Miolo Fique! 15x21cm

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FICHA TÉCNICA

Editor-chefe
Lucas Almeida Dias

Projeto gráfico
Paulo Ricardo Cavalcante da Silva

Diagramação
Tatiane Santos Galheiro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Fique! / organizador, DUMALAK, M. SP: Gradus Editora, 2021.


208p.. : il ; PDF.

Inclui bibliografias.
978-65-88496-69-5

1. Literatura; 2. Literatura infanto-juvenil; 3. Literatura LGBT

CDD
800
Mensagem do autor

O
preconceito é notório a cada passeio de mãos dadas e a cada gesto
mais solto. As pessoas crescem com conceitos pré-determinados,
imaginando um mundo preto e branco, sem variações, sempre com o mesmo
padrão para tudo. Mas essa sanha por uma vida sem cor, sem graça, que inibe
as diferenças, é o que faz do mundo um lugar, para tantos, sombrio e inóspito.

A verdade é que o preconceito existe e não é papo-furado. No entanto,


ao lutar contra isso, não procuramos a superioridade na sociedade, mas,
sim, a igualdade. Saímos às ruas para pedir liberdade, não o trono. Brigamos
pelo fim das mortes de caráter homofóbico, não pelo fim dos heterossexuais.
Exigir direitos iguais não é frescura, é democracia.

Eu sofro, na pele, um peso que não escolhi. Lutei para conseguir


compreender os meus próprios sentimentos e já passei noites em claro,
pedindo a Deus uma explicação. Não optei por ser homossexual. Aliás, muito
provavelmente, ninguém pôde optar pela própria sexualidade. Faz parte do
que somos: gostamos de homem, de mulheres ou de ambos.

Mas, todo esse sofrimento pelo que eu e tantos passamos, ele não
precisava ser assim! O amor é a melhor parte da vida, e ele é o mesmo
independentemente da orientação sexual, religião, cor ou peso. O amor é
universal e único. Sendo o sentimento mais puro, gratificante e genial que
Deus inventou, o amor vence barreiras e quebra paradigmas.

O que me anima a continuar tentando mostrar isso às pessoas é a


esperança de um mundo mais unido e mais feliz. Não é errado sonhar com
o fim do ódio e da violência. A sociedade se esqueceu de viver em harmonia
para se deixar levar por dogmas e paradigmas religiosos e sociais que não
reconhecem determinadas parcelas da humanidade.

A vida é uma só! Não a desperdice! Mas, principalmente, não a tome


de ninguém. Às vezes, pensamos que “matar” seja algo que possa acontecer
apenas no sentido literal da palavra, mas não. O bullying, o ódio, a inveja e

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vingança são violências que podem custar a vida humana. Sendo assim, em
um mundo onde já há tantas maneiras de se matar e morrer, o homem faz do
preconceito mais uma delas.

Para deixar o leitor mais à vontade nessa leitura, já sanando aquela


dúvida que muitos têm, eu explico: os personagens deste livro são reais.
Basta que você observe as situações que eles enfrentam que, provavelmente,
identificará algum conhecido com o mesmo problema. Talvez você mesmo
esteja passando por essa história. Talvez, você seja o personagem!

Deixe-se levar por este romance dramático, no qual o narrador,


Gustavo, também faz parte da história, vivenciando experiências únicas e
surpreendentes. Enquanto narra as histórias de Guilherme, Gustavo emite
suas opiniões pessoais, por vezes sombrias, dando à trama um tom de
suspense. É impossível não ficar curioso sobre os próximos capítulos.

Desejo uma boa leitura. E que todo o sofrimento que, um dia,


enfrentamos, fique para trás. Que possamos decidir pelo amor, assim como
Gustavo e Guilherme decidiram, deixando a dor e o remorso arquivados
na gaveta mais funda do nosso peito. Afinal, temos apenas uma vida, uma
oportunidade de ser feliz, de mostrar, a você mesmo, que valeu a pena!

Com carinho,

Matheus Dumalak.

4 Fique
Capítulo 1: Ironia é coisa do diabo

M
uitos me perguntam como ou quando eu me tornei
homossexual. Esse é um questionamento complicado, que
sempre me incomodou. Eu nunca soube responder com precisão, mesmo
depois de vários anos estudando o comportamento da mente humana.
Até porque não é uma coisa simples para se abordar, ainda mais quando a
pergunta é feita em ambientes quase inóspitos, como na casa de uma tia de
quarenta anos, ou em reuniões de amigos naquele bar cheio de “machões”.

Para ajudar, ser homossexual é um sentimento, não uma escolha, sendo


impossível argumentar sobre o assunto com a mesma objetividade de quando
se discute sobre as finanças do mês.

Eu, em particular, comecei a me sentir homossexual desde muito cedo. O


problema era que não entendia aquele afeto por outros meninos, ou o porquê
de não ter vontade de beijar as meninas. Além disso, havia o fator “pais”, e,
por mais que eles cogitassem e especulassem, não podiam, e não queriam,
afirmar o óbvio.

Continuar no mundo de fantasias era o ideal, seria mais ou menos assim:


o filho inocente, sem malícia, perfeito e educado, que ajuda as velhinhas a
atravessarem a rua; tornar-se-ia um príncipe igual aos dos desenhos da
Disney, que resgataria a princesa das mãos da bruxa má para, depois, se
casarem e terem lindos filhos de olhos azuis, de preferência um casal.

Mas, espante-se, isso não existe!

Aos dez anos, eu já olhava mais para os garotos da minha escola do que
para as garotas. Um dia, na terceira ou quarta série, fiz um plano infalível para
dar um beijo em meu amigo. É claro que não sentia atração sexual naquela
época. Em minha cabeça, tratava-se de uma simples brincadeira, como
quando as meninas brincavam com as bonecas e seus castelos encantados.
Sim, eu também tinha as minhas fantasias.

Fique 5
No ensino médio, as coisas ficaram mais delicadas. Tentei me envolver
com algumas meninas, até as beijei, mas não senti nada. Quem olhava podia
afirmar que era uma menina beijando uma parede. Entendi, finalmente, o que
estava acontecendo e resolvi me entregar e começar a minha verdadeira vida.
Com isso, assumi-me para mim mesmo e decidi arcar com as consequências
de minha “decisão”.

Quanto aos meus pais, bem... tenho a certeza de que perderam algumas
noites de sono, talvez até pensando em abandonar a responsabilidade que
tinham sobre mim. No entanto, no final, como nasceram prontos para amar,
deixaram todo o pré-conceito de lado. Confesso que tenho certa dificuldade
de entender o motivo dessa raiva tão gigantesca que alguns, diferentemente
de meus pais, possuem. O amor deveria ser maior do que qualquer coisa.

O que quero que entendam é que algumas coisas não têm começo
pontual. Algumas coisas apenas surgem. É fácil você definir a que horas
acordar, a que horas comer ou a que horas trabalhar. Até planejar uma grande
viagem torna-se simples. Agora, saber quando ser homossexual não é uma
equação de primeiro nem de segundo grau.

Em uma das conversas que tive com Guilherme, perguntei-lhe como


descobriu que era gay. A resposta me faz rir até hoje. Ele me disse:

“Eu, simplesmente, sabia. Eu ouvia os meus amigos falando sobre as


meninas e o que eu queria mesmo era beijar cada um deles.”

O que quero dizer é que não é possível descobrir quando, ou onde, ou


como somos homossexuais, entende? Apenas somos!

Já escutei Guilherme contar-me, inúmeras vezes, várias das cenas que


narrarei. Em cada uma delas eu percebo um detalhe diferente: um sentimento
mais palpável, um tom de voz mais grave ou agudo. Depois de tantos anos
de convivência, comecei a praticamente sentir o que ele sentiu. Aprendi a
compreendê-lo, ele me mudou. Mas vamos ao que interessa...

6 Fique
Quando Guilherme nasceu, houve uma grande comemoração. Ele era o
primeiro neto de Tereza e, também, de Lúcia. As avós receberam o pequeno
com os braços abertos e com todo o amor que se pode imaginar.

A mãe, Rosa, e o pai, Rodrigo, apesar de não planejarem aquele bebê,


alegraram-se imensamente. Afinal, uma criança é a alegria da casa, conforme
diz o ditado. Guilherme foi feliz na infância. Quase todos fomos! Sem
preocupações, sem contas para pagar e sem amores para resolver, apenas
brincadeiras. Esse é o espetáculo de ser criança: não sofrer por “coisas de
adultos”.

Não digo que a infância do menino foi totalmente perfeita, mas ele teve
muitos momentos bons para recordar. Guilherme foi privilegiado, nasceu e
cresceu em uma família cheia de amor. No que diz respeito ao dinheiro, pode-
se dizer que era privilegiado. Estudou em escola particular desde os oito anos.
Ia ao cinema, teatro, viajava com os pais, tinha tudo o que precisava para
crescer saudavelmente.

Rosa sempre foi aquela mãe especial, que esteve significativamente


presente na vida do filho. Rosa aparentava ser mais nova do que era. Tinha
cabelos pretos e longos, olhos castanhos, lábios finos; trazia sempre algum
batom para realçar sua aparência (nunca cores pálidas); era confiante e
sorridente. Mesmo na faculdade, Rosa se esforçou para mantê-lo, sem que o
menino precisasse trabalhar.

Seu pai, Rodrigo, também esteve presente, ou pelo menos até antes de
as coisas começarem a ficar mais turbulentas. Rodrigo possuía fisionomia
distinta, com um cabelo que ninguém saberia dizer se era encaracolado ou
ondulado. Com seus 1,60 metros e com alguns quilos além do ideal, não
aparentava boa forma. Guilherme em nada o puxou.

De qualquer forma, se olhássemos de fora para essa família, não veríamos


nada de incomum. Brigas dos pais, divórcio, pensão, guarda compartilhada,
trazia tudo o que se espera de uma típica e “tradicional” família brasileira,
tudo mudou quando Guilherme “tornou-se” gay.

Fique 7
Ser gay é complicado. Não acredite naqueles que dizem que não há
nenhuma desvantagem. Porque existem várias: o preconceito, a dificuldade
emocional, os parceiros, as doenças, o fim da idealização de uma família
“convencional” etc. Ser homossexual gera vários desafios.

Guilherme não soube o que era sofrer por causa da sua orientação sexual
até andar, pela primeira vez, de mãos dadas com outro homem. “Veado! Bicha!
Vou enfiar um pau no seu...!”. Eram alguns dos típicos insultos dirigidos a ele. O
preconceito que sentia e a dificuldade de lidar com os insultos custaram-lhe
muito, como custa a tantos de nós.

Lembro-me bem da minha infância, daquela doce infância, correndo


com meus primos, brincando com meus amigos, caindo, ralando o joelho.
Foi o melhor tempo de todos os tempos. Ironia é que eu queria crescer
rapidamente. Contudo, hoje, tenho a certeza de que eu nunca fui tão feliz
igual àquela época. E Guilherme deve pensar da mesma forma.

Confesso que, por muito tempo, pedi a Deus a oportunidade de me


sentir igual a quando eu era mais novo. Ele nunca me atendeu, é claro, mas
eu aprendi a me contentar com as coisas mais simples, como lembrar o “eu
te amo” que os meus pais diziam antes de eu me deitar, ou todos os abraços
carinhosos que recebi de algum amigo.

O pouco amor que restou à humanidade está nos detalhes. Nas coisas
mais comuns, no carinho e atenção doados ao ajudar uma senhora a carregar
as compras do mercado, ou ao cumprimentar o porteiro do prédio antes de
ir ao trabalho. Assim como a atenção, o respeito não deixa de ser também
uma forma de amor. Mais do que isso, respeitar as diferenças é a mais pura
demonstração de afeto.

Para Guilherme, na adolescência, as coisas foram um pouco mais difíceis


do que se esperava. Aos 14 anos testemunhou o divórcio dos pais. Depois de
permanecer um tempo solteira, Rosa conheceu Jorge. Atlético, alto, magro,
moreno e muito habilidoso em atividades físicas, Jorge era o tipo que gostava
de praticar esportes. Era um dos donos de uma imobiliária famosa da cidade.

8 Fique
Atencioso com a família, fazia de tudo para acolher Guilherme como um filho.

Já Rodrigo, envolveu-se com uma, duas, talvez três mulheres. Nenhum


dos relacionamentos duravam muito. Os avós paternos de Guilherme dizem
que o filho se perdeu depois da separação. Mas eu, analisando a situação,
acho que ele apenas “se libertou” e começou a viver o seu verdadeiro estilo.

O preocupante é que Guilherme ficava no meio do fogo cruzado. O


sucesso da mãe com o novo namorado, e o fracasso do pai com as inúmeras
mulheres, o fizeram ver a discrepância das consequências daquela separação.
Isso lhe fez acreditar que o pai havia sido o problema do relacionamento. E
é claro que existiam os intrometidos: “você acha que eles devem voltar?”;
“Tadinho do menino, deve sofrer muito”.

No fundo, é evidente que Guilherme gostaria de ver os pais juntos, por


outro lado, ele presenciava muitas brigas e discussões que por pouco não
acabavam em agressão física. O convívio nunca é fácil, e Rosa e Rodrigo
se casaram absurdamente novos, de modo que não tinham maturidade
suficiente para encarar um relacionamento tão sério e ter um filho.

Além disso, existia a “questão Deus”. Vou explicar. Na época, Guilherme


acreditava piamente em sua religião, mas de tal modo que ele tinha a certeza
de que sua oração poderia mudar o futuro. Ou que, por um pedido, Deus,
com algum plano mirabolante, reaproximaria Rosa e Rodrigo mais uma vez.
Talvez um meteoro caísse na Terra, sobrando apenas seus pais para salvar a
humanidade da extinção. Tudo era possível.

Um dia, enquanto visitava o pai, Rodrigo levou-o para a casa de uma


conhecida da igreja. Ela não demorou para fazer parte da história:

— Deus está mandando eu te perguntar uma coisa. — Ela o encarou


autoritária, como se estivesse invocado o próprio Deus para aquela sala. —
Você quer que os seus pais fiquem juntos?

O menino, confuso, fechou o semblante, pensativo, imaginando todos


os cenários possíveis e impossíveis. Seu pensamento divagou, levando-o a se
lembrar de seus próprios problemas. Não seria legal pensar nos pais juntos,

Fique 9
perfeitos, enquanto ele estaria perdido, condenado ao inferno por suas
transgressões imperdoáveis.

O pai o pressionou, primeiro, encarando-o carrancudo e fazendo


gestos estranhos com a boca, depois, não aguentando aguardar em silêncio,
manifestou-se:

— Guilherme, você sabe o que isso pode provocar? Eu estou com outra
pessoa agora. — Ele sempre estava com outra pessoa.

— Eu sei. — Guilherme amuou-se, soltando todo o peso de seu corpo na


cadeira em que estava sentado.

Ele pensou no que a mãe e o pai gostariam e como isso ia interferir no


futuro. Permitiu-se sonhar com os pais, andando de mãos dadas, passeando
no parque com um cachorro chamado Toby. Lembrou-se de Deus, da igreja.
Afinal, o que Ele gostaria que Guilherme respondesse? Pensou em tudo e
enfim, respondeu:

— Eu quero que seja o que Deus achar melhor. — Foi a resposta que
encontrou para livrar-se daquela injusta responsabilidade de decidir
qualquer coisa. Rodrigo relaxou e jogou-se na cadeira, satisfeito.

O pai provavelmente sentiu-se feliz. Ele não queria voltar com Rosa.
A mãe também ficaria contente ao saber da resposta, porque, assim como o
ex-marido, não achava conveniente reatar o relacionamento. Deus, em nada
interferiu, possivelmente porque estava ocupado cuidando de assuntos mais
importantes, quem sabe manipulando os resultados dos jogos de futebol
do campeonato brasileiro devido ao grande número de rezas da torcida do
Corinthians. Enquanto isso, Guilherme sentia-se impotente e triste, engoliu
seco e sorriu como se posasse para alguma foto da G Magazine.

E a pergunta que ficou no ar é: qual deus deixaria uma criança decidir o


futuro dos pais, sendo que ela não tinha a capacidade nem de escolher entre
arroz ou macarrão no restaurante?

É claro que, se você acredita nisso tudo, é meu dever respeitar.


Provavelmente me dirá que não se tratava realmente de uma pergunta, e sim

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de uma forma de Deus mostrar toda a sua compaixão e confiança por aquele
rapazinho. Eu, no entanto, penso que aquilo tudo não passou de um belo de
um espetáculo a quem assistisse. Pense comigo...

As cortinas se abrem. Os três estão ali sentados em cadeiras marrons


com estofado vermelho. Uma das cadeiras tem uma perna bamba,
quase se soltando.

O pai, contente com a sua nova namorada, escuta a amiga fazer


aquela pergunta indiscreta para o filho, ainda criança. O pai treme
e sente vontade de pular no pescoço daquela mulher de meia-idade
ou, talvez, terminar de soltar a perna da cadeira que a sustentava.

O menino pensou tanto que a cena durou horas. Aquela situação


aflita, a plateia, já exausta, clamando por um fim, torcendo para a
cadeira desabar, pensando na pipoca ou no cachorro-quente que
compraria no final do espetáculo.

“Deus sabe o melhor”

O público ovaciona. Mas, no fim, percebe que a resposta era nada


mais nada menos que um suspense para o segundo ato.

Todos querem que a cadeira desabe. Ver aquela mulher de pernas


para o ar seria a melhor parte da peça, mas as cortinas se fecham e a
mulher não cai.

Uma voz grossa assusta a plateia. Talvez fosse Deus, ou apenas o


contrarregra, ou o sonoplasta. Anunciando o intervalo de 10 minutos.

***

Se Deus existisse, não faria esse tipo de indagação a alguém com o nível
de confusão mental que Guilherme tinha naquele tempo. Além do divórcio,
o garoto desejava que o pai fosse mais presente em sua vida, isso também o
fez chorar quando ficou sozinho naquela mesma noite. De qualquer forma,

Fique 11
Rosa e Rodrigo não poderiam ficar juntos. O relacionamento deles parecia
acontecer no mesmo século que a história dos Flintstones.

O pai, machista, discutia sempre com a mãe, pouco informada sobre o


feminismo. Ele dizia que ela não deveria trabalhar, mas, sim, ficar em casa,
pois era dever do homem bancar o lar. No entanto, quem mais tinha dinheiro,
afinal, era a mãe, pois trabalhava mais do que o pai e, quando descobriu que
não precisava dele para ser feliz, simplesmente pediu a separação.

Sei que alguns pais tentam continuar o relacionamento pelos seus


filhos, mas não é assim que funciona. O relacionamento deve estar envolto de
amor, companheirismo e crescimento mútuo. Não pode ser apenas sobre um
suportando o outro, ou um invejando o outro. Para a criança, ainda, se vive
com os pais em pé de guerra, fica aquela velha questão: é melhor que os pais
se separem e vivam felizes ou que continuem juntos, brigando?

Ironicamente, foi Guilherme que pediu ao pai para visitar aquela


conhecida da igreja. E a chamo de conhecida, nesse contexto, porque era a
mulher de que todos falavam e que fazia revelações de Deus. O menino estava
louco para saber o que Deus falaria e, no fim, deu nisso!

No fundo, o garoto esperava escutar que estava curado, que a sua doença
tinha acabado e que ele estava liberto. E saiu de lá torcendo para que Deus não
fizesse nenhuma bobagem. O pai achou tudo aquilo divertido após perceber
que havia escapado, por um triz, de ser obrigado a voltar com Rosa.

— Do que você está rindo? — Guilherme perguntou, enquanto os dois


caminhavam até o carro.

— Estou rindo porque achei engraçado — confessou o pai.

— Como assim?

— A perna da cadeira em que ela estava sentada estava bamba, você


percebeu?

— Na verdade, não. — Guilherme sorriu timidamente, ainda constrangido


com a situação.

12 Fique
— Imagina se ela cai!

— Seria engraçado — disse o garoto com malícia.

***

“Ah, finalmente” — murmurou a plateia.

As cortinas se abriram e lá estavam os três, sentados. A cadeira


bamba. Uma voz rouca assusta a todos. Agora, sim, era Deus. Se não
fosse, ou o contrarregra ou o sonoplasta estavam, pelo menos, se
passando por ele.

“Isso é um absurdo!”

A plateia concordou. Que peça absurda e sem comédia. No cartaz,


dizia-se: a peça mais irônica que você já viu. Mas, então, onde estava
a ironia?

Os três atores olharam para o alto. Nisso, a mulher se inclinou tanto,


mas tanto, que derrubou a cadeira por si só e estabacou-se no chão.

Pai e filho foram acudir. A voz rouca exclamou, em tom de surpresa.

“Isso não era para acontecer!”

A cortina se fechou e, no fim, a peça tornou-se engraçada e não


irônica.

O final era para ser bem diferente.

O garoto descobriria que a mulher tinha um ajudante, um daqueles


falsos, que ficava o dia todo na janela escutando os vizinhos. Ele se
escondia atrás da porta para se passar por Deus.

A mulher não passava de uma charlatã. A plateia foi embora achando


engraçado o que era para ser irônico e, até, um pouco trágico.

***

Fique 13
Rodrigo sempre foi categórico ao afirmar: “filho meu não vai ser gay”.
Uma vez, enquanto jogavam comida para os patos no lago do horto florestal,
avistaram dois homens caminhando de mãos dadas pela trilha ali por perto. É
claro que Rodrigo não perdeu a oportunidade de expor o que pensava:

— Olha isso, Guilherme, que ridículo aqueles dois. Eles vão queimar no
fogo do inferno. — Guilherme tinha dez anos quando isso aconteceu.

Conforme foi crescendo, o menino escutava, a cada dia, que ser


homossexual era um pecado absurdo. Que um homem gostar de outro
homem ou uma mulher gostar de outra mulher era nojento. Que Deus nunca
aceitaria um homossexual no reino d’Ele, etc. Coisas que todos nós estamos
exaustos de ouvir por aí.

Mas Guilherme era uma criança. Ele cresceu admoestado, condenado


ao inferno. E que surpresa foi quando ele descobriu que seu pai também tinha
uma vaga reservada ao lado do Diabo. Aquele homem, que tanto pregava
sobre a família, subia no altar para apontar o dedo e julgava as pessoas pelas
suas condutas fora da doutrina de Deus. Logo, “não julgarás para não ser
julgado” não era um decreto seguido por Rodrigo. Muito menos “amarás o
teu próximo como a ti mesmo”.

Cada um tem a sua religião, é claro, mas o que me revolta é saber que
tantas crianças e adolescentes são treinadas para pregarem o ódio. Elas
crescem em ambientes preconceituosos ao invés de serem educadas para o
amor. Elas aprendem que o inferno está repleto de pessoas más, pecadoras,
e igualam o homossexual ao pedófilo, igualam o assassinato ao amor entre
dois homens ou duas mulheres. O amor é divino independentemente de sua
forma. Mesmo assim eles nos empurram o ódio, camuflado de ressurreição.
Pregam a intolerância, camuflada de obediência. Disseminam o preconceito,
camuflado de religião.

O falso poder de decisão que Guilherme teve naquele dia é o mesmo que
eles pregam a nós. Perguntam-nos se queremos mudar. Perguntam-nos se
queremos seguir a Deus e aceitá-Lo como o nosso único salvador. Obrigam-

14 Fique
nos a ser quem não somos. Fazem isso com a certeza de que a nossa essência
vai mudar.

Mas não, ela não vai. Deus nos criou assim e permaneceremos assim.
Ninguém escolhe ser gay, ou lésbica, ou trans, ou bi, ou seja lá o que for.
Apenas nascemos assim. Alguns tentam criar um desejo forçado e se passam
por heterossexuais. Casam-se, têm filhos. Mas a essência permanece lá,
guardada, esperando uma oportunidade para se libertar.

***

“Nós confiamos em você”. “Você é o orgulho da família”. “Guilherme?


Nunca me deu trabalho”. “Ele é um amor de menino”. “Ele não faz nada de
errado”. “O Guilherme está até pregando na igreja”. “Nossa! Que menino
abençoado”.

Quando ouvimos frases como essas, além da repentina dor de cabeça,


já que, geralmente, são ditas por uma daquelas tias com a voz absurdamente
aguda, o nosso orgulho se infla. Mas o peso sobre os nossos ombros aumenta.
Começamos a pensar e a agir para agradar o outro e nos esquecemos de
existir. Guilherme sentia-se obrigado a ser o menino prodígio da família. A
igreja fazia-o reprimir seus sentimentos e o forçava a ser quem ele não era.

Viver a expectativa de alguém pode ser um fardo pesado demais para


se carregar. Guilherme tinha apenas 16 anos. Vivia pressionado por coisas
demais. Coisas que, na maioria das vezes, nem eram compatíveis com a sua
idade.

O mundo do menino era cercado de expectativas alheias. A expectativa


da mãe, cujo desejo era vê-lo se tornar um profissional bem-sucedido o mais
rápido possível. A expectativa do pai de ter um filho que fosse um grande
pregador da palavra de Deus. A dos avôs, de vê-lo com uma mulher perfeita
para se casar, e tantas outras que, juntas, pareciam um cardápio de um
restaurante japonês, de tão complexas que eram.

Fique 15
Para piorar a situação, Guilherme começou a criar as suas próprias
expectativas. Deixar de ser gay estava no topo da lista. Evidentemente, isso
o fez adoecer.

O primeiro problema mais sério manifestou-se no meio de uma noite,


pouco antes das provas dos vestibulares. Ele acordou assustado, sentia-se
preso em uma caixa de ferro que o apertava cada vez mais. Claustrofóbico,
um desespero o invadiu. Mal respirava. Levantou-se e jogou um pouco de
água no rosto, sentiu o seu coração acelerar.

Guilherme tentou respirar normalmente, tentou se acalmar. No fim,


teve que acordar a sua mãe e correr ao hospital. O diagnóstico foi rápido:
ataque de pânico. O médico aplicou um calmante intravenoso, o que fez o
menino apagar. Depois disso, as crises de ansiedade tornaram-se quase que
rotineiras.

Se eu estivesse com ele naquele momento, se eu pudesse abraçá-


lo.... Dizer que as coisas melhorariam futuramente. Falar para que ele se
acalmasse e respirasse, encostado no meu peito. Talvez acariciá-lo, mexer
nos seus cabelos do jeito de que ele gosta. Sentir a sua respiração na minha
pele enquanto eu o envolvia nos meus braços. Talvez assim fosse mais fácil
para ele enfrentar tudo aquilo.

Quem sabe ele se esquecesse das tantas expectativas e preocupações


por um minuto. Eu estaria ali, abraçando-o, enrolando seus cabelos com
meus dedos e contando uma história para distraí-lo, ou me deitaria na cama,
ao seu lado, encostando o meu corpo junto ao dele para que o meu calor o
aquecesse. Talvez eu simplesmente permanecesse ali esperando tudo passar.

***

Assim, de uma hora para a outra, tudo o que estava bem some, sem
mais nem menos. A respiração começa a acelerar. Não demora até

16 Fique
que lhe falte o ar. O corpo começa a tremer. As mãos a formigarem.
Aos poucos ele desaparece.

Tudo começa a girar. Uma forte dor de cabeça lhe causa náuseas.
Mesmo solto, ele se sente amarrado. Confuso, dentro de uma caixa
suficientemente pequena, minúscula, seu sentimento é de estar em
queda livre e, ao mesmo tempo, enterrado a dez palmos.

O coração acelera mais ainda. As palavras somem de sua boca. Ele


estava bem. Agora, não tanto. Sua cabeça dói. Seu estômago revira,
contorce-se. Os olhos estão turvos. É cada vez mais difícil respirar.

É sufocante, angustiante, desesperador, sentir-se amarrado, preso,


enterrado. Levam-no ao hospital. Não precisa enfrentar fila ou
esperar. Ele quase não consegue respirar. Está ofegante. Treme. Sua.
Geme.

O socorro vem como um alívio quase que instantâneo. Ele sente o


coração desacelerar. Seu corpo amolece. A droga o invade. Sua mente
some. Agora, o garoto não sente mais medo ou pânico, muito menos
está ansioso. Agora, ele dorme profundamente, como uma criança
cansada e inocente. Como se não houvesse com o que se preocupar.

Fique 17
Capítulo 2: A doutrina mata

C
onfiar, segundo algum dicionário, significa “acreditar na
verdade das intenções ou das palavras de alguém”. Guilherme
confiava em Deus. Para ele, o recado que Deus transmitia era o fim de sua
homossexualidade. O garoto acreditava, com todas as suas forças e fé, que
deixaria de ser gay.

Sabemos que não é fácil reconhecer algumas coisas em nossas vidas.


Alguns não conseguem aceitar quem são mesmo depois de anos relacionando-
se com outros do mesmo sexo. Ser homossexual é equiparado a enfrentar,
diariamente, um monstro impiedoso. (Mas, afinal, a vida por si só já não é
monstro o suficiente para termos de encarar ainda mais um problema com
esse olhar?)

Muitos confiam que ser homossexual é passageiro, como uma fase ou


uma escolha. E todos nós sabemos que confiança e decepção são palavras
frequentemente correlacionadas, de uma forma amarga.

Você confia que o Brasil será campeão do mundo, mas se decepciona


quando ele deixa a competição em uma goleada histórica. Você confia que
um impeachment é a solução econômica do país, mas se decepciona quando
o desemprego aumenta. Você confia na promessa de um amor eterno, mas
se decepciona quando descobre uma traição. Da mesma forma, Guilherme
confiou que Deus o libertaria daquela “prisão”, mas se decepcionou ao
entender que aquele Deus não existia.

Quando você confia, você espera, você acredita e luta. O garoto guerreou
e perdeu anos de sua vida. Guilherme viveu na sombra de um ideal pregado
pela igreja, aquele padrão tão santo e imaculado que nem o mais correto
conseguiria alcançar. Ele cresceu com a certeza de que iria para o inferno se
continuasse a trilhar aquele caminho.

Fique 19
A certeza de que beijar outro rapaz era um pecado imperdoável acabou
por transformá-lo em um menino depressivo, inexpressivo e que lutava
contra as próprias emoções. A batalha diária contra aquilo tornou-o amargo
e insensível. No final das contas, aquele Deus que o pai de Guilherme pregava
acorrentou-o, em vez de libertá-lo.

