Dramas Da Obsessão

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Advertência

Aos médiuns em geral dedico estas páginas, que um sagrado


sentimento de dever me vem perseverantemente inspirando, em uma
época em que as mais graves responsabilidades pesam sobre os seus
ombros. Dirijo-me, porém, particularmente, àqueles que, possuindo
faculdades mediúnicas, desejem torná-las em verdadeiro traço de
união entre os mundos objetivo e invisível, os quais se completam e
interpenetram, não obstante se comprazerem os homens no
alheamento dessa amplitude em que se agitam; aos que desejarem
convertê-las em possibilidades de instrução e fraterno auxílio
àqueles que sofrem e choram na desesperança do alívio terreno.
Sabido é, entre espíritas fiéis aos seus princípios, que todos os
homens são médiuns, ou, pelo menos, possuem a possibilidade de se
deixarem influenciar pelas individualidades invisíveis, sejam estas
esclarecidas, medíocres ou inferiores. Todavia, sabido será também
que mais depressa a individualidade humana se permitirá envolver-
se com as últimas que com as primeiras. Os múltiplos casos e
gêneros diversos de obsessão, esse flagelo que assola os planetas
onde grandes criminosos, grandes culpados e viciosos reencarnam,
aglomerados para os devidos resgates do passado e consequente
progresso; os complexos dos noticiários macabros, nos quais avultam
todas as modalidades da delinquência e do insulto à harmonia da
sociedade, do crime e da desesperança sem tréguas, muitas vezes
tiveram origem na influência de seres invisíveis sobre os portes
mediúnicos ignorados ou rejeitados, do delinquente, pois não
esqueceremos que se trata de forças tão naturais na espécie humana
como qualquer outro dos cinco sentidos que integram a mesma
personalidade humana.
A presente tese será capaz de oferecer ao observador estudos
interessantes, visto aqueles fatos serem inseparáveis da vida diária
da maioria das personalidades de que se compõe a sociedade terrena.
Estudemos, pois, alguns dos variados aspectos do fenômeno
mediúnico ligado à obsessão, em fraterno convívio de nossas mentes,
durante o decorrer das presentes páginas.

Adolfo Bezerra de Menezes


Rio de Janeiro, 14 de março de 1964.
Leonel e os judeus

Primeira Parte

Nos serviços do Consolador

O Espírito mau espera que o outro, a quem ele quer mal, esteja preso ao
seu corpo e, assim, menos livre, para mais facilmente o atormentar,
ferir nos seus interesses ou nas suas mais caras afeições.

(A K – O Evangelho segundo o Espiritismo, C . X, 6.)


I

Acerca desse sexto sentido que toda a Humanidade possui, a


despeito de a maioria dos homens ignorar que o possui, uma vez que
se desconhecem estes a si próprios, relatarei um fato que ficará como
exemplo, ou padrão, para quantos análogos o leitor encontrar nos
noticiários macabros da imprensa mundial, como da imprensa
brasileira em particular, visto que, ao que se observa, os portes
mediúnicos são ainda mais vastos no Brasil do que em outros
agrupamentos terrenos, mais suscetível o seu povo, portanto, por
mais apaixonado e vibrátil, de se deixar influenciar pelo Invisível.
Será esse dom entre a grande massa dos brasileiros, porém, um
defeito? Será uma qualidade?
Diremos tão somente, furtando-nos a uma apreciação
precipitada, que apenas se trata de um dom natural, e que ao seu
portador cumpre não torná-lo causa de dissabores ou prejuízos para
si ou para os outros, sem avançarmos na assertiva de que seja uma
felicidade ou uma desdita o fato de possuí-lo.
A nós, no entanto, os trabalhadores do plano espiritual, cumpre
o dever de esclarecer o leigo, como o espírita, de que a dita
propriedade deverá ser cultivada sob princípios honestos e rigorosos,
a fim de que não venha a se tornar motivo de desordem na boa
harmonia íntima ou social do seu portador.
Um homem poderá possuir, por exemplo, dons literários, o que
é sempre admirável, enobrecedor. Na hipótese de não os cultivar
honestamente, dirigindo-os sob princípios consagrados de Arte,
Moral e Beleza, poderá desvirtuá-los e até servir com eles à
deseducação dos leitores, contribuindo para o rebaixamento mental,
moral e intelectual dos mesmos se, em vez de obras excelentes,
passar a produzir literatura amoral, frívola, perniciosa ou
gramaticalmente bastarda, enquanto a si mesmo se degradará,
tornando-se indigno deles.
A palavra, vibração divina do pensamento, a qual, por sua vez,
será a essência do próprio Ser supremo refletida na sua criatura, foi
concedida ao homem pelas Leis eternas da Natureza, para facilitação
do seu progresso e engrandecimento, recurso precioso com que
alindará a própria personalidade, para atingir finalidades gloriosas.
Não obstante, há Espíritos que reencarnam padecendo a penalidade
da mudez, porque dela se serviram, no passado, para intrigas e
calúnias, blasfêmias e insultos, discursando impropriamente, ainda,
diante de assembleias numerosas, para incentivarem o erro e o
crime, a hostilidade e a revolta, a inquietação coletiva e o assassínio
nas guerras e até mesmo o desrespeito à ideia de Deus!
De forma idêntica será o sexto sentido de que tratamos, isto é, a
intuição, ou a mediunidade em geral: é um dom, eis tudo! Concedido
pela Criação para a edificação, o progresso e a felicidade do seu
portador, passível de progredir em possibilidades por meio do
exercício, do tempo e das reencarnações, algo mais delicado,
profundo e superior que os demais sentidos e que necessitará ser
devidamente amado, respeitado e cultivado dentro dos postulados da
Moral, da Justiça, do Amor e da Fé, a fim de que não se anule, como
se anularia a visão de uma criatura que desde o nascimento vivesse
às escuras, e se não resvale ao choque das impurezas humanas. Isso
mesmo já vo-lo expôs com clareza absoluta o Instrutor por excelência
da Terceira Revelação, encarnado na prudência e na austeridade de
Allan Kardec. Todavia, porque vimos decifrando certa inércia mental
entre os aprendizes atuais da mesma Revelação, eis-nos aderindo a
um movimento de reexplicações daquilo mesmo que há um século foi
dito e que agora procuraremos algo encenar ou romantizar, a fim de
divertir uma geração quando tentamos instruí-la no melindroso
assunto, geração que não dispensa a positivação dos exemplos. Aliás,
o exemplo será, efetivamente, o melhor método... e gostamos de
aplicá-lo sempre que no-lo permita o ensejo, por mais fácil reter o
aprendiz, na memória, o ensinamento necessário, por meio dele. Há
dois mil anos, o Mestre da seara em que militamos criou a suavidade
das parábolas, cujos atraentes rumores ainda ecoam em nossa
sensibilidade, ensinando-nos lições inesquecíveis. Seus obreiros do
momento criam, ou traduzem da realidade da vida cotidiana, tal qual
Ele o fez, a exemplificação dos romances, ou lições romantizadas,
expondo teses urgentes, ensinamentos indispensáveis, no sabor de
uma narrativa da vida comum. É o mesmo método de há dois mil
anos, criado pelo divino Mestre, para instrução urgente e fácil das
massas...
Assim sendo, o caso que vos contarei em seguida é
perfeitamente verdadeiro, e não uma ficção. Corrobora ele a assertiva
de que a mediunidade é dom natural que convirá ao seu portador
não ignorar que a possui, mas sim estudá-la, aceitá-la, cultivá-la,
educá-la em princípios sérios a fim de se eximir a perigos fatais.
A personagem, aqui figurada com o nome de Leonel, possuía
dons mediúnicos. Tratando-se, porém, de um livre-pensador, cujo
orgulho repudiava qualquer tendência para as questões metafísicas, e
que ao Espiritismo preferia ridiculizar em um combate chistoso e
desprezível, ignorava-se a si mesmo, desconhecendo,
voluntariamente, que em sua própria natureza humana carregava a
possibilidade de se deixar influenciar e dirigir pelos habitantes do
mundo invisível, cuja existência absolutamente não admitia.
Assim sendo, passemos à sua atormentada história ao lado dos
seus perseguidores judeus do plano invisível.
II

Pelo terceiro decênio deste século XX, eu atendia ao honroso


mister de conselheiro e médico espiritual em certo Posto de
Assistência aos Necessitados, para receituário e beneficências físicas,
morais e espirituais, anexo a um Grêmio de aprendizes espíritas
dedicadíssimos aos deveres abraçados perante o Evangelho, os quais
se devotavam aos serviços de socorro ao próximo, inspirados em um
sentimento de fraternidade verdadeiramente encantador, e cuja
singeleza de caráter, atingindo as raias da humildade cristã, para eles
atraía as simpatias do Além esclarecido e virtuoso.
Os serviços em geral, verificados nesse núcleo, programados
pelo venerando Espírito Bittencourt Sampaio, por intermédio de um
médium explícito e positivo, eram diários e muito eficientes, o que
sobremodo nos satisfazia por nos permitir ensejos variados na
difusão e prática dos serviços do Consolador.
Era meu assistente, por esse tempo, uma entidade em
aprendizado, atualmente reencarnada, generosa e dedicada, que
adotara o prenome de Roberto, conquanto essa não fosse realmente
a sua identidade, além de outros que não precisaremos nomear.
Certa noite, após o receituário, deteve-se o médium, responsável
pelo gabinete em que se processava o melindroso mandato, na
súplica ardorosa para visitação espiritual a um ambiente doméstico
atacado de singulares manifestações de provação, intensas e
dolorosas. Uma carta chegara do sul do país às mãos do médium,
enviada pela caridosa gentileza de um familiar do mesmo
instrumento, solicitando seus préstimos de intermediário entre os
poderes invisíveis e a Terra para alívio de criaturas que se debatiam
contra torrentes de desesperações positivamente irremediáveis por
outra forma. Leu-a o médium para mim, por entre as irradiações da
prece caritativa... e eu, captando o assunto por meio de suas
vibrações, decalquei-a em minha mente desde então, arquivando-a
de molde a me permitir hoje reerguê-la dos escombros mentais, a fim
de transcrevê-la neste momento. Particularizava-se a missiva pela
exposição seguinte:
“Rogo algo tentares, como espírita que és, em benefício da
família do nosso amigo Leonel. Passam-se fatos verdadeiramente
desorientadores, deixando perplexos os amigos da casa. Desde a
morte do pobre Leonel, verificada, como sabes, por um suicídio em
tão trágicas condições, a família inteira sente ímpetos para o suicídio.
Não ignoras que sua filha Alcina suicidou-se também, dez meses
depois dele próprio. Agora é seu filho Orlando que deseja morrer,
havendo já tentado algumas vezes o ato terrível! Vivem todos a
chorar desesperados, sem ânimo para a continuação da existência.
Somente a viúva de Leonel consegue algo de estimulante para se
impor à situação, que é a mais anormal possível. A miséria lhes bate
à porta, pois nada possuem e ninguém, senão ela, trabalha.
Finalmente, peço-te que rogues a Deus por eles, já que cultivas a fé
em teu coração, porquanto a Terra é impotente para deter a
avalanche de desgraças que sobre essa pobre gente se arremessou.”
Ora, minutos antes de iniciado o meu expediente no referido
Centro, fora eu prevenido de que essa carta havia sido escrita ao meu
médium e, portanto, recebi-a sem surpresa, por meio deste.
Procurara-me uma entidade espiritual denominada Ester, formosa e
redimida, cujo aspecto angelical atraía veneração de quantos se lhe
aproximassem, a qual me asseverara haver inspirado a carta a quem
a escreveu, assim provocando o trabalho que faríamos, visto estar
ligada aos obsessores de Leonel e a este próprio por laços espirituais
seculares, e que, agora, apresentara-se o momento oportuno de agir
em socorro da falange litigante. Rogava, por isso, nosso concurso,
uma vez que não poderia operar sozinha, e ainda porque os serviços
de além-túmulo são produtos de equipe e jamais de um trabalhador
isolado.
Ambos os apelos – o de Ester e o da carta – eram
impressionantes e impossível seria não atendê-los, tentando algo em
benefício dos sofredores. Os serviços ficaram, assim, sob meu
critério, dadas as minhas atividades naquele núcleo espírita, muito
embora fraterno concurso alheio me coadjuvasse. Submeti o
aparelho mediúnico à letargia branda do transe, mantendo-o a mim
ligado pela troca das vibrações necessárias à comunicação que se
processava; arregimentei os assistentes espirituais auxiliares, de
plantão no Centro naquela noite, e partimos para o endereço
apontado, em inspeção indispensável. Impossível, porém, nos fora ali
penetrar pelos meios comuns, tal a densidade vibratória asfixiante do
recinto, o clima obsessor que expandia malefícios em derredor do lar
sinistrado pela onda de tragédia que a ele se adaptava. Eu levara, no
entanto, em nossa comitiva, um indígena brasileiro da raça Tamoio,
Espírito hábil, honesto e obediente, que voluntariamente se associara
à nossa falange, desejando servir ao Bem, e mais o nosso assistente
Roberto, a quem eu muito amava e em quem confiava plenamente.
Ambos ali penetraram, sacrificando a própria harmonia vibratória, a
fim de se inteirarem minuciosamente do que realmente se passava.
Retornaram logo após ao Posto Mediúnico de onde haviam
partido chocados e ansiosos. E Roberto, que chefiava a expedição,
tomou a palavra (transmitiu as irradiações mentais),
desincumbindo-se do noticiário sobre o reconhecimento efetuado:
— Trata-se de um caso de obsessão coletiva simples, meu caro
irmão..., carente de intervenção imediata de socorro espiritual, a fim
de que se evitem outros suicídios na família... São quase todos os
membros dessa numerosa família, constituída do velho casal e dez
filhos menores, portadores de faculdades mediúnicas ignoradas...
Não cultivam o estudo edificante para o saneamento mental, nem a
meditação sobre assuntos elevados do espírito, e tampouco a prece...,
tornando-se, por isso mesmo, campo raso para os assédios das
trevas..., pois que também não alimentam sentimentos religiosos de
qualquer espécie, apenas afetando um interesse convencional pela
crença católica romana...
— Dizes, pois, meu caro Roberto – intervim, procurando
inteirar-me dos detalhes a fim de melhor estabelecer o programa de
operações beneficentes –, ter havido, com efeito, mais de um suicídio
no seio dessa pobre família?...
— Sim! Inteirei-me de que o chefe da mesma família, de nome
Leonel, pôs termo à existência terrena, desfechando um tiro de
revólver no ouvido direito, e que sua filha primogênita, jovem de 20
primaveras, lhe imitou o gesto alguns meses depois, servindo-se,
porém, de um tóxico violento... Inteirei-me ainda de que outro filho
seu, de 15 anos, tentou igualmente o sinistro ato, salvando-se, no
entanto, graças à ação prestimosa de amigos agilíssimos, que
evitaram fosse ele colhido por um trem de ferro, pois o tresloucado
lançou-se aos trilhos, enfrentando o comboio, que se aproximava...
— E como te inteiraste de que se trata de ação obsessora
simples, sobre médiuns que ignoram estar sob influências
maleficentes da sugestão extraterrena, visto que vivem alheios aos
fenômenos e às observações espíritas?...
— Vimos ambos os suicidas ainda retidos no próprio teatro dos
acontecimentos: Leonel, vagando, desolado e sofredor, a bradar por
socorros médicos, traindo nas próprias repercussões vibratórias o
gênero da morte escolhida sob pressões invisíveis... e Alcina, a filha,
com o perispírito ainda em colapso, desmaiada sob o choque violento
do ato praticado... Distinguimos também os obsessores...
— E como se apresentam estes?... Odientos, vingativos?...
Sofredores, que destilam o vírus mental e vibratório contundente,
sem saberem o que fazem?... Afeiçoados às vítimas por simples
afinidades de caráter, ou índole?... Pois sabemos que até mesmo um
sentimento de amor – ou paixão – mal orientado ocasionará
desastres como esses...
— Não, senhor! – explicou vivamente o dedicado Assistente. –
Trata-se de algo ainda mais doloroso! São ódios, vinganças pessoais
de um passado que se me afigura intensamente dramático! Os
obsessores pertencem às falanges do antigo Judaísmo! Ainda
conservam nas irradiações mentais, refletindo sobre a sensibilidade
do perispírito, as sombras, as imagens, mui concretizadas, da
indumentária usada pelos judeus de Portugal, no século XVI... Eu
também vivi nessa época, meu caro irmão, na Espanha como em
Portugal..., pertenci igualmente ao Judaísmo... e fácil me foi
compreender o amargor da situação que acabo de presenciar...
Compreendi, efetivamente, ser gravíssima a situação de
encarnados e desencarnados enleados em tão incomodativas teias,
situação que bradaria por intervenção enérgica e imediata.
III

No Além existem regras de trabalho admiravelmente


estabelecidas, equivalentes a leis, mediante as quais os trabalhadores
do Bem poderão tomar as providências que a sua responsabilidade,
ou competência, entenderem devidas e necessárias. Geralmente
aplicam-nas, as providências, Espíritos investidos de autoridade,
espécie de chefes de departamento ou de seção, tal como os
entendem os homens, sem que para tanto sejam necessários
entendimentos prévios com outras autoridades superiores, ou seja, o
regime da burocracia, de que os homens tanto abusam nas suas
indecisões, e o qual é desconhecido no Espaço. De outro modo,
encontrando-se os referidos serviços do Invisível sob a
jurisprudência da fraternidade universal, quaisquer servidores
estarão em condições de resolver os problemas que se apresentam no
seu roteiro, desde que para tanto investidos se encontrem daquela
autoridade que, no Além, absolutamente não é o cargo que confere,
mas o equilíbrio consciencial e moral de que disponham.
Tendo a meu cargo um desses setores de serviço que, pela
magnanimidade do Senhor e Mestre, me fora confiado como
estímulo e bendito ensejo para os labores de que me adviria o
progresso pessoal, do qual tanto carece o meu Espírito, não vacilei
nas medidas a tomar, visando a evitar novo caso de suicídio naquela
família, desgraça que, por meio do impressionante relatório do meu
jovem Assistente, pressenti iminente no referido domicílio...,
porquanto, além dos inimigos obsessores, sombrios e odiosos desde
quatro séculos, existia ainda a permanência dos dois suicidas citados,
cuja pressão magnética inferior, corrosiva, por si só seria passível de
contágio mental nos demais afins, levando-os, sem mesmo disso se
aperceberem, a imitar-lhes o gesto.
O suicídio não é uma lei, não sendo, por isso mesmo, imposto a
quem quer que seja pela harmoniosa legislação divina, como o
seriam, por exemplo, o resgate e a reparação da prática de um ato
mau ou a morte natural do corpo físico terreno. Contrariamente, ele
é ato reprovável pela mesma legislação, da inteira responsabilidade
de quem o pratica. E crede, meus amigos, conquanto o coeficiente
dos suicídios no vosso planeta se apresente calamitoso, os obreiros
do mundo invisível tudo tentam para dele desviarem os homens,
fazendo-o com muito enternecida boa vontade! Cumpre, no entanto,
a estes cooperarem com aqueles a fim de que tão complexo malefício,
atestado deplorável da inferioridade humana, seja definitivamente
banido da sociedade terrena.

***

Voltei as atenções para o médium que solicitara assistência para


o momentoso fato, e aconselhei psicograficamente:
“Reuni vossos companheiros mais afins para uma sessão íntima,
amanhã, extraordinária, especial, para tratarmos desse caso. O
menor número de adeptos possível, e absolutamente nenhuma
assistência, senão apenas o presidente e os seus médiuns. Não
prescindiremos da vossa colaboração fraterna. Meditai e orai, a fim
de vos equilibrardes em harmonizações com as forças benfazejas do
Alto, pois estareis exercendo a Fraternidade no que de mais sublime
e real ela encerra, visto que conjugareis esforços na prática de
operações transcendentais, cujo instrutor maior é o próprio Mestre
da Humanidade, o Senhor Jesus Cristo!”
Eu sabia que aqueles singelos, mas dedicados aprendizes,
acatariam fielmente as minhas recomendações, portando-se à altura
da confiança que neles depositávamos, e despreocupei-me dessa
particularidade, certo de que – ambiente doutrinário, faculdades
mediúnicas a contento, amor ao trabalho, boa vontade em servir ao
Bem servindo ao sofredor, circunspecção nos atos – todos os
dispositivos, necessários aos grandes feitos espíritas, encontraríamos
nas personalidades daquele punhado de discípulos cujos labores se
verificavam continuamente sob rigorosa vigilância espiritual.
Encerrei, portanto, minhas atividades no referido Centro, por aquela
noite, e observei a Roberto:
— Perseverai, tu e Peri, por afastardes do cenário familiar de
Leonel o chefe dos obsessores em primeiro lugar – pois certo estava
eu de que a obsessão coletiva, exercendo ação múltipla, dispõe
sempre de um orientador, que será o mais inteligente ou cruel dentre
os obsessores, com ascendência irresistível sobre os demais. –
Detende-o, aprisionando-o até novas instruções, no recinto deste
mesmo Centro, cuja ambiência respeitável, legitimamente
apropriada para o caso, se acha em condições de hospedá-lo...
Em seguida, indiquei providências para a remoção de Leonel e
sua filha do ambiente doméstico para regiões condizentes com suas
afinidades, a bem da tranquilidade dos demais membros da família
e, outrossim, visando à recuperação de ambos para o estado
consciente do Espírito desencarnado.
Prontificou-se o meu Assistente ao mandato espinhoso e partiu
acompanhado do amigo Peri. Tais operosidades, no entanto, são
melindrosas e de difícil realização, para os Espíritos delas
incumbidos, tal a catequese aos malfeitores terrenos por
missionários cujas armas serão apenas a fé na vitória do Bem e a
certeza do auxílio celeste, e cujas insígnias serão a lembrança do
sacrifício, na cruz, do Cordeiro de Deus.
IV

Geralmente, a caça a obsessores mui trevosos é levada a efeito


por entidades espirituais pouco evolvidas, conquanto já regeneradas
pela dor dos remorsos e pela experiência dos resgates, ansiosas pela
obtenção de ações meritórias com que adornem a própria
consciência, ainda tarjada pela repercussão dos deméritos passados.1
Efetuam-na, porém, invariavelmente, sob direção de entidades
instrutoras mais elevadas, subordinadas todas a leis rígidas,
invariáveis, as quais serão irrestritamente observadas. Essas leis são,
como bem se perceberá, as normas divinas do Amor, da Fraternidade
e da Caridade, que obrigarão os obreiros em ação às mais patéticas e
desvanecedoras atitudes de renúncia e abnegação, a fim de que não
deixem jamais de aplicá-las, sejam quais forem as circunstâncias.
Muitos desses operadores possuem método próprio de agir e os
instrutores responsáveis pelo trabalho deixam-nos à vontade dentro
do critério das leis vigentes, tal como a equipe de professores que
ensinassem letras, ciências etc., mantendo cada um o seu próprio
método, embora observando todas as leis da pedagogia ou do critério
particular de cada matéria.
O meu jovem Assistente era entidade amável e humanitária, que
fora médico abnegado em sua última peregrinação terrena, e
portadora de fina educação social, visto que pertencera a uma estirpe
de nobres europeus. Como Espírito não se especializara
propriamente em casos de obsessão. Especializara-se, todavia, em
casos pertinentes ao suicídio, como resgate, ou reparação, de um
passado em que igualmente se arrojara a tão nefasto abismo, razão
pela qual o víamos agora envolvido no caso de Leonel. De outro
modo, tão amorável e atraente se mostrava essa Entidade, tão
cativante a sua simpatia pessoal que frequentemente eram
requisitados os seus serviços, pelos tutelares do Invisível, para
missões de catequese entre Espíritos em geral e também entre
obsessores, os quais mais ou menos o acatavam, dispondo-se às suas
advertências conselheiras. Todavia, nem sempre a irradiante
bondade desse jovem seria suficiente para deter os arremessos do
ódio obsessor. Necessárias se tornariam, por vezes, medidas outras,
incompatíveis com a doçura do seu caráter. Então dispúnhamos de
individualidades da categoria de Peri, a qual, bondosa e incapaz de
arbitrariedades, exercia a energia militar sempre que necessário –
como antigo chefe de hordas guerreiras da Arábia, que fora em
existência remota e, mais tarde, como cacique da tribo dos Tamoios.2
Acresce a circunstância de que as entidades obsessoras tão
materializadas permanecem dentro da própria inferioridade de
princípios, tão vinculadas ao mal se deixam ficar que, a fim de servi-
las, auxiliando-as a se deterem no declive em que resvalam, nos
obrigaremos a desempenhos assistenciais igualmente materializados,
assaz grosseiros para um Espírito. Tratar com tais vultos será como
tratar com homens rudes, inferiores de caráter, embaraçados no
apoucamento das paixões e dos preconceitos.
Peri era especializado em tarefas tais e possuía métodos
particulares, os quais aplicava com eficiência, sempre que necessário.
Trazia às suas ordens pequeno pelotão de auxiliares, que,
obedecendo-lhe fielmente, tais os milicianos ao seu general, junto
dele desempenhavam concurso valioso de proteção ao próximo,
enquanto, assim agindo em defesa dos mais fracos, reparavam
deslizes graves de um passado reencarnatório remoto, como
explicamos para trás.
Dadas que foram ao meu assistente recomendações
convenientes, retirei-me para a Espiritualidade, a fim de melhor me
orientar sobre as atitudes a tentar em benefício das personagens
desse drama que se me afigurava profundo.

1 - N.E.: Os médiuns bastante dedicados à Causa, e cujas experimentadas forças morais e


psíquicas lograrem possibilidades, igualmente prestam tais serviços, durante o sono
noturno, que os instrutores espirituais tratam de aprofundar quanto possível.
2 - N.E.: O nome Peri encobre individualidade espiritual indígena, que não desejamos
identificar, já reencarnada. Sua existência nas matas brasileiras traduz estágio de repouso e
esconderijo, necessária para se furtar às continuadas perseguições obsessoras que, como
antigo chefe de tribos árabes guerreiras, adquirira com as atrocidades praticadas. Não seria,
portanto, Espírito primitivo, como também acontecia com muitos outros índios brasileiros e
escravos africanos no Brasil.
V

Os métodos para a catequese de obsessores são variados,


dependendo de circunstâncias especiais, que se subdividem entre a
natureza do caráter de cada um, a especialidade do catequista e
múltiplas modalidades do momento. A própria reencarnação é um
dos recursos aplicados, pois existem obsessores tolhidos em uma
reencarnação para a experiência da catequese, quando, então, todas
as facilidades para um aprendizado eficaz das leis do Amor e da
Fraternidade lhes serão apresentadas. Muitos, só mais tarde, em
encarnações posteriores, estarão em fase de reparações e resgates.
Fora necessário, primeiramente, conceder a esses infelizes trânsfugas
do dever possibilidades de sofrer, posteriormente, a consequência
dos seus atos maus, amparados pela resignação, pela esperança e o
desejo de emenda, a fim de que o seu calvário não se tornasse
demasiadamente angustioso e, portanto, contraproducente... pois
assim rezam as leis do Amor e da Caridade, a que tais trabalhos se
subordinam. Trata-se, como vemos, de tarefas penosas, complexas,
que requerem firmeza de vontade, coragem moral e muito amor à
causa por parte da entidade instrutora operante, seja desencarnada
ou encarnada.
As leis da Fraternidade, pelas quais se conduzem os obreiros do
mundo espiritual, estabelecem assistência incansável ao obsessor, no
intuito de convencê-lo à reforma de si mesmo. Jamais o violentam,
porém, a essa meritória atitude, quando o compreendem ainda não
preparado pela ação fecunda dos remorsos. Existem obsessões
baseadas no ódio e no desejo irrefreável de vinganças, insolúveis em
uma só etapa reencarnatória, as quais serão incomodativas,
desesperadoras, podendo levar séculos exercendo o seu jugo sobre a
vítima, estendendo-o mesmo à vida no Invisível e invertendo o
domínio da possessão em existências subsequentes, até que os
sofrimentos excessivos, provenientes de tão ardentes lutas, bem
assim a reflexão e o desejo de emenda, obriguem os litigantes à
renúncia do passado pela abnegação do porvir, o que os fará
reencarnar unidos pelos laços de parentesco muito próximo –
constantemente como irmãos consanguíneos e até como pais e filhos,
e mesmo cônjuges – a fim de que mutuamente se perdoem e se
habituem a um convívio pessoal, a uma junção familiar persistente,
que, conquanto se apresente como provação, e não raro como
expiação, acaba por estabelecer vínculos de afetividade,
indestrutíveis em suas almas, desaparecidas, então, completamente,
as antigas animosidades. Existem, outrossim, as paradoxais
obsessões por amor. Exercem estas, algumas vezes, perseguições
igualmente seculares, quando uma das duas partes interessadas
perjurou, falindo nos deveres de fidelidade. Tão cruéis e execráveis se
apresentam esses tipos de obsessão por amor ferido e despeitado,
quanto o são os motivados pelo ódio, e então grandes dramas, dignos
de estudo e comentários, se verificam nas sociedades terrena e
espiritual, por meio de situações agitadas, infelizes, que somente o
amor de Deus suavizará. E até obsessões sexuais, quando o atuante
invisível, que tanto poderá ser um Espírito denominado “masculino”
como um denominado “feminino”, dominar um homem como uma
mulher – valendo-se das tendências dos caracteres inclinados aos
arrastamentos primitivos, às complexidades do sexo –, induzi-la-á a
quedas deploráveis perante si mesma, o próximo e a sociedade, tais
como o adultério, a prostituição, a desonra irreparável, pelo simples
prazer de, pelas vibrações materializadas da sua presa, que lhe
concede clima vibratório propício, dar livre curso a apetites
inferiores dos quais abusou no estado humano e os quais,
degradantemente, conserva como desencarnado, em vista da
inferioridade de princípios que gostosamente retém consigo, o que
lhe estimula a mente, inibindo-a do desejo de progresso e iluminação
espiritual. Geralmente exercida tão só por intermédio da telepatia ou
da sugestão mental, é bem certo que o obsessor estabelece uma
oculta infiltração vibratória perniciosa, sobre o sistema nervoso do
obsidiado, contaminando-lhe a mente, o perispírito, os pensamentos,
até o completo domínio das ações. Tais casos se apresentam
dificilmente curáveis, não somente por aprazerem às vítimas
conservá-los, como por ser ignorada de todos essa mesma infiltração
estranha, e mais particularmente porque o tratamento seria antes
moral, com a reeducação mental do enfermo por meio de princípios
elevados, que lhe faltaram, não raro, desde a infância.
Refutará o leitor, lembrando que, assim sendo, ninguém terá
responsabilidades nos erros que sob tais influências cometer.
Acrescentaremos que a responsabilidade permanecerá também
com o próprio obsidiado, visto que não só não houve a verdadeira
alteração mental como também nenhum homem ou mulher jamais
será influenciado ou obsidiado por entidades dessa categoria, se a
estas não oferecer campo mental propício à penetração do mal, pois
a obsessão, de qualquer natureza, nada mais é que duas forças
simpáticas que se chocam e se conjugam em uma permuta de
afinidades.
Prosseguindo, lembraremos ainda certas obsessões de que
tratam os Evangelhos, as quais tornam o obsidiado surdo e mudo,
geralmente desde o nascimento ou a infância; e muitas vezes, quando
passais por um desses infelizes na via pública, longe estareis de
compreender que vos encontrais diante de um doente psíquico, e não
propriamente físico, de um obsidiado, que vem sendo atormentado
desde o estágio do Invisível, durante a desencarnação, e cuja
consciência e vibrações, acometidas de mil prejuízos daí originados,
somente conseguiram modelar para sua reencarnação expiatória um
feto – ou corpo – apropriado ao seu demérito consciencial. Casos há
curáveis, neste exemplo, com a retirada dos algozes, consoante a
prática o tem demonstrado. A maioria, no entanto, não será curável,
uma vez que aí se enquadrarão também os delatores, os caluniadores
do passado, grandes intrigantes, maldizentes e blasfemos, aqueles
que abusaram do dom da palavra para desabonarem o próximo,
torturar os corações, escandalizar a sociedade em que viveram.
Aqueles a quem destarte feriram, incapazes da magnificência do
perdão, tornados inimigos poderosos, rodeiam-nos com represálias
terríveis desde antes da reencarnação, perseguindo-os, muitas vezes,
durante etapas longas, mesmo durante séculos. E a lei da Criação
assim o permite para que as criaturas, à custa da própria experiência,
aprendam a considerar as leis do Dever e da Justiça, únicas que lhes
concederão situação digna no seio das sociedades em que viverem.
“A cada um segundo as próprias obras”, eis a sentença, ou lei,
exposta por Jesus, que previne contra infrações tais.
Não obstante, nem sempre os obsessores serão entidades
absolutamente más. Muitas serão, ao invés, grandes sofredoras,
almas tristes e doloridas, feridas, no pretérito de existências
tumultuosas, pela ingratidão e a maldade desses que agora são as
suas vítimas, capazes de grandes atitudes afetivas para outrem que
não o seu inimigo a quem obsidiam, e não raro também foram
homens intelectualmente esclarecidos na sociedade terrena, mas a
quem escasseou a sublime moral da fraternidade evangélica. Não
deixaremos de lembrar ainda aqueles que são “mandados” por
outrem a obsidiar alguém, por antipatias, despeito ou mesmo ódio,
ordem que também poderá ser expedida por um desafeto encarnado,
durante o sono corporal. Tais perseguidores agem em torno das suas
presas obedecendo, portanto, a ordens de terceiros, sem que a menor
animosidade os impelisse ao ato, senão a obediência a uma entidade
terrena ou invisível, a quem renderão homenagens e por quem
nutrirão consideração. Serão, então, como uma variante daqueles
assalariados terrenos, que, por uma paga, cometeriam qualquer
espécie de vileza contra um estranho, de quem nenhuma queixa
teriam. A invigilância, o desajuste mental do obsidiado, na sua vida
cotidiana, darão ensejos a tal possibilidade, apresentando-se esse
caso, então, como consequência lógica da sua incúria no
cumprimento dos deveres, e não como inevitáveis resgates ou
expiações de vidas pretéritas.
Não nos esqueçamos daquelas que têm origem no pensamento
de atração da própria vítima, cuja atitude mental reteve junto de si o
Espírito de um inimigo ou um rival, de um desafeto ou de um ser
querido, os quais, jungidos às suas ondas de atração, de tal sorte se
adaptam a elas que terminam por infelicitá-las com sua presença
permanente, pois que tais entidades não estarão, absolutamente, em
condições de beneficiar alguém com as próprias irradiações.
Geralmente curáveis por meio da prece, da meditação sadia e de
uma doutrinação elevada e amorosa, tais obsessões, que melhor
qualificaremos de “atuação” ou “assédio”, uma vez combatidas
trazem a particularidade de beneficiar melhor o obsessor do que o
próprio obsidiado. Este atrairá, fatalmente, novas atuações das
sombras, dado que se não dedique decididamente à prática do bem
para a renovação dos próprios valores morais, enquanto aquele,
pertencendo à classe humílima do Invisível, grandemente sofredor
quase sempre, e ignorante de princípios redentores, ferido por
injustiças e menosprezo da sociedade terrena em que viveu, será
encaminhado a um reajustamento conveniente (comumente esse
reajustamento será efetivado pela reencarnação), desde que
demonstre desejo sincero de emenda, sendo ele mais infeliz e
ignorante, conforme acima asseveramos, do que mesmo mau.
A todos esses desarmonizados das leis da Fraternidade deverão
os servos do Senhor – encarnados e desencarnados – esclarecer ou
proteger com dedicações incansáveis, paciência infatigável,
desprendimento e desinteresse, visando não somente a méritos para
si próprios, mas, acima de tudo, ao cumprimento de sagrados
deveres diante do Todo-Poderoso, que estabeleceu a justiça do
auxílio do mais forte ao mais fraco, do esclarecido ao ignorante,
segundo rezam os dispositivos da lei de amor ao próximo como a si
mesmo.
VI

Urgia retirar do seio da infeliz família de Leonel os inimigos


invisíveis que a atormentavam. Repugna sempre, porém, às
individualidades já esclarecidas, admitir nos serviços de beneficência
ao próximo quaisquer atos de violência contra o mesmo. Certamente
que Roberto e Peri, coadjuvados pela assistência do Alto, que segue
todo aquele que se devota às causas justas, teriam possibilidades de
remover dali os infelizes perturbadores, sem preocupações de ordem
mais suave. Todavia, não o fizeram. A fim de encontrarem facilidade
para o intento, previamente trataram de afastar Leonel e sua filha
para local seguro, no qual se abrigassem de novas investidas das
trevas, conquanto esse local houvesse de ser concorde com seus
estados de inferioridade vibratória, verdadeiros dementes, enfermos
graves que eram ambos, carecedores de delicados cuidados do
mundo espiritual.
O suicídio, como ninguém mais ignora, constitui para o Espírito,
que a ele se aventurou em tão adversa hora, um estado complexo de
semiloucura, situação crítica e lamentável de descontrole mental,
forçando estudos e exames especiais dentro da própria Revelação
Espírita. Entretanto, existem nele certos traços gerais, que convêm
examinados ainda uma vez:
— Os suicídios que tiveram por causa a obsessão de um Espírito
perverso, sobre o encarnado, apresentam certa parcela de atenuantes
para a vítima e agravantes para o algoz. Existem suicidas que se
viram sugestionados a cometerem o ato terrível, por meio do sono de
cada noite, por uma pressão obsessora do seu desafeto espiritual,
desafeto que poderá ser também um espírito encarnado, e à qual não
se puderam furtar, tal o paciente que, recebendo do seu
magnetizador uma ordem durante o transe sonambúlico, cumpre-a
exatamente dentro do prazo determinado por este, mesmo quando se
passaram já muitos meses depois da experiência. Outros existem que
não querem absolutamente morrer, não desejam o suicídio; que
relutam mesmo contra a ideia por que se veem atormentados e se
horrorizam ao compreender que algo desconhecido os arrasta para o
abismo, abismo esse que temem e ante o qual se apavoram. Apesar
disso, sucumbem, precipitam-se nele, uma vez que, deseducados da
luz das verdades eternas, desconhecedores do verdadeiro móvel da
vida humana, como da natureza espiritual do homem, não lograram
forças nem elementos com que se libertarem do jugo mental terrível
e malfazejo, cujo acesso permitiram. Eles veem junto a si antes de
efetivado o ato, com impressionante segurança, tais se
materializados fossem diante dos seus olhos corporais, os quadros
mentais que o obsessor fornece por meio da telepatia ou da sugestão:
um receptáculo de veneno ou substância corrosiva; um revólver
engatilhado, que misteriosa mão sustém, oferecendo-lho; uma queda
de grande altura, onde eles próprios se veem despenhando; um
veículo em movimento, sob o qual se deverá arrojar etc. Sofrem
assim, por vezes, durante meses consecutivos, sem ânimo para
confidenciarem com amigos, uma agonia moral extenuante e
arrasadora, uma angústia deprimente e inconsolável, que lhes
agravam os males que já os infelicitavam, angústia que nenhum
vocábulo humano será eficiente para bem traduzir. Notemos,
todavia, que tratamos tão somente da obsessão simples, ou seja,
daquela que é ignorada por todos, até mesmo pelo obsidiado, da que
se não revela ostensivamente, objetivando alteração das faculdades
mentais, mas que, sutil e ocultamente, por meio de sugestões lentas,
sistemáticas, solapa as forças morais da vítima, tornando-a, por
assim dizer, incapaz de reações salvadoras. Pouco a pouco, sob tão
doentia pressão magnética, uma tristeza suprema e avassalador
desânimo comprometem as energias do assediado. Aterrador alarme
desorienta-o, todos os fatos da vida, mesmo os mais vulgares, se lhe
apresentam ao raciocínio contaminados pela infiltração obsessora,
dramáticos, maus, irremediáveis! Esquece-se ele de tudo, até mesmo
do seu Criador, ao qual, em verdade, jamais considerou, mas em cujo
amor encontraria proteção e forças para resistir à tentação. E
somente se preocupa com o meio pelo qual se furtará aos males que o
afligem. Então sucumbe sem apelação, curva-se à vontade que
conseguiu dominar a sua vontade, servindo-se da sua fraqueza de
homem despreocupado das razões da vida e ignorante de si mesmo,
que da existência só conheceu, muitas vezes, a feição meramente
animal. Daí se concluirá, então, da necessidade de os homens
procurarem conhecer a si mesmos, isto é, que possuem nos recessos
da personalidade um sexto sentido, um dom natural capaz de
permitir tais desastres, se se conservar ignorado, e se eles próprios,
os seus portadores, preferirem viver alheios às causas sérias e
elevadas, que lhes permitiriam a harmonização com estados
psíquicos superiores, que de tudo isso os eximiriam, uma vez que o
obsidiado possuirá, forçosamente, para que se torne obsidiado, os
ditos dons mediúnicos, tal como toda a Humanidade os possui.
Ora, o suicídio, assim efetuado, transformou-se antes em um
assassínio gravíssimo, contornado de agravantes, cometido pelo
obsessor, que responderá pela crueldade exercida, perante a justiça
do Criador supremo. Quanto ao obsidiado, sua responsabilidade
certamente foi profunda, em razão de haver permitido acesso às
arremetidas inferiores, por se conservar igualmente inferior, não
desejando o próprio progresso com a renovação dos próprios valores
morais à procura do ser espiritual e divino existente em si, não
tentando reações de ordem moral e mental para dignamente se
equilibrar nos deveres impostos pela existência. Responderá,
portanto, pela fraqueza e a descrença que testemunhou, enfrentando,
após o suicídio, momentos críticos, decepcionantes, da vida do Além,
e retornando à Terra para, em existência nova, terminar a que fora
interrompida pela fragilidade demonstrada ao entregar-se às mãos
do algoz, sem tentar defender-se com as devidas diligências, ou
reações.
VII

