ideia obsessiva é correta no que tange ao


afeto e à categoria, mas é falsa em decorrência do deslocamento e da
substituição por analogia. Ou seja: a ideia obsessiva pode ser contrária
a qualquer lógica, embora sua força compulsiva seja inabalável.
(Carneiro, 2011, p. 16)

A formação dos sintomas da neurose obsessiva tem como efeito o


deslocamento do afeto e a substituição por analogia da representação
traumática. Por isso, a operação do recalque é mais frágil do que de uma histeria
que converte o sintoma no corpo. A consequência dessa fragilidade do recalque
pode ser observada facilmente na clínica, pois o obsessivo acaba colocando na
sua fala elementos que deveriam estar recalcados. Por exemplo: com
frequência, vemos relatos de sonhos eróticos, que ao final o analisante diz: “não
era a minha mãe”. Assim, através da negação, Freud vai nos dizer que o sujeito
se autoriza a dizer a frase proibida: “era a minha mãe”, pois, afinal, foi o próprio
analisante, que colocou a mãe na conversa.
Outro fenômeno presente nos sintomas obsessivos é a crença na
representação recalcada, pois o obsessivo crê na autorrecriminação, crê na
representação recalcada, e é porque crê, ele se permite duvidar. A dúvida, que,
como destaca Carneiro (2011), Descartes elevou à dignidade de um método
filosófico, não será apenas um sintoma da neurose obsessiva, mas também uma
defesa contra a angústia, contra o afeto que se desloca de uma representação
à outra. Desse modo, o neurótico obsessivo tende a esvaziar o seu afeto.
É nesse ponto, da crença, que Freud distingue a paranoia da neurose
obsessiva, pois em ambas o encontro com o sexo é vivenciado com gozo
excessivo, mas enquanto na neurose há uma autorrecriminação, na paranoia o
sujeito não crê na autorrecriminação, pois ele projeta a culpa para o outro.

13
5.1 Do sintoma da neurose obsessiva a sua fantasia

A neurose, como bem vimos, é resposta do recalque ao trauma sexual.


Através dessa descoberta, Freud conclui que não há indicação de realidade
objetiva no inconsciente, portanto, a realidade é psíquica, fruto de uma fantasia
inconsciente. Assim, quando tratamos do inconsciente, não há como distinguir a
verdade da ficção, pois a verdade do sujeito é tecida pela sua ficção. Sendo
assim, a fidedignidade dos fatos não nos interessa, visto que a verdade está no
que o sujeito conta.
Na neurose obsessiva, o sujeito está preso ao tema da morte, pois ela
configura o tema da castração, visto que na fantasia inconsciente, o pai pode
matá-lo por ter desejado e gozado da mãe. Essa ideia está na origem do sintoma,
que se constitui como compromisso à representação intolerável do trauma que
provocou gozo e culpa.
Outra consequência dessa fantasia inconsciente, na neurose obsessiva o
sujeito tenta, a todo custo, anular o seu desejo, cujas estratégias são de várias
consequências clínicas, mas com o mesmo objetivo: dar um curto-circuito no
desejo. Maria Anita Carneiro (2011) declara:

A estratégia obsessiva divide-se em duas partes: em primeiro lugar,


trata-se de fazer calar o desejo do outro reduzindo-o aos pedidos que
o outro lhe faz. Assim, um obsessivo pode ser muito solícito, muito
gentil, atendendo da melhor maneira a tudo que lhe pedem para não
deixar espaço para o desejo, que está oculto para além do que se pede
explicitamente. Ou então pode ser um sujeito “do contra”, que se opõe
aos pedidos dos outros, mantendo assim a ilusão de que anula o
desejo. São manobras opostas a serviço da mesma estratégia.
(Carneiro, 2011, p. 25)

Para se afastar do seu desejo, o sujeito obsessivo o mantém no lugar do


impossível. Assim, a procrastinação faz parte de sua vida, visto que ele joga para
o tempo o seu desejo. Portanto, só faz o que precisa quando não tem mais tempo
e precisa fazer. Carneiro sublinha que os sintomas da neurose obsessiva estão
articulados ao pai.

O obsessivo crê no pai, crê no traço identificatório tomado do pai e,


portanto, crê nas palavras, crê no pensamento, e é a partir dessa
crença que combate o desejo. O desejo é contra a lei, incestuoso — o
desejo proibido pela mãe inclui o desejo da morte do pai. O obsessivo,
submisso, se identifica ao traço tomado do pai (identificação simbólica),
mas também se identifica imaginariamente ao pai, cujo lugar quer
ocupar. E é a partir daí que a culpa cobra seu preço. (Carneiro, 2011,
p. 26)

14
5.2 O caso do homem dos ratos

O caso do homem dos ratos é paradigmático na clínica da neurose


obsessiva. Trata-se do relato de um jovem tenente de nome Lehrs, que buscou
Freud (1909), em meio a muito sofrimento. Ele conta que em seu acampamento
militar havia um certo capitão, que narrou uma crueldade que se aplicava no
Oriente, onde, segundo o capitão, tomava-se um tonel com uma única abertura
e nele se colocavam muitos ratos famintos. E sobre a abertura do tonel, era posta
uma pessoa completamente nua para ser torturada, oferecendo-o, assim, como
única saída o seu corpo.
A partir dessa história, o jovem tenente passou a se sentir perturbado com
uma viva impressão, que a história que deixara. Passados uns dias, os óculos
que ele havia encomendado, após perder os seus, chegaram de Viena, e o tal
capitão, erroneamente, cobrou-lhe, dizendo que ele deveria pagar o reembolso
postal ao tenente Z, pois este havia pagado a dívida. Prontamente, jurou
mentalmente fazê-lo, e completou em pensamento a frase do capitão: “senão o
suplício dos ratos será aplicado à moça que eu amo e a meu pai”. O detalhe é
que seu pai já havia falecido.
Ocorre que quando vai pagar a sua dívida, descobre que quem pagou a
sua postagem foi uma senhora que trabalhava no correio. Então, armou de pagar
o tenente Z, para que ele pagasse a senhora do correio, mas o tenente Z havia
sido transferido para outro regimento em outra cidade. O tenente Lehrs resolveu,
então, pegar um trem e ir ao encontro do tenente Z, para convencê-lo a voltar
com ele para que ele o entregasse à senhora do correio, para que assim o
dinheiro fosse entregue ao verdadeiro encarregado do correio, o tenente B. Todo
esse jogo logístico ocorreu para que o tormento dos ratos não fosse aplicado à
sua namorada e ao seu pai, que aliás já estava morto.
Freud se dá conta de um elemento central em todos os casos de neurose
obsessiva — a dívida. A dívida, no caso do homem dos ratos, tem uma estreita
relação com a imagem do seu pai, pois, seu pai morreu devendo uma dívida de
jogo. “Diante de sua própria dívida para com a senhora do correio, agravada pelo
juramento que fizera, o tenente Lehrs se vê identificado ao pai devedor”
(Carneiro, 2011, p. 31).

15
No relato do homem dos ratos, Freud destaca que, em sua fala de
suplício, era possível observar em seu rosto um gozo desconhecido para o
próprio sujeito, pois parecia que ele se sentia fascinado e assustado pelo próprio
relato. Outro ponto destacado por Freud é que, o obsessivo, traz uma fala
interrompida, incompleta, mostrando dificuldade de tocar em assuntos difíceis,
trata-se de “mecanismo auxiliares do recalque”, pois o obsessivo sabe que ao
falar o desejo escapa. Nesse sentido, ele tenta anular a significação dos seus
atos e fala, por conta disso, que é necessário ao analista auxiliá-lo, emprestando-
lhe palavras.

NA PRÁTICA

Na clínica da neurose obsessiva, o Outro goza, como o capitão do homem


dos ratos, pois o Outro é patente do pai da horda primitiva que barra o seu acesso
ao gozo. Assim, para não deixar emergir o gozo do Outro, o sujeito anula o seu
desejo, com a dúvida, com pensamentos trágicos, com cálculos impossíveis,
pois, diante do Outro, o sujeito está sempre na posição de escravo.
Por exemplo: um analisante que desde criança buscava ganhar dinheiro,
pois achava que não podia ser um peso para sua família. Começou a trabalhar
logo que pôde e arcou com muita dificuldade a todo custo da sua faculdade. Diz
ser muito dinheirista e nunca se sentiu à vontade para pedir as coisas para a sua
mãe.
Nesse caso, a relação com o dinheiro se agravou quando a analisante
perde o seu pai, e sua mãe fica muito “depressiva”. Essa situação a levou a
assumir o papel de supridor, cuja falta da família não podia parecer que
prontamente se forçava por tamponar. Entrava em relacionamentos abusivos,
dos quais não conseguia sair.
Quando a analisante começa o tratamento, aos poucos ela vai se dando
conta de todas as contradições de sua vida, pois sempre se direcionava para
caminhos que se opunha ao que deseja, visto que seu desejo era diminuído
frente ao desejo do outro, uma relação de escravo. A fantasia do neurótico
obsessivo é sustentada por uma dívida simbólica impagável, que o coloca
sempre culpado diante do seu desejo.

16
FINALIZANDO

A neurose: vimos que a neurose é resposta do recalque que opera no


encontro com o sexo, que, inevitavelmente, é da ordem do trauma.
A clínica da fantasia: assim, na neurose, o sujeito retira o investimento da
libido no objeto da realidade e o investe no objeto da fantasia.
A fantasia fundamental: na base estrutural de toda fantasia, existe o
masoquismo original, pelo qual o sujeito constitui o seu modo de gozo apoiado
em sua fantasia fundamental.
A histeria: em sua fantasia, o sujeito histérico se questiona: sou homem
ou mulher? Visto que seu corpo é entregue, mas seu gozo se mantém
insatisfeito.
A neurose obsessiva: em sua fantasia, o sujeito obsessivo está preso ao
tema da morte, pelo qual a morte é a grande figura da castração.

17
REFERÊNCIAS

CARNEIRO, M. A. A neurose obsessiva. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

CARREIRA, A. F. Algumas considerações sobre a fantasia em Freud e Lacan.


Psicologia USP [online], v. 20, n. 2, p. 157-171, 2009. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0103-65642009000200002>. Acesso em: 8 maio
2022.

COUTINHO JORGE, M. A.; TRAVASSO, N. P. Histeria e sexualidade. Rio de


Janeiro: Zahar, 2021.

FERREIRA, N. P.; MOTTA, M. A. A histeria: o caso Dora. Rio de Janeiro: Zahar,


2014.

FREUD, S. Carta 125. In: Obras completas, Vol. 1. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_____. Fragmentos da análise de um caso de histeria. Obras completas, Vol.


1. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

_____. Projeto para uma psicologia científica. In: Obras completas, Vol. 1. Rio
de Janeiro: Imago, 1996.

_____. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Obras completas, Vol. 1.


Rio de Janeiro: Imago, 1996.

NASIO, J. D. A histeria: teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1991.

18
ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS
AULA 5

Profª Juliana Santos


CONVERSA INICIAL

Nosso percurso, até aqui, nos possibilitou conhecer a constituição da vida


psíquica, isto é, o modo como cada sujeito acessa ao registro simbólico, que
pode ser pelo recalque na neurose, a foraclusão na psicose e desmentida pela
perversão.
Em conteúdos anteriores, estudamos, mais especificamente, as neuroses
e o modo como os sintomas histéricos e obsessivos se moldam de acordo com
a fantasia que estrutura a sua posição subjetiva.
Nesta etapa, vamos nos deter, de forma mais minuciosa, sobre a clínica
da psicose, a fim que possamos compreender os fenômenos elementares que
constitui essa estrutura, bem como as formações delirantes que são produzidas
a partir dos subtipos clínicos: Paranoia, esquizofrenia e melancolia.
É evidente que a loucura sempre esteve no alvo das reflexões de Freud,
contudo, ele mesmo não acreditava que o tratamento da psicanálise pudesse
operar sob essa estrutura – pois, para Freud era impossível que o sujeito
psicótico estabelecesse transferência com o analista, por conta de sua fixação
narcísica. Contudo, Lacan, ao adentar a psicanálise por via da psicose declara
que os psicanalistas não devem recuar diante dessa estrutura clínica.
Para Lacan, a transferência na psicose acontece por uma outra via,
diferente da neurose – o delírio erotomaníaco, ou seja, “uma forma de amor
projetiva, exacerbada que precisa ser manejada a fim de que o psicótico possa
produzir, durante seu percurso analítico, uma solução subjetiva”, conforme
citado por Guerra (2010).
A solução subjetiva da psicose é completamente diferente da neurose,
porém, Lacan ensina que ela também possui uma lógica, pela qual necessita
ganhar escuta, assim como os sintomas neuróticos, pois, ainda que o psicótico
delire, fale sobre coisas que pareçam não existir, alucine, deprima-se
profundamente e desconfie do outro a ponto de agir com violência, é
imprescindível que suas produções sejam ouvidas não como uma déficit, mas,
como uma linguagem, uma posição subjetiva que abre o caminho para fazer
advir o sujeito.

2
TEMA 1 – A PSICOSE

A psicose se diferencia da neurose e perversão e, foi a psicanálise que


evidenciou o seu mecanismo específico. Em Freud a psicose refere-se a um
estado de defesa rigoroso, no qual, o eu para se defender de representações
insuportáveis se refugiando na psicose. Dito de outro modo, o eu rejeita a ideia
inassimilável e expulsa-a para fora, se separando, assim, da realidade, visto que
essa ideia inassimilável está inseparavelmente ligada a um fragmento da
realidade.
O caso Schreber é um dos maiores textos da tradição psicanalítica, pois
trata-se do texto mais frutífero, no campo da psicose, escrito por Freud. Sua
análise decorre do livro autobiográfico do presidente Dr. Daniel Paul Schreber,
portanto, Freud só teve contato com Schreber pelo seu livro e nunca
pessoalmente. Na sequência, vamos conhecer o caso.

1.1 Um breve resumo do Caso Schreber

Daniel Paul Schreber era considerado um homem incomum, pois possuía


inúmeras capacidade analíticas e intelectuais para a sua época, sendo doutor
em direito e juiz-presidente da Corte de Apelação da Saxônia. Sua primeira crise
ocorreu quando tinha 42 anos - em seu registro médico constava o diagnóstico
de “hipocondria grave”. Schreber ficou internado por vários meses na clínica do
Dr. Flechsig, motivo pelo qual nutriu uma imensa gratidão ao doutor que lhe
curou.
Schreber escreve em sua biografia a frustração de não ter tido filhos.
Conta que, mesmo casado por tanto tempo e mesmo passados 8 anos após a
sua internação e tido momentos “muito felizes” ao lado de sua esposa, o fato de
não ter filhos o desagradava.
Aos 51 anos de idade, foi nomeado presidente da Corte de Apelação. E
antes de assumir o cargo, sonhou por diversas noites que estava enfermo
novamente. Relata, ainda, que em uma manhã, quando estava semiacordado,
surgiu-lhe um pensamento: “seria muito bom ser uma mulher submetendo-se ao
coito”. Essa ideia foi extremamente rejeitada por Schreber.
Passados alguns meses, após sua nomeação, Schreber começou a ter
insônia, que foi se agravando e juntou-se à sensação de “amolecimento”
cerebral. Em seguida, surgiram ideias de perseguição e prenúncios de morte,

3
somadas a sensibilidades à luz e ao barulho. Depois disso, vieram as
alucinações visuais e auditivas, nas quais se via morto e se decompondo,
acometido pela peste e lepra.
Schreber passou a ficar por horas submetido ao terror de sua alucinação,
chegando a desejar a morte e tentar o suicídio em vários momentos. O último
estágio do seu delírio ganhou ares místicos, no qual passou a se relacionar
diretamente com Deus.

