Feminismo Uma Poltica Transformacional Bell Hooks

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MARIA MANUEL BAPTISTA (ORG.

Género e Performance
T E X T O S E S S E N C I A I S 1

TEXTOS DE:

bell hooks
Christine Delphy
Donna Haraway
Gayatri Spivak
Hélène Cixous
Judith Butler
Luce Irigaray
María Lugones
Monique Wittig
Ochy Curiel
Rosi Braidotti
Simone de Beauvoir
MARIA MANUEL BAPTISTA (ORG.)

Género e Performance
T E X T O S E S S E N C I A I S 1

TEXTOS DE:

bell hooks
Christine Delphy
Donna Haraway
Gayatri Spivak
Hélène Cixous
Judith Butler
Luce Irigaray
María Lugones
Monique Wittig
Ochy Curiel
Rosi Braidotti
Simone de Beauvoir
[Ficha Técnica]

Título
Género e Performance — Textos essenciais Vol. I

Organização
Maria Manuel Baptista

Coordenação Editorial
Mafalda Lalanda e Fernanda de Castro

Capa
Grácio Editor

Design gráfico e paginação


Grácio Editor

1ª edição em novembro de 2018

ISBN: 978-989-54215-2-7

© Grácio Editor
Travessa da Vila União,
n.º 16, 7.o drt
3030-217 COIMBRA
Telef.: 239 084 370
e-mail: [email protected]
sítio: www.ruigracio.com

Reservados todos os direitos

Esta obra foi financiada por fundos nacionais através da FCT – Fundação
para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto UID/ELT/04188/2013.
Femininismo:
uma política transformacional
bell hooks

hooks, bell. (1989). “Feminism: a transformational politic” in Talking


Back: Thinking Feminist, Thinking Black. Cambridge: South End Press,
pp.19-27.1

ivemos num mundo em crise — um mundo governado por

V políticas de dominação, em que a crença numa noção de su-


perior e inferior, e a sua ideologia concomitante — de que
o superior deve governar sobre o inferior — afeta as vidas de todas
as pessoas em todos os lugares, sejam pobres ou privilegiadas, al-
fabetizadas ou analfabetas. A sistemática desumanização, a fome
mundial, a devastação ecológica, a contaminação industrial e a
possibilidade de destruição nuclear são realidades que nos lem-
bram diariamente que estamos em crise. Os pensadores feminis-
tas contemporâneos citam frequentemente a política sexual como
a origem desta crise, apontando a insistência na diferença como
fator decisivo para separação e dominação e sugerem que a dife-

1
Tradução do inglês por Fernanda de Castro ([email protected]). Doutoranda
no Programa Doutoral em Estudos Culturais, na Universidade de Aveiro. Bolseira
de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) (ref.
SFRH/BD/124507/2016). Apoio financeiro da FCT no âmbito dos Fundos Nacionais
do MCTES e FSE. Investigadora e colaboradora no Centro de Literaturas e Cultu-
ras Lusófonas e Europeias (CLEPUL), da Universidade de Lisboa, e no Centro de
Línguas, Literaturas e Culturas (CLLC), da Universidade de Aveiro.

