José Almir Valente Costa Filho
José Almir Valente Costa Filho
José Almir Valente Costa Filho
São Paulo
2016
1
São Paulo
2016
2
Aprovada em _____/_____/_____
Banca Examinadora
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Profª. Dr.ª Ana Claudia Mei Alves de Oliveira (Orientadora)
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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3
AGRADECIMENTOS
RESUMO
Investigação das manifestações artísticas na contemporaneidade, que trazem em
suas experiências estéticas objetos construídos a partir de objetos da cotidianidade
que, por operações várias, são transformados em poéticas visuais contemporâneas.
Reflete-se sobre as mudanças estéticas no estatuto da arte que ocorreram a partir
da arte moderna e contemporânea, com o surgimento dos ready-mades de
Duchamp, passando pelas assemblages de Arman, performances e happenings do
Grupo Fluxus, até as instalações contemporâneas de El Anatsui, apreciando as
estratégias dos processos de produção, montagem/exposição e apreensão das
obras analisadas. Como corpus de análise, selecionamos Manto da apresentação
(1985) de Arthur Bispo do Rosário, Arqueologia poética (2011) de Luiz Antônio
Rodrigues – Chiquitão e Marat (Sebastião) (2009) de Vik Muniz. As obras escolhidas
se justificam, a princípio, por se destacarem pelo aspecto da originalidade. Essa
singularidade advém do fato de os artistas utilizarem materiais e objetos do uso
cotidiano como um dos elementos que formam a materialidade do arranjo plástico
das obras, em relação com outros materiais artísticos. A base teórica e metodológica
utilizada encontra-se na semiótica francesa de Algirdas Julien Greimas, com os seus
desdobramentos na semiótica plástica, nas pesquisas de Jean-Marie Floch e Ana
Claudia de Oliveira, e no trabalho sobre o “sentido sentido” em ato constituído a
partir dos regimes de interação teorizados por Eric Landowski. Na análise do corpus,
percebe-se como se dá a construção de sentido desses diferentes discursos, assim
como das interações provenientes das relações entre enunciador e enunciatário.
Assim, chega-se a: como as matérias e os materiais significam na construção
discursiva estética das obras e na condição estésica da produção do sentido que a
significa. Com essa visada semiótica sobre a matéria sensível da arte, consigamos
constituir um estudo mais aprofundado sobre as questões aqui elencadas,
percebendo que os formantes matéricos têm uma “força” especial – na criação de
discursos impactantes no destinatário e em seu contexto, engajando-os nas obras
que promovem estesias nas quais a materialidade é o desembocador que afeta,
sensibilizando o artista para os novos usos dos materiais e matérias, e
ressignificando seu uso na cotidianidade, um feito da arte produzida no Brasil em
diálogo com outras tendências da arte internacional.
ABSTRACT
This work investigates some contemporary artistic manifestations which bring in their
aesthetic experiences objects made from items of everyday life that, through various
operations, are transformed into contemporary visual poetics. It analyses aesthetic
changes in the status of art which have occurred from modern and contemporary art
with the emergence of Duchamp's ready-mades, going through Arman's
assemblages, performances and happenings of Fluxus artists until the contemporary
installations of El Anatsui. The strategies of the processes of production,
assembly/exhibition and apprehension of those works are also brought into
appreciation. As a corpus of analysis, three works were selected: Manto da
apresentação (Mantle of Presentation) (1985) by Arthur Bispo do Rosário,
Arqueologia poética (Poetic Archeology) (2011) by Luiz Antônio Rodrigues -
Chiquitão and Marat (Sebastião) (2009) by Vik Muniz. Fundamentally, the choice of
these works was based on their original aspect. Their singularity comes from the fact
that those artists use materials and objects of daily use as one of the elements that
constitute the materiality of the aesthetic arrangement of their works, in relation to
other art materials. The theoretical and methodological basis of this work is found in
the French semiotics of Algirdas Julien Greimas, with its developments in Plastic
semiotics, in the researches of Jean-Marie Floch and Ana Claudia de Oliveira, as
well as in the works of Eric Landowski about the “sense felt" in constituting acts
produced from interaction regimes. Throughout the analysis of the corpus, it can be
noticed how is produced the construction of meaning concerning these different
discourses, as well as of the interactions coming from the relationship between
enunciator and enunciatee. Thus, it is demonstrated, at this point, how matter and
materials mean in the aesthetic discursive construction of the works and in the
aesthesia condition of the production of the sense that gives meaning to it. The focus
of the semiotic on the sensitive matter of art, makes it possible to establish a more in-
depth study of the issues listed here. It can be better realized that the formants of
matter have a special "force" - during the creation of high impact discourses towards
the art spectators and, in their context, being able to engage them in the works that
promote aesthesia and which materiality is the outlet that affects them. This
sensitizes the artists to the new uses of matter and materials, re-signifying their use
in everyday life, an achievement of the art produced in Brazil in dialogue with other
international artistic trends.
LISTA DE ESQUEMAS
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................. 12
1.1 Fundamentação teórica: semiótica discursiva....................................... 23
1.2 Estrutura da pesquisa........................................................................... 34
2 AS MATÉRIAS DO COTIDIANO COMO MATERIALIDADE
SIGNIFICANTE NAS ARTES PLÁSTICAS............................................. 37
2.1 As semioses matéricas: arte a partir da cotidianidade.......................... 38
2.2 Os procedimentos enunciativos na apropriação das matérias e
materiais do cotidiano........................................................................... 64
2.3 Os materiais de uso nas artes plásticas/visuais................................. 74
3 A ANÁLISE DOS MATERIAIS E DAS MATÉRIAS NA
CONSTRUÇÃO DE SENTIDO DOS DISCURSOS VISUAIS
POÉTICOS............................................................................................... 79
3.1 Manto da apresentação de Arthur Bispo do Rosário......................... 79
3.2 Arqueologia poética de Luís Antônio Rodrigues
(Chiquitão).............................................................................................. 107
3.3 Marat (Sebastião) de Vik Muniz............................................................ 125
4 INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E
INTERSEMIOTICIDADE: REESCRITURAS, INTERAÇÕES E
ESTESIAS NAS ARTES PLÁSTICAS/VISUAIS CONTEMPORÂNEAS 135
4.1 Intertextualidade, interdiscursividade e intersemioticidade nas
obras de Bispo do Rosário, Chiquitão e Vik Muniz ........................... 135
4.1.1 Manto da apresentação .......................................................................... 135
4.1.2 Arqueologia poética ................................................................................ 151
4.1.3 Marat (Sebastião) ................................................................................... 163
4.2 Reescrituras de espaços urbanos: nova função e novos usos pela
arte contemporânea................................................................................. 174
4.3 Regimes de interação e estesias nas artes plásticas/visuais
contemporâneas.................................................................................... 188
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................... 195
REFERÊNCIAS........................................................................................ 209
APÊNDICES........................................................................................... 215
12
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
No caso do bricoleur Bispo, ele constrói sua narrativa visual na qual cada
elemento representa um conjunto de relações concretas e virtuais, de maneira a
estruturar o seu pensamento mítico enquanto explicação do mundo. Este modo de
pensar o mundo representa o pensamento “selvagem”, não do “selvagem” ou do
“primitivo”, mas aquele pensamento primeiro que é liberto das convenções,
construído a partir da potência criativa do artista ao realizar sua bricolagem com os
elementos materiais e matéricos de sua cotidianidade, que põe em relação aos
demais elementos da arte, articulados por procedimentos tradicionais e novos
compondo a obra.
Se essa obra existe em um tempo da contemporaneidade, ela também existe
em um dado espaço correlato. Em Poética do espaço, Gaston Bachelard (1988, p.
196) cita o poeta Noël Arnaud, que diz: “Sou o espaço onde estou”. O verso
fenomenológico nos leva a pensar outro aspecto importante das obras citadas de
Bispo e Schwitters, que é a efetiva participação do corpo na apreensão do sentido.
Como também observa Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, o corpo é utilizado
para superar a distância teórica entre o sujeito e o objeto, na qual o sujeito
compreende o mundo na medida em que o mundo compreende o sujeito; ele é
observador e observado ao mesmo tempo, “[...] e o mundo é feito do próprio estofo
do corpo.” (MERLEAU-PONTY, 1989, p. 51). O autor chama atenção para uma nova
forma a partir da qual o artista interage com a sua obra – um envolvimento mútuo
entre o vidente e o visível, de quem toca (tocante) e é tocado. Temos, então, uma
integração entre artista, obra e mundo que se fundem em um só: “[…] o mundo
visível e o mundo dos meus projetos motores são partes totais do mesmo ser.”
(MERLEAU-PONTY,1989, p. 50).
Nesta integração entre artista, obra e mundo, o corpo é movido pela estesia –
“[…] percepção, através dos sentidos, do mundo exterior; faculdade que possibilita a
experiência do prazer (ou do seu contrário), assim como de todas as ‘paixões’ –
aquelas da ‘alma’ e também as físicas, do corpo, da ‘sensualidade” (OLIVEIRA,
1995, p. 231). Assim sendo, através de acidentes e fraturas, como afirma Greimas
15
que, nos nossos dias, ela não pode ser definida por um único traço (mesmo que seja
o estético), mas sim, por uma “noção composta” (cluster concept) advinda de uma
“sedimentação histórica complexa”, ainda que os fatores que a determinam “[...] se
modelem em realidade sobre o paradigma de uma era cultural, de uma época, ou de
uma arte (ainda que de maneira mais geral de um meio semiótico) particulares.”
(SCHAEFFER, 2004, p. 57).
Segundo o autor, quando aborda a origem do objeto etiquetado, a obra de
arte é um produto criado e construído pelo homem e não um evento natural,
podendo, assim, estar ligada tanto a uma intenção estética como a uma intenção
artística. Define provisoriamente a intenção estética como: “a vontade de criar
qualquer coisa cuja reativação receptiva ocasiona uma experiência satisfatória”; e a
intenção artística como: “a vontade de criar qualquer coisa que seja realizada com
sucesso em relação a um ideal operatório técnico que se propõe” (SCHAEFFER,
2004, p. 62). Outro aspecto abordado por Schaeffer concerne à visão da obra de
arte em uma perspectiva semiótica, pois a mesma já possui uma estrutura
intencional (“está sempre ‘a propósito de’ alguma coisa”) e um funcionamento
semiótico específico (estrutura semiótica artística), ou seja, a estrutura artística
refere-se aos seus próprios traços (auto-referencialidade). Continua o autor:
estética”). Ainda assim, a obra de Bispo pode ser tomada enquanto produção
artística nos moldes da realizada contemporaneamente no Brasil, que tem sua
origem ou emana de uma Lebenswelt 1 . Essas experiências e/ou processos
estéticos, que surgem a partir de ações na cotidianidade, são constituídas muitas
vezes para além dos meios formais e institucionais da arte, partindo da pulsão
criativa, advinda da condição humana do artista, em conjuminância com seus modos
de vida e o entorno, e com os elementos por eles oferecidos como fundamentos
criativos de uma estética, que se configuram nos moldes das poéticas
contemporâneas.
Referimo-nos às poéticas contemporâneas como as produções artísticas
atuais realizadas a partir dos anos 60 do século passado, que ampliaram o campo
das artes para novos “horizontes” conceituais e contextuais, e com as quais,
segundo Argan, os artistas passaram a transformar suas “técnicas de
representação” em “técnicas de pesquisa” (ARGAN, 1992, p. 516). O crítico e
escritor de arte Michael Archer aponta essa “ampliação”, a partir dos movimentos
artísticos da Pop Art, do Minimalismo e das tendências pós-minimalistas que
advieram, como a Arte Conceitual, Performance, Body Art, Land e Earth Art, etc.
Segundo Archer, o significado das obras pertencentes a esses movimentos artísticos
está além do que está contido nelas, e muitas vezes trazem o aspecto contextual no
qual passam a existir, o que faz que: “Uma apreciação renovada da relação entre a
arte e a vida cotidiana [ponha] em conexão as obras aparentemente muito diversas
associadas ao Pop e ao Minimalismo.” (ARCHER, 2001, p. X).
A presença constante desta relação que se estabelece entre a arte e o
cotidiano nas poéticas contemporâneas acentua a sua “pluralidade semântica”, à
qual nos referimos há pouco em Schaeffer. Essa “noção composta” da arte que é
também determinada por fatores externos a ela, é a marcada produção artística
atual, que se efetivou a partir das próprias mudanças ocorridas no estatuto da arte
no decorrer do Século XX com a Arte Moderna, e principalmente com a Arte
Contemporânea. Algumas constatações podem ser observadas: a incorporação de
novos materiais e suportes nas obras; o rompimento gradativo com a moldura
1
Na obra A Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental, Edmundo Husserl
aborda o conceito de Lebenswelt (mundo da vida) principalmente na parte III nos parágrafos 28, 29,
33, 34, 44, e 51. O autor entende o conceito como o mundo circundante cotidiano onde
conscientemente todos existimos. Considerado um domínio de evidências, o “solo” universal da vida
humana funcionando “[…] em todo pensar, em todo viver e, por isso, que está em toda parte [...]”
(HUSSERL, 2012, p. 91).
18
Para esse estudo vamos relacionar obras de arte que possuem algo em
comum na sua construção, que levam a um tipo de produção de efeitos de sentido
criados por meio do qual as materialidades e as próprias qualidades matéricas
entram na constituição dos formantes dessas obras como constituintes do sentido.
Em face desse problema, partimos das seguintes hipóteses: (1) os materiais e
objetos coletados do contexto social passam por procedimentos de reuso nas obras
e vão atuar enquanto formantes matéricos; (2) em articulação aos formantes
eidéticos e cromáticos, esse formante matérico exerce papéis na configuração
plástica da figuratividade; (3) a figuratividade como operação de tradução de
mundos em mundos de linguagem, ao ter entre os formantes matérias e materiais do
mundo, que passa a estruturar o sentido; (4) essa inusitada escolha enunciativa
repercute no enunciado; (5) os formantes matéricos têm papel narrativo no fazer
fazer e no fazer sentir os efeitos de sentido; (6) em uma operação de reuso de
materiais e objetos do mundo enquanto plástica, pelos mecanismos enunciativos,
esses têm modificada sua função prática assumindo uma função
estética/mítica/simbólica; (7) esse uso conhecido dos materiais faz com que o
enunciatário os reconheça em seu reuso estético, o que sensibiliza o sujeito a
participar da construção de sentido e apreender o discurso enunciado; (8) a
produção de sentido da obra promove um fazer junto ao sentido pelas descobertas
indicativas da experiência estética vivida; (9) essa experiência é sentida no e pelo
corpo e, estesicamente, processa o sentido sentindo-o; (10) esses encontros
estésicos pela estesia transformam o sujeito, mostrando um descobrir que coloca ao
alcance de todos a opção de assumir novos comprometimentos com a vida.