A doutrina consome e extingue a sua esperança de aproximar-se de


Deus. A doutrina é cruel. Até hoje, não entendo como a religião tornou o
homem tão pragmático e cego. Como usar brinco vai me fazer ir ao o inferno?
Por que a tatuagem é tão diabólica? Por que ser gay vai fazer-me sofrer pela
eternidade?

Essa doutrina que as religiões pregam não podem mudar a nossa


essência, e o pecado que ela acusa só nos afasta de nós mesmos. Mas afinal,
como Deus pode decretar errado aquilo que Ele mesmo criou?

É um absurdo acreditar em que fomos concebidos para estarmos


fadados ao inferno. Porque, se você ainda tem dúvidas, eu reafirmo, ser gay
não é uma escolha. Eu não tive o livre arbítrio da mesma forma que tenho
quando escolho o que vou querer no jantar ou qual roupa vestir.

Guilherme passou por isso. Ele acreditou em que estava condenado


por ser homossexual. Ele lutou, fez campanhas de oração, jejum, propósitos,
desafiou a Deus, chorou, e tudo continuou na mesma, é claro. A decepção por
não conseguir alterar a sua preferência sexual foi gigantesca, Guilherme ficou
arrasado ao perceber que as coisas nunca seriam normais para ele. Pensou
que nunca teria filhos, pensou em fugir de si mesmo, pensou em acabar com
tudo.

Ele se considerou um pecado por inteiro. Cogitou estar possuído depois


de tanto escutar sobre possessões. Pensou em tantas e tantas coisas que não
eram saudáveis. Ele perdeu a conta de quantas vezes passou em sua mente
a ideia de tomar uns compridos a mais, pular de algum lugar alto, cortar-se
com uma faca...

20 Fique
É sempre um ponto delicado falar sobre suicídio. Contudo, você deve
entender que o suicídio não é frescura ou uma fase. Suicídio é uma doença, é
um “câncer”. Ele destrói não só quem se foi, mas também aqueles que ficaram.

No começo os pensamentos são pequenos, então você acaba os


ignorando, deixando-os de lado. Conforme o tempo passa, no entanto, tudo
fica mais intenso: você chega a ir até uma rodovia e por pouco não se permite
cair na frente de um caminhão, você tira todos os comprimidos da cartela de
remédios e quase os coloca na boca....

Alguns de nós não tiveram a coragem de chegar até o fim, mas vontade
não faltou. Se você desiste, além de tudo, ainda é preciso lidar com a sensação
de impotência que o invade. Sejam bem-vindos ao mundo do Guilherme
daquele tempo.

“Eu sou fraco”, ele pensava. Mas era forte. Na verdade, todos nós somos.
O fim não é a melhor saída. Nós podemos e conseguimos continuar. Ser o que
nós somos não é um pecado, pecado é matar a essência da vida por causa das
superficiais opiniões alheias.

***

Ele se levantou, mais um dia normal, quinta-feira. Escolheu uma


roupa casual. Tomou banho. Vestiu-se. Tomou café, comeu o
máximo que aguentou. Escovou os dentes e, pontualmente às 9
horas, saiu.

Atravessou a rua com cuidado, olhou para os dois lados. Continuou


andando calmamente por mais três quadras. Satisfeito com o
desjejum que havia feito e com as cartas escritas. Tudo estava pronto.
Ele achava que precisava daquilo.

Quando chegou, ficou lá, olhando tudo atentamente. O vai e vem


dos carros. A música da oficina ali de perto. As pessoas andando

Fique 21
apressadas sem que o notassem. Todas aquelas pessoas... talvez
alguma delas houvesse se perguntado o que ele fazia ali. Outras nem
o notaram mesmo. A vida é corrida, é normal não notar a presença
de alguém que precisa de ajuda.

Dez. Vinte. Quarenta minutos. O movimento de pedestres diminuiu.


Já eram 10 da manhã. Ele não deveria estar mais ali, faltava-lhe
coragem. Logo ele, que por tanto tempo refletiu e planejou como
seria. Calculou a queda, a probabilidade de uma morte instantânea.
A passarela era perfeita.

Era perfeita porque era perto de casa e era alta. Ele apenas esperava
que o movimento diminuísse. Afinal, não queria pular em cima de
nenhum carro e assustar um motorista. Ele só queria ir embora.

A essa altura ela já devia ter lido a carta que ele deixou. Ele pensa
que não tem mais volta, que voltar seria a maior covardia de sua
vida. Pelo menos no dia anterior conseguiu despedir-se. Abraçou-a
fortemente, chorou em seus ombros. Ela estranhou, é claro, mas não
disse nada além do eu te amo.

O eu te amo não foi o suficiente para lhe fazer ficar em casa e esperar
a van escolar. Ele até que tentou, mas as suas palavras não foram
o suficiente. Lembrou-se do seu rosto. De todos os anos que ela
dedicou para educá-lo e protegê-lo. Ela fez o melhor que pôde. Ela
é a melhor mãe de todas.

Ele achava que não tinha mais volta, seria um covarde se não
pulasse. Sentou-se na beirada. Inclinou-se. Um carro buzinou, era a
sua mãe. Ela o olhou por um instante. Suas pernas fraquejaram, ele
desistiu no último segundo, e escolheu a vida.

***

22 Fique
Para Guilherme,

Meu amor, eu sei que as coisas ficaram complicadas naquele tempo,


quando ainda não tinha os seus 18 anos. Eu sei que tentou ir embora
desse mundo algumas vezes e, graças a um verdadeiro Deus, você
foi corajoso o suficiente para continuar lutando. Eu sei, meu anjo, as
coisas nunca foram fáceis. E lamento dizer que nunca serão.

Um dia, esse sentimento terrível pode lhe invadir novamente. Meu


único desejo é o de estar ao seu lado nesse momento. Peço a Deus,
com todas as minhas forças (não àquele deus que quase lhe tirou a
vida, mas ao verdadeiro), que me permita estar ao seu lado, quando
você precisar.

Você não está sozinho. Você não precisa ser forte o tempo todo. Eu
quero e vou estar aqui. Eu vou ajudá-lo a superar o que for. Apenas
não desista dessa efêmera vida. As coisas já passam tão rápido, então
por que encurtá-las ainda mais?

Não desista de viver. Eu lhe imploro. Nunca desista de respirar. Até


o último segundo, até o último suspiro, lute! Lute por todos aqueles
que não conseguiram. Lute por todos aqueles que perderam suas
vidas por causa do preconceito e do ódio. Lute por todos aqueles que
foram reprimidos ao ponto de desistirem.

Você não é fraco. Você tem que lutar. A vida é assim mesmo... existem
horas que a gente só quer sumir e aparecer em outro lugar. Deixar
tudo de lado. Desistir. Mas você é forte! E agora eu estarei sempre ao
seu lado. Não desista, por mim!

Por mais que, um dia, o destino resolva nos separar, por mais que
o meu abraço não consiga encontrá-lo... eu estarei com você, eu
estarei no céu olhando para você. Torcendo por você.

Por muito tempo, desejei tê-lo encontrado antes. Desejei ter estado
com você naquela época em que quase partiu. Mas sabemos que
não estávamos prontos um para o outro. Meu amor, Deus sabe,

Fique 23
exatamente, o que faz. Não deixe a sua fé ser apagada. Não deixe que
o deus que eles pregam acabe com a sua fé.

Deus está conosco, Ele nos ama. Independentemente do que você


é, Ele o ama. Não desista de buscá-Lo. E se você precisar chorar e
confessar os seus erros para Ele, assim o faça. Se você precisar de, que
seja por um momento, implorar para Ele, assim o faça.

A verdade é que, no fim de tudo, nós estaremos juntos para todo o


sempre. Porque Deus já traçou a nossa história. Eu o amo e sei que
você sempre vai precisar de mim, então deixe que eu cuide de você.
Permita-me amá-lo. Entregue-se a esse amor e continue lutando
pela vida.

Com amor,

***

No segundo colegial, Guilherme resolveu morar com Rodrigo. O


verdadeiro motivo da mudança era que o menino tinha visto uma oportunidade
de lutar contra a sua homossexualidade. Ele achava que, morando com o pai,
acabaria por vencer o desejo diabólico que tinha.

É claro que ele estava profundamente errado. A situação piorou,


tanto psicologicamente quanto financeiramente. Rodrigo enfrentava outra
separação, a sua casa era uma “baderna emocional”, sem estruturas. Além
disso, não tinha um emprego fixo e mal conseguia pagar o aluguel.

Dentro desse contexto o menino se debruçava na heresia e colocava


todas as suas forças e fé em Deus. Ele estava totalmente perdido e infeliz. E
todos aqueles encontros teatrais na igreja faziam-no confundir a realidade
com a fantasia. Guilherme fantasiava uma vida perfeita, em que se casaria com
a mulher mais bonita da igreja. Uma vida na qual sairia por aí disseminando a
palavra de Deus. Uma vida em que ele não fosse gay, em que tivesse dinheiro,
amor e paz, ou seja, o final de um filme hollywoodiano.

24 Fique
Na realidade, o menino empobrecia-se cada vez mais, tanto
financeiramente como espiritualmente. Hipócrita e triste, sem nenhum
suporte emocional. Aos 16 anos, a vida de Guilherme estava totalmente de
cabeça para baixo. “Deus vai intervir”, dizia para si mesmo. E, assim, lutava de
todas as maneiras para esquecer a homossexualidade. Em alguns momentos
chegou até mesmo a se pronunciar contra os homossexuais.

Depois de um tempo a situação agravou-se. Guilherme entrelaçou-se


com o âmago da igreja e começou a subir no altar e a pregar contra a sua
própria essência, dizendo que ser gay era o pior pecado de todos, que estavam
condenados ao inferno e tudo mais. Isso o levou a se martirizar, privando-se
de comida e sono, tentando enfrentar o inevitável.

Enquanto isso, o pai passava por uma crise financeira grave e era quase
despejado. O pastor da igreja foi quem ajudou-os, emprestando uma quantia
considerável de dinheiro. Ele tinha uma filha, chamada Margarida. A garota
possuía 16 anos, a mesma idade de Guilherme, e também era solteira. Era tão
magra que apresentava raquitismo. Depois de certa pressão e fanatismo do
pai, Guilherme decidiu gostar de Margarida. Era a solução mais evidente para
combater a homossexualidade.

De qualquer forma, o rapaz entrou num beco sem saída. Por mais que
quisesse transar com a menina para seguir o caminho correto, ele não podia, já
que a igreja não permitia o sexo antes do casamento. Irônico é saber que, para
se livrar de um pecado, teria que cometer outro.

No fim, mulher, peito e vagina não eram palavras que chamavam a


atenção de Guilherme. Ele estava mais interessado nos homens. De certa
forma, por algum tempo, o menino jogou nos dois times. Não que ele e
Margarida tenham chegado até a cama, o casal mal se beijava, mas ele fingiu
tão bem gostar da menina que acabou convencendo a todo mundo de que era
heterossexual.

Ele não sentia atração por ela. Ele sentia tesão quando olhava os meninos
musculosos da escola, desejando-os. É claro que, depois de pecar, ele pedia

Fique 25
perdão a Deus e subia no púlpito para pregar o evangelho. Simples assim, não
é mesmo? Guilherme tentava mascarar a sua essência, e nós sabemos que
isso não é uma boa maneira de se levar a vida. O namoro com Margarida foi
um extremo fracasso, não durando quatro meses completos.

Finalmente, poucas semanas antes de decidir voltar a morar com a


mãe, o rapaz já começava a aceitar a ideia de que sua orientação sexual não
iria mudar. Por sorte, o contato com Rosa não havia diminuído. Mãe e filho
sempre foram muito apegados.

Confesso que, se o menino não tivesse passado por tudo o que estou
relatando, as coisas poderiam ter outro final. Talvez ele não me salvasse tantas
vezes, como salvou. Afinal, se conto essa história, é só porque Guilherme
existe, porque, se ele não tivesse me encontrado, eu não estaria aqui.

***

— Meus amados — gritava o pastor —, o homossexualismo é


abominável, é uma doença. O próprio nome já diz. Homem beijando
homem. Mulher beijando mulher. Todos têm passagem direto para o
inferno. O caminho mais fácil é sempre o caminho do inferno.

A igreja escutava atenta. Todos tinham seus olhos vidrados. O homem


no altar pulava, e gritava, e balançava a bíblia acima da cabeça. Um
ouvinte, como Guilherme, estava mais interessado no sermão que os
demais. O pastor continuava. A cabeça daquele rapaz de camisa azul
doía, latejava, com raiva.

Finalmente, o rapaz levantou-se e resolveu ir embora. O pastor


percebeu o movimento e não perdeu a oportunidade:

— E lá se vai mais um desgarrado que não aguenta ouvir a verdade.

O tom da camisa azul fez contraste com o vermelho no rosto do


rapaz. Ele respirou. Controlou o ódio. Controlou a vontade de querer

26 Fique
subir naquele altar para derrubar o pastor e fazê-lo sangrar até a
morte. Virou-se calmamente e, em alto e bom som, sem microfone,
sem pudor, sem vergonha e sem mais raiva, disse, pausadamente, a
verdade:

— Espero que, na próxima vez em que você quiser liberar esse ódio,
não seja comigo de quatro na cama.

Uma mulher levantou-se chorando. O microfone caiu das mãos do


pastor. Os outros hipócritas riram de sua queda. O rapaz, triunfante,
saiu andando com passos vagarosos e a cabeça erguida em direção à
porta.

***

Aos quase 18 anos, Guilherme passou no vestibular de Arquitetura em


uma cidade distante de onde morava. A oportunidade de ser livre, finalmente,
tinha chegado. A essa altura, ele já havia entendido que não deixaria de ser
gay e estava ansioso para ter as suas primeiras experiências.

Acredito que Guilherme demorou para ter certeza de sua orientação


devido às circunstâncias em que estava inserido. Se fosse um ambiente mais
aberto e menos hostil, ele já teria algumas histórias de amor para nos contar
e não estaríamos nessa dramática descrição de sua infância e adolescência.

Naquela época, Rosa estava em uma situação financeira extremamente


confortável. Isso fez com que ela decidisse que o rapaz moraria em um
apartamento no centro da cidade, próximo a mercado, farmácia e hospital.
Tal regalia facilitou muito a vida do menino. Não ter nenhum colega de quarto
permitia que ele estudasse afinco e pudesse ter seus encontros com outros
garotos sem se preocupar.

Morar em outra cidade trouxe, temporariamente, a tão esperada


sensação de liberdade, mas sinto dizer que era falsa. Embora ele já se
enxergasse como homossexual, ainda não conseguia lidar bem com o modo

Fique 27
como Deus o veria. Mas é claro que tudo aquilo era difícil para o Guilherme.
Criado na igreja, cresceu doutrinado e com uma visão muito limitada de
mundo. Isso causava-lhe medo de ter que deixar tudo para trás e viver por
conta própria a partir dali.

Conforme os meses se passaram, Guilherme confundia-se cada vez mais.


Ser gay ou não pecar? Ir à igreja ou beijar outro rapaz? Céu ou inferno? Deus
ou diabo? A liberdade trouxe o desespero contra a dualidade de pensamento
que o afligia. E o desespero trouxe a vontade de desaparecer, mais uma vez.

Foi então que os pensamentos suicidas invadiram, como nunca, a mente


do menino. Morrer era a solução óbvia. Era o que iria trazer paz e descanso.
Resolver-se-ia tudo, se não existisse mais. Contudo, Elis nasceu. A irmã de
Guilherme veio ao mundo em um momento crítico para o garoto e o salvou.

O amor o salvou. A igreja não teve tamanha habilidade, nem mesmo


seu pai, tentando impor doutrinas. O mais puro e incondicional amor, aquele
que vem do sangue, foi o que fez Guilherme olhar para o mundo com outra
perspectiva. Ele precisava ser forte porque alguém precisava dele. Foi por
esse ideal que o garoto ressurgiu das cinzas e voltou à vida.

Elis restaurou a esperança de Guilherme para um futuro. Ele imaginou-


se cuidando da irmã, protegendo-a, indo ao seu casamento. A promessa de
um mundo melhor foi feita quando Rosa e Jorge conceberam a pequena
princesa da família.

A pequena irmã foi sua grande alegria, mas não foi o suficiente para
ajudá-lo por muito tempo. O nascimento de Elis foi só o primeiro passo para
sua mudança. Era hora de ser quem ele era e sentir o que deveria sentir. A
partir de agora, apresento a vocês o Guilherme que conheci.

A mudança foi gradual. Depois da irmã, Guilherme buscou ajuda


profissional. Quem o apoiou e insistiu para que ele começasse a frequentar
uma psicóloga foi a sua tia Joana. Ela morava na mesma cidade que o restante
da família de Guilherme e tinha 32 anos, formada em Administração, tipo
nerd.

28 Fique
Joana ajudou a trocar fraldas e a dar comida quando Guilherme ainda
era pequeno. Ajudou-o com a mudança de cidade e sempre se manteve
presente. Casada com Pedro, seu único namorado desde a adolescência. Ela
foi a primeira a ter uma ideia do que estava acontecendo. Dois meses depois
que Guilherme mudou-se de cidade, ela o visitou. O menino decidiu se abrir
nessa ocasião.

Com os olhos lacrimejando e com as mãos trêmulas e suadas, ele


confessou a Joana que precisava desabafar com alguém e que não conseguia
guardar mais aquele sentimento só para ele. A tia logo prontificou-se, com ar
preocupado e semblante sério, sentando-se ao lado de Guilherme.

Ainda receoso, o garoto começou desabafar, dizendo que estava


conversando com alguém e que estava com medo de que Rosa e Rodrigo
reagissem mal. Joana relaxou e sorriu:

— Ah! É normal sentir-se apaixonado na sua idade. Aproveite o


momento, só tome cuidado para não a engravidar, porque daí as coisas ficam
complicadas. Tenho a certeza de que seus pais vão entender a situação.

— Acho que é você quem não está entendendo. — Ele provavelmente se


engasgou.

— Me explique melhor, então, Gui. — Joana encarou-o confusa.

— Eu estou conversando com um menino. Talvez eu não goste de


meninas... — confessou em voz alta, pela primeira vez, saboreando as palavras
com gosto adocicado e amargo ao mesmo tempo.

Joana fingiu retirar um pelo da roupa e desviou o olhar. Ela disse que
entendia, mesmo sem compreender nada. Guilherme aguardou que a tia
retomasse a compostura.

— E você tem a certeza de que é isso que você é? — ela concluiu.

Não! Ele estava confuso, um caos, e ninguém poderia ajudá-lo naquele


momento. Guilherme precisava de um tempo.

— Sim. — Foi o que saiu de sua boca.

Fique 29
— Guilherme, eu estou aqui e, independentemente, de quem você goste
ou deixe de gostar, eu sempre vou estar aqui para te apoiar — afirmou Joana,
retomando o olhar diretamente para Guilherme.

Ele a abraçou e deixou que as lágrimas escorressem pelo o seu


rosto, aliviando-se. Ela esperou que Guilherme se aprumasse, colocou os
pensamentos no lugar, imaginou que aquilo era só uma fase, e resolveu que
o menino deveria buscar ajuda profissional para orientar-se. Então indiciou
um psicólogo:

— Você precisa de ajuda profissional, vá atrás de um psicólogo, coloque


as ideias no lugar. Daqui a pouco as coisas estão normais de novo. — Ela o
fitou, analisando a sua reação. — Eu mesma estou fazendo terapia, é uma
solução a longo prazo, mas é excelente. Recomendo.

— Obrigado, tia — ele agradeceu, abraçando-a novamente, agora de


forma mais seca, desconfiado, indagando-se se estava agindo de forma
correta ao se abrir com alguém.

Assim que teve a oportunidade, Guilherme seguiu as orientações da tia e


procurou um psicólogo para ajudá-lo. Ele optou por uma mulher, pois sentiu-
se mais confortável. Noemi era, literalmente, doutora. Formou-se na melhor
faculdade de psicologia do país. Tornou-se mestre e doutora em sexologia.
Era a mais requerida na cidade quando o assunto era orientação sexual. Ela
aparentava ser mais nova do que o RG acusava, tinha cabelos longos com
mechas loiras, usava roupas floridas e transmitia uma sensação incrível de
tranquilidade.

Na primeira sessão, o menino preferiu não falar sobre a sua


homossexualidade e tentou focar no seu relacionamento com o pai. Assim
que adentrou no consultório, Noemi o recebeu alegre, pedindo para que ele se
sentasse onde se sentisse mais confortável.

O lugar tinha cinco poltronas, sendo duas delas iguais de cor vermelha,
uma poltrona dupla escura, uma chaise também escura e uma última poltrona
marrom, ao lado de um pequeno criado mudo, na qual Noemi já se encontrava

30 Fique
sentada. Guilherme escolheu uma das vermelhas, agradecendo a simpatia da
mulher.

A primeira pergunta foi a esperada: O que fez você procurar a terapia?


Com postura profissional e sem deixar de sorrir, Noemi guiou a conversa
até o ponto em que Guilherme se sentiu à vontade para começar a se abrir.
A reclamação inicial foi sobre o relacionamento com o pai, já que, a partir
daí, conseguiria traçar uma história para contar sobre a homossexualidade e
pedir a ajuda de que precisava.

Noemi balançou a cabeça positivamente e começou a explicar como


funcionaria a terapia, inclinando-se levemente para a frente e falando pelos
próximos vinte minutos, detalhando todo o processo. Depois de finalizar a
explicação, e de uma breve explanação de Guilherme com as informações
básicas de sua vida, como idade, profissão, cidade natal, etc., Noemi começou
efetivamente a sessão:

— Como é seu relacionamento com o seu pai? — perguntou ela,


rabiscando algumas palavras em um bloco de papel.

— Bem ruim, eu acho. Não conversamos muito, ele não me liga para
saber se estou bem. Ele não me ligou nem no meu aniversário este ano. Ele
não se importa com as coisas da faculdade, por sinal. Acha que estudar é
perda de tempo. Mas ele me ama, eu acho — explicou afobado, disparando
tudo o que lembrava.

— Com toda a certeza ele o ama. — Noemi sorriu, mantendo uma voz
suave e doce. — Você já tentou fazer algo para se aproximar dele?

Então Guilherme contou a história de quando moravam juntos. De todas


as tentativas de aproximação e de como era frustrante. Tudo o que já descrevi
até aqui. Isso tomou os outros trinta minutos da sessão. Noemi encerrou,
deixando uma reflexão para o rapaz, pedindo para que ele se esquecesse um
pouco dos pais e pensasse mais nele. Do que Guilherme estava precisando
naquele momento? Quais eram as dores e as alegrias do Guilherme? O que o
Guilherme planejava para o futuro?

Fique 31
O menino estranhou ouvir o seu nome tantas vezes em perguntas tão
“egoístas”, mas aceitou o desafio. Ela levantou-se, abraçou-o rapidamente e
despediu-se. Noemi era a pessoa certa para guiá-lo em suas descobertas, bem
como para fortalecê-lo nas questões familiares e sexuais.

***

Eu achava a vida tão fácil, mas descobri que não é bem assim.

Uma vez fiquei sabendo de um rapaz que se matou. Há um outro que


quase conseguiu também. Eles reclamavam de que a vida era difícil,
porque ninguém os entendia.

Resolvi pesquisar a história dos dois. Aquele que morreu estava em


um pé de guerra com a família. Parece que o pai batia nele. Deixava
uns roxos pelo corpo do rapaz. A mãe era quase uma cúmplice. Não
batia, mas permitia que o pai batesse.

O outro, o que quase morreu, passava por algo parecido. Mas era a
mãe que o espancava. O pai foi morto umas semanas antes de ele
nascer. A mãe era a sua única família. Então, ele tentou desistir e
acabou por tomar uns comprimidos a mais.

A mãe do que morreu matou-se meses depois. O pai parece que


se internou em uma clínica de reabilitação por excesso de uso de
drogas. O menino tinha 15 anos. Ele gostava de outros meninos.

A mãe do que quase morreu arrependeu-se. Encontrou o filho


desmaiado no chão do quarto. O bilhete que ele deixara só tinha uma
frase. A frase a salvou. Ele quase morreu, mas, no fim, a mãe pôde
responder para o garoto, já acordado, que também o amava. Ele
tinha 16 anos, agora tem 45. Casou-se com um rapaz alto de olhos
azuis e adotaram três crianças.

32 Fique
Às vezes você tem a sorte de continuar respirando. Às vezes, não.
Será que aquele belo garoto que morreu não estaria, agora, casado?
Será que a mãe não estaria a salvo? E o pai? E as pobres crianças que
poderiam ter sido adotadas? Tudo acabou, porque o ódio permeia
todos os relacionamentos humanos.

Agressão é crime, eu quis gritar. Mas eu sabia que agredir um gay


não é um crime tão grave assim para alguns. Agredir um gay é uma
lição e não um crime, muitos dizem.

Foi quando percebi que a vida é dura. Ela é difícil porque as pessoas
são más. As pessoas matam. Elas roubam a esperança e destroem
a liberdade do outro. A vida é dura porque os homens ignorantes e
preconceituosos ainda existem. Mas como eles deixariam de existir?
A cultura é essa. A tradição é essa, desde sempre, desde o livro de
Gênesis. Ser ignorante e preconceituoso é aceitável. Eles podem
matar e matam. Eles podem agredir e agridem. Como eles deixariam
de existir, se o conceito de sociedade cresceu a partir deles?

Talvez a ciência, um dia, prove que nascemos assim. Mas, talvez,


nascer assim seja visto como uma doença. Uma anomalia genética.

O preconceito é a maior doença que a sociedade criou. A vida é difícil


porque o homem a tornou difícil.

***

Conforme o tempo passava as sessões ficavam mais intensas. Guilherme


já sentia-se mais à vontade com Noemi e resolveu falar sobre a sua orientação
sexual, tentando, sempre, suavizar o assunto, como se a psicóloga não fosse
expert na área:

— Eu tenho sentido umas coisas estranhas ultimamente.

— Umas coisas? Dor de barriga? — Noemi brincou, rindo de forma

Fique 33
discreta. Guilherme sorriu e gaguejou a próxima frase como se estivesse
sendo vítima de vários golpes consecutivos no estômago.

— Eu acho que... talvez... bem provável... não sei... talvez, eu... talvez...
eu... goste de... meninos! Falei!

Era a segunda vez em menos de um mês. Agora, parecia mais doce do


que amargo. Não que tivesse sido um mel dos deuses colhido das abelhas da
Grécia antiga e enlatado pelos anjos com suas asas celestiais, mas podemos
dizer que foi mais fácil.

Noemi não se surpreendeu. Estava acostumada com essas situações.


Pelo contrário, até sorriu e parecia já saber antes de Guilherme contar. Mesmo
assim, ela o indagou sobre o que o levava a pensar daquela forma.

Tudo! Tudo o levava a pensar daquela forma. O jeito que ele olhava para
os meninos, a forma em que ele desviava o olhar quando os amigos olhavam
pornô heterossexual na escola, a atração sexual que pulsava em seu corpo
quando avistava um musculoso com um shortinhos e regata de academia e,
até, quando ficava excitado assistindo os filmes do Ashton Kutcher.

Porém, isso não significava que Guilherme queria ser gay! Segundo o
seu pensamento, estava fadado ao inferno, e Deus o condenaria e pagaria com
a sua alma esse pecado diabólico.

— Você vai para o inferno por gostar de outros homens? — Ela levantou
as sobrancelhas, arregalando os olhos, estupefata.

— Sim, é o que meu pai fala... quer dizer, é o que a igreja prega — ele
respondeu desconcertado.

— E você acredita nisso? — Ela recompôs a sua expressão suave, como


o habitual.

— Sim. — Respondeu.

— Entendo. Mas você não acha que existem algumas coisas que o homem

34 Fique
não pode controlar? Como é o seu caso... não se tem o poder de escolher
gostar de homem ou mulher, nós nascemos com isso.

— Eu sou um fracasso para eles. Como vai ser quando eles descobrirem?

— Eles?

— Meus pais, minha família. Eu sempre fui o queridinho deles —


Guilherme continuou.

Noemi pareceu refletir por um momento enquanto bebia um gole de


água, totalmente inexpressiva.

— Então o problema não é o que Deus acha de você, mas o que seus
pais acham? — indagou-o, pousando o copo no criado-mudo delicadamente.
Se o copo fosse um sapato de cristal, e estivéssemos vivendo um conto de
fadas, talvez se encaixasse perfeitamente em seus pés, tamanha a sutiliza do
momento.

— Não, o problema é o que todos acham.

— Mas e o que VOCÊ acha?

— Eu acho que eu não posso evitar. É o que eu sou.

Noemi sorriu, a sessão mais uma vez chegava ao fim. Ela estava satisfeita
com o progresso.

Fique 35
Capítulo 3: Essa saliva não é minha

D
epois de um ano inteiro de terapia, e conforme as instruções de
Noemi, Guilherme tentou se abrir um pouco mais ao “mundo
gay”. Porém, ele acabou por entender errado o que a psicóloga queria dizer
e resolveu instalar um aplicativo de encontros no celular. Um daqueles que
os usuários colocam nomes engraçados nos perfis, como Sonho de toda
sogra, Sou Corinthians de coração ou Quincas Borba (sim, já vi um perfil com
esse nome). Nele, marcou de encontrar-se com outro rapaz, após trocarem
algumas mensagens de texto.

A conversa fluiu de maneira natural.

— Oi — Guilherme mandou a um garoto cujo perfil lhe chamou a atenção.

— Oi — o outro respondeu.

— Tudo bem?

— Sim, e com você?

— Também. — O assunto acabou para Guilherme.

— Ótimo — o outro tentou.

— Ótimo — Guilherme repetiu, sem saber o que dizer.

— Ótimo. Vamos beijar?

Como eu disse, fluiu naturalmente. Guilherme riu, achando o rapaz


direto demais. Mesmo assim, perguntou se ele queria assistir a um filme,
na sua casa, às 20 horas daquele mesmo dia. Bruno aceitou com malícia e
perguntou se Guilherme tinha camisinha. Achando que era brincadeira, o
garoto ignorou a pergunta e continuou a conversa sem tocar no assunto.

