José Almir Valente Costa Filho

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA

JOSÉ ALMIR VALENTE COSTA FILHO

DA PROSA DOS OBJETOS COTIDIANOS À POÉTICA DOS OBJETOS


ARTÍSTICOS: por uma estética do cotidiano

São Paulo
2016
1

JOSÉ ALMIR VALENTE COSTA FILHO

DA PROSA DOS OBJETOS COTIDIANOS À POÉTICA DOS OBJETOS


ARTÍSTICOS: por uma estética do cotidiano

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do grau de Doutor em Comunicação
e Semiótica.

Orientadora: Profª. Drª. Ana Claudia Mei


Alves de Oliveira.

São Paulo
2016
2

JOSÉ ALMIR VALENTE COSTA FILHO

DA PROSA DOS OBJETOS COTIDIANOS À POETICA DOS OBJETOS


ARTÍSTICOS: por uma estética do cotidiano

Tese de Doutorado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do grau de Doutor em Comunicação
e Semiótica.

Aprovada em _____/_____/_____

Banca Examinadora

________________________________________________________________
Profª. Dr.ª Ana Claudia Mei Alves de Oliveira (Orientadora)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

________________________________________________________________

________________________________________________________________

________________________________________________________________

________________________________________________________________
3

À memória dos meus avós Pedro e


Zuzinha;
Aos artistas Bispo do Rosário (in
memoriam), Chiquitão, Vik Muniz e o
coletivo UTA.
4

AGRADECIMENTOS

O valor da aquisição do conhecimento reside em permitir ao educador,


aperfeiçoar-se para uma melhor condução do processo educativo, que se desdobra
entre o inteligível e o sensível.
Tal é a inspiração norteadora da tese Da prosa dos objetos cotidianos à
poética dos objetos artísticos: Por uma estética do cotidiano, sob a orientação
precisa e competente da professora doutora Ana Cláudia de Oliveira, uma das
maiores especialistas em Semiótica Greimasiana no Brasil.
É de amplo conhecimento a sua inestimável contribuição para o debate
acadêmico no país, em torno de J. A. Greimas e Jean - Marie Floch. Professora Ana
Cláudia, sinto-me honrado em compartilhar de seu brilho estelar.
Agradeço igualmente aos outros especialistas - e amigos - do atelier de
Semiótica, dos quais tive sempre muito apoio: Marc Barreto Bogo, Maria Cláudia
Vidal Barcelos, Patrícia Bittencourt Rudge e em especial à Mariana Ferraz de
Albuquerque. À Anamelia Bueno Buoro, por haver evidenciado aspectos relevantes
para minha abordagem, à Alexandre Bueno, pela sua extraordinária e inestimável
contribuição, à Lincoln Dias, pelo texto concedido acerca do Tratamento da matéria
(F. Bastide).
Agradecimentos a Pablo Villavicêncio, pela sua presença constante no
decorrer deste período. À Cida Bueno, Secretária do COS, pelo carisma e pela sua
indispensável ajuda de sempre.
Aos colaboradores que não pouparam esforços para a conclusão da tese, tais
como Tarsis Aires e Lucas Viana, que empenhara o seu talento criativo na
formatação e edição final do trabalho.
Ao UTA (Urban Trash Art) nas pessoas de Rodrigo e Pado, pela elaboração
da capa contendo referências às três análises construídas em torno das obras de
Bispo do Rosário, Vik Muniz e Chiquitão. Tais artistas dão vida, forma e expressão
ao que há de mais representativo na arte contemporânea do país.
Agradecimentos Institucionais: ao IFMA - pela licença concedida para a
realização da tese; à FAPEMA - pela concessão de Bolsa de Incentivo; à PUC-SP -
local privilegiado onde transcorreu todo o processo.
Aos meus queridos mais queridos, que me trouxeram a Luz em momentos de
escuridão: à minha mãe Celeste, ao meu irmão Pedro, ao meu amigo Gastão
(Gagá), à Canjoca, minha segunda mãe, à Bianca e Mayra, amadas e lindas “crias”,
e, ao meu pai, José Almir.
Agradecimento muito especial: à cineasta Isa Albuquerque. Sou-lhe
infinitamente grato.
5

O homem é uma corda, atada entre o


animal e o além-do-homem – uma corda
sobre o abismo.
F. W. Nietzsche
6

RESUMO
Investigação das manifestações artísticas na contemporaneidade, que trazem em
suas experiências estéticas objetos construídos a partir de objetos da cotidianidade
que, por operações várias, são transformados em poéticas visuais contemporâneas.
Reflete-se sobre as mudanças estéticas no estatuto da arte que ocorreram a partir
da arte moderna e contemporânea, com o surgimento dos ready-mades de
Duchamp, passando pelas assemblages de Arman, performances e happenings do
Grupo Fluxus, até as instalações contemporâneas de El Anatsui, apreciando as
estratégias dos processos de produção, montagem/exposição e apreensão das
obras analisadas. Como corpus de análise, selecionamos Manto da apresentação
(1985) de Arthur Bispo do Rosário, Arqueologia poética (2011) de Luiz Antônio
Rodrigues – Chiquitão e Marat (Sebastião) (2009) de Vik Muniz. As obras escolhidas
se justificam, a princípio, por se destacarem pelo aspecto da originalidade. Essa
singularidade advém do fato de os artistas utilizarem materiais e objetos do uso
cotidiano como um dos elementos que formam a materialidade do arranjo plástico
das obras, em relação com outros materiais artísticos. A base teórica e metodológica
utilizada encontra-se na semiótica francesa de Algirdas Julien Greimas, com os seus
desdobramentos na semiótica plástica, nas pesquisas de Jean-Marie Floch e Ana
Claudia de Oliveira, e no trabalho sobre o “sentido sentido” em ato constituído a
partir dos regimes de interação teorizados por Eric Landowski. Na análise do corpus,
percebe-se como se dá a construção de sentido desses diferentes discursos, assim
como das interações provenientes das relações entre enunciador e enunciatário.
Assim, chega-se a: como as matérias e os materiais significam na construção
discursiva estética das obras e na condição estésica da produção do sentido que a
significa. Com essa visada semiótica sobre a matéria sensível da arte, consigamos
constituir um estudo mais aprofundado sobre as questões aqui elencadas,
percebendo que os formantes matéricos têm uma “força” especial – na criação de
discursos impactantes no destinatário e em seu contexto, engajando-os nas obras
que promovem estesias nas quais a materialidade é o desembocador que afeta,
sensibilizando o artista para os novos usos dos materiais e matérias, e
ressignificando seu uso na cotidianidade, um feito da arte produzida no Brasil em
diálogo com outras tendências da arte internacional.

Palavras-chave: Arte contemporânea. Cotidianidade. Materialidade. Semiótica


plástica. Regimes de sentido e interação. Estesia.
7

ABSTRACT
This work investigates some contemporary artistic manifestations which bring in their
aesthetic experiences objects made from items of everyday life that, through various
operations, are transformed into contemporary visual poetics. It analyses aesthetic
changes in the status of art which have occurred from modern and contemporary art
with the emergence of Duchamp's ready-mades, going through Arman's
assemblages, performances and happenings of Fluxus artists until the contemporary
installations of El Anatsui. The strategies of the processes of production,
assembly/exhibition and apprehension of those works are also brought into
appreciation. As a corpus of analysis, three works were selected: Manto da
apresentação (Mantle of Presentation) (1985) by Arthur Bispo do Rosário,
Arqueologia poética (Poetic Archeology) (2011) by Luiz Antônio Rodrigues -
Chiquitão and Marat (Sebastião) (2009) by Vik Muniz. Fundamentally, the choice of
these works was based on their original aspect. Their singularity comes from the fact
that those artists use materials and objects of daily use as one of the elements that
constitute the materiality of the aesthetic arrangement of their works, in relation to
other art materials. The theoretical and methodological basis of this work is found in
the French semiotics of Algirdas Julien Greimas, with its developments in Plastic
semiotics, in the researches of Jean-Marie Floch and Ana Claudia de Oliveira, as
well as in the works of Eric Landowski about the “sense felt" in constituting acts
produced from interaction regimes. Throughout the analysis of the corpus, it can be
noticed how is produced the construction of meaning concerning these different
discourses, as well as of the interactions coming from the relationship between
enunciator and enunciatee. Thus, it is demonstrated, at this point, how matter and
materials mean in the aesthetic discursive construction of the works and in the
aesthesia condition of the production of the sense that gives meaning to it. The focus
of the semiotic on the sensitive matter of art, makes it possible to establish a more in-
depth study of the issues listed here. It can be better realized that the formants of
matter have a special "force" - during the creation of high impact discourses towards
the art spectators and, in their context, being able to engage them in the works that
promote aesthesia and which materiality is the outlet that affects them. This
sensitizes the artists to the new uses of matter and materials, re-signifying their use
in everyday life, an achievement of the art produced in Brazil in dialogue with other
international artistic trends.

Keywords: Contemporary art. Daily life. Materiality. Plastic semiotics. Regimes of


meaning and interaction. Aesthesia.
8

LISTA DE ESQUEMAS

Esquema 1 – Percurso gerativo de sentido................................................. 25


Esquema 2 – Sequência do programa de transformação da matéria na
realização da receita de sopa de pesto................................. 69
Esquema 3 – Operações de transformação da matéria na produção da
obra Pimp my carroça............................................................ 70
Esquema 4 – História das Artes Plásticas/Visuais ocidental: da pedra ao
pixel......................................................................................... 76
Esquema 5 – História das Artes Plásticas no Brasil..................................... 77
Esquema 6 – História dos materiais de uso nas Artes
Plásticas/Visuais..................................................................... 78
Esquema 7a– Diagrama da dimensão eidética (2016).................................. 93
Esquema 7b – Diagrama da dimensão eidética (2016) ................................ 94
Esquema 8a – Diagrama da dimensão cromático (2016) .............................. 95
Esquema 8b – Diagrama da dimensão cromático (2016) ............................. 95
Esquema 9a – Diagrama da dimensão matérico (2016) ............................... 97
Esquema 9b – Diagrama da dimensão matérico (2016) ............................... 97
Esquema 10a – Diagrama do Manto no corpo (2016) ..................................... 99
Esquema 10b – Diagrama da dimensão topológica (2016) ............................. 100
Esquema 11 – Quadro dos formantes e das categorias do plano da
expressão do Manto da apresentação.................................... 102
Esquema 12 – Tipologia das relações do corpo vestido................................. 106
Esquema 13 – Corte esquemático sem escala do casarão colonial do séc.
XVIII........................................................................................ 116
Esquema 14 – Tipologias das reescrituras..................................................... 188
Esquema 15 – Quadrado semiótico dos regimes de interação de Eric
Landowski (2014) e das interações discursivas de Ana
Claudia de Oliveira (2013) ..................................................... 194
Esquema 16 – A experiência estética vivida pelo sujeito criador na
cotidianidade, 2016................................................................. 199
Esquema 17 – Os diferentes tipos de procedimentos da utilização dos
materiais e dos objetos de uso cotidiano nas configurações
plásticas das obras e dos seus respectivos
reconhecimentos..................................................................... 204
Esquema 18 – Processo de transformação da matéria no Manto da
apresentação........................................................................... 205
Esquema 19 – Processo de transformação da matéria em Arqueologia
poética..................................................................................... 205
Esquema 20 – Processo de transformação da matéria em Marat
(Sebastião)............................................................................. 206
9

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – A guitarra (1913) de Pablo Picasso.................................................... 45


Figura 2 – A fonte (1917) de Marcel Duchamp.................................................... 46
Figura 3 – Telefone lagosta (1936) de Salvador Dali.......................................... 47
Figura 4 – Merzbau (1923-1933) de Kurt Schwitters.......................................... 48
Figura 5 – Relevo de canto (1915) de Vladimir Tatlin......................................... 49
Figura 6 – One and Three chairs (1965) de Joshua Kosuth................................ 53
Figura 7 – Parangolés (1964-1979) de Hélio Oiticica…………………………...... 58
Figura 8 – Tropicália: PN2 (Imagética) e PN3 (A pureza é um mito) (1966-
1967) de Hélio Oiticica....................................................................... 59
Figura 9 – Três continentes (2009) de El Anatsui............................................... 62
Figura 10 – My city (2014) de Song Dong………………………………………….. 63
Figura 11 – Pimp my carroça (2012) do grupo Urban Trash Art……………….... 67
Figura12 – Manto da Apresentação (1939 – 1989) de Arthur Bispo do Rosário. 79
Figura 13 – Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por
Walter Firmo.................................................................................... 81
Figura 14 – Manto da apresentação (1939 – 1989) de Arthur Bispo do Rosário. 83
Figura 15 – Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário.... 84
Figura 16a – Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário.. 84
Figura 16b – Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário.. 85
Figura 17 – Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por
Walter Firmo.................................................................................... 89
Figura 18 – Bispo com a primeira versão do Manto da Apresentação................ 90
Figura 19 – Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por
Walter Firmo................................................................................... 91
Figura 20 – Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por
Walter Firmo...................................................................................... 105
Figura 21 – Série das chaves de Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão 107
Figura 22 – Casarão colonial do século XVIII...................................................... 108
Figura 23 – Entrada do casarão colonial do século XVIII.................................... 109
Figura 24 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 110
Figura 25 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 111
Figura 26 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 112
Figura 27 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 113
Figura 28 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 114
Figura 29 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 115
Figura 30 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 117
Figura 31 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.................................. 118
Figura 32 – Série Chaves: Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.......... 120
Figura 33 – Série Chaves: Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.......... 120
Figura 34 – Série Chaves: Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão.......... 121
Figura 35 – Marat (Sebastião), 2008, de Vik Muniz............................................. 126
Figura 36 – Antigo aterro de Jardim Gramacho em 2009.................................... 127
Figura 37 – Marat (Sebastião), 2008, de Vik Muniz............................................. 129
Figura 38 – Detalhe da assemblage da obra de Vik Muniz................................. 131
Figura 39 – Cristo Redentor, em 2011................................................................. 136
Figura 40 – Homem vitruviano, 1490, Leonardo D`Vinci..................................... 138
Figura 41a e 41b - Tetraktys e Pentragrama....................................................... 139
10

Figura 42 – Parangolés (1962) de Hélio Oiticica.................................................. 140


Figura 43 – Bispo vestindo um dos Fardões e em mãos com um dos
Estandartes................................................................................... 141
Figura 44 – A experiência nº 03 (1956) de Flavio de Carvalho............................ 144
Figura 45 – Parangolés (1960) de Hélio Oiticica.................................................. 144
Figura 46 – Bispo do Rosário e a primeira versão do Manto da apresentação... 145
Figura 47 – O Manto da apresentação como intertexto global de sua própria
obra................................................................................................. 147
Figura 48 – O Manto da apresentação como intertexto global de sua própria
obra................................................................................................. 147
Figura 49 – Merzbau (1919-1933) de Schwitters................................................. 152
Figura 50 – Arqueologia poética de Chiquitão..................................................... 152
Figura 51 – Assemblage (1971) de Arman.......................................................... 153
Figura 52 – Arqueologia poética de Chiquitão..................................................... 154
Figura 53 – Arqueologia poética (2013) de Chiquitão.......................................... 155
Figura 54 – Arqueologia poética (2013) de Chiquitão.......................................... 156
Figura 55 – Gabinete de curiosidade................................................................... 158
Figura 56 – A morte de Marat, 1793, de J. L. David............................................ 163
Figura 57 – Fotografia de Sebastião Carlos dos Santos, por Vik Muniz.............. 166
Figura 58 – Detalhe da obra Marat (Sebastião)................................................... 167
Figura 59 – Detalhe da obra Marat (Sebastião)................................................... 168
Figura 60a – Atlas (Carlão) de Vik Muniz............................................................. 170
Figura 60b – Atlas (Carlão) de Vik Muniz............................................................. 170
Figura 61 – Estação Sumaré (1998) de Alex Flemming...................................... 172
Figura 62 – Arqueologia poética de Chiquitão..................................................... 176
Figura 63 – Placa de tombamento do projeto: Museu Aberto: Cidade Viva........ 177
Figura 64 – Arqueologia Poética de Chiquitão instalada no interior do casarão
colonial.............................................................................................. 177
Figura 65 – Detalhe da obra Marat (Sebastião) de Vik Muniz............................. 179
Figura 66 – Fotografia de Vik Muniz do aterro de Jardim Gramacho.................. 180
Figura 67 – Fechamento do aterro sanitário de Jardim Gramacho...................... 181
Figura 68 – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea................................. 182
Figura 69 – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea................................. 182
Figura 70 – Painel do Circuito Cultural Colônia................................................... 184
Figura 71 – Fotografia de Sebastião e Vik Muniz no ato de realização do
Projeto Lixo extraordinário, em 2009.............................................. 185
Figura 72 – Tião: do lixão ao Oscar de Sebastião Santos................................... 186
Figura 73 – Bispo vestindo o Manto e interagindo com outras obras.................. 192
11

SUMÁRIO

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................. 12
1.1 Fundamentação teórica: semiótica discursiva....................................... 23
1.2 Estrutura da pesquisa........................................................................... 34
2 AS MATÉRIAS DO COTIDIANO COMO MATERIALIDADE
SIGNIFICANTE NAS ARTES PLÁSTICAS............................................. 37
2.1 As semioses matéricas: arte a partir da cotidianidade.......................... 38
2.2 Os procedimentos enunciativos na apropriação das matérias e
materiais do cotidiano........................................................................... 64
2.3 Os materiais de uso nas artes plásticas/visuais................................. 74
3 A ANÁLISE DOS MATERIAIS E DAS MATÉRIAS NA
CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DOS DISCURSOS VISUAIS
POÉTICOS............................................................................................... 79
3.1 Manto da apresentação de Arthur Bispo do Rosário......................... 79
3.2 Arqueologia poética de Luís Antônio Rodrigues
(Chiquitão).............................................................................................. 107
3.3 Marat (Sebastião) de Vik Muniz............................................................ 125
4 INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E
INTERSEMIOTICIDADE: REESCRITURAS, INTERAÇÕES E
ESTESIAS NAS ARTES PLÁSTICAS/VISUAIS CONTEMPORÂNEAS 135
4.1 Intertextualidade, interdiscursividade e intersemioticidade nas
obras de Bispo do Rosário, Chiquitão e Vik Muniz ........................... 135
4.1.1 Manto da apresentação .......................................................................... 135
4.1.2 Arqueologia poética ................................................................................ 151
4.1.3 Marat (Sebastião) ................................................................................... 163
4.2 Reescrituras de espaços urbanos: nova função e novos usos pela
arte contemporânea................................................................................. 174
4.3 Regimes de interação e estesias nas artes plásticas/visuais
contemporâneas.................................................................................... 188
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 195
REFERÊNCIAS........................................................................................ 209
APÊNDICES........................................................................................... 215
12

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

A sugestão de F. Thürlemann de que “a prosa


do mundo é transformada por Klee em poesia”,
deixando de ser uma metáfora, mostra, pelo
contrário, a verdadeira parada em que aposta a
semiótica [...].

Algirdas Julien Greimas (2004, p. 95)

Nosso ponto de partida e referência da presente pesquisa são as obras de


Arthur Bispo do Rosário (1909/11–1989), que constituíram o tema principal da
dissertação de Mestrado Arthur Bispo do Rosário: uma poética em processo,
(COSTA FILHO, 2007). Com a orientação do profº Dr Vicente Martinez, a
dissertação foi realizada no Instituto de Artes da Universidade de Brasília, seguindo
a linha de pesquisa voltada para as poéticas contemporâneas. Tal estudo tomou
como referência a exposição Registros de Minha Passagem pela Terra, do Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1990. Além da reflexão
acerca das artes plásticas e visuais no modernismo e na contemporaneidade, o
conjunto das obras de Bispo do Rosário foi analisado a partir dos seus processos de
produção e de sua inserção no cenário da Arte Contemporânea.
Nessa pesquisa destacamos o caráter processual e poético do seu trabalho,
um processo estético, que transita da instância do cotidiano para chegar à condição
de arte, e que é observado em vários momentos da Arte Moderna e principalmente
da Arte Contemporânea, tais como o ready-made dadaísta de Marcel Duchamp, o
papier collé cubista de Pablo Picasso, o objet trouvé surrealista de Salvador Dali, a
architecture-collé, “instalação” de Kurt Schwitters e as assemblages no novo
realismo de Arman Fernandez, entre outros. No caso da architecture-collé de
Schwitters, intitulado Merzbau (1923-1933), temos uma experiência estética que se
constitui a partir da cotidianidade, com a obra instalada no interior da residência do
próprio artista e em constante processo de transformação/expansão, no seu devir.
São colagens que o artista realizava a partir de uma ação cotidiana de coletar nas
ruas materiais enquanto matéria-prima, que é transformada em uma ação estética
na produção de sua obra. Essa experiência estética criava um ambiente similar aos
das instalações contemporâneas, mas o termo somente foi incorporado às artes
plásticas a partir da década de 1960, caracterizada pela composição de objetos
(assemblage) ou de ambientes (environment) no espaço (interno ou externo) da
13

galeria/museu, utilizando-se de diversos meios e materiais para produzir uma obra


de arte interativa com o público.
Quando tratamos da expressão “experiência estética”, falamos de um modo
de vivência ou de experimentação do objeto artístico, construído pelo sujeito criador
(destinador) para o sujeito fruidor da obra (destinatário). A característica específica
de um vivido está marcada pelo adjetivo, “estética”; é como aborda a crítica de arte
Anne Cauquelin, esse atributo pode qualificar “[...] comportamentos que parecem ter
alguma coisa em comum como os atributos conferidos à atividade artística: a
harmonia, a gratuidade, o prazer [...]” (CAUQUELIN, 2005, p. 16). No entanto, o
mesmo caráter pode se estender a outros modos de experiências, como o
historiador da arte Giulio Carlo Argan afirma: “Em toda a história da civilização, a
experiência estética constitui um componente necessário da experiência global”
(ARGAN, 1992, p. 509). O que colocaria essa experiência no âmbito de toda e
qualquer vivência humana.
Essa experiência estética mediada pela cotidianidade, observada na criação
de Schwitters, assim como na obra de Bispo, faz com que esses trabalhos se
aproximem pelos efeitos de sentidos produzidos nos destinatários em suas
construções. Ambos coletam e produzem com resíduos descartados, em desuso na
sociedade, para então passar por um processo de reescritura desses objetos, a
partir de uma operação de reuso. Em posse de tais elementos coletados e sem um
projeto inicial prévio para eles, observamos que, no processo de produção das suas
obras, tanto Bispo quanto Schwitters assumiram características muito próximas do
fazer do bricoleur de Claude Lévi-Strauss (1989), teorizado no livro Pensamento
selvagem. Inicialmente o autor identifica o termo bricolage como uma possível
ciência “primeira” (para não usar “primitiva”); o verbo bricoler, ao fazer que “se aplica
ao jogo de péla e de bilhar, à caça e à equitação, mas sempre para invocar um
movimento incidental” e, por fim, ao caracterizado bricoleur, que é definido como “[...]
o que trabalha com as mãos, usando meios indiretos se comparados com os do
artista.” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 37). O fazer bricoleur caracteriza como esse criar
é um explicar o mundo a partir de um pensamento mítico que se expressa por meio
da bricolagem, como explica Lévi-Strauss:
14

[...] o próprio do pensamento mítico é exprimir-se com o auxílio de um


repertório cuja composição é heteróclita e que, apesar de extenso,
permanece, não obstante, limitado; é preciso, todavia, que dele se sirva,
qualquer que seja a tarefa a que se proponha, porque não tem mais nada a
seu alcance. Aparece, assim, como uma espécie de bricolage intelectual, o
que explica as relações que se observam entre ambos. (LÉVI-STRAUSS,
1989, p. 37-38).

No caso do bricoleur Bispo, ele constrói sua narrativa visual na qual cada
elemento representa um conjunto de relações concretas e virtuais, de maneira a
estruturar o seu pensamento mítico enquanto explicação do mundo. Este modo de
pensar o mundo representa o pensamento “selvagem”, não do “selvagem” ou do
“primitivo”, mas aquele pensamento primeiro que é liberto das convenções,
construído a partir da potência criativa do artista ao realizar sua bricolagem com os
elementos materiais e matéricos de sua cotidianidade, que põe em relação aos
demais elementos da arte, articulados por procedimentos tradicionais e novos
compondo a obra.
Se essa obra existe em um tempo da contemporaneidade, ela também existe
em um dado espaço correlato. Em Poética do espaço, Gaston Bachelard (1988, p.
196) cita o poeta Noël Arnaud, que diz: “Sou o espaço onde estou”. O verso
fenomenológico nos leva a pensar outro aspecto importante das obras citadas de
Bispo e Schwitters, que é a efetiva participação do corpo na apreensão do sentido.
Como também observa Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, o corpo é utilizado
para superar a distância teórica entre o sujeito e o objeto, na qual o sujeito
compreende o mundo na medida em que o mundo compreende o sujeito; ele é
observador e observado ao mesmo tempo, “[...] e o mundo é feito do próprio estofo
do corpo.” (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 51). O autor chama atenção para uma nova
forma a partir da qual o artista interage com a sua obra – um envolvimento mútuo
entre o vidente e o visível, de quem toca (tocante) e é tocado. Temos, então, uma
integração entre artista, obra e mundo que se fundem em um só: “[…] o mundo
visível e o mundo dos meus projetos motores são partes totais do mesmo ser.”
(MERLEAU-PONTY,1989, p. 50).
Nesta integração entre artista, obra e mundo, o corpo é movido pela estesia –
“[…] percepção, através dos sentidos, do mundo exterior; faculdade que possibilita a
experiência do prazer (ou do seu contrário), assim como de todas as ‘paixões’ –
aquelas da ‘alma’ e também as físicas, do corpo, da ‘sensualidade” (OLIVEIRA,
1995, p. 231). Assim sendo, através de acidentes e fraturas, como afirma Greimas
15

(2002), em Da imperfeição, que rompem com a an-estesia da mais banal de nossas


experiências cotidianas, somos levados a um tempo e a um espaço outro,
reconfigurados sob forma poética pela obra do criador, que tanto pode ser
arrebatador quanto fracionado em cotas (“escapatórias”) que fazem sentir os
arranjos cotidianos (OLIVEIRA, 2002a).
Podemos observar a presença da arte na vida cotidiana humana ao longo da
história das artes plásticas ocidentais, a exemplo da pintura rupestre, das “Vênus
esteatopígicas” ou das ânforas gregas; apesar destas obras não terem sido
produzidas especificamente com a intencionalidade ou finalidade artística em suas
épocas, não obstante, estão na atualidade legitimadas nos museus/galerias como
objetos de arte. Que em cada arranjo há um componente estético regedor do modo
de articulação dos elementos configurados é um postulado da teoria semiótica de
Algirdas Julien Greimas, e pode-se depreender que, no caso das manifestações
parietais e de outros objetos, é esse componente que, em outro tempo, faz os valore
estéticos suplantarem os valores práticos. Pode-se aferir que, a partir das diversas
formas de institucionalização da arte com o surgimento das primeiras coleções
particulares, as academias de arte, etc., mesmo com a devida importância no
processo de legitimação da arte, consolidou-se uma gradativa separação da arte do
seu lócus de origem, ou seja, o da vida cotidiana A categorização da arte em arte
erudita versus arte popular ou arte “maior” versus arte “menor” é um exemplo que
pode evidenciar tal distanciamento.
A manifestação da arte é inerente à vida social e cultural do homem, tem sua
existência antes mesmo de um conceito ou de uma teoria que a defina ou a
caracterize enquanto linguagem artística. A definição de téchne dos gregos antigos
não corresponde ao que entendemos por arte nos dias atuais. No entanto,
independentemente do estatuto de arte, certos artefatos criados pelas mãos
humanas possuem algo em comum – são concretizações de experiências motivadas
por uma intencionalidade estética, que nos sensibiliza, dentre outras coisas, pelo
fato de ser belo, ainda que possa ser sancionado como arte. A partir desse
pressuposto, conjugamos com a ideia do filosofo da arte Jean-Marie Schaeffer,
segundo o qual: “[...] a noção de recepção estética é perfeitamente independe do
estatuto do objeto contemplado” (SCHAEFFER, 2004, p. 62).
Schaeffer, em A noção de obra de arte (2004), trata dos aspectos semânticos
(“pluralidade semântica”) que repousam sobre a noção de obra de arte afirmando
16

que, nos nossos dias, ela não pode ser definida por um único traço (mesmo que seja
o estético), mas sim, por uma “noção composta” (cluster concept) advinda de uma
“sedimentação histórica complexa”, ainda que os fatores que a determinam “[...] se
modelem em realidade sobre o paradigma de uma era cultural, de uma época, ou de
uma arte (ainda que de maneira mais geral de um meio semiótico) particulares.”
(SCHAEFFER, 2004, p. 57).
Segundo o autor, quando aborda a origem do objeto etiquetado, a obra de
arte é um produto criado e construído pelo homem e não um evento natural,
podendo, assim, estar ligada tanto a uma intenção estética como a uma intenção
artística. Define provisoriamente a intenção estética como: “a vontade de criar
qualquer coisa cuja reativação receptiva ocasiona uma experiência satisfatória”; e a
intenção artística como: “a vontade de criar qualquer coisa que seja realizada com
sucesso em relação a um ideal operatório técnico que se propõe” (SCHAEFFER,
2004, p. 62). Outro aspecto abordado por Schaeffer concerne à visão da obra de
arte em uma perspectiva semiótica, pois a mesma já possui uma estrutura
intencional (“está sempre ‘a propósito de’ alguma coisa”) e um funcionamento
semiótico específico (estrutura semiótica artística), ou seja, a estrutura artística
refere-se aos seus próprios traços (auto-referencialidade). Continua o autor:

[...] todos os objetos naturais e a fortiori os artefatos participam de uma


Lebenswelt, de um mundo construído sócio e historicamente pelos homens,
não existem mais “simples objetos” e como também não existe mais visão
inocente. [...] as obras de arte como também os artefatos não-artísticos são
de nascença objetos intencionais, enquanto os objetos naturais o são
unicamente em razão de sua integração no mundo humano estruturado
simbolicamente. (SCHAEFFER, 2004, p. 63).

Essas questões levantadas por Schaeffer são importantes ao observarmos o


processo de produção da obra de Bispo a partir da cotidianidade, com a utilização
de materiais e de objetos do cotidiano da Colônia Juliano Moreira. Isso mostra que
não há uma “visão inocente” até por detrás dos mais “simples objetos” do mundo,
estes são “objetos intencionais” construídos a partir de um determinado contexto
social e histórico. Os materiais e matérias do cotidiano realocados em novas funções
estéticas na obra de Bispo trazem um valor prático e um investimento semântico,
atribuídos anteriormente. É relevante também notar que, em relação a essa
produção, a princípio parece haver uma distância de qualquer modelo operatório
conceitual ou teórico da arte (“intenção artística”), no entanto, seu legado de objetos
produzidos artesanalmente nos conduz a uma experiência estética (“intenção
17

estética”). Ainda assim, a obra de Bispo pode ser tomada enquanto produção
artística nos moldes da realizada contemporaneamente no Brasil, que tem sua
origem ou emana de uma Lebenswelt 1 . Essas experiências e/ou processos
estéticos, que surgem a partir de ações na cotidianidade, são constituídas muitas
vezes para além dos meios formais e institucionais da arte, partindo da pulsão
criativa, advinda da condição humana do artista, em conjuminância com seus modos
de vida e o entorno, e com os elementos por eles oferecidos como fundamentos
criativos de uma estética, que se configuram nos moldes das poéticas
contemporâneas.
Referimo-nos às poéticas contemporâneas como as produções artísticas
atuais realizadas a partir dos anos 60 do século passado, que ampliaram o campo
das artes para novos “horizontes” conceituais e contextuais, e com as quais,
segundo Argan, os artistas passaram a transformar suas “técnicas de
representação” em “técnicas de pesquisa” (ARGAN, 1992, p. 516). O crítico e
escritor de arte Michael Archer aponta essa “ampliação”, a partir dos movimentos
artísticos da Pop Art, do Minimalismo e das tendências pós-minimalistas que
advieram, como a Arte Conceitual, Performance, Body Art, Land e Earth Art, etc.
Segundo Archer, o significado das obras pertencentes a esses movimentos artísticos
está além do que está contido nelas, e muitas vezes trazem o aspecto contextual no
qual passam a existir, o que faz que: “Uma apreciação renovada da relação entre a
arte e a vida cotidiana [ponha] em conexão as obras aparentemente muito diversas
associadas ao Pop e ao Minimalismo.” (ARCHER, 2001, p. X).
A presença constante desta relação que se estabelece entre a arte e o
cotidiano nas poéticas contemporâneas acentua a sua “pluralidade semântica”, à
qual nos referimos há pouco em Schaeffer. Essa “noção composta” da arte que é
também determinada por fatores externos a ela, é a marcada produção artística
atual, que se efetivou a partir das próprias mudanças ocorridas no estatuto da arte
no decorrer do Século XX com a Arte Moderna, e principalmente com a Arte
Contemporânea. Algumas constatações podem ser observadas: a incorporação de
novos materiais e suportes nas obras; o rompimento gradativo com a moldura

1
Na obra A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, Edmundo Husserl
aborda o conceito de Lebenswelt (mundo da vida) principalmente na parte III nos parágrafos 28, 29,
33, 34, 44, e 51. O autor entende o conceito como o mundo circundante cotidiano onde
conscientemente todos existimos. Considerado um domínio de evidências, o “solo” universal da vida
humana funcionando “[…] em todo pensar, em todo viver e, por isso, que está em toda parte [...]”
(HUSSERL, 2012, p. 91).
18

espacial do quadro de cavalete; a participação/presença cada vez maior do


espectador no processo de produção de sentido da obra; a “apropriação” pelos
artistas de espaços (expositivos) para além dos limites dos museus/galerias de
artes, etc. Mediante tais mudanças, a arte contemporânea (re)aproxima a arte da
vida cotidiana (mundo da vida), assim como comenta o crítico de arte Alberto
Tassinari: “Uma obra contemporânea não transforma o mundo em arte, mas ao
contrário, solicita o espaço do mundo em comum para nele se instaurar como arte.”
(TASSINARI, 2001, p. 76).
O destaque que damos à arte contemporânea se especifica ainda mais na
arte a partir da cotidianidade, o que nos conduz ao que passamos a chamar de
“estética do cotidiano” na produção artística contemporânea, isto é, uma
aproximação ou uma reciprocidade entre dois contextos díspares, o mundo da arte e
o mundo da vida do cotidiano; sendo assim, uma realização por meio da experiência
estética que incorpora valores sociais, políticos, éticos, etc., do local no qual se
originou. É neste panorama que circunscrevemos nosso objeto de estudo: as artes
plásticas contemporâneas produzidas no Brasil que, por meio de seus processos
criativos elevam objetos do cotidiano a objetos artísticos, que vão entrar nas obras
que vão produzir uma experiência estética.
A problemática da presente pesquisa refere-se aos materiais e objetos do uso
cotidiano que são deslocados de seus usos comuns (funções práticas) para
adquirem novos usos (funções estéticas), que os artistas utilizam na construção de
suas obras. Vamos tomar essas escolhas do enunciador enquanto “tática” artística
enunciativa de produção de sentido dos enunciados da arte contemporânea
produzida no Brasil, como no caso de Bispo em relação à própria arte
contemporânea. Para tal, observa-se e analisa-se em que medida, nos efeitos de
sentido produzidos por essas obras, a materialidade se destaca como um dos
formantes mais significantes da construção discursiva que, articulada aos demais
formantes no plano de expressão faz apreender estesicamente a composição
estética. A processualidade da composição emerge da interação com a obra e a
transformação de uso das matérias cotidianas enquanto formantes plásticos com
arranjos estéticos da composição. Assim, a partir dessa problematização, questiona-
se: o que e como as matérias e os materiais significam na construção estética das
obras e na condição estésica da produção do sentido que as significam?
19

Para esse estudo vamos relacionar obras de arte que possuem algo em
comum na sua construção, que levam a um tipo de produção de efeitos de sentido
criados por meio do qual as materialidades e as próprias qualidades matéricas
entram na constituição dos formantes dessas obras como constituintes do sentido.
Em face desse problema, partimos das seguintes hipóteses: (1) os materiais e
objetos coletados do contexto social passam por procedimentos de reuso nas obras
e vão atuar enquanto formantes matéricos; (2) em articulação aos formantes
eidéticos e cromáticos, esse formante matérico exerce papéis na configuração
plástica da figuratividade; (3) a figuratividade como operação de tradução de
mundos em mundos de linguagem, ao ter entre os formantes matérias e materiais do
mundo, que passa a estruturar o sentido; (4) essa inusitada escolha enunciativa
repercute no enunciado; (5) os formantes matéricos têm papel narrativo no fazer
fazer e no fazer sentir os efeitos de sentido; (6) em uma operação de reuso de
materiais e objetos do mundo enquanto plástica, pelos mecanismos enunciativos,
esses têm modificada sua função prática assumindo uma função
estética/mítica/simbólica; (7) esse uso conhecido dos materiais faz com que o
enunciatário os reconheça em seu reuso estético, o que sensibiliza o sujeito a
participar da construção de sentido e apreender o discurso enunciado; (8) a
produção de sentido da obra promove um fazer junto ao sentido pelas descobertas
indicativas da experiência estética vivida; (9) essa experiência é sentida no e pelo
corpo e, estesicamente, processa o sentido sentindo-o; (10) esses encontros
estésicos pela estesia transformam o sujeito, mostrando um descobrir que coloca ao
alcance de todos a opção de assumir novos comprometimentos com a vida.
Concretizado o objeto de estudo e as hipóteses a serem testadas
selecionamos o corpus de análise dessa tese: Manto da Apresentação (1985) de
Arthur Bispo do Rosário; Arqueologia Poética (2011) de Luiz Antônio Rodrigues –
Chiquitão e Marat: Sebastião (2009) de Vik Muniz. As obras escolhidas se justificam
a princípio, por se destacarem pelo aspecto da originalidade, pois elas instauram os
dispositivos de sua própria criação artística, ao mesmo tempo em que estabelecem
uma relação dialógica com o seu contexto situacional. Tanto dessa singularidade
advém do fato de os artistas utilizarem materiais e objetos do uso cotidiano como um
dos elementos que formam a materialidade do arranjo plástico das obras, em
relação com outros materiais artísticos. Ainda há casos em que essas construções
são alçadas no ambiente mesmo do cotidiano que participa de sua produção de
20

sentido. Daí, podemos aprender as inversões de reuso e as pluralidades semânticas


que as obras produzem com a sua materialidade e nas circunstâncias delas
advindas, fazendo com que essas se tornem um modo de presença no mundo
cotidiano de onde provêm – nos chamando a atenção para as suas qualidades
matéricas e para os efeitos de sentidos destas depreendidos, que as tornam visíveis
como uma presença corpórea que é significante.
Além do mais, as obras escolhidas vão nos permitir um maior aprofundamento
das questões propostas pela presente pesquisa que, iluminadas pela teoria
semiótica, em especial a semiótica plástica, pode permitir descobrir a força especial
dos elementos do mundo como materiais e matérias, tornados com os
procedimentos de reuso um dos formantes, denominado formante matérico, que em
articulação com os outros formantes, estrutura a materialidade da manifestação dos
conteúdos. Esses tipos de arranjos promovem no destinatário tipos de interação que
desarticulam os usos convencionais e, pelas qualidades sensíveis sentidas
estesicamente, levam à descoberta do sentido sentido com força requalificante do
mundo, do sujeito, do existir.
O corpus de análise que selecionamos é composto por objetos, assemblages,
montagens, instalações, etc., de artistas/artesãos/bricoleurs. Vamos considerar
como referência e ponto de partida a obra de Arthur Bispo do Rosário montada na
Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro, mais enfaticamente, o seu Manto da
Apresentação. Comporá também o corpus a instalação Arqueologia Poética,
montada em um casarão colonial do século XVIII na cidade de Ouro Preto (MG), do
artista-artesão-restaurador Luiz Antônio Rodrigues – Chiquitão, como é
popularmente conhecido, e a obra Marat (Sebastião) de Vik Muniz, da série Retratos
do lixo realizado durante o Projeto Lixo Extraordinário, no aterro sanitário Jardim
Gramacho no Rio de Janeiro. Esses artistas criadores utilizam-se do procedimento
de “apropriação”2 de materiais e objetos do uso cotidiano, que por sua vez vão entrar
como um dos elementos formantes da materialidade do arranjo plástico.
Consideramos essa escolha como uma espécie de tática do sentido.
O termo “tática” é empregado por Michel de Certeau, em seu livro A invenção
do cotidiano, ao considerar certas “práticas” cotidianas, que se estabelecem no

2 Esse termo é usado pela teoria da arte contemporânea para designar a utilização de materiais e
objetos comuns (não artísticos) pelos artistas, que podem ser observados, a princípio, nas colagens
cubistas de Pablo Picasso e nos ready-made de Marcel Duchamp.
21

âmbito do social, tais como: ler, conversar, habitar, “arte da sucata”, etc., como
“maneiras de fazer” dos usuários. Essas “práticas cotidianas” são tomadas pelo
autor como táticas que se articulam sobre o espaço cotidiano. Deste modo,
propomos adotar a partir desse conceito, o de “táticas” artísticas, para designar a
ação criativa dos artistas, que se utilizam da “apropriação”, tanto das matérias do
cotidiano quanto do seu próprio espaço do mundo, para atribuir a uma parte da
materialidade significante a produção de sentido dos discursos das obras.
No referido recorte das obras selecionadas que propomos investigar, elas
dialogam entre si pelas marcas do seu fazer, pelo sincretismo de linguagens que
entram na concepção e criam uma rede de conexões de sentidos produzidos por
processos de intertextualidade. Entendem-se esses processos intertextuais
instaurados nas obras a partir de sua relação com a cultura e de suas condições
sócio-históricas de produção e de recepção. Para tal, faz-se importante analisar o
processo de produção, os valores estéticos e éticos envolvidos no ato da criação e
os diversos efeitos de sentido da “estética do cotidiano”, no âmbito da cultura e da
arte contemporânea.
A semioticista Ana Claudia de Oliveira, em Semiótica plástica (2004), observa
que a arte fornece à semiótica com o seu universo sensível um corpus para análise
da organização interna de suas manifestações textuais. Entretanto, ressalta a
autora, a estratégia de tomar um texto para análise, e a partir do resultado desse
estudo fazer generalizações mais amplas, apresenta inúmeras dificuldades em
relação à sua aplicabilidade aos estudos da significação no domínio das linguagens
artísticas, tornando-se necessária a busca por instrumentos próprios à semiótica
plástica ou visual.
A relação do homem com o ambiente é mediada pelo trabalho; entre os
homens, pela linguagem. Do processo humano de socialização participa a
necessidade de registro, para o que se criam, intelectivamente, símbolos que
permitam que a simples passagem, o conhecimento adquirido, a experiência vivida e
a invenção possam ser divididas com outras gerações que lhe sucederão ou com
outros grupos coexistentes em ambientes distintos em um determinado período
histórico.
Os modos de expressão utilizados pelo homem ao longo do tempo para
contar a sua história foram muitos: das pinturas rupestres à informática (da pedra ao
pixel). Todos os modos de registro usaram as mais variadas linguagens e mais de
22

uma em articulação. Podemos dizer que a relação entre cultura e linguagem é uma
relação dialética na medida em que a cultura se manifesta pelo uso da linguagem ao
mesmo tempo em que a linguagem e seus usos, como o da arte – é produto da
cultura.
O télos da linguagem é a comunicação. Comunicar significa tornar comum,
para o qual a interação é imprescindível. Como produto cultural, a linguagem se
desenvolve no ritmo em que se desenvolve a própria humanidade. O rompimento de
fronteiras proporcionado pela globalização acelerou esse processo de
desenvolvimento e as mudanças que acontecem nos usos da língua e da linguagem
artística são apenas exemplos das transformações oriundas do contato entre
culturas e seres.
Em Pintura e Sociedade, Pierre Francastel (1990) comenta sobre a
necessidade de estudar as obras de arte enquanto sistemas de signos os quais não
são somente puro símbolos, mas verdadeiros objetos necessários à vida dos grupos
sociais. A partir destas obras, podemos examinar os mecanismos individual e social
que as tornaram legíveis e eficazes: “Uma obra de arte é um meio de expressão e
de comunicação dos sentimentos ou do pensamento.” (FRANCASTEL, 1990, p. 2).
Nessa relação dialética entre a linguagem e a cultura, entre o individual e o
coletivo (social), entre a expressão e a comunicação, situa-se nosso objeto de
estudo, advindo de processos e de experiências estéticas. Através da arte como
expressão pessoal, torna-se possível a visualização de quem somos, de onde
estamos e de como sentimos. Como expressão da cultura, temos uma identificação
com essa manifestação cultural que nos capacita a não nos sentirmos estranhos em
nosso próprio ambiente, e que permite ao indivíduo analisar a realidade percebida e
desenvolver a criatividade de maneira a intervir na realidade que foi analisada,
transformando-a.
A arte se tornou uma presença, uma existência presentificante no mundo.
Para que o sentido de uma obra de arte seja reconstruído, precisamos que esse
sentido reintegre “[...] a visibilidade das coisas na globalidade concreta e dinâmica
do experimentado” (LANDOWSKI, 2004, p. 108). Necessitamos, portanto, de uma
efetiva interação por parte do espectador, para o qual o “sentido experimentado” em
sua totalidade e concretude (audição, visão, tato, etc.), possa convergir em uma só
experiência estética a fortiori, e “[...] reintegrar o ver na globalidade do sentir.”
(LANDOWSKI, 2004, p. 108). A instauração dessas novas formas de presença do
23

visível nos mostra novas formas de estarmos presentes frente a elas e nelas, para
reconstrução de seu sentido, ou como postula Oliveira, para: “[…] reoperar a sua
significação, que, em poucas palavras, define o propósito da semiótica.” (OLIVEIRA,
2004, p. 118). Justifica-se assim a nossa opção por essa teoria na análise do corpus
de estudo.

1.1 Fundamentação teórica: semiótica discursiva

Contextualizado nosso objeto de estudo e sua problemática, propomo-nos a


fundamentar a partir da teoria semiótica como se dão os estudos dos mecanismos
de apreensão e produção de sentido das obras selecionadas enquanto corpus de
análise. A análise se estrutura a partir das organizações internas das obras, as do
plano de expressão e do plano do conteúdo, que passam por desmontagens para se
depreender as categorias da expressão e as do conteúdo e verificar como essas se
homologam por simbolismo ou semissimbolismo. Com o exame dos níveis do
percurso gerativo de sentido chegaremos à circulação de valores e, a saber, à
axiologia. No exame da figuratividade, na operação de tradução de mundos em
mundos de linguagens (OLIVEIRA, 2004) que nos interessa tratar, verificamos os
mecanismos de intertextualidade e interdiscursividade empregados. Com essas
escolhas enunciativas, examinaremos os enunciados sob a lógica da junção e da
união para exame da gramática narrativa, os regimes de sentido e interação
concebidos pelo semioticista Eric Landowski (2005).
Consideramos as obras de artes como articulações de arranjos de
linguagens, tendo em vista seu processo de semiose entre os dois planos
constitutivos. O interesse é tratar como se identifica a produção de sentido. A
semiótica não faz uma abordagem ingênua dos produtos artísticos, pelo contrário,
trata dos processos comunicacionais instaurados nos arranjos estéticos, como
observa Omar Calabrese, a arte já “[...] contém traços voltados para a própria
interpretação, ou como ela trata o material linguístico para renovar os códigos
existentes e produzir precisamente inovações.” (CALABRESE, 1987, p. 18). Assim,
operamos para trazer à tona os mecanismos discursivos, narrativos e axiológicos
que levam à reconstrução da significação das obras.
Seguindo o pensamento de Calabrese, podemos dizer que o trabalho do
semioticista não é julgar a obra “bela”, que cabe ao crítico de arte, mas sim o de
24

chegar ao “como e porque os efeitos de sentido são produzidos, que consiste na


possibilidade de alguém examinar os processos de sua construção estética e
estésica, que faz com que a sua beleza signifique.” (CALABRESE, 1987, p. 18).
Segundo o mesmo autor, esse tipo de interpretação não propõe explicar “o que o
artista queria dizer”, mas sim, “como a obra diz o que diz” (CALABRESE, 1987, p.
18).
O modelo de análise tem como principal proposta o estudo dos discursos, das
narrativas e dos valores das manifestações textuais. Para Diana Luz Pessoa de
Barros, essa semiótica é herdeira de Saussure e de Hjelmslev, cujo relacionamento
teórico possibilitou o modelo da semiótica estrutural, no qual toda significação é
dada por uma rede de relações que se dão a significar. O modelo greimasiano só se
interessa pelos sistemas ou códigos na medida em que esses são processados nos
usos de linguagens, e segundo a autora: “[...] determina as condições em que um
objeto se torna significante para o homem” (BARROS, 2002, p. 13).
Barros nos aponta algumas características das propostas da semiótica
greimasiana, tais como:

a) construir métodos e técnicas de análise interna, procurando chegar ao


sujeito por meio do texto; b) Propor uma análise imanente, ao reconhecer o
objeto textual como uma máscara, sob a qual é preciso procurar as leis que
regem o discurso; c) considerar o trabalho de construção do sentido, da
imanência à aparência, como um percurso gerativo, que vai do mais simples
e abstrato aos mais complexo e concreto, em que cada nível de
profundidade é passível de descrições autônomas; d) entender o percurso
gerativo como um percurso do conteúdo, independente da manifestação,
linguística ou não, e anterior a ela. (BARROS, 2002, p. 13, grifos do autor).

A busca de uma organização da totalidade do sentido é processada por meio


do percurso gerativo, recurso pelo qual o texto manifesta sua estrutura interna. Mas
esse processo de produção de sentido não se encerra aí, pois a semiótica
compreende que o texto origina-se na cultura e para ela retorna, pois é no social que
as mensagens significam. Entendemos esse percurso, aqui, como uma relação entre
o texto e o contexto (cultural), o que por si só é uma relação intersemiótica,
intertextual.
Assim a relação que a semiótica examina é entre os seus diferentes textos ou
discursos que constroem o social. O seu exame é proposto pelo percurso gerativo
de sentido, como metodologia da organização do sentido em três patamares que
são revertidos uns nos outros por homologação. Esse percurso é construído no nível
25

da imanência, ou seja, no nível semiótico, mais especificamente no plano do


conteúdo; sendo que a análise textual estabelece-se no nível linguístico dos usos da
linguagem, a pictórica, por exemplo. Em quaisquer dos usos de linguagens esses
são escolhas e arranjos de um destinador para seu público destinatário. Temos
então no percurso três etapas que são consideradas autônomas: As estruturas
fundamentais (nível profundo), que são as estruturas axiológicas elementares do
discurso; as estruturas narrativas (nível intermediário); e as estruturas discursivas (já
mais próximas do nível de manifestação textual). As estruturas fundamentais e
narrativas fazem parte do que Greimas chama de estruturas semio-narrativas. Cada
uma dessas estruturas é um lugar de articulações distintas e compostas por três
gramáticas, cada qual com um componente sintático e semântico. O exame da
significação dá-se por um modelo abstrato que generaliza as etapas da estruturação
de todo e qualquer objeto semiótico, conforme quadro abaixo (Esquema 1):

Esquema 1 – Percurso gerativo de sentido

PERCURSO GERATIVO

Componente sintáxico Componente semântico

Nível profundo Sintaxe Semântica Fundamental


ESTRUTURAS Fundamental
SÊMIO-
NARRATIVAS Nível de Sintaxe Narrativa Semântica Narrativa
Superfície de Superfície

ESTRUTURAS Sintaxe Discursiva Semântica Discursiva

DISCURSIVAS Discursivização
(actorialização, temporalização e Tematização
espacialização) Figurativização

Fonte: Greimas; Courtés, (1983, p. 209).

