Em Terra Alheia Pisa No Chao Devagar
Em Terra Alheia Pisa No Chao Devagar
Em Terra Alheia Pisa No Chao Devagar
Resumo:
Este trabalho tem como objetivo, a partir de algumas questões em torno do diagnóstico na
infância, sua necessidade, importância e impasses, discutir a tensão entre a singularidade da
clínica psicanalítica e os universais próprio a um saber que se pretende universal.
Clarice Lispector
1
Psicanalista membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e Sócia fundadora do Centro de Pesquisa
em Psicanálise e Linguagem - CPPL.
2
Psicanalista, sócio do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem – CPPL. Mestre em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e membro fundador do Laboratório
de Psicopathologia Fundamental e Psicanálise da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP.
3
Lispector, Clarice. A paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.
1
para nós um leque de infinitas possibilidades de existência.Tudo isto nos
provoca desconforto, desassossego e, amiúde, o sentimento de desamparo.
Esta demanda crescente, tem sido então para nós um desafio e uma
oportunidade, pois nos tem obrigado a pensar nas razões desta insistente
demanda, as conseqüências do que temos a dizer sobre esta criança e a
posição ética em que nos encontramos e na qual apoiamos nossa clínica.
2
felicidade contínua, corre o risco de entrar para o rol de defeitos que devem
ser, de preferência, sumariamente eliminados.
3
singular, muito mais do que há de comum neste indivíduo e sua família, que
passamos a tomar em consideração e a remarcarmos, não só para os pais,
como principalmente, para nós mesmos.
Mas é preciso ressaltar que existe aqui uma mudança significativa nesta
posição em relação ao diagnóstico. Não se trata mais de não responder à
demanda de diagnóstico para não sair da posição de analistas, ou então para
evitar os possíveis efeitos desta sentença para as famílias, enquanto não
estabelecessem laços transferenciais susignificativos conosco, como
habitualmente se fazia. Trata-se de colocar para nós em questão, o próprio
conceito de autismo, apoiando as contundentes e corajosas reflexões que Ana
Elizabeth Cavalcantti e Paulina Rocha4 sustentam em seu mais recente livro.
4
Cavalcanti, Ana Elizabeth et Rocha, Paulina Scmidtbauer. Autismo. São Paulo: Editora Casa do
Psicólogo, 2001.
4
Para Octávio Souza5 “esta é, sem dúvida uma tomada de posição radical em
relação à tradição psicanalítica, que se de um lado tem operado uma
relativização da distinção entre o normal e o patológico, por outro, nunca
abandonou a consideração da capacidade normativa do funcionamento
psíquico, assim como a necessidade de pensar a tipologia dos fracassos desta
normatividade”.
Nos últimos oito anos, temos recebido no CPPL crianças cada vez mais
jovens para avaliação e tratamento. Mais recentemente, temos tido
oportunidade de observar crianças com menos de 30 meses, numa fase bem
anterior ao que estávamos habituados7.
5
Souza, Octávio. Texto mimeo, cópia cedida pelo autor.
6
Winnicott, Donald Woods. “Autismo” in: Pensando sobre crianças.Porto Alegre: Editora Artes
Médicas, 1997.
7
Oliveira, Ana Maria Rocha de. Sobre o processo diagnóstico na clínica psicanalítica com crianças.
Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico de |Pernambuco. Recife, outubro de 1996.
8
Kanner, Leo. “Distúrbios do contato afetivo” in Rocha, Paulina S. (Org) Autismos. São Paulo: Editora
Escuta, 1997.
5
Temos então, encontrado crianças cada vez mais jovens, às voltas com
um diagnóstico, que prevê um futuro invariavelmente sombrio, que soa, na
maioria das vezes, como a maldição da fada má, no berço da bela adormecida,
traçando-lhe um destino do qual não poderá fugir. “Uma verdadeira setença de
morte”, como nos disse uma mãe, ao ouvir de um psicanalista que seu filho de
tres anos, jamais falaria, criaria laços afetivos e os reconheceria enquanto pais.
