Revista Da Associação Brasileira de Psicopedagogia - Avaliação Psicopedagógica Na Perspectiva Da Teoria Histórico-Cultural de Vigotski

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Artigo Original - Ano 2024 - Volume 41 - Edição 124

AVALIAÇÃO PSICOPEDAGÓGICA NA
PERSPECTIVA DA TEORIA
HISTÓRICO-CULTURAL DE VIGOTSKI
Ana Caroline Nunes Costa
DOI: 10.51207/2179-4057.20240019
(https://doi.org/10.51207/2179-4057.20240019)
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo apresentar um modelo
de avaliação psicopedagógica estruturado a partir da
perspectiva da Teoria Histórico-Cultural de Lev
Semionovitch Vigotski. O estudo questiona como uma visão
que classifica e padroniza o comportamento humano e as
formas de aprender colaboram para uma patologização das
diferenças no desenvolvimento. A Teoria Histórico-Cultural
apresenta uma perspectiva de desenvolvimento que rompe
com uma visão dualista de homem, o que contribui para
uma compreensão integral do desenvolvimento humano. O
modelo de avaliação que parte dos princípios da Teoria
Histórico-Cultural almeja encontrar os caminhos de
compensação para o autodesenvolvimento da criança. A
questão principal deste artigo é refletir como uma avaliação
psicopedagógica com base na Teoria Histórico-Cultural
pode colaborar para a compreensão do desenvolvimento
integral da criança. Os procedimentos metodológicos
explicitam que a pesquisa se trata da exposição de uma
avaliação psicopedagógica apresentada em forma de
relatório descritivo de uma criança de 6 anos. Esta
avaliação é dividida em seis partes e apresenta resultados
de um acompanhamento de duração de quatro meses. O
presente artigo teve como resultado apresentar uma
proposta de avaliação que esclareça, às instituições
envolvidas com o desenvolvimento da criança, o papel dos
estímulos organizados de forma intencional, a compreensão
de que existe diversidade no desenvolvimento humano e
que essas diferenças não são sinônimas de um suposto
transtorno do neurodesenvolvimento ou alguma doença.
Palavras-chave: Avaliação Psicopedagógica. Teoria
Histórico-Cultural. Desenvolvimento Infantil.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo apresentar um modelo
de avaliação psicopedagógica estruturado a partir da
perspectiva da Teoria Histórico-Cultural de Lev
Semionovitch Vigotski. O estudo questiona como uma visão
que classifica e padroniza o comportamento humano e as
formas de aprender colaboram para uma patologização das
diferenças no desenvolvimento. A Teoria Histórico-Cultural
apresenta uma perspectiva de desenvolvimento que rompe
com uma visão dualista de homem, o que contribui para
uma compreensão integral do desenvolvimento humano. O
modelo de avaliação que parte dos princípios da Teoria
Histórico-Cultural almeja encontrar os caminhos de
compensação para o autodesenvolvimento da criança. A
questão principal deste artigo é refletir como uma avaliação
psicopedagógica com base na Teoria Histórico-Cultural
pode colaborar para a compreensão do desenvolvimento
integral da criança. Os procedimentos metodológicos
explicitam que a pesquisa se trata da exposição de uma
avaliação psicopedagógica apresentada em forma de
relatório descritivo de uma criança de 6 anos. Esta
avaliação é dividida em seis partes e apresenta resultados
de um acompanhamento de duração de quatro meses. O
presente artigo teve como resultado apresentar uma
proposta de avaliação que esclareça, às instituições
envolvidas com o desenvolvimento da criança, o papel dos
estímulos organizados de forma intencional, a compreensão
de que existe diversidade no desenvolvimento humano e
que essas diferenças não são sinônimas de um suposto
transtorno do neurodesenvolvimento ou alguma doença.
Palavras-chave: Avaliação Psicopedagógica. Teoria
Histórico-Cultural. Desenvolvimento Infantil.

Introdução
As chamadas “dificuldades de aprendizado” têm sido objeto
de estudos da ciência médica e da educação. A escola
enquanto instituição que promove o ensino tem buscado
soluções ancoradas nessas áreas para sanar os problemas
do aprendizado de crianças. É muito comum a escola
sugerir e/ou encaminhar alunos classificados com alguma
dificuldade para aprender aos especialistas das seguintes
áreas: Medicina, Psicologia, Fonoaudiologia,
Psicopedagogia, Terapia Ocupacional, Musicoterapeuta,
entre outras.
Nos últimos anos tem aumentado a procura pelos
profissionais que trabalham na área clínica com o
aprendizado. A Psicopedagogia é uma dessas áreas
indicadas para sanar os problemas de aprendizagem, e,
consequentemente, da alfabetização. As maiores queixas
da escola e da família no geral se relacionam às
dificuldades para ler, escrever, se concentrar e as noções
de matemática.
Todavia, cada ciência analisa o suposto problema de
aprendizado sobre a sua própria perspectiva e tem as suas
bases filosóficas que influenciam nos diferentes modos de
avaliar a criança. Cito como exemplo a análise médica
sobre a dificuldade para aprender que tende a classificar as
diferenças no desenvolvimento como uma doença ou algum
transtorno do neurodesenvolvimento. Assim, analisar o
homem a partir de uma perspectiva médica e biológica tem
implicações reais para a sua vida e, consequentemente,
para a sua história escolar.
A história nos mostra quantos métodos violentos foram
utilizados com crianças que apresentavam diferenças em
seu desenvolvimento. Cito como exemplo um método
analisado por Vigotski (2021), que destaca o seguinte
acontecimento na escola alemã:

Na escola alemã, onde está mais difundido esse método de


ensino da fala oral aos surdos-mudos, observam-se também
as maiores deformações da pedagogia científica. Recorrendo
a uma excepcional rigidez e coação da criança, consegue-se
ensinar-lhe a fala oral, mas seu interesse segue um curso
distinto. Nessas escolas, a mímica é proibida e combatida,
mas o pedagogo não encontra um modo de bani-la. O
famoso colégio para surdos-mudos, de J. Vatter, destacou-se
pelos maiores êxitos nessa tarefa, mas as aulas de fala oral
eram realizadas com grande crueldade. Ao obrigar o aluno a
assimilar um som difícil, o professor podia quebrar-lhe um
dente e, após limpar o sangue da mão, passava para outro
aluno ou para outro som. (Vigotski, 2021, p. 37)