A ação de Roberto para retirar os dois suicidas – pai e filha – do


teatro dos acontecimentos, ou seja, do seu próprio lar, destacou-se
pela suavidade da prática e espírito de piedade. Não ignorava ele
que, em torno de uma individualidade impenitente, desencarnada ou
não, voluteiam entidades viciosas e perturbadoras, mas que também
se encontram influenciações amorosas de amigos da Espiritualidade,
afeições ternas, de preferência uma mãe, um pai, um amigo
dedicado, almas outras, prestativas e sinceras, prontas a intervirem
beneficiando aquele que lhe foi caro, desde que o momento se lhes
torne propício. Apelou, portanto, para o auxílio do Espírito já
esclarecido da genitora do suicida, dela solicitando concurso valioso
para a missão de fraternidade que se impusera, a par de outras
entidades votadas, permanentemente, ao gênero de serviço. Por sua
vez, Peri reunia seus milicianos árabes – pois os desencarnados
também podem organizar “milícias” para os serviços do Bem, se lhes
aprouver –, com eles cercando a residência em questão, como o
fariam autoridades terrestres, a fim de evitar qualquer sortida
desagradável por parte dos obsessores, que poderiam querer evitar a
partida das suas vítimas, dada a hipótese de poderem perceber a
movimentação que se seguiria.
O móvel do suicídio de Leonel, criado, como sabemos, sob
pressão de inimigos invisíveis, fora o terror a uma inevitável ordem
de prisão, ao cárcere humilhante e degradante, que lhe escancarava
possibilidades irreprimíveis. Curvando-se àquelas influências,
envolvera-se ele em complexos irremediáveis, no seio da firma
comercial a que emprestava os próprios labores profissionais, como
guarda-livros e caixa interino que era da mesma, cargos estes da
mais alta importância no comércio e que outrora somente se
confiavam a pessoas de reputação inatacável e íntima confiança da
firma que as admitia. Para que o leitor, porém, leigo dos
conhecimentos em torno das infiltrações obsessoras que podem
envolver uma personalidade, possa ajuizar dos seus sintomas e a
tempo procurar recursos na Ciência Psíquica para debelar o terrível
mal, com os corretivos fornecidos pela mesma Ciência, entendemos
dever explicar algo que se passava com aquela personagem da nossa
história:
As anormalidades morais e psíquicas surgiram na vida de Leonel
desde a infância. Durante esse período, em que, geralmente, a
criança é graciosa e gentil, passiva às disciplinas educativas, a dita
personagem mostrava-se avessa aos próprios carinhos maternos,
preferindo rebelar-se contra toda e qualquer modalidade de correção
imposta pelos pais, e também pelos mestres, na escola que
frequentava, e repelindo conselhos e advertências que visavam a
orientá-la para bons princípios. Demorara a instruir-se nas escolas
onde tentava o curso primário, queixando-se de constantes
depressões, e frequentemente tornando-se presa de violentas dores
de cabeça, que o arrastavam a crises de desesperos impróprias para
uma criança. Dificilmente concordava em ingerir as drogas
receitadas pelo médico da família, o qual se abalava, às vezes altas
horas da noite, solicitado por alguém da família, que o procurava
cheio de aflição. Em presença deste, negava-se a deixar-se auscultar,
embora sofresse. E, colérico e vermelho, como se uma apoplexia
estivesse iminente, os olhos injetados de sangue, pela violência das
dores de cabeça, que sofria, não só entrava a insultar o médico,
expulsando-o de casa, como se metia debaixo das camas, dos sofás e
das mesas, desfeito em choro histérico ou presa de gargalhadas
suspeitas, e, tanta força empregava contra os citados móveis, debaixo
dos quais se metia, que os levantava às costas e virava-os, não raro,
de pernas para o ar, escandalizando os familiares e também o
médico, que habitualmente aconselhava a seus pais doses de
chineladas alternadas com a medicamentação por ele próprio
receitada, pois que em tudo aquilo, no seu modo de entender, existia
também alta percentagem de má-educação e rebeldia, que estavam a
requisitar severa e imediata correção. De outras vezes,
verdadeiramente possesso pelas entidades trevosas do Invisível,
quebrava os consolos e aparadores de sua mãe e as porcelanas
existentes nos armários onde se guardava a louça da casa, quebrava
espelhos, vidraças, e tais eram os desatinos que sobrevinham dentro
do lar, daí derivados, que, desesperado, seu pai saía para a rua, às
vezes a horas adiantadas da noite, receoso de esbordoá-lo e matá-lo
sob a cólera por que se sentia invadir, enquanto sua mãe caía com
ataques nervosos de suma gravidade, após o que, ele próprio, caía em
prostração surpreendente, abatido e sonolento, para avançar pela
noite adentro, presa de pesadelos terríveis, durante os quais se sentia
envolvido em chamas, no centro de uma fogueira imensa, ou
encarcerado em prisões infectas, torturado por azorragues e mil
outras impressões que a custo se dissipavam.
Não obstante, atingindo a puberdade, tais anomalias
arrefeceram de intensidade, oferecendo esperanças de cura. Um
hábil tratamento psíquico trar-lhe-ia, então, modificações gerais,
traçando, porventura, trajetória nova em seu destino. Infelizmente
para todos, seus pais e sua família, atidos à indiferença dos assuntos
espirituais, conservando-se pouco menos que materialistas, não
cogitaram de coisa alguma racional a seu favor. Sua mãe, doente,
afetada de ambos os pulmões, definhava lentamente. Todavia, ainda
assim, encaminhara-o à religião, confessando ao vigário da paróquia,
onde residiam, as intraduzíveis diabruras do filho. Paciente e bom, o
sacerdote tentou aconselhá-lo afetuosamente, atraindo-o para o
catecismo e lecionando-lhe normas de boa conduta moral e social e
de respeito a Deus. Leonel, porém, opunha-se ao ensino,
manifestando tal horror às coisas da Igreja e tanta aversão ao
sacerdote que, desanimado, declarou àquela sofredora mãe que seu
filho era criança incorrigível, de má índole, e que somente a lei do
Criador teria bastante sabedoria para chamá-lo ao dever.
Aos 15 anos morreu-lhe o pai, após breve enfermidade,
deixando-o em completa liberdade. Aos 17, as antigas crises
desapareceram, mas hábitos novos sucederam aos antigos,
porventura ainda mais daninhos, perigosos: – toda e qualquer soma
financeira que lhe caísse sob os olhos era desviada para o jogo e o
trato com mulheres desonestas. Vários empregos, em casas
comerciais, foram tantos outros vexames que pungiam o coração de
sua mãe, que por várias vezes ouviu, de empregadores do filho,
queixas acerbas da sua conduta e até insultos, ao ser ele despedido,
em face do mau procedimento para com seus chefes. Finalmente,
com muito esforço e sob vigilância do padrinho, que lhe substituíra,
até certo ponto, o pai, conseguiu findar o curso de Ciências
Comerciais que desde muito tentava, e tornou-se guarda-livros, título
equivalente ao que hoje se denomina perito-contador.
Por esse tempo, o jogo absorvia-o e ele se endividava, causando
sobressaltos a sua mãe, que temia vê-lo irremediavelmente
desacreditado, às voltas com a Polícia. Mesmo assim, porém, apesar
de encontrar-se sofrivelmente colocado e contando apenas 22 anos,
casou-se, porquanto a família entendera tornar-se o casamento
seguro corretivo para tantos desatinos. Não foi, entretanto, mau
esposo, se considerarmos que não maltratava fisicamente a mulher,
sendo até amável no trato para com ela. No entanto, também não se
poderia considerá-lo bom, visto que jamais se preocupou em
proporcionar conforto à família, mantendo-a sempre em acentuada
pobreza, porquanto seus desacertos fora do lar absorviam parte dos
recursos obtidos do trabalho cotidiano. Sua existência, assim, após o
casamento, continuou caracterizando-se pelos desacertos, que
prosseguiam em um crescendo angustiador.
A despeito da paciência da esposa, do seu desvelo pelo lar, ali
não havia paz, nem esperança, nem confiança no destino, porque
Leonel passava noites consecutivas à mesa do jogo ou locupletando-
se em ceias orgíacas com amigos suspeitos. Os filhos se sucediam; e,
ao atingirem a segunda infância, dir-se-iam viver assustadiços,
atemorizados sem saberem por que razão. Eram feios, nervosos,
enfermiços, dentre todos destacando-se a filha primogênita, cujo
nome, Alcina, dir-se-ia o próprio escárnio em face do seu aspecto
visivelmente masculino, não obstante tratar-se de pessoa raquítica.
Feia, trazendo feições anormais, inteiramente desgraciosa, exibia
também um defeito físico, pois coxeava sensivelmente da perna
esquerda. Nesse lar, altercações, choro, dificuldades financeiras, falta
de crença em Deus e de qualquer Religião, era o que ressaltava, de
início, à observação de qualquer visitante ou amigo. À noite,
sucediam-se, entre os filhos, pesadelos e crises idênticos aos que o
próprio Leonel apresentara na infância, o que o levava a dizer, sem
preocupações:
— Trata-se de atavismo... Eu fui assim, durante a infância.
Após a morte de sua mãe, todavia, breve interregno sucedeu-se
nos destinos de Leonel. Dir-se-ia que o choque, por haver perdido
tão excelente amiga, chamara-o à razão. Surgiu em seu caminho, em
seguida, oportunidade feliz de boa colocação em uma fábrica de
tecidos, da qual passou a ser o chefe dos escritórios, ou antes, o
guarda-livros responsável por todo o movimento financeiro. Quatro
anos decorreram sem anormalidades. A proteção invisível do Alto
generosamente colocou ao seu alcance nova oportunidade salvadora,
aproveitando o período sereno que sobreviera em torno dele: dois
companheiros de trabalho, espiritistas convictos e cultos, homens
honestos, bem inspirados pelas forças invisíveis do bem, tentaram
despertá-lo para a crença em Deus e o cultivo das forças, ou dons,
espirituais. Deram-lhe a ler livros doutrinários e científicos. Falaram-
lhe da excelsitude da Doutrina que professavam, a qual a eles
próprios levantara do ostracismo estéril para o plano harmonioso do
dever cumprido e da consciência tranquila. Disseram-lhe da sua
suave feição amorosa, que recomendava o jugo benévolo da
compaixão pelos oprimidos e sofredores em geral. Leonel, porém,
rejeitou os amorosos convites, ridiculizou o Evangelho, que ele não
estava à altura de assimilar, glosou com chistes ofensivos a Filosofia,
que não pôde entender, e depreciou a Ciência, para terminar
evitando o prosseguimento das relações de amizade com os dois
companheiros, que ali nada mais representavam senão instrumentos
da assistência piedosa do Invisível, que tentava estender-lhe mão
salvadora à beira de um abismo que o seu livre-arbítrio tornava
iminente, mas evitável pelo bom-senso e a continência nas expansões
das próprias paixões.
Vagara, porém, o cargo de tesoureiro-caixa da fábrica em
apreço. Porque houvesse cativado a confiança dos diretores da
mesma, com a habilidade profissional, de que dera sobejas provas,
confiaram-lhe, interinamente, o cargo máximo da grande instituição
comercial. Os primeiros meses deslizaram normalmente; mas, de
súbito, Leonel entra a sonhar com grandes quantias em seu poder,
oriundas do jogo. Sente-se rico em pesadelos agradáveis, e rodeado
de prazeres. Tais sonhos se distenderam em sugestões, durante a
vigília, e um desejo ardente de ser rico, de viajar e conhecer a Europa
apossou-se dele, humilhando-o ante a modéstia em que via decorrer
os próprios dias de existência. As sugestões dominaram seus
pensamentos, e a antiga atração pelo jogo impele-o a voltar aos
antros de vícios que durante algum tempo foram esquecidos. E
noites se sucedem, com ele à mesa da roleta e das cartas, perdendo
quantias vultosas. Na manhã seguinte, deixava de comparecer ao
horário exato das suas funções, na fábrica, alterando o bom
andamento dos serviços a seu cargo. Dores de cabeça violentas
torturavam-no, alterando-lhe a saúde. Estado inquietante, de
depressão ou excitação, sobrevém, dificultando-lhe as ações
cotidianas. No decorrer de alguns meses, nada mais possuindo de
seu, para jogar, porque perdia sempre, sem jamais recuperar o que ia
perdendo, entrou a desviar, para o jogo, quantias confiadas à sua
guarda, como caixa que era da importante firma. Por sua vez, a vida
de Alcina, desde o berço, destacara-se do normal pela enfermidade.
Não desfrutara, jamais, de boa saúde. Irritava-se por todos os
motivos. Sombria, odiosa, rodeada de complexos, reconhecendo-se
desagradável a todos, retraía-se de tudo e de todos, conservando-se
no interior da casa, sem jamais dignar-se a um passeio ou a uma
visita, negando-se mesmo a cumprimentar os amigos da casa que
porventura visitassem a família. Vivia apavorada, temendo as
sombras, incapaz de penetrar sozinha qualquer compartimento da
casa, asseverando que vultos tenebrosos lhe apareciam na escuridão,
brandindo chicotes e oferecendo-lhe copázios de veneno a tomar.
Ataques sobrevinham frequentemente, durante os quais se sentia
devorada pelo fogo e chicoteada por verdugos, que gargalhavam ante
seus padecimentos. Após tais crises, adoecia. E os médicos chamados
a assisti-la diagnosticavam as mais disparatadas enfermidades, tais
como histeria, anemia profunda, alucinação por debilidade do
sistema nervoso e até verminose e infecção hepática e renal, quando
em verdade o mal era psíquico e repousava em uma tremenda
obsessão, incurável pelos processos psíquicos, mas que poderia ser
grandemente atenuada pelos mesmos processos e que, acima de
tudo, lhe evitariam o suicídio.
Os dias, pois, assim se sucediam sem alterações para Leonel e
sua filha. Este se tornou neurastênico, irritadiço. Não falava a
amigos, não mais cumprimentava os próprios companheiros de
trabalho. E a todos os instantes, com a mente assoberbada de
preocupações, segredava-lhe a intuição das trevas, na sugestão de
perseguidores implacáveis:
— Retira, retira outras importâncias... Hás de recuperar tudo... A
sorte hoje será tua... Recuperarás tudo e reporás na “caixa” o que foi
“tomado de empréstimo”... Cada um tem o seu dia... Hoje é o teu
grande dia, para obteres fortuna e recompensas felizes ao muito que
tens sofrido...
No entanto, perdia, ainda e sempre, porque o perseguidor o
acompanhava à mesa das cartas para não deixá-lo ganhar, o que o
obrigava a excepcionais habilidades profissionais, para encobrir a
própria falta aos diretores da firma, por meio da escrita que, como
principal guarda-livros, fazia. E longas horas de meditações e
mutabilidade expressiva sobrevinham, para inquietação de toda a
família. Até que, finalmente, chegou o dia em que tudo se esclareceu,
tal como desejara o obsessor, não vendo Leonel outro alvitre para a
desgraçada situação a não ser a prisão ou o suicídio. As importâncias
de que lentamente se apossara montavam em cerca de 200 contos de
réis (valor da época), soma que, então, representava apreciável
fortuna, impossível a um funcionário das suas condições obter para
saldar uma dívida. O infeliz livre-pensador, então, desamparado de
quaisquer forças de reação, porquanto nem mesmo uma fé religiosa
jamais concordara em cultivar, preferiu o suicídio, assim se
curvando, ato por ato, atitude por atitude, às sugestões do inimigo
invisível que, realmente, só desejava desgraçá-lo. Silenciaremos,
porém, sobre os detalhes dolorosos desse imenso drama, rico em
testemunhos da atuação obsessora sobre um médium passivo que se
ignorava, a fim de a este não identificar, faltando com a devida
caridade ante suas imensas desgraças.
No entanto, uma vez tombado para sempre o próprio corpo
carnal, o que Leonel encontrara como Espírito fora o prosseguimento
da própria vida que tentara destruir para evitar a desonra, assim os
mesmos dissabores, angústias e preocupações, agravados por uma
hipersensibilidade torturante, como pelas penosas impressões físico-
materiais oriundas da violência do choque traumático derivado da
morte prematura.
Ora, compreendendo que, à frente de tão deplorável estado,
nenhum outro concurso seria tão eficiente para socorrer o atribulado
suicida como o daquela que fora a sua genitora, o meu Assistente
dela se valeu para a retirada do mesmo do local sinistrado, certo de
que o infeliz infrator a ela se confiaria de boa mente, sem levantar
suspeita de cumplicidade com a Polícia, como suporia de qualquer
outra individualidade que se apresentasse no intuito de ajudá-lo a se
afastar dali. Efetivamente, a ele se chegou, desenvolta e diligente,
aquela que, na Terra, o embalara no seio como mãe devotada, e, com
autoridade, exclamou, como a não permitir réplica:
— Acompanha-me, Leonel! Basta de desatinos! Venho buscar-te!
Vais seguir comigo! Estás enfermo e precisas tratar-te! Trago-te um
médico... Ei-lo! Confia nele... Nada desagradável sucederá... Vamos!
Confiante e submisso e como aturdido por um estranho
pesadelo que principiava a se desvanecer, o suicida estancou o
pranto, qual menino que se cala ouvindo o balbucio materno dentro
das inquietações da noite. Assim apresentado, Roberto amparou-o
bondosamente, compreendendo-o vacilante e atordoado, enquanto
Alcina, ainda amodorrada, como em estado de coma, igualmente se
sentiu transportada, como presa de pesadelo indecifrável...
E lá se foram todos, abandonando o cenário apavorante de um
drama dos mais patéticos que os incidentes terrenos costumam
apresentar à contemplação dos trabalhadores espirituais.
VIII

Entrementes, também urgia afastar os obsessores responsáveis


pelos acontecimentos que descrevemos. Tratava-se de pequena
falange de poderosos inimigos invisíveis: um pai e seus três filhos
varões, uma família, portanto, perseguidora de outra família.
Israelitas típicos dos meados do século XVI, em Portugal, era
impressionante vê-los trajando ainda a indumentária clássica da sua
qualidade racial e social da época, pois que, atados às tumultuosas
recordações e às impressões dolorosas do pretérito, com tal
veemência se haviam apegado ao mesmo, que seus perispíritos,
pressionados pelas poderosas forças realizadoras do pensamento, se
apresentavam exatamente idênticos aos seus envoltórios humanos de
quatro séculos antes. Fossem alcançados pela vidência de um
médium assaz desenvolvido e seriam notificados quais homens
fantasiados para um baile de máscaras, indo e vindo, rancorosos e
sofredores, pelo ambiente doméstico de Leonel, tal se fizessem parte
da família. Não obstante, o imaginário médium teria
simultaneamente observado certo detalhe singular nas configurações
perispirituais das mesmas entidades: vestígios sanguinolentos em
seus corpos físico-espirituais, tais como dedos das mãos e dos pés
com unhas arrancadas, gotejando sangue; carnes queimadas, quais
desenhos de feridas recentes produzidas por ferros incandescentes;
pulsos deslocados, impossibilitando destreza de movimentos;
mordeduras de ratos gigantes, tão comuns nos calabouços de
outrora; estigmas, ao longo das faces, pelo pescoço, braços e pernas,
do azorrague despedaçador, enfim, todo o emblema trágico da
ignomínia usada nos tratos às vítimas da Inquisição verificada em
Portugal, por aquela época.
Odientos e sombrios, deixavam entrever também o panorama
impressionante da longa permanência na incompreensão, do
desamor ao próximo, enquanto extrema fadiga, sofrimentos morais
inimagináveis se estereotipavam em seus semblantes espirituais,
indicando a urgência que traziam de igualmente serem socorridos
pela misericórdia daquele que não deseja a perdição do pecador, mas
que ele viva e se renove para o Bem.
Roberto fora hebreu em certa existência vivida em Portugal e na
Espanha e fácil lhe seria valer-se da circunstância para atingir os
nobres fins que trazia em mira. Fez, portanto, que retroagissem ao
passado as próprias forças mentais (fenômeno de regressão da
memória, tão conhecido nos dias atuais, passível de realização tanto
entre encarnados como entre desencarnados), pela ação de uma
irradiação da própria vontade... e voltou a ser o judeu de outrora, o
homem oprimido e sofredor em Portugal, ao tempo da Inquisição,
ameaçado a cada passo por um sequestro e quiçá pela morte, sob os
tratos do Santo Ofício3.
Assim transfigurado, deixou-se materializar conforme
requeriam as circunstâncias, e penetrou serenamente na residência
sinistrada, a qual se afigurava às suas sensibilidades delicadas o
próprio local onde existiriam o choro e o ranger de dentes lembrados
na exposição messiânica.
— Que Moisés e os profetas te guardem dos teus inimigos e dos
inimigos da nossa raça, Rabino4... – saudou Roberto intimorato,
servindo-se de uma vibração mental especial, que àquele se afigurou
o dialeto aramaico usado desde milênios pelos da sua raça.
Grave, não demonstrando sequer surpresa, como se a saudação
e o dialeto em que fora ela proferida fossem garantidas credenciais
recomendando o visitante, o obsessor correspondeu naturalmente o
cumprimento comum entre os seus:
— Que Moisés e os profetas te guardem, e à nossa raça, da
crueldade dos nossos inimigos...
Fitaram-se, como se mutuamente se procurassem reconhecer.
Roberto aguardou a interrogação, demonstrando, com essa atitude
respeitosa, subida consideração à pessoa e à qualidade daquele em
quem reconhecia um Rabino. Este prosseguiu, ao fim de alguns
segundos:
— De onde és?... Como te chamas?... Ao que vens?
— Venho da Andaluzia... Chamo-me Miguel... Trago-te uma
mensagem de paz e de amor, a par da minha visita pessoal, com um
convite...
Aquele pareceu não ouvir o fraseado incomum para seus ouvidos
habituados aos insultos das blasfêmias, e continuou, em divergente
diapasão:
— És porventura um perseguido, um infeliz de quem fizeram um
pária, como a nós outros, os de cá?...
— Não, Rabino, não me perseguem... Isso passou, com o
tempo... Coloquei-me sob a égide de um grande e poderoso
Rabboni5... o qual sabe defender de todos os males quantos se
acolhem à sua sombra... E venho convidar-te, em nome de tua
sobrinha Ester, a visitá-la e a te entenderes com ela, pois sei que
sofres desde muito, que tu e os teus fostes torturados sob mil injúrias
e tratos cruéis, e que, portanto, necessitas de grande repouso e
consolações...
— Assim tem sido, meu jovem andaluz... Porém, como me
conheces?...
— Conheço-te, e aos teus, por intermédio dos relatos da tua
Ester... Ela mandou-me a ti...
A esse nome, duas vezes proferido durante alguns instantes, o
velho Rabino impressionou-se, sentindo que das profundezas da sua
alma estremecimentos singulares se levantavam, dulcificando-lhe o
ser. Um jovem hebreu, acompanhado de mais dois outros, ambos
adolescentes, aproximou-se vivamente interessado. Tomando a
palavra, perquiriu arrogante, revelando índole belicosa:
— E onde se encontra Ester?... É a minha prometida...
Desapareceu para sempre! Os miseráveis raptaram-na, esconderam-
na, após torturá-la e vilipendiá-la em nossa presença...
As interrogações se acumularam aflitas, magoadas, atestando
inquietações dolorosas. Meu jovem Assistente, no entanto, retorquiu
sereno e convincente:
— De fonte autorizada eu vos informo que se acha bem próximo
o momento em que haveis de revê-la para nunca mais vos apartardes
dela! Todavia, depende de vós a obtenção de tão grandiosa
felicidade... Rogo-te, Rabino, atenderes ao chamamento de Ester,
indo visitá-la onde te espera... e ao meu convite, para travares
conhecimento com o Rabboni que me protege e que igualmente a ti
estará pronto a amparar...
O velho israelita, com um ricto de enfado e com um
estremecimento singular, qual vibração odiosa inédita para o meu
delicado Assistente, que jamais odiara alguém, redarguiu:
— Para dizer-te a verdade, jovem patrício, fui perseguido, sim,
porém, hoje já não o sou... No momento revido as ofensas outrora
suportadas... e tu sabes, pois que és um dos nossos, que, por muito
que eu me dedique a requintar a vingança, não chegarei a “ofendê-
los” ou “fazê-los” sofrer tanto quanto “eles” a nós outros o têm feito...
És judeu, meu jovem andaluz, e não ignoras o que, em Portugal e na
Espanha, o Santo Ofício há realizado contra nós...
— Quer dizer, então, Rabino, que esses de quem hoje te vingas,
isto é, Leonel e família, pertenceram ao Santo Ofício, ou à Inquisição,
em Portugal... e que o drama que neste cenário entrevejo tem origem
nesse remoto tempo?...
A entidade obsessora voltou-se, agitada por significativa
surpresa:
— Remoto?... Tu dizes um tempo remoto?... Não! Foi ontem
mesmo!... Pois ainda não estamos com o reinado de El-Rei D. João
III6 ?...Ainda estou ferido, e também os meus filhos, vês?... Ardem-
me horrivelmente as queimaduras, e magoam-me... Sangram-me os
dedos, de onde me arrancaram as unhas... Sofro muito... e também
os meus pobres e queridos filhos, que eram jovens honestos e gentis,
que nenhuma ofensa dirigiram àquela malta... mas os quais agora
vejo reduzidos a este estado... Foi ontem mesmo, foi! Oh!... Mas
sim... Às vezes parece-me que esse tempo está muito distante... que
tudo aquilo aconteceu há séculos... Mas tal impressão de longevidade
se dá porque tenho estado encarcerado muitas vezes... e nas sombras
de uma masmorra o tempo se afigura mais longo, não é verdade?... E
sinto-me cansado, muito fatigado... No momento, pois, vingo-me dos
meus algozes de outrora, ou de ontem, nem sei ao certo... desses, que
aí estão... São esses miseráveis e depravados, que vês por aí... a
chorarem hipocritamente, clamando por Deus, a quem nunca
honraram e em quem não creem... como se fossem dignos de
pronunciar tal nome... O que quero é despedaçá-los... Vês aquele,
acolá?... O moreno, de olhos grandes e melancólicos, como os de
todo hipócrita quando planeja o mal?... Ainda é o mesmo de outros
tempos... Foi quem se lembrou de nos dilacerar as carnes, abrindo-
nos estas feridas... Conheci-o sob o nome de Fausto de Mirandela...
Parece que agora usa outro nome, para melhor se poder ocultar,
como faz todo covarde da sua espécie... Pretendo trucidá-lo qualquer
dia desses... Quero vê-lo despedaçado, sentindo por todo o corpo as
ardências torturantes que eu e meus filhos sentimos, quando nos
arrancaram pedaços de nós mesmos com as tenazes em brasa,
usadas pelos carrascos da Casa da Inquisição...7 Há dias atiramo-lo
diante de um monstro de ferro e fogo, cujo roncar nos apavora,
monstro que deita fogo, fumo e estrídulos dolorosos, alarmantes...8
Se o apanhasse, esse monstro o despedaçaria em suas garras, pois
que as possui inúmeras, grandes, terríveis, destruidoras... Porém,
salvaram-no. Sei que já não sou, propriamente, um homem, mas
apenas um simulacro de homem, a despeito de me sentir tão vivo e
tão humano como dantes, assim como os meus filhos... e sei que eles,
os meus algozes, o são, disfarçados, embora, em outras armaduras...
Eles sempre se disfarçaram assim... Em outros tempos vestiam-se de
amplas túnicas negras, com capuz e máscara, para não serem
reconhecidos pelas vítimas... e também temendo represálias...9 Não
importa, são os mesmos de ainda ontem, e, por isso, vingo-me, pois
este litígio desencadeou-se desde nossa arbitrária prisão, em
Lisboa... A lei me dá direito do ricochete... Dize a minha Ester que
venha cá, antes, ver-nos... Sentimos inconsoláveis saudades dela,
mortificantes preocupações a seu respeito nos desorientam...
Procuramo-la por toda a parte onde nos pareceu possível encontrá-
la... Por que nos abandonou assim? Ou têm-na presa?... Sim, os
miseráveis desonraram-na e encarceraram-na... que venha ver-nos...
Dize-lhe que está vingada: Frei Hildebrando foi por nós trucidado...
Foi ele o seu maior algoz, sabes?... Se és andaluz, deves conhecê-lo...
Quem o não conhece em Espanha? Trata-se de história dolorosa...
Não poderei abandonar este posto para ir vê-la... Vigio-os, aos
miseráveis inquisidores... Acho-me em vésperas de colher mais dois
em minhas redes, para atirá-los ao báratro dos réprobos... Tu
conheces o báratro dos réprobos?... Mergulho-me nele por algumas
vezes, a buscar inspiração para o meu ódio e as minhas vinganças... É
horrível! Hei visto por aí todos os baixos níveis da sordidez humana,
dos sofrimentos e depressões, mas nada se me afigurou mais sórdido
do que a abjeção do suicida! E nem ta poderei explicar, porque me
faltariam palavras! Os esgares que ele apresenta nas convulsões
traumáticas, suas revoltas, suas blasfêmias de demônio
enlouquecido, sua pavorosa confusão, eternamente envolvido em
ânsias e sombras de pesadelo, suas diabólicas alucinações e seus
furores e raivas são inconcebíveis por um raciocínio normal... e todo
o monstruoso cortejo dos seus males agrada-me para aplicar em
meus algozes, os algozes de meus filhos e de minha Ester... Torná-
los, a todos, suicidas! Eis o meu anelo supremo! Oh, que alegria para
o meu coração, que se rebelou para sempre! Já atirei dois deles: Frei
Hildebrando e o miserável João-José, que agora andou disfarçado
em mulher... Assim fazem os traidores covardes – disfarçam-se em
sexo diferente, pretendendo não serem jamais reconhecidos... Puro
engano! Nada há que os encubra às nossas vistas! E a João-José
reconhecemos, particularmente, pelo coxear da perna esquerda, que
agora não pôde ocultar... a um dei a arma com que despedaçou a
cabeça: Frei Hildebrando! Ah! Ah! Confesso-te, amigo andaluz, que
ajudei a acionar a molazinha mágica... Mas ao outro, ao traidor João-
José, a quem aqui chamam “Alcina” – ah! ah! ah! “Alcina”!... – a esse
ofereci um tóxico violento: veneno! Veneno! Morte que se dá aos
traidores... como se fazia nos tempos de Sua Santidade, Alexandre
VI10... mas Hildebrando, agora, percebe-me, só agora! e se
horroriza... Esconde-se debaixo das camas, tal como eu e meus
filhos, quando os beleguins do Santo Ofício nos invadiram a casa...
Mete-se adentro dos armários, das arcas, por trás das portas, sem
coragem para enfrentar-nos, como outrora... É um covarde, afianço-
te! Vou levá-lo, eu mesmo, ao báratro, onde estão os seus iguais...
Estou decepcionado... e não compreendo... Por que não foram os
dois para o báratro, até agora?... Frei Hildebrando está uma sombra
do que foi, o cruel inquisidor! No entanto, não era só isso que eu
desejara para ele... E João-José desmaiou e se encontra em agonia
desde que sorveu o tóxico de Alexandre VI, que lhe ofereci, isto é,
aquela água tofana, a que estou ouvindo chamarem aqui Arsênico...
Estou desesperado! Por que não foram para o báratro?... Hei de
arrastá-los até lá... Se me ausentar daqui, algo desagradável
sucederá... Meus filhos são inexperientes, sem mim não saberiam
agir... Dize a minha Ester que venha cá...
Calou-se, exausto, como sucumbido por ansiedade depressora...
Roberto, que ouvia em muito prudente silêncio, chamou a si a
serenidade possível no caso, para responder com inteligência:
— Creio muito justas as tuas ponderações, Rabino, e concordo
contigo: a lei de Moisés prescreve, com efeito, a retribuição das
ofensas contra nós praticadas pelos nossos inimigos... Muito a teu
pesar, porém, declaro-te que Ester não deseja medir-se com estes
réprobos... Esqueceu-os completamente, porque é feliz! Não está
prisioneira, nada sofre... Todavia, não virá... Se queres vê-la e falar-
lhe, terás de buscá-la onde se encontra... E aproveitarás a
oportunidade para te entenderes com o Rabboni de que venho
falando, do qual é ela discípula...
— Tu mais e mais me aguças as preocupações e a curiosidade...
mas estou indeciso... Esse teu Rabboni me reprochará pelos feitos
que venho realizando contra os meus algozes?... Muitos outros o têm
feito... mandando-me perdoar-lhes, pois dizem que, com efeito, a lei
e os profetas ensinam o amor aos semelhantes... mas que têm eles
com os meus assuntos particulares?... Aos semelhantes, sim,
concordo! mas e aos inimigos?... Um inimigo será um semelhante
nosso?... Como poderei amar frei Hildebrando, João-José, Fausto e
Cosme de Mirandela, a condessa Maria de Faro?... Quem é, afinal,
ele, esse Rabboni teu amigo?...
Sem desejar valer-se de uma inverdade, mesmo quando ela
poderia passar como beneficente, mas também não podendo expor a
verdade em toda a sua clareza, revelando a pessoa de Jesus Cristo,
que era a quem se referia, respondeu com segurança o meu
Assistente:
— É um dos nossos! Como tu, como eu, como teus filhos, foi
igualmente perseguido, vilipendiado, supliciado pela casta
sacerdotal... Não, Ele não te deteria nas ações que preferires praticar,
pois concede-nos liberdade de ação... deseja, sim, que renunciemos
ao mal por amor à virtude, mas quer que o façamos por nossa livre e
espontânea vontade, sem quaisquer coações... Vem, sem temor... E a
fim de que nenhuma anormalidade advenha, contrariando-te,
deixaremos aqui alguns amigos – uns milicianos árabes – de ronda a
esta casa... São também teus amigos... desejam ser úteis a ti e aos
teus filhos...
O chefe dos ofensores aquiesceu, talvez premido por uma
vontade superior interessada em conceder-lhe ensejos para a
emenda de princípios, e certamente vencido pelo desejo de rever
Ester, sua sobrinha, igualmente supliciada e morta pelo tribunal da
Inquisição, a qual, no entanto, jamais pudera reencontrar, desde
quatro séculos, uma vez que ela soubera, desde muito, acolher-se sob
a inspiração do Bem e do Amor, perdoando àqueles que a haviam
torturado no passado, e, portanto, afinando-se com a Luz.

3 - N.E.: Os Espíritos evoluídos poderão retroceder no tempo, aplicando-se o fenômeno de


regressão da memória, sem perderem a consciência do estado presente.
4 - N.E.: Doutor da lei judaica. Sacerdote judaico.
5 - N.E.: Título honorífico entre os judeus, que significa Mestre. Jesus era chamado Rabboni
(Mestre) pelos seus discípulos e admiradores.
6 - N.E.: El-Rei D. João III de Portugal (1502 a 1557) foi o 15º rei de Portugal, cognominado
O Piedoso ou O Pio pela sua devoção religiosa. Permitiu a introdução da Inquisição em
Portugal em 1536, obrigando à fuga muitos mercadores judeus e novos cristãos.
7 - N.E.: Edifício sede do terrível tribunal, em Lisboa, onde as maiores crueldades eram
praticadas nas pessoas dos condenados pelo mesmo tribunal.
8 - N.E.: Trem de ferro. Um indivíduo que desencarnasse no século XVI e cujo Espírito se
mantivesse em atraso, imerso nas obscuridades da própria treva mental, poderia, com
efeito, desconhecê-lo, descrevendo-o, no século XX, segundo as possibilidades da cultura do
século em que vivera. No Apocalipse, S. João, em Espírito, vendo o panorama da atualidade,
que 2.000 anos separavam da época em que se dava a visão, descreve os atuais aviões como
“grandes gafanhotos de ferro com caras de homem, fazendo um barulho ensurdecedor...”
Será, pois, a mesma situação...
9 - N.E.: Os inquisidores vestiam-se, com efeito, ao presidirem os tormentos dos
condenados, com longos hábitos negros e usavam um capuz em feitio de cone, que enfiavam
pela cabeça até o pescoço, os quais tinham orifícios para os olhos, nariz e boca,
transformando-se, assim, em máscaras impressionantes. O aspecto que apresentavam era,
então, sinistro. Muitos Espíritos endurecidos, de preferência os obsessores muito odiosos,
tomam esse aspecto, o que os torna verdadeiramente hediondos.
10 - N.E.: Rodrigo Bórgia, pai de César e de Francisco Bórgia e da célebre Lucrécia, Papa sob
o nome de Alexandre VI.
IX

Seguindo ordens recebidas, o operoso e paciente Roberto


transportou o velho Rabino para a localidade onde existia o núcleo
espírita sob cuja responsabilidade o trabalho de esclarecimentos se
faria. Para o obsessor judaico a caminhada fora normal, afigurando-
se que marchava a pé, pelas ruas de Lisboa, as mesmas que, quatro
séculos antes, perlustrava diariamente, e cujas imagens e panoramas
se haviam decalcado em suas forças mentais, tornando reais, para si
mesmo, as figurações que não mais existiam senão nas repercussões
vibratórias das suas recordações concretizadas. De outro modo, o
antigo israelita não procurava inteirar-se da época social em que se
encontravam os homens, continuando, assim, a existência absorvido
pelas próprias preocupações da etapa que vivera na Terra, ou se a
localidade onde agora viviam os seus antigos desafetos seria ou não
seria Lisboa. O que nele se acentuava, pois, era o retardamento do
progresso pessoal, a personalidade amodorrada pelo ódio sombrio e
tradicional, a mente e a vontade escravizadas a uma ideia inferior,
incapacitando-o, portanto, para as funções da evolução normal. Os
quatro séculos decorridos do dia em que se vira aprisionado pelas
autoridades do chamado Santo Ofício, de Lisboa, com toda a sua
família, até os dias atuais, afiguravam-se-lhe período normal de
alguns anos. Ele perdera, aliás, a noção do tempo, como alguém que,
vendo-se atirado a um calabouço durante longo período, sofre a
impressão atordoante da longevidade em que se perdeu
mentalmente, não podendo distinguir, portanto, as datas, não mais
podendo contá-las, sequer se apercebendo, do fundo do seu abismo
de impossibilidades, se para além das muralhas que o detêm é dia ou
permanecem trevas eternas, idênticas às do cárcere em que se
amesquinha. Em verdade, nem esse pobre sofredor e tampouco os
filhos queriam distinguir em derredor senão as personalidades pelas
quais se interessavam ou o que com elas se relacionasse. Os demais
acontecimentos e personagens, localidades, progresso material
terreno etc., passariam despercebidos às suas percepções ou a eles
não prestavam verdadeira atenção, como se os sentimentos
inferiores, fornecedores das pesadas irradiações que os envolviam,
tecessem estranho nevoeiro em torno das suas expansões
inteligentes, anulando-as para qualquer pendor que não a sua ideia
fixa de ódio e vingança. Assim sendo, não perceberam que se
transferiram de Portugal para o Brasil, atraídos pelas correntes afins
existentes entre eles próprios e aqueles a que odiavam, como não
perceberam que do sul do Brasil eram transportados para um
recanto do estado de Minas Gerais, em alguns minutos, tempo assaz
longo para um Espírito em condições de progresso normal
locomover-se, mas muito rápido, em verdade, para uma entidade
inferiorizada transportar-se, tão rápido que, tal sucede com o
movimento da Terra e os homens, seus habitantes, ele nada
distinguiu, supondo-se antes a caminho de local desconhecido, em
Lisboa, ao lado de um mensageiro da sua Ester. O certo era que o
meu caro Assistente, valendo-se das possibilidades das forças
naturais do mundo espiritual, transportara o obsessor através do
Espaço, valendo-se da volitação... e fê-lo entrar no posto mediúnico
de onde partira a ordem para detê-lo de qualquer forma.
Gentilmente recebido por dedicados trabalhadores espirituais
do Centro em apreço, convenceu-se de que se encontrava em um
gabinete reservado de alguma sinagoga israelita, pois não
esqueçamos de que Roberto lhe sugerira que o levaria a conhecer
certo Mestre judeu famoso; e sentiu-se esperançado, dilatando-se-
lhe o peito em um hausto de reconfortante expectativa. Acomodou-se
em confortável poltrona, que lhe indicaram, e, pensando em Ester,
murmurou:
— Disseram-me encontrar-se ela sob tutela de um grande e
generoso Rabboni, um dos nossos... Louvados sejam os profetas de
Israel, que a salvaram do bando de corvos dos subterrâneos do Santo
Ofício... Querida e pobre filha! Vou, finalmente, ver-te! Louvados
sejam os profetas...
Pendeu a cabeça e adormeceu sob nossa injunção.
Sobre a Terra, eram duas horas da madrugada...

***

Entretanto, na residência de Leonel, os três jovens obsessores


viram que um pelotão de guerreiros árabes invadia a casa, enquanto
exteriormente guardas armados se postavam, rodeando-a, assim
impossibilitando quaisquer tentativas de fuga, amedrontando-os e
predispondo-os a atenderem os convites para irem ao encalço do pai.
Apavorados ante a perspectiva de perseguições renovadas, pois
conservavam ainda, como atualidade impressionante, a lembrança
das atrocidades sofridas sob o despotismo da Inquisição, corriam
eles a se ocultarem, imprecando por socorro e misericórdia,
bradando pelo pai, que já não viam, repetindo, ato por ato, as cenas
de terror do dia em que foram presos pela milícia do Santo Ofício,
cenas que o ódio e a revolta, o terror e o desespero haviam gravado
de forma indelével nas suas superexcitadas mentes. Para eles,
aqueles guerreiros armados eram os assalariados da Igreja, que
teriam criado um capricho novo a fim de arrastá-los ainda uma vez à
prisão e à consequente tortura, já tantas vezes experimentada. Que
importava a indumentária conhecida dos soldados árabes, que ali
distinguiam?... Por aqueles remotos tempos, não raramente
acontecia que judeus, convertidos à fé católica, ou que afetavam a
conversão para fugirem às perseguições, e visando a quaisquer
vantagens pessoais que lhes permitissem viver em paz, aliavam-se às
autoridades inquisitoriais ou às civis para a perseguição aos próprios
irmãos de ideal religioso, do que resultavam as mais revoltantes
calamidades individuais, pois, confiantes na ação dos
correligionários de crença, caíam os perseguidos em ciladas
irremediáveis, sucumbindo pela traição, muitas vezes ignorando
mesmo que eram traídos! E assim se encontravam, portanto, presas
de pânico indescritível os três jovens obsessores, quando viram
Roberto entrar sereno e confiante, procurando-os a fim de lhes falar.
Reconhecendo-o, correram ao seu encontro, e, em um brado
uníssono, interrogaram:
— E o Sr. nosso pai?... Que é feito dele?... E Ester?... Onde se
encontram ambos?... Que lhes sucedeu?... Receamos que...
Roberto, porém, cortando o ensejo para maiores excitações,
apresentou-lhes um bilhete lacônico. Arrebatou-lho das mãos o mais
velho dos três, belo jovem de 20 anos, que teria sido quando
encarnado, reconhecendo, emocionado, a caligrafia da antiga
prometida que lhe fora tão querida. E leu, com sofreguidão e
nervosismo:
“Confiai neste portador, que é leal amigo... Conduzir-vos-á a
local seguro, onde ficareis ao abrigo de quaisquer surpresas
desagradáveis... Será tempo já de descansardes, todos vós, e procurar
viver em paz... Estarei convosco dentro em pouco...”
Confiaram, realmente, à indicação da alma querida que tão bem
os estimava, aquela Ester que os desejava contemplar na senda
sublime da verdade e do amor. Confiaram e seguiram,
acompanhando o meu dedicado Assistente, aflitos por se
distanciarem do local que supunham invadido pelos sequazes da
Inquisição.
E assim foi que, ao cabo de algum tempo de marcha, viram que
se descerrou, permitindo-lhes passagem, um frágil portão de ferro
fundido, gradeado, tão comum no século XX, o qual lhes apareceu
gracioso, habituadas que se achavam suas mentes à ideia dos
pesados portões de carvalho chapeados de ferro ou de bronze, do
século XVI. O mais novo dentre os três irmãos, Espírito que havia
quatro séculos conservava a forma perispiritual de um jovem de 13
anos, pôs reparo no detalhe e, rindo-se, exclamou indiscreto:11
— A julgar-se pela singeleza destes batentes, a segurança junto
ao grande Rabboni não será poderosa...
Os irmãos repreendiam-no envergonhados, enquanto Roberto
retrucava, pois não convinha deixá-los tomar quaisquer
ascendências:
— Os vossos portões de Lisboa eram tão sólidos e pesados que
um só homem lhes não moveria uma das asas! Não obstante, apenas
cinco beleguins do Santo Ofício bastaram para depredá-los e
saquear-vos a residência! Estes são frágeis, com efeito; mas eu
desafio a todas as milícias da Terra e do Invisível inferior a transpô-
los para vos arrebatarem do pequeno solar que aqui vedes...
— Oh! como te inteiraste do que se passou à nossa prisão?... –
adveio o mais velho. – Ester entrou em confidências, porventura?...
— Não, meu amigo! Vós outros mesmos revelastes tudo, com as
recordações externadas pelos vossos pensamentos, ao transpordes
estes umbrais...
Nenhum deles entendeu, mas prosseguiram todos. Tratava-se da
entrada principal do Centro de trabalhos espíritas a que me venho
referindo, em cuja ambiência um grande drama do Invisível marcaria
o primeiro passo para o seu redentor epílogo.
Penetraram o recinto, respeitosos e tímidos. Afigurou-se-lhes,
como acontecera ao pai, haverem ingressado em uma sinagoga
provinciana, visto que se conservavam judeus, trazendo as mentes
carregadas de conceitos e injunções comuns ao estado habitual.
Distinguiram o pai comodamente reclinado em uma poltrona,
dormindo serenamente. Um raio de luar, melancólico e benfazejo,
entrava pelas vidraças, aclarando, qual bênção celeste, a penumbra
do salão mergulhado em silêncio. Dir-se-ia a luz indecisa de uma
lâmpada de Santuário, comum nas antigas sinagogas. Poltronas
convidativas chamavam ao repouso. Eles procuraram acomodação ao
lado do pai, sonolentos e fatigados. Meio atordoado, o mais velho
levantou para o meu Roberto os olhos grandes e torturados e
interrogou humildemente, fiel a uma dor de saudade que se alongava
já por quatro séculos:
— E minha Ester?... Quando a verei, amigo andaluz?... Eles
levaram-na... E ela nunca mais voltou...
Compadecido, o meu Assistente respondeu, acariciando-lhe
fraternalmente os ombros:
— É alta noite... Agora não lograremos vê-la... mas amanhã tê-
la-ás contigo, fica certo... – pois era necessário que os tratássemos
como se ainda fossem criaturas humanas.
Aproximei-me, só então, o coração invadido por intraduzível
piedade, e apressei-lhes o sono perispiritual, de que tanto
necessitavam, servindo-me de uma pressão magnética.
E assim foi que aquelas infelizes entidades se entregaram ao
sono indispensável à recuperação espiritual, às quais quatro séculos
de ódio, de incompreensão e de inconformidade, haviam
aprofundado os terríveis e dramáticos sofrimentos originários da
perseguição religiosa movida pela Inquisição de Portugal, de sinistra
memória.