No fim, ficou acertado que seria o filme e ponto final. Apesar de


convencido, Bruno era agradável e comunicativo. A mesma idade de
Guilherme, bonito, inteligente, trabalhava fazendo projetos em um software
BIM e fazia um curso técnico em edificações. Logo que chegou, Guilherme

Fique 37
ficou interessado, já imaginando milhões de coisas, como um beijo, um filme,
os dois agarrados, um final de semana em Cancun, casamento na praia em
Filipinas. Nada muito impossível de se realizar.

— Faz tempo que você mora aqui? — perguntou Bruno, enquanto eles
subiam as escadas do prédio onde Guilherme morava.

— Poucos meses, vim para fazer faculdade.

— Ah, legal, a cidade é pequena, mas é excelente para estudar.

— Estou amando por enquanto, a qualidade de vida aqui é bem melhor


do que a cidade de onde eu vim. — Guilherme comentou, abrindo a porta do
apartamento e lembrando-se de quando a sua rinite atacava por causa do
tempo seco da cidade em que vivia.

— Sua família é toda de lá? — perguntou Bruno, interessado.

— É sim. Entre, fique à vontade. — Ele apontou para dentro do


apartamento.

— Você tem irmãos?

Que conversa mole! E eu queria que continuasse só na conversa, mas


Bruno não era o inocente que aparentava, mesmo com seu rosto angelical
e expressões suaves, ele queria mais. Depois de Guilherme explicar sobre a
irmã e confessar que sentia saudades, e depois de Bruno consolá-lo com um
abraço e dizer que tudo ficaria bem, partiram para a cama, a princípio para
assistir ao filme.

— A qual filme vamos assistir? — Guilherme perguntou, acessando a


Netflix a partir do controle remoto da televisão.

— Qualquer um, coloca um de ficção. — Respondeu, encarando-o


atentamente.

Eles escolheram um filme sobre o espaço, guerra e uns bichos estranhos


que nunca fizeram sentido para mim. A verdade é que nenhum dos dois
se importaram muito com a tela. Eles não pararam de conversar por um
minuto. Quando o filme chegava à metade, Guilherme já estava ansioso para

38 Fique
experimentar o gosto da boca de Bruno. Ele queria provar o fruto proibido.
Então, sussurrou, perto de seu ouvido:

— Eu não estou aguentando mais segurar para não te beijar.

Eca, que vulgar! Ainda bem que ele nunca agiu dessa forma comigo, eu
ficaria assustado e não excitado. Mas com Bruno funcionou. Ele, sem hesitar,
segurou o pescoço de Guilherme, fitou-o por um instante, provocando-o, e
aproximou-se dele até que os seus lábios se encostassem.

Por ser o seu primeiro beijo gay, deve ter sentido o seu corpo bombear
mais sangue e a adrenalina invadir cada célula. Ele se excitou, gostou da
sensação.

A saliva era quente, a língua e os lábios eram macios. Bruno já havia feito
aquilo inúmeras vezes, estava acostumado e tinha uma boa desenvoltura. Ele
sabia como provocar o parceiro. Os dois ficaram ofegantes e a respiração
ficou mais pesada. Então, a mão de Bruno tocou Guilherme, que suspirou
baixinho, rendendo-se. Ele nunca havia ficado tão “no clima” quando beijava
uma menina.

Ao entender o que estava acontecendo, Guilherme teve uma epifania.


Não digo que ele interrompeu o beijo, mas sua consciência vagava a outro
lugar, longe dali. Finalmente tinha a certeza de que era homossexual. Foi um
choque de realidade. Aquele beijo roubou a última esperança que Guilherme
tinha de viver normalmente.

***

Cada gosto proibido eu senti, provei e saboreei. O primeiro contato


foi amargo, confesso. Pesou-me ao paladar. Quase que empurrei de
volta e rejeitei. Foi difícil aceitar que era bom. Foi difícil aceitar que
era daquilo que o meu paladar gostava. Mas acabei por deixar-me
levar.

Fique 39
Não foi fácil ter a certeza de que eu era gay. Aquilo significava
vários desafios pela frente. Perder uma entrevista de emprego, uma
oportunidade de estudo. Ser gay significava mais tribulações do que
coisas boas.

Guilherme tentou cuspir tudo fora. Lutou para não ser o que a
natureza lhe fadou a ser. Mas descobriu que é impossível ir contra
a criação. Também descobriu que tentar evitar fazia-lhe sofrer. De
qualquer jeito, nós sofremos.

Mas não é verdade que sofreremos de qualquer jeito? Se aceitássemos


a homossexualidade, o tal do preconceito tomaria conta. Talvez até
as pessoas mais próximas se afastassem. Talvez nós apanhássemos
em alguma esquina ou fôssemos xingados de bicha e veado. Porém,
se evitássemos... então seríamos totalmente frustrados. A nossa vida
estaria resumida a se esconder aqui e ali. Nós já estaríamos mortos
antes mesmo de respirarmos o ar da liberdade.

Essa era a única escolha que nos deram: sofrer ao evitar, ou sofrer
por aceitar. No fim, escolhemos ser felizes e livres. Decidimos que
o preconceito era fraco em comparação ao amor. Decidimos que o
linchamento em uma esquina qualquer não se igualava a um “eu o
amo” dito com carinho.

Ser feliz tem que ser uma das opções. Tentaram nos fazer escolher
de qual ponte pular, nós escolhemos voar. Voar para a liberdade
que o amor oferece, para os limites dos céus e dos sonhos. Voar para
sermos felizes, para amar e respeitar um ao outro.

Porque, mesmo se nós sofrermos, estaremos de cabeças erguidas,


sendo quem somos. Amando ao próximo e praticando a paz.
Disseminando palavras boas. O alto-astral. Sempre alegres e
sorrindo, mostrando para o preconceito que o amor é mais forte. Que
nós escolhemos a felicidade.

40 Fique
***

Toda aquela reflexão aparentou ter demorado mais do que qualquer aula
de física já ministrada na história do universo. Mas, na realidade, passaram-
se segundos. Guilherme lutava internamente: deveria aproveitar o momento
ou rejeitar-se? No fim, ele cedeu. Deixou que o desejo falasse mais alto e
entregou-se. Seu corpo arrepiava-se, sentia prazer e a vontade aumentava.

Ele nunca havia tocado, nem ao menos, beijado outro homem. Aquela
sensação liberava mais endorfina do que um gol aos quarenta e cinco do
segundo tempo no final da copa do mundo, ou até mais do que aquela lasanha
saborosa que a sua mãe fazia aos domingos. O beijo ficava mais intenso,
Bruno arrancou-lhe a camiseta e a jogou no chão, Guilherme imitou-o. Em
pouco tempo, os dois estavam apenas de cueca.

Enquanto isso, uma guerra com sabres de luz iluminava a tela da


televisão. O filme era só uma desculpa para o ápice da noite. Então, sem
mais nem menos, ele foi tomado pelo nervosismo. Guilherme subitamente
entendeu a intenção do outro rapaz.

Bruno jogou-o na cama, deitado, e começou a beijar o seu pescoço,


peito e desceu. Guilherme hesitou, mas não o impediu. Ele queria, ele não
era nenhum santo, afinal. Bruno arrastou a cueca do garoto para baixo,
deixando-o nu. E não preciso contar o resto da história. Ou, melhor dizendo,
eu não queira narrar a primeira vez da pessoa que eu amo (já que não foi
comigo!).

Posso dizer que o filme continuava rodando enquanto tudo aconteceu.


A saliva de Bruno estava em todos os lugares de seu corpo. Não havia um
centímetro que não tinha sido esquadrinhado. No final, ele suspirou e
confessou, em voz alta: “eu sou gay”.

***

Fique 41
— Eu sou gay — disse Guilherme, logo ao sentar-se em uma das poltronas
vermelhas na sessão seguinte de terapia.

Noemi o olhou curiosa, fazendo a pergunta mais utilizada pelos


psicólogos: Por que você acha isso? O menino explicou o motivo, dizendo
que havia, pela primeira vez, transado com outro homem e que, apesar
de a experiência ter sido um pouco sem emoções e mecânica, devido ao
nervosismo, sentia-se bem e feliz.

A psicóloga escutou atentamente e, sempre cautelosa, pronunciou-


se após cada fala de Guilherme, dizendo que ele deveria se atentar a esses
acontecimentos e prestar atenção para “decidir” se era aquilo que ele queria.
No fundo, o que o garoto queria era agarrar o próximo que avistasse pela frente
e beijá-lo loucamente. Porém, ele contentou-se em concordar, acenando com
a cabeça. Noemi fitou-o por um instante e perguntou delicadamente:

— Como você está se sentindo com isso?

Guilherme refletiu. Até então pouco havia raciocinado sobre as


consequências de seu ato. Então, subitamente, ele se entristeceu. Jogou
a culpa em Deus. O caminho, agora, era sem volta, o rapaz sabia disso. Ela
notou a sua mudança repentina de humor e não esperou a resposta, dizendo
que era normal se sentir confuso e que, com o tempo, ele se adaptaria e ficaria
mais confortável e solto nas relações com outros meninos.

É claro que Guilherme permaneceu mudo e, notando isso, Noemi


resolveu mudar o rumo da conversa, querendo deixá-lo mais à vontade, sem
causar nenhuma situação constrangedora.

— Como está a sua irmãzinha?

E o assunto fluiu. Irmã. Mãe. Pai. Amor. O amor é complicado, afinal.


Imprevisível e, às vezes, assustador. Cada um ama de um jeito, cada um
demonstra de uma forma. Eu posso expor os meus sentimentos e não ser
compreendido, ou posso guardá-los dentro do meu peito e ser julgado como
“frio”. Amar é complexo, é incalculável, é o pi não arredondado.

42 Fique
***

Rufem os tambores, estendam o tapete vermelho. Lá vem ele, lá vem


ela, guerreiros.

Batam palmas, joguem as pétalas de rosa. Nós estamos entrando,


feridos, vivos.

Nós merecemos respeito, amor e paz. Não é tão difícil assim deixar-
nos passar.

Se não tiver tambores, palmas, tapete ou pétalas... nós não nos


importaremos.

Mas não joguem pedras, não xinguem, não nos machuquem ainda
mais. Nós já estamos suficientemente feridos.

Então, não rufem os tambores nem sintam raiva.

Não estendam o tapete vermelho nem manchem o chão de sangue.

Não batam palmas nem levantem as mãos como sinal de insulto.

Não joguem pétalas nem cuspam em nossos rostos.

Nós não queremos amor incondicional, nós queremos respeito. E


para respeitar, basta ser humano e não um animal irracional.

***

O próximo passo, importante para Guilherme, era contar para os seus


amigos mais próximos sobre a sua orientação sexual. Eram quatro: Fernanda,
Fátima, Letícia e Kléber. Lembrem-se desses nomes, são importantes.

Fernanda namorava um rapaz desde a quinta série. Também cursava


Arquitetura e tinha uma mentalidade bem aberta para todos os assuntos.
Defendia até a legalização da maconha. Segundo ela, cada um deveria ter
o poder de escolher com o que ficar chapado. Inteligente e não tão bem-

Fique 43
educada, criou algumas confusões no decorrer da faculdade por causa de sua
personalidade forte.

Fátima era aquariana. Sempre muito focada e determinada, não ligava


muito para relacionamentos. Preferia estar sozinha a estar com algum
imprestável. Também era heterossexual. Não namorava nem queria ter
filhos um dia. Liberdade de expressão era o ideal que ela pregava. Estudava
Arquitetura e tinha nascido naquela cidade, ou seja, era a única do grupo que
morava com os pais.

Letícia era meiga. Muito meiga. Pelo menos, até antes de conhecê-la mais
a fundo. Namorava, há uns anos, um rapaz mais velho. Os dois se davam bem.
Inteligente e muito focada. A sua relação com Guilherme, no começo, foi um
pouco complicada, os dois brigavam por causa dos trabalhos da faculdade.
Mas adaptaram-se e tornaram-se bons amigos.

Por fim, Kléber. Bissexual, jogava nos dois times. Não era assumido e
preferia continuar assim. Guilherme descobriu que o menino era bi depois de
uma conversa com um outro rapaz no aplicativo de encontro. Nada ético, o
rapaz entregou alguns nomes e o de Kléber estava no meio.

A primeira confissão foi para Fernanda. A menina, basicamente,


resumiu tudo em uma expressão:

— Foda-se.

Guilherme sentiu-se aliviado e teve mais coragem para contar aos


outros amigos. Então, durante um passeio numa sexta à noite, ele aproveitou
que Fátima e Letícia estavam juntas e contou às duas ao mesmo tempo,
dizendo que tinha uma coisa para falar, ainda nervoso, implorando para que
a amizade entre eles não acabasse.

— Você é gay??!! Diz que sim! Eu ia adorar ter um amigo gay — Fátima
gritou no meio do bar, um pouco alterada por causa dos dois copos de cerveja,
o suficiente para deixá-la alegre.

— Acha menina, deixa ele contar, não brinca com essas coisas. — Letícia
riu, sóbria, já que era a motorista da rodada.

44 Fique
Guilherme passou a divertir-se com a situação e resolveu criar um
suspense. Ele brincou que era uma coisa séria, e achava que elas iriam fugir
depois disso.

— No mínimo, deve estar ficando com alguém da faculdade. — Fátima


gargalhou, visivelmente curiosa.

— Pare, Fátima, deixa ele falar, vai que ele está com câncer — Letícia
repreendeu.

O garoto gargalhou. Letícia era sempre a mais gótica e trágica do grupo.


Enquanto isso, Fátima engasgava-se com a água recém servida pelo garçom.
Guilherme disse que Fátima estava certa.

— Você está ficando com alguém da faculdade??!! Eu sabia! Me conta


quem! — berrou Fátima, quase subindo na mesa.

— Não! Você está quase certa, eu sou gay, mas não estou ficando com
ninguém!

Letícia, decepcionada, disse que já sabia. Dizendo que a notícia era


obsoleta e que seria mais impactante se Guilherme estivesse morrendo.
Fátima não se conteve e continuou a rir, alegando que conhecia uns caras
bem bonitinhos na faculdade e poderia apresentá-los. As duas começaram a
debater sobre o tema e, assim, o assunto fluiu noite adentro.

***

Certa vez, li uns versos. Algo sobre a indiferença. Mas era uma
indiferença boa.

Também escutei uma música. Falava umas coisas do mesmo tipo.


Que tanto faz do que você gosta, o importante era amar.

Achei meio esquisito. Como assim tanto faz? Pensei uns dias sobre os
versos e sobre a música. Perdi meu tempo.

Fique 45
No fim, entendi o que eles queriam dizer. Que diferença faz? Eu ser
negro ou branco? Ter olhos verdes ou castanhos? Cabelo enrolado ou
liso? Ter o dente do “juízo” ou não? Que diferença faz para o outro?

O importante é amar. Então, percebi que eu podia amar quem


eu quisesse. Afinal, qual é a diferença entre os tipos de amor? Só
consegui descobrir uma: tem amor que é julgado como correto, e tem
uns amores que sofrem com o preconceito.

No final das contas, o sentimento é descrito pela mesma palavra. Em


todas as músicas, versos, poemas, histórias, contos ou seja lá o que
for que você leia ou escute, a mesma palavra sempre estará lá para
você: amor.

***

Guilherme sentiu-se um pouco estranho quando fez sua próxima viagem


para visitar a sua família no interior de São Paulo. Ele não podia precipitar-se
e contar para seus pais que era homossexual. Não estava pronto ainda.

Ironicamente, Rosa já sabia e aguardava, pacientemente, que o filho


contasse a ela sobre sua orientação sexual. Ela já desconfiava desde a infância
do garoto, quando ele preferia brincar de casinha a brincadeiras de luta. Ou
quando olhava os meninos da escola de uma maneira diferente.

De qualquer forma, era difícil para Guilherme relaxar perto da família.


Parecia que todos os olhares se dirigiam a ele, prontos para flagrarem em
algum delito. A todo tempo Guilherme permanecia atento e tomava cuidado
com o que falava e o modo como agia. Não queria levantar nenhuma suspeita.
Porém, a cada visita isso tornava-se mais difícil. O garoto já dava algumas
dicas, mesmo sem perceber. A tia Joana foi a primeira a notar as mudanças.
Em um almoço em família organizado por Tereza ela teve a oportunidade de
conversar com Guilherme.

46 Fique
Foram aquelas conversas de sempre: e o tempo? Choveu? Essa semana
vai esfriar. Faculdade? Normal. Provas? Ok. Graças a Deus. Tereza apareceu.

— Oi, meu amor! Nossa, você emagreceu. — Esmagou o menino com os


braços. Joana e Guilherme trocaram olhares e riram. Para Tereza, ele sempre
emagrecia, mesmo que ganhasse cem quilos e parecesse um panda obeso.

Pedro, marido de Joana, também estava por ali.

Enquanto sentavam-se ao redor da mesa de jantar, Guilherme notou


que nem o avô e nem o pai estavam na casa. Intrigado, mas não surpreso,
ele resolveu perguntar sobre a ausência de Rodrigo. O de sempre. Avô estava
trabalhando e o pai estava sem combustível.

— Ele está sem combustível e não tem dinheiro, o que a gente pode fazer?
— Tereza defendeu-o depois de Joana e Guilherme trocarem comentários
inapropriados sobre a situação.

— Ai, mãe, são cinquenta quilômetros. Ele mora na cidade aqui do lado.
Qualquer coisa, a gente colocava combustível para ele voltar — Joana rebateu.

Tereza, para não discutir, foi até a cozinha e começou os preparativos


para o almoço, alegando que Guilherme precisava se alimentar bem. Pedro
resolveu ir ao mercado, comprar os ingredientes do bolo que a avó faria logo
mais. Joana esperou a oportunidade e começou a fitar Guilherme.

— O que você quer saber? — o rapaz adiantou-se, sorrindo amigavelmente,


já conhecendo a tia bem o suficiente para saber que ela o questionaria sobre
algo.

— Você está bem?

— Estou sim, tia. Caminhando — disse, sabendo a que a tia se referia.

— Você está diferente, como vai indo a terapia?

— Estou fazendo bastante progresso. — E estava.

— E como está aquele assunto? — Insistente, não é mesmo?! Parecia uma


discussão em um filme de terror antes da próxima morte inevitável.

Fique 47
— Aquele assunto está sendo confirmado.

Joana surpreendeu-se e, de certa forma, decepcionou-se. O seu olhar se


perdeu em qualquer direção, refletindo. Depois de um pouco de silêncio ela
finalmente falou que estava ali. Caso Guilherme precisasse de qualquer coisa,
era só avisá-la. Disse que não seria fácil contar para toda a família, mas que
estaria do seu lado.

— Eu o amo — disse de forma falsa.

— Eu também te amo — o coitado respondeu.

Depois de mais alguns minutos conversando sobre a faculdade, com


todos reunidos novamente na sala de jantar, Tereza e Pedro anunciaram o
almoço. Os quatro serviram-se fartamente.

— Está uma delícia — Guilherme elogiou. Os outros confirmaram.

A seguir, o silêncio instalou-se à mesa. Apenas um ou outro comentário


sobre a refeição. Assim que terminou, Joana levantou-se para lavar a louça,
pedindo ajuda da mãe. Pedro e Guilherme continuaram sentados.

— Você trocou de celular, não é? — Pedro perguntou.

— Fui obrigado. O outro quebrou, não estava mais funcionando.

— Posso ver? — Pedro adorava novidades eletrônicas. Guilherme


hesitou, sabia que Pedro queria mexer e olhar as configurações e aplicativos
do aparelho, mas acabou cedendo.

— Leve. Rápido. Tem vários aplicativos....

A família de Guilherme sempre foi intrometida. Pedro abriu “sem


querer” o aplicativo de encontros que o menino tinha instalado. Após um
minuto e meio (segundo Guilherme, que pareceu cronometrar o momento),
ele devolveu o celular. Fitou Guilherme seriamente e disse:

— Você é realmente gay? — Pedro cochichou, para que ninguém


escutasse.

48 Fique
Guilherme gaguejou e empalideceu. Ainda não era o momento de contar
a ninguém sobre aquilo. A sua voz entalou-se na garganta e fez com que ele
respirasse com dificuldade. Pedro percebeu.

— Eu não vou falar nada para ninguém.

— Por favor, Pedro, não é a hora certa de contar... — implorou.

— Eu sei, o seu pai vai surtar. — Ele soltou uma risada estranha, quase
engasgando-se.

— Isso é sério, Pedro, não conte a ninguém, por favor.

— Eu não vou, e isso é uma promessa. — Ele fez o sinal da cruz com os
dois dedos indicadores e beijou-os. Apesar de Guilherme não ter entendido
muito bem o motivo do gesto, resolveu calar-se, levantando-se da cadeira e
sentando-se no sofá da sala, tentando recuperar-se da surpresa.

***

Você se esconde para não se explicar

Esconde-se para não discutir.

Você sabe qual vai ser a reação

Sonha, todos os dias, como vai ser quando contar.

Eles sabem, mas não querem te fazer falar

deve partir de você, não deles.

Eles fingem que não sabem e deixam para lá

Imaginam, todos os dias, quando é que você vai contar.

***

Fique 49
— Ele não vai falar nada para ninguém, já conversei com ele — Joana
apaziguou, tentando tranquilizá-lo.

— Ele disse que não ia falar para ninguém e já correu para te contar.
Como você me garante que ele não vai contar para todo mundo? — Guilherme
estava desesperado.

— Eu conversei com ele, Gui. Você pisou na bola, também, ao deixá-lo


ver o celular.

— Eu sei, eu não ia deixar, mas ele insistiu. Será que ele não vai falar nada
para mais ninguém mesmo?

—Não, fica tranquilo. Eu falei com ele. Chegamos — disse ela,


estacionando em frente à portaria do condomínio em que Rosa morava.

— Obrigado por me trazer, tia.

— Por nada. Fica com Deus, Gui. — Eles se abraçaram.

50 Fique
Capítulo 4: Prazer,
o meu nome é Gustavo

J
á de volta às aulas, Guilherme estava decidido a experimentar
mais daquele mundo inexplorado e novo. Conheceu Alexandre
naquele mesmo aplicativo e começaram a conversar. Agora, Guilherme já
tinha o seu objetivo traçado e não haveria mais surpresas.

Filme. Hoje. Às nove. Na minha casa. Simples.

O garoto estava deixando de lado a razão e deixando-se levar, pelo


menos um pouco, pelo desejo e pela emoção de fazer algo “errado”. Como
Deus estava vendo aquelas atitudes? Será que seria perdoado? Aquela era a
sua essência, não conseguiria combatê-la, nem por mais um minuto.

Durante todo aquele dia Guilherme pensou em como seria. Imaginou o


que falar, o que fazer, onde beijar e onde morder. Ficou ansioso e, quando a
noite caiu, ele já começou a arrumar-se para o encontro. O interfone tocou às
nove e quinze. Ele atendeu rapidamente. Cumprimentaram-se.

Guilherme pegou as chaves e desceu as escadas pulando os degraus


de dois em dois. Deliciando-se com a voz arrastada que Alexandre tinha e
de como ele pronunciava o final das palavras de forma sedutora. Quando
o avistou, logo notou que Alexandre vestia uma camiseta estampada que
valorizada as curvas dos braços e do peito malhados. E uma calça jeans justa
que evidenciava tudo. Fofo, bonito, bom de paquera e inteligente. E para
fechar com chave de ouro, estava no último ano de medicina.

— Uau, você é lindo — Guilherme elogiou-o.

Não consigo deixar de lado os meus comentários em histórias como


essa, enquanto Guilherme me contava, eu só pensava: Uau, estou ferrado.
Seria difícil competir.

— Você também é — Alexandre, sagaz, respondeu. Se eu estivesse ali já


teria pulado no meio da conversa, jogado um balde de água, ou, sei lá, dado

Fique 51
um “peteleco” na cabeça de Guilherme, qualquer coisa que não deixasse a
próxima cena acontecer.

Alexandre beijou-o no canto dos lábios e deu um abraço caloroso.


Guilherme concentrava-se para não demonstrar o nervosismo que sentia. Os
dois subiram as escadas, falando algo sobre o tempo e sobre uma notícia que
viram na televisão. Ninguém parecia realmente interessado.

Assim que entraram no apartamento e a porta foi fechada, Guilherme


estendeu os braços por cima dos ombros de Alexandre. Fitou-o por uns
segundos, como se pedisse permissão para avançar, aproximou-se, beijou-o.
Nem precisaram fingir escolhendo um filme, a ação principal já havia
começado.

***

O assassinato ocorreu perto das três da madrugada. Às quatro,


já haviam descoberto que o rapaz era homossexual. Segundo
testemunhas, o assassino parecia conhecer a vítima que, por sua vez,
era menor de idade.

Uns dias depois, descobriram quem era o assassino. Não revelaram


o nome, não queriam causar mais confusão. Parece que ele era filho
de alguém importante na cidade. Fazia Direito na federal. Com 22
anos, já havia sido acusado de mais dois crimes: um de atendado ao
pudor e outro de homofobia.

Mas ele foi solto menos de duas horas após sua prisão. Era filho de
um político importante. Não podia ficar preso ali nem em lugar
nenhum.

A família da vítima marchou nas ruas da cidade, pedindo justiça.


Outros políticos importantes abriram uma sindicância para
investigar o caso, mas não deu em nada. O assassino já estava em

52 Fique
sala de aula novamente, estudando as leis e debochando da tal
justiça.

No fim, aquela venda, que a estátua usa, estava jogada no chão.


Aquela para representar que a justiça não faz distinções, sabe? E o
que era para ser julgado de forma honesta e imparcial apenas trouxe
mais revolta e sofrimento.

Enquanto o assassino se graduava e tornava-se um advogado


importante, a mãe da vítima continuava a chorar, contando as
moedas para comprar o pão do café. Essa é a justiça que eles acham
que nós merecemos. O pobre e a minoria não importam. A justiça é
imponente e arrogante. Ela não é cega, ela é brutal.

***

Alexandre despiu Guilherme. Guilherme despiu Alexandre. Se alguém


olhasse de longe, ficaria difícil apontar quem era quem. Eles se beijavam,
encostavam-se, esfregavam-se. O calor aumentou, a intensidade aumentou.
O sexo foi sensacional.

A segunda vez de Guilherme foi espetacularmente melhor do que


a primeira. Ele aproveitou e, no final, desabaram na cama, lado a lado,
exaustos e extremamente satisfeitos. Alexandre deixou-se relaxar por uns
minutos, apenas o suficiente para recuperar o fôlego. Levantou-se, vestiu-se
rapidamente, beijou castamente o outro, que ainda respirava com dificuldade,
e, sem dizer mais nada, partiu. Simplesmente foi embora. Guilherme sentiu
um buraco envolvê-lo, sentiu-se um objeto e desabou a chorar.

Mesmo sendo bom de cama e um excelente partido, Alexandre não


parecia ser nada educado e de poucos bons modos. A única coisa que fez foi
enviar uma mensagem para Guilherme, com apenas quatro palavras: espero
te ver novamente.

Fique 53
Não caia nessa, por favor! Ele só quer sexo! Você merece alguém
melhor... você merece... bem... merece a mim!

Guilherme não respondeu à mensagem. Desapontado, desligou o celular


e largou-o na estante. Ligou o notebook e entrou na sala de bate-papo gay.
Ele precisava conversar com alguém, queria distrair-se. O menino chamou
vários, mas nenhum queria conversar, eles só queriam fotos, videochamadas
e outras besteiras.

Mas quando fui eu a receber o seu “oi”, e resolvi responder. Agora,


permita-me que eu me apresente: prazer, o meu nome é Gustavo. Na época eu
tinha apenas 20 anos, a mesma idade de Guilherme. Morava no Mato Grosso
com meus pais, cursava psicologia e, de vez em quando, operava algumas
ações na bolsa de valores com eles. Homossexual, muito bem resolvido e
assumido.

Apesar de não estar procurando uma conversa naquela noite, resolvi


dar uma chance ao garoto. Ele parecia confuso, e eu adorava analisar pessoas
confusas. Basicamente, meu currículo era “calouro na faculdade de psicologia,
analista comportamental nas horas vagas”. O que me chamou ainda mais
atenção foi que ele queria conversar sobre a vida. A vida é uma coisa meio
abrangente para se falar em um bate-papo gay no meio da madrugada, não
é mesmo?

— Oi. Antes de falar sobre a vida, não acha melhor começarmos pelo
mais simples? Qual é o seu nome?

— Jefferson, e o seu? — ele mentiu.

Respondi, já perguntando a sua idade. Depois do bate-papo padrão e


das perguntas básicas, Guilherme pareceu desinteressar-se pela conversa.
Assim, tentei outra abordagem:

— Você quer falar sobre sexo?

— Não! Estou cansado de falar sobre sexo.

— Ironicamente, você está em uma sala de bate-papo com esse tema. —


Eu provoquei, divertindo-me com aquela situação única e nada recorrente.

54 Fique
— Eu sei, é que eu não sabia o que fazer, então resolvi procurar alguém
para conversar.

Indaguei-o sobre do que ele realmente queria conversar. Guilherme


respondeu que estava triste, pois algum garoto idiota tinha ido embora logo
depois de um de uma transa.

— Entendi, isso é engraçado — confessei.

— Só se você for o telespectador e não o personagem.

— Está certo, me perdoe. Mas me conte direito o que aconteceu...

Então Guilherme contou-me a sua primeira história. Falou cada detalhe


da noite que tivera. Era um encontro on-line para falar de um outro encontro
real fracassado. Cômico, não acha? Porém, algo me chamou a atenção no
menino, não sei explicar ao certo, talvez fosse o tal amor à primeira vista (ou
amor à primeira conversa on-line). A verdade é que eu me interessei pelo seu
jeito de conversar.

Foi aí que, sem saber bem por que, eu passei o meu número de celular
para ele. Eu queria conhecê-lo melhor, escutar outras histórias e confirmar
o que eu suspeitava: ele era um menino perdidamente meigo procurando
viver o clichê do amor eterno. Guilherme explicava os seus objetivos de
relacionamento, quase igualando-os aos de um livro de romance.