O que a descrição deste método nos mostra é que em


nome da “ciência” muitas atrocidades já foram
desenvolvidas e praticadas contra as crianças que
apresentam um desenvolvimento atípico. São formas
explícitas de violência, mas existem outros tipos. Dizer que
as diferenças de desenvolvimento são sinônimos de
inferioridade ou incapacidade também é um tipo de
violência contra esse ser humano que se encontra no início
de seu desenvolvimento.
Outro ponto a ser discutido são as diferenças de análise do
campo médico e do campo educacional. As relacionadas ao
campo educacional que têm como base questões sociais e
culturais seguem uma outra lógica de análise. Mas o que se
percebe é que a forma de análise médica tem exercido uma
considerável influência tanto na perspectiva pedagógica
quanto na psicopedagógica. A ideia de classificar e
padronizar o comportamento humano e as formas de
aprender segue ainda muito presente em avaliações de
crianças.
Esta ideia de padronização do desenvolvimento ainda está
muito presente nos ambientes sociais nos quais desenvolvi
minha trajetória profissional e foi por meio do estudo e da
pesquisa que pude compreender a existência das diferentes
formas de aprender e de se desenvolver. A Teoria Histórico-
Cultural de L. S. Vigotski (1896-1934) apresenta uma
perspectiva de desenvolvimento que rompe com uma visão
dualista de homem, o que contribui para uma compreensão
integral do desenvolvimento da criança.
No universo escolar e médico a Psicopedagogia é
conhecida como uma área que trabalha com a dificuldade
ou os problemas relacionados à aprendizagem. É comum
os professores e os neuropediatras encaminharem essa
terapia para crianças que apre sentam dificuldades na
adaptação do ensino escolar. Esta é uma área
relativamente nova que tem como base os conhecimentos
da Pedagogia e da Psicologia. Entretanto, há complexidade
no desenvolvimento humano e isto requer da
Psicopedagogia pesquisas em diversas áreas do
conhecimento, como esclarecem Costa et al. (2013):

Sendo uma ciência em construção, a Psicopedagogia se


respalda em outras ciências entre elas a filosofia,
fisioterapia, neurologia, psicolinguística e a psicanálise pois,
contribuem para a compreensão do processo de
aprendizagem humana. Os diversos autores que tratam da
Psicopedagogia enfatizam o seu caráter interdisciplinar.
Reconhecer tal caráter significa admitir a sua especificidade
enquanto área de estudos, uma vez que, buscando
conhecimento em outros campos, cria o seu próprio objeto,
condição essencial da interdisciplinaridade. (p. 11)

Outro ponto importante é compreender a história desta área


do conhecimento que se inicia atrelada à ciência médica.
Em geral, para crianças diagnosticadas com algum tipo de
deficiência que tivesse consequências na adaptação
escolar. Por isso, é importante compreender as origens da
Psicopedagogia para se pensar sobre a complexidade da
formulação de suas avaliações para a atualidade. Neste
sentido, é preciso ampliar o olhar sobre a criança para além
do problema da aprendizagem. Segundo as autoras Costa
et al. (2013), é preciso compreender que:
A Psicopedagogia nasceu na Europa, ainda no século XIX.
Inicialmente, pensaram sobre o problema de aprendizagem:
os filósofos, os médicos e os educadores. Na literatura
francesa encontra-se, entre outros, os trabalhos de Janine
Mery, psicopedagoga francesa, que apresenta algumas
considerações sobre o termo Psicopedagogia e sobre a
origem dessas ideias na Europa, e os trabalhos de George
Mauco, fundador do primeiro centro médico-
psicopedagógico na França onde se percebe as primeiras
tentativas de articulação entre Medicina, Psicologia,
Psicanálise e Pedagogia, na solução dos problemas de
comportamento e de aprendizagem. (p. 12)

Como já foi descrito, em sua formulação a área da


Psicopedagogia foi influenciada por diferentes ciências e
tem uma visão específica de homem. Coaduna com a
perspectiva da ciência naturalista que analisa as diferenças
de desenvolvimentos ora como uma doença ou ora como
um transtorno do neurodesenvolvimento. No início da
estruturação da Psicopedagogia observa-se as raízes do
que era chamado de “Pedagogia curativa”. A criança ou o
aprendente seria o “doente” que deveria ser readaptado à
estrutura escolar. Segundo Costa et al. (2013), foi:

A partir de 1948, o termo pedagogia curativo passa a ser


definido como terapêutica para entender a criança e
adolescentes desadaptados que, embora inteligentes,
tinham maus resultados escolares. A Pedagogia Curativa
introduzida na França poderia ser entendida como “método
que favorecia a readaptação pedagógica do aluno”, uma vez
que pretendia tanto auxiliar o sujeito a adquirir
conhecimentos, como também desenvolver a sua
personalidade. Segundo Debesse, a Pedagogia Curativa
“situa-se no interior daquilo que hoje chamam de
Psicopedagogia. (p. 13)

Estes pequenos pontos da história da Psicopedagogia


descritos têm a intenção de refletir o quanto uma avaliação
de uma criança precisa apresentar um olhar crítico sobre
toda a cultura e a estrutura na qual ela está inserida, e, não
simplesmente, apresentar as suas dificuldades. A criança
compreendida em uma perspectiva de desenvolvimento,
sendo analisada a partir dos diversos fatores que estão
relacionados à sua dificuldade, e, assim, rompem como
uma visão dualista de homem.
Outra questão importante é discutir como são estruturadas
as avaliações tradicionais na Psicopedagogia que têm
como base um cronograma com provas, testes,
brincadeiras lúdicas, etc. Vale ressaltar que existe uma
diferença na amplitude dos testes brasileiros dos testes
realizados por psicopedagogos argentinos. Cito esta
diferença, pois foi na Argentina que esta área se fundou
inicialmente na América do Sul com o seu primeiro curso
superior. As autoras Costa et al. (2013) esclarecem a gama
de testes realizados pelos psicopedagogos argentinos:

Segundo Bossa (2000), uma série de provas estão presentes


na atuação dos psicopedagogos argentinos, são eles: as
provas de inteligência (Wisc), as provas de nível de
pensamento (Piaget), a avaliação do nível pedagógico (Eoca),
a avaliação perceptomotora (teste Bender), os testes
projetivos (CAT, TAT, desenho da família, desenho da figura
humana e HTP), os testes psicomotores (provas de
estruturas rítmicas e o teste da lateralidade) e o jogo
psicopedagógico (objetos lúdicos). “A atuação dos
psicopedagogos no Brasil, por seu turno, difere em alguns
pontos da situação na Argentina, sobretudo no que
concerne à prática, devido principalmente às condições de
formação” (BOSSA, 2000). Aliás, muitos testes são permitidos
apenas para aplicação de psicólogos no Brasil,
diferentemente da Argentina. (p. 17)

Neste sentido a prática e a construção da avaliação tem


como objetivo esclarecer quais “...intervenções
correspondiam à medição e avaliação da deficiência
cognitiva da criança com problemas de aprendizagem, por
testes psicológicos” (Costa et al., 2013, p. 18). Na
construção de uma avaliação é preciso esclarecer qual
visão se tem de homem e qual perspectiva fundamenta-se.
Medir a inteligência é algo extremamente complexo, uma
vez que estamos lidando com crianças que se encontram
no início de seu desenvolvimento.
Portanto, são os instrumentos utilizados na construção de
avaliações e de laudos que no geral avaliam o potencial
intelectual da criança. “É possível avaliar o potencial
intelectual de alguém?” (Moysés, 2001, p. 35). A questão se
torna mais complexa, uma vez que estamos falando de
crianças pequenas. Qual ou quais instrumentos dariam
conta da avaliação do potencial intelectual de um ser
humano que se encontra no estágio inicial de seu
desenvolvimento? “A medida a que temos acesso é apenas
a expressão do potencial, jamais o potencial” (Moysés,
2001, p. 35). Mas o que prevalece nas avaliações é um
mapeamento do “potencial” da criança, indicando assim a
suposta medição da inteligência. Como esclarece Moysés
(2001):
O instrumento padronizado, o teste, fundamenta-se na
concepção de que uma determinada forma de expressão
constitui a chave de acesso ao potencial. Não é relevante,
neste debate, se se acredita ter acesso direto ao potencial ou
que uma determinada forma de expressão seja superior às
demais: ambas as crenças apenas justificam o fato de que o
teste elege uma forma de expressão como a única que
merece ser considerada. Isto vale tanto para os testes mais
simples de equilíbrio, como para os mais sofisticados, no
campo das funções intelectuais superiores. Exatamente o
campo onde o conhecimento é mais complexo, mais
controverso; o que diferencia o ser humano das outras
espécies. (p. 37)