Com mais especificações, vejamos como Greimas aborda cada uma destas
estruturas. Nas estruturas sêmio-narrativas temos, em primeiro lugar, uma sintaxe
que explica as primeiras articulações – as operações lógicas elementares da
circulação dos valores que é diagramada pelas relações lógicas entre os valores do
quadrado semiótico. É a semântica dos valores como um inventário de categorias
sêmicas, que se encontra no nível mais abstrato. Em segundo lugar, nas estruturas
narrativas propriamente ditas, temos uma sintaxe que regula o fazer, ou seja, o
26

simulacro do fazer do homem e das suas relações sobre outros homens em busca
de um objeto de valor (regime de junção) e o simulacro de encontro entre os sujeitos
(regimes de união), proferido por Eric Landowski. Essa busca pelo objeto de valor
descreve a sintaxe do percurso narrativo que corresponde a uma semântica
ordenada no regime de junção. O percurso narrativo canônico é constituído por:
Competência (cognitiva; saber e poder); Performance (fazer); procedimento de
Manipulação e Sanção (positiva ou negativa). É a semântica que atribui o estatuto
de valor aos objetos de busca do fazer. Na estrutura discursiva opera-se uma
sintaxe que organiza as relações de enunciação na composição do discurso. A
semântica estabelece os temas, pelos revestimentos figurativos dos conteúdos. Em
síntese, como bem observa Barros: “Passa-se, assim, do lógico-conceptual ao
narrativo graças à ação do homem, sujeito do fazer, e do narrativo ao discursivo pela
intervenção do sujeito da enunciação.” (BARROS, 2002, p. 16).
Gostaríamos de observar que esta breve abordagem do percurso gerativo
não esgota toda a sua complexidade. Neste ponto faz-se necessário uma visão geral
(panorâmica) do percurso do sentido, com o qual explicitamos os caminhos seguidos
para analise do corpus. Mas devemos ainda apresentar a abordagem da visada
semiótica da dimensão do estésico, do “sensível”, que incidiu sobre novos conceitos
complementares da análise do nível discursivo e narrativo do percurso gerativo de
sentido, a fim de dar conta do “sentido-sentido”, produzido em ato enunciativo e em
situações de vivenciar o sentido, proposta por Landowski (2005). Oliveira afirma que
com essa complementação há uma “[…] problematização da contribuição do
sensível à emergência do sentido na vida cotidiana […]” (OLIVEIRA, 2005, p. 8).
A ancoragem teórica deste trabalho na semiótica discursiva deveu-se às
questões suscitadas pelo nosso objeto de estudo, que nos levam ao propósito de
evidenciar e elucidar, nas produções artísticas contemporâneas, as suas
intervenções na cotidianidade, recolhendo os novos materiais e matérias a serem
empregados pelos artistas em suas obras. Essas escolhas renovam a materialidade
significante da arte e do corpo, que passa a ser elemento constitutivo e participativo
da obra, fazendo parte do processual da produção de sentido.
Na realização desse propósito, gostaríamos de refletir, após essa panorâmica
teórica, que Algirdas Julien Greimas abordou o tema da cotidianidade em seu último
livro Da imperfeição de 1987, ao explorar a dimensão da figuratividade no nível da
organização do discurso, e se debruçar sobre os mecanismos desses arranjos
27

tradutórios de mundo nos mundos das linguagens (OLIVEIRA, LANDOWSKI, 1995).


A surpreendente abordagem de Greimas é que ao analisar fragmentos de obras
literárias, ele faz apreender a estrutura narrativa da experiência estética como uma
“descontinuidade na cotidianidade”, ou seja, uma “quebra de rotina” produzida pela
experiência estética operando pela estesia. As suas preocupações põem em cheque
toda a tradição acadêmica com tendências à classificação, categorização e à
hierarquização. Trata-se agora não de um discurso sobre o sensível, mas de dar
sentido ao próprio sensível, capturado mesmo nas mais banais de nossas
experiências – na vida cotidiana.
Greimas sempre defendeu a sua teoria da significação como ancilar das
demais disciplinas das ciências humanas. A semiótica com a proposição do percurso
gerativo de sentido funcionaria como metodologia da compreensão dos mecanismos
de apreensão e produção do sentido. Em Da imperfeição, ao semiotizar as
experiências estéticas pelas condições estésicas de processá-la e seus valores para
o homem, se depreende como o seu agir atinge os sujeitos, que vive essa
experiência que atua como re-significadora do seu viver usurado, tendo assim valor
de busca nas narrativas existenciais. Greimas elegeu o papel da estesia como
condição de possibilidade do estético, o que nos interessa como fundamento teórico
da apreensão do sentido. (OLIVEIRA; LANDOWSKI, 1995). Partimos do sensível ao
inteligível, situando-nos na dimensão da estesia e considerando o corpo como
mediador das relações entre o sujeito e o objeto, assim como um sujeito em
encontro com outro sujeito corpo a corpo. O autor aponta os momentos essenciais
provenientes dos sentidos, como “[…] o tato, a mais profunda das sensações a partir
das quais se desenvolvem as paixões do ‘corpo’ e da ‘alma’.” (GREIMAS, 2002, p.
85), mas também os olhos que tateiam, o perfume aspirado, a audição e suas
imbricações sinestésicas.
Pensar a ressemantização da vida e a axiologia a partir da teoria semiótica
conduz a um singular entrecruzamento entre estética e ética3. Da observação de um
“crepúsculo dos valores” emergem significativos questionamentos, tais como:
“Existirá um caminho pessoal por traçar, um caminho para a esperança?”
3
Ana Claudia de Oliveira, em A estesia como condição do estético, explica a relação entre estética e
ética em Greimas a partir de Da imperfeição. Assim, enquanto a estética se dá na percepção que
temos das coisas, entre o sensível e o inteligível; a ética se constituirá no conhecer das coisas, pelo
sujeito que re-semantiza os objetos do mundo. Continua Oliveira: “[…] ao momento estético advém
a sobredeterminação ética.” (OLIVEIRA, 1995, p. 235).
28

(GREIMAS, 2002, p. 86). Ou: “Existiriam modos de dar mais densidade à vida, de
entrecortá-la de eventos ‘estéticos’ a partir de desvios do funcional?” (GREIMAS,
2002, p. 85); bem como: “Onde cultivar o ‘sentido do belo’, sentido o melhor
partilhado entre os homens, como intuitivamente sabemos?” (GREIMAS, 2002, p.
83). Talvez uma das respostas aos questionamentos esteja na espera do
inesperado, como explicita Habermas acerca do dândi de Baudelaire. Por isso, a
descontinuidade do contínuo como a fratura, que inapreensível ao nível cognitivo,
poderá fazer “[re-]nascer a esperança de uma vida verdadeira, de uma fusão total do
sujeito e do objeto. Ao mesmo tempo que o saber de eternidade, ela deixa o
ressaibo da imperfeição.” (GREIMAS, 2002, p. 70). Outra resposta está nas fatias
distribuídas do inesperado, no cotidiano continuamente ressignificado e fazendo
sentido para o sujeito de seu viver.
Operando as relações entre os corpos na emergência do sentido, aestesia
mostra mais de uma possibilidade conferida à ação do corpo. De forma
complementar ao regime de sentido pela lógica da junção (fusão entre sujeitos e
objetos) teorizada por Greimas, o semioticista Eric Landowski em Aquém ou além
das estratégias, presença contagiosa, postula o procedimento de ajustamento. O
autor propõe um regime de sentido ancorado na co-presença sensível do corpo a
corpo, em que o sentido é construído na relação que se estabelece entre corpos-
sujeitos, um corpo em contato direto, sem um mediador (terceiro), ou seja, a relação
actancial está na ordem do contato, do sentir. Este tipo de emergência do sentido o
autor designa como regime de sentido pela lógica da união.
Um tipo de relação entre actantes que se dá estesicamente em contato
interactancial corpo a corpo, na reciprocidade do estar nas interações que, segundo
Landowski, “[...] é a sua co-presença interativa que será reconhecida como apta a
fazer sentido, no ato, e a criar valores novos.” (LANDOWSKI, 2005, p. 19). Nessas
circunstâncias, o encontro é em ato e Landowski postula que para a apreensão de
“como o mundo se dá no plano do vivido” e, para a descrição da “experiência do
encontro entre si e o outro”, entra em relação uma “disponibilidade para sentir e um
dispositivo sensível.” (LANDOWSKI, 2005, p. 20). Segundo o autor, para que essa
relação estésica entre sujeitos se estabeleça é preciso que, de um lado, existam
sujeitos dotados de “sensibilidade”, de uma competência estésica, e de outro as
manifestações, que por sua vez, possuam uma consistência estésica, qualidades
“sensíveis” que atuam impressivamente nos corpos sensíveis com que estabelecem
29

relações e são apresentadas à percepção sensorial (LANDOWSKI, 2005, p. 18).


Para que essas qualidades sensíveis instaladas nas manifestações pelos arranjos
estéticos signifiquem impressivamente, elas passam pela apreensão de sua
consistência estésica. O corpo da obra e o corpo do que a apreende, como dois
sujeitos em contato de co-presença põem-se em ação. As apreensões estésicas
possibilitam já a emergência do sentido que o sujeito sensibilizado empreende.
Uma especificidade da plástica que Jean-Marie Floch defendeu no conjunto
de sua obra é que todo e qualquer arranjo de linguagens é regido pela componente
estética. Se a estesia coloca-se como a condição do estético significar é justamente
porque nos modos de enunciar o enunciador faz escolhas e arranjos do tipo
semissimbólicos que, para tornarem-se significados, exigem que o destinatário
assuma o papel de participante da obra e opere os traços de forma relacional, a fim
de operar o feixe de formantes em figuras da expressão que homologam as figuras
do conteúdo. Assim, além do reconhecimento das figuras da expressão termo a
termo, que define o arranjo estético organizado pelo tipo simbólico, há o
semissimbólico, que só é processado pelas redes de relações no interior da
manifestação pelo sujeito sensibilizado, partícipe do fazer o sentido.
Em Petites mythologies de l´oeil et de l´esprit: pour une semiotique plastique
(1985), Jean-Marie Floch propõe a construção de uma semiótica que busque
observar a relação entre o visível e o inteligível, a qual denominou de semiótica
plástica. Assim, a imagem, a pintura, a escultura, a fotografia, etc., são tratadas
como conjuntos significantes. No entanto, a definição, determinação ou estatuto de
cada conjunto é resultante de acontecimentos culturais e históricos, dentre outros.
Para o autor, o semioticista não visa a legitimar ou não os objetos. Floch define a
iconicidade como uma produção de efeito de sentido de tradução em linguagens do
mundo natural, portanto uma relação intersemiótica. O propósito da semiótica
plástica consiste em compreender a relação que se estabelece entre o significante
visual e um significado, tendo em vista as condições de sua produção e de
“intencionalidade”; por meio de um tipo de sistema de sentido denominado de
sistema semissimbólico4. Como afirma Floch: “A semiótica plástica não é nada mais
que a realização, dentro de certo tipo de substância – a substância visível – da

4 Em Alguns conceitos fundamentais em Semiótica geral, Jean-Marie Floch considera o sistema semi-
simbólico como próprio da linguagem pictórica, fotográfica, etc., linguagens que “[...] se definem pela
conformidade não entre os elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da expressão
e categorias do conteúdo.” (FLOCH, 2001, p. 29).
30

semiologia poética que, ela, é autônoma quanto à sua organização formal e à sua
significação.” (FLOCH, 1985, p. 15, tradução nossa).
Para Ana Claudia de Oliveira, a semiótica plástica se caracteriza como aquela
“[…] que se ocupa da descrição do arranjo da expressão de todo e qualquer texto
visual.” (OLIVEIRA, 2004, p. 12). A semioticista acrescenta que o texto visual
(arquitetura, fotografia, pintura, etc.) constitui-se a partir de sua especificidade
plástica, entendendo que o adjetivo “plástico” – “[…] pode abranger o estudo do
plano da expressão das manifestações visuais mais distintas, quer as artísticas, quer
as midiáticas, quer as do mundo natural.” (OLIVEIRA, 2004, p. 12). Nesse âmbito,
poderemos ter a semiótica plástica ou visual como uma semiótica geral, ou melhor,
como uma teoria da significação, pois ela mesma, além de examinar o plano da
expressão deve também voltar-se para os modos de homologação com o plano do
conteúdo.
Quanto ao conceito de iconicidade empregado pela semiótica plástica,
observa-se uma recusa ao referente para definir a natureza sígnica da imagem,
sendo que a iconicidade é uma ilusão referencial ou um efeito de sentido relativo a
uma concepção cultural variável do que se considera o “real”. A iconização é vista
como um tipo de figurativização do discurso. Na concepção de Greimas (apud
OLIVEIRA, 2004), assim como na de Jean-Marie Floch a semiótica plástica é um
caso particular da semiótica semi-simbólica. Podemos denominar de
semissimbólicos os textos poéticos da pintura, literatura, filme, dança, etc., textos
estéticos, pois tentam criar efeitos de sentidos diversos, dentre eles, o de recriar a
realidade, para obter uma nova visão e um novo entendimento do mundo.
Na visão greimasiana, a correlação que se estabelece entre semiótica do
mundo natural e a semiótica plástica não são do tipo representacional, mas trata-se
de uma questão de intersemioticidade entre universos semióticos distintos. Segundo
Oliveira:

O que ocorre em cada semiose é que cada discurso constrói seu próprio
referente interno, e a referencialização é, então, uma questão de enunciado,
na medida que é nele que se projetam os efeitos de sentido para fazer-
parecer realidade, irrealidade, fantástico, verdade, falsidade, entre tantos
outros efeitos possíveis. (OLIVEIRA, 2004, p. 12, grifos do autor).

A semiótica denominada semi-simbólica envolve, então, arranjos de


linguagem poética quaisquer, em tradução dos mundos naturais, línguas naturais,
etc. É assim chamada pelo fato de as correlações realizadas entre o plano da
31

expressão e o plano do conteúdo serem apenas parciais entre categorias. A


linguagem poética é um bom exemplo, pois, segundo Greimas: “[...] deverá ser
considerada como linguagem autônoma e específica que abole as fronteiras
convencionalmente estabelecidas entre os diferentes domínios de manifestação”
(GREIMAS, 2004, p. 95). O processo de autodeterminação da linguagem poética,
segundo o autor, origina uma linguagem segunda, capaz de gerar novos formantes
que homologam significados renovados. Greimas cita como exemplo a análise
realizada por Jean-Marie Floch da planta arquitetônica de Mies Van Rohe,
observando que a organização poética desse texto sobrepõe-se ao texto primeiro,
assim “[...] como um objeto funcional de comunicação social pode transformar-se em
objeto ‘estético’” (GREIMAS, 2004, p. 94). Tratando a semiótica plástica como um
caso particular da semiótica semi-simbólica, devemos levar em conta não somente o
fato de que os objetos plásticos sejam objetos significantes, mas procurar também
compreender como e o que eles significam.
Ao tratarmos do como e o que os objetos plásticos significam, deveremos
observar a descrição do sistema semissimbólico. Para tanto, recorremos ao texto de
Ana Claudia de Oliveira, As semioses pictóricas (OLIVEIRA, 2004), no qual a
descrição desse sistema é exemplificada pela abordagem da pintura. A semioticista
nos fornece uma ampla explicação de todo o processo de segmentação do texto
plástico, determinado pelo estabelecer de uma categoria geral de expressão, que
advém das figuras plásticas em que os formantes plásticos entram em relação e
configuram figuras. A semiótica propõe, neste procedimento, a separação inicial do
plano da expressão do plano do conteúdo, planos que estruturam a manifestação de
todo e qualquer texto ou objeto semiótico. Esses planos são constituídos por níveis
de articulação próprios que, por sua vez, são organizados em subsistemas. No plano
da expressão, é examinado tanto o nível das estruturas de superfície quanto o nível
das estruturas profundas,

[...] partindo-se do estudo dos ícones manifestos no nível superficial da


expressão, das figuras que se manifestam no nível intermediário, chega-se
aos traços não-figurativos, os formantes, no nível da estrutura profunda do
plano da expressão. (OLIVEIRA, 2004, p. 118, grifos do autor).

Em nossa análise do corpus, seguiremos essas bases de descrição, e os


formantes que entram na configuração são: eidético, cromático, matérico e
topológico. O objetivo é estudar a articulação dos formantes em feixes, e como as
32

figuras articuladas definem categorias no arranjo semissimbólico. Assim como as


correspondências termo a termo do arranjo simbólico, os formantes se definem
como:

[...] unidades do plano de expressão que, quanto à sua identificação, podem


corresponder a uma ou mais unidades do plano do conteúdo. A partir dos
formantes e da sua constituição de figuras, pode-se produzir um número
infinito de ícones. (OLIVEIRA, 2004, p. 120).

Expostos o conjunto de alguns fundamentos da semiótica plástica que


utilizamos para análise dos objetos visuais de nosso corpus, acrescentamos que
estes são, na maioria das vezes, manifestações advindas de sincretismos de
linguagens, que formam objetos, assemblages, instalações, performances, etc., e
acabam por criar relações de sentidos produzidas por um processo de tradução de
linguagens permeado por relações de intertextualidade, na medida em que são os
textos que alimentam a produção de significação.
Todo texto dialoga com o contexto, o qual está presente nos mecanismos de
configuração do sentido e para além da análise interna do texto, se tem o estudo
semiótico no seu universo intertextual. A relação que um texto mantém com seu
contexto é dialógica na medida em que cada estruturação se faz em relação à do
conjunto de outros textos. O processo intertextual permite apreender essa rede de
retomadas do texto, em sua relação com a cultura e com as suas condições sócio-
históricas de produção e de apreensão.
A intertextualidade é central nesse entendimento de tradução também do
universo cultural. Segundo Omar Calabrese (2004, p. 162), é um procedimento que
põe em relação um conjunto de repertórios, um emaranhado de referências a textos
ou grupos de textos construídos anteriormente. Os textos trazem em si sua
competência intertextual por meio das transformações da natureza e da
funcionalidade dos textos aos quais se relacionam por vários procedimentos. De
acordo com Calabrese: “Esses repertórios dizem respeito a algumas histórias
condensadas e produzidas anteriormente por uma determinada cultura e por parte
de algum autor, ou melhor, de algum ‘texto’” (CALABRESE, 2004, p. 162).
Podemos observar que esses “repertórios” determinados pela cultura que os
produziu são, de acordo com Calabrese, postos em relação de intertextualidade com
textos vários, visuais, verbais, sonoros, audiovisuais, reconfigurados de forma
poética pela experiência estética do artista. Neste contexto, podemos entender a
33

arte como objeto da civilização, que nos faz saber sobre as atitudes, hábitos e
costumes de uma dada época, e também sobre o imaginário de uma determinada
sociedade, assim como sobre os meios técnicos e tecnológicos com que se
manifesta.
Quando tratamos do estudo das obras de arte na sua relação textual,
intertextual e contextual, de acordo com Ana Claudia de Oliveira (2004, p. 157), são
as relações internas da obra enquanto sistema semiótico que deverão conduzir às
relações externas dessa obra, com a história da arte, dos seus modos de produção,
da história do autor e de seu contexto, da história da geração e da estética em que é
fundada. Assim sendo, postula Oliveira: “Um texto encena-se, pois, no veio do outro
e passam a comungar de um sistema de valores que os interconecta.” (OLIVEIRA,
2004, p. 134). A semiótica como teoria da significação nos fornece uma metodologia
para reoperação da significação das obras, entre o sensível e o inteligível
(cognoscível); cabendo ao semioticista ser o articulador do conhecimento e dos
processos de semioses, para que a reoperação desses intertextos seja também para
chegar à significação da obra e que, além de tudo “[...], através da verbalização das
operações estruturais, mostra o visual em sua rede de articulações internas.”
(OLIVEIRA, 2004, p. 158).
Além do mais, acrescenta a semioticista, os processos de intersemioses entre
os textos podem tratar tanto de uma relação intertextual quanto de uma relação
interdiscursiva. As relações se estabelecerão de modo intertextual quando a
operação se realizar entre textos, e interdiscursiva se ocorrer entre discursos. O que
podemos evidenciar a partir desse fato é que: “Por uma cadeia de apropriações,
torna-se, o texto primeiro, o centro das referências do processo intertextual, assim
como do de interdiscursivização do texto segundo.” (OLIVEIRA, 2004, p. 133).
Para Norma Discini, a intertextualidade é um processo de incorporação de um
texto em outro pela imitação, para captar ou subverter o texto ou gênero imitado.
Nesse processo intertextual existe um efeito de bivocalidade, da voz do que imita e
da voz do imitado, em que segundo Discini: “Com a heterogeneidade mostrada não
marcada, o eu mostra deliberadamente o outro, mas não o circunscreve a marcas
específicas.” (2013, p. 166). Essa heterogeneidade é constituída na relação
dialógica discursiva do outro que permeia o um. Na intertextualidade o outro imitado
pode ser captado ou subvertido; no primeiro caso se tem a estilização e no segundo,
a paródia. Na estilização um texto reproduz ou capta o estilo do outro texto - à
34

maneira de..., sem que haja uma mudança no sentido entre o texto imitado e o texto
que imita. Enquanto na paródia, a imitação de um texto ou gênero se concretiza pela
subversão do texto imitado ao legitimá-lo, a ponto de se perceber a inadequação de
sentido entre os textos.

1.2 Estrutura da pesquisa

A presente proposta de investigação insere-se na linha de pesquisa do


Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica: Análise das
Mídias. Sua problemática está ancorada nas materialidades constituídas a partir das
matérias e materiais do cotidiano, utilizados pelos artistas na produção das obras e
nos novos modos de presença ancorado no sensível, ao operar na dimensão
estésica, ao experimentar e viver os sentidos pelos sujeitos. Destinador e
destinatário são instalados pelos mecanismos da enunciação no enunciado. Em
pressuposição o enunciado torna possível o estudo das escolhas enunciativas, e as
interações discursivas são estabelecidas para fazer o sentido significar. Ancoramos
nossa análise desses objetos artísticos na teoria semiótica, como dito anteriormente,
que descortina veredas no entendimento da criação de uma diversidade de efeitos
de sentido a partir dos quais obtemos uma nova visão e entendimento do mundo. As
articulações significantes do sentido, sincretismos de linguagem do plano de
expressão, os recursos de subjetividade, identidade e partilha sensível têm
permeado trabalhos anteriores e continuam a pertencer ao universo de pesquisa no
qual se insere esta pesquisa.
A evidência dos processos comunicacionais e interativos que intervêm tanto
na produção quanto na apreensão do sentido objetivam mostrar a força do
comunicacional e do interativo nas obras analisadas. Deste modo a relevância da
pesquisa para a Área da Comunicação está na investigação dos processos
significantes do objeto de estudo e como esses operam a construção do sentido,
que só se constrói na interação entre enunciador/enunciatário, obra e mundo.
Assim, ratificamos a necessidade de aprofundarmos sobre a relevância do
estatuto de comunicação nos textos artísticos, para o que nos propomos realizar
uma abordagem reflexiva das produções escolhidas. Deste modo, pretendemos
contribuir com essa construção teórica e analítica, para o debate acadêmico da arte
contemporânea realizada no Brasil. Doravante, os resultados esperados com a
35

presente pesquisa são que, a partir dessa visada semiótica sobre a matéria sensível
da arte, consigamos constituir um estudo mais aprofundado sobre as questões aqui
elencadas, e possamos perceber que os formantes matéricos têm uma “força”
especial – na ação de criar discursos impactantes no destinatário e em seu contexto,
engajando-os nas obras que promovem estesias nas quais a materialidade é a
desembocadura que afeta sensibilizando o artista para os novos usos dos materiais
e matérias, que assim ressignificam seu uso na cotidianidade, um feito da arte
produzida no Brasil em diálogo com outras tendências da arte internacional.
O objetivo geral deste trabalho é analisar o corpus da pesquisa, a partir da
teoria Semiótica Estrutural francesa, para perceber como se dá a construção de
sentido desses diferentes discursos, assim como das interações provenientes das
relações entre enunciador e enunciatário. Para tal propósito elencamos os seguintes
objetivos específicos: investigar as mudanças estéticas no estatuto da arte que
ocorreram a partir da arte moderna e contemporânea, propondo assim uma reflexão
sobre a linguagem artística na atualidade e os efeitos de sentido constituídos a partir
da materialidade dos arranjos plásticos das obras; estruturar a análise na
abordagem do corpus por meio da teoria semiótica; realizar as análises das obras
selecionadas, com o intuito de mostrar a “força especial” de seus discursos visuais
na produção de sentido; abordar os regimes de interação e a dimensão estésica
produzida pelas qualidades sensíveis das obras, que é experimentada e vivida pelos
sujeitos da enunciação e, por fim, descrever a sistematização dos procedimentos de
reescritura e como esses promovem uma ressignificação dos sujeitos envolvidos na
ação “tática” artística, que incide tanto no ambiente cotidiano quanto na própria arte
contemporânea.
Por último, enfatizamos o processo de desenvolvimento da pesquisa.
Inicialmente, partimos de uma pesquisa bibliográfica aprofundada, tendo em vista a
configuração de um referencial teórico da arte e da semiótica. Sobre a bibliografia
consultada de Arte Contemporânea destacam-se teóricos, críticos e historiadores da
arte, tais como: Carlo Argan, Rosalind Krauss, Alberto Tassinari, Ferreira Gullar,
entre outros. Quanto à da teoria semiótica destacam-se os teóricos Algirdas Julien
Greimas, Jean-Marie Floch, Eric Landowski, Diana Luz Pessoa de Barros, Norma
Discini e Ana Claudia de Oliveira.
Como procedimento para a composição do corpus de análise, fizemos um
levantamento das produções artísticas contemporâneas realizadas no Brasil nas
36

últimas décadas. Filtradas por essas lentes, passamos a olhar o que defenderemos
com as ”táticas” utilizadas pelos artistas na produção, montagem e exposição de
suas obras. Trata-se de um recorte temporal e espacial que, em certas ocasiões,
localiza-se no próprio contexto do mundo da vida cotidiana. Nesse tipo de estudo, o
olhar para o objeto passa a existir do desejo de entender um fenômeno social
complexo, cujas fronteiras entre si e o contexto não são claramente evidentes.
Deste modo, nos concentramos em realizar a estruturação e o
desenvolvimento da análise do corpus de obras selecionadas, a partir da abordagem
teórico-metodológica da semiótica discursiva, que nos permite analisar a plasticidade
das obras através dos formantes plásticos e as formas de sua apreensão sensível e
inteligível, considerando os regimes de sentido apoiados nos tipos de interação que
são estabelecidas entre obra e público; visando assim o entendimento dos
processos de produção de sentido dos discursos das obras e suas estesias.
Após essas considerações iniciais e estruturais da pesquisa, o primeiro
capítulo da tese intitulado As matérias do cotidiano como materialidade significante
nas artes plásticas, traz uma abordagem contextual da arte contemporânea, com
algumas das mudanças ocorridas na linguagem plástica da manifestação visual no
decorrer do século XX, com exemplos de artistas que se utilizam de materiais e
objetos de uso cotidiano para compor o arranjo plástico de suas obras. O segundo
capítulo denominado, A análise dos materiais e matérias na construção de sentido
dos discursos visuais poéticos, reconstrói com o estudo das obras, como se dá a
produção de sentido desses discursos construído dentro do Percurso Gerativo de
Sentido. Dividimos essas análises em três etapas, respectivamente, intituladas de:
Manto da Apresentação de Arthur Bispo do Rosário; Arqueologia Poética de
Chiquitão e Marat (Sebastião) de Vik Muniz. O terceiro capítulo chamado
Intertextualidade, interdiscursividade e intersemioticidade; reescrituras; interações e
estesias nas artes plásticas/visuais contemporânea, analisa como a
intertextualidade, a interdiscursividade e a intersemioticidade estão presentes nas
obras que compõem o corpus de análise; as reescrituras de espaços urbanos: nova
função e novos usos pela arte contemporânea e por fim, são analisados a partir da
abordagem dos regimes de sentido ancorados nos tipos de interações
(LANDOWSKI, 2014) e como as qualidades sensíveis (materialidade) das obras
produzem novos modos de presença do sentido a partir da convocação da dimensão
estésica.
37

2 AS MATÉRIAS DO COTIDIANO COMO MATERIALIDADE SIGNIFICANTE NAS


ARTES PLÁSTICAS

A arte é o local onde se regenera e se purifica


o pragmatismo alienante da vida cotidiana: ela
também é pragmática e ativista, mas positiva e
criativa.
Giulio Carlo Argan (1995)

Dois universos distintos, o da arte e o da vida cotidiana, são entrelaçados no


âmbito de uma linguagem poética. Para Greimas, essa linguagem poética é
autônoma e específica, em cujos formantes poéticos renovam seus significados.
Como exemplo, cita o semioticista F. Thürlemann, o qual afirma que: “[…] a prosa do
mundo é transformada por Klee em poesia.” (GREIMAS, 2004, p. 95). A
especificidade de tais poéticas artísticas, que transformam a prosa do mundo em
poesia, suscita uma abordagem de como as matérias do cotidiano estão sendo
utilizadas por essa produção contemporânea.
Quando delimitamos nosso objeto de estudo, propusemos um recorte na arte
contemporânea produzida no Brasil, selecionando obras de arte que se inserem no
universo das poéticas contemporâneas e trazem em suas práticas artísticas algo de
peculiar, que é um uso de elementos da cotidianidade na sua estruturação. A
especificidade na produção dessas obras de arte será abordada em um período que
abrange o surgimento da arte contemporânea a partir dos anos 1960. As obras
produzidas nesse período no contexto brasileiro apresentam-se em consonância e
em relação de diálogo com os movimentos artísticos internacionais, como veremos
nos exemplos que mostraremos no decorrer do texto.
Para tal abordagem constataremos inicialmente algumas das mudanças
ocorridas nas artes plásticas no decorrer do século XX e, principalmente na
contemporaneidade da arte ocidental, com a utilização pelos artistas de materiais e
objetos de uso cotidiano (materiais não-artísticos), assim como, por vezes suas
obras se instauram no próprio espaço cotidiano. A partir desse enfoque inicial, no
segundo momento, nos propomos a averiguar quais são os procedimentos de
enunciação utilizados propostos por esse tipo de arte contemporânea, com a ênfase
dada às qualidades matéricas na composição das materialidades das obras. Além
dos materiais e matérias de uso cotidiano empregados nas obras, tem-se o seu
38

contexto, a relação entre a arte e a cotidianidade que assinala um entrelaçamento


do mundo da arte com o mundo da vida, que tentaremos examinar a seguir.

2.1 As semioses matéricas: arte a partir da cotidianidade

O entrelaçamento entre o mundo da arte e o mundo da vida presente nas


produções artísticas contemporâneas advém, principalmente, das mudanças na
ordem da representação, na concepção do espaço e na incorporação de novos
materiais às artes plásticas, ocorridas no decorrer do século XX. Podemos observar
essas mudanças significativas na arte a partir das propostas desenvolvidas pelos
artistas impressionistas e no experimentalismo estético das vanguardas artísticas
modernistas. Com a arte moderna e contemporânea qualquer material é passível de
ser utilizado nas obras, e passa a ser incorporado como material da arte. Por sua
vez, as modificações em torno do espaço e da matéria se tornam elementos
fundamentais na articulação do sentido na obra e, assim sendo, foco de nossa
abordagem. Para tal, nos propomos a averiguar quais são esses novos materiais e
objetos de uso cotidiano que entram na constituição das obras, assim como os
novos procedimentos técnicos adotados pelos artistas, e como a teoria semiótica vai
abordar tais objetos da arte.
A historiadora da arte Florence de Mèredieu, em seu livro Histoire matérielle e
Immatérielle de l´art moderne (1994), aborda a história da arte, mais enfaticamente a
arte moderna e contemporânea, a partir de uma história dos materiais que a arte
ocidental empregou na produção de suas obras. Nessa história, a arte traz duas
dimensões contraditórias sobre a natureza da própria matéria, a material e a
imaterial. A autora analisa determinadas obras modernas e contemporâneas que
jogam entres essas duas dimensões, classificando-as, por um lado, entre obras que
se situam no polo material, visível, pesado e encarnado (César Baldaccini e outros
artistas do Novo Realismo); e por outro, as obras do polo imaterial, invisível, leve e
sublimada (Kazimir Malevich, Piet Mondrian, etc.); e ainda há aquelas que oscilam
entre esses dois polos (obras de Joseph Bueys, Marcel Duchamp, etc.).
Para Mèredieu, a história dos materiais tem início no alvorecer da
humanidade nos primeiros confrontos plásticos com a matéria por meio do uso de
materiais como osso, chifre, pedra, pó mineral, etc.; depois, em suas
experimentações estéticas, os artistas se voltaram para os materiais nobres (bronze,
39

madeira, mármore, metais preciosos, tinta a óleo, etc.). Deste então a arte ocidental
selecionou para seu uso um número restrito de materiais, mantendo-se confinada a
um campo fechado, até o surgimento da arte moderna, que foi enriquecida pela
diversidade de materiais utilizados pelos artistas em suas obras, com o
desenvolvimento do impressionismo e com as vanguardas do início século XX. Com
a arte moderna nem todos aos artistas abandonaram os materiais tradicionais
(bronze, madeira, etc.), no entanto, ela esteve predisposta a usar de tudo como
material para produção das obras, observa Mèredieu, que segue com vários
exemplos a partir desses usos: com o uso dos materiais “pobres” pela Arte Bruta e
Arte Povera; a utilização e reciclagem da natureza pela Land Art e dos objetos
industriais pelo Novo Realismo, etc. As causas desse fenômeno ocorrido nas artes
plásticas no século XX são correlatas às transformações técnico-científicas que
aconteceram em nossa civilização, assim como também, comenta a autora:

Em primeiro lugar, devemos considerar as diversas influências das artes


decorativas, das artes primitivas, dos modos de expressão marginais (arte
bruta, folclore, arte popular), do fenômeno da industrialização nascente
enfim, - o aparecimento de materiais novos, exercendo nesse sentido um
papel nada negligenciável. Mas isto não teria tido o impacto constatado se
outros elementos não tivessem desempenhado um papel de amplificadores
entre eles o desenvolvimento da ciência e a renovação da própria noção de
matéria. (MÈREDIEU, 1994, p. 2, tradução nossa).

É importante notar que, nos comentários de Florence de Mèredieu, a matéria


assume um papel determinante na “[...] aventura que constitui a arte moderna.”
(MÈREDIEU, 1994, p. 2). A história dos materiais abordados pela autora começa no
impressionismo (1876), quando os artistas deixam o ambiente fechado dos seus
ateliers e passam a pintar as sutis transformações que a luz do sol produz nas cores
da natureza; esse percurso ainda atravessa todos os movimentos da arte no século
XX (do Cubismo às mais recentes artes computacionais). Corroborando com esse
percurso da história dos materiais, iniciamos o nosso sobre os desdobramentos e
impactos do uso dos materiais nas produções de artes plásticas, moderna e
contemporânea.
Se observarmos na história das artes plásticas, os materiais que os artistas
empregaram na produção de suas obras, sejam pictóricas ou escultóricas, se
restringem até o final do século XIX a materiais propriamente ditos artísticos,
pertencentes à tradição da arte ou simplesmente “dignos” de sua manipulação por
parte dos artistas. São materiais suscetíveis de serem utilizados pelos artistas com o
40

propósito de atender a uma exigência técnica específica, ou seja, com a finalidade


de fazer através do seu manuseio a arte de representar alguma coisa, como a tinta
óleo e o mármore, amplamente utilizados no período renascentista. A partir de
Degas e seus contemporâneos, como Monet, começam a fazer parte do universo
artístico novos materiais que outrora eram considerados como não-artísticos, assim
como também se tem o início do rompimento da moldura espacial do quadro
tradicional de pintura, e consequentemente, mudanças em seu suporte.
A obra Pequena Bailarina de 14 anos (1878-1881) de Degas é um exemplo
desta participação dos novos materiais (não-artísticos) na arte. A escultura foi
produzida com uma mistura de cera de abelha, banha de porco e amido sobre uma
estrutura de arame; para simular a cor da pele o artista pintou sua base de cera,
aplicou um cabelo artificial (rabo de cavalo com uma fita de cetim) e por fim vestiu-a
com um saiote de bailarina (“tutu”). São materiais utilizados para outros fins que não
os artísticos, salvo que estiveram presentes na arte de outra maneira, como exemplo
da cera de abelha para realização da técnica de encáustica ou para construção de
moldes para fundição de esculturas em bronze.
Segundo o crítico de arte Brian O´Doherty, Monet, com as suas obras
Ninfeias, foi o grande inventor da nova forma de estruturação do espaço interno da
obra - ao romper com suas bordas (horizontais) pelo achatamento de sua superfície
pictórica e ao mesmo tempo permitir ao olhar contemplador de sua obra “[...] que o
olho relaxe para mirar em qualquer lugar.” (O´DOHERTY, 2002, p. 13). Observa-se
que Monet ao pintar não estava à procura de um tema bíblico ou mitológico, ou
mesmo de um objeto imutável em sua frente, mas talvez, de simplesmente
representar o momento transitório ou as impressões coloridas do que observava na
paisagem. Para O´Doherty, tudo isso seria um “[…] prenúncio da definição da pintura
como objeto autossuficiente – um receptáculo de um fato ilusório agora se torna o
próprio fato primário –, o que nos coloca na direção certa de um clímax estético
arrebatador.” (O´DOHERTY, 2002, p. 13).
Esse clímax estético arrebatador se acentua no início do século XX com o
surgimento das vanguardas artísticas do modernismo, em que tanto o espaço
interno da obra quanto, a posteriori, o espaço externo a ela são tratados pelos
artistas de maneira diferenciada, assim como se acentua a diversidade de materiais
empregados na produção dessas obras. A experiência vivenciada e sentida pelo
destinatário na apreensão das obras, que trazem novas formas de arranjo da
41

materialidade e de composições espaciais, é em primeira instância da ordem do


sensível, do sensorial, do estésico, como veremos mais à frente. A própria matéria
em si e seus processos de transformação fazem sentido na obra. Os materiais e
objetos do cotidiano utilizados pelos artistas necessitam de novos procedimentos
técnicos para construir os discursos das obras. Estes entram na categoria da
materialidade, uma quarta categoria dos formantes das linguagens visuais, o
formante matérico. A materialidade é analisada na semiótica plástica pela dimensão
matérica, que pode ser observada a partir das qualidades matéricas do suporte, das
matérias empregadas e seus respectivos procedimentos técnicos, etc.
Torna-se imprescindível citar duas importantes pesquisas em comunicação e
semiótica, A materialidade da pintura de Nuno Ramos (1997) e Comunicação e
sentido: a matéria nas artes plásticas (2005), ambos de Lincoln Guimarães Dias. Na
primeira pesquisa, Lincoln Dias analisa pinturas de três fases da obra de Nuno
Ramos no tratante a sua materialidade, e observa que os materiais envolvidos na
produção dessas obras não criam formas para representar alguma coisa (imagem),
mas sim representam a si próprios enquanto matéria significante. Conforme Dias
(1997), o que o olho irá contemplar desses materiais são as suas transformações
(físicas e químicas), percebendo assim, seus estados físicos e seus modos de
organização conjunta e não uma eventual representação do mundo sensível.
Para o autor a ação humana no seu poder e querer transformar a matéria
pode-se dar através de funcionalização das “coisas corpóreas”. Assim, a
materialidade constituída nas pinturas de Nuno Ramos pode ser entendida através
do que chama de “corpos matéricos”, pois ela não cria superfícies, mas sim, “corpos”
em forma de pinturas matéricas. A partir daí, Lincoln Dias estabelece a distinção
entre os estatutos sociais das coisas corpóreas, que são representados pelas
classes dos materiais e objetos em oposição à matéria, de ordem mais genérica,
sendo que o investimento semântico dos materiais e objetos está relacionado a uma
determinada destinação de uso, e a matéria, à sua condição de substância da
expressão. Segundo o autor:

[...] material, refere-se comumente a uma matéria especificada, cujas


características são já conhecidas em função de um valor utilitário. A matéria
é convertida em material essencialmente por uma operação semiótica que
reconhece ou investe nela características e potencialidades com vistas a
fazer dela algo utilizável na fabricação de outras coisas. O objeto
corresponderia, por assim dizer, a classe que compreende as coisas úteis,
porém “prontas”, cuja destinação será cumprir uma função que não seja a
42

sua própria transformação física para dar origem a uma outra coisa. (DIAS,
1997, p. 31).

O semioticista ainda chama atenção para o fato que uma vez utilizados nas
obras, material e objeto são convertidos em estatuto de materiais, assinalando para
a relatividade na concepção atual entre “materiais artísticos” e “não-artísticos”, desde
o surgimento das colagens cubistas (papier collé) até as poéticas experimentais
contemporâneas. Deve-se considerar o estatuto anterior dos materiais e objetos,
suas origens e especificidades, trazendo assim, para essas práticas artísticas, novas
aquisições de sentido. Acrescenta que: “[...] o que ocorre nos trabalhos de arte em
que componentes de diferentes estatutos estão conjugados é uma intersecção de
semióticas diferentes num mesmo espaço plástico [...]” (DIAS, 1997, p. 32). Portanto,
o que se faz importante na investigação semiótica será “[...] quais são e como são os
desinvestimentos e aquisições de funções por que passaram, suas mudanças de
estatuto e as decorrências disto em termos da produção de sentido.” (DIAS, 1997, p.
32).
Na segunda pesquisa, Lincoln Dias amplia sua investigação sobre a
materialidade, tratando de duas questões de nosso interesse, o “sistema matérico” e
a “matéria das artes plásticas”. Ao observar o lugar do matérico na análise do objeto
artístico, a materialidade constitui uma dimensão específica do plano de expressão,
em que encontramos as marcas das qualidades sensíveis dos materiais, suas
características e estados físicos. A materialidade é analisada enquanto construção
textual na elaboração do sistema matérico da obra, como “[...] um modo de
organização de traços que são constitutivos da forma do matérico.” (DIAS, 2005, p.
68). Esses traços minimais que são formantes junto com os demais formantes
eidéticos, cromáticos e topológicos, entram na estruturação das figuras que formam
as categorias do plano de expressão. Para tal é necessário:

[...] examinar os modos como essas qualidades estão organizadas nas


obras, possibilitando os investimentos de sentido que, uma vez identificados
e descritos pela análise, estarão constituindo a dimensão semântica das
referidas obras, isto é, o seu plano de conteúdo (DIAS, 2005, p. 71).

O autor afirma que a materialidade sempre foi algo presente como parte
constituinte da linguagem das artes plásticas, mas que a partir do século XX os
artistas a utilizaram de maneira diferenciada. Em uma escultura de mármore de
Michelangelo, a matéria-prima não é significante, pois está condicionada a um fator
técnico determinante, o que em termos narrativos define-se enquanto um programa
43

de uso), ao passo que, os materiais utilizados nas obras modernas e


contemporâneas são objetos de especulação estética – a matéria não se opõe à
forma, pelo contrário ela é forma - passam a ser significantes na medida em que se
tornam constituintes dos discursos visuais das obras.
No passado, os materiais serviram para a representação das coisas do
mundo pelo fato de sua competência plástica. Doravante, na arte do Século XX, os
materiais se tronam um efeito de sentido construído pela sua própria presença física.
Os efeitos de sentido dos materiais a que Lincoln se refere em termos de
características físicas são: consistência, resistência, densidade, durabilidade,
estabilidade, temperatura; e seus estados físicos: sólido, pulverizado, gasoso,
líquido, pastoso, gelatinoso, etc. Esses corpos matéricos se apresentam também
como estados de superfície: polido/áspero, rugoso/liso, seco/úmido/ brilhante/fosco,
etc. Assim a dimensão matérica será constituída por uma série de categorias:
consistência (duro/mole), densidade (leve/pesado), resistência (forte/frágil), etc. Por
fim, acrescenta que o matérico depende de suas características físicas e plásticas,
ou seja, sua materialidade produz sentido (mole/duro, rígido/maleável, etc) e suas
transformações (física/química) advindas da propriedade inerente de cada material.
Em última instância a materialidade se torna presença, uma representação de si
mesma e de algo; ela é o que presentifica o mundo visível (DIAS, 2005, p. 72-82).
Acrescentaríamos que presentifica, de maneira mais ampla, também, o mundo tátil,
olfativo e audível.
O que o semioticista Lincoln Dias nos fala sobre os materiais tornaram-se
objeto de especulação estética para alguns críticos e historiadores da arte, que
também abordaram essas questões aqui elencadas sobre a matéria, o espaço e a
representação nas obras de arte. Entre eles destacamos o historiador da arte Giulio
Carlo Argan que, em seu livro Arte moderna (1992), aponta para uma crise dos
valores tradicionais da arte e para a “[...] transformação das técnicas de
representação em técnicas de pesquisa.” (ARGAN, 1992, p. 516). Segundo o autor,
não é somente uma crise das técnicas artísticas de representação mas, sobretudo,
de todo um sistema cultural arraigado na racionalidade do pensamento ocidental, já
apresentada pelo filósofo Husserl como a “crise das ciências europeias”. A crítica de
Argan reside também no fato de que a arte é para ser fruída como valor e não para
ser consumida como um objeto, ou muito menos que a pesquisa estética realizada
pelos artistas sirva para tal propósito.
44

O que se convencionou chamar de “morte da arte” ou “fim da arte” – como


veremos em Ferreira Gullar –, segundo Argan (1992) é a decadência das técnicas
artesanais tradicionais e de sua inoperância a partir do sistema de produção
industrial, ou seja, passa-se da tecnologia dos objetos para a tecnologia dos
produtos, para então, consolidar-se hoje na tecnologia da informação. Tudo isso se
reflete nas questões sobre as técnicas de representação e de uso da materialidade
que inclui os “materiais não-artísticos” nas obras de arte. A matéria não é somente
um meio de explicitar certas sensações, mas tudo o que se vive, pois ela é também
memória, conforme afirma Argan (1992) a respeito de Bergson. Assim, os modos de
apreensão estética dessas obras de arte também passam a ser outros, por conta da
inserção de novos materiais e procedimentos técnicos. Dias conclui afirmando que:

O problema da matéria havia surgido no exato momento em que a força


artística tinha deixado de ser representação da realidade para apresentar-se
como realidade autônoma em si: com a colagem cubista e o Construtivismo
russo. (DIAS, 2005, p. 541-542).

O crítico de arte Ferreira Gullar, em Argumentação contra a morte da arte


(1999), ancora sua abordagem sobre as questões aqui elencadas a partir das
transformações ocorridas nas artes plásticas no início do século XX. Analisando as
relações entre o quadro e o objeto, afirma que todas as discussões em torno de um
suposto “fim da arte” estão direcionadas à problemática de seu suporte, ou melhor,
da “[...] destruição do quadro como suporte da pintura.” (GULLAR, 1999, p. 23).
Para o referido autor, a partir daí surge o que se convencionou chamar de
objeto, como alternativa ao “espaço fictício” ou “figurado” da pintura, mas que trouxe
problemas para a linguagem plástica. Todo este processo de mudança criou uma
complexidade de significações em torno das artes plásticas e de sua linguagem –
que cada vez se tornou mais autônoma e criadora de seus próprios códigos e
normas. Com a sua autonomia, cada obra de arte agora parece fundar sua própria
linguagem. Melhor dizendo, saímos do “[…] terreno da representação para o da
presentação.” (GULLAR, 1999, p. 23). Assim, no âmbito das artes plásticas
ocidentais, o objeto surge a partir de três vertentes: o papier collé (Cubismo), o
ready-made (Dadaísmo) e o objet trouvé (Surrealismo), as quais vamos especificar a
seguir.
O papier collé são colagens realizadas por Pablo Picasso e Georges Braque
no período de transição entre o cubismo analítico e o sintético. Essas colagens
45

trazem para o interior da pintura novos materiais como uma folha de jornal impressa,
um pedaço de papel cartão ou papel usado em decoração de paredes, etc. A partir
da inserção dos novos materiais, esses artistas modificam os procedimentos
técnicos e suportes tradicionais da pintura, com o rompimento da representação
ilusória tridimensional criada pela perspectiva, e na maneira de arranjar os
elementos componentes tanto da pintura quanto da colagem na superfície
bidimensional do quadro. No caso da obra A guitarra (figura 1) de Picasso, o artista
utiliza-se de diversos tipos de papeis que são colados e sobrepostos na superfície
pintada e desenhada do quadro, realizando um arranjo com linhas, formas e cores
produzidas com os materiais: carvão, papel e tinta, que assim combinados
figurativizam os fragmentos de uma guitarra. Para Ferreira Gullar, o papier collé
cubista representou o início das mudanças pelas quais as artes plásticas se
ancoraram, com a produção de obras que “[...] não são propriamente pintura nem
são propriamente quadros, mas um novo tipo de objeto que começa a nascer da
pintura” (GULLAR, 1993, p. 24).

Figura 1 – A guitarra (1913) de Pablo Picasso

A obra de Picasso mostra um dos trabalhos realizados pelo artista, que se utilizando das técnicas de
pintura e colagem produz um papier collé, com papeis colados, carvão vegetal, tinta nanquim e giz
sobre papel. Dimensão: 66.4 x 49.6 cm. Museu de Arte Moderna de Nova Iorque Fonte:
<http://www.moma.org/collection/works/38359?locale=pt>.
46

A criação dos ready-mades (figura 2) do artista Marcel Duchamp representou,


segundo Gullar, mais um passo em direção à substituição do quadro pelo objeto, em
que o artista faz apropriações de objetos industriais utilizados no uso cotidiano,
fazendo com eles deslocamentos que alteram sua função inicial, ao mesmo tempo
em que despreza totalmente o caráter artesanal do trabalho artístico, transformando-
o em uma projeção intelectual/conceitual. A obra de arte passa a ser um projeto,
como também afirma Rosalind Krauss, para “[...] levantar questões sobre a natureza
exata do trabalho na expressão ‘trabalho de arte’.” (KRAUSS, 2001, p. 91). A obra
não é mais um objeto físico construído artesanalmente e sim um “[...] ato
especulativo de formular questões […]” (KRAUSS, 2001, p. 91), entre esses
questionamentos tem-se: “O que ‘faz’ uma obra de arte?” (KRAUSS, 2001, p. 88).
Os ready-mades rompem com os procedimentos técnicos do papier collé ao se
apropriarem de objetos comuns do cotidiano e não de materiais, além do mais
preservam o aspecto e o acabamento industrial desses objetos apropriados, que são
deslocados e re-configurados em uma nova composição estética.

