Aula 5

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TÓPICOS ESPECIAIS EM

ARQUIVOS E ACERVOS
HISTÓRICOS
AULA 5

Prof. Antonio Fontoura


CONVERSA INICIAL

Em vários momentos de nossas discussões anteriores, foram abordadas


as diferentes relações que o poder mantém com os arquivos. Esse se apresenta
de diferentes formas, como na seleção de documentos, organização dos
acervos, permissão de acesso aos dados, no segredo das informações, no
descarte de dados. Assim, os arquivos acabam por ecoar determinadas
concepções sociais. Nesse momento, porém, pretende-se discutir a relação dos
arquivos com um aspecto mais concreto do poder: o político e, mais
particularmente, o poder político autoritário. Ou seja, as relações que os arquivos
e os arquivistas mantêm com a manutenção de regimes repressivos e, mesmo,
práticas genocidas.

TEMA 1 – OS ARQUIVOS E OS REGIMES AUTORITÁRIOS

“O grande irmão está observando você”: na famosa obra 1984, escrita


pelo inglês George Orwell (1903-1950), esta era a frase que aparecia de maneira
constante nas teletelas (aparelhos que eram ao mesmo tempo televisores e
câmaras de vídeo), presentes em praticamente todos os ambientes do fictício
país totalitário de Oceania. Em um estado de vigilância constante, o controle
social se dava tanto pela coleta de informações quanto pela difusão do temor de
estar sendo observado. Se, na atualidade, discute-se se o “Grande Irmão” já não
é uma realidade concreta na forma de câmeras de vigilância e compartilhamento
maciço de informações via tecnologia digital, na história recente, as polícias
políticas de estados ditatoriais contavam com os arquivos para construir tais
sistemas de vigilância, controle e medo.
O importante papel desempenhado pelos arquivos na garantia dos direitos
dos cidadãos e no fortalecimento da democracia na atualidade se torna
particularmente evidente quando compreendemos as relações existentes entre
regimes autoritários e os arquivos. Em regimes ditatoriais de qualquer espectro
político, a busca por informações, sua seleção e uso estiveram no centro da
manutenção do poder. Isso significa que os arquivos se tornaram indispensáveis
ferramentas de controle social, com informações sendo utilizadas visando a
preservação de ideologias, valores e políticas do Estado, além da limitação ao
acesso de informações por parte dos cidadãos. A documentação classificada
como sigilosa era abundante, ecoando via controle de informação as práticas

2
políticas de controle social. Na atualidade, arquivos de tais Estados podem ser
utilizados por historiadores e historiadoras para compreender as formas pelas
quais se construiu a estrutura ditatorial de um país, desvendar crimes políticos,
buscar reparações e inclusive permitir a compreensão dos fundamentos e
estratégias de práticas genocidas, casos da Alemanha Nazista, de Ruanda, ou
do Khmer Vermelho do Camboja. Porém, em sociedades que, a princípio,
deixaram para trás antigos modelos ditatoriais, como a Rússia, pode ser difícil
para historiadores acessarem determinados arquivos: mesmo nos dias de hoje,
arquivistas formados sob as regras da União Soviética acabam decidindo quais
documentos russos serão liberados aos pesquisadores, e que informações estes
estariam, por assim dizer, “autorizados” a acessar (Rosenberg, 2001).
Destruição e apagamento de arquivos (facilitado por sua digitalização)
foram estratégias comuns utilizadas por governos autoritários quando
perceberam seu iminente fim. Afinal, tais arquivos não apenas revelavam
detalhes da estrutura de dominação social, mas também explicitavam as
estratégias e os perpetradores de ações que, sob regimes democráticos,
acabariam sendo identificados como criminosos. Tome-se o caso do Serviço
Nacional de Inteligência da África do Sul, a polícia política do regime
segregacionista racial do Apartheid. Se durante o governo do Partido Nacional o
estado buscou “a destruição de toda memória da oposição por meio de censura,
confiscos, banimento, encarceramento, assassinato e um amplo conjunto de
outras ferramentas opressivas” (Harris, 2007, p. 173), durante o período de
transição para a democracia, o Serviço Nacional atuou intensamente para a
destruição de arquivos. Durante cerca de dois anos, incinerou mais de quarenta
toneladas de documentos, procurando apagar a memória dos crimes cometidos
pelo regime.
No entanto, nem todas as tentativas de destruição de arquivos de
governos autoritários tiveram sucesso. Às vésperas do evento conhecido como
Queda do Muro de Berlim, em 1991, funcionários invadiram os escritórios da
quase extinta polícia secreta da Alemanha Oriental visando a destruição de
arquivos, procurando apagar os traços de suas ações sob o governo autoritário.
Sua ação foi, porém, interrompida pela população e pelas autoridades,
permitindo que ficasse conhecida, em detalhes, a função dos arquivos nas
estratégias de atuação de uma das mais eficientes forças de controle social e
político da história recente.