A avaliação da aprendizagem que compreende a criança


como um ser humano que se encontra no início de seu
desenvolvimento e avalia a dificuldade a partir de seu
contexto cultural rompe com a ideia de que o
desenvolvimento humano é padronizado. Construir uma
avaliação de crianças é sem dúvida uma responsabilidade
ética com este ser humano que está no início de seu
desenvolvimento. Por isso, a avaliação deve esclarecer às
outras instituições responsáveis pela criança sobre o seu
papel no desenvolvimento dela.
A minha experiência como professora de crianças e os
desafios no ambiente escolar me fizeram questionar a
padronização para aprender que é exigida diariamente na
didática escolar. Nos conselhos de classe ficava evidente a
incompreensão das diferenças nas formas de aprender, era
comum ouvir professores dizendo que “fulano é muito lento,
não consegue se concentrar, tem algum problema”. A
questão não era a qualidade da aula em si, mas a forma de
perceber a criança e o seu desenvolvimento. A crítica
estava sempre na criança e consequentemente em sua
família, e a estrutura enrijecida da instituição escolar não
era questionada, apenas reproduzida. Os temas das aulas
que se relacionavam ao cotidiano da criança geravam
engajamento e participação. Pouco se compreende sobre
as funções psicológicas predominantes em cada período
etário e a importância da fala para esse processo.
O estudo e a pesquisa são instrumentos importantíssimos
para compreender as diferentes visões do desenvolvimento
infantil. Vale ressaltar que um ponto de vista científico deve
“conhecer a verdadeira natureza dos fenômenos
estudados” (Vigotski, 2021, p. 89). A compreensão do
desenvolvimento da criança envolve ir além da
interpretação dos dados empíricos, é necessário conhecer
a dinâmica e a complexidade que estão envolvidas nessa
etapa. É preciso estudar a gênese dos fenômenos e
desvendar a sua essência.
Os 15 anos de experiência em escolas particulares me
fizeram perceber que o que se chama de “problema de
aprendizagem” em geral não tem nenhuma relação com a
gênese da questão. A visão limita-se ao que falta na
criança, ou seja, ao que foge da padronização do
aprendizado. Hoje, percebo o quanto esses
desdobramentos são graves e alimentam a medicalização
do comportamento: uma questão muito séria para o tempo
em que vivemos. Não seria isto um tipo de violência contra
a criança?
Análises que seguem uma lógica estritamente biológica e
não levam em conta os fatores culturais que se relacionam
ao desenvolvimento humano podem produzir análises
equivocadas do desenvolvimento da criança. Cito como
exemplo a fala humana, que se desenvolve na convivência
com outros seres falantes, ou seja, se desenvolve dentro de
uma cultura.
Diante disso, é importante compreendermos que existem
duas visões predominantes na ciência que estuda o
desenvolvimento infantil. A primeira é a visão naturalista,
que ainda predomina em diferentes áreas científicas. Tal
visão afirma “que uma anomalia biológica tem uma
repercussão direta sobre o desenvolvimento das funções
intelectuais” (Tunes, 2003, p. 7). Nesta existe um padrão
instituído de “normalidade” biológica. É interessante pensar
que, antes mesmo de nascer, já são realizados exames de
estudo morfológico e, nesses, são comuns escritos com as
seguintes palavras “simétricos”, “normais”, “anormais e
“defeitos”. Com este corriqueiro exemplo não quero
desqualificar a relevância destes exames, mas indicar
algumas sutilezas da visão naturalista presentes na
medicina que tem repercussões diretas para a educação
escolar.
Diante dessas questões, este artigo visa apresentar um
modelo de avaliação psicopedagógica que se compõe em
um formato diferente da estrutura da Psicopedagogia
tradicional. É uma avaliação longitudinal realizada no
período de 4 meses com um encontro semanal de duração
de 50 minutos. Tem como objetivo acompanhar o
desenvolvimento da criança e não se restringe a apontar o
que falta nela, mas compreender os seus avanços e as
suas potencialidades. Neste sentido a criança é vista em
uma perspectiva de desenvolvimento tendo como base a
Teoria Histórico-Cultural de L. S. Vigotski.
Este artigo analisa a seguinte questão: como uma avaliação
psicopedagógica com base na Teoria Histórico-Cultural
pode colaborar para a compreensão do desenvolvimento da
criança?
Método
O presente artigo analisa as contribuições de uma
avaliação psicopedagógica estruturada a partir das
contribuições da Teoria Histórico-Cultural para o
desenvolvimento integral da criança. Esta avaliação tem
duração de 4 meses e é realizada em um atendimento
semanal com duração de 50 minutos. Os primeiros quatro
encontros são realizados com a criança e só depois
acontecerá a reunião com a família. O objetivo é conhecer a
criança primeiro para depois conversar com a família sobre
as peculiaridades do seu aprendizado. Outro ponto
importante é que na primeira sessão com a criança a
família recebe impresso um documento chamado
anamnese1 no qual existem diferentes questões sobre a
sua história de vida, rotina da criança, diversas perguntas
sobre a história acadêmica dos pais e as crenças sobre o
que eles pensam sobre o ensino escolar e a educação dos
filhos.
O presente artigo descreve uma avaliação psicopedagógica
apresentada em forma de relatório descritivo. Utilizou-se um
nome fictício para a criança avaliada. Em todos os
documentos os pais autorizaram o uso dos dados para
pesquisas científicas resguardando a imagem e o nome da
criança. O presente estudo teve como pretensão mostrar a
importância da Teoria Histórico-Cultural para a estruturação
da avaliação psicopedagógica.
A estrutura da avaliação psicopedagógica aqui apresentada
segue seis pontos de discussão acerca do desenvolvimento
de uma criança de 6 anos de idade, são eles:
1) Panorama geral do desenvolvimento psicológico da
criança com base na Teoria Histórico-Cultural;
2) Síntese da investigação psicopedagógica; 3)
Características importantes da criança;
4) Desenvolvimento da fala e do vocabulário; 5)
Consciência corporal e raciocínio lógico matemático;
6) Sugestões e orientações para a família.
O objetivo da avaliação é que a família compreenda pontos
gerais do desenvolvimento da criança e reflita sobre o que
pode ser realizado como estímulo. A proposta de avaliação
aqui apresentada rompe com uma visão dualista de ser
humano e propõe uma reflexão sobre o perigo de se focar
no que classificamos como “problema” ou “defeito” do
aprendizado escolar.
Os resultados e a discussão deste artigo estão presentes
ao longo dos seis itens que compõem a avaliação
psicopedagógica. O primeiro item apresenta um panorama
geral do desenvolvimento psicológico da criança na
perspectiva de desenvolvimento da Teoria Histórico-Cultural
de L. S. Vigotski (18961934). Do segundo ao quinto item o
leitor terá acesso aos pontos específicos do
desenvolvimento de uma criança de 6 anos e no último
apresento indicações de estímulos para que a família
realize com esta criança a fim de aprimorar o seu
desenvolvimento.
Resultados e Discussão
Panorama geral do desenvolvimento psicológico da
criança com base na Teoria Histórico-Cultural
Por que olhamos a deficiência sempre pelo aspecto da falta
e do “defeito” e não pelas infinitas possibilidades de
compensação? “Dizia-se o que faltava à criança atrasada,
mas não se dizia o que possuía”. (Vygotski, 1983/1997, p.
160). Vigotski inverte a ordem da análise que era realizada,
que tinha como ponto de partida o defeito. Ao fazer do