Figura 2 – A fonte (1917) de Marcel Duchamp

A obrade Marcel Duchamp é um dos ready-made produzidos no início do Dadaísmo, movimento


artístico e cultural inaugurado no ano de 1916 em Zurique. O artista assina e data a obra, usando o
pseudônimo de “R. Mutt 1917”. A obra resulta de um processo de apropriação de um objeto industrial,
um urinol de porcelana de banheiro masculino, com as dimensões de 23,5 x 18 x 60 cm, exposto de
maneira invertida da habitual sobre um anteparo de madeira. Coleção Arturo Schwarz, Milão. Fonte:
<http://photos1.blogger.com/blogger/7043/1848/320/urinol.1.jpg>.
47

O objet trouvé surrealista (figura 3) diferencia-se dos ready-made pela


estranheza (“encontro fortuito”) do objeto deslocado em novos arranjos estéticos.
Segundo Ferreira Gullar (1993, p. 24): “O objeto deslocado de seu contexto habitual
revela a sua estranheza, a sua forma.” A diferença entre essas duas novas
categorias de objeto artístico se acentua ao percebermos como se dão as escolhas
dos objetos comuns apropriados para compor as obras; enquanto no objet trouvé os
objetos são escolhidos por meio de suas qualidades estéticas, na sua singularidade
em revelar estranhezas, nos ready-made os objetos são escolhidos sem nenhum
critério a priori, sua seleção é aleatória entre os vários objetos produzidos em série.
Além da diferença nos critérios de escolha dos objetos, no objet trouvé os objetos
selecionados passam por certas transformações, não de seu estado físico, mas de
suas características originais, com o acréscimo de outros materiais, como por
exemplo, um ferro de passar roupa com pregos ou uma xícara de café revestida de
pelos. As novas propostas apresentadas pelos artistas surrealistas com o objet
trouvé estão presentes nas obras que produzem determinados efeitos de sentido de
estranheza, revelada por meio de objetos distintos colocados em situações
inusitadas e pelo rompimento das fronteiras entre a arte e a vida.

Figura 3 – Telefone lagosta (1936) de Salvador Dali

A obra Telefone Lagosta realizada por Salvador Dali em 1936. Trata-se de um objet trouvé no qual o
artista agrega um telefone de ferro a uma lagosta feita de gesso, com as dimensões de 17,8 x 33 x
17,8 cm. Tanto o telefone quanto a lagosta são figuras recorrentes na pintura do artista (O sonho de
Vênus, 1939). Tate Gallery, Londres. Fonte:
<http://www.tate.org.uk/art/images/work/T/T03/T03257_10.jpg>.
48

Ferreira Gullar cita (1999, p. 23) ainda a obra de Kurt Schwitters, à qual já nos
referimos anteriormente. O artista inicialmente produz o que convencionou chamar
de merzbilder - suas colagens-pinturas ou “quadro-objeto”; e depois passa a
construir o merzbau – uma espécie de architecture-collé, que se expandia dentro do
ambiente residencial do próprio artista. Os merzbilder de Kurt Schwitters ainda
preservam a estrutura de quadro e foram produzidos com os mesmos procedimentos
técnicos empregados nos papier collé cubista. A continuação do projeto artístico
“merz” de Schwitters, desemboca em uma das primeiras formas de “instalação”
artística, o merzbau (figura 4). Essa forma de architecture-collé foi construída por
Schwitters entre os anos de 1923 e 1933, com os mais diversos tipos materiais
encontrados pelas ruas, como papelão, madeira, pedaços de mobiliário, passagens
de trem, etc., que depois eram colados por todo o espaço disponível das paredes e
chão da residência do artista. Para Ferreira Gullar, o merzbau se caracteriza por
uma identificação da vida com a obra, “[...] cuja característica principal era não ter
fim, possibilitando ao mesmo tempo a integração da ação real (sair para a rua,
trabalhar) com a ação estética (fazer a obra).” (GULLAR, 1999, p. 24).

Figura 4 – Merzbau (1923-1933) de Kurt Schwitters

Kurt Schwitters. Merzbau (original), a partir de 1919-33. Architecture-collé. A Casa de Schwitters em


Hannover. Montagem: pedaços de madeira, papéis diversos (jornais e etiquetas), metais (peças de
moeda, dobradiça de porta...) objetos dos mais variados, colados e pintados. Hannover. Fonte:
<https://en.wikipedia.org/wiki/Kurt_Schwitters#/media/File:Merzbau.jpg>.
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Um pedaço de papel de jornal colado sobre a tela de pintura (papier collé), um


urinol masculino industrial assinado e exposto (ready-made), diversos tipos de
materiais e objetos recolhidos pelas ruas cotidianamente e montados em um
ambiente residencial (architecture-collé) são alguns exemplos vistos do
experimentalismo estético praticado pelos artistas que deram início ao rompimento
com as técnicas e os suportes tradicionais das artes plásticas no decorrer das
primeiras décadas do século XX. Na medida em que essas produções extrapolam
cada vez mais seus limites internos, conquistam sua exterioridade e radicalizam-se,
destruindo, no caso da pintura, seu próprio suporte (quadro) e se transformam em
“objeto”. Deste modo, também se alteram os processos de recepção por parte do
observador (destinatário) diante das referidas obras.
Nesse processo de radicalização e subversão da própria linguagem artística,
promovidas pelos artistas das vanguardas modernistas, além dos novos materiais e
objetos de uso comum empregados nas obras, observa-se também que o espaço
exterior a elas começa a fazer parte do seu processo de produção de sentido. Para
Rosalind Krauss, o que passa a existir é uma “interdependência do objeto construído
e da realidade de sua situação.” (KRAUSS, 2001, p. 93-4).

Figura 5 – Relevo de canto (1915) de Vladimir Tatlin

A obra de Vladímir Tatlin, Relevo de canto, produzida com os materiais: ferro, cobre, madeira e cabos
de aço (dimensões de 71 x 118 cm), está exposta no canto da galeria, situado entre duas paredes
brancas que destacam a sua estrutura expandida. Museu Estatal Russo, São Petersburgo. Fonte:
<http://historiadaartenamodernidade.blogspot.com.br/2010/04/analise-de-obras-das-vanguardas-
lista_9995.html>.
50

A obra do artista Vladimir Tatlin citada por Krauss, Relevo de Canto de 1915
(figura 5), reflete essa “interdependência”. A obra é montada de uma maneira que
não concentra a nossa atenção somente em seu interior, “o núcleo não é o centro da
obra, [ela se expande entre as paredes da galeria que formam um canto,
configurando linhas e planos que se projetam em uma] série de emanações em
direção ao exterior.” (KRAUSS, 2001, p. 69).
Como consequência de tal intenção estética da obra, o observador é levado a
ter que considerar necessariamente o espaço que circunda a obra de arte, que tem
uma relação de complementaridade com o ambiente de sua exposição no processo
de sua produção de sentido; a obra é percebida em relação a toda a ambientação da
galeria, sua estrutura cúbica, paredes branca, luz artificial, etc. A obra de Tatlin
indica assim novos posicionamentos espaciais que o sujeito que a observa deve
adotar frente a ela, de modo que, como comenta Krauss (2001, p. 69), “[...] nossa
experiência de seus relevos é a de uma consciência mais aguçada da situação
específica que habitam”. A autora também trata dessa questão a partir do ponto de
vista do observador:

[...] o significado da maior parte dos objetos de arte está alojado em um


emaranhado de idéias e sentimentos nutridos pelo criador do trabalho,
passando à obra pelo ato de autoria e daí transmitido para um observador
ou leitor. A obra tradicional, portanto, assemelha-se a uma vidraça
transparente, através da qual os espaços psicológicos do observador e do
criador se revelam mutuamente. [...] Tendo passado por cima das funções
tradicionais de significado, o trabalho concentra toda curiosidade de sua
produção. (KRAUSS, 2001, p. 93-94).

Essa conduta do observador posicionar-se para a apreensão estética da obra


de Tatlin, já se faz necessária mais enfaticamente a partir das obras impressionistas,
que a partir de seus novos arranjos plásticos distribuídos no espaço topológico do
quadro, começam a explorar a bidimensionalidade do plano pictórico e a estabelecer
novos pontos de vista ao observador. Na obra Ninfeias (1920) de Claude Monet,
como nos referimos há pouco, pode-se observar esse novo formato de estruturação
do espaço interno da obra, que estimula visualmente o observador a transitar com o
seu olho por toda a superfície da tela. O observador em frente à obra de Monet não
tem mais um ponto fixo de observação criado pela técnica da perspectiva euclidiana,
plenamente desenvolvida no Renascimento. Ele dispõe de um amplo campo visual
em que seu olhar pode transitar sem que todos os elementos composicionais do
quadro o direcionem para um centro, podendo estender-se igualmente por toda a
51

sua superfície até as bordas, nos deixando a impressão de continuidade para além
do quadro.
Com maior frequência, a partir da arte moderna (modernismo), as obras
passam a exigir um papel mais ativo de seus observadores, cada vez mais, como
deslocamentos espaciais de seu corpo na busca de diferentes ângulos de visão,
para que possa realizar a apreensão de uma obra. O observador de corpo estático e
passivo em relação às obras pictóricas clássicas renascentistas, com o
enquadramento de sua visão em um único ponto fixo do quadro (ponto de fuga),
tendo assim a imposição de um lugar determinado, passa a ser um observador de
corpo dinâmico e ativo no processo de recepção da obra moderna.
Os novos materiais e procedimentos de produção e exposição das obras
utilizadas pelos artistas no modernismo trouxeram para a arte contemporânea
modificações fundamentais no seu estatuto, que são de suma importância para a
contextualização do nosso corpus. A obra dadaísta de Marcel Duchamp,
principalmente seus ready-made, promoveu um papel fundamental nessas
mudanças, e exerceu grande influência para os movimentos artísticos da arte
contemporânea que surgiram a partir dos anos 1950, como a Pop Art, o
Minimalismo, o Novo Realismo, a Arte Conceitual, Land Art, assim como seus novos
dispositivos, como as performances, os happenings, as instalações, site specific,
entre outros.
Por seu turno, a arte contemporânea também traz novas abordagens teóricas
e metodológicas na produção/exposição de suas obras, tais como em relação à
concepção de espaço e matéria, rompendo cada vez mais com os suportes e
produzindo novas materialidades; a ênfase no aspecto conceitual e processual que
as obras manifestam; as novas formas de interação que as obras estabelecem com
o seu público e com o contexto em que se inserem; a inserção de novos conceitos,
entre os quais o de “apropriação”, “assemblage”, etc., que serão abordados a seguir
por meio das produções artísticas realizadas a partir dos anos 1960.
Para Ana Claudia de Oliveira, em Convocações multissensoriais da arte no
século XX (2011), os desdobramentos da arte no século XX e suas novas
construções discursivas foram orientados pelos parâmetros que se estabeleceram a
partir das novas concepções da Física (Relatividade) sobre o tempo e o espaço e da
Filosofia sobre a percepção (Fenomenologia). A autora aborda a transição entre a
arte moderna e arte contemporânea, marcadas pelas mudanças na própria
52

concepção da obra de arte, que, gradativamente, se mostram por meio das rupturas
com o suporte, a materialidade, os modos de processamento das obras e o papel do
observador. A arte se renova a partir dessas mudanças ocorridas, que a autora cita
entre outras, a incorporação de diversos tipos de materiais diferentes daqueles
específicos da arte, assim como o rompimento de fronteiras entre as linguagens
artísticas, a exemplo da pintura, que alcançou a tridimensionalidade que a separava
da escultura.
A arte moderna, em sua trajetória, primeiro criou seus próprios códigos
enquanto linguagem autônoma - tornou-se uma presença no mundo, para depois
estabelecer novas relações com outros códigos, assim constituindo uma relação de
intersemioticidade entre “conjuntos significantes”, entre as obras de arte e os
materiais/objetos de uso cotidiano, pertencentes ao domínio de distintas semióticas.
A gradativa transição da Arte Moderna para a Arte Contemporânea suscitará novos
dispositivos e formas de expressão, que se constituirão em um espaço cada vez
mais interacional, como comenta Oliveira “[...] em que a arte é não só pintura, mas
também escultura; não só música, mas também som; não é só dança, mas também
movimento, etc., numa complexa reunião intersemiótica.” (OLIVEIRA, 2011, p. 74).
Ao analisar uma das obras do artista Joseph Kosuth, a semioticista Oliveira
(2004, p. 124) também nos fornece um bom exemplo da abordagem intersemiótica.
Por meio dessa relação podemos depreender as significações construídas na trama
do contexto cultural, artístico e estético, na qual se insere a obra de arte. A obra de
Kosuth é uma instalação intitulada One and three chairs (figura 6) realizada no ano
de 1965 pelo artista, participante do movimento artístico surgido na Europa e EUA e
conhecido por Arte Conceitual, em que a ideia se sobressai, e é anterior mesmo à
própria concepção da materialidade da obra.
A obra traz três dispositivos que o artista selecionou para mostrar e contrapor
às diversas formas de apresentação de um mesmo objeto, uma cadeira. A primeira
trata-se de uma imagem fotográfica em preto e branco; na segunda, o “próprio”
objeto cadeira é mostrado; e a terceira, é um pôster composto de um texto escrito
com verbetes do dicionário da língua inglesa e francesa sobre o significado da
palavra chair (cadeira). São três maneiras de se referenciar a cadeira – através da
imagem (linguagem imagética), do objeto em si e da escrita (linguagem verbal).
Daqui podem surgir questões tais como: quais dessas imagens transcodificariam
“objetos do mundo natural? [...] Ou, quais delas se articulam para ‘nomear’ as
53

coisas, os objetos do ‘real’?” (OLIVEIRA, 2004, p. 124). A autora responde que, o


que ocorre nessa semiose não é uma questão de representação do objeto por um
signo, mas sim de uma relação de intersemioticidade, em que cada imagem realiza
uma semiose em “intra e inter-relação” com as demais imagens que compõem a
instalação do artista (OLIVEIRA, 2004, p. 124).

Figura 6 – One and three chairs (1965) de Joseph Kosuth

A obra conceitual de Kosuth, One and three chairs, é uma instalação composta por três objetos
distribuídos no chão e na parede da galeria: um objeto tridimensional, a cadeira de madeira no
primeiro plano, e dois objetos bidimensionais: um cartaz com imagem fotográfica e um pôster com
texto escrito, ambos no segundo plano. As dimensões da obra são de 112 x 79 x 75 cm. Muséé
National d´Art Moderne, Paris. Fonte: <http://www.arthistoryspot.com/wp-
content/uploads/2010/02/kosuth-med.jpg>.

As ampliações das fronteiras da linguagem artística promovidas pela arte


contemporânea definem cada vez mais a marca de sua “pluralidade semântica”.
Retomando Schaeffer (2004, p. 58), o entendimento que se tem da arte na
contemporaneidade já não pode ser conferido apenas por seu traço estético,
estende-se para uma noção de arte mais ampla e complexa, que agrega cada vez
mais novos elementos e valores de seu universo cultural. O crítico de arte Alberto
Tassinari (2001, p. 75), afirma que: “A comunicação, promovida por um espaço em
obra, entre o espaço do mundo em comum e o espaço da obra de arte é algo de
inteiramente novo na história da arte ocidental.” O autor considera que determinadas
54

funções que antes eram exercidas apenas nos limites internos do espaço da obra
(em uma tela de Picasso do período do Cubismo Analítico, por exemplo) foram
assumidas pelo espaço do mundo em comum (o espaço urbano, a paisagem, a
natureza, etc.). Assim, o que a arte contemporânea traz de novo é o fato de que a
moldura espacial que envolve as obras não consegue mais separá-las do universo
do mundo cotidiano.
Ao solicitar cada vez mais o espaço do mundo em comum, as obras de arte
contemporânea estabelecem uma estreita relação com o ambiente onde estão
inseridas/expostas, seja no espaço urbano ou no espaço do mundo natural. O artista
e ensaísta Daniel Buren, em Textos e entrevistas escolhidos [1967- 2000], faz uma
reflexão sobre o assunto afirmando que: “Todo lugar impregna (formalmente,
arquitetonicamente, sociologicamente, politicamente) radicalmente seu sentido no
objeto (obra/trabalho) que é exposto.” (BUREN, 2001, p. 93). Buren faz um
mapeamento do sistema da arte contemporânea, considerando a obra de arte um
acontecimento urbano e situando-a em um “lugar específico” – in situ. (BUREN,
2001, p. 13). O sentido dessa arte, segundo o autor, está em seus próprios meios
(ou recursos), de forma que a sua arte não precise mais “ditar o olhar”, mas que seja
“produzida pelo olhar” (BUREN, 2001, p. 38).
Alguns dos movimentos artísticos da arte contemporânea, como a Land/ Earth
Art, ou de grupos ligados a happenings e performances (Grupo Fluxus) tiveram a
atitude de ir contra a qualquer regra mercadológica imposta e levar sua arte para
fora dos limites da cidade, ou mesmo realizar ocupações/intervenções pela cidade,
contudo, procurando espaços alternativos ao sistema de galerias comerciais e
instituições de arte (museus, galerias, etc.). Sobre essa questão, Daniel Buren diz
que a arte que se recusa ou ignora as imposições dos museus e das galerias e cria
seus próprios ambientes ou seus próprios museus; apenas afasta o problema, ao
invés de levantá-lo e solucioná-lo. A solução apresentada por Buren é que não se
trata de criar seu próprio espaço cultural sob o pretexto de escapar aos espaços
institucionais da arte, o que seria mais uma vez uma tentativa de isolamento, de fuga
da realidade. Complementa Buren: “Trata-se muito mais, me parece, de mostrar as
implicações imediatas de um dado lugar sobre a obra e, talvez, graças à obra, suas
implicações sobre o lugar”. Assim sendo, “da tensão assim criada, surgirá
dialeticamente a crise entre a função do museu (arquitetura) e a função da arte
(objeto visual)” (BUREN, 2001, p. 93).
55

Essa relação entre o texto e o contexto que se estabelece aumenta o campo


de ação da arte contemporânea e produz novos sentidos nas obras de arte. Pelo
viés da linguagem plástica da escultura, Rosalind Krauss analisa as produções
artísticas entre os anos de 1969 a 1979, identificando-as como não pertencentes
mais à categoria de escultura conforme a conhecemos, mas como detentora de uma
lógica que lhe é característica. Parafraseando a autora, pode-se afirmar que arte não
é só escultura, mas também paisagem e arquitetura a partir dos movimentos
artísticos do Minimalismo e Land Art.
Para Krauss a lógica da escultura se dá há séculos, na arte ocidental, como
representação comemorativa, e por se situar em um determinado local, acaba por
tratar simbolicamente seus significados e usos (lógica da representação e papel de
marco comemorativo). O modernismo, segundo a autora, operou a perda do local
(ausência do local fixo) e consolidou o caráter autorreferencial da linguagem
escultórica, abstraindo-a – a obra absorveu e retirou o pedestal de seu lugar, ao
passo que sua autonomia é dada pela representação de seus próprios materiais.
Esse processo gerou para a escultura uma “condição negativa”, assumindo uma
lógica inversa e se tornando “pura negatividade”, como Krauss explica: “Poderia se
dizer que a escultura deixou de ser algo positivo para se transformar na categoria
resultante da soma da não-paisagem com a não-arquitetura.” (KRAUSS, 1979, p.
133).
Esta condição se acentua nos fins dos anos 1960 com as obras de artistas
minimalistas como Robert Morris, Richard Serra, Christo, Walter de Maria, Robert
Smithson, entre outros. Para Krauss nestas obras estão excluídas as categorias de
escultura modernista, e nossa atenção é chamada para novas posições na condição
lógica que essas categorias assumem nos limites externos dos termos de exclusão.
A autora estabelece uma estrutura lógica, cujos termos positivos paisagem versus
arquitetura produzem um termo complexo “local-construção” e os termos negativos,
não-paisagem versus não-arquitetura geram um termo neutro “escultura”. O termo
complexo da relação lógica estabelecida está relacionado a certas obras de Robert
Morris e de Robert Smithson, que se situam entre a paisagem e a arquitetura; o
termo neutro da relação está relacionado às obras ainda de cunho modernista (arte
moderna); e as demais obras se situam nas outras duas posições dos limites
externos da relação: “locais demarcados” (Spiral Jetty de Smithson) e “estruturas
axiomáticas” (Projeto Reichstag Embrulhado de Christo).
56

Acerca da problematização deste conjunto de oposições lógicas determinadas


entre a paisagem e a arquitetura, a autora chamará de “campo ampliado” ou “campo
expandido” na escultura. Esse campo é estruturado a partir de determinantes
culturais de oposição – uma ampliação característica do campo da arte
contemporânea (pós-modernismo) no que diz respeito a questões referentes à
prática dos artistas e o meio de expressão (KRAUSS, 1979, p. 136). Antes mesmo
que Krauss tenha se referido ao termo em questão, “campo expandido” foi utilizado
anteriormente pelo artista Robert Morris, ao referir-se principalmente às obras dos
movimentos artísticos do Minimalismo e Land/Earth Art, dado que os suportes
tradicionais já não seriam mais suficientes para atender às mudanças na ampliação
do campo de expressão propostas pelos artistas em suas questões estéticas
emergentes.
O campo de ação das artes plásticas se “ampliou” ou se “expandiu” através
das novas propostas estéticas apresentadas pelos artistas que, a partir destas,
estabeleceram novos dispositivos para apreensão do sentido do objeto artístico
contemporâneo. Observados alguns exemplos da relação entre texto e contexto
presente nas obras contemporâneas, passamos a observar, agora, as novas
relações espaciais e sinestésicas que essas obras proporcionam ao observador, por
meio da convocação/interação do corpo na apreensão do sentido, pelas múltiplas
sensações produzidas pelas qualidades sensíveis das obras e pelo deslocamento
espacial do corpo entre e em torno das mesmas.
A variedade de materiais, suportes, formas, volumes e texturas, cores, sons,
cheiros, etc., arranjados nas obras contemporâneas, proporcionam uma
sensibilização do observador, que é convocado a fazer parte como integrante da
obra e com a tarefa de finalizá-la. Segundo Oliveira, nesta perspectiva o processo de
significação das obras acontece bem antes o ato de contemplá-la: “Elas começam
no ato de fazer a obra acontecer, um ato que tem lugar efetivamente durante o
efêmero encontro entre o visitante e a obra.” (OLIVEIRA, 2011, p. 76). O espaço
interacional criado por esse tipo de obra não pode ser consolidado sem a ação
criativa do sujeito, que por sua vez não assume somente o papel de recepção (ato
de contemplação), mas também o papel de emissor (ato de fazer) da obra. Oliveira
ressalta que: “Existem ainda distintos modos do corpo atuar como participante, só
que, nesses outros, ele atua não apenas no fazer receptivo, porém, integrando
igualmente o fazer emissivo da obra.” (OLIVEIRA, 2002a, p. 35).
57

Para exemplificarmos tais questões apresentadas pelas artes plásticas,


voltamo-nos para a obra do artista Hélio Oiticica, no intuito de observar as
especificidades de suas semioses na produção do sentido “sentido” (Landowski)
pela experiência sensível do corpo; assim como comenta Ana Claudia de Oliveira, é
“[...] contando com a sensibilidade do corpo inteiro que a obra se completa”
(OLIVEIRA, 2011, p. 75). Em consonância com os movimentos artísticos da década
de 1960, tanto da Europa quanto dos Estados Unidos, o artista Hélio Oiticica foi um
dos nomes de destaque no início da arte contemporânea no Brasil. Com seus
Parangolés (figura 7), entre 1964 e 1979, ele redefine uma nova proposta
experimental para as artes plásticas. Segundo define o artista: “Parangolé é a
antiarte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de 'apropriação' às
coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo
ambiente [...]” (OITICICA, 1986, p. 35).
Os Parangolés são tipos de indumentárias, capas coloridas, como se fossem
telas de pintura, compostos com vários acessórios do tipo sacos, estandartes,
bandeiras etc., e com os mais diversos tipos de suportes materiais empregados, tais
como tecidos, borracha, cola, tinta, corda, etc. A condição necessária para que a
obra produza sentido é construída na interação, corpo e vestimenta, no ato de vesti-
lo. É necessário que o público seja atuante no processo de construção da obra,
vestindo-os e, literalmente, incorporando-os, para uma ação performática de dança
regida pela música de uma bateria de Escola de Samba (Mangueira). Segundo
afirma o crítico de arte Frederico Morais:

A palavra nada significa, mas na obra de Hélio Oiticica, a partir de 1964,


Parangolé é um programa, uma visão de mundo, uma ética. São capas,
tendas, estandartes, bandeiras e faixas construídas com tecido e cordões,
às vezes guardando em seu bolso pigmentos de cor ou reproduzindo em
sua face palavras, textos e fotos. São para ser vestidos, seu uso podendo
ser associado à dança e à música. (MORAIS, 1989, p. 123).

A obra de Oiticica conjuga várias linguagens da arte e ações integradas que


encontramos, por exemplo, nas performances e happenings do Grupo Fluxus
realizadas no mesmo período. Além das múltiplas linguagens artísticas envolvidas
na produção da obra, como as artes plásticas, a música e a dança, os Parangolés
de Oiticica produzem o sentido em ato, no aqui e no agora em que o corpo interage
com a obra, concebido pelo ato de vestir as capas, portar em mãos os estandartes e
dançar ao ritmo da música. Segundo Eric Landowski, “[...] ‘em situação’ – no ato –,
58

isto é, na singularidade das circunstâncias próprias a cada encontro específico entre


o mundo e um sujeito dado, ou entre determinados sujeitos.” (LANDOWSKI, 1996, p.
28). A participação do corpo na construção do sentido da obra pressupõe uma
relação estética que, segundo aborda Oliveira, somente pode ocorrer com o
“contato” - o “estar com” -, na “adesão” do sujeito que interage com os elementos
que constituem a obra para sua apreensão estética. O “contato” é da ordem do
contágio, que por sua vez implica em um “estar na” e “com” a obra. Segundo
Oliveira:

Vive-se a obra com o corpo na sua dinamicidade entre o repouso e o


movimento, e a significação dá-se na sinestésica forma de vida conciliadora
dos contraditórios, entre o definível e o indefinível, o perigo e a segurança, o
dentro e o fora, o novo e o conhecido, alguns dos opostos que a obra nos
propõe vivenciar. (OLIVEIRA, 2011, p. 81-82).

Figura 7 – Parangolés (1964-79) de Hélio Oiticica

O público participante usando um dos parangolés de Hélio Oiticica intitulado de Parangolé P6, Capa
3, Homenagem a Mário Pedrosa. Os materiais empregados na produção da obra são: tela, pano,
nylon e fotografias de jornal. Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ). Fonte: Reprodução fotográfica
Desdemone Bardin, disponível em <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66321/parangole-p6-
capa-3>.

Os Penetráveis (a partir de 1960) é outra obra-conceito de Oiticica do mesmo


período. Consiste em um programa ambiental e participativo por parte do público,
que o artista concebe em sua nova proposta experimental artística. A obra
59

Tropicália, de 1967 (figura 8), é um ambiente montado dentro da galeria (próximo ao


que se chama atualmente de “instalação”) composto por dois penetráveis: PN2
(Imagético) e PN3 (A Pureza é um Mito). A obra foi produzida com diversos materiais
e objetos, como areia, pedra, tecido, madeira, jarros de plantas, tapumes, etc.,
formando um “ambiente” a ser vivenciado, penetrado e explorado sensorialmente
pelo público, cuja materialidade em contato com o corpo proporciona sensações de
ordem estésica. Para a semiótica trata-se de uma apreensão estésica (Greimas,
2002) visual, tátil, sonora, sentida por todo o corpo que opera apreendendo o sentido
da obra. É o corpo que sente as qualidades sensíveis dos diversos materiais
empregados na obra, como a sensação de andarmos pelo cascalho e escutarmos os
ruídos, os cheiros que exalam dos materiais e das plantas, entre outros. Com os
penetráveis, O artista Oiticica faz convocar todos os sentidos que são apreendidos
pelo corpo, sensibilizando o público visitante a interagir para a fruição de sua obra,
que exploraram e abriram novos caminhos para o desenvolvimento e para a
consolidação da arte contemporânea realizada no Brasil.

Figura 8 – Tropicália: PN2 (Imagético) e PN3 (A Pureza é um Mito) (1966-1967) de Hélio Oiticica.

A instalação de Oiticica é composta por diversos materiais e objetos, entre eles, jarros com plantas,
areias, pedras, aparelho de televisão, tecido e madeira, que estão distribuídos nos vários ambientes
criados pelo artista. Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ). Fonte: Reprodução fotográfica de
César Oiticica Filho, disponível em <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66335/tropicalia>.
60

Outra questão a ser observada é que as mudanças na linguagem artística não


dependem apenas de uma história dos procedimentos artísticos, mas também da
inserção das artes na vida social. Segundo o semioticista Jean-Marie Schaeffer: “A
arte, sendo uma atividade humana, tem tendência a se cristalizar em instituição, ou
de preferência, em um conjunto de instituições (segundo as artes).” (SCHAEFFER,
2004, p. 66-67). A arte precisa de um crivo social a fortiori, uma “sanção social”, ou
seja, “[…] ser uma obra de arte significa também ser aceita pelas instituições
artísticas ‘competentes’.” (SCHAEFFER, 2004, p. 67), sendo que o museu e/ou a
galeria acaba sendo uma “instância de batismo” do objeto artístico, principalmente
quando tratamos da arte contemporânea.
O que se convencionou em chamar arte contemporânea se circunscreve em
um espaço temporal relativamente curto dentro da história das artes plásticas
ocidentais, abrangendo as produções artísticas surgidas pós Segunda Guerra
Mundial. Gradativamente o eixo cultural centrado até então na Europa é transferido
para os EUA [tema abordado por Argan (1992) em Arte Moderna], principalmente
pela migração dos artistas europeus e a anuência do “Novo Mundo” às novas formas
de expressão da arte, bem mais rápida que no “Velho Mundo”. No entanto, nos
últimos anos podemos constatar um processo de ampliação ainda maior, não
somente em termos da linguagem artística (“campo ampliado”), mas também no seu
âmbito institucional, cuja amplitude extrapola o eixo cultural europeu e norte-
americano, concedendo assim maior visibilidade às novas produções artísticas de
outros continentes, como o africano e o asiático, por exemplo.
O Brasil, com a criação da primeira Bienal de São Paulo em 1951, pelo
empresário Francisco Matarazzo, também se tornou um importante polo de
divulgação da arte moderna, e a posteriori da arte contemporânea, fora do eixo
Europa e EUA. A criação desse espaço institucional da arte suscitou o surgimento
de outras instituições igualmente importantes no decorrer da segunda metade do
século XX, tais como o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand - Masp
(1947) e o Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP (1949), e mais
recentemente, o Instituto Itaú Cultural (1987), o Centro Cultural Banco do Brasil
(1989), entre outros.
O crescimento no Brasil dos espaços institucionais permitiu um diálogo maior
com as tendências e produções artísticas contemporâneas realizadas em outros
países. Além dos espaços culturais criados, as inovações tecnológicas e a
61

propagação das novas mídias de comunicação em massa foram fatores


determinantes na aproximação de distintos universos culturais e artísticos.
Diferentemente da maneira como ocorreu no desenvolvimento das artes plásticas no
modernismo do Brasil, em que os artistas simplesmente adotaram em suas práticas
artísticas os modelos da arte vanguardistas europeia, absorvendo-os indistintamente
e trazendo-os para uma realidade brasileira totalmente adversa a da Europa, em que
os artistas, por meio de seus manifestos, já questionavam sobre as atrocidades da
guerra e o impacto do processo de desenvolvimento industrial crescente e
avassalador na vida das pessoas.
A contemporaneidade artística vem consolidando um rompimento de
fronteiras geográficas e culturais nunca antes visto no decorrer da história da arte
ocidental. Essas novas aberturas proporcionaram um intercâmbio ainda maior entre
as produções contemporâneas e uma circulação crescente dos bens culturais; como
exemplo da referida obra de Arthur Bispo do Rosário, convidada já duas vezes a
participar, com bastante visibilidade, da Bienal de Veneza. Destacamos por fim dois
exemplos de artistas contemporâneos, El Anatsui (Gana) e Song Dong (China), que
estão presentes no cenário da arte internacional e utilizam alguns dos
procedimentos técnicos encontrados nas produções artísticas estudadas em nosso
objeto de estudo, com o emprego em suas obras de materiais e objetos de uso
cotidiano, como latas e tampas de garrafas descartadas no lixo ou janelas e portas
encontradas em demolições, para uma nova destinação com fins estéticos.
O artista ganês El Anatsui 5 é conhecido por suas instalações e esculturas
produzidas com o emprego de materiais descartados de uso cotidiano, como sobras
de madeira, pedaços de barro, diversos tipos de metais (fios de cobre), tampas e
latas de alumínio de garrafas de bebidas e comidas enlatadas. Na sua obra Três
Continentes (figura 9), exposta na Galeria Jack Shainman em Nova York, em 2009,
o artista cria uma instalação composta de uma espécie de “tapeçaria” afixada sobre
a parede da galeria, cujo formato ocupa de forma irregular a mesma. A materialidade
da obra é composta basicamente de metais amassados e dobrados, com fios de
cobre que servem para fazer as amarras que unem esses materiais, compondo a
tessitura da obra. Esses materiais formam o arranjo plástico da obra, configurados a

5 O artista El Anatsui recentemente ganhou o Prêmio Leão de Ouro da 56ª Bienal de Veneza de 2015
e nesse mesmo ano participou da mostra de arte contemporânea intitulada Africa africans.
Exposição de arte africana contemporânea realizada no Museu Afro Brasil, na cidade de São Paulo
62

partir de pequenas unidades que se entrelaçam e formam o todo, como um “tecer” a


obra – procedimento estético que dialoga com certas produções de Bispo do
Rosário, como veremos mais a frente na análise de sua obra.

Figura 9 – Três Continentes (2009) de El Anatsui

A obra Três Continentes, exposta na Galeria Jack Shainmam (NY), mostra a assemblage produzida
pelo artista ao montar o arranjo plástico de sua obra, com latas e tampas amassadas que são
entrelaçadas e amarradas com fios de cobre, e que muito se assemelha a uma tapeçaria. Jack
Shainman Gallery, Nova Iorque. Fonte: <http://www.jackshainman.com/artist-image28.html>.

Outro artista que gostaríamos de mencionar é o chinês Song Dong e a sua


obra My City (figura 10), que faz parte da Exposição Regenerate, realizada na
Galeria Baró, em São Paulo no ano de 2014. A obra conjuga instalação e
performance artística. A instalação tem o formato de uma grande estrutura cúbica
com aproximadamente 5m³, praticamente toda fechada, salvo uma de suas laterais
que se encontra semiaberta. Essa estrutura basicamente foi construída com os
resíduos de demolições de prédios da cidade de Pequim, com exceção de uma das
portas, que foi retirada da casa do próprio artista. A parte exterior dessa estrutura é
revestida com janelas e portas de madeira com vidraças pregadas em justaposição
na posição vertical. Já no ambiente interno da estrutura que compõe a obra, além
das portas e janelas mencionadas foram colocados alguns espelhos, tapetes sobre o
chão e luminárias no teto. A performance aconteceu no ato da abertura da
63

exposição, com a realização de um jantar para alguns convidados sentados em uma


grande mesa de madeira, que se projetava para o lado de fora da instalação.

Figura 10 – My city (2014) de Song Dong

A obra de Song Dong construída com janelas, espelhos, abajures e tapetes, conjuga instalação e
performance e tem a dimensão de 5 m³. Exposição Regenerate na Galeria Baró, São Paulo, 2014.
Fonte: imagens de Edouard Fraipont (2014).

Nas duas obras dos artistas mencionados, além da reunião de várias


linguagens artísticas para a concepção da obra, podemos observar uma proximidade
nos procedimentos técnicos adotados por eles, por meio da apropriação de materiais
e objetos da cotidianidade, que por sua vez se faz cada vez mais presente nas artes
plásticas contemporâneas. Esse procedimento técnico, que se apropria de materiais
e objetos para rearranjá-los esteticamente nas obras, pode ser observado nas obras
pertencentes ao movimento artístico do Novo Realismo.
O Novo Realismo é iniciado no ano de 1960 em Paris, e suas influências
remontam tanto aos ready-made de Duchamp, com apropriações e deslocamentos
de objetos de uso cotidiano, quanto à mais contemporânea Pop Art, com a utilização
dos meios da tecnologia de reprodução industrial, a exemplo das obras de Robert
Rauschenberg ou de Andy Warhol. Para os artistas do movimento, o “real” deve ser
percebido em si, cujo principal meio de expressão é o que foi definido por
assemblage. Esse termo procede do verbo francês assembler, que significa reunir,
acumular, juntar, processo que os artistas utilizaram para produção de suas obras
por meio de colagens, montagens, instalações, etc.; entre elas destacaríamos as
“acumulações” de Armam, as “compressões” de César ou as “descolagens” de
Haimz (MORAIS, 1989, p. 60).
64

As apropriações, os deslocamentos, as acumulações, etc., são algumas das


ações que caracterizam as experimentações estéticas apresentadas pelos artistas
na produção de suas obras, que se constituem como operações na enunciação do
sentido, como será visto a seguir. As apropriações feitas pelos artistas
contemporâneos, dos materiais e objetos de uso cotidiano, entram nas obras como
matéria na sua produção, revelam o papel importante e transformador que a matéria
assume na arte, e que permite ao seu público vivenciar cada vez mais uma
experiência sensorial, espacial e matérica com as obras. Esses procedimentos
técnicos e criativos mostram as inovações experimentais realizadas pelos artistas,
que por meio das novas materialidades constituídas em suas obras, estabelecem
novos sentidos para as artes plásticas contemporâneas. Como comenta Ana Claudia
de Oliveira: “Essa outra ordenação desencadeia efeitos de sentido estésicos que
levam a uma sensibilização e reelaboração do conhecido ao reencontrá-lo sob
inusitados prismas.” (OLIVEIRA, 2002a, p. 46).

2.2 Os procedimentos enunciativos na apropriação das matérias e materiais do


cotidiano

A partir de nossa abordagem sobre as mudanças consolidadas na arte no


decorrer no século XX, com os novos materiais e procedimentos técnicos adotados
pelos artistas, nos propomos, agora, a mostrar uma sistematização dos
procedimentos de enunciação, a relação de intertextualidade e contextual, a partir de
uma obra selecionada no contexto das artes plásticas produzidas no Brasil nos
últimos anos. A “apropriação” desses materiais e objetos de uso cotidiano, ao serem
deslocados de suas funções práticas, vai assumir novas funções estéticas nas
obras, que os artistas adotam como uma forma de “tática” artística da enunciação do
sentido da arte contemporânea.
O termo “tática” é empregado pelo historiador Michel de Certeau, em A
Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer (2014), ao analisar certas “práticas” ou
“maneiras de fazer” cotidianas que se dão no âmbito social. Essas “maneiras de
fazer” podem ser representadas por meio das maneiras dos usuários realizarem uma
intervenção criativa no cotidiano, pelos quais, segundo o autor, “[...] se reapropriam
do espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural [com a intenção de
65

colocar em funcionamento] uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os


‘detalhes’ do cotidiano.” (CERTEAU, 2014, p. 41).
Certeau identifica entres essas práticas o “trabalho com sucata” ou “a arte da
sucata” – como algo presente em nossa cultura, inscrito dentro de um sistema
industrial e que se configurará fora deste, como uma variante na forma da
bricolagem (“tática”). A “tática”, ação típica das práticas cotidianas apontadas por
Certeau, aproxima-se das “táticas” artísticas contemporâneas empregadas pelos
artistas na produção de suas obras. Por vezes, essas “táticas” artísticas agem
através de um processo de bricolagem e o artista se torna um bricoleur, na acepção
do termo usado pelo antropólogo Levi-Strauss (1989), anteriormente já mencionado.
A ação do bricoleur se concentra a partir de um conjunto não estruturado de
elementos (signos) diversos, ainda que limitados, para daí transformá-lo em um
conjunto estruturado, porém sempre em aberto, em devir.
Uma das “táticas” presente na contemporaneidade artística, como observado
acima, é a “apropriação” das matérias e materiais de uso cotidiano. A “apropriação”
no sentido empregado na arte é tema abordado pelo historiador da arte Douglas
Crimp em Sobre as ruínas do museu (2005). O autor nos chama atenção para o
caráter ubíquo das apropriações (citações e pastiches), como algo que se estende
por todos os aspectos da cultura contemporânea, mas não que seja algo recente
nas artes plásticas. No entanto, a “apropriação” é concebida pelos artistas de
maneiras diferenciadas, como o exemplo conferido por Crimp, a partir dos artistas
Robert Mapplethorpe e Sherrie Levine: ambos se utilizam da fotografia como
ferramenta de apropriação, contudo, há distinções. Mapplethorpe faz uma
apropriação do estilo clássico de Edward Weston (vanguarda nova-iorquina da
década de 1920), o qual combina, transforma e acrescenta às suas fotografias, ou
seja, “[…] ergue de suas raízes históricas uma visão ‘pessoal’ de síntese.” (CRIMP,
2005, p. 121); enquanto Levine faz a apropriação a partir das próprias fotografias de
Edward Weston, fotografando-os novamente sem nenhuma intervenção na produção
da imagem.
Os dois procedimentos de apropriação analisados por Crimp nas referidas
fotografias, o primeiro presente na arte moderna e o segundo na arte
contemporânea, também são encontrados nas apropriações dos materiais e objetos
(não artísticos) pelos artistas plásticos na produção de suas obras, desde o papier
collé cubista até a assemblage do Novo Realismo. A partir dos exemplos de Certeau
66

(“tática”) e Crimp (“apropriação”), e aproximando-os às questões tratadas em nosso


objeto de estudo, podemos dizer que a tática, ação própria do bricoleur, da
bricolagem realizada com os materiais e objetos do cotidiano, conjuga-se a uma
série de programações artísticas estabelecida pelos artistas na produção de suas
obras. A apropriação como tática artística no cotidiano desencadeia outros
procedimentos de enunciação instaurados pelos discursos das obras, assim como
sua operação de intertextualidade. No intuito de observar esses procedimentos de
enunciação e as relações intertextuais, propomo-nos a seguir a descrevê-los a partir
da obra Pimp my carroça do coletivo Urban Trash Art.
A obra Pimp my carroça (figura 11), do coletivo Urban Trash Art (UTA),
coordenado pelos artistas paulistas Padô e Rodrigo, foi realizada sob a forma de
uma intervenção urbana durante o evento da Virada Cultural de São Paulo em 2012.
O local do evento, o Vale do Anhangabaú, é uma região localizada no centro da
cidade de São Paulo, e representa histórica e simbolicamente um marco
emblemático da formação cultural paulistana e da origem do processo de
urbanização da cidade no decorrer dos séculos XIX e XX. O Vale do Anhangabaú é
o maior espaço para pedestres construído em área de centros históricos urbanos no
mundo; é, pois, um local de passagem e de rotina da vida cotidiana paulistana.
Como um produto finalizado, a obra Pimp my carroça pode ser classificada, à
primeira vista, como uma escultura, no entanto, vai além do que lhe é característica,
como já visto na abordagem de Rosalind Krass sobre a escultura no campo
ampliado nas artes plásticas contemporâneas. A obra é produzida in loco e in
tempore, para mostrar seu processo de construção, a partir de uma ação
performática realizada pelo coletivo em um lugar específico e no decorrer de um
tempo determinado; assume características de uma arte processual e efêmera, e
mais, “in situ”, na acepção do termo usado pelo artista Daniel Buren. Além de se
instalar em um ambiente paisagístico e arquitetônico sem nenhum pedestal, no
processo de produção da obra acontece uma intervenção pictórica sobre a sua
estrutura, com imagens e palavras grafitadas pelos artistas Mundano e Mauro Neri.
Em síntese, então, poderíamos classificar tal obra a princípio e de forma geral, como
sendo uma intervenção urbana realizada por meio de uma performance do coletivo
(UTA), em que produz uma estrutura escultórica semelhante a uma assemblage.
67

Figura 11 – Pimp my carroça (2012) do grupo Urban Trash Art

A obra Pimp my carroça sendo produzida “in situ”, na região do Vale do Anhangabaú no decorrer da
Virada Cultural de São Paulo de 2012, com a participação do artista paulista Mundano que realiza um
grafite da logomarca do seu projeto Pimp my carroça. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa
(2012).

Para a produção da estrutura escultórica que compõe a obra Pimp my carroça


foram utilizados diversos tipos de materiais e objetos já usados, que foram
descartados pelas ruas como lixo. Entre eles estão: portas, janelas, vigas e ripas de
caixas de madeira, carretel de madeira para cabos de aço, pias, barbantes, fios
metálicos, partes de uma geladeira, sapatos, tampa de vaso sanitário, etc. Os
materiais como os fios metálicos (da rede elétrica) ou as tábuas de madeira (da
construção civil) possuem outras utilidades na produção da obra, sendo usados para
fazer amarras e preenchimentos de partes da estrutura principal. Outros objetos,
como uma caixa de madeira (para armazenar frutas e verduras), são desmontados e
transformados em materiais, em ripas de madeira para o acabamento de partes mais
detalhadas. Porém, ainda outros objetos, como uma pia de porcelana, têm
conservadas as suas características físicas, e são parafusados diretamente como
elementos composicionais da obra.
A obra escultórica Pimp my carroça evidencia seu fazer poético por meio de
sua materialidade, instaurado no espaço do aqui e no tempo do agora a partir dos
68

diferentes estatutos de matéria, material e objetos empregados na obra. O


enunciatário é convocado estesicamente à apreensão do sentido, produzido pelos
efeitos de sentido a partir de suas qualidades matéricas conjugadas, que é resultado
de uma série de operações que agregam os diversos materiais e objetos usados.
Assim, os procedimentos enunciativos constituídos por meio da materialidade da
obra podem ser analisados a partir dos estados e transformações da matéria, que
nos propomos a descrever por meio da metodologia de analise conferida pela
semioticista Françoise Bastide (1987), que analisa o processo de preparo da sopa
de pesto como constituinte de um discurso enunciado culinário.
Françoise Bastide, em seu artigo Le traitement de la matière: opérations
élémentaires (1987), a partir de um estudo sobre o estado da matéria e suas
transformações, propõe quatro categorias de pares opositivos que podem operar de
modo geral o tratamento da matéria. A autora analisa os processos do fazer de uma
receita culinária (sopa de pesto) e do enriquecimento do polônio para inferir sobre os
procedimentos de transformação da matéria nos diferentes casos. As operações são
formuladas a partir das categorias do estado da matéria: amorfo vs. estruturado;
discretos vs. compactos; expandidos vs. contraídos e simples vs. compostos; e a
partir dos fazeres transformadores de estado: mistura e triagem.
As categorias opositivas, amorfo e estruturado, relacionam-se à estrutura dos
objetos, ou seja, à “falta de estrutura” ou à estrutura de um determinado objeto de
valor, como no caso da preparação da sopa de pesto, que a partir de várias
operações transforma objetos estruturados (legumes e verduras) em uma forma
amorfa (sopa). As categorias opostas, discretos e compactos, são representadas
pelos pós, gases e líquidos como os elementos discretos, e os sólidos como os
elementos compactos. As mudanças de estado que se operam nos objetos discretos
e compactos proporcionam o surgimento da dualidade: expandidos vs. contraídos,
que tem como exemplo o açúcar dissolvido no café (expansão) ou o sal dissolvido
que pode ser cristalizado (contraído). Por último, nas categorizações em oposição
dos objetos entre simples e compostos, tem-se representada na primeira os objetos
compostos por partes indistintas, e na segunda, os objetos compostos por partes
distintas.
Nas operações fundamentais da elaboração de uma receita ou da estrutura
de um determinado objeto, Bastide formula uma sucessão ou hierarquia do
programa de transformação, que tem uma abertura e um encerramento. No estado
69

inicial podemos ter um objeto com ausência de estrutura ou no estado de destruição,


como no caso do preparo de uma sopa - com a destruição das formas dos legumes;
e por meio da seleção e arranjo, para chegar ao seu estado final de transformação
expandido dos objetos desestruturados (amorfo); sendo que a seleção antecede o
ato de transformação da matéria. A sequência do programa de transformação da
matéria na realização da receita da sopa de pesto se estrutura como mostra o
esquema a seguir:

Esquema 2 – Sequência do programa de transformação da matéria na realização da receita da sopa


de pesto

ABERTURA DESTRUIÇÃO MISTURA EXPANSÃO


ENCERRAMENTO ESTRUTURAÇÃO SELEÇÃO CONTRAÍDOS

Fonte: Bastide (1987, p. 22).

A partir do quadro esquemático de análise estruturado por Bastide, que


mostra a sucessão e hierarquia do arranjo programático das operações de
transformação da matéria, sistematizamos os procedimentos de enunciação do
sentido constituídos a partir do processo de produção da obra Pimp my carroça. A
sequência do programa de transformação da matéria se dá inicialmente pela
abertura, com a apropriação dos materiais e objetos do lixo, que são coletados a
partir de uma seleção temporal (antes do evento) e espacial (no local do evento). Os
objetos coletados passam por uma triagem, separados e limpos das impurezas
(“destruição”), sendo desnaturalizados ao serem deslocados de suas funções
práticas. Na etapa seguinte ocorre a mistura, em que são empregados os
procedimentos técnicos de colar, pregar e parafusar, para constituir pelo acúmulo
das matérias o arranjo da materialidade da obra, a partir dos objetos não-
estruturados, compactos e simples. A sequência do programa de transformação se
encerra com o fechamento, em que se tem a ressignificação das matérias e
materiais de uso cotidiano, que são transformadas em matéria plástica da obra de
reutilização (função estética), obtendo assim um objeto estruturado, compacto e
composto. O processo de transformação da matéria articulado na produção da obra
Pimp my carroça atua entre as categorias amorfizante vs. estruturante.
70

Esquema 3 – Operações de transformação da matéria na produção da obra Pimp my carroça


APROPRIAÇÃO DESLOCAMENTO ACUMULAÇÃO RESSIGNIFICAÇÃO
ABERTURA FECHAMENTO
SELEÇÃO: DESESTRUTURAÇÃO: MISTURA: ESTRUTURAÇÃO:
coleta dos Os materiais e objetos Arranjo da O produto final da
materiais/objetos coletados que seriam materialidade obra – uso do uso
de uso cotidiano destinados ao lixo; das obras com (função estética)
(função prática) TRIAGEM: separação os
para a produção e limpeza dos materiais procedimentos
da obra e objetos a serem técnicos de
Seleção empregados nas obras colar, pregar e - objeto estruturado,
espacial: coleta parafusar. compacto e
no centro urbano - objetos não- composto.
de São Paulo; estruturados,
Seleção compactos e
temporal: coleta simples
antes do evento
Fonte: elaborado pelo autor.

