REPÓRTER BRASIL (2012) em Terras Alheias - A Produção de Soja e Cana em Áreas Guarani No MS
REPÓRTER BRASIL (2012) em Terras Alheias - A Produção de Soja e Cana em Áreas Guarani No MS
REPÓRTER BRASIL (2012) em Terras Alheias - A Produção de Soja e Cana em Áreas Guarani No MS
EM TERRAS ALHEIAS
A produção de soja e cana É importante frisar que a questão da produção
em áreas Guarani no Mato de commodities em áreas indígenas (ou terras por eles
Grosso do Sul reivindicadas) vem sendo considerada irregular e de for-
te impacto socioambiental por um número crescente de
O Centro de Monitoramento de Agrocombus- instituições, tais como o Ministério Público Federal, a
tíveis (CMA) da ONG Repórter Brasil retorna ao Mato Funai e o Conselho Monetário Nacional, além de orga-
Grosso do Sul para aprofundar os estudos dos inten- nizações internacionais indigenistas e ligadas à susten-
sos impactos socioambientais gerados por plantadores tabilidade do setor produtivo. Neste sentido, o presen-
de soja e cana - duas das principais culturas agrícolas do te relatório pode servir como insumo para negociações
Estado - nos territórios indígenas Guarani. Trata-se da e ações de responsabilidade social dos vários atores e se-
continuidade de um trabalho iniciado há três anos com tores envolvidos na cadeia produtiva das duas culturas.
as pesquisas que resultaram no relatório “O Brasil dos
Agrocombustíveis - Os Impactos das Lavouras sobre a
Terra, o Meio e a Sociedade - Cana-de-açúcar - 2009”1.
O CMA agradece o apoio logístico do Conselho Indi-
genista Missionário (Cimi) ao trabalho de campo nas
3
aldeias Guarani, e ao Ministério Público Federal pelo
A decisão de voltar ao Mato Grosso do Sul ex- compartilhamento de informações. À Cordaid e ao Si-
plica-se por ser o Estado uma das principais fronteiras grid Rausing Trust pelo suporte financeiro que possibi-
agrícolas do Brasil. Há naquela região uma crescente litou a execução deste trabalho. E, em especial, a todos
demanda por matéria-prima pelas usinas de açúcar, eta- os Guarani que nos receberam em suas terras e dividi-
nol e biodiesel, o que tem estimulado a expansão das ram conosco suas histórias.
áreas de soja e cana, inclusive dentro de terras indíge-
nas em processo de reconhecimento pelo governo brasi- Países com população Guarani
leiro. Se por um lado a morosidade desse processo serve
de combustível para violentos conflitos, por outro tam-
bém ajuda a atrair a atenção do público para a produção
agrícola em terras indígenas.
URUGUAI
Expediente
EM TERRAS ALHEIAS
Coordenação geral
Leonardo Sakamoto
Suporte Financeiro
Fabiana Garcia
Suporte Administrativo
Maia Fortes
Autora
Verena Glass
Revisão
Marcel Gomes
Fotos
Verena Glass e Philip Clark-Hill
Mapas
Roberta Roxi
Diagramação
Gustavo Monteiro
Apoio
Cordaid
Sigrid Rausing Trust
Conselho Indigenista Missionário
EM TERRAS ALHEIAS
Em terras alheias 03
Introdução 06
Estudos de Caso 11
Considerações Finais 28
Notas 30
Introdução ta Missionário (Cimi), o MS registrou o maior número de
EM TERRAS ALHEIAS
EM TERRAS ALHEIAS
Mato Grosso do Sul4
Foto: Verena Glass
Nos últimos anos, o setor sucroalcooleiro, for- deste e sul do Estado, onde se concentram os territórios
temente incentivado pelo governo estadual, foi um dos Guarani, a atividade sucroalcooleira acabou impulsionan-
que mais cresceu no Mato Grosso do Sul. De acordo com do a produção de matéria-prima em fazendas que incidem
a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), na sobre terras indígenas.
safra 2012/13 a cana teve uma expansão de 12,5% em Além de ser um vetor de conflitos sociais e fun-
relação ao período anterior, e hoje ocupa mais de 550 diários - tratados neste relatório nos estudos de caso -, o
mil hectares no Estado (nos anos anteriores, da safra plantio de cana em áreas indígenas (assim como no Pan-
2009/10 para a 2010/11, de acordo com a Conab houve tanal, na Amazônia e na Bacia do Alto Paraguai) passou a
um aumento de 49,2% da área plantada de cana; da safra ser considerado irregular e inapto a receber financiamen-
2010/11 para a 2011/12, o aumento foi de 21,38%). to público com a publicação do Decreto Nº 6.961, de 17 de
setembro de 2009, que aprovou o Zoneamento Agroecoló-
Segundo a Associa-
ção dos Produtores de Bioe- USINAS DE AÇÚCAR E ÁLCOOL NO MATO GROSSO DO SUL
nergia (Biosul) do Mato Gros- Usina Município Status de funcionamento
so do Sul, 540 mil hectares são Adecoagro - Unidade Angélica Agroenergia Angélica Instalada
destinados à produção de açú- Adecoagro - Unidade Ivinhema Ivinhema Em instalação
car e etanol, 64 mil hectares Agrison Sidrolândia Instalada
são de áreas de expansão dos Alccolvale Aparecida do Taboado Instalada
canaviais, 29 mil hectares es- Aurora Anaurilândia Instalada
tão em processo de renovação, Brilhante Maracaju Em instalação
Bunge Monteverde Ponta Porã Instalada
e 15 mil hectares são reserva-
CBAA Brasilândia Brasilandia Instalada
dos à produção de mudas5. Já
CBAA Sidrolândia Sidrolândia Instalada
em relação às unidades de pro-
Cerona Nova Andradina Instalada
cessamento, a União dos Pro- Chapadão do Sul Chapadão do Sul Em instalação
dutores de Bioenergia (Udop) Dcoil Iguatemi Instalada
relaciona 30 usinas instaladas Dourados Dourados Em instalação
e 10 em processo de instalação ETH Bioenergia – Eldorado Rio Brilhante Instalada
no Estado (tabelas ao lado). ETH Bioenergia – Santa Luzia 1 Nova Alvorada do Sul Instalada
ETH Bioenergia - Costa Rica Costa Rica Instalada
O crescente número Fatima do Sul Fátima do Sul Instalada
de usinas tem demandado uma Iaco Agrícola Chapadão do Sul Instalada
área cada vez maior de cana. Itaguassu Bataguassu Instalada
Como grande parte delas vem Laguna Bataiporã Instalada
se instalando nas regiões su- Fonte: UDOP
gico da Cana-de-açúcar (ZAE). O decreto foi regulamen-
EM TERRAS ALHEIAS
Bunge insiste em manter contratos
tado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN) em outu- com fazendas em terra indígena
bro do mesmo ano6.