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bell hooks

renciação de status entre mulheres e homens é globalmente uma


indicação de que a dominação patriarcal do planeta é a raiz do pro-
blema. Tal suposição fomentou a ideia de que a eliminação da
opressão sexista levaria necessariamente à erradicação de todas
as formas de dominação. É um argumento que levou mulheres
brancas, ocidentais e influentes, a sentir que o movimento femi-
nista deveria ser a agenda política central para as mulheres em
todo o mundo. Ideologicamente, pensar nesta direção permite que
as mulheres ocidentais, especialmente as brancas privilegiadas,
sugiram que o racismo e a exploração de classe são apenas fruto
do sistema familiar: o patriarcado. No movimento feminista no
Ocidente, esta reflexão levou à suposição de que resistir à domi-
nação patriarcal é uma ação feminista com maior legitimidade do
que resistir ao racismo e a outras formas de dominação. Tal pen-
samento prevalece apesar das críticas radicais feitas por mulheres
negras e outras mulheres de cor que questionam essa proposição.
Especular que uma divisão baseada na oposição entre homens e
mulheres existia nas primeiras comunidades humanas é impor ao
passado, a estes grupos não-brancos, uma visão do mundo que se
ajusta perfeitamente aos paradigmas feministas contemporâneos
que apontam o homem como o inimigo e a mulher a vítima.
Claramente, a diferenciação entre forte e fraco, poderoso e im-
potente, tem sido um aspecto central na definição de género a nível
global, acarretando inerentemente a suposição de que os homens
devem ter maior autoridade do que as mulheres e devem, nesse
sentido, governar sobre elas. Por mais significativo e importante
que seja este facto, não deve obscurecer a realidade de que as mu-
lheres podem e de facto participam na política de dominação, tanto
como perpetradoras quanto como vítimas — que dominamos, que
somos dominados. Se o foco na dominação patriarcal mascara esta
realidade ou se torna o meio pelo qual as mulheres desviam a
atenção das condições e circunstâncias reais das nossas vidas,
então as mulheres cooperam na supressão e na promoção de uma
falsa consciência, inibindo a nossa capacidade de assumir a res-
ponsabilidade de nos transformarmos a nós mesmos e à sociedade.
Pensando especulativamente sobre o primitivo arranjo social
humano, designadamente sobre mulheres e homens que lutam

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para sobreviver em pequenas comunidades, é provável que o re-


lacionamento pais-filhos, com a sua estrutura real e impositiva
de sobrevivência e dependência, forte e fraca, poderosa e impo-
tente, tenha sido um local para a construção de um paradigma de
dominação. Embora esta circunstância de dependência não seja
necessariamente aquela que leva à dominação, ela presta-se à en-
cenação de um drama social em que a dominação poderia facil-
mente ocorrer como um meio de exercer e manter o controlo. Esta
especulação não coloca as mulheres fora da prática da dominação,
no papel exclusivo da vítima. As mulheres são igualmente consi-
deradas como agentes de dominação, como potenciais teóricas, e
criadoras de um paradigma relativamente às relações sociais em
que esses grupos de indivíduos designados como “fortes” exercem
poder, benévolo e coercivo, sobre aqueles que são designados como
“fracos”.
Enfatizar os paradigmas de dominação que convocam a aten-
ção para a capacidade da mulher dominar é uma maneira de des-
construir e desafiar a noção simplista de que o homem é o inimigo,
a mulher a vítima; a noção de que os homens sempre foram os
opressores. Tal pensamento permite-nos examinar o nosso papel
como mulheres na perpetuação e manutenção de sistemas de do-
minação. Para entender a dominação, devemos entender que a
nossa capacidade como mulheres e homens de sermos dominados
ou dominadores é um ponto de conexão, de comunalidade. Em-
bora eu fale da experiência particular de viver como uma mulher
negra nos Estados Unidos, uma sociedade capitalista, patriarcal
e de supremacia branca, onde um pequeno número de homens
brancos (e “homens brancos” honorários) constituem grupos do-
minantes. Eu entendo que em muitos lugares do mundo, oprimi-
dos e opressores partilham a mesma cor. Eu entendo que aqui
mesmo nesta sala, oprimidos e opressores partilham o mesmo gé-
nero. No momento em que falo, um homem que é vitimizado, fe-
rido, magoado pelo racismo e pela exploração de classe, domina,
ativamente, uma mulher na sua vida — que, enquanto eu falo,
mulheres que são exploradas, vitimizadas, dominam crianças. É
necessário que nós nos lembremos, enquanto pensamos critica-
mente sobre dominação, que todos nós temos a capacidade de agir
sob diversas maneiras que oprimem, dominam, ferem (seja esse