Para tratar das relações intertextuais na obra Pimp my carroça retomaremos


Norma Discini (2013), que aborda a intertextualidade como característica da
heterogeneidade de um texto ou gênero. Segundo Discini a intertextualidade se dá a
partir da imitação de um texto por outro para que possa captá-lo ou subvertê-lo. No
primeiro caso, tem-se a estilização, que é a imitação e captura de um texto - à
maneira de outro texto – sem que haja uma mudança no sentido entre o texto
imitado e o texto que se imita; no segundo, tem-se a paródia, que além de imitar o
texto de referência vem a subvertê-lo a ponto de mudar o seu sentido.
A partir do processo de intertextualidade, que se faz pela imitação de um texto
por outro, observamos as marcas deixadas no texto que, no caso da obra Pimp my
carroça, estão presentes pelas formas intertextuais tanto da estilização quanto da
paródia. No primeiro caso temos a estilização, na qual o destinador, o coletivo UTA,
no ato de produção de sua obra faz à maneira do texto imitado (estilizado), captando
os procedimentos enunciativos de um estilo próprio de fazer carroças, comuns no
centro de São Paulo, que são utilizadas pelos coletores de resíduos recicláveis como
ferramenta de trabalho. A materialidade do arranjo da obra Pimp my carroça reforça
o estilo imitado. O próprio título da obra indica os caminhos do texto outro imitado;
Pimp my carroça faz uma citação ao projeto social e artístico do grafiteiro Mundano,
que leva o mesmo nome da obra. Trata-se de um projeto que tem como objetivo
incrementar as carroças que circulam pelas ruas do centro de São Paulo, com
reparos, pinturas e instalação de equipamentos de segurança, além de providenciar
71

alimentação e higienização pessoal, assistência médica e psicológica aos


carroceiros. Mundano observa que, na cidade de São Paulo, produzem-se 17 mil
toneladas de lixo por dia (das quais apenas 1% é reciclado) e há aproximadamente
20 mil catadores de materiais recicláveis, que reciclam 90% dos resíduos destinados
à reciclagem.
A obra Pimp my carroça, além de captar a voz do texto imitado também o
subverte. A carroça como objeto utilitário nas mãos dos coletores de resíduos
recicláveis é transformada e subvertida em objeto artístico pelo coletivo UTA. A obra
reconstrói uma carroça de tamanho desproporcional em relação às carroças que
encontramos circulando nas ruas do centro de São Paulo, faz o público crer em um
simulacro de realidade, construindo sentido em ato como um modo de presença
inusitado no ambiente que é exposta. A imitação nesse caso supõe um efeito
polêmico, e não irônico, remete-se a um ethos lúdico como uma forma de crítica
social e ambiental, com o reaproveitamento dos materiais e objetos usados e
descartados e com textos escritos grafitados com emblemáticas expressões de
cunho político, entre elas, “reciclem os corruptos”.
Pimp my carroça foi produzida com as matérias e materiais de uso cotidiano,
descartadas pelos habitantes da urbe como lixo, que são reutilizadas e
transformadas em matéria plástica (materialidade) do arranjo escultórico. O
reaproveitamento do lixo, como materialidade significante na produção de sentido,
faz com que a obra se ancore em questões referentes à
sustentabilidade/preservação, adotando assim um procedimento de reescritura de
objetos sobras, que são coletados em lugares públicos, pelos quais vem a ser
edificada uma obra de reutilização.
A obra propõe assim, uma reflexão (crítica) junto à sociedade para a qual se
direciona (destinatário), ela nos chama a atenção tanto para a forma de consumir
desta sociedade quanto para a maneira que nos relacionamos (em sociedade) com
o ambiente em que vivemos. Em Arte Moderna, Carlo Argan (1992) afirma que a
pesquisa estética deve ser autônoma e não servir ao consumo, sendo a arte para
ser fruída e não consumida. Segundo o autor: “A arte é ação desinteressada, que
não se permite uma falsa justificação moral elegendo como valores supremos o
lucro, o bem-estar, o poder [a arte tem a capacidade de transformar assim] o
pragmatismo alienante da vida cotidiana.” (ARGAN, 1992, p. 527).
72

A obra do UTA possibilita tanto o rompimento com a lógica do consumo


quanto com a linguagem prosaica do cotidiano. Obras como Pimp my carroça trazem
essas problemáticas que se referem ao ecossistema das relações sociais,
econômicas e ambientais vividas pelo homem contemporâneo, ao passo que
mostram, por meio de suas materialidades construídas pelo lixo, uma forma de
“riqueza” a ser explorada frente à escassez dos recursos naturais fundamentais para
a nossa sobrevivência, devido ao seu uso indevido e desmensurado, juntamente,
com o crescimento populacional e industrial das cidades.
A cidade de São Paulo é o lócus de onde emanam todos os materiais e
objetos que são recolhidos de sua cotidianidade, para o seu reuso na produção da
obra pelo coletivo, e a hospeda em seu espaço público. Os materiais e objetos do
cotidiano (descartados) foram coletados nos depósitos de lixo e ruas em torno do
centro (Vale do Anhangabaú) da cidade de São Paulo. A cidade então, como afirma
Carlo Argan, em seu livro História da Arte como História da Cidade (1995), não
somente fornece aos artistas a matéria-prima e o seu espaço físico para
produção/exposição das obras, mas é nesse “organismo cultural complexo” que a
própria arte se realiza e, reciprocamente, a cidade “encontra na arte seu fator
unitário”. A cidade já é por ela mesma um produto artístico e, ao mesmo tempo, um
museu de arte, como explica o autor: “Entendida como sistema de comunicação
visual, mesmo as mais modernas das cidades podem ser um museu, enquanto o
museu como centro vivo da cultura visual é um componente ativo do estudo e do
desenvolvimento da cidade.” (ARGAN, 1995, p. 81).
A obra Pimp my carroça se põe em relação na situação contextual de um
centro urbano, colocando em discussão os valores da cidade que desejamos e
idealizamos frente à cidade real de nosso cotidiano. Para Argan (1995), temos
contradições entre a cidade ideal e a cidade real, apesar de coexistirem (a ideal
dentro ou sob a real). A primeira contradição refere-se ao mundo do pensamento, à
cidade metafísica/celeste, e está relacionada às culturas cuja mímesis é o modelo
fundamental/padrão; a segunda refere-se ao mundo dos fatos/acontecimentos, a
cidade terrena/humana, e reflete as dificuldades da arte se manifestar em um mundo
de contradições. Conclui o autor: “[...] a cidade real jamais corresponde às formas
idênticas dos modelos ideais.” (ARGAN, 1995, p. 75).
Argan pensa a arte como um conceito abstrato pertencente a todas as
civilizações, fruto de uma consciência intencional que indica “[...] a convergência e a
73

cooperação de um conjunto de artes distintas [...]” (ARGAN, 1995, p. 82), seja arte
urbana, arte popular, arte rural etc., mas que é a cidade o espaço “onde tudo se
passa”, e a cidade vai se construindo juntamente com a arte. Além do mais, entre a
arte e a cidade acontece um duplo movimento na abrangência do espaço expositivo
da arte, como a arte exposta nos museus/galerias de arte (espaço público-privado)
da cidade, e a arte exposta no próprio ambiente da cidade (espaço público-público).
Certeau em A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar (2013), também
aborda o tema da cidade (Uma mítica da cidade) e das práticas cotidianas de seus
habitantes. Para o autor, os habitantes (“trabalhadores e comerciantes vivos”)
reivindicam mais que a ocupação de um determinado lugar na cidade, mas também
o “[…] direito à sua estética […]” (CERTEAU, 2013, p. 198). A arte “popular”, que cita
como exemplo, também não tem destaque por todos os “técnicos” e “engenheiros”
ou “promotores” e “funcionários”, que estrategicamente planejam/administram a
cidade; esses artistas populares desconhecidos merecem os seus direitos de
“autores da cidade”, como afirma Certeau:

Desde o museu camponês de Albert Demard, em Champlitte, até o museu


de arte bruta de Micheal Thevoz em Lausanne, tudo prova, ao contrário, as
insólitas capacidades poéticas desses habitantes-artistas desdenhadas
pelos engenheiros-terapeutas da cidade. (2013, p. 198).

Para o autor, o patrimônio de uma cidade não é composto de seus objetos


produzidos, mas feito com as capacidades criativas e inventivas do seu habitante-
artista que, “[…] articula, à maneira de uma língua falada, a prática sutil e múltipla de
um vasto conjunto de coisas manipuladas e personalizadas, reempregadas e
‘poetisadas’ [...] o patrimônio são todas essas ‘artes de fazer’”; continua o autor: “A
arte de hoje já o faz e reconhece nisso uma de suas fontes, como aquilo que era
para ela, ontem, as criações a africanas e taitianas.” (CERTEAU, 2013, p. 199). Os
artistas cotidianos apresentam/expõem pela cidade milhares de maneiras de vestir-
se, de circular, de habitar, de decorar, etc., e assim “traçam as invenções nascidas
de memórias ignoradas [...]. Eles fazem da cidade uma imensa memória em que
prolifera a poética.” (CERTEAU, 2013, p. 199). Essas práticas dos habitantes criam
no espaço urbano da cidade uma combinação entre “lugares antigos” e “situações
novas” (CERTEAU, 2013, p. 199).
Por fim, Certeau trata de “uma mítica da cidade”, no que diz respeito a uma
democratização do espaço urbano e de sua estética, e aponta para duas redes;
74

“gestos” e “relatos”, como “cadeias de operações feitas sobre e com o léxico das
coisas”, sendo ancorados por dois modos: um “tático” e outro “linguístico”, que
segundo o autor, manipulam e deslocam objetos “[...] modificando-lhes as
repartições e os empregos [...]” (CERTEAU, 2013, p. 198) são ‘bricolagens’, casando
citações de passados com extratos de presente para torna-los séries (processos
gestuais, itinerários narrativos) em que os contrários simbolizam. Continua o autor,
os “gestos” são os “arquivos da cidade”, que refazem cotidianamente a paisagem
urbana, por meio de seus arquivos (“passado selecionado e reempregado em função
de usos presentes”): “São as chaves da cidade: elas dão acesso ao que ela é,
mítica.” (CERTEAU, 2013, p. 199-200).
A cidade, nos contextos apresentados por Argan e Certeau, é tanto museu
quanto mítica, respectivamente, como cenário para produção/exposição de suas
múltiplas manifestações culturais e como um lugar das poéticas que seus
“habitantes-artistas” produzem, por meio de suas bricolagens, os “arquivos (“gestos”)
de memória da própria cidade. A obra Pimp my carroça do coletivo UTA se faz como
poética, produzida pelo “gesto” desses artistas-bricoleurs, que por meio de suas
“táticas” artistas criam com os elementos de que dispõem (materiais e objetos
descartados) nos seus respectivos ambientes (cotidiano da cidade) em que se
encontram. Deste modo, essa obra faz parte do contexto da cidade museu de Argan
e da cidade mítica de Certeau, pois mantém uma relação de reciprocidade entre a
arte e a cidade (o espaço urbano da cidade como lugar de sua criação/exposição),
ao mesmo tempo em que são produzidos, por meio dos “gestos” ou “arquivos” da
cidade que configuram sua memória: são tanto “gestos” efêmeros, como no caso da
obra do UTA e de Vik Muniz, quanto “gestos” duráveis, como no caso das obras de
Bispo e de Chiquitão, que nos propomos analisar a seguir.

2.3 Os materiais de uso nas artes plásticas/visuais

Acrescentamos ao final do presente capítulo, dois esquemas ilustrativos


(Esquemas 4 e 5) da história dos materiais de uso das artes plásticas/visuais, de
modo geral no mundo ocidental e em específico no Brasil; e um esquema síntese
dos procedimentos de uso desses materiais. Nos dois esquemas ilustrativos, tanto o
geral quanto o específico, apresentamos uma linha de tempo diacrônica por meio do
surgimento das categorias dos materiais artísticos e matérias não-artísticos
75

abordando assim: os períodos e movimentos artísticos; os materiais; as modalidades


artísticas e técnicas; e alguns exemplos de manifestações artísticas, que foram
produzidas e projetadas sobre os suportes - da pedra ao pixel – incluindo nosso
corpus de obras analisadas.
A partir dos esquemas ilustrativos realizamos uma síntese de três
procedimentos de uso dos materiais ao longo da história das artes plásticas e visuais
(Esquema 6): A seleção do uso (de materiais proto-artísticos): Como atividade
primeva, com a obtenção dos materiais por mera contingência para produção das
obras. Os materiais proto-artísticos são descobertos pela experiência cotidiana na
busca da sobrevivência. A sistematização do uso (de materiais artísticos): quando
os usos de determinados materiais passam a ser recorrentes com a intenção de
atender à um propósito específico de produzir um objeto artístico. Os materiais
artísticos são empregados na produção das obras para configuração plástica de
suas representações. A combinação dos usos (de materiais artísticos e materiais
não-artísticos): quando materiais e objetos de usos comuns (função prática) são
incorporados às obras juntamente com os materiais tradicionais da arte. Os materiais
tanto artísticos quanto materiais não artísticos passam a ter significação autônoma
Separamos as categorias de materiais artísticos versus materiais não-
artísticos à título de uma exposição didática, pois as fronteiras entre esses tipos de
categorias a partir do século XIX já não são tão nítidas, acontecendo mais
enfaticamente com o surgimento das vanguardas e do experimentalismo artístico no
início do século XX e principalmente, com a arte contemporânea. Além dessas duas
categorias de materiais, com os materiais nobres (sistematização do uso) e
materiais/objetos “comuns” e nobres (combinação dos usos); chegamos a uma
terceira, a categoria dos materiais proto-artísticos que são os materiais
rudimentares (seleção de uso).
CATEGORIA: MATERIAIS ARTÍSTICOS VERSUS MATERIAIS NÃO ARTÍSTICOS
(HISTÓRIA DAS ARTES PLÁSTICAS/VISUAIS OCIDENTAL: DA PEDRA AO PIXEL)

Fonte: elaborado pelo autor


Esquema 4 – História das Arte Plásticas/Visuais Ocidental: da pedra ao pixel.
76
CATEGORIA: MATERIAIS ARTÍSTICOS VERSUS MATERIAIS NÃO ARTÍSTICOS
(HISTÓRIA DAS ARTES PLÁSTICAS/VISUAIS NO BRASIL)
.

Fonte: elaborado pelo autor.


Esquema 5 – História das Arte Plásticas/Visuais no Brasil
77
78

Esquema 6 – História dos materiais de uso nas Artes Plásticas/Visuais

Fonte: elaborado pelo autor.


79

3 A ANÁLISE DOS MATERIAIS E MATÉRIAS NA CONSTRUÇÃO DE SENTIDO


DOS DISCURSOS VISUAIS POÉTICOS

Uma obra contemporânea não transforma o


mundo em arte, mas ao contrário, solicita o espaço
do mundo em comum para nele se instaurar como
arte.
Alberto Tassinari (2001, p. 76)

3.1 Manto da apresentação de Arthur Bispo do Rosário

(...) respondo, quem somos nós, quem é


cada um de nós senão uma combinatória de
experiências, de informações, de leituras, de
imaginações? Cada vida é uma enciclopédia,
uma biblioteca, um inventário de objetos, uma
amostragem de estilos onde tudo pode ser
continuamente remexido e reordenado de todas
as maneiras possíveis.
Ítalo Calvino (1990, p. 138)

Figura12 - Manto da Apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário

Obra exposta na Trigésima Bienal de São Paulo: A Iminência das Poéticas em 2012. Foto: Ricardo
Toscani/FFW, disponível em: <http://ffw.com.br/noticias/category/arte/page/4/>.
80

A primeira obra selecionada, Manto da apresentação (figura 12), foi produzida


por Arthur Bispo do Rosário (1909/11-1989) na ocasião de sua permanência na
Colônia Juliano Moreira entre os anos de 1939 e 1989. Não se sabe ao certo a
datação exata de quando iniciou ou terminou a produção dessa obra.
Trata-se de uma vestimenta, um manto todo cortado, costurado e bordado a
mão pelo artista. Além do Manto da apresentação, todas as obras que compõem o
acervo de mais de oitocentos trabalhos de Bispo atualmente se encontram no Museu
Bispo do Rosário Arte Contemporânea, que está localizado na própria Colônia
Juliano Moreira, no bairro Taquara, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Essas obras não ficam expostas permanentemente no museu e somente em certas
ocasiões fazem parte de exposições no local, sendo que com bastante frequência
são emprestadas para mostras em museus/galerias e para participações em bienais
de arte, no âmbito nacional e internacional.
Conforme podemos observar na imagem do Manto da apresentação, exposta
juntamente com outras obras na Trigésima Bienal de São Paulo, intitulada A
iminência das poéticas (2012), se tem a maneira pela qual estamos habituados a
olhá-la e apreendê-la. Desde a primeira exposição póstuma Registros de minha
passagem pela terra no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo (1990) até a
Bienal de Veneza, Palácio enciclopédico (2012), a obra sempre foi exposta seguindo
a mesma sistemática que acabamos de ver, colocada em um cabide de roupas e
suspenso a certa altura do chão da galeria. Desse modo, esse dispositivo expositivo
restringe as possibilidades de apreensão da obra em sua totalidade, pois o
destinatário, quando diante da obra, somente tem uma visão parcial da face externa
do manto, assim restando-lhe apenas alguns indícios, que são possíveis de serem
vistos, de que o trabalho do artista tem continuidade também na face interna.
As imagens fotográficas de Walter Firmo (figura 13) e o vídeo de Fernando
Gabeira (DVD, em anexo), ambos realizados em 1985, mostram Bispo no interior da
Colônia Juliano Moreira em sua ação performática de vestir o Manto da
Apresentação. Desse modo, pode-se notar uma sistematização diferente nos modos
de exibição e, consequentemente, de produção de sentido da obra, com a
intencionalidade estética de ser vestida, ou melhor, para se tornar uma presença
corpórea no próprio corpo de quem a veste. O processo criativo da obra se
destacaria com o seu sentido de busca que se atualiza na produção de sentido no
ato de ser vestido. Esse procedimento performático utilizado pelo artista em sua
81

obra, registrado no momento mesmo da sua produção de sentido em ato, é a


maneira pela qual nos propomos analisar a obra.

Figura 13 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo

Pátio da do interior da Colônia Juliano Moreira, 1985. Fonte: Catálogo da exposição Walter Firmo: um
olhar sobre Bispo do Rosário (2013).

O primeiro registro que tomamos como referência são as imagens do ensaio


fotográfico de Walter Firmo, produzidas na ocasião de uma visita do jornalista à
Colônia Juliano Moreira. As fotografias foram exibidas pela primeira vez ao público
na Exposição Walter Firmo: um olhar sobre Bispo do Rosário, realizada, em 2013,
no Centro Cultural da Caixa Econômica no Rio de Janeiro. As imagens mostram
Bispo em diversas situações, no pátio da Colônia vestindo o Manto da apresentação
e um dos seus Fardões ou no interior do seu “quarto-cela”, ambiente onde morava e
hospedava o conjunto de sua obra.
O segundo registro vem reforçar o referencial visual para a presente análise,
com o vídeo de Fernando Gabeira intitulado Série vídeo – cartas. Bispo. Trata-se de
um dos raros registros audiovisuais de como o artista concebeu a montagem de sua
82

obra no próprio ambiente cotidiano da Colônia. No vídeo, o entrevistador Fernando


Gabeira inicia sua narrativa diante do portão fechado da Colônia Juliano Moreira,
apresentando o artista, o ambiente em que ele vive e a época em que lá viveu. Por
detrás dos muros da Colônia, aparece já Bispo vestido com o Manto da
apresentação. Um close mostra o artista bem envelhecido, que depois se põe a
caminhar pelo pátio. O vídeo também apresenta algumas de suas obras expostas no
pátio, como Arca de Noé e Estandartes e no interior do “quarto-cela”, Cama de
Romeu e Julieta, Carrossel e os Fardões, que ele também os veste. Bispo também
aparece em trajes comuns e em situações rotineiras na Colônia, comendo no
refeitório ou limpando as suas obras. No final, Gabeira, em posse de um dos
Estandartes, apresenta-o ao espectador. Depois, com Bispo joga xadrez, usando as
peças e tabuleiro que compõem a sua obra Tabuleiro de xadrez.
O Manto da apresentação de Arthur Bispo do Rosário nos instiga por toda a
sua complexidade enquanto objeto artístico e pelos modos de como se dá a
produção de sentido construído pelo discurso da obra. Percebe-se nas imagens que
registram Bispo, in situ, que o Manto (que é a apresentação) faz a visibilidade, torna-
se visível, ao mesmo tempo, como objeto tridimensional (o Manto que veste o corpo)
e como suporte bidimensional, pois é o Manto que serve para configuração de um
arranjo plástico em sua superfície. Desse modo, propomo-nos a descrevê-lo a partir
da constituição desse arranjo plástico pela bricolagem de sua tessitura - o corpo do
Manto, e pelos modos como veste o corpo - o Manto no corpo.
O corpo do Manto foi praticamente todo produzido com materiais têxteis
encontrados nas dependências da própria Colônia Juliano Moreira e,
posteriormente, com materiais comprados em armarinhos próximos e ofertados a
Bispo, que os incorporava à sua obra. Para obtenção dos materiais que utilizou na
produção do Manto, Bispo desfiava e reaproveitava parte dos lençóis, cobertores e
roupas para conseguir os fios do bordado e os pedaços de tecidos que eram
costurados. Esses materiais reaproveitados passaram primeiramente por um
processo de desconstrução (desfiar, cortar) para então servir a um novo propósito no
processo de construção da costura e do bordado. Além desses materiais, também
fazem parte da obra, na categoria de objeto, as dragonas de fardões militares e os
pingentes de cortina.
Selecionamos três imagens, com três pontos de vista diferentes, para obter
uma melhor visualização do Manto da apresentação, pois, pela maneira de como a
83

obra foi concebida, se torna difícil a sua total apreensão visual. A obra traz
elementos de seu arranjo plástico tanto na parte externa que se mostra quanto na
parte interna que se esconde como um segredo (somente colocando-o ao avesso é
possível desvendá-lo e apreendê-lo). A primeira e a segunda imagens (figura 14 e
15) mostram respectivamente a face externa, tanto frontal quanto as costas do
Manto. A última imagem (figura 16a e 16b) revela o segredo de sua face interna, seu
avesso, a qual não temos acesso imediato. O Manto tem a medida de 118,5 cm de
comprimento, medida dos ombros, por 141,2 cm de altura, do colarinho à parte de
baixo nas franjas e 20 cm de espessura lateral.
Na face externa do Manto, a estrutura material que serve de suporte principal
é feita de tecido de linho, conhecido como linhão do Panamá. As linhas (fios)
utilizadas para o bordado são de algodão, as cordas são de torçal de algodão e de
seda, os pingentes de cortina feitos de linha de algodão e de seda, as dragonas com
franjas de linha de seda e o colarinho de um tecido denominado gorgorão. O
acabamento das bordas apresenta o debrum/viés feito de tecido de algodão e as
franjas são de seda. Na face interna, vê-se que o suporte de tecido é feito de
popeline e a linha para o bordado é de algodão.

Figura 14 - Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário

Face externa, fronte do Manto. Tecido, linha e metal 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo
concedidas pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
84

Figura 15 - Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário

Face Externa, costas do Manto, 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo concedidas pelo Museu Bispo
do Rosário Arte Contemporânea.

Figura 16a - Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário

Face Interna: Avesso frente, 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo concedidas pelo Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea.
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Figura 16b - Manto da apresentação (1939-1989) de Arthur Bispo do Rosário

Face Interna. Avesso costas do Manto da Apresentação, 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo
concedidas pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.

Os materiais têxteis e as suas respectivas cores da face externa e interna do


Manto se contrastam e se complementam. O tecido rugoso linhão do Panamá, da
face externa, tem a cor terra de siena natural e põe em destaque o bordado em
volume com uma rica variedade de cores, entre o azul, vermelho, amarelo, branco e
preto. Já o tecido liso de popeline de cor branca contrasta com o bordado realizado
com fios de tecido de cor azul. Na superfície do Manto estão superpostas cordas
finas e grossas com as cores verde, cor-de-rosa, marrom, preta, dourada e prateada,
branca etc. que formam diversos tipos de tramas. As duas cordas mais grossas com
pingentes de cortina em suas extremidades se debruçam e se estendem em paralelo
e verticalmente sobre a frente e as costas do Manto. Já as cordas finas estão
afixadas nas bordas da face externa do Manto, principalmente na sua frente, que se
entrecruzam e convergem para um determinado ponto no seu centro. As dragonas
nos ombros e o debrum/viés das laterais do Manto têm a cor branca do próprio do
algodão cru e o gorgorão franjado de cor vermelha se destaca no lugar da gola.
Uma das técnicas utilizadas na produção do Manto da apresentação não é
nada convencional frente às conhecidas das artes plásticas. No entanto, o bordado
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já é um procedimento técnico artesanal tradicional da cultura nordestina, comumente


encontrado na região do Município de Japaratuba no Estado de Sergipe, local de
nascimento do artista e onde provavelmente aprendeu esse ofício. Antes mesmo da
realização do bordado, há os processos de corte e costura feitos a mão na
confecção do Manto, assim como as aplicações dos objetos em sua superfície. Em
posse de fios de tecidos azuis desfiados e fios de lã, o artista utiliza-se da técnica do
bordado conhecida como ponto de haste e ponto cheio. A primeira técnica é utilizada
para configurar o contorno das formas, enquanto a segunda serve para os seus
preenchimentos por completo que, quando prontos, formam os “desenhos” coloridos
e em relevo distribuídos na superfície do Manto.
A partir da técnica do bordado e da aplicação de objetos empregados pelo
artista, são constituídas as representações simbólicas e semissimbólicas sobre o
Manto. Cada presença no Manto é uma obra na qual Bispo registrou o
empoderamento de uma vida. O modo como ele realizou tal registro faz ser a
presença. Essa presença se manifesta na sua superfície, da face exterior e interior,
por meio de “desenhos” bordados que dão forma a letras do alfabeto, palavras,
números, imagens. É por meio de “objetos” trançados e sobrepostos que se constrói
a unicidade na totalidade da obra. O que por sua vez traz o modo de recolher o
mundo pelos sentidos, do estar no mundo, assim é o cotidiano e seus objetos que
formam os registros do arranjo plástico, figurativo e mítico do Manto.
O arranjo figurativo da obra traz alguns elementos representados que são
facilmente identificáveis a partir de suas respectivas configurações formais sobre o
Manto. Na frente do Manto aparecem as letras sem se chegar a formar palavras: R,
F, E, G, S, etc. Elas estão ao lado de pequenas bandeirolas ou estão espalhadas (F,
I, H, D, H, M, etc.) ou juntas (I, N, J, R). Algumas dessas letras formam palavras:
“EM MEU NOME”, “UNIVERSO”, “CÉU”, “CRISTO”, etc. Encontramos inscritos
também números romanos (XLVIII – XLIX – L –LI – LII, etc.) e arábicos (313 – 994 –
284 – 276, etc.). Há dezenas de representações figurativas que estão em profusão
na direção ao ponto central do Manto, indicado pelo ponto de encontro das cordas
trançadas sobre a sua superfície. Há uma diversidade de representações
configuradas pelo bordado como, por exemplo, uma fazenda, uma rede de luz
elétrica de dois cabos, um trilho de trem, navios, submarino, bandeiras, insígnias da
marinha brasileira, placas de sinais da marinha, um coração, cadeiras, mesas, peças
do jogo de xadrez (torres, cavalos, peões, etc.) e de dominó, um apito, carrinhos
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com rodas, roupas nos manequins, um dado, escadas, instrumentos agrícolas


(enxada, pás, gadanhos, foices), varas de pescar com linhas e anzóis, colheres, uma
balança, um pistão, um guarda-chuva, redes de vôlei e tênis, etc. Algumas linhas
coloridas sugeridas pelo desenho bordado transitam pela superfície do Manto entre
os elementos representados. Ainda na parte central do Manto foi costurado um
pedaço de tecido negro na forma oval e amarrado com fio de lã vermelho, uma
espécie de “patuá” de cor branca entre as duas cordas grossas paralelas que
perpassam verticalmente sobre o Manto.
Na superfície das costas do Manto, apesar de ter mais espaços vazios sem
os trançados das cordas, encontramos também bordados os números romanos
(LVIII – LIX – LXI – etc.) e os arábicos (670 – 414 – 907 etc.). Além dos números,
há ainda letras separadas V / O / T / I / V / U / A / N e juntas NO / LE / SU / SEOTE
(OESTE) que, nesse caso, indicam os pontos cardeais. Podemos observar também
diferentes representações figurativas “desenhadas” por meio do bordado nas costas
do Manto, tais como: uma grande mandala semelhante a uma bússola, um tabuleiro
de xadrez, um globo e um gramofone, navios e insígnias da Marinha brasileira e o
trilho de trem, as redes elétricas de dois cabos e de quatro cabos em pares de dois
(que se estendem pela parte da frente e parecem finalizar nas costas), duas mesas
de sinuca, um piano, redes de pesca, escada de avião, um cadeado, certos
brinquedos (gangorra, balaço de cavalo de pau, velocípede, etc.), mesa de pingue-
pongue e raquete, as bandeirolas, as bicicletas, as mesas, as peças de dominó, os
carrinhos com rodas, etc.
Já na frente e nas costas do avesso do Manto, por meio do bordado com
linhas de cor azul sobre o fundo branco do tecido de popeline, são configurados em
sua superfície centenas de nomes escritos envoltos em uma espécie de caixa-
moldura. Esses nomes bordados sobre a superfície do Manto estão distribuídos um
ao lado do outro, em sequência e dentro de uma grande forma espiralada. São
inscrições em caixa-alta com nomes de mulheres, que elencamos alguns a seguir:
ARAÇY - DOS - SANTOS / ROSA - NEUSA / MARIA - QUITINO / JOSEFA - PAULA
/ HELENA - SILVA / ANTONIETA - DOS - SANTOS / ALEXANDRINA - NUNES /
NOEMIA - RAMOS / ELVIRA - MARIA - LEONI / LUZIA - MELLO / MARIA -
ANGELO / CARME - COUTO / CARLOTA - COUTO, etc.
A partir desse levantamento inicial, com a descrição de algumas das
representações escritas e visuais configuradas pelo desenho bordado e pelo
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trançado das cordas do arranjo plástico da obra, podemos ter uma visualização da
totalidade tridimensional da face externa e interna do Manto. No entanto, ainda falta
um componente fundamental para que se complete a produção de sentido da obra:
o corpo. Esse sentido se atualiza no ato de vestir o Manto, o corpo do Manto se
torna também o Manto no corpo, proporcionando efeitos de sentido captados em
ato, entre o dinamismo e a estabilidade constituídos pela ação performática do
sujeito que veste e é vestido pelo Manto.
As imagens fotográficas e videográficas, ambas realizadas no ano de 1985,
que registraram Bispo vestindo o Manto da apresentação, mostram-no sempre em
seu “parecer corpóreo” (OLIVEIRA, 2007, p. 07), com aproximadamente 75 anos de
idade, de cavanhaque branco, olhar ora severo ora contemplativo e com muitas
marcas de expressão. Por debaixo do Manto, Bispo usa calças jeans azul e um tênis
branco sem cadarços, ambos já bastante usados. O Manto recobre praticamente
todo o seu corpo até abaixo do joelho, se estendendo próximo ao chão. No entanto,
as suas costas são mais curtas, se aproximando da parte detrás do joelho. Os
braços e as mãos também estão completamente encobertos, sendo mostrados
apenas quando são realizados determinados gestos e movimentos corporais. Ao
andar, Bispo movimenta seu corpo lentamente com o peso e volume da robustez do
Manto que, por sua vez, movimenta-se sobre o seu corpo de forma ondular com a
sinuosidade do drapeado do tecido. Os gestos corporais mais presentes nessa
gestualidade do seu modo de parecer se manifesta a partir das articulações dos
braços e das mãos, ora quando estende os braços abertos com as mãos inclinadas,
à direita para cima e à esquerda para baixo (como veremos mais a frente), ora com
os braços curvados e as mãos juntas sobre o peito (figura 17).
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Figura 17 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo

Detalhe do gesto das mãos de Bispo. Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Firmo: um olhar sobre
Bispo do Rosário (2013).

No decorrer da presente pesquisa sobre o Manto da apresentação, nos


deparamos por acaso como uma série de imagens fotográficas (figura 18) que
também registraram Bispo vestindo o Manto na Colônia Juliano Moreira. A série
fotográfica foram localizadas no acervo Núcleo de Acervo Iconográfico do Arquivo
Público do Estado de São Paulo, sem datação ou identificação do autor e nunca
foram publicadas. As sete imagens em preto e branco registraram Bispo vestindo o
que identificamos como sendo um esboço ou um ensaio do Manto, ou seja, uma
primeira versão do Manto da apresentação. A imagem fotográfica mostra Bispo
ainda com uma aparência jovial e um sorriso estampado no rosto sentado à sombra
de uma árvore. Ele está usando um Manto que muito se assemelha ao que
conhecemos hoje, mas que, se o observarmos atentamente, nota-se que se trata de
outro Manto, produzido anteriormente, e que não traz o mesmo arranjo plástico e
figurativo.
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Figura 18 - Bispo com a primeira versão do Manto da Apresentação

Bispo vestindo a primeira versão do Manto da Apresentação sentado à sombra de uma árvore na
Colônia Juliano Moreira. Imagens cedidas pelo Núcleo de Acervo Iconográfico do Arquivo Público do
Estado de São Paulo [MISSÃO: 719 – 42 negativos].

Quando comparamos as imagens dos dois Mantos, apesar das semelhanças,


as diferenças são ainda mais notórias. Essas diferenças são evidentes na primeira
versão do Manto da apresentação, pois, por exemplo, as suas dimensões são
menores, não se têm as mesmas variedades dos elementos composicionais, nem
em relação às cordas trançadas nem em relação aos bordados, entre outros
detalhes. Trata-se, assim, de um modelo experimental para produção de algo mais
sofisticado e arrojado, que dependia de um querer e de um saber-fazer aprimorados
pelo tempo, cujo apoderar-se da vida revela um caráter processual e durativo
presente em sua obra. Importante também notar que, quando Bispo veste a primeira
versão do Manto, a sua hexis corporal, com movimentos dos braços e das mãos,
constitui-se de gestos expressivos e simbólicos semelhantes aos observados nas
imagens mais recentes da versão última do Manto como se pode observar a seguir.
O braço e mão direita apontam para o alto, enquanto o braço e mão esquerda
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repousam para baixo. Esses gestos constituem no corpo vestido uma certa isotopia
da gestualidade, que mostra sua atuação e comportamento enquanto “sujeito no
mundo” e como seu corpo se torna uma presença na sua “construção identitária”
(OLIVEIRA, 2007, p. 07).

Figura 19 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo

Bispo e detalhe do gesto das mãos de Bispo. Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Firmo: um olhar
sobre Bispo do Rosário (2013).

Em seu texto, Nas interações corpo e moda, os simulacros, Ana Claudia de


Oliveira trata das interações entre corpo e roupa, do corpo vestido, o que o sujeito é
e como ele se mostra compondo a sua aparência no seu contexto de atuação. O
sentido da roupa se completa vestido no corpo. Assim, para a semioticista “(...) o
corpo vestido assume a sua competência de produzir uma visualidade para o sujeito,
mostrando pelos seus modos de estar no mundo, o seu ser.” (OLIVEIRA, 2007, p.
24). No relacionar do corpo e da roupa, o sentido se faz emergir dessas duas
plásticas, como corpo vestido. No Manto de Bispo, o corpo vestido é o do próprio
criador que investe no discurso valores das narrativas de seus modos de existir.
Segundo Oliveira: “O entrelaçado de visão e movimento permite-nos abordar a
dimensão plástica e rítmica da dimensão figurativa do corpo vestido.” (OLIVEIRA,
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2007, p. 24). Desse modo, se depreende a visualidade e o cinetismo do corpo


vestido (figura 19).
Na produção da obra, como já visto, uma grande maioria dos materiais e
objetos utilizados foram reaproveitados, enquanto apenas alguns novos foram
utilizados, como algumas das linhas para bordado, pingentes de cortina, franjas, etc.
No entanto, quando chegamos perto do Manto da apresentação podemos observar
o desgaste da matéria, visível a olho nu e que podemos detectá-la por outro sentido
respectivamente solicitado: o olfato. O cheiro que emana de seu estofo lhe confere
um sentido imediato de matéria em envelhecimento, ou seja, de material usurado.
Tem-se dois sentidos, a visão e o olfato, interagindo para apreensão das qualidades
sensíveis do Manto e suas articulações na construção de sua significação. Um outro
sentido também solicitado para apreensão sensível do Manto é o tato. O que pode
ser captado pelo toque não é somente o caráter tridimensional de nosso objeto, que
por si só já tem uma riqueza muito grande de materiais superpostos sobre sua
superfície, mas também pelo que está incrustado em sua superfície tanto externa
quanto interna, sob a forma de um bordado. Poderemos senti-lo ao tocar o relevo
formado pelo bordado, tal como a linguagem do “braile”, ao tocá-lo “ler-se-á” as
linhas, as formas figurativas, as letras e os números. A visão se torna aliada do
olfato e do tato na apreensão do sentido da obra.
A partir dessa apresentação inicial e da descrição dos materiais e técnicas
empregados na produção do Manto da apresentação, pretende-se agora realizar a
segmentação e categorização do plano da expressão do texto visual. Para tal,
descreveremos juntos tanto o corpo do Manto (dimensões plástica e figurativa do
Manto) quanto o Manto no corpo (plástico/rítmico e figurativo do corpo vestido).
A análise inicia-se pela dimensão eidética (esquema 7a e 7b). Pode-se assim
observar que o manto é constituído por diferentes formantes que estabelecem
oposições, como o reto/curvo, angular/arredondado, vertical/horizontal,
perpendicular/diagonal. Vê-se, por exemplo, como o manto conjuga o reto e o curvo,
sendo o primeiro na parte superior do manto e o segundo na parte inferior. Ela
também é constituída plasticamente pela relação entre o vertical e o horizontal,
sobretudo pela disposição de suas figuras, que podem ser “lidas” nessas duas
direções, a depender de sua disposição. Além disso, ainda em relação à disposição
das figuras, em sua composição plástica, há também a relação entre o perpendicular
e o diagonal, como veremos abaixo. Todas essas oposições podem ser sintetizadas
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por meio de uma oposição simétrico vs assimétrico. Em suma, o eidético está em


relação direta com a linha, enquanto materialidade, que borda as figuras que
ganham no desenho sobre o tecido um relevo que destaca o eidético da trama do
desenho.
No entanto, as próprias figuras que compõem a dimensão eidética do manto,
também são elas feitas de formas e de cores que estão nas distintas materialidades
das linhas no Manto. Desse modo, é preciso ver também como elas organizam todas
essas dimensões da plasticidade.

Esquema 7a– Diagrama da dimensão eidética (2016)

Desenho da frente do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo autor.
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Esquema 7b – Diagrama da dimensão eidética (2016)

Desenho das costas do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo
autor.

Os tecidos que servem de suporte para a construção do Manto dão o tom escuro
e o claro ao fundo da sua face externa e interna, que servem de bases para os
coloridos bordados. Na sua face externa, temos o linhão do Panamá de cor terra
siena natural e textura rugosa que, por sua vez, na sua parte interna apresenta o
popeline de cor branca e textura lisa. Os bordados do exterior do Manto são
multicoloridos, produzidos com fios de lã predominantemente de cores primárias e
secundárias, além do preto e branco, enquanto os bordados do interior são
produzidos com fios de tecido azul claro. Assim, na dimensão cromática (esquema
8a e 8b) temos as categorias monocromático/claro vs policromático escuro.
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Esquema 8a – Diagrama da dimensão cromático (2016)

Desenho da frente do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo autor.

Esquema 8b – Diagrama da dimensão cromático (2016)

Desenho das costas do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo
autor.
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Depois de todas essas considerações sobre a plasticidade do manto, é


preciso se voltar para a análise da dimensão matérica. Por meio do desenho
esquemático (esquema 9a e 9b), percebe-se que a oposição se constitui entre os
termos liso vs rugoso. Assim, entende-se que os materiais (enquanto manifestação
imediata do sentido), como o tecido, os fios e os pontos agulhas, através dos
procedimentos do artista colocam em relação o cromático, o eidético e o topológico.
Por essa razão, pode-se dizer que a organização das qualidades plásticas da
obra, ou seja, o conjunto de formantes que a constitui, tem no formante matérico o
seu ponto principal, pois é ele o responsável por produzir a força de interação, de
percepção, etc. Desse modo, é por meio dos formantes matéricos que se
manifestam os outros formantes, como o eidético, o topológico e o cromático,
revelando o predomínio da matéria como modo de manifestar as outras formas.
Além disso, deve-se considerar que o manto envolve uma série de outros
significados que ora estão mais evidentes ora são acobertados. Por exemplo, o
manto, como um objeto cotidiano, possui uma finalidade prática, em geral para se
proteger do frio. Em uma observação rápida dessa situação, é fácil identificar um
manto e diferenciá-lo de um casaco, por exemplo. Mas esse uso inicial é colocado
como secundário no caso do objeto de estudo deste trabalho, porque a sua
visibilidade é constituída de outro modo que faz o outro se relacionar com um novo
uso constituído por uma intencionalidade estética.
Essa diferença de usos é dada pelo arranjo plástico do manto. Assim, os
materiais têm qualidades plásticas que indicam a sua unicidade (ele não é igual a
nenhum outro manto do mundo) e sua força e volume incomuns conduzem o
pensamento à experiência do que é vivido por meio de seus materiais.
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Esquema 9a – Diagrama da dimensão matérico (2016)

Desenho da frente do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo autor.

Esquema 9b – Diagrama da dimensão matérico (2016)

Desenho das costas do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo
autor.
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Na dimensão topológica, tem-se uma oposição de base que vai gerar outras
oposições relacionadas a essa. Trata-se da oposição dentro vs fora, que pode ser
relacionado com o segredo dos nomes das mulheres. Como foi mostrado, os nomes
de mulheres estão localizados na parte interna do manto. Do mesmo modo, pode-se
conjugar o interno ao privado e mesmo à intimidade que as figuras femininas
remetem e que se homologam com a questão da pele com a pele. Pelo outro polo
da oposição, o fora se correlaciona com o visível e o exposto por meio das figuras
bordadas e que remetem ao tema da sociabilidade e da coletividade.
Ainda em relação aos formantes topológicos, tem-se a relação entre as partes
do manto. Assim, há uma relação entre costa e frente, direita e esquerda, alto,
central e baixo. Além das partes, pode-se também examinar o manto por meio de
uma única constituição topológica, em que se estabelece a homologação entre as
figuras do corpo e as figuras do manto.
O manto apresenta algumas figuras bem delineadas. São seres, objetos e
caixas que, por meio do delineamento de sua figuratividade (pelo desenho) podem
ser divididos pelas categorias de aberto vs fechado, como é o caso dos quadros que
englobam os nomes de mulheres, em uma representação, pela totalidade de nomes,
que remete ao feminino. Além disso, na questão cromática, os seres femininos - pelo
nome – são bordados em azul. São nomes de mulheres que Bispo catalogou a vida
toda em fichários, que ele distribui em caixas molduras que produzem a figura da
espiral. Em muitas culturas, a espiral simboliza o ciclo da vida, presentes em forma
de volutas nas colunas da ordem jônicas grega e no corpo do animal marinho
nautilus. Em termos matemáticos a espiral é formada a partir de um retângulo áureo,
que também forma a conhecida sequência numérica de Leonardo Fibonacci. A
espiral tanto pode representar o micro-universo (homem) quanto o macro-universo
(cosmos). Assim, como abordou Landowski em Regimes de espaço, ao tratar da
figura da voluta, ele afirma: “[...] constelações giram sobre si mesmas, até
singularidades dinâmicas configuram-se por ajustamento entre formas em
movimento, autônomas mas afin” (LANDOWSKI, 2015, p. 11).
Após se considerar as questões levantadas pelo corpo do manto, se verá o
cromatismo, a materialidade, a corporeidade e a forma da roupa no corpo.
Nessa relação entre manto e corpo, há uma série de elementos formais que
podem ser considerados. Em termos de amplitude, pode-se pensar na oposição
solta vs presa e folgada vs apertada. Na questão da espessura, há uma oposição
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como a grossa vs fina. Em relação à sua consistência, uma relação de oposição


entre pesada vs leve. Por fim, na textura, há uma oposição entre áspera vs
aveludada. Todos esses elementos podem ser aplicados à roupagem e, em
especial, ao objeto de análise deste trabalho.
Nessa relação a plasticidade do manto também apresenta outras categorias
que levam a uma relação entre o corpo realizado e o corpo potencial. O manto não
modela o corpo como uma roupa comum. Ele é envolvente e englobante, enquanto
o corpo é o envolvido e o englobado. Assim, há uma hierarquia do manto sobre o
corpo, pois o ressignifica. Por isso, se pode dizer que há atributos matéricos do
manto que vestem o corpo.
O Manto cobre do pescoço aos joelhos, deixando à vista somente cabeça,
mão, metade das pernas e pés. Há assim uma relação entre coberto e descoberto
para complementar a relação englobante e englobado. O Manto é uma peça
vestimentar, uma indumentária, única, que foi tecida tendo como referência o próprio
corpo do seu sujeito do fazer e bordado pelas suas próprias mãos.
Além disso, outra oposição que se pode depreender dessa relação é o que
ocorre entre a sua dinamicidade (mobilidade) e/ou estaticidade (fixação), pois o
Manto da apresentação que veste o corpo do sujeito, transforma o corpo em uma
parte do próprio objeto. Assim, o manto transforma o corpo não apenas como um
suporte da obra, mas como parte fundamental do fazer-artístico.

Esquema 10a – Diagrama do Manto no corpo (2016)

Frente: Corpo encoberto e corpo descoberto pelo Manto da apresentação. Fonte: elaborado pelo
autor.
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Esquema 10b - Diagrama da dimensão topológica (2016)

Costas: Corpo encoberto e corpo descoberto pelo Manto da apresentação.

Outra questão levantada pelo objeto é o modo como o dentro e fora se


relacionam como os formantes eidéticos, cromáticos, topológicos, matéricos nessa
distribuição dentro e fora. Inicialmente, há uma oposição exterior vs interior. Essa
relação pode ser vista pela lateralidade como retângulos justapostos a retângulos
que formam uma espiral como um movimento ininterrupto da vida, que faz o
movimento de dentro para fora.
O manto é constituído, na parte de dentro pelo tecido de popeline (liso),
enquanto formante matérico. O formante cromático é branco no tecido e azul nas
linhas bordadas. Do lado de fora, o matérico é constituído de tecido de linhão do
Panamá (rugoso), cuja espessura é formada pela densidade das tramas dos fios – a
resistência do material –, que está relacionada à função de dar proteção, não ligada
às condições climáticas, como em um manto comum, mas sim às questões de
proteção espiritual-religiosa. O formante cromático é a terra de siena natural no
tecido.
Sobre os formantes eidéticos, os bordados em cores primárias, secundárias e
não-cores (branco e preto) orientam os acabamentos nas extremidades: colarinho de
gorgorão (vermelho) / dragonas de fardamentos militares nos ombros (amarelo
ouro). Isso mostra a ligação do Manto à forma de um uniforme, pois as bordas são
feitas de debrum/viés de algodão, com aplicação de franjas de seda e pingentes de
cortinas.
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No conjunto dos formantes matérico, cromático e eidético, vê-se que todo o


Manto bordado é praticamente recoberto por galões/torçais de diferentes espessuras
na cor dourado e prata, vermelho, preto e azul. Essa descrição aponta para o jogo
entre figura fundo. Assim, há figuras (bordados, galões/torçais) que se destacam de
um fundo que é predominantemente cromático (superfície de cor terra).
No caso do relevo, o predomínio que se pode observar da materialidade é por
meio da linha. Assim, no formante cromático, há uma predominância do amarelo,
seguido do branco e azul. O relevo é formado por figura de formantes e é esse
formante constituído por formantes constitutivos que resulta na tridimensionalidade
Tridimensionalmente, o corpo movente revela um programa narrativo do
sujeito no mundo com os seus fazeres, que pode ser, então, tomado como o
programa narrativo do corpo movente. Ao mesmo tempo, pode-se tomar o manto
como um texto sincrético o qual remete ao texto da vida vivida, inscrito por meio das
figuras que remetem aos fatos, ocorrências e acontecimentos do mundo mundano (e
não espiritual) em uma relação de intertextualidade e interdiscursividade com o
mundo natural que será tratada posteriormente.
Assim, as figuras da expressão, pelos arranjos dos formantes, estão
assentadas nas categorias da expressão continuidade vc descontinuidade.
Como já mencionado, as figuras mostram diferentes constituições. As que são
vistas do lado de fora do manto são figuras do conteúdo que remetem ao universo
do masculino, enquanto as internas, por meio dos nomes separados por molduras
de bordado em caixa alta, remetem ao universo do feminino. Separadas por
molduras de bordados /Cor azul claro da calça de uniforme masculino e dos lençóis
da Colônia.
Tirar o fio já tecido da roupa – roupa que tece outra – discurso de discurso –
mostra uma prática dotada de sentidos, pois é constituinte do que esse material
cromático desenha no interior do Manto. O interno ser preenchido por nomes de
mulheres pode significar que no interior se encontra o feminino, as nomeações de
Bispo. O interno do Manto, enquanto sentidos táteis, é mais liso, aconchegante e
macio, colocando a proteção das mulheres no interno. Já no exterior ou na parte
externa do Manto, com características matéricas mais ásperas/rugosas, se
encontram as ações e tudo que remete ao masculino.
Pelo que foi dito, é possível depreender o seguinte esquema das oposições
presentes no plano da expressão (esquema 11) do Manto da apresentação:
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Esquema 11 – Quadro dos formantes e das categorias do plano da expressão do Manto da


apresentação
Topológico Eidético Cromático Matérico Categorias do P. E.

