Baoba
Baoba
Baoba
RESUMO: Esse trabalho é um relato das ações desenvolvidas com crianças de quatro
anos, em uma instituição pública do município de Juiz de Fora - MG, durante os meses
de junho a dezembro, do ano de 2015. O projeto foi desenvolvido pela primeira autora,
professora do primeiro período, em colaboração com pesquisadores do GRUPAI –
Grupo de Pesquisas Ambientes e Infâncias, ao qual pertencemos e tecemos discussões
referentes à infância. As experiências abordadas nesse trabalho são um exemplo
significativo de como o professor pode trabalhar a temática étnico-racial considerando a
brincadeira como a principal linguagem por meio da qual as crianças descobrem o
mundo, se comunicam e se inserem em um contexto social. A discussão está pautada na
perspectiva histórico-cultural, de Lev Vigotski, para a qual a linguagem é a ferramenta
que permite ao homem tornar-se humano. De acordo com a abordagem teórica desse
autor a brincadeira funciona como atividade-guia que impulsiona o desenvolvimento
psíquico da criança. O trabalho foi desenvolvido por meio da Pedagogia de Projetos,
considerando, portanto, os anseios e curiosidades dos meninos e meninas da turma. O
projeto emergiu a partir da música “Menina Moleca” do grupo Palavra Cantada e se
desdobrou em diferentes ações, como a confecção de uma boneca mascote da turma
idealizada pelas crianças que contribuíram efetivamente para a confecção da mesma.
Nesse projeto as crianças também conheceram brincadeiras infantis de alguns países do
continente africano; conheceram e dramatizaram a história da Obax de André Neves e
também realizaram uma releitura dessa obra literária. Além de contribuir para
fortalecer a identidade étnico-racial das crianças, o projeto possibilitou outros
aprendizados, como a pesquisa e a busca por respostas às questões levantadas, como
propõe a Pedagogia de Projetos.
INTRODUÇÃO
A educação infantil tem um papel extremamente importante no desenvolvimento
integral das crianças, tendo em vista ser nessa etapa da vida que elas terão as primeiras
experiências de socialização, internalizando conceitos, ideologias e valores pré-
definidos no meio social do qual faz parte. “[...] interagindo com outros, a criança
ISSN: 2596-2531
aprenderá atitudes, opiniões, valores a respeito da sociedade ampla e, mais
especificamente, do espaço de inserção de seu grupo social” (CAVALLEIRO, 2000, p.
16). Desse modo, é fundamental que os profissionais que atuam nesse segmento possam
estar preparados para propor práticas educativas que consideram a diversidade humana
das crianças oriundas de diferentes configurações familiares, assim como culturas, raças
e etnias. É necessário que essas diferenças sejam reconhecidas e valorizadas no
cotidiano das instituições como forma de romper com o preconceito e o racismo que
ainda são muito fortes na sociedade e consequentemente no interior das instituições
educacionais.
Nessa direção, que ações podem ser propostas no intuito de construir uma
história de respeito e valorização da identidade do sujeito após tantos anos de
discriminação?
Uma das possibilidades é repensar as práticas docentes e de gestão na educação
infantil, rever os tempos, os espaços, os materiais, as imagens que circulam na escola, e
incluir como perspectiva de trabalho a valorização de toda forma e expressão cultural,
étnico e racial – o que certamente produzirá um movimento em que muitas ações e
atitudes serão reformuladas e ressignificadas. Um olhar atento ao que vem acontecendo
na educação em relação às questões referentes ao respeito à identidade contribui para
uma sociedade que respeita a individualidade de cada um.
Esse trabalho é um relato das ações desenvolvidas com crianças de quatro anos,
em uma instituição pública do município de Juiz de Fora - MG, durante os meses de
junho a dezembro, do ano de 2015. O projeto foi desenvolvido pela primeira autora,
professora do primeiro período, em colaboração com pesquisadores do GRUPAI –
Grupo de Pesquisas Ambientes e Infâncias, ao qual pertencemos e tecemos discussões
referentes à infância.