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bell hooks

poder institucionalizado ou não). É necessário lembrar que, em


primeiro lugar, devemos resistir ao potencial opressor — devemos
resgatar a potencial vítima — cuja existência é inerente à domi-
nação, caso contrário, não podemos esperar pelo fim da dominação
rumo à libertação.
Este conhecimento parece especialmente importante neste mo-
mento histórico em que mulheres negras e outras mulheres de cor
têm trabalhado para fomentar a consciencialização das formas
pelas quais o racismo empodera as mulheres brancas a agir como
exploradoras e opressoras. Cada vez mais este facto é considerado
uma razão pela qual não devemos apoiar a luta feminista, embora
o sexismo e a opressão sexista sejam problemas reais nas nossas
vidas como mulheres negras (ver, por exemplo, Black Women, Fe-
minism, Black Liberation: Which Way?, de Vivian Gordon). Torna-
se necessário que falemos continuamente sobre as convicções que
permeiam a nossa defesa na luta feminista. Chamando a atenção
para os sistemas articulados com a dominação — sexo, raça e classe
— as mulheres negras e muitos outros grupos de mulheres reco-
nhecem a diversidade e a complexidade da experiência feminina,
da nossa relação com o poder e a dominação. A intenção não é dis-
suadir as pessoas de cor de se envolverem no movimento feminista.
A luta feminista para acabar com a dominação patriarcal deve ser
de uma importância primordial para mulheres e homens a nível
global, não porque seja a base de todas as outras estruturas opres-
sivas, mas porque é essa a forma de dominação que mais provavel-
mente encontraremos de maneira contínua na vida quotidiana.
Ao contrário de outras formas de dominação, o sexismo molda
e determina diretamente as relações de poder nas nossas vidas
privadas, em espaços sociais familiares, no contexto mais íntimo
— o lar — e na esfera íntima das relações — a família. Normal-
mente, é no cerne da família que testemunhamos a dominação
coerciva e aprendemos a aceitá-la, seja a dominação dos pais
sobre o filho, seja do sexo masculino sobre o feminino. Embora as
relações familiares possam ser, e na maioria das vezes são, per-
meadas pela aceitação de uma política de dominação, elas são si-
multaneamente relações de cuidado e conexão. É essa
convergência de dois impulsos contraditórios — a necessidade

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concomitante de promover e inibir o crescimento — que fornece


um cenário prático para a crítica, resistência e transformação fe-
ministas.
Crescendo numa família negra, operária e de domínio pater-
nal, experimentei a autoridade masculina, adulta e coerciva,
prontamente ameaçadora, mais propensa a causar dor imediata
do que a opressão racista ou a exploração de classe. Era igual-
mente claro que experimentar a exploração e a opressão no lar
resultava numa maior impotência ao encontrar forças dominan-
tes fora de casa. Isto é verdade para muitas pessoas. Se somos in-
capazes de resistir e acabar com a dominação nas relações onde
existe cuidado, parece totalmente inimaginável que possamos re-
sistir e terminar com o domínio noutras relações de poder insti-
tucionalizadas. Se não conseguimos convencer as mães e/ou pais
que se preocupam em não nos humilhar e degradar, como pode-
mos imaginar convencer ou resistir a um empregador, amante ou
estranho que sistematicamente humilha e degrada?
O esforço feminista para acabar com a dominação patriarcal
deve ser uma preocupação primordial mais precisamente porque
insiste na erradicação da exploração e da opressão no contexto fa-
miliar e em todos os outros relacionamentos íntimos. É esse mo-
vimento político que mais radicalmente se dirige à pessoa — o
pessoal — citando a necessidade de transformação do eu, dos re-
lacionamentos, para que possamos estar mais aptos a agir de ma-
neira revolucionária, desafiando e resistindo à dominação,
transformando o mundo exterior ao eu. Estrategicamente, o mo-
vimento feminista deveria ser um componente central de todas as
outras lutas de libertação, porque desafia cada um de nós a trans-
formar a nós próprios, o nosso compromisso pessoal (seja como ví-
timas ou perpetradores ou ambos) num sistema de dominação.
O feminismo, como luta de libertação, deve existir à parte e
como parte de uma luta maior para erradicar a dominação em
todas as suas formas. Devemos entender que a dominação pa-
triarcal partilha uma base ideológica com o racismo e outras for-
mas de opressão grupal, que não há esperança de que possa ser
erradicada enquanto esses sistemas permanecerem intactos. Este
conhecimento deve consistentemente permear a direção da teoria