Dentro Simétrico Monocromático/ Liso Descontinuidade


Corpo Claro
do
Manto Vs.

Policromático/
Fora Assimétrico Escuro Rugoso Continuidade

Topológico Espessura Amplitude Textura


Englobado Fina Presa Aveludada Descontinuidade
Manto
no
corpo Vs.

Englobante Grossa Solta Áspera Continuidade


Fonte: elaborado pelo autor.

O Manto da apresentação é um discurso visual mítico realizado por uma


bricolage com fragmentos da vida do próprio destinador-Bispo, representado como
inventário de desenhos bordados sobre sua superfície. O discurso visual do manto
também é simbólico, pois representa um sincretismo religioso entre a religião
católica e a umbanda. Por fim, é igualmente estético, pela poética visual
figurativizada pela obra de arte, que se atualiza no ato performático de vesti-lo.
Apontamos dois temas abordados pela obra Manto da apresentação. O
primeiro tema, a força conflitual do viver, é figurativizado pela narrativa visual
bordada no Manto e pelos gestos corporais expressivos. O segundo tema, o
antropocentrismo, já é conhecido como característica marcante da iconográfica do
corpo humano cientificamente/geometricamente representado nas obras de arte e
de forma geral no pensamento humanista do período renascentista, em que a
presença do corpo se dá como objeto, objeto hedônico de observação,
representação e contemplação. De maneira diferente, o tema se atualiza em ato, na
performance de vestir o Manto da apresentação, que aponta para o fato de o
destinador Bispo estabelecer um contrato com o destinatário cuja base ocorre por
meio da presentificação do corpo que molda o fazer do sujeito da ação que ao
mesmo tempo se faz ver (regime de visibilidade) e a interagir com os demais sujeitos
envolvidos (regime de interação).
Entendendo o manto como um enunciado, pode-se depreender algumas
operações para sua instauração. Assim, em relação às projeções da enunciação,
103

temos uma debreagem actancial enunciva que instaura um ele(s) – nomes de


mulheres e nomes masculinos; uma debreagem espacial enunciva que projeta um
alhures – o universo; e uma debreagem temporal enunciva que coloca um lá – um
presente durativo “gnômico” (FIORIN, 2002, p. 149-156).
Além disso, pela descrição e análise que vem sendo conduzida, podemos
dizer que o enunciado-manto é uma espécie de simulacro do mundo. Já do ponto de
vista da enunciação, o Manto é um objeto visual com duas possibilidades: para vestir
(o corpo) ou para observar (no cabide), o que leva às interações discursivas.
Ainda em relação à temporalidade, há uma complexa relação entre os
tempos. Assim, o manto no presente remete ao passado, em uma relação de
anterioridade. Contudo, há também uma relação do manto no presente e sua
projeção no futuro, a partir do momento em que o seu destinatário está na
posterioridade.
Em relação à aspectualidade, o manto é um objeto terminativo – estado final
da obra, mas é uma obra de longa duração, pois ele é como o presente gnômico já
mencionado, que instaura uma duratividade cujo começo e fim não são
identificáveis. Além disso, durativa é a vida que foi sendo registrada no Manto.
Dos registros bordados qual é a configuração da vida? Uma possível resposta
está no percurso narrativo do próprio Bispo. Ele nasceu no sertão, viveu na fazenda
até a adolescência e foi trabalhar na Marinha Brasileira. Depois foi para o Rio de
Janeiro trabalhar na casa de um advogado. Foi nessa cidade que ele ficou internado
durante cinquenta anos, mais especificamente na colônia Juliano Moreira (1939 a
1989, ano de sua morte). Por isso, o manto tem um caráter aspectual terminativo: o
Manto é a roupa para vestir o seu corpo na hora final da passagem entre mundo.
Por isso, o inventário de presenças de objetos/coisas são criados como valor de
vida, valor que vale acompanhar o sujeito na sua apresentação a deus, do que ele é
uma dessas partes, ou seja, uma totalidade partitiva, enquanto o Manto é a
totalidade integral.
Pode-se dizer que a enunciação enunciada ocorre quando o enunciador se
transforma no corpo vestido que se torna presença no aqui e agora, ou seja, como
categorias da enunciação. Na relação entre enunciador e enunciatário, este é
participante da produção completa da significação do manto e também o
responsável pela apreensão do sentido.
104

Identifica-se o programa narrativo de base do Manto da apresentação como a


construção do objeto de valor que deve ser usado no seu comparecimento à Deus.
Por conseguinte, o destinador é Deus e Bispo é o destinatário que se torna sujeito
do fazer responsável pela produção do objeto a partir do momento em que se aceita
o contrato com Deus.
Contudo, para se realizar o PN de base, é preciso instaurar uma série de
programas narrativos de uso. Assim, desde a seleção (coleta) dos materiais e dos
objetos até a triagem desses materiais e objetos, sua desestruturação dos fios de
tecido para tecer e bordar a estruturação da obra Manto da apresentação, há uma
série de fazeres sendo realizados para que, em conjunto, finalizem com o manto
como parte necessária para a consecução do programa narrativo de base.
A experiência estética na arte, quando é semiotizada, surge quando o sujeito
se veste, pois assim ele se se torna um objeto de valor para o outro (sujeito conjunto
com o objeto de valor e unido a ele mesmo). Desse modo, ele transforma-se do
sujeito do sujeito do fazer, cujo princípio é somente o fazer, e passa para o fazer
sentir, que está relacionado ao fazer sentido de um corpo que faz sentido.
Desse modo, o manto possui uma dimensão simbólica difícil de se negar, pois
no fundo se trata de uma narrativa existencial, de um sujeito em busca de seu lugar
no mundo a partir de um modo de conhece-lo por meio da arte.
O saber e poder do masculino que entra como competência para a
performance da escritura e bordado no Manto.
Enunciado junção – o qual a busca de bispo é pela transcendência do banal.
O objeto de valor é para ser visto e para ser vestido – sentindo a roupa.
O plano de conteúdo se orienta pela categoria semântica fundamental entre
profano vs sagrado. Os gestos do corpo vestido, englobante/englobado, dos braços
estendidos em diagonal sentido alto/baixo que pode ser homologado por
euforia/disfória ou ascensão (atingir um grau superior, elevação, subida) vs.
descensão (descimento, declínio, descida) que mostra a transcendência do próprio
“corpo dessemantizado” em que se faz sentir como “corpo sentido”6 (LANDOWSKI,
2000, paginação irregular). É vestindo o Manto da apresentação que se pode
alcança o “fazer sentido” da sua própria existência. Assim, a disforia da vida comum
dessemantizada na sua cotidianidade, mundano, as coisas e os prazeres do mundo,

6
O texto do Landowski Frontières du corps: faire signe, faire sens (2000) está citado aqui a partir de uma
tradução extra oficial ainda sem publicação de José Augusto Mourão.
105

próprio do mundo, terrestre; se opõem, a euforia da semantização da vida, com a


possibilidade de passagem para outro “plano”, transcendente, divino, espiritual,
celestial.
O ato de vestir o Manto da apresentação presentifica seu sentido em ato,
ressignifica tanto o sagrado quanto profano, como uma mediação, uma passagem
do mundo, que nos revela um termo complexo entre as categorias sagrado vs.
profano, na falta de uma terminologia melhor, optamos em nomear o termo como
sacro-profano. Segundo aponta Greimas em Da imperfeição: “[...]: a linguagem
poética, se não dá ainda acesso direto ao sagrado é certamente uma linguagem
não-profana.” (GREIMAS, 2002, p. 86). No entanto, ao invés da contraditoriedade,
não-profana, apontássemos a direção do sentido para a dêixis do termo complexo
entre sagrado e profano, com dito logo acima, sacro-profano, que manifesta ainda o
que há de celeste e de terrestre, de divino e de humano. Enfim, tudo que se
complementa na oposição e que produz o sentido de passagem, um entremeio.

Figura 20 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo

Bispo no pátio da Colônia Juliano Moreira. Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Firmo: um olhar
sobre Bispo do Rosário (2013).
106

Esquema 12 – Tipologia das relações do corpo vestido


O MANTO EM SI vs O MANTO FAZ-SE OBRA
[COMO INDUMENTÁRIA] [COMO PERFORMANCE
UTILITÁRIO ARTISTICA]
Valores práticos (utilitários) ESTÉTICO
(Simbólico) Valores existenciais (de vida)
OBJETO DE PROTEÇÃO (Semissimbólico)
OBJETO DE RITO/RELIGIOSO OBJETO DE ARTE

O MANTO COMO vs O MANTO COMO


REPRESENTAÇÃO DA VIDA PRESENTIFICAÇÃO NA VIDA
Fazer-fazer Fazer-sentir
CRÍTICO ESTÉSICO
Valores não existenciais Valores não práticos
(intencionalidade) (sensibilidade)
OBJETO DE INVENTÁRIO OBJETO DE PRESENÇA
OBJETO DA MEMÓRIA OBJETO DA SENSIBILIDADE
Esquema elaborado a partir da tipologia das relações do corpo vestido Fonte: OLIVEIRA, 2007, p.32.

Por fim, chegamos a um quadro esquemático (esquema 12), que mostra


quatro tipos de articulação entre o corpo e a roupa que estruturam o corpo vestido
em relação ao Manto da apresentação. Na primeira articulação, temos o Manto em
si, como indumentária, um objeto simbólico–religioso. Na posição de contrariedade,
passa a ser o Manto como presentificação na vida, um objeto da sensibilidade,
presença na realidade. Em relação de oposição à primeira articulação apresentada,
se tem o Manto que se faz obra, como objeto estético, como performance
poética/artística. Por sua vez, encontra-se em relação de contrariedade com o Manto
como representação da vida, como objeto da memória de vida de Bispo. Assim,
após a análise do plano da expressão e do plano do conteúdo da obra Manto da
apresentação, verificamos uma relação semissimbólica que se procede por meio da
seguinte homologação: P.E.: continuidade vs descontinuidade :: profano vs sagrado.
O processo de feitura do Manto da apresentação (figura 20) se fez durativo,
na medida que foram realizadas duas versões e seu bordado sendo produzido por
anos até a morte de Bispo. No entanto, a performance de vestir o Manto para a
passagem se fez terminativo. A exemplo das duas versões apresentadas do Manto,
chegamos às seguintes hipóteses para o Manto da apresentação final: 1) Bispo
desfiou o primeiro Manto para conseguir os materiais, fios e tecidos para a produção
do segundo Manto; 2) O primeiro Manto é mais curto, logo o suporte foi aumentado;
107

3) os bordados são maiores e em outras posições do Manto final. Assim o Manto


final pode ser um procedimento de reescritura integrativa em termos de
materialidade e figuratividade do Manto primeiro realizado aproximadamente nos
anos de 1940. O Manto da apresentação acompanha o fazer representativo de
Bispo de seu viver e ele presentifica à vida.

3.2 Arqueologia poética de Luiz Antônio Rodrigues (Chiquitão)

Em uma coleção, é crucial que o objeto


esteja livre de todas suas funções originais para
que possa se relacionar da maneira mais próxima
possível com seus equivalentes. (...) E, para o
verdadeiro colecionador, cada uma das coisas
vira, nesse sistema, uma enciclopédia de todo o
conhecimento do período, da paisagem, da
indústria e do proprietário do qual provém. O que
dá mais prazer ao colecionador é inserir o
específico em um círculo mágico onde ele se
petrifica, enquanto a emoção final (a de ser
adquirido) o percorre. (...) A coleção é uma forma
prática de memória, e, entre as manifestações
seculares de “proximidade”, a mais convincente.
Wlater Benjamin, Das Passagen-werk, (apud
CRIMP, 2005, p. 179).

Figura 21 – Série das chaves de Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

A instalação foi montada entre os anos de 1995 e 2011, no interior de um casarão colonial do século
XVIII, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerias. No ano de 2011, a obra foi desmontada devido à
perda momentânea do local de exposição. Em 2014, uma parte da obra foi exposta durante 8 dias na
Praça Tiradentes como uma Intervenção Urbana. Atualmente, o artista está remontando
gradativamente a sua obra no mesmo local. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
108

A segunda obra escolhida em nosso trabalho é Arqueologia Poética (figura


21), do artista Luiz Antônio Rodrigues, que é mais conhecido pela alcunha de
Chiquitão. Ela se encontra montada no interior de um casarão colonial do século
XVIII (figura 22) na cidade de Ouro Preto. A obra é uma instalação composta por
milhares de objetos utilitários de uso cotidiano feitos de ferro fundido, como chaves,
dobradiças de portas, panelas, etc., pertencentes à história colonial e barroca da
cidade mineira. Esses objetos estão distribuídos em praticamente todos os
ambientes do casarão, afixados nas paredes, no teto ou postos sobre o chão. Na
sua grande maioria, estão organizados em séries que configuram, dessa maneira, as
mais diversas assemblages, como as que encontramos no movimento artístico do
Novo Realismo.

Figura 22 – Casarão colonial do século XVIII

O casarão colonial está localizado ao lado da Igreja do Pilar e uma placa afixada na sua entrada traz
escrito o seguinte texto: “Em 1782 estes dois sobrados, ‘as casas místicas’, como aparecem em
registro de tombo, pertenciam aos herdeiros de Felizarda Teresa da Assunção. A denominação indica
casas germinadas, com comunicação interna, que serviam de apoio ao funcionamento da sacristia e
do consistório da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, na época em que eram propriedades da
paróquia”. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
109

Encontrar a obra de um destinador como Chiquitão não é tarefa fácil para


nenhum destinatário. Deve-se ser, caso não seja um flâneur à la Baudelaire, pelo
menos um sujeito observador e um tanto quanto curioso. Além de não ter nenhuma
placa sinalizando o local onde hospeda a sua obra, muitas vezes se encontra
fechado pela ausência do artista, pois ele administra sozinho o casarão (figura 23).
Desse modo, a descoberta da obra é quase sempre fortuita, um encontro inusitado
do destinatário ao encontrar o casarão e ser convidado para conhecer algo que
realmente não se procura, mas que se acha, na acepção picassiana, para uma
criação nova. Um achado de uma obra guardada ‘a centenas de chaves’, que nos
instiga a conhecê-la e que vai se revelando aos poucos, na medida em que
adentramos o casarão. As luzes dos ambientes vão sendo acessas pelo destinador,
colocando em evidência os objetos e as suas sombras projetadas nas paredes
brancas, que, por sua vez, produzem um jogo de claro e escuro característico do
estilo barroco.

Figura 23 – Entrada do casarão colonial do século XVIII

Bricabraque ou brique-a-braque de diversos objetos artesanais que Chiquitão expõe na entrada e em


duas salas do primeiro andar do casarão para serem comercializados. Tem os mais diversificados
produtos decorativos ou utilitários: pequenos vasos, cestas, oratórios, estatuetas, pinturas em
miniatura, tapetes, moedas, etc. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
110

Todo o inventário dos objetos da instalação Arqueologia poética faz parte de


uma coleção de aproximadamente 40 anos formada pelo próprio artista, que também
é restaurador e colecionador. As aquisições dos objetos da coleção que compõem a
instalação advêm dos mais diferentes locais de Ouro Preto: foram achados em
ruínas de casarões coloniais, em córregos de antigos garimpos, em trocas de
calçamento das ruas e terrenos da cidade. Outros foram doados por moradores,
comprados e trocados, mas sempre negociados. São objetos utilizados no período
áureo da cidade de Ouro Preto marcados tanto pela colonização dos portugueses
quanto pela escravidão. Chiquitão se interessa pela história de todos os objetos que
ali se encontram, mostrando não somente uma preocupação estética ao compô-los
nos espaços de sua casa, mas também objetivando a preservação da memória que
cada objeto traz consigo, para depois recontar uma nova história, (re)significando-os
em outro contexto e tempo – no espaço e no tempo poético da arte.

Figura 24 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Série das Fechaduras. Interior da casa de Chiquitão Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo
Brasil, 2010.

Com aproximadamente 15.000 objetos de ferro, cerca de 30% da coleção


está guardada em baús de madeira enquanto os demais objetos estão expostos pelo
casarão colonial do século XVIII adquirido pelo pai de Chiquitão e deixado para ele e
seus irmãos como herança familiar. O imóvel conserva até os dias de hoje as suas
111

paredes de cor branca, com as janelas, a porta e suas molduras de cor azul cerúleo
e cobalto. Ele está localizado na Praça Américo Lopes, nº 41, ao lado de uma das
mais famosas e imponentes igrejas do estilo barroco-rococó da cidade: a Igreja do
Pilar. O casarão possui dois andares acima do nível da rua e mais dois níveis abaixo
com o subsolo do prédio. Todos esses ambientes estão interligados por estreitas e
íngremes escadas de madeira já bastante gastas pelo tempo de uso.
Ao entrarmos no casarão, logo à esquerda temos uma porta que dá acesso a
dois ambientes nos quais o artista reservou para restaurar e expor as antiguidades
que não pertencem à sua coleção e por isso são colocadas à venda. Até esse local
é permitido a entrada do visitante, mas caso sejamos convidados para conhecer a
obra Arqueologia poética temos que seguir em frente e continuar em um corredor
estreito que nos leva a um novo ambiente. Nesse ambiente, nos deparamos com
duas paredes com aproximadamente 1000 fechaduras de ferro (figura 24), robustas
e pesadas das portas do período colonial, que são distribuídas uma ao lado da outra
e enfileiradas até o teto.

Figura 25 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Série das Chaves expostas sobre o claro e escuro da iluminação. Fotografia: Almir Valente Costa e
Ramúsyo Brasil, 2010.
112

Ainda no primeiro andar à esquerda, uma escada de madeira dá acesso ao


segundo piso. É nesse ambiente que encontramos expostas cerca de 1500 chaves
de ferro (figura 25). A série das chaves de ferro possui o mesmo padrão
estabelecido na montagem da série das fechaduras, ou seja, estão enfileiradas em
paralelo e ocupando toda a extensão da parede. Entre as chaves também se
observa uma luminária, que projeta uma luz difusa sobre os objetos, formando
sombras e criando assim um ambiente quase teatral para quem vive a experiência
de estar in loco, para reviver o passado no presente de sua tradição cultural barroca.
Os cômodos do segundo andar do casarão são ambientes privados do artista,
com acesso restrito, onde se tem dois quartos com mobílias de madeira em estilo
colonial: mesas, cama, estantes, etc. O artista não utiliza esses quartos para a
montagem de sua obra, pois um deles é o seu dormitório, com biblioteca e
escrivaninha, e o outro a sua sala de estar. O primeiro tem vista para o fundo/quintal
do casarão e o segundo tem vista para a rua através de suas duas janelas.

Figura 26 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Escadaria de madeira que dá acesso ao primeiro nível do subsolo. Fotografia: Almir Valente Costa e
Ramúsyo Brasil, 2010.

De volta para o primeiro andar, no final do corredor há uma escada de


madeira (figura 26) que dá acesso ao primeiro nível do subsolo do casarão, onde se
tem uma cozinha, um banheiro, dois quartos e uma ampla varanda coberta. Com a
113

exceção do banheiro, os demais ambientes são ocupados pela montagem da


instalação, com todas as paredes e os tetos preenchidos com os objetos. A partir
desse local, todos os objetos da coleção do artista estão compostos diferentemente
da montagem da série das chaves e das fechaduras, pois não há mais uma
composição em série com um único objeto sendo repetido. Pelo contrário, estão
combinados segundo outros tipos de padrões, conforme podemos observar na
imagem abaixo (figura 27).

Figura 27 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Detalhe do conjunto de assemblages montadas na varanda do casarão que dá acesso ao córrego


que passa nos fundos da casa. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.

A depender do ângulo de visão e do enquadramento intencionado pelo


observador, se obtém inúmeras possibilidades de composições na mesma obra, ora
podendo ser visualizado de forma individual (uma dobradiça, uma panela), ora em
pequenos grupos (um conjunto de cravos), ora de forma coletiva (objetos da
escravidão). De modo geral, a organização do plano de expressão da obra na
organização dos objetos segue dois procedimentos de agrupamentos, que são
classificados por: 1) separação dos objetos - a repetição de um único objeto
montando a série das chaves e das fechaduras; e 2) mistura dos objetos – a
intercalação de objetos de diferentes tipologias: objetos do cotidiano: moedas,
cachimbos, panelas, chaleiras, facas, facões, punhais, espingardas, cuias,
114

caldeirões, moinhos, moedores, enxada, enxó, bigorna, martelo, fechadura,


ferrolhos, tramelas, ponteiras, mobiliários, aros, argolas, correntes, pilões, soquetes,
etc.; objetos de montaria: armações de arreios, manilhas, esporas, freios, estribos,
ródias, engrenagens, ferraduras, estribos, cravos, etc.; objetos da escravidão: cabos
de chicotes, algemas, congalheiras, correntes, ferros de marcar, palmatórias,
instrumentos de cárcere, etc.; objetos da arquitetura: chaves (1500), dobradiças
(1000), aldravas, fechaduras (1000), espelhos, puxadores, etc.; 3 - a semelhança em
relação às formas, por exemplo: objetos circulares: aros, argolas, etc., objetos
retilíneos: aldravas, cravos, etc. (esquema 13).

Figura 28 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Varanda com vista para o quintal do casarão. Alguns objetos, como as adagas de prata e os rifles dos
Bandeirantes estão guardados em baús, como podemos ver à esquerda/abaixo da imagem.
Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.

Todos os objetos possuem a cor preta, seja do próprio ferro batido. seja por
causa de uma solução aplicada pelo artista para a conservação ou seja pela cor de
ferrugem advinda do desgaste da peça enferrujada. Como podemos observar na
imagem acima (figura 28), esses objetos estão organizados um ao lado do outro e
preenchem praticamente toda a superfície da parede branca que lhe serve de
suporte, causando aos olhos do observador um contraste entre o claro e o escuro.
Além do mais, a iluminação do ambiente reitera tal sensação.
115

Figura 29 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Na varanda do casarão observa-se todo o espaço sendo tomado pela profusão de objetos, incluindo
a janela e a coluna de madeira no primeiro plano. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil,
2010.

Entre a cozinha e a varanda (figura 29), uma escada de alvenaria (figura 30)
nos conduz ao segundo e último nível do subsolo, onde também se tem uma
pequena varanda que dá acesso ao quintal do casarão. No quintal, passa um
córrego, que é um dos lócus em que muitos desses objetos expostos foram
encontrados. É como se os objetos saíssem dali mesmo, imediatamente, de um
garimpo à sua lapidação, da descoberta à sua exposição, da escuridão à luz, do
passado ao presente. A montagem da obra é finalizada ou iniciada nesse espaço da
escada que interliga o ambiente externo ao ambiente interno do casarão.
QUARTO DO ARTISTA

PRIVADO-PRIVADO

TÉRREO E 1º ANDAR
CHAVES FECHADURAS

SEPARAÇÃO DOS OBJETOS ligados por função:

PRIVADO-PÚBLICO
CHAVES Da união fechadura e chave à visibilidade em separado.

ALGEMAS BALANÇAS/LUMINÁRIAS
CORRENTES DOS ESCRAVOS
FERRADURAS
CRAVOS CHALEIRAS

ESCADA
MARTELO ARREIOS
ENXADA

Fonte: elaborado pelo autor.


INSTRUMENTOS DE CÁRCERE
MISTURA DOS OBJETOS ligados pelo acaso e pela
FERRO DE MARCAR MANILHA forma:
PRIVADO-PÚBLICO

SUBSOLO CRAVOS DOBRADIÇAS ARREIOS


ESPORAS
Da mistura total e gradual à visibilidade em conjunto.
PILÕES
FACAS
PANELAS FACÕES
PALMATÓRIA PÚBLICO -PÚBLICO
MOEDORES
CABOS DE CHICOTE
ENGRENAGENS DOBRADIÇAS
Esquema 13 – Corte esquemático sem escala do casarão colonial do séc. XVIII

LOCAL ONDE OS OBJETOS FORAM ENCONTRADOS CÓRREGO


116
117

Figura 30 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Escadaria que leva ao último nível do subsolo com algumas panelas de ferro nos degraus e as
paredes preenchidas inteiramente por estribos, ferraduras, dobradiças, etc. Fotografia: Almir Valente
Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.

O discurso visual de Arqueologia poética produz sentido no arranjo composto


por meio de uma coleção de objetos de ferro do século XVIIII e XIX, instalados
artisticamente de maneira que compõem diversas assemblages nas paredes do
casarão colonial do mesmo. Na busca de ampliar as categorias binárias, “público”
versus “privado” e “individual” versus “coletivo”, o semioticista Eric Landowski
formula uma combinação entre essas categorias. Postula assim as categorias entre
individual “privado” (a esfera “interior” do eu), o discurso do diário íntimo, que se
opõe ao individual “público” (o eu “socializado”), o discurso mundano do “eu”
socializado (LANDOWSKI, 1992, p. 87). Podemos situar a instalação da obra de
Chiquitão no casarão colonial como uma casa-museu, em que o artista habita e
expõe a sua obra, com uma aproximação entre a arte e a vida, socializando o íntimo
de sua coleção de objetos. Se voltarmos novamente ao esquema do casarão
colonial, podemos observar os ambientes montados da seguinte maneira: ambiente
privado-privado do quarto do artista; ambientes privado-público, onde estão
montados as assemblages e que o tornam uma casa-museu; e, por fim, o ambiente
público-público, onde são encontrados os objetos de ferro, nos córregos e nas ruas
enquanto “sítio arqueológico”.
118

A obra Arqueologia poética (figura 31) é um trabalho obstinado do artista-


colecionador, que recolheu os objetos de sua coleção em diversos locais pela cidade
durante anos, realizando muitas das vezes um trabalho com múltiplas ações, que
envolvem tanto arqueologia quanto restauração, ambos preservando as marcas
características de cada objeto que é posto na instalação. Esses objetos organizados
esteticamente no espaço do casarão colonial dão forma a uma poética visual que
traz em si um processo de bricolage com elementos e objetos da própria história de
Ouro Preto. A obra de Chiquitão também é processual, pois constantemente um
novo objeto é acrescentado à sua coleção, que, por sua vez, é imediatamente
remanejado para compor a instalação em devir. Assim, Arqueologia poética se
constitui como uma ação durativa no espaço e no tempo.
Após a apresentação da instalação Arqueologia poética, pode-se constatar
que, além da especificidade de sua descoberta acidental, a presente obra se
complementa entre: a coleção de objetos (re)escritos e compostos em assemblages
e o casarão colonial do século XVIII, que não é somente o suporte para a montagem
da instalação. O destinatário flâneur tem múltiplas sensações ao movimentar-se no
interior do casarão, com o ruído produzido pelo rangido das tábuas de madeira dos
pisos e das escadas ou com os cheiros provenientes da madeira, do ferro, do adobe
das paredes, etc., objetos com fins práticos para uso no trabalho pelo fazer do corpo
do trabalhador escravo.

Figura 31 – Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Correntes de escravos, balanças, panela, peneira de garimpo, série de cravos, etc. são alguns dos
objetos expostos nas paredes da casa-museu de Chiquitão. Fotografia: Almir Valente Costa e
Ramúsyo Brasil, 2010.
119

As categorias plásticas da Arqueologia poética envolvem processos de


classificação diferentes por conta do reordenamento promovido pelo enunciador. Por
exemplo, as quinas das paredes formam angulações que estabelecem a oposição
entre interior vs exterior do casarão. Outra categoria que pode ser usada para se
compreender a disposição plástica e espacial do objeto é a de abertura vs
fechamento.
Em relação à dimensão eidética, a coleção de chaves de ferro apresenta uma
grande variabilidade em que impera como elemento constante a oval e cilíndrica
(corpo da chave) e inconstante (variando os segredos das chaves). Assim, tem-se as
oposições iguais vs diferentes/particulares que podem ser homologadas com a
identidade vs alteridade.
Na dimensão matérica, tem-se o predomínio do ferro que se articula com a
oposição rugoso vs liso (representado pela parede branca da casa).
A dimensão cromática, como as imagens mostram, conjugam a cor branca vs
cor preta, cuja homologação das oposições está nas categorias claro vs escurso
(figura 32). As paredes de cor branca – que remete ao tempo dos colonizadores -
está na base da sociedade (fundo). Ao mesmo tempo, essa parede branca, ligada à
sociedade da época, serve para, ironicamente, para dar visibilidade aos objetos de
cor preta – os escravos – cujo grupo era, como é de conhecimento de todos, o grupo
subjugado na sociedade colonial.
A dimensão topológica se refere à distribuição das chaves (figura 33) na
superfície espacial posta em exibição na arquitetura colonial. Desse modo, formam-
se séries em cuja iteratividade cria-se o efeito de esteticidade de objetos do
cotidiano. É assim, por meio das escolhas enunciativas, que um objeto se transforma
em obra de arte.
Assim, as figuras da expressão, pelos arranjos dos formantes, estão
assentadas nas categorias da expressão Forma moldada seriada vs forma inventiva
mesclada.
120

Figura 32 – Série Chaves: Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.

Os temas imediatamente apreendidos são os da produção em série e da


colonização, cujas figuras são as chaves enfileiradas (figura 33), que por sua
formam uma figura do conjunto de homens que remete à sociedade colonial mineira.
Outro tema destacado é o da escravidão, que é figurativizado principalmente pelas
correntes e pelas bolas de ferro. Além disso, há o tema da memória, que é
figurativizado pelos objetos que trazem um semantismo histórico do período o
barroco e que se ligam pela oposição claro vs escuro.

Figura 33 – Série Chaves: Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.


121

Figura 34 – Série Chaves: Arqueologia poética (1995 a 2011), Chiquitão

Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.

Outros temas podem ainda ser depreendidos. Se as chaves (figura 34) estão
expostas, o que elas mostram é que elas fechavam o interior do exterior e vice-
versa. Assim, temas como o fechamento e a proteção parecer ser plausíveis. Outra
questão que surge está relacionada à materialidade desses objetos: eles são feitos
de ferro forjado, o que pode situar o estágio tecnológico da cidade mineira.
No entanto, examinando a obra em sua contemporaneidade, vê-se que há um
processo de desfuncionalização do uso da chave (agora é para somente para ser
vista). Antes, as chaves serviam para fechar e abrir fechaduras que separam interior
do exterior, agora elas servem como uma construção estética ao serem dispostas e
distribuídas em várias paredes próximas da escada. O mesmo ocorre com as
fechaduras, pois estas também estão distribuídas nas demais paredes do mesmo
ambiente.
O que se observa em relação à enunciação é que ela pode ser entendida
como uma enunciação global, cujo enunciador não é figurativizado. Assim, mesmo
122

sem um ator da enunciação bem delineado, há um enunciado: trata-se da casa-


museu, fruto das escolhas desse enunciador global e das operações de debreagem
que ele realiza para instaurar seu enunciado.
Talvez por conta da inexistência de um enunciador claro, o processo de
actorialização também não é bem delimitado. O que se pode dizer é que há atores
no enunciado quando surgem visitante no casarão. Mas mesmo a ocorrência desses
atores se perde pela unicidade de cada experiência. Essa parece ser uma tônica da
casa-museu: o apagamento das marcas de subjetividade em detrimento de marcas
de objetividade que serão posteriormente recobertas pelos objetos estéticos,
atribuindo uma outra significação ao espaço.
Em relação à espacialização, há a instauração de um lá – um outro espaço -,
ou seja, de uma debreagem espacial enunciva, pois não se vê mais somente o
casarão, mas sim uma casa-museu, ou seja, um espaço utilizado para uma
experiência estética distinta da existente em uma casa qualquer ou mesmo de um
casarão que tivesse somente propósitos históricos.
A temporalização da casa-museu tem uma anterioridade (então) que é
instalada por meio de uma debreagem temporal enunciva - o passado reverbera no
presente enquanto reminiscências – história, memória. No entanto, a reelaboração
estética atenua o efeito de história atualizando esses objetos no presente. A questão
plástica repercute a história, e a história dá lugar a memória da opressão.
Como já foi mencionado, o enunciador apaga sua presença ao produzir seu
enunciado, ou seja, a casa-museu. No entanto, sua presença ainda pode ser
pressentida a partir do momento em que pensamos que a seleção e a organização
dos objetos que compõem e ressignificam a casa são produto das escolhas desse
enunciador.
Sendo, então, esse enunciador um bricoleur e um artista que produz um
determinado enunciado, ele também tem em vista uma determinada imagem de seu
enunciatário. Podemos compreender esse enunciatário como constituído por duas
possibilidades que não se excluem. De um lado, há o enunciatário turista, ou seja,
aquele que está pela cidade em busca da fruição advinda da constituição histórica
da cidade, da possibilidade de se caminhar pelas ruas de Ouro Preto e admirar e
sentir suas particularidades no espaço público. O outro enunciatário é aquele que
frequenta museus e possui uma educação para o sensível por estar mais ou menos
habituado a observar objetos estéticos. Claro que, em uma observação mais direta
123

do ambiente, os dois simulacros de enunciatários podem, com uma alta frequência,


se misturar. No entanto, entendemos ser mais importante, nesse caso, pensar em
termos de simulacro desse enunciatário para se poder inferir como ele se relaciona,
então, com o espaço construído para suas interações sensíveis.
Assim, o enunciatário turista vai se deter mais no tema da memória e da
própria história que esses objetos carregam. Já o enunciatário mais habituado ao
museu, foca seu olhar na constituição estética dos objetos, em sua particularidade e
unicidade de sentidos e de sentidos “sentidos” que a disposição seriada ou não
propicia nos diferentes ambientes da casa-museu.
Desse modo, é para esses dois enunciatários que é construído o enunciado
museu-casa. Tanto aquele que, de alguma forma, deseja conhecer in loco um pouco
mais a história da cidade e do país, e por isso decidiu ou foi atraído para a cidade, e
também aquele que experimenta sensivelmente espaços voltados para o encontro
estésico, como é o caso da casa-museu.
Assim como no Manto da apresentação, há um programa narrativo da busca
da construção de um objeto de valor e por suas reminiscências. Há, assim, um
sujeito operador que realiza fazeres voltados para a disposição dos objetos que vão
diferenciar o espaço de uma casa colonial em uma casa-museu, sendo essa
transformação o programa de base e os demais fazeres que visam a essa
construção como programas narrativos de uso.
Ainda em relação ao programa narrativo de uso, os fazeres se apresentam
como os mais diversos. Começa-se com a coleta dos objetos nos córregos e nas
ruas de Ouro Preto, passa-se pela limpeza e triagem dos objetos, sua mistura e
separação na montagem da estrutura das assemblages com os objetos. Assim, é
por meio do conjunto de programas de uso que se constrói a casa-museu e seu
efeito estético.
Ocorre também no programa de uso a transformação dos objetos que,
inicialmente, foram criados para fins práticos (do passado e presentes na atualidade
dos casarões de Ouro Preto) e, com as escolhas realizadas por esse sujeito do
fazer, orientado por um sujeito da cognição e do sentir, levam ao arranjo estético
característico daquele espaço.
Assim, enquanto bricoleur, esse sujeito realiza um inventário de objetos
exponenciando a potência criadora e imaginativa. Desse modo, o sujeito do fazer
não está apenas ligado à ação que o caracteriza. Há também nesse sujeito um
124

saber específico (conhecimento histórico) e um saber voltado para o sensível que


orienta sua ação para dar visibilidade e novas significações aos objetos que recolhe.
Desse modo, a obra Arqueologia poética se faz ver por meio de um registro
enciclopédico (coleção) de objetos de uso cotidiano, do banal, de um registro
memorialista, que traz os objetos do passado vivido e de um registro mostruário, que
traz um todo e uma parte, um recorte de partes que vale pela totalidade.
A obra instalada no casarão do Século XVIII é orientada pela oposição
continuidade vs. descontinuidade, que são espacialmente figurativizadas pelo fora e
dentro da casa. Essa relação leva a uma condensação, que pode ser entendida
como a concentração de modos de produção e modos de vida do passado. Há ainda
uma pluralidade semântica dos objetos dispostos na parede tomados em sua
unicidade ou em sua totalidade.
A principal invariante presente nesse objeto casa-museu é o ser ferro –
Século XVIII – XIX – que recupera o modo escravocrata e os ofícios do período
colonial e do estilo barroco predominantes no período. No entanto, esses sentidos
são atualizados em uma espécie de reconstrução de um tempo, uma profissão, um
ofício que já não existem ou existem transformados pela criação de novas
tecnologias.
Os objetos são coletados, classificados e reordenados em novos arranjos –
reordenamento em arranjos estéticos. O sujeito arranja uma série de chaves de ferro
batido para trazer a noção de seriação, o que permite uma classificação de modos
de reescritura dos objetos: modo 1 – mistura dos objetos ligados pelo acaso e pela
forma: da combinação total e gradual à visibilidade em conjunto; e modo 2 –
separação dos objetos ligados por sua função: da união fechadura e chave à
visibilidade em separado.
Se voltarmos ao exemplo da série das chaves que concretizam uma oposição
semântica marcada pela isotopia fechadura vs. abertura, veremos que as chaves
são desprovidas de sua função prática e promovidas à função estética, pois excluem
suas formas e contornos na materialidade do ferro que engloba uma função mítica
que explica a história colonial de Ouro Preto no reino português no Brasil. A obra é
uma bricolage com os artefatos de ferro utilitários do período colonial da cidade que,
traz à tona elementos pertencentes à história sócio-econômico-cultural (passado)
atualizando-a no momento atual (presente).
125

Além disso, pode-se pensar em termos de uma vida seriada a partir do


próprio objeto na sua série (coleção de tipo). Esses objetos iguais se repetem na
mostração serial não dão mais o valor da rotineira repetição de produtos
manufaturados feitos por moldes de forjas iguais. Talvez seja o próprio modo
cerceado de criar, inovar, subverter que a serialização quer mostrar sem
escapatórias na sociedade colonial de então e também da atualidade.
A partir do discurso da casa-museu e das materialidades em jogo, o plano de
conteúdo se orienta pela categoria semântica fundamental opressão vs. liberdade
que vai gerar os temas do colonialismo e, principalmente, da escravidão.
Além disso, a refuncionalização dos objetos passa a ter uma função estética
que faz com que da opressão passe-se à não-opressão, sem contudo chegar ao
polo da liberdade.
A casa-museu também conjuga a relação entre parte e todo. Assim, a parte
(os objetos individuais) conduzem ao todo (montagem das assemblages) – com a
mistura e separação de objetos - em um ambiente do século XVIII que retoma a
temporalidade do ato de produção com os modos de produção.
Por fim, quanto à disposição dos objetos que compõem as assemblages
instaladas no interior do casarão colonial e seus efeitos de sentido produzidos por
um discurso marcado pela opressão. Assim, verificamos a seguinte relação
semissimbólica entre as categorias do plano da expressão e do plano do conteúdo,
que são respectivamente: forma moldada seriada vs forma inventiva mesclada que
se homologa com opressão vs. liberdade.

3.3 Marat (Sebastião) de Vik Muniz

O mesmo Marat que, embora morto, tinha me


devolvido a vida (...) O fato é que, com o Lixo
Extraordinário, tudo mudava em minha vida. Sem
querer, sem que pudesse dimensionar, a minha
imagem ganhava outra força.
Sebastião Santos (2014, p. 203 e 218)
126

Figura 35 – Marat (Sebastião), 2008, de Vik Muniz

Marat (Sebastião), 2008. Cópia crimogênica digital, 229,90cm x 180,30cm. Fotografia exposta em
2009, no Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro (MAM). A obra faz parte do projeto Lixo
Extraordinário de Vik Muniz, realizada entre 2007 e 2008 no aterro sanitário Jardim Gramacho na
Baixada Fluminense, Rio de Janeiro (RJ). Fonte: fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos
de Alexei Bueno e Vik Muniz.

A terceira e última obra selecionada, Marat (Sebastião) (figura 35) de Vik


Muniz, faz parte de uma série de sete fotografias produzidas por meio do projeto
Lixo extraordinário, realizado entre 2007 e 2008, no aterro sanitário de Jardim
Gramacho na Baixada Fluminense, cidade do Rio de Janeiro. A partir do filme Lixo
Extraordinário (2009), com a direção de Lucy Walker em parceria com Karen Harley
e João Jardim, podemos ter uma visão do processo de produção das obras, que
envolve várias etapas até que seja apresentado o produto final. O projeto Lixo
Extraordinário de Vik Muniz foi uma intervenção urbana artística realizada em um
127

dos maiores aterros sanitários do mundo, cujo local atualmente se encontra


desativado. O projeto, além de documentado em filme, produziu a série de
fotografias que dialogam com o universo da História das Artes Plásticas.
O documentário Lixo extraordinário (Waste land), filmado ao longo de dois
anos, entre agosto de 2007 e maio de 2009, traz desde a concepção inicial do
projeto até a sua concretização em exposição no MAM/RJ. As primeiras cenas do
filme mostram o programa de televisão de Jô Soares, que apresenta o artista Vik
Muniz como uns dos maiores nomes da arte contemporânea da atualidade e lhe
pergunta a partir de quando surgiu o interesse em trabalhar com o lixo como matéria
prima de sua criação artística. A resposta advém no decorrer do filme, no qual
inicialmente o artista fala de como começou sua carreira profissional até conseguir o
seu reconhecimento e sucesso internacional no métier da arte.

Figura 36 – Antigo aterro de Jardim Gramacho em 2009

Aterro sanitário Jardim Gramacho na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro (RJ). Fonte: imagens
fotográficas do catálogo: Lixo extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.

Vik Muniz aponta para seus interesses em projetos que envolvam a arte e o
social, com a possibilidade desses mudar a vida das pessoas com o contexto que
elas possuem ao lado delas. Assim, escolheu como local para realização do projeto,
o aterro sanitário Jardim Gramacho (figura 36), onde cerca de 2.500 catadores,
sediados na cooperativa ACAMJG, trabalhavam dia e noite para coletar 200
toneladas de materiais recicláveis por dia. O artista e a sua equipe selecionaram
128

alguns desses catadores, que estariam, a partir de então, plenamente envolvidos no


processo de produção das obras, com a coleta dos materiais no lixo, para posar na
encenação fotográfica e na própria montagem dessas obras.
Os sete catadores selecionados foram: Isis Rodrigues Garros, José Carlos da
Silva, Baia Lopes (Zumbi), Sebastião Carlos dos Santos (Tião), Leide Laurentina da
Silva (Irmã), Magna de França Santos e Suelem Pereira Dias. Todos relatam a
história de suas vidas e de modo geral afirmam que, mesmo com todas as
dificuldades de viver no aterro sanitário Jardim Gramacho, ainda sim sentem-se
orgulhosos de suas contribuições para a sociedade e para a natureza com a coleta
de materiais recicláveis. A partir dessa etapa, o filme registra todo o processo de
produção das obras, em que cada uma delas foi produzida individualmente e regida
meticulosamente em sua construção com as orientações do artista e o auxílio dos
catadores.
A primeira etapa para a produção das obras se deu pelo processo de registro
fotográfico das cenas que serviram de base (projeção) para a montagem do produto
final. Cada catador posou para ser fotografado no próprio ambiente do aterro,
encenando composições de arranjos plásticos figurativos plasmados das obras dos
seguintes artistas: Picasso (Mulher Passando Roupa, 1904), Guercino (Atlas, 1646),
Jean-François Millet (O Semeador, 1865), J. L. David (A Morte de Marat, 1793),
anônimo (estátua egípcia. 1981 – 1975 a. C.), Camille Corot (Albanesa, 1872) e
Giovanni Bellini (Madonna com Criança, 1510).
Na etapa seguinte, procedeu-se com a seleção dos objetos e materiais que
foram coletados no lixo pelos catadores. Na realização da coleta, foi dada a
preferência aos objetos e materiais opacos e coloridos, descartando os que fossem
transparentes ou mesmo de vidro. Todo material coletado foi levado para o galpão
da cooperativa do aterro sanitário, local em que começaria a montagem das obras
sobre uma lona de grande dimensão, com aproximadamente 15 m x 15 m, que foi
estendida sobre o chão para lhe servir de suporte. Sobre esse suporte, a imagem
fotográfica do motivo a ser construído foi projetada do teto do galpão até a lona
sobre o chão, formando assim uma projeção em grande formato que, por sua vez, foi
preenchida com linhas e formas configuradas com os objetos e materiais coletados.
Na última etapa, se teve a configuração de uma estrutura semelhante a uma
assemblage (figura 37), que foi composta na horizontal por um aglomerado de
centenas dos objetos e materiais postos um ao lado do outro, cujo arranjo na
129

superfície configuram a forma e a cor da imagem. A linha é sugerida com vários


tipos de objetos colocados em sequência, tais como tampinhas de garrafas de
refrigerante, argolas, canos, etc. O volume do modelo representado é produzido com
pequenos objetos de cor ferrugem e finalizado com um pigmento/pó de cor sépia
que é aplicado pelo artista após passa-lo por um coador, a fim de realizar efeitos de
luz e sombra. A imagem formada pela assemblage é registrada através de um
processo fotográfico digital e, por fim, impressa em papel.

Figura 37 – Marat (Sebastião), 2008, de Vik Muniz

Assemblage produzida a partir de objetos e materiais coletados do lixo para compor a obra fotográfica
Marat (Sebastião), sendo observada pelo modelo do quadro e pelo artista. Fonte: imagens
fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.

O filme finaliza mostrando Vik Muniz e Tião visitando galerias e no leilão de


arte em Londres, onde as obras foram leiloadas. A série completa das sete obras
fotográficas, intituladas Retratos do lixo: Mulher Passando Roupa (Ísis), Marat
(Sebastião), Mães e Filhos (Suellen), Atlas (Carlão), A Carregadora (Irmã), A Cigana
(Magna) e o Semeador (Zumbi), foi exibida pela primeira vez no Brasil em 2009, na
exposição retrospectiva do artista realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro (MAM). Cada um dos catadores recebeu em sua casa uma cópia de sua
respectiva fotografia enviada pelo artista. Em depoimento, esses catadores dão uma
sanção positiva a sua participação no processamento das obras e relatam as
mudanças efetivadas em suas vidas pela participação no projeto Lixo extraordinário.
130

A partir dessa breve apresentação do referido projeto, podemos observar


como se procedeu à sistemática de produção da série fotográfica até a sua
exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Nesse contexto situacional
se encontra a obra Marat (Sebastião), realizada em um local específico, in situ, no
interior de uma comunidade que vive da coleta do lixo ou de materiais recicláveis de
um aterro sanitário. Além do mais, temos a participação dos catadores, enquanto os
interlocutores no processo de produção da obra e que, ao mesmo tempo, também
são os modelos protagonistas representados nas cenas fotográficas. Marat
(Sebastião) é uma fotografia digital impressa com cópia cromogênica digital, uma
obra de arte quando exposta como produto final acabado e emoldurado. No entanto,
ela nos chama a atenção para seu processo de produção e, consequentemente,
para o seu contexto, em que é perceptível como materialidade da obra.
Marat (Sebastião) provoca no destinatário certa sinestesia, uma sensação
visual que o impele também a uma sensação tátil, convoca-os a “olhá-las com as
mãos”, pela aproximação e a “tocá-las com os olhos”, pelo afastamento. A
bidimensionalidade da obra fotográfica torna-o tátil, um sentir pela visão. No entanto,
ao observá-la mais atentamente, podemos reconstruir mentalmente a
tridimensionalidade e a materialidade da matriz ou da assemblage produzida como
motivo fotografado.
Frente à obra de Vik Muniz, pode-se dizer que há uma transformação dos
materiais e objetos, que já possuem um investimento semântico relacionado a uma
determinada destinação de uso, em matéria plástica, e que recebem um novo
investimento semântico a partir de seu novo arranjo plástico. Todo o processo ocorre
por meio da interseção de semióticas distintas. Esses materiais e objetos usados no
cotidiano e descartados como lixo já possuem um investimento semântico e
funcionalidades bem características, mas, quando utilizados na produção das obras,
pelos procedimentos da aglomeração ou acumulação, criam efeitos de sentido de
total estranhamento em relação à sua própria natureza ou função primeira. Assim,
como afirma o semioticista Lincoln Guimarães: “Os materiais, a princípio, familiares e
de características e funções bem conhecidas e definidas, uma vez conjuntados,
originaram um todo composto, amorfo, estranho aos olhos” (DIAS, 1997, p. 30).
131

Figura 38 – Detalhe da assemblage da obra de Vik Muniz

Detalhe da obra Marat (Sebastião). Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário,
textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.