Concretizado o objeto de estudo e as hipóteses a serem testadas
selecionamos o corpus de análise dessa tese: Manto da Apresentação (1985) de
Arthur Bispo do Rosário; Arqueologia Poética (2011) de Luiz Antônio Rodrigues –
Chiquitão e Marat: Sebastião (2009) de Vik Muniz. As obras escolhidas se justificam
a princípio, por se destacarem pelo aspecto da originalidade, pois elas instauram os
dispositivos de sua própria criação artística, ao mesmo tempo em que estabelecem
uma relação dialógica com o seu contexto situacional. Tanto dessa singularidade
advém do fato de os artistas utilizarem materiais e objetos do uso cotidiano como um
dos elementos que formam a materialidade do arranjo plástico das obras, em
relação com outros materiais artísticos. Ainda há casos em que essas construções
são alçadas no ambiente mesmo do cotidiano que participa de sua produção de
20
2 Esse termo é usado pela teoria da arte contemporânea para designar a utilização de materiais e
objetos comuns (não artísticos) pelos artistas, que podem ser observados, a princípio, nas colagens
cubistas de Pablo Picasso e nos ready-made de Marcel Duchamp.
21
âmbito do social, tais como: ler, conversar, habitar, “arte da sucata”, etc., como
“maneiras de fazer” dos usuários. Essas “práticas cotidianas” são tomadas pelo
autor como táticas que se articulam sobre o espaço cotidiano. Deste modo,
propomos adotar a partir desse conceito, o de “táticas” artísticas, para designar a
ação criativa dos artistas, que se utilizam da “apropriação”, tanto das matérias do
cotidiano quanto do seu próprio espaço do mundo, para atribuir a uma parte da
materialidade significante a produção de sentido dos discursos das obras.
No referido recorte das obras selecionadas que propomos investigar, elas
dialogam entre si pelas marcas do seu fazer, pelo sincretismo de linguagens que
entram na concepção e criam uma rede de conexões de sentidos produzidos por
processos de intertextualidade. Entendem-se esses processos intertextuais
instaurados nas obras a partir de sua relação com a cultura e de suas condições
sócio-históricas de produção e de recepção. Para tal, faz-se importante analisar o
processo de produção, os valores estéticos e éticos envolvidos no ato da criação e
os diversos efeitos de sentido da “estética do cotidiano”, no âmbito da cultura e da
arte contemporânea.
A semioticista Ana Claudia de Oliveira, em Semiótica plástica (2004), observa
que a arte fornece à semiótica com o seu universo sensível um corpus para análise
da organização interna de suas manifestações textuais. Entretanto, ressalta a
autora, a estratégia de tomar um texto para análise, e a partir do resultado desse
estudo fazer generalizações mais amplas, apresenta inúmeras dificuldades em
relação à sua aplicabilidade aos estudos da significação no domínio das linguagens
artísticas, tornando-se necessária a busca por instrumentos próprios à semiótica
plástica ou visual.
A relação do homem com o ambiente é mediada pelo trabalho; entre os
homens, pela linguagem. Do processo humano de socialização participa a
necessidade de registro, para o que se criam, intelectivamente, símbolos que
permitam que a simples passagem, o conhecimento adquirido, a experiência vivida e
a invenção possam ser divididas com outras gerações que lhe sucederão ou com
outros grupos coexistentes em ambientes distintos em um determinado período
histórico.
Os modos de expressão utilizados pelo homem ao longo do tempo para
contar a sua história foram muitos: das pinturas rupestres à informática (da pedra ao
pixel). Todos os modos de registro usaram as mais variadas linguagens e mais de
22
uma em articulação. Podemos dizer que a relação entre cultura e linguagem é uma
relação dialética na medida em que a cultura se manifesta pelo uso da linguagem ao
mesmo tempo em que a linguagem e seus usos, como o da arte – é produto da
cultura.
O télos da linguagem é a comunicação. Comunicar significa tornar comum,
para o qual a interação é imprescindível. Como produto cultural, a linguagem se
desenvolve no ritmo em que se desenvolve a própria humanidade. O rompimento de
fronteiras proporcionado pela globalização acelerou esse processo de
desenvolvimento e as mudanças que acontecem nos usos da língua e da linguagem
artística são apenas exemplos das transformações oriundas do contato entre
culturas e seres.
Em Pintura e Sociedade, Pierre Francastel (1990) comenta sobre a
necessidade de estudar as obras de arte enquanto sistemas de signos os quais não
são somente puro símbolos, mas verdadeiros objetos necessários à vida dos grupos
sociais. A partir destas obras, podemos examinar os mecanismos individual e social
que as tornaram legíveis e eficazes: “Uma obra de arte é um meio de expressão e
de comunicação dos sentimentos ou do pensamento.” (FRANCASTEL, 1990, p. 2).
Nessa relação dialética entre a linguagem e a cultura, entre o individual e o
coletivo (social), entre a expressão e a comunicação, situa-se nosso objeto de
estudo, advindo de processos e de experiências estéticas. Através da arte como
expressão pessoal, torna-se possível a visualização de quem somos, de onde
estamos e de como sentimos. Como expressão da cultura, temos uma identificação
com essa manifestação cultural que nos capacita a não nos sentirmos estranhos em
nosso próprio ambiente, e que permite ao indivíduo analisar a realidade percebida e
desenvolver a criatividade de maneira a intervir na realidade que foi analisada,
transformando-a.
A arte se tornou uma presença, uma existência presentificante no mundo.
Para que o sentido de uma obra de arte seja reconstruído, precisamos que esse
sentido reintegre “[...] a visibilidade das coisas na globalidade concreta e dinâmica
do experimentado” (LANDOWSKI, 2004, p. 108). Necessitamos, portanto, de uma
efetiva interação por parte do espectador, para o qual o “sentido experimentado” em
sua totalidade e concretude (audição, visão, tato, etc.), possa convergir em uma só
experiência estética a fortiori, e “[...] reintegrar o ver na globalidade do sentir.”
(LANDOWSKI, 2004, p. 108). A instauração dessas novas formas de presença do
23
visível nos mostra novas formas de estarmos presentes frente a elas e nelas, para
reconstrução de seu sentido, ou como postula Oliveira, para: “[…] reoperar a sua
significação, que, em poucas palavras, define o propósito da semiótica.” (OLIVEIRA,
2004, p. 118). Justifica-se assim a nossa opção por essa teoria na análise do corpus
de estudo.
PERCURSO GERATIVO
DISCURSIVAS Discursivização
(actorialização, temporalização e Tematização
espacialização) Figurativização
Com mais especificações, vejamos como Greimas aborda cada uma destas
estruturas. Nas estruturas sêmio-narrativas temos, em primeiro lugar, uma sintaxe
que explica as primeiras articulações – as operações lógicas elementares da
circulação dos valores que é diagramada pelas relações lógicas entre os valores do
quadrado semiótico. É a semântica dos valores como um inventário de categorias
sêmicas, que se encontra no nível mais abstrato. Em segundo lugar, nas estruturas
narrativas propriamente ditas, temos uma sintaxe que regula o fazer, ou seja, o
26
simulacro do fazer do homem e das suas relações sobre outros homens em busca
de um objeto de valor (regime de junção) e o simulacro de encontro entre os sujeitos
(regimes de união), proferido por Eric Landowski. Essa busca pelo objeto de valor
descreve a sintaxe do percurso narrativo que corresponde a uma semântica
ordenada no regime de junção. O percurso narrativo canônico é constituído por:
Competência (cognitiva; saber e poder); Performance (fazer); procedimento de
Manipulação e Sanção (positiva ou negativa). É a semântica que atribui o estatuto
de valor aos objetos de busca do fazer. Na estrutura discursiva opera-se uma
sintaxe que organiza as relações de enunciação na composição do discurso. A
semântica estabelece os temas, pelos revestimentos figurativos dos conteúdos. Em
síntese, como bem observa Barros: “Passa-se, assim, do lógico-conceptual ao
narrativo graças à ação do homem, sujeito do fazer, e do narrativo ao discursivo pela
intervenção do sujeito da enunciação.” (BARROS, 2002, p. 16).
Gostaríamos de observar que esta breve abordagem do percurso gerativo
não esgota toda a sua complexidade. Neste ponto faz-se necessário uma visão geral
(panorâmica) do percurso do sentido, com o qual explicitamos os caminhos seguidos
para analise do corpus. Mas devemos ainda apresentar a abordagem da visada
semiótica da dimensão do estésico, do “sensível”, que incidiu sobre novos conceitos
complementares da análise do nível discursivo e narrativo do percurso gerativo de
sentido, a fim de dar conta do “sentido-sentido”, produzido em ato enunciativo e em
situações de vivenciar o sentido, proposta por Landowski (2005). Oliveira afirma que
com essa complementação há uma “[…] problematização da contribuição do
sensível à emergência do sentido na vida cotidiana […]” (OLIVEIRA, 2005, p. 8).
A ancoragem teórica deste trabalho na semiótica discursiva deveu-se às
questões suscitadas pelo nosso objeto de estudo, que nos levam ao propósito de
evidenciar e elucidar, nas produções artísticas contemporâneas, as suas
intervenções na cotidianidade, recolhendo os novos materiais e matérias a serem
empregados pelos artistas em suas obras. Essas escolhas renovam a materialidade
significante da arte e do corpo, que passa a ser elemento constitutivo e participativo
da obra, fazendo parte do processual da produção de sentido.
Na realização desse propósito, gostaríamos de refletir, após essa panorâmica
teórica, que Algirdas Julien Greimas abordou o tema da cotidianidade em seu último
livro Da imperfeição de 1987, ao explorar a dimensão da figuratividade no nível da
organização do discurso, e se debruçar sobre os mecanismos desses arranjos
27
(GREIMAS, 2002, p. 86). Ou: “Existiriam modos de dar mais densidade à vida, de
entrecortá-la de eventos ‘estéticos’ a partir de desvios do funcional?” (GREIMAS,
2002, p. 85); bem como: “Onde cultivar o ‘sentido do belo’, sentido o melhor
partilhado entre os homens, como intuitivamente sabemos?” (GREIMAS, 2002, p.
83). Talvez uma das respostas aos questionamentos esteja na espera do
inesperado, como explicita Habermas acerca do dândi de Baudelaire. Por isso, a
descontinuidade do contínuo como a fratura, que inapreensível ao nível cognitivo,
poderá fazer “[re-]nascer a esperança de uma vida verdadeira, de uma fusão total do
sujeito e do objeto. Ao mesmo tempo que o saber de eternidade, ela deixa o
ressaibo da imperfeição.” (GREIMAS, 2002, p. 70). Outra resposta está nas fatias
distribuídas do inesperado, no cotidiano continuamente ressignificado e fazendo
sentido para o sujeito de seu viver.
Operando as relações entre os corpos na emergência do sentido, aestesia
mostra mais de uma possibilidade conferida à ação do corpo. De forma
complementar ao regime de sentido pela lógica da junção (fusão entre sujeitos e
objetos) teorizada por Greimas, o semioticista Eric Landowski em Aquém ou além
das estratégias, presença contagiosa, postula o procedimento de ajustamento. O
autor propõe um regime de sentido ancorado na co-presença sensível do corpo a
corpo, em que o sentido é construído na relação que se estabelece entre corpos-
sujeitos, um corpo em contato direto, sem um mediador (terceiro), ou seja, a relação
actancial está na ordem do contato, do sentir. Este tipo de emergência do sentido o
autor designa como regime de sentido pela lógica da união.
Um tipo de relação entre actantes que se dá estesicamente em contato
interactancial corpo a corpo, na reciprocidade do estar nas interações que, segundo
Landowski, “[...] é a sua co-presença interativa que será reconhecida como apta a
fazer sentido, no ato, e a criar valores novos.” (LANDOWSKI, 2005, p. 19). Nessas
circunstâncias, o encontro é em ato e Landowski postula que para a apreensão de
“como o mundo se dá no plano do vivido” e, para a descrição da “experiência do
encontro entre si e o outro”, entra em relação uma “disponibilidade para sentir e um
dispositivo sensível.” (LANDOWSKI, 2005, p. 20). Segundo o autor, para que essa
relação estésica entre sujeitos se estabeleça é preciso que, de um lado, existam
sujeitos dotados de “sensibilidade”, de uma competência estésica, e de outro as
manifestações, que por sua vez, possuam uma consistência estésica, qualidades
“sensíveis” que atuam impressivamente nos corpos sensíveis com que estabelecem
29
4 Em Alguns conceitos fundamentais em Semiótica geral, Jean-Marie Floch considera o sistema semi-
simbólico como próprio da linguagem pictórica, fotográfica, etc., linguagens que “[...] se definem pela
conformidade não entre os elementos isolados dos dois planos, mas entre categorias da expressão
e categorias do conteúdo.” (FLOCH, 2001, p. 29).
30
semiologia poética que, ela, é autônoma quanto à sua organização formal e à sua
significação.” (FLOCH, 1985, p. 15, tradução nossa).
Para Ana Claudia de Oliveira, a semiótica plástica se caracteriza como aquela
“[…] que se ocupa da descrição do arranjo da expressão de todo e qualquer texto
visual.” (OLIVEIRA, 2004, p. 12). A semioticista acrescenta que o texto visual
(arquitetura, fotografia, pintura, etc.) constitui-se a partir de sua especificidade
plástica, entendendo que o adjetivo “plástico” – “[…] pode abranger o estudo do
plano da expressão das manifestações visuais mais distintas, quer as artísticas, quer
as midiáticas, quer as do mundo natural.” (OLIVEIRA, 2004, p. 12). Nesse âmbito,
poderemos ter a semiótica plástica ou visual como uma semiótica geral, ou melhor,
como uma teoria da significação, pois ela mesma, além de examinar o plano da
expressão deve também voltar-se para os modos de homologação com o plano do
conteúdo.
Quanto ao conceito de iconicidade empregado pela semiótica plástica,
observa-se uma recusa ao referente para definir a natureza sígnica da imagem,
sendo que a iconicidade é uma ilusão referencial ou um efeito de sentido relativo a
uma concepção cultural variável do que se considera o “real”. A iconização é vista
como um tipo de figurativização do discurso. Na concepção de Greimas (apud
OLIVEIRA, 2004), assim como na de Jean-Marie Floch a semiótica plástica é um
caso particular da semiótica semi-simbólica. Podemos denominar de
semissimbólicos os textos poéticos da pintura, literatura, filme, dança, etc., textos
estéticos, pois tentam criar efeitos de sentidos diversos, dentre eles, o de recriar a
realidade, para obter uma nova visão e um novo entendimento do mundo.
Na visão greimasiana, a correlação que se estabelece entre semiótica do
mundo natural e a semiótica plástica não são do tipo representacional, mas trata-se
de uma questão de intersemioticidade entre universos semióticos distintos. Segundo
Oliveira:
O que ocorre em cada semiose é que cada discurso constrói seu próprio
referente interno, e a referencialização é, então, uma questão de enunciado,
na medida que é nele que se projetam os efeitos de sentido para fazer-
parecer realidade, irrealidade, fantástico, verdade, falsidade, entre tantos
outros efeitos possíveis. (OLIVEIRA, 2004, p. 12, grifos do autor).
arte como objeto da civilização, que nos faz saber sobre as atitudes, hábitos e
costumes de uma dada época, e também sobre o imaginário de uma determinada
sociedade, assim como sobre os meios técnicos e tecnológicos com que se
manifesta.