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Estabelecida formalmente em 1949 com a divisão da Alemanha pós a
Segunda Guerra Mundial, a Alemanha Oriental organizou sua estrutura política
espelhando o modelo soviético, inclusive sua polícia secreta e controle de
informações. A Stasi, abreviação alemã para Ministério para a Segurança do
Estado, tornou-se uma das mais efetivas agências de polícia política e de
controle de informações da Guerra Fria, chegando a ter cerca de 260 mil
funcionários, sendo que mais da metade eram agentes. “Escudo e espada do
Partido”, como dizia seu lema, tinha como objetivo combater atividades
consideradas subversivas, algo que conseguia a partir de uma extensa rede de
espionagem, instilação da desconfiança entre a população e o aprisionamento
por motivação política de cerca de 250 mil pessoas durante suas quatro décadas
de funcionamento. E no centro desta política de controle social estavam os
arquivos e os arquivistas. Assim sintetiza o historiador Knabe:

Mas por que a Stasi coletava toda esta informação em seus arquivos?
O objetivo principal era controlar a sociedade. Em quase todos os
discursos, o ministro da Stasi dava a ordem para descobrir quem era
quem, ou seja, quem pensava o quê. Ele não queria esperar até que
alguém tentasse agir contra o regime. Ele queria saber antecipadamente
o que as pessoas estavam pensando e planejando. (Knabe, 2014, s.p.)

Os arquivos da Stasi continham informações sobre as milhares de


pessoas investigadas pela instituição, os agentes responsáveis pela coleta de
informações e as diferentes práticas de vigilância, controle e perseguição
sociais. A partir de 1991, dentro do processo de reunificação da Alemanha, os
arquivos da Stasi foram preservados sob a guarda do Estado, sendo que os
cidadãos conquistaram o direito de consultar os próprios registros presentes nos
arquivos. Para historiadores, tornou-se ferramenta para se compreender a
institucionalização daquela polícia política, suas estratégias, crimes e vítimas.
Deve-se lembrar que os arquivistas desempenham papéis significativos
de manutenção do status quo sob a vigência de um governo autoritário. Não há
dúvida de que, em tais circunstâncias, há poucas alternativas aos funcionários,
senão a de seguir as ordens dadas, sob o risco de desemprego ou mesmo
complicações legais – ou pior. Em geral, durante a passagem de um regime
autoritário para outro democrático, os arquivistas tendem a desempenhar um
importante papel de preservação das informações, necessárias tanto do ponto
de vista legal quanto administrativo e histórico. Mas, além disso, devem auxiliar
na reestruturação do próprio sistema de arquivos do país, procurando extrair dele
quaisquer vestígios das práticas autoritárias e ditatoriais que os moldaram.
4
TEMA 2 – ARQUIVOS E GENOCÍDIO

Embora dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial, foi por conta de