1.2 O delírio de Schreber

Os delírios de Schreber seguem duas vertentes de suma engenhosidade.


Uma se configura em perseguição e a outra na sua transformação em mulher.
No primeiro momento do discurso delirante de Schreber, ele se acha perseguido
por ninguém menos que o próprio Deus. É Deus quem está no comando de um
complô contra a sua integridade física e ameaçando a sua sanidade mental - e
que, para isso, instrumentaliza de tudo que o cerca, utilizando até mesmo o Dr.
Flechsig para lhe atingir. Segundo o relato de Schreber, de sua segunda crise, o
Dr. Flechsig se apresentou como um “agente divino” que operou nele ligações
nervosas para falar-lhe em sua cabeça, sendo isso nomeado por Schreber de
“assassinato de alma”.
Nenhuma parte do corpo de Schreber é poupada. J. D. Nasio, em seu livro
Os Grandes Casos de Psicose (2001), traz um recorte da ameaça ao corpo de
Schreber, em que se descreve que: “retiraram-lhe seus intestinos. Seu esôfago
foi picado em pedacinhos. Suas costelas foram quebradas e ele engoliu parte da
laringe. Seu estômago foi substituído por um judeu. Os nervos da cabeça foram-
lhe arrancados”. Os “raios de Deus”, que atravessavam o corpo de Schreber, se
aproveitavam de qualquer “descuido” para fugir e nesse momento Schreber
emitia uivos, para mostrar a Deus que ainda estava vivo e não havia “perdido a
cabeça”.
No segundo momento de seu delírio, Schreber consente ser a mulher de
Deus, sendo esse o momento crucial, em que ele se transforma em mulher por
via de sua emasculação. Nasio aponta ainda que no auge do delírio de
perseguição, a emasculação destinava-se a humilhá-lo, a fim de que ele fosse
posto como uma prostituta para ser abusado sexualmente. A prova disso era que
os raios de Deus o chamavam de “miss Schreber”. Mas, nesse segundo
momento do delírio, Schreber aceita ser transformado em mulher pelo “bem da
4
humanidade”. Em suma, diz o autor, Schreber começou a se reconciliar com a
ideia de transformar-se em mulher, quando entendeu que esse era um
“propósito” de Deus, que reclamava por sua feminilidade para salvar a
humanidade: “é meu dever oferecer aos raios divinos a volúpia e o gozo que eles
buscam em meu corpo”. (Schreber, citado por Nasio, 2001, p. 51)
A missão de Schreber era criar uma humanidade (de raça “schreberiana”),
sendo essa construção delirante a solução de seu conflito.

TEMA 2 – AS LIÇÕES DO CASO SCHREBER

Freud, ao analisar o caso Schreber, abordou os seus sintomas


restabelecendo a função da doença, como sempre fez, pois, assim como o
inconsciente obedece a uma lógica em suas manifestações clínicas, na psicose,
ele demostra que também obedece a um rigor próprio dela.
Assim, ao confrontar-se com o delírio de Schreber, Freud propõe
encontrar uma ideia coerente e específica à ele, rompendo, desde aí, com a
tradição psiquiátrica. Freud apontou para a evolução sistemática e projetiva dos
delírios de Schreber, distinguindo como um caso de paranoia e separando-o
nosograficamente da esquizofrenia, pois, do ponto de vista teórico, Freud
sustenta sua teoria da libido - na qual o paranoico retira do mundo externo a
libido investida e reinveste no próprio eu. Foi o que aconteceu com Schreber,
quando seu mundo foi destruído.
Voltemos à irrupção da doença de Schreber, que, segundo Freud, se
originou de um conflito que o levou ao rompante da doença quando foi acometido
pela ideia inassimilável, na qual ele relata: “como seria bom ser mulher
submetendo-se ao coito”. Sendo, portanto, por essa via que a psicose surge,
como tentativa de resolver o conflito.
Freud, então, nos ensina, a partir do delírio de Schreber, que todo delírio
é uma tentativa de cura. Schreber, no caso, ao ser confrontado com ideias
“incompatíveis”, forma uma rede com vários elementos que parecem aleatórios,
contudo, a complexidade com que os elementos se conectam, demostra que, na
verdade, trata-se de uma “produção” que busca restabelecer o laço com a
realidade.
Portanto, Freud destaca que o desmonte do mundo de Schreber, isto é, o
surto, representa a retirada da libido dos objetos do mundo externo. E o
restabelecimento da libido é feito pelas formações delirantes. Freud diz: “A
5
formação delirante, que presumimos ser o produto patológico, é, na realidade,
uma tentativa de restabelecimento, um processo de reconstrução” (1996, p. 78).
Além disso:

Podemos dizer, então, que o processo da repressão propriamente dita


consiste num desligamento da libido em relação às pessoas – e coisas
– que foram anteriormente amadas. Acontece silenciosamente; dele
não recebemos informação, só podemos inferi-los dos acontecimentos
subsequentes. O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o
processo de restabelecimento [...]. Foi incorreto dizer que a percepção
suprimida internamente é projetada para o exterior; na verdade é, pelo
contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente
abolido retorna desde fora. (Freud, 1911, p. 78)

O trabalho do delírio tem, por fim, a construção da metáfora delirante, isto


é, a produção do falo – que para Schreber é a mulher de Deus, que foi de ameaça
insuportável a uma saída benéfica – a redenção do mundo, via pela qual
Schreber restabelece a ligação com os outros.

2.1 Fenômenos elementares

Partindo da definição do sintoma como metáfora nas neuroses, os


fenômenos elementares são os que fazem sintoma nas psicoses, sendo a
expressão radical da passagem do simbólico para o real, ao que se refere ao
significante foracluído na estrutura do discurso inconsciente.
Os fenômenos elementares estão na estrutura psicótica. É Lacan, no
Seminário 3 (1956), que evidencia a lógica da composição estrutural dos
fenômenos elementares que estão postos e não são subjacentes à construção
do delírio, pois eles possuem a sua própria “força” constituinte nos trabalhos de
delírio, quer seja em uma de suas partes, ou em sua totalidade. “Isso quer dizer
que a noção de elemento não deve ser tomada aí de modo diferente da de
estrutura, estrutura diferenciada, irredutível à outra que não ela mesma” (p. 30).
Dessa forma, as psicoses e seus fenômenos possuem uma estrutura de
linguagem (bem como as neuroses) sendo que os sintomas psicóticos não
são os de metáfora e, sim, os que surgem pela falta da metáfora, sendo eles
os fenômenos elementares que estão ao nível do fenômeno e da causa da
psicose.
Os fenômenos elementares podem ser compreendidos pelo conjunto de
fenômenos que se enquadram na semiologia da psicose. São os elementos que
obedecem ao automatismo da repetição quando isolados. Uns podem

6
acompanhar toda a vida do sujeito, enquanto outros surgem ao desencadear
uma psicose.
Ao nível dos fenômenos, Lacan evidencia a alucinação verbal com o
“significante no real”. Trata-se daquilo que foi rejeitado no simbólico e que
reaparece no real - essa demarcação, aliás, é feita à propósito, para demostrar
que o significante é no real e não no sujeito, ao passo que ele “rompe” a cadeia
significante, que deixa de produzir significação. Colette Soler, no livro O
Inconsciente a Céu Aberto da Psicose, nos apresenta essa demarcação da
seguinte forma:

É essa expressão que ele (Lacan) emprega nesse momento.


“Significante no real” não quer dizer significante no percepto (aquele
que percebe) – o significante no percepto não é o único gênero do
significante no real. O significante está no real quando é rompida a
cadeia significante, que concatena os significantes para produzir
significação. (Soler, 2007, p. 198)

Para Lacan, a percepção é um campo ordenado pela relação do sujeito


com a linguagem - sendo assim, o perceptum (objeto percebido) depende da
articulação entre sujeito e linguagem. Contudo, o próprio sujeito é produto da
linguagem, ou seja, o sujeito também se constitui como efeito do significante,
sendo assim, a alucinação tem uma primazia sobre o sujeito. Soler sublinha: “Ao
contrário do que dizem todas as teorias clássicas que postulam que o perceptum
resulta de uma atividade do percipiens, o perceptum já é estruturado. Que a
estrutura, portanto, não vem do percipiens, mas já está no perceptum, e que,
além disso, é ela que determina o sujeito, que não é um simples percipiens”
(Soler, 2003, p. 35).
Portanto, a alucinação verbal é um fenômeno elementar, visto que é uma
estrutura que já está no perceptum, constituindo-se como paradigma da psicose.
Ou seja, os fenômenos da psicose decorrem, de fato, da fala, assim: “quando é
o outro que fala, ele sofre efeito de sugestão; quando ele quem fala, divide-se
entre locução e audição. Quando ele é alucinado, sua fala é ouvida como vindo
do outro” (Soler, 2003, p. 35), o sujeito está totalmente identificado ao seu eu
com que ele fala, ou o eu assumido como seu instrumento.
Para explicar o efeito da alucinação, Lacan (1988) expõe o caso de uma
paciente. Conta que ela vivia numa relação dual com a mãe, mas entre elas,
tinha uma vizinha que era considerada invasiva, pois sempre vinha bater na porta
quando as duas estavam em certa intimidade. Um dia, no caminho de casa, a
paciente encontra com o amante dessa vizinha e ouve-o chamando-a de “porca”.
7
No momento em que Lacan a examinou, perguntou-lhe em que ela pensava
imediatamente antes de ouvir a palavra “porca”. Ela lhe respondeu: “Eu venho
do salsicheiro”.
Com esse exemplo, Lacan explica que, ao nível simbólico, a alucinação
verbal consiste na foraclusão do Nome-do-Pai, no qual o eu permanece
oscilante, pois não recebeu um designo simbólico. Desse modo, o “porca” é o
significante que surge onde o sujeito mostra todos os paradoxos de uma
percepção singular. Pois o sujeito “cai”, sob o efeito de uma sugestão na qual o
outro é o porta-voz de um discurso que vai em sua direção para fazer suplência
ao seu eu, de uma intenção que se mantém em segredo para ele.
Assim, quando o amante da vizinha aparece, ele vai corresponder ao
chamado do Nome-do-Pai, o terceiro elemento, visto que ele faz emergir um
novo significante que descontrói a sua relação dual, mãe-filha, desestabilizando
o par a – a’, da relação especular da paciente. Passemos ao esquema L, para
situar a posição do significante na alucinação:

Figura 1 – Esquema L

Verifica-se que o lugar do significante do Nome-do-Pai é vazio, por isso,


o sujeito, em S, não consegue responder desde o lugar simbólico, em A; daí,
quando surge uma situação que abala a relação especular imaginária com o
outro (Eu-mãe), surge um significante desconhecido para o sujeito “porca”, mas
que designa o sujeito da frase “eu venho do salsicheiro”, não conseguindo se
sustentar na realidade.
E o que retornou no real? No real, retorna o foracluído do simbólico sob
forma de alucinação. No caso, “porca” é o significante que aponta para o ser de
objeto do sujeito. Lacan aqui se propôs a buscar no romance da vida do sujeito
as evidências que sustentam o seu delírio. Nessa paciente, foi possível encontrar
em seu histórico o relato de que, um dia, ela fugiu de seu ex-marido, pois,
pensava que ele e sua família queriam esquartejá-la como uma porca: “cortá-la
em rodelas”. Portanto, o significante “porca” é o seu nome de gozo, pois desvela

8
sua posição enquanto sujeito psicótico, visto que, no registro imaginário, o sujeito
desestabilizado é tomado pelo sentido corporal de despedaçamento.
Portanto, o que Lacan nos ensina é que, a alucinação verbal se situa no
interior dos paradoxos da percepção da palavra, em que a palavra escutada é a
própria palavra do locutor e em que se pode observar o fenômeno, sendo assim
a própria palavra do sujeito que vêm de fora, trazida pelo Outro foracluído.

TEMA 3 – PARANOIA

A paranoia, esquizofrenia e a melancolia são subestruturas da psicose,


que se encontram submetidas ao mecanismo da foraclusão do Nome-do-Pai.
Portanto, essa é a característica fundamental do diagnóstico da clínica
psicanalítica – remeter à estrutura que o condiciona.
O paranoico é um tipo clínico que Freud aproximou da neurose, pois ela
estava dentro do quadro do mecanismo de defesa, ao lado da histeria e neurose
obsessiva. Essa aproximação da paranoia com as neuroses foi explicada por
Antonio Quinet (2009) pelo mecanismo de retenção (Verhaltung).
A Verhaltung é um termo alemão que se traduz por “retenção”. A retenção,
posta como o mecanismo específico da paranoia, diz respeito a uma
identificação imediata a Um significante mestre. Segundo Lacan, foi pela teoria
psicanalítica, por meio do conceito energético da libido, que Freud discerniu um
ponto de fixação que pode dar conta da noção de retenção psíquica.

3.1 O Um da paranoia

A compreensão do mecanismo de retenção na paranoia pode ser buscada


desde Freud, como iremos verificar. No Rascunho K, sob a égide de uma
psiconeurose de defesa, Freud compara a neurose obsessiva com a paranoia,
pois, no que se refere ao primeiro encontro com o sexo, tanto uma quanto a outra
são acompanhadas de uma experiência de prazer excessivo, mas,
posteriormente quando essa recordação é evocada, em estado de neurose
obsessiva ela vem acompanhada por uma recriminação, causando desprazer lá
onde havia prazer. Por outro lado, na paranoia, segundo Freud, o sujeito
paranoico não acredita na recriminação. Quinet explica assim:

A crença ou a descrença na recriminação primária (que acompanha o


gozo) determina a “escolha da neurose”, expressão de Freud para
designar em que tipo de “psiconeurose” se situará o sujeito. A

9
recriminação, na medida em que marca a Coisa gozosa como proibida,
é índice do Nome-do-Pai, é a expressão da lei ao nível do fenômeno.
A crença na recriminação promove o recalque desta, assim como da
cena de gozo recriminada. Deste recalque resultará o sintoma. a
descrença na recriminação corresponde a foraclusão do Nome-do-Pai.
A recriminação foracluída do simbólico retorna no real sob forma
frequente de injuria alucinatória. (Quinet, 2009, p. 98)

Seguindo o esquema freudiano, Quinet propõe a constituição do sintoma


sob dois significantes: o significante do gozo, que ao ser evocado na memória
se transforma no significante traumático (St), e o significante da lei, que provoca
a recriminação e que equivale ao Nome-do-Pai (Sl).
Na neurose obsessiva, os dois significantes (Sl – St) serão recalcados, na
paranoia o significante da lei é foracluído, enquanto o significante do trauma é
retido. E assim, diferentemente da neurose, onde o significante traumático é
recalcado e retorna na cadeia significante, Quinet sublinha que, na paranoia, o
significante do trauma fica “congelado” e retém, portanto, o sujeito, trazendo-lhe
um gozo excessivo e conotado de desprazer. Assim, o destino do significante da
lei e do significante do trauma na paranoia seguem o caminho descrito abaixo:
Encontro com o sexo

St Sl

Verhaltung Verwefung

Retenção do sujeito Retorno no real

St
$

Na paranoia, diferentemente do tipo clínico da esquizofrenia, o significante


do trauma não se pulveriza – o esquizofrênico sofre, de fato, de dispersão do
significante, como veremos mais adiante, mas o paranoico tem o seu significante
retido, sendo esse o significante que o aproxima da neurose.
Na neurose, o significante representa o sujeito para outro significante que
não o representa. Essa representação no significante coloca o sujeito em
afânise, ou seja, o sujeito se aliena e se separa do significante de causa do
sujeito, pois o neurótico é, por excelência, um sujeito dividido e essa separação
desliza na cadeia significante para se fazer representar por outros significantes.

