Em Terra Alheia Pisa No Chao Devagar

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Estados Gerais da Psicanálise: Segundo Encontro Mundial, Rio de Janeiro 2003

Em terra alheia…Pisa no chão devagar!


Ana Maria Rocha de Oliveira1
Antônio Ricardo da Silva 2

Resumo:
Este trabalho tem como objetivo, a partir de algumas questões em torno do diagnóstico na
infância, sua necessidade, importância e impasses, discutir a tensão entre a singularidade da
clínica psicanalítica e os universais próprio a um saber que se pretende universal.

Perdi alguma coisa que me era essencial, e que não me é


mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido
uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar,
mas que fazia de mim um tripé estável. [...] sei que somente
com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência da
terceira me faz falta e me assusta [...] Sei que precisarei tomar
cuidado para não usar sub-repticiamente uma nova terceira
perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna
protetora chamar de “uma verdade”.3

Clarice Lispector

Vivemos um tempo veloz, onde não temos mais garantias. Um tempo


marcado por uma permanente e laboriosa redescrição do que somos e do
mundo em que vivemos. Em compensação, ganhamos em liberdade, abriu-se

1
Psicanalista membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco e Sócia fundadora do Centro de Pesquisa
em Psicanálise e Linguagem - CPPL.
2
Psicanalista, sócio do Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem – CPPL. Mestre em Psicologia
Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP e membro fundador do Laboratório
de Psicopathologia Fundamental e Psicanálise da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP.
3
Lispector, Clarice. A paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998.

1
para nós um leque de infinitas possibilidades de existência.Tudo isto nos
provoca desconforto, desassossego e, amiúde, o sentimento de desamparo.

Neste momento de intensa desconstrução de verdades há muito


estabelecidas, também na clínica somos lançados de forma intermitente no
instável, no imprevisível, na solidão de experiências distintas e particulares,
cuja saída, ou pelo menos uma delas, é redescrever e recontar o que
encontramos na interlocução com os pares e, neste intercâmbio, avançar nas
questões, muito mais que nas respostas. É com esse intuito que trazemos hoje
algumas considerações acerca de nossa experiência com o diagnóstico das
crianças autistas, suas implicaçõs éticas e seus desdobramentos, para nós,
para as crianças e suas famílias.

Essa preocupação adveio do fato de termos sido constantemente


procurados por pais, que nos trazem seus filhos para avaliação diagnóstica,
solicitada muitas vezes pelas escolas, algumas vezes pelos pediatras,
raramente pelos neurologistas, mas principalmente por iniciativa própria desses
pais, ou de outros familiares.

Além disso, temos encontrado, durante o processo psicanalítico das


crianças, uma insistente demanda, por parte dos pais, por um diagnóstico, aqui
entendido por uma palavra, uma classificação, a mais acertada para descrever
os aspectos indesejáveis, apresentados pelo filho.

Esta demanda crescente, tem sido então para nós um desafio e uma
oportunidade, pois nos tem obrigado a pensar nas razões desta insistente
demanda, as conseqüências do que temos a dizer sobre esta criança e a
posição ética em que nos encontramos e na qual apoiamos nossa clínica.

Talvez a maioria de nós concordemos que temos vivido o tempo da


performance, estendida a vários setores da vida cotidiana. Neste cenário, o
inegável avanço das ciências tem impulsionado um culto à normalidade,
sustentado como um ideal a ser seguido por todos. Neste ideal, qualquer sinal
de “inadequação” ao imperativo de excelência no desempenho e ao de

2
felicidade contínua, corre o risco de entrar para o rol de defeitos que devem
ser, de preferência, sumariamente eliminados.

Nesta perspectiva, é compreensível que ante possíveis sinais de


sofrimento psíquico, o psicodiagnóstico seja buscado, tal qual acontece com o
diagnóstico médico. Do psicanalista também espera-se que identifique as
causas destes sintomas, circunscreva este sofrimento psíquico particular,
dentro de uma classificação psicopatológica universal, e que também aponte a
terapêutica curativa mais eficaz.

Uma importante questão colocada nas relações entre a prática


psicanalítica e a ética, diz respeito ao uso de categorias universais. A
psicanálise, apesar de vir se constituindo como uma disciplina do singular, à
medida que insiste em tomar cada sujeito como único em seu percurso, recorre
a instrumentos metapsicológicos e psicopatológicos generalizantes que correm
o risco de aprisionar, reduzir e simplificar tanto as subjetividades, quanto as
experiências clínicas. Essas questões, ainda tão pouco abordadas por nós
psicanalistas, tornam-se dramáticas quando se trata de crianças, como
veremos adiante.