seus estudos sobre a busca de eliminação do povo armênio pelos otomanos
entre 1914 e 1923 que o jurista polonês Raphael Lemkin (1900-1959) cunhou
em 1944 o termo genocídio para se referir à destruição sistemática de um grupo
étnico. A compreensão do termo foi posteriormente ampliada, e atualmente se
define a ação genocida enquanto a busca, usualmente por parte de um Estado,
da destruição de certo grupo considerado indesejável pelos perpetradores.
Diferentemente de atrocidades que ocorrem em guerras, o genocídio se
diferencia pela intenção sistemática de eliminação de grupos sociais, religiosos
ou étnicos, visando eliminar seus indivíduos, provocar neles graves danos físicos
ou mentais, e impedir a gestação de novas crianças ou a sua criação,
impossibilitando assim sua sobrevivência enquanto grupo social (United Nations,
1948).
Em contextos de genocídio, os arquivos participam de várias maneiras. A
primeira delas é a de atuarem enquanto ferramentas de auxílio às práticas
genocidas, e isso pode ocorrer de diferentes formas. Em 1994, no genocídio de
Ruanda dos povos Tutsi e Twa pela maioria Hutu, por exemplo, os documentos
de identidade foram essenciais para a identificação dos grupos minoritários, pois
a etnia era a primeira informação presente nos documentos. A burocracia de
todo o processo ligado à Solução Final pela Alemanha durante a Segunda
Guerra, infame por sua eficiência, foi possível também por conta do constante
auxílio prestado pelos arquivos e suas informações. É bem conhecida a
utilização da tecnologia de cartões perfurados pelo governo nazista em seus
censos, permitindo que rapidamente fossem identificados nomes, a religião e os
endereços dos cidadãos da Alemanha e das regiões ocupadas. O governo do
Khmer Vermelho, que perpetrou genocídio contra a própria população além de
grupos étnicos minoritários enquanto esteve no poder no Camboja (entre 1975
a 1979), utilizou-se da criação de arquivos com um objetivo diferente: o de
manter os registros detalhados de suas ações na demolição da antiga ordem e
na reescrita da história (Adam, 1998). Na prisão de Tuol Sleng, em que se estima
terem sido mortas 20 mil pessoas, construiu-se um extenso arquivo descrevendo
as atrocidades cometidas: formulários, listas, confissões, gráficos criados pelos
funcionários de Tuol Sleng provavam que estavam trabalhando nos interesses

5
da revolução e mantendo cuidadosos registros de suas várias ações e
atividades” 1 (Adam, 1998, p. 18).
Uma segunda relação que se estabelece entre práticas genocidas e
arquivos é a busca pela destruição dos registros da população atacada, como
estratégia de destruir vestígios de sua existência bem como sua herança cultural.
Na aula 2 foi comentado como a destruição do patrimônio judaico pelos nazistas,
tanto nos países ocupados quanto na própria Alemanha, acompanhou as ações
ligadas ao Holocausto. Da mesma forma, os eventos ligados a práticas de
limpeza étnica durante a guerra da Bósnia (1992-1995) foram acompanhados da
destruição de arquivos, bibliotecas e registros públicos, bem como objetos da
cultura material. Como afirma o antropólogo Hariz Halilovich sobre a ação do
exército sérvio,

a violência por trás da destruição não foi uma onda de violência


espontânea, mas sim uma campanha militar diligentemente planejada e
executada com o objetivo de apagar qualquer evidência de que aqueles
que sofreram a limpeza étnica tivessem existido. (Halilovich, 2014, p.
232)

Tratou-se de uma ação que visou, também, apagar quaisquer registros da


ocorrência da própria prática genocida, tornando mais difícil, inclusive, a
identificação dos responsáveis e a localização das vítimas. Um ato que
apresenta uma terceira relação que se estabelece entre arquivos e práticas
genocidas: os registros podem ser utilizados para a busca por justiça e
identificação de responsáveis, inclusive judicialmente. Casos recentes como
as investigações sobre os genocídios no Camboja, em Ruanda e na
desintegração da antiga Iugoslávia demonstram a importância que
desempenham os arquivos na busca por justiça e reparação. Em 1994, foi
inaugurado o Tribunal Internacional Criminal de Ruanda, em um processo que
contou com a ativa participação de arquivistas tanto na montagem dos casos
quanto no estabelecimento de responsabilidades, em um processo considerado
essencial à superação do país dos traumas do genocídio. Processo semelhante
ocorreu em 1997 com a criação do Tribunal do Khmer Vermelho no Camboja: o
conhecimento das atrocidades cometidas e a identificação de seus responsáveis
foram possíveis apenas por conta da existência de arquivos. Processo diferente