EM TERRAS ALHEIAS
mato e fazer lavoura. Antes, quando chegamos aqui, não
havia nada, nem agricultura nem gado”, conta dona Genil-
1. Terra Indígena Jatayvary da, uma das moradoras mais antigas da aldeia.
Localização: Município de Ponta Porã,
Estado do Mato Grosso do Sul De acordo com o Relatório Circunstanciado de
Superfície: 8.800 hectares Identificação e Delimitação de Jatayvary9, elaborado em
Perímetro: 40 km 2004 pelo antropólogo e coordenador do Grupo Técni-
Sociedade indígena: Guarani-kaiowá co da Funai Rubem F. Thomaz de Almeida, “com a ‘entrada’
Situação legal: declarada dos índios no Jatayvary, criou-se um clima de muita ten-
são, marcado pela irritação de fazendeiros, sempre ame-
A Terra Indígena Jatayvary, antes chamada de TI açadores. Em 09.1999 (...) os índios comentavam sobre o
Lima Campo, foi reconhecida pela Funai em 2004 e decla- procedimento intimidador como tiros a esmo à noite, pas-
rada (segundo passo de reconhecimento das TIs pela Fu- sagens de veículos ‘suspeitos’ pela estrada, ameaças quan-
nai), através da Portaria MJ/GM Nº 499, em abril de 2011. do se davam encontros pessoais, criando um clima de per-
O primeiro movimento de retomada do território tradi- manente tensão no acampamento dos Kaiowa e Ñandéva
cional, no entanto, começou ainda em meados da déca- naquele momento. Os índios mencionavam então os Srs.
da de 1960 de forma não organizada e com ocupação di-
fusa da área, até que, em 1993, o indígena Lourenço Amaral
Donizete Moreira Lima, Atys de Mello Neto, Neno, Mat-
tos e Eloy Sperafico como os fazendeiros mais exaltados e 11
foi assassinado a mando de um fazendeiro e outros 37 fo- ameaçadores”.
ram violentamente expulsos da região. O assassinato e os
conflitos decorrentes levaram a Funai a realocar os indíge- Ainda em 1998, os indígenas receberam a informa-
nas de Lima Campo na reserva indígena de Dourados, mas ção de que parte de sua área seria loteada pelo Banco da
a partir de 1994 o grupo originário daquele território co- Terra para assentar colonos sem-terra, processo que foi pa-
meçou a organizar o movimento de retomada da área, que ralisado pelo Ministério Público Federal e pela Funai, mas
ocorreu em 1998. que criou uma tensão adicional entre indígenas e colonos.
De acordo com moradores mais velhos de Ja- No ano de 2004, quando foi publicado o reco-
tayvary, os primeiros tempos foram de forte tensão entre nhecimento de Jatayvary como terra indígena, cerca de
fazendeiros e indígenas. “O fazendeiro dono da área ocu- 96 famílias ocupavam então 181,4 ha com casas, roças e
pada mandou um monte de pistoleiros para nos amedron- animais. Delimitada, a TI aguarda agora a demarcação e
tar. Depois, mandou máquinas e tratores para derrubar o homologação final por parte da Funai e da presidência da
República.