Pensar a procura por uma avaliação diagnóstica como sendo apenas


uma resposta a esse apelo contemporâneo de normalidade, para nós é
insuficiente para compreender o que temos encontrado na clínica, por isso é
preciso avançar nas reflexões.

Antes de tudo é importante ressaltar que as avaliações diagnósticas têm


sido o espaço onde de forma mais contundente, temos tido que lidar com estas
questões, por isso, transformamos o processo diagnóstico num processo
análogo às entrevistas preliminares de qualquer demanda de análise, mesmo
sabendo que este se delimitaria a um curto espaço de tempo. Ante a
solicitação de diagnósticos precisos, descritos e reconhecidos pelos códigos
internacionais de doenças ou pelas teorias cientificistas, privilegiamos a escuta
de um indivíduo humano, às voltas com um sofrimento contingente e particular
de sua condição de humanidade. Nesse sentido, é o que temos encontrado de

3
singular, muito mais do que há de comum neste indivíduo e sua família, que
passamos a tomar em consideração e a remarcarmos, não só para os pais,
como principalmente, para nós mesmos.

Dando a esse espaço de escuta uma dimensão para além da finalidade


nosográfica/classificatória em si, indicadora das melhores terapêuticas para
cada caso, abandonamos a posição de investigadores de sinais ou sintomas
na criança e nos pais, que tomados de forma generalista e universal, nos
revelavam, invariavelmente, quadros psicopatológicos e síndromes, que
ratificavam e fortaleciam nossas teorias. Teorias estas, que tantas vezes nos
serviram de terceiras pernas, transformando-se em confortáveis tripés, que no
entanto, nos impediam de avançar.

Esse espaço de escuta tem permitido por em questão verdades


estabelecidas sobre o indivíduo, possibilitando com isso que processos de
subjetivação sejam colocados em marcha. Numa linguagem habitual, isso
equivale a dizer que esse espaço de avalição tem tido efeitos terapêuticos.

É certo que precisamos encontrar um nome diferente para isso que


fazemos, pois a palavra diagnóstico não corresponde a essa experiência que
temos tido. Sondagem, observação, acolhimento, primeiras entrevistas, o fato é
que ainda não conseguimos renomear esse espaço de escuta em nossa
instituição.

Mas é preciso ressaltar que existe aqui uma mudança significativa nesta
posição em relação ao diagnóstico. Não se trata mais de não responder à
demanda de diagnóstico para não sair da posição de analistas, ou então para
evitar os possíveis efeitos desta sentença para as famílias, enquanto não
estabelecessem laços transferenciais susignificativos conosco, como
habitualmente se fazia. Trata-se de colocar para nós em questão, o próprio
conceito de autismo, apoiando as contundentes e corajosas reflexões que Ana
Elizabeth Cavalcantti e Paulina Rocha4 sustentam em seu mais recente livro.

4
Cavalcanti, Ana Elizabeth et Rocha, Paulina Scmidtbauer. Autismo. São Paulo: Editora Casa do
Psicólogo, 2001.

4
Para Octávio Souza5 “esta é, sem dúvida uma tomada de posição radical em
relação à tradição psicanalítica, que se de um lado tem operado uma
relativização da distinção entre o normal e o patológico, por outro, nunca
abandonou a consideração da capacidade normativa do funcionamento
psíquico, assim como a necessidade de pensar a tipologia dos fracassos desta
normatividade”.

Estas autoras também chamam atenção para o perigo colocado pela


invenção do autismo como uma síndrome, destacando o efeito iatrogênico do
diagnóstico, e de como Winnicott6, se colocou na contra-mão destas posições
que estão se tornando hegemônicas nestes tempos. Fazendo uma crítica direta
e contundente a Kanner, Winnicott, a partir de sua longa experiência como
pediatra e psicanalista, argumentou que antes da invenção da síndrome do
autismo, estes sinais de possíveis sofrimentos psíquicos nas crianças, podiam
ter, as mais diferentes evoluções e destinos; questionando se a invenção do
autismo não trouxe mais perdas que ganhos para as crianças e suas famílias.

Nos últimos oito anos, temos recebido no CPPL crianças cada vez mais
jovens para avaliação e tratamento. Mais recentemente, temos tido
oportunidade de observar crianças com menos de 30 meses, numa fase bem
anterior ao que estávamos habituados7.

