O Método Eensaístico Na Crítica Literária de Theodor Adorno
O Método Eensaístico Na Crítica Literária de Theodor Adorno
O Método Eensaístico Na Crítica Literária de Theodor Adorno
UTITEMÂT
U*iur$dade do fÍado dp Àtsrs çÍúsro
Campus Universitário de Tangará da Serra-MT
5ão Paulo/SP
AgBook
2021
Copyright @ 2021 - Todos os direitos reservados aos organizadores. 5UMÁRIO
Todos os direitos reservados - a reprodução total ou parcial, de
qualquer forma ou por qualquer meio deste livro só é autorizada pelos
organizadores. A violação dos direitos do autor, conforme Lei na Preftcio
9.610/98 é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal. o mÉropo ENsAísnco NA CRÍICA LITERÁRH DE
THEODOR ADORNO...... 7
Coordenação Editorial: José Flávio da Paz & Casa Líterária Enoque
Alexandre Mariotto Botton
Cardozo
,ESTAVAM TODOS ARMADOS COM FACAS A IásER OUE
Ficha catalográfica
A
CORIA ATÊ. VIDA": O PRECONCEITO DIIÁCERANDO
Ensaios literários: uma experiência estética / 1o ediçâo. Organização: Alexandre
Mariotto Botton e José Flávio da Paz - São Paulo: AgBook, 2021.
HIsIÓRÁs ,,,,,,29
Adeilton Alexandre da 5ilva
zLs p.
UM MERGULHO NAs ETERNAS Á6UA5 DO INDIZÍVEL DO É comum a tentativa de classificar o ensaio como
,CEA4ITERIOI4ARINHO',DEPAULVALÉRY .,,,.,,. 151 escrita fragmentária, provisória e relativa (CARRIJO, 2OO7)
Paulo Sérgio Borges David Mudeh ou, apologeticamente, ressaltar suas qualidades
investigativas, reflexivas e expressivas (DUARTE, 1997). Por
A ALTENAÇÃO r A CR|5E DE TDENTTDADE 5OB A ÓnC,q pE sua vez, a amplitude das áreas do conhecimento que, ao
PIRANDELLO E KAFÍ<A ,,,,,187 menos de vez em quando, fazem uso de ensaios como
5Ílvia Aparecida Zagonel 5Ílva meio de expressão, torna difícil qualquer definíção mais
precisa acerca do gênero (GUER|N|, 2000, p.19). E essa
V)ZES MULHERES: .4 W2LETA E A IMPRENSA FEMININA mesma amplitude, desde que não seja tomada como
MATO-GROssENsE ,,,,,,,,,.,2O1 justificativa para a falta de rigor, é, em tempos de
Tayza CoQín4 Qe Souza Medeiros Guedes interdisciplinaridade, sempre admitida como sintoma de
virtude o ensaio, na área de Letras é subterfúgio para
qualquer coisa. Estabelece-se é um verdadeiro dilema:
tendo em vista a interdisciplinaridade, o ensaio não pode
fixar-se, a príori, na metodologia determinada por alguma
área mais específica; mas, caso almeje possuir relevância
acadêmica, o ensaio não pode abrir mão do rigor, e seu
tsl trl
empiristas ingleses, assim como Leibniz, chamaram seus o termo " Estai, conhecido em
Segundo Starobinski,
escritos de ensaíos, porque a víolência da realidade recém- francês desde o século Xll, provém do baixo latim
explorada, contra a qual embatiam seu pensamento, os exagium, a balança; ensaiar deriva de exagiare, que
impingia sempre à ousadia do intento" (ADORNO, 2003a, significa pensar" (2011, p. 13). Desta origem, porém, brota
p. 110). Todavia, o ensaio não é inovador por causa de um uma dicotomia, pois se, por um lado, ensaiar pode
simples afã pela novidade, por uma inventividade que ao significar o exame atento e exígente de algum tema, por
mesmo tempo fomenta a obsolescência. Ao contrário, a outro, designa o ato de cogitar, algum processo preliminar,
novidade prometida pelo ensaio tem a ver com sua que exige um passo adiante.