10
Na paranoia, por outro lado, o sujeito está alienado ao significante que o
representa para outros significantes, de modo que ele se encontra totalmente
identificado a esse significante-mestre, que se inscreve como Um. O paranoico
é o Um da referência, sendo desse ponto que surge o principal fenômeno que o
caracteriza.

3.2 A autorreferência paranoica

Os fenômenos que estão na base da interpretação delirante, que foi


descrita por Sérieux e Capgras como “auto-referência mórbida”, diz respeito ao
significante retido pelo sujeito. Trata-se da significação dada, no qual o sujeito
se coloca como referência: “hoje entrou uma borboleta na minha casa e sempre
que ela entra, é um sinal pra mim”. Assim, os significantes se transformam em
signos que “se dirigem” a eles.
Seguindo os esclarecimentos de Quinet (2009), a autorreferência se
conjuga ao retorno do foracluído no real, no qual o primeiro diz respeito ao
significante traumático fixo no sujeito e o segundo diz respeito ao Nome-do-Pai
foracluído no Outro. Nesse sentido, a interpretação delirante estabelece a
significação que inicialmente está em suspenso no fenômeno da autorreferência
(St), em que o sujeito é tomado de perplexidade, mas, ao se conjugar com o
foracluído (Sl), o sujeito é tirado da perplexidade e lançado a uma certeza
delirante: “querem me matar”.
Assim, é pela falta de divisão subjetiva em que o sujeito paranoico é
movido por uma certeza absoluta, que ele acaba se tornando um atrativo
“hipnótico” (política, religião ou seitas) para o neurótico que vive aflito pelos seus
conflitos internos.

TEMA 4 – ESQUIZOFRENIA

Tanto a paranoia quanto a esquizofrenia se desenvolvem no âmbito do


registro imaginário, isto é, no campo do narcisismo, onde a imagem do eu se
constitui. Na esquizofrenia, Freud aponta para um ponto de regressão no
autoerotismo, sendo o paranoico localizado num ponto de regressão no
narcisismo. Desse modo, no esquizofrênico a imagem corporal se encontra
“despedaçada”, daí se especificando um corpo fragmentado que institui a
dispersão do sentido, enquanto na paranoia, a imagem corporal é unificada pela

11
identificação imediata à imagem do outro (a-a´), cujo sentido é fixo e o eu
megalomaníaco.
No registro real, o esquizofrênico goza de um corpo. A fala e o sentido são
fragmentados, pois o gozo está disperso de forma anárquica, enquanto na
paranoia, o gozo se encontra concentrado no Outro, o seu perseguidor que o
“ama” ou “odeia”. De modo que, no sentido do registro simbólico, o Outro do
paranoico é consistente, enquanto na esquizofrenia o Outro é ausente. Com
base nisso, Quinet apesenta um quadro comparativo entre paranoia e
esquizofrenia:

Tabela 1 – Quadro comparativo

Registro Paranoia Esquizofrenia


Retorno ao narcisismo Retorno ao auto-erotismo
Fixação da imagem e sentido Dispersão da imagem e sentido
Imaginário
Um corpo preso na imagem do outro Imagem do corpo despedaçado
Eu megalomaníaco Eu fragmentado
Real J(A) gozo do Outro Dispersão do gozo
Verhaltung (retenção) do Um Dispersão, não há Um significante
Simbólico NP° NPº
Outro consistente Outro fragmentado
Fonte: Elaborado com base em Quinet, 2009.

4.1 O corpo despedaçado do esquizofrênico

Todo funcionamento psíquico da esquizofrenia é, segundo Bleuler - o


médico que situou a esquizofrenia como uma causalidade psíquica na psiquiatria
- consequência do desaparecimento da ordenação exercida pela representação-
meta, pela qual o sujeito fica entregue a um estado de devaneio.
Para Freud (1900), a ausência da representação-meta pode ser
desastrosa, pois representaria um pensamento com desagregação psíquica, de
modo que a representação-meta inconsciente é que garante o encadeamento
significante, do mesmo modo como ocorre nos sonhos:

A psicanálise das neuroses aproveita imensamente as duas regras que


indicamos: ela sabe que, quando renunciamos às representações-
meta conscientes, são as representações escondidas que dirigem o
curso de nossas representações; e que as associações superficiais só
fazem substituir, graças ao deslocamento, as associações recalcadas
profundas. (Freud, citado por Quinet, 2009, p. 69)

12
Em Lacan verificamos que toda representação-meta presentes no
pensamento, consciente ou inconsciente, é tributária do significante-mestre (S1),
cuja inscrição logica se dá pela operação do Nome-do-Pai no Outro. Dito de outro
modo, é com a inscrição do Nome-do-Pai no lugar do Outro que o sujeito se situa
com desejante e seus pensamentos têm uma meta que o guiam. Quinet afirma
que sem representação-meta “não há produção de sentido, que é sempre sexual.
As representações-meta fundamentais e inconscientes do sujeito constituem os
significantes primordiais do sujeito de desejo” (Quinet, 2009, p. 70).
Quando falamos de esquizofrenia, nos referimos à ausência do S1, o
suporte das representações-meta do pensamento inconsciente/consciente.
Portanto, o sujeito esquizofrênico tem uma dispersão de significantes, visto que
falta o significante mestre, que encadeia hierarquicamente a cadeia significante.
Na esquizofrenia, então, o S1 não equivale à ordem significante
estruturada, pois o que vemos é uma multiplicidade de S1 sem hierarquia alguma
que tende para o infinito. O matema proposto por Quinet (2009) para escrever a
dispersão, que se manifesta nas diferentes formas fenomenológicas é a
seguinte:
(S1(S1(S1(S1 → )))

Portanto, no lugar que deveria advir um S2 como produto da cadeia


significante, ocorre um conjunto vazio. Nesse sentido, os significantes se
alinham, constituindo uma cadeia ordenada sem o par significante e, o resultado
é a dispersão, sendo aí em que todos os fenômenos esquizofrênicos se formam.

TEMA 5 – MELANCOLIA

A melancolia na clínica psicanalítica refere-se ao terceiro tipo clínico da


psicose, contudo, na psiquiatria ela está sob a etiqueta de distúrbio bipolar, e no
senso comum, muitas das vezes, confundida como depressão. Mas, na verdade,
a melancolia trata-se de uma tristeza estrutural que deve ser diferenciada do luto,
um estado depressivo neurótico, pois os sujeitos melancólicos estão
identificados à dor de existir.
No célebre texto Luto e melancolia, Freud (1915) compara o trabalho do
luto à dor, mas, posteriormente, quando elabora o conceito de pulsão de morte
e o masoquismo primordial, é que ele caracteriza a economia da dor, onde ela

13
vai corresponder à satisfação da pulsão de morte, que se revela na perversão
masoquista, no gozo do sintoma e na melancolia. (Quinet, 2009)
No luto, a dor está relacionada a um gozo que de modo paradoxal provoca
dores e prazer que surgem na perda do ideal, sendo assim, a dor do luto está
diretamente vinculada à castração – e a cada perda o sujeito é remetido a ela.
No neurótico, declara Quinet, a castração se inscreve como a falta de um
significante que complete o Outro – (S(A)). Portanto, a perda está relacionada
ao objeto que escamoteia a castração. “A dor da depressão é a dor constitutiva
da castração, que, em vez de aparecer como angústia, deixa triste o sujeito com
a nostalgia do Ideal, saudade do Um que encobria a falta” (Quinet, 2009, p. 173).
A melancolia corresponde a uma dor, porém, Freud a diferencia do luto,
pois, diferentemente deste, que possui um objeto perdido, na melancolia, o
sujeito se constitui identificado ao objeto perdido.

5.1 A coisa melancólica

No Rascunho G, de 1885, Freud faz uma indicação à melancolia,


apresentando quatro constatações:

• Melancolia e anestesia sexual: uma falta de vontade de tudo e


principalmente sexual. Desejo = 0;
• Melancolia e neurastenia: perda de vitalidade e cansaço;
• Melancolia e angústia: diferente da neurose de transferência, não faz
economia de angústia;
• Melancolia e mania: onde a primeira pode se transformar na segunda.
Segundo Quinet, Freud não propõe uma bipolaridade, mas sim uma
existência de melancolia que pode ser transformada em mania, sem que
deixe de ser melancolia.

Assim, conforme o Rascunho G, a melancolia é um luto provocado pela


perda da libido. Lacan propõe, a partir daí, um “furo no psiquismo”, que promove
uma dissolução das associações, por onde a libido se esvanece. Sendo desde
aí onde se forma os delírios melancólicos de ruína. Quinet explica:

A hemorragia (da libido) é descrita como uma excitação escorrendo por


um furo, que funciona como um ralo. Esse furo no psiquismo é
equivalente ao furo no simbólico, à foraclusão do Nome-do-Pai. Lá
onde deveria estar o Nome-do-Pai não se encontra nada, só um furo,
um ralo aberto por onde toda a libido escoa. Para Freud, é isso que
explica a anestesia sexual, pois “todos os neurônios devem abandonar

14
a excitação”. É essa perda hemorrágica que é dolorosa. Em outras
palavras, é a dor do furo, do que é foracluído do simbólico, que é
desvelada na melancolia – dor que corresponde à anestesia sexual, à
abolição do desejo. (Quinet 2009, p.198)

Contudo, esse estado melancólico da estrutura melancólica, assim como


nos demais tipos clínicos da psicose, quando estão fora da crise, há algo que
funciona como uma suplência no psiquismo, que vem para suprir no imaginário
a falta simbólica do Nome-do-Pai, na melancolia essa suplência funciona como
uma tampa dos psiquismos. Esse tema em específico, abordaremos no
desdobrar da clínica com psicose.

NA PRÁTICA

Para pensamos o “Na Prática”, nos reportaremos ao filme Melancolia


(2011) do diretor Lars Von Trier. Sem, contudo, nos atermos as riquezas de
detalhes que compõem toda essa trama, mas atendo-nos apenas ao nosso foco,
para demostrar um caso de melancolia. Assim, faremos alguns recortes no
personagem que nos interessa: Justine.
O filme inicia com o casamento de Justine, uma luxuosa festa organizada
pela sua irmã mais velha, chamada Claire. O perfil de Claire é sem dúvida um
prato cheio para análise, uma mulher que além de cuidar de seu filho e marido,
está sempre tomando conta de Justine. O pai das irmãs é um homem bobo, com
imagem fraca e sem autoridade. Já a mãe é uma mulher hostil, que não gosta
de nada e não demostra interesse pelas filhas e muito menos se mostra
interessada na ocasião, pois, de fato, ela demostra que não queria estar no
casamento.
Justine é uma mulher que apesar de bonita, tem um rosto sombrio e um
olhar sem vida. Ela chega a sua festa de casamento, com o noivo, já com
bastante atraso, mas não demostra se importar com os convidados que os
espera. Ela está sorridente e aparentemente feliz com a ocasião, mas ao longo
da festa, logo essa imagem vai se desfazendo, demostrando um cansaço e um
olhar sofrido de quem não está aguentando mais.
Claire, ao perceber o estado de Justine, a pressiona pedindo para que ela
não estrague a festa. Em seguida Justine sai da festa e vaga sem rumo pelo
imenso jardim, tentando encontrar força para suportar aquilo, que para ela, não
fazia o menor sentido.

15
Quando Justine retorna à festa, tenta se manter por mais um pouco
animada, mas logo arruma um pretexto para abandonar o local novamente.
Justine então leva o sobrinho para a cama e vai tomar banho, enquanto todos a
espera para cortar o bolo.
Quando o noivo a leva para o quarto de núpcias, Justine pede para que
ele a aguarde por um instante, ela, então, desce para a festa e transa com um
convidado no jardim. Em seguida, volta para o salão da festa e começa a dançar
animada. No final da festa o noivo vai embora e diz para ela: “poderia ter sido
diferente” e ela responde: como? Pois, Justine sabia que a única coisa que ela
podia fazer era isso mesmo.
Outra fala marcante do filme é a de sua irmã, dizendo: “pensei que era
isso que você queria”, mas Justine demonstrava que não queria era nada.
O filme, na verdade, não adota o sentido dado por Freud à melancolia,
pois melancolia, no filme, é o nome do planeta fictício que irá se chocar com a
Terra. O que, para nós, é mais um ponto interessante, pois, ao saber da tragédia
a caminho, Justine consegue se recompor e até toma banho, dando sinais de
um revestimento libidinal no próprio corpo. Pois esse planeta, para Justine,
representava o Outro, vindo de fora e barrando o seu gozo. A destruição do
planeta não abala Justine como abala a sua irmã, pois Justine já vivia em um
mundo destruído.

FINALIZANDO

O caso Schreber é um dos maiores textos de tradição psicanalítica no


campo da psicose escrito por Freud. O texto é decorrente de uma análise de um
livro autobiográfico do presidente do Dr. Daniel Paul Schreber, um homem
incomum, pois possuía inúmeras capacidade analíticas e intelectual para a sua
época, doutor em direito e juiz-presidente da Corte de Apelação da Saxônia.
O adoecimento de Schreber se sustenta pelos delírios que seguem duas
vertentes de suma engenhosidade. Uma se configura em perseguição e a outra
na sua transformação em mulher.
Segundo Freud, todo delírio é uma tentativa de cura. Pois, Schreber ao
ser confrontado com ideias incompatíveis, forma uma rede com vários elementos
que parecem aleatórios, contudo, a complexidade com que os elementos se
conectam, demostra que, na verdade, trata-se uma produção que busca
restabelecer o laço com a realidade.
16
Nesse sentido, Lacan, no Seminário 3 (1956), evidencia a lógica da
composição estrutural dos fenômenos elementares das psicoses cujos
fenômenos possuem uma estrutura de linguagem, bem como as neuroses,
sendo que os sintomas psicóticos não são os de metáfora e, sim, os que surgem
pela falta da metáfora, sendo eles os fenômenos elementares que estão ao nível
do fenômeno e da causa da psicose.
O paranoico é um tipo clínico que Freud aproximou da neurose, pois, ela
estava dentro do quadro do mecanismo de defesa, ao lado da histeria e neurose
obsessiva. Essa aproximação da paranoia com as neuroses foi explicada por
Antonio Quinet (2009) pelo mecanismo de retenção (Verhaltung). A retenção
posta como o mecanismo específico da paranoia, diz respeito, a uma
identificação imediata, do sujeito paranoico, a Um significante mestre.
Na esquizofrenia, Freud aponta para um ponto de regressão no
autoerotismo e, o paranoico num ponto de regressão no narcisismo. Desse
modo, o esquizofrênico a imagem corporal se encontra despedaçada, daí um
corpo fragmentado que institui a dispersão do sentido. Outra diferença é que ao
contrário do paranoico, o esquizofrênico não tem um significante mestre. Assim,
o sujeito esquizofrênico tem uma dispersão de significantes, visto que falta o
significante S1, que encadeia hierarquicamente a cadeia significante.
A melancolia é uma tristeza estrutural, pois trata-se de uma dor que Freud
diferencia do luto, pois diferente deste que possui um objeto perdido, na
melancolia o sujeito se constitui identificado ao objeto perdido.

17
REFERÊNCIAS

FREUD, S. (1895) Rascunho G, In Obras Completas, vol. 1. Rio de Janeiro:


Imago, 1996.

________. (1911) Caso Schreber, In Obras Completas, vol. 12. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.

GUERRA, A. M. C. A Psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

QUINET, A. Psicose e laço social: esquizofrenia, paranoia e melancolia. Rio


de Janeiro: Zahar, 2009.

LACAN, J. (1956). Livro 3 - As psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.