Apesar de muito jovens, em geral essas crianças já chegam com o


diagnóstico de autismo, dado por algum profissional da área médica, ou
simplesmentes os pais acreditam que seu filho é autista por causa de um filme
que assistiram ou de reportagens que leram; isso porque esta síndrome criada
por Kanner8 na década de quarenta, tem tido exuberante expressão no
imaginário social.

5
Souza, Octávio. Texto mimeo, cópia cedida pelo autor.
6
Winnicott, Donald Woods. “Autismo” in: Pensando sobre crianças.Porto Alegre: Editora Artes
Médicas, 1997.
7
Oliveira, Ana Maria Rocha de. Sobre o processo diagnóstico na clínica psicanalítica com crianças.
Trabalho apresentado na XIII Jornada do Círculo Psicanalítico de |Pernambuco. Recife, outubro de 1996.
8
Kanner, Leo. “Distúrbios do contato afetivo” in Rocha, Paulina S. (Org) Autismos. São Paulo: Editora
Escuta, 1997.

5
Temos então, encontrado crianças cada vez mais jovens, às voltas com
um diagnóstico, que prevê um futuro invariavelmente sombrio, que soa, na
maioria das vezes, como a maldição da fada má, no berço da bela adormecida,
traçando-lhe um destino do qual não poderá fugir. “Uma verdadeira setença de
morte”, como nos disse uma mãe, ao ouvir de um psicanalista que seu filho de
tres anos, jamais falaria, criaria laços afetivos e os reconheceria enquanto pais.
Deveria inclusive ser retirdo da escola, (onde estava muito bem adaptado), pois
estariam criando expectativas em relação a esta criança que não poderiam ser
correspondidas. Não é de se estranhar que esses pais, tivessem chorado esse
filho por dias seguidos, como se ele tivesse morrido, como nos relataram.

Neste caso, o vasto campo das possibilidades de subjeticação para esta


criança, foi radicalmente reduzido e bloqueado. Dela, deveria se esperar
apenas, reações e comportamentos de alguém portador de uma síndrome
específica, cujo rol de possibilidades encontra-se já predeterminado. Oferecem-
lhe, uma identidade na qual deve aderir-se, deixando de lado as infinitas
possibilidades identificatórias que hoje se colocoam para qualquer indivíduo
humano.

Não só para os pais e a criança tudo isto está posto, mas o que se
coloca para todos aqueles que de uma forma ou de outra, lidam com estas
crianças, quando se escuta de uma colega psicanalista, se referir em uma
comunicação em público à uma criança autista como “sua majestade o nada”?

Estar em contato com crianças muito pequenas e seus pais, provocou


uma verdadeira revolução em antigas concepções que para nós se mantinham
inabaláveis, sobre os ditos quadros autísticos, como se instalavam e como se
manifestavam. Retiradas as lentes das impossibilidades determinadas pelas
teorias que sustentam esta síndrome, começamos a enxergar o colorido destas
diferentes formas de se estar no mundo, de comunicar-se, de estabelecer
demandas e, principalmente, de singularíssimos arranjos para estar com o
outro, fazendo-nos concordar com Winnicott quanto ao desserviço da invenção
desta síndrome.

6
Nestes tempos em que nada mais nos predestina, nem nosso sexo
biológico, nem a cor de nossa pele, nem nossa nacioanlidade e sobrenome, o
que somos e seremos cabe a nós construirmos no interjogo com a alteridade.
Os universais que nos guiavam, estão relativizados. A referência a uma
transcendência já não é absoluta e inquestionável. Neste cenário, as
identidades já não são fixas e imutáveis, mas abertas, contingentes e plurais.
Podemos afirmar sem exagero, que neste mundo há potencialmente, lugar
para todos, em suas particularidades e diferenças.

Desconcertante é ver, que apesar de toda esta radical mudança na


forma de nos vermos e vermos o mundo, sustentemos ainda que os destinos
estejam inexoravelmente predeterminados para alguns indivíduos.
Reproduzimos com as crianças ditas autistas, as mesmas experiências das
minorias, que no intuito legítimo de serem reconhecidas em suas diferenças,
tendo voz e vez, terminaram por cristalizar novamente suas identidades,
reduzindo, negros, homossexuais, índios, mulheres e deficientes e tantos
outros a serem definidos por um único caracter.

Se por um lado ganhamos em liberdade, também andamos às voltas


com um sentimento de desamparo, que toda esta vertiginosa desconstrução da
tradição nos trouxe. Como nos lembra Maria Rita Kehl9 “o medo de sofrer
confunde-se com o medo do desconhecido”. O desconhecido aqui referindo-se
ao novo, ao que não estava previsto, ao não habitual, ou para usar uma
expressão de Hanna Arendt, cara a Jurandir Freire10, ao “não mais, não ainda”.
Ou como nos diz Roudinesco11, “sofremos de uma liberdade conquistada
porque ainda não sabemos desfrutá-la”.

