Relações Étnico-Raciais, Educação e Descolonização Dos Currículos - Nilma Nilo
Relações Étnico-Raciais, Educação e Descolonização Dos Currículos - Nilma Nilo
Relações Étnico-Raciais, Educação e Descolonização Dos Currículos - Nilma Nilo
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS,
EDUCAÇÃO E DESCOLONIZAÇÃO
DOS CURRÍCULOS
Nilma Lino Gomes
Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Resumo
Este artigo discute as tensões e os processos de descolonização dos currículos na escola brasileira.
Enfatiza a possibilidade de uma mudança epistemológica e política no que se refere ao trato da
questão étnico-racial na escola e na teoria educacional proporcionada pela introdução obrigatória
do ensino de História da África e das culturas afro-brasileiras nos currículos das escolas públicas e
particulares do ensino fundamental e médio.
Palavras-chave: Currículo; educação; relações étnico-raciais; descolonização
Abstract
This paper discusses the tensions and the processes of curriculum decolonization in Brazilian
schools. It emphasizes the possibilities of epistemological changes and policies related to ethnic-
racial issues in schools as well as the educational theories derived from the mandatory teaching of
African history and Afro-Brazilian cultures in the curricula of public and private, basic and middle
schools.
Key words: Curriculum, education, ethnic-racial relations, decolonization
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profunda esse momento da educação brasileira não pode prescindir de uma leitura atenta
que articule as duras condições materiais de existência vivida pelos sujeitos sociais às
dinâmicas culturais, identitárias e políticas. É nesse contexto que se encontra a demanda
curricular de introdução obrigatória do ensino de História da África e das culturas afro-
brasileiras nas escolas da educação básica. Ela exige mudança de práticas e descolonização
dos currículos da educação básica e superior em relação à África e aos afro-brasileiros.
Mudanças de representação e de práticas. Exige questionamento dos lugares de poder.
Indaga a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e
educacional, em nossas escolas e na própria universidade.
Mas a escola básica e a universidade não poderão fazer sozinhas a reflexão sobre esse
processo. Para tal, o debate epistemológico sobre o diálogo interno e externo à ciência é
necessário. E é sobre esse debate que o presente artigo se propõe discutir a partir das
reflexões geradas por uma experiência singular: o musical Besouro Cordão-de-Ouro,
dirigido por João das Neves e apresentado no 4º FAN (Festival Internacional de Arte
Negra) no dia 25 de novembro de 2007, em Belo Horizonte, Minas Gerais.1 A peça narra a
trajetória, a história e as lutas daquele que é considerado um dos mais importantes nomes
da capoeira, no Brasil, também conhecido como Besouro de Mangangá. É a partir da
relação entre a peça teatral, a história desse homem negro, a nossa ignorância cultural e
epistêmica sobre as relações étnico-raciais, no Brasil, que as indagações sobre o currículo
serão aqui formuladas. Vamos, então, primeiramente, adentrar o espaço cênico e conhecer a
encenação teatral e o seu personagem central.
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morto que nos chamaram para uma espécie de “procissão” e nos levaram a um
outro cômodo mais iluminado, cujas paredes estavam cobertas de velhos
engradados de bebida, com algumas cadeiras e muitas almofadas no chão. No
meio um pequeno círculo e ao fundo alguns instrumentos musicais.
De repente, com voz firme, um dos amigos do morto começou a entoar, na
forma de canto, a vida daquele que agora já não estava mais fisicamente entre
nós. Logo em seguida, outros homens e mulheres começam a participar da
narrativa-canto e contam a história daquele homem que logo seria enterrado. A
história era contada por meio da música, da fala, da dança, de gestos e golpes de
capoeira. No decorrer do enterro, todos nós compreendemos não só a história
daquele que seria enterrado, como também um pouco mais da história da
capoeira no Brasil e sua inter-relação com a África e a diáspora africana.
O espetáculo teatral cuja cena de abertura foi acima descrita representou um momento
ímpar e, ao assisti-lo, não tive como deixar de relacionar a experiência ali narrada com a
história de luta da população negra, no Brasil, e os processo de educação e reeducação que
esse segmento implementa a si mesmo e à nossa sociedade. Processos esses ainda
invisibilizados pelos currículos escolares e pela própria teoria educacional. Naquele
momento, talvez poucas pessoas conhecessem a história do Besouro, o qual ganhou maior
visibilidade fora do círculo da capoeira após o sucesso dessa peça teatral exibida em vários
lugares do país. A popularidade do capoeirista também passou a atingir um público maior
quando sua história foi transformada em filme exibido em diversos estados brasileiros e
assistido, inclusive, fora do país.2 Nesse artigo farei menções ao teatro e não me aterei ao
filme. Mas a minha sugestão ao leitor é que o assista para compreender como a história de
Besouro fala muito da trajetória de negros e negras no Brasil, assim como de muitas outras
pessoas que, a seu modo, implementaram vários tipos de luta pela liberdade e pela
dignidade.
A trajetória de Besouro, suas experiências, desafios, luta por justiça, contradições e
coragem vividas nos anos 20 do século passado são conhecidas não só dentro do universo
da capoeira, mas também por aqueles que vivenciam com orgulho a cultura afro-brasileira.