Sem ao menos conhecer-me, ele confessou, na primeira conversa,


que procurava um amor para toda a vida. É claro que conversar com um
desconhecido, em uma sala de bate-papo, às três da manhã, não é uma forma
ideal e comprovadamente eficiente para se encontrar um amor eterno. Mas,
afinal, o que um garoto como Guilherme estava fazendo ali? Mas, afinal, o que
eu estava fazendo ali? Isso, meus caros, é o que eu chamo de destino.

Só tínhamos um problema: Guilherme, apesar de tudo, tinha gostado


de Alexandre. E esse clichê não é maravilhoso? Geralmente isso acontece
na adolescência, mas o rapaz ainda era uma criança no que se referia aos
sentimentos, por isso acabou se deixando levar pelo charme do outro. Foi

Fique 55
Fernanda quem o alertou sobre o “tipo” de Alexandre. Ela só precisou de uma
oportunidade para manifestar-se.

— Ele é muito bonito — contou Guilherme, enquanto os dois andavam


pelo campus a caminho da próxima aula. — Um jeito de homem, malhado,
beija bem...

— Me poupe — Fernanda debochou. — Você está apaixonado depois da


primeira transa com ele? O que esse menino tinha lá embaixo? Um pedaço de
pizza?

Deveria ser. Guilherme levou na brincadeira, alegando que era, sim,


taurino, mas também não para tanto. Fernanda continuou debochando. Para
ela, aquilo parecia um conto de livro.

— Isso é um clichê danado. Apaixonar-se no primeiro beijo. Jurar


amores eternos.

— Eu não estou jurando amores eternos. Apenas gostei dele. — Guilherme


respondeu.

— Gostou tanto que chorou quando ele foi embora.

Guilherme ficou bravo. Talvez ele tivesse um compromisso ou algo do


tipo. Mas sem se despedir? Ninguém tem tanta pressa assim! Mas nada que
Fernanda falava mudava a opinião do garoto. Então, a cartada final:

— Você tem que se valorizar mais! — Se eu estivesse lá, Fernanda seria


minha nova melhor amiga.

— Entendo. — Guilherme fechou o semblante e voltou a andar. Fernanda


o acompanhou.

— Não fique assim, Gui. Você está começando a se relacionar com


outras pessoas agora... é normal levar um tempo para perceber o que cada
um quer. Muitos buscam apenas sexo e isso não é errado. O importante é
estar consciente e feliz com a sua escolha. Cada um tem um jeito de agir, de
pensar... basta que você se adeque e busque o tipo de pessoa que melhor se

56 Fique
encaixe no que você procura. — Imagino o seu discurso metódico.

Ele concordou em pensar sobre o assunto. Afinal, amor próprio e


autovalorização é o mínimo de sentimento que devemos ter por nós mesmos.

***

Você sabe a diferença entre amor e paixão? Eu gosto de utilizar as


palavras de Platão para explicar. Segundo ele, paixão é o desejo por
aquilo que não consiste, necessariamente, em uma realidade. Ou
seja, é algo volátil, que acontece e deixa de acontecer rapidamente.
Em uma hora está perfeito, na outra, um desastre. Paixão acaba
assim como começa: do nada.

Já o amor, ainda conforme Platão, é o que ocorre quando se encontra


no outro aquilo que lhe falta em sua verdade para se tornar completo.
Sendo assim, o outro o completa de uma forma que é impossível
esquecê-lo, mesmo se o destino os separar. Amor genuíno é igual
aquele refrão de uma música chiclete. Você pode odiar a canção, mas
não consegue deixar de cantar.

Sempre existe um grande debate para entender o amor. Uns


cientistas defendem que o sentimento não passa de algo químico
ou biológico. Liberação de alguma substância, ou algo do tipo. Eu
prefiro acreditar em que o amor pode se equiparar a nossa alma.
Ninguém sabe explicar realmente o que ela é, mas ela está lá.

Acreditar no amor é, também, acreditar na vida e no melhor das


pessoas. Portanto, confundir paixão com amor é um tanto que
perigoso. Se você se apaixonar, aproveite; se você amar, reze aos
céus, para que seja o seu único amor para sempre.

***

Fique 57
Guilherme queria amar. Entregar-se a alguém de corpo e alma e deixar-
se levar pelo coração. Alexandre não podia ser compatível com o menino, mas
quem seria?

Nesse mesmo dia, eu me assustei, quando meu celular vibrou perto das
dez da noite. Era uma mensagem de um número desconhecido, um simples
“oi”. Eu respondi, perguntando quem era, já com certa expectativa.

— É o Jefferson. Podemos continuar aquela conversa? — ele perguntou,


referindo-se a nossa primeira conversa no bate-papo.

— Mas é claro — respondi, agradecendo aos céus por ele ter me chamado.

— Antes, eu tenho que te confessar uma coisa.

Pedi para que ele continuasse, então ele confessou que não se chamava
Jefferson mas, sim, Guilherme. Tentei descontrair e brinquei:

— Ah, tudo bem, o meu nome de verdade é Jerueslem.

— Sério? — Ele se espantou.

— Não, bobo, você tem que parar de acreditar tão fácil nas coisas. — Eu
ri.

Ele concordou, disse que tinha gostado de conversar comigo e que


estava precisando de um amigo assim. Quando li a palavra amigo arrepiei-
me. Por que todos me veem apenas como amigo? Mesmo assim, respondi de
forma agradável, dizendo que também estava gostando de conversar com ele.
Evidente que ele não podia deixar de me provocar:

— Só não vai se apaixonar.

— Pode deixar. Eu sou uma pessoa difícil de se conquistar.

— Você é um daqueles que se valorizam? — ele me indagou.

— Isso, sempre! — confirmei, mesmo não sendo de total verdade.

— Então você é o meu número.

Confuso, pedi para que Guilherme explicasse melhor. Ele desconversou.


Com isso o assunto se encerrou. Percebendo a demora da próxima mensagem,

58 Fique
Guilherme enviou:

— Quero fazer uma tatuagem.

— Que legal, qual vai ser?

— Tenho algumas ideias — ele disse, junto com um emoticon pensativo.

— Pense bem, tem coisa que é para sempre.

— Eu sei, essa é a intenção — ele zombou.

— Quero fotos de quando você for tatuar, principalmente da sua cara


de dor — eu pedi, tentando arrumar desculpas para ganhar algumas fotos do
garoto.

— É obvio que não, isso só se você estivesse aqui, para ver pessoalmente.

— Essa seria a última coisa que eu pensaria em ver se estivesse aí —


tentei provocá-lo.

— Ummmm, e qual seria a primeira?

— O teu sorriso, porque, pelas fotos que eu vi... ele é lindo — eu disse,
desconcertando-o.

Imagino que ele se desmanchou, pois a próxima mensagem demorou


a chegar. A resposta foi: “Desse jeito não vale”. Continuei a testá-lo, pedindo
para que ele respondesse o porquê.

— Desse jeito, sou eu que vou me apaixonar — ele confessou.

— E isso seria tão ruim?

— Segundo a Fernanda, sim.

— Fernanda? — Eu perguntei, já que ainda não a conhecia.

— É a amiga sobre quem comentei. É uma longa história.

— Estou com tempo agora — eu disse, incentivando-o a contar-me.

***

Fique 59
A rebeldia é uma coisa engraçada. Há pessoas que chegam a ser fofas
de tão rebeldes. Mas há pessoas que merecem dar as mãos para o
Capeta de tanta besteira que fazem.

Chega a ser cômica a travessura da criança que derruba um pote de


açúcar. Ou a do adolescente que coloca um piercing escondido dos
pais, ele só quer se expressar.

Mas existem aqueles que trazem a revolta com suas travessuras,


se é que podemos chamá-las assim. Eles roubam, matam, brigam
e arrancam sangue sem que nada possamos fazer. Nós tentamos
corrigir um ou outro, jogando-os na cadeia, mas há uns que saem
de lá piores do que entraram.

Também há aquelas travessuras menores. Inofensivas? Não. Só


menores. Uma brincadeira aqui, um bullying ali. Gorda. Preta.
Veado. Bicha. Nada de mais.

Nada de mais até que um corte os pulsos e sangre até a morte.

Nada de mais até que outro pule de um viaduto de vinte metros de


altura e se esmague no asfalto.

Nada de mais até que alguém tome comprimidos a mais e convulsione


até a morte.

Nada de mais até que a vida do outro acabe. Mas isso ainda não é
nada de mais, é só mais uma vida que se perde. É só mais um que
morre. A vida do restante se segue.

***

Depois de escolher qual seria a tatuagem, Guilherme pediu para que


Kléber o acompanhasse. Ombro direito, touro em formato tribal. Uau. Ousado.
Em homenagem ao seu signo. Kléber tentou amedrontá-lo, zombando, já na
recepção do estúdio, dizendo que iria doer mais do que extrair o dente do siso.

60 Fique
— Será? — Guilherme quase acreditou.

— Com toda a certeza vai doer. Está com medo?

— Chega desse interrogatório. — Guilherme riu.

— Estou curioso... Eu sempre quis fazer uma, mas ainda não tive coragem
— Kléber comentou.

Então Guilherme perguntou qual tatuagem Kléber pensava em fazer,


surpreendendo-se com a resposta:

— Eu quero fazer uma caveira no peito.

— Uma caveira? Eu imaginava muitas coisas, menos isso.

— Por que menos isso? — Kléber mudou o semblante, ficando carrancudo.

Guilherme se enrolou dizendo que gays não fazem tatuagem de caveira,


embora depois tenha se lembrado de um amigo homossexual em sua cidade
natal que tinha uma caveira enorme na perna.

— Gay?! — Kléber espantou-se.

— Bi!? — Guilherme tentou.

— Como você sabe que eu sou bi?

A explicação foi simples: alguém do aplicativo o dedurou. Kléber não


ficou surpreso. Ele não havia contado para ninguém, mas todos sabiam.
Bastava um encontro, um beijo, e pronto! Notícia assim se espalha rápido.

Ele tinha medo que os pais descobrissem, por isso estava tentando
esconder por mais um tempo. Guilherme entendia. Ele também se sentia
dessa forma. Não era o momento certo para contar aos pais, mas talvez fosse
o tempo exato para falar a um dos seus melhores amigos:

— Eu também gosto de homens.

Kléber gargalhou, achando que era brincadeira. Até apoiou os ombros


no joelho e enfiou o rosto entre as pernas de tanto rir. O outro insistiu,
dizendo que era sério. O tatuador apareceu na porta gritando o nome de
Guilherme e dizendo para que ele entrasse na segunda porta à direita. Os

Fique 61
garotos levantaram-se imediatamente, levemente assustados com o grito, e
seguiram as instruções.

— Você está falando a verdade? — Kléber perguntou mais sério, enquanto


entravam na sala.

— Sim, estou.

— Bi ou gay?

— Apenas gay — Guilherme explicou.

A curiosidade emanou pelos poros de Kléber. Perguntou desde quando


Guilherme sabia. Se já havia contado para os pais e, depois de refletir por um
momento, perguntou se Letícia tinha conhecimento do assunto.

— Sabe — confessou.

— Agora faz sentido! Vocês vivem de segredinho! E, o pior, ela me


disse que você estava com câncer! Vou matar ela! — Kléber tentava levar na
esportiva e não ficar bravo com a amiga, enquanto Guilherme ria.

O tatuador entrou e, quando a agulha começou a furar cada centímetro


do ombro de Guilherme, a conversa parou. O clima transformou-se em um
pânico cômico durante as próximas duas horas.

62 Fique
Capítulo 5: A morte é inevitável

E
ram três da tarde quando o telefone tocou. Rosa nunca
ligava nesse horário, então Guilherme resolveu sair da aula
para atender, com uma voz preocupada e mais aguda do que a normal, já
perguntando se algo havia acontecido. E aconteceu.

Ao escutar a notícia, ele ficou pálido, sua pressão caiu e uma dor
insuportável tomou conta de sua cabeça e estômago. Apesar de não ser o seu
verdadeiro pai, Jorge sempre o acolheu como filho, muitas vezes contribuindo
para a sua formação moral e humana.

— Ele teve um ataque cardíaco, filho — Rosa lamentou.

Imediatamente, Guilherme respondeu que logo estaria ao lado da mãe.


Ainda branco de terror, tentava manter a postura para não deixar Rosa ainda
mais nervosa. Um eu te amo finalizou a ligação.

Voltou correndo para a sala de aula, juntou o seu material e saiu, sem
dar satisfações, pelo corredor. Nenhum dos amigos tiveram tempo de ir atrás
do garoto. Ele correu escada abaixo, ligando para um táxi e verificando os
horários de voos. Foi tudo de repente, ele nunca havia perdido ninguém tão
próximo, ele estava em estado de choque.

Andar de avião nunca tinha sido tão sem graça. Guilherme ficou olhando
pela janela, escutando algumas músicas preferidas de Jorge, imaginando
como as coisas seriam a partir dali. Era dolorido pensar que a mãe tinha
perdido a pessoa que mais amava. Guilherme tinha a certeza de que o seu
jeito de enxergar as coisas mudariam com aquele acontecimento.

A vida é passageira. A morte, inevitável. Um simples acidente, um erro


banal, um ataque no coração, um desvio de atenção por um segundo e tudo
acaba. Os olhos fecham-se para não se abrirem novamente. A vida transforma-
se em morte. A luz modifica-se para a escuridão. O corpo apodrece e a alma
vai embora. As únicas coisas que permanecem são a saudade e as histórias.

Fique 63
Tudo pode acabar, sem aviso. No fim, é outro livro fechado. Uma página
virada. Um último ponto final.

***

Ninguém é capaz de entender uma morte prematura. A vida é


tomada à força, de repente. Sem aviso, a pessoa que você ama vai
embora, para de respirar e deixa esse mundo.

A dor de perder alguém assim é indescritível. Quando perdi meu avô,


mesmo ainda estando novo, fiquei sem reação. Eu não sabia o que
fazer.

Olhava as pessoas chorando. Eu, imóvel, sem uma lágrima.


Considerei-me frio, mas, depois, entendi que eu estava em choque.

Vê-lo pálido, deitado, coberto por flores, deixou, em minha memória,


uma fotografia eterna de sua dor.

A morte transcende os limites humanos. Não fomos feitos para vê-la


chegar. Por isso lutamos contra o câncer e contra a AIDS. Lutamos
mesmo quando sabemos que a derrota é certa. Lutamos pelo bem
mais precioso que temos: a vida.

Pergunto-me o porquê dessa injustiça. A injustiça de ser arrancado


do auge da vida é maior do que qualquer outra.

Porque, quando se morre velho, de cabelo branco, com a idade


chegando nos três dígitos, concluímos que estava na hora certa, que
morreu em paz.

Mas, quando um bêbado bate no carro do seu pai e o arremessa para


fora da janela, ou quando um preconceituoso homofóbico atira em
seu filho no dia de seu casamento, é uma morte inquieta, injusta.

A única maneira de resgatar a paz é honrar a morte. Lembrar-se de

64 Fique
cada momento feliz, reviver as coisas boas e perdoar Deus por tal
brincadeira de mau gosto.

***

Quatro horas depois Guilherme já estava ao lado da mãe. Logo que a


avistou, ele não soube o que fazer. Rosa estava desesperada, sem rumo,
olhava de um lado para o outro, exasperada. Ele sabia que precisava ser forte,
Rosa necessitava de sua ajuda. Mas, assim que a abraçou, Guilherme chorou.

O rapaz ainda não conseguia assimilar direito o que estava acontecendo,


tão rápido que tudo fora. Há algumas horas ele estava em sala de aula,
estudando Introdução à Arquitetura. Agora se encontrava abraçado a sua
mãe viúva, em outra cidade. Era muito para processar.

Eles não pronunciaram nenhuma palavra. Apenas continuaram


abraçados, confortando um ao outro, indagando a Deus o motivo da morte
prematura de Jorge. Ver a mãe desamparada quebrou Guilherme em mil
pedaços. Ele nunca tinha se sentido tão impotente quanto naquele dia.

— Não consegui me despedir — Guilherme disse, ao recuperar o fôlego,


ainda abraçado com a mãe.

— Eu também não. Ele estava tão feliz hoje de manhã, contando sobre a
nova aquisição que tinha feito na empresa. Agora não está mais aqui. — Rosa
deixava-se relaxar nos braços do filho.

Guilherme manteve-se no interior de São Paulo por mais alguns dias,


mesmo perdendo algumas aulas, para ajudar a mãe a cuidar de Elis e apoiá-
la emocionalmente. Eu, mesmo estando longe, tentei consolá-lo através das
várias ligações, em todas elas perguntando como ele estava. O garoto sempre
respondia que estava bem, mas a sua voz era melancólica.

— Obrigado por sempre se preocupar — ele agradecia todas as vezes.

— Não faço mais que a minha obrigação — eu retrucava.

Fique 65
— Você não tem obrigação de nada, Gu. Você é um excelente amigo.

— Exato. Amigos têm a obrigação de cuidarem um do outro.

Era difícil tocar no assunto de amizade, mas, apesar de não querer


só isso, não contestava. No fim, as conversas sempre mudavam de rumo,
caminhando para assuntos sobre a faculdade, provas e as péssimas notas que
sempre vinham mesmo estudando por horas com afinco.

— Faculdade não é fácil. — Era a nossa conclusão.

Mesmo assim, Guilherme não se esqueceria facilmente de Jorge. Ele


sentia a sua falta. Tentei incentivá-lo a lembrar dos momentos bons, das
risadas... mas ele sempre reclamava de não ter conseguido se despedir.

— Você ainda pode fazer isso — tentei, tendo uma ideia.

— Como, Gustavo? Ele já se foi.

— No seu coração, você pode despedir-se dele — expliquei.

— Eu não estou entendendo — Guilherme retrucou, já em prantos.

— Você pode ir até a um lugar que te faz lembrar-se e despedir-se dele


por lá.

— Isso não parece que vai funcionar.

— Apenas tente, você vai se sentir melhor — eu insisti.

— Tudo bem — ele aceitou.

— Se você precisar de qualquer coisa, eu estou aqui.

— Obrigado por ser tão querido.

Em minha cabeça, tudo o que eu queria dizer era: EU QUERO VOCÊ.


Só isso. Mas, óbvio, esse não era o momento para dizer. Nunca é! E como
eu explicaria uma paixão a tantos quilômetros de distância? E como eu
imaginava que seria? Íamos nos encontrar a cada três meses, ter dois filhos e
viver distantes (felizes) para sempre?

***

66 Fique
Ele não encontrou lugar melhor para despedir-se que não fosse ali.
São tantas lembranças boas. Jorge, que tinha feito parte de sua vida de uma
forma especial, de repente, partiu. Ele se relembra de que corriam naquele
parque quase todos os dias. Jorge dizia que correr fazia bem para a saúde e
incentivou-o a praticar o esporte.

Tragicamente, foi o seu coração que não resistiu. Rosa lhe contou sobre
as preocupações na empresa. Guilherme compreendeu, é claro, afinal Jorge
estava com os nervos à flor da pele em sua última semana. Conseguiram uma
excelente aquisição e foi ele quem comandou a equipe para fechar o negócio.

Do que adiantou todo esse esforço? Valeu a pena permitir que Deus lhe
tirasse a vida por uns milhares de reais? Jorge tinha tanto pela frente... tantas
coisas boas... Eu sei que o trabalho é indispensável, todos nós temos que lutar
por nossos objetivos, mas esse objetivo custou-lhe mais do que algumas
noites mal dormidas ou dores de cabeça no final do dia.

Guilherme despediu-se com uma oração silenciosa que nunca me


revelou.

***

Não há como não emocionar-se quando Guilherme começa a contar


sobre tais eventos. Em uma noite próxima daquela data, logo após a morte
de Jorge, sonhei com o garoto. Ou pode ser que seja a lembrança de uma
conversa franca demais para confessar.

Posso dizer que, depois de ouvir Guilherme reclamar e apontar o dedo


para o céu, jogando a culpa para o Alto, era hora de alguém dizer algumas
verdades para ele. Esse papel ficou sob a minha responsabilidade.

— Meus sentimentos, Gui. Não é fácil lidar com a morte, só o tempo pode
amenizar a nossa dor — eu disse.

Fique 67
— Eu estou cansado das pessoas me desejarem seus sentimentos, eu
estou com raiva, de Deus, do mundo — ele explodiu.

— Eu entendo.

— Não, você não entende! As coisas não precisavam ser tão difíceis
assim, a vida podia ser mais simples, mais fácil.

— Somos nós que escolhemos o peso que carregamos — completei.

— Isso é a maior baboseira que eu já ouvi! Eu não escolhi que o Jorge


morresse, eu não escolhi ser homossexual e, muito menos, estar impotente a
tudo isso. Deus apenas joga o peso em nossas costas e a gente tem que se virar
para suportar.

Deixei que ele continuasse a liberar a raiva que sentia.

— Sabe, eu acreditei, por muito tempo, que Deus tinha um plano para
cada um de nós. Que nós somos destinados a cumprir os Seus sonhos, mas
não é isso o que acontece. Deus permite que tantas coisas ruins aconteçam
em nossa vida... Eu não escolhi viver dessa forma, eu não tive escolha, você
entende isso?!

— Entendo. — Deixava que ele falasse.

— Eu nunca vou ser normal, eu vou sofrer com o preconceito das outras
pessoas, talvez apanhar na rua ou algo do tipo. Eu precisava dele, era para o
Jorge me ajudar com tudo isso, porque o meu pai está a cada dia mais distante
e, agora, Jorge também se foi... e eu não posso fazer absolutamente nada!
Deus me tirou o livre arbítrio, me fez homossexual, me afastou de meu pai e,
ainda, levou uma das pessoas mais importantes da minha vida. Isso não é o
meu destino. É, no mínimo, um massacre. Será que Ele está se divertindo lá de
cima? Será que é engraçado me ver chorar e se desesperar, noite após noite,
implorando para ter uma vida normal?

— Eu tenho a certeza de que não, Ele o ama, Guilherme.

— Não! Não ama! Tudo o que eu sempre pedi a Deus foi uma vida comum,
com um emprego razoável e a minha família por perto. Eu queria ter filhos!

68 Fique
Eu queria ser pai, mostrar a eles que eu posso ser um bom pai. E tudo isso foi
por água abaixo. Como se não bastasse, Ele ainda leva uma das peças mais
importantes da minha vida. Como isso pode ser amor?!

Respirei fundo, recordando de uma experiência já vivida, e tentei dar


outra visão ao menino.

— Esse não é o seu destino, nós é que construímos o nosso futuro. A única
certeza é o amor! O amor é o que pode vencer todas as barreiras que você
acabou de me descrever. É com ele que o preconceito perde o sentido, que a
saudade acarreta motivação e que o ódio é derrotado. Não existe nenhuma
forma de ser feliz de que o amor não faça parte. Desde uma relação entre
pai e filho até um casamento, sem o amor, nada faz sentido. Não existe uma
fórmula mágica para se viver, não existe um manual de instruções explicando
o passo a passo para se alcançar a felicidade. Porém, com o amor, a alegria
torna-se possível.

Guilherme permaneceu mudo, surpreso com o meu discurso.

— O amor, em sua forma mais simples e pura, muda as nossas vidas.


Eu não me refiro a ele como sendo apenas uma paixão entre duas pessoas,
mas, sim, um amor leve que sonda cada segundo do nosso dia a dia. Quando
você abre os seus olhos, pela manhã, e vê a luz do sol invadir o quarto, o seu
coração se aquece. Isso é o amor pela vida. Ao levantar-se e tomar um café
quente no inverno, quando você se sente aconchegado, isso é o amor em seu
momento único. Quando você sai para trabalhar e cumprimenta o porteiro do
seu prédio, e ele lhe abre um sorriso, essa é mais uma forma de amor.

— Ou quando acaricia um cachorro na rua, e ele abana o rabo, contente.


— Guilherme quis participar, provavelmente sorrindo pela primeira vez desde
a morte de Jorge.

— Exato. Podemos continuar isso por toda a eternidade e ainda nunca


acabar de listar os momentos mais perfeitos em que somos tomados por esse
sentimento maravilhoso. O amor está nas pequenas coisas, Deus também
está nos detalhes. Não O culpe pela morte, ou pela sua orientação sexual,

Fique 69
culpe-O por tentar alegrar o seu dia fazendo-o sentir-se amado. Ele sempre
estará do seu lado!

***

Após algumas semanas da morte de Jorge, Guilherme já estava de volta


à faculdade. Tentei me aproximar um pouco mais. Deixá-lo desabafar era
uma das únicas formas que tinha para ajudá-lo. Eu ligava quase todos os dias,
em alguns deles ele apenas chorava. Em outros, com a voz um pouco mais
animada, contava-me alguma novidade sobre as aulas.

A cada conversa que tínhamos a nossa intimidade aumentava. Eu


confessei alguns segredos de adolescência, ele contou alguns episódios que
presenciou no tempo em que ia à igreja. Guilherme seria perfeito como meu
namorado. Depois de seis meses conversando, eu me apaixonei de vez.

Cheguei até a imaginar um namoro a distância. Moderno, não?! Então


resolvi me abrir e contar para Guilherme o que eu estava sentindo. Nós
conversávamos todos os dias, contávamos segredos e detalhes extremamente
pessoais, tínhamos gostos parecidos. A distância era o único empecilho para
que nós tentássemos algo a mais.

É claro que eu não pensava em me casar, ter dois filhos, cinco cachorros
e oito gatos, morar em um condomínio fechado e fazer uma viagem
internacional por ano, mas eu queria mais do que amizade.

Então passei a me expor a ele, dizia que estava com saudades de ouvi-
lo, mesmo conversando todos os dias. Arrastava a minha voz nas falas mais
simples, para seduzi-lo. Perguntava sobre o seu dia a dia, querendo saber de
todos os detalhes. Estive presente, mesmo estando distante. Ele notou:

— Você está diferente. Estou gostando disso.

— Eu sei — brinquei, passando-me por convencido.

— Cuidado, essa confiança toda pode se virar contra você — ele disse

70 Fique
cauteloso e sondando a minha reação.

— E como isso vai acontecer?

— Se eu desligar o telefone, você não irá se gabar, porque estará falando


sozinho — ele disse, ganhando a brincadeira.

— Ah! Assim não vale, você sempre encontra um jeito de se sair por cima.

— Eu sei, mas eu tenho uma forma de te compensar por isso.

— Como? — perguntei curioso e divertido.

— Vou te prometer uma coisa. — Ele ficou sério de repente. — Eu prometo


que nunca vou deixar de conversar contigo.

Um passo grande foi dado. Era importante escutar aquilo. Senti-me em


um balanço no topo de uma montanha, com o vento soprando em meu rosto.
Aquela sensação de felicidade e, ao mesmo tempo, pavor invadiu-me.

— Ótimo. Só tem um detalhe que eu acho que pode melhorar... —


Aproveitei-me da situação.

— E qual é? — ele perguntou, curioso.

— Eu deveria te conhecer pessoalmente, para ver esse sorriso lindo que


você tem — cantei.

— Ok.

— Ok?!

— Sim, eu prometo que um dia vou a Mato Grosso te ver — ele disse,
fazendo-me suspirar do outro lado da linha.

Meu único desejo naquele momento era viver o suficiente para que
aquilo acontecesse.

— Você é quase que um namorado para mim, sabia? — ele falou sem
pensar. — Quer dizer, amigo, um excelente amigo, perfeito — tentou corrigir.

— Eu poderia ser um namorado...

— Poderia? — gaguejou.

— Sim, por que não?

Fique 71
— Nós estamos tão longe... — ele disse, triste.

— Eu sei, mas nada nos impede de namorarmos. Eu posso ser um


excelente namorado, sabia?! — falei, dando risada.

— Um perfeito? — ele me provocou.

— Um quase perfeito.

Imaginei nós dois de mãos dadas, em um campo aberto de flores, com um


pôr do sol maravilhoso, as estrelas surgindo, um beijo apaixonado. Suspirei.

— Você ainda está aí? — Guilherme perguntou.

— Estou. Então, o que acha?

— Eu acho que nós estamos viajando demais com essa história, é hora de
voltar para a terra. — Ele cortou a minha empolgação.

E começou o papo-furado sobre a amizade. Disse que não podíamos


estragar aquilo, que deveríamos manter nossas conversas na friend zone.
Acho que estava na hora de eu aceitar que Guilherme não queria nada comigo.
Seguir em frente e esquecê-lo.

— Nós não precisamos complicar as coisas. Eu gosto de você assim,


como amigo — ele disse, convicto.

— Sim, você tem razão — menti, pois o que eu queria dizer era: vamos
complicar as coisas!

— Então está bem. Não quero que nada estrague a nossa amizade, ok?

— Pode ficar tranquilo, não vamos estragar nada — confirmei, desapontado.

***

Por favor, não complique as coisas. Por favor, não me ame. Não
estrague a nossa amizade. Não se permita gostar do que eu falo
ou do que eu penso. Nosso relacionamento é tão perfeito sem a
complicação do amor.

72 Fique
Eu imploro que, se pensar em entregar-se ao amor, antes me deixe.
Deixe-me pensar que você se foi por algo mais simples, por uma
opinião pela qual discordamos ou por um ideal diferente. Faça-me
pensar que você trocou de número e perdeu o meu. Ou, quem sabe,
que foi morto em um tiroteio durante um assalto a banco.

Não me ame, é só isso que eu peço. As coisas são simples quando não
há amor. Eu o olho feliz, sem culpa. Não deixe que eu o olhe com
peso na consciência por ter mentido sobre onde eu estava no último
sábado, quando eu disse que estava em casa enquanto bebia mais
uma dose de tequila no bar da esquina.

Também não se preocupe comigo como se me amasse. Porque eu


teria que tomar mais cuidado ao atravessar a rua movimentada. Ou
pararia de beber tanto e ficaria mais em casa, assistindo à Netflix.
Não, não se preocupe comigo. Eu estarei bem, desde que não
precise de controlar quantas latas de cerveja tomei antes de voltar
cambaleando para meu sofá.

Mais uma vez, eu lhe imploro. Deixe-me assim, sem amor. Afinal,
e se eu também o amar? Se eu o amar, você não vai poder mais sair
na sexta e voltar no domingo. Vai ter que deixar de lado aqueles dez
livros que você lia todos os meses. Talvez consiga ler um ou dois.
Talvez, com isso, a sua imaginação e a sua eloquência diminuam.
Não quero ser o culpado.