Foto: Verena Glass
12
RELAÇÃO DOS PRODUTORES QUE CADASTRARAM PLANTIO DE SOJA JUNTO À IAGRO NO INTERIOR
DA TI JATAYVARY, REFERENTE À SAFRA 2011/2012
Nome Inscrição estadual Fazenda Área de soja (ha)
Margarida Maria Fontanella Gaigher 287.109.143,0 Jatoba e parte Faz S Jose Do Desterro 94,0
Cesar Fontanella Gaigher 285.940.740,0 Jatoba e parte Faz S Jose Do Desterro 94,0
Walter Copetti 285.953.478,0 Curral de Arame - Parte 150,0
Alberto Primo Mancim 286.883.201,0 Nossa Senhora de Lourdes 200,0
Alencar Luiz Bottega 287.457.362,0 São Judas Tadeu 70,0
Danilo Jose Bottega 287.259.790,0 São Judas Tadeu 50,0
Gilberto Barchet Rossato 287.371.794,0 Dependência 225,0
Ivo Nunes 286.130.033,0 Granja Invernadinha 37,0
Jose Roberto Mantuani 286.565.439,0 Independencia - Parte II 312,0
Leandro Reinaldo Neuls 286.220.083,0 Coqueiro 280,0
Leandro Reinaldo Neuls 286.634.414,0 Bicaco 100,0
Mario Jose Botega 286.620.871,0 São Judas Tadeu 120,0
Tadeu Paulo Bottega 286.350.831,0 Guarida 190,0
Vanderson Simongini 286.515.440,0 ETN Velha 285,0
Na tabela da página anterior estão relacionados Ainda em 2010, a usina Monteverde/Bunge ela-
EM TERRAS ALHEIAS
os mesmos dados, incluindo a inscrição estadual dos pro- borou uma “Proposta de manutenção de contratos de par-
dutores. ceria agrícola sobre áreas demarcadas como indígenas”, na
qual reconhece que, “diante do fato de existir a possibili-
De acordo com os indígenas, os conflitos com fa- dade de que algumas áreas sob as quais possuímos con-
zendeiros que ocupam o território de Jatayvary estão con- tratos de parceria e arrendamento rural sejam decretadas
trolados e não tem havido maiores incidentes. O principal como ‘terras indígenas’ e, portanto, desapropriadas, reve-
problema tem sido o tráfego intenso de caminhões que lou-se a necessidade de analisarmos a posição física, de
transportam a produção pela estrada que corta a área - investimento, financeira, fiscal e socioambiental relativa-
o perigo de atropelamentos, que já ocorreram, é grande, mente a contratação daquelas áreas”.
além do incômodo da poeira e do barulho. “Outro pro-
blema são as constantes aplicações de veneno com avião. De acordo com os dados da usina, em 2010 as re-
Quando isso acontece, as crianças aqui ficam com muita lações com as cinco fazendas eram as seguintes:
diarréia e vômito”, explica Arlindo Cabaña, liderança local.
1. Fazenda Santa Luzia: arrendamento com vencimento
em dezembro de 2013
► Cana - o caso da usina Monteverde/Bunge 2. Fazenda Guarida: parceria com vencimento em maio
EM TERRAS ALHEIAS
parte de campo com guavira e remédio. Hoje tudo tá só quando espalham a calda na plantação. Causa vários tipos
canavial. Quando começaram a plantar cana [na] terra de de problemas. Antes do canavial era outra saúde, uma vida
Zé Teixeira teve um capão de mato que desapareceu, ca- sossegada. Hoje a gente se sente de uma outra forma, sem
vucaram com a máquina e enterraram (...). Depois que co- mais tranqüilidade”13.
meçou a funcionar a usina a saúde ficou ruim para todos -
crianças, adultos e animais. Perdemos 7 cavalos, duas vacas De acordo com o cacique Ambrósio Vilhalva, as
e um boi. Depois que a usina funcionou as nascentes das plantações de soja também impactam a aldeia, principal-
águas ficou rasa. A lavagem que eles passam na cana, quan- mente em função da fumigação de agrotóxicos nas lavou-
do chove prejudica os peixes também. O peixe do rio, do ras. “O veneno contamina a água e causa problemas de
córrego, da lagoa. Aqui dava pintado, douradinho, curim- saúde para o nosso povo, principalmente as crianças, que
ba, peixe-espada e vários outros peixes miúdos, que antes sentem muita dor de cabeça e sofrem com a diarréia”, afir-
tinha. Sumiu tudo. Também acabou remédios de vários ti- ma o cacique.
pos, que dá no mato, na beira do rio. A planta acabou pelo
envenenamento. Remédio para a coluna, estômago, cabe- ► Produtores de soja e cana no interior da TI Guyraroká
ça. De primeiro, tinha. Sumiu tudo (...).As carretas que pas-
sam com a cana, se pegar uma criança que vai para a esco- De acordo com a Agência Estadual de Defesa Sa-
la. Nós tem medo. Os motoristas não respeitam. Do jeito
que vem, vem. A carreta passa no meio da aldeia. Quando
nitária Animal e Vegetal (Iagro) do Mato Grosso do Sul, na
safra 2011/2012 há 10 registros de produtores de soja que
15
chove, a água fica horrível e já teve gente que passou mal. cultivaram o grão em fazendas que incidem parcial ou to-
Na queimação de cana, as crianças, os velhos as gestan- talmente na TI Guyraroká, como mostra o mapa abaixo.
EM TERRAS ALHEIAS
Na tabela abaixo, estão relacionados os mesmos 2012, a aquisição, para sua unidade produtora (usina) situ-
dados, incluindo a inscrição estadual dos produtores. ada no Município de Caarapó, estado do Mato Grosso do
Sul, de cana-de-açú-
RELAÇÃO DOS PRODUTORES QUE CADASTRARAM PLANTIO DE SOJA JUNTO À IAGRO car oriunda de áre-
NO INTERIOR DA TI GUYRAROKÁ, REFERENTE À SAFRA 2011/2012 as já declaradas, por
Nome Inscrição estadual Fazenda Área de soja (ha)
meio de portaria do
Adriani Jose de Pellegrin 287.022.609,0 Santa Izabel II 101,0
Ministro de Estado
Douglas Franco 287.128.792,0 São Roque 96,0
da Justiça, como terra
Felix Ari Ruaro 286.045.583,0 Alto Café e Ipuita 199,0
Antonio Augusto Leone Maciel 285.374.753,0 Agro Toni 182,0 indígena, nos termos
Bernardino Franco 285.374.605,0 Sta Cecilia 230,0 do art. 2°, § 10, I do
Cezar Franco Neto 285.374.834,0 Sta Cecilia 252,0 Decreto n. 1775/96,
Elvis Jose Garaffa 286.718.529,0 Cana Verde 100,0 bem como se abster
Maykel Luiz Garaffa 286.718.537,0 Cana Verde 100,0 de promover a uti-
Walter Romero Beloto 285.373.684,0 Vista Alegre 124,0 lização, nessa mes-
Elvis Jose Garaffa 287.232.514,0 Represa Parte I 70,0 ma unidade produto-
ra, de cana-de-açúcar
Já em relação à cana, como a atividade no Mato oriunda de áreas que, de igual modo, ainda venham a rece-
16 Grosso do Sul não requer registro nem sequer licenciamen-
to ambiental, há uma dificuldade maior em se obter dados
ber a mesma qualificação”14.