11 - Nota da médium: Durante a recepção desta obra foi-me concedida a visão desses
Espíritos, com as indumentárias típicas da época. Das mais comoventes era a configuração
da personagem Rubem, menino vivo, inteligente, regulando 13 anos, com efeito, e como que
nervoso, atemorizado. Trajava veludo negro, calções e meias à moda da época, semblante
marmóreo, lábios finos, olhos vivos e chamejantes, um pequeno gorro tipo “casquete”, com
pequena pluma branca. De vez em quando, em um ricto de dor, levava os dedos unidos à
altura da boca e soprava-os, como se sentisse ardência.
Segunda Parte
O Passado
I

Cumpriria cientificar-me do passado espiritual das personagens


implicadas no drama que se apresentava complexo e muito grave, a
fim de me habilitar para uma favorável solução do mesmo. Deixei,
portanto, os delinquentes sob a guarda protetora dos responsáveis,
espiritualmente, pelo Centro que os hospedava, e afastei-me
tranquilo, convidando Roberto a me acompanhar em um giro
indispensável pelo Espaço, à procura de informações seguras e
rápidas.
Certamente que, para inteirar-me dos remotos contratempos
que criaram o antagonismo entre os meus pupilos do momento, não
seria obrigatório o recurso de varrer as ondas luminosas do éter, em
busca de arquivos informativos que detalhadamente esclarecessem o
de que necessitaríamos para um trabalho eficiente de reeducação dos
mesmos. Tal processo, sendo fecundo e seguro, mesmo belo, é lento e
penoso, mesmo para as possibilidades de um Espírito algo
esclarecido. Impõe a necessidade de técnicos selecionadores, de
demarcações rítmicas das ondas da luz, casando-as com os nossos
padrões vibratórios, para que o serviço da boa captação não sofra
deficiências para as análises sobre os acontecimentos a serem
examinados.
Conforme não mais ignoram os estudiosos e pensadores do
Espiritismo, as poderosas sensibilidades etéricas, as ondas luminosas
disseminadas pelo Universo, o fluido universal, enfim, sede da
Criação, veículo da Vida, possui a prodigiosa capacidade de
fotografar e arquivar em suas indestrutíveis essências os
acontecimentos desenrolados sob a luz do sol, na Terra, ou pela
vastidão do Infinito. A História da Humanidade, portanto, estaria
arquivada em imagens e sons pelo infinito afora, e, como a da
Humanidade, necessariamente a história de cada individualidade,
particularmente. Rever, portanto, o que passou, rebuscando imagens
e cenas fotografadas nas “ambiências etéricas”, não será, para um
Espírito trabalhador, tarefa muito rara, embora penosa. Comumente
esses Espíritos o realizam para estudos científicos e filosóficos, lições
profundas e muito eruditas para as almas fortes que se dedicam a
cursos elevados na vida espiritual, para análises magníficas, que
somente ao mundo invisível interessam, por enquanto. Para o caso
de Leonel, no entanto, seria dispensável tal recurso, visto que
poderíamos contar com outros processos mais fáceis, igualmente
seguros. Poderíamos, por exemplo, extrair dos arquivos mentais do
próprio Leonel, em operação psíquica melindrosa, o seu passado
reencarnatório, particularizando episódios em que se visse em
relações com aqueles que, no momento, eram os seus obsessores.
Poderíamos tentar as mesmas informações com os seus quatro
perseguidores, obrigando-os a um retrocesso parcial ao pretérito
para extrair da sua memória, ou consciência (arquivos mentais do
perispírito), as recordações informativas, exatas, uma vez que, na
precária situação em que se achavam, não lograriam energias para
evocarem voluntariamente esse passado, com as minúcias de que
precisaríamos. Repugnava-nos, todavia, torturar tanto a todos eles,
pois forçá-los ao amargor do retrocesso da memória seria excitar-
lhes o sofrimento, aguçando-lhes as raivas, abalando-lhes as
faculdades carentes de bálsamos e consolações. Restava-nos, porém,
o formoso Espírito Ester, que nos procurara naquela mesma
emergência, dispondo-se a auxiliar os trabalhos com valioso
concurso em torno dos seus entes amados e prontificando-se a tudo
o que dela exigíssemos. Todavia, nós a víamos tão angelical e
adorável, tão docemente humilde e encantadora, que nos detivemos
no desejo de solicitar-lhe o favor de uma confidência minuciosa
sobre o passado dela própria e das duas falanges litigantes,
desencorajados de levá-la a reacender no próprio ser episódios
vividos entre dores e opróbrios, que antes deveriam ser para sempre
esquecidos. Deliberamos, então, recorrer ao guardião hierárquico de
Leonel, certos de que, por mais desgraçada e revel que seja uma
individualidade, sempre será exato que contará com fiéis amigos do
plano invisível, prontos a beneficiá-la e assisti-la, desde que ela
própria consinta em ser auxiliada por meio da boa vontade em
progredir.
Prontificou-se ao relatório solicitado o venerando mentor
espiritual e, bondosamente, qual o emérito professor na cátedra
elucidativa, foi dizendo, como em prelúdio às narrações que viriam a
seguir:
— O nosso querido Leonel necessitava, meus amigos, realmente,
da amarga lição que, finalmente, a lei das causas e dos efeitos o levou
a experimentar. Desde tempo remoto até a atualidade, ele se vem
inspirando em diretrizes corrompidas, arraigado a paixões inferiores,
sem boa vontade para a emenda em princípios regeneradores, apesar
dos nossos esforços para conduzi-lo à marcha legítima para o Bem. O
orgulho incorrigível, os instintos inferiores, a indiferença pelo
respeito a Deus e às leis da Vida e da Morte, a permanência
intransigente nas ínfimas camadas da moral, as consequências
sempre desastrosas daí decorrentes, bradavam por um corretivo
mais enérgico, uma punição que, levando-o à dor legítima,
dispusesse suas faculdades a atitudes mais sóbrias, permitindo-lhe
raciocínios a bem de si mesmo. Variados ensejos para o progresso
nós lhos vimos concedendo dentro de período milenar. Há
menosprezado tudo, conservando-se fiel ao antagonismo com a luz.
Vezes várias fizemo-lo reencarnar em ambientes honestos, no seio
dos quais lições e exemplos educativos jamais escassearam. A tudo
repudiou, desgostando pais, ferindo irmãos, atraiçoando amigos,
negando-se ao dever, reincidindo em faltas graves, afastando-se de
Deus!
“Fixado, assim, em um círculo que se tornava vicioso, urgia algo
em seu socorro por meio de um corretivo que para sempre lhe
sacudisse as forças psíquicas para novos rumos.
“Qual o corretivo, porém, a aplicar?... Que punição bastante
justa, castigo assaz sábio para, corrigindo-o, não reverter em
impiedade por parte da lei que os permitisse?...
“De fácil solução seria o problema, aplicado tantas vezes entre os
endurecidos no mal, pela mesma lei: deixá-lo inteiramente entregue
ao seu livre-arbítrio! Afastarmo-nos dos seus caminhos, não mais o
aconselhando durante o sono corporal e tampouco tecendo em torno
dos seus passos barreiras que anulassem os múltiplos malefícios com
que teimava em barricar a própria evolução moral-espiritual.
Deixarmos de interferir nas reencarnações, abandonando-o à própria
responsabilidade, sem nossas inspirações e assistência, a fim de que
sentindo, finalmente, a solidão interior envolver o seu espírito, ele se
humilhasse perante si mesmo e procurasse reencontrar-nos, com boa
vontade para a emenda e a conquista do progresso, impulsionado
pelos aguilhões da dor.
“Foi o que fizemos nesses quatro séculos, quando suas
desordenadas expansões exorbitaram dos direitos de cada um dentro
das sociedades terrenas. Sim, desde há quatro séculos, quando,
reencarnado à sombra da cruz do Enviado de Deus, depois de
prometer, no Espaço, labores benévolos a favor da Doutrina e da
Igreja a que desejou servir, do poder que ambas exercem sobre os
homens, abusou, aviltando-as com os crimes que praticou, tendo-as
por desculpa e delas se servindo como arma irresistível na prática de
abominações!”
Fez uma pausa o erudito mentor, que se diria antigo patriarca
oriental, e continuou após, salmodiando vibrações dulcíssimas, só
compreensíveis à mentalidade de um desencarnado como ele:
— A história do meu pobre Leonel é como a de tantas outras
ovelhas revéis do aprisco divino, o próprio drama encenado e vivido
pela Humanidade em litígio com as próprias paixões. Há períodos na
existência de um homem, como de uma sociedade e um povo, em que
seus erros tanto transvazam da órbita razoável em um planeta de
provas e expiações que o ricochete entra a puni-los incessantemente,
com todo o cortejo das atrozes consequências criadas pelos próprios
atos. É quando estão entregues a si mesmos, agindo inteiramente em
liberdade, sem nossa intervenção em nenhum ato de suas vidas.
Diante de tal punição – o viverem entregues a si mesmos –, não
resistirão por muito tempo aos convites da emenda. Seus excessos
atrairão situações de tal forma anormais, desequilíbrios tão
pungentes na marcha irrefreável das existências, que outro recurso
não encontrarão, a fim de remediá-los, senão a submissão às
equitativas leis da razão e da justiça... o que quer dizer que buscarão,
voluntariamente, o caminho do Dever, do qual jamais haviam
cogitado. A história messiânica do Filho Pródigo não poderia ser
melhor imaginada, para retratar a marcha da Humanidade, do que o
foi por nosso Mestre Jesus Nazareno. Eis, pois, o corretivo supremo
da lei: abandonar os rebeldes e endurecidos a si mesmos, não os
assistir sequer com a inspiração, quer no estado terreno quer no
espiritual, tal como o pai de família, que deixou partir o filho mais
novo, certo de que as duras experiências, consequentes das próprias
irreflexões, bem cedo o levariam à emenda dos costumes, à
regeneração definitiva...
Deteve-se novamente o nosso ilustre interlocutor.
Compreendemos que reunia recordações revolvendo arquivos
mentais para nos confiar particularidades de um drama que
sacrossantos deveres de assistência ao próximo nos autorizavam
conhecer, mas, passados alguns instantes, elevou novamente o seu
diapasão mental, que entendíamos por fraseado escorreito, e
prosseguiu:
— Fui judeu nos tempos do amorável mártir de Jerusalém,
recebendo então, de suas próprias palavras e exemplificações, a luz
dos ensinamentos eternos, e também obtendo a honra de morrer
sacrificado pelo amor da sua Doutrina, pouco depois da sua retirada
dos planos terrestres. Apaixonado por seus ensinamentos, como
Espírito impus-me o dever de auxiliar antigos compatriotas meus à
conversão ao vero Cristianismo, tarefa árdua, que me há extraído
lágrimas e muitas amarguras do coração. Não sou, portanto, senão
pequeno mentor da falange litigante que acabais de conhecer, isto é,
Leonel e família, falange da qual me afastei, temporariamente, por
ordens superiores, dada a rebeldia com que se conduziam, mas dos
quais me aproximarei desde que demonstrado seja o desejo do
progresso e da reconciliação com o Bem.
“Os sombrios acontecimentos que se desenrolaram em um
período de quatro séculos, em reações contínuas entre o Espaço e a
Terra, e que tiveram como personagens as duas famílias que
conheceis, se originaram dos seguintes feitos de uma e de outra...”
E então o Patriarca iniciou a narrativa, enquanto eu e Roberto,
presos às suas vibrações mentais, entrávamos em seus pensamentos,
assistindo, destarte, aos episódios, com tanta precisão e clareza como
se comparsas também fôssemos das cenas evocadas. No entanto,
para que ao leitor seja permitido mais facilmente investigar
minudências na moral dos fatos em apreço, descreveremos o a que
então assistimos, com redação nossa, esforçando-nos em
esclarecimentos que induzam a análises idênticas em numerosos
dramas terrenos que diariamente surpreendem a sociedade.
II

— Pelos meados do século XVI, já a Inquisição em Portugal


estava definitivamente estabelecida. Depois de longas e mui
fastidiosas démarches e controvérsias dos governos do Reino com os
poderes eclesiásticos de Roma, foi oficializado esse célebre tribunal,
meio religioso, meio civil, cujos fins desumanos, inconfessáveis, são
ainda hoje a mácula que enodoa não apenas o gesto da Igreja, que em
hora infeliz consentiu patrociná-lo, mas também os poderes civis que
o requereram e adotaram. A Inquisição, chamada, pela primeira vez,
na Espanha, o Santo Ofício, desde muito, segundo reza a História,
fora estabelecida na França (século XIII), onde não se arraigou,
como era de esperar, com a violência observada em outros países do
sul da Europa, isto é, na Espanha, em Portugal e na Itália. Em
Portugal, onde se verificaram os acontecimentos que evocamos,
coube ao rei D. João III, chamado o “Piedoso”, graças ao fanatismo
religioso de que dava provas, ativar as negociações junto de Sua
Santidade, o papa Paulo III, a fim de oficializá-la, decretando suas
funções com plenos poderes, pois compreendeu esse cruel soberano
as grandes vantagens de ordem econômica resultantes de uma
perseguição sistemática, oficial, contra os chamados “hereges”, ou
judeus, tão altamente colocados no comércio como na indústria, uma
vez que a perseguição incluiria a confiscação de suas fortunas e bens
imóveis. Jamais em outros países da Europa agiu a Inquisição,
contra os judeus, com tão cruel violência como na Espanha e em
Portugal. Esse tribunal civil-religioso, como vemos, era estabelecido
e patrocinado pelas leis religiosas, mas firmado também em poderes
civis, ou nacionais, e por isso tanto servia à Igreja, ou aos seus
representantes, como ao Estado. No todo não passou de politicagem
torpe, à sombra da qual as mais cruéis, desumanas e vergonhosas
arbitrariedades, os mais atrozes crimes eram perpetrados. O recurso
de que se lançava mão para exercer-se tal poder era a heresia. A
Inquisição tinha por finalidade perseguir os hereges, ou aqueles que
assim eram considerados pelos governantes fanáticos e os agentes do
Papado. Em Portugal e Espanha, eram os hebreus, ou judeus, os
mais perseguidos; mas é bem verdade que por toda a parte se
perseguia por qualquer motivo e também sem motivo algum, por
simples questões pessoais, levando-se o adversário às penalidades
máximas do Santo Ofício sempre sob acusações de heresias ou de
conspirações, permitindo-se, assim, livre curso às ambições, ao ódio,
às vinganças etc.12
Pertencendo à classe mais aprimorada em haveres de toda e
qualquer comunidade da Europa, mesmo acima de muitos vultos da
nobreza, em matéria financeira, os judeus se viam perseguidos pelo
Estado incessantemente, o qual lhes confiscava os bens para
aumentar os cofres públicos, ampliar o conforto pessoal e o fausto da
realeza e incentivar este ou aquele empreendimento de benefício
geral, ou público, muito embora tal dispositivo nem sempre
constasse da lei oficializada. Seria um roubo que o Estado cometia,
um assalto acompanhado de crimes e abomináveis crueldades, pois
os judeus eram classe honesta e seus haveres adquiridos por meio de
esforços heroicos e perseverante trabalho. Prendiam-nos desde que
fossem denunciados por este ou aquele cidadão, muitas vezes
provindo a denúncia de torpes conciliábulos de conventos e
paróquias e gabinetes governamentais; processavam-nos sob formas
ditas “legais”, torturavam-nos a pretexto de convertê-los à fé cristã e
salvar suas almas; queimavam-nos vivos em fogueiras levantadas nas
praças públicas; arrasavam, algumas vezes, suas propriedades,
depois de saqueá-las; aviltavam suas esposas e filhas, antes de
supliciá-las; esqueciam-nos para sempre no segredo de masmorras
solitárias como túmulos; cometiam, enfim, toda a espécie de vilezas e
atrocidades, de que hoje o mundo se envergonharia – e tudo
executavam em nome da religião cristã e à sombra da cruz redentora
daquele que repetira aos seus contemporâneos:
“Amai-vos uns aos outros como eu vos amei!”
Ora, precisamente em Lisboa, no bairro hoje denominado
Mouraria, durante o reinado de D. João III13, e quando as férreas
leis inquisitoriais exerciam com violento vigor as suas
arbitrariedades, erguia-se um solar de belas proporções, rodeado de
altos muros de pedras superpostas, como fortificado, cujos portões
pesados antes se diriam os batentes de uma pequena fortaleza.
Tratava-se de agradável vivenda ornada de pitorescos jardins, que
muita inveja causava a mais de um fidalgo ou luminar do clero que
por ali se aventurasse em cavalgadas felizes nos dias de maior
ociosidade; de fartos pomares, de aviário rico, bosquete de oliveiras e
tamarindeiros frondosos e pitorescos, nascentes de água pura e
cristalina, que à mansão emprestavam semelhanças patriarcais,
recordando a lendária Judeia ou a singela Galileia, tão bem descritas
nos Evangelhos do Senhor. Ali residia o ex-Rabino, nascido Timóteo
Aboab, em Portugal, hebreu por tradição, assim chamado e
conhecido por seus compatriotas e irmãos de crença israelita, mas a
quem as leis do fanatismo religioso, encarnadas na personalidade
cruel do rei D. João III, durante uma das muitas perseguições
verificadas contra os indefesos súditos de raça hebreia, obrigaram à
conversão e ao batismo da fé católica romana sob o nome de Silvério
Fontes Oliveira. O Silvério fora caprichosamente arrecadado do
santo do dia do batismo, enquanto o Fontes Oliveira escolhido fora
pelo próprio batizando, sob inspiração das preciosas fontes de água
pura existentes em seus jardins e das oliveiras frondosas que lhe
emprestavam sombras protetoras para a sesta.
O novo cristão Silvério, ou o ex-rabino Timóteo Aboab, era
riquíssimo, como a maioria dos seus irmãos de raça, industrial e
banqueiro, envolvendo-se em elevadas transações comerciais mesmo
com o estrangeiro. A par disso, como doutor da lei israelita, que era,
possuía excelente cultura intelectual, falando alguns idiomas
diversos do seu hebraico tradicional e vários dialetos orientais.
Diziam dele que continuava exercendo o ministério da sua grei
religiosa, mesmo depois da suposta conversão à Igreja de Roma, isto
é, continuava como sacerdote judeu entre seus correligionários, em
sinagogas clandestinas, mas muito bem frequentadas pelos adeptos
de Moisés e dos Profetas do reino de Israel. Fora ele casado com uma
dama graciosa e muito formosa, espanhola de nascimento, mas
descendente de árabes legítimos, cujo nome seria Arammza. Desse
consórcio felicíssimo três filhos varões haviam chegado ao mundo,
para orgulho do respeitável Rabino, cujo coração se dilatava tanto,
contemplando a prole masculina, como se teria dilatado o coração do
patriarca Jacó contemplando os seus doze rebentos varonis, que se
ramificaram nas doze tribos vitoriosas e heroicas de Israel.14 Seus
nomes eram, em escala decrescente – Joel, Saulo e Rubem. Na
mansão da Mouraria vivia ainda uma sobrinha de Timóteo, a
formosa e meiga Ester, cujos pais haviam sucumbido sob os tratos da
Inquisição, deixando-a órfã aos 6 anos. Quando Rubem, o filho mais
novo de Timóteo, contava apenas seis meses de existência, houve
uma das terríveis perseguições em Lisboa e o Dr. Timóteo e esposa
foram presos pelo Santo Ofício. Torturados, a fim de abjurarem a
crença dos seus antepassados, Timóteo, visando a furtar a esposa às
crueldades que presenciava e sofria, abjurou – ou fez que abjurou – a
velha fé nos Profetas da sua raça e fez abjurar a esposa, aceitando,
então, o batismo, a troca de personalidade social, com um nome bem
português e ainda a humilhação da troca do nome dos filhos, por cuja
sorte tremia de aflição no fundo do cárcere. Em verdade, porém, o
horror e o ódio à crença dos cristãos recrudesceram em seu peito e,
intimamente, no silêncio do seu coração e nas fecundas exaltações do
próprio pensamento, conservava-se o mesmo fervoroso hebreu de
sempre, venerador da lei de Moisés e da crença de seu povo, agora
porventura com mais nobre fervor e sentidos zelos de crente
ofendido na delicadeza do próprio ideal. Todavia, fora em vão o
sacrifício no tocante à pessoa de Arammza. Não resistindo aos tratos
sofridos na prisão e tampouco ao desgosto pela abjuração, que
considerava ofensiva ao Deus de Israel, como à sua honra pessoal, a
formosa judia espanhola deixou de existir, ficando inconsolável o
pobre esposo e na orfandade os três pequenitos cujos nomes, após o
batismo imposto pela catequese inquisitorial eram Henrique, José e
Joaquim, respectivamente. Igualmente batizada, Ester passou a
chamar-se Mariana, prenome bem português, que lhe fora aplicado
no intuito de encaminhá-la mais satisfatoriamente à salvação
eterna... segundo a hipócrita convicção daqueles que lho impuseram.
Nestas páginas, não obstante, continuaremos a tratar nossas
personagens pelos seus nomes de origem, uma vez que, liberais que
deveremos ser, respeitaremos o direito que têm eles, ou quem quer
que seja, de se nomearem conforme lhes aprouver.

12 - N.E.: A Inquisição era tribunal eclesiástico, estabelecido pela Santa Sé, mas firmado
sobre os poderes civis. Em Portugal, como é sabido, o governo usou de grande insistência
para que a Santa Sé permitisse o seu estabelecimento. Os inquisidores geralmente eram os
próprios religiosos: bispos, padres, frades etc.
13 - N.E.: D. João III reinou de 1521 a 1557.
14 - N.E.: Os doze filhos de Jacó, dos quais se originaram as doze tribos de Israel, são:
Rubem, Levi, Benjamim, José, Efraim, Manassés, Zebulom, Issacar, Gade, Dã, Naftali, Asser
– segundo reza o Velho Testamento. (Deuteronômio, 33.)
III

Corria normalmente a vida do Dr. Timóteo e sua família desde a


última perseguição que fizera sucumbir sua muito amada mulher.
Outras refregas se verificaram depois, visto que eram constantes,
mas sem grandes prejuízos para os perseguidos e sem perturbações
para a sua mansão. Passando agora por cristão, com toda a família,
os vigias e espiões da Inquisição observavam que, realmente,
frequentavam as igrejas, assistiam a missas, praticavam os
sacramentos, submetiam-se aos jejuns decretados pelas bulas,
abatiam aves e animais para a sua mesa, não mais sob indicações dos
princípios judaicos, mas como o faziam os povos ocidentais, ou
antes, os cristãos etc. Os filhos eram instruídos por frades
dominicanos15, sem que, a bem deles próprios, pudesse o pai se opor
à opressão, indo os dominicanos, não raro, à mansão, a pretexto de
levar lições extraordinárias, a fim de velarem pela sua fidelidade à
nova fé, mas em verdade no intuito de observarem se não se trairiam
deixando perceber traços de que “judaizavam” ocultamente, isto é, se
praticavam algo que revelasse o culto judaico. A revolta se alastrava,
então, facilmente, pelo coração do antigo Rabino, ao qual obrigavam
a todas as práticas contrárias às suas tradicionais convicções, e o
amargor crescente tocava, muitas vezes, as raias do desespero,
quando compreendia que nem mesmo direitos sobre os filhos podia
ter, pois estes eram encaminhados sob princípios religiosos
antagônicos com aqueles que desde milênios inspiravam a sua raça, a
esta fornecendo aquela convicção inabalável e o heroísmo que, desde
os dias de Abraão até o presente, dos hebreus fizeram a raça mais
poderosa e moralmente forte na Terra.
Não obstante, Timóteo era homem bondoso, honesto,
inofensivo, incapaz de uma vilania, até então nada revelando que
desse a supor a odiosidade de que seria capaz futuramente; chefe de
família amoroso e respeitável, de hábitos rígidos e decência
inatacável. Sua casa, desde que as arbitrárias leis do Santo Ofício
obrigaram a tornar-se cristão, abria-se a visitas de fiéis católicos
cheios de curiosidade e inveja, os quais, afetando piedade e
abnegação, iam a título de animá-los ao progresso na fé, mas, em
verdade, para cobiçar os valores que a mansão encerrava, as
preciosidades dos mármores do jardim, com seus repuxos e tanques
pitorescos rodeados de belas flores, das baixelas e dos cristais, das
obras de arte que aos seus salões tornavam cenáculo digno de
admiração. Sabendo-o rico, exploravam-no sem pejo, não apenas os
dominicanos representantes do Santo Ofício, a pretexto de cobranças
de dízimos, licenças, espórtulas para a salvação da sua alma e da
alma dos filhos etc., mas também outros indivíduos, tais como
fidalgos arruinados, autoridades civis e religiosas etc.
Ora, assim sendo, impossível seria ao infeliz judeu e sua
descendência simpatizarem com as opiniões de indivíduos tão
desleais e moralmente inferiores, e ainda menos confiarem em uma
crença religiosa cujas diretrizes permitissem iniquidades como as
que eram aplicadas a ele próprio e aos seus irmãos de raça, por
aqueles que dela se propalavam luminares. Ignorava ele que a
essência do Cristianismo rezaria exatamente o inverso de tudo
quanto a Inquisição proclamava e executava, e que, como doutrina,
era antes a mais sublime expressão do amor de Deus e da
beneficência para com o próximo existentes sob a luz do sol, e que
aquele Cristo de Deus, que reis, papas e dominicanos lhes impunham
pela violência e o terror, jamais aprovaria os planos e os meios por
que seus pretensos representantes na Terra se orientavam, valendo-
se do seu nome, ao qual profanavam, dele se utilizando para o
decurso das próprias paixões.
Dentre os comensais da mansão judaica – corvos farejando
possibilidades de altos proventos financeiros – destacava-se certo
dominicano inquisidor, havia pouco chegado a Lisboa, pela
frequência assídua e amabilidades talvez excessivas em torno de toda
a família Aboab, ou da família neocristã Fontes Oliveira, como era
chamada após o batismo. Tantas amabilidades tinham a
particularidade de preocuparem o dono da casa, malgrado a lealdade
de que pareciam emanar. A par desse, dois outros havia, amigos
íntimos do primeiro, irmãos consanguíneos, gêmeos, e que
igualmente se destacavam não tanto pela assiduidade, como pelos
constantes protestos de amizade e testemunhos de consideração que
aos Fontes Oliveira voluntariamente apresentavam, e que tudo
indicava serem verdadeiros, leais. Chamavam-se, o primeiro, frei
Hildebrando de Azambuja, prenome que encobrirá, nestas páginas, o
de certo teólogo português e inquisidor cruel no reinado de D. João
III,16 e os outros Fausto e Cosme de Mirandela, pois descendiam de
antigos nobres italianos.
Pelas tardes dos domingos, frei Hildebrando de Azambuja
merendava com seus amigos neocristãos, libando seus bons vinhos e
em sua companhia se alegrando na intimidade da mesa de refeições.
Associava-se gentilmente aos seus passatempos caseiros, tais como
jogos, cânticos, ensaios poéticos etc., então muito em uso nos
recintos domésticos; aceitava-lhes as frutas e os refrescos, louvando
sem constrangimentos o cavalheirismo dos anfitriões, no que era
secundado por Fausto e Cosme, caso se encontrassem estes
presentes. Ester, meiga e linda como a rosa em botão, simples e
virginal como a rola casta das florestas solitárias do Hermon, não
obstante raramente se associar às reuniões dos homens, como de uso
entre as famílias hebraicas antigas, sempre que presente
Hildebrando, era incluída nas mesmas, intentando desviar
observações deste a respeito dos hábitos raciais, cantando para os
hóspedes de seu tio doces e sugestivas canções da Espanha, da Itália
e mesmo de Portugal, acompanhando-se suavemente à cítara,
porquanto vinha recebendo tão boa educação social e instrução tão
vasta para a época, que frei Hildebrando, de uma das vezes em que a
ouvira, sorrindo e fitando-a com olhar ardoroso, exclamou:
— Muitas princesas da Espanha e de Portugal não obtêm tão
adiantada instrução quanto a vossa, menina Mariana! Para que há de
a mulher adornar-se tanto intelectualmente, se os seus
compromissos com a sociedade são tão limitados, dispensando
culturas?...
E, voltando-se para o antigo Rabino, prosseguiu:
— Cuidado, amigo Silvério! A mulher, se se embrenha pelas
letras, ultrapassa o homem na potencialidade criadora, podendo
derribar o próprio mundo, com as astúcias e encantamentos de que
se faz acompanhar... Não vos esqueçais de que constantemente o
demônio a inspira...
Riram todos, encaminhando para nível humorístico a
impertinência do dissimulado representante da Inquisição, ao que,
em seguida, retirando dos lábios o comprido cachimbo que lhe era
inseparável amigo, retorquiu o dono da casa:
— Mariana é órfã e pobre, meu caro D. Frei Hildebrando!
Precisaremos habilitá-la para quaisquer emergências desagradáveis
que possam advir, depois da minha morte!... Instruindo-se, poderá
tornar-se preceptora em casas abastadas, ocupando lugar honroso,
ao abrigo da miséria...
O dominicano, porém, não quis compreender as judiciosas
observações do bom homem e alongou a impertinência:
— Como assim, meu caro amigo e senhor?... Não sois, então,
riquíssimo?... E porventura vos negaríeis a conceder um dote, uma
herança à vossa sobrinha órfã?... Consta-me mesmo que a gentil
Mariana desposará seu primo Henrique, vosso primogênito... Para
que, pois, obrigá-la ao sacrifício de tão profundos estudos quando só
a religião bastaria para orientá-la nas tarefas a cumprir dentro do lar,
e quando sua idade requer plena satisfação dos sonhos que
certamente lhe fervilham na mente e no coração?...
Timóteo – ou Silvério – era caráter ponderado e vigilante.
Nascido na opressão, vivendo longe da sua pátria tradicional,
acossado por múltiplos perigos advindos da perseguição religiosa, e,
por tudo isso, habituado a conter os próprios impulsos de revolta e
ímpetos de violência, virtude racial desenvolvida no martirológio
milenar de continuadas opressões e cativeiros, e igualmente
possuindo boa educação social, respondeu ao insofrido interlocutor,
entre um meio sorriso de brandura, não isento de secretos receios:
— Tendes razão, meu caro D. Frei Hildebrando, tendes, como
sempre, razão! Conquanto eu já não seja riquíssimo, como vossa
bondade de mim supõe, pretendo, efetivamente, prendar minha
sobrinha com um dote, case-se ela ou não com o meu filho
Henrique... Não obstante, nos dias em que vivemos, quando tantas
surpresas nos envolvem, tudo será possível acontecer... Temo que, de
uma para outra hora, algo de funesto a mim próprio suceda,
deixando-a desamparada... Os bens de fortuna são efêmeros,
temporários: poderão faltar-nos a qualquer momento, se os
possuímos, e por qualquer circunstância... Somente os bens morais e
intelectuais são de nossa definitiva propriedade... lá reza a sabedoria
de todos os povos... por isso mesmo, educo Mariana com a fortuna
do saber, tesouro imperecível que jamais lhe será arrebatado... De
outro modo, peço vênia para observar que a instrução proporcionada
à minha sobrinha não ultrapassa a que se ministram às damas
destinadas a se tornarem preceptoras, ou aias professoras, das casas
abastadas...
— Magoa-me profundamente ouvir-vos, amigo Silvério! Que
desagradáveis surpresas poderiam advir para vós e vossos filhos, se
há dois anos sou vosso amigo e protetor de todos os dias, disposto a
evitar quaisquer contratempos que possam ainda assaltar-vos?... Não
confiais, então, em nós outros, quando tão desvanecedoras provas de
estima e solidariedade vos temos concedido?... Não possuís,
porventura, cartas de recomendações protetoras, fornecidas por Sua
Santidade, para garantias vossa e de vossa família, que tão
nobremente aceitou a única fé verdadeira?... Não estamos, ao
demais, ao vosso dispor, resguardando-vos, em quaisquer
emergências, dos zelos tão justos da nossa Santa Inquisição, que só o
que deseja é a salvação das almas infiéis?... E por que temer novas
perseguições, se agora sois dos nossos adeptos fiéis da única Igreja
verdadeira do Universo?...
Timóteo deixou escapar do peito angustiado um profundo
suspiro, que não passou despercebido à argúcia do ilustre
dominicano, e, enquanto se erguia a fim de chamar um escravo,17
respondia, algo pesaroso, entristecido e enigmático:
— Tendes sempre razão, D. Frei Hildebrando, tendes sempre
razão! Sim, eu confio em vós outros porque me honro de ser vosso
amigo leal e entendo que, assim sendo, sereis igualmente meus leais
amigos... Todavia, insisto: nos dias correntes tudo será possível
acontecer... a despeito da vossa bondade de amigos e à revelia dela...
Chegaram vinhos, frutas açucaradas, refrescos e cordiais. E,
enquanto os visitantes se deliciavam ante a prodigalidade e fineza
dos donos da casa, a bela judia pegava novamente da cítara e
continuava a doce tarefa de embevecer-lhes a audição com outras
canções do seu repertório, nostálgicas e lindas...

***

Frei Hildebrando de Azambuja foi, em princípios deste século,


aquele infeliz Leonel, reencarnado, aquele jogador, incrédulo e
suicida, cujo drama íntimo obrigava a nós outros, Espíritos
assistentes, médiuns e espíritas cooperadores, ao trabalho de que
damos notícias ao leitor nestas singelas páginas; e Fausto e Cosme de
Mirandela dois dos seus filhos, que foram quase suicidas, salvos a
tempo da odiosa tentação.

***

No entanto, o que era bem certo é que nem Timóteo confiava em


Hildebrando e seus sequazes, nem Hildebrando e seus sequazes
estimavam Timóteo e família e ainda menos acreditavam na sua
conversão à fé católica. Ambos, intimamente, nutriam um pelo outro
desconfiança inquietadora, sentimento hostil e antipatia pessoal
perigosa, que a um observador levaria a compreender que não
tardaria muito que tal mal-estar oculto explodisse em desajustes
irremediáveis, arrastando uma daquelas perseguições individuais
ilógicas, absurdas, incompreensíveis, com que os séculos
inquisitoriais afrontaram a posteridade. O de que nenhum dos dois,
porém, duvidava era que, desse antagonismo, dissimulado, de um
lado, pela boa educação social e o terror, e, do outro, pelos interesses
inconfessáveis, quem levaria a melhor seriam frei Hildebrando e seus
apaniguados, visto que nenhum judeu confesso ou convertido à
Igreja de Roma estaria em condições de medir forças com
inquisidores e vencê-los, ainda que a razão e a justiça estivessem de
seu lado...

15 - N.E.: Religiosos da Ordem de São Domingos, criada pelo pregador espanhol Domingos
de Gusmão, em 1215. Muitos desses religiosos foram inquisidores, sobressaindo-se dentre
tantos, pelas crueldades praticadas, o célebre Tomás de Torquemada, inquisidor-geral na
Espanha, que, segundo consta, “fez condenar à fogueira mais de oito mil pessoas”, e
Jerônimo de Azambuja, em Portugal, não menos célebre pelas mesmas crueldades.
Domingos de Gusmão, falecido em 1221, foi canonizado pela Igreja em 1234.
16 - N.E.: Jerônimo de Azambuja, célebre e cruel Inquisidor-mor e teólogo, de Portugal,
também conhecido pelo pseudônimo de Oleastro, ao tempo de D. João III. Nomeado
inquisidor em Évora, em 1552, só em 1555 se transferiu para Lisboa.
17 - N.E.: Os judeus, mesmo convertidos, não conseguiam criadagem entre os cristãos.
Apelavam então para a escravatura, sempre existente entre outras raças não cristãs ou
judaicas.
IV

O incidente que acabamos de descrever tivera o condão de


inquietar o antigo Rabino e seus filhos. Todavia, comedidos e
discretos, de início não revelaram as íntimas impressões, a fim de
mutuamente não se desgostarem. Joel, o primogênito dentre os três
irmãos, chamado Henrique após o batismo, desde algum tempo não
considerava tranquilamente as atitudes excessivamente amáveis do
inquisidor para com a sua Ester. Observava-o e, frequentemente,
distinguia-o seguindo a jovem com olhares ansiosos, medindo-lhe a
silhueta em indiscrições muito ofensivas para uma dama, e profundo
terror se apoderou do coração do adolescente, cujo nobre sentimento
de afeição pela prima tocava as raias da veneração.
Por outra noite de domingo, quando as mesmas indiscrições
eram observadas pelo jovem Joel, pois, como sempre, Hildebrando
exigira de Mariana as formosas canções, e após as ruidosas
despedidas dos clérigos, já bastante excitados pelos vinhos das
adegas dos judeus, Joel, incapaz de calar por mais tempo as
desconcertadoras impressões que o desorientavam, trocava
confidências com o pai:
— Temo por nossa Ester, ó meu senhor e pai! Frei Hildebrando é
concupiscente e devasso... Sabemos que muitas jovens da nossa raça
hão sido imoladas sob seus desregramentos sexuais, antes que a
tortura dos tratos inquisitoriais e das fogueiras para sempre as
libertassem da vergonha a que se viram atiradas... Suspeito desse
dominicano cruel, que passa por ser o nosso amigo mais dedicado
entre os cristãos, que o que deseja antes de tudo é a posse de minha
Ester... e as mais aflitivas apreensões meu coração vem sufocando
em silêncio, a tão abominável sugestão... Pressentimentos sinistros
acovardam-me a alma... Não poderemos tentar sequer a reação, que
seria infrutífera, porquanto, quer os inquisidores, quer as
autoridades civis, são todos nossos desumanos inimigos... Reagir,
algo tentar em nossa defesa seria precipitar represálias que ainda
poderão demorar a chegar até nós pelos processos rotineiros... E se
ainda nos ferissem a um, somente... a mim, por exemplo, seria
passável... mas os desalmados estendem a crueldade ao máximo do
inconcebível, atingindo primeiro ao inocente a quem amamos e que
nos ama, para mais ferazmente18 nos vilipendiar e torturar... tal
como fizeram à nossa mãe e a vós...
— Cala-te, meu filho, por quem és! Não reavives feridas que
precisarão cicatrizar...
— Que fazer, pois, ó meu senhor e pai, em defesa de Ester, em
nossa própria defesa?...
O atribulado israelita meditou durante alguns instantes para,
finalmente, cedendo ao seu pendor pacífico, advertir:
— Daí, meu filho, poderá também acontecer que ambos
estejamos ajuizando precipitadamente do pobre frade, o qual, a bem
da verdade o deveremos declarar, vem testemunhando boa
consideração a todos nós... A prevenção que intoxica o nosso
coração, a lembrança do amargo pretérito em que sucumbiu tua mãe,
tantos e tão rudes acontecimentos que vimos presenciando acerca
dos nossos infelizes compatriotas terão criado em nossa mente o
mórbido pavor que nos torna hostis para com os pobres clérigos
nossos amigos, os quais até agora nenhum dano nos causaram...
visto que Cosme e Fausto são recém-ordenados e frei Hildebrando
apenas há dois anos chegou a Lisboa como Inquisidor-mor...
Tenhamos antes paciência e confiemos nos poderes do “Santo dos
Santos”...19
Joel baixou a fronte em uma atitude respeitosa, sem querer
contestar o pai, mas demonstrando, no silêncio mantido, a não
aprovação aos conceitos ouvidos. De súbito exclamou novamente, os
olhos brilhantes, a voz animada como se uma centelha de esperança
o fizesse vislumbrar a solução desejada:
— E se fugíssemos para a Itália, onde, ao que afirmam, nossos
compatriotas vivem em segurança?...
— Confesso que tenho maturado seguidamente nessa
possibilidade, meu Joel... mas fugir, propriamente, não acredito que
o possamos fazer... Obtermos, porém, uma licença, uma dispensa, ou
o quer que seja que as leis exijam, que nos permitam deixar o Reino,
sim, deveremos pensar nessa possibilidade...
— Sim, sim, meu pai! Rogo-vos penseis nesse alvitre com
insistência, a fim de o realizarmos sem demora...
— Tentarei novamente obter agora o que não consegui há alguns
anos... Quando da primeira perseguição sofrida, tentei fazê-lo,
desejando libertar Arammza do que, finalmente, veio a acontecer...
mas frustraram-me as esperanças! O Santo Ofício, apaniguado com
as leis do país, dir-se-ia conhecer, porque as aplica, todas as
artimanhas de Belzebu, para desgostar e castigar os hebreus... Aliás,
consentem, às vezes, que nos retiremos do Reino, mas impedem que
carreguemos nossos bens... Tomam-nos os haveres, confiscam-nos!
E como sairemos, assim votados à mais extrema miséria?...
— Tentemos sempre – insistiu o moço. – Não nos será possível
permanecer nessa impassibilidade quando tantas apreensões nos
assaltam...
— Tenho em mente – prosseguiu Timóteo – tentar o nosso
afastamento daqui lenta e dissimuladamente, porquanto estou certo
de que não nos deixarão partir de outra forma... Tentarei um salvo-
conduto para ti e Saulo a título de mandar-vos a Roma, tratando de
completar vossa instrução artística... bem assim para agradecer a Sua
Santidade os favores que nos hão sido dispensados para que não
mais nos perseguissem... Mais tarde encontraríamos meios de
mandar Ester, e depois eu e Rubem seguiríamos...
— Mas... Ester permanecerá aqui sem minha vigilância?... Vós,
meu pai, viveis assoberbado de múltiplos afazeres, não podereis
prestar assistência a tudo...
O Rabino sorriu e acrescentou, compreendendo os zelos do
jovem, profundamente enamorado da formosa prima:
— Visitarei, dentro de alguns dias, solicitando uma audiência, a
senhora condessa de Faro, a qual muito amavelmente se prestou a
servir como madrinha de Ester, quando do batismo desta na fé
católica, que nos foi imposto... Como sabes, não há ela desprezado
ocasião de proteger a afilhada, favorecendo até mesmo a sua
educação entre as freiras de São Domingos, interessando-se
vivamente por tudo quanto lhe diz respeito. Narrar-lhe-ei,
confidencialmente, nossos terrores e observações e suplicarei sua
proteção, ainda uma vez, para a afilhada... a qual permanecerá em
sua companhia até que seja possível retirá-la de Portugal... A
condessa é pessoa considerada entre a nobreza e até entre a realeza...
e Ester, necessariamente, estará defendida pela sua
respeitabilidade... Não creio que tão ilustre quão respeitável dama se
furte a assistir aquela por quem se tornou responsável perante Deus,
segundo rezam as leis da sua própria crença religiosa, em uma
emergência crítica... E, assim sendo, impossível será a frei
Hildebrando, ou outro qualquer falso amigo, algo promover de
prejudicial muros adentro da residência de tão admirável senhora...
Não obstante presa de insopitável constrangimento, Joel
aprovou a programação engendrada pelo cérebro apavorado do pai,
visto que incapaz se reconhecia de algo apresentar superior ao que
ouvira. Todavia, não conciliou o sono aquela noite senão pela alta
madrugada. Insólita inquietação cruciava-lhe o coração, como se
funéreos pressentimentos o advertissem da aproximação de
irremediáveis borrascas.
18 - N.E.: Muito produtivo, abundante; fecundo fértil.
19 - N.E.: Deus.
V
O moço hebreu amava Ester desde menino, quando a orfandade,
tornando-os desditosos, unira a sua infância para solidificar um
elevado sentimento de amor, que resistiria à desesperação de todas
as dores advindas da perseguição religiosa, das impossibilidades e da
ausência, desafiando os séculos para se firmar como virtude imortal
que os guiaria a todas as demais conquistas morais indispensáveis ao
progresso pessoal. Para ele, Ester seria o bem supremo da vida, sua
mais doce esperança de felicidade, sua ardente fé no porvir, a mais
sagrada e santa aspiração, pelo bem de quem não vacilaria em imolar
a própria felicidade e até a vida. Um gesto afetuoso que ela lhe
dirigisse, um olhar mais acariciador, um sorriso porventura ainda
mais terno que os costumeiros eram dádivas preciosas e
inesquecíveis, que ele gostava de recordar em noites de insônia,
quando as ânsias do amor inquietavam a sua alma impelindo-a aos
mais lindos sonhos que pudessem florescer em um coração de 20
anos! Então festejava em doces poemas as graciosas atitudes que tão
bem calavam em seu espírito, e, já no dia seguinte, enternecido e
tímido, oferecia-os à jovem prometida, depois de trasladá-los para
grandes páginas de legítimos pergaminhos, habilmente
ornamentadas de caprichosos desenhos e arabescos então muito
usados para a literatura, acompanhados sempre das mais belas rosas
existentes pelos quintais e jardins da melancólica mansão. Se,
todavia, a sós consigo, se permitia devaneios tão ardentes, junto da
linda jovem portava-se acanhadamente, tal o adolescente incapaz de
um monossílabo ante a senhora inspiradora dos seus primeiros
arrebatamentos. Preferia antes ouvi-la cantar, para admirar, em
silêncio, as suas feições delicadas, como se contemplasse,
efetivamente, a própria encarnação da felicidade. Jamais se atrevera
a beijar-lhe sequer a ponta dos dedos ou os anéis dos cabelos...
porque em sua presença sentia-se réprobo pelo simples fato de ser
homem e considerá-la um anjo, o bom gênio de todos os Aboab,
causa única da felicidade íntima e do íntimo encantamento que
balsamizava as apreensões da velha mansão judaica.
Ester, efetivamente, merecia a profunda adoração de que se
reconhecia alvo por parte da família. Residindo na companhia do tio
desde os 6 anos, fora bem verdade que desde a mesma época a todos
se impusera pela superioridade moral de que era portadora. Desde
então fora como que mãe desvelada: acalentando o pequenito
Rubem, órfão de mãe aos seis meses; divertindo Joel e Saulo com as
belas canções que já sabia entoar ou fazendo rir o tio com suas graças
de criança amável e inteligente, tal se desde o início da existência
houvera compreendido que seu dever de mulher seria, acima de
tudo, amar e proteger, tornando-se esteio imarcescível, dentro da
própria fragilidade, daqueles varões a quem os desenganos e as
lágrimas haviam crestado o coração, por assim dizer, ao pé do berço.
Entrementes, Ester era cristã convicta, sem que a família o
suspeitasse, sincera e enternecidamente amando aquele doce
Rabboni que morrera supliciado em uma cruz, entre dois infelizes
desajustados do Bem. A convivência com duas bondosas freiras
dominicanas, que, por influências da madrinha, a guiavam na
instrução religiosa, florescera em virtudes, permitindo à menina
entrar em conhecimentos diretos com as leis e a história do
Cristianismo primitivo. Ela compreendeu e assimilou tão bem a
redentora doutrina do Messias que fácil fora ao seu coração
raciocinar que – a Inquisição era uma criação humana, inspirada na
ambição e nas paixões pessoais, a antítese daquilo que ela
diariamente compreendia e admirava mais; era o escárnio, o crime,
que selvagemente se apropriavam do valor incontestável do nome de
Jesus Nazareno para servirem às torpezas dos homens, em prejuízo
da própria doutrina por aquele ensinada. Tal segredo, porém, era
absolutamente seu e ela o guardava cuidadosamente no recesso de
sua alma angelical, que somente com o próprio Jesus se
confidenciava, durante as orações da noite, quando então descerrava
o coração para que apenas Ele contemplasse os seus verdadeiros
sentimentos, dele recebendo então suaves eflúvios de ânimo e
esperanças... Pelas tardes domingueiras, no entanto, se não
advinham visitas ou se estas se retiravam mais cedo, reunia-se a
pequena família à sombra das oliveiras e dos tamarindeiros do
jardim do discreto solar. Ternamente harmonizados por um vivo
afeto, os jovens irmãos e sua prima conversavam e riam ou ouviam
Timóteo narrar as arrebatadoras aventuras do povo de Israel:
Abraão, Jacó, José, o Egito e o cativeiro sob o poder do Faraó ou de
Babilônia eram fases inesquecíveis, cujo noticiário conviria ser
passado de geração a geração, como estímulo e lições que se
decalcariam indelevelmente no coração de cada descendente da
raça... Depois era o Decálogo, imarcescível legislação de caráter
divino, obtido pelo grande Moisés – o maior vulto da raça e seu
maior profeta – em colóquios sublimes com as Potências Celestes, no
alto da montanha sagrada do Sinai... E eram a vida e as pregações
dos seus amados profetas e sábios... Eram Davi, o rei poeta e bem-
amado, de vida fértil e tumultuosa, seus amores, suas vitórias nas
guerras... Salomão, o rei sábio e inigualável, que prendara Israel com
o Templo sagrado, que tantas honras e consolações espargira,
durante séculos, sobre as dores sem-fim do “povo eleito”... E o
heroísmo e as virtudes daquelas mulheres de Israel, sempre
submissas ao dever, sempre lindas e admiráveis, nos relatórios do
eloquente Rabino, tais como a própria Ester, que ali estava e ouvia
embevecida... Explicava-lhes, em seguida, as Escrituras, ou o ensino
dos profetas, dando-lhes ainda a Lei com o conhecimento do
Talmude, o livro venerado, que os mais devotados preferiam ler
ajoelhados; revelava-lhes a Torá e suas recomendações, seguidas de
um desfile majestoso da filosofia do povo hebreu, sofredor,
perseguido sempre através dos milênios, mas também sempre
invencível e fiel às tradições dos seus remotos ancestrais. Então,
entusiasmo especial se apoderava do Rabino e o vigor da oratória
elevava-se a cada novo lance da sua épica exposição, purpureando-
lhe as faces e alterando-lhe a voz como nos antigos tempos da
cátedra, em sua sinagoga...
Extasiados, os jovens ouviam em silêncio, mas intimamente
orgulhosos por descenderem dessa raça heroica e tão altamente
prendada pelas simpatias do Sempiterno, considerando-se, com
efeito, superiores em valor moral a todas as demais raças da Terra. E
quando a voz entusiasta de Timóteo estacava e seus olhos se
inundavam de comovidas lágrimas de veneração à sua raça, Ester
aproximava-se. Tomava a cítara dolente e cantava docemente Salmos
do Rei poeta, aquele inesquecível e vitorioso Davi, encerrando com
selos de ouro tão formosos serões domésticos à sombra dos
arvoredos do jardim.
A despeito de tudo, porém, jamais se sentiam edificados e
confiantes, senão amargurados e temerosos, pois sabiam que uma
constante, sinistra ameaça pesava sobre suas cabeças infelizes, como
se advertências invisíveis notificassem às suas consciências que uma
grande e irremediável fatalidade se aproximava. Sabiam que a
confortadora intimidade que se permitiam assim, para dilatarem os
oprimidos corações no culto sincero à crença que amavam, era
prevista como infração gravíssima e rebeldia, nos códigos da
Inquisição, passível de condenação e torturas, quiçá da morte pelo
fogo. Era “praticar o Judaísmo”, podendo levá-los ao cárcere
perpétuo na melhor hipótese, e mais certamente à morte, sob a
agravante de já se encontrarem eles batizados e considerados
conversos à fé católica. No entanto, a vida e a história arrebatadora
de Israel achavam-se gravadas em suas almas com as impressões de
um sentimento tão profundo que eles se esqueciam dos perigos que
corriam para se permitirem o consolo supremo de cultuarem o Deus
Todo-Poderoso e Único – o Deus de Israel – conforme as efusões
sacrossantas dos seus corações e a tradição da raça o exigiam. Por
isso mesmo, sempre que tais serões se verificavam, Joel e Saulo
procuravam aferrolhar os portões e até examinavam armários e arcas
de uso: – não fosse algum escravo indiscreto, feito espião do Santo
Ofício, se atrever a espreitá-los! Todavia, pelas datas veneradas dos
hebreus – a Páscoa, o dia da Expiação, o Ano-Novo, a Festa dos
Tabernáculos etc. –, sempre descobriam meios de realizar
comemorações condignas, fosse em sua própria casa ou alhures,
pelos domicílios de velhos companheiros, onde existiam sinagogas
regulares, embora clandestinas. Em ocasiões tais, o rabino Aboab,
culto e eloquente, teria ocasião de exercer o seu mandato de
sacerdote hebreu. Discorria então brilhantemente, como o faria da
cátedra de uma sinagoga livre, concedendo ainda a palavra àqueles
que igualmente desejassem interpretar os conceitos das Escrituras,
tal como de uso nos Templos de Israel...
Conheceria frei Hildebrando de Azambuja esse acervo de
infrações cometidas pelos seus amigos neocristãos, contra as leis da
Igreja a que servia?...
Sim, certamente, mas em parte, visto que sua vigilância acerca
dos Fontes Oliveira, como de muitos outros convertidos, era
rigorosa, tenaz, sistemática, dissimulada, cruel! Sim, conhecia, mas
não havendo ainda nenhuma denúncia contra os mesmos, e, ao
demais, esperando arrecadar altos proventos pessoais das relações
de amizade com aqueles de quem se propalava amigo, não cuidava de
persegui-los e nem mesmo os advertia da inconveniência de estarem
“judaizando” quase que ostensivamente, sem o temor e o decoro que
se faziam mister na sua situação. Os proventos, ele, efetivamente, os
ia arrecadando em somas avultadas, para obtenção de indulgências
em benefício de toda a família, celebração de missas para salvação de
suas almas etc. Sua ambição pelo ouro e as riquezas em geral não
conhecia limites! Compreendiam, Timóteo e os filhos, que frei
Hildebrando valia-se da qualidade de religioso para lhes extorquir os
bens, e que a fortuna que lentamente arrecadava era destinada aos
seus cofres particulares, e jamais a obras pias ou beneficentes.
Enchiam-se, pois, de amargor os aflitos hebreus, cujo agarramento
aos bens materiais seria tão absorvente como o do mesmo frade!
Achavam-se, pois, nessa tensão suspeitosa de ameaças mais
graves as relações entre a família hebraica e os inquisidores que se
diziam seus amigos, quando, em outra noite de domingo, durante a
ceia em casa de Timóteo, exclamou este para Hildebrando,
encontrando-se presentes Fausto e Cosme, bem assim toda a família
Aboab:
— Meus caros amigos – disse, enquanto os brindou com o copo
de vinho à destra –, um favor desejo solicitar de vós neste momento,
com cuja concessão provareis ainda uma vez a fiel solidariedade e
boa afeição que a mim e aos meus vindes generosamente
testemunhando...
Entreolharam-se os religiosos, pousando sobre a mesa o copo já
vazio, e fitaram o anfitrião, interrogativos. Este continuou, serena e
pausadamente, mas infiltrando no diapasão vocal uma súplica que
seria patética ao entendimento de outrem que não fossem os
inquisidores, habituados a detestarem intransigentemente, sem
maiores razões, os descendentes do “povo eleito”:
— Meus filhos Henrique e José desejam ardentemente
aperfeiçoar estudos de Pintura e Arquitetura em Roma, pois se
dedicam a essas artes com sincero entusiasmo, como sabeis, ao
mesmo tempo em que tencionam agradecer a Sua Santidade as
muitas mercês que nos vem concedendo desde há algum tempo...
Sabemos, no entanto, que não nos será lícito sairmos daqui, embora
temporariamente, sem a devida autorização do Estado e o salvo-
conduto da diocese... porquanto, a não ser assim, pareceria tratar-se
de uma fuga, o que não corresponderia à expressão da verdade...
Estou solicitando, portanto, da vossa proverbial afabilidade, a
obtenção do necessário para que meus filhos possam seguir o mais
breve possível...
Pesado silêncio acolhia a humilde rogativa, enquanto Aboab e os
filhos, de olhos indagadores, ansiosos, fitavam os comensais. Talvez
ignorasse o velho Rabino que tal pedido a inquisidores seria uma
confissão de que temiam a perseguição e desejavam fugir por uma
forma legal, e que, portanto, não só não se haviam verdadeiramente
convertido à fé católica como até entendiam que – mais valeria se
arriscarem todos à aventura de uma retirada clandestina, embora
considerada legal, do que permanecerem sob a sinistra vigilância
daqueles em quem reconheciam ferazes inimigos. Talvez ignorasse
ainda que, com autoridades mais imparciais, obteria sem muitas
dificuldades o que pretendia, desde que favorecesse largas propinas,
e não recorrendo a amigos suspeitos. Ou, certamente, aos Aboab em
geral atraísse um desses destinos irremediáveis pela vontade
humana, uma expiação inalienável com bases em um passado
reencarnatório remoto, tornando-os alheios ao erro que praticavam
com semelhante solicitação, uma vez que desconfiavam da lealdade
dos mesmos comensais. O certo foi que, ao cabo de alguns minutos,
que aos hebreus se diriam séculos, durante os quais o silêncio se
tornou opressivo, Joel – ou Henrique –, insofrido, inquiriu de
Hildebrando, arriscando-se a censuras azedas diante de autoridades
respeitáveis, como o eram o grande Azambuja e seus acólitos, pois
muito jovem ainda era para o atrevimento de se insinuar em uma
conversação do pai, interrogando personagens a quem antes deveria
apenas ouvir:
— Não respondeis, Sr. D. Frei Hildebrando?... Aguardamos...
Quem suspeitaria a conflagração interior daquele caráter
sombrio de inquisidor, cujo coração se precipitava
inconvenientemente, em presença da prometida desse
adolescente?... Que estranhas, singulares forças telepáticas se
comungariam naquele ambiente, onde vibrações antagônicas se
chocavam, em combates que pressagiavam tragédias seculares para
seus expedidores?... Que misteriosa atração unia essas personagens
que intimamente se detestavam, mas que se ligariam, por isso
mesmo, umas às outras, através de destinações futuras, sem jamais
se poderem libertar?...
Certamente que seriam os laços do pretérito! Consequências de
ações reprováveis que se distenderam de vidas remotas para
existências do momento, alongando-se, por isso mesmo, mais tarde,
em dolorosos epílogos futuros! E talvez até mesmo os excelentes
vinhos dos Aboab, de uma forma acidental, houvessem perturbado o
raciocínio de Hildebrando, dando causa a novos séculos de lutas
fratricidas, pois que, voltando-se para o jovem interlocutor,
respondeu imoderado, agressivo:
— Ah, sim?... Esperas a resposta?... Não herdaste a lhaneza de
teu pai, pois ele não exigiu imediata solução ao grave problema que
acaba de propor... Tu, aperfeiçoares estudos em Roma?... Desde
quando os malditos descendentes de Caim se dão ao luxo de se
tornarem artistas?... Enganas-te, pequeno herege, supondo-me tão
simplório que não compreenda, claramente, que o que tu e os teus
sonhais é a libertação da nossa fiel e benévola vigilância a fim de
retornardes ao culto detestável dos teus avós, membros da família do
Iscariotes... Vai, segue para Roma... Torna-te um novo Rafael ou, se
puderes, suplanta Michelangelo nas vocações artísticas... Mas
seguirás sem os haveres de teu pai... Deixarás em Portugal quanto
possuíres... E nem se permitirá que recebas mesadas idas daqui...
Nada levarás, nem mesmo tua noiva, para que se torne tua mulher...
Acirrado debate seguiu-se então entre o jovem estudante e o
frade. Insultos foram trocados com rancor e violência, ambos
atirando à face um do outro o fel que desde muito lhes amargurava o
coração. O nome de Ester, pronunciado várias vezes por Azambuja,
que já não podia ou não queria ocultar o segredo que lhe tumultuava
o peito, tornou-se o ponto central da precipitosa altercação, a qual ia
revelando, de um lado, o despeito que desde muito amesquinhava o
íntimo do inquisidor, do outro, o ciúme mortificante, temeroso das
represálias do futuro. E ambos os antagonistas, esquecidos dos
princípios da boa educação que deveriam continuar cultivando,
deixavam-se levar pela cólera a ponto de se levantarem da mesa,
aproximando-se um do outro para melhor se insultarem.
Aflito, Timóteo insistia em conter o filho, chamando-o à razão,
exigindo dele que se calasse, rogando-lhe apresentasse escusas e
pedisse perdão ao “amigo” a quem toda a família tantos “benefícios”
devia... Em vão Saulo igualmente tentava interpor-se entre os dois
litigantes a fim de serená-los, afastando para longe o irmão, cuja
revolta, comprimida desde muito, agora crescia sob os insultos do
religioso. Joel, porém, muito jovem e impetuoso, caráter viril
subjugado por inalterável opressão desde a infância, e, ao demais,
exasperado ante a desfaçatez e a deslealdade daqueles que se
infiltravam como amigos para melhor os atacarem e destruí-los,
lançava aos ares toda a repulsa por que se sentia invadir,
confessando desassombradamente aos padres o asco e o horror que
eles próprios e sua crença lhe inspiravam. Em dado instante, ouvindo
do adversário um insulto mais chocante, Joel atira-lhe no rosto os
restos do vinho de um copo pegado ao acaso, sobre a mesa, em um
supremo desafogo. Perplexos ante a ofensa tão grave e audaciosa, os
três religiosos nada conseguiram dizer nos primeiros momentos,
emudecendo de surpresa. Todavia, de súbito, um punhal brilhou nas
mãos de Hildebrando, retirado de sob as dobras da sotaina... três
punhais luziram nas mãos dos três representantes do Santo Ofício,
que se dispuseram a avançar para o agressor a fim de lhe cobrarem
bem caro a ousadia, enquanto o velho Rabino procurara defender o
filho, interpondo-se entre ele e os atacantes, e Saulo, na timidez dos
17 anos, deixara ouvir aflitivos brados de terror... mas eis que Ester
intervém, surpreendida e conciliadora, conseguindo, não sem grande
esforço, aplacar a excitação geral... Os punhais, então, voltaram a se
esconder sob as sotainas negras, depois de ferirem levemente Joel e
Timóteo... Um sorriso enigmático, suspeitoso, crispou os lábios do
terrível Azambuja, o qual, dirigindo-se à linda hebreia, verberou,
traindo ódio execrável no tono vocal:
— Chegaste em momento preciso para fazer-me refletir, bela
menina... Não, nada de violência!... Devo humilhar-me e ponderar...
Será imprescindível que a razão se conserve absolutamente do meu
lado... Saberei obter melhores oportunidades para a desforra deste
imperdoável insulto!... Oh! e saberei escolhê-las! Tua dedicação
acaba de salvar a vida a teu noivo... Sim, linda flor, tu o amas! No
entanto, juro pela minha honra de dominicano que não vos
pertencereis jamais! Vejamos, encantadora heregezinha, se algum
dia o teu prometido poderá retribuir o favor que lhe acabas de
prestar...
Completou a despeitada arenga com uma gargalhada insultuosa,
voltando-se em seguida para os companheiros e prosseguindo,
trágico, afetando mágoa profunda:
— Afastemo-nos deste antro, caros irmãos, o qual em mal
inspiradas ocasiões temos frequentado... Nada mais temos a fazer na
intimidade destes ingratos, cujos umbrais se cerraram para nós...
Sois testemunhas da afronta que me infligiram... a mim, Inquisidor-
mor de Portugal!... E como fui desrespeitado, menosprezado, quase
assassinado por estes malditos judeus!...
Encaminhou-se para a porta de saída, seguido de Fausto e de
Cosme. No auge da aflição, Timóteo tentou detê-los, apelando para a
velha amizade que os unia, mas foi em vão. Sem mais uma palavra,
mudos e com as feições alteradas pelo ressentimento, suspenderam
os capuzes, cobrindo as cabeças... e lá se foram – aves agourentas e
vorazes, corvejando novas presas para seus macabros festins,
enquanto os portões da mansão rangeram os velhos ferrolhos às suas
costas...
Qual o condenado às vésperas do suplício, o infeliz Rabino
deixou-se cair sucumbido em sua costumeira poltrona, ocultou entre
as mãos o rosto alterado pela angústia e, entregando-se a
mortificante pranto, exclamou, para os filhos, as palavras
entrecortadas pela aflição:
— Sim, estamos perdidos! A desgraça entrou irremediavelmente,
hoje, em nossa casa! Meus pobres filhos, minha pequena Ester, que
estará reservado, ainda, para vós?...
No entanto, uma sugestiva e doce voz, como o prelúdio dos anjos
ensaiando glorificações aos complacentes Céus – a voz de Ester –
dominou a dramaticidade do momento, para que um raio de
esperança e refrigério suavizasse as trevas em que se sentiam
mergulhados aqueles que tão caros eram ao seu coração. Ela orou
com meiguice e simplicidade, como lhe era habitual. E ao som
dolente da cítara que ela tanto amava, Timóteo e os filhos ouviram o
sussurrar predileto, que outrora, em milênios passados, acalmaria
também as aflições do rei Davi:
O Senhor é o meu Pastor,
E nada me faltará...
A suaves campos me guiou
E me conduziu a fontes
De água fresca e pura...