As experiências abordadas nesse trabalho são um exemplo significativo de como
o professor pode trabalhar essa temática considerando a brincadeira como a principal
linguagem por meio da qual as crianças descobrem o mundo, se comunicam e se
inserem em um contexto social. De acordo com perspectiva histórico-cultural a
brincadeira funciona como atividade-guia que impulsiona o desenvolvimento psíquico
da criança. “A atividade guia, segundo A.N. Leontiev, é a atividade que desempenha um
ISSN: 2596-2531
papel fundamental nas mudanças psíquicas da criança em determinados estágios do
desenvolvimento” (PRESTES, 2012 p. 162).
Na escola, frequentemente encontrarmos crianças negras introvertidas,
cabisbaixas, devido a atitudes de desvalorização da identidade étnico-racial dos colegas
e até mesmo de educadores despreparados e preconceituosos. As tensões raciais
vivenciadas pelas crianças na escola, as ofensas imputadas ao seu grupo social e a falta
de representatividade, dificultam a formação da identidade negra.
Conforme documento de implementação da Lei 10.639/2003
O papel da educação infantil é significativo para o
desenvolvimento humano, a formação da personalidade, a
construção da inteligência e a aprendizagem. Os espaços coletivos
educacionais, nos primeiros anos de vida, são espaços privilegiados
para promover a eliminação de qualquer forma de preconceito,
racismo e discriminação, fazendo com que as crianças, desde muito
pequenas, compreendam e se envolvam conscientemente em ações
que conheçam, reconheçam e valorizem a importância dos
diferentes grupos étnico-raciais para a história e a cultura
brasileira. (BRASIL, MEC, 2009, p. 48-49).
ISSN: 2596-2531
Para Barbosa e Horn (2008), essa visão de organização do trabalho pedagógico
considera as crianças como co-autoras do seu processo de aprendizagem, tirando-as do
lugar de passividade que a escola as tem colocado para um papel ativo e participativo.
As autoras defendem que quando trabalhamos com projetos, construímos na verdade
uma comunidade de aprendizagem, na qual o professor, as crianças e suas famílias são
protagonistas. Nessa perspectiva de trabalho, a criança é tomada como cidadã, autora do
seu desenvolvimento, agente de pesquisa, sujeito e criadora da sua própria existência,
capaz de uma vida solidária e responsável com os outros.
Assim, o projeto desenvolvido teve por objetivo contribuir com a construção da
identidade étnico-racial das crianças pertencentes à turma onde aconteceu o trabalho,
incluindo o conhecimento e valorização das diferentes formas de expressões culturais.
As atividades possibilitaram ainda o desenvolvimento das diversas linguagens das
crianças, além de ampliar o repertório de brincadeiras.
1
É uma dupla musical que produz canções infantis que prezam pela elaboração das letras, arranjos e
gravações, com uma poética sensível e respeito à inteligência das crianças.
ISSN: 2596-2531
sucesso. Nesse projeto, assim como em todos que trabalhamos, preocupamo-nos
também em pensar que o espaço não se restringe às dependências da escola, mas
ultrapassa seus muros. Sendo assim, as crianças fizeram uma apresentação da dança em
outra escola municipal do bairro. Elas se sentiram valorizadas, importantes e felizes em
mostrar seu trabalho para outras crianças.
Boneca Mascote
Depois de todo movimento em torno das apresentações, as crianças não paravam
mais de dançar e cantar a música. Foi aí que percebemos que a personagem “Menina
Moleca” estava ganhando vida na imaginação da turma, e nesse momento surgiu a ideia
de construir uma “Menina Moleca” da turma.
As crianças participaram de todo o processo de construção da boneca foi
elaborado um croqui da boneca, de acordo com o desejo das crianças. Em seguida, uma
costureira foi convidada para ir até a escola e ajudar na construção da boneca. As
crianças acompanharam o processo de costura e ajudaram na confecção das trancinhas,
da roupa, do sapato e dos acessórios2. Precisávamos dar um nome para a boneca, a
votação foi feita através de um gráfico, ela recebeu o nome de Chiquita.