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bell hooks

e prática feminista. Infelizmente, o racismo e o elitismo de classe


entre as mulheres levou frequentemente à supressão e distorção
dessa articulação, pelo que agora é necessário que os pensadores
feministas critiquem e revejam muita teoria feminista e a direção
do próprio movimento. Este esforço de revisão talvez seja mais
evidente no atual reconhecimento generalizado de que o sexismo,
o racismo e a exploração de classe constituem sistemas articula-
dos de dominação — que sexo, raça e classe, e não apenas o sexo,
determinam a natureza da identidade, do status e da identidade
e circunstância da mulher, o grau em que ela será ou não domi-
nada, até ao ponto em que ela terá o poder de dominar.
Embora o reconhecimento da natureza complexa do status da
mulher (que tem sido mais interiorizado na consciência de todos
por mulheres radicais de cor) constitua uma melhoria significa-
tiva, é apenas um ponto de partida. Este contexto fornece um qua-
dro de referência que deve servir como base para alterar e rever
completamente a teoria e a prática feministas. Desafia e convoca-
nos a repensar as suposições populares sobre a natureza do femi-
nismo que tiveram o impacto mais profundo sobre a grande
maioria das mulheres, designadamente na consciência de massa.
Coloca radicalmente em causa a noção de uma experiência femi-
nina fundamentalmente comum que tem sido considerada como
o pré-requisito para a nossa união, para a unidade política. O re-
conhecimento da interconexão entre sexo, raça e classe destaca a
diversidade de experiências, obrigando à redefinição dos termos
para a unidade. Se as mulheres não partilham a “opressão
comum”, o que pode então servir como base para nossa união?
Ao contrário de muitos camaradas feministas, eu acredito que
mulheres e homens devem partilhar um entendimento comum —
um conhecimento básico sobre o que é o feminismo — se é para
ser um poderoso movimento político baseado nas massas. Em Fe-
minist Theory: from margin to center, sugiro que definir o femi-
nismo de forma ampla como “um movimento para acabar com o
sexismo e a opressão sexista” permitir-nos-ia ter um objetivo po-
lítico comum. Teríamos então uma base sobre a qual construir a
solidariedade. Múltiplas e contraditórias definições de feminismo
criam confusão e debilitam o esforço para construir o movimento