capacidade de repensar o que já foi feito. Nesse sentido, Em seu Marxismo e forma, a respeito do modo
Lukács via o ensaío como uma reflexão nova sobre algum como Adorno trabalha com os temas de seus ensaios,
tema já abordado, e também Adorno atribui ao ensaio a Jameson dirá que:
capacidade - análoga ao comportamento de uma criança -
de "se entusiasmar com o que os outros já fizeram" Eles implicam em autoconsciência
(ADORNO, 2003a, p.l6). A novidade, para o ensaio, não dialética, um súbito distanciamento que
surge apenas para atender a uma demanda: sua origem permite que os elementos mais familiares
está no gesto que alça um ínstante a mais de reflexão onde da experiência de leitura sejam vistos de
tudo já está (aparentemente) definido, esclarecido e novo com estranhamento. como se fosse
encerrado. Justamente esse gesto de rever teorias pela primeira vez, tornando visível a
consolidadas pela prática acadêmica - pode render ao inesperada articulação da obra em
ensaio as alcunhas do relativismo e da falta de rigor. Tal categorias determinadas ou em partes.
(1985, p.46).
alcunha ainda é reforçada por reflexões que defendem o
caráter subjetivista do ensaio: assim, "estribado no De maneira semelhante poderíamos afírmar o
subjetivismo estetizante, cuja verdade última assenta-se
contrário, que a proximidade com que o ensaio se deixa
sobre a individualidade do sujeito que ercreve, o ensaio
enclausura-se em si mesmo, imunizando-se, desse modo, ao
envolver por seus objetos, quase como que se
abandonando a eles, também causa estranhamento, porém
debate e à crítica" (SOARES, 2011, p.09). O fato de não
não à experiência de leitura, mas a conceitos com os quais
partir de fórmulas prontas não deve induzir o ensaio ao
estamos muito familiarizados. Mas é claro que uma
abandono de suas pretensões epistemológicas: elas são perspectiva não precisa excluir a outra, uma vez que no
alçadas na experiência, enquanto processo inseparável da
ensaío os conceitos movimentam-se, aproximam-se e se
própria compreensão, não apenas como médium de
distanciam do ob,ieto, até formarem um ensemble, algo
análise.
como urna figura, ou, para reabilitar um termo kantiano,
lrol lll
uma espécie de esquema. A metáfora do estrangeiro, tudo o que escapa ao conceito por causa das alterações de
utilizada por Adorno no início do oitavo parágrafo de "O sentido que o contexto promove. Sob a perspectiva
ensaio como forma", é nesse sentido bastante elucidativa: epistemológica, a objetividade se vê - pelo menos desde o
momento em que a filosofia necessitou de um fundamento
O modo como o ensaio se apropria dos imutável para as suas proposições na iminência de
conceitos seria, antes, comparável ao acolher no conceito somente aquilo que a definição é
comportamento de alguém que em terra
capaz de suportar. As Nuancen tem sido, desde sempre,
estrangeira é obrigado a falar a língua do
país, em vez de ficar balbuciando a partir
pertona non grata para o aparelho epistemológico. O
das regras que se aprendem na escola. impasse do "ensaio como forma" é o mesmo de seu autor:
Essa pessoa vai ler sem dicionário. ele não quer abrir mão do conceito, pois a intuição pura é
Quando tiver visto trinta vezes a mesma incomunicável; mas vê na falta de consideração para com
palavra, em contextos sempre diferentes, as Nuancen um gesto de violência praticado pelo conceito,
estará mais segura de seu sentido do que que é ao mesmo tempo esclarecedor e opressivo.
se tivesse consultado o verbete com uma
lista de significados, geralmente estreita O Ensaio como método
demais para dar conta das alterações de
sentido em cada contexto e vaga demais
Ao enveredar por este caminho, nossa leitura
em relação às nuances inalteráveis que o
poderia ser acusada de enredar-se totalmente no terreno
contexto funda em cada caso.
(ADORNO,2003a, p.30) da filosofia, tendo reservado para a literatura não mais do
que o lugar de um pretexto para a crítica à epistemologia.