1
Apesar de ter sido ordenada aos funcionários de Tuol Sleng a destruição dos arquivos, a tarefa
não foi realizada diante do que viram como prioridade: assassinar os presos restantes e fugir
antes da chegada do exército vietnamita.
6
ocorreu em relação ao Tribunal Internacional Criminal para a Antiga Iugoslávia,
pois, como afirmado anteriormente, a prática da limpeza étnica foi acompanhada
pela destruição de registros da ocorrência do genocídio. Neste caso, a
identificação dos responsáveis e de suas motivações contou, além de vestígios
materiais como ossadas encontradas em valas comuns, com depoimentos de
sobreviventes. Todavia, este caso também demonstrou que os arquivos podem
desempenhar papel suplementar na reconstrução de um país ou de um povo
pós-genocídio, pois surgiram novos documentos, e portanto novos arquivos,
ligados àquele evento traumático. Estes novos arquivos participam do processo
de reconstrução dos grupos afetados pelas ações de limpeza étnica.
Considerando-se a importância dos arquivos para a busca da justiça, a
reparação de danos e a superação de traumas, torna-se ainda mais importante
o debate sobre os arquivos da chamada Operação Anfal, ocorrida em 1986 e
1989. Tratou-se de uma ofensiva genocida do exército iraquiano sobre a
população curda que vivia no norte do país, e que resultou na morte de 50 a 180
mil pessoas, principalmente homens curdos. Em 1991, os arquivos ligados a
essa operação foram tomados pelo exército dos Estados Unidos e retirados do
Iraque, para que fossem utilizados enquanto provas para possíveis acusações
de crimes de guerra cometidos pelo governo iraquiano. Em 2003, também os
arquivos do Partido Baath, que controlava o país sob o regime de Saddam
Hussein (1937-2006), foram levados aos Estados Unidos. Desde então,
especialmente por conta das informações sensíveis presentes nestes arquivos,
seu repatriamento vem sendo exigido pelo governo iraquiano. A maior parte
destes documentos está sob a guarda da universidade estadunidense de
Stanford, que concede seu acesso apenas a determinados pesquisadores
autorizados (Ba’ath, s.d.).

TEMA 3 – ARQUIVOS E A DITADURA MILITAR NO BRASIL

Como todo governo repressivo, também a ditadura militar do Brasil (1964-


1985) contou extensivamente com o apoio de arquivos e arquivistas para a
manutenção de seu poder, bem como pela busca do controle sobre a sociedade.
Dentro do âmbito mais propriamente político, era bastante amplo o número de
instituições ligadas, direta ou indiretamente, à repressão: o Serviço Nacional de
Informações (SNI), os serviços secretos das Forças Armadas (Centro de
Informações do Exército – CIE; Centro de Informações da Marinha – CENIMAR;
7
Centro de Segurança de Informações da Aeronáutica – CISA), bem como a
Polícia Federal eram apoiados, nos estados, pelas Delegacias de Ordem Política
e Social (DOPS). Em 1970, substituindo a antiga Operação Bandeirantes
(Oban), foi implementado o chamado DOI-CODI, sigla para Destacamento de
Operações de Informações (DOI) e Centro de Operações de Defesa Interna
(CODI). Todas foram instituições que produziram documentos sobre suas
atividades e cujos arquivos contribuiriam para a compreensão da estrutura de
poder ditatorial do Brasil. Para além do contexto político, alcançando as artes e
a cultura, estava a atuação da Divisão de Censura de Diversões Públicas
(DCDP), submetida ao Departamento de Política Federal sob o Ministério da
Justiça. Neste caso, a documentação se refere à avaliação feita pelos censores
do governo de peças de teatro, filmes, programas televisivos, letras de música,
periódicos e livros, dentro dos parâmetros políticos e morais considerados
adequados pelo regime.
Foi característica da ditadura brasileira a busca pela legitimação legal de
seu poder, criando uma quantidade bastante significativa de legislação e, com
isso, de documentos burocráticos e, por fim, de arquivos. Porém, desde os anos
finais do regime, sempre se demonstrou difícil o trabalho de pesquisa nestes
arquivos. Ainda nos dias de hoje, mais de três décadas findada a ditadura,
continua intensa a busca de pesquisadores por arquivos e documentos, bem
como sua divulgação e publicação.
O primeiro conjunto de documentos que revelou detalhes das ações de
repressão política da ditadura militar foi organizado sob o projeto “Brasil: Nunca
Mais”, que coletou e publicou mais de 700 processos do Superior Tribunal Militar,
utilizando-se das possibilidades permitidas pela Lei da Anistia promulgada em
1979 (Arquidiocese de São Paulo, 2009). Estes documentos, publicados
originalmente em 1985 2, foram as primeiras evidências documentais, extraídas
do próprio sistema legal ditatorial, que confrontavam as narrativas criadas pelos
militares em relação aos grupos de resistência política.
A partir dos anos 1990, foram reforçados os esforços de pesquisadores,
bem como de entidades civis, visando a recuperação, divulgação e análise da
documentação pertencente aos diversos órgãos do aparelho repressivo
ditatorial. Todavia, instituições públicas e agentes de governo procuraram