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FEMININISMO: UMA POLÍTICA TRANSFORMACIONAL

feminista que se destine a todos. Partilhar um objetivo comum


não implica que mulheres e homens não tenham perspetivas ra-
dicalmente divergentes sobre como esse objetivo pode ser alcan-
çado. Porque cada indivíduo inicia o processo de compromisso na
luta feminista a um nível único de consciencialização, diferenças
muito reais em experiência, perspetiva e conhecimento tornam o
desenvolvimento de estratégias variadas para participação e
transformação numa agenda necessária.
Pensadores feministas comprometidos na revisão radical dos
princípios centrais do pensamento feminista devem enfatizar con-
tinuamente a importância do sexo, raça e classe como fatores que,
juntos, determinam a construção social da feminilidade, como foi
profundamente enraizada na consciência de muitas mulheres ati-
vas no movimento feminista de que o género é o único fator que
determina o destino. No entanto, o trabalho de educação para a
consciência crítica (geralmente chamado de consciencialização)
não pode terminar aí. No passado, muita consciencialização femi-
nista concentrou-se em identificar as maneiras específicas pelas
quais os homens oprimem e exploram as mulheres. Fazer uso do
paradigma do sexo, raça e classe significa que o foco não tem ori-
gem nos homens e no que eles fazem às mulheres, mas sim com
as mulheres que trabalham para identificar individual e coleti-
vamente o caráter específico de nossa identidade social.
Imagine-se um grupo de mulheres de diversas origens
unindo-se para falar sobre feminismo. Primeiro, concentram-se
em elaborar o seu status em termos de sexo, raça e classe, utili-
zando isso como ponto de referência a partir do qual começam a
discutir o patriarcado ou as suas relações particulares com ho-
mens individuais. Dentro do antigo quadro de referência, uma
discussão pode consistir apenas em falar sobre as suas experiên-
cias como vítimas em relação aos opressores masculinos. Duas
mulheres — uma pobre e outra muito rica — podem descrever o
processo pelo qual sofreram abusos físicos por parte de parceiros
do sexo masculino e encontrar certas semelhanças que podem ser-
vir de base para o vínculo. No entanto, se estas mesmas duas mu-
lheres se envolvessem numa discussão de classes, não apenas a
construção e a expressão social da feminilidade difeririam, como

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bell hooks

também as suas ideias sobre como confrontar e alterar as suas


circunstâncias. Ampliar a discussão para incluir uma análise de
raça e classe exporia muitas diferenças adicionais mesmo quando
surgissem pontos em comum.
Claramente, o processo de vinculação seria mais complexo,
mas essa discussão mais ampla poderia permitir a partilha de
perspetivas e estratégias de mudança que enriqueceria em vez de
diminuir a nossa compreensão de género. Embora as feministas
tenham manifestado interesse relativamente à ideia de diversi-
dade, apenas o fazem verbalmente, sem atos concretos. Não de-
senvolvemos estratégias de comunicação e inclusão que permitam
o sucesso desta visão feminista.
Pequenos grupos não constituem mais o lugar central para a
consciencialização feminista. A maior parte da educação feminista
para a consciência crítica ocorre em aulas de Estudos da Mulher
ou em conferências que se concentram no género. Os livros são
uma fonte primária de educação, o que significa que as pessoas
que não leem não têm acesso. A separação existente entre a forma
popular e informal de partilha do pensamento feminista, ‘à mesa’,
e a esfera onde grande parte desse pensamento é gerado, a aca-
demia, enfraquece o movimento feminista. Seria uma contribui-
ção adicional ao movimento feminista se o novo pensamento
feminista pudesse ser partilhado novamente em contextos de pe-
quenos grupos, integrando a análise crítica com a discussão da
experiência pessoal. Seria útil promover novamente um cenário
de pequenos grupos, como uma arena da educação para a cons-
ciência crítica, para que mulheres e homens pudessem se reunir
em bairros e comunidades para discutir preocupações feministas.
Pequenos grupos continuam a constituir um lugar importante
de educação para a consciência crítica por várias razões. Um as-
pecto especialmente importante da configuração de pequenos gru-
pos é a ênfase na comunicação do pensamento e teoria feministas,
de uma maneira que pode ser facilmente compreendida. Em pe-
quenos grupos, os indivíduos não precisam de ser igualmente le-
trados ou alfabetizados, porque a informação é partilhada
principalmente através da conversação, no diálogo que é neces-
sariamente uma expressão libertadora. (A alfabetização deve ser