É possível compreender as perspectivas da Não é este o caso. A julgar. em primeiro lugar, pelo caráter
aproximação e do distanciamento do ensaio em relação imanente dos ensaios de Adorno; em segundo, pela
aos seus objetos a partir desta metáfora: considerando a exigência de que "conceitos sociais não devem ser trazidos
objetividade mais do que uma regra aprendida na escola, de fora às composições líricas, mas sim devem surgir da
ela poderia estar para a teoria assim como a busca do rigorosa intuição delas mesmas" (ADORNO, 2003a, p.67):
sentido está para o visitante da terra estrangeira. A e, em terceiro, pela afirmação de que "nada que não esteja
objetividade essa busca incessante sobre a qual se nas obras, €rn sua forma específica, legitima a decisão
mantém, na tradição filosófica, a epistemologia - não seria quanto àquilo que seu teor, o que foi poeticamente
mais do que a tentativa de captar, através do conceito, condensado, representa em termos sociais" (ADORNO,
aquilo que nunca se enquadra inteiramente nele, isto é, 2OO3a, p.6B), a literatura não se resume a pretexto, ma§ se
torna também uma finalidade. lsto é, ela é o lugar de uma
Irzl lml
experiência impossível à epistemologia: a experiência Não há nenhuma esfera primordial que subsista à
singular e universal ao mesmo tempo. Como arte da rnediação. Para este, o tempo é indissociável da história,
palavra, ela desafia as regulae ad dÍrectionen ingenÍÍ que, isto é, das transformações sociais. materiais e econômicas, e
segundo a tradição cartesiana, circunscrevem o âmbito de mesmo o instante "imediato" é histórico: "O
competência da objetividade. contemporâneo não seria o 'agora' intemporal, mas sim o
A figura do homme de lettres aparece, no "Ensaio 'agora' saturado com a força do ontem, que não precisaria,
como forma" - e Proust é a referência, neste caso -, como portanto, ser idolatrado" (ADORNO, 2OO3b, p. 92). A
exemplo de coerência da experiência particular, singular e cxperiência, mesmo a experiência mais particular - e o
insubstituível, cujo ápice se dá na construção artística de lromme de lettres sabe disso - é uma construção.
sua obra, aparece como exemplo de que é possÍvel alguma Nesse sentido, o sexto parágrafo de "O ensaio como
forma de conhecimento simultaneamente demonstrável, l'orma" é muito significativo, pois nele Adorno aborda a
mas não universal. Porém, observa Adorno, "o parâmetro questão da definição, um dos pontos mais controversos da
da objetividade destes conhecimentos não é a verificação epistemologia. Há, no mínímo desde os escritos de Hegel e
de teses já comprovadas por sucessivos testes, mas a de Nietzsche, uma tradição de crítica à definição que,
experiência humana individual, que se mantém coesa na segundo Adorno, "voltando[-se] contra os resíduos
esperança e na desilusão" (ADORNO, 2003a, p.23). escolásticos no pensamento moderno, substitui as
Por mais que, evidentemente, o reconhecimento da definições verbais pelas concepções dos conceitos a partir
experiência humana individual seja um enfrentamento às do processo em que são gerados" (ADORNO, 2OO3a,
regras da ciência, há no apreço a sua irredutibilidade ao p.28).E, se sempre que tomamos algum conceito, este já
universal também uma força que Adorno pretende lançar nos vem carregado de significados, pressupor que
contra Heidegger e o existencialismo. A metáfora do tenhamos de trabalhar dentro de uma definição conceitual,
estrangeiro é um destes momentos em que as ou que tenhamos de forjá-la" consiste, no limite, em
manifestações contra o cientificismo se mesclam com a satisfazer a uma exigência da ciência enquanto instituição:
reprovação à fenomenología. "A ciência necessita da concepção do conceito como uma
A repetição da palavra KontexÍ ressalta a concreção tabula raÍa para consolidar sua pretensão de autoridade,