oficiais sobre localização e tamanho das áreas plantadas. Em vista dos danos já sofridos pela comunidade
Na tabela 2, estão listados os dados dos proprietários e das indígena, porém, em junho o MPF ajuizou um ação na Justi-
fazendas que têm cultivo de cana no interior da Terra Indí- ça Federal contra a Funai, em que pede indenização de R$
gena, com informações fornecidas pelo Ministério Público 170 milhões, a ser revertida aos habitantes de Guyraroká,
Federal (MPF) em Dourados e pelos próprios indígenas. por danos morais e materiais. “O MPF considerou a disper-
são da comunidade, a remoção for-
RELAÇÃO DOS PLANTIOS DE CANA NO INTERIOR DA TI GUYRAROKÁ çada para outras áreas, a violência
Nome CPF Fazenda Área da propriedade sofrida, a demora da União em de-
José Roberto Teixeira 003.721.101-34 Santa Claudina 4.408,0 marcar suas terras tradicionais e ain-
Orlando Duarte Vilela São Sebastião do Ipacaraí 356,0 da a frustração dos direitos originá-
Bernardino Franco* 23.044.055.091,0 Santa Cecilia 625,6
rios ao usufruto exclusivo de suas
* A fazenda Santa Cecília foi citada pelos indígenas de Guyraroká como uma das produtoras de cana, informação não terras”, explica documento do Mi-
confirmada. Na relação do Iagro, a propriedade tem dois registros de produção de soja, e no cadastro do Sintegra o
proprietário Bernardino Franco consta como criador de gado nistério Público15.
EM TERRAS ALHEIAS
Mulheres fazem dança ritual de boas-vindas
Panambi - Lagoa Rica e agradecimento pela colheita
Localização: municípios de Douradina
e Itaporã (MS)
Superfície: 12.196 hectares
Perímetro: 63 Km
Sociedade indígena: Guarani-kaiowá
Situação legal: delimitada
18
RELAÇÃO DOS PRODUTORES QUE CADASTRARAM PLANTIO DE SOJA JUNTO À IAGRO NO INTERIOR DA TI
LAGOA RICA, REFERENTE À SAFRA 2011/2012
Nome Inscrição estadual Fazenda Área de soja (ha)
Aluisio da Silva Ramos 286.891.530,0 Paulicéia 254,0
Antonio Domingos Duarte 286.788.225,0 LOT 35 - QUAD 44 20,0
Bento Fátima Alves Verão 286.663.007,0 Lot 31 Qdr 46(Parte) 3,2
Caetano Duarte 286.144.018,0 Vista Alegre II 20,0
Carlos Goulart Ozorio 286.501.228,0 Lot 34 Qdr 70 28,0
Celio Antonio Carlos Costa 286.484.021,0 Lot 14-A Qdr 45 25,0
Cesar Justi Vieira 287.267.164,0 Lot 20 Qdr 46 - Parte 40,0
Cesar Justi Vieira 286.916.118,0 Bom Jesus 20,0
Eder Inocencio Venancio 287.246.256,0 São João 42,0
Edimar Inocencio Venancio 286.402.041,0 São João 25,0
Egnaldo Inocencio Venâncio 287.246.221,0 São João 42,0
Espolio de Saul Freire 285.379.909,0 Nova Esperança I 70,0
Espolio de Saul Freire 285.200.445,0 Araselva 70,0
Helio Assola 285.381.229,0 Boa Esperança 15,0
Jean Fagner Lopes Dias 287.202.801,0 Água Azul 40,0
Leonildo Bigatão Filho 285.764.519,0 Araselva 47,0
Lucas Torchi Stefanello 287.176.479,0 São Lucas 325,0
Marcio Luiz Freire 286.655.144,0 Araselva 30,0
Moacir da Silva Ramos 286.033.089,0 São Jose 18,0
Ari Rodrigues Justi 285.149.610,0 Chaparral Tres 20,0
Rogerio Brignoni 287.426.343,0 Marques I Parte 141,0
Santiago Ponce Gongora 286.227.215,0 Lot 233,235 - parte 29,0
Santiago Ponce Gongora 286.994.240,0 Panambi 54,0
Thomas Julian Owens 286.849.968,0 Lot 8 Qdr 24,Lot 27 Qdr 22,Lot 10 E 13 Qdr 23 81,0
Thomas Julian Owens 286.849.879,0 Lot 9, 15 da Qdr 23 Parte 40,0
Valdeci Gregorini 286.622.211,0 Alto Lranjeira parte I 48,0
Wilson Lopes Oliveira 286.047.721,0 Sta Maria 24,0
Na tabela da página anterior, estão relacionados Além das relações tensas, a atividade produti-
EM TERRAS ALHEIAS
os mesmos dados, incluindo a inscrição estadual dos pro- va dos fazendeiros também tem causado problemas para
dutores. os indígenas, afirma Cirso Jorge, liderança local. “Quando
eles passam veneno nas lavouras, geralmente o [herbici-
De acordo com os indígenas, o conflito com os da] Nortox, as pessoas passam muito mal. Principalmen-
fazendeiros ainda não está totalmente superado. “Ainda te as crianças. Mas pega em todo mundo, dá umas fístulas
sofremos muitas ameaças, por isso tentamos sempre andar cheias de pus, depois a pele da gente fica toda marcada”,
em grupo. E tem o presidente do sindicato rural de Doura- diz Cirso, mostrando marcas no rosto e pescoço. Segundo
dina, que faz de tudo contra nós. No último ataque que fi- ele, parte dos produtores usa tratores para aplicar o vene-
zeram aqui em 2010, teve segurança da Gaspem. Isso nos no, mas também há fumigação aérea. “O Spessato joga de
assusta muito”, afirmou uma liderança. A empresa de segu- avião. A água que a gente consome vem de uma nascente
rança Gaspem é acusada de cometer uma série de atos de que fica toda contaminada, e nossas roças morrem quan-
violência contra indígenas, entre eles o assassinato do ca- do o vento traz o veneno pra cá. Além disso, os caminhões
cique Nizio Gomes, da TI Guayviri, no final de 2011. dos produtores também atravessam a nossa terra, o que é
perigoso principalmente para as crianças”, afirma Cirso.