Como podemos observar por meio de um detalhe de Marat (Sebastião) (figura


38), quando se olha a totalidade apreensível a uma certa distância, vê-se a
configuração imagética, mas quando se observa as suas partes, reconhece-se
alguns dos materiais e objetos empregados na composição da obra, como, por
exemplo, assentos de vaso sanitário, lata de tinta, almofada, etc. Contudo, perdemos
a visibilidade do todo da imagem. O acúmulo e a aglomeração dos materiais e
objetos que produzem a assemblage acabam por formar um todo composto e
amorfo que compõem o fundo da cena fotográfica em questão. Um olhar sobre a
obra de Vik Muniz, segundo Lincoln, depende “[…] de uma constituição matérica que
é resultado da colocação em discurso dos próprios mecanismos de construção de
imagens que se apresentam como testemunhos críveis.” (DIAS, 2005 p. 109).
Nesse processo de construção da imagem fotográfica de Marat (Sebastião), o
arranjo de sua plástica foi composto em um espaço bidimensional, que divide a
imagem em dois planos. No primeiro plano, se tem o motivo em destaque, o modelo
(Sebastião) e a banheira desenhados com fragmentos e pó de resíduos do lixo com
as tonalidades de sépia. No segundo plano, o fundo da cena fotográfica é formado
pela justaposição e sobreposição de centenas de objetos desgastados pelo uso e
com diversas cores e formas (chinelos, pneus, garrafas, brinquedos, sacolas,
cadeiras, etc.).
132

A obra Marat (Sebastião) apresenta uma grande diversidade de relações


entre formantes. A começar pela dimensão eidética, a Multiplicidade de materiais,
entendida como jogo de formas e cores distribuído na topologia se opõe à Unicidade
do delineamento da forma pela cor na topologia. Desse modo, há uma relação entre
Contorno e separação vs. sobreposição e justaposição por proximidade, o que cria o
efeito de identificação da figura no mundo e de sua relação direta com a obra
original.
Na dimensão matérica, há a oposição entre rugoso vs. liso, que se dá por
meio do uso do material retirado pelos catadores do lixão e o uso do pó por Vik
Muniz.
Na dimensão cromática, a relação entre o escuro dos objetos do lixão em sua
diversidade matérica formal cromática que se opõe ao claro da figura do fim de
Marat que se ilumina nas materialidades brutas.
Na dimensão topológica, as partes identificadas de seus restos enquanto
objetos do mundo de consumo se contrapõem à totalidade de uma cena pintada que
utiliza o recurso da intertextualidade e da interdiscursividade.
Uma outra oposição que surge ainda no plano da expressão é o Disforme
excessivo vs. Contorno forma, cuja distinção se deve à proximidade ou ao
distanciamento do observador do enunciado final (a fotografia).
O destinador artista Vik Muniz produz a série de fotografias juntamente com
os interlocutores, os catadores de materiais recicláveis que se transformam em seus
delegados que executam o fazer artesanal de produzir a assemblage. É como se a
obra resultasse de um conceito e expressão que é montado pela direção do artista e
seus executores que põem a mão no lixo como seus delegados colocam as
materialidades com seus eidos e cromaticidades sobre os locais da topologia.
Questão semiótica tanto de delegação de vozes do enunciador ao enunciatário, do
narrador ao narratário, e por fim, do interlocutor e ao interlocutário. Passagens essas
que determinam tanto as interações discursivas quanto a figuratividade e
plasticidade que caracterizam os temas: 1) sofrimento do catador; 2) a problemática
política das condições precárias sócio econômicas dos catadores de lixo no aterro
sanitário “o lixo no lixo”; 3) os processos tecnológicos de produção da imagem a
partir de encenações da imagem para ser fotografada. Cada tema é recoberto pelas
figuras do close do rosto do ator, das tomadas do aterro sanitário Jardim Gramacho;
etc.
133

Na descrição do projeto Lixo extraordinário pode-se observa uma debreagem


enunciva (ele/lá/então), no entanto, quando observamos de perto em close a
encenação da morte de Marat procede-se uma debreagem enunciativa de 2º grau
(eu - Sebastião/aqui/agora).
A enunciação é marcada por uma história que é enunciada por uma história
da fotografia digital em relação à história da pintura. O enunciado conta a estória de
Sebastião sendo assassinado no aterro sanitário, assim como Marat, no entanto,
agora, o assassinado se dá pela obra insalubre de catação de lixo. A relação entre o
enunciado e a enunciação para o enunciatário mostra a história da fotografia de
Marat (Sebastião) com as novas materialidades não artísticas transformadas em
matéria plástica da arte.
A figuratividade da cena da morte de Marat se constrói pela luz como um
clarão, que ofusca o ver do lixão e reluz a figuratividade da morte de um Marat:
Sebastião catador de lixo e Marat revolucionário jacobino de J. L David. As duas
obras em intertextualidade iluminam nesse reenviar dialogal entre a pintura e a
fotografia digital para apreender os novos paradigmas da arte em um sentir os
distintos processamentos dos efeitos de sentido de cada obra.
Abalado pelo fazer ver esse novo paradigma, o enunciatário desloca-se do
clarão da luz para o escuro do fundo, do liso ao rugoso ele sente tateando com as
vistas que o faz apreender a nova materialidade artística. Da distinção dos objetos
na totalidade à seleção de alguns desses a materialidade bruta e a materialidade
que configura Marat (Sebastião) são identificados com o sentir que o mesmo dejeto
pode transformar-se em matéria artística. O acúmulo de dejetos no fundo no jogo
planar ressalta para o primeiro plano produzindo efeitos de sentido de intoxicação
olfativa desencadeada pelo estado putrefato do lixão extraordinário na ordinariedade
da vida dos catadores que a obra exala.
O lixo, distribuído no alto e baixo e na lateral esquerda, envolve o corpo em
faixa mediana e ele faz entrar em seus volumes distintos da multiplicidade dos
objetos detritos usurados. É como se essas partes moldurantes levassem percorrer
o excessivo lixo próprio da coleta do catador que pode servir do lixão para render-lhe
sustento. O gesto do catador é então reproposto na gestualidade do enunciatário
para ele mesmo ser catador.
Em relação ao programa narrativo, há uma clara sanção cognitiva em jogo por
parte do destinador, que faz com que o seu destinatário-observador deva
134

reconhecer uma obra da história da arte para apreender a totalidade de sentidos da


obra.
O que está diretamente relacionado com o nível fundamental é que a obra de
Vik Muniz apresenta um sujeito de estado que se encontra, no percurso da vida, na
posição de não-vida, ou seja, entre um estado de prostração, mas ao mesmo tempo
ainda com uma tensão em seu corpo que mostra não ter chegado ainda à morte.
No documentário, mostra-se um processo de manipulação do destinador em
busca de um sujeito duplo, que possa tanto buscar e selecionar o lixo quanto posar
para a foto, fazendo assim parte constitutivo do objeto estético. Assim, o esquema
de manipulação, no sentido de fazer o outro fazer, começa pela apresentação do
projeto Lixo extraordinário para a comunidade de catadores do aterro de Jardim
Gramacho
Assim, o programa narrativo de base é a construção da fotografia digital, ou
seja, do objeto estético. Para isso, outros programas narrativos de uso são
necessários, como a coleta (seleção) dos materiais e dos objetos, a fotografia dos
catadores com o reencenar as cenas das obras de artes de referência, o processo
de montagem das assemblages, a fotografia digital das assemblages e, por fim,
impressão em papel fotográfico. Ao final desses programas narrativos de uso,
chega-se ao programa narrativo de base, que é a exposição das fotografias no
espaço institucionalizado para tal presença: o museu.
A partir do discurso social e político da obra produzido por meio da
materialidade do lixo transformada em objeto aurático, o plano do conteúdo se
orienta pela categoria semântica fundamental (des)funcionalização vs
(re)funcionalização dos objetos.
Por fim, observamos ao final do percurso de análise, que a homologação
entre o plano da expressão e o plano do conteúdo da obra Marat (Sebastião) se dá
na relação semissimbólico entre as seguintes categorias: disforme excessivo vs.
contorno forma :: desfuncionalização vs. refuncionalização.
135

4 INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E INTERSEMIOTICIDADE:


REESCRITURAS, INTERAÇÕES E ESTESIAS NAS ARTES
PLÁSTICAS/VISUAIS CONTEMPORÂNEAS

Entre o ser e o parecer, entre “perfeição” e


“imperfeição”, entre o advento do sentido e seu
desaparecimento, não haveria no final de contas
outra diferença além do que separa o “poético” do
“prosaico”.
Eric Landowski (2002, p. 136)

4.1 Intertextualidade, interdiscursividade e intersemioticidade nas obras de


Bispo do Rosário, Chiquitão e Vik Muniz

Como a intertextualidade, a interdiscursividade e a intersemioticidade estão


presentes nas obras que compõem o corpus de análise?

4.1.1 Manto da apresentação

A primeira obra analisada é o Manto da apresentação de Bispo do Rosário.


Ela mantém uma intertextualidade do corpo vestido, ou seja, estilização vestimentar
e gestual. Retomando as questões abordadas por Norma Discini sobre a
intertextualidade, a copresença entre dois textos se manifesta pela imitação ou
subversão de um texto primeiro por um texto segundo, seja por meio da estilização
ou da paródia/polêmica. Acrescentamos o que o linguista José Fiorin nos diz sobre a
palavra texto: “que provém do verbo latino texo, is, texui, textum, texere, que quer
dizer tecer (...)” (FIORIN, apud, BUORO, p. 132). O texto Manto que veste o corpo é
tecido e bordado, literal e plasticamente, pelo corpo que o veste e na tessitura de
outros textos, como veremos a seguir.
O destinador Bispo, ao produzir a costura e o bordado e ao vestir seu corpo
com o Manto da apresentação, tanto imita quanto subverte os textos originais,
imitados e subvertidos. Pela estilização, imita à maneira dos bordados de sua região
natal na composição do arranjo sobre a superfície do Manto, assim como também
imita à maneira de alguns rituais mítico-religiosos na sua ação performática de vestir
o Manto. Por fim, aproxima-se também à maneira dos artistas da performance e do
happening, tais como a performance de Hélio Oiticica com os seus Parangolés.
136

Todo o aprendizado sobre o saber-fazer da técnica do bordado utilizada por


Bispo na produção do Manto da apresentação, e em outras obras, pode ter
acontecido no próprio local onde Bispo nasceu no Município de Japaratuba,
localizado no Vale do Continguiba, a 54 quilômetros de Aracaju, capital do Estado de
Sergipe. A cidade já abrigou uma grande comunidade quilombola e hoje valoriza e
conserva as suas tradições, que são transmitidas de geração em geração através do
rico artesanato e dos grupos folclóricos atuantes. A produção do artesanato na sua
maioria são os bordados, rendas, telas, tecelagens, jererês e outras redes de pesca,
além dos cestos, chapéus, vassouras feitas de bambu e cipó. Uma especificidade
local é que os homens também fazem os bordados, tradição ainda presente em
várias regiões do nordeste brasileiro na conservação de um aprendizado passado de
geração em geração, que assim preserva a memória de uma cultura trazida do
continente africano para o Brasil.

Figura 39 – Cristo Redentor, em 2011

A cabeça do Cristo foi esculpida pelo escultor polonês-francês Paul Landowski (1875 – 1961).
Imagem realizada no Corcovado - Rio de Janeiro, Brasil. Fonte:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File%3ACristo_Redentor_-_Rio_de_Janeiro%2C_Brasil.jpg
137

Além do bordado apreendido e imitado do seu contexto cultural, também a


ação performática de Bispo vestir o Manto imita alguns rituais míticos e religiosos. A
ação de vestir o manto pode ser observada em várias culturas, constituindo, de
modo geral, uma simbologia ligada ao poder, proteção, separação, metamorfose,
ocultação, etc. Na tradição celta, símbolo das metamorfoses propõe: “[...] aquele que
se veste com o manto toma o aspecto, a forma e o rosto que quer pelo tempo em
que o leva sobre si.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 589). Entre os monges,
a ação de vestir o manto se dá no momento de se retirar do mundo, retirar-se para
dentro de si e aproximar-se de Deus. Para Chevalier e Gheerbrant é também a
identificação de quem o veste: “Entregar seu manto é dar-se a si mesmo. Quando
São Martinho corta seu manto pela metade para dividi-lo com um pobre, isso
significa mais que uma dádiva material: o gesto simboliza a caridade que anima o
santo.” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1990, p. 589).
O manto ou capa na abordagem do simbolismo das vestimentas, de modo
geral, permite a quem o veste realizar a sua transformação corporal. Assim acontece
com Bispo, ao vestir o seu corpo com o Manto da apresentação, pois sua
transformação se acentua por meio de gestos corporais simbólicos, como visto
anteriormente: em pé, com os braços e as mãos estendidas. Assim, marca um gesto
expressivo bastante conhecido para os cristãos e com muitas representações visuais
do gesto de Cristo. Um exemplo de um texto visual escultórico é a estátua do Cristo
Redentor (figura 39) na cidade do Rio de Janeiro, em que temos um gesto já
constituído no imaginário social, como um estilo, uma maneira de fazer que se forma
pela regularidade de um gesto fundador simbólico-religioso ao vestir o manto e abrir
os braços estendidos, ou seja, a transmutação e a súplica.
O desenho de Leonardo D´Vinci, Homem vitruviano (figura 40), mostra o
mesmo gesto dos braços abertos e mãos estendidas horizontalmente, porém sem a
mesma simbologia do gesto católico. Ao contrário, a imagem representa o corpo
humano visto pela ótica de uma racionalidade científica e filosófica, base para a
produção da arte renascentista. O corpo desnudo, naturalizado, em oposição ao
corpo vestido, desnaturalizado mostra um gesto antropocêntrico cujo homem é o
centro e a medida de todas as coisas. É a compreensão do mundo natural e a sua
representação artificial pelas artes plásticas por meio da geometria euclidiana, da
proporção áurea e da projeção em perspectiva. A mesma geometria que
138

encontramos na natureza é a que encontramos na arte. A semioticista Ana Claudia


de Oliveira, ao referir-se ao Homem vitruviano, afirma:

Uma quadratura de quadrados em retângulos contém as triangularizações


cujos ângulos movem o grande círculo, ou seria esse a sequência de etapas
da rotação da vida, com o início no seu nascimento, a duração no existir
experimental, e o fim na morte, que não se coloca sem a interrogação se é
um ponto final ou mais um ponto de transubstancialização de uma vida em
outras vidas. (OLIVEIRA, 2007, p. 27).

Figura 40 – Homem vitruviano, 1490, Leonardo D`Vinci

Realização do desenho a partir dos estudos sobre Vitrúvio e proporção áurea realizados por
Leonardo D´Vinci e seu mestre geômetra Fra Luca Pacioli. Fonte: www.lucnix.be

A figura do homem compõe-se a partir do centro de um círculo, sendo que o


círculo circunscreve e é circunscrito pelo quadrado. Assim, esses enquadramentos
geométricos indicam que o corpo humano possui o comprimento de sua altura, do
mesmo tamanho do comprimento dos seus braços abertos e totalmente estendidos
de uma ponta a outra dos dedos médios das mãos. Além do mais, os braços e as
pernas da mesma figura se deslocam da posição original, mas se mantendo
circunscrito ao círculo. Nesse movimento, a forma pentagonal se manifesta
139

interligando as extremidades do corpo humano e estabelecendo assim uma relação


pitagórica desse corpo com o microcosmos, como veremos a seguir.
Na Antiguidade Clássica Grega, o matemático e filósofo Pitágoras ressaltava
a relevância dos números para a compreensão da harmonia do cosmos. Para ele, a
figura geométrica do Tetraktys (figura 41a) era sinônimo de perfeição, totalidade e
eternidade, como nos explicita o matemático Matila Ghyka: “O juramento pitagórico
ao qual os membros da Fraternidade se atavam para não trair seus segredos
matemáticos e outros era tomado pelo nome de Tetraktys (...)“ (GHYKA, 1997, p.
115-7, tradução nossa).
Figura 41a e 41b - Tetraktys e Pentragrama

Formas que representam relações de proporção áurea. Fonte: https://pt.wikipedia.org/

A forma triangular do Tetraktys é a soma dos quatro primeiros números


inteiros (1 + 2 + 3 + 4 = 10), cuja soma é a Década. O número 10, ou Década, e
mais especificamente sua representação geométrica, o Decágono, possuía o mesmo
tema de simetria do pentágono, representação gráfica do número 5 ou Pêntada.
Essa relação simétrica representava para os pitagóricos a relação entre o
Macrocosmos ou Universo era representado pelo número 10, enquanto o
Microcosmos ou o Homem era representado pelo número 5. É importante notar que
o corpo humano se enquadra geometricamente em uma representação perfeita de
um pentágono regular que, por sua vez, unindo as suas diagonais, dão forma à
figura do Pentagrama. As intersecções das linhas do Pentagrama (figura 41b)
possuem relações métricas que estão dentro da proporção áurea, já utilizados pelos
egípcios. Contudo, somente é sistematizado e atribuído nomes pelos gregos, que o
chamaram de número de ouro ou divino, phi, com valor igual a 1,618... O número phi
está na composição da vida, seja no Macrocosmos (Universo) ou no Microcosmos
140

(Homem) e o gesto acaba por estabelecer uma relação entre polos opostos: entre o
celeste e o terrestre, o divino e o humano, o sagrado e o profano. Por fim, essa
relação geométrica do corpo humano e do universo, aqui apresentada como um
padrão matemático (phi), está também, como já visto anteriormente, na estrutura da
espiral analisada como figura interna do Manto da apresentação, que nos mostra os
ciclos da vida e nossa relação como o cosmos.

Figura 42 – Parangolés (1962) de Hélio Oiticica

Nildo da Mangueira com Parangolé, Hélio Oiticica, 1964. Fonte:


http://www.digestivocultural.com/upload/jardeldiascavalcanti/parangole1.jpg

No contexto da arte, outra relação de intertextualidade que o Manto da


apresentação pode estabelecer é com o texto visual Parangolé (figura 42) de Hélio
Oiticica. No final da década de 1960, o artista plástico Hélio Oiticica foi convidado
para colaborar com a Escola de Samba da Mangueira e teria sido sua experiência
vivida no Morro da Mangueira que o levou a criar os Parangolés. Com capas de
vestir, estandartes, bandeiras, etc., associando artes visuais, música e dança, o
Parangolé era para ser vestido, assim como os demais objetos utilizados na sua
performance artística. A obra de Hélio Oiticica traz também um conceito de anti-arte,
141

transformando a arte, antes de tudo, em um fenômeno estético próximo ao mundo


da vida e em uma ação performática fora dos parâmetros tradicionais das artes
plásticas, além de possibilitar ao público destinatário participar de forma ativa no
processo criativo da obra.

Figura 43 – Bispo vestindo um dos Fardões e em mãos com um dos Estandartes

Bispo em 1985 na Colônia Juliano Moreira: Fonte: Fotografia do catálogo da Exposição Walter Firmo:
Um olhar sobre Bispo do Rosário.

O Manto da apresentação e o Parangolé são vestimentas feitas para serem


usadas em um determinado agir performático, tanto por parte de Bispo quanto de
Oiticica. Mesmo realizadas em contextos totalmente distintos, parece haver uma
incorporação de uma ação na outra. A performance de Bispo ao vestir o Manto e
manusear outros objetos pertencentes ao conjunto de sua obra, tais como
Estandartes e Fardões, acaba por se aproximar da mesma ação performática de
Oiticica, ação que pode ser vista na série de fotografia de Walter Firmo (figura 43).
142

Bispo não se utilizava da música e da dança, como Oiticica, mas entre eles o ponto
de ligação está no ritual de cobrir o corpo vestindo-o para transformá-lo em algo para
além de sua própria realidade cotidiana.
O Manto da apresentação é mais que apenas um simples produto artesanal.
Muito pelo contrário, resulta de um sofisticado emprego da técnica do bordado
executado pelo próprio Bispo. Também é para ser mantido junto ao corpo, que está
para além de constituir somente um gesto simbólico ritualístico do ato de vestir o
Manto. A obra de Bispo é fruto de uma experiência estética “arrebatadora” na
cotidianidade, pois subverte os textos originais criando uma polêmica: transforma o
texto subvertido em uma experiência estética singular dentro de um ambiente nada
propício da Colônia Juliano Moreira, como veremos mais à frente.
Oliveira fala das escapatórias no prefácio do livro já citado, Da Imperfeição,
de Algirdas Julien Greimas, em que o autor “[...] examina a possibilidade de a
experiência estética ser produzida por arranjos e re-arranjos das coisas simples que
fazem parte de nosso viver rotineiro.” (OLIVEIRA, 2002b, p. 12). Tais arranjos e re-
arranjos são compostos no processo da bricolagem realizada por Bispo com os
materiais e objetos de usos cotidianos descartados e coletados na própria Colônia
Juliano Moreira e que a posteriori foram reaproveitados na produção de seus
trabalhos. O Manto da apresentação é a “pancália buscada” na construção do todo
do sentido de sua obra, a de que a vida “faz sentido” e precisa ser registrada, como
o registro de uma vida. Esse sentido de busca se constitui por meio de uma
experiência estética, como uma “espécie de graça” e o “resultado de uma
aprendizagem, de um esforço na construção do sensível” (OLIVEIRA, 2002b, p. 12).
A interdiscursividade é estabelecida com discursos de discursos, com temas e
figuras semelhantes no percurso temático e figurativo de um discurso dentro de
outro discurso. O discurso visual Manto da apresentação incorpora outros discursos,
pois o discurso religioso (simbólico) e o artístico (semissimbólico), já apresentados
como texto em suas relações de intertextualidade, são os seguintes: a estátua do
Cristo Redentor no Rio de Janeiro e os Parangolés de Hélio Oiticica.
O discurso visual Manto da apresentação dialoga com o Cristo Redentor,
compartilhando os mesmos temas (Súplica/entre o céu e a terra) sustentados pelas
figuras (corpo vestido pelo manto/gestos dos braços abertos e mãos voltadas para
cima e para baixo).
143

O discurso visual Manto da apresentação dialoga com os Parangolés,


compartilhando com os mesmos temas (performance do corpo/arte de tecer e
bordar) e figuras (gestos corporais performáticos/ gestos dos braços abertos).
O título verbal – Manto da apresentação – não foi propriamente colocado na
obra pelo próprio artista, assim como os demais títulos dos mais de oitocentos
trabalhos produzidos. Os títulos das obras foram colocados, a posteriori e
postumamente, por críticos, curadores e restauradores, que utilizaram os
depoimentos de Bispo gravados em vídeo e as suas inscrições nos objetos para
assim identifica-los com um título. No artigo As semioses pictóricas, Ana Claudia de
Oliveira afirma que “[...] o título é o enquadramento do olhar [...]” (OLIVEIRA, 2004,
p. 129). Também é uma tradução intersemiótica na linguagem verbal da linguagem
do Manto. No caso do Manto da apresentação, o próprio artista designou os
caminhos para o título verbal, ao afirmar que: em posse do manto se apresentaria a
Deus no momento de sua morte. O Manto da apresentação vestido no corpo vai
para além de sua função prática e simbólica, passando a ter também a função
estética com a condição de se tornar um modo de presença em sua apresentação
ou em sua presentificação.
O Manto da apresentação é uma obra de arte com uma riqueza imagética
bordada e costurada pelo artista sobre e sob a sua superfície, que o já torna um
objeto singular. Quando vestido no corpo do artista, em sua ação performática e
também, eventualmente, interativa com as demais obras, o torna um objeto mais
incomum ainda. Dessa maneira, quando procuramos referências em outras obras ou
movimentos artísticos já conhecidos na História das Artes Plásticas, não
encontramos muitas manifestações artísticas ou culturais que poderíamos
estabelecer algum tipo de relação formal com o Manto da Apresentação.
144

Figura 44 e 45 – A experiência nº 03 (1956) de Flavio de Carvalho e Parangolés (1960) de Hélio


Oiticica

Flávio de Carvalho na Avenida Paulista em sua performance usando saia e participante com
um dos Parangolés de Hélio Oiticica. Fonte: https://duodeluxo.files.wordpress.com/2010/11/flavio-de-
carvalho1-771357.jpg / Art Knowledge News

Podemos encontrar alguns exemplos na História das Artes e da Cultura, tais


como um manto que está a cobrir o corpo de uma deusa, como em Nascimento de
Vênus de Botticelli, ou um Mantelete Emplumado feito de penas de guarás pela
cultura Tupinambá, etc. Esses exemplos são de representações de mantos em
pinturas ou do próprio objeto manto sendo produzido. No entanto, não temos
referências da maneira como Bispo o utilizou vestindo seu corpo de forma
performática/interativa. Com a inserção gradativa da produção artística de Bispo no
cenário das artes plásticas nacional e internacional, a partir de sua morte em 1985,
observa-se que ocorreu uma sanção positiva das obras pelo sistema das artes.
Notou-se também que muitas das obras de Bispo, quando inseridas no métier da
arte, dialogam com outras de nossa contemporaneidade artística, o que nos leva a
abordá-lo de forma reflexiva e a situá-lo no universo da arte contemporânea.
No contexto da arte contemporânea, novas categorias de arte, como a
performance, o happening e a body art exploram a participação do corpo no
processo de produção da obra, assim como uma participação mais ativa, por vezes
interativa, do espectador destinatário da obra. A ação de vestir o Manto por Bispo
dialoga com as propostas de dois representantes das artes plásticas no Brasil, cujas
145

atitudes performáticas aproximam-se das realizações de Bispo. São os artistas:


Flavio de Carvalho (figura 44), que em 1956 saiu usando uma saia pela Avenida
Paulista (SP) e Hélio Oiticica, como há pouco nos referimos, no final da década
1960, vestindo seus Parangolés (figura 45), em performance realizada no MAM/RJ.
Quando passamos a nos referir ao conjunto da obra de Bispo, é necessário
incorporar novas categorias da arte, pois, da maneira que podemos observar no
vídeo de Fernado Gabeira, ela se faz visível por meio de uma grande instalação
artistica montada no interior do seu quarto-cela na Colônia Juliano Moreira. Há uma
sistematização no processo de produção até a montagem das obras, contendo ainda
em sua organização vários objetos e assemblages.

Figura 46 – Bispo do Rosário e a primeira versão do Manto da apresentação

Bispo vestindo a primeira versão do Manto da apresentação sentado à sombra de uma árvore na
Colônia Juliano Moreira. Fonte: imagens cedidas pelo Núcleo de Acervo Iconográfico do Arquivo
Público do Estado de São Paulo [MISSÃO: 719 – 42 negativos].
146

A vida de um cidadão “comum”, de um nordestino que vai em busca de novas


oportunidades na cidade grande, uma narrativa presente na vida de migrantes do
Nordeste do Brasil que, ao preço de suas vidas, ajudaram a edificar cidades como
São Paulo. Antes de ser internado em janeiro de 1939 na Colônia Juliano Moreira,
Bispo trabalhou como auxiliar geral na Marinha brasileira e, depois, como doméstico
em casa de família no Bairro de Botafogo (RJ). Após um surto psicótico, Bispo foi
diagnosticado com “esquizofrenia paranóide”. Na época, um dos locais que recebia
esse tipo de paciente era a Colônia Juliano Moreira (figura 46).
A colônia teve seu nome atribuído ao renomado médico e psiquiatra Dr.
Juliano Moreira (1873 – 1932), que importou da Europa o próprio conceito de
colônia: reunir os doentes mentais das cidades em locais mais isolados para lá
oferecer trabalhos e oficinas para eles. O primeiro núcleo foi fundado em 1924, mas
foi o Dr. Juliano Moreira que transferiu as colônias da ilha do governador para
Jacarepaguá e fundou a Colônia de Psicopatas de Engenho de Dentro (atualmente,
onde fica o Museu das Imagens do Inconsciente). Adepto da eugenia, termo extraído
da psiquiatria nazista e que também foi adotada aqui no Brasil por outros médicos,
como Raimundo Nina Rodrigues (1862 – 1906), que defendiam, dentre outras
coisas, a esterilização como método de profilaxia. O ambiente da Colônia era hostil,
em que métodos de contenção do paciente foram usados, como o do eletrochoque.
No entanto, foi nesse contexto que Bispo soube encontrar a matéria-prima por meio
da coleta e do reaproveitamento de materiais usados e construir sua obra durante
aproximadamente 50 anos e organizá-la no seu quarto-cela.
Além do Manto da apresentação, Bispo bordou em fardões e em estandartes,
e produziu centenas de objetos, desde as pequenas miniaturas mumificadas até as
assemblages, com as obras Canecas e Sandálias e Peneiras, que constituíram
assim um acervo de aproximadamente 800 trabalhos realizados. A sistemática da
organização de todos esses trabalhos produzidos por Bispo pode ser vista como
uma Instalação em constante transformação, pois seus elementos componentes,
todo o seu acervo de obras, é eventualmente realocado e manuseado. Lembremos
que Bispo aparece no vídeo de Fernando Gabeira jogando xadrez com uma de suas
obras: Jogando xadrez com Rosângela. Da mesma maneira, usa seus Fardões,
porta em mãos o Estandarte: vois habitantes da terra e gira a Roda da fortuna, etc.
147

Figura 47 – O Manto da apresentação como intertexto global de sua própria obra

A frente do Manto da apresentação e sua intersemiose com outras obras. Fonte: montagem feita pelo
autor.

Figura 48 – O Manto da apresentação como intertexto global de sua própria obra

Detalhe do Manto da apresentação e “Jogando Xadrez com Rosângela”, s/d. Madeira, metal, tecido,
plástico, linha, nylon, vidro, ferro e papel, 114 x 55 x 14 cm. Fonte: montagem feita pelo autor.
148

Se nos atentarmos para o Manto da apresentação como suporte para o


registro dos modos de presença que se configuram em seu arranjo plástico e
figurativo, cada presença é uma obra que Bispo registrou na superfície do Manto por
meio do bordado, compondo dessa maneira um inventário de obras-presenças. A
tradução intersemiótica se dá por meio de um inventário de experiências postas no
Manto. Cada obra-presença não se traduz somente como uma transcodificação de
um objeto do mundo natural, mas como resultado de um processo de semiose em
“intra e inter relação” (OLIVEIRA, 2004) com o próprio conjunto de sua obra. Essa
intersemioticidade se efetiva pelo ato de inventariar a série de obras que compõem o
acervo de sua instalação montada no quarto-cela e que são registradas em uma
única obra. O Manto, que é a totalidade, o tótus, que traz em seu corpo as partes, o
uno, a presentificação de cada uma das obras-presenças. O Manto, conforme
esquema montado (figuras 47 e 48), mostra-se como um intertexto global que
integra pelo bordado toda a sua obra.
O Manto da apresentação está na esfera do mundo de Bispo, em um mundo
simbólico. A relação intersemiótica se dá pela tradução para o bordado de um
mundo que ele inventaria, que significa uma tentativa de Bispo de colocar tudo que
ele viu e viveu. Essa tradução intersemiótica mostra que a vida valeu a pena, o
Manto é a totalidade enquanto o todo da obra de Bispo. O Manto é a passagem de
Bispo de tudo que fez na terra: a vida que ele inventaria bordada é a sua vida na
fazenda, com as viagens pela Marinha, a casa que viveu em Botafogo e sua
permanência de 50 anos trabalhando em sua obra na Colônia Juliano Moreira.
Esse inventário de obras-presenças produz novos sentidos quando
incorporados ao corpo de quem veste o Manto. O corpo vestido pelo Manto se faz
obra na medida em que se incorpora ao mundo, assim como afirma Merleau-Ponty
“[...] há que reencontrar o corpo operante e atual, aquele que não é um pedaço de
espaço, um feixe de funções, mas um entrelaçado de visão e de movimento.”
(MERLEAU-PONTY, 1989, p. 50). Tem-se uma total integração entre corpo vestido,
obra e mundo, um envolvimento mútuo entre o vidente e o visível, de quem toca
(tocante) e é tocado, assim, “[…] o mundo visível e o mundo dos meus projetos
motores são partes totais do mesmo ser.” (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 50).
O corpo vestido com o Manto mostra também um inventariado das coisas do
mundo como um arquivo de memória. Bispo intitulava sua obra como Registros de
Minha Passagem pela Terra. O que mostra em sua intencionalidade estética a ação
149

de registrar um inventário de sua própria experiência vivida no percurso de sua


existência e de tudo que conseguiu apreender do mundo. Os registros marcam a
passagem de sua existência no mundo, uma passagem que, na concepção
nietzschiana, pode ser figurativizada por “[...] uma corda, atada entre o animal e o
além-do-homem [...]” (NIETSZCHE, 1978, p 227). O pathos que deixa registrado as
marcas expressivas da memória de toda uma existência.
Ao abordarmos o Manto da apresentação como um “arquivo de memória”,
partimos dos fundamentos teóricos e metodológicos construídos pelo historiador Aby
Warburg (1866-1929) em sua “ciência da cultura” (Kulturwissenschaft). A idéia
central das pesquisas do historiador está fundamentada no conceito de Nachleben,
que se define como a sobrevivência das formas no decorrer do tempo e que
ultrapassa barreiras geográficas. Warburg concebe uma história da arte sintomática
constituída a partir de imagens de uma memória coletiva, que se conectam de modo
sincrônico e são atualizadas em tempos e espaços geográficos distintos. Como
exemplo, podemos citar as representações dos movimentos dos cabelos e das
vestimentas encontradas em relevos na Antiguidade Clássica que, a partir do século
XV, novamente foram postas em evidência pelos artistas renascentistas ao se
apropriarem dessas formas do passado e as atualizaram como representações
pictóricas e escultóricas em suas obras.
As pesquisas de Warburg se radicalizam com a montagem de sua Biblioteca
KBW (Kulturwissenschaftliche Bibliothek Warburg) e com um Atlas, que nomeou de
Mnemosyne em homenagem à deusa da memória da Antiguidade Pagã. A partir da
montagem do Atlas Mnenosyne, Warburg produziu uma história de imagens
organizadas sincronicamente em 63 painéis compostos de centenas de fotografias.
Assim, concebeu uma enciclopédia visual com as mais abrangentes experiências
culturais da humanidade, que foram enumeradas, catalogadas e justapostas. O
Atlas, além de ser um arquivo da memória coletiva, se estrutura com imagens
significativas que se agrupam por um determinado tema e, ao mesmo tempo, se
correlacionam para constituir daí uma imagem síntese (MATTOS, 2006).
Na série de obras do acervo de Bispo instaladas no quarto-cela, observam-se
semelhanças nos processos de catalogação e de seriação encontrados na
enciclopédia de imagens de Warburg. No entanto, Bispo, em seu processo de
bricolagem, se servia somente dos objetos e dos materiais do seu limitado universo
circundante da Colônia Juliano Moreira. A série de obras com cerca de 800 objetos
150

(imagens significativas) foi agrupada em temas (indumentárias, miniaturas, etc) e, na


medida em que as obras foram sendo bordadas, como obras-presenças, que
consolidam a experiência estética de Bispo na reconstrução do mundo por meio de
um arquivo de memória - o Manto da Apresentação (imagem síntese). O Atlas
Mnenosyne de Warburg e o Manto de Bispo produzem efeitos de sentido articulados
entre o todo e as partes, entre o universal e o regional, entre o que permanece e o
que se esvai com o tempo. Por fim, entre o eterno e o efêmero.
Nesse cenário de seleção e reaproveitamento de materiais e objetos de uso
cotidiano, Bispo é um bricoleur que estrutura a sua própria enciclopédia de objetos
organizados sistematicamente em sua instalação e que assim formam um conjunto
de imagens do mundo de sua experiência vivida. Os Registros de minha passagem
pela terra como conjunto da obra de Bispo mostram uma maneira de “prática de
memória” por meio de um registro enciclopédico montado a partir das lembranças do
passado e que são atualizadas no presente pela experiência estética advinda da sua
condição humana em conjuminância com seus modos de vida e o entorno, tornando-
a ela mesmo atemporal na temporalidade inexorável da vida.
A obra de Bispo é uma evocação. Recorda, lembra, evoca o passado, mas
também é no presente a própria produção de sentido em ato, e ainda é uma
projeção para o futuro, “evo” poético, a eternidade, a duração sem fim. E o Manto é
que faz ser a apresentação, um objeto que vestido no corpo torna-se, ao mesmo
tempo, um registro como instrumento da passagem, do passado para o presente e
do presente para o futuro, e também um instrumento da transcendência, do plano
terrestre-humano para o plano celeste-divino.
O Manto da apresentação vestido no corpo de Bispo presentifica a
transitoriedade da vida no seu eterno devir que precisa ser registrada como marca
de uma existência. O resultado de todo esse processo criativo é a formação de um
inventário de objetos enciclopédicos. A obra de Bispo se constituirá desse modo por
meio de arquivos de memória/inventário enciclopédico de objetos, na medida em
que se tem um colecionismo de uma vida se construindo, a partir dos percursos da
vida cotidiana (cotidianidade), um inventário poético para dar sentido ao passado e
ao presente. É a arte produzida a partir de objetos advindos do cotidiano como
arquivos de memória de uma vida, e que são organizados esteticamente em um
determinado espaço.
151

4.1.2 Arqueologia poética

Na segunda obra, Arqueologia poética, de Chiquitão, averiguaremos como se


estabelecem as suas relações intertextuais. Elas serão tratadas como co-presença
entre architecture-collé e assemblages no casarão colonial. Arqueologia poética é
um texto visual de difícil leitura, tanto para lhe conferir uma única modalidade de arte
quanto para lhe atribuir apenas qualidades sensíveis visuais. O artista, com a sua
coleção de objetos, compõe as partes da obra, as assemblages com distintos
arranjos que configuram um todo, a instalação que ocupa os ambientes do casarão
colonial. Dessa combinação de uma instalação composta de assemblages podemos
proferir que o artista realiza o seu texto à maneira de outros textos conhecidos na
história da arte, como a architecture-collé, de Kurt Schwitters, e a assemblage, de
Fernandez Arman, em que ambos foram referidos anteriormente.
A experiência estética mediada pela cotidianidade, observada na obra de
Schwitters (figura 49), assim como na obra de Chiquitão (figura 50), faz com que
esses trabalhos se aproximem pelas marcas textuais e pelos efeitos de sentidos
produzidos. Essas obras produzidas com materiais e objetos usados, encontrados e
coletados pelos artistas, integram tanto uma ação cotidiana, de andar pelas ruas à
procura de suas matérias-primas, quanto uma ação estética, de produzir suas obras
em um local específico, respectivamente, em um apartamento e em um casarão.
Sem um projeto inicial ou mesmo final, em devir, observa-se que no processo de
produção de suas poéticas, tanto Schwitters quanto Chiquitão assumiram
características próximas às do bricoleur. Constroem uma narrativa visual na qual
cada elemento representa um conjunto de relações com o todo, com diferentes
projeções temporais, no Merzbau, do presente para o futuro e em Arqueologia
poética, do passado para o presente, na sua atualização do barroco mineiro, como
veremos mais à frente.
152

Figura 49 – Merzbau (1919-1933) de Schwitters

Kurt Schwitters. Merzbau (original), destruído em bombardeio aéreo em 1943. Architecture-collé.


Apartamento de Schwitters em Hanover. Montagem: pedaços de madeira, papeis diversos (jornais e
etiquetas), metais (peças de moeda, dobradiça de porta...). Objetos dos mais variados, colados e
pintados. Foto: Wilhelm Redemann, 1933 © DACS 2007. Fonte:
<http://www.tate.org.uk/research/publications/tate-papers/08/kurt-schwitters-reconstructions-of-the-
merzbau>.

Figura 50 – Arqueologia poética de Chiquitão

Subsolo do casarão colonial. O artista aproveita o teto de cobertura de palha para compor seus
trabalhos. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
153

A assemblage (figura 51) de Fernandez Arman, artista já citado


anteriormente, integrante do movimento artístico francês do Novo Realismo (1960),
nos coloca frente ao segundo texto de referência ou de intertextualidade de
Arqueologia poética (figura 52). Na assemblage de Arman, o artista reúne centenas
de chaves de metal com diferentes formatos e sem uma organização estabelecida.
Elas estão colocadas aglomeradas a ponto de perder sua referência visual principal
no formato de chaves. Assim, faz o conjunto tornar-se uma massa amorfa, que o
artista envolveu com um plástico, como um mostruário de peças. O
acumulo/aglomeração também cria um efeito de sentido que traz uma crítica a uma
sociedade de consumo e da cultura de massa. Na série das chaves em Arqueologia
poética, elas configuram uma grande assemblage. No entanto, encontram-se
distribuídas em uma organização topológica totalmente diferente e são chaves
iguais, para ser vista na serialidade que reitera as formas mostrando seu discurso de
objetos de ferro do período colonial do passado ainda presente. O que mantêm uma
relação de intertextualidade entre as duas obras, apesar de uma mostrar pela
diversidade do acúmulo de modelos de chaves e a outra mostrar pela unidade
repetida e seriada, são as marcas da repetição de chaves seja randômica ou
programada nas produções de arte que se põem em relação de intertextualidade.

Figura 51 – Assemblage (1971) de Arman

Conjunto de chaves de diferentes formatos e tamanhos integram a assemblage de Arman. Fonte:


<http://www.artvalue.fr/auctionresult--arman-armand-fernandez-1928-20-assemblage-1751406.htm>.
154

Figura 52 – Arqueologia poética de Chiquitão

Série das chaves de Arqueologia Poética exposta no Casarão Colonial em Ouro Preto, MG.
Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.

Há um discurso dos objetos de ferro (pertencentes a uma coleção de objetos


de uso cotidiano entre os séculos XVIII e XIX), no discurso arquitetural (em um
casarão colonial do século XVIII, no discurso cidade colonial (na cidade de Ouro
Preto, cujo estilo predominante é o barroco). Basicamente, tem como percurso
temático dar a história do passado colonial que o barroco mineiro concretiza.
O título verbal da obra (Arqueologia poética) já nos indica como a coleção de
objetos se constituiu: na sua maioria, foram encontrados na prosa do mundo e
transformados esteticamente em sua poética. Encontrar tais objetos não foi tarefa
fácil, pois exigiu uma busca do tipo “arqueológica”. Quando esse tipo de intervenção
ainda era permitido para diletantes, que o artista foi garimpando nas ruas quando
estavam sendo repavimentadas, escavando nos casarões incendiados ou em ruínas
e peneirando nos córregos e riachos da cidade. Por meio de sua obra, o artista
reconstruiu sua cultura e seus costumes, uma função da arqueologia, transformando
objetos prosaicos do passado em objetos poéticos no presente.
A obra Arqueologia poética, de Chiquitão, foi a única obra realizada pelo
artista. Não há uma série de obras produzidas. No entanto, aconteceram diversas
montagens em outros locais com a mesma obra ou de partes dela. As contribuições
de Chiquitão para a cultura local se estendem também ao cinema (Chico Rei, 1985 e
Tiradentes, 1999) e ao vídeo, com a produção de cenários, na escolha de locais na
cidade, trabalhando como assistente de produção e ator.
155

Uma das últimas montagens da obra Arqueologia poética (figura 53),


aconteceu no ano de 2013 e foi uma das maiores já realizada pelo artista fora do
casarão colonial. A exposição ocorreu no espaço totalmente público-público em
frente ao Museu dos Inconfidentes, na Praça Tiradentes. Pela maneira de expor a
obra, pode-se considerá-la como uma intervenção urbana no centro da cidade de
Ouro Preto.
A intervenção urbana foi realizada durante 8 dias em que a obra foi montada
e exposta na Praça nesse período. Todos os objetos da coleção expostos foram
colocados sobre painéis de lona de tecido na posição horizontal e compostos como
diversas assemblages (figura 54). A montagem de todo o espaço é uma citação a
um sítio arqueológico em que seus destinatários, cidadãos ouro-pretanos e turistas,
puderam caminhar por entre os diferentes arranjos plásticos da obra. A exposição
representou uma tentativa de reconstrução da história da histórica Ouro Preto por
meio de objetos pertencentes ao seu cotidiano, coletados e colecionados
cuidadosamente por Chiquitão, assim como instaurou uma reflexão sobre esses
objetos históricos reconfigurados sob a ótica da arte a partir da cotidianidade.

Figura 53 – Arqueologia poética (2013) de Chiquitão

Exposição Arqueologia Poética em Ouro Preto, MG, Brasil na Praça Tiradentes. Foto: Almir Valente
Costa.
156

Figura 54 – Arqueologia poética (2013) de Chiquitão

Exposição Arqueologia poética em Ouro Preto, MG, Brasil na Praça Tiradentes. Foto: Almir Valente
Costa.

Até o momento, apresentamos a obra Arqueologia poética de duas maneiras


que foram expostas: no espaço privado do casarão colonial como instalação e no
espaço público da Praça Tiradentes como intervenção urbana, em que ambas são
montadas como assemblages. Todos esses procedimentos metodológicos de
montagem da obra estão presentes no sistema das artes contemporâneas, como o
vimos na relação de intertextualidade que a obra de Chiquitão estabelece com
certas produções artística atuais.
Por meio de uma mediação espacial, imersos na materialização da história,
somos conduzidos a um esquecimento presente e engolidos pela temporalidade do
pretérito ao nos encontramos com Vila Rica. Somos tragados pelo imaginário
barroco, passando pelas ruas de paralelepípedos que nos conduzem a obras que
inspiram arte e narram política, religião e a vida do grande período aurífero de Minas
Gerais. A cidade, mesmo em seu devir, se configura como persistência da memória.
O Barroco chegou ao Brasil com os colonizadores europeus no século XVI e
se espalhou pelas regiões da Bahia, de Pernambuco e do Rio de Janeiro, atingindo
o seu auge após a descoberta aurífera (1695) na região de Minas Gerias. O
surgimento do Barroco mineiro se configura como uma expressão artística
157

essencialmente ligada ao culto católico. Apesar de ser chamado de Barroco mineiro,


o conceito não gera uma formulação especificamente exata, visto que parte das
produções artísticas do período aconteceu já sob as marcas do estilo rebuscado do
movimento Rococó. Por isso, muitas das conceituações e referências da época
utilizam-se da expressão "ciclo do barroco-rococó".
A maior parte dos trabalhos eram encomendados pelas irmandades, que
foram organizações patrocinadoras das artes e que fomentavam o espírito cristão,
criando uma rede de assistência mútua para seus integrantes. Pedreiros,
rebocadores, serralheiros, latoeiros, oleiros e ferreiros eram reunidos em uma
corporação de ofício. Escultores, arquitetos, entalhadores e pintores "tinham sua
profissão mais vista como uma arte do que um ofício mecânico". (Germain Bazin
apud Museus virtual de Ouro Preto). Os artistas e oficiais também contavam com
ajuda de escravos na condição de aprendizes nas oficinas e nos ateliês.
Apesar das limitações espaciais, com falta de comunicação com outras
regiões, técnicas e materiais como cedro e a pedra-sabão, típicos da região mineira,
foram adaptados às necessidades das obras. A adaptação de materiais ajudou na
construção de uma identidade própria do barroco mineiro, mesmo com a presença
marcante das tendências europeias. Ouro Preto então se tornou um centro de
produção artística da época e ganhou expressão particular no contexto mundial
através da obra de artistas como Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho) e Manoel da
Costa Ataíde (Mestre Ataíde).
Historicamente, o ato de colecionar é algo praticamente recente na história
da humanidade ou pelo menos que se tenha um registro preciso. Embora aponte
para a Idade Média, o aparecimento das primeiras coleções propriamente ditas, nos
monastérios, nas igrejas e dos senhores feudais, foi ampliado pela aristocracia
europeia do século XV. No século XVI, entre os nobres europeus renascentistas,
surgiram uma forma diferente de coleção: os Quartos de Artes e Maravilhas, mais
conhecidos como Gabinetes de Curiosidades (figura 55).
158

Figura 55 – Gabinete de curiosidade

Anônimo Le cabinet de Ferrante Imperato à Naples 1672, gravura, Bibliothèque Estense, Modène17.
Fonte: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/VGRO-
72MSXT/disserta__o_de_helga_cristina_gon_alves_possas.pdf?sequence=1>.

Como resultado das grandes navegações e comércios pelo mundo, os


mecenas do século XVI e XVII acumularam os mais diferentes artefatos e objetos do
mundo natural. O que pertencesse ao reino animalia, vegetalia ou mineralia, quanto
mais exótico melhor, até mesmo fantástico, o que importa é que seja algo raro, mas
que na sua condição de coleção mostrasse o próprio mundo em sua totalidade. Esse
era o propósito dos Gabinetes de Curiosidades, para colecionar o desejo de ordenar,
classificar, possuir, para melhor entender o mundo por meio dos objetos
colecionados. Ao mesmo tempo, como forma de demonstrar o poder ser e ter de um
colecionador, por meio do acúmulo de algo que se tornava privado e que, por sua
vez, em algum momento, foram compartilhados aos olhares de poucos
contempladores.
O historiador polonês Krzysztof Pomian (1934-), em seu texto Coleção, trata
do surgimento das coleções a partir de uma abordagem histórica do mobiliário
funerário, oferendas, presentes e despojos, relíquias e objetos-sagrados, tesouros
principescos, coleções particulares e museus. Pomian define coleção como:
159

[...] qualquer conjunto de objectos naturais ou artificiais, mantidos


temporária ou definitivamente fora do circuito das actividades económicas,
sujeitos a uma protecção especial num local fechado preparado para esse
fim, e expostos ao olhar do público. (POMIAN, 1984, p. 53)

Logo após essa definição, o autor acrescenta que existe também aqueles que
não estão expostos ao olhar do público: são os “tesouros escondidos”. Na tela do
parecer do quadrado semiótico, seria o segredo – aquilo que não-parece, mas é.
Para o historiador Pomian, existem dois tipos de coleções: as coleções particulares e
os museus, ambos formados por numerosos e heteróclitos objetos, sendo que a
maioria das coleções deram e dão origem ou transformaram-se nos museus. Os
objetos que compõem às coleções perdem seu valor de uso, mas não perdem seu
valor de troca, ou seja, perdem a sua utilidade para ganhar um novo valor. Assim,
como afirma Pomian:

Os utensílios, os instrumentos e os fatos recolhidos numa colecção ou num


museu de etnografia não participam nos trabalhos e nos dias das
populações rurais ou urbanas. E é assim com cada coisa, que acaba neste
mundo estranho, onde a utilidade parece banida para sempre. Não se pode,
com efeito, sem cometer um abuso de linguagem, alargar a noção de
utilidade a ponto de a atribuir a objectos cuja única função é a de se
oferecerem ao olhar: às fechaduras e às chaves que não fecham nem
abrem porta alguma; às máquinas que não produzem nada; aos relógios de
que ninguém espera a hora exacta. (POMIAN, 1984, p. 51).

O historiador traz o termo “semióforos” para os objetos que não possuem


mais utilidades, mas são dotados de significados, tais como: as obras de arte, a
formação das bibliotecas ou das coleções. Pomian aborda a formação das coleções
particulares acumuladas por colecionadores (pessoas privadas) e, a posteriori, dos
museus acumulados por conservadores (estabelecimento público). Os objetos
semióforos oriundos das primeiras expedições patrocinadas pelos príncipes
mecenas formaram as coleções dos seus Gabinetes de Curiosidades, assim como
afirma o autor:
.As expedições que voltam dos países longínquos trazem, com efeito, não
só mercadorias altamente vantajosas, mas também todo um novo saber, e
novos semióforos: tecidos, ourivesarias, porcelanas, fatos de plumas,
«ídolos», «fetiches», exemplares da flora e da fauna, conchas, pedras
afluem assim aos gabinetes dos príncipes e aos dos sábios [cf. Hamy 1890;
Schlosser 1908]”. Todos estes objectos, qualquer que fosse o seu estatuto
original, tornam-se na Europa semióforos, porque recolhidos não pelo seu
valor de uso, mas por causa do seu significado. (POMIAN, 1984, p. 77).