histórica, ainda que não a defina, como mediação entre a para mostrar-se como o único poder capaz de sentar-se à
individualidade de cada caso e as alterações de sentido que mesa" (ADORNO, 2003a, p.29).Não fosse a demanda da
ultrapassam o contexto particular. Assim, o particular e o ciência, geralmente respaldada pelo senso comum,
geral se cruzam no contexto, mas se perguntarmos pelo absolvida como dádiva e incentivada pelo capitalismo, o
contexto, isto é, se tivermos de defini-lo, não patamar da teoria seria outro. Embora a crítica ao poderio
conseguiremos encontrar na obra de Adorno uma resposta. da ciência não seja uma exclusividade do ensaio - e muito
Ir+I Itsl
menos da fílosofia de Adorno -, a ênfase na crítica ao rqualquer método constitui um objeto de constantes
cientificismo feita aqui é necessária para que possamos r lebates metodológicos. 5e para o "cientista de
entender onde literatura e crítica da epistemologia se laboratório", de um lado, o problema metodológico pode
encontram. Acrítica à definição eo reconhecimentode ser restrito à aplicabilidade, de outro, para o teórico da
que esta não é capaz de dar sentido aos conceitos, por ciência, questões metodológicas remetem ao fundamento
conta de estes já possuírem suas significações na linguagem, clo método, ao suporte que permite demonstrar como e
que exige a movimentação dos conceitos, é feita por porgue determinado procedimento deve levar a
Adorno: conclusões verdadeiras. Neste caso, o método engloba
toda questão referente à possibilidade de fundamentar
O ensaio parte dessas significações e por procedimentos. Contudo, a maneira de proceder do
ser ele próprio linguagem, leva-as ensaio, na perspectiva adorniana, parece questionar
adiante; ele gostaria de auxiliar o justamente a possibilidade do fundamenfo, mas sem que
relacionamento da linguagem com os
isso implique em abandonar a preocupação com sustentar
conceitos, acolhendo os na reflexão tal
como já se encontram inconscientemente sua maneira de proceder.
denominados na linguagem. (ADORNO, Em sua tese FÍlosofia e arte em Adorno, Eduardo
2OO3a, p.29) Neves-Silva, depois de revisitar a bastante conhecida obra
de Susan Buck-Morss, traça algumas observações sobre a
Não é por acaso que o sétimo parágrafo de "O questão do método em Adorno. Suas observações dão
ensaio como forma", que trata de conceitos, termine conta do caráter não hipostático do método adorniano e,
afirmando justamente o que serve de mote a esta tese: que embora não discutam suas variações de procedimentos,
o ensaio deve "por assim dizer, proceder metodicamente que naturalmente se alterariam em face de objetos
sem método". diferentes, são bem-sucedidas ao frisarem o vasto campo
Como vimos anteriormente, no mínimo a partir de de possibilidades contido no intervalo entre a
Descartes o termo "método" tem funcíonado de forma a hipostasiação do método e a falta de qualquer método.
remeter aos procedimentos necessários para a produção de Assim, ele destaca que:
conhecimentos seguros, verificáveis e, portanto,
verdadeiros. Enquanto disciplina acadêmica, metodologia Embora muitos comentadores de
designa a aplicação de métodos para a elaboração e o Adorno tenham procurado definir sua
desenvolvimento de trabalhos de pesquisa - isto é, nada metodologia, raros são aqueles que
tomaram uma distância precavida tanto
há de mais técnico do que ela. Não obstante, para além da
da afirmação de uma metodologia geral,
aplicabilidade, o critério utilizado para avaliar e validar
l1ól lul
:
lrsl Irql
conceitual. Para Adorno, o modelo de análise rrantém incólume e, portanto, não vai além daquilo que se
empreendido por Valéry em seu estudo sobre Degas "se ;,oderia depreender de sua aparência.