O Senhor converteu
A minha alma,
Tornou-a humilde
E agradecida...
Elevou-me por estradas justas
Por amor do seu nome...

Ainda quando eu me desvie


Pelo vale da dor e da morte,
Não temerei males,
Porque Tu, meu Deus,
Estarás comigo!

A tua proteção,
A tua vigilância,
Eu sei que me acompanharão!
E a tua misericórdia irá
Após mim,
Docemente me inspirando
Em todos os dias
Da minha vida,
A fim de que
Eu permaneça
Sob a luz da tua bênção,
E também da tua paz,
Pela eternidade
Dos tempos...20

***

As doze badaladas da meia-noite ressoaram lúgubres,


impressionantes, qual o lamento funéreo de uma despedida, pelos
ares de Lisboa adormecida, em um campanário próximo...

20 - N.E.: Adaptação do Salmos 22, de Davi.


VI

O encantamento sugerido pela prece do velho Rei, se tivera a


virtude de encorajá-los para as peripécias do futuro, que agora mais
do que nunca se pressagiava trevoso, não pudera, no entanto, extrair
dos seus corações a profunda conturbação da desolação, prenúncio
infalível de momentos decisivos que rondam os homens nas
provações terrenas, espécie de pressentimentos ou avisos do que
realmente advirá. Perplexos ante os acontecimentos, os três homens
não ousavam elevar a voz para qualquer comentário, enquanto
Rubem, o mais jovem dentre os filhos, detinha os próprios soluços,
aterrorizado, aconchegado ao seio da prima. O velho Aboab,
justiceiro, reconhecia que a impetuosidade do filho, seu desrespeito
exigindo esclarecimentos imediatos, os quais somente a seu pai
competiria solicitar, dera causa ao incidente, quando não apenas a
boa educação, mas também os deveres de hospitalidade, a
respeitabilidade dos visitantes, a vantajosa posição social destes
aconselhariam a máxima prudência e toda a vigilância para que
jamais as boas relações fossem alteradas entre eles próprios e os
ditos religiosos. Ao demais, Joel era um adolescente, contava apenas
20 primaveras, não lhe competindo, portanto, dirigir-se com
impertinência a um hóspede cuja idade roçaria pela do seu próprio
pai. Entretanto, não se permitia admoestar o primogênito.
Compreendia-o acabrunhado, o coração inquietado por emoções
penosas e não quisera agravar os seus sofrimentos inutilmente. O
moço judeu, porém, em dado momento, como em um murmúrio
revelador das pungentes ilações que em seu íntimo se multiplicavam,
desfez o silêncio:
— Perdoai-me pelo desgosto que vos acabo de causar, meu
senhor e pai! – disse. – Reconheço-me culpado! Será justo, portanto,
que advenham para mim as consequências do erro praticado...
Arrependo-me das atitudes tomadas... Deveria sofrear impulsos,
comedir revoltas, padecer resignado, porque, afinal, não deixamos de
dever favores a estes homens! Espero, no entanto, que venham
represálias contra mim somente... E, em verdade, se é necessário
uma vítima para aplacar as iras dos nossos eternos algozes, que seja
eu, e não um de vós. Eu não suportaria assistir aos vossos
tormentos...
Aboab, que conservava a cabeça apoiada nas mãos, ergueu para
os filhos os olhos marejados de pranto, advertindo, cheio de razão:
— O desastre viria mais cedo ou mais tarde, meu pobre Joel! Se
não fora provocado por ti o incidente, sê-lo-ia, inadvertidamente, por
um de nós ou por outra qualquer circunstância... Jamais
Hildebrando conseguiu iludir-me! De nós todos, o que ele apenas
deseja é a posse de Ester e de nossa fortuna! Matar-nos-á no dia em
que puder obtê-las!...
Deteve-se um instante e continuou, enquanto o jovem pintor
mediu a sala em passadas regulares, que os tapetes amorteceram:
— Estive a pensar em que seria preferível humilharmo-nos ainda
uma vez, penitenciando-nos publicamente, por havermos ofendido
frei Hildebrando, pagarmos uma indenização e rogarmos seu
perdão...21
Os dois jovens protestaram, porém, coléricos, pela primeira vez
contrariando uma decisão paterna:
— Nunca, meu pai! Jamais deveremos submeter-nos a tão
penosa humilhação! Preferimos a morte, antes de nos
penitenciarmos, rastejando de opróbrio pelo favor de um miserável,
como Hildebrando de Azambuja, que nos amesquinhará até a
degradação!...
Timóteo, porém, levantou-se, exteriormente sereno como os
sofrimentos o ensinaram a conservar-se, e, pousando a destra no
ombro do primogênito, replicou:
— Assim julgas, meu pobre Joel, porque ignoras ainda, mercê do
Altíssimo, o que seja um calabouço do Santo Ofício! A morte, meu
filho, a morte, simplesmente, para todos nós aqui reunidos, seria
bênção inestimável, que nos valeria por uma glorificação!
Infelizmente para nós, Hildebrando é inquisidor, o que quer dizer – é
cruel e implacável! Sabe torturar, afligir, castigar com minudências
odiosas, inconcebíveis! Preferível seria, oh, sim! uma penitência
pública, à qual a sociedade de Lisboa assistiria talvez com
indiferença, habituada que está a cenas tais de degradação – a um
suplício lento na fogueira ou no cavalete, aos tratos infames e
desumanos, nas salas de torturas!...
Novamente os dois jovens, inexperientes e ardorosos, bradaram
à uma:
— Não! Jamais! Cem vezes a tortura e a morte!...
Ester baixou a fronte humildemente, sem emitir opinião,
enquanto o coração se lhe confrangeu na expectativa de atribulações
imprevisíveis.

21 - N.E.: Muitas vezes os judeus denominados “cristãos-novos” eram obrigados a


penitências públicas humilhantes, grotescamente vestidos e empunhando tochas.
VII

Subitamente, duas discretas pancadas na porta de acesso aos


compartimentos interiores da casa advertiram aos interlocutores que
algum escravo lhes desejava falar. Fizeram-no entrar e Aboab
ordenou com lhaneza:
— Pode falar, Gabriel...
Tratava-se não de um escravo, mas de um agregado, mais amigo
do que criado, a quem os tratos sofridos, quando da perseguição que
vitimara Arammza, deformaram as mãos e os pés, impossibilitando-
o para o trabalho. Vivia no solar judaico graças à solidariedade do
Rabino, que não desdenhara socorrê-lo, e a título de fiscal dos
demais serviçais, ou mordomo. Era hebreu como os patrões, probo e
leal para com os seus irmãos de crença, odiando implacavelmente os
dominicanos e aqueles que se diziam cristãos, visto que deles tinham
advindo todas as desditas que para sempre o infelicitaram. Pedindo
licença aos amos, foi dizendo ansioso, polidamente:
— Se me tivésseis participado da necessidade de salvos-
condutos, eu vo-los teria fornecido com presteza, senhor... – pois o
servo ouvira a discussão, visto que seria de bom aviso ficarem os
serviçais sempre à espreita quando da visita dos padres. – Para as
possíveis eventualidades, supro-me sempre, com antecedência, de
muitas coisas que se poderão tornar necessárias... Possuo, no
momento, um salvo-conduto comprado ao filho da senhora Águeda,
que resolveu não mais deixar o Reino...
— Tal alvitre é inviável, meu bom Gabriel... Se formos
descobertos, sofreremos dez vezes mais...
— Sou de opinião – perdoai a ousadia de emiti-la sem ser
solicitado – que todos vós devereis partir hoje mesmo, antes do
amanhecer, porque frei Hildebrando não tardará com a represália,
que será inevitável, e para a qual ansiava por um motivo desde
muito... Tendes valores preparados para tal emergência... Ide com
esse bem móvel e abandonai esta casa, estas obras de arte, vossas
indústrias etc., pois vossa honra e vossa vida valem muito mais... Eu
permanecerei aqui guardando tudo... Se houver confiscações, que
levem o que quiserem, contanto que escapeis às torturas e às
fogueiras... Se me matarem, tanto melhor. Não passo de um trapo
humano! Impossibilitado de ganhar o próprio sustento, a vida pesa-
me sobremodo... Se nada confiscarem, que será difícil de acontecer, e
me pouparem a vida, bendito será o “Santo dos Santos” ainda uma
vez; liquidarei tudo da melhor maneira e obtereis uma pequena
fortuna para juntar à que hoje mesmo podereis carregar... Não
tendes tempo a perder... Quanto maior número de léguas puserdes
entre vós e esse cruel Azambuja até amanhã, à hora do expediente do
Santo Ofício, tanto melhor...
— Como poderemos viajar sem salvos-condutos nem licenças?...
Não será possível...
— Nas barreiras aceitarão propinas, passareis facilmente,
ninguém saberá que sois convertidos recentemente, passareis por
fidalgos, se oferecerdes recompensas em ouro, ou comerciantes... e
mais valerá arriscar que ficar...
— Teremos de preparar bagagens, arrecadar nossas
preciosidades; não será possível uma família viajar assim, tão
imprevidentemente, para o estrangeiro...
— À luz do sol será realmente impossível, senhor! Frei
Hildebrando, no momento, porém, estará chegando a sua casa, ainda
não pôde refletir, não se refez para deliberar sobre o que tentará para
ferir melhor... Lembrai-vos de que vos não poderá prender nem
acusar sem que haja denúncias... Demorará a forjá-las... Quererá
antes, por agora, dormir o melhor possível, pois estará fatigado de
comer da vossa ceia e de beber dos vossos bons vinhos... Partir
amanhã, no entanto, seria demasiadamente tarde... Ouso declarar-
vos que tal tentativa deveria ter sido realizada desde muito, por todos
vós, e não apenas por um ou dois, como têm feito, com bons êxitos,
muitos dos nossos compatriotas...
— Sim... mas outros também se desgraçam para sempre...
Finalmente, depois de viva discussão, deliberaram que Joel
deixaria Lisboa imediatamente, acompanhado do velho Gabriel, para
se dirigir a Roma, onde esperaria em segurança até que a família se
lhe fosse reunir, pois Timóteo, já no dia seguinte, começaria a tentar
possibilidades para conseguir transferir-se para Roma com os filhos
restantes, às ocultas de Azambuja. O salvo-conduto de Gabriel
protegeria o fugitivo contra quaisquer eventualidades, ao passo que o
ouro que levaria removeria outros tantos obstáculos. Em apenas uma
hora, enquanto se preparavam cavalos, foi também preparada a
bagagem sucinta e cartas de recomendação que o Dr. Timóteo fazia a
compatriotas residentes na velha capital dos Bórgia, ao mesmo
tempo que lhe depunha nas mãos uma pequena fortuna para que seu
exílio se não tornasse excessivamente angustioso fora do lar paterno.
A tentativa, no entanto, seria, de qualquer forma, temerária. Joel se
apoderaria de uma identidade alheia, o que seria infração gravíssima.
O precioso documento fora comprado a outrem, o que o tornava
falso, ilegal, revertendo tudo isso em agravantes para aquele que dele
se utilizasse. As estradas e postas de mudas de cavalos eram
rigorosamente fiscalizadas pela polícia civil e até mesmo pelos
beleguins do Santo Ofício, oh! principalmente por estes! –
porquanto, governo e Inquisição expulsavam frequentemente os
judeus do território português, mas perseguiam-nos cruelmente se
fugissem, recambiando-os para a prisão e a tortura. Todavia, o
sagrado direito daquele que se sente oprimido é procurar
possibilidades de libertação. E ficar, permanecer em Lisboa após
desavenças com autoridades inquisitoriais, seria entregar-se
voluntariamente à prisão... E só Deus saberia, então, o que mais
poderia acontecer...
Quando o velho campanário das proximidades, pois, fez ressoar,
pelos ares de Lisboa adormecida, as duas pancadas da madrugada, os
portões da velha mansão judaica se descerraram cautelosamente
para deixarem escapar, qual sombra atormentada, o seu primogênito
e herdeiro bem-querido, o qual fugia do lar paterno, forçado por
irremediáveis circunstâncias, para nunca mais a ele retornar; deixava
a terra onde nascera, e a qual amava, acossado pela crueldade de
hipócritas e fanáticos, que se validavam dos poderes de que
dispunham, como do nome augusto do emissário de Deus, para
impingir as suas próprias decisões, dando livre curso à torrente das
paixões execráveis que lhes extravasavam do ser.
VIII

Ao contrário do que se previra, passou-se a manhã daquele dia e


também a tarde sem que nenhumas novas adviessem de frei
Hildebrando ou de seus agentes. A expectativa era asfixiante na
residência dos Aboab. Temiam estes que, informados da súbita
partida de Joel, seus inimigos investissem represálias contra
qualquer outro membro da família. Em vão entre os Salmos, cuja
doçura tanto bem lhes faziam à alma, Ester escolhera algo mais
reconfortante para reerguer as energias morais da família que sofria,
além da expectativa torturante, também a incerteza da sorte do filho
querido, que se arrojara a uma temerária aventura. A própria jovem,
habitualmente serena e resignada, agora já não se conseguia
reanimar, encorajando-se por meio da fé ardente depositada no
Criador de todas as coisas e naquele doce Mestre que descera dos
Céus venturosos para padecer pela regeneração dos homens. Viram-
na o dia todo debilitada e arredia, sucumbida em prantos, o que
levou o desalento ao coração de cada um. Joel era o seu suave anelo,
a esperança e a alegria das mais caras aspirações da sua alma, e a
ausência desse ser tão querido, os perigos que o ameaçariam durante
a longa viagem levavam ao seu coração o temor e a angústia,
deprimindo-lhe as últimas energias para continuar lutando contra a
adversidade. À tarde do segundo dia, no entanto, dirigiu-se a ela o tio
e disse afetuoso e apreensivo:
— Minha querida filha, temo por ti mais do que por nós outros,
nas circunstâncias em que nos encontramos... O Santo Ofício de
nada nos poderá acusar, Joel está bem longe e, ao demais, temos
advogados junto à Corte para defender nossos direitos. Sabemos,
porém, que, sem a vigilância de teu primo e com as disposições
equívocas de Hildebrando a teu respeito, corres grandes riscos de
sofrer surpresas desagradáveis ou mesmo vexames... Mandei atrelar
a “cadeirinha”22 a fim de visitarmos tua madrinha e deixá-la a par do
que se passa... Há se revelado ela nossa fiel amiga, sendo mesmo
contrária ao movimento hostil continuamente verificado contra
nossa raça, e já por várias ocasiões, como não ignoras, há também
oferecido préstimos a teu favor... Ao demais, sendo espanhola, e não
portuguesa, não terá, certamente, grandes interesses em nos detestar
gratuitamente, apenas para satisfazer a Inquisição, não obstante a
Espanha igualmente perseguir os de nossa condição... Apelarei,
portanto, para o seu coração maternal, rogando aceitar-te em sua
casa até que os horizontes se desanuviem em torno de nós...
Ester era humilde e obediente. Respondeu a seguir, embora o
coração se lhe confrangesse à ideia de se afastar do próprio lar:
— Pesa-me deixar-vos em momento tão crítico, meu tio... mas se
assim deliberais será porque assim será o que melhor convém... e
aprovarei vossa resolução...
Subiram para a pequena viatura, mais cômoda e usual para
pequenos percursos, e partiram para a residência da condessa Maria
de Faro, em cujo caráter confiavam de todo o coração.
A condessa Maria era mulher de 40 anos, valorosa e digna, não
existindo até então, no conhecimento público, nenhum deslize que a
levasse a desmerecer do conceito que desfrutava na sociedade e na
intimidade dos amigos. Espanhola de nascimento, consorciada com
um fidalgo português, vivia desde muito em Portugal, sendo
amplamente relacionada entre a nobreza e até mesmo entre a
realeza. Confessava-se contrária às hostilidades infligidas aos
hebreus, fossem portugueses ou estrangeiros, e, em presença destes e
dos amigos íntimos, atacava com veemência as leis que estabeleciam
tanta desumanidade contra criaturas indefesas. Não seria de admirar
que tão digna senhora assim se conduzisse, visto que, por aqueles
atormentados tempos, muitas vozes beneméritas bradavam contra a
Inquisição, censurando e até execrando as suas façanhas. A
condessa, porém, em verdade, era mais loquaz e leviana do que
realmente sincera naquilo que afirmava e, a despeito de, realmente,
não desprezar a raça judaica e dela se compadecer, não se esquecia
jamais de também testemunhar considerações aos inquisidores,
esmerando-se em amabilidades sempre que possível. Levando Ester
à pia batismal, quando da obrigatoriedade imposta aos judeus, e
defendendo, por mais de uma vez, não só a afilhada como toda a
família desta dos choques circunstanciais provocados pelo fanatismo
partidário, cativara de tal sorte a confiança dos Aboab que por mais
de uma vez fora também ela a sua confidente e conselheira. Quando
do desejo de Joel e Saulo se transferirem para Roma, no intuito de
fugirem às opressões diárias que suportavam, tencionavam suplicar-
lhe o valor, ainda uma vez, para lhes conseguir a necessária licença,
caso falhasse o concurso dos supostos amigos inquisidores.
Entretanto, como vimos, o funesto incidente, entre estes e o
primogênito da casa, transformou a programação do velho Rabino,
sugerindo novos passos na via angustiosa que palmilhava.

***

A condessa Maria de Faro reencarnada se achava, nos primeiros


decênios do século XX, na pessoa sofredora e humilhada da esposa
de Leonel, o suicida por quem todo o nosso penoso trabalho era
realizado, ao passo que o próprio Leonel, por sua vez, conforme
revelação inicial, era a reencarnação de Hildebrando de Azambuja.
Para a boa compreensão da moral desta verídica história, rogamos ao
leitor não perder de vista este precioso detalhe. Feito o que,
continuaremos ouvindo a narrativa do guia espiritual de Leonel.
Continuou ele:
— Depois de receber a afilhada com visíveis demonstrações de
afeto e alegria, a condessa de Faro fê-la encaminhar-se para os
aposentos que lhe eram destinados, concedendo-lhe uma criada para
os serviços particulares, tal se se tratasse de uma fidalga a quem
hospedasse.
— Aqui estarás tão bem como em tua própria casa, querida
Mariana – afirmou ela à recém-chegada, por entre sorrisos amáveis,
pois a digna senhora era sempre pródiga na distribuição de sorrisos
–, e nada te há de faltar... Tua presença traz-me um grande prazer...
Será como se aqui estivesse a minha Emília, que se foi para a
Espanha após o casamento... Peço-te que me consideres a tua
segunda mãe... pois vejo que, com efeito, muito careces do amparo e
dos afagos de um coração materno...
Encantado, o antigo Rabino osculou-lhe a destra gratamente,
bem certo de que tivera a mais feliz inspiração dirigindo-se a tão
prestimosa dama, enquanto Ester se limitou a sorrir acanhadamente,
o coração confrangido de incertezas. Uma vez a sós com a fidalga, o
Dr. Timóteo pô-la a par dos ingratos sucessos desenrolados em seu
lar pela tarde de domingo, os temores de que se via presa inclusive,
confessando-lhe ousadamente os pormenores da fuga de Joel sem
omitir as atitudes desde muito suspeitosas de Hildebrando a respeito
da jovem prometida de seu filho, concluindo por lhe desvendar o
recalcitrante desejo de se transferir com a família para fora de
Portugal, a fim de se precatarem contra a eterna perspectiva das
desumanas perseguições. Talvez se sentindo em desespero de causa,
ou excitado pelos acontecimentos de dois dias antes, Timóteo
estendeu ainda mais a confiança depositada na condessa e solicitou-
lhe o concurso precioso para saírem legalmente do país, de posse dos
pequenos haveres que ainda lhes restavam, visto que, já idoso,
impossível seria partir destituído de recursos, ao menos para se
socorrer, e a família, nos primeiros tempos, em terras estrangeiras.
Maria ouviu-o atentamente, grandemente interessada. Não o
interrompeu sequer com um aparte ou um monossílabo, o que de
algum modo impressionou o visitante, desconcertando-o. De vez em
quando, como que aprovava com um leve sinal, um movimento de
olhos ou de cabeça. E reconhecendo, finalmente, que seu hóspede
terminara a ingrata exposição, advertiu lacônica, mas veemente:
— Regressai descansado a vossa casa, Sr. Fontes Oliveira! Farei
o que me estiver ao alcance a fim de vos servir... Quanto a Mariana,
será um depósito sagrado para mim! Nenhuma decepção a atingirá
enquanto permanecer sob meu teto!
À noite, no entanto, Maria de Faro sentiu-se insone e agitada,
forçando a imaginação no penoso labor mental de criar uma solução
que, servindo aos Fontes Oliveira, também não a indispusesse com
nenhum representante dos poderes civis e eclesiásticos e ainda com o
Rei e o Inquisidor-mor, frei Hildebrando de Azambuja. Seu desejo
seria, realmente, beneficiar os perseguidos; mas a loquaz espanhola
seria muito experiente e maliciosa para se arriscar a toldar as boas
relações sociais que desfrutava com a proteção a judeus recém-
convertidos, que ainda poderiam decepcioná-la, e muito interesseira
para se expor ao desagrado de personagens como aquelas que lhe
apontavam como inimigos que teria de combater. Na manhã
seguinte, por isso mesmo, muito preocupada e mal-humorada, Maria
chamou em audiência particular o “escriba” do palácio, espécie de
secretário da casa, dos negócios de seu marido, cujas atribuições se
dilatavam ao preparo da correspondência particular de cada um, e,
depois de algumas indecisões, falou autoritária:
— Tome do necessário porque ditarei uma carta para pessoa de
grande destaque social...
O escriba escolheu do melhor papel de linho com timbres
dourados, escudo e armas da casa; da melhor pena de pato e da mais
afamada composição de tinta para escrever, dispondo-se ao delicado
trabalho.23 E Maria, então, recordando Pilatos, muito digna e
majestosamente sentada em sua cadeira “manuelina”, alta e
suntuosa qual um trono, ditou o que se segue, alheada dos deveres
para com Deus e o próximo, sem suspeitar que criaria, com a traição
contida nessa carta, um drama intenso e apavorante, cujas
consequências lamentáveis se estenderiam por quatro longos séculos
de lágrimas, infortúnios e crimes para outrem e para si, e que a
mesma missiva forjaria um elo que enredaria a si própria e ao seu
destinatário, elo moral cuja solidez não lhe seria jamais possível
romper; e que atada àquele pelas leis de causa e efeito e repercussões
conscienciais, palmilharia, futuramente, um tormentoso calvário de
provas e expiações, até que expungir conseguisse, da própria
consciência, as sombras acusadoras que a deprimiam. Ditava, pois,
enquanto o paciente funcionário fazia correr a pena, certo de que
uma infâmia a mais ali se praticava, mas isento de responsabilidades
conscienciais, porque era apenas um servo, pouco menos que
escravo, obedecendo ao seu senhor:
“Rev.mo D. Frei Hildebrando de Azambuja – Venerável
Inquisidor-mor da Santa Inquisição de Lisboa.
Peço vossa bênção com admiração, respeito e suma devoção.
Deus seja convosco.
Salve, Senhor!
Um fato extraordinário verifica-se no momento em Lisboa,
tendo-me por testemunha eventual, o que me impele a dirigir-me a
V. Rev.ma a fim de melhor provar a minha fidelidade incondicional à
Santa Inquisição.
Desde ontem, Rev.mo Hildebrando, hospeda-se em minha casa,
sob minha tutela temporária, a menina Mariana Fontes Oliveira,
vossa paroquiana e pupila espiritual, da qual sou madrinha de
batismo por um ato de piedade permitido e aprovado pela nossa
Santa Igreja. Trouxe-a o seu tio Silvério Fontes Oliveira, rogando-me
aceitá-la a fim de salvaguardá-la de perseguições por ele
consideradas iminentes sobre toda a família, mas as quais eu apenas
entrevejo no cérebro obumbrado de heresias dos mesmos supostos
perseguidos. Não desejo, Rev.mo, indispor-me com uma Instituição
tão generosa e benemerente como entendo ser a Santa Inquisição, e
por isso participo-lhe não somente a presença da menina Mariana
em minha casa, sem autorização de V. Rev.ma, como ainda da
pretensão de toda a família em exilar-se para Roma, de qualquer
forma, sendo que o primogênito da casa, desde a madrugada de
anteontem, ausentou-se de Lisboa... pois o próprio pai,
confidencialmente, narrou-me os acontecimentos que ocasionaram a
sua partida, acontecimentos que muito lamento, julgando-os
ofensivos a V. Rev.ma. Conquanto eu estime os Fontes Oliveira e até
lhes deseje todo o bem possível, encontro-me no dever de escrever a
presente epístola a fim de me não considerar cúmplice de atos
reprovados pela jurisdição do estado como da Igreja, coisa grave, da
qual não me desejo tornar responsável. Rogo a V. Rev.ma conselhos
paternais sobre o que farei da menina Mariana, como sobre todo o
momentoso caso.”
Uma hora depois de expedida a carta, Hildebrando de Azambuja
era recebido pela condessa em audiência particular, entretendo-se
ambos em secreta conversação durante cerca de duas horas. Ao
despedir-se, o religioso osculou a destra da inconsequente fidalga,
exclamando enfaticamente:
— A Circunscrição no... da Santa Inquisição de Lisboa agradece
pela minha voz, senhora, a valiosa cooperação que acabais de
conceder ao decoro e à respeitabilidade da Igreja...
Retirando-se, D. Frei Hildebrando de Azambuja tomou
imediatas providências para que Joel fosse detido antes de entrar em
Roma, localidade em que estaria a coberto de ataques pessoais tão
comuns em Lisboa, e de onde, portanto, não seria possível à
Inquisição recambiá-lo com facilidade para Portugal. Era, como
vemos, o terceiro dia da partida do jovem Aboab e Hildebrando,
ressentido pelo descaso e pela desobediência à sua pessoa, e
cogitando da melhor forma de castigar o ardoroso mancebo,
ignorava, no entanto, a sua partida, visto que realmente não
mandara espionar nem sequer concebera a possibilidade do arrojo de
uma fuga. À tarde desse dia, em que visitara a condessa, portanto,
partiu de Lisboa uma escolta armada, constante de cinco homens, à
cata do fugitivo e do pajem, legalmente documentada e com ordens
rigorosas de prisão ao infrator, devidamente assinadas e registradas,
o que lhe emprestava um irresistível poder.
Entrementes, Maria de Faro penetrara os aposentos da afilhada
e, demonstrando, no semblante grave, insólita frieza, que na véspera
se julgaria inconcebível, ordenou sem maiores explicações:
— Prepare-se, menina Mariana, a fim de retornar ao domicílio
de seu tio... Não me será lícito recebê-la como pupila sem uma ordem
do juizado e do arcebispado... Terão de me nomear, primeiramente,
tutora perpétua, por ordem de El-Rei nosso senhor, para que me seja
viável a sua reeducação ao critério das nossas leis religiosas... uma
vez que até agora a menina somente há convivido com seus
ascendentes hebraicos, não obstante a instrução recebida sob
patrocínio da Igreja...
Timidamente, muito pálida, Ester retorquiu, os olhos marejados
de lágrimas:
— Senhora, eu sou cristã sincera... Amo a cruz do Senhor Jesus
com a veneração do fundo da minha alma...
A condessa pareceu não ouvir e retirou-se sem responder. Uma
aia acompanhou de volta a formosa hebreia, deixando-a entregue ao
tio. Sem quaisquer explicações fornecidas pela condessa, Aboab
houve de se orientar pelos relatos da sobrinha, porquanto aquela
dama, até então amável e prestimosa, não se permitira sequer, agora,
a consideração de uma carta esclarecedora da recusa em conservar a
afilhada, quando na véspera prometera gentilmente protegê-la.
Ansioso e incompreensivo e nem confiando no que lhe transmitira
Ester, o pobre homem tornou ao palácio no intuito de se entender
melhor com a ilustre dama, pois temia haver contribuído, de
qualquer forma, para desmerecer no seu conceito, e, insistente e
perseverante como soem ser os de sua raça, solicitou nova audiência,
aguardando, porém, pela resposta, cerca de duas horas, findas as
quais apenas obtivera de um criado descortês esta lacônica decisão:
— A senhora condessa não concede audiência no dia de hoje...
Sem saber o que pensar e prevendo algo desagradável, o antigo
Rabino tornou ao lar, forçando, no íntimo do coração, a esperança de
que Maria de Faro houvera mandado explicações por algum especial
mensageiro que dele se desencontrara... Chegando, porém, ao
próprio domicílio encontrara antes um mandado do Santo Ofício,
para que ele e os filhos comparecessem, ainda aquela tarde, à sede da
Circunscrição, a fim de prestarem esclarecimentos urgentes quanto à
tentativa de afastamento, de Lisboa, do jovem Henrique Fontes
Oliveira, sem a devida autorização do legado do bispado. A
cerimônia, não obstante os aparatos e terrores próprios da época,
decorreu normalmente. Toda a família, a uma só voz, asseverou
ignorar a súbita resolução do jovem, pois ele apenas se afastara para
o campo, acompanhado do seu pajem, em busca de paisagens para os
quadros que tencionava pintar; que, efetivamente, mantinha
intenção de se transferir mais tarde para Roma, a fim de aperfeiçoar
estudos artísticos, mas que, no momento, apenas perambulava pelas
províncias a fim de se inspirar para a obtenção de motivos para os
seus quadros...
Não seria impossível que assim fosse, ao entendimento da
Inquisição. No entanto, o testemunho da condessa de Faro, cuja
carta denunciadora a frei Hildebrando fora do conhecimento dos
juízes e acusadores, fora também levada em muita consideração,
para que a palavra dos depoentes prevalecesse. Hildebrando
encontrava no argumento excelente ensejo para suas costumeiras
façanhas inquisitoriais e também para desforras contra aqueles a
quem realmente nunca estimara. Os depoimentos foram, pois,
considerados de má-fé. Contudo, tais deslizes perante as leis do
Santo Ofício não eram passíveis de prisão, e sim de extorsivas multas
e indenizações. Houve, portanto, Timóteo, ainda uma vez, de
depositar, nos cofres públicos ou nas mãos ávidas dos inquisidores,
boas quantias em ouro, o que o reduzira à mediocridade de fortuna,
carecendo mesmo até de pôr à venda muitas das preciosidades que
possuía, tais como pratarias, cristais, porcelanas, objetos de arte,
joias etc.
Não obstante, a vigilância em torno dele e da família
recrudesceria – sentenciaram as autoridades – e qualquer outra
infração às leis vigentes de tão egrégio tribunal seria punida com a
prisão e o respectivo processo. Quanto ao jovem Henrique, ao
encalço de quem partira uma pequena tropa, seria preso e
processado, porquanto, ainda que se ausentasse de Lisboa apenas
para pequena viagem de recreio dentro de Portugal, ele o fizera sem
se prevenir com a devida licença das autoridades competentes.
Hildebrando, porém, estava certo, como sabemos, de que Joel – ou
Henrique – realmente fugira graças à altercação entre ambos à mesa
dos Fontes Oliveira, conforme as informações fornecidas por Maria
de Faro. E, apoiando-se na legalidade inquisitorial, pretendia agravar
o fato, dele valendo-se a fim de servir às próprias pretensões: em
primeiro lugar, a sua mesma crueldade de inquisidor insaciável, que
jamais se eximia de perseguir e maltratar; em segundo, apossar-se de
Ester, por quem se sentia incendiar de desordenada paixão, e vingar-
se do jovem Henrique, a quem jamais admirara e por quem se
reconhecera invariavelmente tratado com altivez e menosprezo.
Assim foi que, sem que o infeliz Timóteo de nada desconfiasse,
introduziu Hildebrando de Azambuja, no solar hebreu, um espião de
sua inteira confiança, procedendo, porém, para tanto, sutil e
cautelosamente. O leitor certamente não conceberá o quanto de
humilhante e exasperador existia em torno de um indivíduo ou de
uma família considerados suspeitos de quaisquer faltas pela
Inquisição. Tornavam-se, por assim dizer, execrados pela sociedade,
que afetava o desprezo demonstrado como não o faria ao pestoso,
cujo contato todos temem e do qual se afastam com asco. Entravam a
sofrer a angústia do isolamento social. Desertavam de sua casa os
amigos e os comensais mais íntimos. Na rua, davam-lhe as costas ou
trocavam de calçada, quando os encontravam, aqueles que dantes
lhes apertavam as mãos e lhes deviam favores. Em muitos casos, os
desgraçados perdiam até mesmo o direito de suprir a sua despensa
doméstica, porque os marchantes e quitandeiros suspendiam o
fornecimento, temerosos de se envolverem em processos idênticos
como simpatizantes do Judaísmo ou arrolados como testemunhas no
tribunal da fé. E nem se julgue que os correligionários de crença
corriam a socorrer o perseguido, porque ninguém mais inimigo de
um hebreu convertido, mas suspeito de infiel à fé católica, do que
outro hebreu convertido, mas não suspeito, ou outro não
convertido.24