19
Foto: Verena Glass
EM TERRAS ALHEIAS
ram a brigar entre si. Uns diziam que não era pra matar, ou- recursos, já que sobraram poucas áreas que não foram to-
tros diziam que já tava feito. Aí ouvi eles falando no rádio talmente desmatadas”, afirma o relatório.
de uma camionete que meu pai estava quase morto, e ouvi
a voz do [fazendeiro] Jacinto dizendo que não era pra ter De acordo com os indígenas, os resquícios de
matado, que assim ele não ia pagar pelo serviço. Quando mata nativa foram praticamente todos destruídos a partir
perguntaram pra ele o que era pra fazer com a gente, ele de 2003, com os seguidos arrendamentos da fazenda Bra-
disse que era pra sumir com os corpos, jogar num buraco sília do Sul a produtores de soja e cana. Em 2004, relatam
que tem atrás de um eucaliptal aqui perto”, relata Ladio. os índios, a então usina Nova América - hoje Raízen - foi
uma das principais responsáveis pela derrubada de mata
Depois da discussão, ele, seu pai e seus familia- na terra indígena, mas eles não souberam dizer se a empre-
res foram jogados na caçamba de uma camionete. “Eles sa continua arrendando áreas no interior de Takuara.
já tinham jogado uma substância viscosa em mim, que me
queimou a pele, acho que era gasolina. Falaram que iam Nos últimos anos, afirmam os índios, a maior par-
botar fogo em mim. Levaram a gente pela estrada e aca- te dos arrendamentos na fazenda Brasília do Sul visa o cul-
baram parando na frente da fazenda do deputado Zé Tei- tivo de soja (e milho, na safrinha). Além de problemas com
xeira [fazenda Santa Claudina], onde jogaram o corpo do a fumigação, por via aérea, de agrotóxicos sobre os plan-
meu pai no meio da rua. Me jogaram também, eu continua-
va amarrado. Os outros conseguiram fugir. Por um milagre
tios, que atinge sistematicamente a aldeia - causando gra-
ves prejuízos às suas roças de subsistência e doença nas
21
naquele momento veio um caminhão com os faróis liga- crianças e idosos -, o trafego intenso de caminhões que
dos, e eles fugiram sem me matar”, conta Ladio. O cacique atravessam sua área também é um incômodo. “Em 2011,
Marcos Veron, à época com 72 anos, não resistiu às agres- colocamos uma pessoa pra contar: foram 870 carretas de
sões e morreu com traumatismo craniano no hospital. soja que saíram da nossa terra, passando no meio da al-
deia”, afirma Ladio Veron.
O caso foi denunciado pelo MPF e pela Funai a
Justiça como crime de formação de quadrilha ou bando, De acordo com a Agência Estadual de Defesa Sa-
seqüestro, dano qualificado, homicídio qualificado e tor- nitária Animal e Vegetal (Iagro) do Mato Grosso do Sul,
tura, e incluiu 28 réus. Em função de pressões do setor do na safra 2011/2012 há sete registros de produtores de soja
agronegócio e da inoperância da Justiça no Mato Grosso que cultivaram o grão em fazendas que incidem parcial ou
do Sul, por decisão do TRF (Tribunal Regional Federal) da totalmente na TI Takuara, como mostra o mapa da página
3ª Região, em 2009 o Tribunal de Júri foi transferido para seguinte.
São Paulo. Em 2011, três acusados foram condenados a 12
Foto: Philip Clark-Hill
22
Na tabela que segue abaixo, estão relacionados os mesmos dados, incluindo a inscrição estadual dos produtores10.
EM TERRAS ALHEIAS
Laranjeira Nhanderu Nhanderu para a Funai foi a constituição de um Grupo
Localização: Município de Rio Brilhante, de Trabalho para dar início aos estudos antropológicos da
Estado de Mato Grosso do Sul área reivindicada. A Funai se comprometeu a iniciar o pro-
Sociedade indígena: Guarani-kaiowá cesso, mas não cumpriu o acordo. Três meses após a re-
Área reivindicada: 11.000 hectares tomada, o Tribunal Regional Federal da 3a Região deferiu
Situação legal: em estudo / perícia judicial uma ordem de despejo, mas após recurso do MPF deu aos
índios e à Funai mais 90 dias para que, neste prazo, o órgão
A primeira retomada de terra Laranjeira Nhande- realizasse os estudos antropológicos.