PISANI, C., CORIAT, A. Um caso de S. Freud: Schreber ou a paranoia. In


NASIO, J. D. Os Grandes Casos de Psicose. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

SOLER, C. O Inconsciente a Céu Aberto da Psicose. São Paulo: Companhia


das Letras, 2003

18
ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS
AULA 6

Profª Juliana Santos


CONVERSA INICIAL

Nesta etapa, apresentaremos a terceira estrutura clínica – a perversão. E


é interessante pensar que, por mais que a psicanálise tenha cunhado o termo
perversão para designar um campo de estudo clínico e uma estrutura psíquica,
ainda se ouve, no dito popular, “você é um perverso” para adjetivar uma ação ou
fantasia que imputa certa crueldade.
A perversidade confere um sentido moral e religioso que a psicanálise,
mesmo depois de um século, não conseguiu barrar do senso comum. A partir o
século XIX, verifica-se um apelo jurídico ao discurso médico para intervir sobre
a responsabilidade do sujeito, o qual visa encontrar resposta para uma
“perversão” moral ou de ordem patológica.
O médico responderá, então, falando de monomanias instintivas
(Esquirol), de busca de excitação (Janet) e de parestesias (Krafft-Ebing), situa-
nos Philippe Julien (2003), autor do livro Psicose, perversão e neurose. Já a
perícia responderá a partir das classificações descritivas da perversão. Assim,
para responder ao juiz, faz-se semiologia, recenseamento e nomenclatura
(Julien, 2003, p. 102).
Contudo, segundo Julien, ao se submeter à demanda do judiciário na
tentativa de “proteger” a sociedade, a psiquiatria inibe o avanço da ciência das
causas. Portanto, o avanço da psiquiatria foi em dar resposta, visto que a clínica
não ficou reduzida à perícia.
A ausência de demanda em pesquisas se dá pelo fato de que o perverso
não é uma doença, mas trata-se de pessoas comuns em sua vida diária, cuja
sexualidade pode levá-los à anormalidade. Krafft-Ebing, em 1887, trouxe o
entendimento para sua época de que toda exteriorização do instinto sexual que
não vai na direção da natureza, isto é, da reprodução, é perversa. Subverter o
sentido da natureza é consentir com a violência da sexualidade, admitindo uma
satisfação sexual de um e do outro. Assim, para o autor, as perversões se
dividem em dois grupos:

As perversões se dividem em dois grandes grupos: primeiro aquelas


em que o objetivo da ação é perverso e é preciso pôr aqui o sadismo,
o masoquismo, o fetichismo e o exibicionismo; em seguida aquelas em
que o objeto é perverso, a ação o sendo quase sempre, em
consequência: é o grupo da homossexualidade, da pedofilia, da
gerontologia, da zoofilia e do autoerotismo. (Krafft-Ebing, 1887 citado
por Julien, 2003, p. 103)

2
A psiquiatria parou até certo ponto aí, estando, por outro lado,
salvaguardado o essencial: definir o punível e proteger o futuro, declara Julien.
Freud, com a psicanálise, rompe a condenação dada à perversão.

TEMA 1 – A PERVERSÃO

Freud abordou a perversão em diversas perspectivas, a fim de contrapô-


la à neurose e psicose. Contudo, ao estudar seus construtos teóricos e clínicos,
deparamo-nos com conceitos tênues e de referências confusas no que tange a
sua especificidade. Se comparada à neurose e psicose, parece que a perversão
ficou à margem da teoria. E, pensando conforme a psicanálise nos ensina,
podemos imaginar o quanto esse tema é revelador e traz à tona afetos sobre os
quais “nada queremos saber”. Mas, desafiando-nos a pensar sobre a perversão,
vemos que Freud, primeiramente, rompe a fronteira entre a perversão e
normalidade.
No texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905)
instaura um verdadeiro escândalo na sociedade ao declarar que toda criança é
“polimorficamente perversa”, pois trata-se de uma plasticidade pulsional no que
tange ao seu objeto, pois a sexualidade infantil, em sua gênese, tem uma libido
das pulsões parciais com objetos pré-genitais (oral, anal, escópica). Nesse
sentido, Freud afirma uma predisposição original e universal da sexualidade
humana perversa.
Desse modo, a perversão só poderia ser superada num tempo ulterior do
genital, em que as pulsões parciais infantis se unificam numa só pulsão e passa
a se dirigir a um objeto genital. Ainda nesse texto, Freud nos dá a formula
determinante que demarca o destino para uma neurose e perversão; diz: "A
neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão" (Freud, 1905, p. 102).
Joel Dor (1991) destaca, em seu livro Estruturas e clínica psicanalítica, a
economia pulsional, na qual os sintomas neuróticos resultam sempre de um
recalcamento dos componentes pulsionais da sexualidade, respondendo com os
sintomas neuróticos, representados da seguinte forma por Freud: “[...] uma
conversão de pulsões sexuais que deveriam ser chamadas perversas (no
sentido amplo da palavra) se pudessem, sem se afastarem da consciência,
encontrar uma expressão em atos imaginários ou reais". (Freud citado por Joel
Dor, 1991, p. 33).

3
No texto Pulsões e suas vicissitudes (1915), Freud aponta para dois
destinos pulsionais que são característicos do processo perverso: a "inversão
em seu contrário" e o "retorno sobre a própria pessoa". Desde aí, ele começa a
orienta as suas investigações a buscar um mecanismo metapsicológico
inaugural da perversão.
O complexo de Édipo é pensado a partir da atribuição fálica à mãe, cujo
efeito gira em torno da questão da diferença do sexo, que, para a criança, gera
um enigma. Desse modo, a vivência edípica em seu desenvolvimento efetuará
a elaboração da resposta ao sexo, quando o pênis deixa de ser um bem comum.
Freud formula isso no texto A organização genital infantil, em que declara:

No decurso dessa pesquisa, a criança chega à descoberta de que o


pênis não é um bem comum a todos os seres que se lhe assemelham
[...]. Sabemos como elas reagem às primeiras impressões provocadas
pela ausência de pênis. Negam esta ausência e creem ver, apesar de
tudo, um membro: lançam um véu sobre a contradição entre
observação e preconceito; achando que ele ainda está pequeno e que
crescerá dentro em pouco, chegam lentamente a esta conclusão, de
um grande alcance afetivo: antes, em todo caso, ele estava aí com
certeza, tendo em seguida sido retirado. A ausência de pênis é
concebida como o resultado de uma castração e a criança encontra-se
agora no dever de enfrentar a relação de castração com sua própria
pessoa. (Freud, 1923, p. 85-86)

A criança, contudo, não renuncia de bom grado a ausência fálica da mãe,


pois trata-se de algo que deveria estar lá, mas está como falta. A falta fálica da
mãe gera um confronto real com a diferença do sexo, o qual a criança não tem
interesse algum em acolher. Com efeito, declara Dor (1991), o real desta
diferença é precisamente aquilo que o remete a uma consequência insuportável
– a dimensão imaginária de sua própria identificação fálica, que, em última
análise, implica numa renúncia de gozo.
É sob essa construção teórica que Freud estabelece o curso da economia
psíquica, no qual se erige o arcabouço das estruturas psíquicas. Neste contexto,
diante da ameaça de castração, o sujeito, em uma possibilidade, recalca e forma
os sintomas neuróticos e, em outra possibilidade, só aceita a incidência da
castração sob a reserva de continuamente transgredi-la, sendo esse o caso da
perversão.
A estrutura perversa se constitui sob dois polos: de um lado, pela angústia
da castração; do outro lado, pela mobilização de processos defensivos
destinados a contorná-la, descreve Dor (1991, p. 36). Sob o escopo do processo
defensivo, Freud evidencia dois modos de organização do funcionamento

4
perverso, a fixação (e a regressão) e a denegação da realidade, sendo estes os
dois mecanismos respectivamente constitutivos da homossexualidade e do
fetichismo. Nesse sentido, Freud coloca a homossexualidade como uma
resposta de defesa narcísica diante da castração, em que a criança fixaria
efetivamente a representação de uma mulher provida do pênis no inconsciente,
persistindo ulteriormente, de maneira ativa, o dinamismo libidinal.
Dor (1991) chama atenção que, enquanto a homossexualidade masculina
verte sobre a estrutura perversa, a homossexualidade feminina não deixa claro
o mecanismo que a consente, pois a própria ideia de uma estrutura perversa em
mulher ainda gera questionamentos. Todavia, o autor afirma que, de fato, a
homossexualidade masculina inscreve-se em um dispositivo psíquico
radicalmente diferente daquele que preside a homossexualidade feminina (1991,
p. 36).
Do ponto de vista clínico, o aspecto do fetichismo é um processo
defensivo ainda mais complexo do que na homossexualidade. Ele se funda pela
negação da realidade, pois trata-se de uma recusa em reconhecer a diferença
do sexo: a ausência do pênis na mãe. O mecanismo de denegação da realidade,
é explicada em dois tempos: de um lado, a denegação da realidade propriamente
dita, isto é, o sujeito percebe a realidade, mas a rejeita, no intuito de neutralizar
a angústia da castração.
Entretanto, a diferença do que ocorre na homossexualidade, em que há
uma fixação da representação da mãe fálica, assume uma situação de
compromisso. No caso do fetichismo, já que a mulher, na realidade, não tem
pênis, o sujeito vai encarnar o objeto suposto faltar em outro objeto da realidade,
assim o objeto fetiche é, na verdade, uma encarnação do falo. Pelas próprias
palavras de Freud: "O fetiche é o substituto do falo da mulher (da mãe) no qual
acreditou a criancinha e ao qual nós sabemos por que ela não quer renunciar"
(Freud, 1927, p. 95).
Joel Dor (1991) situa o objeto fetiche em três formas de mediar a
castração: a) antes de tudo, o objeto fetiche permite a não renuncia ao falo; b)
permite conjurar a angústia de castração e dela se proteger; c) permite
finalmente escolher uma mulher como objeto sexual, visto que supostamente
possuir o falo.

5
TEMA 2 – A ESTRUTURA PERVERSA NA DIALÉTICA EDIPIANA

Aprendemos que a identificação fálica no início da vida é posta em


questão com a intrusão do pai imaginário, que surge na fantasia da criança como
o objeto fálico de desejo da mãe. O fato é que, através do surgimento do terceiro
elemento, nessa relação dual mãe-bebê evidencia para a criança que o amor da
mãe não é exclusivo dele, abrindo a expectativa de um desejo materno para
além dele. Assim, a presença do terceiro elemento na imagem do pai se inscreve
para a criança como rival, que disputa o desejo da mãe.
Na estrutura perversa, o traço da rivalidade reaparece como um
estereótipo do perverso, que está sempre desafiando o outro. E, paralelamente
ao desafio do perverso, está a transgressão. Segundo Dor (1991), o que institui
e, ao mesmo tempo, confronta o terreno rivalidade fálica imaginária é o
surgimento irreversível da diferença dos sexos, pois, para a criança, trata-se de
antecipar um universo de gozo novo que se apresenta por trás da figura paterna,
um gozo que ela supõe interditado. Portanto, “é efetivamente com o sinal desta
incidência que o perverso lança a sorte de sua própria estrutura. Permanecendo
cativa deste êxtase do desejo, a criança pode aí sempre encontrar um modo
definitivo em relação à função fálica” (Dor, 1991, p. 40).
O perverso faz, então, da assunção à castração sua base, sem nunca
admitir a falta que lhe comete. Assim, ele se aliena na falta não simbolizável, de
dimensão inesgotavelmente psíquica, que efetua a denegação ou, ainda,
renegação da castração da mãe.
Contudo, a falta introduzida pela imagem do pai é justamente o que
assegura ao perverso a mobilização do desejo em direção à possibilidade de
uma nova dinâmica para a criança. Nessa perspectiva, a leitura que Lacan dá à
questão da falta do Outro e à dialética do desejo na estrutura perversa deve ser
buscada pela via da identificação ao falo.

2.1 A dialética do desejo

É em torno do significante da falta no Outro, S(A), que a questão da


perversão se impõe, como um ponto de báscula que se introduz no processo de
da estruturação do sujeito. Nesse sentido, Joel Dor declara que será a
sensibilidade da criança para abdicar do pai imaginário e acender ao pai

6
simbólico que determinará a sua constituição estrutural entre neurose e
perversão.
Assim, seguindo a explicação de Joel Dor, o pai aparece para a criança
como tendo aquilo que a mãe deseja ou, pelo pressentimento do perverso, como
sendo suposto ter o que a mãe é suposta a desejar junto a ele. Portanto, “esta
atribuição fálica do pai é justamente o que o institui como pai simbólico, ou seja,
o pai enquanto representante da Lei para a criança, portanto o pai enquanto
mediação estruturante do interdito do incesto” (Dor, 1991, p. 41).
Contudo, o perverso não quer saber nada da falta que a sombra do pai
simbólico impõe para ele; desse modo, o sujeito denega a falta, isto é, não
simboliza a falta no Outro. Dito de outro modo, a criança se encerra numa
convicção contraditória, na qual, por um lado, a criança entreve que a mãe, que
não tem o falo, deseja o pai porque ele o tem ou porque ele é o falo; por outro
lado, se a mãe não tem, talvez ela pudesse ter? E, para isto, basta-lhe ser
atribuído imaginariamente a atribuição fálica.
O desejo da criança, declara Santos e Besset (2013), faz-se desejo
encarnado pela mãe onipotente: por um lado, por razões de se sujeitar àquela
que lhe satisfaz todas as necessidades, e, por outro lado, pelo capital de gozo
que ela lhe assegura para além das necessidades. Nesse sentido, na estrutura
perversa, o sujeito se identificará ao falo que faz da mãe um Outro onipotente.
Lacan (1958) diz assim:

Todo o problema das perversões consiste em conceber como a


criança, em relação com a mãe, relação esta constituída na análise,
não por sua dependência vital, mas pela dependência de seu amor,
isto é, pelo desejo de seu desejo, identifica-se com o objeto imaginário
desse desejo. Ne medida em que a própria mãe o simboliza no falo.
(Lacan, 1958, p. 561)

A identificação ao falo imaginário da mãe visa, então, restabelecer o gozo


perdido pela inscrição do pai simbólico. Portanto, é em razão da sua economia
de gozo que o perverso entra na dialética do desejo e se mantém
imperativamente “fixado em sua gestão cega”, pela qual reafirma a sua lei do
desejo como única. Assim, Dor (1991) destaca que é pela “lei do seu desejo” que
podemos situar os diferentes expedientes do funcionamento perverso e os traços
estruturais que o caracterizam: o desafio e a transgressão, sendo estas as duas
saídas para o desejo perverso.