alimenta de um incansável anseio de objetivação e, nos Dentre os escritos de Notas de literatura. "O ensaio
termos de Cézanne, 'realização', que não tolera nada de r r)ffio forma" é o que menos trata de literatura, ou mesmo
obscuro, não clarificado, não resolvido; um parâmetro ,lc considerações estéticas e culturais. Pode-se dizer que é
para o qual a transparência exterior torna-se o parâmetro rrrn ensaio que versa sobre a ensaística enquanto modelo
do êxito interior." (ADORNO 2OO3c, p.15Q. Lembrando , k: exposição argumentativa e, paulatinamente. como num
que a influência de Valéry em Notas de Literatura será mais r onjunto de anotações que cerceiam seu objeto por
bem trabalhada no terceiro capítulo desta tese, por r liversos ângulos, acaba insistentemente remetendo-se ao
enquanto será notado apenas que o modus operandi lrrocedimento que ele próprio desencadeia, fazendo
atribuído a Valéry por Adorno na passagem supracitada rcssurgir constante e intermitentemente a questão do
reverte-se no próprio modo de proceder de seus ensaios. rnétodo, problematizando-a, sem que em última instância
lsto fica evidente por meio de sua insistência na cle defina a si próprio, enquanto ensaio, como um
ideia de que a interpretação deve romper com a aparência rnétodo.
estética da obra, pois, se o ensaio não é uma forma "O Ensaio como forma" é um dos poucos textos
artística, mas um procedimento de interpretação que não cscritos especialmente para as Notas de lÍteratura.
pode ser reduzÍdo a nenhum método, então adquire I-laborado entre 1954 e 1958, parece ter sido pensado
sustentação justamente no ato de romper o que torna cada justamente para figurar como peça de abertura da do livro.
obra singular, sua aparência estética. No proprio ensaio §eu intento de polemizar com a situação do ensaio no
como forma, Adorno explicita tanto o que seria a ,rmbiente da produção teórica da época evidencia-se desde
aparência estética quanto às razões da dificuldade, mas uma citação de Lukács, já na segunda frase do primeiro
também necessidade, de rompê-la conceitualmente no parágrafo:
ensaío. A questão que o norteia é: "como seria possível,
afinal, falar do estético de modo não estético, sem A forma do ensaio ainda não conseguiu
qualquer proximidade com o objeto, e não sucumbir à deixar para trás o caminho que leva à
vulgaridade intelectual nem se desviar do próprio autonomia, um caminho que sua irmã, a
assunto?" (ADORNO, 2OO3a, p.1B). literatura, já percorreu há muito tempo,
A pergunta dirigida ao positivismo volta-se também desenvolvendo-se a partir de uma
indiferenciada unidade com a ciência. a
contra a pretensão de transformar a interpretação em uma
armação que. na medida em que envolve o objeto, o moral e a arte (LUKACS, apud.
ADORNO, 2OO3a. p.15).
Izol Izt]
Embora Adorno se mantivesse cético diante da estimativa a par do Discours cartesiano, o
rrrctodo, pois, estando
lukacsiana, segundo a qual o ensaio se encontra a meio Its;ty adorniano não separa hierarquicamente
caminho da autonomia, o trecho instiga-o a refletir sobre o ;,r'ocedimento e resultado. Enfim, é justamente quando se
modo como o ensaio se apropria e pensa as tensões l)(,nsa na polêmica com o método que "O ensaio como
geradas a partir da cisão histórica entre arte e ciência. 5e Íor-rnâ" se mostra essencialmente como um discurso acerca
Lukács aparentemente díspôs o ensaio entre as formas ,los procedimentos engendrados por Adorno em Notas de
artísticas, também não deixou de anotar que este aspirava lileratura.