Imagem 1: Croqui da boneca
2
As imagens das crianças que aparecem neste trabalho foram autorizadas pelas famílias.
ISSN: 2596-2531
Imagem 2: Construção da boneca
Imagem 3: Chiquita
ISSN: 2596-2531
Imagem 4: Gráfico escolha do nome da boneca
Diário da Chiquita
Foi elaborado um diário para a Chiquita e todos os dias ela ia para casa de alguma
criança. As famílias registravam no diário a rotina da criança com a boneca. Aqui
alguns relatos das crianças3:
“O meu dia com a Chiquita foi muito especial. Levei ela para passear comigo,
apresentei ela para meus irmãos e eles gostaram muito. Jantamos juntos e assistimos
televisão. Quando fui dormir coloquei ela na minha cama. Quando acordamos
tomamos café e voltamos a brincar. Meu pai gostou muito da Chiquita e disse que seria
ótimo se ela morasse com a gente”. (Ana Clara – 4 anos)
“Gostei muito de levar a menina Chiquita para a casa, brincamos bastante e ela tomou
café comigo e minha prima. Adorei passar esse dia com ela. Toda a minha família
gostou dela. Obrigado professora por eu ter sido sorteado e trazer a menina moleca
para casa. Estou muito feliz!” (Antônio – 5 anos)
3
Os nomes das crianças são verdadeiros e foram autorizados pelas famílias.
ISSN: 2596-2531
PESQUISANDO
Dando continuidade ao projeto, com uma visão voltada para o conhecimento da
cultura africana, foi apresentada aos alunos a história “Bruna e a galinha d’angola”.
Com base nessa obra as crianças descobriram a brincadeira preferida da personagem. A
partir daí foi construído um cartaz coletivo sobre quais eram as brincadeiras das quais
mais gostavam. Nesse momento, surgiu a idéia de aprender sobre as brincadeiras das
crianças de alguns países do continente africano. Livros informativos, literários, globo
terrestre, revistas, cartões postais, multimídia (Internet), artigos, recortes de jornais e
pesquisa com as famílias, todos esses materiais, foram suporte para muitos
questionamentos e encaminhamentos ao longo do projeto. As crianças também
aprenderem sobre outros aspectos da cultura africana, como músicas, danças, vestuário
e modo de vida. Todos os questionamentos que surgiam eram registrados em cartazes,
coletivamente.
Em uma das rodas de discussão Eloá ficou curiosa, e levantou a seguinte
questão: “Será que lá na África as crianças brincam na escola?” E as perguntas não
pararam por aí. “Quais os brinquedos que as crianças da África brincam?” Perguntou
Isadora. “As brincadeiras das crianças da África são iguais das crianças brasileiras?”
Quis saber Thalysson. Estes questionamentos eram registrados nos cartazes, bem como
as sugestões das próprias crianças de como aprender o que ainda não sabiam.
A partir desses questionamentos surgiram os aprendizados das brincadeiras.
Buscamos aproveitar todos os espaços da escola, principalmente os externos, onde
foram desenvolvidas a maioria das brincadeiras, como é possível ver nas imagens
abaixo:
ISSN: 2596-2531
Figura 5: Bate palminha
ISSN: 2596-2531
Imagem 7: Registro matemático da brincadeira Gutera Uriziga
Imagem 8: Pengo-pengo
ISSN: 2596-2531
Eloá fez o seguinte comentário: “Mas essa brincadeira eu já conheço e brinco muito!”
O que demonstra que as crianças perceberam que algumas brincadeiras já eram até
conhecidas. Com base nas descobertas realizadas pela exploração e leitura do livro
fizemos um grande mural contando sobre as brincadeiras preferidas das crianças de
vários países africanos. As crianças participaram de todas as etapas de elaboração do
mural.
ISSN: 2596-2531
escolheu o momento da sua participação na história. O envolvimento com a releitura era
intenso, as crianças aguardavam ansiosas para integrarem-se às cenas da história. Maria
Eduarda que viveu a personagem Obax ficou graciosa, com birotes na cabeça. E as
demais meninas maravilhadas, com os turbantes coloridos e as estampas dos tecidos. Os
meninos admirados com a chuva de flocos de algodão e com o elefante Nafisa, não se
cansavam de subir e descer da árvore que reproduzia o Baobá. Um dos momentos mais
marcantes da história foi a chuva de flores. Os olhinhos das crianças brilhavam, a
alegria era visível em cada rostinho que contagiava a todos.