Não me deixe amá-lo. Porque, se eu amá-lo, as suas séries na


Netflix vão se atrasar. Você vai diminuir as sessões na academia para
ficar abraçado, comendo chocolate e pipoca, assistindo a um filme
de romance qualquer. Não me deixe amá-lo, porque você vai se
arrepender quando olhar para o trabalho acumulado da faculdade,
e vai me culpar.

Amar vai fazer com que o nosso tempo se encurte. Nós não podemos
nos dar esse luxo. Eu vou querer você e você vai me querer. A família

Fique 73
vai reclamar. Os amigos vão reclamar. Possivelmente o seu melhor
amigo vai criar um plano para nos separar, ou a minha melhor
amiga me matará por ciúmes.

Será que poderíamos encontrar um meio termo? Será que o amor


permite pararmos em algum lugar de equilíbrio? Talvez, devêssemos
comprar um apartamento bem no meio do caminho da casa de sua
mãe e da minha mãe. Quem sabe montar um escritório para você
estudar e não me culpar pelas tarefas acumuladas.

Até poderíamos combinar um horário de leitura. Você lê seus livros


que mais parecem dicionários, eu leio os meus romances e Clarice
Lispector, sonhando com o nosso futuro. Até poderíamos criar dois
perfis na Netflix, um com seus documentários chatos, outro com
minhas séries policiais.

Vamos correr juntos, eu podia tentar alcançá-lo. Esforçar-me-ia para


correr os dez quilômetros semanais ao seu lado. Cortaria o chocolate e
a pipoca e até poderia pensar em começar a academia. E por que não
ir ao bar juntos? Podemos combinar que em alguns dias você cuidaria
para que eu não atravessasse a rua sem olhar para os lados, enquanto
em outros eu poderia dirigir, sóbrio, para você cantar as músicas que
tocariam no rádio.

Será que, ao pensar tudo isso, eu deva confessar que eu o amo? Acho
que não. Porque o amor é complicado. Vamos manter as coisas simples
e continuar nossas discussões intermináveis sobre os livros de Mark
Manson. Ou deveríamos “tocar o foda-se” e deixar que o amor nos
leve para algum lugar desconhecido? O que você acha? Devo amá-lo
ou devo fingir que as coisas são simples?

74 Fique
Capítulo 6: Uma tequila no bar

O
período de férias da faculdade chegou, o segundo ano estava
completo. Guilherme voltou para a casa dos pais, e eu pude
relaxar e colocar em dia as séries que acompanhava na televisão. A faculdade
em que eu estudava se encontrava na mesma cidade onde nasci, por isso ainda
morava com os meus pais e tinha o privilégio de estudar em uma universidade
federal.

Eu sei que o meu curso não era tão concorrido como o de Guilherme,
porém eu me orgulhava de estudar psicologia. Sempre foi a minha paixão.
Isso tudo era motivo suficiente para Guilherme me provocar logo no primeiro
dia de férias:

— Você mora com os seus pais, Gu.... Você nunca precisa cozinhar.

— Ah! Isso não vale. Apesar de não precisar, eu os ajudo, ok?! — Fingi ter
ficado ofendido.

— Mesmo assim, você pode estudar quando quer. Comigo não é muito
bem dessa forma, tem dia em que deixo de comer para conseguir finalizar
um trabalho ou estudar para uma prova — ele insistiu, sempre dramático,
martirizando-se como se fosse vítima de alguma guerra.

— Eu sei disso, meu anjo, estou brincando com você. Nem imagino o
quão difícil deve ser estar longe de sua família.

Assim se seguiram os próximos trinta minutos. Falando de provas e


notas, provocando um ao outro, usando apelidos carinhosos. Aquilo cada vez
menos se parecia com uma amizade.

— Parabéns, gatinho. Estou orgulhoso de ti — eu o parabenizei, quando


contou sobre uma nota boa que havia tirado.

— Obrigado... É... Você me chamou de gatinho? Foi isso mesmo?

— Sim, algum problema?

Fique 75
— Nós já conversamos sobre isso...

— Nossa, Gui, apenas te elogiei. Pode ficar tranquilo, não quero nada a
mais com você — expliquei, um pouco chateado com a fixação de Guilherme.

Ele recuou, pedindo perdão. Eu não conseguia entender o que o motivava


a permanecer tão inflexível quanto ao nosso relacionamento. Evidentemente
a distância atrapalharia, mas não era justificativa para evitar qualquer
tipo de aproximação. Afinal, quem poderia dizer que em algum futuro não
poderíamos morar na mesma cidade?

De qualquer maneira, eu não queria prejudicar as nossas conversas.


Afinal, nos momentos em que eu e Guilherme estávamos “juntos” parecia
que as preocupações externas sumiam. Ouvi-lo contar as suas histórias e
desabafar fazia-me sentir alegre e, de certa forma, completo. E não, isso não
é um exagero, é paixão.

Estava mais do que na cara que eu gostava dele. Trocava mensagens


cheia de emoticons, postava indiretas no Facebook e no Instagram, deliciava-
me ao escutar a sua voz, um namoro a distância perfeito. Malditos sejam
os quilômetros que nos separavam. Aposto que, se estivéssemos na mesma
cidade, já teríamos, ao menos, dado alguns beijos.

Por outro lado, a culpa não é inteiramente de Deus, por termos nascidos
longe. Às vezes eu tinha a impressão de que Guilherme estava indiferente
em relação a nós dois. Quanto mais eu tentava aproximar-me, mais ele se
afastava. Vai entender essa lógica!

***

Em paralelo, para aproveitar as férias de Guilherme, sua avó, Tereza,


resolveu fazer um almoço em sua casa e convidar os filhos e o neto. Dessa vez
Rodrigo conseguiu marcar presença. Foi a própria avó que iniciou o assunto
que causou toda a confusão. Sem intenção de gerar polêmicas, ela comentou

76 Fique
sobre a onda de assassinatos na cidade em que o neto estudava. Rodrigo
aproveitou a oportunidade:

— Mas é claro que eram veadinhos, então nem conta.

— Como assim? — Tereza perguntou, sem entender o que o filho queria


dizer.

— Ué, mãe, o moleque era gay, com toda a certeza deve ter feito alguma
coisa para merecer. Mais cedo ou mais tarde, Deus vai castigar esses veados.
— Rodrigo era enfático e mantinha uma postura ereta, transparecendo o
orgulho em sua fala.

Confusão causada. Guilherme ficou vermelho e controlou-se para não


explodir. Ele queria desabafar ali mesmo, dizendo que aquilo não era coisa
para se falar! Que ele também era homossexual! Mas controlou-se.

Rodrigo continuou a sua argumentação, alegando que Guilherme


não podia defender um pecador. Quando se tratava desse tipo de gente não
deveríamos ter empatia. Disse que o garoto conhecia a palavra de Deus, e
estava mais que evidente que a Bíblia não aprova esse tipo de comportamento.
A sua voz era de nojo.

— Ele só tinha 16 anos, pai, não merecia morrer — Guilherme retrucou,


quase chorando.

— E no que isso interfere? Aposto que, se os pais tivessem dado umas


surras, ele não seria desse jeito.

— Rodrigo! — Joana e Tereza exclamaram ao mesmo tempo.

— Vocês duas também vão defender essa espécie de pessoa? Todos eles
vão para o inferno! — ele rebateu.

— Não é bem assim, Rodrigo — Joana tentou evitar uma confusão,


percebendo que o rosto de Guilherme já estava inflando igual a um balão. —
Não importa o que a pessoa é ou deixa de ser, ninguém merece morrer. Muito
menos ir para o inferno. E outra, não somos nós que vamos julgá-los, apenas

Fique 77
Deus tem esse papel. Não é isso que você prega lá na igreja? Que a salvação é
para todos?

— Eu prego a salvação para os santos e o amor entre os irmãos. Tem


gente que nasce para sofrer mesmo. Esses veados merecem morrer, não
fazem nada de útil.

Guilherme respirou fundo, mas não conseguiu segurar a emoção.


Em meio a lágrimas contidas, esfregando os olhos e passando a mão,
desesperadamente, no cabelo, desabafou:

— Para começar, são homossexuais, não é legal utilizar outras palavras


para ofendê-los. E, depois, você também não faz nada de útil e ainda está aí,
vivo, reclamando de uma sociedade que considera doente, sem nem olhar
para o próprio nariz.

Rodrigo explodiu. Agora ele gritava. Então, a pergunta mais crucial


partiu de Tereza:

— Você já pensou se o Guilherme fosse homossexual?! Você não pode


falar esse tipo de coisa!

— Eu prefiro ter um filho morto a ter um filho gay — Rodrigo berrou.


Joana agarrou o braço de Guilherme milésimos antes da resposta. Ele
respirou e engoliu seco. Ainda não era o momento. Não assim!

***

Ele diz isso porque não sabe a verdade. Nenhum pai iria preferir ver
o filho morto a ser gay.

Apesar de que, ontem, li uma notícia de um pai que espancou o filho


homossexual até que ele ficasse desacordado.

Será que a crueldade do homem pode ir tão longe?

O homem é um animal faminto por sangue. Desesperado. Contra as


particularidades de cada indivíduo.

78 Fique
Ele se sente ameaçado. É medroso, covarde, acha que espancar é a
solução para todos os problemas.

Alguém explique ao homem que o amor é a solução. Por favor,


explique que o ódio apenas gera mais ódio.

Um morre aqui, outro é espancado ali. Só gera revolta e ainda mais


revolta.

Depois de tantos massacres, o ódio começa a ser combatido com


ódio. Um grupo de homossexuais espancou dois evangélicos.

Raiva gera mais raiva. Eles revidam. E onde está o amor? Com um
grito desesperado, alguém lhes explique que o amor tudo pode
resolver.

Porque nós queremos parar com esse ciclo de violência. São vidas!
Todos merecem viver.

Como alguém é capaz de matar? São vidas! Eles respiram, têm


família. Todos têm alguém para amar e de quem receber o amor.

Os protestos pelas mortes dos inocentes pregam justiça e se esquecem


do amor.

O que seria da justiça sem a misericórdia de Deus? A justiça toma


partido, ela não funciona.

E, assim, o ciclo continua. Amanhã, um gay morre em São Paulo.


Depois, um evangélico é espancado no Rio de Janeiro. Outro da
umbanda é xingado em Salvador. Mais um travesti é internado em
estado grave em Brasília.

A particularidade do homem cria revolta no homem. Mas por que


tanta revolta se existe o amor?

Para eles, o amor é vil. Para eles, o ódio é eficaz.

E revolta-me saber que eles preferem se esquecer do amor. E, se


eu me revolto, não posso intervir. Então, por favor, alguém pode
explicar a eles que o amor pode resolver tudo?

Fique 79
***

Sempre que possível eu subia ao terraço do prédio onde morava com


os meus pais para assistir ao pôr do sol. Em alguns dias, eu passava horas
observando as luzes da cidade e dos carros, enquanto pensava sobre a minha
vida. Aquele era o meu refúgio, ali eu fazia o meu próprio tempo.

Fagundes, o zelador do condomínio, era quem possibilitava tal façanha.


Ele tinha por volta dos 70 anos, pálido, magro e com as mãos trêmulas.
Sempre se disponibilizava para abrir a porta do terraço, permitindo a minha
entrada. De vez em quando ele permanecia ao meu lado, também observando
o horizonte.

— A vista é magnifica — ele comentou na véspera do ano novo daquele


ano, minutos antes da meia-noite.

— É perfeita — eu concordei.

— Os seus pais não vão subir? — indagou-me, notando que eu estava


sozinho.

— Eles já se deitaram, eles não comemoram o ano novo — expliquei.

— Eles são chineses? — Fagundes perguntou curioso.

— Não... são brasileiros. — Eu dei risada. — Não comemoram por opção.

— Entendo.

O silêncio instalou-se. Apenas os barulhos advindos da cidade invadiam


a sacada.

— Este é um bom lugar para trazer a minha namorada.

— O senhor namora? — Eu me surpreendi.

— Não, mas não custa nada sonhar. E você? Aposto que está cheio de
meninas aos seus pés — ele perguntou, cutucando o meu braço com o cotovelo.

— Por incrível que pareça, não.

— Então, meninos?

80 Fique
— Talvez. — Ri.

— Entendi, a sua praia é outra — ele falou, tentando soar como um jovem.

— É... é outra — eu confirmei, achando a situação engraçada.

— Quem sabe, um dia, você traz o seu namorado aqui, então.

— Quem sabe... — eu cochichei, enquanto os fogos começaram a iluminar


o céu e imaginando Guilherme ao meu lado.

***

Faltava apenas uma semana para o retorno das aulas, e eu e Guilherme


não saímos da friend zone. Então, resolvi aceitar um convite de uma amiga, e
fomos a um barzinho popular da cidade, para paquerar.

Samira era a minha única amiga da faculdade que sabia de minha


orientação sexual. Olhos verdes e cabelo escuro, era sempre sorridente
e alegre. Nós tínhamos a mesma idade e ambos cursávamos psicologia.
Ela sabia de boa parte de minha vida e não demorou a indagar-me sobre
Guilherme, percebendo que eu não estava dedicando-me ao plano “encontre
e leve para a casa”.

— Você gosta dele, não é? — ela perguntou, notando que, após a terceira
dose de tequila, eu estava um pouco tristonho, pensando na vida.

— Talvez — eu balbuciei.

— Acho que está na hora de você conhecer mais alguém. Já que você não
toma uma iniciativa, eu farei isso por você, vejamos...

Samira olhou atentamente cada canto do bar, localizou o alvo e disse, já


se levantando:

— Vou ali e já volto, vê se arruma esse cabelo, está todo despenteado.

Penteei o cabelo com as mãos e continuei a observá-la, tentando focar


a minha visão, que já estava um pouco turva por causa da bebida. Ela não
tardou a voltar.

Fique 81
— Tome — disse sorridente, entregando-me um pedaço de guardanapo
com um telefone. — Ele se chama Mateus e ficou muito interessado em você.

— Como assim, interessado?

— Ele gostou de você — ela confirmou.

— Mas ele conseguiu me ver de tão longe?

— Bem... ele deve ter gostado do que eu disse.

— E o que você disse? — perguntei, surpreso.

— Eu disse a verdade. — Ela sorriu, marota.

— Samira! O que você falou para ele?

— Eu falei que você estava de olho nele a noite toda e que queria conhecê-
lo pessoalmente. Inclusive, disse que você o achou muito bonito e elogiou a
roupa que estava vestindo.

— Samira! Eu nem ao menos consegui enxergar o rosto do garoto! —


gargalhei.

— Fique tranquilo, você não vai se decepcionar. — Ela fez um gesto ao


garçom, pedindo mais duas doses de tequila.

— Acho que temos que parar de beber, já estou um pouco tonto.

— Nós só sairemos daqui quando amanhecer — ela disse, tomando, de


uma vez, um dos copos que o garçom serviu.

— Tudo bem, então, mas eu não respondo mais pelos meus atos —
brinquei, bebendo a tequila do outro copo.

***

— Bom dia, bebê. — Uma voz suave acordou-me. — Está na hora de


levantar.

— Bom dia. — Eu esfreguei os olhos. — Que horas são?

82 Fique
— São quase dez. — Senti uma mão acariciar o meu cabelo.

— Quem é você? — Eu me assustei, notando que não estava no meu


quarto e, muito menos, conhecia a pessoa que me acordara.

— Eu sou Mateus — ele disse, achando graça. — E a sua amiga está me


devendo cinquenta reais.

— O quê? Como assim? — Eu esfreguei os olhos novamente, focalizando


o rosto do rapaz. Mateus tinha a pele morena, olhos azuis, um cabelo curto
delicadamente arrumado, lábios carnudos e dentes perfeitamente brancos.

— Eu apostei com ela que você não ia lembrar quem eu era e ganhei. —
Ele explicou, triunfante.

— Aí-meu-Deus, me perdoe, eu acho que bebi demais ontem à noite.

— Relaxa, eu também bebi além da conta.

— Então quer dizer que nós... a gente...

— Se nós transamos? — Mateus concluiu gargalhando. — Agora a sua


amiga me deve cem reais.

— Você apostou que transaria comigo?!

— Não, rapaz. — Ele riu alto. — Eu apostei que você perguntaria isso...
Mas não, nós não transamos. Você e a Samira estavam suficientemente
bêbados para não conseguirem ligar para um táxi, então eu chamei um e os
deixei dormir aqui.

— Ufa. — Relaxei.

— Mas saiba que você tentou me agarrar, e mais de uma vez.

— Desculpe-me — eu disse com vergonha, encobrindo o meu rosto com


o edredom.

— Ora, ora, o príncipe encantado acordou. — Samira entrou no quarto,


salvando-me da morte inevitável por constrangimento. — Achei que você ia
dormir até amanhã.

Fique 83
— Você perdeu, Samira, me deve cem reais. — Mateus falou gabando-se
enquanto saia do quarto e deixava-nos a sós.

— Eu não acredito que você perguntou para ele se vocês tinham transado!
— Ela não aliviou, batendo de leve em meu ombro.

— Eu não lembro de nada da noite passada.

— Se serve de consolo, ele gostou de você.

— Sério?

— Sério. Acho que o meu amigo vai deixar de ser virgem — ela provocou,
cutucando a minha barriga.

— Samira! Eu não sou virgem — cochichei.

— O Mateus acha que você é.

— Como assim? — Meu rosto corou.

— Eu falei para ele que você era virgem, assim ele não teria a coragem de
ficar com você, já que você estava totalmente bêbado.

— Eu não acredito que você fez isso!

— De nada. — Ela riu e saiu saltitando do quarto.

***

O amor bate à porta quando menos se espera. Ele chega a nossas


vidas de mansinho, como se não quisesse nada, e conquista o nosso
coração.

Em um restaurante, na faculdade ou na escola, no bar da esquina de


casa depois da terceira dose de tequila ou em uma conversa on-line
às três da manhã com um garoto de outro estado.

Então, torna-se impossível controlar a magia que nos entrelaça


depois da primeira troca de olhares (ou mensagens), do primeiro
sorriso (ou fotografia). O seu corpo para de responder aos seus

84 Fique
comandos, ele adquire vida própria. Todo o resto fica sem sentido, e
o seu coração bate mais rápido.

O problema é que o meu amor está longe, ele não quer se entregar,
não quer deixar-se sentir. A distância é a desculpa de que ele
precisava para fingir não me notar.

Então o que eu devo fazer? Desistir de amar? Partir para outra?


Resolvi beber, e depois da terceira dose de tequila, no bar da esquina,
esqueci-me de tudo e acordei nos braços de outro.

***

Apesar de não estar muito confiante em conversar com Mateus, eu não


resisti. Ele foi um cavalheiro na noite quando eu bebi mais do que deveria
e não aproveitou a oportunidade para me levar para a cama. Além disso, o
rapaz era charmoso com seus quase dois metros de altura, o corpo atlético e
moreno, Mateus era o sonho de muitas sogras.

Meu coração ainda estava apertado por causa de Guilherme. Se ele ao


menos tivesse dado um pouco mais de abertura para tentarmos algo... Mas
ele tinha sido bem claro sobre a nossa relação, seria apenas amizade e ponto
final. Com isso, resolvi atender a ligação de Mateus, dois dias depois de nos
conhecermos.

Ele, ainda cordial, cumprimentou-me. Fingi não saber quem era. Mateus
se identificou, percebendo que havia sido de proposito, e ainda brincou sobre
o tanto que tínhamos bebido. Depois do papo-furado, Mateus convidou-me
para sair:

— Eu queria te convidar para tomar um café em algum dia desses, mas,


já que você não lembra quem eu sou... acho melhor não... — ele brincou.

— Ou, você podia me convidar, assim eu me relembraria de sua voz e de


sua aparência — tentei seduzi-lo.

— Não vejo solução melhor.

Fique 85
***

Enquanto eu me encantava por Mateus, Guilherme parou de receber as


minhas ligações, e foi Noemi que percebeu que algo o incomodava. O garoto
olhava para um lado e para o outro, coçava a cabeça nervosamente e hesitava
ao sentar-se na usual poltrona vermelha. Aparentemente, algum menino
estava o “dando um gelo” e, aparentemente, ele estava apaixonado por esse
menino.

— Como ele se chama? — Noemi perguntou.

— Gustavo. — Guilherme respondeu.

— Você nunca mencionou esse nome! Vocês se conheceram há pouco


tempo?

— Não, há uns oito meses. Ele é do Mato Grosso.

— Entendo. Como vocês se conheceram? — ela perguntou, enquanto


fazia novos rabiscos frenéticos em seu caderno.

Guilherme explicou, acrescentando que estava começando a gostar de


mim.

— E o que o leva a pensar nisso?

— Eu não sei ao certo, mas em todas as vezes em que nós conversamos


eu sinto algo diferente... O meu coração bate mais rápido, fico sem ar, sabe? E
agora que ele não me liga mais sinto falta disso.

Noemi continuava a sondá-lo. Guilherme disse que existiam inúmeros


empecilhos nesse suposto relacionamento.

— Quais? — Ela quis saber.

— Primeiro: ele mora, absurdamente, longe. Segundo... é... — Guilherme


engasgou-se.

— Segundo? — Noemi sorriu. Parece que alguém estava cedendo. —


Acho que você está colocando obstáculos em lugares que não existem. A vida
é mais simples do que aparenta ser.

86 Fique
— Mas eu não posso me apaixonar dessa forma... Eu quero alguém que
esteja do meu lado, para crescermos juntos.

O que Guilherme deveria entender é que estar do meu lado não significava
me abraçar todos os dias. O amor transpõe limites físicos, ele não tem olhos
para ver a distância. Talvez... seja medo! Medo de se apaixonar?! Noemi
também pensou isso e o indagou sobre do que ele tinha medo.

— Medo de não ser o suficiente, ele é perfeito! Simpático, educado, pensa


no futuro, é amoroso, bonito, inteligente, tantas qualidades. Eu não o mereço
— Guilherme respondeu.

Noemi apenas o fitava, esperando que ele continuasse.

— Eu sou pouco para ele. Ele merece alguém melhor e alguém que esteja
perto. — Guilherme fechou os olhos, pensativo.

— Então você quer dizer que merece alguém pior? — Noemi insistiu
implacável.

— Eu não disse isso. Só não o mereço.

Oh céus! Que teatro dramático. Se eu estivesse ali, esse medo todo ia


desaparecer com um beijo. Noemi insistiu:

— Então, o que Guilherme merece?

—Guilherme merece alguém do mesmo nível. Alguém cheio de defeitos.

— Mas todos têm defeitos. Você não acha que seus pontos positivos são
maiores que seus pontos negativos?

Guilherme levantou os ombros, impaciente. Passou a mão no cabelo e


fitou-a. Noemi continuou:

— O Guilherme que você demonstra ser é uma pessoa excepcional. Às


vezes nós não conseguimos enxergar isso e precisamos de alguém que nos
mostre.

— Mas, de qualquer forma, eu não tenho nenhuma boa qualidade — ele


rebaixou-se.

Fique 87
Eu nunca havia o visto pessoalmente e saberia listar várias!
Noemi, também:
— Você tem qualidades excelentes. Sei que é difícil perceber
isso em meio a tantos problemas emocionais, mas você é uma
pessoa incrível. Defeitos todos têm, uns mais, outros menos,
mas todas as pessoas são dignas do amor, todas merecem ser
amadas. Você é uma delas, com toda a certeza. Não deixe de
viver por causa de alguns erros, faça o contrário, viva mais
intensamente para poder esquecê-los. A vida é uma só e é você
que vai abrir ou fechar portas para o amor. Afinal, o que é a vida
sem esse sublime sentimento?
Arrasou, Noemi!

88 Fique
Capítulo 7: O amor é inevitável

D
epois da primeira prova do semestre, os amigos resolveram
sair para espairecer a cabeça e colocar a conversa em dia.
Encontraram-se todos em uma lanchonete. É claro que Guilherme me contou
a conversa daquele dia.

— Vocês viram que o novo professor de Desenho Arquitetônico postou


uma foto a favor do estupro? — Kléber disparou, atiçando os ânimos do grupo.

— Eu vi! Ele não parece ser um cara muito ético. — Fátima comentou.

Letícia ficou indignada e revelou assistir a aulas daquele professor


devido a sua grade curricular diferenciada, já que ela participava de algumas
disciplinas extras.

— Como é possível que ainda exista esse tipo de gente? — Guilherme


perguntou retoricamente. Imagino que os amigos concordaram com ele.

— E pior, alguns deles falam que a culpa é da mulher, que usa roupas
curtas ou seduz o homem — Fernanda completou.

Fátima manifestou-se inconformada, dizendo que estupro é estupro, e


que não existia desculpas ou justificativas. Fernanda concordou, completando
a fala da amiga, falando que todo mundo é livre para vestir o que quisesse, já
que a liberdade é a questão mais importante da nossa existência. Os amigos
brincaram, dizendo que Fernanda estava muito filosófica:

— Eu acho que você está no curso errado, Fernanda, filosofia é mais a


sua cara — Guilherme provocou, os outros riram.

Kléber retomou a seriedade da conversa, alegando que, de qualquer


forma, não era prazeroso ver tantas notícias na televisão e internet sobre
estupros e violência doméstica.

— Mas, no nosso país, tudo é normal. Ser estuprado é normal; sofrer


agressão física por causa de sua orientação sexual é normal. Nós somos tão

Fique 89
conhecidos internacionalmente como o país do carnaval e do futebol, que até
parece que eles se esquecem de que o Brasil é um dos países mais violentos do
mundo — Guilherme discursou.

— Isso é tão triste e desanimador — Letícia lamentou. — O nosso país


é privilegiado pela sua posição geográfica, não temos terremotos, tsunamis,
vulcões... Mas nós o transformamos em uma zona de guerra.

— Falta amor — Fátima concluiu, e Guilherme reafirmou, quando me


contou o episódio.

— Espere um minuto, quem é você e o que você fez com a Fátima? —


Kléber fez o grupo gargalhar. — A Fátima que eu conheço não sabe o que é
amor.

— Eu sei o que é amor, só não quero senti-lo, é diferente — ela se explicou.


— E não é isso o que eu quis dizer, eu disse que as pessoas precisam amar mais
umas às outras, no sentido de amizade, caridade e compaixão.

A turma ficou alvoroçada com a fala de Fátima, afinal, não era sempre
que o grupo a escutava falar tantas coisas sentimentais. Kléber foi o primeiro
a zombar, dizendo que Fátima havia sido substituída por um extraterrestre.

— Ela está sentimental, Kléber, deve ter assistido a algum filme triste
com cachorros. Não seria a primeira vez... — Fernanda relembrou, referindo-
se a quando elas assistiram a “Marley & Eu”, e Fátima não conseguia parar de
chorar.

Fátima confirmou, afirmando que adorava filmes de cachorro. Todos


gostam de filmes de cachorro, eu e Guilherme sempre combinamos de assistir
a todos para discutirmos depois. Ele fica inconformado porque o cachorro
sempre sofre ou morre no final. Deveria ser proibido finais tristes nesses
filmes.

— De qualquer forma, ela está certa. Eu amo vocês, meus amigos


— Letícia disse, estendo os braços por cima da mesa. Os amigos fizeram o
mesmo e uniram as suas mãos, eles se entreolhavam orgulhosos.

90 Fique
***

Quando é que nossas particularidades deixarão de servir de padrão


de medida? Ser mulher, gay, negro, transexual ou “diferente” é o
único motivo de que eles precisam para olhar e julgar.

Às vezes, quando ando na rua, sinto-me fazendo parte de um teatro.


as pessoas olham, analisam o meu jeito de vestir-me, o meu jeito de
andar rebolando e me menosprezam.

Rótulos são para produtos estampados nas prateleiras do


supermercado. E é exatamente isso o que faz do mundo um lugar
melhor: as diferenças entre as pessoas.

***

Guilherme meditou profundamente nos dias que se


seguiram. Noemi estava certa, ele não podia sentir-se inferior
ao ponto de evitar-me. Então ele resolveu confessar seus
sentimentos por mim e para mim. O grande problema disso era
que eu também queria confessar uma coisa a ele.
Depois de atender no segundo toque, Guilherme
cumprimentou-me, perguntando se eu estava bem. Respondi
que sim e, sem me deixar continuar, ele começou ansioso:
— Que bom que você me ligou, eu estava mesmo querendo
falar contigo.
— Sério? Sobre o que, exatamente? — Eu perguntei,
subitamente, curioso.
— Eu lembrei de você hoje.
Isso era bom. Guilherme nunca havia “lembrado de mim” durante o seu
dia. Disse que estava lendo um livro de romance, um amor platônico.

Fique 91
— Por que platônico? — indaguei-o.

— Porque nós estamos longe, e você já tentou se aproximar... acho que é


platônico, não?!

— Provavelmente. Você quer me dizer alguma coisa? — insisti, sem


entender o que ele queria.

— É só que... — hesitou.

— Ai, Gui, que enrolação — eu o interrompi zombando. — Deixe-me falar


a minha, primeiro, depois você me conta a sua.

Ele cedeu, permitindo que eu falasse. Feliz, confessei:

— Eu conheci um cara!

— Um cara? — A sua voz saiu aguda.

— Sim, um cara.

— Conheceu, como? — Guilherme ficou desconcertado.

— Eu e a Samira saímos há algumas semanas, e encontrei-o no bar a que


nós fomos.

— Você está saindo com um cara que conheceu em um bar? — ele


perguntou com um tom de repreensão.

— E qual é o problema? Você, eu conheci em um bate-papo on-line sobre


sexo — rebati.

— É, você tem razão quanto a isso.

— Continuando... Eu o conheci e estamos ficando.

— Você está ficando com um cara que conheceu no bar? Percebe o quão
estranho isso soou?

Eu respirei fundo, não estava entendo o motivo de tanta raiva... só se...


espere! Ele estava com ciúmes!

— Você está com ciúmes? — perguntei, torcendo para que a resposta


fosse sim.

— Ciúmes? Eu?? Não! Não sei... definitivamente não. — Ele se atrapalhou

92 Fique
com as palavras.

— Mesmo?

— Mesmo!

Cedi, fingindo que tinha acreditado. Então perguntei qual era a sua
novidade.

— Eu também estou ficando com um cara — ele mentiu.