defeito o objeto de análise, cria-se uma grande limitação
para o estudo do desenvolvimento infantil. Desse modo,
constrói-se um muro entre o defeito e as possibilidades de
compensação, tornando desconhecido os seus caminhos.
Na perspectiva do autor, não adianta apenas descrever o
aspecto negativo e, sim, “os lados positivos de sua saúde
que compensam seu estado físico’’ (Vygotski, 1983/1997, p.
160). Esse modo de análise tem uma premissa moral de
compromisso com o outro e consequentemente com a
dignidade do ser humano.
Nesta perspectiva, cada criança se desenvolve de um modo
único e peculiar, compreendendo que o desenvolvimento é
autodesenvolvimento! A ciência classifica o
desenvolvimento humano em dois grupos; típico (é um
modo mais comum) e atípico (um modo mais complexo). As
diferenças no modo de desenvolvimento não podem ser
sinônimas de fracasso ou incapacidade, pois toda criança
tem capacidade para se desenvolver no seu espaço, ritmo e
tempo.
O trabalho do desenvolvimento do pensamento não está
dissociado das outras áreas que constituem o ser humano.
O homem é um ser complexo e deve ser compreendido em
sua totalidade, ou seja, o homem é uma unidade. A
avaliação psicopedagógica de desenvolvimento tem como
objetivo investigar como a criança interage, brinca, pensa e
participa das diversas atividades de estimulação em
ambiente clínico. As questões discutidas neste relatório têm
como objetivo principal investigar quais marcos importantes
do desenvolvimento a criança já alcançou. É fundamental
ressaltar que existem diferenças entre a idade cronológica e
a idade de desenvolvimento na criança, e este relatório
explana as principais peculiaridades e características
importantes da criança.
A atuação do psicopedagogo deve ser guiada por este
princípio: olhar para as infinitas possibilidades de
compensação e não apenas pelo que a criança não
consegue realizar. Focar no que a criança não sabe é um
grande equívoco, uma vez que não resolve o problema. Por
isso, o nosso trabalho tem como maior objetivo colaborar
para o desenvolvimento integral da criança.
Nesta perspectiva, cada uma se desenvolve de um modo
único e peculiar, pois esse processo envolve características
próprias de cada contexto cultural em que a criança vive.
São diversos fatores que interferem no desenvolvimento
delas, como por exemplo: a qualidade da alimentação, o
excesso de aparelhos tecnológicos, a história dos primeiros
anos de vida e as questões orgânicas.
O trabalho do desenvolvimento do pensamento não está
dissociado das outras áreas que constituem o ser humano.
O homem é um ser complexo e deve ser compreendido em
sua totalidade, pois o desenvolvimento humano acontece
no meio cultural.
Nas questões relacionadas ao desenvolvimento psíquico da
criança, o primeiro ponto a ser trabalhado é a sua vontade,
sendo esta a chave para o autodesenvolvimento. Ao
trabalhar a vontade, estamos atuando na estruturação da
personalidade, ou seja, no domínio das suas funções
psicológicas superiores, o que tem total relação com a
qualidade do aprendizado. Neste momento, qual a chave
principal para uma efetiva comunicação e desenvolvimento
da vontade da Nicole? A sua imaginação!
Quando cria e imagina é a Nicole que está no controle,
exercendo a sua “liberdade” de escolha. Essa “liberdade”
decorrente dos momentos imaginários é ilusória, pois tudo o
que está presente nela vem de elementos da realidade, e,
principalmente, de situações vivenciadas por ela, quais
sejam: os elementos do conteúdo escolar, as situações do
cotidiano, os desenhos e as brincadeiras.
É importante ressaltar que existe uma mudança significativa
no pensamento das crianças que se encontram na faixa
etária de 3 a 10 anos de idade. As Funções Psíquicas
Superiores predominantes em cada período etário são:
• Pré-escolar: Imaginação;
• Escolar: Atenção;
• Adolescente: o Pensamento Reflexivo.
Essas são as funções predominantes em cada período do
desenvolvimento, não significando que elas desaparecem
em etapas posteriores. Por exemplo, a imaginação continua
presente ao longo da vida humana, exercendo, no entanto,
outras posições no nosso desenvolvimento psíquico. As
funções psíquicas, como o pensamento lógico, a memória
consciente e a vontade não se apresentam prontas ao
nascermos. Essas são o “resultado da apreensão da
experiência social acumulada pelas gerações.” (Prestes,
2012, p. 42). Os aspectos culturais são fundamentais para o
desenvolvimento do pensamento, sendo eles os “modos
socialmente estruturados pelos quais a sociedade organiza
as tarefas que são propostas à criança, e com as
ferramentas, físicas e mentais, que são oferecidas à criança
para que domine essas tarefas.” (Luria, 1992, p. 49).
O isolamento social causado pela pandemia modificou
diversos aspectos sociais de desenvolvimento das crianças,
intensificando a intolerância no relacionamento causado
pelo excesso de tela e pela falta de convívio com os seus
pares. É no convívio com outras pessoas e crianças que
somos “forçados” a equilibrar a nossa vontade com a dos
outros. A diminuição desse contato social nos impulsiona
para um mundo interior mais fechado em relação às nossas
próprias ideias, possibilitando uma maior intolerância às
frustrações.
No início do desenvolvimento humano os aspectos verbais
e motores do comportamento estão unidos; é por isso que o
aprendizado só faz sentido se estiver relacionado à
experiência concreta. O pensamento concreto e as
situações imaginárias estão muito presentes na estrutura da
Nicole.
A fala exerce um papel fundamental na organização do
nosso pensamento. A partir do momento em que a criança
se desenvolve “a fala deixa de simplesmente acompanhar a
ação e começa a organizar o comportamento”. (Luria, 1992,
p. 54). Assim, adquire uma função instrumental
característica própria das crianças mais velhas.
As capacidades da criança são as bases para o
desenvolvimento do seu pleno potencial. A fala tem um
papel decisivo no desenvolvimento dos processos
psicológicos superiores. A Nicole demonstra entusiasmo
nos momentos de conversa, adora propor e guiar as
brincadeiras de imaginação! Nos jogos de regras fixas
como dominó, xadrez e cartas ela precisa ser
recorrentemente lembrada de que nesses tipos de jogos é
extremamente necessário seguir as regras para que se
possa vencer. Geralmente, crianças de 2 até 4 anos, por
estarem em um período específico de desenvolvimento,
ainda não se submetem por completo a jogos com regras
fixas e pré-estabelecidas. Nessa fase de desenvolvimento o
que prevalece é um tipo espontâneo-reativo, característica
presente em crianças menores de 2 até 4 anos de idade.
Qual a relação entre autoridade e o aprendizado? A
etimologia da palavra autoridade significa aquele que faz
crescer. Para que o aprendizado ocorra, é necessário que a
criança reconheça o adulto como uma autoridade, aqui não
estou me referindo ao autoritarismo. Em toda relação de
ensino e aprendizagem é necessária essa simbiose que
nos faz identificar, e, consequentemente, nos submetermos
a uma autoridade. É comum em crianças em que vontade
está extremamente acentuada a dificuldade no processo de
aprendizado. Aqui não se relaciona a uma “dificuldade” para
assimilar conceitos, mas sim uma questão de
reconhecimento de autoridade e de exacerbação da sua
vontade. É notório no desenvolvimento da criança que,
quando não se estabelece essa relação, ela tem menos
chances de aprender, uma vez que é guiada apenas pela
sua própria vontade.
Síntese da investigação psicopedagógica
A Nicole apresentou boa comunicação e motivação para