São vivências fortes da trajetória de um homem que remetem a situações específicas da
população negra e, ao mesmo tempo, às lutas das camadas populares no Brasil. Nos dizeres
de Milton Nascimento, “um povo que nunca perde a esperança de ter fé na vida”.
No decorrer da peça, encenada por atores e atrizes negros, cariocas e mineiros, a
trajetória de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão-de-Ouro, lendário capoeirista da
região de Santo Amaro, na Bahia, era narrada, interpretada, vivida, sentida de maneira
interativa entre atores e público. Os jovens atores se misturavam no meio do povo,
assentavam com a platéia, conversavam e olhavam. A reação era imediata: o público ouvia,
via, sentia, vibrava, batia palmas, sorria, chorava, cantava e, até mesmo, jogava capoeira.
A história de Besouro Cordão-de-Ouro era contada e cantada, tocada e sentida com a
fala, a musicalidade, os gestos e a corporeidade. Os jovens atores e atrizes dançavam com
força e intensidade e emitiam vários sons. Por meio da história daquele capoeirista, narrada
de forma artística e ritualística, muito do Brasil pós-abolição, da vida dos negros na Bahia,
da luta e resistência negras, dos encontros e desencontros afetivos, da política, da
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organização da população negra foi contado e aprendido pela platéia. Para além do objetivo
artístico, a peça trouxe para aquele público uma excelente “aula” na qual se enfatizou a
relação entre conhecimento, cultura e ação política. Talvez de forma mais didática e mais
criativa do que todo o nosso empenho em diversificar as aulas que ministramos nos cursos
de graduação e pós-graduação e na educação básica.
Mas por que será? Não só pela beleza e competência do elenco e da direção, mas
porque aquele espetáculo e o próprio contexto do FAN atuam em outro registro e dialogam
com outro paradigma de conhecimento. Um paradigma que não separa corporeidade,
cognição, emoção, política e arte. Um paradigma que compreende que não há hierarquias
entre conhecimentos, saberes e culturas, mas, sim, uma história de dominação, exploração,
e colonização que deu origem a um processo de hierarquização de conhecimentos, culturas
e povos. Processo esse que ainda precisa ser rompido e superado e que se dá em um
contexto tenso de choque entre paradigmas no qual algumas culturas e formas de conhecer
o mundo se tornaram dominantes em detrimento de outras por meio de formas explícitas e
simbólicas de força e violência. Tal processo resultou na hegemonia de um conhecimento
em detrimento de outro e a instauração de um imaginário que vê de forma hierarquizada e
inferior as culturas, povos e grupos étnico-raciais que estão fora do paradigma considerado
civilizado e culto, a saber, o eixo do Ocidente, ou o “Norte” colonial.
Só compreendendo a radicalidade dessas questões e desse contexto é que poderemos
mudar o registro e o paradigma de conhecimento com os quais trabalhamos na educação.
Esse é um dos passos para uma inovação curricular na escola e para uma ruptura
epistemológica e cultural.
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não é somente mais uma norma: é resultado de ação política e da luta de um povo cuja
história, sujeitos e protagonistas ainda são pouco conhecidos, assim como Besouro Cordão-
de-Ouro, o capoeirista cuja história foi contada durante o espetáculo teatral.
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com a idéia de raça; entender a distorcida relocalização temporal das diferenças, de modo
que tudo aquilo que é não-europeu é percebido como passado (Quijano, 2005) e
compreender a ressignificação e politização do conceito de raça social no contexto
brasileiro (Munanga e Gomes, 2006) são operações intelectuais necessárias a um processo
de ruptura epistemológica e cultural na educação brasileira. Esse processo poderá, portanto,
ajudar-nos a descolonizar os nossos currículos não só na educação básica, mas também nos
cursos superiores.
Finalizando...
Notas
1
Musical dirigido por João das Neves, que revela a trajetória de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Cordão-de-Ouro,
lendário capoeirista da região de Santo Amaro, na Bahia. O espetáculo tem texto, músicas e letras inéditos do
compositor Paulo César Pinheiro, direção musical de Luciana Rabello e elenco instruído por dois mestres capoeiristas.
Gostaria de agradecer a professora Inês Teixeira, da FAE/UFMG, pelo convite, companhia e oportunidade de assistir o
musical Besouro Cordão-de-Ouro.
2
Filme Besouro, o Cordão de Ouro dirigido por João Daniel Tikhomiroff sobre Besouro Mangangá que estreou no Brasil
no dia 30 de outubro de 2009.
3
Lei que altera a LDBEN, 9394/96, e estabelece a obrigatoriedade do ensino de História da África e das culturas afro-
brasileiras nos currículos das escolas públicas e particulares do ensino fundamental e médio da Educação Básica. Em
10/03/08, a Lei 10.639/03 também foi alterada e passou a incluir a história e a cultura dos povos indígenas, recebendo o
número 11.645/08. Tal legislação foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Educação pelo Parecer CNE/CP
03/2004 e pela Resolução CNE/CP 01/2004.
Referências
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Correspondência
Nilma Lino Gomes – Professora Associada da Faculdade de Educação da UFMG. Doutora em Antropologia
Social/USP e Pós-Doutora em Sociologia – Faculdade de Economia – Universidade de Coimbra.
Coordenadora Geral do Programa Ações Afirmativas na UFMG. Bolsista de produtividade CNPQ.
E-mail: [email protected]
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