22 - N.E.: Meio de transporte individual muito antigo, que consistia em uma cadeira fechada
qual pequeno carro sem rodas, mas provido de dois varais de frente e dois às costas,
permitindo a dois homens ou dois animais, a ele atrelados, carregá-lo balouçando-o
suavemente no espaço.
23 - N.E.: Existiam nessa época (século XVI) tintas coloridas muito vivas e variadas, para a
escrita particular, inclusive uma espécie de purpurina dourada, para cartas destinadas a
personagens gradas, para a literatura sacra e a poesia.
24 - N.E.: A Inquisição perseguia com verdadeiro furor os judeus chamados “cristãos-
novos”, suspeitando-os, às vezes sem razão, de infiéis aos compromissos assumidos com a
Igreja, relapsos na fé católica.
IX

Nesses afastados tempos, desoladores e atormentados, nenhuma


família judaica conseguiria serviçais domésticos, ou de qualquer
outra espécie, pois nenhum cidadão, por miserável que fosse, se
prestaria a criado em residências de tais famílias, ainda que estas
fossem já batizadas ou convertidas, e por mais altamente
remunerado que pudesse ser. Teriam, portanto, de se utilizar da
escravatura os pobres judeus, escravatura que tanto seria africana
como também moura, cigana, pária etc., conquanto o número de
escravos fosse geralmente insignificante. Ora, na bela mansão
judaica existiam três escravos para toda a família, dado que seria
difícil adquiri-los pela época, e cujas crenças religiosas não
interessariam aos zelos governamentais, por se tratar de criaturas
havidas como realmente inferiores, à parte da sociedade. Tais zelos
se empenhavam particularmente na perseguição a judeus. Todavia,
na residência em apreço eram eles bem tratados, remunerados e não
escravizados, viviam alegremente, desfrutando horas de recreio e
parecendo estimarem seus senhores. Efetivando-se, porém, o
incidente entre o jovem Joel e frei Hildebrando, os três escravos,
espavoridos com o que a eles próprios poderia acontecer, fugiram de
seu senhor sem mais delongas, desaparecendo sem que o amo se
animasse a tentar meios policiais para encontrá-los, fazendo-os
retornar ao domicílio. A situação interna, por isso mesmo, sofrera
alterações sensíveis, forçando a delicada Ester a desempenhos rudes
e cansativos, não obstante o auxílio afável dos dedicados primos
Saulo e Rubem. Alguns dias após o interrogatório sofrido pelos
Fontes Oliveira, e ainda se encontrando a mansão destituída de
serviçais, apresentaram-se a Timóteo um homem e uma mulher,
oferecendo-se como criados ou mesmo escravos, pois não faziam
questão de subsídios e apenas desejariam alimento e pouso em troca
dos serviços prestados. Vinham de longe – afirmavam –, das bandas
da Espanha, banidos do próprio lar pela perseguição inquisitorial de
Carlos V25, e necessitavam ganhar honesta e discretamente o próprio
sustento para se ocultarem o quanto possível, a fim de se
recuperarem para a retirada que desejavam empreender por via
marítima, em demanda de terras menos assoladas pela crueldade.
Eram judeus espanhóis – disseram – e falavam o dialeto comum à
raça, o que, para o crédulo Rabino, seria o mais seguro documento de
apresentação. Confiante, o Dr. Timóteo admitiu-os sem tardança,
instalando-os convenientemente, jubiloso por ficar Ester a coberto
de tantas rudes fadigas. O homem, dizendo-se descendente de
árabes, dir-se-ia antes um cigano. Sua curiosa indumentária,
absolutamente diversa das usadas por judeus, não despertou a
atenção de Timóteo, habituado a ver disfarces de toda espécie entre
seus companheiros de crença. Usava, como os ciganos, calções
curtos, de tecido listrado, meias compridas ajustadas aos calções à
altura dos joelhos; grandes sapatos de solas de madeira; camisa
branca, de mangas largas atadas aos pulsos e colete em veludo
escarlate bordado a ouro; faixa azul à cinta, lenço listrado à cabeça,
uma argola dourada pendente da orelha esquerda, recordando, com
efeito, ciganos mouros ou o estado de escravatura entre alguns povos
orientais. Chamava-se João-José, simplesmente, era vaidoso e
julgava-se belo e irresistível, com seus grandes olhos de oriental e os
bigodes luzidios, não obstante o defeito físico que apresentava, pois
coxeava sensivelmente de uma perna.
O leitor entreviu João-José nos dias do século XX reencarnado
na pessoa de Alcina, filha de Leonel, suicida como seu pai, em uma
existência em que se desejou ocultar, sob formas femininas, de seus
implacáveis obsessores, ou seja, os antigos amos do século XVI.
Não obstante, marido e mulher nem eram verdadeiramente
judeus nem verdadeiramente árabes, porque ciganos, que viviam da
rapinagem e da traição, servindo ao mal a soldo de quem melhor os
remunerasse. Não passavam, por isso mesmo, de fiéis espiões da
Inquisição, com a detestável incumbência de observar os judeus
convertidos e denunciá-los ao Santo Ofício, desde que colhessem um
flagrante qualquer incompatível com as recomendações usadas pelas
arbitrárias leis inquisitoriais. Hildebrando de Azambuja, odiento e
cruel, encaminhara-os para a mansão Aboab, tudo dispondo da
melhor maneira para que não fossem suspeitados do verdadeiro fim
por que buscavam empregar-se. Não o foram, com efeito. Timóteo e
os filhos em ambos confiaram, abrindo-lhes o lar, penalizados,
supondo-os igualmente perseguidos. Todavia, jamais os admitiam às
confidências ou à intimidade, mantendo-os à distância conveniente e
digna. João-José, assim sendo, espionava-os quanto possível, não
perdendo jamais oportunidades de lhes ouvir as palestras íntimas e
medir atitudes, a ver se incorriam em alguma falta prevista pelo
tribunal da Inquisição. Nada interessante descobrindo que frei
Hildebrando já o não soubesse, perseverava no odioso papel,
impaciente pelo dadivoso momento em que pudesse apresentar ao
ilustre dominicano a nova de qualquer ação que revelasse fidelidade
à crença de Israel, praticada pelos patrões. Era remunerado para o
serviço... e a descoberta de uma nova infração resultaria para ele em
vantajoso prêmio...
Entrementes, chegara ao infeliz hebreu a nova acerba de que seu
primogênito, reconhecido e detido pela milícia inquisitorial já em
território espanhol, rumo à Itália, fora reconduzido a Lisboa e
encarcerado por ordem do Inquisidor-mor, o mesmo sucedendo a
seu pajem, o velho Gabriel. Desenvolveu-se, então, um processo em
regra contra o infeliz jovem, visto que, efetivamente, ele errara
procurando fugir e burlando autoridades com passaportes falsos,
atitudes contraproducentes que redundaram em irremediáveis
agravantes para a sua situação, dificultando a defesa que o pai
impetrava a seu favor. Em vão recorrera este novamente aos
préstimos de Maria de Faro, acossado pela desesperação da causa,
pois a desleal senhora, receando o desagrado do ilustre Azambuja,
abandonara os amigos à própria sorte, negando-se a qualquer
tentativa a seu favor. Os advogados de Aboab, hebreus recém-
convertidos, como ele, visto que outros que não estes não aceitariam
causas de defesas de outros hebreus, convertidos ou não, faziam o
que lhes estava ao alcance. Exigiam, no entanto, honorários e
recompensas escorchantes, dado que existiam sempre grandes
perigos em se bater alguém por um hebreu acusado pelo tribunal da
Inquisição, ainda mesmo quando fosse este já batizado e considerado
cristão. Frei Hildebrando e seus comparsas Fausto e Cosme exerciam
pressões desesperadoras, como sempre, uma vez que do feitio de tais
caracteres era a crueldade contra as indefesas vítimas que lhes
caíssem nas garras. O primeiro propusera mesmo, a Silvério, a
liberdade de Henrique em troca da esplêndida mansão e da pessoa
de Ester, que, afirmava ele, seria internada em um Monastério a fim
de trabalhar pela salvação da própria alma, como cristã revoltada e
relapsa que era considerada. Sem sequer participar à sobrinha a
indignidade da proposta, o velho Rabino rejeitou a oferta, certo,
porém, de que cara lhe custaria a rejeição, acedendo, no entanto, no
quesito relativo ao imóvel, pela libertação do filho. Fausto e Cosme,
por sua vez, propuseram a entrega da prataria restante no solar, dos
cristais e objetos de arte que ainda restavam, quadros de grande
valor artístico, pintados por Joel inclusive, em troca da proteção de
ambos para uma garantia de fuga de toda a família em momento
azado. Esperançado, ante a tormenta em que se sentia soçobrar, o
indefeso Rabino aceitou a proposta... e a velha e aprazível mansão,
cobiçada desde muito por tantas altas figuras, era destituída dos seus
preciosos adornos, enquanto aguardavam o momento da prometida
fuga para a entrega do edifício ao desumano Azambuja...
A situação geral era, assim, aflitiva, desesperadora, quando,
subitamente, os acontecimentos se precipitaram em torno da
desgraçada família, desde treze anos passados mantida em
incansável observação por parte de seus intransigentes inimigos.
25 - N.E.: Carlos V (1500-1558) foi eleito imperador do Sacro Império Romano-Germânico
como Carlos V, em 1519. O título tinha reminiscências do Império Romano, de Carlos
Magno e dos imperadores medievais e impunha a missão divina de guardar a paz e a justiça
na cristandade e defendê-la do infiel: o infiel era, naquela época, o Império Otomano e o
Islão.
X

Dissemos de início que Timóteo Aboab fora Rabino, mas que,


forçado a abjurar a crença dos seus antepassados, tornara-se católico
romano, ou fingia sê-lo. Batizara-se, curvara-se a todas as exigências
da Igreja, para o caso da conversão, como diariamente faziam muitos
descendentes da raça hebraica. Todavia, se não é lícito impor
sentimentos de quaisquer naturezas a quem quer que seja, o sagrado
sentimento da fé religiosa, superior a todos os demais que empolgam
o coração humano, será, com efeito, o mais difícil, senão impossível,
de ser imposto. A Igreja, impondo outrora o jugo das conversões
violentas, raramente conseguia crentes sinceros para o seu culto.
Fazia dos conversos, quando muito, adeptos hipócritas, agregados
por conveniência, porquanto os desgraçados, perseguidos até a
desesperação, aceitavam o adotarem o Catolicismo, abjurando a
crença que lhes era própria, na esperança de viverem em paz e
salvaguardarem a vida e a honra da sua descendência, o que nem
sempre conseguiam, pois a perseguição continuava por suspeitas de
infidelidade à crença adotada. No íntimo, porém, a maioria desses
convertidos detestava não apenas a Igreja como até o próprio
Cristianismo, ao qual não compreendia senão por meio dos feitos
abusivos da clerezia, muitas vezes mais herege do que mesmo
aqueles a quem perseguia. Quando muito, os mais sagazes e
pensadores dentre os convertidos, portadores de boa vontade e
também habituados ao jugo farisaico da sua própria grei, faziam ao
Cristianismo, que não compreendiam, justiça idêntica à que faziam
ao profetismo de Israel, discernindo que – assim como o farisaísmo
judeu corrompera a verdadeira crença de Israel, ultrajando-a com a
lama das paixões pessoais, exercendo-a até mesmo com finalidades
políticas, incompatíveis com a respeitabilidade e doçura dos
santuários, assim também o clericalismo católico-romano
desfigurara a legítima essência cristã, por lhe assentar o vírus de
arbitrariedades e crimes, que em seu nome cometia, contrariando-
lhe os princípios e as finalidades. O Dr. Timóteo, contudo, não era
dos que faziam tal justiça. E conquanto até então não se revelasse um
mau caráter na verdadeira expressão do termo, era certo que os
longos infortúnios, as desgraças suportadas em silêncio, as
humilhações e mil desassossegos cavaram diariamente, em seu
coração, a revolta sombria e intransigente, o abismo irredutível entre
os seus próprios sentimentos de israelita e o Cristianismo,
responsabilizando, portanto, a Doutrina do Cristo pelo mau uso que
dela faziam pretensos adeptos da mesma, infinitamente mais hereges
e nocivos à Humanidade do que os próprios a quem torturavam para
converter. E, assim se portando, mais o antigo Rabino se devotava à
sua primitiva crença, continuando a praticá-la ocultamente, não
obstante a conversão ao Catolicismo e à prática exigida pelos
luminares clericais.
Ora, malgrado à vigilância dos inquisidores, existia em Lisboa
uma sinagoga exercendo funções quase normais. Aparentemente,
tratava-se de residência particular, com acomodações para comércio,
e realmente ali existia abastada família judaica, considerada, havia
muito, realmente convertida à fé católica romana. Entretanto, aos
sábados realizavam-se ali cerimônias do rito hebreu e comumente
falava à cátedra o antigo rabino Aboab. E isso mesmo levavam a
efeito, os pobres hebreus, depois de terem assistido a missas, pela
manhã, de se aspergirem com “água benta” e receberem as
respectivas bênçãos do arcebispo e seus coadjuvantes. As reuniões,
no entanto, somente se realizavam à noite e eram pouco
frequentadas, a fim de não levantarem suspeitas. Os fiéis se
obrigavam ao revezamento, para que mais sutilmente todos se
permitissem ao culto que amavam. Então, discutiam os assistentes
pontos importantes das escrituras ou do Talmude e programas de
defesa contra as hostilidades de que eram vítimas; maldiziam os
cristãos, bradavam aos Céus por entre lágrimas, reclamando
proteção ou vinganças contra as atrocidades que suportavam;
concitavam-se à perseverança na lei de Moisés e no ensino dos
profetas; intrigavam, atiçando ódios contra os perseguidores;
planejavam fugas e até conspirações e assassínios, os quais jamais
chegavam a realizar, e prometiam, uns aos outros, sob solenes
juramentos, por si próprios e suas descendências, o culto eterno a
Israel. Na realidade, entretanto, eram inofensivos, grandemente
sofredores, e longe estavam de ombrear com a maldade e a vileza de
um Hildebrando de Azambuja, um João de Melo e seus comparsas
comuns.26 Distribuíam esmolas aos domingos, à porta das igrejas,
afetando uma piedade religiosa que não sentiam... e o faziam por
observarem duas finalidades: tradição do rito hebreu, que ordenava
distribuição de pão aos pobres, à hora dos ofícios considerados
sagrados, e exibição, para apreciações dos seus eternos observadores,
de uma virtude que conviria fazer passar por inspirada em princípios
cristãos, mas que não passava de automatismo farisaico.
Espionando sempre, o novo criado João-José descobriu a
sinagoga clandestina, acompanhando, imperceptivelmente, o amo
nas escapadas noturnas periodicamente realizadas, pois, como
sabemos, funcionava aquela cátedra moisaica a adiantadas horas da
noite, graças ao rigor das circunstâncias. Desejando, porém, cair
definitivamente nas boas graças dos ilustres mandatários do Santo
Ofício, o pretenso judeu espanhol, agora espião católico, não
participara seus inquisitoriais senhores da importante descoberta,
esperando algo mais particular, implicando também o resto da
família, dadas as vantagens existentes para as finanças próprias no
fato de apontar a família toda judaizando acobertada pelo batismo e
suposta conversão. Continuou, assim, espionando os pobres amos, os
quais, supondo-o servo leal e sofredor, como eles próprios vítima de
injustificadas hostilidades, nem sempre se acautelavam
devidamente, como seria de bom aviso em face de um estranho
admitido no convívio da família. E transcorriam os dias,
cientificando-se João-José e sua mulher do que faziam os amos, do
que falavam, das lágrimas que choravam, das esperanças que os
reanimavam ou do desânimo que os abatia... e, no entanto, não se
compadeciam deles...

26 - N.E.: João de Melo – outro célebre inquisidor de Portugal, da mesma época.


XI

Era domingo, à tarde. A família Aboab encontrava-se reunida no


amplo jardim do solar, sob o frescor das oliveiras evocativas, cujas
galhadas se estendiam em proteção aos canteiros de plantas
mimosas, contra os rigores do Sol. Decorria o verão e, desde que se
tornaram suspeitos às leis da Inquisição, os Aboab já não
conseguiam visitas nem contavam com os comensais, visto que assim
se pautava a sociedade de Lisboa em torno dos infelizes hebreus, pela
época. Os jardins do solar judaico eram interiores, como sabemos. À
frente da habitação, murada e como fortificada, havia pátios
atijolados, como nas casas nobres, varandas e abrigos para
carruagens, viaturas, “cadeirinhas” etc. No interior, porém, ficavam
pomares e jardins, sendo estes localizados no centro da habitação, a
qual, toda avarandada, ao gosto oriental, lembraria também
claustros conventuais. Comumente a família se reunia ali, à tarde,
para confabulações íntimas ou, à sesta, para ouvir as melodias
entoadas pela doce Ester. Era igualmente o local preferido para
conversarem no seu dialeto tradicional, acerca da história da raça. E
Timóteo, então, tomando a palavra, recordava os antigos patriarcas
de Israel, narrando aos filhos atentos as grandezas e vicissitudes do
seu povo. Lia-lhes, depois, contrabalançando o ensino fornecido
pelos mestres dominicanos, o Talmude – o livro da sabedoria – ou as
próprias escrituras, e, comentando-os, como doutor da lei que era,
instruía quanto podia a família na religião dos seus antepassados, o
bastante para infundir-lhe no caráter e destilar no coração aquele
orgulho de raça, o exclusivismo sombrio e rígido que produziu a
maior vicissitude, dentre tantas, que sofreu o povo israelita, mas que
também forneceu o padrão inconfundível do seu valor característico.
As maiores cautelas eram tomadas em tais ocasiões, conforme
dissemos para trás. E conquanto estivessem certos de que os
serviçais não lograriam atingir aquele recinto, era bem verdade que
se fechavam prudentemente, isolando o jardim e assim evitando a
possibilidade de serem surpreendidos por quem quer que fosse. Com
a prisão de Joel, já desorientados e convencidos de que não tardaria
o momento em que eles próprios seriam igualmente detidos pelos
sequazes inquisitoriais, seu único lenitivo era reler os profetas e
reestudar as consolações contidas nos livros tradicionais da crença, e
o faziam isolados no jardim. Bem ao centro deste, e protegido pelos
tamarindeiros e as oliveiras, existia um grande tanque com formosa
coluna e taça de mármore encimada por três canais em feitio de
tulipas artisticamente dispostas, dos quais esguichavam as águas,
fazendo transbordar a taça para manter sempre límpido o pitoresco
lago. Precisamente no pedestal da coluna, cujas bases roçariam a flor
das águas, havia um bloco de mármore em forma de grande caixa,
mais alta que larga, e cujas paredes artísticas encobriam certa
portinhola, como se o bloco ou caixa nada mais fosse do que um
esconderijo, cofre de segredo para algo muito valioso que
necessitasse ser negado a vistas estranhas. O detalhe passaria
despercebido a todos os olhares e investigações, pois tais modelos de
chafarizes eram comuns e ninguém suspeitaria tratar-se aquele de
um estratagema para algo encobrir. Três passagens estreitas, como
graciosas pontezinhas, ligavam o bloco de mármore ao terreno do
jardim, enfeitando a peça que, realmente, se mostrava interessante.
Nessa tarde de domingo, tristes e apreensivos, reuniram-se os
Fontes Oliveira em volta do tanque, no intuito de mutuamente se
reconfortarem na intimidade doméstica. Ester entoava aos ares,
como em surdina de prece, acompanhando-se à cítara, o Salmo 70 de
Davi, e sua voz doce, magoada, era como a tradução das lágrimas dos
próprios filhos de Israel flagelados desde milênios por opressões
constantes. Choravam o velho Timóteo e os dois filhos, Saulo e
Rubem, a fronte curvada, o coração cruciado e inconsolável, o ânimo
já desfalecente ante a persistência e fereza das provações impostas
pela violência da Inquisição, enquanto Ester soluçava aos sons
enternecidos do suave instrumento:
Em ti, Senhor,
Tenho esperado longamente...
Não seja eu, jamais,
Por ti esquecido...
Livra-me, Senhor,
Na tua bondade e justiça,
De todos os males
E de todos os perigos...
Põe-me a salvo, meu Deus!
Inclina sobre mim
Teu coração de Pai,
E salva-me
Destes atrozes males,
Porquanto,
A minha firmeza,
A minha esperança
E o meu refúgio
És Tu!

Deus meu!
Livra-me da ira
Do inimigo pecador!
Daquele que procede
Contra a tua lei!
E também
Do que pratica
Tanta e tanta
Iniquidade!
Porque Tu, Senhor,
És a minha fé
E a minha
Paciência!
Tu, Senhor,
És a minha esperança
E o meu
amor!
A minha alegria
E a minha fé!
E espero em ti, Senhor,
Desde os dias
Tão distantes,
E tão ditosos,
Da minha infância
E da minha
Mocidade...
Quando os acordes maviosos cessaram, o pequeno Rubem, a um
sinal do pai, encaminhou-se para uma das três pontezinhas do
tanque, não sem investigar, com olhos temerosos, os recantos do
círculo onde se achavam as galhadas dos arvoredos, o alto dos
telhados e dos muros e os tufos de arbustos do jardim. Saulo
advertiu:
— Não há cá ninguém, eu investiguei...
Enquanto Ester ajuntou:
— Examinei todas as portas: estão trancadas pelo lado de cá...
E Timóteo interveio desesperançado:
— Pouco importa que nos descubram agora ou mais tarde... Joel
já lá está... e poderemos ir ter com ele... Estamos todos
irremediavelmente condenados... A prisão, a tortura e a morte
rondam nossos passos... Não tardarão a nos aniquilar de vez...
tenhamos ou não infringido a lei...
Reanimado pelo fatalismo pressago do pai, o moço judeu
encaminhou-se para o bloco de mármore do pedestal do repuxo,
acionou o segredo existente, fazendo mover a parede da caixa, e,
introduzindo o braço na cavidade, retirou um grande e precioso livro
escrito em hebraico – o Talmude –, o livro precioso da sabedoria de
Israel, acompanhado de velhos pergaminhos dos livros dos profetas.
O bloco de mármore seria, portanto, um simulacro da arca sagrada
do povo hebreu, na qual se guardavam das profanações exteriores os
ensinos dos filhos de Abraão, de Isaque e de Jacó...
Timóteo pôs-se a ler e comentar, para os filhos, o tema do dia.
Ao terminar, concedeu a palavra a Saulo e a Rubem,
respectivamente, como de praxe nas igrejas judaicas, nas quais a
palavra é concedida a qualquer que dela queira usar, excetuando-se
as mulheres, que não tinham o mesmo direito. No entanto, enquanto
assim cumpriam seus deveres religiosos, um fato marcante para suas
vidas começava a desenrolar-se no próprio recinto de sua residência,
sem que, todavia, nenhum dos presentes sentisse a mais leve
suspeita, pois continuaram a “judaizar”.
João-José, que se conservava alerta a todos os detalhes da vida
dos amos, desejou verificar o que poderia tanto entretê-los sob o
frescor dos arvoredos. Tentou espioná-los sutilmente, penetrando
dependências vedadas aos criados, para atingir o jardim que, como
explicamos, era interior, como em um claustro conventual. Seria,
porém, temerário o intento, visto que poderia ser descoberto.
Suspendeu-se, então, ao telhado do abrigo das carruagens e viaturas,
posto no pátio de entrada. Passou-se daí para o telhado da casa
propriamente dita. Arrastou-se como pôde, ocultando-se por entre as
chaminés e os rendilhados arquitetônicos, alcançando, finalmente,
um terraço de onde poderia contemplar as cenas e até ouvir os
debates e conversações, sem ser notado. Ornado de balcões de
alvenaria em forma de graciosas colunas, tão do gosto dos antigos
mouros, esse terraço oferecia excelente posto de observação. O
espião conservou-se abaixado e tudo presenciou, inclusive o
esconderijo do livro venerado pela família.
Alguns dias depois, plenamente informado de todos os passos e
atos de Silvério Fontes Oliveira, apresentou-se o espião aos seus
inquisitoriais chefes e lançou a denúncia terrível, cujas repercussões
ainda nos dias presentes lhe torturam a consciência, visto que ainda
se debate o seu Espírito contra os abomináveis complexos que tal
vileza ocasionou para seus destinos futuros.
Silvério Fontes Oliveira – denunciava o servo traidor –, que se
afirmava fiel à Santa Igreja, que se batizara em ato solene, recebendo
as puras águas lustrais; que recebia, periodicamente, a sagrada
Eucaristia, atraiçoava os juramentos pronunciados, como a confiança
da mesma Igreja, pois continuava praticando o Judaísmo, não
apenas dentro do próprio lar, pervertendo os filhos, que se educavam
sob os cuidados de devotados religiosos, mas também chefiando uma
sinagoga oculta, como Rabino que fora, rodeando-se de cristãos
recém-convertidos para a prática de mil inconveniências condenadas
pela Santa Inquisição. E não era só: a esta mesma insultava, dela
maldizendo e execrando-a em casa, em presença dos filhos e dele
próprio, João-José, ou durante as concentrações na sinagoga,
criticando e abominando igualmente os ilustres e abnegados
representantes do Santo Ofício. Forneceu ainda, o delator, as
necessárias informações para ser colhido o flagrante de heresia e
desrespeito à autoridade nacional. E nada esqueceu que pudesse
acirrar o furor dos inquisidores, que, sedentos de sangue e
represálias, se banhavam em satânico prazer sempre que lhes fosse
dado estender as garras para triturar indefesas criaturas, cujo crime
único seria possuir crença religiosa diferente daquela que seus
algozes entendiam ser a única verdadeira e divina.
XII

Três dias depois da denúncia, era sábado, o dia consagrado pelos


hebreus aos deveres religiosos. Realizar-se-ia a reunião dos adeptos
de Moisés e dos profetas no local conhecido, e o Dr. Timóteo não
poderia faltar porque era o intérprete, o que melhor conhecia as
intrincadas leis do Judaísmo, para instruir o povo.
Desusada movimentação verificava-se na chamada Casa da
Inquisição, isto é, na sede da Instituição, pois que o Inquisidor-mor,
o vice-inquisidor, seus adjuntos, a milícia do Santo Ofício e até
soldados do Rei encontravam-se a postos para a batida daquela noite
em uma sinagoga clandestina que acabara de ser denunciada, a fim
de se lavrar o flagrante dos falsos cristãos, como eram denominados
os infelizes hebreus forçados a uma conversão que lhes repugnava.
João-José entrava e saía, febricitante, do sinistro edifício, delator por
ambição ao ouro, malévolo, possuído de odiosas alegrias ao prelibar
o gozo ignóbil de embolsar respeitável quantia após a conclusão do
serviço. Até que a noite caiu e começaram a se reunir na dita
sinagoga os judeus cujos corações revoltados procuravam lenitivo na
evocação da antiga crença que lhes embalara a infância. O Dr.
Timóteo lá estava, à cátedra, investido do seu ministério de
intérprete da Lei... quando pancadas soaram nos portões, repetidas e
aterrorizantes, seguidas de arrombamentos de portas com alavancas,
barras de ferro etc., e a invasão dos soldados do Rei e do Santo
Ofício. Alguns daqueles infelizes, espavoridos, tentaram a fuga, mas
a casa, inteiramente cercada, era invadida de todos os lados, sem
alaridos, sem rumores inúteis, porque a Inquisição era discreta, sabia
agir em silêncio, dentro das sombras da noite e adentro dos muros
das suas prisões, sem repercussões perturbadoras da ordem. O
pelotão, porém, era comandado, ou orientado, por três dominicanos
encapuzados e mascarados, a fim de não serem reconhecidos. Vendo-
os, porém, Aboab, majestoso, altivo, e provando, na hora derradeira,
o orgulho da sua raça, reconheceu-os imediatamente e exclamou:
— Oh, sim! Prendei-me, Sr. D. Frei Hildebrando de Azambuja!
Agradeço a honra que me concedeis vindo pessoalmente aprisionar o
vosso anfitrião e amigo, em cuja mesa vos regalastes de bebidas e
comezainas como os porcos o fazem em suas pocilgas!... Para um
Inquisidor-mor, a atitude é tão comezinha quanto o é o próprio
caráter da Instituição e dos seus funcionários! Possuís criados e
soldados... Deveríeis antes vos terdes conservado em vosso posto de
comando do que no de lacaio de um Rei infame!
Virou-se para os companheiros de ideal religioso e prosseguiu:
— Apresento-vos o Inquisidor-mor de Portugal, D. Frei
Hildebrando de Azambuja! A ele ficaremos devendo as desgraças que
sobrevierem sobre nós e nossa descendência... Chegai Fausto, Cosme
de Mirandela! Chegai sacrílegos e obscenos irmãos, incestuosos e
hipócritas, que aviltais a própria crença, ao afirmardes que a
professais! Prendei-nos, blasfemos, que desonrais o próprio nome do
“Santo dos Santos”, ao proferi-lo! Ó réprobos dos infernos! Eu vos
amaldiçoo do alto desta cátedra sagrada, da cátedra do povo de
Israel, que difundiu entre os homens a crença e a confiança no
verdadeiro Deus Todo-Poderoso, investida de uma autoridade que os
milênios não apagam! Amaldiçoo-vos! E, se a alma de um homem se
perpetua, realmente, depois da sua morte, tereis a minha e a dos
meus filhos – meu sangue e minha carne, que ides sorver e devorar –
acompanhando-vos quais sombras vingadoras, que vos perseguirão
pela consumação dos evos...
As mulheres presentes prorrompiam em prantos e lamentos
compungentes, certas do que as aguardava na Casa da Inquisição,
enquanto Aboab terminava a maldição:
— Sei que a fogueira aguarda a mim e aos meus filhos... mas
ouvi, malditos, antes que a tortura dos vossos subterrâneos emudeça
a minha língua: – jamais admiti a vossa crença! Odeio-a como odeio
a vós outros! Por amor dos meus filhos, apenas, fiz que a aceitei,
quando a vossa tirania ma impôs! Porém, desprezo-a como a vós
desprezo, porque uma crença que induz os seus adeptos aos crimes e
vilezas que praticais não é uma religião, mas a mais absurda e
execrável das heresias, cuja cruel atuação será a vergonha da
posteridade, que vos há de julgar e condenar como hoje julgais e
condenais homens indefesos, vossos compatriotas, que nasceram
sobre o mesmo solo e vivem sob a mesma bandeira!
Disse-o e cuspinhou no chão em direção a eles, com nojo e
escárnio, ato que, entre os da sua raça, era a suprema afronta, o mais
vil insulto. Não mais logrou, no entanto, sequer o tempo necessário
para ultimar o ultraje, porque soldados caíram sobre ele, a um sinal
do inquisidor mascarado, que não se dignara pronunciar uma única
palavra; manietaram-no, espancaram-no, retiraram-no do interior
da casa amarrado a cordas, e, arrastando-o pelas ruas, de encontro às
lajes incertas, como se o fizessem a um trapo desprezível,
blasfemavam insultos, enquanto os gêmeos de Mirandela, correndo
ao encalço dos verdugos que o arrastavam – sinistra comitiva de uma
abominação que o homem hodierno não chegará a bem compreender
–, vociferavam excitados, coléricos:
— Poupai-o! Poupai-o! Queremo-lo vivo e bem vivo! Precisamos
que ele viva! Bem vivo!...
Todos os demais, surpreendidos em flagrante de Judaísmo
quando já haviam recebido o batismo da Igreja e eram considerados,
por esta, cristãos, foram encarcerados nos subterrâneos da Casa da
Inquisição. Arrastado pelas lajes qual um trapo inútil, semimorto,
ferido, banhado em sangue, o Dr. Timóteo viu-se atirado a uma
espécie de poço úmido, manietado como se encontrava. O
desgraçado sabia que ia morrer, mas não o ouviam lamentar a
própria sorte, senão repetir estas pungentes e altivas palavras:
— Matai-me, despedaçai-me, pois sou judeu, com efeito! Mas
tende piedade dos meus filhos, que são inocentes e nem conhecem a
existência dessa cátedra! Eles são cristãos, nascidos em Portugal,
educados por mestres dominicanos! Jamais desobedeceram às leis!
Piedade... piedade para meus filhos!...
Abandonaram-no na masmorra soturna, povoada de insetos
imundos e ratos vorazes, que logo entraram a atacá-lo por entre mil
torturas indescritíveis...
Entrementes, Hildebrando e seus acólitos se reuniram em
sessão secreta, radiantes com as prisões efetuadas, a fim de
discutirem quanto ao destino a darem ao resto da família Aboab.
— Prendamo-los a todos – incitavam Fausto e Cosme, cujas
opiniões eram idênticas em quaisquer circunstâncias. — São da
mesma raça... Convém exterminá-los de vez, a bem do decoro da
nossa legislação religiosa...
— Legalmente não o poderemos fazer, visto que não existem
suficientes razões... Ao demais, são duas horas da madrugada... –
aparteou alguém da diabólica assembleia, ainda não de todo
corrompida.
— A Santa Inquisição age como bem lhe aprouver, pois que é
autônoma... e, acima de tudo, houve denúncia de que toda a família
vem “judaizando” desde muito, o que é proibido por lei... e esta nos
dá o direito de uma devassa em regra no domicílio suspeito... –
acudiu frei Hildebrando, afetando zelos pela Instituição, mas a rigor
premeditando algo deplorável acerca da infeliz Ester.
— De outro modo, uma vez Silvério aprisionado, assistir-nos-á o
direito de confiscar-lhe os bens... – acudiram os gêmeos,
ambicionando o que ainda restava da mansão cobiçada.
— Sim! – voltou Azambuja – confiscar-lhe-emos os bens! Aquele
miserável judeu é riquíssimo, embora tente convencer que se
encontra arruinado... São duas horas da madrugada... Convém
devassarmos o domicílio agora, a fim de evitarmos alaridos e
escândalos com a luz do sol... Investigaremos esconderijos onde
possam existir comprovantes de heresias e de riquezas... a fim de que
algo aproveitemos a tempo... visto ser de lei que seja o Estado que
lucre com a confiscação... Quanto àquela jovem... à menina
Mariana... Bem... Resolveremos depois o seu destino... Foi educada
por irmãs dominicanas... Incumbo-me dela...
Tais vilezas eram comuns. Ninguém aparteou... e o grupo
sinistro rumou para o solar judaico, em cujo interior era tudo
silêncio e quietação.
Não obstante, velavam ainda os seus habitantes, porquanto,
inquietos com a prolongada ausência do seu querido chefe, Ester e os
primos pressentiam algo temeroso delineando-se sobre suas cabeças.
Subitamente, perceberam vozerio e bulha incomum no pátio da
entrada principal. Acorreram, curiosos, às rótulas das janelas e
recuaram apavorados: à luz vermelha e crepitante de tochas
sustentadas por pajens batedores, cinco soldados armados e cinco
clérigos mascarados com grandes capuzes entravam pela porta
principal da residência – como conviria a autoridades – guiados por
João-José, que lhes abrira os portões e agora descerrava
serenamente a porta do edifício, secundado pela mulher.
Espavoridos, os dois jovens, Saulo e Rubem, procuravam
ocultar-se pelo interior dos armários, sob as camas e os aparadores,
enquanto Ester tentava serená-los e detê-los, exclamando com
heroísmo e ânimo varonil:
— Mantenhamos ao menos a dignidade de enfrentarmos o
martírio com serenidade para morrermos com heroísmo, sem jamais
patentearmos pusilanimidades diante dos algozes! – ao passo que
Saulo gaguejava, trêmulo de terror e de revolta, ante a arbitrariedade
que os violentava:
— Não! Não poderão prender-nos a uma hora destas, sem que
cometêssemos delitos que justificassem tal violência! Não podem!
Não cometerão tal iniquidade! Temos o direito de defesa e
justificativas, que a lei nos concede! Tratar-se-á, porventura, de ódio
particular, de perseguição oculta, à revelia da lei? Meu Pai, ó meu
Senhor e Pai! Socorrei-nos! Socorrei-nos! Misericórdia, ó Deus
Eterno, pois somos daqueles vossos legítimos filhos, da raça dos
vossos santos profetas!... É a Inquisição que nos vem prender, ó
Deus! É a tortura, é a fogueira! O fogo! O fogo! Irão queimar-nos
vivos, como fazem aos demais?!... Ó meu pobre irmãozinho querido,
Rubem! Foge, Rubem! Foge para qualquer parte, que já estaremos
desgraçados! Socorro! Socorro! É a Inquisição que chega! Os frades!
Os inquisidores! Deus do Céu, são os dominicanos!...
Abraçavam-se os dois irmãos excitados, aterrorizados ante o que
viam, derramando copiosas lágrimas, prostrados de joelhos sem bem
compreenderem o que faziam, enquanto Ester, junto deles, envolvia-
os em um só abraço, como desejando protegê-los contra o perigo
iminente, pois já os perseguidores entravam violentamente no
recinto pela porta aberta, com estrondo, pelo servo infiel. À vista de
Ester, tão bela, tão altiva e indefesa entre os primos, moralmente
ainda mais frágeis do que ela, os algozes tiveram um instante de
indecisão, como se algo em suas consciências se envergonhasse da
soez atitude que tomavam, devassando indebitamente um lar
respeitável onde poucos dias antes ainda eram recebidos como
amigos. A jovem, porém, reanimada, ergueu-se e, fitando-os com
dignidade e brandura, interrogou:
— Poderão informar-nos, senhores, da razão desta violência...
Frei Hildebrando aproximou-se mascarado, deixando-se
reconhecer, no entanto, pelo indisfarçável tom vocal:
— Descansa, querida menina... – exclamou, afetando bondade
assaz suspeita –, e confia em nossa proteção... Nada desagradável
sucederá a ti se concordares em ser razoável e obediente... pois
apenas desejamos a tua felicidade pessoal... A lei, porém, impõe-nos
o ingrato dever de uma busca neste domicílio, porque houve
denúncia de que aqui se pratica o Judaísmo...
Aproximou-se mais e tocou-a no braço, em um gesto ousado,
protetor. A jovem desvencilhou-se e ele prosseguiu:
— Ficarás sob minha tutela, no Convento das boas
dominicanas... Nada terás a recear do tribunal da nossa Santa
Instituição, afianço-te... porque o tribunal sou eu...
— Não, nunca! – revidou ela com ousadia. — Prefiro antes a
prisão e a morte com os meus, a tortura, a fogueira, apesar de ser
cristã!...
Correu para os primos, com eles se abraçando, enquanto riram,
desdenhosos, os sinistros invasores. Eis, porém, que fora iniciada a
inspeção no domicílio. Revolveram-se armários, cofres, arcas. Em
verdade, estabelecia-se o saque à revelia da lei, pois, ambiciosos e
avaros, convinha sempre aos magnatas da Inquisição invasões
noturnas dessa natureza, a fim de burlarem a lei civil ou o governo,
no tocante aos bens que por este seriam confiscados após a
condenação, cerimônias estas, levadas a cabo invariavelmente sob
rigorosa formalidade, dita ou considerada legal. Todavia, do que
encontravam, então, de valor, Hildebrando e seus comparsas se
apossavam como quaisquer roubadores inescrupulosos, afirmando
tratar-se de bens heréticos e macabros, que a “piedade cristã”
aconselhava serem convertidos em espórtulas às igrejas e aos
desprotegidos da sorte, a fim de contribuírem para o alívio das almas
dos seus infiéis possuidores, que se achavam caídos em pecado
mortal. João-José insistia junto deles, insofrido e excitado:
— Procuremos no jardim as provas de heresia, Rev.mos! É no
chafariz do tanque que se encontra o esconderijo! Existe lá o livro
herético dos judeus, o qual estes Aboab veneram e discutem aos
domingos, como fariam nas sinagogas...
E realmente encontraram, na arca dissimulada no pedestal de
mármore do chafariz, o livro tradicional da raça, em cujas
venerandas páginas toda a família, desde os remotos ancestrais,
sorvia energias morais, a consolação espiritual tão necessária nas
horas deprimidas pela angústia, como nos dias dolorosos de
expectação ante o fim trágico que finalmente chegava. O próprio
Rubem, premido pelas odiosas imposições da sinistra comitiva,
houve de desvendar o segredo da abertura, visto que não souberam
decifrá-lo os homens do Santo Ofício. E fê-lo banhado em lágrimas o
infeliz rapaz, a si mesmo considerando traidor por haver deposto nas
mãos dos mais terríveis inimigos da sua raça o penhor religioso
venerado por todos os hebreus. Frei Cosme esbofeteou-o, vendo-o
relutar em entregar o precioso texto. E o pobre adolescente irritado,
os nervos exaustos por uma expectativa prolongada e uma revolta
exacerbada, investiu para ele, constatando que lhe tomavam o livro;
e, tentando revidar a ofensa, cuspinhou-lhe no rosto ainda
mascarado, pregando-lhe ainda os dentes com força na mão por que
fora esbofeteado. Não concluiu, todavia, a expansão dos seus revides.
Via-se tolhido pelos brutais apaniguados do Santo Ofício, em um
minuto amarrado com sólidas cordas, enquanto Ester, desfeita em
lágrimas, corria intentando socorrê-lo, e Saulo investia, defendendo-
o; mas, igualmente no curto espaço de alguns instantes, viu-se a
jovem amordaçada e amarrada, carregada pelos braços possantes de
um sequaz de Hildebrando, metida dentro de uma carruagem
fechada, onde em seguida tomou lugar este mesmo célebre e cruel
inquisidor, rodando para local ignorado por ela. Dizia-lhe ele, no
entanto, aos ouvidos aterrorizados, emocionado e arrogante:
— Acalma-te, querida menina! Nada desagradável te sucederá,
já to disse! Sou o homem mais poderoso de Portugal! O próprio Rei
curva-se em minha presença! Amo-te! Amo-te e quero-te como um
insensato, como um louco! E tu estás sob minha proteção! Serás
grande, tão poderosa qual uma rainha, se o desejares! Apenas uma
condição imponho: sê minha! Consente em me amar também um
pouco!...
E rodava a carruagem pelas ruas de Lisboa, imersa em trevas...
Ficavam para trás, encobertos pelas sombras do pretérito, o lar que
ela tanto amava, a família, o amor, a felicidade... e Saulo e Rubem,
manietados quais ferozes malfeitores, espancados, arrastados como
se mais não fossem do que trapos inúteis, que se incluiriam no
monturo...27 Todavia, partindo, Ester pudera ainda observar que
Saulo gargalhava e chorava, bramia e suplicava, afigurando-se que o
infeliz adolescente perdera a razão, não resistindo à tensão
traumática de uma rude e longa expectativa de desgraças finalmente
verificadas. Alguns minutos depois, a jovem hebreia não mais pôde
perceber o que se desenrolava ao redor de si e tampouco o local para
onde a conduziam, pois desmaiara ao lado de Hildebrando, vencida
por violenta emoção.