Nesta perspectiva, começamos a trabalhar com a hipótese de que a


busca incansável por uma classificação nosográfica pudesse ter, para alguns
indivíduos, um caráter apaziguador de se encontrar uma identidade para algo

9
Kehl, Maria Rita. Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2002.
10
Costa, Jurandir Freire. Não mais, não ainda. Cópia retirada da internet. [email protected]
11
Roudinesco, Elizabeth. Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 1999.

7
que é radicalmente diferente, na qual pudesse se reconhecer, dando-lhe um
sentimento de pertencimento.

Isto nos faz lembrar de um garoto que nos foi trazido aos 30 meses de
idade. Apresentava uma gama significativa de sinais considerados autísticos.
No entanto, o que mais chamou nossa atenção foi sua surpreendente
capacidade de comunicação através do olhar, durante as situações que lhe
interessavam. A intensidade do seu olhar nestes momentos, contrastava com
todas as suas manifestações ditas autísticas, fato este inclusive reconhecido
pelos pais.

Foi possível por esta via, sustentar por um tempo considerável, o


enigma que era para nós e para os pais, esta criança. A sustentação deste
enigma, deu chance a este garoto de ocupar outros lugares enquanto criança.
Ao término de um ano de trabalho, ouvimos de sua mãe que as pessoas já não
mais perguntavam se ele era autista, visto que a seu modo, brincava, falava e
se relacionava na família, na escola e no parque. Estava sempre muito alegre,
cantarolava frequentemente, demonstrando muito prazer no contato com
adultos e crianças. Ainda assim, seu desempenho não era como o das outras
crianças da sua idade e isto preocupava muito seus pais. O que seria deste
filho? O que lhe reservaria o futuro? Esta nova situação, tornava-se
insuportável para os pais, à medida que agora não era mais possível resumir a
descrição deste filho num só palavra. Segundo eles, a conversa agora sobre o
filho se tornara mais comprida. Se não era autista, o que ele era então?

Esta mãe que não poupava reconhecimento às transformações de seu


filho, sucumbiu num pacto com o marido aos apelos de apaziguamento que
uma categoria nosográfica pode dar. Neste momento, a criança foi levada a um
psiquiatra que finalmente, diagnosticou-a como autista, contraindicando o
trabalho psicanalítico e prescrevendo uma abordagem comportamental,
instrumentalizadora, visto que muito pouco se devia esperar de uma criança
assim.

8
Esta etiqueta psicopatológica foi prontamente aceita por este casal, que
antes tinha que dar conta do terrível incômodo colocado por um filho que não
correspondia ao habitual, mas que agora, de forma apaziguada, passaram a se
relacionar com um filho portador de uma síndrome, com um destino previsível,
apesar de sombrio. Para esta criança fechou-se qualquer outra possibilidade
de existência, de subjetivação, a que não seja a de corresponder a um rol
previamente definido de comportamentos e atitudes próprias desta síndrome.

Seus pais, agora pais de autista, puderam aderir a uma identidade e


encontrar um lugar estável, onde é possível inclusive se seguir manuais de
conduta, prescritos por especialistas.

Um outro caso também segue nesta mesma direção.

Trata-se de um garoto que nos chegou aos 38 meses de idade, com


diagnóstico de autismo, dado por um tio médico. Este diagnóstico foi posto por
nós em questão desde o início do tratamento, mas a família buscava confirmá-
lo através de dados obtidos na internet ou com outros especialistas, que
remarcavam, sobremaneira, os traços autísticos do garoto, tentando nos
convencer de nosso equívoco. Enquanto isto, este menino surpreendia a todos,
expandindo suas capacidades de interação com o meio, enriquecendo
rapidamente sua comunicação verbal e demosntrando muito orgulho em suas
conquistas e descobertas. Segundo sua mãe, sua mudança era comentada até
pelos vizinhos.

Mesmo assim, foi levado a São Paulo, por duas vezes durante o tempo
em que permaneceu conosco (um ano e meio, mais ou menos), para ser
avaliado por uma renomada equipe de especialistas, que após ostensivos
exames, chegaram à conclusão que era inegável sua evolução, que portanto,
não se tratava de um autismo, mas lhe deram o diagnóstico de afasia.
Desaconselharam o tratamento psicanalítico e prescreveram-lhe uma
terapêutica comportamental.