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FEMININISMO: UMA POLÍTICA TRANSFORMACIONAL

uma meta para as feministas, mesmo que se assegure que ela não
se torne numa exigência para a participação na educação femi-
nista.) Reformar pequenos grupos subverteria a apropriação do
pensamento feminista por um grupo seleto de mulheres e homens
académicos, geralmente brancos e de classes privilegiadas.
Pequenos grupos de pessoas unindo-se para se envolverem na
discussão feminista, na luta dialética, criam um espaço onde o
“pessoal é político” como ponto de partida para a educação da
consciência crítica. Esta perspetiva pode ser ampliada para in-
cluir a politização do eu que se concentra na compreensão de como
a articulação do sexo, da raça e classe determinam o nosso per-
curso individual e a nossa experiência coletiva. Seria crucial para
o pensamento feminista se muitos pensadores feministas conhe-
cidos participassem em pequenos grupos, reexaminando critica-
mente as formas pelas quais as suas obras poderiam ser alteradas
pela incorporação de perspetivas mais amplas. Todos os esforços
de autotransformação desafiam-nos a envolvermos um autoe-
xame e reflexão contínuos e críticos sobre a prática feminista,
sobre como vivemos no mundo. Este compromisso individual,
quando associado ao envolvimento na discussão coletiva, fornece
um espaço para comentários críticos que fortalecem os nossos es-
forços para mudar e renovar-nos. É neste compromisso para com
os princípios feministas, nas nossas palavras e ações, que está a
esperança da revolução feminista.
Trabalhar coletivamente para confrontar a diferença, expan-
dir a nossa consciência relativamente ao sexo, raça e classe como
sistemas interligados de dominação, as formas como reforçamos
e perpetuamos essas estruturas, é o contexto no qual aprendemos
o verdadeiro significado da solidariedade. É este trabalho que
deve ser a base do movimento feminista. Sem isso, não podemos
resistir efetivamente à dominação patriarcal; sem isso, permane-
cemos distantes e alienados um do outro. O medo do confronto do-
loroso muitas vezes leva mulheres e homens ativos no movimento
feminista a evitar um encontro crítico rigoroso, no entanto, se não
pudermos envolver-nos dialeticamente de uma maneira compro-
metida, rigorosa e humanizadora, não podemos almejar mudar o
mundo. A verdadeira politização — alcançar a consciência crítica

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bell hooks

— é um processo difícil, de “tentativas”, que exige que abandone-


mos os modos de pensar e de ser, que mudemos os nossos para-
digmas, que nos abramos ao desconhecido, ao não familiar.
Submetendo-nos a este processo, aprendemos o que significa lutar
e, neste esforço, experimentamos a dignidade e a integridade do
ser que surge com a mudança revolucionária. Se não mudarmos
a nossa consciência, não podemos mudar as nossas ações ou exigir
mudanças aos outros.
O nosso compromisso renovado com um processo rigoroso de
educação para a consciência crítica determinará a forma e a dire-
ção do futuro movimento feminista. Até que novas perspetivas
sejam criadas, não podemos ser símbolos vivos do poder do pen-
samento feminista. Dada a posição privilegiada de muitos dos
principais pensadores feministas, tanto em termos de status,
classe e raça, é mais difícil hoje convencer as mulheres da prima-
zia deste processo de politização. Cada vez mais parecemos for-
mar grupos de interesse seletos, compostos de indivíduos que
partilham perspetivas semelhantes. Isto limita a nossa capaci-
dade de participar em discussões críticas. É difícil envolver as
mulheres em novos processos de politização feminista, porque
muitos de nós pensamos que identificar os homens como inimigos,
resistir à dominação masculina, obter igual acesso ao poder e aos
privilégios é o fim do movimento feminista. Não só não é o fim,
como nem sequer consiste no lugar onde queremos que o movi-
mento feminista revitalizado comece. Queremos começar como
mulheres que falam seriamente a nós próprias, não apenas em
relação aos homens, mas em relação a toda uma estrutura de do-
minação da qual o patriarcado é uma parte. Embora a luta para
erradicar o sexismo e a opressão sexista seja e deva ser o principal
impulso do movimento feminista, para nos prepararmos politica-
mente para esse esforço, precisamos, primeiramente, aprender a
ser solidários, a lutar uns com os outros.
Somente quando confrontarmos as realidades do sexo, da raça
e classe, as formas como eles nos dividem, diferenciam, opõem e
laboram para reconciliar e resolver estas questões, seremos ca-
pazes de participar da revolução feminista e na transformação do
mundo. O feminismo, como Charlotte Bunch enfatiza repetidas