No século XV, no início do Renascimento italiano, temos a formação de


coleções de obras de arte pelos príncipes. Logo em seguida, pelas famílias
160

abastadas, tais como a Médici, com destaque para Lourenço de Médici, um dos mais
conhecidos mecenas dos artistas. No século XVI, teve início em vários países da
Europa à moda de colecionar antiguidades e no século XVII foi a vez dos
instrumentos científicos como peça de coleção. Na França, até a segunda metade
do século XVIII, as peças de coleção da vez são as medailles – as moedas antigas.
A partir dessa data, aparecem os objetos da História Natural. O historiador ainda
relata sobre a primeira das grandes bibliotecas públicas, a Bodleiana, aberta em
1602 em Oxford. E em 1675 foi criado o primeiro museu (Ashmolean Museum), em
que o colecionador Elias Ashmole deixa as suas coleções de curiosidades e
artefatos para a Universidade de Oxford, para o uso dos estudantes, sendo que
estas tornaram-se acessíveis ao público somente em 1683.
Já na coleção de objetos de ferro de Chiquitão, o ato de colecionar tornou-se
um ato de pesquisa para produção de sua própria obra. Arqueologia poética,
instalada no casarão colonial, se aproxima esteticamente dos Gabinetes de
Curiosidades. Concentra a sua coleção em objetos de ferro, que resgatam um ofício
tradicional, o ofício de ferreiro em Minas.
Os objetos de ferro da coleção de Chiquitão foram forjados (batidos) ou
fundidos por muitos desses escravos que desenvolveram o ofício de ferreiro. Esse
ofício tem como matéria prima o ferro com seus objetos feitos a partir de
modelagens (modelos prontos) com fins práticos que, por sua vez, se opõem ao
processo de criação do objeto estético. A produção metalúrgica na fundição do ferro
iniciou-se em Minas Gerais mediante “[…] a instalação das forjas de cadinho,
operadas por cativos islamizados, que trouxeram da África uma técnica rudimentar,
mas eficaz, de extração e manipulação do minério de ferro.” (ROMEIRO, 2013, p.
262).
Os cadinhos eram pequenos tubos de forma cilíndrica, com 0,30m de
diâmetro por 1,0 m de altura, usados no processo de fundição do ferro. No entanto,
no século XVIII, o ferro era um produto ainda com custos muito altos. Na região das
Minas Gerais, com a abundância do minério de ferro e a necessidade de
ferramentas para atividade mineradora e agropastoril, a atividade de fundição foi de
suma importância para a economia da cidade de Vila Rica, fundada em 1711. Nesse
período, ainda houve o desenvolvimento de outras técnicas de fundição de ferro,
como: a forno de ferreiro e a forno de ferreiro já curado, ambas utilizadas na
produção de colheres, panelas, ferro de passar, escumadeira, etc; instrumentos para
161

a agricultura: enxadas, machados, etc; para montaria: sela, ferro de marcar,


ferraduras, etc.; para o aprisionamento dos escravos: correntes, gargalheiras,
ferrete, etc; e também materiais relacionados à arquitetura colonial: pregos (cravos),
fechaduras, dobradiças, espelhos de porta, etc. (ROMEIRO, 2013).
Esses objetos de ferro de uso cotidiano produzidos no período colonial
mineiro formam o conjunto de objetos semióforos, componentes da instalação
Arqueologia Poética, de Chiquitão, montados no seu casarão colonial com
características próximas aos dos Gabinetes de Curiosidades. No entanto, um
gabinete era montado ocupando um único espaço que continha vários objetos do
mundo natural e ou artefatos que, juntos, causavam a estranheza da curiosidade.
Em Arqueologia Poética, temos um casarão de dois andares quase que totalmente
ocupado com o arranjo de objetos da coleção de Chiquitão. Todos esses artefatos
contendo a mesma materialidade de ferro, mudando apenas a sua forma e função. A
instalação Arqueologia poética traz os procedimentos de montagem dos Gabinetes
de Curiosidades contendo centenas de objeto de ferro semióforos do ciclo do ouro,
que estão repetidos em separados ou conjugados e misturados.
O filósofo Walter Benjamim, em Das passagen-werk, aborda sobre o ato de
colecionar. Para Benjamim, os objetos em uma coleção devem estar livres de suas
funções originais para novas incorporações. A coleção se torna uma enciclopédia
de todo o conhecimento do período e uma forma prática de memória. No caso de
Arqueologia Poética, o ato de colecionar em Chiquitão reconfigura o objeto
colecionado, impregna-o de subjetividade e tira-o de sua função inicial para
instaurar uma nova função estética. Com uma coleção de milhares de peças
compostas esteticamente nas paredes do seu casarão colonial, a obra de Chiquitão
configura um arranjo original que contribui tanto para a história e a arqueologia
quanto para a cultura e a arte de Ouro Preto.
Esse ato de colecionar (re)configura o objeto colecionado, tirando-o de sua
manipulação e circulação imediata, cujo valor prático é transformado pela
experiência advinda do processo criativo, que assim lhe atribui uma valorização
estética. A coleção de objetos que compõem a série de suas obras faz também
registros de sua memória. Assim, Walter Benjamim, em Das passagen-werk, afirma:
162

[...] para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas vira, nesse
sistema, uma enciclopédia de todo o conhecimento do período, da
paisagem, da indústria e do proprietário do qual provém. […] Tudo que é
recordado e pensado, tudo que é consciente, torna-se agora suporte, a
moldura, o pedestal e a marca de sua propriedade. A coleção é uma forma
prática de memória, e, entre as manifestações seculares de “proximidade”,
a mais convincente. (BENJAMIN apud CRIMP, 2005, p. 179).

Em A poética do espaço, de Gaston Bachelard, o elemento casa é abordado


como uma imagem poética: “A casa abriga o devaneio, a casa, protege o sonhador.
A casa permite sonhar em paz. Só os pensamentos e as experiências sancionam os
valores humanos” (Bachelard, p. 26). A casa é “integração para os pensamentos, as
lembranças e os sonhos do homem”. Assim, a imagem da casa revela um “estado
de alma” que fala de uma intimidade.
A instalação da obra Arqueologia Poética no casarão colonial consolida-o
como um espaço poético, como um sonho de um colecionador-artista que reuniu
uma coleção de objetos de ferro montados enquanto relicário de um período
histórico no Brasil em uma arquitetura colonial. O espaço poético produzido no
interior do casarão colonial remonta uma parte do conhecimento enciclopédico da
cultura colonial e barroca da cidade, pois traz do passado toda a sua memória que
se renova no presente da presença da obra.
O Barroco foi um movimento artístico e cultural temporal. No entanto, em
Minas Gerais, principalmente em Ouro Preto, parece ser atemporal, um passado
presente na tradição e na visualidade da cidade histórica. Em Ouro Preto, com seus
casarões coloniais, igrejas e monumentos, pode-se observar um barroco/rococó
diferente dos demais encontrados nas cidades históricas pelo Brasil do mesmo
período em questão. O Barroco/Rococó está presente na cultura local e é atualizado
pela instalação de Chiquitão, que propõe uma nova maneira de ver e sentir a
presença dos materiais e objetos de ferro de uso cotidiano do passado arranjados
poeticamente em sua obra no casarão colonial.
O barroco-rococó mineiro é atualizado em Arqueologia poética nos dois
procedimentos de exposição da obra, tanto como instalação no casarão quanto
como intervenção urbana na Praça Tiradentes. Ambos dispositivos são exemplos de
arte in situ, de uma arte não somente feita para esses locais específicos, mas
também feitas de partes desses locais específicos, que são os objetos do cotidiano
colonial de Ouro Preto realocados esteticamente, organizados em série, por
identidade de forma e função. Por exemplo, as chaves nas paredes do casarão
163

colonial sob uma nova ótica. O próprio casarão colonial, sem nenhuma placa de
informação indicando a localização da obra é a continuidade no cotidiano da cidade
de Ouro Preto. O acontecimento estético dentro do casarão somente é descoberto
por destinatários curiosos ou por quem têm a sorte da sua descoberta e se lançam a
entrar no casarão para um encontro inesperado com a instalação na casa-museu.

4.1.3 Marat (Sebastião)

Figura 56 – A morte de Marat, 1793, de J. L. David

A obra de J. L. David conhecida como A morte de Marat possui outro título, que o próprio artista
deixou escrito, O último suspiro de Marat. Pintura a óleo sobre tela, 162 x 128 cm. Musées Royaux
des Beaux-Arts, Brussels. Fonte: <http://virusdaarte.net/wp-content/uploads/2014/05/david1.png>.

A terceira e última obra abordada, a fotografia Marat (Sebastião) de Vik


Muniz, estabelece uma semiose intertextual com a pintura conhecida como A morte
de Marat (figura 56) de Jacques-Louis David. No entanto, apesar das semelhanças
textuais, a co-presença entre os dois textos em processo de intertextualidade não se
164

dá apenas pelo mecanismo de estilização, em que o estilo do texto é imitado, mas


sim também por polêmica, em que há no fazer ao estilo de David a subversão do
texto original.
A pintura neoclássica de Jacques-Louis David representa Jean-Paul Marat,
um mártir da Revolução Francesa, morto na banheira pela sua inimiga política
Charlotte Corday, que entra na cena do crime com a sua assinatura na carta que
deixa claro as suas intenções. O historiador Carlo Ginzburg, em seu livro Medo,
reverência, terror, realiza quatro ensaios, entre eles, um sobre a obra de David, em
que aborda a relação que se estabelece entre Arte, Política e Religião. Para o autor,
a obra de David faz parte do contexto de um ciclo histórico iniciado em Paris em
1789 e que somente terminou 200 anos depois, em 1989, com a queda dos regimes
comunistas no Leste Europeu e o fim da Era das Revoluções. Assim, ele diz: “Como
todos sabem, a irrupção de grupos sociais desfavorecidos na cena política e a
abolição dos privilégios de berço mudaram irreversivelmente a história da França, da
Europa, do mundo.” (GINZBURG, 2014, p. 36).
Para Ginzburg, depois de eclodir a Revolução Francesa, David exerceu
bastante prestígio e influência no cenário político e artístico. Além de pintor, se
tornou uma espécie de cenógrafo político, em que realizou funerais, caricaturas
políticas e desenhos de vestimenta dos legisladores e políticos. A relação entre
Marat e David foi política e pessoal, por isso a incumbência do artista em realizar o
quadro em homenagem ao revolucionário morto. Depois da morte de Marat, também
foi dedicado um altar ao seu coração, que se tornou objeto de culto. Assim, mais que
um quadro político, foi um ato político, com o entrelaçamento de elementos clássicos
e cristãos. Entre muitos historiadores da arte, existe a concordância quanto a
presença de elementos cristãos ou de alusões à iconografia de Cristo morto. Marat
se tornou uma virtude no duplo sentido: uma virtude clássica e uma virtude cristã. O
culto de Marat pertence à religião popular e à da formação do Estado. A obra de
David, conclui Ginzburg: “[...] falava uma língua clássica, mas com sotaque cristão.”
(GINZBURG, 2014, p. 44).
Além de tratar de um tema épico clássico da aretê grega e/ou um gesto
iconográfico da morte de Cristo, segundo Ginzburg, na obra de David sobre a morte
de Marat, nada que é representado na pintura parece ser alegórico ou metafórico.
Tudo parece ter estado presente na cena do crime, como os objetos que cercam
Marat no momento de sua morte. No entanto, todos os objetos presentes na cena do
165

quadro: faca, carta, tinteiro, etc., foram expostos no funeral como objetos de culto
sagrado. Mesmo os radicais jacobinos procuraram legitimar a nova República dentro
da esfera do sagrado. A obra de David apresentou um evento contingente,
utilizando-se de uma linguagem que entrelaçou distintas tradições: a clássica greco-
romana e a cristã. O corpo de Marat desfalecendo na banheira com um discreto
sorriso no rosto divide em dois a cena pictórica do quadro, em que temos a
distribuição topológica dos elementos, acima (espaço vazio) ou abaixo (espaço
cheio) do seu corpo, o que acaba por criar uma oposição semântica entre o mundo
celeste/divino/imortal (sagrado) versus o mundo humano/terrestre/mortal (profano).
No caso da obra de Vik Muniz, Marat (Sebastião), seu texto visual estabelece
uma relação de intertextualidade que subverte o texto original acima citado criando
assim uma polêmica. A organização do arranjo plástico textual e temático da obra
Marat (Sebastião) se torna mais complexo e contemporâneo. Apesar de
figurativizada com alguns dos elementos representados no cenário do quadro de
David, tais como a pena, a carta, a banheira, no entanto, há diferenças tanto nas
figuras representadas quanto na plasticidade do texto visual Marat (Sebastião). O
personagem principal da cena não é mais o Marat retratado por David, mas uma
imagem fotográfica de Sebastião Carlos dos Santos (figura 57), um “homem
comum”, um líder da cooperativa de catadores de materiais recicláveis do aterro
sanitário de Jardim Gramacho. Um novo líder que entra em cena, não mais aquele
da Revolução Francesa, mais sim aquele que registra uma Revolução Ecológica em
curso. A obra de Vik Muniz faz renascer o espírito revolucionário e ecológico. Uma
verdadeira revolução ecológica no sentido empregado pelo filósofo Félix Guattari em
seu livro As três ecologias.
166

Figura 57 – Fotografia de Sebastião Carlos dos Santos, por Vik Muniz

Sebastião Carlos dos Santos encena no aterro sanitário de Jardim Gramacho para obra Marat
(Sebastião). Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e
Vik Muniz.

Félix Guattari, quando fala em ecologia, afirma que estamos tratando das
relações humanas interpessoais e da relação do homem com o mundo. É um tema
atual e que está ligado com o modo de vida humano, individual ou coletivo, em
progressiva deteriorização, ou seja, a relação da subjetividade com a exterioridade
(social, ambiental, cósmica, etc.) está comprometida. Guattari aponta uma solução a
partir de uma revolução política, social e cultural em sua ECOSOFIA, como uma
articulação ética, política e estética, com três registros ecológicos: o meio ambiente,
as relações sociais e a subjetividade humana, ampliando o interesse coletivo para o
conjunto da humanidade. A diferença entre indivíduos é necessária para convivência
do grupo, pois são nas diferenças que poderemos manter uma interlocução com o
pensamento do outro. Assim, o interesse maior é de uma melhor relação do
indivíduo com o meio ambiente e suas relações interpessoais, que os indivíduos se
tornem, ao mesmo tempo, solidários e cada vez mais diferentes.
167

Figura 58 – Detalhe da obra Marat (Sebastião)

;
Com a aproximação da imagem conseguimos observar melhor os materiais presentes na obras.
Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.

Como já visto anteriormente, a imagem de Marat (Sebastião) é um texto


visual fotográfico (figura 58) realizado a partir da montagem de uma assemblage
composta de materiais e objetos descartados que foram encontrados no aterro
sanitário e selecionados para produção da obra. Além do modelo que representa o
papel principal da cena pictórica, com o retrato de Marat, ser substituído na cena
fotográfica composta por uma projeção da imagem fotográfica de Sebastião que vai
servir de anteparo para assemblage, pequenos objetos e pós de cor sépia
peneirados pelo artista e distribuídos pela totalidade da cena configuram o desenho
com volume do modelo Sebastião na banheira. Essa centralidade clara é envolta por
uma marginalidade escura composta por centenas de objetos coloridos e opacos
que estão sobrepostos e justapostos, aglomerando-se por toda a extensão do
espaço e criando assim uma ilusão de bidimensionalidade.
Por fim, o texto visual de Marat (Sebastião) subverte também, como já visto, o
polêmico texto visual pictórico A morte de Marat de J.L. David. O texto visual de Vik
Muniz se articula (política, ética e esteticamente) como na ecosofia proposta por
Guattari, se estruturando assim na integração entre a arte, como uma nova
168

tecnologia na produção da imagem (imagem digital), o social, como projeto de


inclusão social e a ecologia, como a nossa relação com o meio ambiente, com o
trabalho, com o lazer, com o outro, etc.

Figura 59 – Detalhe da obra Marat (Sebastião)

Com uma imagem macro da cena fotográfica conseguimos observar de perto os materiais e objetos
de uso cotidiano descartados que fazem parte da matéria plástica da obra. Fonte: imagens
fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.

Assim, como analisamos a pouco o processo de intertextualidade que Marat


(Sebastião) estabelece com Marat em seu último suspiro, ambas as obras dialogam
entre si na interdiscursividade. No entanto, são dois pontos de vistas diferentes
sobre o mundo que os discursos concretizam.
O título verbal da obra analisada Marat (Sebastião) por extenso é Jean-Paul
Marat entre parênteses Sebastião Carlos dos Santos e traz os nomes de duas
pessoas diferentes que estão conectadas por um parênteses, mas que não possuem
nenhuma ligação entre si, a não ser uma feliz coincidência, pura ocasionalidade,
com a realização do projeto Lixo Extraordinário de Vik Muniz no aterro sanitário, em
que Sebastião interpreta a morte de Marat para a cena fotográfica. Sabe-se que o
título de Marat (Sebastião) se refere explicitamente à pintura de David, A morte de
Marat, cujo artista homenageia o amigo político com uma inscrição que se aproxima
a um epitáfio: À MARAT, DAVID. 17 L’ AN DEUX 93. A dedicatória pintada pelo
artista à Marat não é um título. Apesar de constar também o ano de produção da
obra, 1793, trata-se de uma homenagem de ordem pessoal, pois o título que o
artista concedeu ao quadro escrito em uma carta foi o de Marat em seu último
suspiro (GINZBURG, 2014). É um título bastante condizente para tal obra e tira um
peso do título conhecido: a morte. Marat não morre, se imortaliza, torna-se um mártir
da Revolução Francesa, uma imagem ao mesmo tempo política e religiosa. O artista
169

pinta Marat quase em posição extática, mesmo com ainda um último suspiro, parece
viver eternamente. O título Marat (Sebastião) de Vik Muniz, de maneira diferente dos
outros títulos, não é enfaticamente dramatizado, pois, além do nome do líder
conhecido, pôs entre parênteses o nome de alguém ainda desconhecido, cuja vida
comum seria transformada e ganharia visibilidade diante de sua exclusão social.
Na exposição retrospectiva do artista Vik Muniz, realizada no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em 2009, uma série com sete fotografias intitulada
Retratos do lixo, como resultado do projeto Lixo extraordinário, chama a atenção do
público pela imponência das imagens de grande porte. Ao nos aproximarmos das
imagens fotográficas, elas revelam a natureza dos elementos visuais que compõem
o seu arranjo composicional, assim como, ao nos afastarmos, elas revelam seu
motivo fotográfico por meio da citação de obras já conhecidas na história da arte.
Como o próprio artista Vik Muniz ressalta no documentário Lixo extraordinário:
quando nos aproximamos da obra vemos o material, a sua matéria, quando nos
afastamos da obra vemos a imagem, a sua ideia (figura 59).
A conjugação entre a matéria, composta pelo lixo de Jardim Gramacho, e a
ideia, a imagem da história da arte, gerou formas para a série de obras Retratos do
lixo, que receberam do artista os seguintes títulos: Mulher passando roupa (Ísis),
Marat (Sebastião), Mães e filhos (Suellen), Atlas (Carlão) (figura 60a e 60b), A
carregadora (Irmã), A cigana (Magna) e O semeador (Zumbi). Cada uma dessas
obras faz citação a uma determinada obra da história da arte, promovendo dessa
maneira uma relação de intertextualidade, cujas obras de referência são
respectivamente: Mulher passando roupa (1904) de Picasso, A morte de Marat
(1793) de J. L. David, Madonna com criança (1510) de Giovanni Bellini, Atlas (1646)
de Guercino, estátua egípcia (1981 a 1975 a.C.) anônimo, Albanesa (1872) de
Camille Corot e O semeador (1865) de Jean-François Millet.
170

Figura 60a e 60b - Atlas (Carlão) de Vik Muniz

À esquerda, temos o processo de produção da obra e a direita, o resultado final: Atlas (Carlão), 2009.
Cópia crimogênica digital, 229,90cm x 180,30cm. Fotografia exposta em 2009 no Museu de Arte
Moderna do Rio de janeiro (MAM). Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário,
textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.

Para o sociólogo polonês Zigmuth Bauman, já se perdura por dois séculos de


história moderna a questão dos fluxos migratórios e dos refugiados, que têm sido
considerados como um problema para as nações que os receberam como
hospedeiros. Bauman afirma que: “Há salpicadas em toda parte do mundo,
‘guarnições de extraterritorialidade’, aterros sanitários para o lixo não despejado e
ainda não reciclado da terra de fronteira global (BAUMAN, 2004, p. 163).
Voltemos nosso olhar para os campos de refugiados: nações inteiras em fuga
buscam asilo político no chamado mundo civilizado. Refugiados do medo.
Refugiados da guerra. Pessoas que tinham a vida organizada em algumas das mais
antigas civilizações do mundo enfrentam perigosas travessias para encontrar a frieza
do mundo dito civilizado que os repele com seus muros cada vez mais altos e os
confinam em campos de refugiados. Os vergonhosos muros da exclusão voltam a
confinar pessoas contradizendo o princípio da globalização determinada pelo
neoliberalismo, que apregoa a livre circulação de mercadorias e pessoas. Hoje,
apenas as mercadorias têm livre circulação. E, retornando ao ponto de vista de
Bauman, afirma-se que:
171

Quando os últimos locais portando o rótulo de ubi leones desaparecem


rapidamente do mapa-múndi e as últimas das muitas terras de fronteira
distantes são reclamadas por forças suficientemente poderosas para fechar
divisas e negar vistos de entrada, o mundo como um todo está se
transformando numa terra de fronteira planetária... (BAUMAN, 2004, p. 163).

Em um país como o Brasil, as profundas desigualdades sociais determinam a


natureza dessas fronteiras. Os abismos sociais em que mais da metade das vidas
humanas se encontram confinadas em aterros sanitários, guetos, subúrbios,
periferias, etc., de outra maneira ressurgem dignificadas nos retratos de Vik Muniz,
elaborados dentro de uma realidade perversa dos lixões e que, ao mesmo tempo,
revelam a expressão mais contemporânea da arte. A aparente normalidade social foi
rompida com a delicada cunha da arte de Muniz, dando visibilidade àquelas pessoas
que sempre viveram à margem da sociedade formal, em condições desumanas.
Para além da estranha beleza conquistada com os seus sete retratos, a arte de Vik
Muniz revelou-se um poderoso vetor de transformação social. Um papel
normalmente desempenhado pelas entidades de terceiro setor que visam o resgate
de grupos sociais da pobreza extrema.
Para Bauman: “A comunidade humana parece tão distante da atual realidade
planetária quanto no início da aventura moderna.” (BAUMAN, 2004, p. 178).
Trabalhos como Retratos do lixo, de Vik Muniz, vem provar a máxima cunhada por
Hans George Gadamer: “a condição necessária, sine qua non, para a solução dos
problemas do mundo contemporâneo é a amizade e a solidariedade calorosa”
(BAUMAN, 2013. p. 80). Em sua extraordinária experiência estética, o artista valeu-
se dos materiais alternativos extraídos das montanhas de dejetos rejeitados pela
sociedade consumidora como matéria prima. Desse modo, recorreu à enorme
diversidade de suas texturas e cores para a reescritura de obras consagradas da
história da arte. Para além disso, conseguiu atribuir relevância mediática e
transcendência a personagens esquecidos pelo mundo. Em suas composições
artísticas inspiradas nas fisionomias dos catadores de Jardim Gramacho, que são
imortalizadas nos Retratos do lixo, Muniz ousa por meio da arte resgatar vidas antes
condenadas à completa exclusão social.
Por fim, abordaremos o que em Marat (Sebastião) está inscrito da história da
arte, da história da sua geração, da estética em que é fundada e do seu contexto.
Em primeiro lugar, Marat (Sebastião) pode ser classificado como uma arte
processual registrada, cuja ação atualiza a pintura em performance, in situ,
172

fotografando a cena (o motivo) e projetando-a sobre uma lona posta no chão para
ser o locus de uma assemblage composta com os objetos sobras que, por fim, é
representada através da fotografia digital. A obra de Vik Muniz transita entre a arte
clássica e a arte digital. Como já abordamos anteriormente, a obra Marat (Sebastião)
de Vik Muniz faz uso da “apropriação” do arranjo composicional e dos motivos
representados da pintura Neoclássica de J. L. David Marat em seu último suspiro.

Figura 61 – Estação Sumaré (1998) de Alex Flemming

Detalhe da obra com 22 retratos de pessoas anônimas cobertos de poemas no Metro de


Sumaré, 1998. São Paulo. Fonte: fotografia de Almir Valente Costa

A obra Marat (Sebastião) faz parte da série Retratos do lixo realizados dentro
do projeto Lixo extraordinário. Assim, de modo geral, podemos classificá-la também
como uma intervenção urbana, pois sua realização dependeu de uma intervenção
artística e social no espaço do aterro sanitário de Jardim Gramacho. A intervenção
urbana é um termo que começou a ser utilizado pela arte contemporânea a partir
dos anos de 1960 para designar os movimentos artísticos relacionados às
intervenções visuais das grandes metrópoles urbanas. No início, um movimento
underground que foi ganhando forma com o decorrer dos tempos e se estruturando
e assim particularizando os lugares e reescrevendo as paisagens, como no caso da
obra de Alex Flamming exposta no Metro Sumaré da cidade de São Paulo (figura
61).
173

Existem intervenções urbanas de vários portes, indo desde pequenas


inserções através de adesivos (stickers) até grandes instalações artísticas realizadas
em espaço público. Além de fugir das grandes galerias e museus de arte, as
intervenções urbanas se tornaram fundamentalmente ações que agregam uma
diversidade de experiências estéticas que problematizam seu locus de origem e
atuação. O interventor urbano Nelson Brissac, em seu livro Intervenções urbanas:
arte e cidade, afirma que: “Nossa intenção é provocar as pessoas para que elas
percebam que a cidade não é apenas um lugar para ser explorado, é um lugar para
ser vivido.” (BRISSAC, 2012, p. 4).
O contexto em que se inscreveu a intervenção urbana Lixo extraordinário para
a produção da obra Marat (Sebastião) foi no contexto do aterro sanitário do Jardim
Gramacho. Segundo o documentário Lixo extraordinário, o aterro recebia cerca de
200 toneladas de resíduos recicláveis por dia, sendo que 70% do lixo procedia da
cidade do Rio de Janeiro. Uma grande parte desses materiais e objetos recicláveis
coletados foram empregados na produção da série Retratos do lixo, com a
participação ativa dos catadores também no processo criativo das obras. A vida de
Tião e a dos demais catadores participantes do Projeto Lixo extraordinário é mudada
pela ação desse projeto social no aterro sanitário de Jardim Gramacho. Tião lança
um livro: Do lixão ao Oscar, uma das maneiras de mostrar os procedimentos de
reescritura de papeis sociais, ou melhor, da vida de catadores envolvidos no projeto
Lixo extraordinário e do próprio aterro sanitário de Jardim Gramacho (como veremos
mais a frente). A obra de Vik Muniz foi transformadora da vida de um coletivo de
catadores e crucial para o combate da exclusão social ao desempenhar um papel
que tem sido exercido pelo Terceiro Setor da economia com o intuito filantrópico ou
altruísta. A partir do projeto artístico, se tem a implicação dos coletores de lixo para
viver uma outra possibilidade de um segmento excluído. Assim, como afirma a
pesquisadora Maria Stroka:

Terceiro setor é um conjunto de valores que privilegia a iniciativa individual a


auto expressão, a solidariedade e a ajuda mútua. A filantropia, a caridade e
as ações voluntárias fazem parte do escopo do Terceiro Setor, e ganham
contornos de interesses acadêmico e científico além do social,
comunicacional, educacional, político, religioso e cultural”. (STROKA, 1998,
p. 95).

A obra Marat (Sebastião) aborda novos conceitos e experiências trazidas pela


arte contemporânea, tais como o de “apropriação”, assim como a profusão e a
174

multiplicidade de experiências estéticas integradas na produção da imagem digital


fotográfica. A obra se constitui por meio de outras tecnologias, tais como:
performance, assemblage de materiais de dejeto, fotografia digital. Com o
tecnológico, constrói sobre a obra outras tecnologias, configurando assim uma
estética tecnológica ou das tecnologias.

4.2 Reescrituras de espaços urbanos: nova função e novos usos pela arte
contemporânea

Como se procede e sistematiza os regimes de reescrituras dos espaços


urbanos e da cotidianidade nos quais as obras analisadas se encontram ou
emanam? Ao utilizarmos o termo reescritura, nos respaldamos no artigo Cidade-
palimpsesto: reescrituras de espaços urbanos e equipamentos culturais produzido
pelo atelier de semiótica do Centro de Pesquisas Sociossemióticas, cuja pesquisa
procurou entender de que maneira espaços foram reescritos na dinâmica da cidade
e, por fim, articular como se apresentam as diferentes reescrituras.
O artigo aborda a concepção do termo reescritura como fenômeno
contemporâneo advindo de subáreas das Ciências Sociais e que tem sido
importante no estudo das cidades realizados pela semiótica greimasiana. O
processo de reescritura é então próprio da cidade, na sua dinamicidade de
reinventar-se constantemente, em que espaços antigos são utilizados para novos
usos e, consequentemente, dando-lhes novas funções. A cidade é um complexo de
reescrituras em que o passado é sempre revisitado para a sua atualização no
presente, pelo antigo que pode ser conservado ou renovado.

Campestre ou megalópole, as cidades, quaisquer que sejam elas, são


textos que em interação com seus habitantes (ou visitantes) produzem
narrativas diversas e mutantes a cada novo contato estabelecido. [...] as
cidades interessam também por ser um texto vivo e em construção e locus
da vivência humana. (BUORO; et. al., 2014, p. 613).

A cidade como um texto vivo e um lugar da vivência humana é constituída


como uma cidade-palimpsesto. A cidade-texto que se tece em novas tessituras está
constantemente suscetível de reescrituras, criando assim certas “camadas”
sobrepostas que podem ser visualizadas ou não: como as marcas deixadas de uma
determinada configuração plástica ou como os registros de memória, fragmentos de
algo que não existe mais e que somente faz parte de nossas reminiscências.
175

Na pesquisa do atelier do CPS sobre os territórios de cultura da cidade de


São Paulo, procurou-se sistematizar as operações de reescrituras dos diversos
equipamentos culturais analisados, por meio de uma tipologia dos modos de
reescrituras7. A sistematização dessas operações de reescritura se dá no quadrado
semiótico (Landowski) a partir da seguinte estrutura: a reescritura como
permanência - Antigo - valorização do uso antigo e dos traços originais, que se
encontra em oposição à reescritura como substituição (apagamento) - Novo -
apaga-se o uso e os traços originais e se cria um uso/espaço novo. Em relação de
implicação com a permanência está a operação de reescritura como
transformação – Não-novo - mantendo-se o espaço e traços originais, ao invés de
apaga-lo totalmente, apenas se adapta ou transforma sua função, ao passo que
esse se encontra em oposição com a reescritura como acréscimo - Não-antigo -
acrescenta-se um uso ou traços novos sobre o espaço antigo.
Todos os textos visuais, de que fazem parte de nosso corpus de análise,
foram produzidos na cidade-texto, como um texto maior, que serviu de produtor de
matéria-prima e de suporte para essas obras contemporâneas se manifestarem e
reescreverem o seu próprio contexto. Apoiamo-nos na sistematização dos
procedimentos de reescrituras para descrever os procedimentos de reescrituras de
espaços urbanos, que se constituem de nova função e novos usos por meio da arte
contemporânea, como veremos a seguir.
A primeira obra que nos propomos a analisar pelos procedimentos de
reescritura é Arqueologia Poética de Chiquitão instalada no interior de um casarão
colonial do século XVIII (figura 62). A obra de Chiquitão ocupa praticamente todo o
interior do casarão colonial, com dois andares que se elevam ao nível da rua e mais
dois andares abaixo do nível da calçada de entrada, restando apenas alguns
ambientes que o artista ocupa para o trabalho e como moradia. O casarão foi
restaurado no século XIX, conservando suas características originais até ser

7
Essa tipologia apresentada é uma adaptação de um modelo desenvolvido no Centro de Pesquisas
Sociossemióticas (CPS), com a contribuição da Profª Dra Ana Claudia de Oliveira e da aluna
Tatiana Rovina de Castro. Essa adaptação foi realizada através de um trabalho de pesquisa
Cidade-palimpsesto: reescrituras de espaços urbanos e equipamentos culturais desenvolvido pelo
atelier Território de Cultura composto pela equipe: Anamelia Bueno Buoro PUC-SP:COS/CPS
Doutora; José Almir Valente PUC-SP:COS Doutorando/CPS; Marc Barreto Bogo PUC-SP:COS/CPS
Mestre; Maria Claudia Vidal Barcelos PUC-SP:COS Mestranda/CPS; Mariana Ferraz de
Albuquerque PUC-SP:COS Doutoranda/CPS; Patrícia Bittencourt Rudge; PUC-SP:COS
Mestranda/CPS.
176

adquirido pela família de Chiquitão no século XX, que assim o herdou e se tornou
sua “casa-museu” no início do século XXI.

Figura 62 – Arqueologia poética de Chiquitão

O casarão colonial está localizado ao lado da Igreja do Pilar. As bandeiras do Brasil colocadas nas
janelas pelo próprio artista no dia do jogo da seleção brasileira de futebol. Fotografia: Almir Valente
Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
177

Figura 63 – Placa de tombamento do projeto: Museu Aberto: Cidade Viva

Placa de tombamento do casarão colonial pelo projeto Museu Aberto - Cidade Viva: “Em 1782 estes
dois sobrados, ‘as casas místicas’, como aparecem em registro de tombo, pertenciam aos herdeiros
de Felizarda Teresa da Assunção. A denominação indica casas germinadas, com comunicação
interna, que serviam de apoio ao funcionamento da sacristia e do consistório da Igreja de Nossa
Senhora do Pilar, na época em que eram propriedades da paróquia”. Fotografia: Almir Valente Costa
e Ramúsyo Brasil, 2010.

Figura 64 – Arqueologia Poética de Chiquitão instalada no interior do casarão colonial

Objetos de ferro da coleção-instalação no interior de um dos ambientes do casarão colonial do século


XVIII. Fonte: Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
178

O casarão colonial já traz um adjetivo de uma época passada, quando o


Brasil ainda era colônia portuguesa, entre os séculos XVIII e XIX, período de
consolidação da cultura barroca em Minas Gerais, especialmente na região de Vila
Rica fundada em 1711, como era chamada a cidade de Ouro Preto, designada com
esse nome a partir de 1823. O estilo colonial tanto do Barroco quanto do Rococó se
instalou na arquitetura de Ouro Preto, cenário em que se destacou artistas como
Aleijadinho e Mestre Ataíde. Uma placa de tombamento (figura 63) na entrada do
casarão indica que o sobrado em 1782 foi uma das “casas místicas” da Igreja de
Nossa Senhora do Pilar, servindo-lhe de sacristia e consistório, ou melhor, uma casa
anexa à Igreja com a finalidade de guardar os objetos de culto e as vestimentas dos
padres, além de servir de espaço para reunião ou assembleia eclesiástica.
A partir da montagem da obra Arqueologia Poética no casarão colonial,
podemos identificar uma mudança de uso no local, mas ainda conservados com
seus traços originais do estilo colonial. O casarão colonial enquanto residência e
casa de apoio da Igreja foi um ambiente privado-privado. Ao ser herdado pelo
artista, mantém o casarão enquanto residência e instala sua obra Arqueologia
poética (figura 64) nos demais cômodos, transformando-o em uma “casa-museu”,
que se tornou um lugar de exposição ao público da sua coleção de objetos de ferro
do século XVIII e XIX, transformando-o em um ambiente privado-público.
O casarão colonial é um lugar da memória que preserva a cultura barroca até
os dias de hoje. Uma habitação do século XVIII na qual se expõe os objetos
manufaturados de ferro. É a própria instalação Arqueologia Poética, uma exposição
do passado do ciclo do ferro em Ouro Preto, com uma valorização do uso antigo e
dos traços originais, que promove o procedimento de reescritura por preservação,
com atualização do ciclo do ferro pela exposição de objetos.
179

Figura 65 – Detalhe da obra Marat (Sebastião) de Vik Muniz

A obra Marat (Sebastião) foi totalmente produzida no aterro sanitário de Jardim Gramacho. de Fonte:
Catálogo Lixo Extraordinário

A segunda obra analisada pelos procedimentos de reescritura em termos de


local é Marat (Sebastião) de Vik Muniz. A obra é resultado de um projeto social e
artístico Lixo Extraordinário realizado entre 2007 e 2008, que tem como resultado a
produção da série de fotografias Retratos do Lixo, expostas no MAM do Rio de
Janeiro (2009) e o documentário Lixo Extraordinário (2009) indicado ao Oscar. O
projeto Lixo Extraordinário, registrado em fotografia e vídeo, foi todo produzido no
antigo aterro de Jardim Gramacho, situado no Município de Duque de Caxias, na
cidade do Rio de Janeiro, bairro Jardim Gramacho, às margens da Baía de
Guanabara. Foi o maior aterro sanitário da América Latina com aproximadamente
1,3 milhões de m2, instalado no ano de 1976 sob a forma de convênio da
COMLURB, uma organização que tem como acionista a Prefeitura do Rio de
Janeiro.
180

Figura 66 – Fotografia de Vik Muniz do aterro de Jardim Gramacho

Catadores, urubus e lixo se misturam na paisagem ao fundo com a Baia de Guanabara. Fonte:
Catálogo Lixo Extraordinário.

O aterro metropolitano de Jardim Gramacho foi um aterro controlado, o que


seria uma fase intermediária entre o lixão, um local de deposito de lixo sem
nenhuma preparação anterior do ambiente, e o aterro sanitário, um local com um
preparo do terreno para acolhimento do lixo, revestindo o solo com argila e PVC
para que os resíduos tóxicos, tais como o chorume, não polua o lençol freático,
como acontece com os demais. As imagens do aterro de Jardim Gramacho (figura
66) não mostram nada de extraordinário, pelo contrário, são imagens ordinárias, com
contrastes entre as montanhas de lixos empilhados e o convívio quase em sinergia
entre homens e urubus em busca do mesmo objetivo: a subsistência por meio do
lixo, a condição básica da própria manutenção da vida.
181

Figura 67 – Fechamento do aterro sanitário de Jardim Gramacho

:
Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho foi fechado em 2012. Fonte:
<http://super.abril.com.br/blogs/ideias-verdes/files/2012/06/Gramacho-22.jpg>.

O aterro de Jardim Gramacho foi fechado em 2012 (figura 67), depois de ter
sido acusado por técnicos ambientais do governo de poluir a Baía de Guanabara e
pela criação da Lei 12.305/10 para fechamento gradativo dos lixões e a instituição
de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos, promovendo o reconhecimento e a
capacitação profissional através da inclusão social dos catadores. O aterro acumulou
cerca de 60 milhões de toneladas de lixo durante os 36 anos de funcionamento e,
com o fechamento, o lixo foi todo transferido para o aterro sanitário de Seropédica,
uma central de tratamento de resíduos sólidos. No local do aterro sanitário de Jardim
Gramacho foi instalada uma usina de biogás, cuja produção de gás metano
fornecida para a refinaria da Petrobras de Duque de Caxias fez com que parte do
dinheiro arrecadado seja investido na recuperação do bairro de Jardim Gramacho.
Todos os catadores cadastrados na Associação dos Catadores do Aterro
Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJC) receberam indenizações no valor de
R$ 14 mil para reestruturarem suas vidas fora do aterro. No entanto, ressaltaríamos
que foi a partir do projeto Lixo Extraordinário, que o aterro Jardim Gramacho obteve
alguma visibilidade na mídia e retorno financeiro para estruturar a sua associação e
pudesse oportunizar mudanças do status quo ou papel social dos catadores, como
veremos mais a frente, mostrando para o mundo que ali tinha vidas extraordinárias.
182

São apagados o uso e os traços originais do aterro de Jardim Gramacho e criado um


novo espaço por meio da intervenção urbana artística de Vik Muniz muito bem-
sucedida, que promoveu um procedimento de reescritura por
apagamento/demolição.

Figura 68 – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

O Manto da Apresentação exposto em um invólucro de vidro, juntamente com parte do acervo de


obras de Bispo do Rosário. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa, 2016.

Figura 69 – Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea

Entrada do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa,
2016.
183

A terceira obra analisada (Manto da apresentação) e outras obras de Bispo


do Rosário (figura 68) foram produzidas entre os anos de 1939 a 1989 na colônia
Juliano Moreia durante a permanência do artista em tal instituição psiquiátrica. Essa
colônia, localizada em Taquara, bairro de Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro,
é o local que hospeda atualmente o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea
(mBrac), contendo o acervo completo de obras do artista (figura 69). Como que uma
colônia destinada ao tratamento de doentes mentais isolados dos centros urbanos e
do convívio social vem se transformando em um espaço de inclusão social a partir
da obra de um dos seus pacientes e, assim, reescrevendo esse ambiente inóspito?
Como mencionado anteriormente, a Colônia Juliano Moreira foi inaugurada
em 1924 com o nome de Colônia de Psicopatas Homens de Jacarepaguá e em
1935, com a morte do seu idealizador, a Colônia recebe o seu nome Juliano Moreira,
(CJM). No ano de 1939, Bispo do Rosário é internado na Colônia Juliano Moreira,
local no qual durante cinquenta anos coletou a matéria-prima para a produção de
suas obras, que foram montadas no seu quarto-cela (ou “cela forte”) até a sua morte
em 1989. Em 1980, a mídia jornalística denuncia os horrores realizados nessa
instituição, tais como eletrochoques e confinamentos em celas fortes. A partir de
então, várias mudanças acontecem nos manicômios brasileiros. Sabe-se também
que até há pouco tempo foram realizadas lobotomias em pacientes, quando então
surge o trabalho da médica psiquiatra Nise da Silveira que, através de suas oficinas
de arte terapia iniciadas em 1946, veio a combater esses tipos de tratamentos
médicos. Em 1996, a CJM passa a se chamar Instituto Municipal de Assistência à
Saúde Mental (IMAS) Juliano Moreira. No ano de 1982, foi criado o Museu Nise da
Silveira, que no ano de 2000 foi renomeado como Museu Bispo do Rosário e, dois
anos depois, em 2002, acrescentou-se o nome Arte Contemporânea.
Em 2015, se dá a criação do Polo Experimental de Convivência, Educação e
Cultura para servir como espaço para as atividades culturais e geração de renda do
IMAS Juliano Moreira – Casa B Residência Artística, Atelier Gaia, Escola Livre de
Artes, Programa de Geração de Renda Arte, Horta & Cia e Programa de lazer Pedra
Branca. O Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea faz parte do Circuito
Cultural Colônia, o qual, segundo a atual diretora Raquel Fernandes, segue o
conceito de Museu Expandido ao incorporar elementos da arquitetura, da história e
da cultura “que compõem o território da Colônia Juliano Moreira como dispositivo de
184

visitação, reconhecimento e valorização da memória social deste lugar”. (CAMPOS,


2016, p. 35).

Figura 70 – Painel do Circuito Cultural Colônia

Entrada do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa,
2016.

O Circuito Cultural da Colônia (figura 70) possui 19 locais que incluem, além
do mBrac e do Pavilhão 10, o quarto-cela de Bispo do Rosário, o Núcleo Histórico da
Colônia Juliano Moreira, com o aqueduto, a antiga fazenda do Engenho, a Igreja
Nossa Senhora dos Remédios, o antigo refeitório que serviu de senzala na época
em que funcionou o engenho e os 7 pavilhões construídos em 1920 para abrigar os
mais de cinco mil pacientes que tiveram internados na Colônia. Além da estrutura
física dos ambientes que compõem o lugar, se tem também a beleza natural com o
Parque Estadual da Pedra Branca – área de proteção ambiental da Mata Atlântica.
Podemos observar mediante tais considerações acerca da história do lugar
que serviu para produção das obras de Bispo, como se deu os seus procedimentos
de reescritura por adequação. Mantém-se seus espaços/traços originaism as
transformam sua função: primeiro como engenho; depois como colônia; e, por fim,
como museu, que faz parte de um contexto mais abrangente, do Circuito Cultural
185

Colônia, envolvendo arte, história, lazer e saúde. O Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea é um exemplo do novo uso do velho. Segundo Raquel Fernandes,
a atual diretora geral do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea:

Através da arte e da cultura, o Museu Bispo do Rosário Arte


Contemporânea quer contribuir para a diminuição dos estigmas acerca da
loucura; quer promover novas possibilidades de pertencimento e
ressignificação ao se oferecer como um espaço de convívio e acolhimento
às diferenças; quer criar pontes entre a cultura e a saúde. (CAMPOS, 2016,
p. 26).

Figura 71 – Fotografia de Sebastião e Vik Muniz no ato de realização do Projeto Lixo extraordinário,
em 2009

Sebastião ao lado de Vik Muniz no aterro de Jardim Gramacho. Fonte: Catálogo do Projeto Lixo
Extraordinário.

Por último, optamos por exemplificar e analisar a obra Marat (Sebastião) de


Vik Muniz, pelos procedimentos de reescritura em termos de papel social ou de
como a obra inserida em um projeto de arte pode muda a vida das pessoas. A
primeira obra, Marat (Sebastião), pelo próprio título se refere a dois nomes de
pessoas intercaladas por um parêntese: Marat é uma personalidade da Revolução
Francesa e Sebastião (figura 71) é uma pessoa “comum”, catador do aterro de
Jardim Gramacho, mas que tem a vida mudada por um projeto de arte. Sebastião
dos Santos ou Tião, segundo narra sua trajetória de vida em seu livro Tião: do lixão
ao Oscar (figura 72), nasceu no ano de 1979 em Duque de Caxias no Rio de Janeiro
e já aos 8 anos de idade foi parar no aterro de Jardim Gramacho, onde trabalhou até
186

o seu fechamento em 2012 em busca da sobrevivência por meio do lixo, ou melhor,


como catador de resíduos sólidos recicláveis que possuem um valor comercial. Viver
no e do aterro sanitário controlado de Jardim Gramacho é ter uma vida cheia de
privações, sem saneamento básico e água potável e mesmo sem uma assistência
governamental. Tião conheceu na infância os brinquedos dos seus super-heróis no
lixo, como objetos restos de usos, assim como também encontrou mais tarde na
juventude um livro com a literatura do filósofo Nietzsche, que foi o seu grande
incentivador a continuar na luta pela vida naquele ambiente tão inóspito.

Figura 72 – Tião: do lixão ao Oscar de Sebastião Santos

Imagem da capa do livro de Sebastião Santos, mais conhecido com Tião, participante do Projeto Lixo
Extraordinário (Documentário) e Retratos do Lixo (Série fotográfica). Fonte:
<https://livrolevesolto.files.wordpress.com/2015/02/10966840_867093323356235_152936386_n.jpg>.

Toda a transformação na vida de Tião se dá por sua participação no projeto


Lixo Extraordinário, de Vik Muniz, quando era presidente da Associação dos
Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJG). Tem-se a partir
de então o início da mudança: de um lixo que passa a ser extraordinário na visão de
187

um artista à configuração de um novo papel social e de uma vida extraordinária. Tião


posa para a fotografia no próprio aterro de Jardim Gramacho, que serviu de base
para produção da obra Marat (Sebastião) da série Retratos do lixo, e participa como
protagonista no documentário Lixo extraordinário, que foi indicado ao Oscar no ano
de 2011. A obra Marat (Sebastião) foi vendida no leilão em Londres no ano de 2008.
Assim com as demais obras da série Retratos do lixo quando expostas no MAM do
Rio de Janeiro em 2009, toda a verba arrecadada na venda das fotografias foi
convertida para os catadores que participaram do projeto, consolidando assim para
essas pessoas a possibilidade de mudar de vida. Tião, de catador passa a ser
palestrante e escritor, se tem a readequação da vida de um cidadão “comum”, a
reescritura de seu papel social por um procedimento de reescritura por reinvenção
que, no referido caso, ocorre com a descoberta humana da possibilidade de sua
própria reinvenção.
Para finalizar, recorremos novamente ao artigo do atelier do CPS para definir
duas maneiras de reescrituras do espaço urbano relacionada à aspectualização de
dois modos temporais: duratividade e pontualidade. A reescritura durativa,
percebida pelo sujeito cognitivo que observa as mudanças no espaço de maneira
diacrônica, como no caso das obras Arqueologia poética e Manto da apresentação,
ao passo que a reescritura pontual, percebida pelo sujeito cognitivo como um
acontecimento em um determinado momento, que depois volta à normalidade do
espaço, como no caso das obras Marat (Sebastião) e Pimp my carroça (abordada no
Capítulo II). Essas obras que foram descritas nas operações de reescrituras estão
sistematizadas em uma tipologia das reescrituras em termos de local e de vida das
pessoas, conforme o esquema a seguir:
188

Esquema 14 – Tipologias das reescrituras

Reescritura por Reescritura por


PRESERVAÇÃO DEMOLIÇÃO

Lugar da memória Lugar do lixo

Arqueologia Poética Marat (Sebastião)


Chiquitão Vik Muniz

Reescritura por Reescritura por


ADEQUAÇÃO REINVENÇÃO

Lugar da refuncionalização Lugar da readequação da


vida das pessoas com novos
Manto da Apresentação e papeis sociais
demais obras de Bispo
Marat (Sebastião) e as
demais obras da série.
Vik Muniz

Esquema das tipologias das reescrituras a partir do esquema realizado pelo atelier de semiótica
Centro de Pesquisa Sociossemióticas, PUC/SP. Fonte: elaborado pelo autor.

4.3 Regimes de interação e estesias nas artes plásticas/visuais


contemporâneas

Em relação aos regimes de interação de Landowski, propomos o seguinte


esquema explicativo para as obras examinadas em nosso trabalho:
Na posição do Sentido Codificado, situamos a obra Arqueologia poética. A
programação na qual a obra se insere parte do princípio de uma transformação que
ocorre ao se passar da porta da rua para dentro da casa. Assim, um primeiro sentido
programado (uma casa) é transformado em um segundo sentido, igualmente
programado, que se refere aos novos sentidos gerados pela disposição estética dos
objetos. Por isso, podemos pensar em um sentido programado estético, mais
próximo ao de um museu, no qual o sujeito percorre o espaço e interage com ele de
modo distinto ao de uma casa, como é o caso desse nosso objeto. É também por
causa da transformação que ocorre nessa passagem da rua para a casa que
189

podemos falar em um sentido (re)codificado, uma vez que, passada a surpresa


inicial que decorre do choque quando se percebe que não se trata mais apenas de
uma casa, o sujeito realiza, então, uma recodificação dos sentidos para organizar
cognitivamente sua percepção ao que esse espaço lhe oferece em termos de novas
significações.
Além disso, tal como em uma programação que é orientada pela busca de um
objeto de valor, há também objetos e valores que medeiam a relação entre o sujeito
e o espaço no qual ele está inserido. Assim, a disposição estética dos objetos faz
com que o espaço faça a mediação entre o sujeito e a memória daquele lugar, assim
como se estabelece uma relação entre o sujeito e a história (sobretudo a da
escravidão e da colonização) que é mediada pelos objetos presentes nas paredes.
Dessa forma, o espaço, por meio de uma programação sensível, permite produzir no
sujeito uma reconstituição histórica e memorialística dos sentidos associados àquele
espaço e à sociedade, refundando os sentidos da escravidão que permeiam os
objetos que estão à vista do sujeito visitante. É por essa razão que podemos, na
esteira de Landowski, falar em uma motivação programada, o qual afirma:

Empiricamente, entre programação de tipo causal e escolhas motivadas, ou


justificadas por alguma razão, encontram-se, no plano coletivo, práticas
ritualizadas e, no plano individual, toda sorte de condutas cotidianas
enquadradas pelo uso, pelo hábito, pelo costume, pelas regras do saber
viver ou simplesmente pela moda – maneiras de se vestir, de conversar, de
organizar o espaço da casa, de divertir-se, de alimentar-se, de cuidar-se, e
assim em diante -, cuja estabilidade (ainda que seja somente relativa)
parece remeter a “programações” de ordem intermediária, mais difíceis de
definir que a da pura causalidade. (LANDOWSKI, 2014, p. 37).