Deveria inclusive ser retirdo da escola, (onde estava muito bem adaptado), pois
estariam criando expectativas em relação a esta criança que não poderiam ser
correspondidas. Não é de se estranhar que esses pais, tivessem chorado esse
filho por dias seguidos, como se ele tivesse morrido, como nos relataram.
Não só para os pais e a criança tudo isto está posto, mas o que se
coloca para todos aqueles que de uma forma ou de outra, lidam com estas
crianças, quando se escuta de uma colega psicanalista, se referir em uma
comunicação em público à uma criança autista como “sua majestade o nada”?
6
Nestes tempos em que nada mais nos predestina, nem nosso sexo
biológico, nem a cor de nossa pele, nem nossa nacioanlidade e sobrenome, o
que somos e seremos cabe a nós construirmos no interjogo com a alteridade.
Os universais que nos guiavam, estão relativizados. A referência a uma
transcendência já não é absoluta e inquestionável. Neste cenário, as
identidades já não são fixas e imutáveis, mas abertas, contingentes e plurais.
Podemos afirmar sem exagero, que neste mundo há potencialmente, lugar
para todos, em suas particularidades e diferenças.
9
Kehl, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002.
10
Costa, Jurandir Freire. Não mais, não ainda. Cópia retirada da internet. [email protected]
11
Roudinesco, Elizabeth. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1999.
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que é radicalmente diferente, na qual pudesse se reconhecer, dando-lhe um
sentimento de pertencimento.
Isto nos faz lembrar de um garoto que nos foi trazido aos 30 meses de
idade. Apresentava uma gama significativa de sinais considerados autísticos.
No entanto, o que mais chamou nossa atenção foi sua surpreendente
capacidade de comunicação através do olhar, durante as situações que lhe
interessavam. A intensidade do seu olhar nestes momentos, contrastava com
todas as suas manifestações ditas autísticas, fato este inclusive reconhecido
pelos pais.
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Esta etiqueta psicopatológica foi prontamente aceita por este casal, que
antes tinha que dar conta do terrível incômodo colocado por um filho que não
correspondia ao habitual, mas que agora, de forma apaziguada, passaram a se
relacionar com um filho portador de uma síndrome, com um destino previsível,
apesar de sombrio. Para esta criança fechou-se qualquer outra possibilidade
de existência, de subjetivação, a que não seja a de corresponder a um rol
previamente definido de comportamentos e atitudes próprias desta síndrome.
Mesmo assim, foi levado a São Paulo, por duas vezes durante o tempo
em que permaneceu conosco (um ano e meio, mais ou menos), para ser
avaliado por uma renomada equipe de especialistas, que após ostensivos
exames, chegaram à conclusão que era inegável sua evolução, que portanto,
não se tratava de um autismo, mas lhe deram o diagnóstico de afasia.
Desaconselharam o tratamento psicanalítico e prescreveram-lhe uma
terapêutica comportamental.
9
Como até então a criança continuava sobre nossos cuidados, entramos
em contato com esta equipe para indagar sobre este inusitado diagnóstico de
afasia. Qual não foi o nosso espanto quando eles nos responderam ter sido
essa a melhor solução encontrada por eles, para não mandar esta família de
volta pra casa com as mãos vazias, já que haviam descartado para o garoto, o
diagnóstico de autismo.
12
Calligaris, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Editora Ática, 1996.
10
Mobilizados por tudo isto, passamos a assumir a posição de questionar
algumas certezas estabelelcidas pelas teorias, para construirmos, junto com as
famílias, outros entendimentos possíveis para o vivido com seu filho, criando
assim, a condição de possibilidade para possíveis efeitos de subjetivação como
veremos no caso a seguir.
11
Acreditamos que este percurso tem sido possível devido a sustentação
de um espaço de escuta mais livre de algumas crenças teóricas já
naturalizadas, tomadas como verdades inequívocas, que facilmente tendem a
se transformar em dogmas.
13
Bulfinch, Thomas. O livro de ouro da mitologia. São Paulo: Ediouro, 1998.
12