Quando tratamos do estudo das obras de arte na sua relação textual,
intertextual e contextual, de acordo com Ana Claudia de Oliveira (2004, p. 157), são
as relações internas da obra enquanto sistema semiótico que deverão conduzir às
relações externas dessa obra, com a história da arte, dos seus modos de produção,
da história do autor e de seu contexto, da história da geração e da estética em que é
fundada. Assim sendo, postula Oliveira: “Um texto encena-se, pois, no veio do outro
e passam a comungar de um sistema de valores que os interconecta.” (OLIVEIRA,
2004, p. 134). A semiótica como teoria da significação nos fornece uma metodologia
para reoperação da significação das obras, entre o sensível e o inteligível
(cognoscível); cabendo ao semioticista ser o articulador do conhecimento e dos
processos de semioses, para que a reoperação desses intertextos seja também para
chegar à significação da obra e que, além de tudo “[...], através da verbalização das
operações estruturais, mostra o visual em sua rede de articulações internas.”
(OLIVEIRA, 2004, p. 158).
Além do mais, acrescenta a semioticista, os processos de intersemioses entre
os textos podem tratar tanto de uma relação intertextual quanto de uma relação
interdiscursiva. As relações se estabelecerão de modo intertextual quando a
operação se realizar entre textos, e interdiscursiva se ocorrer entre discursos. O que
podemos evidenciar a partir desse fato é que: “Por uma cadeia de apropriações,
torna-se, o texto primeiro, o centro das referências do processo intertextual, assim
como do de interdiscursivização do texto segundo.” (OLIVEIRA, 2004, p. 133).
Para Norma Discini, a intertextualidade é um processo de incorporação de um
texto em outro pela imitação, para captar ou subverter o texto ou gênero imitado.
Nesse processo intertextual existe um efeito de bivocalidade, da voz do que imita e
da voz do imitado, em que segundo Discini: “Com a heterogeneidade mostrada não
marcada, o eu mostra deliberadamente o outro, mas não o circunscreve a marcas
específicas.” (2013, p. 166). Essa heterogeneidade é constituída na relação
dialógica discursiva do outro que permeia o um. Na intertextualidade o outro imitado
pode ser captado ou subvertido; no primeiro caso se tem a estilização e no segundo,
a paródia. Na estilização um texto reproduz ou capta o estilo do outro texto - à
34
maneira de..., sem que haja uma mudança no sentido entre o texto imitado e o texto
que imita. Enquanto na paródia, a imitação de um texto ou gênero se concretiza pela
subversão do texto imitado ao legitimá-lo, a ponto de se perceber a inadequação de
sentido entre os textos.
presente pesquisa são que, a partir dessa visada semiótica sobre a matéria sensível
da arte, consigamos constituir um estudo mais aprofundado sobre as questões aqui
elencadas, e possamos perceber que os formantes matéricos têm uma “força”
especial – na ação de criar discursos impactantes no destinatário e em seu contexto,
engajando-os nas obras que promovem estesias nas quais a materialidade é a
desembocadura que afeta sensibilizando o artista para os novos usos dos materiais
e matérias, que assim ressignificam seu uso na cotidianidade, um feito da arte
produzida no Brasil em diálogo com outras tendências da arte internacional.
O objetivo geral deste trabalho é analisar o corpus da pesquisa, a partir da
teoria Semiótica Estrutural francesa, para perceber como se dá a construção de
sentido desses diferentes discursos, assim como das interações provenientes das
relações entre enunciador e enunciatário. Para tal propósito elencamos os seguintes
objetivos específicos: investigar as mudanças estéticas no estatuto da arte que
ocorreram a partir da arte moderna e contemporânea, propondo assim uma reflexão
sobre a linguagem artística na atualidade e os efeitos de sentido constituídos a partir
da materialidade dos arranjos plásticos das obras; estruturar a análise na
abordagem do corpus por meio da teoria semiótica; realizar as análises das obras
selecionadas, com o intuito de mostrar a “força especial” de seus discursos visuais
na produção de sentido; abordar os regimes de interação e a dimensão estésica
produzida pelas qualidades sensíveis das obras, que é experimentada e vivida pelos
sujeitos da enunciação e, por fim, descrever a sistematização dos procedimentos de
reescritura e como esses promovem uma ressignificação dos sujeitos envolvidos na
ação “tática” artística, que incide tanto no ambiente cotidiano quanto na própria arte
contemporânea.
Por último, enfatizamos o processo de desenvolvimento da pesquisa.
Inicialmente, partimos de uma pesquisa bibliográfica aprofundada, tendo em vista a
configuração de um referencial teórico da arte e da semiótica. Sobre a bibliografia
consultada de Arte Contemporânea destacam-se teóricos, críticos e historiadores da
arte, tais como: Carlo Argan, Rosalind Krauss, Alberto Tassinari, Ferreira Gullar,
entre outros. Quanto à da teoria semiótica destacam-se os teóricos Algirdas Julien
Greimas, Jean-Marie Floch, Eric Landowski, Diana Luz Pessoa de Barros, Norma
Discini e Ana Claudia de Oliveira.
Como procedimento para a composição do corpus de análise, fizemos um
levantamento das produções artísticas contemporâneas realizadas no Brasil nas
36
últimas décadas. Filtradas por essas lentes, passamos a olhar o que defenderemos
com as ”táticas” utilizadas pelos artistas na produção, montagem e exposição de
suas obras. Trata-se de um recorte temporal e espacial que, em certas ocasiões,
localiza-se no próprio contexto do mundo da vida cotidiana. Nesse tipo de estudo, o
olhar para o objeto passa a existir do desejo de entender um fenômeno social
complexo, cujas fronteiras entre si e o contexto não são claramente evidentes.
Deste modo, nos concentramos em realizar a estruturação e o
desenvolvimento da análise do corpus de obras selecionadas, a partir da abordagem
teórico-metodológica da semiótica discursiva, que nos permite analisar a plasticidade
das obras através dos formantes plásticos e as formas de sua apreensão sensível e
inteligível, considerando os regimes de sentido apoiados nos tipos de interação que
são estabelecidas entre obra e público; visando assim o entendimento dos
processos de produção de sentido dos discursos das obras e suas estesias.
Após essas considerações iniciais e estruturais da pesquisa, o primeiro
capítulo da tese intitulado As matérias do cotidiano como materialidade significante
nas artes plásticas, traz uma abordagem contextual da arte contemporânea, com
algumas das mudanças ocorridas na linguagem plástica da manifestação visual no
decorrer do século XX, com exemplos de artistas que se utilizam de materiais e
objetos de uso cotidiano para compor o arranjo plástico de suas obras. O segundo
capítulo denominado, A análise dos materiais e matérias na construção de sentido
dos discursos visuais poéticos, reconstrói com o estudo das obras, como se dá a
produção de sentido desses discursos construído dentro do Percurso Gerativo de
Sentido. Dividimos essas análises em três etapas, respectivamente, intituladas de:
Manto da Apresentação de Arthur Bispo do Rosário; Arqueologia Poética de
Chiquitão e Marat (Sebastião) de Vik Muniz. O terceiro capítulo chamado
Intertextualidade, interdiscursividade e intersemioticidade; reescrituras; interações e
estesias nas artes plásticas/visuais contemporânea, analisa como a
intertextualidade, a interdiscursividade e a intersemioticidade estão presentes nas
obras que compõem o corpus de análise; as reescrituras de espaços urbanos: nova
função e novos usos pela arte contemporânea e por fim, são analisados a partir da
abordagem dos regimes de sentido ancorados nos tipos de interações
(LANDOWSKI, 2014) e como as qualidades sensíveis (materialidade) das obras
produzem novos modos de presença do sentido a partir da convocação da dimensão
estésica.
37
madeira, mármore, metais preciosos, tinta a óleo, etc.). Deste então a arte ocidental
selecionou para seu uso um número restrito de materiais, mantendo-se confinada a
um campo fechado, até o surgimento da arte moderna, que foi enriquecida pela
diversidade de materiais utilizados pelos artistas em suas obras, com o
desenvolvimento do impressionismo e com as vanguardas do início século XX. Com
a arte moderna nem todos aos artistas abandonaram os materiais tradicionais
(bronze, madeira, etc.), no entanto, ela esteve predisposta a usar de tudo como
material para produção das obras, observa Mèredieu, que segue com vários
exemplos a partir desses usos: com o uso dos materiais “pobres” pela Arte Bruta e
Arte Povera; a utilização e reciclagem da natureza pela Land Art e dos objetos
industriais pelo Novo Realismo, etc. As causas desse fenômeno ocorrido nas artes
plásticas no século XX são correlatas às transformações técnico-científicas que
aconteceram em nossa civilização, assim como também, comenta a autora:
sua própria transformação física para dar origem a uma outra coisa. (DIAS,
1997, p. 31).
O semioticista ainda chama atenção para o fato que uma vez utilizados nas
obras, material e objeto são convertidos em estatuto de materiais, assinalando para
a relatividade na concepção atual entre “materiais artísticos” e “não-artísticos”, desde
o surgimento das colagens cubistas (papier collé) até as poéticas experimentais
contemporâneas. Deve-se considerar o estatuto anterior dos materiais e objetos,
suas origens e especificidades, trazendo assim, para essas práticas artísticas, novas
aquisições de sentido. Acrescenta que: “[...] o que ocorre nos trabalhos de arte em
que componentes de diferentes estatutos estão conjugados é uma intersecção de
semióticas diferentes num mesmo espaço plástico [...]” (DIAS, 1997, p. 32). Portanto,
o que se faz importante na investigação semiótica será “[...] quais são e como são os
desinvestimentos e aquisições de funções por que passaram, suas mudanças de
estatuto e as decorrências disto em termos da produção de sentido.” (DIAS, 1997, p.
32).
Na segunda pesquisa, Lincoln Dias amplia sua investigação sobre a
materialidade, tratando de duas questões de nosso interesse, o “sistema matérico” e
a “matéria das artes plásticas”. Ao observar o lugar do matérico na análise do objeto
artístico, a materialidade constitui uma dimensão específica do plano de expressão,
em que encontramos as marcas das qualidades sensíveis dos materiais, suas
características e estados físicos. A materialidade é analisada enquanto construção
textual na elaboração do sistema matérico da obra, como “[...] um modo de
organização de traços que são constitutivos da forma do matérico.” (DIAS, 2005, p.
68). Esses traços minimais que são formantes junto com os demais formantes
eidéticos, cromáticos e topológicos, entram na estruturação das figuras que formam
as categorias do plano de expressão. Para tal é necessário:
O autor afirma que a materialidade sempre foi algo presente como parte
constituinte da linguagem das artes plásticas, mas que a partir do século XX os
artistas a utilizaram de maneira diferenciada. Em uma escultura de mármore de
Michelangelo, a matéria-prima não é significante, pois está condicionada a um fator
técnico determinante, o que em termos narrativos define-se enquanto um programa
43
trazem para o interior da pintura novos materiais como uma folha de jornal impressa,
um pedaço de papel cartão ou papel usado em decoração de paredes, etc. A partir
da inserção dos novos materiais, esses artistas modificam os procedimentos
técnicos e suportes tradicionais da pintura, com o rompimento da representação
ilusória tridimensional criada pela perspectiva, e na maneira de arranjar os
elementos componentes tanto da pintura quanto da colagem na superfície
bidimensional do quadro. No caso da obra A guitarra (figura 1) de Picasso, o artista
utiliza-se de diversos tipos de papeis que são colados e sobrepostos na superfície
pintada e desenhada do quadro, realizando um arranjo com linhas, formas e cores
produzidas com os materiais: carvão, papel e tinta, que assim combinados
figurativizam os fragmentos de uma guitarra. Para Ferreira Gullar, o papier collé
cubista representou o início das mudanças pelas quais as artes plásticas se
ancoraram, com a produção de obras que “[...] não são propriamente pintura nem
são propriamente quadros, mas um novo tipo de objeto que começa a nascer da
pintura” (GULLAR, 1993, p. 24).
A obra de Picasso mostra um dos trabalhos realizados pelo artista, que se utilizando das técnicas de
pintura e colagem produz um papier collé, com papeis colados, carvão vegetal, tinta nanquim e giz
sobre papel. Dimensão: 66.4 x 49.6 cm. Museu de Arte Moderna de Nova Iorque Fonte:
<http://www.moma.org/collection/works/38359?locale=pt>.
46
A obra Telefone Lagosta realizada por Salvador Dali em 1936. Trata-se de um objet trouvé no qual o
artista agrega um telefone de ferro a uma lagosta feita de gesso, com as dimensões de 17,8 x 33 x
17,8 cm. Tanto o telefone quanto a lagosta são figuras recorrentes na pintura do artista (O sonho de
Vênus, 1939). Tate Gallery, Londres. Fonte:
<http://www.tate.org.uk/art/images/work/T/T03/T03257_10.jpg>.
48
Ferreira Gullar cita (1999, p. 23) ainda a obra de Kurt Schwitters, à qual já nos
referimos anteriormente. O artista inicialmente produz o que convencionou chamar
de merzbilder - suas colagens-pinturas ou “quadro-objeto”; e depois passa a
construir o merzbau – uma espécie de architecture-collé, que se expandia dentro do
ambiente residencial do próprio artista. Os merzbilder de Kurt Schwitters ainda
preservam a estrutura de quadro e foram produzidos com os mesmos procedimentos
técnicos empregados nos papier collé cubista. A continuação do projeto artístico
“merz” de Schwitters, desemboca em uma das primeiras formas de “instalação”
artística, o merzbau (figura 4). Essa forma de architecture-collé foi construída por
Schwitters entre os anos de 1923 e 1933, com os mais diversos tipos materiais
encontrados pelas ruas, como papelão, madeira, pedaços de mobiliário, passagens
de trem, etc., que depois eram colados por todo o espaço disponível das paredes e
chão da residência do artista. Para Ferreira Gullar, o merzbau se caracteriza por
uma identificação da vida com a obra, “[...] cuja característica principal era não ter
fim, possibilitando ao mesmo tempo a integração da ação real (sair para a rua,
trabalhar) com a ação estética (fazer a obra).” (GULLAR, 1999, p. 24).
A obra de Vladímir Tatlin, Relevo de canto, produzida com os materiais: ferro, cobre, madeira e cabos
de aço (dimensões de 71 x 118 cm), está exposta no canto da galeria, situado entre duas paredes
brancas que destacam a sua estrutura expandida. Museu Estatal Russo, São Petersburgo. Fonte:
<http://historiadaartenamodernidade.blogspot.com.br/2010/04/analise-de-obras-das-vanguardas-
lista_9995.html>.
50
A obra do artista Vladimir Tatlin citada por Krauss, Relevo de Canto de 1915
(figura 5), reflete essa “interdependência”. A obra é montada de uma maneira que
não concentra a nossa atenção somente em seu interior, “o núcleo não é o centro da
obra, [ela se expande entre as paredes da galeria que formam um canto,
configurando linhas e planos que se projetam em uma] série de emanações em
direção ao exterior.” (KRAUSS, 2001, p. 69).