9
Como até então a criança continuava sobre nossos cuidados, entramos
em contato com esta equipe para indagar sobre este inusitado diagnóstico de
afasia. Qual não foi o nosso espanto quando eles nos responderam ter sido
essa a melhor solução encontrada por eles, para não mandar esta família de
volta pra casa com as mãos vazias, já que haviam descartado para o garoto, o
diagnóstico de autismo.

O que poderíamos entender sobre não poder deixar, nesta situação,


uma família de mãos vazias? Porque oferecer uma marca psicopatológica
como única via identificatória, transformando-a assim numa marca identitária
para alguns indivíduos, pelo simples fato de carregarem consigo caracteres
inabituais?

Calligaris12 se pergunta: “...por que vivemos tempos tão apaixonados


pelas marcas? Por que somos tão desejosos de ser etiquetados ou
marcados?”

Pensamos que os fragmentos destes casos respondem, em parte, a


estas perguntas de Calligaris, pois são emblemáticas da busca por um lugar,
uma identidade, seja ela qual for. Para alguns, é melhor aderir a um lugar
identitário assegurado, mesmo que terrificante, do que lançar-se no
imprevisível, no instável das infinitas possibiliddes de identificação, que este
nosso tempo oferece.

Sendo assim, poderíamos pensar que, encontrar uma etiqueta, uma


marca psicopatológica e enquadrar-se nela, evitaria, para alguns a angústia
provocada pelo enigma que sempre uma criança desses tempos coloca para
as famílias, educadores e especialistas, com relação ao que ela é e será.
Principalmente quando esta criança nos desafia a todos com maneiras tão
radicalmente diferentes de estar no mundo.

12
Calligaris, Contardo. Crônicas do individualismo cotidiano. São Paulo: Editora Ática, 1996.

10
Mobilizados por tudo isto, passamos a assumir a posição de questionar
algumas certezas estabelelcidas pelas teorias, para construirmos, junto com as
famílias, outros entendimentos possíveis para o vivido com seu filho, criando
assim, a condição de possibilidade para possíveis efeitos de subjetivação como
veremos no caso a seguir.

Este garotinho de 24 meses, nos chegou com o dignóstico de autismo,


dado por um psiquiatra o qual havia desaconselhado aos pais um trabalho
psicanalítico para a criança, visto que se tratava de uma síndrome genética, de
prognóstico sombrio, indicando então uma terapia comportamental, associada
à prescrição de haldol para que fosse possível aos pais suportá-la. Orientou o
casal a obter informações na internet e a procurar uma associassão de pais de
crianças autístas.

Inconformados com este diagnóstico, voltaram algum tempo depois ao


mesmo psiquiatra, para lhe dizer que o que haviam encontrado em suas
pesquisas na internet, não se adequava inteiramente ao seu filho: “ou ele não
era autista, ou aquelas informações sobre o autismo não estavam corretas”. Ao
que o psiquiatra respondeu se tratar de graus variados de autismo. Disseram-
lhe também que após terem lido a bula da medicação prescrita, decidiram não
ministrá-la, pois, se era para acalmá-lo, eles preferiam oferecer-lhe maracujina,
medicamento natural, usado também pelos outros filhos.

Neste caso, apesar da inquietação e do estranhamento desses pais


sobre o que se passava com sua criança, foi possível para eles por em questão
a palavra de autoridade de um renomado especialista. Abrindo mão deste
diagnóstico prêt-a-porter, estes pais se incumbiram da difícil tarefa de
redescrever e reencontrar sua criança, que apesar de não corresponder ao que
habitualmente se espera para sua idade, tem respondido de forma
surpreendente ao investimento que seus pais estão fazendo de retirá-la deste
lugar predestinado por uma síndrome.

11
Acreditamos que este percurso tem sido possível devido a sustentação
de um espaço de escuta mais livre de algumas crenças teóricas já
naturalizadas, tomadas como verdades inequívocas, que facilmente tendem a
se transformar em dogmas.

É importante estarmos atentos para não transformamos a clínica numa


espécie de “divã de Procusto”13, que como nos conta a mitologia, era um leito
de ferro, no qual “Procusto costumava amarrar todos que lhe caíam nas mãos.
Se eram menores que o leito, ele lhes espichava as pernas e, se fossem
maiores, cortava a parte que sobrava”.

Bem diferente disso, esperamos que seja a clínica e as teorias que a


sustenta, um lugar de infinitas construções, sempre provisórias, abertas ao
imprevisível da vida que sempre teima em nos escapar.

13
Bulfinch, Thomas. O livro de ouro da mitologia. São Paulo: Ediouro, 1998.

12

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