realizar as atividades propostas, com destaque de interesse
por atividades de livre imaginação. Seguem as
características principais do início das sessões: demonstrou
muito interesse e concentração pelos livros e histórias;
soube contar com segurança até o número 5, e, neste
momento, tinha como característica pressa e impaciência, o
que gerava baixa assertividade; possuía baixo interesse e
conhecimento por atividades com letras, nesses momentos
dizia: “Eu já faço muita tarefa de casa!”. Nas atividades que
se relacionavam às “escolares” demonstrava pouca
motivação e interesse.
Nos aspectos relacionados à coordenação motora fina
apresentou pouca firmeza; escreveu o primeiro nome;
preferência por atividades musicais. A forma geométrica
conhecida foi o retângulo e dizia que não se lembrava do
nome das outras apresentadas. Em alguns momentos
queria mudar de atividade antes da sua finalização.
Após os estímulos direcionados para um pensamento mais
elaborado, ampliando, assim as suas generalizações, a
Nicole começou a perguntar o significado das palavras,
objetos e brincadeiras que não conhecia.
Em relação ao seu desenvolvimento psicológico, existem
aspectos que se assemelham aos de uma criança da sua
faixa etário e estão presentes características de crianças
menores. O que prevalece são situações de imaginação,
que é uma característica muito presente em crianças, e,
também, uma exacerbação de sua vontade; características
marcantes em crianças pequenas (faixa etária de 2 até 4
anos).
Ao longo desse período, foram ampliando as suas
generalizações com outros tipos de questões, tendo como
objetivo estimulá-la a pensar em caminhos alternativos para
conseguir compreender e ampliar o seu modo de
encadeamento de ideias.
A base do pensamento da criança pequena é o concreto.
Diante disso, tudo que ela utiliza necessita de um
fundamento concreto para apoiar as suas generalizações.
O maior objetivo é utilizar os materiais concretos como meio
para se alcançar um pensamento mais elaborado, ou seja,
um pensamento sistemático e abstrato. “O material
concreto é necessário e inevitável apenas como um estágio
para o desenvolvimento do pensamento abstrato, como
meio, mas não como objetivo em si mesmo.” (Vigotski,
2021, p. 260). Por isso, é importante que uma instrução não
tenha como base ou fundamento os materiais concretos,
mas sim os utilize como um meio ou instrumento para o
desenvolvimento do pensamento abstrato.
Características importantes da criança
Os estímulos dados neste período despertaram-na a
ampliar a sua forma de raciocínio e a sua linha de
interesses. Esses estímulos a fizeram, de forma
espontânea, começar a aplicar conceitos matemáticos nas
situações e problemas propostos. Seguem alguns exemplos
de situações clínicas importantes para compreender essa
questão. As brincadeiras de competição são as suas
preferidas, nessas demonstra assertividade para realizar
somas simples, sequência e noções de quantidade até o
número 20. Não conhecia o dado e foi lhe apresentado
como estímulo em diversas atividades de raciocínio, corpo
e movimento, o que há despertou para esse tipo de
brincadeira.
Nos jogos de raciocínio demonstra maior rapidez e
assertividade, embora precise de constantes intervenções
para se submeter às regras da atividade proposta. Aqui
prevalece o interesse por criar as suas próprias regras e
guiar sempre a atividade de acordo com as suas vontades.
Essa característica é muito presente em crianças menores
(geralmente entre 2 e 4 anos), em que a submissão à regra
ainda não prevalece como atividade guia para o
desenvolvimento do que lhe é proposto. Ao longo desse
período de estimulações, foi preciso firmeza, repetição e
clareza do que estava sendo proposto, revelando a
importância dessas orientações para o seu aprimoramento.
Foi necessário um trabalho intenso no qual relacionei o
significado e a relevância de saber ouvir para o processo de
aprendizado.
A exploração do ambiente também é uma das
características que está muito presente em crianças
menores e no modo como a Nicole interage com o
ambiente.
Ao longo das estimulações propostas, foram criados
momentos de ampliar a sua forma de pensar sobre a
submissão as convenções sociais, às regras. Todas as
relações que ela estabeleceu foram no sentido de
consequências negativas ou punitivas do ato de transgredi-
las. A fim de ampliar o seu modo de pensar nessas
questões foi fundamental esclarecer aspectos importantes
dessas convenções sociais relacionando-as ao bem
coletivo no sentido de proteção e segurança para a vida
social.
Nesses momentos de brincadeira livre em que são
introduzidos conceitos e questões novas, apresentava-se
com maior entusiasmo, interesse e excelente
argumentação. Faz relações coerentes com o que lhe é
proposto, relacionando com situações do cotidiano e
vivencias familiares! Sabe organizar suas ideias
estabelecendo relações com outros ambientes. As
atividades com tinta foram as que geraram maior interesse
e concentração.
Desenvolvimento da fala e do vocabulário
Trabalhamos muitas histórias ao longo desse processo,
nesses momentos Nicole demonstra interesse e
concentração. A criança se destacou pelos conhecimentos
dos nomes dos órgãos e partes do corpo humano. No livro
“O corpo de Bóris” ela com autonomia soube dizer o nome
do cérebro, do coração e do pulmão.
As funções executivas caracterizam-se basicamente pelo
controle, direcionamento, gerenciamento e integração das
funções cognitivas, emocionais e comportamentais para a
execução voluntária e conscientes das ações necessárias
para se administrar a possibilidade de que algo se realiza.
São os estímulos organizados e direcionados que
potencializam essas áreas extremamente importantes para
a qualidade do aprendizado da criança.
É curiosa, gosta de explorar os objetos, ouvir histórias e
imaginar. Essas são características peculiares ao período
etário em que se encontra.
Já sabe escrever todas as vogais e reconhece o seu nome,
dos pais e da irmã. Escreve o nome em caixa alta. Nicole
também sabe explicar os nomes e a idade dos outros
irmãos e primos. Consegue dizer o seu nome completo e
organizá-lo na ordem certa. Já realiza emparelhamento de
letras iguais reconhecidas em palavras diferentes.
Quando lhe é exigido maior foco em atividades que não são
de sua livre escolha, por vezes insiste em desviar o foco e a
atenção. A exacerbação de sua vontade ainda é um ponto
importante a ser trabalhado em contexto familiar e clínico,
uma vez que ela alimenta a sua inquietação e insatisfação
em sempre criar novas necessidades de ação. Sabe
recontar histórias com clareza e objetividade. Compreende
mais de quatro preposições. Aponta e nomeia mais de 6
partes do corpo. Estabelece relações de mais de 20
palavras e o seu significado. Está em processo de
apreensão das letras do alfabeto, por isso, em alguns
momentos confunde lembrando-se mais das que lhe são
familiares.
O desenvolvimento do pensamento colabora para o
autodomínio e diminuição de sua impulsividade. Conhece e
nomeia diversas cores. No início das estimulações só
reconhecia a forma geométrica retângulo, neste momento já
reconhece diversas formas geométricas.
Oralidade/fala: existe sequência, objetividade e clareza na
fala oral. O som da letra “R” quase não aparece na
pronúncia das palavras, exemplo: teis anos (três anos),
baço (braço), pimeira (primeira) e pédio (prédio).
Demonstrou interesse por histórias em outros idiomas como
inglês e espanhol. Após um período de estimulações ao
