A Criatura Ou o Sísifo Contemporâneo

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 6

UCP - UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PETRÓPOLIS

FILOSOFIA - BACHARELADO

PAULO PEREZ VREULS

A CRIATURA
OU O SÍSIFO CONTEMPORÂNEO

Petrópolis
2024
1

“É preciso imaginar Sísifo feliz” (O Mito de Sísifo, p. 76)

“esquecendo minha solidão e minha deformidade, ousei ser feliz” (Frankenstein, p. 143)

Introdução:

Numa época quando a técnica predomina e as relações se pautam puramente na razão, o


isolamento que o homem sente da sociedade como um todo lhe incita a angústia do existir e a
revolta. O presente trabalho propõe fazer uma análise do célebre romance de Mary Shelley,
“Frankenstein ou o prometeu moderno”, dentro de seu âmago existencialista, traçando um
paralelo com as obras do escritor argelino Albert Camus.

Crítica ao Racionalismo Iluminista:

O século XIX foi palco de grandes mudanças nos rumos que a humanidade seguia. Do
iluminismo, do século anterior, emanava um rigor racionalista no qual a ciência e a tecnologia
avançavam como nunca antes, culminando nas Revoluções Industriais. No âmbito político, as
nações europeias - que agora se consolidavam como potências - transitavam do modelo
mercantilista, centralizado no absolutismo, para o modelo capitalista, centralizado na burguesia e
pautado pelo excedente de produção, cuja necessidade constante de expansão iniciava um novo
movimento colonizatório imperialista, o qual perdurou até os conflitos mundiais do século XX.
O vigente cenário vivenciado pela Europa refletia em suas relações sociais. A técnica e a
valorização da produção evidenciavam um apelo ao útil e ao racional. Nesse âmago, o
Romantismo surge como movimento crítico a esses rumos, com o grande intuito de demonstrar
que o homem, no meio de toda a exaltação à lógica, é também um ser estético.

“Se o campo de estudos a que você se dedica tende a enfraquecer


seus afetos, e a destruir seu gosto por tais prazeres singelos onde
nada de impuro pode se mesclar, então certamente esse campo de
2

estudos é ilícito, o que equivale a dizer inapropriado para o


espírito humano.” (Frankenstein p. 58)

Analogamente, Camus também tece suas críticas ao racionalismo exacerbado, invocando


o conceito do absurdismo. Segundo o pensador, o apelo ao lógico e à ordem num mundo
desordenado é o absurdo da existência. Ambos os autores convergem no que diz respeito ao
humano pós iluminismo, cuja busca incessante pela razão o aliena de sua própria humanidade.

De Prometeu a Sísifo:

O subtítulo da obra de Shelley - “O Prometeu Moderno” - é fundamental para sua


compreensão. Da mitologia grega, Prometeu era o titã que, junto de seu irmão Epimeteu, fora
encarregado de criar os seres vivos. Epimeteu criara então todas as criaturas e, ao conceber o
homem, lhe faltara recursos necessários para fazer desta última espécie a superior dentre todas as
demais. Prometeu acendeu, pois, sua tocha no Olimpo (uma transgressão aos olhos dos deuses) e
trouxe o fogo à humanidade, proporcionando-lhes aquilo que constituiria sua soberania. Zeus, ao
saber da infração cometida, o condenou a ser acorrentado a uma pedra, onde todos os dias um
pássaro surgia e lhe comia o fígado.
Fica evidente, pois, que a alusão a qual a autora procurava fazer em seu subtítulo era
referente ao Victor, o criador amaldiçoado como decorrência de sua própria obra:

“O sangue fluía livremente em minhas veias, mas nada era capaz


de tirar o peso do desespero e do remorso que apertavam meu
coração. O sono fugiu dos meus olhos; vagueei feito um espírito
maligno, pois cometera atos de maldade horríveis [a criação do
Monstro] além de qualquer descrição” (Frankenstein p. 93)

Não obstante, se partirmos de uma análise na perspectiva da Criatura, podemos observá-


lo sob o aspecto de outra alegoria grega. Ele apresenta uma humanidade genuína, que se
desenvolve durante sua estadia junto aos De Lacey. Primeiramente ao contemplar suas formas
físicas e seu modo de viver; ele consegue admirar a bondade dos filhos que se sacrificam
3

diariamente para cuidar de seu genitor. Em um segundo momento, ele se encanta com os sons, a
melodia proveniente do violão do pai e, acima de tudo, a comunicação, motivando-o a aprender a
língua de seus vizinhos. Finalmente, sua humanidade efetiva-se no aprendizado da leitura,
quando, nos ensinamentos de Felix a Safie, ele compreende o que é ser humano:

“Essas narrativas maravilhosas me inspiraram sentimentos


estranhos. Seria mesmo o homem tão poderoso, tão virtuoso e
magnífico , e no entanto tão cruel e primitivo?” (Frankenstein p.
122)

É também mediante à leitura quando consegue aprender mais sobre o mundo na


perspectiva de outros homens, projetando seus próprios sentimentos àqueles:

“Mal posso descrever o efeito desses livros. Produziram em mim


uma infinidade de novas imagens e sentimentos que por vezes
me levaram ao êxtase, porém o mais das vezes me faziam
afundar na mais baixa desolação. [...] Conforme eu lia, contudo,
atentei pessoalmente aos meus próprios sentimentos e à minha
condição.” (Frankenstein p. 130-131)

É quando ele consegue se entender como um humano tal qual os outros e, todavia, tão
diferente, alheio aos demais; isolado do meio que o cerca:

“Percebi-me semelhante, e no entanto ao mesmo tempo


estranhamente distinto dos seres sobre os quais eu lia, e de cujas
conversas eu era ouvinte. [...] O que isso significaria? Quem era
eu afinal? O que eu era? De onde eu viera? Qual seria meu
destino? Essas questões se tornaram recorrentes, mas eu era
incapaz de solucioná-las.” (Frankenstein p. 131)
4

O sentimento expresso nessa última passagem elucida perfeitamente o absurdo em


Camus: quando o “eu” se depara com um mundo que está além de seus propósitos, um mundo
tão imerso na razão que se esquece do sujeito desejante. O autor ilustra essa absurdez da vida na
imagem de Sísifo, o titã da mitologia grega cujo castigo era rolar uma grande pedra até o topo da
montanha, apenas para que esta retornasse ao solo e, assim, tivesse de repetir eternamente sua
árdua tarefa.
Em síntese, em ambos os casos - Prometeu e Sísifo - uma angústia se faz presente,
mesmo que de maneiras distintas. No primeiro caso, se faz presente naquilo que criou, ao passo
que, na última, em sua própria existência.

A Revolta:

Como resposta ao absurdo encarado na vida, para Camus, a única forma de suportá-lo é
através da revolta. A Criatura, se enxergando agora na imagem de Sísifo, se rebela contra o seu
criador, não só com este, mas contra si próprio e chega àquela que, segundo o filósofo, é a única
questão verdadeiramente filosófica: se deveria se matar.

“Maldito, maldito criador! Por que me deu vida? Por que


naquele mesmo instante eu não extingui a centelha da existência
que você tão injustamente me concedia?” (Frankenstein, p. 139)

Finalmente, o curso de Sísifo, enfrentado pela Criatura, consuma-se na verdadeira forma


de rebeldia que formula o autor argelino: quando, frente ao absurdo da vida, ainda assim
consegue enxergar valor nesta:

“A vida, ainda que seja apenas um acúmulo de angústias, é cara


para mim, e a defenderei” (Frankenstein, p. 102)
5

Conclusão:

A obra de Shelley perdura até os dias atuais com evidente relevância na compreensão da
realidade. Em sua interpretação romântica, identificamos Prometeu na imagem do criador.
Analogamente, por um viés existencialista absurdista, podemos reconhecer a Criatura como
Sísifo, aquele que carrega o peso do absurdo. Não obstante, ambas as compreensões acerca de
“Frankenstein” convergem no que diz respeito a sua crítica a uma sociedade inteiramente
pautada na razão, a qual distancia os humanos de sua própria humanidade.

Bibliografia:

SHELLEY, Mary; Frankenstein; 1 ed. São Paulo: Via Leitura, 2017


CAMUS, Albert; O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989
REYNOLDS, Jack; Existencialismo. Petrópolis: Vozes, 2013
MONTEIRO, Ivan Luiz; História da filosofia contemporânea; 2 ed. Curitiba, PR: Intersaberes, 2023
RODRIGUEZ II, Felipe, "The Revolting Monster - A Consideration of Existentialist Themes in Mary
Shelley's Frankenstein Through a Comparison to Albert Camus' The Stranger" (2023). Theses and
Dissertations. 198.

Você também pode gostar