7
TEMA 3 – ENTRE AS NEUROSES E PERVERSÃO

Os traços estruturais que caracterizam a perversão podem ser


observados tanto na neurose obsessiva quanto na histeria. Contudo, a
transgressão não se articula ao desafio da mesma maneira. Desse modo, para
estabelecer um diagnóstico diferencial, é preciso que reconheçamos, de maneira
específica, a relação do sujeito com o Outro. Portanto, é apenas na relação
transferencial que sem tem essa resposta. Joel Dor evidencia a oposição entre
neurose e perversão da seguinte forma:

No perverso, a problemática da denegação se organiza de modo


diferente. Enquanto na histeria e na neurose obsessiva, é a posse
imaginária do objeto fálico que é desafiada, nas perversões, é
fundamentalmente a Lei do pai. O desafio da Lei do pai, no perverso,
situa-se essencialmente na vertente da dialética do ser. No obsessivo,
como no histérico, o desafio concernindo à posse do objeto fálico se
situa, em contrapartida, na alternativa do ter ou não ter. (Dor, 1991, p.
48)

No entanto, no que concerne ao diagnóstico diferencial, para que ele seja


operatório, ainda há de considerar o caráter imperativo, no qual o perverso faz
intervir o seu desejo como única lei do desejo que ele reconhece, pois, no
neurótico, o desejo se funda pela lei do desejo do Outro, que tem sua
inauguração com a inscrição do significante do Nome-do-Pai. Na perversão, a
lei do pai só é articulada para desafiá-la, por meio de tudo aquilo que ela impõe
enquanto simboliza a falta. Joel Dor declara:

Desafiando esta Lei, ele recusa, em definitivo, que a lei do seu desejo
seja submetida à lei do desejo do outro. O perverso põe, então, em
ação duas opções: de um lado, a predominância da lei do seu desejo
como única lei possível do desejo; por outro lado, o desconhecimento
da lei do desejo do outro como a que viria mediar o desejo de cada um.
(Dor, 1991, p. 48)

Assim, a lei do pai é posta pelo perverso como um limite que ele
demonstra para, em seguida, ultrapassar. É dessa estratégia que o perverso
efetivamente goza. Contudo, para isso, o sujeito perverso busca um cúmplice ou
uma testemunha, imaginária ou real, que possa testemunhar o seu agir frente à
castração. Nesse sentido, Dor evoca a passagem Jean Clavreul:

É claro que é enquanto portador de um olhar que o Outro será o


parceiro, isto é, antes de tudo o cúmplice, do ato perverso. Tocamos,
aqui, no que distingue radicalmente a prática perversa, onde o olhar do
outro é indispensável, porque necessário à cumplicidade sem a qual
não existiria o campo da ilusão, e o fantasma perverso que não só se
acomoda muito bem com a ausência do olhar do outro, mas necessita

8
para ter êxito, se satisfazer na solidão do ato masturbatorio. Se o ato
perverso se distingue sem equívoco do fantasma, será, então, nesta
linha em que se inscreve o olhar do Outro que discerniremos a
fronteira, olhar cuja cumplicidade é necessária para o perverso,
enquanto é denunciador para o normal e para o neurótico. (Clavreul
citado por Dor, 1991, p. 49)

Desse modo, o perverso acessa o seu gozo, fazendo desencaminhar o


Outro com relação às balizas e aos limites que o inscreve diante da lei, pois, para
o sujeito perverso, é essa experiência de “devassidão”, isto é, da extração do
Outro do sistema que importa.

3.1 O terceiro cúmplice

O gozo perverso é, então, acessado através de sua estratégia de conciliar


o impossível: de um lado, a prevalência da lei do seu desejo como única lei
possível do desejo; do outro lado, o reconhecimento do desejo do outro como
instância que vem mediar o desejo de cada um. Essencialmente, o interesse
perverso é despertar a convicção de um terceiro de quem ela talvez “não o seja”,
isto é, seu interesse não está em relação ao Outro, e, assim, em capturá-la. “O
perverso é assim levado a colocar, primeiramente, a lei do pai (e a castração)
como um limite existente, a fim de melhor demonstrar em seguida que ela talvez
não seja, já que se pode sempre aceitar o risco de transpô-la” (Dor, 1991, p.
135).
Portanto, a convocação do terceiro cúmplice é necessária para sustentar
a assunção do gozo perverso, que remonta, de forma metonímica, a gênese da
ordem inaugural que a fez nascer tanto quanto sustentou, a saber, a mãe. É,
neste sentido, destaca Joel Dor, que o agir perverso somente pode assegurar-
se de seu prêmio de gozo, por meio de um terceiro cúmplice, cuja presença e
olhar lhe são indispensáveis.

TEMA 4 – A MÃE FÁLICA

O ponto fundamental no qual a estrutura perversa se ancora se encontra


indubitavelmente na questão da identificação fálica, que se sustenta pela
conjunção de dois fatores determinantes: a cumplicidade libidinal da mãe e a
complacência silenciosa do pai.
A cumplicidade materna manifesta-se no terreno da sedução, pois trata-
se de uma cumplicidade erótica que se exprime sobretudo em suas respostas

9
às demandas eróticas da criança. “Respostas que a criança inevitavelmente
recebe como testemunhos de reconhecimento e encorajamento”, pois, conforme
declara Dor, é uma resposta que a criança encara como um verdadeiro chamado
para o gozo, na medida em que mantém a atividade libidinal do filho junto à mãe.
No entanto, este apelo sedutor permanece hipotecado com um pesado equívoco
– o desejo da mãe concernente ao pai, pois o pai não deixa de aparecer como
um verdadeiro intruso, e a mãe não confirma esse desejo. Assim, o apelo
sedutor da mãe se organiza tanto nos registros de “dar-se a ver” quanto nos de
“dar-se a entender”, que se traduz no momento crucial do Édipo, tornando-se um
verdadeiro convite ao tormento para a criança. Ocorre que, por mais que a
criança perceba uma autêntica incitação ao gozo, já que não estamos tratando
de uma fantasia, na maioria das vezes, a mãe se silencia diante da questão do
desejo que se supõe ao pai.
É, então, na medida em que se instaura esta ambiguidade que a atividade
libidinal da criança se desenvolve junto à mãe, pois, desde então, ela passa a se
esforçar por seduzir cada vez mais, “na esperança de levantar esta dúvida em
relação à intrusão paterna” (Dor, 1991, p. 52). Assim, diante da sedução materna
que paralelamente coincide com uma interdição à mãe, a criança encontra
cumplicidade na mãe para transgredir a lei do pai. E, por outro lado, o pai se
mostra complacente, despossuindo, de bom grado, da representação de sua
função simbólica. “Se, nesse caso, podemos falar da complacência silenciosa do
pai, é em referência à aptidão que ele demonstra em delegar sua própria palavra
através da palavra da mãe, com toda a ambiguidade que a coisa supõe” (Dor,
1991, p. 52).
Portanto, a criança se aliena ao jogo de sedução materna, que coloca
como plano de fundo a função simbólica do pai. A consequência deste processo
é vista desde o ponto de vista clínico, no qual a mãe fálica está posta de forma
definitiva na fantasia, sendo essa a gênese da ordem que funda o seu desejo.
Desse modo, a imagem da mulher fálica o acompanhará a cada estratégia
desejante a respeito das mulheres, dirá Joel Dor, “com o risco de procurar
algumas vezes e encontrá-las, apesar de todos os obstáculos, na pessoa de
outros homens” (Dor, 1991, p. 111).

10
4.1 O fetiche

O objeto fetiche é o paradigma da perversão. Ele funciona como um


memorial que é posto no lugar da falta. Porém, ao cobrir a falta, marca-se, mais
que tudo, a existência desse vazio, que é resultado de uma operação simbólica.
Lacan, no seminário 4, A relação de objeto (1957), relança o olhar sobre o caso
do pequeno Hans, para demostrar a reação de Hans diante a calcinha da mãe,
apontando, desde aí, constituição do objeto fetiche.

O essencial é o seguinte: as calças em si mesmas estão ligadas para Hans a


uma reação de repulsa. Mais que isso, o pequeno Hans pediu que se
escrevesse a Freud, dizendo que quando viu as calças, ele havia cuspido,
caído no chão e depois fechara os olhos. É por causa desta reação que a
escolha está feita: o pequeno Hans jamais será um fetichista. Se ele
houvesse reconhecido, ao contrário, essas calças como seu objeto […] ficaria
satisfeito com elas, e se teria tornado fetichista, mas como o destino quis
outra coisa, o pequeno Hans fica repugnado pelas calças. Só que ele explica
que, quando a mãe as usa, a coisa é outra. Aí elas não são mais repugnantes,
em absoluto. Aí está toda a diferença. Ali onde elas poderiam se oferecer a
ele como objeto, quando as calças estão ali em si mesmas, ele as rejeita.
Elas só conservam sua virtude, se assim podemos dizer, estando em função,
ali onde ele pode continuar a sustentar o engodo do falo. (Lacan, 1957, p.
359)

Nesse sentido, observa-se que Lacan estabelece uma relação clara com
a repugnância da calcinha, como uma recusa de tomá-la como objeto. Desse
modo, segundo o autor, Hans não se posiciona como um fetichista. Contudo, a
solução provisória para se proteger da mãe insaciável se dá pelo
desenvolvimento de uma fobia.
Assim, para Lacan, tanto o objeto fóbico e o objeto fetiche são soluções
imaginárias na trama edípica para lidar com o horror da castração materna. Do
lado da fobia, encontramos o “nada de saber” sobre a castração, pois trata-se do
recalque nos termos freudiano, em que a eficácia do saber inconsciente é que
fabrica o sintoma. Enquanto isso, no fetiche, a eficácia se manifesta pela
constituição do objeto substitutivo que vela a verdade da castração.
Nesse sentido, o objeto fetiche funciona como lembrança encobridora,
cuja natureza é de variedade infinita, mas a ligação tem por via de regra o
deslocamento do olhar para a falta do pênis. O objeto fetiche guarda, portanto,
essa dupla vertente no inconsciente: por um lado, a recusa e por outro a
afirmação da castração, constituindo no sujeito uma clivagem do eu. Por fim,
Lacan (1957) afirma que o objeto fetiche não é o falo, “mas o véu por trás do
qual se deixa desenhar a possibilidade de sua presença escondida”.

11
TEMA 5 – A IDENTIFICAÇÃO AO FALO NA PERVERSÃO E PSICOSE

O sujeito, como enfatizamos ao longo desse estudo, é efeito de


linguagem. Assim, a sua constituição estrutural deve ser pensada a partir da
estrutura edípica, composta por quatro elementos (criança, mãe, falo e pai), pois
é desde aí que cada sujeito internaliza o interdito, função da inscrição do Nome-
do-Pai no Outro, cujo efeito é S(A).
Assim, a lei do significante do Nome-do-Pai pode ser buscada como o
agente discriminador da estrutura psíquica. Portanto, nos processos de
estruturação da perversão e da psicose, ele também pode ser buscado no lugar
em que esse significante fará significação para o sujeito.
Joel Dor (1991) explica que é na diferença entre significante da lei e
significação da lei que, de fato, podemos dizer que o perverso "escapa" à
psicose. No perverso, mesmo que de forma radicalmente marginal, o significante
da lei permanece relacionado à única instância que lhe garante seu caráter
obrigatório, ou seja, pelo significante do Nome-do-Pai.
A atribuição do falo à mãe só é possível, portanto, pela lógica do registro
simbólico, no qual a criança, ao se confrontar com castração da mãe, isto é, a
falta de pênis, concebe essa falta pela referência àquele que o tem. Desse modo,
a atribuição fálica paterna surge no horizonte da interrogação fantasmática do
perverso sobre a diferença dos sexos. Assim, a atribuição fálica paterna é
estabelecida, mesmo que no limite, a preço de coexistir a atribuição contraditória
do falo à mãe (Dor, 1991).
Na psicose, a identificação fálica da criança persistira, pois o significante
da lei não opera, portanto não efetua nenhuma significação sobre o Desejo da
Mãe. Assim, nos termos lacanianos, a forclusão do Nome-do-Pai só ocorre pelo
que ele evoca ou pelo que ele significa. Nesse sentido, Joel Dor sublinha que o
psicótico tem, então, uma certa experiência da castração, mesmo que essa
castração não tem, para ele, nenhuma inserção simbólica, visto que ela escapa
a qualquer tentativa de simbolização. Dito de outro modo, a foraclusão do Nome-
do-Pai não pode ser pensada como forclusão da castração, pois, na verdade, é
por essa via que se pode supor que o psicótico toma conhecimento da castração.
No caso das perversões, então, o significante do Nome-do-Pai substitui,
na metáfora paterna, o significante do desejo da mãe. Contudo, o significante
fálico somente se presta a essa substituição metafórica com algumas reservas,

12
pois ele estará se referido a uma atribuição paterna, ainda que seja no estado
de suposição, considerando que o pai não soube dar provas disso. Essa
ausência de prova, destaca Joel Dor, é o que induz à uma trajetória de "curto-
circuito", que confere ao significante fálico uma referência ambígua. Nesse
sentido, o perverso estará continuamente descobrindo um lugar onde ele
permanece fundamentalmente “aquém da castração”. Por outro lado, o psicótico
ficará alienado nesse lugar, aquém da castração, preso a uma identificação
fálica.

NA PRÁTICA

Para demonstrar o modo como a estrutura perversa se presentifica na


clínica, tomaremos um recorte de um caso clínico, de forma literal, apresentado
por Paul Lemoine no livro Clínica lacaniana: casos clínicos do campo freudiano
(1994) e nomeado como “O homem da caneta Bic”.
O caso retratado é de um homem de vinte e oito anos que procurou
atendimento porque desejava livrar-se de um sintoma incômodo: não conseguia
fazer amor se não desenhasse, no peito da mulher, uns traços com uma caneta
Bic. Ele chamava esses traços de “tatuagens”. Não eram desenhos realmente,
mas traços quaisquer. Esse era o meio pelo qual a ereção, que sumia assim que
ele a penetrava, podia se manter. Desse modo, declara Lemoine, as "tatuagens”
tinham o valor de fetiche.
O motivo dele, que deseja se libertar de seu sintoma, era, em grande
parte, por causa das reações da mulher, que não cedia sem mal-estar a essas
práticas extravagantes e que temia que elas pudessem atingi-la profundamente.
"Faz meia hora que decidimos nos separar", começou o paciente no momento
da primeira consulta – a esposa o acompanhava. A separação veio de fato a
realizar-se só alguns anos depois.
Logo, fica claro que essa necessidade de tatuagem tem sua origem numa
fala da mãe. "Se eu perdesse um de meus filhos na multidão, eu o reconheceria
pelo sinal no braço". Lemoine conta que isso se referia ao filho mais velho e ao
caçula, porque o paciente estava desprovido de sinal (na pele). Todos os quatro
estavam numa feira, tendo ele se perdido entre os carrinhos elétricos que se
entrechocavam.
Relata que, na primeira vez que aplicou a “tatuagem” no corpo, estava
sentado junto de uma escrivaninha onde tinha, diante de si, uma jovem colegial,
13
na qual ele aplica, no peito e na coxa (zona mais erógena que o braço), um
carimbo da fábrica do pai e vai ao pátio, onde sobe numa árvore, como Tarzan.
Temia e desejava ser visto pelos operários do pai. Em seguida, volta para a sala
e masturba-se.
Essa prática passa a acompanhá-lo. Em outra época, mais adulto, ele se
aplicou no escritório um carimbo de um chefe que lhe fazia medo, cujas inscrição
era "Para classificar"; depois, foi ao banheiro e masturbou-se. Ele gozava não só
dos carimbos cinzentos, mas coloria também seu corpo com pintura a óleo e
traçava também desenhos. Um dos operários do pai, tatuado desde o serviço
militar, tinha com ele uma relação particular: iam urinar juntos num muro da
fábrica. Era uma maneira, pensava, de se virilizar, e conservou dessas práticas
um forte erotismo uretral. De modo que, tendo percebido operários tatuados, já
adulto, vai urinar num mictório e depois volta para olhá-los com admiração.
A recordação de infância que evoca quase sempre é de uma cena em
que, tendo ele ficado no leito até tarde, sua empregada, que arrumava a cama
do irmão caçula, lhe diz: "Se você borrar na cama, vou lambuzar você." E o
caçula acrescentou: "Eu vou pintar você com minhas tintas." Tatuando-se, ele se
identifica com a mulher, com a sua submissão no ato sexual e finalmente com a
mãe, de quem ele, assim, obtém o amor, por estar marcado como os irmãos.
Tatuar-se, segundo ele, é aviltar-se para ser amado: "Aviltar-me no amor
é submeter-me e tentar reviver... Sou castrado e tenho tatuagens, o que me
assimila às mulheres." A tatuagem, para ele, tem a mesma necessidade de
qualquer outro objeto no fetichista. É sua necessidade que lhe faz temer a cura:

Se elimino as tatuagens, tenho medo de não ter mais sexo. Por isso é
que procuro um sexo não importa onde, até na máquina fotográfica,
por exemplo. Como compreender que o primeiro sexo que eu recuso é
o que tenho verdadeiramente? Se me amarro na tatuagem é para
procurar o gozo. Ele não é coisa de homem, pois que minha mãe me
fez compreender que eu não podia ter gozo com o meu sexo
masculino, era proibido.