Dessa maneira, a obra Arqueologia poética não deixa de ser uma


programação, mas não uma simples causalidade, pois a dimensão estésica faz com
que o espaço, que se assemelha a um museu, faça o sujeito espectador/visitante
percorrer os seus espaços de modo programado, como um observador de museu,
pelo seu espaço repleto de objetos igualmente ressignificados.
No lugar do Sentido Conquistado, colocamos a obra Marat (Sebastião). Trata-
se, pelo nosso entendimento, de uma obra que busca uma certa manipulação de
seu destinatário, sobretudo por faze-lo mobilizar seu conhecimento sobre a obra
original. Há, assim, uma intencionalidade do destinador, tanto para mobilizar, a partir
da persuasão, os diferentes sujeitos que vão posar para as fotos como para os que
vão auxiliar na montagem da peça que, posteriormente, seria fotografada. Além
disso, pelo seu aspecto político, que remete tanto à obra original como à política
190

contemporânea, ela também motiva o seu destinatário a pensar em questões como


a situação social e econômica dos catadores de lixo, na produção desenfreada de
lixo nas sociedades contemporâneas, no consumismo irrefletido que está na base do
capitalismo, na beleza que pode advir de produtos descartáveis e em como a
humanidade está destruindo a natureza e os recursos naturais, tanto pela
exploração sem planejamento como pelo depósito de lixos e entulhos sem
processos adequados de reciclagem.
A partir, então, de um quadro conhecido da história da arte, o destinador pode
transformar os valores convencionais que estavam na base dos materiais e dos
sujeitos antes de sua seleção e combinação: era o lixo que valia nada (ou valia
pouco, apenas para os catadores), eram os catadores que, do ponto de vista social,
também não tinham qualquer valor em termos de produção dentro de uma ótica da
capacidade produtiva individual. Por meio da construção da obra, todos esses
valores são excluídos e novos são instaurados. Dessa maneira, concordamos com o
que afirma Landowski, segundo o qual:

É preciso opor seu valor atestado ao que, por contraste, aparece como o
valor convencional dos usos em vigência ou dos ritos já estabelecidos: para
os detratores da tradição e os reinventores do sentido, todos esses valores
não passam de velhas manias e superstições, de gestos imemoriais
carentes de conteúdo e que não mais têm razão de ser além de sua força
de inércia aliada a uma espécie de letargia, à apatia, à ausência de senso
crítico e de imaginação, em suma, à alienação que pesa sobre a massa dos
que a eles permanecem fiéis. (LANDOWSKI, 2014, p. 44).

Por fim, no regime do Sentido Sentido, temos a obra Manto da apresentação.


O regime que orienta a relação entre sujeito e objeto é o ajustamento. É essa a
operação básica que está na relação, pois o objeto manto só tem seu sentido pleno
por meio da dimensão sensível, procedimento que só ocorre por meio do vestir o
Manto e assim formar uma totalidade com o corpo que o veste, transformando-o em
um só objeto, no caso, sensível.
Apesar de o Manto da apresentação também poder ser apenas observado,
enquanto um objeto estético equivalente a um quadro, uma fotografia ou escultura,
sua criação e sua própria forma demandam esse uso do objeto para que os sentidos
estésicos possam ser mobilizados. Além disso, a interação do corpo do sujeito com
o corpo do Manto produz o ajustamento porque a roupa se ajusta ao corpo do sujeito
ao mesmo tempo em que o corpo do sujeito se ajusta ao tecido do Manto em sua
dimensão sensível. O sentido sentido é, assim, aquele de que fala Landowski:
191

Primeiramente, uma sensibilidade no sentido mais usual do termo: a


sensibilidade perceptiva que nos permite não apenas experimentar pelos
sentidos as variações perceptíveis do mundo exterior (ligadas à presença de
outros corpos-sujeito ou aos elementos do mundo-objeto) e de sentir as
modulações internas que afetam os estados do corpo próprio, mas também
interpretar o conjunto dessas soluções de continuidade em termos de
sensações diferenciadas que fazem por si mesmas sentido”. (LANDOWSKI,
2014, p. 52).

A partir do Da Imperfeição, podemos dizer que a Arqueologia poética está


ligada ao esquema da “espero do inesperado” (GREIMAS, 2002, p. 85), na medida
em que o inesperado surge quando ocorre a transformação do espaço da casa (o
esperado) em um espaço museológico (o inesperado). Além disso, o espaço da casa
produz uma suspensão do tempo ao neutralizar o passado histórico das peças em
detrimento do presente do agora por meio da disposição estética das peças. No
entanto, se a história é atenuada, a memória das peças e de suas funções
opressoras permanecem presentes, sobretudo em algumas peças, como as algemas
e as correntes. Mesmo assim, todas as peças são ressignificadas por meio da
estesia, em decorrência da transformação promovida pela estetização da casa e dos
objetos.
A ressignificação estésica também está presente no Manto da apresentação
(figura 73). Essa operação de atribuição de novos sentidos a uma peça inicialmente
usada no cotidiano (o Manto) ocorre por meio do encontro estésico da obra
(retrabalhada e ressignificada) com o corpo que a veste. Assim, tanto o Manto
quanto a Arqueologia são obras que promovem a fratura da tela do parecer a partir
de objetos do cotidiano que são reelaborados pelos enunciadores, que fazem assim
os sujeitos com os quais as obras interagem descobrirem outras significações
existentes no mundo.
A tela do parecer tem ainda uma outra função na obra de Vik Muniz. Marat
(Sebastião) usa como base uma já existente imanência do sensível advinda da obra
original, de Jacques-Louis David. Mais de dois séculos depois da obra original, Marat
retorna em uma tela do parecer duplicada: a foto construída a partir desse outro
objeto estético faz com que postulemos o jogo que o enunciador produz ao oscilar
entre a cópia e a originalidade de sua composição (gerada pela materialidade usada
em sua composição) e que faz com que a imanência do sentido ressurja dobrada.
Assim, não é mais um acesso direto ao ser que postulamos nesse trabalho, mas à
imanência estética em sua duplicidade, que é adentrada por meio da passagem
pelas duas telas do parecer: a contemporânea e a histórica.
192

Figura 73 – Bispo vestindo o Manto e interagindo com outras obras

A imagem mostra Bispo do Rosário no interior de seu quarto-cela na Colônia Juliano Moreira
(Taquara, RJ). Bispo veste “a primeira versão do Manto da Apresentação” e manipula outras obras da
sua coleção. Em pesquisa realizada, no Arquivo Público do Estado de São Paulo, descobrimos por
intermédio de outros pesquisadores um acervo de 42 negativos de fotografias (anônimas) tiradas na
Colônia Juliano Moreira, sem datação. Imagem concedida pelo Arquivo Público do Estado de São
Paulo: MISSÃO: Nº 719 -42 negativos 6cm x 6cm; localização física: NT – 0066/0067; diretório
(eletrônico) Nº dos negativos: I
CO – 001 – 000220 – 042.

Sobre as interações discursivas, podemos extrair algumas considerações


sobre a relação entre enunciador e enunciatário. A partir das noções de
transitividade e de intransitividade, podemos pensar em algumas questões.
Em Arqueologia poética, a relação de transitividade é aquela descrita por Ana
Claudia de Oliveira, segundo a semioticista: “Sujeito de vontade, o enunciatário é
levado a empreender um percurso de desenvolvimento de si a partir do qual atinge o
posicionamento projetado para ele ocupar no discurso.” (OLIVEIRA, 2013, p. 245).
Dessa maneira, no espaço da casa-museu, o enunciatário é levado a percorrer os
espaços para observar e sentir os objetos dispostos nas paredes, levando-o a refletir
e a sentir a memória dos objetos, suas funções do passado e sua expressividade
193

estética do presente. Dessa forma, o enunciatário é levado a descoberta dos novos


sentidos dos objetos e é transformado pela sua passagem pela casa.
No caso de Marat (Sebastião), há uma relação mais convencional. Em outras
palavras, não há exatamente uma transitividade entre enunciador e enunciatário.
Este apenas pode observar a obra que está exposta em um determinado espaço, tal
como se faz há séculos. A ele não é permitido tocar ou interagir com a obra. Por
isso, o que rege essa relação é a intransitividade entre enunciador e enunciatário:
“Todo o desenvolvimento de competências proposto pelo enunciador é um percurso
de aquisição dos mecanismos de leitura e interpretação que ele deve desempenhar
como o seu fazer aprioristicamente determinado na estruturação discursiva.”
(OLIVEIRA, 2013, p. 244). Cabe apenas ao enunciatário, por meio de seu
conhecimento da história da arte, depreender a relação e a referência à obra de arte
já consagrada. Ao mesmo tempo, por conta da materialidade diversa utilizada e pelo
fato de ser uma fotografia, cuja composição já foi anteriormente descrita, ao
enunciatário é reservado somente a atividade de ler e interpretar os significados
advindos da materialidade dos objetos utilizados para se construir a similitude com o
quadro original.
Por fim, o Manto da apresentação apresenta uma transitividade que se
distingue da existente em Arqueologia poética. Isso porque há uma espécie de
diálogo entre sujeito e obra, no qual, ao menos hipoteticamente, um sujeito não
passará pela mesma experiência de outro sujeito que vestiria o Manto. Nesse caso,
a interação entre enunciador e enunciatário, mediada pelo manto, é “resultante da
troca das posições em que os dois sujeitos, enquanto parceiros são levados a
assumir na interação de maneira participativa, dialogal e compartilhamento da
descoberta do fazer sentido.” (OLIVEIRA, 2013, p. 245). É por isso que podemos
especular que, quando possível vestir o Manto, passamos a ocupar lugar daquele
que o construiu e, ao mesmo tempo, produzir outros, distintos daqueles previstos e
experienciados por Arthur Bispo do Rosário.
194

Esquema 15 – Quadrado semiótico dos regimes de interação de Eric Landowski (2014) e das
interações discursivas de Ana Claudia de Oliveira (2013)

Sentido (Re)Codificado Sentido Aleatório


Arqueologia Poética
Chiquitão
Casarão Colonial em Ouro Preto (MG)
Continuidade

Regime de Interação:
Mediada pela memória/história

Dêixis da Corporeidade
Dêixis da mediação

Sentido Conquistado Sentido Sentido


Marat (Sebastião) Manto da Apresentação
Vik Muniz Bispo
Aterro Sanitário Jardim Gramacho (RJ) Colônia Juliano Moreira, (RJ)
Não-descontinuidade
Não-continuidade
Regime de Interação:
Regime de Interação:
Mediada pela arte
Obra no corpo
Contato corpo e obra

Fonte: elaborado pelo autor.


195

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

(...) a arte insiste e resiste no seu perquirir


caminhos desautomatizadores da percepção
humana, caminhos para manter vivas as antenas
do homem para que ele dê sentido ao que lhe
circunda, signifique a visualidade em que está
imerso.
Ana Claudia de Oliveira (2004, p. 25)

Em termos gerais, as três obras selecionadas, Manto da apresentação, de


Bispo, Arqueologia poética, de Chiquitão, e Marat (Sebastião), de Vik Muniz,
caracterizam-se como produções de artes plásticas contemporâneas realizadas no
Brasil. Os artistas, por meio de seus processos criativos, enlevam objetos do
cotidiano a objetos artísticos. Todas as obras, apesar de suas especificidades,
prescrevem um percurso de trabalho que são semelhantes em seus procedimentos
de produção. Desse modo, elencamos algumas das características constantes
observadas entre elas, que podem nos possibilitar um rigor necessário para sua
investigação ao nos engendrarmos nos caminhos metodológicos de sua análise.
Todas as obras trazem um aspecto processual (1) em suas ações
experimentais artísticas, configurando, assim, uma arte que enfatiza seu próprio
processo de transformação a partir de novos elementos (materiais e objetos)
adquiridos que vão se acrescentando e reformulando constantemente a obra. Essas
ações contínuas e processuais pelas quais as obras são produzidas, enquanto devir
poético, se concretizam na forma de duas categorias: durador versus efêmero.
Temos assim, por um lado, uma ação “duradora”, como no caso das obras de Bispo
e Chiquitão, o que pode ser observado nas imagens abaixo: com Bispo, que veste
uma “primeira versão’ do Manto da Apresentação e manipula outras obras no interior
de seu quarto-cela na Colônia Juliano Moreira, ou com Chiquitão, que amplia e
reformula sua obra com novas aquisições de objetos nos ambientes de seu casarão
colonial. Por outro lado, se tem uma ação “efêmera”, como no caso da produção da
série Retratos do lixo, que deu origem obra Marat (Sebastião) de Vik Muniz, durante
a intervenção artística no aterro de Jardim Gramacho. Como todas as obras são
produzidas a partir de materiais e objetos de uso cotidiano, que são descartados e
depois recolhidos pelos artistas, podemos constatar que, inicialmente, acontece um
processo de coleta/seleção (2). Apesar da coleta desses materiais e objetos
acontecer de maneira diferenciada em cada artista e em contextos distintos, ela
196

permite fazer uma seleção prévia do que vai ser utilizado nas obras. Desse modo,
então, a coleta se configura como um procedimento que marca o início da
bricolagem realizada pelos artistas com o propósito de reutilização do material
selecionado. A partir desse processo de reutilização, se pode observar um novo
procedimento recorrente entre as obras, que é realizado por meio do
reaproveitamento dos materiais e objetos descartados (3), ou melhor, as
matérias do cotidiano são transformadas em matéria plástica (materialidade) na
configuração das obras. Outro aspecto importante ainda a ser observado diz respeito
ao fazer coletivo das obras (4), em que se tem a participação de outros sujeitos
(adjuvantes) em determinadas etapas do processo de sua produção: no caso das
obras de Bispo e Chiquitão, se têm uma participação indireta dos “colaboradores”,
que são responsáveis pela doação dos materiais e objetos; e no caso da obra de
Vik Muniz se tem uma participação direta e efetiva dos catadores de resíduos
recicláveis do aterro Jardim Gramacho, que são convidados para participarem como
interlocutores no processo de produção da obra. Até o momento, todos esses
procedimentos adotados pelos artistas nas suas referidas obras se concretizam por
meio de uma ação no cotidiano, sendo que tal ação se consolida pelo processo da
bricolagem (5), ou seja, como uma forma de ”tática” artística da enunciação do
sentido na arte contemporânea produzida no Brasil. A ação “tática” artística da
bricolagem se dá inicialmente a partir da “apropriação” dos materiais e objetos de
uso cotidiano, em que os artistas, através de sua “programação-artística”, os
deslocam de seus usos comuns (funções práticas) para adquirem novas funções
estéticas nas obras.
Outra forma de “tática” a ser destacada como parte da “programação-artística”
desses artistas está relacionada à sua ação performática (6). O componente
performático se estabelece de acordo com a intencionalidade específica de cada
artista em dar visibilidade (fazer-ver) e produzir sentido “sentido” (fazer-sentir) em
sua obra. Esse caso pode ser observado com Bispo, quando veste o Manto da
apresentação e manipula outras obras; com Chiquitão, ao receber e conduzir o
público visitante pelo interior do seu casarão colonial e fazer-ver a sua obra; e com
Vik Muniz, quando realiza o registro do documentário Lixo extraordinário, o artista
mostra a sua ação performática em todo o processo de produção da obra.
A partir do exame semiótico do corpus, obtivemos os caminhos (teóricos e
metodológicos) para compreensão do problema estudado. Assim, nos propusemos a
197

investigar: que efeitos de sentido são produzidos por essas obras? Que processos
criativos orientam desde a coleta de objetos simples do cotidiano até a montagem da
plasticidade das obras, com as suas traduções figurativas de mundos? Que mundos
e que narrativas se presentificam nos simulacros? Que procedimentos de
convencimento e de sensibilidade são utilizados? Como se constituem as semioses
intertextuais ou as relações de intertextualidade desses textos visuais? Como se
constitui a estética, na integração entre artista-bricoleur, obra e mundo, na qual o
corpo é movido pela estesia? Como se processam os regimes de interação e, por
meio dos procedimentos, como se produzem os sentidos desses discursos visuais?
Esses questionamentos nos permitiram sistematizar a estrutura de análise
das obras pela visada semiótica. Para uma melhor compreensão do objeto
estudado, estruturamos nossa análise em duas etapas: a primeira etapa consistiu
em analisar as obras no Percurso Gerativo de Sentido (método da semiótica
estrutural), para responder como as matérias/materiais produzem sentido na
construção discursiva estética das obras. Na segunda etapa, nos permitiu realizar
uma análise por meio das relações de intertextualidade, interdiscursividade e
intersemioticidade, das reescrituras realizadas pelas obras, dos regimes de interação
(Landowski) e das interações discursivas (Oliveira), além da apreensão do sentido
na sua dimensão estésica que promove o sentido “sentido”.
Na primeira etapa da análise das obras, propusemos uma estrutura que se
divide em sete etapas interconectadas: (1) apresentação das obras e a descrição
dos elementos fundamentais do plano da expressão, que formam os arranjos de
suas plásticas, com a configuração das linhas, formas, cores, texturas, dos materiais
utilizados para compor sua materialidade e da distribuição desses na topológica. A
partir das descrições e dos modos de como se articulam essas unidades plásticas,
realizou-se a segmentação dos textos visuais, com o exame das dimensões do
plano de expressão das manifestações compostas pelas categorias eidéticas,
cromáticas, matéricas e topológicas, que foram articuladas para compreender como
organizam o sentido das obras; (2) oposição entre temas e figuras no nível
discursivo das obras, em que temos a concretização e o revestimento
(figurativização) de esquemas abstratos (tematização) no plano de conteúdo; (3)
projeções da enunciação no enunciado com os seus dispositivos e mecanismos; (4)
as relações entre enunciador e enunciatário; (5) no nível narrativo das obras, a partir
dos enunciados de estado (relação de junção) e enunciados de fazer (suas
198

transformações), assim como os simulacros das relações do fazer do homem e do


homem sobre outros por meio da busca de um objeto de valor; (6) no nível
fundamental da análise, obtivemos às categorias do nível mais profundo plano do
conteúdo articuladas em duas operações lógicas-conceituais de negação e
asserção; (7) por fim, chegamos às homologações entre as categorias do plano da
expressão com as categorias do plano do conteúdo, todas relacionadas a uma
operação de semissimbolismo.
Na segunda etapa, propusemos três estruturas de análises, em que foram
abordadas as relações que se constituem entre as obras e o seu contexto: 1) como
as semioses textuais e discursivas mantêm relações com o seu universo cultural e
artístico, assim como também as relações de intersemioticidade constituídas entre
diferentes semióticas; 2) como se dão os diferentes procedimentos de reescritura
proporcionados pelas obras analisadas; e 3) como ocorrem os regimes de interação,
as interações discursivas e as estesias promovidos pelo corpo.
Ao pesquisarmos sobre as poéticas contemporâneas que designamos por
uma estética do cotidiano, pode-se observar que a arte parece permanecer com seu
caráter mimético ao fazer lembrar "trivialidades" do cotidiano que, de tão comuns, já
se tornaram quase despercebidas e dessemantizadas (por exemplo, como o fato de
a violência ser cruel, de que jogar lixo na rua é prejudicial, etc...). Assim,
diferentemente de uma ciência positiva, que pressupõe um distanciamento para
melhor compreender o objeto, o objeto de arte, ao mesmo tempo em que nos
distancia de nossa cotidianidade e nos faz olhá-la de fora, ela também nos
aproxima, porque a apreensão sensível do objeto depende de um certo grau de
"vivência" da obra, uma "fusão de horizontes", onde o expectador se sente parte da
cena representada na obra. Contra toda letargia e anestesia que o cotidiano nos
impõe, a arte, ao tratar dessa mesma cotidianidade, promove estesias que nos
distancia e aproxima disso, produzindo em nós um novo olhar e, então, novas
"vivências" surgem em um "horizonte de compreensão" mais ampliado, assim como
um novo comportamento.
Sobre o processo de estetização do cotidiano no Brasil, as obras são, para a
sociedade de consumo, uma arte de reflexão, uma crítica. Desse modo, essas obras
(uso de costume) da cotidianidade (adjuvantes) fazem-ver os dejetos e a
precariedade dos matérias e objetos empregados nas suas produções. Assim, como
Tassinari afirma: “O que há de novo na arte contemporânea é que a moldura
199

espacial da obra não a separa mais do mundo cotidiano (...) uma experiência
estética que vai do mundo ao próprio mundo” (TASSINARI, 2001, p 91).
No decorrer da presente tese, destacamos algumas das produções artísticas
contemporâneas realizadas por artistas que compartilham do mesmo gesto criativo -
uma “apropriação” de materiais e objetos utilitários (novos ou usados) do universo
cotidiano para ressignificá-los em forma de novos arranjos plásticos em suas obras.
Diante desse contexto específico e singular das artes plásticas contemporânea no
Brasil, as obras de arte passam a ser produzidas com materiais/objetos existentes
com outros fins no cotidiano de suas vidas, que os artistas deslocam da função
prática para fazer-ver e fazer-uso em novas funções estéticas. Esquematicamente,
podemos representar da seguinte maneira o ato criador dos artistas analisados
neste trabalho:

Esquema 16 – A experiência estética vivida pelo sujeito criador na cotidianidade, 2016


COTIDIANIDADE (Aterro sanitário de Jardim Gramacho/Colônia Juliano Moreira/
Casarão colonial do Século XVIII)
OBJETO-PRÁTICO

SUJEITO-CRIADOR OBJETO-ESTÉTICO

A tríade composta no processo de ressignificação dos objetos de uso cotidiano na cotidianidade.


Fonte: elaborado pelo autor.

A estética do cotidiano se configura plasticamente nas obras como uma


aproximação entre a vida e a arte – é pensar à própria experiência estética
(esquema 15) vivida pelo sujeito cognitvo e sensível na perspectiva da vida – como
um fenômeno estético que emerge da integração entre o ambiente da vida cotidiana
e o ambiente da arte. Para o poeta e crítico de arte Ferreira Gullar: “A arte existe
porque a vida não basta, a vida é pouca.” (GULLAR, 2013, paginação irregular). Já
em Nietzsche, na relação entre a arte e a vida, um termo retroalimenta o outro - o
sentido da vida está na arte ou o sentido da arte está na vida? A obra O nascimento
da tragédia tematiza o princípio fundamental da filosofia de Nietzsche: a afirmação
da vida, a exaltação ao infinito da vida em sentido natural, com toda a potencialidade
200

ilimitada de forças e instintos. A vida constitui, assim, o ideal supremo para o autor.
Como afirmou certa vez Scheller, Nietzsche deu à palavra “vida”, a sonoridade do
ouro, pois fundou a “filosofia de vida” (FINK, 1988, p. 09).
O médium por excelência para interpretar tal concepção de vida e os valores
a ela correlatos, é onde Nietzsche localiza a arte: “[...] a arte; só ela tem o poder de
transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência
em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto
domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da
náusea do absurdo.” (NIETZSCHE, 1992, p. 56). Aqui subjaz a percepção dos
gregos acerca do caráter terrível, inexplicável e perigoso da vida, o que longe de
suscitar uma atitude pessimista, um dizer não à vida, delegam à arte a capacidade
de transformar o mundo, a vida humana.
Por isso, nos estendemos um pouco mais sobre algumas considerações finais
acerca da temática fundamental das relações entre a arte e vida em Nietzsche.
Como exaustivamente dito pelo autor, a arte deve necessariamente favorecer a vida,
pois, para que se possa auferir a superioridade de uma cultura, é necessário que ela
esteja a serviço da renovação cultural. Nietzsche, um crítico implacável da
modernidade, confronta-a com uma forma de vida que culminará crescentemente em
um modo de vida estético. Rejeita a concepção burguesa e mercantilista da arte
compreendida como mero meio de diversão face à dureza do trabalho conceitual.
Entende que, devido às possibilidades transfiguradoras e revolucionárias contidas
na arte, deverá a ciência ficar condicionada à esfera da arte, a qual por sua vez deve
ser inspirada pela vida.
A arte se torna um fenômeno estético na e da vida, uma ação de
reciprocidade, de ajustamento, entre a arte e a vida na cotidianidade. As obras
propõem aproximar dois contextos distintos: o mundo da arte e o mundo da vida.
Nessa aproximação está o alicerce da estética do cotidiano, como uma associação
de bens culturais, estéticos, éticos e sociais que se manifestam artisticamente em
um objeto. Consideramos que essa estética traz, pois, algo além do estético. Ela traz
em oposição a esse, o funcional, o mítico, o simbólico, que Greimas (2002) chama
de um objeto de valor sincrético, incorporando valores de onde emanou. Sobre a
possibilidade de ressemantização dos objetos usurados e do enriquecimento nas
relações intersubjetivas, Greimas aponta para: “[...] no primeiro caso, vê-se uma
201

carga estética introduzindo-se na funcionalidade do cotidiano; no segundo, um


desejo de conduzir o cotidiano em direção a um alhures.” (GREIMAS, 2002, p. 85).
Por meio do observado entre essas obras de arte, que constituem a estética
do cotidiano, que podemos constatar que os materiais e objetos apropriados na sua
grande maioria já foram usados, passaram pelo uso (usura) e pelo descarte, antes
de chegar às mãos dos artistas-bricoleurs. É por meio do uso do uso destes em suas
obras que constituirão um fazer-ver da precariedade, dos dejetos, do lixo, da matéria
gasta e reaproveitada, ou seja, é a usura da matéria que é posta em visibilidade
para o outro se relacionar com um novo uso (estético). São poéticas
contemporâneas, cuja característica fundamental é a de transformar a prosa (objetos
do cotidiano) em poesia (objeto singular/poético/artístico). As obras montam as
possibilidades de transformação do mundo atual, ressignificações da cotidianidade e
da própria arte brasileira.
A partir do problema abordado na presente tese, compreendemos que o
estudo do corpus escolhido nos permitiu avançar para um melhor entendimento
sobre como as matérias do cotidiano significam - esteticamente e estesicamente -
nas obras de arte, por meio das materialidades e de suas qualidades matéricas
fundamentais como constituintes na produção de sentido.
Uma das obras de arte selecionadas, entre um universo de muitas no Brasil, o
Manto da apresentação de Bispo de Rosário, instiga e parece não se esgotar como
uma fonte de inspiração para artistas e para pesquisadores que pretendem
compreender a sua obra. Após anos de legitimação no métier da arte, desde 1989
até o presente momento, sua obra já foi vista duas vezes na Bienal de Veneza e
uma vez na Bienal de São Paulo. No entanto, não foi de interesse avaliar como a
arte contemporânea sanciona a obra de Bispo, mas sim como um objeto produzido a
partir dos anos de 1940, que se emanou fora do contexto da arte, antecipa certos
procedimentos que, a posteriori, foram/são utilizados pela arte contemporânea.
Assim, viu-se como se realiza uma obra a partir de matéria do uso cotidiano
reaproveitada e ressignificada por meio da construção de um objeto
estético/estésico, que produz um inventário de cerca de 800 obras figurativamente
bordadas em um Manto que presentifica a sua própria vida e que, em última
instância, somente tem sentido no ato de vestir o corpo do seu destinador enquanto
uma performance, que ao mesmo tempo manipula as outras obras construídas.
Assim, a obra de Bispo consolida uma posição assumida, enquanto exemplo da arte
202

produzida no Brasil que, além de ter legitimado os próprios procedimentos da Arte


Contemporânea, reescreveu o lugar comum de onde emanou. A materialidade
construída pelas obras, de modo geral, como formante da arte, produz a
transformação dos materiais e objetos (materialidade) de usos cotidianos, com fins
práticos, em matéria plástica das obras, com fins estéticos.
Elencamos a seguir todas as hipóteses que foram testadas e confirmadas no
processo de análise semiótica que iluminou nosso objeto de pesquisa:
1) Procuramos mostrar por meio das obras analisadas como se deu os
procedimentos de reuso dos materiais e dos objetos do contexto social nessas
obras, tais como: o lixo do aterro, a chave e a fechadura de ferro do período colonial,
os restos de fios e de caixas de madeira. Esses materiais e objetos já mostram que
as escolhas são um posicionamento do enunciador em relação ao enunciatário, os
quais perderam a sua função, foram desfuncionalizados e re-funcionalizados para
explicitar que destes nascem novos usos. Chiquitão tira os objetos dos usos e vai
mostrar – desfuncionalização de um uso – que não servem para fins práticos e, ao
mesmo tempo, nos chama a atenção para os processos de produção dos objetos da
manufatura, que são exibidos para serem contemplados enquanto sistema de
produção do período Barroco mineiro. Vik Muniz chama a atenção para o consumo
do lixo e Bispo para as matérias que não perecem facilmente, sobretudo quando são
reinventadas enquanto novos objetos a partir do velho;
2) Na obra de Bispo, os materiais, como o fio (papel), tornam-se forma e cor.
É um objeto de reaproveitamento do lixo para fiar tecido e para produção do bordado
que dá longevidade aos materiais. Em Chiquitão (outro procedimento de
reaproveitamento dos objetos), ele reaproveita tal como são enquanto objetos, não
para exibirem seus fins práticos, mas sim para adquirirem uma função estética.
Assim, a repetição e a seriação (papeis) do mesmo objeto fazem olhar para a
produção do ferro do período colonial brasileiro em Minas Gerais. Já em Vik Muniz,
tem-se a utilização dos materiais e objetos do lixo que são opacos. Desse
procedimento, ele cria a opacidade como efeito do arranjo plástico. Desse modo, a
matéria é opaca (papel), mas a opacidade mostra os objetos, explicita o que ela
esconde, o extraordinário, retratos do lixo de pessoas que vivem e que ganham a
partir do potencial do lixo, que lhes dá vida. O artista e seus interlocutores colocam
os materiais brutos e retrabalham. Deles advêm essa matéria estética da obra, ou
203

seja, a matéria bruta transformada no jogo da opacidade que faz ver e, ao mesmo
tempo, ainda guarda o retrato de muitos que vivem dela;
3) Se tomarmos, por exemplo, a obra de Bispo realizada com os objetos de
uso cotidiano que estão no mundo dele, entre eles estão as linhas azuis desfiados
das roupas da colônia e de outros tecidos para produção do Manto e seus bordados.
Em outras obras encontramos: canecas do refeitório, chinelos, etc. Esses objetos
compõem um inventário da vida dele. Como os objetos que ele recolhe no mundo da
colônia faz ver a potência desse material plástico e coloca-o no Manto e em outras
obras, Bispo realiza seu trabalho revivendo o mundo de onde eles viveram, que é,
por conseguinte, revivido no mundo da arte. O mesmo procedimento acontece, como
visto, nas análises das obras de Vik Muniz e de Chiquitão. No entanto, são
realizadas com outras matérias que formam novos formantes plásticos. Assim,
temos em Vik Muniz a figuratividade do opaco; em Bispo, a figuratividade do
desenho bordado; em Chiquitão, a figuratividade da instalação;
4) Todos os artistas fazem escolhas de materiais e de objetos que
concretizam o enunciado figurativizado por essas matérias. No caso de Chiquitão,
com o Barroco e os objetos de ferro; de Vik Muniz, com o lixo e as novas
configurações dos retratos dos catadores; e de Bispo, com o retrato de uma vida que
ele bordou. Existe um semissimbolismo das matérias - em novas figuratividades,
pois elas reenviam a materialidade primeira e a materialidade transformada para,
assim, esses dois reenvios fazerem sentido;
5) O fazer-fazer das matérias de uso cotidiano com fins práticos são levadas
ao fazer-sentir que, por sua vez, implicará novo fins estéticos/simbólicos/míticos: as
obras de Bispo, Chiquitão e Vik Muniz proporcionam ao sujeito a busca pela
aquisição de novos objetos de valor sincréticos (GREIMAS, 2002) nas narrativas da
experiência estética vividas;
6) as operações (seleção) de reuso de materiais e objetos do mundo
possuem uma identificação com uma destinação de uso versus uma diferenciação,
enquanto arranjo plástico (estrutura), como uma matéria plástica. Cada artista traz a
suas as matérias de uso, em que a matéria que é reinventada para servir para novas
realizações e sentido. Desse modo, após a seleção dos materiais e objetos de uso
prático, estes passam por uma triagem (esquema 17), sua singularização, podendo
ser desconstruído, desfuncionalizado, etc. antes de ser matéria plástica nas obras
que, por sua vez, passa por um processo de reconhecimento que será a sua
204

sanção. Nas operações do tratamento da matéria do mundo nas obras de Bispo,


Chiquitão e Vik Muniz, essas matérias são matéria da fonte da vida, como podemos
observar nos quadros (esquemas 18, 19, e 20);

Esquema 17 – Os diferentes tipos de procedimentos da utilização dos materiais e dos objetos de uso
cotidiano nas configurações plásticas das obras e dos seus respectivos reconhecimentos.
IDENTIFICAÇÃO DIFERENCIAÇÃO

SELEÇÃO ESTRUTURAÇÃO

- Coleta de materiais e de objetos de - Produção do


uso cotidiano (destinação de uso) arranjo plástico
(mistura)
- Matéria plástica uso
do uso na produção
das obras

Valor Prático/ simbólico Valor Estético


/semissimbólico

RECONHECIIMENTO SINGULARIZAÇÃO

SANÇÃO TRIAGEM
- O “lençol” desfiado
- Consolidação do objeto artístico para obtenção de
linha para confecção
do Manto e seu
bordado
(desestruturação);
- O lixo passa por
uma triagem para a
sua reutilização
(reaproveitamento);
- Os objetos de ferro
do século XVIII e XIX
garimpados em
ruínas de casarões,
córregos e ruas de
Ouro Preto
Valor Crítico (Refuncionalização).
Valor Lúdico
Adaptação do esquema de quadrado semiótico elaborado por Jean-Marie Floch com tipologias dos
modos de valorização que a propaganda utiliza. Fonte: elaborado pelo autor.
205

Esquema 18 – Processo de transformação da matéria no Manto da apresentação


APROPRIAÇÃO DELOCAMENTO ACUMULAÇÃO RESSIGNIFICAÇÃO
ABERTURA FECHAMENTO
SELEÇÃO: coleta DESESTRUTURAÇÃO: MISTURA: ESTRUTURAÇÃO:
dos Desfiar tecidos (lençóis e Produção do O produto final da obra:
materiais/objetos cobertores) para obter arranjo plástico e um objeto-manto bordado
de uso cotidiano fios para costurar e da materialidade – uso do uso (função
(função prática) bordar o Manto; da obra com os estética).
para a produção TRIAGEM: separação e procedimentos
da obra; limpeza dos materiais e técnicos de
Seleção espacial: objetos a serem costurar e bordar.
coleta na Colônia empregados na obra.
Juliano Moreira no
Rio de Janeiro;
Seleção temporal:
coleta permanente
durante o
processo de Objeto estruturado,
produção da obra. compacto e composto.
Adaptações do esquema elaborado pela semioticista F. Bastide em seu livro O tratamento da matéria.
Fonte: elaborado pelo autor.

Esquema 19 – Processo de transformação da matéria em Arqueologia poética


APROPRIAÇÃO DELOCAMENTO ACUMULAÇÃO RESSIGNIFICAÇÃO
ABERTURA FECHAMENTO
SELEÇÃO: coleta DESFUNCIONALIZAÇÃO: MISTURA: ESTRUTURAÇÃO:
dos objetos de uso Os objetos coletados em Produção do O produto final da obra:
cotidiano (função uma espécie de arranjo plástico e uma instalação – uso do
prática) para a “arqueologia” no subsolo da materialidade uso (função estética)
produção da obra; da cidade; da obra com os
Seleção espacial: TRIAGEM: separação e procedimentos
coleta dos objetos limpeza dos objetos a técnicos da
em córregos, ruas serem empregados na assemblage.
e ruínas de obra.
casarões de Ouro
Preto;
Seleção temporal:
coleta permanente
durante o processo
de produção da Objeto estruturado,
obra. compacto e composto.
Adaptações do esquema elaborado pela semioticista F. Bastide em seu livro O tratamento da matéria.
Fonte: elaborado pelo autor.
206

Esquema 20 - Processo de transformação da matéria em Marat (Sebastião)


APROPRIAÇÃO DELOCAMENTO ACUMULAÇÃO RESSIGNIFICAÇÃO
ABERTURA FECHAMENTO
SELEÇÃO: coleta REAPROVEITAMENTO: MISTURA: ESTRUTURAÇÃO:
dos Os materiais e objetos Produção do O produto final da obra:
materiais/objetos coletados que seriam arranjo plástico e uma fotografia digital –
de uso cotidiano destinados ao lixo; da materialidade uso do uso (função
(função prática) TRIAGEM: separação e da obra com os estética)
para a produção da limpeza dos materiais e procedimentos
obra; objetos (opacos) a serem técnicos da
Seleção espacial: empregados na obra. projeção
coleta no aterro fotográfica, do
sanitário de Jardim desenho e da
Gramacho; assemblage.
Seleção temporal:
coleta antes da Objeto estruturado,
realização da obra. compacto e simples.
Adaptações do esquema elaborado pela semioticista F. Bastide em seu livro O tratamento da matéria.
Fonte: elaborado pelo autor.

7) Com as operações de (reuso), o enunciatário reconhece o uso do uso


estético, que sensibiliza o sujeito a participar da construção de sentido das obras,
pelo fato de que, todas, solicitam essa efetiva interação e apreensão do sentido dos
discursos enunciados;
8) A experiência estética vivida na produção do sentido juntos promove novos
sentidos aos objetos e materiais usurados utilizados nas obras de Chiquitão, de Vik
Muniz e de Bispo, que são transformados em poéticas contemporâneas;
9) Em todas as obras analisadas, se tem essa experiência estética renovada,
sentida no e pelo corpo, que estesicamente processa o sentido sentido-o. Todas as
obras produzem novos modos de presença do sentido a partir da dimensão estésica:
seja com os rangidos das escadas de madeira ao caminhar ou no gélido subsolo do
casarão colonial para ver a obra Arqueologia poética de Chiquitão instalada no
interior de sua casa-museu; seja do corpo que ganha sentido ao ser vestido pelo
Manto da apresentação de Bispo do Rosário;
10) Tática do bricoleur – enunciatário –em que cada um é incitado, por meio
do saber e do sentir, a fazer e a usar com parcimônia os materiais do mundo. Se no
mundo as matérias são findáveis, o conjunto desses artistas trazem a própria
salvação do planeta – a sobrevida não só dos materiais, mas da matéria humana e
do seu mundo. Em todas as obras, observa-se que seus respectivos processos de
bricolagens são usados como uma forma de “tática” artística da enunciação do
sentido, como também se pode observar em outras produções da arte
contemporânea.
207

Todas essas obras de arte que analisamos na presente tese nos chamaram a
atenção por meio de suas qualidades matéricas, pois estas passam a ser
significantes no processo de produção de sentido dos discursos visuais e mostram a
“força especial” de sua materialidade, que as tornam visíveis enquanto uma
presença corpórea na realidade do mundo cotidiano de onde emanam. As
interações discursivas que as obras inovam está na própria arte – a arte não tem um
mundo restrito de materiais, muito pelo contrário, faz dos materiais e objetos do
mundo, a matéria ou a materialidade da arte.
Os discursos visuais (obras analisadas) estabelecem novos modos de
presença ancorados no sensível, na dimensão estésica, experimentada e vivida
pelos sujeitos da enunciação, do sentido “sentido”, que se faz-ser e sentir em ato.
Desse modo, os processos comunicacionais instalados nas referidas obras montam
as possibilidades de transformação do mundo atual, promovendo encontros
estésicos ressignificantes da cotidianidade e da própria arte brasileira. O mundo,
através dessas obras e de suas estéticas, é sentido como novas aberturas. Os
encontros estésicos atualizam uma axiologia do estado de mundo e do ecossistema
das relações sociais/econômicas e do que “resta” ao homem para existir com
sentido. Em síntese, assim como afirma Greimas: “A imperfeição aparece como um
trampolim que nos projeta da insignificância em direção ao sentido.” (GREIMAS,
2002, p. 91).
As obras de arte, aqui apresentadas, caminham em direção a esse sentido,
rompendo com os caminhos desautomatizados para que o homem dê sentido ao
que lhe circunda e signifique a visualidade, que ele mesmo está imerso e assim
possa modificar a sua vida dessemantizada, como dito, na epígrafe, pela
semioticista Ana Claudia de Oliveira. Em Da imperfeição, nas escapatórias, se
esboça uma estética semiótica postulada por Greimas, acenando para a
possibilidade de uma outra coisa: “a transformação fundamental da relação entre o
sujeito e o objeto, o instantâneo estabelecimento de um novo ‘estado de coisas’.”
(GREIMAS, 2002, p. 73).
Chegamos por fim a uma homologação entre o plano da expressão e o plano
do conteúdo para o conjunto das obras analisadas, que são respectivamente:
continuidade vs. descontinuidade :: ordinário vs. extraordinário. Caso
consigamos proferir uma expressão para assinalar a presença luminosa da obra de
Greimas, Da imperfeição, poderíamos assim designá-la como, Mehr Licht!, que, por
208

sua vez, nos indica também para o que há de mais extraordinário nas obras da
estética do cotidiano com a sua força transformadora da (an)estesia. Assim, como
afirma Oliveira: “Nesse irromper do descontínuo que o faz experimentar
transformações, o sujeito se desenquadra do seu estado estabelecido no contínuo
de sua existência que, entre outras ocorrências, valoriza seu existir no mundo”
(OLIVEIRA, 2010, p. 11). Assim, toda a base dessa transformação - do ordinário ao
extraordinário - está na própria matéria obsoleta reaproveitada. A matéria ordinária
do mundo é transformada em matéria extraordinária pela arte - da prosa dos objetos
cotidianos à poética dos objetos artísticos. Por fim, depreende-se que a matéria da
arte é a matéria do mundo.
209

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APÊNDICES
216

Apêndice A – Referências das imagens da linha do tempo de materiais na história


da arte ocidental

1. Pintura parietal na caverna de Lascaux (detalhe). Data de cerca de 15.500 a.p.


Comuna de Montignac, França.
2. Menir da Meada. Erguido entre o Neolítico e a Idade do Bronze. 7,15m (4m de
altura a partir do solo) x Ø1,25m. Castelo de Vide, Portugal.
3. Vênus de Willendorf. Entre 24.000 e 22.000 a.C. Calcário Oolítico. 11,1 cm.
Museu de História Natural de Viena. Viena, Áustria.
4. Pintura parietal na tumba de Nefertari, esposa de Ramsés II, Cena: A rainha
Nefertari no sacrifício (detalhe). Cerca de 1298-1212 a.C. 142 x 100 cm. Tebas,
Egito.
5. Busto colorido da Rainha Nefertiti. 18ª dinastia, 1.340 a.C. Neues Museum. Museu
Nacional de Berlim. Berlim, Alemanha.
6. Mosaico de Alexandre (detalhe). 150 a.C. Mosaico, 2,72 x 5,13 m. Museu
Arqueológico Nacional de Nápoles. Nápoles, Itália.
7. Vaso de Alabastro grego.
8. Estátua de Hércules. Século 2 a.C. Bronze dourado, 2,41 m. Museu Capitolini.
Roma, Itália.
9. Albert Dürer. Jovem Lebre. 1502 d. C. Aquarela, 25.1 x 22.6 cm. Albertina, Viena,
Áustria.
10. Michelangelo Buonarroti. Tondo Doni. Cerca de 1507 d.C. Óleo e têmpera sobre
painel, Ø 120 cm. Galeria dos Ofícios (Uffizi), Florença, Itália.
11. Michelangelo Buonarroti. Davi (detalhe). 1501-1504 d.C. Escultura em mármore,
5,17m. Galleria dell' Accademia, Florença, Itália.
12. Albert Dürer. Rinoceronte (detalhe). 1515 d.C. Xilogravura, 21,4 cm × 29,8 cm.
Museu Britânico. Londres, Reino Unido.
13. Edgar Degas. A Banheira (detalhe). 1885-86. Pastel sobre papel, 70 x 70 cm.
The Hill-Stead Museum. Farmington, Connecticut. Estados Unidos da América.
14. Toulouse-Lautrec. Jane Avril (detalhe). 1893. Litografia, 130 x 93 cm. Biblioteca
Nacional. Paris, França.
15. Edgar Degas. A pequena bailarina. 1881. Escultura em arame, cera, pêlos e
tecido; 97 cm. Galeria Nacional de Arte. Washington D.C. Estados Unidos da
América.
16. Pablo Picasso. A guitarra (detalhe). 1913. Papier Collé, 66,4 x 49,6 cm. Museu
de Arte Moderna (MoMA). Nova Iorque, Estados Unidos da América.
17. Marcel Duchamp. A fonte. 1917. Ready-made, 23,5 x 18 cm. Tate Gallery.
Londres, Reino Unido.
18. Pablo Picasso. Cabeça de Touro. 1942. Objet trouvé (guidon e selim de
bicicleta), 33,5 x 43,5 x 19 cm. Museu Picasso. Paris, França.
19. Henri Matisse. Projeto para «Strana Forandola» (detalhe). 1938. Guache e papel
cortado (colagem), 61 x 61 cm. Coleção privada.
20. Vladimir Tatlin. Relevo de Canto. 1914-1915. Architecture collé (metal, madeira e
corda), 71 x 118 cm. Museu Estatal Russo. São Petersburgo, Rússia.
21. Kurt Schwitters. Merzbau. 1923-1937. Architecture Collé. Hannover, Alemanha.
22. Robert Rauschenberg. Almanaque. 1962. Óleo, acrílica e serigrafia sobre tela,
2,45 x 1,53 m. Tate Gallery. Londres, Reino Unido.
217

23. Daniel Spoerri. Poemas em Prosa. 1959–60. Assemblage (Vidro, papel,


cerâmica, metal e plástico sobre madeira), 69,0 x 54,2 x 36,1 cm. Tate Gallery.
Londres, Reino Unido.
24. Rudolf Schwarzkogler. Terceira ação (3rd action). 1965. Body art.
25. Robert Smithson. Spiral Jetty. 1970. Land art (lama, cristais de sal, rochas e
água). Rozel Point, Great Salt Lake, Utah, Estados Unidos da América.
26. Tony Cragg. Stack (Pilha). 1975. Assemblage (madeira, concreto, tijolos, metais,
plástico, têxteis, papelão e papel), 2 x 2 x 2 m. Tate Gallery. Londres, Reino Unido.
27. Cornela Parker. Cold Dark Matter: An Exploded View. 1991. Instalação (madeira,
metal, plástico, cerâmica, papel, têxteis e arame; cerca de 4 x 5 x 5 m. Tate Gallery
Foundation. Londres, Reino Unido.
28. Damien Hirst. Mil anos. 1990. Vidro, aço, borracha de silicone, MDF pintada,
cabeça de vaca, sangue, moscas, vermes, pratos de metal, algodão, açúcar e água;
207,5 x 400 x 215 cm.
29. El Anatsui. Skylines. 2008. Assemblage (alumínio e fio de cobre), 3 x 8,25 m.
30. Song Dong. My City. 2014. Instalação (portas, janelas, luminárias e tapetes);
cerca de 5 x 5 m.
218

Apêndice B - Referências imagens na linha do tempo de materiais na história da


arte no Brasil

1. Anita Malfatti. A Boba. 1915. Óleo sobre tela, 61 x 50,6 cm. Coleção Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
2. Victor Brecheret. Monumento às Bandeiras. 1920-1956. Escultura em granito,
8 x 7 x 40m. São Paulo – SP, Brasil.
3. Di Cavalcanti. Amigos (Boêmios). 1921. Pastel, 34 x 23 cm. Acervo da
Pinacoteca do Estado de São Paulo.
4. Tarsila do Amaral. O Ovo (Urutu). 1928. Óleo sobre tela, 60,5 x 72,5 cm.
Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM/RJ.
5. Cândido Portinari. São Francisco se despojando das vestes. 1945. Pintura
mural, 750 x 1060 cm. Igreja de São Francisco de Assis, Belo Horizonte – MG,
Brasil.
6. Di Cavalcanti. O grande Carnaval. 1953. Óleo sobre tela, 80,5 x 100 cm.
7. Ferreira Gullar. Natureza Morta. 2010. Colagem, 21 x 28 cm.
8. Flávio de Carvalho. Experiência Nº 3 – New Look. 1956. Intervenção Urbana.
São Paulo – SP, Brasil.
9. Hélio Oiticica. Parangolé P1, Capa 1. 1964. Plástico e tecido. Reprodução
fotográfica autoria desconhecida.
10. Hélio Oiticica. Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe, 1977.
Instalação. Atualmente faz parte da mostra permanente do CACI – Inhotim.
Brumadinho (MG), Brasil.
11. Wesley Duke Lee. A Zona: considerações (retratos de Assis Chateaubriand).
1968. Ambriente/óleo sobre tela e peças móveis em metal e acrílico, 200 x 200 x 200
cm. Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM/RJ.
12. Jac Leirner. Fora dos Cem. 1997. Papel moeda, cordão de poliuretano e
acrílico. Coleção Andréa e José Olympio. Reprodução fotográfica autoria
desconhecida.
13. Rosângela Rennó. Projeto Arquivo Universal. 1992-2000. Processo
cromógeno, 76,2 x 61,0 cm. Coleção Pirelli MASP
14. Arthur Bispo do Rosário. Manto da Apresentação. Sem data. Tecido, fio e
corda, 219 x 130 cm. Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Rio de
Janeiro – RJ, Brasil.
15. Olavo Torquato (Bin Lata). Indumentária de lata. Sem data. Latas de metal.
Ceará, Brasil.
16. Nelson Leirner. Matéria e Forma. 2009. Presunto engradado. Registro
fotográfico Edouard Fraipont/Itaú Cultural.
17. Chiquitão. Arqueologia Poética instalação montada entre os anos de 1995 a
2011, no interior de um casarão colonial do século XVIII, na cidade de Ouro Preto,
em Minas Gerias.
18. Cildo Meireles. Babel. 2001. Estrutura metálica e rádios. Reprodução
fotográfica Wilton Montenegro.
19. Nuno Ramos. Sem título. Espelho, vidro, acrílico, folha de ouro, metal,
tecidos, algodão, folhas secas, plásticos, esmalte sintético, óleo de linhaça,
terebintina, parafina, vaselina breu, madeira. 230 x 360 x 200 cm.
20. Vik Muniz. Marat (Sebastião): Pinturas do lixo. 2009. Assemblage (Resíduos
sólidos e terra).
21. Jaime Prades. Ar. 2013. Escapamentos usados e carvão vegetal, Ø 110 cm x
315cm (h). 2013.
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22. Rosângela Rennó. Cartologia. 2000. Álbum de fotografias, mesa estilo império
e fotografias emolduradas.
23. Henrique Oliveira. Transarquitetônica. 2014. Madeira, tijolos, taipa, PVC,
madeira compensada, galhos de árvores e outros materiais, 5 x 18 x 73 m. Museu
de Arte Contemporânea, São Paulo – SP, Brasil.
24. Urban Trash Art – UTA (Rodrigo Machado e Pado). Pimp my carroça. 2013.
Assemblage. São Paulo.

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