Como consequência de tal intenção estética da obra, o observador é levado a
ter que considerar necessariamente o espaço que circunda a obra de arte, que tem
uma relação de complementaridade com o ambiente de sua exposição no processo
de sua produção de sentido; a obra é percebida em relação a toda a ambientação da
galeria, sua estrutura cúbica, paredes branca, luz artificial, etc. A obra de Tatlin
indica assim novos posicionamentos espaciais que o sujeito que a observa deve
adotar frente a ela, de modo que, como comenta Krauss (2001, p. 69), “[...] nossa
experiência de seus relevos é a de uma consciência mais aguçada da situação
específica que habitam”. A autora também trata dessa questão a partir do ponto de
vista do observador:
sua superfície até as bordas, nos deixando a impressão de continuidade para além
do quadro.
Com maior frequência, a partir da arte moderna (modernismo), as obras
passam a exigir um papel mais ativo de seus observadores, cada vez mais, como
deslocamentos espaciais de seu corpo na busca de diferentes ângulos de visão,
para que possa realizar a apreensão de uma obra. O observador de corpo estático e
passivo em relação às obras pictóricas clássicas renascentistas, com o
enquadramento de sua visão em um único ponto fixo do quadro (ponto de fuga),
tendo assim a imposição de um lugar determinado, passa a ser um observador de
corpo dinâmico e ativo no processo de recepção da obra moderna.
Os novos materiais e procedimentos de produção e exposição das obras
utilizadas pelos artistas no modernismo trouxeram para a arte contemporânea
modificações fundamentais no seu estatuto, que são de suma importância para a
contextualização do nosso corpus. A obra dadaísta de Marcel Duchamp,
principalmente seus ready-made, promoveu um papel fundamental nessas
mudanças, e exerceu grande influência para os movimentos artísticos da arte
contemporânea que surgiram a partir dos anos 1950, como a Pop Art, o
Minimalismo, o Novo Realismo, a Arte Conceitual, Land Art, assim como seus novos
dispositivos, como as performances, os happenings, as instalações, site specific,
entre outros.
Por seu turno, a arte contemporânea também traz novas abordagens teóricas
e metodológicas na produção/exposição de suas obras, tais como em relação à
concepção de espaço e matéria, rompendo cada vez mais com os suportes e
produzindo novas materialidades; a ênfase no aspecto conceitual e processual que
as obras manifestam; as novas formas de interação que as obras estabelecem com
o seu público e com o contexto em que se inserem; a inserção de novos conceitos,
entre os quais o de “apropriação”, “assemblage”, etc., que serão abordados a seguir
por meio das produções artísticas realizadas a partir dos anos 1960.
Para Ana Claudia de Oliveira, em Convocações multissensoriais da arte no
século XX (2011), os desdobramentos da arte no século XX e suas novas
construções discursivas foram orientados pelos parâmetros que se estabeleceram a
partir das novas concepções da Física (Relatividade) sobre o tempo e o espaço e da
Filosofia sobre a percepção (Fenomenologia). A autora aborda a transição entre a
arte moderna e arte contemporânea, marcadas pelas mudanças na própria
52
concepção da obra de arte, que, gradativamente, se mostram por meio das rupturas
com o suporte, a materialidade, os modos de processamento das obras e o papel do
observador. A arte se renova a partir dessas mudanças ocorridas, que a autora cita
entre outras, a incorporação de diversos tipos de materiais diferentes daqueles
específicos da arte, assim como o rompimento de fronteiras entre as linguagens
artísticas, a exemplo da pintura, que alcançou a tridimensionalidade que a separava
da escultura.
A arte moderna, em sua trajetória, primeiro criou seus próprios códigos
enquanto linguagem autônoma - tornou-se uma presença no mundo, para depois
estabelecer novas relações com outros códigos, assim constituindo uma relação de
intersemioticidade entre “conjuntos significantes”, entre as obras de arte e os
materiais/objetos de uso cotidiano, pertencentes ao domínio de distintas semióticas.
A gradativa transição da Arte Moderna para a Arte Contemporânea suscitará novos
dispositivos e formas de expressão, que se constituirão em um espaço cada vez
mais interacional, como comenta Oliveira “[...] em que a arte é não só pintura, mas
também escultura; não só música, mas também som; não é só dança, mas também
movimento, etc., numa complexa reunião intersemiótica.” (OLIVEIRA, 2011, p. 74).
Ao analisar uma das obras do artista Joseph Kosuth, a semioticista Oliveira
(2004, p. 124) também nos fornece um bom exemplo da abordagem intersemiótica.
Por meio dessa relação podemos depreender as significações construídas na trama
do contexto cultural, artístico e estético, na qual se insere a obra de arte. A obra de
Kosuth é uma instalação intitulada One and three chairs (figura 6) realizada no ano
de 1965 pelo artista, participante do movimento artístico surgido na Europa e EUA e
conhecido por Arte Conceitual, em que a ideia se sobressai, e é anterior mesmo à
própria concepção da materialidade da obra.
A obra traz três dispositivos que o artista selecionou para mostrar e contrapor
às diversas formas de apresentação de um mesmo objeto, uma cadeira. A primeira
trata-se de uma imagem fotográfica em preto e branco; na segunda, o “próprio”
objeto cadeira é mostrado; e a terceira, é um pôster composto de um texto escrito
com verbetes do dicionário da língua inglesa e francesa sobre o significado da
palavra chair (cadeira). São três maneiras de se referenciar a cadeira – através da
imagem (linguagem imagética), do objeto em si e da escrita (linguagem verbal).
Daqui podem surgir questões tais como: quais dessas imagens transcodificariam
“objetos do mundo natural? [...] Ou, quais delas se articulam para ‘nomear’ as
53
A obra conceitual de Kosuth, One and three chairs, é uma instalação composta por três objetos
distribuídos no chão e na parede da galeria: um objeto tridimensional, a cadeira de madeira no
primeiro plano, e dois objetos bidimensionais: um cartaz com imagem fotográfica e um pôster com
texto escrito, ambos no segundo plano. As dimensões da obra são de 112 x 79 x 75 cm. Muséé
National d´Art Moderne, Paris. Fonte: <http://www.arthistoryspot.com/wp-
content/uploads/2010/02/kosuth-med.jpg>.
funções que antes eram exercidas apenas nos limites internos do espaço da obra
(em uma tela de Picasso do período do Cubismo Analítico, por exemplo) foram
assumidas pelo espaço do mundo em comum (o espaço urbano, a paisagem, a
natureza, etc.). Assim, o que a arte contemporânea traz de novo é o fato de que a
moldura espacial que envolve as obras não consegue mais separá-las do universo
do mundo cotidiano.
Ao solicitar cada vez mais o espaço do mundo em comum, as obras de arte
contemporânea estabelecem uma estreita relação com o ambiente onde estão
inseridas/expostas, seja no espaço urbano ou no espaço do mundo natural. O artista
e ensaísta Daniel Buren, em Textos e entrevistas escolhidos [1967- 2000], faz uma
reflexão sobre o assunto afirmando que: “Todo lugar impregna (formalmente,
arquitetonicamente, sociologicamente, politicamente) radicalmente seu sentido no
objeto (obra/trabalho) que é exposto.” (BUREN, 2001, p. 93). Buren faz um
mapeamento do sistema da arte contemporânea, considerando a obra de arte um
acontecimento urbano e situando-a em um “lugar específico” – in situ. (BUREN,
2001, p. 13). O sentido dessa arte, segundo o autor, está em seus próprios meios
(ou recursos), de forma que a sua arte não precise mais “ditar o olhar”, mas que seja
“produzida pelo olhar” (BUREN, 2001, p. 38).
Alguns dos movimentos artísticos da arte contemporânea, como a Land/ Earth
Art, ou de grupos ligados a happenings e performances (Grupo Fluxus) tiveram a
atitude de ir contra a qualquer regra mercadológica imposta e levar sua arte para
fora dos limites da cidade, ou mesmo realizar ocupações/intervenções pela cidade,
contudo, procurando espaços alternativos ao sistema de galerias comerciais e
instituições de arte (museus, galerias, etc.). Sobre essa questão, Daniel Buren diz
que a arte que se recusa ou ignora as imposições dos museus e das galerias e cria
seus próprios ambientes ou seus próprios museus; apenas afasta o problema, ao
invés de levantá-lo e solucioná-lo. A solução apresentada por Buren é que não se
trata de criar seu próprio espaço cultural sob o pretexto de escapar aos espaços
institucionais da arte, o que seria mais uma vez uma tentativa de isolamento, de fuga
da realidade. Complementa Buren: “Trata-se muito mais, me parece, de mostrar as
implicações imediatas de um dado lugar sobre a obra e, talvez, graças à obra, suas
implicações sobre o lugar”. Assim sendo, “da tensão assim criada, surgirá
dialeticamente a crise entre a função do museu (arquitetura) e a função da arte
(objeto visual)” (BUREN, 2001, p. 93).
55
O público participante usando um dos parangolés de Hélio Oiticica intitulado de Parangolé P6, Capa
3, Homenagem a Mário Pedrosa. Os materiais empregados na produção da obra são: tela, pano,
nylon e fotografias de jornal. Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ). Fonte: Reprodução fotográfica
Desdemone Bardin, disponível em <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66321/parangole-p6-
capa-3>.
Figura 8 – Tropicália: PN2 (Imagético) e PN3 (A Pureza é um Mito) (1966-1967) de Hélio Oiticica.
A instalação de Oiticica é composta por diversos materiais e objetos, entre eles, jarros com plantas,
areias, pedras, aparelho de televisão, tecido e madeira, que estão distribuídos nos vários ambientes
criados pelo artista. Projeto Helio Oiticica (Rio de Janeiro, RJ). Fonte: Reprodução fotográfica de
César Oiticica Filho, disponível em <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/obra66335/tropicalia>.
60
5 O artista El Anatsui recentemente ganhou o Prêmio Leão de Ouro da 56ª Bienal de Veneza de 2015
e nesse mesmo ano participou da mostra de arte contemporânea intitulada Africa africans.
Exposição de arte africana contemporânea realizada no Museu Afro Brasil, na cidade de São Paulo
62
A obra Três Continentes, exposta na Galeria Jack Shainmam (NY), mostra a assemblage produzida
pelo artista ao montar o arranjo plástico de sua obra, com latas e tampas amassadas que são
entrelaçadas e amarradas com fios de cobre, e que muito se assemelha a uma tapeçaria. Jack
Shainman Gallery, Nova Iorque. Fonte: <http://www.jackshainman.com/artist-image28.html>.
A obra de Song Dong construída com janelas, espelhos, abajures e tapetes, conjuga instalação e
performance e tem a dimensão de 5 m³. Exposição Regenerate na Galeria Baró, São Paulo, 2014.
Fonte: imagens de Edouard Fraipont (2014).
A obra Pimp my carroça sendo produzida “in situ”, na região do Vale do Anhangabaú no decorrer da
Virada Cultural de São Paulo de 2012, com a participação do artista paulista Mundano que realiza um
grafite da logomarca do seu projeto Pimp my carroça. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa
(2012).
cooperação de um conjunto de artes distintas [...]” (ARGAN, 1995, p. 82), seja arte
urbana, arte popular, arte rural etc., mas que é a cidade o espaço “onde tudo se
passa”, e a cidade vai se construindo juntamente com a arte. Além do mais, entre a
arte e a cidade acontece um duplo movimento na abrangência do espaço expositivo
da arte, como a arte exposta nos museus/galerias de arte (espaço público-privado)
da cidade, e a arte exposta no próprio ambiente da cidade (espaço público-público).
Certeau em A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar (2013), também
aborda o tema da cidade (Uma mítica da cidade) e das práticas cotidianas de seus
habitantes. Para o autor, os habitantes (“trabalhadores e comerciantes vivos”)
reivindicam mais que a ocupação de um determinado lugar na cidade, mas também
o “[…] direito à sua estética […]” (CERTEAU, 2013, p. 198). A arte “popular”, que cita
como exemplo, também não tem destaque por todos os “técnicos” e “engenheiros”
ou “promotores” e “funcionários”, que estrategicamente planejam/administram a
cidade; esses artistas populares desconhecidos merecem os seus direitos de
“autores da cidade”, como afirma Certeau:
“gestos” e “relatos”, como “cadeias de operações feitas sobre e com o léxico das
coisas”, sendo ancorados por dois modos: um “tático” e outro “linguístico”, que
segundo o autor, manipulam e deslocam objetos “[...] modificando-lhes as
repartições e os empregos [...]” (CERTEAU, 2013, p. 198) são ‘bricolagens’, casando
citações de passados com extratos de presente para torna-los séries (processos
gestuais, itinerários narrativos) em que os contrários simbolizam. Continua o autor,
os “gestos” são os “arquivos da cidade”, que refazem cotidianamente a paisagem
urbana, por meio de seus arquivos (“passado selecionado e reempregado em função
de usos presentes”): “São as chaves da cidade: elas dão acesso ao que ela é,
mítica.” (CERTEAU, 2013, p. 199-200).
A cidade, nos contextos apresentados por Argan e Certeau, é tanto museu
quanto mítica, respectivamente, como cenário para produção/exposição de suas
múltiplas manifestações culturais e como um lugar das poéticas que seus
“habitantes-artistas” produzem, por meio de suas bricolagens, os “arquivos (“gestos”)
de memória da própria cidade. A obra Pimp my carroça do coletivo UTA se faz como
poética, produzida pelo “gesto” desses artistas-bricoleurs, que por meio de suas
“táticas” artistas criam com os elementos de que dispõem (materiais e objetos
descartados) nos seus respectivos ambientes (cotidiano da cidade) em que se
encontram. Deste modo, essa obra faz parte do contexto da cidade museu de Argan
e da cidade mítica de Certeau, pois mantém uma relação de reciprocidade entre a
arte e a cidade (o espaço urbano da cidade como lugar de sua criação/exposição),
ao mesmo tempo em que são produzidos, por meio dos “gestos” ou “arquivos” da
cidade que configuram sua memória: são tanto “gestos” efêmeros, como no caso da
obra do UTA e de Vik Muniz, quanto “gestos” duráveis, como no caso das obras de
Bispo e de Chiquitão, que nos propomos analisar a seguir.
Obra exposta na Trigésima Bienal de São Paulo: A Iminência das Poéticas em 2012. Foto: Ricardo
Toscani/FFW, disponível em: <http://ffw.com.br/noticias/category/arte/page/4/>.
80
Figura 13 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo
Pátio da do interior da Colônia Juliano Moreira, 1985. Fonte: Catálogo da exposição Walter Firmo: um
olhar sobre Bispo do Rosário (2013).
obra foi concebida, se torna difícil a sua total apreensão visual. A obra traz
elementos de seu arranjo plástico tanto na parte externa que se mostra quanto na
parte interna que se esconde como um segredo (somente colocando-o ao avesso é
possível desvendá-lo e apreendê-lo). A primeira e a segunda imagens (figura 14 e
15) mostram respectivamente a face externa, tanto frontal quanto as costas do
Manto. A última imagem (figura 16a e 16b) revela o segredo de sua face interna, seu
avesso, a qual não temos acesso imediato. O Manto tem a medida de 118,5 cm de
comprimento, medida dos ombros, por 141,2 cm de altura, do colarinho à parte de
baixo nas franjas e 20 cm de espessura lateral.