ru ocorreu em fevereiro de 2008, quando cerca de 120 in-
dígenas (até então moradores da aldeia Panambi, em Dou- Passado o prazo, diante da não realização de
radina) ocuparam parte da fazenda Santo Antônio da Nova qualquer estudo por parte da Funai, a Justiça ordenou a
Esperança, de propriedade da família Cerveira. De acordo reintegração de posse e os indígenas foram despejados
com o cacique Faride Mariano de Lima, o grupo é direta- pela Polícia Federal em setembro do mesmo ano. No ato
mente descendente dos indígenas que moravam na área da saída do acampamento, pistoleiros incendiaram os bar-
antes do estabelecimento de fazendas no território, em racos e pertences do grupo, que passou a acampar às mar-
meados da década de 1930. A retomada se deu através gens da rodovia BR 163.
da ocupação de um pedaço da Reserva Legal da fazenda,
onde foi estabelecido o acampamento. Em maio de 2011, o grupo deixou o acampamen-
23
to provisório às margens da BR e retomou pela segunda
Em retaliação, os fazendeiros bloquearam o aces- vez um trecho da reserva legal da fazenda Santo Antonio,
so ao acampamento pela Fazenda do Inho, de José Raul onde permanece até o momento apesar de seguidas ten-
das Neves. A propriedade é vizinha da fazenda Santo An- tativas de reintegração de posse, negadas pela Justiça no
tonio e, segundo o Ministério Público Federal (MPF), foram final do processo. Desde 2008 - quando pela primeira vez
postados seguranças armados na porteira de forma a im- se comprometeu a realizar os estudos antropológicos da
pedir tanto o trânsito dos indígenas quanto o acesso de área - até o momento, a Funai não concluiu o processo.
funcionários da Funai, da Funasa e de outros órgãos gover- Em função da judicialização da disputa pelas terras entre
namentais. Este bloqueio levou à morte de uma criança de índios e fazendeiros, a Justiça Federal decidiu realizar uma
5 meses, que não pôde ser levada ao hospital a tempo por- perícia judicial na área, na qual avaliará os argumentos dos
que os seguranças particulares de Raul das Neves impedi- fazendeiros, contrários, e do MPF, favoráveis à permanên-
ram a passagem da mãe, de acordo com denúncia dos in- cia dos indígenas. Apesar de estar marcada para meados
dígenas ao MPF. de agosto, a perícia deverá ocorrer apenas a partir de ou-
tubro, de acordo com estimativas do MPF.
EM TERRAS ALHEIAS
Guaiviry Gaspem, conforme apuração da Polícia Federal. De acor-
Localização: Municípios de Aral Moreira do com os indígenas, na manhã do dia 18 de novembro de
e Ponta Porã, Estado de Mato Grosso do Sul 2011, por volta das 6h30, 17 carros chegaram ao acampa-
Sociedade indígena: Guarani-kaiowá mento e homens encapuzados assassinaram o cacique Ni-
Área reivindicada: 110.000 hectares zio Gomes, liderança do grupo.
Situação legal: em estudo
“Eles chegaram perguntando pelo meu pai, que
A área indígena Guaiviry vem sendo reivindica- correu pra dentro da mata. Começaram a soltar fogos de
da pelos Guarani-kaiowá desde 2004, quando ocorreu a artifício, e foram atrás dele. Meu pai foi baleado de uma
primeira retomada por parte de um grupo de cerca de 65 distância de mais ou menos 15 metros. Foram cerca de qua-
famílias. De acordo com as lideranças, a área teria sido tro tiros que o atingiram. Meu sobrinho Jonatan, de 13 anos,
demarcada como indígena ainda no século XIX, mas na dé- que viu o avô caído, morto, tentou carregar o corpo, mas
cada de 1910, com a criação da Terra Indígena Amambai era muito pesado e ele teve que fugir. Então os pistolei-
pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), a população de ros foram lá, pegaram o corpo do meu pai, jogaram na ca-
Guaiviry foi transferida para lá e a área anteriormente ocu- çamba de uma caminhonete Hilux cinza e foram embora. A
pada, considerada terra devoluta. ação durou mais ou menos 15 minutos, foi tudo muito rápi-
Genito Gomes, filho do cacique assassinado Nizio Gomes, em frente ao barraco que era do pai
EM TERRAS ALHEIAS
Aparecido Sanches para tratar da logística e estratégia da Com o encerramento da segunda etapa das in-
retirada dos índios do acampamento GUAYVIRY localiza- vestigações, em junho de 2012, a PF indiciou 23 pesso-
do na Fazenda Nova Aurora, rodovia MS-386, município de as e decretou prisão preventiva de 18, entre fazendeiros,
Ponta Porá/MS, sendo que haveria armas de fogo na reu- membros da Gaspem e um advogado. Entre os indiciados,
nião (cf. depoimento de Jean Diemys Paulino Siqueira às constam: Claudio Adelino Gali, Levi Palma, Aparecido San-
fls. 182/182vº do IPL 0562/2011-4). Também é de se des- ches, Samuel Peloi, Idelfino Maganha, Osvin Mittanck, Luis
tacar o teor do depoimento do indígena Dilo Daniel (fls. Antonio Ebling do Amaral, Aparecido Altonio Fernandes
657/665 do IPL 0562/2011-4, constante na mídia digital in- de Freitas, Aurelino Arce, Josivam Vieira de Oliveira, Jer-
serta à fl. 22 destes autos), onde afirmou que participa- ri Adriano Pereira Benites, Wesley Alves Jardim, Juarez Ro-
ram da aludida reunião Claudio Adelino Gali, Samuel Peloi, canski, Edimar Alves dos Reis, Nilson da Silva Braga, Ricar-
Emerson Conti, Osvim Mittanck, Aparecido Sanches, José do Alessandro Severino do Nascimento, Aparecido Pereira
Osvaldo Eli, Etelvir Pazinato e Idelfino Maganha. Afirma dos Santos Junior e André Pereira dos Santos. As últimas
ainda que Claudio Adelino Gali, Osvim Mittanck e Idelfi- prisões foram efetuadas no início de julho de 2012. No fi-
no Maganha, em momento posterior ao crime, teriam par- nal do mês, três réus foram soltos (entre eles Aparecido
ticipado de uma reunião em que lhe prometeram ajuda nas Altonio Fernandes de Freitas, proprietário da fazenda Ma-
eleições e assistência de advogado, em troca de que sus- ranata, inocentado por depoimentos de outros envolvi-
tentasse perante a polícia a versão de que o índio Nízio dos) através do deferimento de hábeas corpus pelo Tribu-