27 - N.E.: Não era comum a prisão de filhos menores de judeus. O fato aqui narrado parece
tratar-se de vinganças pessoais. No entanto, a Inquisição deixava-os, geralmente, ao mais
completo desamparo, segundo reza a História.
XIII

Não alongaremos a nossa história, descrevendo ao paciente


leitor as démarches do processo de condenação da infeliz família
Aboab, o qual, como todos os demais movidos pela Inquisição, foi
vergonhoso pela má-fé dos seus executores, injusto e vil, como
atestado que era de uma época sombria, em que o excessivo ardor
religioso, mancomunado com leis civis despóticas e tão apaixonadas
quanto ineptas e cruéis, distribuía, em nome da Verdade, o vírus de
irreparáveis calamidades sociais, esquecido de que a missão da Fé,
como a da legalidade, seria antes consolar e proteger almas aflitas e
inexperientes, encaminhando para o Bem e, portanto, para Deus,
quantas criaturas desnorteadas pela ignorância se achegassem à sua
sombra. Acrescentaremos apenas, evitando que o nosso noticiário se
torne incompleto, que o Inquisidor-mor, como sempre, colocou a
serviço do seu mau-caráter todos os requisitos da perversidade de
que era capaz o seu coração diabólico, torturando seus antigos
anfitriões com a ferocidade demonstrada nos demais processos a que
presidia e orientava. Negara toda espécie de consolo e alívio aos
infelizes Aboab. Com os próprios bens confiscados, destituídos de
quaisquer recursos na solidão dos calabouços, impossibilitados de se
entenderem com amigos e correligionários, ainda porque nenhum
destes se atreveria já a se apresentar como tal, os desgraçados não
esperavam senão a morte na fogueira, como suprema esperança para
o término de tão rigorosas desventuras!
Mantidos em prisões isoladas, não lograram o alívio de se
reconfortarem uns aos outros, senão o ataque de ratos vorazes e
vermes imundos, que agravavam o seu inconcebível martirológio.
Dali saíam, periodicamente, apenas para a sala de torturas. Tratava-
se de dependência subterrânea, armada em pedra e alvenaria, com
longas arcadas impressionantes e teto em abóbada, local sinistro,
carregado de vibrações dolorosas, odiosas, rodeado de sombras, onde
o cheiro repulsivo do sangue humano e da carne queimada pareciam
estigmas degradantes, e onde se passavam, em segredo para os
homens, mas visíveis a Deus, os mais abomináveis crimes cometidos
na face da Terra! Então, eram submetidos a interrogatórios
contundentes como a outros tantos suplícios, durante os quais os
algozes encontravam ocasiões sempre fáceis para intercalarem
sofismas e interpolações soezes, raciocínios falsos e
comprometedores para as vítimas. Somente nessas horas cruciantes
podiam os infelizes se avistar, à exceção de Ester, que jamais
aparecera, e se contemplavam famintos e imundos, esquálidos e
deprimidos, atrelados a colunas, a fim de não tentarem sentar; e ali,
tendo à frente os demais membros da família, sofriam vexames e
insultos, humilhações e tratos de que a Inquisição fora sempre tão
fértil em inventar para suplício de milhares de vítimas que fez
durante séculos!28 Assim foi que – conforme entrevimos no início
destas narrativas – Aboab e os filhos tiveram as unhas e os dentes
violentamente arrancados, as carnes dos braços e coxas, e as solas
dos pés queimadas com tenazes em brasa; os punhos retorcidos e
deslocados, suplícios estes lentos, que não matavam com rapidez,
mas torturavam até o paroxismo do horror, afirmando os
mandatários da execrável Instituição que semelhantes tratos seriam
antes benemerentes porque predisporiam as almas hereges ao
próprio salvamento das sombras infernais, depois da morte. Tão
patético martirológio estendeu-se por seis longos meses, durante os
quais nem sequer um aceno de esperança viera suavizar as trevas em
que se convertera a existência do desgraçado Timóteo e seus três
filhos e ainda o velho Gabriel, que fora o primeiro a sucumbir.
Suplicava aquele, invariavelmente, que lhe despedaçassem o corpo,
torturando-o ainda com maiores requintes de crueldade, mas que
poupassem seus filhos, que eram cristãos e inocentes de quaisquer
faltas contra a Inquisição. Que lhe dessem, por misericórdia, notícias
de Ester, por cuja sorte se exasperava de ansiedade e terror! No
entanto, respondiam-lhe os verdugos com bofetadas e torturavam os
três jovens ainda mais caprichosamente, em sua presença, causando
ao desgraçado pai, a quem mantinham atrelado a uma coluna de
pedra, os paroxismos da raiva e da desesperação. Hercúleo e
enérgico, Joel resistia aos tratos terríveis, não obstante a extenuação
que diariamente se acentuava, esperançoso até final de algo
indefinível que o libertasse, permitindo-lhe investigar o paradeiro da
noiva a fim de socorrê-la e poder vingar-se... Saulo e Rubem, no
entanto, enlouqueceram ante a crueza dos sofrimentos, dada a
extrema juventude, que favoreceria choques nervosos irremediáveis,
havendo o último sucumbido atrelado à coluna, ou pelourinho,
diante do pai e dos irmãos, enquanto o outro expirara dias depois,
ambos se livrando, assim, da morte pelo fogo, mas não escapando da
incineração do cadáver em vistosos “autos de fé” em praça pública,
como era de praxe nos códigos da execrada Instituição.
Certa vez, ao chegarem Timóteo e Joel à sala de torturas, já
inteiramente desfigurados pelo longo martírio, depararam Ester
também atada a um pelourinho, inteiramente desnuda e rodeada por
algozes mascarados. A infeliz judia, em cuja fisionomia se estampava
o horror perfeito, suplicava por entre lágrimas e gritos lancinantes
que lhe tirassem quanto antes a vida, mas que cessassem de
submetê-la às ignomínias com que, na sua qualidade de mulher, se
via supliciada! Não apresentava pelo corpo sinais de tratos
inquisitoriais, havendo o Dr. Timóteo e o filho compreendido, em um
momento, a vileza dos sequazes da Inquisição, que, geralmente,
profanavam cruelmente as virgens hebreias antes de atirá-las à
fogueira!
Experimentando, naquele instante, novo gênero de suplício,
superior em intensidade a tudo quanto já sofrera até então, Joel,
enlouquecido, investiu, em um instintivo impulso, no intuito de
socorrê-la; mas vários braços o tolheram, espancando-o, torturando-
o, atrelando-o à coluna costumeira. Então, por entre gritas de
desespero, blasfêmias e insultos atirados até mesmo contra o próprio
Criador, o desgraçado jovem cientificou-se de que Ester – o seu
imaculado lírio, em cujas faces jamais roçara os lábios por se não
julgar bastante digno de tal mercê, pela só razão de ser homem – fora
aviltada na sua candidez virginal pela ignomínia de Hildebrando de
Azambuja, que a raptara e conservara prisioneira em local
indevassável; que faustos e honrarias oferecera-lhe ele para que se
adaptasse de boa mente à ingrata situação, mas, como a jovem
preferira conservar-se revoltada contra o atentado vil,
testemunhando-lhe todo o desprezo que lhe votava, vingara-se ele,
cruel e satânico até o fim, submetendo-a violentamente a todas as
suas torpezas durante algum tempo, para depois abandoná-la aos
caprichos dos seus demoníacos colaboradores, os quais, eternos
ébrios, a haviam exposto ao mais aviltante dos martírios que poderá
atingir uma mulher! E agora ali estava ela, indefesa, à espera de
martírios novos, em presença do tio e do noivo... para, alguns dias
depois, sem mais avistá-los, morrer na fogueira... suave arremate de
tão profundas desgraças...
Calara-se o patriarca, conservando-se pensativo durante alguns
instantes. Eu e meu Assistente Roberto, comovidos, sentíamos
igualmente confrangidos os nossos corações. Aguardávamos em
silêncio, desencorajados de algo mais interrogar, certos de que o
ensinamento seria completado. Dentro em pouco, efetivamente, a
respeitável Entidade, após um aceno que interpretaríamos como a
tradução de um profundo pesar, continuou bondosamente,
oferecendo-nos o ponto final das suas informações:
— Resta-me acrescentar ainda, ao noticiário que me destes a
honra de requerer, que o infeliz Timóteo, esse obsessor
intransigente, que há quatro séculos persevera na vingança, esse
inimigo implacável de Leonel e família, o qual tendes acolá,
hospedado na vossa agremiação terrena de estudos e trabalhos
beneficentes, para um devido, supremo entendimento, foi levado à
fogueira com seu filho Joel, poucos dias após a cena última,
ignorando o paradeiro da pobre Ester. Encontravam-se já
semimortos pelos maus-tratos sofridos e meio dementes de dor e
desesperos; e morreram por entre revoltas e blasfêmias, repudiando
a própria crença em Deus ante o destino que tão adverso lhes fora,
possuídos de um ódio demoníaco por seus perseguidores e algozes,
ódio e revolta que deveriam cavar para ambos, e os demais filhos, um
abismo de trevas que se alonga já por quatro séculos! Ester, ao
contrário, humilde e resignada, tendo aceitado, desde muito, nos
recessos da alma, a verdadeira crença no Messias de Deus,
anunciado pelos profetas da sua raça, reconhecendo nesse
perseguido de Jerusalém um mártir sublime, digno de ser amado e
imitado, extinguiu-se na fogueira beijando e banhando de lágrimas a
cruz da redenção... e quantos se encontravam pelas imediações do
patíbulo crepitante afirmaram tê-la ouvido cantar, com voz serena e
muito meiga, os olhos fixados no espaço, como prelibando a
satisfação de uma realidade compensadora e empolgante, aqueles
Salmos queridos que faziam o encantamento espiritual da família
Aboab durante os serões saudosos e tão doces, sob o frescor das
oliveiras do antigo solar judaico:
O Senhor é o meu pastor,
E nada me faltará...
A suaves campos me guiou
E me conduziu a fontes
De água fresca e pura...

28 - N.E.: Segundo revelações da História, um desses pavorosos suplícios consistia em


colocar-se a vítima atada a um catre, ou mesa, e retalhar-lhe as solas dos pés, untá-las com
azeite e chegar-lhes o fogo lento. Acossada em tais condições pelos exasperados sofrimentos,
a vítima confessava o que seus algozes desejassem e tal confissão seria o caminho para a
condenação à morte na fogueira. Muitos outros suplícios assim atrozes eram praticados. Em
Portugal e na Espanha tais vítimas eram sempre de raça judaica.
Terceira Parte
Conclusão

...E meu Pai enviará outro Consolador...29

29 - N.E.: João, 14:15 a 17 e 26.


I

Uma vez desencarnada – prosseguiu, finalizando, a Entidade


protetora – após os primeiros meses de perturbações e
desesperações, a família Aboab reuniu-se por meio das correntes
espirituais de afinidades e simpatias, exceção feita de Ester, cujos
pendores delicados e evoluídos a encaminharam naturalmente para
agrupamentos apropriados ao seu grau de evolução; os demais
permaneciam nos próprios ambientes trágicos de Portugal, e, o que
mais doloroso ainda se tornava, residindo, como dantes, no próprio
domicílio que tanto queriam, agora de propriedade de Azambuja,
que ardilosamente o requerera do erário público como pagamento de
dívidas insolvidas pelos condenados. Revoltados e odientos,
destituídos agora da confiança tradicional na crença ortodoxa em
Moisés e os profetas, em seus sentimentos apenas bruxuleava a ideia
imprecisa de um Ente supremo a quem não compreendiam, e ao
qual, por entre gritas e blasfêmias, invocavam para que os inspirasse
na vingança contra os destruidores da sua felicidade e de suas vidas
carnais, isto é, Hildebrando de Azambuja, Fausto e Cosme de
Mirandela, a condessa Maria de Faro, que os entregara à Inquisição,
e o espião João-José. E, efetivamente, durante um período quatro
vezes secular, Timóteo Aboab e seus três filhos não concederam
tréguas nem piedade aos seus antigos inimigos. Obsidiam-nos,
perseguem-nos desesperadoramente, desde então, impelindo-os a
desastres e desgraças constantes, até os dias presentes, quando
tencionavam impelir todos eles, agora encarnados em Leonel e sua
família, ao ato do suicídio, visto que seria esta a única modalidade de
perseguição que àqueles não atingira até agora. E assim os obsidiam,
quer se encontrem seus antigos algozes no Espaço, como
desencarnados, quer estejam na Terra com novos corpos carnais,
pois existem entre as duas pequenas falanges elos de atração tão
poderosos, forjados pelo ódio e pelo crime, que impossível será a
Hildebrando e seus sequazes se furtarem à presença de suas antigas
vítimas, senão quando um arrependimento sincero, resoluções
sadias e remissoras os inclinarem a uma modificação geral no
próprio modo de proceder. O antigo Rabino e seus filhos, no entanto,
até o presente não concordaram com um novo ensejo reencarnatório,
a despeito das ocasiões valiosas que piedosos agentes do Bem,
incumbidos pela Espiritualidade de aconselharem os caracteres
rebeldes e endurecidos à emenda dos próprios erros, lhes têm
proporcionado. Descrentes da misericórdia do próprio Ente
supremo, de cujas leis, que não compreendem, se ressentem pelo
muito que sofreram; não acreditando em amigos e na própria justiça,
uma vez que presenciaram em Portugal governantes cruéis
cometerem iniquidades contra os próprios súditos, mancomunados
com hordas assassinas que se proclamavam intérpretes da Verdade,
as quais se valiam do poder adquirido à sombra da religião para a
prática de todas as paixões vis; repelindo toda a possibilidade de
instrução filosófica, fornecida pelos instrutores espirituais, para um
trabalho de reforma e esclarecimentos em si mesmos, a fim de que a
compreensão das soberanas leis da Criação os levasse à meditação, à
conformidade e ao respectivo progresso, aliaram-se, no Invisível, a
falanges obsessoras que, endurecidas no mal, espalham os germens
da desgraça por onde passam e encontram afinidades. E, por estes
instruídos e adestrados, vêm, durante tão longo tempo, cobrando a
seus antigos algozes todas as lágrimas que eles próprios e seus
compatriotas choraram desde o primeiro dia em Lisboa até o
presente. De outro modo, os antigos inquisidores, Espíritos, com
efeito, maldosos, afeitos ao erro, igualmente endurecidos,
absolutamente não se preocuparam com a própria regeneração até o
momento, tratando de lealmente se voltarem para Deus a fim de
resgatarem o mau passado por meio de realizações benfazejas, em
vez de o fazerem na expiação dolorosa. Têm, ao contrário, revidado
as hostilidades sempre que possível, quando desencarnados, muito
embora o terror que nutrem pela presença de suas desgraçadas
vítimas do século XVI, agora transformadas em algozes. E tais vêm
sendo as batalhas verdadeiramente infernais que se desenrolam,
desde aquela malsinada época, entre essas falanges litigantes, que
Azambuja e seus acólitos, sentindo-se inferiorizados nos ardis para o
revide das represálias, organizaram no Invisível uma como
associação defensiva contra os Aboab... e, após mil tentativas e
peripécias para se furtarem aos choques constantes daqueles,
reencarnaram juntos, criando uma família carnal na Terra, por
afinidades passadas, como unidos haviam sido no pretérito pela
cumplicidade nos crimes praticados. E o fizeram nas seguintes
posições de responsabilidades e descendência, automaticamente
inspirados pela consciência culposa de cada um:
1) Hildebrando de Azambuja: o Inquisidor-mor e maior
responsável pelo drama que desgraçou os Aboab: Leonel, o guarda-
livros suicida.
2) Condessa Maria de Faro: cúmplice de Hildebrando no caso
Aboab, a qual precipitou a pedra de escândalo para a consumação do
drama, com agravantes, drama que, se ela o quisesse, teria atenuado
por intermédio do esforço da boa vontade: a esposa de Leonel, cujo
calvário de provações e lágrimas, nessa qualidade, formaria um
volume.
3) Fausto e Cosme de Mirandela e João-José: filhos do casal
reencarnado como Leonel e esposa, sendo o último Alcina, a filha
suicida de Leonel. Aterrorizado ante as vinditas atrozes movidas
pelos Espíritos de seus antigos amos de Lisboa, o Espírito João-José
preferiu ocultar-se em uma encarnação de formas femininas,
esperançado de que, assim disfarçado, não pudesse ser reconhecido.
Enganou-se, porém, visto que sua própria organização psíquica
atraiçoou-o, modelando traços fisionômicos e anormalidades físicas
idênticos aos que arrastara na época citada. Encontrou-se, de outro
modo, enredado em complexos físicos oriundos da mudança de sexo,
anormalidades sexuais e mentais fáceis de fornecerem pista de
reconhecimento a um obsessor... terminando, como vimos de início,
sob pressão perseguidora de Timóteo, que sistematicamente lhe
apresentava, em quadros mentais, um recipiente com solução
corrosiva, por qualquer pequena contrariedade doméstica,
porquanto seu desejo seria apossar-se definitivamente desse
Espírito, a fim de escravizá-lo à seita macabra dos vingadores
judaicos existentes no Invisível, em ação contra aqueles que durante
séculos vêm intransigentemente perseguindo, sem razões plausíveis,
os da sua raça, sob mil formas diferentes...
II

De posse de tão preciosas informações, estabeleci o único


programa lícito perante as leis da Fraternidade: tentar a reeducação
dos litigantes à base da cristianização das suas individualidades
espirituais, muito embora estivesse certo de que o aprendizado que
se seguiria apresentar-se-ia longo e espinhoso, através de uma ou
mais reencarnações. Seria tarefa árdua para nós outros, que os
deveríamos aconselhar e instruir, auxiliando-os no reajustamento
indispensável, mas seria necessário, imprescindível que assim fosse,
e tanto eu como meus dedicados companheiros de trabalho
estávamos dispostos a tentar o certame, uma vez que outro não seria
o nosso dever de cooperadores do Grande Mestre nazareno. Aliás,
cumpre ao obreiro tão somente a realização dos serviços confiados à
sua competência, sem discutir se serão os mesmos penosos, difíceis
ou de fácil execução.
Na noite seguinte à nossa entrevista com a entidade espiritual
orientadora das duas falanges em apreço, realizou-se a reunião dos
médiuns de minha confiança, por mim solicitada, e eu e mais alguns
obreiros ligados à agremiação terrena, patrocinadora do feito,
levamos ao fenômeno da incorporação o antigo Rabino e seus filhos.
Em verdade ser-nos-ia dispensável aquela reunião.
Resolveríamos, sim, o lamentável drama espiritual, dispensando o
concurso humano. No entanto, três fatores existiam, poderosos, que
nos animavam ao feito: ensinamento e aprendizado para os próprios
homens, que urgentemente necessitam conhecer os grandes dramas
da Humanidade distendidos para o além-túmulo; ensejo de
progresso para os médiuns e cooperadores terrestres nos setores da
Fraternidade, que assim se habilitariam à prática de inestimável
feição da Beneficência; e mais facilidade para a conversão dos
endurecidos Espíritos diante do fenômeno mediúnico-espírita, cujo
aspecto impressionante é de grande importância para um
desencarnado.
Os debates com o presidente da mesa eram vivos, eloquentes e
acres por parte de Timóteo e de Joel, e menos resolutos por parte dos
jovens Saulo e Rubem, que se diriam apenas o eco das ações do pai e
do irmão, como que obsidiados os seus Espíritos pela ação constante
de duas vontades mais poderosas; ponderados, profundos e não
menos vivos e eloquentes por parte do presidente, que trazia a seu
favor, a par de outros fatores, quatro séculos de progressos gerais e
ainda a lógica irrefragável e vigorosa fornecida pela Doutrina
Espírita. E seria belo vê-los e ouvi-los!... Confesso que sorri de
sincero júbilo contemplando os meus disciplinados pupilos
empenhados em tão formosa peleja transcendental, em benefício do
próximo! E, o coração se me dilatando em fervoroso desejo da vitória
do Amor, acionei intuições ao presidente dos trabalhos, auxiliando-o
quanto possível no generoso empreendimento. Ele e Timóteo dir-se-
iam, então, o quadro vivo de duas épocas que se empenhavam em
lutas: para resistir ao tempo, uma, que era sombria e cheia de
amarguras, recordando um pretérito de opressões, para implantar as
luzes do conhecimento e da esperança, convidando a criatura à
liberdade por intermédio da Verdade; a outra, que trazia o futuro por
fanal sob as alegrias do Consolador! Ambos cultos, conhecedores do
terreno filosófico que representavam, os seus discursos lembrariam a
oratória das Academias gregas, onde os mais belos temas filosóficos
eram levantados para debates que honrariam oradores e ouvintes.
E duas horas de argumentações se escoaram, durante as quais a
inusitada tragédia de Lisboa foi citada e revivida pelo verbo queixoso
e magoado dos antigos judeus, com toda a patética amargura da sua
realização, esgotando os médiuns, que se viram obrigados a elevar do
olvido uma época já desaparecida nas dobras do tempo e os seus
problemas, sob injunções irresistíveis de um formoso, mas penoso
fenômeno, tornado torturante pelo choque dos fluidos contundentes
que seu ódio e suas dores emitiam! Todavia, subitamente, surgiu
Ester em plena reunião, tornando-se visível aos comunicantes e
videntes. Ester, a virgem sacrificada que, depois de quatro séculos de
ausência, retorna aos seus, mais formosa sob a estruturação
espiritual do que jamais o fora na terrena, coroada de rosas agora,
recordando as flores preferidas na mansão judaica, um jacto de luz
azul a irradiar ondulações sublimes ao redor de toda a sua
configuração espiritual, evocando a imagem das virgens que
sucumbiram, não mais nos circos de Roma, para o suplício à frente
dos leões, mas em novas arenas onde as feras seriam antes hienas
humanas envoltas em sotainas e capuzes negros clericais, os homens
do chamado Santo Ofício, de abominável memória!
Tomadas de um deslumbramento que tocava as raias do pavor,
as quatro individualidades endurecidas se detiveram nos enunciados
de revolta. Quedaram-se respeitosas, concentradas na felicidade
inapreciável de revê-la e de ouvi-la, pois, dizia-lhes, murmurando
docemente, como em uma cavatina angelical:
— Sim, meus amados de outrora, meus amados de hoje e de
sempre! Eis-me novamente convosco, para nunca mais nos
separarmos! Todavia, para que tão grandiosa ventura se concretize,
necessário será que eu vos recorde um sagrado dispositivo da lei da
nossa raça... A lei suprema, fornecida por Javé, o Deus de Israel30, ao
maior profeta dos hebreus, nas sagradas escarpas do Sinai, estatui,
como principal dever dos filhos de Abraão, este mandamento, que
encerra todos os demais que os homens e os Espíritos deverão
observar para serem agradáveis ao Criador: “Amarás o Senhor teu
Deus de todo o teu coração, com todas as tuas forças, com todo o teu
entendimento, e o próximo como a ti mesmo”... – e não o ódio
secular que vindes alimentando em vossas almas para desgraça vossa
e impossibilidade de nossa própria felicidade... Se os vossos inimigos
do passado faliram no cumprimento desse dever, deixando de
observar o dispositivo supremo do Código divino, e, assim,
ofendendo-vos profundamente, também infringistes o mesmo
sagrado dispositivo, odiando e revidando ofensas... Quatro séculos
são passados, meus amados, desde a noite terrível de nossa prisão
em Lisboa... D. João III, outrora cruel e desumano, encontra-se
agora em franco ressurgir para a redenção do seu Espírito, por meio
de operosidades generosas e heroicas a respeito de povos e falanges
sociais, pois, à frente da Lei suprema, aquele que muito errou muito
deve construir de aproveitável e excelente, para expungir, com o
inverso do que praticou outrora, as sombras que lhe aviltam a
consciência... E ele o tem feito através das reencarnações, pelas vias
da abnegação e do sacrifício, inspirado em um arrependimento
construtivo! Depois de horas desesperadoras dos mais negros
remorsos, em que também conheceu o amargor das lágrimas
derramadas por aqueles a quem perseguiu por meio das leis que
criou, sofreu ele próprio, com agravantes terríveis, o rigor das
mesmas leis, em encarnação obscura e humilde, que posteriormente
tomou em Portugal mesmo, nascendo em círculo familiar da própria
raça que ele tanto perseguiu, para provar o desacerto das leis e
instituições por ele próprio criadas! E durante todo esse tempo,
quando o tirano arrependido do mal praticado tratava de se erguer
para novos ciclos de progresso, vós, que éreis honestos e bons, mas
não possuíeis boa vontade para perdoar e esquecer as ofensas
recebidas, permanecestes estacionários no ódio, cristalizados na
prática das vinganças, e tanto odiastes e tanto feristes, revidando
ofensas... que auxiliastes o progresso e a emenda dos vossos próprios
inimigos de outrora, os quais, hoje, já se encontram em melhores
condições morais perante a Lei suprema do que vós outros... pois o
certo é que eles não mais odeiam a quem quer que seja e que um
grande e sincero arrependimento, do passado mau, os predispõe a
futuro honroso e reparador... É tempo, pois, de perdoar para serenar
o coração e tratar de progredir... É tempo de amar a Deus nas
pessoas dos vossos irmãos de Humanidade e não apenas aos
compatriotas e correligionários da mesma fé religiosa... Vinde
comigo... e eu vos exporei, em serões tão doces como aqueles de
outrora, sob a amenidade das oliveiras do nosso solar querido, não
mais as leis rigorosas de Israel, que nos eram relembradas pelos
velhos códigos hebreus, mas as suaves leis do amor e da fraternidade
estatuídas por aquele grande Rabboni que me agasalhou e enalteceu
em vossa ausência...
Impressionados e temerosos, nada responderam, mas seguiram
com ela. Exaustos, os meus médiuns não mais resistiriam. Despertei-
os. Refeitas foram as suas energias por nós, mas a reunião no mesmo
Centro prolongou-se ainda, conquanto subordinada, agora, aos
planos exclusivamente invisíveis.

30 - N.E.: Javé (Jeová) – Espírito superior protetor da raça hebraica, que concedeu ao
médium psicógrafo Moisés, em nome de Deus, o Decálogo, ou Os Dez Mandamentos da Lei
de Deus, fenômeno idêntico aos que se processam hoje entre os médiuns espíritas. Outro
Espírito, da mesma categoria espiritual de Javé, revelava-se também protetor dos hebreus –
Eloim, citado com o primeiro, várias vezes, no Velho Testamento. Os antigos povos de Israel
atribuíam tais manifestações ao próprio Deus.
III

As vibrações disseminadas pelos ambientes de um Centro


Espírita, pelos cuidados dos seus tutelares invisíveis; os fluidos úteis,
necessários aos variados quão delicados trabalhos que ali se devem
processar, desde a cura de enfermos até a conversão de entidades
desencarnadas sofredoras e até mesmo a oratória inspirada pelos
instrutores espirituais, são elementos essenciais, mesmo
indispensáveis a certa série de exposições movidas pelos obreiros da
Imortalidade a serviço da Terceira Revelação. Essas vibrações, esses
fluidos especializados, muito sutis e sensíveis, hão de conservar-se
imaculados, portando, intactas, as virtudes que lhe são naturais e
indispensáveis ao desenrolar dos trabalhos, porque, assim não
sendo, se mesclarão de impurezas prejudiciais aos mesmos
trabalhos, por anularem as suas profundas possibilidades. Daí
porque a Espiritualidade esclarecida recomenda, aos adeptos da
Grande Doutrina, o máximo respeito nas assembleias espíritas, nas
quais jamais deverão penetrar a frivolidade e a inconsequência, a
maledicência e a intriga, o mercantilismo e o mundanismo, o ruído e
as atitudes menos graves, visto que estas são manifestações
inferiores do caráter e da inconsequência humana, cujo magnetismo,
para tais assembleias e, portanto, para a agremiação que tais coisas
permite, atrairá bandos de entidades hostis e malfeitoras do
Invisível, que virão a influir nos trabalhos posteriores, a tal ponto
que poderão adulterá-los ou impossibilitá-los, uma vez que tais
ambientes se tornarão incompatíveis com a Espiritualidade
iluminada e benfazeja.
Um Centro Espírita onde as vibrações dos seus frequentadores,
encarnados ou desencarnados, irradiem de mentes respeitosas, de
corações fervorosos, de aspirações elevadas; onde a palavra emitida
jamais se desloque para futilidades e depreciações; onde, em vez do
gargalhar divertido, se pratique a prece; em vez do estrépito de
aclamações e louvores indébitos se emitam forças telepáticas à
procura de inspirações felizes; e ainda onde, em vez de cerimônias ou
passatempos mundanos, cogite o adepto da comunhão mental com
os seus mortos amados ou os seus guias espirituais, um Centro
assim, fiel observador dos dispositivos recomendados de início pelos
organizadores da filosofia espírita, será detentor da confiança da
Espiritualidade esclarecida, a qual o elevará à dependência de
organizações modelares do Espaço, realizando-se então, em seus
recintos, sublimes empreendimentos, que honrarão os seus
dirigentes dos dois planos da Vida. Somente esses, portanto, serão
registrados no além-túmulo como casas beneficentes, ou templos do
Amor e da Fraternidade, abalizados para as melindrosas experiências
espíritas, porque os demais, ou seja, aqueles que se desviam para
normas ou práticas extravagantes ou inapropriadas, serão, no
Espaço, considerados meros clubes onde se aglomeram aprendizes
do Espiritismo em horas de lazer.
Ora, convinha à programação por mim estabelecida a respeito
do caso Leonel e os judeus que estes últimos iniciassem no próprio
ambiente do Centro já mencionado o seu aprendizado mais urgente,
visto que muito prejudicados se encontravam eles, pelo acervo de
quatro séculos de hostilidades, para que os removêssemos tão
subitamente para o Espaço, a despeito das possibilidades que
tínhamos de fazê-lo. Aliás, o seu embrutecimento vibratório, a
exiguidade da sua visão espiritual, que não perceberia senão formas
pesadas, se adaptariam melhor ao sistema físico-humano, enquanto
que, no Além, nos seriam necessárias materializações mui penosas a
fim de que nos fizéssemos devidamente compreendidos. O ambiente
no núcleo espírita em que se desenrolava o feito em apreço prestava-
se ao magno serviço. Não se ouvia repercutir ali, nas vibrações
distendidas, o eco da maledicência e tampouco o do comentário. Não
retinia o som do gargalhar nem as trepidações insulsas de cenas e
acontecimentos próprios do mundo. Não se retratavam em sua
atmosfera nenhuma outra cena ou nenhuma sequência de
palavreado que não fossem a proteção ao sofredor, o consolo a um
desencarnado em confusões, a assistência paternal aos desvalidos da
fé e da esperança. Resolvi, por isso mesmo, que meus pupilos do
momento habitassem temporariamente aquele Centro, nos exemplos
e ações de cujos trabalhadores, encarnados e desencarnados, se
instruíssem quanto à verdadeira significação da Doutrina do Cristo,
pois, até então, para eles, o Cristianismo seria perseguições e
rapinagem, ódio e assassínio, sangue e corrupção!
— Fala-nos do grande Rabboni, teu amigo, que concedeu asilo e
proteção a nossa Ester, e que acolhe perseguidos e desgraçados como
nós... – solicitava o velho Timóteo ao meu Assistente Roberto,
passados que foram os transportes de satisfação pela visita de Ester.
— Sim, falarei dele, meus caros amigos, ou alguém mais
abalizado do que eu, porém, mais tarde... De início, apreciareis e
deduzireis, vós mesmos, dos seus ensinamentos, por meio das ações
de discípulos seus que, como homens que ainda são, dirigem e
movimentam esta associação terrena em cuja sede vos encontrais
hospedados... Ester e eu, embora não residindo aqui,
permaneceremos às vossas ordens, vigilantes para vos atendermos
em quaisquer esclarecimentos necessários... mas creio será inútil,
pois melhor analisareis o valor da Doutrina desse grande Mestre,
observando o labor dos seus discípulos, que nela se orientam e
disciplinam.
E assim foi que, com efeito, durante seis meses habitando aquele
Centro de fraternidade, o Dr. Timóteo do século XVI e seus três
filhos assistiram a curas de paralíticos e de obsidiados, realizadas em
nome e pelo amor de Jesus Cristo, o Nazareno, por meio daquele
grupo de médiuns a quem nós, os do Invisível, tínhamos o dever de
acionar. Contemplaram e admiraram a dedicação abnegada, diária,
de um serviço de assistência a enfermos do corpo e da alma, sem
esmorecimentos, sem queixas nem reclamações, antes sob a
irradiação da sã ternura do coração e da sublime alegria daquele que
já vislumbra em si mesmo as alvoradas do Reino de Deus! Assistiram
às doces tarefas da fraternidade se distenderem até o Invisível, no
socorro a obsessores, a suicidas, a corações endurecidos no mal,
como a desesperados e tristes que vagueiam pelos planos invisíveis
sem forças para a emenda. Viram o órfão socorrido, o mendigo
acalentado na sua miséria, o presidiário assistido no seu tugúrio,
esclarecido na sua ignorância e esperançado no futuro redentor
dentro das próprias lágrimas do opróbrio, o faminto saciado, o
abandonado encaminhado ao trabalho honroso, a decaída
retornando ao dever, o ignorante orientado ao caminho do
aprendizado compensador. E tudo isso realizado sob o critério da
Doutrina do grande Mestre do Cristianismo! Visitando, porém, a
intimidade do lar de cada um daqueles médiuns que contribuíam
para a melhoria da sua própria situação, constataram que suas vidas
eram consagradas ao honesto cumprimento dos deveres sociais e
profissionais, dedicadas ao bem e ao respeito do próximo, em
qualquer setor! E ainda que, se sofriam, oravam e se resignavam,
certos de melhor futuro; e, se eram ofendidos por inimigos gratuitos,
poderiam sofrer e chorar em silêncio, mas sem blasfêmias nem
revides vingadores, porque o perdão era tão fácil e espontâneo
naqueles corações como o sorriso nas faces da criança... Nem uma
palavra insultuosa ao próximo jamais ouviram, nem uma delação ou
intriga, nem uma apropriação indébita, nem um perjúrio, nem a
maledicência, nem o abuso e o vitupério! E tudo isso eles também
analisaram e compreenderam que era a verdadeira educação
fornecida por aquela Doutrina Cristã, que eles haviam conhecido
falseada no século XVI, mas que agora se surpreendiam de vê-la
praticada em Espírito e Verdade, em nome do grande Rabboni, seu
fundador, cujo nome – descobriram pelos ensinamentos desses seus
discípulos – era Jesus Nazareno!
Sim! “Jesus ben Joseph”, de Nazaré, mas nascido na Judeia, na
cidade de Davi, exatamente o Messias anunciado pelos profetas de
Israel... e como ele, Timóteo, e seus filhos, perseguido pelas hienas
clericais até o desespero do suplício e da morte forjada pelos
interesses pecaminosos dos homens!
Durante o espaço de tempo que ali passaram, assistiram, graves
e quedos, acomodados entre a assembleia de ouvintes, como
quaisquer encarnados, ao estudo e à oratória espírita e evangélica. E
nós, então, acionando a técnica do “Laboratório do mundo invisível”,
criávamos para os seus entendimentos – valendo-nos do poder da
nossa vontade – os panoramas expostos pelos oradores e
explicadores, panoramas que eles passavam a ver como em cenas
teatrais ou cinematográficas, pois que as vibrações dessa Casa de
comunhão com o Alto, por se conservarem imaculadas, facilitavam a
delicadeza e a eficiência do melindroso, sublime trabalho. Um curso
eficiente, pois, de legítimo Cristianismo e de Filosofia Espírita
levaram a efeito os antigos hebreus por meio de tais processos,
visitando ainda outras agremiações merecedoras da nossa confiança
e observando outros tantos adeptos fiéis às recomendações do
Consolador. Pela mesma época, outrossim, foram-lhes demonstrados
em aprendizado, por dolorosa, mas grandiosa exposição da
retrospecção da memória (exame consciencial dos arquivos mentais),
os antecedentes do drama terrível de Lisboa: Aboab e filhos haviam
existido em Jerusalém ao tempo dos primeiros cristãos como
autoridades judaicas e romanas, exercendo então, sobre os
inofensivos adeptos do Cristianismo nascente, atrocidades análogas
às que tantos anos mais tarde vieram a experimentar, por sua vez,
sob as garras da Inquisição de Portugal! Então, compreendendo
claramente a lógica dos fatos, ou a lei de causa e efeito, humilharam-
se, reconhecendo o erro em que incorriam havia séculos, e, desfeitos
em lágrimas de sincero arrependimento, renderam-se à evidência da
irresistível doutrina do Amor, do Perdão e da Fraternidade, que
desde os dias longínquos do Calvário irradia redenção para a
sucessão dos séculos. E constataram, assim, que aquela fé clerical
que, sob os auspícios do Santo Ofício de sacrílega memória, se
pretendeu impor pela crueldade da violência, longe estava de se
assemelhar às blandiciosas lições daquele doce Rabboni que
recomendava aos seus discípulos:
“Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei...”
Quanto a Leonel, que desde quatro séculos vem expiando as
tenebrosas consequências dos seus crimes de Inquisidor-mor,
presentemente, arrependido e lamentando o passado, encontra-se
em vias de ressurgimentos gerais para a definitiva regeneração,
disposto aos mais severos testemunhos exigidos pela consciência
para a própria reabilitação. Seus trajetos pelas estradas do futuro,
tais como os de sua filha Alcina (o antigo João-José, espião de
Azambuja), serão ainda ásperos, visto que, ao demais, o suicídio por
obsessão não os isentou de responsabilidades, pois se houve,
efetivamente, sugestões externas impelindo-os ao feito macabro,
estas, no entanto, lhes não tolheram a possibilidade de raciocinar
para se defenderem, arredando-as, o que não fizeram porque,
realmente, preferiam as paixões arrasadoras do mundo ao suave
contato mental com o amor de Deus por meio da prece, que lhes teria
fornecido forças de resistência contra a tentação. Prontos se
encontram ambos, mas agora sinceramente, a estreitarem nos
braços, definitivamente, aqueles pobres judeus que outrora lhes
franquearam, confiantes, a intimidade do lar doméstico, esperando
da sua honradez pessoal o mesmo respeito e consideração idêntica. E
o farão – afirmaram ambos, em momento solene de certa reunião do
mundo invisível, em presença de instrutores dedicados – por amor
daquele Eterno Deus cujas leis protetoras lhes forneceram ensejos
novos de resgate e reabilitação dos crimes passados.
Acrescentarei, finalmente, que o antigo rabino Timóteo Aboab,
já reencarnado nos dias atuais, receberá em seu futuro lar conjugal –
como filhos de um consórcio legítimo – além dos seus mesmos três
filhos de outrora, em novas experiências de reabilitação e progresso,
também aquele pobre Leonel e sua filha Alcina, aos quais impeliu ao
suicídio por meio de um constante, sistemático trabalho de obsessão
simples ignorada. E assim sendo terá de arcar com as provações e as
responsabilidades de pai carnal daqueles que renascerão envoltos no
angustioso complexo oriundo do suicídio. E Joel, Saulo e Rubem
serão, por isso mesmo, irmãos consanguíneos daquele que foi o
terrível Azambuja de sinistra memória, como daquele ignóbil João-
José, os quais, porém, se vêm redimindo lentamente, por meio dos
penosos, mas eficientes serviços expiatórios concedidos pela Lei
Divina da Reencarnação!
Assim é, meus caros amigos, que o conhecimento legítimo da
Doutrina Espírita, como a boa e lúcida prática da mediunidade,
resolvem problemas seculares, pois não esquecereis de que foi por
intermédio da mediunidade bem orientada, à luz do Evangelho do
Cristo e sob o rigor da Ciência Transcendental, que os Aboab se
encaminharam para a regeneração individual... e que a família de
Leonel, igualmente convertida sob orientações espiritistas, obteve
forças e ensejos para o único alvo que lhe caberia atingir a fim de
lograr serenidade para progredir moral e espiritualmente, isto é, o
amor e o respeito às soberanas Leis de Deus...
A severidade da Lei

“Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não
pagares o último ceitil.”

(M , 5:26.)
I

Certa vez, durante uma reunião do mundo invisível, levada a


efeito por brilhante falange de instrutores espirituais afeitos a
melindrosas tarefas de reeducação entre os homens terrenos, um dos
eminentes delegados presentes,31 que apresentara extenso relatório
acerca do aflitivo desajuste moral e social em que se debate a mulher,
na Terra, segredou-me em particular, após cumprida a missão de
congressista e quando eu o felicitava pelo magnânimo empenho de
bater-se pelo movimento de socorro espiritual à mulher, em um
congresso da Espiritualidade:
— Dizei aos vossos leitores terrenos, meu excelente irmão, vós
que gostais de praticar literatura mediúnica, algo que desperte a
mulher para os superiores anelos do Espírito... Conservei sempre, em
meu coração, uma profunda estima, um profundo respeito e uma
sincera compaixão por essa alma sacrificada na condição feminina,
que palmilha sendas rodeadas de abismos sem se dignar neles
reparar para evitar quedas irreparáveis... Eu quisera poder ajudar a
mulher a remover dos seus destinos os contratempos que a
deprimem!
— Louvável o vosso intento, meu caro amigo... e impossível será
a mim negar colaboração a tão enternecido alvitre. Na Doutrina do
Consolador, efetivamente, encontrará a mulher o estímulo que lhe há
faltado para uma eficiente evolução moral, o amparo regenerador
que a levará a vencer a si própria, dominando os arrastamentos das
paixões primitivas, e glorificando-se, quer como companheira do
homem, durante os aprendizados terrestres, quer como Espírito,
essência divina! Praza aos Céus, oh, sim, meu amigo, que,
ingressando no seio dessa redentora Doutrina, possa a mulher
inspirar-se e reanimar-se definitivamente, saciando-se naquela água
viva oferecida pelo Cristo à samaritana, a fim de aplicar suas
preciosas energias a serviço do Bem, para o advento da Luz na
sociedade terrena... – respondi eu.
Em homenagem à mulher, pois, e atendendo ao amorável
convite daquele generoso amigo da Espiritualidade, ditarei aos meus
leitores terrenos um episódio da vida real por mim observado em
seus mínimos detalhes, no qual dois vultos femininos se apresentam
como padrões dignos de meditação.
De tudo quanto venho observando nestas últimas décadas da
sociedade terrena, a respeito dessa criatura gentil, cujo coração é
generoso e amorável, mas discricionário; simples, mas ignorante;
heroico, mas arbitrário; dedicado, mas inconsequente, uma cláusula
preponderante se eleva entre todas: será necessário que a mulher
pense mais no ideal do que nas realidades mundanas; mais no
Espírito que a anima e o qual há de marchar para a Luz, por meio de
labores evolutivos sem limites, do que no sexo; mais em Deus do que
no homem, que lhe tem arrebatado todas as mais formosas e
dignificantes preocupações. Que ela saiba que possui valor próprio
para vencer, sem necessidade de se escravizar ao sexo. Que
compreenda que a lei da Criação lhe conferiu capacidades elevadas
para os mais formosos feitos do Espírito! E que, portanto, se liberte
quanto antes do ignominioso servilismo que a mantém escravizada
aos sentidos, estiolando suas preciosas faculdades à beira de
influenciações bastardas, a serviço dos instintos masculinos, quando
suas aspirações antes deverão obedecer às realizações do ideal
divino! Que medite em que, antes de ser mulher, já era entidade
espiritual destinada ao triunfo da imortalidade, e que, por isso
mesmo, persistem nela, como sempiterna origem, as essências de um
Deus Criador, que assinalou a sua individualidade com as mais
sublimes expressões da possibilidade! Que ela se detenha, pois, nas
aspirações bastardas que o mundo gerou ao contato das paixões
inferiores, e asseste essas mesmas poderosas capacidades para as
aspirações superiores, únicas que lhe fornecerão o brilho das
virtudes, sem o qual não logrará a reabilitação de que tanto carece a
sua mesma reputação entre aqueles homens e Espíritos das camadas
inferiores da Moral – que a perseguem com odiosos desrespeitos,
valendo-se da manifesta indiferença dela por si mesma, para a
impelirem a quedas de que, geralmente, só a asperidade dos séculos
a libertará!
A presente história, prendendo-se igualmente ao tema desta
obra – a obsessão ignorada, que assola a sociedade indiferente aos
deveres da Moral –, não é uma ficção literária com intuitos de
doutrinação acerca de caracteres femininos, em moldes aprazíveis de
romance, mas sim o fruto de observações extraídas de minha clínica
médica espiritual, as quais me ficaram arquivadas na mente como
recordação inapagável, esperando eu ocasião propícia para difundi-
las em ensinamentos aos corações de boa vontade. Despertemos,
pois, as recordações adormecidas entre os refolhos mentais e
passemos, uma a uma, as suas páginas à frente do paciente leitor...

31 - N.E.: Léon Denis.


II

No início deste século, sendo eu já desencarnado e exercendo


atividades médicas da Espiritualidade para as criaturas ainda
encarnadas, fui encarregado de um serviço de assistência a uma
paciente do sexo feminino, localizada em pitoresca e linda cidade do
estado do Rio de Janeiro, banhada pelas águas sempre agitadas e
frescas do oceano que fertiliza a terra benfazeja, esse Atlântico
imponente e formoso. Encontrava-me então em certa reunião mui
solene do Espaço, durante a qual se prestava culto ao Criador com os
pensamentos conjugados em preces e os corações dilatados em
haustos de vibrações amorosas, em busca de suas bênçãos protetoras
a prol dos nossos Espíritos necessitados de inspiração para o
desdobramento dos serviços que nos estavam afetos. De súbito,
porém, quando mais dúlcida era a minha elevação mental no
enternecimento da oração, definiu-se em meu ser um
estremecimento forte, como se vigoroso contato elétrico comunicasse
às minhas sutilezas de compreensão uma ordem provinda de
superiores camadas hierárquicas, e um doce murmúrio, mavioso
como o alento das almas santas em orações augustas ao Deus de
Amor e de Bondade, sussurrou à minha mente muito atenta:
— Na rua de S... nº 3, na cidade de XXX, no estado do Rio de
Janeiro, alguém se debate em desesperações para o momento
sacrossanto da maternidade. É uma pobre alma delinquente de um
passado de infrações graves, dentro do mesmo círculo de
responsabilidades... a qual, agora arrependida, entra num grande e
doloroso resgate para o apaziguamento da consciência ainda
conturbada pelos ecos do pretérito... Será necessário socorrê-la para
que não sucumba antes da época prevista pela Lei, porquanto,
sucumbir agora absolutamente não convirá aos seus interesses
espirituais. Clama pela intervenção dos poderes celestes no
melindroso momento, em brados de oração fervorosa, um coração
singelo e obediente a Deus, sob os auspícios de Antônio de Pádua,
servo de Jesus Nazareno, e que junto da enferma se encontra. Tu,
Adolfo, és médico e és cristão. Necessitas do trabalho honroso do
amor ao próximo para a edificação do teu Espírito à face de Deus!
Vai, pois! Atende ao aflito chamamento. Socorre a pobre alma
pecadora que se arrependeu e deseja ressurgir para o Dever. Vai!
Antônio de Pádua velará por ti e por ela, em nome do Mestre
Nazareno. E que o Criador vos envolva a todos na sua paternal
clemência.
Incontinente atendi, preferindo abandonar a meio a reunião de
comunhão com o Alto para continuá-la após, ao lado daqueles que
sofriam.
... E ingressei nas pesadas brumas da atmosfera terrena,
desviando-me para as latitudes brasileiras, nas quais, de preferência,
exerço ainda hoje as atividades psíquico-terrenas.
O chamamento, com efeito, fora dirigido a Antônio de Pádua,
grande Mentor espiritual e reencarnação de um devotado apóstolo
do divino Mestre, Espírito universal, portanto, venerado, direta ou
indiretamente, como apóstolo de Jesus que foi, por toda a
cristandade, como um dos eleitos da chamada Corte celeste. E,
realmente, é, Antônio de Pádua, chefe de falange beneficente e
amorosa da Espiritualidade, que se multiplica em ações caritativas e
sábias por várias latitudes da Terra e do Invisível. Não pertenço,
como não pertencia então, a essa doce falange que também integra
crianças angelicais e lindas como os próprios lírios que carregam,
lírios que, no Espaço, as tornam reconhecíveis como elementos, ou
pupilas, de Antônio, Espíritos evoluídos que, no Além, sob formas
perispirituais infantis, rodeiam o ilustre varão celeste, obedecendo-
lhe às ordens no setor beneficente.32 Todavia, o setor de trabalho
pertencia a mentores aos quais era eu subordinado. A recomendação
viera de Antônio de Pádua, Espírito universal... a ordem chegou a
mim com a rapidez que poderá desenvolver um pensamento humano
em preces tão angustiosas quanto fervorosas e a resposta do Céu, por
meio de uma ordem vibratória ainda mais veloz.
Era madrugada. As brumas fortes do oceano, cortejadas por um
vento áspero do mês de agosto, despejavam-se sobre a cidade, que se
amortalhava toda de um longo sudário de cerração, enquanto o frio
álgido e úmido da beira-mar fazia tiritar os míseros sem abrigo
tépido e os pobres cães sem proteção, tão sofredores quanto aqueles.
E um silêncio triste e constrangedor, como soem ser o dos locais
onde se aglomeram almas penitentes para os doridos testemunhos
da expiação, em desagravos à lei ofendida no pretérito, estendia
sobre o casario colonial a sombra das amarguras que se
entrechocavam sob seus tetos.
Procurei a rua de S e encontrei-a facilmente, pressuroso...
porque, da Espiritualidade, os fachos da caridosa vigilância de
Antônio incidiam sobre meu pobre Espírito, aclarando-me os
caminhos e as ações a realizar, réstias de luz argêntea quais faróis
norteadores a serviço da causa sublime do Amor.
E corria o ano de 1910...