Na face externa do Manto, a estrutura material que serve de suporte principal
é feita de tecido de linho, conhecido como linhão do Panamá. As linhas (fios)
utilizadas para o bordado são de algodão, as cordas são de torçal de algodão e de
seda, os pingentes de cortina feitos de linha de algodão e de seda, as dragonas com
franjas de linha de seda e o colarinho de um tecido denominado gorgorão. O
acabamento das bordas apresenta o debrum/viés feito de tecido de algodão e as
franjas são de seda. Na face interna, vê-se que o suporte de tecido é feito de
popeline e a linha para o bordado é de algodão.
Face externa, fronte do Manto. Tecido, linha e metal 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo
concedidas pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
84
Face Externa, costas do Manto, 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo concedidas pelo Museu Bispo
do Rosário Arte Contemporânea.
Face Interna: Avesso frente, 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo concedidas pelo Museu Bispo do
Rosário Arte Contemporânea.
85
Face Interna. Avesso costas do Manto da Apresentação, 118,5 x 141,2 cm. Imagem do arquivo
concedidas pelo Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea.
trançado das cordas do arranjo plástico da obra, podemos ter uma visualização da
totalidade tridimensional da face externa e interna do Manto. No entanto, ainda falta
um componente fundamental para que se complete a produção de sentido da obra:
o corpo. Esse sentido se atualiza no ato de vestir o Manto, o corpo do Manto se
torna também o Manto no corpo, proporcionando efeitos de sentido captados em
ato, entre o dinamismo e a estabilidade constituídos pela ação performática do
sujeito que veste e é vestido pelo Manto.
As imagens fotográficas e videográficas, ambas realizadas no ano de 1985,
que registraram Bispo vestindo o Manto da apresentação, mostram-no sempre em
seu “parecer corpóreo” (OLIVEIRA, 2007, p. 07), com aproximadamente 75 anos de
idade, de cavanhaque branco, olhar ora severo ora contemplativo e com muitas
marcas de expressão. Por debaixo do Manto, Bispo usa calças jeans azul e um tênis
branco sem cadarços, ambos já bastante usados. O Manto recobre praticamente
todo o seu corpo até abaixo do joelho, se estendendo próximo ao chão. No entanto,
as suas costas são mais curtas, se aproximando da parte detrás do joelho. Os
braços e as mãos também estão completamente encobertos, sendo mostrados
apenas quando são realizados determinados gestos e movimentos corporais. Ao
andar, Bispo movimenta seu corpo lentamente com o peso e volume da robustez do
Manto que, por sua vez, movimenta-se sobre o seu corpo de forma ondular com a
sinuosidade do drapeado do tecido. Os gestos corporais mais presentes nessa
gestualidade do seu modo de parecer se manifesta a partir das articulações dos
braços e das mãos, ora quando estende os braços abertos com as mãos inclinadas,
à direita para cima e à esquerda para baixo (como veremos mais a frente), ora com
os braços curvados e as mãos juntas sobre o peito (figura 17).
89
Figura 17 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo
Detalhe do gesto das mãos de Bispo. Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Firmo: um olhar sobre
Bispo do Rosário (2013).
Bispo vestindo a primeira versão do Manto da Apresentação sentado à sombra de uma árvore na
Colônia Juliano Moreira. Imagens cedidas pelo Núcleo de Acervo Iconográfico do Arquivo Público do
Estado de São Paulo [MISSÃO: 719 – 42 negativos].
repousam para baixo. Esses gestos constituem no corpo vestido uma certa isotopia
da gestualidade, que mostra sua atuação e comportamento enquanto “sujeito no
mundo” e como seu corpo se torna uma presença na sua “construção identitária”
(OLIVEIRA, 2007, p. 07).
Figura 19 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo
Bispo e detalhe do gesto das mãos de Bispo. Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Firmo: um olhar
sobre Bispo do Rosário (2013).
Desenho da frente do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo autor.
94
Desenho das costas do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo
autor.
Os tecidos que servem de suporte para a construção do Manto dão o tom escuro
e o claro ao fundo da sua face externa e interna, que servem de bases para os
coloridos bordados. Na sua face externa, temos o linhão do Panamá de cor terra
siena natural e textura rugosa que, por sua vez, na sua parte interna apresenta o
popeline de cor branca e textura lisa. Os bordados do exterior do Manto são
multicoloridos, produzidos com fios de lã predominantemente de cores primárias e
secundárias, além do preto e branco, enquanto os bordados do interior são
produzidos com fios de tecido azul claro. Assim, na dimensão cromática (esquema
8a e 8b) temos as categorias monocromático/claro vs policromático escuro.
95
Desenho da frente do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo autor.
Desenho das costas do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo
autor.
96
Desenho da frente do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo autor.
Desenho das costas do Manto da apresentação vestindo corpo do artista. Fonte: elaborado pelo
autor.
98
Na dimensão topológica, tem-se uma oposição de base que vai gerar outras
oposições relacionadas a essa. Trata-se da oposição dentro vs fora, que pode ser
relacionado com o segredo dos nomes das mulheres. Como foi mostrado, os nomes
de mulheres estão localizados na parte interna do manto. Do mesmo modo, pode-se
conjugar o interno ao privado e mesmo à intimidade que as figuras femininas
remetem e que se homologam com a questão da pele com a pele. Pelo outro polo
da oposição, o fora se correlaciona com o visível e o exposto por meio das figuras
bordadas e que remetem ao tema da sociabilidade e da coletividade.
Ainda em relação aos formantes topológicos, tem-se a relação entre as partes
do manto. Assim, há uma relação entre costa e frente, direita e esquerda, alto,
central e baixo. Além das partes, pode-se também examinar o manto por meio de
uma única constituição topológica, em que se estabelece a homologação entre as
figuras do corpo e as figuras do manto.
O manto apresenta algumas figuras bem delineadas. São seres, objetos e
caixas que, por meio do delineamento de sua figuratividade (pelo desenho) podem
ser divididos pelas categorias de aberto vs fechado, como é o caso dos quadros que
englobam os nomes de mulheres, em uma representação, pela totalidade de nomes,
que remete ao feminino. Além disso, na questão cromática, os seres femininos - pelo
nome – são bordados em azul. São nomes de mulheres que Bispo catalogou a vida
toda em fichários, que ele distribui em caixas molduras que produzem a figura da
espiral. Em muitas culturas, a espiral simboliza o ciclo da vida, presentes em forma
de volutas nas colunas da ordem jônicas grega e no corpo do animal marinho
nautilus. Em termos matemáticos a espiral é formada a partir de um retângulo áureo,
que também forma a conhecida sequência numérica de Leonardo Fibonacci. A
espiral tanto pode representar o micro-universo (homem) quanto o macro-universo
(cosmos). Assim, como abordou Landowski em Regimes de espaço, ao tratar da
figura da voluta, ele afirma: “[...] constelações giram sobre si mesmas, até
singularidades dinâmicas configuram-se por ajustamento entre formas em
movimento, autônomas mas afin” (LANDOWSKI, 2015, p. 11).
Após se considerar as questões levantadas pelo corpo do manto, se verá o
cromatismo, a materialidade, a corporeidade e a forma da roupa no corpo.
Nessa relação entre manto e corpo, há uma série de elementos formais que
podem ser considerados. Em termos de amplitude, pode-se pensar na oposição
solta vs presa e folgada vs apertada. Na questão da espessura, há uma oposição
99
Frente: Corpo encoberto e corpo descoberto pelo Manto da apresentação. Fonte: elaborado pelo
autor.
100
Policromático/
Fora Assimétrico Escuro Rugoso Continuidade
6
O texto do Landowski Frontières du corps: faire signe, faire sens (2000) está citado aqui a partir de uma
tradução extra oficial ainda sem publicação de José Augusto Mourão.
105
Figura 20 - Bispo vestindo o Manto da apresentação (1985) fotografado por Walter Firmo
Bispo no pátio da Colônia Juliano Moreira. Fonte: Catálogo da Exposição: Walter Firmo: um olhar
sobre Bispo do Rosário (2013).
106
A instalação foi montada entre os anos de 1995 e 2011, no interior de um casarão colonial do século
XVIII, na cidade de Ouro Preto, em Minas Gerias. No ano de 2011, a obra foi desmontada devido à
perda momentânea do local de exposição. Em 2014, uma parte da obra foi exposta durante 8 dias na
Praça Tiradentes como uma Intervenção Urbana. Atualmente, o artista está remontando
gradativamente a sua obra no mesmo local. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
108
O casarão colonial está localizado ao lado da Igreja do Pilar e uma placa afixada na sua entrada traz
escrito o seguinte texto: “Em 1782 estes dois sobrados, ‘as casas místicas’, como aparecem em
registro de tombo, pertenciam aos herdeiros de Felizarda Teresa da Assunção. A denominação indica
casas germinadas, com comunicação interna, que serviam de apoio ao funcionamento da sacristia e
do consistório da Igreja de Nossa Senhora do Pilar, na época em que eram propriedades da
paróquia”. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
109
Série das Fechaduras. Interior da casa de Chiquitão Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo
Brasil, 2010.
paredes de cor branca, com as janelas, a porta e suas molduras de cor azul cerúleo
e cobalto. Ele está localizado na Praça Américo Lopes, nº 41, ao lado de uma das
mais famosas e imponentes igrejas do estilo barroco-rococó da cidade: a Igreja do
Pilar. O casarão possui dois andares acima do nível da rua e mais dois níveis abaixo
com o subsolo do prédio. Todos esses ambientes estão interligados por estreitas e
íngremes escadas de madeira já bastante gastas pelo tempo de uso.
Ao entrarmos no casarão, logo à esquerda temos uma porta que dá acesso a
dois ambientes nos quais o artista reservou para restaurar e expor as antiguidades
que não pertencem à sua coleção e por isso são colocadas à venda. Até esse local
é permitido a entrada do visitante, mas caso sejamos convidados para conhecer a
obra Arqueologia poética temos que seguir em frente e continuar em um corredor
estreito que nos leva a um novo ambiente. Nesse ambiente, nos deparamos com
duas paredes com aproximadamente 1000 fechaduras de ferro (figura 24), robustas
e pesadas das portas do período colonial, que são distribuídas uma ao lado da outra
e enfileiradas até o teto.
Série das Chaves expostas sobre o claro e escuro da iluminação. Fotografia: Almir Valente Costa e
Ramúsyo Brasil, 2010.
112
Escadaria de madeira que dá acesso ao primeiro nível do subsolo. Fotografia: Almir Valente Costa e
Ramúsyo Brasil, 2010.
Varanda com vista para o quintal do casarão. Alguns objetos, como as adagas de prata e os rifles dos
Bandeirantes estão guardados em baús, como podemos ver à esquerda/abaixo da imagem.
Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
Todos os objetos possuem a cor preta, seja do próprio ferro batido. seja por
causa de uma solução aplicada pelo artista para a conservação ou seja pela cor de
ferrugem advinda do desgaste da peça enferrujada. Como podemos observar na
imagem acima (figura 28), esses objetos estão organizados um ao lado do outro e
preenchem praticamente toda a superfície da parede branca que lhe serve de
suporte, causando aos olhos do observador um contraste entre o claro e o escuro.
Além do mais, a iluminação do ambiente reitera tal sensação.
115
Na varanda do casarão observa-se todo o espaço sendo tomado pela profusão de objetos, incluindo
a janela e a coluna de madeira no primeiro plano. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil,
2010.
Entre a cozinha e a varanda (figura 29), uma escada de alvenaria (figura 30)
nos conduz ao segundo e último nível do subsolo, onde também se tem uma
pequena varanda que dá acesso ao quintal do casarão. No quintal, passa um
córrego, que é um dos lócus em que muitos desses objetos expostos foram
encontrados. É como se os objetos saíssem dali mesmo, imediatamente, de um
garimpo à sua lapidação, da descoberta à sua exposição, da escuridão à luz, do
passado ao presente. A montagem da obra é finalizada ou iniciada nesse espaço da
escada que interliga o ambiente externo ao ambiente interno do casarão.
QUARTO DO ARTISTA
PRIVADO-PRIVADO
TÉRREO E 1º ANDAR
CHAVES FECHADURAS
PRIVADO-PÚBLICO
CHAVES Da união fechadura e chave à visibilidade em separado.
ALGEMAS BALANÇAS/LUMINÁRIAS
CORRENTES DOS ESCRAVOS
FERRADURAS
CRAVOS CHALEIRAS
ESCADA
MARTELO ARREIOS
ENXADA
Escadaria que leva ao último nível do subsolo com algumas panelas de ferro nos degraus e as
paredes preenchidas inteiramente por estribos, ferraduras, dobradiças, etc. Fotografia: Almir Valente
Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
Correntes de escravos, balanças, panela, peneira de garimpo, série de cravos, etc. são alguns dos
objetos expostos nas paredes da casa-museu de Chiquitão. Fotografia: Almir Valente Costa e
Ramúsyo Brasil, 2010.
119
Outros temas podem ainda ser depreendidos. Se as chaves (figura 34) estão
expostas, o que elas mostram é que elas fechavam o interior do exterior e vice-
versa. Assim, temas como o fechamento e a proteção parecer ser plausíveis. Outra
questão que surge está relacionada à materialidade desses objetos: eles são feitos
de ferro forjado, o que pode situar o estágio tecnológico da cidade mineira.
No entanto, examinando a obra em sua contemporaneidade, vê-se que há um
processo de desfuncionalização do uso da chave (agora é para somente para ser
vista). Antes, as chaves serviam para fechar e abrir fechaduras que separam interior
do exterior, agora elas servem como uma construção estética ao serem dispostas e
distribuídas em várias paredes próximas da escada. O mesmo ocorre com as
fechaduras, pois estas também estão distribuídas nas demais paredes do mesmo
ambiente.
O que se observa em relação à enunciação é que ela pode ser entendida
como uma enunciação global, cujo enunciador não é figurativizado. Assim, mesmo
122
Marat (Sebastião), 2008. Cópia crimogênica digital, 229,90cm x 180,30cm. Fotografia exposta em
2009, no Museu de Arte Moderna do Rio de janeiro (MAM). A obra faz parte do projeto Lixo
Extraordinário de Vik Muniz, realizada entre 2007 e 2008 no aterro sanitário Jardim Gramacho na
Baixada Fluminense, Rio de Janeiro (RJ). Fonte: fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos
de Alexei Bueno e Vik Muniz.
Aterro sanitário Jardim Gramacho na Baixada Fluminense, Rio de Janeiro (RJ). Fonte: imagens
fotográficas do catálogo: Lixo extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.
Vik Muniz aponta para seus interesses em projetos que envolvam a arte e o
social, com a possibilidade desses mudar a vida das pessoas com o contexto que
elas possuem ao lado delas. Assim, escolheu como local para realização do projeto,
o aterro sanitário Jardim Gramacho (figura 36), onde cerca de 2.500 catadores,
sediados na cooperativa ACAMJG, trabalhavam dia e noite para coletar 200
toneladas de materiais recicláveis por dia. O artista e a sua equipe selecionaram
128
Assemblage produzida a partir de objetos e materiais coletados do lixo para compor a obra fotográfica
Marat (Sebastião), sendo observada pelo modelo do quadro e pelo artista. Fonte: imagens
fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.