Por essa eu não esperava. Tudo bem eu estar conhecendo alguém,


mas Guilherme? Isso não era nada bom. E sim, fiquei com ciúmes. Mas não
demonstrei, deixando que ele contasse o resto da história.

— Está com ciúmes? — Ele perguntou.

— Sim! — Afinal, quem é esse cara que tem a coragem de ficar com o
meu... meu, o quê? Namorado? Amigo? O que o menino era meu? O que eu
queria que ele fosse? A minha cabeça doeu, de repente. Fiquei confuso e, por
uns segundos, perdi-me em meus pensamentos.

— Gu.... Você ainda está aí? — ele me chamou depois de um silêncio longo.

— Sim, estou — respondi seco.

— Continuamos amigos, então?

— Continuamos?

— Amigos — ele afirmou.

— Amigos — confirmei a contragosto.

***

O timing foi inimigo do amor. Por causa de um detalhe, eu deixei passar


a oportunidade, sem perceber. Porém, eu acredito no destino; não aquele que
alguma divindade criou, mas aquele que nós mesmos traçamos. O destino é
sinônimo de escolhas: direita ou esquerda, feliz ou triste, sim ou não...

Fique 93
Acreditar no destino nada mais é que saber quais serão as consequências
de sua decisão. Se você acelera o carro acima do limite de velocidade, o seu
destino pode ser um acidente; se você infringe uma lei, o seu destino pode ser
a cadeia, e assim por diante. Nós fazemos o nosso próprio destino, de acordo
com qual caminho decidimos seguir.

À cada escolha, o nosso destino adapta-se, alinha-se e aproxima-se. O


futuro não está definido, nós o definimos. É surreal pensar em que eu nasci,
exclusivamente, para conhecer, apenas, uma pessoa. E é mentira o que dizem
nos términos de namoro... você vai encontrar alguém especial de novo!
Ninguém nasceu para ninguém, ninguém pertence a ninguém. Se um dia
eu ficasse com o Guilherme, não seria uma coincidência ou o acaso, mas as
minhas decisões levando-me até ele.

Ao mesmo tempo que isso é mágico (construir o nosso próprio futuro ou


lutar pela pessoa que amamos), torna-se cruel. Não ter um caminho definido
faz com que muitas estradas fiquem “disponíveis para o uso”, ou seja, tem-se
várias opções de amores disponíveis, dentre elas, as ruins e as boas.

O amor é uma escolha, porque o livre arbítrio excluiu qualquer


possibilidade de um futuro pré-determinado. Quando existe o poder da
decisão, o presente é a única coisa real. E a mística do amor é tão intensa que,
se o encararmos como uma simples reação biológica do organismo, toda a sua
magia desaparece. Se a magia desaparece, no entanto, também desaparece o
amor!

Foi nessa confusão de pensamentos que eu me encontrei, após conhecer


Mateus e ainda estar apaixonado por Guilherme. Por um instante, não soube
o que fazer, mas não demorou para que eu percebesse que o meu destino seria
com Guilherme.

***

94 Fique
Samira foi a única que não concordou com a minha insistência em
Guilherme. Era de se entender, afinal, fora ela quem arranjara esse outro (e
ótimo) partido quando saímos para beber. E faltou tão pouco para Mateus me
conquistar, para eu abandonar a ideia de casar-me com o príncipe encantado
e contentar-me com um quase príncipe encantado... Mas Mateus não tinha o
sorriso bonito de Guilherme, ou sua facilidade em levar-me a outro mundo
quando conversávamos. Samira ainda tentou me convencer a não me abrir
com Guilherme.

— Eu acho que você deveria esquecer esse tal de Guilherme.

— Eu gosto dele — rebati.

— Vocês nunca se viram pessoalmente, como isso é possível? — ela me


indagou, inconformada.

— Não importa, eu gosto dele — insisti.

Samira disse que Mateus parecia ser um bom partido, e que eu estava
escolhendo a pessoa errada.

— Não importa. Amanhã vou ver Mateus e esclarecer as coisas explicando


que gosto de outra pessoa — eu disse.

— Você tem certeza de que está escolhendo a pessoa certa?

— Não. Mas eu quero conhecê-lo mais a fundo, vou visitá-lo em São


Paulo — contei o meu plano.

Nunca vi Samira tão surpresa. Ela saltou da cadeira em que estava


sentada e se engasgou com a água que tomava. Perguntou-me quando eu iria.
Respondi que antes das férias.

— Você está louco, só pode — ela desistiu, a contragosto.

— Eu quero ele, e não quero me arrepender de não ter tentado algo a


mais.

— Tudo bem, Gu, você venceu. Se é isso que você quer... vou te apoiar. —
Não parecia sincera.

— Ótimo — eu agradeci fingindo satisfação.

Fique 95
***

Enquanto eu me programava para ir até São Paulo, uma complicação


surgiu. Guilherme, literalmente, esbarrou-se em Alexandre. Aquele mesmo
de meses atrás. Cabelo curto, sobrancelhas bem desenhadas, pelos aparados
(exceto a sua barba), sorriso lindo, romântico e conquistador.

Guilherme se desculpou, provavelmente corando, assim que se


trombaram. Alexandre disse para que ele não se preocupasse e, com um
timbre grave e sedutor, perguntou se Guilherme estava bem e se não o tinha
machucado.

— Estou, obrigado. — Guilherme respondeu de forma tímida.

— Você vai deixar-me te recompensar? — Alexandre tentou, inclinando


levemente a cabeça para o lado direito e colocando as mãos dentro dos bolsos
do agasalho.

— Como?

— Posso te pagar uma pizza?

Oferecer comida a um taurino é o mesmo que oferecer água para uma


pessoa que passou trinta dias em um deserto. Obviamente, Guilherme aceitou.

— Ótimo. Amanhã, às sete?

— Combinado — confirmou.

Então Alexandre inclinou-se, vagarosamente, para a frente. Ficaram a


poucos centímetros. Com a boca seca, o coração disparado. Guilherme deu
um passo para a frente, encostando sua coxa direita em Alexandre. Suas
bocas se encostaram, umedecendo seus lábios, em um beijo sedento.

Assim que se afastaram, estavam ofegantes. Alexandre passou, de leve,


os dedos no rosto de Guilherme. Encarando-o, Alexandre disse:

— Eu estava com saudades de você.

96 Fique
***

No outro dia, um pouco atrasado, Alexandre buscou Guilherme em sua


casa. Alexandre vestia uma camisa azul marinho, uma calça skinny caramelo e
um sapatênis branco. Em seu peito, a tatuagem estava à mostra, e o seu cheiro
era encantador (segundo Guilherme). Eles se cumprimentaram timidamente,
Guilherme abraçou-o contido e Alexandre beijou-o na bochecha.

— Quer ir a qual pizzaria? — Indagou Alexandre, enquanto entravam no


carro.

— Ah, você quem escolhe — respondeu distraído, observando a cada


detalhe no corpo do outro.

— Não, não sou bom em decidir coisas. — Alexandre abanou as mãos no


ar, rindo. Para mim, ali já estava um sinal de que eles não dariam certo. Na
verdade, qualquer coisa que acontecesse, para mim, era um sinal.

— Vamos à Pizza do Jonas, então.

Para ajudar, Alexandre mal sabia o caminho até a pizzaria, mesmo


morando a vida toda ali. Guilherme o guiou, atento às histórias que ele
contava, como a de quando fez uma rotatória ao contrário, ao que Guilherme
concluiu, certeiramente, que só uma pessoa bêbada poderia cometer tal
barbárie.

Ainda a caminho da pizzaria, Guilherme também descobriu alguns dos


gostos musicais de Alexandre, bem como o seu desinteresse com a leitura e
sua preferência por baladas e festas. Ele também gostava de beber, fumar às
vezes. Era pisciano com lua em peixes e ascendente em peixes. Nem Deus
conseguia acompanhar a vibe do garoto.

Guilherme achou todos aqueles contos engraçados, escutou-os


atentamente, como o da vez em que dormiu no canteiro central da avenida da
cidade, bêbado. Ou o daquela outra, em que bebeu tanta tequila que esqueceu
onde tinha parado o carro e voltou para a casa a pé.

Fique 97
Esse não é o estilo de vida de Guilherme, muito menos é o meu. Por isso
seríamos perfeitos um para o outro, frequentaríamos os mesmos lugares,
beberíamos os mesmos drinques, nada de loucuras e dirigir alcoolizado;
álcool e direção não combinam, todo o mundo sabe disso, menos Alexandre.

Quando chegaram, Alexandre manobrou o carro e estacionou em uma


das muitas vagas que estavam disponíveis. A mão de Guilherme pousava
tranquilamente sobre o freio de mão do veículo. Alexandre não perdeu a
oportunidade. Envolveu a mão do garoto com a sua e, suavemente, acionou
o freio de mão. Um leve arrepio subiu pela espinha de Guilherme e fez o seu
corpo ferver, pronto para entrar em ebulição.

Conhecendo-o do jeito que conheço, deve ter comentado que estava


arrepiado, pois Guilherme sempre gostava de falar de como se sentia,
principalmente quando o assunto era beijo/sexo ou sexo/beijo. Alexandre
apenas sorriu, fitou-o com os olhos em chamas, aproximou-se do rapaz, que
já estava entregue, e encostou os lábios nos dele, beijando-o. Ali mesmo, em
frente à pizzaria. E isso não era necessário me contar, eu poderia viver sem
esses detalhes.

— Pizza doce ou salgada? — Alexandre perguntou feliz.

— Oi?! — Guilherme não entendeu, ainda estava extasiado com o beijo.

— Você gosta de pizza doce ou salgada?

— É... salgada... as duas... E você?

— Eu gosto daquele sabor que parece com sua boca — Alexandre disse
baixinho.

— E qual seria?

— Não sei. Ainda não descobriram algo tão bom quanto você.

Achei brega e ri, mas, no fundo, invejei-o, pois eu era quem deveria estar
lá. Não era possível que Guilherme estava tão apaixonado por um tipo desses.
Alexandre era encantador? Sim! Mas não era eu!

98 Fique
***

Semanas se passaram e Alexandre e Guilherme continuavam naquele


romance insuportável. Mas, mesmo assim, Guilherme não conseguiu parar
de pensar em mim. E foi Noemi quem o incentivou, notando que o menino
precisava de um “empurrãozinho”. Imagino que ela não estava de bom humor
nesse dia, para a minha sorte. Foi logo dizendo o que eu sempre quis dizer,
mais ou menos assim:

— Gustavo gosta de você. Isso está tão claro quanto à luz que ilumina
esta sala. Não entendo por que você se revolta tanto ao pensar sobre isso,
tenho a certeza de que já percebeu que ele tem um carinho especial por você.

Como sempre, ele rebateu, alegando que morávamos longe e toda


aquela conversa batida de distância. E que culpa eu tenho? Coloque a culpa
em Deus, mas não deixe isso influenciar o amor. Noemi se opôs, sendo firme e
quebrando o embalo de Guilherme. É claro que ele não ficou quieto, e iniciou
a mais longa discussão sobre distância e amor que alguém já teve em uma
sessão de terapia.

— Não é assim que se deve encontrar a pessoa para a vida toda —


Guilherme rebateu.

— A pessoa para a vida toda é aquela que nos ama de verdade, lembre-
se disso. É aquela que se preocupa conosco, mesmo estando a mais de mil
quilômetros de distância. É aquela que escuta as suas histórias chatas sobre
outras aventuras amorosas e faz disso um livro a ser apreciado. O amor
transpõe qualquer tipo de barreira física.

Guilherme se emudeceu, chocado com a postura que Noemi havia


tomado. Se eu estivesse no lugar dela, falaria as mesmas palavras, e iria
adorar ver o “sabe-tudo” calar-se por um instante e refletir sobre a sutil arte
de amar. O silêncio invadiu o consultório de maneira ensurdecedora, até que
ela continuou mais branda:

Fique 99
— O amor nunca vai escolher lugar, ou tempo, ou pessoas para acontecer.
Nem tudo é feito de concreto.

Ele sorriu e deixou-se relaxar. Noemi sabia como atingi-lo de forma


dura e meiga, ao mesmo tempo. Guilherme disse algo sobre as comparações
esquisitas que a psicóloga gostava de fazer, ela sorriu e continuou, falando que
o importante era entender que nem tudo pode ser perfeitamente calculado ou
planejado. Se o amor o pegou lá do outro lado do país, entregue-se. Afinal, o
amor é uma das únicas coisas na vida que justificam os nossos erros.

— O amor não justifica os erros, ele causa os erros — Guilherme disse,


esnobe.

— Esse é outro ponto de vista.

— Você tem pontos de vista bem alternativos.

— O mais importante disso tudo é aquilo que sempre discutimos. — Ela


fez uma pausa.

— Você está feliz? — Imagino que os dois disseram ao mesmo tempo.

— Eu estou — ela brincou. — E você?

Guilherme estava “meio” feliz. E, o que era pior, contentava-se com isso.
É claro que nada mudava o fato de eu estar longe, mas, se o menino deixasse
de olhar os empecilhos e começasse a trabalhar por sua própria felicidade,
veria que metade de sua atual alegria aflorava quando falava comigo.

— Você gosta dele? — Noemi perguntou.

— Gosto. — Ele confessou.

— Então, diga isso a ele.

Guilherme concordou, dizendo que Noemi tinha razão. A psicóloga


sorriu satisfeita e triunfante. Complementou:

— Quem sabe o Gustavo não venha para cá, para te encontrar, e vocês
vivam felizes para sempre?

— Nunca se sabe. — Ele sorriu maroto, sem saber que era exatamente

100 Fique
isso que aconteceria e, se dependesse de mim, a parte do “feliz para sempre”
não faltaria.

***

Quando tive a oportunidade de manifestar-me em relação ao encontro


de Guilherme com Alexandre, não perdi tempo. O garoto perguntou-me se
deveria investir em Alexandre, e é claro que eu fui o mais elegante e sensível
possível, demonstrando toda a minha empatia, para expressar minha opinião:

— Não!

— Não? — ele se surpreendeu.

— Não! — eu confirmei.

— Como assim, não?

— Eu acho que você deve ficar solteiro — eu disse, enciumado.

— E por que eu ficaria solteiro?

— Porque... — eu hesitei. — Porque eu gosto de você!

Pronto! Falei! Com todas as letras e todo o sentimento que esse momento
poderia exigir. Eu gostava, de uma forma absurda, daquele menino. Do seu
jeito, de seu charme sedutor. Das palavras bonitas e das histórias engraçadas.
Ele é, simplesmente, perfeito, para mim.

— Eu... gosto... de... você — repeti pausadamente, deixando meu coração


falar e esquecendo-me dos “mais dos mesmos” argumentos que Guilherme
poderia utilizar. — Então, por favor, não invista nele.

— Está bem — ele respondeu depois de uma breve pausa, fazendo-me


pular de alegria do outro lado da linha.

— Mesmo? — Apesar de esperar e contar os minutos por aquela


oportunidade, fiquei surpreso.

— Sim. Vou dar uma chance para você.

Fique 101
Meu coração disparou de uma forma inexplicável. Um sorriso tomou-
me de orelha a orelha, fazendo o meu maxilar doer. Minha boca secou. Tudo o
que eu queria ouvir há meses, finalmente, aconteceu.

— Por que você está tão surpreso? — ele perguntou divertido, fingindo
que não tinha me rejeitado no último ano inteiro.

— Eu não imaginei que você cederia assim, ainda mais depois de tanto
tempo afirmando que seria apenas amizade. Eu já havia me preparado com
vários argumentos para lhe mostrar como você estava sendo burro... Quer
dizer, não burro de burro... Ééé....

— Eu já entendi! — ele gargalhou.

— Desculpa por te chamar de burro, é que eu gosto muito de você, e


esperava essa chance desde que nos conhecemos, e....

— Não tem motivos para se desculpar.

***

Para Guilherme,

Ah, se você soubesse o quanto eu o imaginei, o quanto sonhei em estar


aconchegado em seus braços. Você largaria tudo, para correr até aqui
e beijar-me. Aprendi que, quanto mais longe você se encontra, mais
saudades eu sinto daquilo que ainda não experimentei.

O seu sorriso, seus olhos nas fotos, suas mensagens e nossas conversas
intermináveis são apenas pequenos motivos para eu querer encontrá-
lo. A verdade, meu querido Guilherme, é que eu preciso de você. Você
me entende, você me conhece e conhece a minha história.

Por que não, meu amor, viver uma história só? Quero parar de contar
fragmentos soltos e sem sentidos e amarrar as minhas palavras

102 Fique
preferidas às suas para, juntos, escrevermos um texto tão sublime que
cause inveja a quem leia.

Se bem me entende, deve ter notado que tudo isso não é, nada mais
nada menos, que um apelo desesperado, pedindo para que esteja
sempre por perto. Já posso até rabiscar alguns rascunhos, sonhar com
algumas estrofes. Talvez, quando você decidir me encontrar, eu já
tenha alguns parágrafos planejados.

Mas esse livro seria em primeira ou terceira pessoa? Talvez, nem um


nem outro, ou, talvez, os dois. Não importa como a nossa história seja
contada, o importante é que eu e você sejamos o casal principal da
narrativa. Aquele casal que morre junto depois de cinquenta anos,
andando de mãos dadas e de aliança nos dedos.

Não se esqueça de que o meu verdadeiro motivo de respirar é você.

Com carinho, Gustavo.

Fique 103
Capítulo 8: Oi

E
ra esse o momento certo, estava na hora de ver aquele sorriso
lindo pessoalmente. Finalmente, eu veria Guilherme cara a
cara e poderia comprovar todas as minhas expectativas em relação ao rapaz.
Comprei as passagens de avião para São Paulo, pois seria o meio mais rápido.
Mesmo assim, os minutos pareciam estar congelados. O tempo simplesmente
não passava. A minha ansiedade crescia a cada segundo. A previsão de
chegada era às 20 horas.

Ao meu lado, uma senhora dormia e roncava levemente. Nenhum


barulho, além disso e da turbina do próprio avião. Impaciente, resmunguei
alto o suficiente para acordá-la.

— Uma hora!

— O quê?! — ela berrou olhando para os lados. Alguns passageiros riram.

— Desculpe-me, senhora, não quis acordá-la. Eu disse que ainda falta


uma hora para pousarmos — expliquei, sem graça.

— Não se apresse, rapaz. A vida é muito curta, devemos aproveitar cada


momento. — Ela tossiu no final da frase, engasgando-se com a saliva.

— Estou ansioso. Vou encontrar uma pessoa — eu disse, olhando a


lugar algum pela janela, puxando assunto com uma desconhecida, por puro
nervosismo.

— Como ela se chama? — Ela quis participar, notando o meu desespero.

— É ele. — Eu corei.

— Ah, eu tenho um neto que é veado também — ela continuou, simpática,


sem a intenção de ofender-me. Eu não resisti e ri de sua espontaneidade.

— A palavra correta é gay — alguém disse em algum banco por perto.

— O quê? Você é gay? — esgoelou, inclinando a cabeça e procurando


quem havia se pronunciado. — Eu já não escuto direito e esse povo fala muito
baixo.

Fique 105
Eu gargalhei. Ela continuou:

— Ser gay é normal. Conheço vários gays, sabia? Tenho um neto gay,
uma sobrinha sapatona e, às vezes, acho que o meu cachorro tem uma certa
queda pelo labrador do vizinho — disse ela, cochichando o final da frase,
como se fosse um segredo importante.

— É! — eu sentia a minha ansiedade diminuir. — Realmente, tem muitos


gays.

— Espero que o labrador do vizinho não morda o meu chihuahua. E


se rolar... se é que você me entende, espero que o meu vá por cima. — Uma
gargalhada geral tomou conta das poltronas ao redor. — Não sei por que estão
rindo. Pensa no estrago que pode acontecer. E você e seu namorado? Quem
vai por cima?

Se houvesse ali um balde de terra, eu enfiaria a minha cabeça dentro


dele para me esconder, de tanta vergonha que senti. Desviei o assunto:

— Vou vê-lo pela primeira vez esta noite. Espero que dê certo.

— Nossa, fico feliz por vocês. Viu, rapaz, quando se aproveita a vida, o
tempo passa rápido. Já são sete e quinze. Agora, se me der licença, vou puxar
mais uma soneca, preciso estar no meu auge quando esse avião pousar,
porque, hoje, eu vou rever o meu velho e ninguém me segura. — Ela balançou
as mãos no alto e inclinou a sua poltrona para voltar a dormir.

Quando o piloto anunciou no microfone para que a tripulação se


preparasse para o pouso, eram 20h02, ou seja, estávamos atrasados. O meu
coração parecia saltar pela boca a cada segundo que passava.

— Que rápido. Não vi nadinha — a senhora comentou, despertando-se.

— A senhora dormiu quase o voo todo, invejo-a.

— Pois não deveria. Eu o invejo pela coragem de voar horas para


encontrar seu amor — ela disse de forma carinhosa.

— Pois não deveria. Talvez seja uma burrice.

Ela rebateu, dizendo que o amor nunca é uma burrice. Dizendo que eu

106 Fique
só saberia o resultado se tentasse, e que, mesmo não dando certo, teria valido
a pena, pois nunca devemos desperdiçar uma chance de conquistar a pessoa
que amamos.

— E como vou saber o final dessa história? Estou realmente curiosa —


ela disse, esfregando os óculos na blusa.

— Posso te escrever.

— Pois assim o faça. — Ela fuçou em sua bolsa, tirou uma caneta e um
pedaço de papel amaçado, anotando o endereço. — Mande-me uma carta.

— Sério?

— Sim, por favor, sou fascinada em histórias de romance, ainda mais


quando elas são verdadeiras.

— Vou tentar. — Não prometi.

— Se você não mandar, ela vai ficar brava. — Um homem, na poltrona de


trás, brincou.

— Cala a boca, Horácio, ninguém aguenta mais ouvir você falar — ela
gritou. — Ele é aquele neto gay que te falei — sussurrou para mim.

A velha estava realmente contente. Então, escutamos e sentimos o


impacto dos trens de pouso no solo: eu havia chegado a São Paulo. Quinze
minutos depois, peguei a bagagem e dirigi-me ao ponto de táxi em frente
ao aeroporto. Rapidamente, entrei em um veículo e entreguei um papel ao
taxista, trocando, sem perceber, aquele em que estava anotado o endereço de
Guilherme e o que a senhora acabara de entregar-me.

— Meu caro, esse endereço é do Mato Grosso — o taxista comentou,


fitando-me e analisando o meu estado, possivelmente achando que eu estava
bêbado.

— Perdoe-me, é este o papel certo. — Eu entreguei a folha certa. Ele me


olhou desconfiado pelo retrovisor:

— Você sentou aí no banco de trás para me assaltar?

Fique 107
— Não, apenas estou com pressa e não me atentei a isso, perdoe-me —
expliquei-me sorrindo.

— Está visitando a família?

— Um amigo.

— Você é do Mato Grosso?

— Exato — respondi educado.

— Já fui uma vez para lá, o Cristo Redentor é lindo — ele comentou,
tentando mostra-se conhecedor. Preferi não o corrigir e balancei a cabeça,
concordando.

Cinquenta minutos depois, ele estacionou em frente a um prédio alto,


verde desbotado com, aparentemente, uns dez andares. Paguei e fiquei
alguns segundos parado em pé, observando o lugar. Esperei tanto por aquele
momento e, agora, vivendo-o, estremeci. O meu corpo bambeava de medo de
ser totalmente recusado. Então respirei fundo e enviei-lhe uma mensagem
no celular:

— Você confia em mim?

— Confio. — A resposta foi imediata e direta.

— Vá até o portão do seu condomínio — instruí.

— O que você está tramando?

— Apenas vá.

— Ok. Se isso for uma pegadinha, você vai pagar caro — ele enviou, junto
com os emoticons de raiva.

Esperei que ele descesse e, quando o avistei, os meus olhos brilharam.


O meu coração bateu mais rápido e uma injeção de adrenalina invadiu o meu
corpo. Guilherme estava lindo, usava uma calça de pijama e uma camiseta
regata, cabelos castanhos despenteados, os olhos negros brilhavam e seus
braços envolviam o seu peito, como se abraçasse a si mesmo.

— Oi — eu disse.

108 Fique
— Oi. — Ele sorriu. O sorriso dele era o mais lindo que eu já tinha visto na
vida, deixou-me ofegante e me tirou o chão.

Guilherme, rapidamente, abriu o portão e me abraçou. Eu senti um


arrepio atingir cada centímetro de minha pele. Faltou-me ar e um frio no
estômago invadiu-me, o mundo parou de girar. Fiquei tonto. Mole. Todas as
preocupações sumiram. O problema da distância não existia mais. Inspirei
fundo, o seu cheiro estava encantador, doce e suave. Contaminou-me, fez-me
suspirar de satisfação.

Sentia o seu coração bater, acelerado, junto ao meu. Ele me apertava


forte, sem intenção de soltar. Fique! Eu podia ouvir a sua alma clamar.
Fique, para sempre! Era o que ele queria dizer. Carinhoso, mas firme, ele
continuava a me agarrar. Desceu a sua mão até a minha cintura, apertou-me
delicadamente, arrancando mais um gemido.

Nas minhas fantasias, o que aconteceria a seguir seria um beijo


ardente, daqueles que nos deixam com a respiração ofegante; ele me levando
rapidamente para o quarto, para nos deitarmos juntos; palavras e juras de
amor eterno que ele me recitaria. Mas nada disso aconteceu. Guilherme
apenas abraçou-me e me deixou espantado com tamanha gentileza e afeto.

O seu cheiro contagiava-me, deixando-me mole, alegre, radiante. Eu


sorri. Eu o senti sorrir. Nada parecia mais importante para o universo do que
aqueles dois garotos parados, abraçando-se na calçada. Depois de um último
aperto carinhoso, ele se afastou, segurou em meus dois ombros com as mãos
e sorriu maravilhosamente, fazendo as minhas pernas tremerem e o meu
corpo relaxar, indo a outra dimensão.

— Eu amo o seu sorriso — falei, quebrando o silêncio.

— Eu amo o seu olhar — ele retribuiu.

Os seus olhos encheram-se de lágrimas, deixando escapar uma, que


escorreu em sua bochecha. Enxuguei-a, sutilmente, com o indicador. Ele
corou. Então, aproximei os meus lábios aos dele, quase encostando, sentindo
a sua respiração. Guilherme inclinou-se, beijando-me.

Fique 109
Carne na carne. Senti o úmido de seu rosto encostar em meu nariz.
Senti a sua língua invadir a minha boca em um pedido desesperado de amor.
Retribuí. Toquei o seu pescoço delicadamente. Ele sorriu. Eu aumentei a
intensidade e lhe arranquei suspiros. Excitei-me ao ouvi-lo gemer.

Ofegante, parei. Olhei-o diretamente em seus olhos, vi-os brilhar. Ali


mesmo, na calçada, todas as minhas suspeitas se confirmaram. Eu o amava e
estava disposto a mover os céus para conquistar a sua confiança.

— Vamos entrar? — ele indagou, depois de aprumar-se e recuperar o


fôlego.

— Vamos.

— Eu tenho tanta coisa para te perguntar — ele disse, guiando-me pelas


escadas até o apartamento.

E a primeira delas, claro, não poderia deixar de ser: “Por que você
decidiu vir me ver?”

— Ah... é que... sei lá... senti vontade de te ver pessoalmente — engasguei-


me.

— Entendi. Então você veio lá do Mato Grosso para me ver pessoalmente?


— Ele gesticulou um sinal de aspas com as mãos.

Não aguentei, confessei que, talvez, era mais que isso:

— Eu queria falar um negócio com você — eu disse, medindo cada


palavra. Guilherme olhava-me atento. — Eu acho que estou gostando de você.

Ele riu, mas de uma forma que eu nunca tinha presenciado em nenhuma
das chamadas de vídeo ou ligações. O som de sua gargalhada ecoou pelo
apartamento, deixando-me envergonhado.

— É sério — insisti.

— Eu também gosto de você.

— Mas eu gosto de você como namorado, não como amigo — provoquei.

— Eu também gosto de você como namorado e não como amigo — ele


concordou.

110 Fique
Encaramo-nos por um tempo. Olhar para o Guilherme tranquilizava-
me. Notei que ele corou. Sem dizer nada, levantou-se, parou ao meu lado e
beijou os meus lábios de forma a umedecê-los, acariciando os meus cabelos
com as pontas dos dedos. Arrepiei-me.

— Você está com fome? Vamos pedir algo para comer? — ele sugeriu
com um sorriso lindo no rosto.

— Estou sim, sou taurino, lembra? Sempre estou com fome — brinquei.

— Eu também sou taurino e nem por isso sou esfomeado... Quer dizer,
não sou tão esfomeado.

— Pizza?

— Pizza.

***

A noite passou voando. Quando me dei conta, eram quase três da


madrugada. Guilherme perguntou-me se eu havia reservado algum hotel
para passar o resto da noite, respondi que não, torcendo para que ele deixasse
eu dormir ao seu lado.

— Ótimo, vai dormir aqui então — ele afirmou.

— Você tem certeza?

— Tenho. Venha, vou te dar uma toalha, caso você queira tomar banho.

— Por favor. Eu estou mesmo precisando de um banho — aceitei a oferta


sem pestanejar, pegando um pijama em minha mala.

— Eu sei, eu senti que você precisava — ele brincou.

— Bobo. — Mas era eu quem estava bobo.

Guilherme foi até o quarto e voltou, pouco depois, com uma toalha
rosa choque, dizendo que a cor era em minha homenagem, debochando de
minha masculinidade. Eu não resisti e rebati o seu comentário, brincando,

Fique 111
chamando-o de idiota. Guilherme aproximou-se, sensual, provocante,
deslizando suas mãos em meus ombros, com a voz doce e sedutora. Sem
demonstrar nenhum nervosismo, sentindo-se a vontade com minha presença.

— Ah, eu sou idiota, é?! E vai ter coragem de repetir isso?

— Você... — ele tocou em meu peito com o indicador, fazendo-me arrepiar


— ...é... — desceu a mão até a minha cintura, segurando-a, firme — ...um...

Senti a sua mão escorregar por cima de minha cueca, excitando-me.


Depois, roçou o seu corpo no meu e beijou-me.