ao sistema sem ainda chegar a ele, permanecendo
impedido de obter sua autonomia. Adorno, por sua vez, l{emate
detém-se mais pormenorizadamente nas perspectivas não
sistemáticas do ensaio, de onde pretende torná-lo a Em um texto intitulado "De volta a Adorno na
negação determinada do sistema de forma mais sólida. rrrterpretação da Cultura", Fabio Akcelrud Durão destaca o
Embora não contenha nenhuma diretriz sobre o que rnodo como. em "O ensaio como forma". conteúdo e
se poderá encontrar na leitura de Notas de LÍteratura, lorrflâ se mesclam na progressão argumentativa por uma
sendo sempre pensado como um texto autônomo - o que lrpécie de oposição não excludente. Contundentemente,
ele de fato é -, é pertinente ler "O ensaio como forma" na ,'lc assim descreve o que chama de "justaposição pela
perspectiva de compreender a forma como algumas de ncgação" (DURÃO, 2011, p.09):
suas teses ganham voz em escritos mais ocasionais, pois
grande parte dos textos de Notas de literatura surgiu a a questão do relacionamento entre
partir de palestras e conferências radiofônicas. Diante disso, ensaio e ciência (parágrafos 3 e 4),
não soará estranho pensar que há nos escritos de Notas de método (5 e 6) e conceitualidade (7 e
literatura certa "qualidade ensaística" que, enquanto B). A segunda parte do ensaio como
procedimento, é a expressão de uma leitura que se propõe forma contrasta esta forma de escrita
a proceder metodologicamente, mas sem coagular-se em com as quatro regras estabelecidas pelo
"método autocrático". E, levando o raciocínio adiante - e Discurso do Método de Descartes
(parágrafos 9, 1O e 11), retornando então
este é talvez seu ponto mais complicado , tal a questões de exposição (12), dialética
procedimento não abre mão de pensar e expor suas (13), retórica (14), e finalizando com
condições de possibilidade, embora rejeite qualquer considerações sobre o anacronismo do
fundamentação prévia, qualquer pressuposto. Nessa ensaio, algo que se poderia igualmente
perspectiva, o que se pode esperar de "O ensaio como dizer de Adorno (DURÃO, 2011, p.O9).
forma" é também uma espécie de (contra)discurso do
lzzl Irs]
Note-se que, na descrição de Durão, o método Para Adorno, por outro lado, também "cada
aparece como motivo de pelo menos cinco dos quinze l( )nnação do espírito, sob o olhar do ensaio, deve se
parágrafos de "O ensaío como forma". Além destes, ele Ir,rnsformar em um campo de forças" (ADORNO, 2003,
não deixa de estar diretamente relacionado a temas como l, ll). Encerra-se, assim, o oitavo parágrafo e inicia-se a
a dialética e a conceitualidade. No sétimo parágrafo, que ,,(,ljunda parte. com a afirmação de que "O ensaio desafia
trata desta última, Adorno defende o caráter anti- ricntilmente os ideais da clara et distÍncta perceptio e da
sistemático do ensaio referindo-se ao modo de proceder ( ('rleza livre de dúvida". A questão do método volta então
que toma os conceitos como algo concretizado pela l),rr'â o primeiro plano: o que provoca o ensaio a desafiar o
linguagem, não como parte de um todo maior (idealismo), n rritodo, e na verdade também seus próprios
ou como tabula rasa (empirismo). Simultaneamente ;rrocedimentos, é a resistência de seus objetos
à
estranho ao idealismo e realismo, é precisamente o rrrterpretação, uma vez que eles mesmos, como vímos,
paradoxo que aparece na "Palestra sobre lírica e ( ()nstituem um campo de força.
sociedade", e que permite a interpretação social de poesia Enquanto o método cartesiano põe-se como um
lírica * a saber, que "a própria linguagem é algo duplo" ( ()njunto de regras capaz de conduzir o pensamento na
(ADORNO,2OO3d, p.74). t,rrefa de destrinchar o objeto e reordená-lo de modo mais
Ela pode, como nas construções dos poemas, r laro, o ensaio orienta-se pela reciprocidade entre o campo
moldar-se aos impulsos mais subjetivos sem perder sua ,le suas próprias construçÕes e o todo do objeto. Assim, é
função mais universal, quer dizer, sem deixar de ser o meio lror respeitar a integralidade do objeto, em vez de tomá-lo
de expressão de conceitos. Respeitando esta situação r orrro um todo divisível em elementos mais ou menos
paradoxal da linguagem, o ensaio admite as categorias ;rrimários, que o ensaio opõe-se à cesura entre as partes e o
como produtos da cultura e, ao mesmo tempo em que tem tr>do, algo evidente à primeira regra do método.