Detalhe da obra Marat (Sebastião). Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário,
textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.
A cabeça do Cristo foi esculpida pelo escultor polonês-francês Paul Landowski (1875 – 1961).
Imagem realizada no Corcovado - Rio de Janeiro, Brasil. Fonte:
https://commons.wikimedia.org/wiki/File%3ACristo_Redentor_-_Rio_de_Janeiro%2C_Brasil.jpg
137
Realização do desenho a partir dos estudos sobre Vitrúvio e proporção áurea realizados por
Leonardo D´Vinci e seu mestre geômetra Fra Luca Pacioli. Fonte: www.lucnix.be
(Homem) e o gesto acaba por estabelecer uma relação entre polos opostos: entre o
celeste e o terrestre, o divino e o humano, o sagrado e o profano. Por fim, essa
relação geométrica do corpo humano e do universo, aqui apresentada como um
padrão matemático (phi), está também, como já visto anteriormente, na estrutura da
espiral analisada como figura interna do Manto da apresentação, que nos mostra os
ciclos da vida e nossa relação como o cosmos.
Bispo em 1985 na Colônia Juliano Moreira: Fonte: Fotografia do catálogo da Exposição Walter Firmo:
Um olhar sobre Bispo do Rosário.
Bispo não se utilizava da música e da dança, como Oiticica, mas entre eles o ponto
de ligação está no ritual de cobrir o corpo vestindo-o para transformá-lo em algo para
além de sua própria realidade cotidiana.
O Manto da apresentação é mais que apenas um simples produto artesanal.
Muito pelo contrário, resulta de um sofisticado emprego da técnica do bordado
executado pelo próprio Bispo. Também é para ser mantido junto ao corpo, que está
para além de constituir somente um gesto simbólico ritualístico do ato de vestir o
Manto. A obra de Bispo é fruto de uma experiência estética “arrebatadora” na
cotidianidade, pois subverte os textos originais criando uma polêmica: transforma o
texto subvertido em uma experiência estética singular dentro de um ambiente nada
propício da Colônia Juliano Moreira, como veremos mais à frente.
Oliveira fala das escapatórias no prefácio do livro já citado, Da Imperfeição,
de Algirdas Julien Greimas, em que o autor “[...] examina a possibilidade de a
experiência estética ser produzida por arranjos e re-arranjos das coisas simples que
fazem parte de nosso viver rotineiro.” (OLIVEIRA, 2002b, p. 12). Tais arranjos e re-
arranjos são compostos no processo da bricolagem realizada por Bispo com os
materiais e objetos de usos cotidianos descartados e coletados na própria Colônia
Juliano Moreira e que a posteriori foram reaproveitados na produção de seus
trabalhos. O Manto da apresentação é a “pancália buscada” na construção do todo
do sentido de sua obra, a de que a vida “faz sentido” e precisa ser registrada, como
o registro de uma vida. Esse sentido de busca se constitui por meio de uma
experiência estética, como uma “espécie de graça” e o “resultado de uma
aprendizagem, de um esforço na construção do sensível” (OLIVEIRA, 2002b, p. 12).
A interdiscursividade é estabelecida com discursos de discursos, com temas e
figuras semelhantes no percurso temático e figurativo de um discurso dentro de
outro discurso. O discurso visual Manto da apresentação incorpora outros discursos,
pois o discurso religioso (simbólico) e o artístico (semissimbólico), já apresentados
como texto em suas relações de intertextualidade, são os seguintes: a estátua do
Cristo Redentor no Rio de Janeiro e os Parangolés de Hélio Oiticica.
O discurso visual Manto da apresentação dialoga com o Cristo Redentor,
compartilhando os mesmos temas (Súplica/entre o céu e a terra) sustentados pelas
figuras (corpo vestido pelo manto/gestos dos braços abertos e mãos voltadas para
cima e para baixo).
143
Flávio de Carvalho na Avenida Paulista em sua performance usando saia e participante com
um dos Parangolés de Hélio Oiticica. Fonte: https://duodeluxo.files.wordpress.com/2010/11/flavio-de-
carvalho1-771357.jpg / Art Knowledge News
Bispo vestindo a primeira versão do Manto da apresentação sentado à sombra de uma árvore na
Colônia Juliano Moreira. Fonte: imagens cedidas pelo Núcleo de Acervo Iconográfico do Arquivo
Público do Estado de São Paulo [MISSÃO: 719 – 42 negativos].
146
A frente do Manto da apresentação e sua intersemiose com outras obras. Fonte: montagem feita pelo
autor.
Detalhe do Manto da apresentação e “Jogando Xadrez com Rosângela”, s/d. Madeira, metal, tecido,
plástico, linha, nylon, vidro, ferro e papel, 114 x 55 x 14 cm. Fonte: montagem feita pelo autor.
148
Subsolo do casarão colonial. O artista aproveita o teto de cobertura de palha para compor seus
trabalhos. Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
153
Série das chaves de Arqueologia Poética exposta no Casarão Colonial em Ouro Preto, MG.
Fotografia: Almir Valente Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
Exposição Arqueologia Poética em Ouro Preto, MG, Brasil na Praça Tiradentes. Foto: Almir Valente
Costa.
156
Exposição Arqueologia poética em Ouro Preto, MG, Brasil na Praça Tiradentes. Foto: Almir Valente
Costa.
Anônimo Le cabinet de Ferrante Imperato à Naples 1672, gravura, Bibliothèque Estense, Modène17.
Fonte: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/VGRO-
72MSXT/disserta__o_de_helga_cristina_gon_alves_possas.pdf?sequence=1>.
Logo após essa definição, o autor acrescenta que existe também aqueles que
não estão expostos ao olhar do público: são os “tesouros escondidos”. Na tela do
parecer do quadrado semiótico, seria o segredo – aquilo que não-parece, mas é.
Para o historiador Pomian, existem dois tipos de coleções: as coleções particulares e
os museus, ambos formados por numerosos e heteróclitos objetos, sendo que a
maioria das coleções deram e dão origem ou transformaram-se nos museus. Os
objetos que compõem às coleções perdem seu valor de uso, mas não perdem seu
valor de troca, ou seja, perdem a sua utilidade para ganhar um novo valor. Assim,
como afirma Pomian:
abastadas, tais como a Médici, com destaque para Lourenço de Médici, um dos mais
conhecidos mecenas dos artistas. No século XVI, teve início em vários países da
Europa à moda de colecionar antiguidades e no século XVII foi a vez dos
instrumentos científicos como peça de coleção. Na França, até a segunda metade
do século XVIII, as peças de coleção da vez são as medailles – as moedas antigas.
A partir dessa data, aparecem os objetos da História Natural. O historiador ainda
relata sobre a primeira das grandes bibliotecas públicas, a Bodleiana, aberta em
1602 em Oxford. E em 1675 foi criado o primeiro museu (Ashmolean Museum), em
que o colecionador Elias Ashmole deixa as suas coleções de curiosidades e
artefatos para a Universidade de Oxford, para o uso dos estudantes, sendo que
estas tornaram-se acessíveis ao público somente em 1683.
Já na coleção de objetos de ferro de Chiquitão, o ato de colecionar tornou-se
um ato de pesquisa para produção de sua própria obra. Arqueologia poética,
instalada no casarão colonial, se aproxima esteticamente dos Gabinetes de
Curiosidades. Concentra a sua coleção em objetos de ferro, que resgatam um ofício
tradicional, o ofício de ferreiro em Minas.
Os objetos de ferro da coleção de Chiquitão foram forjados (batidos) ou
fundidos por muitos desses escravos que desenvolveram o ofício de ferreiro. Esse
ofício tem como matéria prima o ferro com seus objetos feitos a partir de
modelagens (modelos prontos) com fins práticos que, por sua vez, se opõem ao
processo de criação do objeto estético. A produção metalúrgica na fundição do ferro
iniciou-se em Minas Gerais mediante “[…] a instalação das forjas de cadinho,
operadas por cativos islamizados, que trouxeram da África uma técnica rudimentar,
mas eficaz, de extração e manipulação do minério de ferro.” (ROMEIRO, 2013, p.
262).
Os cadinhos eram pequenos tubos de forma cilíndrica, com 0,30m de
diâmetro por 1,0 m de altura, usados no processo de fundição do ferro. No entanto,
no século XVIII, o ferro era um produto ainda com custos muito altos. Na região das
Minas Gerais, com a abundância do minério de ferro e a necessidade de
ferramentas para atividade mineradora e agropastoril, a atividade de fundição foi de
suma importância para a economia da cidade de Vila Rica, fundada em 1711. Nesse
período, ainda houve o desenvolvimento de outras técnicas de fundição de ferro,
como: a forno de ferreiro e a forno de ferreiro já curado, ambas utilizadas na
produção de colheres, panelas, ferro de passar, escumadeira, etc; instrumentos para
161
[...] para o verdadeiro colecionador, cada uma das coisas vira, nesse
sistema, uma enciclopédia de todo o conhecimento do período, da
paisagem, da indústria e do proprietário do qual provém. […] Tudo que é
recordado e pensado, tudo que é consciente, torna-se agora suporte, a
moldura, o pedestal e a marca de sua propriedade. A coleção é uma forma
prática de memória, e, entre as manifestações seculares de “proximidade”,
a mais convincente. (BENJAMIN apud CRIMP, 2005, p. 179).
colonial sob uma nova ótica. O próprio casarão colonial, sem nenhuma placa de
informação indicando a localização da obra é a continuidade no cotidiano da cidade
de Ouro Preto. O acontecimento estético dentro do casarão somente é descoberto
por destinatários curiosos ou por quem têm a sorte da sua descoberta e se lançam a
entrar no casarão para um encontro inesperado com a instalação na casa-museu.
A obra de J. L. David conhecida como A morte de Marat possui outro título, que o próprio artista
deixou escrito, O último suspiro de Marat. Pintura a óleo sobre tela, 162 x 128 cm. Musées Royaux
des Beaux-Arts, Brussels. Fonte: <http://virusdaarte.net/wp-content/uploads/2014/05/david1.png>.
quadro: faca, carta, tinteiro, etc., foram expostos no funeral como objetos de culto
sagrado. Mesmo os radicais jacobinos procuraram legitimar a nova República dentro
da esfera do sagrado. A obra de David apresentou um evento contingente,
utilizando-se de uma linguagem que entrelaçou distintas tradições: a clássica greco-
romana e a cristã. O corpo de Marat desfalecendo na banheira com um discreto
sorriso no rosto divide em dois a cena pictórica do quadro, em que temos a
distribuição topológica dos elementos, acima (espaço vazio) ou abaixo (espaço
cheio) do seu corpo, o que acaba por criar uma oposição semântica entre o mundo
celeste/divino/imortal (sagrado) versus o mundo humano/terrestre/mortal (profano).
No caso da obra de Vik Muniz, Marat (Sebastião), seu texto visual estabelece
uma relação de intertextualidade que subverte o texto original acima citado criando
assim uma polêmica. A organização do arranjo plástico textual e temático da obra
Marat (Sebastião) se torna mais complexo e contemporâneo. Apesar de
figurativizada com alguns dos elementos representados no cenário do quadro de
David, tais como a pena, a carta, a banheira, no entanto, há diferenças tanto nas
figuras representadas quanto na plasticidade do texto visual Marat (Sebastião). O
personagem principal da cena não é mais o Marat retratado por David, mas uma
imagem fotográfica de Sebastião Carlos dos Santos (figura 57), um “homem
comum”, um líder da cooperativa de catadores de materiais recicláveis do aterro
sanitário de Jardim Gramacho. Um novo líder que entra em cena, não mais aquele
da Revolução Francesa, mais sim aquele que registra uma Revolução Ecológica em
curso. A obra de Vik Muniz faz renascer o espírito revolucionário e ecológico. Uma
verdadeira revolução ecológica no sentido empregado pelo filósofo Félix Guattari em
seu livro As três ecologias.
166
Sebastião Carlos dos Santos encena no aterro sanitário de Jardim Gramacho para obra Marat
(Sebastião). Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e
Vik Muniz.
Félix Guattari, quando fala em ecologia, afirma que estamos tratando das
relações humanas interpessoais e da relação do homem com o mundo. É um tema
atual e que está ligado com o modo de vida humano, individual ou coletivo, em
progressiva deteriorização, ou seja, a relação da subjetividade com a exterioridade
(social, ambiental, cósmica, etc.) está comprometida. Guattari aponta uma solução a
partir de uma revolução política, social e cultural em sua ECOSOFIA, como uma
articulação ética, política e estética, com três registros ecológicos: o meio ambiente,
as relações sociais e a subjetividade humana, ampliando o interesse coletivo para o
conjunto da humanidade. A diferença entre indivíduos é necessária para convivência
do grupo, pois são nas diferenças que poderemos manter uma interlocução com o
pensamento do outro. Assim, o interesse maior é de uma melhor relação do
indivíduo com o meio ambiente e suas relações interpessoais, que os indivíduos se
tornem, ao mesmo tempo, solidários e cada vez mais diferentes.
167
;
Com a aproximação da imagem conseguimos observar melhor os materiais presentes na obras.
Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.
Com uma imagem macro da cena fotográfica conseguimos observar de perto os materiais e objetos
de uso cotidiano descartados que fazem parte da matéria plástica da obra. Fonte: imagens
fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário, textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.
pinta Marat quase em posição extática, mesmo com ainda um último suspiro, parece
viver eternamente. O título Marat (Sebastião) de Vik Muniz, de maneira diferente dos
outros títulos, não é enfaticamente dramatizado, pois, além do nome do líder
conhecido, pôs entre parênteses o nome de alguém ainda desconhecido, cuja vida
comum seria transformada e ganharia visibilidade diante de sua exclusão social.
Na exposição retrospectiva do artista Vik Muniz, realizada no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, em 2009, uma série com sete fotografias intitulada
Retratos do lixo, como resultado do projeto Lixo extraordinário, chama a atenção do
público pela imponência das imagens de grande porte. Ao nos aproximarmos das
imagens fotográficas, elas revelam a natureza dos elementos visuais que compõem
o seu arranjo composicional, assim como, ao nos afastarmos, elas revelam seu
motivo fotográfico por meio da citação de obras já conhecidas na história da arte.
Como o próprio artista Vik Muniz ressalta no documentário Lixo extraordinário:
quando nos aproximamos da obra vemos o material, a sua matéria, quando nos
afastamos da obra vemos a imagem, a sua ideia (figura 59).