— Vá logo para o banho, antes que eu mesmo tire sua roupa — ele brincou.

Obedeci, entrando no banheiro e fechando a porta. Quando a tranquei, já


em segurança, gritei alto, completando a frase, fazendo-o gargalhar. Deixei-
me demorar, ensaboando todo o meu corpo lentamente, imaginando-o
tocar-me. Fechei meus olhos, apoiei-me na parede com as mãos, e suspirei,
deixando a água bater em minha nuca.

Não podia ser um sonho. Desta vez, tinha que ser real. Eu estava ali,
conhecendo o garoto que tanto pedi a Deus, podendo alcançá-lo com as
minhas mãos, tocá-lo, sentir o seu perfume. Fui tão imprudente por achar
que tudo seria perfeito? De que casaríamos e viveríamos felizes para sempre?
Não imaginava que tudo seria resolvido em um terraço.

Depois dos dez minutos deixando minha mente e meu corpo se


deliciarem com a situação, saí, enxuguei-me e coloquei a roupa. Deitamos
um de frente para o outro, com o quarto escuro, não sendo possível enxergar
quase nada. Guilherme segurava a minha mão direita com a dele e, com a
esquerda, acariciava o meu rosto.

— Eu não imaginava que isso ia acontecer tão cedo — falei, com os olhos
fechados e relaxando com as suas carícias.

— Talvez isto seja um sonho — ele disse com a voz mansa.

— Espero que não, porque está perfeito.

— E pode ficar ainda melhor.

112 Fique
Guilherme aproximou-se e me beijou, deixando-me sem ar. Virou-
me e envolveu os seus braços ao meu redor, encostando cada centímetro
do seu corpo no meu. Eu suspirei. Ele sussurrou boa noite em meu ouvido,
arrepiando-me; eu retribuí e dormi quase que instantaneamente.

***

O doce som de sua voz leva-me a lugares desconhecidos. O seu cheiro


faz-me fugir para longe da realidade. É você quem me tira o rumo,
que me faz sonhar os bons sonhos, e me faz enxergar a esperança nos
lugares mais sombrios.

A sua pele exala o sentimento mais surreal que eu já experimentei.


É o seu amor que me transforma em humano, faz-me lembrar que
existe esperança e quebra as correntes do ódio.

Imaginar os seus braços envolvendo-me causa a expectativa da


materialização de uma realidade paralela que eu mesmo criei: o
amor acima de tudo, vencendo qualquer forma de preconceito ou
de ódio.

No fim, é você quem me faz querer amar, sempre foi. Os seus olhos,
quando me fitam, fazem a minha alma rugir, desesperada pelo amor
que apenas você pode oferecer.

***

Guilherme acordou-me cedo, quando os primeiros raios do sol invadiam


a janela do quarto. Ele me fitava atentamente, acariciando o meu rosto com
seu dedo indicador. Assim que abri os olhos, ele disse, meigo, que achava
que eu não ia acordar nunca mais. Eu sorri. O seu cabelo estava, totalmente,
despenteado, mas ainda encantador. Seu hálito era quente e cheirava menta,

Fique 113
concluí que ele já havia escovado os dentes. Guilherme estava vestido apenas
com a calça do pijama e cueca, deixando o seu abdômen e peito definidos à
mostra.

— Bom dia — murmurei, espreguiçando-me. — É impressão minha ou


você está acordado há algum tempo?

— Tempo o suficiente para observá-lo roncar — ele disse com os olhos


divertidos.

— Eu não ronco! E você acabou de estragar um momento perfeito.

— Está bem... vamos tentar de novo. — Ele se inclinou e beijou os meus


lábios, suavemente. — Bom dia, príncipe, eu fiz o café da manhã e vou trazê-lo
na cama.

— Melhorou — zombei, achando que ele encenava.

— É sério... Eu preparei o café para você. — Guilherme levantou-se,


foi até a cozinha e, segundos depois, trouxe-me uma bandeja com algumas
frutas, pão tostado e uma xícara de leite com café.

— Esse cheiro de café é tudo de bom — comentei, pegando a xícara e


bebericando o conteúdo. — Está uma delícia, igual a você.

— Besta. É tudo para causar-lhe uma boa impressão.

— Eu tive várias boas impressões. Adorei dormir de conchinha com


você. — Meu rosto corou um monte.

— Eu também. E não precisa ficar envergonhado. — Guilherme passou a


mão em meu cabelo, organizando-o, e beijou minha testa.

Eu agradeci pelo café, olhando-o com fervor e, de certa forma, com


vontade de devorá-lo. Guilherme agradeceu por eu ter ido até a São Paulo e
sorriu, desmanchando-me.

— Você tem mesmo que ir embora hoje? — Ele perguntou.

— Infelizmente, sim, eu tenho prova na terça-feira.

— Pena que é longe — ele falou, pegando uma maçã da bandeja.

114 Fique
— Daremos um jeito, certo?! — testei.

— Com toda a certeza.

Eu afastei o café e passei a mão em seu peitoral, fazendo-o arrepiar.

— Você está quente — comentei.

Ele se inclinou e beijou-me, senti o meu corpo estremecer de prazer,


controlando-me para não o atacar. Não era aquele o momento certo, não era
a impressão que eu queria causar. Guilherme percebeu a minha vontade e
debochou. Comentei, arrumando o seu cabelo com as mãos:

— Espero o ver em breve.

— Você vai.

***

Guilherme não se conteve, ao encontrar-se com Noemi na próxima


sessão. Ele estava entusiasmado para contar as novidades e pedir uma opinião
da doutora. Como o usual, ela o cumprimentou cordial e alto-astral, pedindo
para que ele se sentasse. Ele obedeceu e sentou-se na poltrona escura, e não
na costumeira poltrona vermelha.

Perspicaz, Noemi notou a mudança, perguntando se havia algum motivo


especial para que ele trocasse de lugar. Guilherme respondeu que mudar, às
vezes, era bom e necessário. Isso a intrigou, mas, é claro, ela entendeu o que
tinha acontecido e perguntou sobre mim.

— Conversou com o Gustavo? — ela indagou-o, direta.

— Conversei, e pessoalmente.

— Ele veio até aqui? — ela se surpreendeu positivamente.

Então, Guilherme contou sobre a surpresa e de como ele ficou extasiado


em me ver. Ele nunca tinha ficado tão feliz com uma visita. Noemi, curiosa,
não conseguiu controlar-se, e perguntou se havíamos transado, quebrando o
clima de romance.

Fique 115
— Noemi! — Guilherme exclamou envergonhado. Até posso imaginar o
seu rosto corando e inclinando-se sutilmente para o lado.

— Vai me dizer que não surgiu oportunidade... — ela debochou, fazendo-o


descontrair.

— Não, nós dormimos juntos e nada mais.

— Isso é incrivelmente fofo. — Ela sorriu, juntando as mãos, como fosse


rezar e as balançando no ar, empolgada.

— Você está parecendo uma criança.

— Ser criança é o que eu mais quero! — Ela se deixou levar.

— Eu me sinto um bobo. — Ele desviou o olhar.

— O amor deve ser bobo.

Guilherme perguntou se ela não achava estupidez conhecer alguém pela


internet e apaixonar-se. Noemi o repreendeu, pedindo para que o rapaz não
voltasse a velhos assuntos e deixasse o amor envolvê-lo. Ele cedeu, relaxando-
se na poltrona escura, relembrando dos nossos beijos e abraços, e de seu
corpo encostado no meu a noite toda. Deveria, no mínimo, estar excitado ao
pensar assim, da mesma forma que fiquei por vários dias.

***

Entregue-se, sinta-o e deixe que ele o transforme. Uma simples


palavra que traz consigo uma infinidade de histórias.

O amor é sacrifício, esperança e dedicação.

Sacrifício, porque tem-se que abdicar de inúmeras coisas para


segui-lo. Talvez, você não consiga manter o seu ritmo nos estudos,
ou diminua o seu desempenho no trabalho. Mas, quando você chega
em casa, e encontra o seu amado ou sua amada, a vida passa a fazer
sentido mais uma vez, e você percebe que valeu a pena.

116 Fique
Esperança, porque o sonho de envelhecer juntos traz um novo
objetivo para a vida. Andar de mãos dadas aos oitenta, comemorando
cinquenta anos de casados, torna o mundo um lugar melhor, com
mais paz, suavizando o ódio.

E dedicação porque nenhum relacionamento acontece por causa da


sorte. Nós traçamos o nosso próprio destino, correndo e lutando para
conquistar a confiança do outro, tentando atingir a mutualidade dos
sentimentos.

O amor é a vida. A vida nada é sem o amor, mas ele pode existir sem
que a vida exista.

***

— Gustavo! Você está quase babando! — Samira debochou, enquanto


eu lhe contava sobre o final de semana. — E como isso vai ser? Vocês estão
namorando?

— Eu não sei... quer dizer, não estamos namorando, estamos nos


conhecendo...

— Ou seja, estão namorando! Perdi o meu melhor amigo — ela brincou,


socando-me de leve no ombro.

— Você não perdeu nada... — eu disse, sem firmeza.

— Tudo bem, eu posso conviver com isso. Quando vou conhecê-lo?

— Calma, Samira! Eu o vi apenas uma vez.

— Vocês se conversam há um ano! Está mais do que na hora de eu o


conhecer. Ele é bonito? — Samira não diminuiu o ritmo do interrogatório.

— Ele é lindo.

— Descreva-me. — ela ordenou.

— Como assim?

Fique 117
— Fala-me como ele é... Como se você estivesse dando um depoimento
na delegacia e fazendo um retrato-falado de um ladrão que roubou a sua
carteira.

— Samira, você está impossível! Mas ok. Ele tem a minha altura, cabelo
castanho meio bagunçado, olhos negros, a pele lisa e branca, barba por fazer,
corpo definido... Sei lá, Samira, ele é perfeito. — Eu suspirei.

— E como é lá embaixo? — ela perguntou, apontando em direção a minha


virilha.

— Não chegamos tão longe — eu expliquei, envergonhado.

— Vocês não transaram? Como assim??

— Só porque estamos no século XXI, não significa que eu tenho que


transar no primeiro encontro.

— Você viajou horas e nem viu o que o rapaz tinha embaixo da cueca...
Estou decepcionada — ela debochou.

— Não, mas eu vi o seu sorriso e é lindo — eu disse, relembrando-me de


Guilherme.

— Gustavo... Você está caidinho por ele!

— Não estou — rebati sem muita convicção.

— Que fofos!!! — Ela apertou as minhas bochechas com o indicador e o


polegar. — Eu quero ser madrinha.

— Madrinha do quê?

— Do casamento, do que mais seria?

— Eu acabei de vê-lo, pela primeira vez. Vamos com calma — eu disse,


evitando demonstrar alegria.

— Eu sei, mas está na cara que você está apaixonado! E eu nunca vi o


Gustavo dessa forma — apertava novamente minhas bochechas.

— Ai! Isso está doendo — eu a repreendi em tom de brincadeira. — E


estou mesmo, não vou negar!

118 Fique
Samira não resistiu, disse que formaríamos um belo casal e tentou
apertar, novamente, as minhas bochechas. Dessa vez, eu a segurei,
gentilmente, acabando com o seu plano maligno de deixar-me roxo.

Fique 119
Capítulo 9: Doce liberdade

O
mês de julho chegou, e Guilherme amadurecia a ideia de se
assumir para sua mãe. Rosa o visitaria pela primeira vez, e
Guilherme achou que esse seria o momento certo para contar a verdade.
Apesar de a ansiedade lhe consumir, o mundo parecia mágico.

Noemi também ficou preocupada com a decisão de Guilherme de


contar para a família sobre a sua orientação sexual e não demorou para dar-
lhe as devidas instruções. Disse que era um grande passo a ser dado e que
Guilherme deveria estar preparado para as mais diversas reações. Também
se disponibilizou para ajudá-lo, colocando-se inteiramente à disposição, a
qualquer horário, caso o menino precisasse.

De uma forma ou de outra, a maior preocupação de Guilherme não era


com a mãe, mas, sim, com o pai. Rodrigo sempre desafiava a sua paciência
com pré-conceitos negativos em relação a homossexualidade. Sendo assim,
o plano era contar por telefone. Dessa maneira, Guilherme estaria blindado
para qualquer reação explosiva.

Seria simples: contaria para a mãe e para o pai. No demais, a notícia se


espalharia. A família de Guilherme adorava uma fofoca para debater, ainda
mais quando se tratava de assuntos íntimos de alguém.

O único medo do garoto era que a família se afastasse depois daquela


notícia. Nisso, Noemi também ajudou. A hora de deixar os demônios para
trás havia chegado. Uma nova fase começaria. De uma maneira ou de outra,
se algo desse errado, Guilherme não estaria sozinho... nós nunca estamos
sozinhos!

***

Fique 121
A batalha aproxima-se na quietude da noite. A paz, que antes
inundava os sonhos, agora, é substituída por uma inquietação quase
palpável. Os olhos atentos captam cada movimento aos redores. O
coração começa a bater mais rápido, bombeando o sangue quente
para cada extremidade do corpo.

A maior batalha aproxima-se. Em desespero, as preces são feitas.


A fé, nessa hora, é quase que a esperança necessária para lutar. As
palavras são formuladas, pensadas, repensadas, é a hora. A iminência
da confissão, pesada, difícil, transforma o sorriso em seriedade.

Alguns morreram nessa luta. Alguns sangraram tanto, que


resolveram desistir. Outros se surpreenderam ao notar que a guerra
se assemelhava àquela Guerra Fria, apenas uma queda de braço para
ver quem resistia mais. Alguns, ainda mais alegres, não vivenciaram
nada de ruim.

Sou gay. Homossexual. Minoria. Lésbica. Sapatão. Trans. Bi.


Afeminado. Fraco. Tenho medo. Sofro. Luto. Apanho. Bato. O sangue
escorre, literalmente, em meu rosto. Estou vivo. Ou estou morto. O
importante é você saber quem eu sou e o que eu sou é complicado
de descrever nos poucos minutos que antecedem o seu sofrimento de
conhecer, verdadeiramente, o meu ser.

***

Essa era a primeira visita que Rosa fazia-lhe. A mãe do menino o abraçou
demoradamente, ao encontrá-lo na rodoviária. Guilherme estava empolgado
para mostrar os pontos turísticos que havia na cidade.

Elis, sua irmãzinha, também estava ali. Tímida, esperou que a mãe
desgrudasse do irmão e o olhou desconfiada. O garoto abraçou-a e rodou-a
no ar. Ela e Rosa riram. Foi então que, em um momento de ansiedade e alegria,

122 Fique
uma premonição de que algo perfeito aconteceria invadiu a mente do menino,
aquele era o dia certo.

***

Não me deixe aqui, não me deixe sozinho. Não me abandone em


qualquer canto. Eu preciso do seu amor, eu sempre tive o seu amor.
Agora, mais do que qualquer outro momento, eu preciso que você
me compreenda e me ame. Como nunca necessitei, hoje, eu afirmo
que preciso de você.

Não pare de me olhar como me olhava antes. Quando eu era apenas


uma criança, aquele olhar que transparecia amor e que via a
inocência. Não me fite como se eu estivesse sujo ou mal arrumado.
Ainda sou o mesmo, ainda sou aquela criança esperançosa.

Não use da malícia, ao pensar em mim. Não me julgue por também


querer amar. Não faça de seu coração um lugar vazio por minha
causa. Não, mãe. Não suma, não morra, não mude, não me deixe
aqui, sozinho nessa lida. Contra todas as angústias que pode sentir,
fique.

Fique para mostrar que o seu amor é maior do que o meu amor.
Fique e mostre o quão puro ainda me olha e quão disposta está a
continuar do meu lado. Fique para mostrar para os outros, sim, para
os outros (por que não?), que o amor não mudou.

Fique, mesmo depois dessa bomba que compartilho. Fique e sofra


os momentos difíceis comigo. Escute-me reclamar daquele rapaz
frouxo, que não soube me amar como você me amou. Fique, para me
ajudar a lutar, porque lutar sozinho, nesse longo caminho, é injusto.
Ajude-me a vencer os desafios dessa lida.

Fique 123
Eu preciso de você. Não quero e nem posso enfrentar todo o
preconceito sozinho. Fique do meu lado, não do lado deles. Não
me exclua da sua vida. Deixe todo o preconceito de lado, deixe-me
mostrar a você que ainda sou o mesmo.

Fique, finalmente, apenas por ficar. Fique pelo amor. Fique, porque,
ainda que diferente, ainda que desajustado e abalado, ainda que
totalmente perdido e desorientado, eu sou seu filho e eu a amo.

***

Minutos antes de encarar a realidade, Guilherme me ligou, tentando


encontrar um pouco de paz e equilíbrio para aquele momento tão delicado e
importante de sua vida. Fiquei feliz de ser a pessoa a quem ele recorria quando
precisava, e pedia a Deus para que eu sempre estivesse ali para apoiá-lo.

— Estou pronto — ele afirmou com incerteza.

— Vai dar tudo certo. E, se algo acontecer, eu estarei aqui com você —
encorajei-o.

— Sempre?

— Sempre. Mesmo estando longe, nós ficaremos juntos. Isso é uma


promessa — falei, sincero.

— Eu queria que você estivesse aqui, agora...

— Eu posso estar, se você quiser — eu disse, tendo uma ideia. — Se você


deixar o telefone no viva-voz, eu poderia estar ao seu lado prestando atenção
em tudo, o que acha?

— Eu acho que seria perfeito. — Notei um sorriso em sua voz.

— Também posso participar, se você quiser, gritando, várias vezes


seguidas, “vá, amor, arrase!” — brinquei, causando-lhe gargalhadas.

— É melhor você permanecer mudo — ele falou, rindo.

124 Fique
Um silêncio tranquilo tomou conta da ligação. Guilherme avisou-me de
que iria à sala conversar com a mãe. Despediu-se e colocou o telefone, ainda
ligado e no viva-voz, no bolso direito.

— Está escutando? — ele testou.

— Sim! — confirmei do outro lado, tão ansioso quanto ele.

— Lá vou eu.

Eram 22 horas, Elis já dormia. Rosa assistia a uma repórter que noticiava
algo sobre a comida preferida dos ursos panda. Guilherme respirou fundo,
bebeu um copo de água. Caminhou pela casa, provavelmente verificando se
Elis realmente dormia. Puxou uma cadeira da cozinha até a sala, arrastando-a
no chão, chamando a atenção de Rosa e, então, fez o seu destino.

Minha mente divagou até o dia em que eu enfrentei aquela mesma


situação. Meus pais, de mãos dadas, sentados no sofá marrom claro da sala de
estar, encarando-me com expressões de empatia e sofrimento, aguardando
que eu contasse aquilo que eles já sabiam. Terminando cada frase com um
“eu te amo” caloroso e marcando, para sempre em minha memória, aquela
sensação incrível de liberdade.

— Tenho uma coisa para contar... — Guilherme começou, fazendo-me


“voltar para a terra” — e gostaria de que você me ouvisse por completo, antes
de se pronunciar, se possível.

Imagino que Rosa entendeu o que estava para acontecer e, depois de


anos preparando-se para aquele momento, aprumou-se no sofá, olhou-o de
forma suave e fez um sinal com a cabeça tranquilizando-o. Assim, ele falou:

— Antes de qualquer coisa, eu queria dizer que eu a amo muito e espero,


sinceramente, que você continue me amando depois de hoje. Nada tem sido
fácil, sabe? Eu queria ter falado antes, mas sempre senti um medo tão grande
de que você reagisse mal, ou perdesse a admiração por mim...

— Estou aqui, não importa o que você me contar — ela o incentivou.

Fique 125
— Eu ouvi tantas histórias de amigos que tiveram que sair de casa.
Outros cujos pais nunca mais estiveram presentes. E tinha tanto medo de que
isso acontecesse com a gente... Então, eu peço desculpas por não ter falado
antes e por ter mentido por tanto tempo para você. Mas, sabe, chegou uma
hora em que eu, realmente, tive a certeza de quem sou e do que quero. E, por
mais que doa muito pensar em que eu posso estar sozinho de uma hora para
a outra, por mais que me machuque imaginar a dor que você pode sentir,
depois de ouvir o que tenho a dizer...

— Eu posso garantir que isso não vai acontecer. — Ela sorriu. — E, caso
você não queira me contar, tudo bem.

— Eu preciso contar, eu não posso continuar me escondendo, fingindo


que as coisas estão bem. Porque elas não estão, quase nunca estiveram. Não
foi sua culpa e nem de ninguém. Por favor, não pense nisso. Não foi culpa de
ninguém. Um dia, eu vou ter um amor, sabe? E eu quero que você o conheça.
Eu quero compartilhar todos os meus momentos com você, sejam bons ou
ruins. Eu quero que você esteja na igreja, quando eu me casar. Então, por
favor, não me deixe sozinho depois de hoje.

Houve uma pausa. Ele chorava livremente agora. Rosa estava


emocionada. O ambiente estava repleto de um sentimento tão sublime de
confissão e de amor, aquele amor que não espera nada em troca, um amor
puro e livre, que chegou a tocar-me do outro lado da linha. Guilherme custou a
recuperar a voz. Penso que o seu rosto estava molhado. Rosa também chorava.
Ele deve tê-la encarado demoradamente, como se dissesse mentalmente o
que queria dizer. Finalmente, ele estava livre. Livre para amar e livre para ser
quem ele era.

— Mãe, eu sou gay. Faz tempo que eu sei, mas eu queria ter certeza antes
de contar. Por favor, desculpe-me por ser assim, eu não queria, eu realmente
não queria. Eu quero ter filhos, eu quero me casar, ter uma vida normal. Lutei
muito para não ser assim. Eu não queria ser gay. Desculpe-me por decepcioná-
la e não ser aquele filho com que você tanto sonhou. Eu sou grato por você ter

126 Fique
cuidado tão bem de mim até aqui, mas ficaria mais grato se você continuasse
a cuidar de mim, porque, mãe, é tão difícil.

A respiração de Guilherme voltou a ficar ofegante. Rosa não tardou em


responder.

— Filho, independentemente de quem você for, eu o amo. Nada pode e


nem vai mudar isso. Eu estarei aqui e vou continuar a cuidar de você. Você
é meu filho, pelo amor de Deus, eu o vi nascer, eu vi a sua pureza e a sua
ingenuidade. Eu vejo seu esforço todos os dias. E eu o amo do mesmo jeito.
Você sendo gay ou não, eu estou aqui.

— Obrigado... — ele sussurrou para ele mesmo, soluçando.

— No fundo do meu coração eu já me preparava para esse momento.


Eu o imaginava quase todos os dias. Eu ensaiei tantas reações, mas o ouvir
falar, só me fez saber que você precisa de mim, e isso só me fez o amar ainda
mais. Nada vai mudar, filho, absolutamente nada. Nós vamos contar, juntos,
para nossa família e, se alguns deles virarem as costas, azar, eles que estarão
perdendo o convívio maravilhoso com você.

— Eu não sei o que dizer, você é a melhor! Desculpe-me por tudo isso.

— É claro que vai ser difícil, mas eu estarei aqui. Você vai sofrer
preconceitos. Talvez xinguem e maltratem você, talvez até batam em você,
mas eu estarei aqui. E, por favor, não peça desculpas por ser quem você é. Não
se desculpe por uma coisa que você não escolheu. Eu te amo, filho, e nada,
absolutamente nada do que você me falasse hoje, ia mudar isso.

***

A mais pura dança acontece no salão

A vida emana da pele dos presentes

Todo coração está feliz à canção triste

Fique 127
Os casais se abraçam nos versos principais

Sem quase perceber que todos eles têm

As mesmas sete palavras que fazem tudo perfeito

Ou, da forma que conto, quase perfeito.

***

A cada música que toca no rádio eu me lembro de um momento


sublime, ou nem tão sublime, que vivi. A canção faz-me sentir
incômodo, quando é boa. Dançar é quase inevitável. Inevitável,
porque, se não dançar, a vida para e a melodia morre.

Cada música que escuto a caminho de casa, faz-me reviver alguma


história feliz, ou nem tão feliz, que vivi. A voz do cantor invade minha
alma e faz transparecer os mais profundos sentimentos. É impossível
controlar os movimentos. Dançar é inevitável. Mas o fim da canção
também é.

Cada música que danço, enquanto estou indo ao meu destino


inevitável, faz-me sonhar coisas boas, exclusivamente boas. Porque
a música que escolho dançar é alegre. Sim, eu posso escolher. Pulo,
dou pause ou play. Deixo tocar apenas as que me fazem dançar
alegremente. Por mais que a melodia pareça triste, eu danço
alegremente, porque, afinal, dançar é inevitável.

***

Rosa e Guilherme ficaram em silêncio por vários minutos, provavelmente


abraçados. Cogitei encerrar a ligação, mas, de vez em quando, eu escutava
um suspiro ou outro, e eu não queria desligar até que ele assim desejasse.
Finalmente, Rosa voltou a falar, com a voz mais firme e segura, mas carinhosa
e meiga.

128 Fique
— Você sabe que vai ser difícil falar para o seu pai, não é?

— Eu sei, mas eu preciso contar a ele.

— Você sabe quando vai contar?

Antes da resposta, Elis surpreendeu a todos, quando entrou na sala. Os


dois riram. Eu assustei-me e quase gritei, rindo sozinho.

— Você está chorando, mãe? — A menina perguntou.

— Não, filha, vem cá. — Disse Rosa, provavelmente estendo os braços


com ternura.

E, assim, Guilherme deslizou o dedo no telefone e encerrou a ligação,


mandando-me uma mensagem em seguida: “obrigado por ser quem você
é”. Ler fez-me sentir amado, e, mesmo que ninguém tivesse dito isso, estava
evidente que o eu te amo eram as palavras certas para aquele momento.

***

Para Guilherme,

No dia em que você contou a ela, eu me inspirei. Confesso que sou


covarde, meu amor, para ter tal postura em meio a tais circunstâncias.
Alegro-me tanto em poder dançar com você nessa noite tão especial.

Deixo esta carta, para que leia antes de partirmos, porque nunca
sabemos quando nossa canção vai acabar. Às vezes, ela termina sem
avisar. E se essa fosse a minha despedida desse salão que é a vida, eu
escolheria dançar a última vez com você.

Então, dance comigo, meu amor. Dance, como se eu não estivesse


aqui amanhã. Porque, de alguma forma, eu posso não estar. Dance
comigo, meu príncipe, satisfaça esse meu sonho, porque é essa a
música que escolhi dançar.

Gustavo.

Fique 129
***

Logo na semana posterior em que Rosa voltou a São Paulo, Guilherme


fez-me a sua primeira visita no Mato Grosso. Samira não se conteve e exigiu
que eu lhe apresentasse, então marcamos um jantar em um restaurante
italiano da cidade.

Notando o nervosismo de Guilherme, mexendo-se freneticamente na


cadeira do restaurante, tentei tranquilizá-lo, dizendo que Samira ia adorá-
lo. Nesse exato momento, ela apareceu na entrada. Assim que nos avistou,
aproximou-se da mesa, desfilando como se estivesse na passarela da fashion
week.

— Definitivamente, eu não estou nervoso. Estou apavorado. — Guilherme


sussurrou.

— Relaxa, você vai se sair bem — encorajei-o.

— Ah! Você é o famoso Guilherme! — Samira se permitiu extravasar,


abraçando-o e chamando a atenção de algumas pessoas. — É um prazer
conhecê-lo.

— O prazer é meu. — Ele balbuciou, envergonhado e sem ar por causa do


abraço apertado de Samira.

— Samira, controle-se, tente passar uma boa primeira impressão — eu


brinquei, fazendo com que ela deixasse Guilherme respirar e me desse um
beijo em cada lado do rosto.

— Ai, Gustavo, larga do meu pé. E você, rapaz.... Você é lindo! — ela o
elogiou.

— Obrigado — ele agradeceu tímido. — E você... é... você é...

— Louca — eu o ajudei, divertido.

— Isso eu não posso negar. — Ela deu risada.

Assim que Guilherme levantou-se para ir ao banheiro, após o término da

130 Fique
refeição, Samira fez questão de confidenciar-me que havia amado o seu jeito,
e, é claro, eu não pude deixar de concordar, já aproveitando a oportunidade
para lhe pedir um favor. Ela não poderia responder de outra maneira, a não
ser me provocando:

— Depende, se envolver coisas ilícitas, não. Nem um ménage à trois.

— Não! Não é isso! Credo! Com o capeta seria melhor do que com você.

— Nossa! — Ela fingiu estar ofendida. — Só vou deixar pedir o favor,


porque gostei do Guilherme.

— Você emprestaria o seu apartamento para mim? Em casa... bem,


teríamos que dormir em quartos separados. E eu não quero que ele pague um
hotel, já que eu dormi na casa dele, quando fui para lá... e... bem... você sabe....

— E eu vou para onde? — Samira retrucou. — Talvez, eu possa dormir no


João....

— Você ainda está ficando com ele? — João era um contato fixo de Samira
e, sempre que surgia uma chance, eles dormiam juntos.

— É claro, ele é bom de cama... O que eu posso fazer?

— E não vai sair disso? Quando vocês vão começar a namorar? — eu


provoquei.

— Meu querido! Eu não quero namorar! — ela disse em tom de voz agudo,
quase em falsete.

— Mas... você vai me emprestar a casa? — Eu a pressionei, avistando


Guilherme sair do banheiro.

— Está bem! Mas só esta noite — ela cedeu, jogando uma chave por cima
da mesa.

Depois de uma noite agradável e muitas risadas, levei Guilherme até a


casa de Samira, explicando-lhe que ela tinha cedido o apartamento para que
ficássemos mais à vontade.

— Entre, bebê — eu o incentivei, abrindo a porta, depois de testar duas


chaves erradas.

Fique 131
— Achei que estávamos no lugar errado — ele brincou, menosprezando
a minha habilidade com fechaduras.

— Bobo... Fique à vontade, o quarto é à direita...

Guilherme surpreendeu-me, beijando os meus lábios e interrompendo


a minha fala.

— Leve-me até o quarto, tenho uma coisa para mostrar.