***

Ao ingressar no domicílio visado, reconheci tratar-se de


habitação de jovens recém-casados. Móveis e adornos acusando
modesto bom gosto da mulher, capricho e sutis delicadezas, como
bordados finos, rendas mimosas e pinturas graciosas, que as mãos
amorosas de uma esposa recente ali haviam distribuído para maior
encantamento das horas consagradas ao doce enleio do lar. No
entanto, também compreendi, pesaroso e emocionado, ó meu Deus!
que a desventura assinalara aquele afável ninho conjugal,
estabelecido, havia onze meses apenas, pelas esperanças de um varão
e os meigos afetos de uma donzela, para que graves acontecimentos
se desenrolassem em seus perímetros, exigindo de ambos
testemunhos tão ásperos, provações e resgates tão pronunciados e
comunicativos, que marcariam a vitória de uma redenção para
ambos ou reincidência com agravantes, nos campos dos deslizes
morais, para um e outro.
Na sala de visitas, onde flores vicejavam em uma jarra de
porcelana, sobre um piano de carvalho polido, um jovem de 26 anos,
trazendo bem tratados bigodes, pretos e perfumados, como exigia o
requinte da moda masculina de então, a tez muito branca e fina,
cabeleira sedosa e negra, estatura elevada e majestosa, um belo tipo
varonil, enfim, capaz de atrair atenções à primeira vista, sentava-se
em uma cadeira de balanço, tipo “austríaca”, e chorava, o rosto
oculto entre as mãos, os braços apoiados sobre os joelhos, atitude
indicadora de desânimo profundo. Em uma câmara ao lado,
encantadora mulher, acusando aproximadamente 35 primaveras,
apresentou-se à minha vista, prostrada de joelhos, as mãos cruzadas
em súplica, orando com fervor tão comunicativo e eficiente que por
todos os recantos da habitação um suave balbucio de preces
repercutia, predispondo o ambiente às inefáveis influências das
esferas do Amor, para tanto valendo-se de vibrações harmoniosas
conducentes a Deus. Era uma alma de crente, idealista e generosa,
que soubera orientar a fé que adotara, cultuando a Divindade
suprema, para diretrizes mui meritórias dos planos da
Espiritualidade. Chamava-se Sara, mas os familiares e amigos mais
íntimos tratavam-na por Sarita, modo gentil de lhe demonstrarem
uma simpatia que ela soubera conquistar por entre amabilidades
constantes.
Ao primeiro exame reconheci tratar-se de uma adepta da crença
católica romana, pois, sobre a mesa, diante da qual se conservava
ajoelhada, altar improvisado pela boa vontade que a assistia em
qualquer emergência, uma imagem de Antônio de Pádua, tão usada
pelos crentes do Catolicismo, se destacava. Todavia, a par de tal
particularidade, também nessa jovem crente entrevi a qualidade do
cristão sincero, dado que uma coluna luminosa, serena, vertical,
límpida, firme, argêntea e bela elevava-se do seu coração pelo ardor
da prece, à procura da proteção do Alto. Ora, essa coluna, traduzindo
propriedades magnéticas poderosas, fora que provocara a atenção da
Espiritualidade superior e a respectiva ordem, por mim recebida,
para urgentemente partir em socorro a uma parturiente em perigos
extremos. Eu me encontrava, portanto, em presença de um formoso
fenômeno de telepatia religiosa, no que ele possui de mais angelical e
comovedor, pois que era uma mulher, uma jovem viúva, simples e
modesta criatura terrena, que, fortalecida pela sua confiança de
crente, atirava os próprios pensamentos pelas profundidades do
Incognoscível, em uma prece espontânea qual confidência amorosa,
na súplica de uma assistência suprema dos Céus para um ser amado
que sofria. Atentei de boa mente nas expressões da sua rogativa e
ouvi que diziam assim os sussurros benfazejos que se entornavam
pelo ambiente em cantilenas piedosas:
— Santo Antônio de Pádua, meu bom senhor e protetor, pelo
amor do nosso Criador supremo e sob os auspícios do Senhor
crucificado, eu vos suplico piedosa intervenção da vossa assistência
para minha muito querida amiga Angelita, que neste momento se
encontra em perigo de morte. Santo Antônio de Pádua, socorrei-a,
pelo amor de Jesus! E como outrora levantastes do leito de morte
tantos enfermos, reintegrando-os no gozo da boa saúde, levantai
também a pobre Angelita, para que maior seja a glória de Deus
Eterno na pessoa dela! Todavia, que se cumpram as determinações
do Onipotente – ou das leis da Vida, sejam quais forem! O que
fizerdes em seu santo nome, meu coração aceitará respeitosamente,
como a única destinação que conviria a Angelita, que tanto sofre! De
qualquer forma, eu estarei ao vosso dispor para auxiliá-la a se
reerguer para Deus e para a Vida! Angelita descrê da vida imortal,
descrê do próprio Deus, arrastando-se em ímpia desatenção para
com os deveres do crente. Se ela sobreviver ao dia de hoje, porém,
prometo-vos, senhor, envidar todos os meus esforços, mesmo os
meus sacrifícios, para reconciliá-la com as Leis divinas...
Interessado e comovido ante o que entrevi, dirigi-me à câmara
conjugal, onde a chamada Angelita deveria encontrar-se... e o que
então presenciei teria me acabrunhado e estarrecido o coração, se os
obreiros do Invisível não fossem previamente preparados contra os
choques emocionais que o carreiro das suas atividades, na Terra
como no Além, poderá provocar.

32 - Nota da médium: A magnanimidade do Espírito Bezerra de Menezes deu-nos a visão


dessas crianças citadas. Representam crianças pobres, trajadas humildemente, pés
descalços, cabelos despenteados. Não obstante, rebrilham de claridades celestes e sobraçam
lírios. Dão-se as mãos para caminharem, mui gentilmente, e um luzeiro rosa envolve-as,
distendendo-se em torno. Não nos foi possível conter as lágrimas diante de tão sublime
quadro espiritual.
III

Pelo ano de 1910 seria difícil encontrar-se, em uma localidade do


interior do Brasil, uma maternidade, um hospital que acolhesse
gestantes na hora crítica do seu sucesso. Mesmo nas capitais dos
estados, e até no Distrito Federal, depararia o médico com as mais
dificultosas circunstâncias para a solução dos casos em que se via por
vezes envolvido, inclusive a tremenda falta de recursos para o bom
êxito das suas atividades profissionais, mormente se tratando de
parturientes, quando seriam urgentes operações melindrosas,
arriscadas e graves, para salvar duas vidas, em residências
particulares completamente destituídas de ambientação hospitalar, e
onde a falta de recursos, às vezes, se iniciava com a escassez de luz
que o alumiasse no sagrado mister de operador, para concluir com o
preconceito da ignorância, que apenas admitia “simpatias” e chás
caseiros onde se fazia indispensável a ação enérgica do cirurgião.
Benditas sejam as mãos que levantam hospitais e maternidades
para socorro a sofredores desta ou daquela condição social,
porquanto a Dor e o Sofrimento nivelam posições sociais, reduzindo
todos a pobres necessitados, a quem todo o amor e todas as atenções
serão devidos.
Desde a ausência de um auxiliar experimentado, que lhe
facilitasse o trabalho tormentoso, até a falta de conveniente
esterilização dos instrumentos cirúrgicos necessários; desde a água
fervente, indispensável sempre, até o mínimo acidente de momento,
o médico de então, a sós com a própria responsabilidade, tudo teria
de prover a tempo e a contento. Muitas vezes, tais fossem a pobreza e
a ignorância do cliente e seus familiares, teria ele de despender
quantias não pequenas para a aquisição do material de que se
serviria, ao passo que ele mesmo, tateando na semiobscuridade de
aposentos alumiados a lamparinas de azeite ou de querosene, ou
mesmo a velas, proveria, em trempes de fogões primitivos, até as
águas necessárias aos seus serviços. E isso o médico faria de bom
grado, sem queixas nem revoltas, para que diante de Deus não
sentisse abrasar a consciência, maculada pelo descaso no sagrado
cumprimento do dever junto a um doente que nele confiava quase
tanto como no próprio Criador!
Hoje ainda, como Espírito, sou igualmente solicitado para
atender doentes terrenos. E ao contemplar tão belos hospitais, como
a Terra agora os possui, confortáveis e tão iluminados à noite como o
são à luz do sol, e observando a aglomeração de servidores e
auxiliares rodeando grandes turmas de médicos e cirurgiões
especializados, recordo-me, comovido, dos sacrifícios de outrora e
exclamo de mim para comigo: “Incontestavelmente, ó meu Deus!, a
sociedade terrena muito avançou na senda do progresso dentro do
século XX! Pena que, a par de tantos e tão admiráveis triunfos
sociais, o homem não se conduza também um pouco mais temente a
Deus e submisso às suas leis, agradecido ante os favores que do Céu
há recebido com a possibilidade de tais conquistas para o bem de
todos!”. E, em pensamento, beijo as mãos daqueles generosos
cooperadores do Bem e do Progresso, que, por abnegação ou
interesse, se uniram em colaboração fecunda para erguerem
hospitais e maternidades que socorram na oportunidade precisa!

***

Arquejante, no auge dos padecimentos físicos para o sucesso da


maternidade, Angelita, mal cloroformizada, devido à falta de
socorros precisos, encontrava-se em perigo de morte. Não que aquele
parto fosse dos mais laboriosos e difíceis, caso anormal ou
excepcional dentro da cirurgia ginecológica da época. No entanto, a
falta de um cirurgião, ou médico ginecologista, no momento preciso,
para conjurar possíveis surpresas, causara a anormalidade e o
desastre, os quais bem podiam ter sido evitados se desde o início da
gestação uma assistência médica eficiente fosse mantida.
Há cinquenta anos, o preconceito individual, o pudor excessivo e
mal interpretado, acompanhando a escassez de recursos e a
inobservância higiênica do paciente, dificultariam igualmente a ação
do clínico ou do cirurgião, cujos serviços, geralmente, apenas eram
solicitados para uma parturiente à última hora, quando já se
evidenciava o desastre, e quando já mais nada, ou quase nada, seria
possível tentar para conjurar os graves acidentes sempre possíveis.
Seria desdouro social para uma gestante, recém-casada ou não, o fato
de se transportar do seio da família para um hospital ou uma
maternidade, no caso de existir uma ou outra dessas instituições na
localidade habitada. Preferiam-se, assim sendo, o concurso de
curiosas, certamente experientes e hábeis para os casos normais e
fáceis, mas absolutamente ineptas mesmo para reconhecerem o
perigo e reclamarem o médico a tempo, nos casos graves. Daí,
outrora, a calamitosa mortandade de parturientes, problema cujos
reflexos atingiram as preocupações de além-túmulo, pois nem
sempre existiria a expiação ou o resgate em casos tais, e que os
rigores do código penal terreno removeram com a exigência de
certificados de habilitações para as assistentes comuns do caso e que
os hospitais remediaram em grande parte, tratando de humanitárias
internações e assistência constante às próprias gestantes.
O caso de Angelita, porém, era desses que, examinado de início,
seria reconhecido como dos passíveis da intervenção denominada
“cesariana”. Tratava-se de uma organização genital frágil, incapaz, a
qual requereria de um médico atenções especiais para uma decisão
não cercada de anormalidades.
Chegando à câmara onde o drama cirúrgico se desenrolava,
percebi, enternecido, que meu pobre colega terreno envidava todos
os esforços para levar a bom termo o seu dever, desdobrando-se em
habilidades para salvar a jovem mãe, já que não mais seria possível
operá-la de molde a salvar também o nascituro, cuja morte
intrauterina se verificara com a aspereza da operação. A situação
geral era desesperadora. A intervenção acerba, não mais podendo ser
a “cesariana”, em vista da indecisão em se reclamar a presença do
médico, somente fora realizável com o despedaçamento do
entezinho, que houvera de sofrer trepanação e esmagamento do
crânio, esquartejamento etc., em impressionantes condições. Uma
faixa luminosa, porém, cintilante quais raios de eflúvios celestes,
incidia sobre a cena trágica, provinda do Alto. E vultos angelicais,
não apenas integrantes da falange de Antônio de Pádua, mas
obreiros comuns e permanentes da Beneficência, destacados para a
cabeceira de enfermos, pois as leis da Criação proveem sabiamente
as necessidades gerais do Universo, não esperando súplicas humanas
para atendê-las, mas aceitando-as gratamente, como veículos para o
seu acréscimo de misericórdia, permaneciam ali vigilantes, dispostos
a uma sagrada assistência.
Compreendi, não obstante, que ameaçava Angelita aniquiladora
hemorragia interna, a que lhe não seria possível resistir fisicamente.
Os obreiros invisíveis presentes haviam sustido a ameaça até ali.
Contudo, medidas mais enérgicas seriam devidas ainda. E
compreendi também, mau grado meu, que dos três longos dias de
espera, na indecisão da procura de um médico para a intervenção
urgente que se fizera necessária, resultava para a jovem mãe o
despedaçamento de tecidos em órgãos internos mui melindrosos,
tais como a “bexiga”, ou óvulo urinário, os canais renais etc.,
enquanto que músculos e tendões, dolorosamente comprimidos
durante a gestação penosa, a inércia do nascituro e a violência da
operação, ameaçavam inutilizá-la para sempre! Intervim então,
valendo-me dos recursos psíquicos aplicáveis no caso, servindo-me,
na medicina astral, de fluidos e essências, raios, gazes e energias cuja
aplicação nos tecidos orgânicos da criatura encarnada serão sempre
passíveis de resultados excelentes. E conjurei, assim, o perigo da
hemorragia, anulando a possibilidade de um desenlace que se
deveria realizar, em verdade, muito mais tarde. Reanimei ainda os
fluidos vitais, ou nervosos, da paciente, enxertei-lhe porções
adequadas de “plasma” extraídas da boa vontade da fiel Sarita, que
prosseguia em orações, e infiltrei-lhe valores magnéticos tonificantes
do coração, do cérebro e da circulação venosa, com atuações
ativantes do sistema nervoso, fazendo-os mansa e sutilmente
penetrar pelos poros da enferma, qual se milhões de celestes agulhas
portadoras da essência de Vida lhe pudessem ser introduzidas nos
orifícios da pele a fim de atingirem os locais necessários.
O médico, ou o Espírito desencarnado, já cônscios de deveres e
responsabilidades, se o desejarem, verão o corpo humano destituído
até mesmo da sua armadura de carnes e músculos, contemplando de
preferência as vísceras, a rede de nervos ou as artérias, a circulação
do sangue, os ossos, tudo ou aquilo que seja mister examinar. Para
ele, a pele que recobre o corpo humano não existirá, ou também será
um rendilhado tênue qual o tecido denominado filó, e os poros então
serão visíveis quais orifícios de um favo de mel. Daí a facilidade da
minha intervenção psíquica, tonificando os órgãos da paciente com
os produtos medicinais do laboratório do plano astral, enquanto o
cirurgião terreno concluía a sua terrível tarefa, depondo em
vasilhame caseiro os despojos sanguinolentos do infeliz produto que
seria o primogênito do casal... se em todo esse drama acerbo não se
distendessem os ecos expiatórios do efeito de remota causa existente
no pretérito de ambos os esposos e também do nascituro...
IV

Pelas oito horas da manhã cessara o melindroso trabalho.


Higienizara-se o quanto possível a enferma, que jazia prostrada
ainda, em profundo desmaio, estirada em seu leito qual cadáver que
deveria baixar à sepultura. Compreendi propício à sua recuperação
fisiológica aquele prolongado delíquio, e não me afligi por seu estado
nem procurei despertá-la. Aquele pobre espírito de recém-casada
necessitaria, realmente, do reconforto moral-espiritual, pois que se
tornava evidente que ingressava numa fase de testemunhos e
expiações, e eu vira que as angelicais crianças do varão espiritual
Antônio haviam-no arrebatado para o Espaço, certamente a fim de
aconselhá-lo e infundir-lhe coragem e esperanças durante o torpor
físico. Preferi, então, examinar as condições morais das criaturas que
cercavam a minha pobre doente... e constatei que, no interior da
casa, onde um como sudário de opressões pesava, Alípio, o jovem
esposo, continuava sentado em sua cadeira de balanço, insone, os
olhos vermelhos de chorar, o coração estorcido por um desalento
esmagador. A seu lado, um grande cinzeiro, transbordante de pontas
de cigarro inaproveitadas, atestava as horas de excitação que
trituraram o seu sistema nervoso, completamente alterado no
momento em que dele me aproximei, ao passo que em outras
dependências a genitora de Angelita blasfemava por entre lágrimas e
inconformações, acusando a Providência, em quem não cria, pelo
insucesso da filha, enquanto maldizia do cirurgião, que a houvera
maltratado tanto, e as irmãs da enferma e algumas vizinhas,
prestativas, apavoradas e estarrecidas ante os acontecimentos, não
atinavam com o que dizer, quedando-se todas em respeitoso silêncio.
Entrementes, na câmara de Angelita reinava consoladora paz
espiritual. Vibrações harmoniosas dulcificavam o ambiente em um
como sussurrar enternecido de prece, mas ninguém orava. Pelo
menos julgava não orar a personalidade que de si despendia tão
sedutoras irradiações... Sim, porque nem sempre uma prece é real
somente quando se dirijam exortações a Deus ou a seus mensageiros,
no intuito da oração. Uma leitura edificante, que retempere ou
enobreça a mente, pensamentos altruísticos e beneficentes em favor
do próximo ou de si mesmo poderão repercutir nos fluidos cósmicos,
encaminhando-se para os altos círculos do Bem, e daí carrear para o
coração que assim procede, como para aqueles que lhe ficam ao pé,
consideráveis estímulos para o melhor, tal como o faria a prece
propriamente dita.
Sim! No aposento de Angelita ninguém orava! Era tão somente
Sara, a jovem viúva, que, à cabeceira da amiga inanimada, abria
diante de si um pequeno livro e percorria, atenta, as suas páginas, em
leitura suave e restauradora. Curioso, procurei inteirar-me do
conteúdo daquelas páginas que tão docemente protegia o quarto da
doente. Tratava-se da Imitação de Cristo, livro então muito acatado
pelos adeptos cultos da religião católica romana e em cujas lições
sorviam, efetivamente, doces mananciais de consolação e esperanças,
nas horas doridas do infortúnio, os corações sedentos de justiça,
levados pela vontade de se predisporem ao bem:
“Com duas asas se levanta o homem acima das coisas terrenas: a
simplicidade e a pureza. A simplicidade procura a Deus, a pureza o
abraça e frui.”
“A glória do homem virtuoso é o testemunho da boa consciência.
Conserva pura a consciência, e sempre terás alegria. A boa
consciência pode suportar muita coisa e permanecer alegre, até nas
adversidades. A má consciência anda sempre medrosa e inquieta.
Suave sossego gozarás, se de nada te acusa o coração.”
“Chega-te a Jesus na vida e na morte, entrega-te à sua
fidelidade, que só Ele te pode socorrer, quando todos te faltam...”
“Para que buscas repouso, se nasceste para o trabalho? Dispõe-
te mais à paciência que à consolação, mais para levar a cruz que para
ter alegria...”33
Contemplei a enferma, que parecia ter expirado. Um anseio de
compaixão fremiu em minhas sensibilidades anímicas, avaliando o
calvário que aquela jovem mãe, cercada de corações descrentes,
palmilharia pelas estradas dos grandes resgates terrenos, vendo-a,
como vi, assinalada por um futuro obumbroso! Era esbelta e
formosa, com a pele acetinada e alva como as pétalas de uma rosa
branca, longos cabelos louros dourados, estendidos sobre as
almofadas como sudário de ouro fúlgido, olhos castanhos
recordando a cor da avelã madura, contando apenas 19 anos! Orei
então, à beira daquele leito envolvido ainda nos linhos e nas fitas do
enxoval do noivado, e me retirei depois, certo de que o Senhor das
coisas e dos mundos proveria, com a sua paternal misericórdia, o
prosseguimento da existência daquela que, então, se me afigurou à
frente de graves consequências de um passado de infrações...

33 - N.E.: Imitação de Cristo.


V

Não chegara eu ainda ao meu destino, porém, e um encantador


“acaso”, desses criados pelas afinidades pessoais, que se buscam
naturalmente, para um espiritual consórcio de valores psíquicos, fez-
me defrontar com duas gentis individualidades da falange
enternecedora de Antônio de Pádua.
Perdoar-me-á o leitor, no entanto, a necessidade em que me vejo
de materializar os acontecimentos decorridos no mundo espiritual e
as expressões ali usadas. Escrevo para vós, terrenos, com um cérebro
mediúnico. E para oferecer o ensinamento a contento de humanas
compreensões não poderia a estas dirigir-me de outra forma.
— Íamos buscar-vos, doutor... Desejávamos aqui a vossa
presença, diante da pobre enferma, cujo Espírito se encontra entre
nós... – declararam-me gentilmente as duas formosas entidades.
Deram-me confiantemente as mãozinhas, que se diriam delineadas
em raios estelares, e seguimos para mais além... Bem depressa me
defrontei com o Espírito Angelita, cujo corpo, no momento imerso
em estado comatoso, que a anestesia aprofundava, permitia àquela a
permanência lúcida em regiões do Invisível, propícias à sua
recuperação geral.
Debulhada em prantos, a pobre jovem parecia inconsolável, ao
passo que a seu lado entidades amigas confortavam-na,
aconselhando-a paternalmente. Uma dentre todas, grave e protetora,
dirigiu-se à minha modesta individualidade, benevolente e amável:
— Agradeço-vos, caro irmão – falou-me –, o eficiente trabalho
adaptado ao corpo terreno de minha pupila Angelita... o que importa
dizer que, tal como se encontra, estará ela apta ao testemunho
indispensável às leis eternas, para o qual preferiu renascer...
Respondi escusando-me, aturdido ante as expressões amigas de
um superior espiritual, emitindo votos mui sinceros para que a
paciente se saísse a contento das provações encetadas. Eu observara,
porém, no aposento da doente, durante a operação, uma
individualidade de aspecto singular, e me abandonara, então, a
contemplá-la, chegando a descobrir sua identidade, mais ou menos,
por meio de intuições seguras. Tratava-se de forma perispiritual
escura, sombria, de cabelos eriçados, traindo o complexo da
“carapinha” do negro, cujas feições acusavam terror, apresentando,
por vezes, esgares de dor, estremecendo convulsivamente, como
desejando desvencilhar-se de algo que o torturasse. Postava-se,
então, próximo a Angelita, como que a ela ligado por atilhos
magnéticos que pouco a pouco se rompiam... Seu aspecto era o típico
padrão dos escravos africanos vindos para o Brasil em tristes épocas
do lamentável tráfico, e, quando encarnado, no pretérito, seria
homem certamente assaz primitivo, acusando possibilidades
assustadoras para a prática de abominações. Distinguindo minha
preocupação ao recordar o fato, no momento, novamente se
expressou a entidade protetora de Angelita:
— Observo a vossa estranheza, preclaro irmão, ante a imagem do
acompanhante invisível da minha pupila, sobre a Terra, e não será
para mim nenhum desdouro colocar-vos a par dos acontecimentos
achegados a esse infeliz delinquente e nossa pobre enferma...
Escusei-me novamente, declarando-me respeitador dos dramas
alheios, que não deveria devassar, mas a entidade amiga prosseguiu:
— Honro-me no trabalho de vos dar a conhecer o drama de
Angelita... Ao demais, não ignoro que apreciais as belas-letras,
aprazendo-vos, mesmo, praticá-las desde longa data... Um dia, quem
sabe?... quando vos aprouver, podereis contá-lo aos vossos amigos
terrenos, porquanto será lição expressiva para o leitor atento, ao
passo que encerrará revelação interessante para o pesquisador dos
destinos da alma humana, como da severidade e justiça das leis
eternas...
Deteve-se um instante em gracioso gesto meditativo, e
continuou:
— Sim! O drama, cuja segunda parte acabamos de assistir, teve
origem nos dias depressivos do Brasil-Colônia... Oh, meu irmão!
Quase que de um modo geral, julgam os brasileiros que seus espíritos
provêm de encarnações havidas em países europeus civilizados e
aristocráticos tão somente, quando a verdade é que grande parte
provém dos dias da colonização afro-portuguesa dali mesmo, do
Brasil primitivo e infeliz de antanho... Certamente que emigraram,
para a Terra de Santa Cruz, falanges de indianos, de gregos, de
franceses, de espanhóis, de orientais, que nesse país reencarnam na
esperança de se furtarem aos velhos ambientes nos quais
delinquiram vezes seguidas e cujas paisagens aviventariam em suas
consciências as acusações mórbidas do passado, as quais nas
próprias sutilezas mentais agiriam como intuições angustiosas...
Todavia, será prudente não perder de vista que o Brasil, da sua
descoberta à alvorada da abolição da escravatura africana, que em
seu seio medrou profusamente, tripudiou sobre os deveres do
cristão, escravizando em condições acerbas homens inofensivos e
fáceis de se conduzirem para Deus, porque, na sua maioria, não eram
mentalidades primitivas, e sim reencarnações de povos ilustres, mas
criminosos, que buscavam redenção sob a humilhação da cor negra,
humilde e cativa, arrependidos e desejosos do progresso, e cujos
sofrimentos e lágrimas ecoam ainda nas ondas do éter adjacente do
país como estigma infamante, caindo então o seu desarmonioso
efeito em ricochetes especiosos sobre os culpados de ontem, através
do feito reencarnatório...
— Assim é, meu excelente irmão... As leis eternas, estabelecidas
pelo Senhor supremo para a regência da sua Criação, jamais serão
impunemente desacatadas: as sociedades brasileiras de hoje sofrem
consequências inevitáveis dos feitos ímpios anteriores à lei de 13 de
maio de 1888... Aliás, a sabedoria dos Evangelhos adverte quando
declara que a cada homem será concedido de acordo com os próprios
atos praticados... – aquiesci eu, interessado já no palpitante assunto.
E o amigo então continuou, expondo-me o seguinte:
VI

Pouco antes do drama em que se envolveram vários brasileiros


natos ilustres, desejosos da libertação do seu país da legislatura
portuguesa, época fértil em acontecimentos trágicos e mui delicados,
que ficaram olvidados pelos homens porque o Brasil de então não
mereceria acato da Metrópole de além-mar para que o sofrimento do
seu povo fosse devidamente consignado na História – ou seja, pelas
proximidades da época em que se verificou a conjuração denominada
‘Inconfidência Mineira’, na então Província das Minas Gerais –
chegara de Portugal, com destino a esta localidade da grande
Colônia, um alto funcionário da Coroa portuguesa, dizendo-se
licenciado para estudos e aventuras pelo interior de Minas,
acompanhado da esposa, que, ávida de emoções e conhecimentos
novos, se negara a continuar no seu velho casarão de Lisboa sozinha
e entristecida, quando o marido corresse terras e mares estranhos.
Por essa época, não seria aconselhável a uma dama bem-nascida
aventurar-se a viagens tão longas e arriscadas. Proibia-o o
preconceito social, seria desdouro imperdoável, mesmo para uma
esposa, abandonar-se a peripécias em terras desconhecidas, e a
própria lei não concederia licença para tal fim, a não ser que motivos
muito significativos justificassem o feito. Não o entendeu assim,
porém, a esposa, muito jovem ainda, do funcionário licenciado, pois
que, não conseguindo das autoridades permissão para acompanhar o
próprio marido nas suas aventuras pelas intempéries da grande
Colônia do Brasil, infiltrou-se sutilmente na marinhagem do veleiro
que faria a travessia do oceano e, já em alto-mar, apresentou-se ao
estupefato esposo disfarçada em vestes masculinas, protegida que
fora por um oficial de bordo, amigo da família, aportando no Rio de
Janeiro quatro meses depois sem maiores empecilhos, já que sua
beleza e sua juventude, aliadas à esperteza de que usara, cativaram
igualmente o comandante da nau transoceânica.
O oficial amigo, no entanto, cujo nome seria Fernando
Guimarães, afirmando-se investido de certa missão secreta no Brasil,
conferida por seus superiores, desligou-se da profissão e cedeu ao
convite afetuoso do casal de esposos, para que viesse em sua
companhia como se membro da família fora, uma vez que
igualmente pretendia dirigir-se à importante Província, cujo
governador seria então o Sr. Visconde de Barbacena.
A aventura sempre foi o traço primordial do caráter lusitano... e
seguiram então os três amigos em busca da realidade de um
Eldorado cuja fama seduzia os europeus. Adquirira o casal, então,
duas escravas negras para os serviços caseiros, e Fernando, agora
integrado na família como irmão assaz querido, entendeu necessária
também a posse de um escravo do sexo masculino, que se prestasse
aos serviços externos, o trato de animais inclusive. Colocou,
portanto, anúncios pelas tabernas e casas de negócios, nos dias de
espera passados no Rio de Janeiro, servindo-se de pequenos cartazes
dizendo da urgência na compra de um escravo resoluto e valente,
para servir em viagens pelo interior da Colônia, que bem manejasse a
foice e o facão de caça e que se encorajasse à caçada às feras pelos
matagais, pois desejava Fernando, que já caçara na África, aproveitar
ensejos para negociar com peles, a fim de disfarçar a missão trazida
da Metrópole, dizia consigo próprio, esperando mesmo obter alguns
exemplares das famosas onças brasileiras para transformá-las em
luxuosos tapetes, que venderia no Reino a bons preços.
Bem cedo conseguiu o de que precisava.
Chegara aos seus ouvidos que certo fazendeiro dos limites que
hoje se transformaram no aprazível arrabalde da Tijuca, no Rio de
Janeiro, entregara às autoridades um escravo rebelde, a fim de que
fosse julgado, e quiçá condenado à morte. O infeliz negro via-se
acusado, de todos os lados, pelo crime de homicídio nas pessoas de
nada menos de três capatazes da dita fazenda e de um negrinho de 15
anos, também escravo, que aparecera afogado nas águas de um
riacho próximo. Não obstante, o réu negava veementemente a
autoria dos crimes, e, porque não existissem testemunhas, as
autoridades, indecisas, apelaram para o ‘juízo da Igreja’, ou o ‘juízo
de Deus’, nas pessoas do clero oficial da capital da Colônia, e estas,
muito prudente e justiceiramente, deliberaram mantê-lo preso até
ver se se resolveria a confessar o delito, ou se porventura alguém, por
ele se responsabilizando, o levaria sob um processo de compra legal,
visto seu antigo senhor não querer mais admiti-lo em seus domínios
e as autoridades se quedarem indecisas em condená-lo sem provas
suficientes, e também em deixá-lo em liberdade diante de tão sérias
acusações.
Apresentou-se, então, Fernando Guimarães no local indicado, a
examinar a ‘mercadoria’ à venda e as condições da compra. Homem
de caráter aventureiro, habituado à intrepidez do comando de
marinheiros e a brigas marítimas com piratas, constatou que lhe
convinha a aquisição, e, sentimental a despeito de tudo, como todo
verdadeiro português, sentiu-se compadecido ao verificar o escravo
algemado de pés e mãos e que, por seu corpo, pronunciadas
cicatrizes, produzidas por chicotes, assinalavam os maus-tratos
recebidos de seus senhores.
— Como te chamas, amigo?... – interrogou ele, com bonomia, à
‘mercadoria’ já adquirida, cujo preço fora irrisório, dadas as
desvantagens que a mesma oferecia ao comprador.
— É... é... Caetano do Espírito Santo, Nhonhô, para seu serviço...
A humildade entrevista nesta frase simples, proferida com um
misto de timidez e espanto por se ver bondosamente tratado, talvez
pela primeira vez, comoveu ainda mais o rude marinheiro, que
continuou no seu original inquérito:
— Queres vir comigo, servir-me lealmente, comer bem, não
receber castigos, seguir-me em minhas viagens e caçadas?...
O infeliz caiu de joelhos, procurando beijar as mãos daquele que
aparecera em sua vida como benfeitor que o salvava da morte, e
respondeu:
— Nhonhô, serei fiel escravo... Livrai-me da morte... Tenho
medo da forca... Tenho medo...34
Pelo caminho, demandando a hospedaria que ocupava com os
amigos, Fernando interrogou Caetano em tom afável:
— Por que mataste os três capatazes?... Dize-me a verdade... Sou
teu amigo... Não te entregarei à Polícia... mas preciso conhecer-te
bem, ainda que sejas criminoso, para poder confiar em ti.
A resposta foi veemente e fácil:
— Nhonhô, matei só um capataz... Os outros dois não fui eu...
Foram ‘Pai Nastácio’ e o ‘Totonho da Porteira’.
— Por que o mataste?...
— Era cruel... Deixava-me com fome por qualquer motivo... Eu
vivia faminto e era forçado a trabalhar... Espancava-me sem razão...
Estes sinais, Nhonhô, foram feitos pelo chicote dele... Bateu em
minha mãe à minha vista... e por isso...
— Por que não disseste às autoridades que ‘Pai Nastácio’ e o
‘Totonho da Porteira’ mataram os outros dois?...
— Eh! Eh! Eh! Nhonhô... mas um escravo não deve entregar
outro escravo para ser enforcado... Eles também sabiam que eu
matara o outro e se calaram... Nós também possuímos nossa honra e
nossa lei... Eles também sofriam, eram chicoteados...
— E o menino?...
— Não era um ‘menino’, Nhonhô, era um escravo, um ‘moleque’.
— Sim, e esse?
— Ninguém o matou... Caiu no riacho, que estava cheio, e
afogou-se... Era muito traquinas...
— Disseram que tu o mataste, atirando-o ao rio para que se
afogasse, porque não gostavas dele.
— Não, senhor, não gostava dele... mas não o matei... Bati-lhe
algumas vezes... Era mau e intrigante... Para receber comidas e doces
intrigava os escravos com os capatazes...
— Então não o mataste?...
— Não, senhor! Ninguém o matou.
— Caetano, confio em ti... – concluiu o lusitano. — Serei teu
amigo. Se me servires fielmente, conforme desejo, durante os quatro
ou cinco anos que pretendo demorar-me no Brasil, ao regressar a
Portugal não te venderei a outro senhor... Dar-te-ei antes carta de
alforria...
O negro beijou a mão a seu senhor, sem nada responder.

34 - N.E.: Perdoará o leitor a não tradução do linguajar enfadonho dos antigos escravos
africanos.
VII

De início, o casal de esposos, a quem chamaremos Rosa e


Bernardino, sentiu escrúpulos em conviver com um escravo que
trazia a lúgubre fama de criminoso inveterado. Fernando, porém,
intercedeu por ele e, sob o bom trato do seu novo amo e daqueles
amigos, Caetano tornara-se tão dócil e fiel que bem depressa
mereceu a confiança de todos. Rosa, particularmente, condoía-se
dele e tratava-o bondosamente. Estabelecidos em Minas Gerais, a
vida de Bernardino e de Fernando prosseguia entre viagens pela
Colônia ou adentro das matas, à caça de pedrarias, de ouro, de
riquezas variadas, com temporadas muito suspeitosas em Vila Rica,
onde residiam e eram considerados espiões pelos brasileiros, que os
temiam e se afastavam deles. Não obstante, passados três anos, já
havendo explodido o trágico malogro da Conjuração Mineira e presos
os seus coparticipantes, Bernardino, como funcionário da Coroa que
se dizia, não obstante a licença que proclamava fruir, vira-se
obrigado a visitar Lisboa, chamado a missões – explicava – tão
importantes que lhe não seria permitido expô-las a quem quer que
fosse, nem mesmo à sua mulher, e, como possuía já avultados
interesses na famosa Província e tencionasse regressar dentro de
pequeno prazo, ficara deliberado que Rosa – mulher ativa e
experiente – ficaria à frente dos negócios, enquanto Fernando, amigo
da casa como verdadeiro irmão, zelaria pelos mesmos, auxiliando a
mulher com o seu tino experimentado, sempre que voltasse à Vila,
retornando das singulares viagens com o escravo Caetano. Ora, para
um caráter invigilante e frívolo, que não associa ao próprio respeito
pessoal o respeito devido a Deus, à família e à sociedade, as
oportunidades para a prática do mal, ou seja, as tentações mundanas
se apresentam a todos os momentos, sob qualquer pretexto.
Rosa e Fernando, que até ali se haviam respeitado como bons
amigos e irmãos, equilibrados no cumprimento do dever, pouco a
pouco, animados pela ausência de Bernardino e por uma convivência
assídua, deixaram-se conduzir ao sabor das paixões e sucumbiram a
um delito grave de adultério, de traição aos deveres da honra pessoal
e da respeitabilidade a Deus e às leis do matrimônio. Bem cedo,
como seria de esperar, fez-se sentir o fruto dessa união pecaminosa.
Rosa tornou-se mãe na ausência do esposo e a situação alarmante
desvairou o senso já abalado dos amantes culpados, pois esgotara-se
o prazo para o regresso de Bernardino, que era esperado dentro em
pouco.
E o crime foi cometido então, no próprio dia do nascimento da
criança, sob o consentimento aterrorizado de Rosa, que temia a
vingança do marido, e a resolução de Fernando, com a mesma
perícia e desenvoltura com que nos dias atuais são praticados os
infanticídios modernos, quando mães apavoradas ante o próprio
erro, ou alguém por elas, preferem mais enegrecer a consciência,
assassinando um ser indefeso que necessitaria reviver para Deus, por
meio de uma encarnação, a assumir heroicamente a
responsabilidade dos próprios atos, curvando-se às consequências
dos desvairamentos cometidos, consequências que, por muito
rígidas, comumente, poderiam realizar a reabilitação da pecadora
perante si mesma e a sociedade e até perante Deus!

***

Era pouco mais das onze horas da noite.


Vagidos comoventes de recém-nascido ecoaram pela casa
solitária, chácara vetusta dos arredores de Vila Rica. Fernando toma
dos braços da escrava assistente o entezinho vigorosamente
envolvido em panos, a fim de que seus lamentos fossem abafados... e
esta conversação efetivou-se no extremo da grande chácara, à beira
de um charco, entre o ex-oficial de bordo e seu escravo preferido,
tornado cúmplice de suas aventuras pelo interior da grande Colônia:
— Que farei do nenê, Nhonhô?...
— Bem, Caetano... Eu não sei... Oferece-o a alguém, por aí... Será
necessário que desapareça quanto antes, para se evitarem males
maiores... Tu sabes... Bernardino não está... Foi uma maçada35, foi...
Enjeitá-lo à porta da Igreja será perigoso... Serias reconhecido... As
Igrejas limitam com residências... Tudo se descobriria, o escândalo
estrugiria e viria até mesmo a forca... Tu sabes, não sabes,
Caetano?... Entendes o teu bom senhor, que pela segunda vez quer te
livrar da forca?
— Eh! Ah!... Entendo sim, meu bom ‘Sinhô’... Entendo sim,
‘Sinhô’...
— Então... Será bom que ninguém desconfie... senão será a forca
para nós todos... A Vila é pequena, poderiam falar... ao passo que
aqui, nesta chácara solitária... No fundo deste charco, quem poderia
mergulhar para descobrir?... Entendes, Caetano?...
— Entendo sim, Nhonhô, como não?...
Caetano assassinou friamente a criança recém-nascida, para
satisfazer ao amo. Todavia, receoso de que, enterrando-a, os porcos
ambulantes, ou alguma plantação posterior nos terrenos da chácara,
pudessem descobrir o pequeno cadáver, resolveu esquartejá-lo
cuidadosamente, com sua faca de caça, com a qual já assassinara
mais duas infelizes criaturas, durante as viagens com seu senhor e
por ordem deste; depois do que, envolvendo os pequeninos despojos
em uma cobertura de lã, amarrou o singular volume a uma grande
pedra e atirou-o ao fundo lodoso do pântano, para o repasto das
asquerosas feras aquáticas.
No espaço longínquo as estrelas cintilavam lindas e tranquilas,
como desejando ocultar da razão de todas as coisas o abominável ato
contrário à harmonia das leis eternas, ato cujas repercussões se
estenderiam sobre os criminosos como garras de inflexível monstro,
que cobrariam o insulto aberrante contra a Natureza – imagem do
Criador sobre a Terra...

***

Penalizado, ouvindo a exposição do mentor espiritual de


Angelita, fácil fora às minhas conclusões compreender o que se havia
seguido no destino daquelas três infelizes criaturas. Ali se
encontravam elas, à minha frente, mui fortemente atadas umas às
outras pelas repercussões conscienciais de um grande crime, para
que dúvidas me pudessem advir sobre o que o futuro ainda lhes
reservaria. Estudemos, porém, com o leitor atento, o enlevamento do
adultério e do infanticídio praticados em Vila Rica ao tempo dos
Inconfidentes, nas suas consequências remotas, a fim de que o
mesmo leitor, compreendendo as leis que regem os destinos da
Humanidade, possa esclarecer os leigos quanto à severidade e justiça
das mesmas leis, em lições prudentes e racionais aplicadas no
convívio diário, lições que muito poderão contribuir para a educação
das almas frágeis que ainda não puderam ou não souberam
compreender que os mundos e suas Humanidades são regidos por
uma justiça inflexível, que, a bem do próprio delinquente, dele
exigirá atos condizentes com a harmonia da Criação, jamais
sancionando desvios das rotas traçadas pela Legislação suprema.
Olhei penalizado: ali estava Rosa, a esposa delinquente, revivida
na personalidade da formosa e sofredora Angelita. Ali estava
Fernando Guimarães, o amigo infiel e sedutor soez, o pai desalmado,
ressurgido no belo varão Alípio, a quem eu vira chorar a noite toda
sobre o drama do nascimento do seu primogênito. E ali também
estava Caetano, o antigo escravo, perverso e dissimulado, que, ligado
a ambos por laços poderosos do passado, à sombra dos seus Espíritos
se homiziara, renascendo como filho primogênito, sacrificado pela
Ciência, à frente de um parto em que acidentes imprevistos exigiram
de um cirurgião ginecologista a necessidade extrema de um
esquartejamento em condições dolorosas, para que seu nascimento,
tornado impossível por vias normais, não causasse a morte àquela
que durante nove meses o trouxera preso ao próprio seio! Como
Espírito, Caetano, ligado a Angelita igualmente pelas poderosas
cadeias magnéticas que estabelecem o período da gestação do feto
até o momento do nascimento, cadeias que se prolongam durante
toda uma existência, porque, incontestavelmente, um filho estará
ligado a sua mãe por indefiníveis atilhos psíquico-físicos, até mesmo,
muitas vezes, pelo além-túmulo afora; Caetano, culpado muitas
vezes, sofria ainda os reflexos da brutal operação que sua mãe
padecera no instante de dá-lo ao mundo. Súbitos estremecimentos
sacudiam-no. E, apavorado, como presa de cruel pesadelo
consciencial, sua mente se aterrorizava ao sentir despedaçado aquele
corpo que, em parte, ocupara, confusamente supondo haver-se
tornado, por magias incompreensíveis, no mísero recém-nascido de
Vila Rica, o qual ele mesmo estrangulara e esquartejara para melhor
encobri-lo a um esposo ultrajado em sua dignidade matrimonial.
Acheguei-me ao infeliz, procurando-o no domicílio já visitado.
Conjurei-o a despertar para Deus por meio de uma prece, a qual
tentei ensiná-lo a extrair do coração. Disse-lhe da bondade paternal
do Criador, cujas leis, estabelecendo uma inflexível justiça na
punição do erro, também estabelecem o misericordioso ensejo para a
reabilitação da alma culpada, e concitei-o a uma experiência de
meditação para o arrependimento, a fim de que se conseguisse elevar
das próprias misérias vislumbrando um caminho a perlustrar dentro
da harmonia da legislação divina. Caetano, porém, foi surdo aos
meus convites para essas tentativas, talvez pela sua grande
ignorância, sem a boa vontade para o progresso, ou talvez ainda
padecendo a revolta das amarguras havidas durante a escravatura.
Fugiu, pois, espavorido, perseguido por visões e terrores inauditos,
para retornar mais tarde ao mesmo cenário de onde se abalara, isto
é, à residência de Alípio e Angelita, e ali se postando junto daquele a
quem continuava considerando senhor e amo... E confabulei comigo
mesmo, contemplando esse drama singular, cuja destinação através
das linhas do futuro facilmente se delineou às minhas premonições:
— Bem sei, Deus meu, que, para casos como este, somente
haverá a dor da expiação e dos resgates terrenos, para devidamente
lavar do opróbrio a alma naufragada nos próprios deslizes! Todavia,
ouso suplicar que a tua paternal misericórdia dulcifique um tanto
mais as arestas da jornada reparadora que estes três infelizes irmãos
meus para si mesmos traçaram, no dia em que se transviaram dos
bons caminhos apontados pela tua justiça!

35 - N.E.: Mau negócio, situação embaraçosa.