A conjugação entre a matéria, composta pelo lixo de Jardim Gramacho, e a
ideia, a imagem da história da arte, gerou formas para a série de obras Retratos do
lixo, que receberam do artista os seguintes títulos: Mulher passando roupa (Ísis),
Marat (Sebastião), Mães e filhos (Suellen), Atlas (Carlão) (figura 60a e 60b), A
carregadora (Irmã), A cigana (Magna) e O semeador (Zumbi). Cada uma dessas
obras faz citação a uma determinada obra da história da arte, promovendo dessa
maneira uma relação de intertextualidade, cujas obras de referência são
respectivamente: Mulher passando roupa (1904) de Picasso, A morte de Marat
(1793) de J. L. David, Madonna com criança (1510) de Giovanni Bellini, Atlas (1646)
de Guercino, estátua egípcia (1981 a 1975 a.C.) anônimo, Albanesa (1872) de
Camille Corot e O semeador (1865) de Jean-François Millet.
170
À esquerda, temos o processo de produção da obra e a direita, o resultado final: Atlas (Carlão), 2009.
Cópia crimogênica digital, 229,90cm x 180,30cm. Fotografia exposta em 2009 no Museu de Arte
Moderna do Rio de janeiro (MAM). Fonte: imagens fotográficas do catálogo: Lixo Extraordinário,
textos de Alexei Bueno e Vik Muniz.
fotografando a cena (o motivo) e projetando-a sobre uma lona posta no chão para
ser o locus de uma assemblage composta com os objetos sobras que, por fim, é
representada através da fotografia digital. A obra de Vik Muniz transita entre a arte
clássica e a arte digital. Como já abordamos anteriormente, a obra Marat (Sebastião)
de Vik Muniz faz uso da “apropriação” do arranjo composicional e dos motivos
representados da pintura Neoclássica de J. L. David Marat em seu último suspiro.
A obra Marat (Sebastião) faz parte da série Retratos do lixo realizados dentro
do projeto Lixo extraordinário. Assim, de modo geral, podemos classificá-la também
como uma intervenção urbana, pois sua realização dependeu de uma intervenção
artística e social no espaço do aterro sanitário de Jardim Gramacho. A intervenção
urbana é um termo que começou a ser utilizado pela arte contemporânea a partir
dos anos de 1960 para designar os movimentos artísticos relacionados às
intervenções visuais das grandes metrópoles urbanas. No início, um movimento
underground que foi ganhando forma com o decorrer dos tempos e se estruturando
e assim particularizando os lugares e reescrevendo as paisagens, como no caso da
obra de Alex Flamming exposta no Metro Sumaré da cidade de São Paulo (figura
61).
173
4.2 Reescrituras de espaços urbanos: nova função e novos usos pela arte
contemporânea
7
Essa tipologia apresentada é uma adaptação de um modelo desenvolvido no Centro de Pesquisas
Sociossemióticas (CPS), com a contribuição da Profª Dra Ana Claudia de Oliveira e da aluna
Tatiana Rovina de Castro. Essa adaptação foi realizada através de um trabalho de pesquisa
Cidade-palimpsesto: reescrituras de espaços urbanos e equipamentos culturais desenvolvido pelo
atelier Território de Cultura composto pela equipe: Anamelia Bueno Buoro PUC-SP:COS/CPS
Doutora; José Almir Valente PUC-SP:COS Doutorando/CPS; Marc Barreto Bogo PUC-SP:COS/CPS
Mestre; Maria Claudia Vidal Barcelos PUC-SP:COS Mestranda/CPS; Mariana Ferraz de
Albuquerque PUC-SP:COS Doutoranda/CPS; Patrícia Bittencourt Rudge; PUC-SP:COS
Mestranda/CPS.
176
adquirido pela família de Chiquitão no século XX, que assim o herdou e se tornou
sua “casa-museu” no início do século XXI.
O casarão colonial está localizado ao lado da Igreja do Pilar. As bandeiras do Brasil colocadas nas
janelas pelo próprio artista no dia do jogo da seleção brasileira de futebol. Fotografia: Almir Valente
Costa e Ramúsyo Brasil, 2010.
177
Placa de tombamento do casarão colonial pelo projeto Museu Aberto - Cidade Viva: “Em 1782 estes
dois sobrados, ‘as casas místicas’, como aparecem em registro de tombo, pertenciam aos herdeiros
de Felizarda Teresa da Assunção. A denominação indica casas germinadas, com comunicação
interna, que serviam de apoio ao funcionamento da sacristia e do consistório da Igreja de Nossa
Senhora do Pilar, na época em que eram propriedades da paróquia”. Fotografia: Almir Valente Costa
e Ramúsyo Brasil, 2010.
A obra Marat (Sebastião) foi totalmente produzida no aterro sanitário de Jardim Gramacho. de Fonte:
Catálogo Lixo Extraordinário
Catadores, urubus e lixo se misturam na paisagem ao fundo com a Baia de Guanabara. Fonte:
Catálogo Lixo Extraordinário.
:
Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho foi fechado em 2012. Fonte:
<http://super.abril.com.br/blogs/ideias-verdes/files/2012/06/Gramacho-22.jpg>.
O aterro de Jardim Gramacho foi fechado em 2012 (figura 67), depois de ter
sido acusado por técnicos ambientais do governo de poluir a Baía de Guanabara e
pela criação da Lei 12.305/10 para fechamento gradativo dos lixões e a instituição
de uma Política Nacional de Resíduos Sólidos, promovendo o reconhecimento e a
capacitação profissional através da inclusão social dos catadores. O aterro acumulou
cerca de 60 milhões de toneladas de lixo durante os 36 anos de funcionamento e,
com o fechamento, o lixo foi todo transferido para o aterro sanitário de Seropédica,
uma central de tratamento de resíduos sólidos. No local do aterro sanitário de Jardim
Gramacho foi instalada uma usina de biogás, cuja produção de gás metano
fornecida para a refinaria da Petrobras de Duque de Caxias fez com que parte do
dinheiro arrecadado seja investido na recuperação do bairro de Jardim Gramacho.
Todos os catadores cadastrados na Associação dos Catadores do Aterro
Metropolitano de Jardim Gramacho (ACAMJC) receberam indenizações no valor de
R$ 14 mil para reestruturarem suas vidas fora do aterro. No entanto, ressaltaríamos
que foi a partir do projeto Lixo Extraordinário, que o aterro Jardim Gramacho obteve
alguma visibilidade na mídia e retorno financeiro para estruturar a sua associação e
pudesse oportunizar mudanças do status quo ou papel social dos catadores, como
veremos mais a frente, mostrando para o mundo que ali tinha vidas extraordinárias.
182
Entrada do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa,
2016.
183
Entrada do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. Fonte: Fotografia de Almir Valente Costa,
2016.
O Circuito Cultural da Colônia (figura 70) possui 19 locais que incluem, além
do mBrac e do Pavilhão 10, o quarto-cela de Bispo do Rosário, o Núcleo Histórico da
Colônia Juliano Moreira, com o aqueduto, a antiga fazenda do Engenho, a Igreja
Nossa Senhora dos Remédios, o antigo refeitório que serviu de senzala na época
em que funcionou o engenho e os 7 pavilhões construídos em 1920 para abrigar os
mais de cinco mil pacientes que tiveram internados na Colônia. Além da estrutura
física dos ambientes que compõem o lugar, se tem também a beleza natural com o
Parque Estadual da Pedra Branca – área de proteção ambiental da Mata Atlântica.
Podemos observar mediante tais considerações acerca da história do lugar
que serviu para produção das obras de Bispo, como se deu os seus procedimentos
de reescritura por adequação. Mantém-se seus espaços/traços originaism as
transformam sua função: primeiro como engenho; depois como colônia; e, por fim,
como museu, que faz parte de um contexto mais abrangente, do Circuito Cultural
185
Colônia, envolvendo arte, história, lazer e saúde. O Museu Bispo do Rosário Arte
Contemporânea é um exemplo do novo uso do velho. Segundo Raquel Fernandes,
a atual diretora geral do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea:
Figura 71 – Fotografia de Sebastião e Vik Muniz no ato de realização do Projeto Lixo extraordinário,
em 2009
Sebastião ao lado de Vik Muniz no aterro de Jardim Gramacho. Fonte: Catálogo do Projeto Lixo
Extraordinário.
Imagem da capa do livro de Sebastião Santos, mais conhecido com Tião, participante do Projeto Lixo
Extraordinário (Documentário) e Retratos do Lixo (Série fotográfica). Fonte:
<https://livrolevesolto.files.wordpress.com/2015/02/10966840_867093323356235_152936386_n.jpg>.
Esquema das tipologias das reescrituras a partir do esquema realizado pelo atelier de semiótica
Centro de Pesquisa Sociossemióticas, PUC/SP. Fonte: elaborado pelo autor.
É preciso opor seu valor atestado ao que, por contraste, aparece como o
valor convencional dos usos em vigência ou dos ritos já estabelecidos: para
os detratores da tradição e os reinventores do sentido, todos esses valores
não passam de velhas manias e superstições, de gestos imemoriais
carentes de conteúdo e que não mais têm razão de ser além de sua força
de inércia aliada a uma espécie de letargia, à apatia, à ausência de senso
crítico e de imaginação, em suma, à alienação que pesa sobre a massa dos
que a eles permanecem fiéis. (LANDOWSKI, 2014, p. 44).
A imagem mostra Bispo do Rosário no interior de seu quarto-cela na Colônia Juliano Moreira
(Taquara, RJ). Bispo veste “a primeira versão do Manto da Apresentação” e manipula outras obras da
sua coleção. Em pesquisa realizada, no Arquivo Público do Estado de São Paulo, descobrimos por
intermédio de outros pesquisadores um acervo de 42 negativos de fotografias (anônimas) tiradas na
Colônia Juliano Moreira, sem datação. Imagem concedida pelo Arquivo Público do Estado de São
Paulo: MISSÃO: Nº 719 -42 negativos 6cm x 6cm; localização física: NT – 0066/0067; diretório
(eletrônico) Nº dos negativos: I
CO – 001 – 000220 – 042.
Esquema 15 – Quadrado semiótico dos regimes de interação de Eric Landowski (2014) e das
interações discursivas de Ana Claudia de Oliveira (2013)
Regime de Interação:
Mediada pela memória/história
Dêixis da Corporeidade
Dêixis da mediação
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
permite fazer uma seleção prévia do que vai ser utilizado nas obras. Desse modo,
então, a coleta se configura como um procedimento que marca o início da
bricolagem realizada pelos artistas com o propósito de reutilização do material
selecionado. A partir desse processo de reutilização, se pode observar um novo
procedimento recorrente entre as obras, que é realizado por meio do
reaproveitamento dos materiais e objetos descartados (3), ou melhor, as
matérias do cotidiano são transformadas em matéria plástica (materialidade) na
configuração das obras. Outro aspecto importante ainda a ser observado diz respeito
ao fazer coletivo das obras (4), em que se tem a participação de outros sujeitos
(adjuvantes) em determinadas etapas do processo de sua produção: no caso das
obras de Bispo e Chiquitão, se têm uma participação indireta dos “colaboradores”,
que são responsáveis pela doação dos materiais e objetos; e no caso da obra de
Vik Muniz se tem uma participação direta e efetiva dos catadores de resíduos
recicláveis do aterro Jardim Gramacho, que são convidados para participarem como
interlocutores no processo de produção da obra. Até o momento, todos esses
procedimentos adotados pelos artistas nas suas referidas obras se concretizam por
meio de uma ação no cotidiano, sendo que tal ação se consolida pelo processo da
bricolagem (5), ou seja, como uma forma de ”tática” artística da enunciação do
sentido na arte contemporânea produzida no Brasil. A ação “tática” artística da
bricolagem se dá inicialmente a partir da “apropriação” dos materiais e objetos de
uso cotidiano, em que os artistas, através de sua “programação-artística”, os
deslocam de seus usos comuns (funções práticas) para adquirem novas funções
estéticas nas obras.
Outra forma de “tática” a ser destacada como parte da “programação-artística”
desses artistas está relacionada à sua ação performática (6). O componente
performático se estabelece de acordo com a intencionalidade específica de cada
artista em dar visibilidade (fazer-ver) e produzir sentido “sentido” (fazer-sentir) em
sua obra. Esse caso pode ser observado com Bispo, quando veste o Manto da
apresentação e manipula outras obras; com Chiquitão, ao receber e conduzir o
público visitante pelo interior do seu casarão colonial e fazer-ver a sua obra; e com
Vik Muniz, quando realiza o registro do documentário Lixo extraordinário, o artista
mostra a sua ação performática em todo o processo de produção da obra.
A partir do exame semiótico do corpus, obtivemos os caminhos (teóricos e
metodológicos) para compreensão do problema estudado. Assim, nos propusemos a
197
investigar: que efeitos de sentido são produzidos por essas obras? Que processos
criativos orientam desde a coleta de objetos simples do cotidiano até a montagem da
plasticidade das obras, com as suas traduções figurativas de mundos? Que mundos
e que narrativas se presentificam nos simulacros? Que procedimentos de
convencimento e de sensibilidade são utilizados? Como se constituem as semioses
intertextuais ou as relações de intertextualidade desses textos visuais? Como se
constitui a estética, na integração entre artista-bricoleur, obra e mundo, na qual o
corpo é movido pela estesia? Como se processam os regimes de interação e, por
meio dos procedimentos, como se produzem os sentidos desses discursos visuais?
Esses questionamentos nos permitiram sistematizar a estrutura de análise
das obras pela visada semiótica. Para uma melhor compreensão do objeto
estudado, estruturamos nossa análise em duas etapas: a primeira etapa consistiu
em analisar as obras no Percurso Gerativo de Sentido (método da semiótica
estrutural), para responder como as matérias/materiais produzem sentido na
construção discursiva estética das obras. Na segunda etapa, nos permitiu realizar
uma análise por meio das relações de intertextualidade, interdiscursividade e
intersemioticidade, das reescrituras realizadas pelas obras, dos regimes de interação
(Landowski) e das interações discursivas (Oliveira), além da apreensão do sentido
na sua dimensão estésica que promove o sentido “sentido”.
Na primeira etapa da análise das obras, propusemos uma estrutura que se
divide em sete etapas interconectadas: (1) apresentação das obras e a descrição
dos elementos fundamentais do plano da expressão, que formam os arranjos de
suas plásticas, com a configuração das linhas, formas, cores, texturas, dos materiais
utilizados para compor sua materialidade e da distribuição desses na topológica. A
partir das descrições e dos modos de como se articulam essas unidades plásticas,
realizou-se a segmentação dos textos visuais, com o exame das dimensões do
plano de expressão das manifestações compostas pelas categorias eidéticas,
cromáticas, matéricas e topológicas, que foram articuladas para compreender como
organizam o sentido das obras; (2) oposição entre temas e figuras no nível
discursivo das obras, em que temos a concretização e o revestimento
(figurativização) de esquemas abstratos (tematização) no plano de conteúdo; (3)
projeções da enunciação no enunciado com os seus dispositivos e mecanismos; (4)
as relações entre enunciador e enunciatário; (5) no nível narrativo das obras, a partir
dos enunciados de estado (relação de junção) e enunciados de fazer (suas
198
espacial da obra não a separa mais do mundo cotidiano (...) uma experiência
estética que vai do mundo ao próprio mundo” (TASSINARI, 2001, p 91).