de se expressar através destas e que visa a singularidade do O hic et nunc do objeto não é dissociado de seus
conteúdo, não pode tomá-las como fundamento ou rnomentos, pois não há como pensar o todo sem pensar
mesmo ter a finalidade de defini-las: "O que Ílumina seus nos momentos que o constítuem, mas dizer que o todo é
conceitos é um terminus ad quem, que permanece oculto constituído de momentos não é o mesmo que afirmar que
ao próprio ensaio, e não um evidente terminus a quo" o todo é divisível em partes. No ensaio, o todo e os
(ADORNO, 2AO3a, p.31). Adorno consídera esta uma rnomentos individuais se comunicam dialeticamente. isto é.
intenção utópica do método, e podemos entendê-lo na a interpretação da parte necessita do todo e a
medida em que nele percebemos a intenção de interpretar compreensão do todo requer o detalhe.
seu objeto - vale lembrar, algo já configurado pela cultura A guisa de conclusão há ainda algo a ser dito sobre a
- sem, no entanto, subsumi-lo conceitualmente. relação entre ordo idearum e ordo rerLtm, isto é, entre a
I z+l lzsl
realidade factual e a construção conceitual. Segundo . Posição do narrador no
romance
Adorno: , , )ntcmporâneo. ln: Notas de literatura. Trad. Jorge de
Alrrreida. 5ão Paulo: editora 34, 2OO3b, p.55-63.
A falácia de que a ordo Ídearum seria
a ordo rerum é fundada na insinuação O artista como representante. ln: Notas de
de que algo mediado seja não llteratura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34,
mediado. Assim como é difícil pensar
.)o03c, p.151-164.
o meramente factual sem o conceito,
porque pensá-lo significa já concebê-
lo, tampouco é possível pensar o mais Palestra sobre lÍrica e sociedade. ln: Notas de
puro dos conceitos sem alguma literatura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34,
referência à facticidade (ADORNO, .)o03d, p.65-89.
2OO3a ,p.25).
t ARRIJO, S. A. B. O ensaio literário - órfão de dois pais
Parece-nos que assim se deveria entender a questão vivos: Lya Luft nas águas de um (anti)gênero. ln.:
da mediação radical que perpassa a filosofia adorniana: ela linguagem: Estudos - Revista da Associação Nacional dos
representa a impossibilidade de qualquer tipo de pureza, l)rogramas de Pós-Graduação em Comunicação. E-compós,
seia ela factual ou conceitual. Mas a tentativa pensar sem Irrasília, v.14, n.1, )an./abr. 2011.
hipostasiações, seja da ordo rerum ou da ordo idearum,
corre sempre o risco de tornar-se uma espécie de trabalho l)UARTE. R. Adornos: nove ensaios sobre o filósofo
de Sísifo, isto é, de tornar-se aporético em um movimento lrankfurtiano. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997.
de conceitos ad infínitum. Como um ponto de fuga, a
verdade está para o ensaio como a esperança para as obras l)URÃO, F. Teoria (literária) americana: uma introdução
de arte: ela é apenas uma promessa, algo que ele poderá , r'ítica. Campinas: Autores Associados, 2011.
alcançar se conseguir fazer com que ela apareça como
aquilo que resiste à aporia do pensamento. CUERINI, A. A teoria do ensaio: reflexões sobre uma
,rusência. Anuário de Literatura, neO8, p.11-27,2000.
Referências
JAMESON. F. Marxismo e forma: teorÍas dialéticas da
ADORNO. T. O ensaio como forma. ln: Notas de literatura no século XX. Ed. Hucitec, 5ão Paulo,1985.
literatura. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: editora 34,
2003a, p.15-45.
I zr'l Izrl
MUSSE, R. Verdade e história. 2OO3. Disponível em:
hltp ://p p h p, u s I, co m . b r/t ro p i col ht m l/p r i nt/1 6 B 6. h t m .
Acesso em:29 out. 2009.
NEVES-SILVA, E. Filosofia e arte em Theodor \üU. Adorno: a
categoria de constelação. (Tese de Doutorado). Belo
Horizonte: UFMG, 2006. Disponível em:
http://www. bi bl iotecadi gital. ufmg. brldspace/bitstream/han
dle/1843/ ARBZ-
7JJ KC5ledua rdo_soares neves:si lva. pdf?sequence : .
Acessado em: 10/08 /2O2O.
lzsl