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FEMININISMO: UMA POLÍTICA TRANSFORMACIONAL

vezes em Passionate Politics, é uma política transformacional,


uma luta contra a dominação, em que o esforço passa por nos mu-
darmos a nós mesmos, bem como às estruturas. Falando sobre a
luta para confrontar a diferença, Bunch afirma:

Um ponto crucial do processo é entender que a realidade não


parece a mesma da perspetiva de pessoas diferentes. Não é de
surpreender que uma das formas pelas quais as feministas en-
tenderam as diferenças foi através do amor de uma pessoa de
outra cultura ou raça. É necessário persistência e motivação
— que o amor geralmente gera — para ir além das suposições
etnocêntricas e realmente aprender sobre outras perspetivas.
Neste processo, e ao mesmo tempo em que procuramos elimi-
nar a opressão, também descobrimos novas possibilidades e
perceções que surgem da experiência e sobrevivência de outros
povos.

Incorporado no compromisso com a revolução feminista está


o desafio de amar. O amor pode ser e é uma importante fonte de
empoderamento quando lutamos para enfrentar questões de sexo,
raça e classe. Trabalhando conjuntamente para identificar e en-
frentar as nossas diferenças — para enfrentar as formas pelas
quais dominamos e somos dominados — para mudar nossas
ações, precisamos de uma força mediadora que nos possa susten-
tar para que não sejamos quebrados neste processo, para que não
nos desesperemos.
São poucos os trabalhos feministas centrados em documentar
e partilhar os meios pelos quais os indivíduos confrontam as di-
ferenças de maneira construtiva e bem-sucedida. As mulheres e
os homens precisam de saber o que está do outro lado da dor ex-
perimentada na politização. Precisamos de relatos detalhados das
formas pelas quais as nossas vidas são completas e mais ricas à
medida que mudamos e crescemos politicamente, conforme
aprendemos a viver cada momento como feministas comprometi-
das, como camaradas que trabalham para acabar com a domina-
ção. Ao reconceitualizar e reformular estratégias para o futuro
movimento feminista, necessitamos de nos concentrar na politi-
zação do amor, não apenas no contexto da vitimização em relacio-
namentos íntimos, mas também na discussão crítica onde o amor
possa ser entendido como uma força poderosa que desafia e re-

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bell hooks

siste à dominação. Enquanto trabalhamos para sermos amorosos,


para criar uma cultura que celebra a vida, que torna o amor pos-
sível, movemo-nos contra a desumanização, contra a dominação.
Na Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire evoca este poder do
amor, declarando:

Cada vez nos convencemos mais da necessidade de que os ver-


dadeiros revolucionários reconheçam a revolução, porque é um
ato criador e libertador, um ato de amor. Para nós a revolução,
que não se faz sem teoria da revolução, portanto sem ciência,
não tem nesta uma inconciliação com o amor (...) Não é por
causa da deterioração a que se submete a palavra amor no
mundo capitalista que a revolução irá deixar de ser amorosa,
nem os revolucionários fazer silêncio do seu caráter biófilo.

Esse aspecto da revolução feminista que convoca as mulheres


a amar a feminilidade, que apela aos homens a resistir a conceitos
desumanizadores de masculinidade, é uma parte essencial da
nossa luta. É o processo pelo qual passamos de nos ver como ob-
jetos para agir como sujeitos. Quando mulheres e homens enten-
dem que trabalhar para erradicar a dominação patriarcal é uma
luta enraizada no anseio de criar um mundo onde todos possam
viver plena e livremente, então sabemos que o nosso trabalho é
um gesto de amor. Vamos basear-nos nesse amor para aumentar
a nossa consciência, aprofundar a nossa compaixão, intensificar
a nossa coragem e fortalecer o nosso compromisso.

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