26 Gomes estaria vivo e refugiado no Paraguai”. nal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3).
► Produção de soja Funai, detectou uma área de cerca de 110 mil hectares
como sendo tradicionalmente Guarani.
Entre os proprietários rurais mencionados nas
investigações do assassinato de Nizio Gomes, vários são O levantamento preliminar dos indígenas tam-
grandes produtores de soja. De acordo com a Agência bém apontou oito fazendas que estariam nesta área e
Estadual de Defesa Sanitária Animal e Vegetal (Iagro) do onde se encontram marcos antropológicos como túmu-
Mato Grosso do Sul, na safra 2011/2012 o grão foi cultiva- los, cemitérios, centros de intercambio comercial Guarani
do pelos fazendeiros mencionados na tabela acima. e até aldeias. As fazendas mencionadas são Fazenda Nova
Aurora, Fazenda Ouro Verde, Fazenda Jaguarete (ou Jagua-
► Fazendas na área de Guaiviry rete-cuê), Fazenda Tagi (ou Tagy), Fazenda Santa Nazaré e
São João, Fazenda São Luis, Fazenda Chalana, Fazenda Água
Dona Marilia Tereza, uma das indígenas mais ve- Boa, e Fazenda São Rafael.
lhas do acampamento de Guaiviry, relata que nasceu na-
quela região e foi expulsa com os demais parentes depois De acordo com a Agência Estadual de Defesa Sa-
que as terras foram tomadas por fazendas e teve início a nitária Animal e Vegetal (Iagro) do Mato Grosso do Sul,
produção de erva mate na região, na década de 1940. Ma- cinco das fazendas mencionadas cultivaram soja na safra
rilia Tereza cita a fazenda Ouro Verde, mas outros indíge- 2011/2012. Sobre as demais, não foi possível levantar infor-
nas falam em parentes nascidos ou enterrados em fazen- mações acerca da atividade produtiva.
das como Tagi, Ponto Alto e Jaguarete.
► Conflito permanece
Um primeiro levantamento feito pelos indíge-
nas, em apoio ao processo de estudo e delimitação da De acordo com as lideranças de Guaiviry, o acam-
MAPA DA TI GUAIVIRY ELABORADO PELOS INDÍGENAS
EM TERRAS ALHEIAS
27
pamento conta com 65 famílias - cerca de 190 pessoas -, construção. Eles falaram também ‘aqui vocês não podem
que ainda vivem sob grande tensão. No início de setembro construir essa oca não!’”, descreve denúncia encaminha-
de 2012, o grupo denunciou nova onda de intimidação e da ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e à Fu-
ameaças por parte de funcionários das fazendas da região. nai no dia 6 de setembro.
“No dia 02/09/2012, às 13h00, dois homens che- De acordo com o documento, novas ameaças fo-
garam de carro às nossas casas e passaram a observar a ram feitas no dia 05/09/2012. “Às 14h00 horas, uma cami-
nossa pequena lavoura em que plantamos mandioca e ba- nhonete preta com vidros escuros em alta velocidade che-
tata-doce. Ao observar a nossa pequena roça, um deles gou à Guaiviry frente de nossas barracas, em face do fato,
perguntou: ‘o que vocês estão plantando aqui?’ Respon- ficamos muito assustados e com medo de sermos ataca-
demos: ‘plantamos rama de mandioca e batata-doce, só dos novamente. Um abaixou vidro do carro e perguntou:
nesse pedacinho plantamos’. Diante de nossa resposta, ‘Quem é o cacique!? Cadê o cacique!?’, percebemos que se
ele falou de modo nervoso: ‘aqui vocês não podem plan- encontravam 3 pessoas dentro de caminhonete. Um deles
tar nada não!, logo nós vamos passas veneno aqui’. As- portava um maquina fotográfica e tirou as nossas fotos e
sim, confirmou que eles vão passar veneno em nossa pe- de nossas barracas. Ninguém desceu do carro e saíram em
quena roça. Além disso, eles observaram a nossa casa de alta velocidade de Guaiviry”. Questionada, a Funai em Pon-
reza tradicional Oga Pysy que está em processo inicial de ta Porã nega ter tido conhecimento do fato20.
Considerações Finais
EM TERRAS ALHEIAS
O agronegócio brasileiro é o um dos setores Um dos efeitos do cenário positivo para o setor
que mais tem crescido nos últimos anos, com apoio só- foi o aumento do preço das terras. De acordo com uma
lido do governo federal. Os recursos destinados às ativi- análise da consultoria Informa Economics FNP, especia-
dades agropecuárias via Plano Safra (ou Plano Agrícola lizada no mercado agropecuário, datada de setembro de
Pecuário) têm aumentado na mesma medida, perfazendo 2012, o preço das terras no país teve um aumento de cerca
R$ 93 bilhões na safra 2009/2010, R$ 100 bilhões na sa- de 32% nos últimos 12 meses. Em maio de 2011, o Mato
fra 2010/2011, R$ 107 bilhões na safra 2011/2012 e R$ Grosso do Sul sofreu um aumento médio de 30% no valor
115,2 bilhões na safra 2012/2013. da terra em relação a 2010, índice que chegou a 100% no
norte do estado, de acordo com o Sindicato dos Correto-
Apesar das oscilações dos preços das commo- res de Imóveis de Mato Grosso do Sul.