2
Existe, na atualidade, um site do projeto Brasil: Nunca Mais, que disponibiliza estes e outros
documentos para download: <bnmdigital.mpf.mp.br>. Acesso em: 23 jan. 2020.
8
insistentemente barrar a liberação e o acesso à documentação. Por exemplo,
ainda que os arquivos das Delegacias de Ordem Política e Social, que eram
órgãos repressivos dos estados, fossem gradualmente disponibilizados a
diferentes entidades para sua guarda, o acesso a seu conteúdo se mostrou
problemático. No Paraná, uma lei que autorizava a consulta dos arquivos por
pesquisadores foi promulgada apenas em 2013; em São Paulo, quando os
arquivos foram recebidos pelo Arquivo Público daquele estado em 1994,
percebeu-se que se encontrava mutilado (Governo de São Paulo, s.d.).
Os arquivos das diferentes instituições federais ligadas à repressão são
ainda mais problemáticos. Com o fim da ditadura e iniciado o período de
redemocratização, as agências de inteligência, bem como as Forças Armadas,
não se preocuparam a princípio em tomar medidas de ocultação de arquivos,
pois quem havia assumido a presidência, José Sarney (1930), tinha sua origem
na Arena, o partido político ligado ao regime ditatorial. No entanto, com as
eleições de 1989, particularmente o SNI, Serviço Nacional de Informações,
iniciou uma política de destruição de documentos que foi interrompida apenas
em 1990, com a dissolução da agência pelo presidente Fernando Collor (1949)
(Figueiredo, 2015).
As Forças Armadas, por sua vez, repetidamente se recusaram a fornecer
detalhes da documentação que mantinham, constantemente argumentando que
os arquivos do período ditatorial teriam sido destruídos como consequência de
práticas arquivísticas rotineiras. Na atualidade, por exemplo, não existe
praticamente nenhum documento relativo à atuação do DOI-CODI. Foi apenas
em 2005 que um decreto presidencial autorizou o Arquivo Nacional a manter a
documentação dos arquivos do SNI, do Conselho de Segurança Nacional (CSN)
e da Comissão Geral de Investigações (CGI); e a lei de acesso à informação de
2011 consolidaria o direito dos cidadãos brasileiros ao acesso às informações,
inclusive as relativas à ditadura militar. Mesmo assim, há muitos arquivos e
documentos desaparecidos e inacessíveis.
Assim como ocorre em governos repressivos, também a ditadura militar
procurou manter restrito o acesso aos arquivos e destruí-los quando se viram
sob ameaça de escrutínio social. Diferentemente do que ocorreu com outros
países que viveram sob ditaduras, porém, o Brasil ainda testemunha processos
de apagamento de arquivos. Não restam dúvidas de que muitos documentos
relativos ao período de 1964 a 1985 foram destruídos, mas é possível que exista