VIII

Angelita convalescia lenta, penosamente. Profundo


desapontamento anuviava o coração do jovem casal. Um mês após a
operação, declarara o médico assistente, consternado, que a cliente
se tornara inválida, não lhe sendo facultada a possibilidade, nunca
mais, de se levantar do leito para caminhar ou sequer sentar-se!
Certo acidente muito grave, ocorrido durante a indecisão em
chamar-se o médico para se decidir a operação, causara o desastre,
tornando Angelita criatura semimorta em plena florescência das suas
19 primaveras! Desolado, Alípio encobria da esposa a consternadora
verdade, alimentando, piedosamente, naquele coração amante e
ainda repleto de doces ilusões, a fictícia esperança de um
restabelecimento, no intuito de reanimá-lo, enquanto o seu próprio
coração sangrava na desventura dos sonhos malogrados para uma
feliz vida conjugal. Nos primeiros meses que se seguiram, cercou-a
ele de todos os desvelos que um sentimento terno, acometido de
compaixão, poderia inspirar, passando tardes inteiras à sua cabeceira
e reservando-lhe os domingos inteiramente, em uma assistência
integral, edificante. Pouco a pouco, porém, o irremediável estado de
coisas impôs-se, cansando o ardoroso Alípio, cansando a Sra.
Matilde, mãe de Angelita, a qual, retornando ao próprio domicílio,
abandonara a filha ao cuidado de serviçais, pretextando urgência de
se reintegrar nos afazeres próprios, ao passo que o genro já se
desinteressava dos serões da tarde, afastando-se do lar igualmente
aos domingos, para o almoço com amigos, regressando, destarte, ao
antigo estado de solteiro. E Angelita, então, passou a se reconhecer
esquecida pelo marido, o qual, ao sair, apressado sempre, beijava-a
distraidamente ou mesmo deixava de fazê-lo; reconheceu-se
esquecida pela mãe, que, irritada, ao visitá-la, de vez em quando,
blasfemava em sua presença, sugerindo que o Criador teria agido
melhor, levando-a por ocasião do parto... E a infeliz, então, tudo
observando sob o cáustico de um lento e silencioso martírio,
inteirou-se finalmente da verdadeira situação a que ficara reduzida.
No entanto, calava-se diante das impiedosas argumentações
maternas e jamais irritava o esposo com quaisquer queixumes ou
reclamações, preferindo chorar às ocultas, discreta e altiva ao sentir-
se traste incômodo a quem toda a família desejaria ver baixar à
sepultura. Então, quando todas as desilusões se sobrepuseram às
suas esperanças, ameaçando desesperá-la, avolumou-se em seu
destino a dedicação ilimitada de um anjo bom travestido na pessoa
de uma amiga leal, cuja alma de crente se prestou, fácil e
dignamente, à intervenção oculta da Espiritualidade para socorrê-la
no seu estranho calvário. Essa alma, favorecida pelas dúlcidas
inspirações do Alto, graças aos dons de bondade que sabia cultivar,
foi Sarita, a jovem viúva a quem entrevimos no início desta história.
E, assim, grandioso panorama de caridade moral, a mais
completa, a mais espinhosa a ser realizada, em vista dos complexos
que se lhe antepõem às inspirações, começou a se desenrolar sob o
teto daquele lar, tornado em túmulo prematuro de um espírito que
delinquira em diferentes etapas reencarnatórias.
Compreendendo a amiga inválida, sem esperanças de jamais se
restabelecer, Sarita tratou de suavizar a decoração do presídio em
que se transformara a câmara conjugal do jovem casal. Transformou-
a em formosa e pitoresca sala, onde o leito seria o trono e Angelita a
soberana. Ornou-a de belos tapetes, de quadros e de flores, para lá
transportando igualmente o piano da jovem. Ali mesmo promovia,
aos domingos, com suas alunas e amigas, delicados recitais de
declamação, no intuito de distrair a enferma, e atraiu visitas
frequentes, que alegravam a pobre moça com palestras edificantes,
porque escolhidas e sérias. Ela própria, apesar da escola e dos cinco
filhos que dirigia, visitava a doente pela manhã e à noite, até a hora
do chá, quando então a acomodava para adormecer. E tais visitas,
cuja dedicação repercutiu em além-túmulo com as maviosas
ressonâncias da sublimação do amor fraterno, retratando a
beneficência em um dos seus matizes mais brilhantes, tiveram um
curso regular, diário, ininterrupto, de onze longos anos, período em
que se manteve a enferma no leito, sem que jamais Sarita
negligenciasse nas suas atenções à amiga.
Felizmente para ambas, a bondosa viúva, portadora de excelente
saúde, jamais adoecia seriamente. Os pequenos resfriados e
indisposições, que porventura a assaltassem ocasionalmente, nunca
foram pretextos para que deixasse de cumprir o seu devotamento
junto da inválida, cuja residência, por felicidade, distava poucos
passos da sua. Fez mais a amável criatura: colocou nas mãos da
enferma, que apenas se poderia recostar entre almofadas, a
confecção de bordados e crochês, de rendas e flores, e pequenas
costuras. Animou-a a ensinar as primeiras lições do silabário e os
primeiros trabalhos manuais a pobres crianças que não teriam
ensejo de algo aprender se não fora a boa vontade dos corações bem
formados, e a câmara, assim sendo, foi transformada em escola, fato
que constituiu sublime encantamento para Angelita, que admirava as
crianças.
E coroando todo esse programa de beneficência, ela própria,
Sarita, lecionava à amiga a ideia de Deus, a existência e a
imortalidade da alma humana, a consoladora esperança de uma vida
após a morte, plena de justiça e recompensas para aquele que, à
frente de irremediáveis dilacerações morais durante a vida hodierna,
a elas souber resignar-se ao mesmo tempo em que delas faça a
escalada evolutiva para Deus. Ensinou-a a orar, orando ela mesma,
diariamente, em sua companhia. E, atraindo para o recinto, como de
justiça, com tais atitudes, os adamantinos eflúvios da
Espiritualidade, reconhecia que Angelita se beneficiava, porquanto
suas revoltas e blasfêmias diminuíam sensivelmente.
O trabalho, bendito elemento de redenção, desenvolvido tão
singela quanto eficientemente, em torno de crianças de condições
humildes, despertou na doente o sentimento de fraterno interesse
pelos semelhantes. A meditação a respeito da alma humana levou-a a
identificar-se com os ideais religiosos. E a resignação, sublime
amparo do desgraçado, envolveu sua personalidade, encorajando-a e
dignificando-a em pleno testemunho de dores acerbas.
Ao demais, Sarita promovia chás e convidava amigas,
reservando-se ainda para acompanhá-la ao almoço dos domingos, na
ausência de Alípio, que se desinteressara completamente do lar.
Confeccionava-lhe caprichosos vestidos e blusas modernas,
adornando-a e perfumando-a sempre com subido carinho. Lia-lhe
interessantes romances e contos atraentes, os quais eram motivos de
agradáveis debates entre ambas. Deu-lhe a conhecer, sutilmente, a
literatura evangélica... e um curso de cristianização seguiu-se na
doçura daquela câmara para onde se dirigiam as visitas
misericordiosas dos Céus. Lia para a amiga as mais belas e
comoventes passagens do Novo Testamento, como a vida dos
primeiros cristãos. Comentava parábolas, curas, feitos, conversões,
ensinamentos de Jesus ao povo, analisando as consequências sociais
daí derivadas, apresentando-lhe Jesus tal como realmente o vemos
apresentado nos Evangelhos – ativo, sociável, prático, amigo do povo
sofredor, pronto sempre a remover dificuldades, a aliviar
sofrimentos alheios, a ensinar e esclarecer, construindo no coração
humano a moral imarcescível de que resultará a própria evolução
social do planeta. Livros educativos, então muito em uso à cabeceira
dos pensadores e estudiosos inclinados ao ideal de perfeição
humana, como o eram os de Samuel Smiles36, de José Ingenieros37;
a Imitação de Cristo, que outrora tantas lágrimas enxugou nos
corações oprimidos, na solidão de câmaras tristes, eram
apresentados à inválida pela capacidade moral de Sarita. E era belo,
então, vê-las entretendo-se em análises e debates a respeito de tão
nobres assuntos, meditando sobre os formosos conceitos e as
exposições edificantes encontradas em suas páginas. E porque fosse
Sarita alma cândida, revestida de boa vontade, um médium de
intuições, embora o ignorasse, os instrutores espirituais acorriam
coadjuvando-lhe os esforços a favor da ovelha necessitada de
socorro. E, assim sendo, a inspiração brotava de sua alma
momentaneamente revigorada pelas forças benfazejas do Invisível, e
lições fecundas e revivificadoras eram para ali veiculadas através do
canal piedoso do seu coração angelical.
Esse paciente, admirável trabalho de consolação e reedificação
moral de uma criatura enferma psíquica e fisicamente, conforme
asseveramos, levou não menos de onze anos, incansáveis e eficientes,
aos quais nem mesmo festejos de natalícios faltaram, sendo as datas
gradas do aniversário de Angelita, de Alípio e da própria Sarita
comemoradas com satisfação. E pelo Natal de Jesus havia
distribuição de dádivas à criançada. Brinquedos, roupinhas,
sapatinhos e guloseimas gostosas eram oferecidos a determinado
número de pequerruchos e a suas mamães, os quais recebiam das
próprias mãos da doente as recordações gentis do dia do Senhor,
pois Sarita, que isso tudo preparara cautelosamente durante o ano
todo, por essa época transmudava, ainda uma vez, o aposento da
amiga em gracioso arsenal de preciosidades infantis, para que o
sorriso aflorasse nos tristes lábios da enferma ao constatar a alegria e
a sofreguidão da criançada ao tomar de suas mãos bonecas e
palhaços, carrocinhas e cavalos, fogõezinhos e cartuchos de doces,
camisinhas e lindas fitas.

36 - N.E.: Samuel Smiles (1812-1904) – escritor e reformador britânico. Smiles é conhecido,


sobretudo, por ter escrito livros que exaltam as virtudes da “autoajuda” e biografias
enaltecendo os feitos de engenheiros heroicos.
37 - N.E.: José Ingenieros (1877-1925) – médico, psiquiatra, psicólogo, farmacêutico,
escritor, docente, filósofo e sociólogo ítalo-argentino.
IX

Entrementes, Angelita, silenciosa, percebia que o marido de dia


para dia mais e mais a deixara no abandono. Readaptara-se à vida de
solteiro e até parecia repugná-la, esquecendo-a sem compaixão pela
sua desdita, desinteressando-se do dever moral de suavizar-lhe o
martírio com afetuosas atenções. Passava dias e noites inteiras sem
retornar ao lar. Dir-se-ia agora hóspede em sua própria casa! E, ao
voltar, era como se a esposa fosse um ser estranho, para com o qual
não se sentia obrigado a considerações. Não se lembrava de que ela
possuía também um coração, que esse coração o amava
profundamente, e ao qual os deveres de humanidade lhe mandariam
respeitar e consolar... preocupado, como se aprazia de permanecer,
com as conquistas amorosas que se permitia fora do lar. Nem as
ocultava tampouco à pobre criatura chumbada à invalidez. Parecia
até mesmo entender ser perfeitamente natural que Angelita o
aprovasse com satisfação e alegria, sem indagar se tal situação
deixaria ou não de ferir o coração da jovem esposa, que não cessava
de amá-lo. Narrava-lhe, displicentemente, as conquistas levadas a
efeito pelos clubes que frequentava. Dava-lhe a ler as cartas
apaixonadas que recebia e retribuía. Contava-lhe as ligações
amorosas que cultivava. Preparava-se para festas e danças em sua
presença, pedindo-lhe a opinião sobre a cor da gravata e do cravo a
usar na lapela, consultando-a sobre se levaria lenço de seda branca
ou creme, perfumado a heliotrópio ou a jacinto, para apoiar, sob a
mão, na cintura das damas com quem dançasse, e se o friso dos
bigodes seria mais alto ou mais baixo e a linha dos cabelos ao meio
da cabeça ou mais ao lado esquerdo.
Era o egoísmo feroz, do coração frio que apenas em si mesmo
pensa, e a quem não causava espécie as desditas do coração alheio!
Dizer das horas de torturas morais que padecia Angelita não
será certamente fácil tarefa para a capacidade de um estranho. Seus
gemidos, porém, o eco pungente dos seus silenciosos anseios
repercutiram no Além como súplicas de socorro, para que o Céu
descesse em refrigérios para ela, fortalecendo-a contra a
desesperação, na dura experiência. E o Céu descia, com efeito, nas
individualidades das formosas crianças de Antônio de Pádua, as
quais, levando-a a adormecer em letargias profundas, alçavam o seu
espírito acabrunhado ao seio dos Espaços. E, ali, quais benditos
anjos de um novo Getsêmani, a consolavam com dulcíssimos
conselhos e visões de arrebatadoras esperanças, revigorando-a para
que sorvesse de boa mente o fel das próprias amarguras até o fim das
provações, afirmando-lhe, e dando-lhe a ver dentro de si mesma que
tão espinhosa, decepcionante quadra de sua existência mais não era
do que a irremediável consequência de um ingrato passado
reencarnatório, quando, vivendo em Vila Rica sob o nome de Rosa,
amada e respeitada por um esposo digno e confiante, atraiçoava a
sua fé conjugal friamente, permitindo-se o ultraje de uma
infidelidade aviltante com a pessoa do maior amigo da sua casa,
aquele Fernando Guimarães de então, cujo Espírito, agora
reencarnado, outro não era senão o seu próprio esposo do momento,
isto é, o galante Alípio, cujos maus pendores continuavam ainda os
mesmos. E explicavam ainda as angelicais crianças de Antônio:
— Será imprescindível, pois, que te resignes, irmã querida, à
melancólica situação terrena da atualidade, porquanto é o único
recurso existente em teus caminhos para te reabilitares ante a
própria consciência! Volta-te, portanto, para Deus, nosso Pai, o qual
bastante poderoso será para conceder-te forças para a vitória contra
ti mesma.
X

Certo dia chegou à residência do casal, na ausência de Alípio e


de Sarita, uma visita para a enferma. A criada fê-la inadvertidamente
entrar, encaminhando-a para o aposento onde, de preferência,
Angelita permanecia, isto é, a antiga câmara conjugal, agora
transformada em escola e salão de visitas. Absorvida pela leitura das
consoladoras páginas da Imitação de Cristo, Angelita mantinha a
alma voltada para as doçuras da Espiritualidade, enquanto o coração
se reanimava ante murmúrios inefáveis daquela voz celeste que nos
refolhos da sua personalidade ecoava com as mais amorosas e
enternecedoras advertências que ela poderia receber de alguém, e lia
comovida:
“Cristo também foi, neste mundo, desprezado dos homens, e em
suma necessidade, entre os opróbrios, o desampararam seus
conhecidos e amigos. Cristo quis padecer e ser desprezado, e tu ousas
queixar-te de alguém? Cristo teve adversários e detratores, e tu
queres ter a todos por amigos e benfeitores? Se não queres sofrer
alguma contrariedade, como serás amigo do Cristo? Sofre com Cristo
e por Cristo, se com Cristo queres reinar...”
Virou lentamente a página, o coração como que destilando
essências espiritualizadas, e seus olhos tristes depararam o que se
segue:
“Se souberes calar e sofrer, verás, sem dúvida, o socorro do
Senhor. Ele sabe o tempo e o momento de te livrar; portanto,
entrega-te todo a Ele.”
“Ao humilde, Deus protege e salva; ao humilde, ama e consola;
ao humilde Ele se inclina, dá-lhe abundantes graças e, depois do
abatimento, o levanta a grande honra. Ao humilde revela seus
segredos e com doçura a si o atrai e convida. O humilde, ao sofrer
afrontas, conserva sua paz, porque confia em Deus, e não no mundo.
Não julgues ter feito progresso algum, enquanto te não reconheças
inferior a todos.”
A visita entrou acompanhada pela dedicada serva. Angelita
fechou o livro e colocou-o sob as almofadas. Tratava-se de uma dama
corpulenta, morena, de grandes olhos nostálgicos, recordando olhos
da raça africana. A enferma não a vira jamais! Não se tratava de
relações de amizade da família. Ao primeiro exame, porém,
compreendeu que aquela mulher sofria. Intrigada, sentindo ainda
repercutir no coração as vozes deíficas das páginas que lera, fez um
gesto, convidando-a a sentar-se.
— Ao que devo a honra da sua visita, minha senhora?... –
perguntou atenciosa.
A visitante demonstrou indecisão, para em seguida responder,
traindo emoção:
— É tão ingrato o móvel da visita que lhe faço, minha senhora,
que antes de mais nada rogo ao seu coração muita serenidade para
me ouvir, e, acima de tudo, o seu perdão para a ousadia em procurá-
la e para o desgosto que, estou certa, lhe causarei...
Angelita empalideceu imperceptivelmente, enquanto o coração
se lhe precipitou sob o acúleo de penosa angústia, e fitou a visitante,
como animando-a a prosseguir.
— Trata-se de seu marido, minha senhora...
— Estou ouvindo, pode falar...
— ... Tenho uma filha de 16 anos, a única que possuo, o anjo do
meu lar, que já não conta com o amparo de um chefe, pois sou viúva.
Silêncio desconcertante pesou entre ambas. Os olhos da
visitante encheram-se de lágrimas. A palidez da inválida acentuou-
se:
— Prossiga, minha senhora, estou ouvindo... – repetiu resoluta.
E a dama de olhos melancólicos, qual meteoro que acabasse de
destroçar o coração da infeliz esposa de Alípio, explicou de chofre:
— Minha filha foi seduzida por seu marido...
As duas se entreolharam, depois do que Angelita exclamou
serena, amparada por uma tranquilidade como se dos Céus
descessem refrigérios a fim de alentá-la:
— E que espera a senhora possa eu fazer por sua filha? Há nove
anos estou inválida neste leito de dores! Somente a minha morte
remediaria a situação de sua filha, pois, infelizmente para ela e quiçá
também para mim, o Código Civil Brasileiro não só não adota o
divórcio como, ainda que o adotasse, não o concederia a meu marido
só pelo fato de ser eu inválida... Deus, porém, em sua soberana
justiça, ainda não desejou libertar-me deste cativeiro.
— Minha filha é uma criança e será mãe dentro de algum
tempo... Pleiteio para ela o direito de ser dotada por seu marido, pois
sei que ele possui bens.
— Por que não se dirige antes a ele, minha senhora?
— Nega-se a atender-me.
— Dirija-se então ao Juizado de Menores.
— Haveria escândalo... Ele será, certamente, processado pela
Justiça, a situação de minha filha se complicaria, ele se tornaria
inimigo.
— Que deseja, então, de mim?
— Que o aconselhe, instando para que me atenda, a bem de
todos nós. Ousei dirigir-me à senhora porque ele afirma que é esposa
compreensiva... não o molestando por haver tornado à vida de
solteiro.
Angelita meditou por um instante e depois adveio com
desânimo:
— Talvez a senhora tenha razão em me procurar para tal fim,
porquanto, nestes nove anos de tão cruéis sofrimentos, somente
restava esse pormenor para me completar o martírio.
Certamente, reanimada pela fragilidade da criatura a quem
abordava, a visitante continuou displicente:
— Quero que ele monte uma casa e se comprometa a amparar
minha filha como se realmente fosse casado com ela. A senhora há de
convir que eu, como mãe...
— Sim, tem toda a razão... Verei se posso fazer o que me pede.
Agora, suplico-lhe, por piedade, retire-se, deixe-me em paz...
O resultado de tão ousada quão impiedosa visita não se fez
esperar. Informada na mesma tarde pela amiga, que se não
encorajara a dirigir-se ao marido para tão singular assunto, Sarita
prestou-se a abordá-lo no intuito de evitar à pobre inválida novos
choques da mesma espécie, visto que não seria justo que a infeliz
esposa fosse imiscuída no melindroso caso. De ordinário, porém, a
pessoa colhida em falta grave, em vez de se penitenciar, como seria
honroso, revolta-se contra aqueles que lhe descobrem os erros,
portando-se violentamente. Alípio não só repeliu Sarita como, em
altas vozes, com ela discutiu, declarando que faria de sua vida o que
bem entendesse, torcendo o sentido da advertência piedosa da fiel
amiga para repetir que se transferiria definitivamente para a casa da
jovem seduzida, a esperar o fruto querido, resultante da união,
terminando por lamentar que a esposa vivesse ainda, impedindo-o
legalizar a situação com aquela a quem ardentemente queria. Entrou
no aposento da enferma e confirmou, colérico, o que se passava,
acrescentando não admitir censuras; insultou-a cruamente, rogando-
lhe que morresse de vez, desocupando um título e um lugar que
antes caberia à outra, visto que ela, Angelita, fora fragilmente ligada
a ele apenas durante onze meses; que os laços do matrimônio, entre
ambos, haviam sido definitivamente rompidos e que ela se desse por
muito feliz de ali continuar, naquela casa, onde era suportada apenas
pelo critério da caridade.
A jovem esposa não replicara sequer com um monossílabo. Não
derramou uma só lágrima! A dor de assim ouvir o ser amado fora
demasiada, cristalizando em seu coração a possibilidade de reação. A
amiga procurou reconfortá-la tanto quanto possível, não obstante
compreender que a desditosa acabara de receber o golpe mortal, pois
apenas Sarita permanecia à sua cabeceira, local onde sua própria
mãe, feliz entre os demais filhos, só raramente aparecia.
Entrementes, o mau esposo cumprira o prometido. Retirou-se
definitivamente do lar, curvando-se, finalmente, à imposição que lhe
fizera a genitora da jovem seduzida. Esqueceu, assim,
completamente, a esposa inválida, cujas necessidades eram agora
supridas por Sarita e um ou outro parente mais prestativo, uma vez
que o esposo só de longe em longe se permitia o incômodo de
informar-se do que careceria aquela que, a despeito de tudo, usava o
seu nome.
Tão lamentável estado de coisas durou ainda dois longos anos,
durante os quais, agravando-se o estado da enferma com a irrupção
de um câncer interno – consequência do acidente verificado por
ocasião da operação e como resultado imediato do choque
traumático pela suprema descaridade sofrida do esposo –, seus
padecimentos ultrapassaram todas as perspectivas. Até que, por uma
tarde tépida e serena de domingo, a sós com a fiel amiga e suas filhas
e o velho médico assistente, Angelita desprendeu-se, finalmente, da
prisão corpórea, que a detivera na expiação de um mau passado,
alçando às moradas invisíveis sob a tutela das amoráveis crianças de
Antônio de Pádua, depois de onze anos de um calvário de dores
morais cruentas e de lágrimas silenciosas e humildes.
XI

Por uma dessas atrações vibratórias que para a maioria dos


pensadores se conservam envoltas em impenetráveis mistérios, a
entidade Caetano prendera-se de profundo amor àquela que se
tornaria sua mãe terrena, que realmente o fora, porque, durante o
longo período da gestação e desenvolvimento do seu corpo, tivera o
perispírito poderosamente atraído para o dela pelos liames
magnéticos necessários ao feito reencarnatório, em um aconchego
terno e emocional de irradiações amoráveis e encantadoras, que
geralmente é o que produz o sentimento imperecível de uma mãe
pelo seu filho, e vice-versa, ainda que seus Espíritos sejam
desconhecidos.38 As intensas vibrações mentais irradiadas pela
mulher que será mãe, em favor do entezinho que já palpita em seu
seio fecundado; o amoroso, inexcedível carinho do seu coração, que
cumula de doces enlevos aquele retalho de si mesma, que será o seu
filhinho amado, mesmo antes do nascimento; o desvelo sublime com
que lhe prepara o enxovalzinho mimoso, tesouro que suas mãos
fabricam entre suaves emoções do coração e pensamentos
santificados pela alegria da maternidade, criam em torno da gestante
uma atmosfera mental radiosa que atrai, cativa e apaixona o Espírito
do nascituro, enquanto comove o observador invisível, que
contempla as repercussões que o fato produz nas vibrações de
ambos, vibrações que se entrecruzam, se entrelaçam em um ósculo
santo, a que ambos perfeitamente se adaptam. Daí, pois, igualmente,
essa ligação indefectível dos filhos com suas mães, além de outras
que, em muitos casos, costumam existir a par das que citamos. De
um modo idêntico, se a mulher irradia aversão à maternidade,
dedicando a esse ser que traz consigo pensamentos malévolos e
odiosos, até o extremo de destruí-lo, negando-lhe a existência por
seu intermédio, o inverso se realiza e o Espírito que reencarnaria por
meio dela torna-se, frequentemente, perigoso inimigo, que a
perseguirá em além-túmulo mais tarde e, possivelmente, em
posterior existência, podendo mesmo obsidiá-la sob várias formas.
Espiritualmente, Caetano continuava afeito a Angelita, não
olvidando ainda que outrora, em Vila Rica, dela recebera o melhor
trato a que um escravo poderia aspirar, porque desinteressado, visto
que nem mesmo fora sua propriedade. Sabia ser Angelita a
revivescência espiritual de Rosa, e, conquanto ignorasse os
pormenores do feito reencarnatório, distinguia o bastante para
acompanhá-la com sentimentos muito confiantes. De outro modo,
reconhecia em Alípio aquele Fernando de quem fora escravo, a quem
devera a salvação da morte na forca, mas sob as injunções de quem
se aviltara ainda mais no crime. Não ignorava que, graças a tais
delitos, teria de arrostar sobre a Terra, mais dia menos dia, como
reencarnado, vidas de expiações e trabalhos. E que, por isso mesmo,
era que sua existência incorpórea do momento era povoada de
remorsos e alucinações lancinantes. Todavia, Espírito inferior e
retardado no progresso, que se prazia de ser, não se animava a
decisões salvadoras sob as advertências dos obreiros do amor, que o
desejariam ajudar. A princípio, não raciocinou francamente sob tal
aspecto da própria miséria, ou seja, sobre o fato de Alípio o haver
instigado ao crime. Este continuava, para ele, sendo o bom senhor
que o libertara outrora da forca. No entanto, assistindo agora,
diariamente, à impiedade deste contra a pobre Angelita, entrou a
raciocinar que o mesmo Alípio – o Fernando de Vila Rica – fora o
causador das desgraças que afligiam aquela amiga querida e também
da sua própria situação miserável, pois, outrora, impelira-o a crimes
imperdoáveis, dentre outros o do assassínio bárbaro do recém-
nascido, no fundo da velha chácara daquela antiga sede de Província.
Com o desaparecimento da enferma dos liames carnais,
recrudesceu a sua irritação contra o despreocupado viúvo, a quem
passou a responsabilizar também pela morte desta. E então,
contundiam-lhe o coração as dolorosas impressões do abandono a
que se via relegado, da saudade, da tristeza inconsolável, pois,
enquanto Angelita ascendia a páramos reconfortadores do mundo
astral, ele próprio, sem capacidades morais para acompanhá-la,
permanecia na própria Terra, entregue a prantos amaros, vagando
pela casa vazia e entristecida, perambulando pelas ruas qual
mendigo desolado, visitando o Campo Santo onde sabia seu corpo
sepultado.
Aversão insopitável contra Alípio avassalou então o coração
apaixonado da inferior Entidade. Passou a acompanhá-lo, irradiando
hostilidades, admoestando-o sempre pelas infelicidades a ele próprio
e a Angelita causadas. Seguia-o, como outrora, pelas caçadas e
aventuras, mas, agora, choroso e desanimado, desejando-lhe toda a
espécie de males e desgraças, em desagravo às ofensas recebidas.
Por sua vez, Alípio continuava servindo ao egoísmo que nutrira
sempre, vivendo inteiramente arredado dos deveres da moral. Uma
vez enviuvando, negara-se a desposar a jovem a quem seduzira, a
qual, agora mãe de duas lindas criancinhas, sofria a humilhação de
ser por ele considerada criatura de condição social inferior, a quem
não serão devidas verdadeiras atenções; e, pouco depois, dela
igualmente se fartando, promovera o matrimônio dela com um pobre
homem valetudinário, ao qual concedeu um ordenado mensal para
que lhe fosse criando os dois filhos, junto à mãe, sem grandes
dificuldades. Sua vida tornara-se, então, anormal, sob o assédio de
Caetano. Trabalhador e dinâmico que fora, passou a se sentir
inabilitado para quaisquer empreendimentos. Não lograva satisfação
e bem-estar em parte alguma, porquanto não laborava a fim de
adquiri-los no interior da própria consciência.
Supondo-se enfermo, consultara o médico. Não encontrando em
sua organização física senão ligeira alteração nervosa, o facultativo
prescreveu distrações, passeios, viagens. Alípio então se pôs a viajar
daqui para ali e acolá, entregando-se a prazeres desordenados:
teatros licenciosos, amores condenáveis, frequências a clubes
noturnos onde se embrutecem as boas tendências da alma, jogos e
libações de vinhos etc., enquanto a Entidade sofredora e endurecida,
do escravo de outrora, continuou seguindo-o qual repercussão lógica
e irremediável do pecaminoso passado que ainda não fora expungido
do seu destino...

38 - N.E.: Nem sempre esses elos são originários do amor. Poderão firmar-se também no
ódio, tendo em vista penosas expiações e reparações para o advento da reconciliação dos
Espíritos.
XII

Entrementes, doze anos se passaram desde que Angelita


regressara à Pátria Espiritual. Por esse tempo, eu continuava
emprestando o meu concurso de assistente espiritual ao mesmo
núcleo de estudos e experimentações espíritas citado no caso
precedente. Como vimos, aquele núcleo se destacava pelo alto padrão
de dedicação e humildade dos seus componentes em geral e de um
grupo de médiuns em particular, cujas excelentes faculdades se
prestavam facilmente a qualquer labor necessário à Espiritualidade
efetuar relativamente à Terra. Dentre todos, no entanto, eu
destacava, para as tarefas mais sutis, que implicassem maior
precisão de detalhes e penetração no além-túmulo, uma jovem quase
adolescente – não por preferências descabidas ou pessoais, mas por
se tratar de instrumento cujas faculdades, positivas e maleáveis, se
prestavam a qualquer serviço mediúnico, sem sacrifícios mútuos, isto
é, sem excessivo esforço dela própria e da entidade comunicante.
Ora, essa menina, espiritista e médium, cujo nome seria Míriam,
pertencia ao círculo de relações sociais terrenas de Sarita, a antiga
amiga de nossa personagem Angelita, a despeito da grande diferença
de idades existente entre ambas. Por sua vez, Sarita, por motivos
pertinentes aos acidentes da jornada planetária, transferira a própria
residência para a capital do país. Certa vez em que a minha Míriam
descia as montanhas da terra natal para rever amigos e familiares
habitantes na capital, teve ensejo de também visitar Sarita, e esta,
conhecedora de que aquela era adepta da Doutrina dos Espíritos,
com atribuições nos campos mediúnicos, disse-lhe pensativa,
servindo-se daquele fraseado gentil e afetuoso que eu de muito
conhecera junto à pobre Angelita:
— Minha querida amiguinha! Bem sei que o teu coração,
perfumado pelas caritativas fragrâncias do Evangelho do divino
Mestre, não saberia desatender a qualquer alma triste que o
procurasse em busca de um alívio para os seus dissabores, ou de uma
esperança! Eu sou católica romana, mas, acima de tudo, sou cristã, e,
por isso mesmo, aceito as verdades espíritas, porque sei que elas se
firmam não somente nas próprias Leis da Natureza, como nos
ensinamentos do Evangelho do Senhor. Possuí, há muitos anos, uma
amiga por nome Angelita, a quem muito amei pelos infortúnios que
suportou e por quem muito sofri e chorei, recomendando-a ao amor
de Deus e de seus anjos. É morta há doze anos! Tu eras pequenina,
contavas apenas 8 anos, quando fechei o esquife de Angelita para
conduzi-la ao Campo Santo. Durante cinco anos, duas vezes ao dia,
eu orei sem desfalecimentos, para que a alma de Angelita
encontrasse feliz acolhimento na Casa Espiritual de nosso Pai... e há
sete anos oro para que ela me apareça em sonhos, ao menos,
afirmando-me, pessoalmente, se está realmente “salva”, se é
plenamente feliz onde se encontra, se obteve o perdão do Céu para
faltas que, possivelmente, tivesse cometido, porquanto, até certo
tempo de sua vida, ela se conservou avessa ao respeito a Deus e à
crença na existência da alma. Tu, Míriam, que sabes confabular com
os fantasmas luminosos do Além, pede a um deles notícias de minha
Angelita, e, em sinal de gratidão por esse favor, prometo que, por ti e
pelo fantasma que mo conceder, passarei a orar durante outros sete
anos, suplicando que as bênçãos do Alto semeiem de rosas o destino
de ambos.
As lágrimas turvaram os meigos olhos de Sarita, cujos cabelos,
agora já encanecidos, pareciam suave auréola matizando de neblina a
sua fronte de madona. A súplica, no entanto, emitida por vibrações
muito amorosas e inspirada no respeito às coisas celestes, repercutiu
no mundo invisível com as tonalidades santas de uma prece.
Despertou minha atenção e registrei o pedido feito ao meu médium.
Comuniquei-me com integrantes espirituais da formosa falange de
Antônio de Pádua, da qual ela e Angelita seriam pupilas... e
acertamos em que o desejo da amável Sarita fosse imediatamente
atendido, visto que sobejos testemunhos de humildade, de fé, amor e
perseverança ela já apresentara às leis eternas para merecer a dádiva
a que aspirava, e a fim de que não viesse a se decepcionar, o seu
coração, por um silêncio muito prolongado do mundo invisível.
Asseverou-me, porém, o Espírito, agora feliz, da própria Angelita,
que frequentemente a boa amiga vinha até ela, em além-túmulo,
durante o sono corporal; que conversavam ambas e se entendiam
perfeitamente, mas que Sarita, não possuindo faculdades mediúnicas
positivas, não conservava possibilidades de deter lembranças para
intuições definidas, ao despertar.
No entanto, regressando Míriam à sua residência, na primeira
noite de trabalhos, no seu posto de intérprete do mundo invisível,
providenciei para que o Espírito Angelita se aproximasse e a
envolvesse em suas vibrações, materializando-se à sua visão
mediúnica e ditando, psicograficamente, com acentos vibratórios
muito positivos, a fim de transmitir mesmo os característicos da
própria caligrafia que tivera em vida planetária, uma carta de amor
fraterno, com o noticiário desejado por sua dedicada amiga, que não
a esquecera. Jubilosa e feliz, a inválida de outrora, agora Espírito
radioso, escreveu então, pela mão de Míriam, que, passiva, traduzia
fielmente o pensamento que lhe era projetado:
“Minha querida Sarita: Venho, finalmente, agradecer-te a
inapreciável dedicação que há vinte e três anos me testemunhas!
Abençoem-te Deus e os seus anjos, minha amiga, pelo valor que,
aqui, no além-túmulo, de onde te escrevo, representou o teu auxílio à
pobre enferma, que sofreu e chorou durante onze longos anos, pois a
felicidade, que hoje aqui desfruto, em grande parte é a ti que devo,
àqueles serões diários que ao pé de mim fazias com tuas edificantes
leituras, tuas orações generosas, teus conselhos salutares, que me
iniciaram na reeducação necessária, reeducação que, hoje, os
amoráveis meninos de ‘Santo’ Antônio de Pádua vêm completando,
com o favor do Céu!
Sim, minha querida, estou salva! Estou liberta do peso dos
pecados que me amarguravam a consciência! Um dia, quando
também habitares onde habito, eu te revelarei esses pecados. Jamais,
porém, sofri em além-túmulo, senão apenas lamentei a
incompreensão e o desvio daqueles que me fizeram sofrer, aos quais,
no entanto, sincera e jubilosamente perdoei há muitos anos!
Todavia... Saibas tu, Sarita, que não foram os onze anos de
sofrimentos físicos que me salvaram, mas sim os onze anos de
sofrimentos morais que, sobre aquele leito solitário, apenas alegrado
pela tua inexcedível boa vontade, eu suportei, contemplando, minuto
a minuto, a morte do próprio coração, o despedaçamento das ilusões
acalentadas pela juventude, e quando somente a Deus e a ti eu
possuía para consolar as minhas lágrimas! Sê feliz como eu sou,
Sarita! E recebe minhas bênçãos de amiga agradecida, os ósculos dos
meninos de ‘Santo’ Antônio, as bênçãos dos Céus, que nos
recomendam amarmos uns aos outros... Tua, de sempre, Angelita.”
Em seguida, o gentil Espírito deixou-se contemplar por Míriam
em toda a pujança da felicidade descrita na carta psicografada:
docemente aclarado por cintilações azuladas, longa túnica angelical
estendendo-se em cauda solene e fosforescente, cabelos louros soltos
pelos ombros, um braçado de lírios entre as mãos, meigo anjo a
quem somente faltariam asas para recordar as visões que inspiraram
o espiritual gênio de Rafael, já expungido de sua consciência, através
das lutas do sacrifício das reparações, o feio deslize do século XVIII,
em Vila Rica. A seu lado, três lindas crianças, pobrezinhas, mas
lucilantes, angelicais, pés desnudos, lírios entre as mãos.
Míriam pôs-se a chorar diante da visão formosa, exalçando o
coração em prece de agradecimento.
No dia seguinte, enviou a mensagem a Sarita, pelo correio,
acompanhada de afetuosa carta na qual narrava a visão
surpreendente.
Ora, do Além estabelecêramos proporcionar a Sarita um
testemunho insofismável da imortalidade, um fato concreto que a
convencesse e edificasse até o deslumbramento e a alegria, justo
prêmio à longa dedicação demonstrada sob os preceitos da lídima
fraternidade. Por essa razão, na mesma noite em que o fenômeno
acima descrito se desenrolava no receptáculo sagrado das operações
mediúnicas, no Centro a que Míriam emprestava atividades,
repetimo-lo exato, real, à própria Sarita, durante a madrugada,
fazendo-a despertar do sono a que se entregava, para extasiá-la ante
o aposento iluminado pela presença da amiga e das crianças do varão
espiritual Antônio de Pádua, dando-lhe a ouvir a voz tão saudosa da
amiga falecida e satisfazendo-lhe, assim, um pedido que, por meio de
humildes e confiantes rogativas, ela suplicava havia sete anos:
— Sim, minha querida Sarita! Estou salva! Estou liberta do peso
dos pecados que me amarguravam a consciência! Todavia não foram
os onze anos de sofrimentos físicos que me permitiram a salvação,
mas os onze anos de sofrimentos morais, bem suportados, sobre
aquele leito solitário, quando somente a Deus e a ti eu possuía para
consolar as minhas lágrimas!
Radiante, felicíssima, louvando a Deus em orações agradecidas,
pelo inestimável favor recebido, e atribuindo-o à misericórdia do Pai
celestial, e não aos seus méritos pessoais, Sarita, já na manhã
seguinte, entrou a presentear as criaturas pobres com muitas
dádivas, testemunhando gratidão aos Céus, e escreveu a Míriam
narrando o fato. As cartas de ambas se entrecruzaram, pois, pelo
caminho. E Sarita e Míriam foram novamente edificadas, certas de
mais uma sublime manifestação do Invisível por intermédio do
amor, da fraternidade e das doces e imortais alvíssaras do
Consolador prometido pelo Nazareno.
XIII

Justamente no desfecho da presente narrativa, que,


absolutamente, não é uma ficção, encerra-se toda a aspereza da
terrível lei de causa e efeito, que nas páginas precedentes já foi
cuidadosamente contornada sob o realismo de fatos por mim vistos e
examinados. Esse desfecho abrange duas personalidades que o leitor
ainda não esqueceu: Alípio e Caetano, o senhor de outrora e seu
antigo escravo de confiança, ligados, moral e espiritualmente, pelos
liames do passado e de modo irremediável, portanto, através do
futuro.
A lei de causa e efeito deveria ser estudada, espiritualmente,
pelos homens, com o máximo esmero, meditando todos sobre ela o
bastante para se forrarem ao seu gládio severo e inevitável, que
desfere represálias impressionantes, porém, justas, criteriosas e
sábias, as quais representam a reação da Natureza, ou da Criação,
contra a desarmonia estabelecida em suas diretrizes pela própria
criatura. Os homens, no entanto, jamais se aplicam a essa nobre
investigação que lhes evitaria desgraças, apoucamentos e ignomínias
que, absolutamente, não estariam no seu roteiro, se eles, mais
comedidos nas ações diárias, não os criassem para si mesmos, com
atitudes verificadas a cada passo na sociedade como dentro do lar.
Ora, como vimos para trás, a revolta de Caetano crescia contra
Alípio, a quem atribuía as desventuras que vinha experimentando.
Perdera de vista a terna amiga Angelita e, choroso, incapaz de
perceber o meio eficaz de caminhar ao seu encontro, voltava-se
contra Alípio, responsabilizando-o pelo desaparecimento da única
amável criatura por quem se sentira amado, aquela Rosa compassiva
de outrora, que jamais o humilhara; a Angelita de agora, que o
embalara em vibrações dulcíssimas de amor materno, durante a
espera do nascimento daquele corpo que deveria ocupar e que fora
destroçado, como se tal destroçamento traduzisse o eco do trágico
feito de Vila Rica no indefeso recém-nascido. Fizera-se, assim, como
que a própria sombra do infeliz Alípio. Roubava-lhe a paz do sono,
apresentando-se-lhe em sonhos para exprobrar-lhe os antigos crimes
que o obrigara a praticar, como os maus-tratos morais infligidos a
Angelita, o que resultava em pesadelos impressionantes para o
perseguido, em choques psíquicos que lhe perturbavam o
funcionamento do sistema nervoso e até o sistema de digestão
alimentar. Porque entendesse que Alípio se deveria conservar fiel à
memória da esposa, intrometia-se na sua vida sentimental... o que
resultava, para o sedutor, multiplicar as próprias conquistas
amorosas, tão facilmente como das mesmas desfazer-se, redundando
sempre, em torno deste, vibrações odiosas e deletérias dos corações
ludibriados. Ao prazer sentimental seguia-se, porém, o prazer do
jogo, paixão conturbadora, excitante, que infelicita, na Terra e no
Além, aquele que se permite desfrutá-la, pois o infeliz obsidiado,
embora não se apresentando declaradamente perturbado das
faculdades de raciocinar, mostrava-se inquieto e desgostoso, em
busca de algo ignorado, o íntimo remorso de tantos desatinos
picando-lhe açodadamente a consciência e o coração. E seguiam-se
viagens sempre mais extensas, recordando as efetivadas outrora, em
Vila Rica, dado que seu acompanhante invisível ainda se prendia às
recordações do passado... e durante as quais quantias vultosas eram
despendidas à procura de algo indefinível, cuja ausência o
desorientava, descuidado de procurar compreender que o que lhe
faltava era exatamente o recurso único que o salvaria do abismo em
que se deixava precipitar, isto é, o amor e o respeito a Deus, o recurso
da prece humilde que carrearia socorro certo, predispondo-o ao
intercâmbio mental com as forças defensoras do Bem.
Assim, afeito ao endurecimento secular dos próprios
sentimentos, Alípio nada tentou que o auxiliasse a se desvencilhar do
perseguidor invisível e ignorado. Até que, em uma das constantes
viagens que empreendia, inquieto e insubmisso como soem ser as
pessoas fortemente atingidas por um assédio obsessor, a trocar, de
vez em quando, de pouso, de um para outro carro, com o comboio
em movimento, o desgraçado Alípio, falseando a passada entre os
galeios dos dois carros, sem ponto de apoio para se reequilibrar,
deixa-se cair entre os mesmos, sendo dolorosamente esquartejado
pelas rodas do terrível trem de ferro em movimento rápido. Caetano,
odioso, em um violento impulso psíquico, impelira-o à queda...39
Oh! que assombrosos, impressionantes laços mentais-
magnéticos inferiores atariam tão poderosamente essas duas almas
submersas nas sombras de si mesmas, em uma conjugação macabra
de afinidades perniciosas?
Os pavorosos laços do crime! As terríveis afinidades originárias
da prática do mal em comum, laços e afinidades que somente uma
renovação pessoal à luz redentora do Evangelho cristão, bem sentido
e praticado, poderá corrigir e modificar, para os eventos do
progresso e do bem legítimo.
Informado pela própria Angelita do trágico e inesperado fim
corporal terreno daquele que tão caro fora ao seu coração; que tão
desumanamente se conduzira pelos dias dramáticos da sua
enfermidade, mas a quem ela mesma soubera perdoar com tanto
desprendimento e grandeza de alma, parti em busca do infeliz
Espírito, arregimentando companheiros e assistentes para a
melindrosa intervenção, antes que Caetano e demais bandoleiros do
Invisível o aprisionassem em suas hostes.
Não caberá nestas páginas uma narrativa a respeito do
lamentável acontecimento. Direi apenas, finalizando a tese, que
muito penosamente o Espírito Alípio, atordoado e dolorosamente
traumatizado pelo gênero de desprendimento físico-carnal,
readquiriu a lucidez espiritual para se movimentar em tentativas de
recuperações conscienciais. Adotei-o, penalizado, sob meus cuidados
espirituais, aconchegando-o ao carinho dos meus benévolos
companheiros de trabalho, e assim libertando-o das garras de
Caetano. Por ele velei sob a proteção das leis de Fraternidade, que
me permitiam o serviço, notando-o apavorado ante os
acontecimentos, disposto a se submeter, futuramente, aos deveres
desprezados durante o estado de encarnação. Angelita secundou-me
os esforços, coração amorável que se desdobrou em dedicações
incansáveis a favor daquele que durante onze anos a humilhara e
moralmente a martirizara em um leito de dores! E certa vez,
enquanto cuidávamos de aliviar as impressões do dolorido Alípio,
que se convulsionava em pesadelos conscienciais, murmurei em
surdina para a minha amável assistente do momento – a mesma
Angelita –, pupila da lirial falange de Antônio de Pádua:
— Oh! quão severa e temível é a lei que rege os destinos da
Criação! Ele, Alípio, desencarnou esquartejado sob as rodas de um
trem de ferro, vítima do impulso obsessor da mesma Entidade a
quem, em Vila Rica, durante existência mais antiga, ordenara que
assassinasse um pobre recém-nascido, seu próprio filho!
Misericordioso Deus! Os homens terrenos precisam ser avisados
destas impressionantes verdades, a fim de que melhor se conduzam
durante as obrigatórias travessias das existências.
A formosa Angelita revelou uma expressão de amargura, e,
voltando seu pensamento para os dias vividos no pretérito, comentou
em segredo, só para mim, atemorizada e aflita:
— Meu venerando amigo! Estou certa de que a expiação sofrida
pelo meu Alípio, com a ignominiosa desencarnação que houve de
enfrentar, não se prendeu tão somente ao caso do pobre recém-
nascido de Vila Rica.
E porque eu a fitasse preocupado:
— ... Sabei, querido amigo, que ele, sob a forma carnal do
cidadão português Fernando Guimarães, residente em Vila Rica,
mais não foi que um espião da Metrópole portuguesa em Minas
Gerais, disfarçado em caçador de riquezas, exatamente como o meu
esposo de então... local aquele, Minas Gerais, em que também
existiam os maiores valores intelectuais brasileiros, temidos pelos
governantes de Portugal. Foi um politiqueiro astuto e dissimulado...
que muito e muito se comprometeu nas odiosas tramas que
resultaram na desgraça de muitas personalidades nativas e no
enforcamento e sequente esquartejamento do alferes Joaquim José
da Silva Xavier, o Tiradentes!
Quedei-me absorto e quase aterrorizado, pensando na
profundidade, na complexidade das leis da Criação, isto é, da lei de
causa e efeito, enquanto a pupila de Antônio chorou de mansinho.
Penoso mal-estar invadiu meu coração, afligindo-o. Socorri-me, no
entanto, do amparo de veemente prece ao Senhor de todas as coisas,
que, em sua soberana bondade, concedeu após, ao meu coração,
serenidade bastante para o prosseguimento da tarefa que me
impusera.
Quanto a Caetano, certo de que mais um grande crime acabara
de praticar, manteve-se desaparecido entre as trevas do mal durante
algum tempo ainda. Todavia, as preces de Angelita – o coração que
dele se apiedara em Vila Rica e que, depois, o amara ternamente,
durante o período de espera para o seu nascimento, como filho do
seu consórcio com Alípio – acabaram por tocar-lhe o coração mais
uma vez... e, presentemente, reencarnado na Terra, entra em fase de
reparações e reeducação para o expurgo da consciência enlutada, ao
lado de Alípio, também já reencarnado, e do qual é irmão mais novo.

***

Leitor! Ama e respeita a Doutrina do Consolador prometido por


Jesus! Zela, prudentemente, pela Revelação, que ela te concede, das
verdades eternas! Difunde-a com clareza e dedicação, porque
somente ela, com os ensinamentos das leis que dirigem os destinos
humanos, corrigirá tais desarmonias existentes no seio das
sociedades terrenas.

39 - N.E.: os antigos carros dos trens de ferro, para passageiros, não eram ligados entre si,
como os carros modernos, e sim apenas por frágeis engates, o que oferecia constantes
ameaças aos passageiros. Eram frequentes os desastres pessoais daí consequentes.
Conselho Editorial:
Nestor João Masotti - Presidente

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