A releitura sobre a obra Obax culminou em um livro produzido pelas crianças
com imagens (fotografias) da dramatização e texto da história. O texto foi produzido
junto com as crianças, e nesse momento a professora era escriba, ou seja, as crianças
recontavam cada cena da história oralmente e a professora escrevia.
A releitura foi apresentada para as famílias e para as outras crianças da escola.
Além de o projeto ter contribuído para estabelecer valores éticos e estéticos,
desenvolvendo a sensibilidade para a diversidade étnica, elas exercitaram a imaginação,
a expressão musical, corporal e gráfica das crianças.
ISSN: 2596-2531
Imagem 11: Obax e Nafisa
ISSN: 2596-2531
Considerando a importância do tema aqui exposto observamos que o trabalho
realizado com as crianças foi extremamente positivo. Percebemos um grande
envolvimento das crianças e de toda a comunidade escolar durante a realização deste
projeto. Faz-se necessário destacar quais impactos e contribuições o projeto trouxe para
todos. A família teve uma participação direta no sentido de incentivar as crianças na
participação dos trabalhos realizados. Na visita da Chiquita às casas, por exemplo, as
famílias estavam interessadas em participar e registrar o momento das crianças com a
boneca, não só as crianças ficavam ansiosas em levar a Chiquita para casa, mas também
seus pais. E perguntavam: - “Quando minha filha vai levar a Chiquita de novo para
casa?” Ou então “Meu filho não quer faltar à escola nem quando está doente, porque
não quer perder a sua vez de levar a Chiquita para casa”. As crianças demonstravam
muito carinho e cuidado com a boneca. Quando eram sorteadas não desgrudavam dela
nem um minuto e estavam sempre falando “Vou cuidar da Chiquita direitinho, ela vai
dormir bem juntinho de mim”.
Também não podemos deixar de relatar grandes transformações da turma. As
crianças ficaram mais unidas e confiantes. Maria Eduarda que interpretou a Obax na
releitura do livro era uma menina tímida e tinha poucas amizades, depois deste trabalho
sua autoestima aumentou muito, ficou mais solta, confiante e mais feliz. Ela se tornou
muito querida pela turma e todas as meninas faziam questão em tê-la como amiga.
A releitura da “Obax” fez tanto sucesso que também encantou o profissional que
encadernou o livro. Ele quis conhecer a turma pessoalmente. Foi até a escola e mostrou
as etapas de encadernação de um livro e sugeriu que as crianças participassem de um
projeto sobre sustentabilidade elaborado por ele, em que ensinaria a construírem livros
de histórias usando papéis recicláveis.
Terminamos o ano com um grupo de crianças fortalecido, detentor de grande
repertório de brincadeiras e que havia descoberto através de diferentes linguagens uma
forma de se relacionar com o outro, com as diferenças e com o mundo. Crianças
capazes de abordar questões étnico-raciais com naturalidade, valorizando sua identidade
e do outro, a história e sua herança cultural.
ISSN: 2596-2531
Assim como propõe a ideia de projetos, esse também possibilitou outros
aprendizados que foram além dos objetivos iniciais. Como os caminhos da costura; a
pesquisa e a busca por respostas às questões levantadas; diferentes formas literárias; a
dramatização; as etapas da confecção de um livro; as etapas de uma reciclagem; entre
outros. A importância do trabalho com projetos é que esse abre um leque de
possibilidades de aprendizado para crianças, seus professores, familiares e a
comunidade escolar.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Gercilda; SARAIVA, Valéria. Bruna e a Galinha D’Angola. Rio de
Janeiro: Editora Pallas, 2003.
PRESTES, Zoia. Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch
Vigotski no Brasil. Campinas: Autores Associados, 2012.
ISSN: 2596-2531