9
uma quantidade considerável de documentos ainda a ser descoberta e trazida à
luz. O caso da Comissão Especial de Investigação Sumária (CEIS) da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) é um exemplo.
A Comissão foi criada em 1964 com objetivo de identificar e expulsar da
universidade todos os funcionários, professores e alunos que fossem
identificados como elementos comunistas. As atas da comissão ficaram perdidas
por décadas e só foram preservadas por acaso: um dos professores 3, membro
da comissão, manteve os arquivos em sua residência. Após seu falecimento,
acabaram transportados ao Centro de Documentação da Universidade de
Caxias do Sul e lá preservados. Foi apenas em 2010, contudo, que um
pesquisador notou sua importância, registrou todos os documentos e os analisou
(Cerutti, 2010).
A trajetória das atas das reuniões da Comissão Especial de Investigação
Sumária demonstra a possibilidade de existência de documentação ligada à
ditadura militar ainda a ser encontrada nos arquivos. Faz-se necessário, porém,
além de preservar os documentos existentes, torná-los públicos: muito dos
documentos do período ainda não se encontra digitalizado, o que restringe seu
acesso e estudo por parte dos pesquisadores.

TEMA 4 – A COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E OS ARQUIVOS

Em 2009, a 11ª Conferência Nacional dos Direitos Humanos, ocorrida em


Brasília, aprovou o 3º Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH-III), um
documento que tinha como objetivo sugerir medidas para o aperfeiçoamento da
promoção dos direitos humanos no Brasil. Tendo como eixo o tema “Direito à
memória e à verdade”, o documento defendia o acesso à informação, pelos
cidadãos, sobre os atentados cometidos pelo Estado brasileiro contra os direitos
humanos e recomendava a formação de uma comissão para investigá-los. A
Comissão Nacional da Verdade (CNV) foi então criada pela Lei 12.528, de 18 de
novembro de 2011, sancionada pela Presidente Dilma Rousseff (1947), tendo
como objetivo analisar as violações dos direitos humanos cometidas entre 1946
a 1988 “a fim de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a
reconciliação nacional” (Brasil, 2011), como dizia o texto da lei. Segundo o que
estava definido em seu artigo 3º, era objetivo da comissão “esclarecer os fatos e

3
Laudelino Teixeira de Medeiros (1914-1999).
10
as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos”,
identificado as “estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias”
associados às violações, além de encaminhar aos órgãos públicos as
conclusões visando “a localização e identificação de corpos e restos mortais de
desaparecidos”, além de buscar “adoção de medidas e políticas públicas para
prevenir violação de direitos humanos” 4 (Brasil, 2011).
Com ambiciosos objetivos e tendo “verdade” como nome, a comissão
deveria contar com provas e testemunhos que fossem comprobatórios das
violações identificadas, e neste caso a disponibilização e análise de documentos
seriam essenciais. Porém, e como foi visto no item anterior, o Brasil já sofria com
significativos problemas relacionados aos arquivos ligados particularmente ao
período da ditadura militar, e esse foi um tópico importante dos trabalhos da
comissão. “Requisitar informações, dados e documentos de órgãos e entidades
do poder público”, “determinar a realização de perícias e diligências para coleta
ou recuperação de informações, documentos e dados”, “promover parcerias com
órgãos e entidades [...] para o intercâmbio de informações, dados e
documentos” 5 (Brasil, 2011) eram todas atividades da CNV, previstas na Lei
12.528, que envolviam a busca de documentos e o acesso a arquivos. Portanto,
superar os obstáculos documentais estava no centro dos objetivos da comissão.
Todo um esforço documental e arquivístico foi criado, desde os primeiros
anos do século XXI, em busca da organização de informações ligadas à ditadura
militar. A CNV contou, em primeiro lugar, com medidas de 2007 e 2009,
mencionadas anteriormente, e a documentação das Assessorias de Segurança
e Informações e das Divisões de Segurança e Informações foi recolhida e
organizada por arquivistas do Arquivo Nacional em Brasília. Em 2009, foi criado
o Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas
(Brasil, 2009), com o objetivo de não apenas coletar, mas analisar, digitalizar e
disponibilizar ao público informações sobre a história recente do país, dispersas
nos arquivos anteriormente secretos dos órgãos de inteligência e repressão. A
criação do Memória Reveladas foi acompanhada pelo apelo público, por parte
do Arquivo Nacional, e a doação de documentos relacionados à ditadura militar.
Esse apelo foi correspondido com a doação de cerca de 200 mil páginas de
documentos incorporados ao acervo (Brasil, 2009).