Portanto, a parir do que estudamos e conforme confirma Lemoine, a


prática da tatuagem era um verdadeiro rito para evitar o confronto com a
angústia.

FINALIZANDO

• A perversão, na psicanálise, trata-se de uma estrutura clínica, cujo


mecanismo específico é a denegação, que opera sob dois polos: de um
14
lado, pelo horror da castração no Outro; e por outro lado, pela mobilização
de processos defensivos destinados contornar a falta no Outro.
• Contudo, é em torno do significante da falta no Outro, S(A), que a questão
da perversão se impõe, como um ponto de báscula que se introduz no
processo de estruturação do sujeito. Nesse sentido, será a sensibilidade
da criança de abdicar do pai imaginário e acender ao pai simbólico que
determinará a sua constituição estrutural entre neurose e perversão.
• No que concerne ao diagnostico diferencial, para que ele seja operatório,
ainda há de considerar o caráter imperativo, no qual o perverso faz intervir
o seu desejo como única lei do desejo que ele reconhece, pois, enquanto
neurótico, o desejo se funda pela lei do desejo do Outro, que tem sua
inauguração com a inscrição do significante do Nome-do-Pai. Na
perversão, a lei do pai só é articulada para desafiá-la através de tudo
aquilo que ela impõe enquanto simboliza a falta.
• O apelo sedutor da mãe se organiza tanto nos registros de “dar-se a ver”
quanto nos de “dar-se a entender”, que se traduz no momento crucial do
Édipo, tornando-se um verdadeiro convite ao tormento para a criança.
Ocorre que, por mais que a criança perceba uma autêntica incitação ao
gozo, já que não estamos tratando de uma fantasia, na maioria das vezes,
a mãe se silencia diante da questão do desejo que se supõe ao pai.
• A diferença entre significante da lei e significação da lei é que, de fato,
podemos dizer que o perverso "escapa" à psicose. No perverso, mesmo
que de forma radicalmente marginal, o significante da lei permanece
relacionado à única instância que lhe garante seu caráter obrigatório, ou
seja, pelo significante do Nome-do-Pai.

15
REFERÊNCIAS

DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre,


1991.

_____. Estruturas e perversão. Porto Alegre: Arte Médicas, 1991.

FREUD, S. Três ensaios sobre a sexualidade. In: _____. Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, 1995. v. 6.

LACAN, J. O Seminário, livro 4: a relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar,


1995.

Lemoine, P. O homem da caneta Bic, in Clínica Lacaniana, casos clínicos do


campo freudiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

SANTOS, A. B. dos R.; BESSET, V. L. A perversão, o desejo e o gozo:


articulações possíveis. Estudos de Psicologia, Campinas, v. 30, n. 3, p. 405-
413, nov. 2013.

16
ESTRUTURAS PSICANALÍTICAS
AULA 1

Prof.ª Juliana Santos


CONVERSA INICIAL

Durante nosso estudo, veremos as estruturas clínicas da psicanálise, são


elas: neuroses, psicoses e perversão. Verificaremos que Freud pouco usou o
termo estrutura, ele surge vez ou outra para abordar o diagnóstico diferencial.
Pois foi Lacan que de fato inseriu o estruturalismo na psicanálise a partir da
ciência linguística e, assim, conceitualizou os modelos estruturais da clínica
psicanalítica.
Assim, quando apresentamos uma estrutura clínica, estamos falando de
uma conjunção de elementos que se encontram implicados em suas posições
no interior do conjunto em suas relações mutuas. As leis válidas para o conjunto,
sublinha Coelho (1976), são validas também para cada um de seus elementos
isoladamente. (p. 21)
No período pré-psicanalítico que durou cerca de oito anos, e que
antecedeu a publicação da Interpretação do sonho datada em 1900, é possível
encontrar nos escritos de Freud uma pesquisa sobre as diferentes formas de
constituição do psiquismo. Pois, desde o início, ele pôde se dar conta de que ao
lado da histeria, enquadrada como uma neurose de defesa, poderia ocorrer um
outro tipo de neurose:

Foi-me preciso começar meu trabalho por uma inovação nosográfica.


Ao lado da histeria, encontrei razões para situar a neurose das
obsessões (Zwangsneurose) como uma afecção autônoma e
independente, embora a maioria dos autores classifique as obsessões
entre as síndromes que constituem a degenerescência mental ou as
confunda com a neurastenia.”. (Freud, citado por Roudinesco, 1998, p.
535)

E, assim, com os desdobramentos da teoria do autoerotismo e narcisismo


até a elaboração da segunda tópica, entre os anos de 1914 a 1924, Freud
concebe uma diferenciação estrutural entre neurose e psicose. Onde a neurose
é resultado de um conflito entre o eu e o isso, cujo efeito produz uma renúncia
das exigências pulsional, produzindo o recalque. Contudo, Freud ressalta que o
sujeito, nessa formação, preserva a realidade. Já na psicose, há uma
perturbação entre o eu e o mundo externo e, por conta disso, o psicótico rompe
com a realidade e produz uma realidade nova através de sua produção delirante
e alucinatória.
A perversão, como uma terceira estrutura, é caracterizada nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, sendo ela uma manifestação bruta e não

2
recalcada da sexualidade infantil, pois trata-se de uma perversão polimorfa
vivida na infância. Assim, Freud reúne as estruturas, na qual: a neurose é
produzida pelo recalque, a psicose como reconstrução de uma realidade
alucinatória e a perversão como efeito de uma renegação da castração, cujo
gozo retorna na vida sexual.
Para entendermos, então, a impotência do diagnóstico estrutural na
clínica psicanalítica, iremos, primeiramente, considerar as dimensões que a
separa da clínica médica, pois, ainda que os diagnósticos tenham herdado as
mesmas nomenclaturas da clínica psiquiátrica, elas servem à psicanálise de
maneira diferente e se sustentam por via de um outro discurso. Assim, para
compreender o modo como a psicanálise atua sobre uma condição
psicopatológica, é valido acompanhar, brevemente, a história da evolução da
clínica medica, visto que ela foi a matriz da clínica terapêutica psicanalítica
inventada por Freud.
E para ampliar nosso entendimento a respeito do diagnóstico estrutural,
pretendemos abordar as psicopatologias Operacional-pragmática, que estão
inseridas nos DSM e no CID para que, dessa forma, possamos estabelecer um
limiar entre a clínica psicanalítica e a psiquiatria.

TEMA 1 – O MODELO DA ESTRUTURA CLÍNICA CLÁSSICA

Na medicina clássica, é possível observar que o seu funcionamento se dá


pela articulação entre classificação e ordenamento, que visam contribui para a
construção de um domínio de linguagem, pondo em cena a semântica do termo,
que determina o significado clínico de signos, traços, sintomas e síndromes.
No projeto clínico moderno, busca-se estabelecer uma semiologia, isto
é, uma classificação e organização de signos, índices, sintomas e traços que
devem ser apresentados como diferenças significativas ao olhar clínico. Tipo: na
febre, as alterações na coloração, na textura ou na forma de uma região do corpo
são signos que se articulam de forma simultânea e sucessiva. Sendo, então, o
total dessas articulações que devem ser captados pelo olhar clínico como uma
unidade dotada de valor e significação. Nesse sentido o olhar clínico se
estabelece apenas sobre a nomenclatura da doença, se reduzindo a essência
de uma palavra (Dunke, 2011, p. 403).
A sanção da ordem médica ocorreu no sec. XVIII, com o nascimento da
clínica moderna, onde os sintomas vão se aproximar da matéria de linguagem
3
antes de ser recortada em unidades significantes, isso significa que os sintomas,
no sentido lato, que incluem e se misturam com o mal-estar e o sofrimento que
eram expressos, como vimos anteriormente, de forma narrativa, nesse momento
da história passam a ser tratados como sintoma, no sentido estrito. Trata-se da
operação da clínica do olhar. “É este movimento que torna o sintoma, como
queixa genérica, ao sintoma no sentido clínico” (Dunker, 2011, p. 405).
No entanto, se verifica que os pensamentos da clínica médica mantiveram
estável a relação entre signos e seus referentes, pois só eram considerados
signos os que, de fato, se apresentavam imediatamente legíveis na relação entre
o olhar do clínico e o corpo do doente. Desse modo, o que se refere à fala ou
lembrança do paciente, do relato de seus familiares e amigos ou da simples
impressão do observador, segundo Dunker, possuíam um valor secundário e
suspeito.
Nesse sentido, o clínico ouve o paciente, mas, não o escuta. Ou seja,
ouve na medida em que as informações, que lhe são transmitidas, possam ser
cortejadas pela referência anatomopatológica. Assim, a clínica exclui o paciente
como sujeito, pelo qual, o único sujeito, desta clínica, é o médico, cujo signo em
certificar a doença como tal, é legitimo.
E se na clínica clássica a semiologia é uma prática de leitura, o
diagnóstico diz respeito a um ato, onde, nele se presume uma organização
estável da semiologia, a saber, a nosografia. Dessa forma, o diagnóstico implica
a capacidade de discernimento acerca do valor e da significação que um
conjunto de signos possui quando estes aparecem de forma simultânea ou
sucessiva na particularidade de um caso (Dunker, 2011, p. 407).
Dunker nos remete à problemática do diagnóstico da clínica clássica, pois
é possível existir inúmeras variações: síndrome, quadro, transtorno, disfunção,
sintoma. Portanto, sua prática se torna ainda mais complexa por não possuírem
um valor de diagnóstico fixo quando tomados de formas isoladas, ou quando são
integrados numa situação de comorbidade em seu processo transformativo.
O processo do diagnóstico inclui, também, a anamnese que implica um
“desesquecimento” do passado da doença, pelo qual passa a relacionar-se
sincronicamente com sua capacidade de estabelecer um prognóstico. A
qualidade do prognóstico está, justamente, na possibilidade de estabelecer o
curso esperado para a enfermidade naquele paciente específico. Assim, a
diagnostica inclui não só a avaliação da perturbação, como também os recursos

4
e circunstâncias que o paciente dispõe para atravessar o seu processo mórbido.
Portanto, na estrutura da clínica moderna, se supõe, também, uma causalidade,
isto é, uma etiologia da doença, que segundo Dunker, está seria a ambição
máxima do trabalho diagnóstico, que, além de descrever e classificar a
enfermidade, visa indicar a causa precisamente. (p. 411)
E por último, a estrutura da clínica clássica apresenta em sua perspectiva
a operação terapêutica, que inclui todas as estratégias que visam interferir e
transformar a rede causal que constitui a etiologia, confirmam a diagnóstica e
verifica o valor semiológico dos signos e sintomas. Desse modo, a ação
terapêutica, na medida do possível, deve indicar a causa e, portanto, é nesse
sentido que Freud veio estabelece a psicanálise como terapêutica das causas.
Dito isso, Dunker compara as três tradições arqueológicas que compõem
a psicanálise com a da clínica em relação às estruturas e dispositivo de
tratamento:

1. As técnicas de tratamentos têm seus métodos definidos pela


aspiração moderna científica: nesse caso, a noção de terapia
subordina-se aos procedimentos de estrutura do tratamento (semiologia,
diagnóstico e etiologia). No entanto, vê-se que a estrutura da clínica
absorve em seu interior a metafísica do retorno, pela qual os signos
retornam aos mesmos lugares, nos mesmos tempos, caracterizando a
diagnostica das doenças. Dessa forma, o restabelecimento passa a
contornar ângulos fisiológicos (organismo), clínico (funcionalidade da
vida), ou da medicina social (equilíbrio antropológico);
2. Observa-se a tradição da terapia como aspiração de recomposição
social e integração narrativa. Nesse caso, a relação com a estrutura
clínica é de sobreposição incidental, indica Dunker, pela qual a tradição
terapêutica onde noção de “sanação” diz respeito à diminuição ou retirada
de sofrimento é entendida como noção moral e política, sendo, portanto,
indiferente para a estrutura clínica. Assim, surgem os espaços residuais,
que desenvolverão práticas higienistas, cuidados com o corpo, e no
campo da saúde mental, a psicoterapia francesa, a terapia moral entre
outras técnicas de alívio de sofrimento, formado pelo campo não
recoberto pela estrutura. (p. 417)
3. A tradição da cura: de modo mais simplista, esta designaria a extinção
do processo patológico. Aqui, há várias vertentes para serem pensadas

5
contextualizando com o momento histórico de cada época. Mas, a partir
da segunda metade do século XIX, Dunker sublinha que essa noção tende
a representar aquilo que era essencial à clínica na antiguidade e torna-se
contingente na clínica moderna: a atitude ética do médico diante do
doente. Gradualmente essa atitude vai se transferindo para os auxiliares
do médico. O médico observa e trata, o enfermeiro cuida, o padre cura (p.
419).

Desta feita, a ação terapêutica inclui três aspectos heterogêneos: a


intervenção metódica no quadro da estrutura da clínica, a atitude de cuidado,
atenção e acompanhamento e a utilização de técnicas secundárias, adjuvantes
ou auxiliares.

TEMA 2 – A SUBVERSÃO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA

A novidade trazida por Freud à clínica refere-se a mudanças estruturais,


ao invés de caminhar da semiologia para o diagnóstico e daí sustentar uma
hipótese etiológica. Freud faz um caminho contrário e parte do “ponto fraco” do
sistema – a terapêutica, cuja estrutura é dada pelo ponto de vista tópico,
dinâmico e econômico. Para isso, ele dá a palavra às histéricas abrindo um novo
campo discursivo completamente inédito.
Verifica-se, então, que o sistema estava adequado para que não se
passasse da semiologia à terapêutica sem passar pela diagnostica. E não se
chegasse à diagnóstica sem semiologia; e para que não se fosse da diagnóstica
à etiologia sem passar pela semiologia ou pela terapêutica. Por fim, era possível
conceber as circulações fechadas entre diagnostica e semiologia, ou a pequena
circulação envolvendo semiologia, diagnóstico e terapêutica.

Terapêutica Diagnostica

Etiologia Semiologia

A proposta de Freud se dá após a descoberta dos sintomas histéricos,


descreve Dunker, visto que as histéricas podiam simular os sintomas através da
sugestão hipnótica. E assim, conforme especificou Bercherie, “podemos falar em
clínica psicanalítica sob a condição de não esquecer que, nesta expressão

6
composta, o adjetivo é mais importante do que o substantivo, e os dois termos
são inseparáveis” (Bercherie, citado por Dunker, p. 440).
Portanto, podemos verificar que a clínica psicanalítica submeteu a
estrutura clínica aos seus próprios pressupostos, pelo qual Dunker declara que,
“a psicanálise subverte, na acepção forte do termo, o estatuto dos parâmetros
da clínica da qual se originou.” (p. 440). Pois, então, se o sentido de subversão
é inverter e deslocar o sentido de um processo, podemos pensar que a
psicanálise promoveu uma ruptura constitutiva quando passa da clínica do olhar
para uma clínica da escuta.

2.1 Semiologia

Freud abandona o sistema baseado na semântica orgânica, onde se


prescrevia a estabilidade dos signos em relação a seu referente, e passa a se
interessar pelo seu carácter singular e instável da ligação entre o significante e
o significado e pelo aspecto multifacetado e temporal da produção da
significação. Isso significa que numa conversão histérica, com paralisia de um
membro, isso se realiza sobre a representação que o sujeito faz desse membro,
e não pela sua estrutura anatômica, ou seja, é o órgão sociossimbólico e não o
órgão anatômico que é convertido.
Dessa forma, a clínica psicanalítica rompe com o estilo epistêmico em
relação aos relatos clínicos, pelo qual passa a realizar uma genealogia do sujeito
e uma arqueologia do sentido. Visto que, as regras de composição do sonho,
dos chistes, dos atos falhos e dos sintomas possuem uma semiologia própria,
da qual se assenta a noção de inconsciente.