mundo letrado, Nicole começou a realizar atividades
espontâneas de escrita. As atividades de coordenação
motora fina estão em desenvolvimento, no início
demonstrou pouca força, mas atualmente já gosta de
realizá-las. Fazer letras do alfabeto no tabuleiro magnético
é uma das suas atividades preferidas no ambiente clínico.
O que prevalece na base da evocação da memória da
Nicole são as relações ligadas a situações e aos momentos
familiares. Essas são as que ela memoriza com maior
facilidade.
Consciência corporal e raciocínio lógico/matemático
Estão intimamente interligados e existe uma relação entre
as organizações psicomotora e a cognitiva, em especial a
relação entre inteligência lógico-matemática e dois
elementos básicos psicomotores que são: o esquema
corporal e a estruturação espacial. Tem noção de
quantidade, tamanho, sequência do maior para o menor e
vice-versa (1 até 10). Tem domínio assertivo até o número
10 a partir desses ainda está em apreensão. Às vezes se
perde na contagem pela pressa e agilidade no ato de
contar, mas já realiza comparações de ordem de grandeza.
Reconhece as seguintes notas de dinheiro: 2, 5, 10, 20, 50
e 100. Conseguiu organizá-las em ordem crescente,
confundindo apenas as de 20 e 50. Os conteúdos que se
relacionam a situações e pessoas conhecidas são
assimilados com extrema facilidade. Cito como exemplo
uma atividade desenvolvida em que tivemos que falar as
nossas idades para estabelecer relações de comparação e
ordem de grandeza. Nessa atividade Nicole decorou a
minha idade que só foi falada em apenas um momento e
soube com clareza estabelecer relações com a idade de
outras pessoas da sua família em atendimentos posteriores.
Já tem noção de períodos: manhã, tarde e noite. Tem noção
de primeiro/início e último/fim. Compara duas coisas em
relação ao tamanho. Exemplo: “Este é maior”. Sabe
resolver problemas simples relacionados a procurar objetos
no labirinto (atividade visual) e tirar objetos de frascos
pequenos.
Todas as sessões eram iniciadas com atividades de
concentração e raciocínio e isso colaborou para o
aprimoramento do seu vocabulário e de seu pensamento,
despertando-a para um maior tempo de foco e de atenção.
As atividades de sua escolha são bastante engajadas e
finalizadas com facilidade e muita concentração. Gosta de
desafios e é rápida e assertiva nas atividades de
adivinhação e montagem. Em diversos momentos tenta
fugir dos objetivos das atividades para realizar a sua
vontade. Hoje já conta com segurança até o número 20,
mas em algumas situações trocou a ordem de 3 números.
No início das sessões contava com segurança apenas até o
número 5. Foi trabalhada a noção de tempo e medida, o
que despertou o seu interesse para utilizar a régua e a fita
métrica, nesses momentos demonstrava interesse. Sempre
conta em voz alta e para aprimorar a sua compreensão foi
lhe ensinado a apontar para os objetos no ato de contar.
Em situações de jogos de competição quando percebe que
não irá ganhar tenta burlar as regras para que a sua
vontade esteja em primeiro lugar. Nesse quesito foram
realizadas diversas intervenções. Sabe realizar algumas
somas simples de números inteiros. Exemplos: 1 + 1 + 4 ou
2+2. Está em processo de aprendizado acerca da escrita
dos números. Em alguns momentos confunde a escrita das
letras e dos números. Reprodução de formas geométricas
em desenhos não são realizadas. Desenha pessoas e as
partes do corpo.
Sugestões e orientações para a família
• Incentivá-la a jogar e brincar com jogos de memória,
quebra-cabeça, adedonha, dama, xadrez e outros tipos de
jogos que estimulem o raciocínio lógico, memória e a
concentração;
• Manter hábitos e horários para realização de leituras,
brincadeiras livres e das tarefas de casa;
• Dizer palavras de incentivo e de motivação;
• Reconhecer e elogiar as realizações;
• Promover atividades de lazer em família;
• Inseri-la em atividades da rotina e organização da casa
como por exemplo na organização dos seus brinquedos e
do seu quarto, na realização de receitas em família e
também é importante dar responsabilidades e tarefas
simples. Essas atividades diárias colaboram para a sua
auto-organização, ampliando assim a sua concentração,
atenção, memória e internalização de regras.
• Dialogar e orientar como agir diante de situações do
cotidiano.
• Dar explicações mais elaboradas de questões do
cotidiano!
• Três quesitos são extremamente importantes para o
desenvolvimento da memória da Nicole: a qualidade da
alimentação, o prejuízo do excesso de tecnologia e a rotina
fixa de horários para dormir. A memória é a base da nossa
atividade mental.
• Nicole precisa ter clareza do que significa o não e a sua
importância para o seu desenvolvimento. O não jamais
poderá significar a possibilidade do sim. A tomada de
consciência dessa palavra colabora para o desenvolvimento
de uma personalidade que compreende os limites das
relações humanas. Ao compreender o real significado
dessa palavra, a criança compreende os limites e o que
significa ter liberdade. Ser livre é respeitar os limites dos
outros e isso envolve a formação do nosso caráter e da
nossa personalidade. Uma vida sem limites é uma vida que
tende a adoecer psiquicamente! Quando essa etapa está
solidificada, a criança se submete à autoridade de todos
que a ensinam.
Lembre-se que os “Estímulos fortes ou que se repetem com
frequência abrem novas trilhas” (Vigotski, 2018, p. 15).
Convém ressaltar que as recomendações apre sentadas
neste documento se referem ao momento atual e podem
estar sujeitas a mudanças futuras.
Considerações
Por meio da apresentação desse modelo de avaliação
psicopedagógica foi possível acompanhar os avanços da
criança e descartar possíveis diagnósticos equivocados.
Uma avaliação longitudinal acompanha de forma coerente a
dinâmica do desenvolvimento da criança, que é sem dúvida
marcada por crises. A avaliação que parte de uma
perspectiva de desenvolvimento consegue descrever com
clareza os diversos fatores que interferem diretamente na
qualidade do aprendizado da criança. Vale ressaltar que
esta criança, inicialmente, tinha uma suspeita de
diagnóstico do TEA – Transtorno do Espectro Autista – e
que ao longo do período de estimulações foi descartada
essa hipótese sugerida pela médica, uma vez que as
características eram transitórias e tinham relação com as
peculiaridades da história de vida desta criança.
Outra questão importante é que ao longo desses quatros
meses de construção desta avaliação foi realizado um
trabalho de conscientização sobre a importância da família
no desenvolvimento da criança. Nas reuniões com as
famílias foram discutidos três pontos que se relacionam ao
aprendizado da criança, são eles: a organização do sono, a
qualidade da alimentação e a rotina geral da criança. Sem a
compreensão destes três quesitos é difícil criar situações de
qualidade para o aprendizado da criança.
O objetivo aqui foi mostrar de forma prática a relevância da
Teoria Histórico-Cultural para a compreensão do
desenvolvimento integral da criança. Em muitos casos, a
medicalização é utilizada como um fim para se resolver
uma questão de ordem social, desta forma, não se trata a
raiz do problema, apenas as suas consequências.
O problema de analisar as diferenças de desenvolvimento
com raízes naturalistas já foi problematizado por Vigotski ao
descrever o problema central da defectologia. Esta área
estudava as diferenças no desenvolvimento de crianças
que na época era comum usar o termo “defeito”. Vigotski
(1929/2019) nos esclarece esta questão:

Tratamos de mostrar que a defectologia estuda o


desenvolvimento, que tem suas próprias leis, seu ritmo, seus
ciclos, suas desproporções, suas metamorfoses, sua
transferência dos centros e suas estruturas; e que é uma
esfera especial e relativamente independente do
conhecimento de um objeto profundamente peculiar. Na
esfera prática, na esfera da educação, como tratamos de
demonstrar, a defectologia tem diante de si tarefas cuja
solução exige o trabalho criador e a criação de formas
especiais. Para solucionar esses e outros problemas da
defectologia, é necessário encontrar um fundamento sólido
tanto para a teoria como para a prática. Com o fim de não
construir sobre a areia, para evitar o empirismo superficial e
eclético que a diferenciava no passado, para passar de uma
pedagogia terapêutica a uma pedagogia criadoramente
positiva... (p. 68)

Outro ponto importante é o equívoco na construção de


falsos diagnósticos que muitas vezes se restringem apenas
a situações estereotipadas, sem estabelecer relações com
o todo da sua história de vida e de seu desenvolvimento.
Compreender a criança como uma unidade é sem dúvida
investigar todos os aspectos que se relacionam à qualidade
de seu desenvolvimento. Questionar a visão de uma
Pedagogia ou Psicopedagogia terapêutica é partir do
princípio de que o desenvolvimento humano é dinâmico e
dialético. Por fim, é preciso compromisso ético no ato de
avaliar e principalmente na construção de um diagnóstico.
Referências
Costa, A. A., Pinto, T. M. G., & Andrade, M. S. (2013).
Análise histórica do surgimento da Psicopedagogia no
Brasil. Id on Line Revista de Psicologia, 1(20), 10-21.
https://idonline.emnuvens.com.br/id/article/view/234/258
(https://idonline.emnuvens.com.br/id/article/view/234/258)
Luria, A. R. (1992). A construção da mente. Ícone.
Moysés, M. A. A. (2001). A institucionalização invisível:
Crianças que não aprendem na escola. Mercado das
Letras.
Prestes, Z. R. (2012). Quando não é quase a mesma coisa:
traduções de Lev Semionovitch Vigotski no Brasil. Autores
Associados.
Tunes, E. (2003). Por que falamos de inclusão? Linhas
Críticas, 9(16), 5-12.
Vigotski, L. S. (2018). Imaginação e Criação na infância:
ensaio psicológico livro para professores (1ª ed., Z. Prestes,
E. Tunes, trad. rev. técnica). Expressão Popular.
Vigotski, L. S. (2021). Problemas de defectologia (1ª ed., v.
1., Z. Prestes, E. Tunes, trad. rev. técnica). Expressão
Popular.
Vigotski, L. S. (2019). Problemas fundamentais da
defectologia. In L. S. Vigotski (Orgs.), Obras Completas
Tomo V: Fundamentos de defectologia. UNIOESTE.
(Original publicado em 1929)
Vygotski, L. S. (1997). Obras Escogidas. Tomo Cinco:
Fundamentos de Defectologia. Visor. (Original publicado em
1983)

Notas
1 Documentos com diversas questões sobre o
desenvolvimento inicial e a história de vida da criança e
também sobre a visão dos responsáveis a respeito da
educação e da instrução dos filhos.

Doutoranda em Educação - Programa de Pós-Graduação


em Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal Fluminense; Mestra em Psicologia (UniCeub);
Pedagoga; Psicopedagoga, Brasília, DF, Brasil

Correspondência
Ana Caroline Nunes Costa
SQN 112, bloco E, apto 407
Brasília, DF, Brasil – CEP 70762-050
E-mail: [email protected]
(mailto:[email protected])
Artigo recebido: 01/08/2023
Aceito: 30/11/2023
Conflito de interesses: A autora declara não haver.

Trabalho realizado na Clínica psicopedagógica Stimulato,


Brasília, DF, Brasil.

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