4
Lei 12.528. art. 3º.
5
Lei 12.528. art. 4º.
11
A Comissão Nacional da Verdade, portanto, desenvolveu suas atividades
em trabalho conjunto e de maneira bastante próxima ao Arquivo Nacional (AN),
como fica claro no próprio relatório final da comissão:

O auditório da sede do AN, assim como seu salão nobre, foi utilizado
pela CNV para a realização de reuniões do Colegiado, coleta de
depoimentos de vítimas e agentes da repressão, além das audiências e
sessões públicas. Em Brasília e no Rio de Janeiro, o AN forneceu
suporte aos pesquisadores da CNV, de modo a assegurar amplo acesso
a documentos e a célere obtenção de cópias. Para agilizar o processo
de digitalização dos acervos identificados como prioritários para o
atendimento das demandas da CNV, o AN, com apoio do Ministério da
Justiça, ao qual se encontra vinculado, reforçou sua infraestrutura de
tecnologia de informação, digitalizando cerca de 10 milhões de páginas
de documentos. (Brasil, 2009)

No entanto, para além da utilização de arquivos já existentes, a CNV


contribuiu também para a criação de novos arquivos. A organização de
documentos, a cópia e digitalização de depoimentos, a criação de novos
relatórios e laudos de eventos dos períodos analisados, todos agora são novos
materiais documentais que não apenas serviram aos objetivos da comissão, mas
se tornaram documentos históricos para ampliação do conhecimento histórico
sobre as ações do Estado durante a ditadura militar.
Deve-se lembrar, por fim, que a CNV não possuía poderes para processar
aqueles que foram identificados como envolvidos em crimes contra os direitos
humanos durante o regime militar. O que a comissão pôde apresentar foram
apenas recomendações para que, em síntese, os crimes cometidos fossem
reconhecidos, os seus responsáveis punidos (algo não possível devido à Lei de
Anistia e a ausência de interesse político) e as vítimas indenizadas. Praticamente
nenhuma das medidas sugeridas foi efetivamente adotada, inclusive a última,
que pedia a ampliação da abertura dos arquivos militares.

TEMA 5 – OS USOS DOS ARQUIVOS DE REGIMES AUTORITÁRIOS

O caso da Comissão Nacional da Verdade, no Brasil, é exemplo de um


uso que se tornou comum, especialmente desde os anos 1990, dos arquivos de
governos autoritários: a busca pelo conhecimento das estruturas autoritárias,
dos perpetradores de crimes e de suas vítimas, visando maior conhecimento
histórico e, na medida do possível, a reparação em relação a crimes cometidos.
No caso do Chile, a Comissão para a Verdade e Reconciliação encontrou
significativos obstáculos para investigar os crimes cometidos sob a ditadura de

12
Augusto Pinochet (1915-2006) porque os arquivos das polícias secretas, DINA
(Dirección de Inteligencia Nacional) e posteriormente a CNI (Central Nacional de
Informaciones) eram praticamente inexistentes.
A Argentina, procurando superar as ações de recuperação de memória
nos anos 1980, em um movimento que acabou anistiando ex-oficiais das Forças
Armadas condenados por crimes cometidos durante a ditadura (1976 a 1983),
iniciou uma nova ação de recuperação da memória nos anos 2000. No entanto,
as dificuldades encontradas se assemelhavam àquelas do Chile, no que se
refere à quantidade relativamente pequena de documentos, agravada pela
ausência de leis que regulamentassem o acesso a arquivos (Catela, 2008).
Tais casos diferem do que ocorreu na Alemanha em seu processo de
reunificação, em que os arquivos da Stasi, protegidos da destruição, foram
utilizados para eliminar de cargos públicos todos aqueles que estiveram
envolvidos com atividades repressivas. E entre a ausência de arquivos e sua
existência quase completa está o curioso caso da Grécia: após ter ocorrido o
que se considerou a reparação às vítimas do regime ditatorial de 1967 a 1974,
os documentos do regime foram destruídos, impedindo-se um aprofundamento
dos estudos bem como reparação a novas vítimas. A Espanha, em finais dos
anos 1980, considerou tomar atitude semelhante em relação aos arquivos das
agências de segurança do regime de Francisco Franco (1892-1975). Neste caso,
por se perceber que as instituições democráticas haviam herdado muito de sua
estrutura administrativa – inclusive os arquivos – da ditadura franquista. Os
arquivos, de toda forma, foram preservados.
Merecem um comentário à parte os chamados Arquivos do Terror,
localizados na década de 1990, relacionados à ditadura de Alfredo Stroessner
(1912-2006), que governou o Paraguai de 1954 a 1989. Os documentos foram
encontrados casualmente no início dos anos 1990 na cidade paraguaia de
Lambaré, em um depósito de cinco metros quadrados, guardados pela polícia
local (Nodal Cultura, 2018). Esse conjunto documental, atualmente parte do
projeto Memória do Mundo da Unesco, apresenta detalhes da morte e do
desaparecimento de cerca de 80 mil pessoas, além de revelar o funcionamento
da Operação Condor, acordo entre as ditaduras do Cone Sul que envolvia a
repressão política, com prisão, tortura e assassinatos de pessoas consideradas
inimigas dos regimes. Esse conjunto documental foi utilizado pelas vítimas
paraguaias que buscaram, além de reconhecimento de suas tragédias pessoais,