No decorrer da presente tese, destacamos algumas das produções artísticas
contemporâneas realizadas por artistas que compartilham do mesmo gesto criativo -
uma “apropriação” de materiais e objetos utilitários (novos ou usados) do universo
cotidiano para ressignificá-los em forma de novos arranjos plásticos em suas obras.
Diante desse contexto específico e singular das artes plásticas contemporânea no
Brasil, as obras de arte passam a ser produzidas com materiais/objetos existentes
com outros fins no cotidiano de suas vidas, que os artistas deslocam da função
prática para fazer-ver e fazer-uso em novas funções estéticas. Esquematicamente,
podemos representar da seguinte maneira o ato criador dos artistas analisados
neste trabalho:
SUJEITO-CRIADOR OBJETO-ESTÉTICO
ilimitada de forças e instintos. A vida constitui, assim, o ideal supremo para o autor.
Como afirmou certa vez Scheller, Nietzsche deu à palavra “vida”, a sonoridade do
ouro, pois fundou a “filosofia de vida” (FINK, 1988, p. 09).
O médium por excelência para interpretar tal concepção de vida e os valores
a ela correlatos, é onde Nietzsche localiza a arte: “[...] a arte; só ela tem o poder de
transformar aqueles pensamentos enojados sobre o horror e o absurdo da existência
em representações com as quais é possível viver: são elas o sublime, enquanto
domesticação artística do horrível, e o cômico, enquanto descarga artística da
náusea do absurdo.” (NIETZSCHE, 1992, p. 56). Aqui subjaz a percepção dos
gregos acerca do caráter terrível, inexplicável e perigoso da vida, o que longe de
suscitar uma atitude pessimista, um dizer não à vida, delegam à arte a capacidade
de transformar o mundo, a vida humana.
Por isso, nos estendemos um pouco mais sobre algumas considerações finais
acerca da temática fundamental das relações entre a arte e vida em Nietzsche.
Como exaustivamente dito pelo autor, a arte deve necessariamente favorecer a vida,
pois, para que se possa auferir a superioridade de uma cultura, é necessário que ela
esteja a serviço da renovação cultural. Nietzsche, um crítico implacável da
modernidade, confronta-a com uma forma de vida que culminará crescentemente em
um modo de vida estético. Rejeita a concepção burguesa e mercantilista da arte
compreendida como mero meio de diversão face à dureza do trabalho conceitual.
Entende que, devido às possibilidades transfiguradoras e revolucionárias contidas
na arte, deverá a ciência ficar condicionada à esfera da arte, a qual por sua vez deve
ser inspirada pela vida.
A arte se torna um fenômeno estético na e da vida, uma ação de
reciprocidade, de ajustamento, entre a arte e a vida na cotidianidade. As obras
propõem aproximar dois contextos distintos: o mundo da arte e o mundo da vida.
Nessa aproximação está o alicerce da estética do cotidiano, como uma associação
de bens culturais, estéticos, éticos e sociais que se manifestam artisticamente em
um objeto. Consideramos que essa estética traz, pois, algo além do estético. Ela traz
em oposição a esse, o funcional, o mítico, o simbólico, que Greimas (2002) chama
de um objeto de valor sincrético, incorporando valores de onde emanou. Sobre a
possibilidade de ressemantização dos objetos usurados e do enriquecimento nas
relações intersubjetivas, Greimas aponta para: “[...] no primeiro caso, vê-se uma
201
seja, a matéria bruta transformada no jogo da opacidade que faz ver e, ao mesmo
tempo, ainda guarda o retrato de muitos que vivem dela;
3) Se tomarmos, por exemplo, a obra de Bispo realizada com os objetos de
uso cotidiano que estão no mundo dele, entre eles estão as linhas azuis desfiados
das roupas da colônia e de outros tecidos para produção do Manto e seus bordados.
Em outras obras encontramos: canecas do refeitório, chinelos, etc. Esses objetos
compõem um inventário da vida dele. Como os objetos que ele recolhe no mundo da
colônia faz ver a potência desse material plástico e coloca-o no Manto e em outras
obras, Bispo realiza seu trabalho revivendo o mundo de onde eles viveram, que é,
por conseguinte, revivido no mundo da arte. O mesmo procedimento acontece, como
visto, nas análises das obras de Vik Muniz e de Chiquitão. No entanto, são
realizadas com outras matérias que formam novos formantes plásticos. Assim,
temos em Vik Muniz a figuratividade do opaco; em Bispo, a figuratividade do
desenho bordado; em Chiquitão, a figuratividade da instalação;
4) Todos os artistas fazem escolhas de materiais e de objetos que
concretizam o enunciado figurativizado por essas matérias. No caso de Chiquitão,
com o Barroco e os objetos de ferro; de Vik Muniz, com o lixo e as novas
configurações dos retratos dos catadores; e de Bispo, com o retrato de uma vida que
ele bordou. Existe um semissimbolismo das matérias - em novas figuratividades,
pois elas reenviam a materialidade primeira e a materialidade transformada para,
assim, esses dois reenvios fazerem sentido;
5) O fazer-fazer das matérias de uso cotidiano com fins práticos são levadas
ao fazer-sentir que, por sua vez, implicará novo fins estéticos/simbólicos/míticos: as
obras de Bispo, Chiquitão e Vik Muniz proporcionam ao sujeito a busca pela
aquisição de novos objetos de valor sincréticos (GREIMAS, 2002) nas narrativas da
experiência estética vividas;
6) as operações (seleção) de reuso de materiais e objetos do mundo
possuem uma identificação com uma destinação de uso versus uma diferenciação,
enquanto arranjo plástico (estrutura), como uma matéria plástica. Cada artista traz a
suas as matérias de uso, em que a matéria que é reinventada para servir para novas
realizações e sentido. Desse modo, após a seleção dos materiais e objetos de uso
prático, estes passam por uma triagem (esquema 17), sua singularização, podendo
ser desconstruído, desfuncionalizado, etc. antes de ser matéria plástica nas obras
que, por sua vez, passa por um processo de reconhecimento que será a sua
204
Esquema 17 – Os diferentes tipos de procedimentos da utilização dos materiais e dos objetos de uso
cotidiano nas configurações plásticas das obras e dos seus respectivos reconhecimentos.
IDENTIFICAÇÃO DIFERENCIAÇÃO
SELEÇÃO ESTRUTURAÇÃO
RECONHECIIMENTO SINGULARIZAÇÃO
SANÇÃO TRIAGEM
- O “lençol” desfiado
- Consolidação do objeto artístico para obtenção de
linha para confecção
do Manto e seu
bordado
(desestruturação);
- O lixo passa por
uma triagem para a
sua reutilização
(reaproveitamento);
- Os objetos de ferro
do século XVIII e XIX
garimpados em
ruínas de casarões,
córregos e ruas de
Ouro Preto
Valor Crítico (Refuncionalização).
Valor Lúdico
Adaptação do esquema de quadrado semiótico elaborado por Jean-Marie Floch com tipologias dos
modos de valorização que a propaganda utiliza. Fonte: elaborado pelo autor.
205
Todas essas obras de arte que analisamos na presente tese nos chamaram a
atenção por meio de suas qualidades matéricas, pois estas passam a ser
significantes no processo de produção de sentido dos discursos visuais e mostram a
“força especial” de sua materialidade, que as tornam visíveis enquanto uma
presença corpórea na realidade do mundo cotidiano de onde emanam. As
interações discursivas que as obras inovam está na própria arte – a arte não tem um
mundo restrito de materiais, muito pelo contrário, faz dos materiais e objetos do
mundo, a matéria ou a materialidade da arte.
Os discursos visuais (obras analisadas) estabelecem novos modos de
presença ancorados no sensível, na dimensão estésica, experimentada e vivida
pelos sujeitos da enunciação, do sentido “sentido”, que se faz-ser e sentir em ato.
Desse modo, os processos comunicacionais instalados nas referidas obras montam
as possibilidades de transformação do mundo atual, promovendo encontros
estésicos ressignificantes da cotidianidade e da própria arte brasileira. O mundo,
através dessas obras e de suas estéticas, é sentido como novas aberturas. Os
encontros estésicos atualizam uma axiologia do estado de mundo e do ecossistema
das relações sociais/econômicas e do que “resta” ao homem para existir com
sentido. Em síntese, assim como afirma Greimas: “A imperfeição aparece como um
trampolim que nos projeta da insignificância em direção ao sentido.” (GREIMAS,
2002, p. 91).
As obras de arte, aqui apresentadas, caminham em direção a esse sentido,
rompendo com os caminhos desautomatizados para que o homem dê sentido ao
que lhe circunda e signifique a visualidade, que ele mesmo está imerso e assim
possa modificar a sua vida dessemantizada, como dito, na epígrafe, pela
semioticista Ana Claudia de Oliveira. Em Da imperfeição, nas escapatórias, se
esboça uma estética semiótica postulada por Greimas, acenando para a
possibilidade de uma outra coisa: “a transformação fundamental da relação entre o
sujeito e o objeto, o instantâneo estabelecimento de um novo ‘estado de coisas’.”
(GREIMAS, 2002, p. 73).
Chegamos por fim a uma homologação entre o plano da expressão e o plano
do conteúdo para o conjunto das obras analisadas, que são respectivamente:
continuidade vs. descontinuidade :: ordinário vs. extraordinário. Caso
consigamos proferir uma expressão para assinalar a presença luminosa da obra de
Greimas, Da imperfeição, poderíamos assim designá-la como, Mehr Licht!, que, por
208
sua vez, nos indica também para o que há de mais extraordinário nas obras da
estética do cotidiano com a sua força transformadora da (an)estesia. Assim, como
afirma Oliveira: “Nesse irromper do descontínuo que o faz experimentar
transformações, o sujeito se desenquadra do seu estado estabelecido no contínuo
de sua existência que, entre outras ocorrências, valoriza seu existir no mundo”
(OLIVEIRA, 2010, p. 11). Assim, toda a base dessa transformação - do ordinário ao
extraordinário - está na própria matéria obsoleta reaproveitada. A matéria ordinária
do mundo é transformada em matéria extraordinária pela arte - da prosa dos objetos
cotidianos à poética dos objetos artísticos. Por fim, depreende-se que a matéria da
arte é a matéria do mundo.
209
REFERÊNCIAS
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São Paulo: Martins Fontes, 1995.
CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o novo milênio. Tradução Ivo Barroso. São
Paulo: Cia das Letras, 1990.
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processo. 2007. 155 f. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais) – Universidade de
Brasília, Brasília, 2007.
FABBRINI, Ricardo Nascimento. O espaço de Lygia Clark. São Paulo: Atlas, 1994.
GHYKA, Matila. The geometry of art and life. New York: Dover, 1977.
__________. Relâmpagos – dizer o ver. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
__________. Beleza ainda põe mesa. Folha de São Paulo. São Paulo, 21 jul. 2013.
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MORAIS, Frederico. Panorama das artes plásticas séculos XIX e XX. São Paulo:
Instituto Cultural Itaú, 1989.
STANGOS, Nikos. Conceitos da arte moderna. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor,
1991.
TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. Tradução São Paulo, Cosac & Naify,
2001.
215
APÊNDICES
216
1. Anita Malfatti. A Boba. 1915. Óleo sobre tela, 61 x 50,6 cm. Coleção Museu
de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo.
2. Victor Brecheret. Monumento às Bandeiras. 1920-1956. Escultura em granito,
8 x 7 x 40m. São Paulo – SP, Brasil.
3. Di Cavalcanti. Amigos (Boêmios). 1921. Pastel, 34 x 23 cm. Acervo da
Pinacoteca do Estado de São Paulo.
4. Tarsila do Amaral. O Ovo (Urutu). 1928. Óleo sobre tela, 60,5 x 72,5 cm.
Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM/RJ.
5. Cândido Portinari. São Francisco se despojando das vestes. 1945. Pintura
mural, 750 x 1060 cm. Igreja de São Francisco de Assis, Belo Horizonte – MG,
Brasil.
6. Di Cavalcanti. O grande Carnaval. 1953. Óleo sobre tela, 80,5 x 100 cm.
7. Ferreira Gullar. Natureza Morta. 2010. Colagem, 21 x 28 cm.
8. Flávio de Carvalho. Experiência Nº 3 – New Look. 1956. Intervenção Urbana.
São Paulo – SP, Brasil.
9. Hélio Oiticica. Parangolé P1, Capa 1. 1964. Plástico e tecido. Reprodução
fotográfica autoria desconhecida.
10. Hélio Oiticica. Invenção da cor, Penetrável Magic Square # 5, De Luxe, 1977.
Instalação. Atualmente faz parte da mostra permanente do CACI – Inhotim.
Brumadinho (MG), Brasil.
11. Wesley Duke Lee. A Zona: considerações (retratos de Assis Chateaubriand).
1968. Ambriente/óleo sobre tela e peças móveis em metal e acrílico, 200 x 200 x 200
cm. Coleção Gilberto Chateaubriand – MAM/RJ.
12. Jac Leirner. Fora dos Cem. 1997. Papel moeda, cordão de poliuretano e
acrílico. Coleção Andréa e José Olympio. Reprodução fotográfica autoria
desconhecida.
13. Rosângela Rennó. Projeto Arquivo Universal. 1992-2000. Processo
cromógeno, 76,2 x 61,0 cm. Coleção Pirelli MASP
14. Arthur Bispo do Rosário. Manto da Apresentação. Sem data. Tecido, fio e
corda, 219 x 130 cm. Museu Bispo do Rosário de Arte Contemporânea. Rio de
Janeiro – RJ, Brasil.
15. Olavo Torquato (Bin Lata). Indumentária de lata. Sem data. Latas de metal.
Ceará, Brasil.
16. Nelson Leirner. Matéria e Forma. 2009. Presunto engradado. Registro
fotográfico Edouard Fraipont/Itaú Cultural.
17. Chiquitão. Arqueologia Poética instalação montada entre os anos de 1995 a
2011, no interior de um casarão colonial do século XVIII, na cidade de Ouro Preto,
em Minas Gerias.
18. Cildo Meireles. Babel. 2001. Estrutura metálica e rádios. Reprodução
fotográfica Wilton Montenegro.
19. Nuno Ramos. Sem título. Espelho, vidro, acrílico, folha de ouro, metal,
tecidos, algodão, folhas secas, plásticos, esmalte sintético, óleo de linhaça,
terebintina, parafina, vaselina breu, madeira. 230 x 360 x 200 cm.
20. Vik Muniz. Marat (Sebastião): Pinturas do lixo. 2009. Assemblage (Resíduos
sólidos e terra).
21. Jaime Prades. Ar. 2013. Escapamentos usados e carvão vegetal, Ø 110 cm x
315cm (h). 2013.
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22. Rosângela Rennó. Cartologia. 2000. Álbum de fotografias, mesa estilo império
e fotografias emolduradas.
23. Henrique Oliveira. Transarquitetônica. 2014. Madeira, tijolos, taipa, PVC,
madeira compensada, galhos de árvores e outros materiais, 5 x 18 x 73 m. Museu
de Arte Contemporânea, São Paulo – SP, Brasil.
24. Urban Trash Art – UTA (Rodrigo Machado e Pado). Pimp my carroça. 2013.
Assemblage. São Paulo.