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dities agrícolas no mercado internacional, os ganhos se
mantiveram consideráveis em 2012, o que impulsionou A valorização do agronegócio e das terras nas úl-
os investimentos. De acordo com a estimativa de safra da timas décadas tem tido um efeito preocupante sobre o pro-
Conab, este ano o país produzirá 165,9 milhões de tonela- cesso de reconhecimento dos territórios indígenas, prin-
das de grão, 1,9% a mais do que na safra anterior (no Mato cipalmente nas regiões de expansão da fronteira agrícola.
Grosso do Sul, o aumento foi de 22,9%). A área plantada Em números totais, por exemplo, o presidente Fernando
também aumentou em 2% no Brasil, ocupando 982,2 mil Collor de Melo homologou 112 Terras Indígenas (TIs)
hectares a mais do que na última safra (no Mato Grosso entre 1991 e 1992, e entre 1992 e 1994, Itamar Franco
do Sul, este aumento foi de 12,8%)21. homologou 18. Nos seus oito anos de governo, Fernando
EM TERRAS ALHEIAS
Luiz Inácio Lula da Silva ocorreram 79 homologações, e ou seja, não se permite a incorporação ou a presença de es-
no de Dilma Rousseff, apenas três. tranhos. Acima de tudo, o Tekoha é uma instituição divi-
na, criada por Nhanderu (Deus)22.
O setor produtivo - com apoio, nos últimos anos,
do governo estadual - tem exercido uma oposição osten- Esta noção de pertencimento, do ancestral e do
siva ao processo de reconhecimento das terras indígenas divino inerente aos territórios explica, em parte, a presen-
no Mato Grosso do Sul. Por outro lado, no entanto, a trá- ça - e muitas vezes liderança - dos rezadores (nhanderus)
gica situação dos Guarani também levou a um movimento nas ações de retomada de terra, bem como a resignada re-
mais amplo e intenso de reconhecimento de suas caracte- sistência às condições mais adversas de desabrigo, fome,
rísticas sócio-culturais e de seus direitos ancestrais, inse- violência e lentidão dos processos demarcatórios, às quais
rindo no tabuleiro das disputas conceituais um novo parâ- os Guarani se submetem nos acampamentos. O reconhe-
metro de valor, que se contrapõe ao econômico-financeiro. cimento do direito Guarani às suas terras é, assim, um
pressuposto à sua sobrevivência como povo. Na balança
Nesse sentido, tanto no âmbito do Ministério de valores supera (ou nem é comparável), no Estado De-
Público Federal quando no acadêmico e das organizações mocrático de Direito, a contabilidade econômica da ativi-
indigenistas e de direitos humanos, a terra ancestral - o dade agropecuária, ou mesmo ao processo de apropriação
Tekoha - e seu simbologismo inerente não apenas resig-
nificam o conceito de direito, mas também o de valor.
das terras pelas forças privadas ou estatais.
29
Este reconhecimento se espera que seja incorpo-
Para os Guarani, o Tekoha é o lugar “em que rado nas cadeias produtivas e nas políticas públicas re-
vivemos de acordo com o nosso costume”. Seu tamanho ferentes à produção de commodities no Mato Grosso do
pode variar em superfície, mas estrutura e função se man- Sul. Neste sentido, o presente relatório se propõe a auxi-
têm igual: tem liderança religiosa e política própria, e for- liar os diversos elos desta corrente a detectar práticas que
te coesão social. Ao Tekoha correspondem as grandes fes- não se enquadram num processo produtivo que possa ser
tas religiosas e as decisões políticas e formais nas reuniões considerado responsável, tanto no cumprimento da legis-
gerais (o grande conselho Guarani Aty Guasu). O Teko- lação, quanto no que a extrapola, para benefício das popu-
ha tem uma área bem delimitada, geralmente por bosques, lações indígenas.
1 O Brasil dos Agrocombustíveis - Os Impactos das Lavouras sobre a Terra, o Meio e a Sociedade - Cana-de-açúcar - 2009.
Disponível em http://www.reporterbrasil.org.br/documentos/o_brasil_dos_agrocombustiveis_v6.pdf
2 O procedimento de reconhecimento das Terras Indígenas é estabelecido pelo Decreto nº 1775/96, e segue as seguintes etapas: (i)
Identificação, momento em que é constituído um grupo de trabalho formado por representantes de diversas áreas de conhecimento,
coordenado por um antropólogo, para realizar estudos sobre a Terra Indígena ; (ii) Declaração, consiste na emissão de Portaria
Declaratória de Posse pelo Ministro da Justiça reconhecendo os limites da Terra Indígena, após o período de contraditório,
determinando a sua demarcação administrativa; (iii) Demarcação, consiste na materialização da delimitação. Nesta fase, os marcos
são colocados no chão além das placas de sinalização e abertura de picadas, entre outras atividades; (iv) Homologação, ratificação da
demarcação física através de Decreto Presidencial; (v) Registro, etapa em que a Terra Indígena é registrada no Cartório de Registro de
Imóveis da Comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da Fazenda (SPU/MF).
3 Relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil 2011”. Disponível em http://www.cimi.org.br/pub/CNBB/Relat.pdf
4 As informações do histórico do povo Guarani no MS foram retiradas em grande parte do texto “Os Guarani-kaiowá e Ñandeva”, do