13
reparações por meio da Comissão de Verdade e Justiça daquele país. Os
documentos, porém, serviram também para lançar luzes sobre crimes políticos
e vítimas de outros países da região, especialmente aqueles em que eram
escassos os vestígios documentais.
Tem-se, portanto, que um dos primeiros e principais usos dos arquivos de
regimes autoritários é o de lançar luzes sobre momentos históricos sobre os
quais as informações eram limitadas. Além disso, permitiram que fossem
construídas formas de reparação das vítimas e de suas famílias, além de
reconhecimento dos crimes aos quais foram submetidas. Deve-se lembrar,
porém, que tais usos de arquivos, assim como semelhantes processos de
reparação, não são novidade histórica recente. Nos julgamentos de Nuremberg,
por exemplo, os arquivos produzidos pelos próprios nazistas foram utilizados
extensivamente para comprovar as ações criminosas cometidas por aquele
regime, apontando e condenando seus responsáveis.
Um segundo uso que se pode destacar para a utilização de arquivos de
regimes autoritários é que, por meio deles, podem ser conhecidas expressões
políticas e culturais que contrariavam os objetivos políticos daqueles regimes.
Afinal, por sua própria natureza, ideias consideradas subversivas eram
frequentemente proibidas de serem apresentadas sob governos ditatoriais. Os
processos se tornam, assim, uma porta de entrada para a compreensão dessas
visões divergentes de sociedade.
Por fim, a manutenção destes arquivos é essencial à própria existência de
um estado democrático. Por um lado, por manter viva a memória das ações e
consequências de regimes políticos autoritários. Por outro, para servir de
indicação das consequências, sociais e humanas, provocadas pela violação dos
direitos humanos.

NA PRÁTICA

O projeto Memórias Reveladas (http://www.memoriasreveladas.gov.br/)


procura organizar toda documentação ligada às lutas políticas no Brasil durante
o período da ditadura militar. Mantendo o acervo utilizado pela Comissão
Nacional da Verdade e procurando disponibilizar online os documentos
produzidos tanto pelos órgãos de repressão quando pelos especialistas da
comissão, é um ponto partida único para se conhecer a história política recente
do Brasil.
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FINALIZANDO

Em inícios dos anos 1990, tive a oportunidade de trabalhar nos arquivos


do DOPS do Paraná, que haviam sido transferidos para o Arquivo Público
daquele estado. Naquele momento, ainda estudante do curso de História, pude
testemunhar que o arquivo já se encontrava dilapidado. Além disso, em sendo
proibida sua consulta a outros pesquisadores (meu trabalho lá era participar da
organização dos arquivos), tive a oportunidade de ter uma compreensão ampla
do significado e do conteúdo daqueles arquivos. Uma compreensão que seria
dada a outros pesquisadores apenas a partir de 2013 quando sua consulta foi
finalmente liberada. Compreender a importância da preservação e do acesso a
arquivos como esses é essencial à manutenção da democracia nas sociedades
e, particularmente para historiadores e historiadoras, demonstra a importância
que os estudos históricos têm na sociedade como um todo.

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REFERÊNCIAS

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