2.2 Etiologia

No plano da etiologia, Dunke afirma que a psicanálise introduz uma


subversão correlativa da noção de causalidade, sendo este o tema que a domina
desde sua origem.
Ao contrário da tradição que reinava no período da publicação do Estudos
sobre histeria, onde era enfatizada a diagnóstica e a semiologia, Freud sempre
esteve concentrado na possível articulação entre etiologia e terapêutica, pelo
qual é possível verificar nos primeiros textos pré-psicanalíticos e principalmente
nas correspondências com Fliess, essa intenção.

7
Em Lacan a noção da etiologia passará por dois momentos de revisões:
no primeiro momento, a noção de causalidade é revertida pelo conceito de
estrutura. “A estrutura não é nem um mecanismo, nem uma rede de condições,
e também não se reduz à determinação dialética reflexiva, mas de certa forma,
pode ser construída de modo a agregar dentro de si todos estes modelos de
causalidade.” O segundo momento “reintroduz a noção de causalidade do sujeito
(alienação e separação como categorias existenciais) e objeto a causa de desejo
(como causa negativa) e depois disseminada na teoria do real sob as diferentes
expressões da causalidade negativa.” (p. 450 -51).

2.3 Diagnóstica

Nesse ponto, encontramos, talvez, a maior subversão, onde Freud, no


lugar de uma exaustiva classificação e de uma descrição objetivante, introduz
uma homogeneidade entre tratamento e diagnóstico. E se na psiquiatria a
posição de sujeito era tomada pelo discurso médico, representado pela figura do
médico, situação na qual o objeto era o paciente representado pelo seu corpo,
Freud inverte essa relação: aqui, o paciente é quem toma a posição de sujeito e
que será posto por condição do método clínico. Assim, o analista exercerá a
posição de objeto, ainda que no lugar de agente do discurso. Seguindo essa
estratégia, Dunker acrescenta:

O diagnóstico é a leitura dessas articulações entre traços, significantes


e sintomas em sua reatualização da realidade sexual do inconsciente,
ou seja, é o diagnóstico feito não apenas através da transferência, mas
da transferência. Isso implica uma reformulação radical da
psicopatologia. Ela não exprime quadros fixos para um observador
anônimo, mas formas mais ou menos regulares de transferência.
(Dunker, 2011, p. 457)

Portanto, se o trabalho do diagnóstico depende da semiologia, como


apresentamos acima, na psicanálise a semiologia não implica numa semântica
de regime de signos fixos, de modo que a universalidade está apenas na forma
vazia das leis de articulação do inconsciente e da pulsão. Assim, o trabalho de
diagnóstico deve ser feito através de isolamento de significantes particulares que
aparece na articulação de cada paciente.
A linguagem entra na diagnostica psicanalítica não apenas como
estrutura, sublinha Dunker, mas como mediação fundamental na dialética com o
Outro. A linguagem tem a dimensão da alteridade, o campo simbólico, no qual o

8
sujeito está submetido, “que o constrange ali onde ele não é mais senhor em sua
própria morada”. (p.458)
É importante termos a distinção entre o diagnóstico para a clínica médica
da clínica psicanalítica, pois na primeira o paciente é objetivado ao seu
diagnóstico em forma de uma alienação, enquanto na psicanálise o analisante
não perde sua posição de sujeito para o seu diagnóstico.
Os desdobramentos do diagnóstico em psicanálise têm a prerrogativa de
se completar apenas ao final do tratamento, de modo que a cada sessão deve-
se buscar a posição do sujeito nas transferências, isso, porque em psicanálise a
investigação diagnóstica diz respeito à exploração e construção da fantasia, pelo
qual, em última análise o que se busca é um diagnóstico etiológico (p. 459).
Quantos às categorias semiológicas e diagnósticas, Freud importou e
manteve as noções descritivas da psiquiatria: histeria, neurose obsessiva, fobia,
paranoia (demência precoce), esquizofrenia, melancolia, sadismo, fetichismo e
masoquismo. O mesmo aconteceu com outros níveis semiológicos. No entanto,
Dunker demarca, neste ponto, três procedimentos decisivos para a clínica
psicanalítica que subverteram a clínica clássica:

1. A separação entre psiconeuroses de defesa (fobia, neurose obsessiva,


histeria e paranoia) e psiconeuroses atuais (neurastenia, hipocondria e
neurose de angústia) tem como crivo de organização a incidência
diferencial da sexualidade. A separação entre neuroses de transferência
(histeria de angústia, histeria de conversão e neurose obsessiva) e
neuroses narcísicas (melancolia, paranoia e parafrenia) tem como
princípio de ordem a relação diferencial da circulação da libido entre o
eu e os objetos. A separação entre psicoses, neuroses e perversões tem
como parâmetro a relação com a perda da realidade. Desse modo,
verifica-se que são os conceitos psicanalíticos que comandam as
redescrições e não apenas as descrições clínicas puras dos quadros
psiquiátricos.
2. A introdução de nova categoria clínica, como as neuroses atuais (de
angústia, neurastenia, hipocondria), a parafrenia (espécie de híbrido entre
paranoia e esquizofrenia), e as neuroses não estruturais (neurose de
caráter, neurose de destino, neurose traumática). Assim, Dunker assinala
que “não há dependência ou soberania da origem psiquiátrica das

9
descrições”, pelo qual elas se apresentam como verdadeiras
contribuições da psicanálise à clínica em geral.
3. As redescrições das categorias da clínica clássica, que Dunker considera
ser a de maior importância, na psicanálise não foi reduzida a uma
linguagem regional de uso próprio apenas pelos psicanalistas, ainda que
sua circunscrição seja para o tratamento que lhe será próprio. No entanto,
foi preciso essa redescrição para as categorias da diagnóstica
psicanalítica, cujo objetivo foi sujeitá-las à dependência de sua
semiologia, de sua terapêutica e de sua concepção etiológica. Mas, o que
Dunker nos chama a atenção é que, nem sempre esse trabalho de
redescrição foi orientado pelas exigências da metapsicologia, visto que é
possível observar na história da psicanálise inúmeras afecções que
migraram para o seu interior sem um trabalho de redescrição subversiva.
De modo que encontrarmos vários tipos de categorias como a depressão,
a dependência química, o déficit de atenção, os transtornos psicomotores,
os problemas de aprendizagem e outros inúmeros gêneros que foram
empregados em seu valor de face descritiva, sem qualquer consideração
pelo seu funcionamento na clínica psicanalítica. Por outro lado, sublinha
Dunker, há também algumas categorias introduzidas pela própria
psicanálise, tais como os estados-limite e casos borderline. (p. 461)

Em Lacan, os fundamentos naturalistas serão completamente afastados


do campo da psicopatologia, contudo, deixaremos para nos aprofundar nos
diagnósticos a partir de Lacan quando tocarmos no tema das estruturas clínicas.

2.4 Terapêutica

Sobre a questão da terapêutica, Dunker nos remete ao texto do próprio


Lacan: Variantes do Tratamento Padrão, de 1955. E sublinha que a terapêutica
psicanalítica se caracteriza por acolher o discurso reconhecendo “o poder
discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma segunda potência” (p. 472). Desse
modo, quem escuta tem de fato o poder discricionário, isto é, determina o sentido
da mensagem e não que a profere, mas, ao invés de se colocar como intérprete
do discurso do paciente, cabe a ele devolver ao analisante suas próprias
palavras para que ele possa se apropriar delas e reconhecer nelas o seu desejo.

10
Sendo assim, as exigências terapêuticas, afirma Dunker, são exigências
de discurso: interrupção, contenção, coerência, racionalidade interna,
referencialidade externa, aceitação pelo outro. Pelos quais os critérios
terapêuticos são critérios de linguagem: fala constitutiva, discurso constituído. E
sobre a questão da técnica terapêutica, encontramos algo que foge à questão
da técnica, ou seja, o desejo do analista que diz respeito a “considerar a ação
que lhe cabe na produção da verdade”, sendo este, ponto de intersecção entre
o plano da terapia e o plano da cura em psicanálise, conclui o autor (p. 473).
Dunker ainda nos apresenta um quadro, proposto por ele, onde nos ajuda
a situar as operações de covariância internas à terapêutica psicanalítica:

Quadro 1 – Operações de covariância internas

Momento do tratamento Operação lógica Operação clínica


Ou não penso Retificação das relações
Entrevistas preliminares
ou não sou com o Real
Primeiro tempo Implicação subjetiva Desalienação Entrada em análise
Corte
Neurose de transferência Interpretação
(operação verdade)
Análise das resistências
Travessia da angústia
Segundo tempo Mutação da transferência Não penso e não sou
Travessia das
identificações
Penso onde não sou
Construção da fantasia Castração
Sou onde não penso
Separação entre sujeito
Terceiro tempo Luto (não penso) Queda do objeto a
suposto saber e objeto a
Passagem de analisante
Destituição Subjetiva Separação (não sou)
a analista

TEMA 3 – AS PSICOPATOLOGIAS E A PSICANÁLISE

Psicopatologia é o termo usado para designar as manifestações das


doenças mentais. A palavra vem do grego: psique = “alma” e pathos = “doenças”,
ou seja, doenças da alma ou doenças do espirito. Os elementos que constituem
sua disciplina – semiológicos e diagnósticos, são partilhados entre a psicologia,
psiquiatria e psicanálise, cujas definições foram erigidas da medicina. A
psicopatologia, como prática, pretende estabelecer a distinção diagnóstica e
explicá-la.
Assim, para alinhar o entendimento dos diversos profissionais sobre
questões, critérios e conceitos relacionadas à saúde, tais como: diagnóstico,
funcionalidade e incapacidade, a Organização Mundial de Saúde recomenda
algumas classificações internacionais, onde é utiliza uma linguagem comum
padronizada, permitindo, dessa forma, uma comunicação segura.

11
Dunker e Kyrillos Neto (2011), no artigo: A psicopatologia no limiar entre
psicanálise e a psiquiatria: estudo comparativo sobre o DSM, declaram:

Pelo número de disciplinas, disparidade de métodos e diversidade de


posições, vê-se que a psicopatologia exige e implica a tomada de
posição, visando organizar de modo coerente e homogêneo práticas
terapêuticas e diagnósticas, bem como discursos semiológicos e
etiológicos (Dunker, 2010). Isso implica a articulação entre
experiências regulares de aspecto universal pelas quais pathos
aparece como determinação excessiva ou deficitária e experiências
contingentes ou singulares pelas quais pathos aparece como
indeterminação produtiva ou improdutiva (Honneth, 2007). Não se trata
de oposição simples entre quantidades e qualidades, entre
singularidade e universalidade, mas da lógica de constituição da
experiência, ou seja, do real e do regime de verdade em curso na
psicopatologia. (Dunker; Kyrillos Neto, 2011)

Portanto, as psicopatologias se desenvolveram conceitualmente num


terreno de trocas conceituais entre psiquiatria e psicanálise, contudo, a oposição
na contemporaneidade entre elas parece atualizar um dilema antigo entre corpo-
alma, impondo uma distância cada vez maior na medida em que a clínica do
caso a caso, tão cara à psicanálise, não consegue encontrar lugar nas
classificações consideradas universais e generalizáveis. Portanto, resta-nos
saber o que sobrou de diálogo entre esses dois campos.
Sendo assim, precisamos, primeiramente, conhecer os instrumentos que
geraram essa correspondência psicanalítico-psiquiátrico, onde se destacam três:

• CID: critérios para diagnóstico de doença: fornece código que gera motivo
para vincular a pessoa a um serviço de saúde ou garantir direitos jurídicos.
• DSM: critérios diagnósticos para transtornos mentais.
• CIF: caracteriza a funcionalidade e limitação, mas não define diagnóstico
e não dá nome de doença. Apresenta apenas as manifestações das
doenças / patologias. A CIF contribui por fazer uma descrição das
condições atuais da pessoa em relação ao que ela tem de positivo e
negativo, ou seja, o que ela consegue ou não fazer em determinado
contexto. Não se propõe a investigar e nem descrever determinantes, ou
seja, não se detém ao que levou a pessoa a estar assim atualmente.
Apenas descreve as potencialidades e limitações para a vida diária em
determinado contexto. Tem aplicação universal e é bastante útil para
fundamentar laudos sobre saúde mental.

O principal deles é o que tomaremos para análise: o Diagnostic and


Statistic Manual of Mental Disorders (DSM), editado pela Associação Americana

12
de Psiquiatria (APA). Em sua primeira versão, o DSM-1 (1952), reconhece o
papel proeminente da psicanálise. Nele se revelou, pela primeira vez, a tentativa
de concilia a classificação, que era provida pela Organização Mundial da Saúde
- a Classificação Internacional de Doença (CID-6), as ideias psicanalíticas e
psicopatológicas subjacentes, na qual elas poderiam conter particularidades não
tão facilmente aceitas no resto do mundo. Mas, a partir do DSM-III (1980-1987),
foi observada a retirada gradativa das categorias e signos clínicos advindos da
psicanálise para serem substituídos por entidades “propriamente psiquiátricas”.
Assim, nos DSM de nossos dias, que tipo de expressão poderíamos encontrar
no campo da psicopatologia que seria capaz de contemplar as referências
clínicas, semiológicas e diagnósticas tanto de solo psicanalítico quanto
psiquiátrico?

3.1 A evolução dos DSM

O DSM é um manual diagnóstico e estatístico que possui relação com a


classificação de transtornos mentais e de comportamento da Classificação
Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Pelas
palavras de Dunker e Kyrillos Neto: “o DSM é um imenso empreendimento
coletivo, do qual participam diferentes grupos de trabalho, comportando milhares
de pesquisadores divididos em seções que expressam orientações teóricas e
clínicas distintas”.
No DSM-I, encontramos uma lista de diagnósticos categorizados, isto é,
um glossário com descrição clínica de cada categoria diagnóstica. E através dele
surge uma série de revisões sobre questões relacionadas às doenças mentais.
Em 1968, foi publicado o DSM-II, desenvolvido paralelamente com a CID-
8, que trouxe apenas pequenas alterações nas terminologias. As alterações
importantes vieram na publicação do DSM-III em 1980, quando a APA introduz
modificações metodológicas e estruturais.
É, portanto, a partir do DSM-III, que o enfoque passa a ser mais descritivo,
com critérios explícitos de diagnóstico organizados em um sistema multiaxial.
Seu objetivo era facilitar a coleta de dados estatísticos. Em 1987 o DSM-III passa
por uma revisão e sua publicação é feita como DSM-III – R. Nessa nova revisão,
a homossexualidade foi retirada de uma condição patológica e posta nos termos
de Homossexualidade Egodistônica. Mas o ponto que definitivamente
estremeceu a relação entre psicanálise e psiquiatria fico sob a supressão do
13
conceito de neurose, visto que se trata da classe fundamental da psicopatologia
psicanalítica.
Dunker e Kyrillos Neto mencionam que, a partir do DSM-III, a psiquiatria,
pela primeira vez, define-se em oposição à psicoterapia e “os psicoterapeutas
são acusados de criar demandas e serviços para aqueles que realmente não
estavam doentes, mas apenas descontentes (discontents)” (Mayes; Horwitz,
citado por Dunker; Kyrillos). Por outro lado, os psicanalistas se posicionaram
contra os psiquiatras partidários de uma visão fiscalista do transtorno mental.
Em 1994, foi publicado o DSM-IV, esse período representa uma grande
mudança no manual que resultaram na inclusão de novos diagnósticos descritos
com maior critério e precisão, sendo que, em 2013, ele passa por uma revisão e
é lançado como DSM-IV – TR, um manual diagnóstico e estatístico que está
relacionado ao CID-10. Antonio Quinet (2009) nos reporta que a partir dessa
publicação os tipos clínicos da neurose (histeria, neurose obsessiva e fobia)
foram retiradas do catálogo, e no campo da psicose apenas permaneceu a
esquizofrenia, sendo removida a paranoia e melancolia.

Ao se substituir as doenças própria da psiquiatria clássicas por


transtornos, opta-se mais pela descrição e pela comunicação desses
fenômenos entre colegas que por uma clínica em que cada caso seja
efetivamente um caso e onde os fenômenos sejam considerados
sintomas, ou seja, formações entre as diversas instancias do aparelho
psíquico. (Quinet 2009, p. 11)

Para Pessoti (1999), a CID, o DSM, tem por finalidade padronizar os


critérios diagnósticos, o registro estatístico e o entendimento entre os clínicos,
criando uma linguagem comum para a psiquiatria.
Kyrrillos, em seu artigo: DSM e psicanálise: uma discussão diagnóstica,
enfatiza que entre a psicanálise e psiquiatria não se trata de uma disputa
ideológica, “a psicanálise conservou a função diagnóstica da psiquiatria sem
deixar de se referir à psiquiatria clássica, mantendo a relevância e a
singularidade da fala de cada sujeito tanto no nível do enunciado quanto no da
enunciação”. E conclui o autor, “o que colocamos em questão é que atualmente
a psiquiatria encontra-se tomada pelo furor sanandi da farmacopeia,
abandonando o seu saber clássico e clínico”.
Atualmente, temos vigente o DSM-V, publicado também em 2013,
resultado de doze anos de estudos de diferentes grupos de trabalho. Seu
objetivo foi trazer uma nova classificação, com a inclusão, reformulação e
exclusão de outros diagnósticos. O DSM progressivamente foi ficando cada vez
14
menos preocupado com a etiologia e voltado para o uso de drogas dotadas de
eficácia para fazer correções biológicas capazes de suportar sua prática. Assim,
a psiquiatria afasta-se progressivamente da psicanálise e dos seus preceitos
conceituais e clínicos.

TEMA 4 – PASICANÁLISE E PSICOPATOLOGIA

Para abordar as psicopatologias pelo olhar da psicanálise, é preciso


efetuar um diagnóstico que, como vimos, diz respeito a um reconhecimento de
um conjunto de signos, contudo, ela não se explica pela etiologia orgânica, mas
pela linguagem, pois, na psicanálise, as psicopatologias estão diretamente
ligadas ao recalcamento do desejo.
O desejo está desde sempre, para a psicanálise, na origem edipiana e,
ainda que as modalidades dos sintomas se transformem de acordo com o seu
tempo, o diagnóstico será fruto de um processo de construção do caso clínico
que deve, necessariamente, se referir à estrutura que o condiciona. Freud, ao
desenvolver a metapsicologia, pôde conceber um modelo para as
psicopatologias clínicas da psicanálise a partir das formações inconsciente, a
saber: neuroses, psicoses e perversão.
Antonio Quinet (2009), em seu livro Psicose e laço social, declara: “Freud
mostrou que as leis do inconsciente estão presentes em todos os sujeitos:
neuróticos, perversos e psicóticos”. Assim, ele encontra semelhança da
formação dos sonhos com a formação dos sintomas neuróticos, a analogia do
sonho com a alucinação e seu parentesco com a psicose”. (Quinet, 2009, p. 13).
No texto Considerações acerca do DSM-IV, os autores Roberto Calazans,
Pedro Sobrino Laureano e Fuad Kyrillos Neto (2019), a respeito da etiologia,
dizem: “a respeito da hipótese etiológica, Freud não se contenta apenas em
deslocar para o psiquismo a causa dos distúrbios. Ele confere valor etiológico ao
fracasso mesmo de representação da causa”. (p. 71). Isso significa que a
etiologia do sofrimento será buscada, na psicanálise, à falha de inscrição
psíquica do evento traumático.
Foi assim que Freud fez no Estudo sobre histeria: ele transpôs a
dificuldade etiológica, encontrada pela medicina, para o psiquismo do doente,
pelo qual declara: “as histéricas sofrem de reminiscência” (Freud; Breuer, 1895,
p. 217).

15
O sintoma é efeito de um trabalho psíquico bastante elaborado que surge
diante do mal-estar que acomete o sujeito e, como sublinha Silvia G. Myssior e
Zilda Machado (2019) no texto: O que será das atividades da criança, ele “tem a
função essencial de sustentar a estrutura do aparelho psíquico” (p. 115).
O texto O único não cabe no Manual, escrito pelas autoras: Cláudia
Ferreira Melo Rodrigues, Cláudia Aparecida de Oliveira Leite e Rogéria Araújo
Guimarães Gontijo (2019), afirma que narrativa sempre única do mal-estar
escapa ao imperativo da codificação universal que o manual (DSM) propõe, pois
a singularidade emerge na estampa de cada vivência de sofrimento. E foi assim
que Freud concebeu a psicanálise, destacando a maneira única em que cada
um é afetado para dizer do seu sintoma. “A estranha psicanálise demarca que o
initium subjetivo é operado pelo traço unário, essa marca que recebemos do
Outro e que traz para cada um a inscrição da diferença absoluta.” (p. 129).
Portanto, se a proposta do DSM é a de silenciar o sujeito, uma vez que
oferta universalmente a descrição do sintoma, levando a palavra do que confere
o “cada um” a desaparecimento, a psicanálise sustenta a palavra como direção
de cura.
É imprescindível entender que ainda que a psicanálise tenha mantido as
categorias psicopatológicas da psiquiatria clássica, Freud construiu uma
semiologia própria da psicanálise e incluiu algumas inovações que na época
acabaram influenciando as classificações da própria psiquiatria.

TEMA 5 – A QUESTÃO DO DIAGNÓSTICO EM PSICANÁLISE

A importância do diagnóstico diferencial em psicanálise não está para


submeter o sujeito a uma categoria, nem mesmo a noção de estrutura clínica
deve ambicionar a totalização da subjetividade e de suas formas de sofrimento,
como nos adverte Dunker (2011), pois, assim, seria o mesmo de confundir
semiologia e diagnostica, mas, na verdade, se trata de considerar a posição do
sujeito no Édipo, ou seja, o modo como o sujeito entra na linguagem e a sua
relação com a realidade. Desse modo, o psicanalista não trabalha com o
diagnóstico, mas efetua uma leitura sobre o modo como sujeito é incidindo pela
linguagem.
Nesse sentido, verificamos que o diagnóstico na clínica psicanalítica está
relacionado à estrutura do sujeito e não aos fenômenos, portanto, o analista, ao
nomear a estrutura do paciente, incide sobre a condução do tratamento,
16
mantendo em seu horizonte aquilo que se impõe como verdade singular do
sujeito.
Contudo, Freud buscou referências dos grandes nomes da psiquiatria
clássica, como Kraepelin, fazendo da psicopatologia um tributo a ela. Reuniu as
neuroses no fim do século XIX, com uma formulação etiológicas, muito diferente
daquelas preconizado pela clínica psiquiátrica, pois, Freud possibilitou uma nova
maneira de compreender os fenômenos e situou os sintomas numa relação de
compromisso entre as diversas instancias do aparelho psíquico.
Os termos Verdrängung, Verwerfung e Verleugnung (repressão, rejeição
e negação), que a princípio não representavam o marco divisório, aos poucos
vão ganhando na obra freudiana a importância de um mecanismo que efetua
uma forma de defesa especifica do sujeito e que determinará a sua constituição
estrutural.
Para a psicanálise, o diagnóstico estrutural é, portanto, o resultado de uma
investigação feita no um a um, no registro simbólico, pois é desde aí, onde todas
as questões fundamentais do sujeito estarão articuladas (sobre sexo, morte e
procriação) e por onde podemos encontrar os três modos de negação do Édipo,
que correspondem às três estruturas clínicas:

1. Recalque = neurose, a castração do Outro é negada na consciência e


mantida no inconsciente.
2. Desmentido = perversão, a castração do Outro é encoberta pelo objeto
fetiche.
3. Negação = psicose, o Outro não é castrado.

NA PRÁTICA

Vemos então que o valor da clínica psicanalítica não se constituiu pelo


olhar sobre a doença e tampouco pelo efeito de cura sobre uma doença, mas
em estabelecer, ou dito de outro modo, restituir a verdade do sintoma do sujeito
e essa pode ser considerada uma das maiores subversão da clínica dada pela
psicanálise.
Freud, ao situar o sujeito em sua constituição estrutural, não submeteu à
clínica ao diagnóstico, mas submeteu o diagnóstico a uma causalidade psíquica
singular ao sujeito, portanto, o sujeito passa a se implicar no seu discurso. Assim,
reconhecer as estruturas psíquicas através do discurso do sujeito é poder atuar

17
na clínica como o agente de causa psicanalítica, ou seja, atuar na posição de
analista.
Recorte de um caso: esse caso ocorreu no CAPS Nise da Silveira RJ, com
um senhor que nomeamos de “Lopes”. Trata-se de um usuário antigo do CAPS,
com um alto grau de socialização com os outros usuários e amigável com os
técnicos. Lopes vivia sozinho em sua casa, pois seus pais já eram falecidos e
casualmente mantinha contato com seus familiares.
De acordo com os eixos classificatórios do DSM-IV-TR, Lopes era tratado
pelo seguinte diagnóstico: esquizofrênico paranoide, transtorno de
personalidade Borderline, heteroagressividade, autoagressão, transtorno sexual
sem outra especificação.
Por manter uma relação amistosa no CAPS, um grupo de técnicos e
usuários realizaram uma vaquinha para reformar a casa de Lopes, pois a casa
estava bastante depredada, com porta quebrada, paredes rabiscadas, sendo
que Lopes dormia no chão em um colchão sujo.
A reforma foi realizada: doaram uma cama com colchão as paredes foram
pintadas a porta consertada. A casa foi entregue limpa e arrumada para Lopes,
que ao receber não esboçou nenhuma reação, ficou paralisado e sem falar nada.
Lopes não compareceu no CAPS durante duas semanas após a
interversão, por conta disso, dois técnicos foram visitá-lo. Lopes estava
agressivo e não quis recebê-los. A porta de sua casa estava quebrada e as
paredes rabiscadas.
Na semana seguinte, Lopes retornou ao CAPS e disse que sua casa havia
sido destruída pelos técnicos e que teve muito trabalho para consertá-la. Ao ouvir
o relato, o analista pediu para que ele falasse sobre o que teve que consertar e
Lopes não teve dúvida, “tive que colocar tudo como estava, pois ninguém iria
saber que aquela era a casa era a minha casa do jeito que a deixaram”.
Lopes nos ensina sobre o belo, a escuta do um a uma, será que a
intervenção feita pelo CAPS era o que Lopes desejava ou desejaram por ele? O
que é o bom e belo para o sujeito?
O trabalho do psicanalista é com a escuta, cujas referência são dadas
pelo sujeito que fala. As produções delirantes estão para o sujeito como sintoma
na neurose, portanto, a casa do caso clinico refere-se à sua identidade, qualquer
intervenção nela pode destruir o modo como o sujeito se relaciona no laço social,
podendo levá-lo ao surto.

18
FINALIZANDO

O modelo da estrutura clínica foi o modelo herdado pela psicanálise, no


entanto, Freud não submeteu a psicanálise ao seu sistema, pelo contrario, ele
subverteu a clínica classica é inovou o funcionamento que a ordenava. A
subversão da clínica passa do olhar para a escuta.
A semiologia psicanalítica se interessa pelo carácter singular e instável da
ligação entre o significante e o significado e pelo aspecto multifacetado e
temporal da produção da significação.
A etiologia – correlativa da noção de causalidade, sendo, este, o tema que
a domina desde sua origem.
A diagnostica – está foi a maior subversão, onde Freud, no lugar de uma
exaustiva classificação e de uma descrição objetivante, introduz uma
homogeneidade entre tratamento e diagnóstico, no qual o paciente é quem toma
a posição de sujeito e que será posto por condição do método clínico.
A terapêutica – a terapêutica psicanalítica se caracteriza por acolher o
discurso reconhecendo “o poder discricionário do ouvinte para elevá-lo a uma
segunda potência”.
O DSM é um manual diagnóstico e estatístico que possui relação com a
classificação de transtornos mentais e de comportamento da Classificação
Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Cada
vez menos preocupada com a etiologia e dispondo de drogas dotadas de eficácia
para fazer correções biológicas capazes de suportar sua prática, a psiquiatria
afasta-se progressivamente da psicanálise e dos seus preceitos conceituais e
clínicos.
As psicopatologias em psicanálise – estão diretamente ligadas ao
recalcamento do desejo, desejo de origem edípica, que resultam no modo de
linguagem: neuroses, psicoses e perversão.
As psicopatologias em psicanálise são, portanto, tributárias da psiquiatria
clássica, contudo ela é justamente o que podemos considerar como uma
descontinuidade dessa prática, visto o modo como Freud utilizou o termo, pois
ele introduz o patologico na vida cotidiana em seu eximio texto: As psicopatologia
da vida cotidiana, no qual ele inclui os acontecimentos ordinarios da vida
humana, como o esquecimento, os atos falhos, as supertiçoes, etc. a uma
especie de patologia para além da doença.

19
Na clínica psicanalítica, é a escuta do complexo de Édipo na história do
sujeito que vai determinar a sua posição subjetiva, no qual cada estrutura clínica
será o resultado de múltiplas vivências complexas e paradoxais de cada criança
com o seu par parental (mãe e pai), onde pela presença e ausência, se
configurará diferentes versões que engendra as versões das neuroses, das
perversões ou das psicoses.

20
REFERÊNCIAS

COELHO, E. P. Introdução a um pensamento cruel: estruturas, estruturalidade


e estruturalismos, in Estruturalismo antologia de textos teóricos. Portugal:
Martins Fontes, 1956

CALAZANS, R.; SOBRINO, P.; NETO, F. K. Considerações acerca do DSM-IV.


In: psicanálise e psicopatologia: Olhares contemporâneo. São Paulo: Blucher,
2019.

DUNKER, C. Estrutura e constituição da clínica psicanalítica: uma


arqueologia das práticas de cura, psicoterapia e tratamento. São Paulo:
Annablume, 2011.

DUNKER, C. I.; KYRILLOS NETO, F. A psicopatologia no limiar entre psicanálise


e a psiquiatria: estudo comparativo sobre o DSM. Vínculo - Revista do NESME,
v; 8, n. 2, 2011.

GARCIA ROZA, L. A. Introdução à metapsicologia freudiana. Vol. 2. Rio de


Janeiro: Zahar, 2008.

FREUD, S. (1895). Rascunho K. As neuroses de defesa. In: Obras completas.


Vol. I. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, S. (1913). Totem e tabu. In: Obras completas. Vol. XIII. Rio de Janeiro:
Imago, 1996.

MELO, C. F.; LEITE, C. A. de O.; GONTIJO, R. A. G. O único não cabe no


manual. In: psicanálise e psicopatologia: Olhares contemporâneo. São Paulo:
Blucher, 2019.

NETO, F. K. et al. DSM e psicanálise: uma discussão diagnóstica. Rev.


SPAGESP, Ribeirão Preto, v. 12, n. 2, p. 44-55, dez. 2011.

PESSOTI, I. Os nomes da loucura. São Paulo: Editora 34, 1999.

QUINET, A. Psicose e laço social. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.

21

Você também pode gostar