Eu peguei sua mão e o levei até o quarto de visitas. Ele me fez sentar
no colchão, sentando-se no meu colo. Inclinei-me e o beijei, intensamente,
fazendo-o suspirar. Ele passou a mão em meu peito, eu retribuí e segurei a
sua cintura, puxando-o para mais perto. Excitei-me, ele me sentiu e gemeu,
acariciando o meu cabelo. Eu tirei a sua camiseta, jogando-a no chão. Ele me
imitou.

Os nossos corpos estavam quentes, o gosto de sua boca era do chiclete


que veio mascando no carro. Caímos sobre a cama. Eu hesitei, fitando-o,
observando atentamente cada detalhe de sua expressão.

— Você realmente quer isso? — perguntei suspirando.

— Eu quero você — ele respondeu, pausadamente e sincero, causando-


me arrepios.

Guilherme beijou o meu pescoço e passou a língua em meu peito,


arrancando-me murmúrios irreconhecíveis. Desabotoou a minha calça jeans,
beijando-me. Arranquei a sua calça e terminei de tirar a minha. Provoquei-o,
mordendo os seus lábios, e, gentilmente, esfreguei a minha mão por cima
de sua cueca. Ele gemeu. Eu a deslizei, senti-o, encarando-o, torturando-o,
fazendo com que ele clamasse.

— Por favor... — ele balbuciou.

Desci, passando a língua em seu corpo e tirando-lhe a cueca. Provoquei-o,


lentamente, deixando que a minha boca escorregasse sobre ele. Guilherme
lamentou, baixinho, contorcendo-se. Aumentei o ritmo e, quando notei que o
menino estava entregue, parei, tirei o resto de minha roupa e me aproximei

132 Fique
de sua boca, ficando sobre o seu peito. Eu senti a sua mão tocar-me. Logo
depois, a sua língua, dando-me um prazer indescritível. Nessa posição ele me
chupou por uns minutos, então deite-me totalmente por cima dele, sentindo
os nossos corpos se tocarem. Beijei-o, saboreando o nosso gosto e acelerando
a sua respiração.

— Você... é... meu... — sussurrei em seu ouvido. Ele se arrepiou.

Levantei-me agilmente e o puxei para a beirada da cama, expondo-lhe.


Alcancei o preservativo dentro da carteira que repousava sobre o criado-
mudo e me vesti. Coloquei dois dedos em minha boca, lubrificando-os e,
calmamente, esfreguei-os em Guilherme. Ele observava-me, atento, delirante,
excitado, pedindo para que eu o tomasse.

Aproximei o meu corpo ao dele, beijando-o, arrancando mais um


suspiro delicioso. Devagar, entrei e o senti. Ele me agarrou, passando as suas
unhas em minhas costas e deixando marcas. Aumentei o ritmo, aos poucos
e constante. Guilherme gemia, olhando-me e pronunciando palavras soltas.

Ficamos assim por um tempo. Então, quando cheguei ao máximo dá


intensidade, toquei-o, fazendo-o atingir o auge, gemendo, junto comigo,
em perfeita sintonia. As minhas pernas tremeram subitamente. Guilherme
estava totalmente sem fôlego e respirava com dificuldade. Desabei ao seu
lado, aconchegando-o em meu peito.

***

Guilherme aproveitou as últimas horas ao meu lado e tomou a coragem


necessária para ligar para o pai, para contar-lhe sobre a sua orientação
sexual. Eram duas da tarde, poucas horas antes do seu voo de retorno para
São Paulo. Nós estávamos sentados na beirada da cama, o meu braço direito
estava sobre os seus ombros, abraçando-o.

Rodrigo atendeu nos primeiros toques, assustado, já que Guilherme


nunca ligava. Depois dos cumprimentos básicos, o pai perguntou quando iria

Fique 133
receber uma vista. Guilherme desconversou, dizendo que, antes, precisava
contar algo importante. Rodrigo, ansioso e eufórico, pediu para que o garoto
continuasse.

Sem uma forma simples de dizer, já se preparando para uma reação


negativa, ele contou:

— Pai, eu não tenho uma forma simples de falar isso e não sei como
abordar o assunto com você. Nós nunca fomos muito próximos e tenho certeza
de que as coisas vão ficar mais complicadas a partir de agora. Desde de que
eu era criança, eu olhava diferente para os meninos da escola. Achei que era
uma fase boba e resolvi não contar para ninguém. Então, eu fui crescendo e,
cada vez mais, os rapazes atraiam-me. Tentei fazer campanhas na igreja, orei
e pedi para Deus me libertar disso. Até fui morar com você aquele ano, para
tentar mudar. Porém, nada funcionou. Então, comecei a ir à terapia. Comecei
a entender um pouco melhor as coisas e tive minhas primeiras experiências.
Hoje, eu tenho certeza de quem eu sou. Contei para a minha mãe, e estou te
contando agora. Pai... eu sou gay.

Dizer pela segunda vez aquela frase em menos de um mês para alguém
importante deixou-o exausto. Por que ele precisava dar tantas explicações
por ser diferente?

— Como assim? Você se veste de mulher também? Que absurdo,


Guilherme! — o pai gritou.

— Não, pai, não me visto de mulher. Apenas gosto de outros homens.


— Guilherme surpreendeu-se com o grito e com a pergunta. Até já tinha
pensado algumas vezes em se vestir de mulher, mas acabou percebendo que
não era o que queria.

— Menos mal, né, Guilherme! Que absurdo! — repetiu. — Filho meu não
vai ser gay não. Você vai vir para cá imediatamente. Vai largar a faculdade e
vai morar comigo, agora mesmo! E vamos dar um jeito nessa palhaçada.

134 Fique
— O quê?! — A reação foi espontânea. Guilherme elevou a voz. — Não
é assim que funciona. Eu tenho uma vida em São Paulo e não vou mudar só
porque você quer.

— Você tem uma vida? É isso que você chama de vida? — o pai gritava
— Você é um imprestável, você nem trabalha ainda! E agora vem com essa
história de que é veado... era só o que me faltava.

— Pai! — As lágrimas começaram a escorrer.

— Pai o caramba! Filho meu não é gay! E se for gay não é meu filho.
Ou você se converte e deixa esse pecado, ou não precisa mais gastar os seus
créditos para me ligar.

— O senhor está sendo grosso sem necessidade.

— Eu não quero mais saber de papo furado. Se você não voltar para cá
agora... eu não vou te considerar mais como meu filho.

Guilherme olhou-me, permitiu-se desabar, encostando a cabeça em


meu peito. Tomou coragem e despediu-se.

— Adeus, pai, espero que um dia você mude de ideia. — Não houve
resposta, Rodrigo já havia desligado.

É incrível como as reações das pessoas podem ser extremas. Dentro da


mesma família, Guilherme recebeu o suporte de uma mãe superprotetora e
xingamentos de um pai complicado de se lidar.

— Eu sinto muito — Tentei consolá-lo logo que desligou. Guilherme


abraçou-me. — Ei, olhe para mim... eu estou aqui com você, ok?!

— Obrigado, amor... quer dizer, Gu — ele se corrigiu.

— Não, pode me chamar de amor, eu gostei — incentivei-o.

— Você é muito especial para mim.

— E você é o meu anjo da guarda, sabia?! — Eu o beijei.

Guilherme encarou-me por uns segundos, passou a mão em meu cabelo


e na lateral do meu rosto.

Fique 135
— Eu te amo... — ele disse cauteloso.

— Eu também te amo — retribuí com a voz pausada e suave, deixando-


me levar por aquele momento mágico.

136 Fique
Capítulo 10: Olho roxo

S
eis meses se passaram e a notícia de que Guilherme era gay
espalhou-se rapidamente pela família. O menino quase não
conseguiu contar pessoalmente a notícia para seus avós. Ele teve várias
surpresas positivas e ficou satisfeito, no geral, com as reações.

Foi necessário ter muita paciência para atender todas as ligações e


explicar detalhadamente para cada um o que estava acontecendo, mas depois
de tudo ele se sentiu satisfeito. Afinal, era aquele o preço a ser pago para
experimentar a tão sonhada liberdade. A sensação de ter contado a verdade
era espetacular.

Apesar disso, Rodrigo ainda estava com dificuldades de aceitar. Os dois


pouco se falavam e, quando Guilherme ligava, a conversa tomava um rumo
de caráter homofóbico. De qualquer forma, a solução não estava nas mãos do
garoto, era o próprio pai quem deveria perceber que não se tratava de uma
escolha.

***

Toda vez que eu pensava sobre ser gay, uma confusão invadia-
me e me torturava. Foi difícil entender que não era uma escolha.
Depois que percebi que eu morreria homossexual, comecei a buscar
alternativas para sentir-me feliz.

As drogas foram a primeira tentativa. Esforçava-me para esquecer-


me dos pesadelos que eu vivia, mas nem todo o álcool do mundo
poderia mudar-me. Após isso, tentei focar as minhas habilidades na
universidade, distrair a mente com outros assuntos, mas também foi
um fracasso.

Fique 137
Por onde eu andava, a cada balada ou gota de álcool que derramava
em minha boca, eu me afundava ainda mais. Não tinha como fugir
ou como evitar. Eu seria homossexual por toda a eternidade, e nada
poderia mudar isso.

Foi então que abri os olhos para o mundo e apaixonei-me pela


liberdade e diversidade da vida. Percebi que, independentemente
de minha orientação sexual, existem vários motivos para continuar
respirando, e o principal deles é a esperança de um futuro com mais
amor.

***

O final do terceiro ano da faculdade aproximava-se, as disciplinas mais


específicas do curso preenchiam a grade, os trabalhos e provas estavam
mais difíceis. Guilherme pouco conseguia ir ao interior de São Paulo, estava
estagiando na área de projetos numa empresa da cidade e o tempo era escasso
para o lazer ou para a família.

Consequentemente, até então, ele tinha me visitado apenas uma vez


mais além daquela. Em contrapartida, em seis meses, eu já tinha o visitado
quatro vezes. Mesmo entendendo o motivo, isso incomodou-me, então resolvi
cobrar uma visita.

— Acho que está na hora de você vir para cá — eu disse ao telefone,


deitado no terraço do prédio onde morava, olhando as estrelas, lembrando-
me de seu sorriso.

— Eu sei, bebê. Eu vou nas férias, prometo — ele jurou, reconhecendo


que estava com o saldo negativo comigo.

— Está bem — eu sussurrei, mais feliz.

Guilherme desculpou-se, dizendo que estava atolado de coisas para


fazer. Eu compreendi, pois também, estava atrasado com os estudos e as

138 Fique
primeiras provas estavam chegando. Ele não perdeu a oportunidade de me
caçoar, perguntando como eu estava com matéria acumulada se nem a louça
eu precisava lavar. Óbvio que não perdi a oportunidade de bajulá-lo:

— Ando pensando muito em você, aí não dá tempo de fazer outras coisas.


— Gargalhamos juntos, como costumávamos fazer durante as conversas,
mas não tardou para que as gargalhadas fossem substituídas por sorrisos
silenciosos e, depois, por puro silêncio. A verdade era que, quanto mais o
tempo se passava em nossa relação, mais percebíamos o quão limitadora
era a distância entre nós, e mais doíam os corações. Foi Guilherme quem
verbalizou essa sensação mútua, sussurrando:

— Estou com saudades de você.

— Eu também estou. Onde você está? — perguntei, tendo uma ideia.

— Estou em casa.

— Vá até a janela — instruí.

— Não vá me dizer que você está aqui de novo — ele riu.

— Infelizmente, não. Mas existe algo que podemos fazer, vi isso num
filme, uma vez.

— Está bem... Pronto, estou na janela.

— Agora, olhe para o céu. Está vendo todas as estrelas? — perguntei,


recordando-me do filme. Ele respondeu que sim. — São as mesmas que eu
vejo daqui, sabia?! Isso significa que não estamos tão longe.

— Você é um fofo. — Ele se derreteu.

Isso foi o suficiente para aquecer o seu coração e manter-nos unidos.


Assim, eu esperava, ansiosamente, pela sua próxima visita.

***

Fique 139
Assim que possível, Guilherme foi a Mato Grosso. Como das outras
vezes, eu o busquei no aeroporto e o levei até o apartamento de Samira. Ela
nos esperava ansiosa. Enquanto eu e ela conversávamos, sentados ao redor
da mesa na cozinha, Guilherme resolveu preparar o jantar, comentando que
estava fazendo o meu prato favorito.

— Meu prato preferido é você — provoquei-o com a voz sedutora.

— Vão procurar um quarto, pelo amor de Deus! — Samira debochou com


uma expressão azeda.

Guilherme riu e voltou a sua atenção para as panelas.

— Você tem que casar logo — Samira cochichou para mim. — O menino
sabe cozinhar, não precisa de mais nada.

— Eu vou pedi-lo em namoro hoje — contei a ela de maneira que


Guilherme não escutasse.

— Sério? — Samira elevou a voz, chamando a atenção de Guilherme.

— Sério o que? — ele se interessou.

— O Gustavo estava me contando que ele era virgem antes de o conhecer


— ela mentiu, deixando-me envergonhado.

— Samira! — eu a repreendi corando. — Você tem um costume muito feio


de me envergonhar.

— Eu duvido que fui o primeiro — Guilherme entrou na brincadeira. —


Ele é muito bom para nunca ter transado antes.

— Guilherme! — Eu corei ainda mais, sem saber para onde olhar. — Até
você?!

— Foi um elogio, amor. — Ele encolheu os ombros.

— Me poupem — Samira riu.

Guilherme ficou sério, de repente, mudando bruscamente de assunto,


dizendo que, antes de comermos, ele tinha uma surpresa. Ele esquivou-se,
ágil, para fora da cozinha, sem notar a minha expressão de confusão. Eu e
Samira trocamos olhares. Rapidamente, ele voltou com um sorriso no rosto.

140 Fique
— O que você está aprontando? — Eu perguntei ansioso e desconfiado.

— Gustavo... Eu tenho pensado muito sobre isso, e faz quase um ano que
nós estamos juntos... acho que está na hora de oficializarmos tudo isso.

Samira não aguentou e gargalhou. Eu e Guilherme a olhamos, surpresos


com a interrupção. Ela se desculpou, pedindo para que o garoto continuasse.

— Então... — Ele tirou uma caixinha azul do bolso da calça jeans,


abrindo-a e se ajoelhando a minha frente. — Gustavo, você aceitaria ser meu
namorado?

— Guilherme! Não! Não... Quer dizer... sim! Claro que sim! — Eu me perdi
nas palavras.

— Não ou sim? — ele perguntou, levantando-se. Samira segurava a


barriga de tanto rir.

— É claro que sim! É que eu ia te pedir em namoro depois do jantar! —


expliquei, feliz e divertido.

— Sério? — Ele me olhou com os olhos brilhando.

— Vocês possuem uma sintonia incrível — Samira provocou sem ar.

Eu me levantei da cadeira, aproximei-me de Guilherme, quase


encostando o meu corpo ao dele, sentindo a sua respiração e o seu calor, e
respondi:

— Eu aceito.

Guilherme pegou uma das alianças, com as mãos um pouco trêmulas,


e colocou-a em meu dedo, sorrindo. Eu repeti o gesto, colocando a outra em
sua mão direita.

— Você realmente ia me pedir em namoro hoje? — ele perguntou


baixinho, fitando-me com um olhar alegre.

— Sim. — Eu sorri, beijando-o carinhosamente no canto de seus lábios.

— Ah! Por favor! Vocês são impossíveis de tão doces. Acho que está na
hora de nós jantarmos. — Samira levantou-se e, propositalmente, passou entre

Fique 141
mim e Guilherme, separando-nos. Nós dois sorrimos, ainda concentrados um
no outro.

— Eu te amo — sussurrei, quase sem deixar o som sair da boca.

— Eu também te amo — ele retribuiu, imitando-me.

— Com licença! — Samira pediu, em alto tom, passando com a assadeira


entre nós, arrancando risadas.

***

Eu só tenho a agradecer pelo desencontro que tivemos. No fim,


foi você quem pediu a minha mão em namoro. Meus pais ficarão
animados com a ideia, logo você irá conhecê-los. Estou ansioso
para que sejamos uma típica família brasileira, com almoços aos
domingos na casa da sogra, cerveja gelada e papo-furado.

Eu não quero nada mais que isso. Um filme no final do dia, um


amasso ao som de Lost Stars de Marron 5, dormir agarrado a você
no inverno e ligar o ar-condicionado para não desgrudarmos no
verão. Talvez, um filho ou dois, um gato, um cachorro e uma viagem
para o sul, porque eu gosto do frio e de como você abraça-me para
esquentar-me.

Nada me parece tão necessário quanto escutar a sua voz ao acordar-


me pelas manhãs, ou sentir o seu cheiro, depois de uma noite de
sexo. Você quer ganhar-me pelo resto da vida? Dê-me a esperança
de que terei tais coisas para sempre.

Que tenha me pedido em namoro permitiu-me trocar as alianças


que eu havia comprado antes por um ray-ban, uma vez que as que
você comprou combinaram mais com nossas mãos. Poderia ter sido
mais perfeito que isso?

142 Fique
***

Naquele mesmo dia, antes de dormir, enquanto acariciava os cabelos de


Guilherme, deitado em meu peito, comentei o quão feliz eu estava por aquela
coincidência.

— Não imaginei que você também fosse me pedir em namoro. Desculpe


estragar a surpresa — ele se manifestou, tentando encontrar os meus olhos
com o dele, sem sucesso por causa da posição desfavorável em que estávamos.

— Não tem problema nenhum, eu adorei a sua surpresa.

— Tenho uma brincadeira para fazer com você. — Guilherme sentou-se


na cama, instruindo-me a sentar-me de frente para ele. — Uma vez eu vi um
casal brincando no ônibus e fiquei com vontade de brincar com você.

Encarei-o, fingindo pavor, e disse debochado que já estava com medo de


qual seria a brincadeira. Guilherme segurou as minhas mãos com delicadeza,
respondendo que eu iria gostar.

— Chama-se luta de dedão — ele explicou.

— Gui! Eu brincava disso com a minha mãe, quando era criança.

— Ah, eu sei, é de criança, mas eu quero brincar com você — ele


choramingou manhoso.

— Só você para me convencer a esse tipo de coisa — cedi, não resistindo


a sua falsa expressão de tristeza.

Guilherme estendeu a mão direita, eu o imitei, juntando nossas mãos,


com os polegares apontados para cima. Ele não esperou que eu me preparasse
e, rapidamente, agarrou o meu dedo com o dele.

— Ahá! Um a zero. — Ele comemorou, mexendo o corpo como se estivesse


dançando, ainda sentado.

— Essa não valeu, amor! Você não esperou até que eu estivesse pronto
— eu rebati divertido.

Fique 143
— Não, não! Não existe essa história, quem precisa se preparar para
isso?!

— Vamos de novo! — pedi.

Mais uma vez, eu e Guilherme juntamos nossas mãos e começamos a


“batalha”. Ele me distraiu, dando-me um selinho, e conseguiu agarrar o meu
polegar.

— Guilherme!

— Dois a zero! — ele se gabou.

— Você roubou de novo. Não vale me distrair — eu contestei, simulando


estar bravo.

Guilherme aproximou-se, entrelaçando as pernas em volta de minha


cintura e se sentando em meu colo.

— Você perdeu, qual vai ser a minha recompensa? — ele sussurrou em


meu ouvido, com o hálito quente. Eu me arrepiei.

— Nenhuma, quem rouba não ganha o prêmio. — Tentei tirá-lo do meu


colo, mas ele me agarrou, passando os braços por trás do meu pescoço.

— Acho que eu vou ter que te ensinar a perder!

Ele me colocou deitado na cama e agarrou os meus braços acima da


cabeça com uma das mãos. Com a outra, tentou fazer-me cócegas, eu me
desvencilhei e o agarrei, encostando meu corpo ao dele. Nossas bocas quase
se tocaram, minha respiração acelerou, excitei-me.

— Parece que alguém se animou — ele caçoou —, e eu já sei o que eu


quero como recompensa.

— Eu também já sei o que eu vou dar a você.

Eu o beijei, empurrando o meu corpo contra o dele, fazendo-o entregar-


se ao momento.

***

144 Fique
Toda a vez que eu vejo um prato de comida de que eu gosto, eu me
lembro de você. Ontem mesmo, comi lasanha no almoço. Lembrei-
me de você. Hoje, tomei um sorvete em sua homenagem, porque
me lembrei de você. Será que você consegue me explicar por que as
coisas boas me fazem lembrar do seu beijo? Ou do seu cheiro?

Passei em frente a uma loja de perfume. Tive que entrar. Senti o


seu cheiro que ficou grudado na minha camiseta. Até o cheiro das
flores do jardim do meu prédio fizeram minha memória acusar o seu
nome. Será que você consegue me explicar por que as coisas boas me
fazem lembrar do seu cheiro? Ou do seu abraço?

Quando deitei e abracei meu travesseiro, desejei-o. Revivi os


momentos em que você ficou abraçado comigo. Quando vesti o
moletom que você esqueceu no meu sofá, eu pude relembrar um
pouco de tudo. Do seu toque, do seu cheiro e do seu abraço. Acho que
eu sei explicar o porquê de as coisas boas lembrarem você!

Porque tudo em você me faz lembrar de coisas boas. Por exemplo,


enquanto me abraçava, eu me senti tão confortável, que eu lembrei
que o amor existe. Enquanto você me beijava, recordei-me da
fantástica sensação de euforia e desejo que raramente sinto. Até
mesmo o seu cheiro tem um aroma de paz e esperança.

Você é quem me faz lembrar-me das coisas boas, mas todas as


coisas boas é que me fazem lembrar-me de você. Por favor, não vá
embora... Agora é impossível ver algo bom e não lembrar seu nome.
Não me faça chorar a cada vez que eu sentir algo bom... não me faça
chorar ao lembrar que o melhor que eu tinha era você, e você se foi.
Então, por favor, fique.

***

Fique 145
Depois de quase uma semana comigo, no Mato Grosso, Guilherme
viajou para o interior de São Paulo.

Ao voltar Gui me contou sobre como Elis estava diferente desde a última
vez que a tinha visto. Agora ela sabia algumas palavras novas que usava
em sentenças sem muito sentido, como quando afirmou que o irmão era ‘o
amaciante dos sonhos’ e ‘o hipopótamo fofinho’.

Guilherme sentia-se à vontade com a família e não precisava mais


limitar-se a um “comportamento heterossexual”. Apenas com Elis ele se
continha para não causar situações embaraçosas em que a irmã pudesse
confundir-se.

Na segunda semana em que estava em São Paulo, Guilherme resolveu


participar de uma reunião com os antigos colegas de classe do terceiro
colegial. Foi aí que as coisas saíram do controle. Ele entrou em uma discussão,
defendendo os direitos dos homossexuais na adoção de crianças. Um dos
rapazes que argumentavam contra exaltou-se.

— Isso é um absurdo! Homem com homem! Só vai confundir a cabeça


da criança.

— Todos têm o direito de construir uma família. Eu respeito a sua


opinião, mas acho que os homossexuais também possuem o direito de ter
filhos — Guilherme tentou explicar-se de forma pacífica.

— Vocês são aberrações — o outro gritou, apontando o dedo indicador


para Guilherme e levantando-se da cadeira, visivelmente alterado por causa
do álcool.

Guilherme entrou na defensiva, alegando que apenas estava expondo


sua opinião sobre o assunto. Mas de nada adiantou, a agressão verbal estava
prestes a se transformar em física.

— Gay nasce para sofrer, não para dar opiniões — o outro contestou.

— Você está exagerando... eu sou homem, da mesma forma que você, só


que gosto de outros homens — Guilherme tentou.

146 Fique
Não houve resposta. O rapaz partiu para cima de Guilherme,
derrubando-o da cadeira e fazendo-o bater as costas e a cabeça no chão.
Guilherme tentou levantar-se, inutilmente, já que o outro o chutou na altura
do estômago. Guilherme soltou um grito de dor, enquanto recebia outro
golpe, agora na virilha.

— Veado tem que apanhar! — gritou.

Outro chute, cortando o seu lábio superior. Ninguém estava disposto a


interferir. Algumas moças gritaram algo que Guilherme não entendeu. Uma
dor aguda invadiu-o, fazendo-o gemer. Ele se encolheu, protegendo a cabeça
com as mãos. O rapaz continuava a golpeá-lo, cada vez com mais força. Sua
visão ficou turva, sentiu-se anestesiado, apagou.

***

Depois de mais de duas horas desacordado, Guilherme abriu os olhos,


atordoado e com dores por todo o corpo. A sua boca estava inchada, sua
virilha extremamente dolorida e havia hematomas na barriga, no rosto e nas
costas. Rosa foi a primeira que ele avistou, sentada em uma poltrona com
uma expressão preocupada.

A mãe perguntou como ele estava se sentindo, explicando que estavam


em um hospital e que Guilherme havia desmaiado. Com dores no corpo
inteiro, o menino tentou mover-se na cama, levando as mãos nos bolsos
da calça, procurando o celular. Rosa, entendendo o que Guilherme queria,
procurou em sua bolsa e lhe entregou o aparelho, levemente riscado em uma
das laterais.

— Eu tomei a liberdade de mandar uma mensagem para o Gustavo — ela


explicou.

— Obrigado — ele agradeceu, acomodando-se melhor no travesseiro.

Fique 147
Depois de alguns segundos, ele discou o meu número, porém a ligação
foi direto para a caixa de mensagens. Reclamou, em voz alta, que o meu
celular estava desligado. Rosa, que sabia o motivo, sondou o filho:

— Você gosta dele, não é?!

— Mãe, eu o amo! — Guilherme respondeu orgulhoso.

Rosa sorriu, e contou que eu estava a caminho do hospital, por isso o


meu celular estava desligado. Guilherme, ainda atordoado com o ocorrido,
pediu para que a mãe fosse legal, e também deu outras instruções, após
queixar-se várias vezes das dores que sentia:

— Nada de contar histórias constrangedoras da minha infância, como


todas as mães fazem.

— Isso já é pedir demais! — Rosa brincou.

Nesse momento, uma enfermeira entrou no quarto, interrompendo a


conversa dos dois. Depois de pedir licença, ela informou-os que uma nova
visita estava à porta, esperando. Rodrigo entrou amuado e envergonhado,
sem olhar diretamente para o filho, testando se poderia manifestar-se.

— Vou deixar vocês conversarem — Rosa falou, retirando-se do quarto


junto com a enfermeira, passando por Rodrigo sem cumprimentá-lo.

Os sentidos de Guilherme aguçaram-se, seu coração acelerou e a sua dor


de cabeça ficou acentuada. Já imaginava as próximas falas, o pai o acusaria
novamente, diria que foi merecido ter apanhado e, no mínimo, falaria para ele
se converter a Jesus ou sofreria ainda mais as consequências.

— Oi, filho — Rodrigo começou, enquanto tocava com uma das mãos na
cama de Guilherme, buscando aproximar-se.

— Oi — ele respondeu desconfiado, notando que o pai não estava


explosivo como sempre.

— Você está bem?

— Não muito — Guilherme cortou-o ríspido, apontando para o próprio


rosto.

148 Fique
— Eu tenho tanta coisa para lhe falar... Não sei por onde começar. —
Rodrigou estava envergonhado.

— Comece pelo início — Guilherme debochou.

— Está bem, isso é justo. Eu sei que a gente se afastou....

— Faz seis meses que você não entra em contato comigo! Isso é mais do
que se afastar! — Ele se elevou, tentando sentar-se na cama. Rodrigo teve a
intenção de ajudá-lo. Guilherme rejeitou, aprumando-se sozinho.

— Desculpe-me por ter deixado de falar com você, foi um grande choque
para mim...

— Eu tentei, pai! Eu fiz de tudo para ser o que você esperava de mim, mas
eu não nasci para ficar dentro da igreja, eu sou gay, e isso não vai mudar! —
Guilherme disparou.

— Eu sei. — Rodrigo abaixou a cabeça. — E eu demorei a entender, mas


isso não muda o fato de você ser o meu filho.

— Gay!

— Sim, gay. E eu o amo da mesma forma — Rodrigo confessou,


surpreendendo-o. — Por mais que eu lute diariamente para entender o motivo
de você ter se tornado homossexual, eu quero participar de sua vida e aceitá-
lo como você é.

Por alguns segundos, escutavam-se apenas alguns murmúrios vindos


do corredor. Pai e filho não se olhavam. Guilherme focou a sua visão no único
quadro do quarto, no qual uma zebra fugia de um tigre, pulando uma cerca,
aparentemente em uma savana. Rodrigo observava a vista pela janela.

É incrível como um evento de perigo pode assustar as pessoas,


trazendo-as para a realidade, aflorando os sentimentos e fazendo-as pensar.
Rodrigo sentiu o medo de perder Guilherme, e isso o fez repensar sobre as
suas atitudes.

Fique 149
— Eu me lembro de que era você quem me levava até a escola, todos os
dias, antes de mudar de cidade — Guilherme quebrou o silêncio. — Foi uma
época boa.

— Foi. — Rodrigo sorriu. — Você sempre foi o xodó da família, e sempre


o meu orgulho.

— As coisas mudaram, você sabe disso.

— Sim, mudaram, mas ainda sou o seu pai.

— Se pudesse escolher, ainda seria? — Guilherme indagou-o, recordando-


se do dia em que se assumiu.

— Eu escolho isso todos os dias — Rodrigo respondeu sem hesitar.

— Então, por que você sumiu? — disse, em um tom de voz mais elevado
do que pretendia, que fez com que seu maxilar, ferido, latejasse. Guilherme
levou a mão para o rosto, irritado com a situação.

— Eu sumi porque eu não soube o que fazer quando você me contou


que era gay. Eu estava perdido, sem saber para onde ir ou com quem falar.
Até há pouco tempo você subia no púlpito da igreja para falar contra o
homossexualismo, eu não entendi o motivo da mudança repentina.

— Não utilize esse termo, pai, isso não é uma doença. E eu falava contra
os homossexuais por causa de você! Você colocou isso na minha cabeça e
me fez acreditar que era o correto a se fazer. Você me forçou a namorar uma
menina, a lutar contra a minha essência e a acreditar que Deus abomina o que
eu sou.

— Mas o erro não foi só meu, você deveria ter conversado comigo... —
Rodrigo tentou amenizar a sua responsabilidade.

— E ser obrigado a seguir uma doutrina em que eu nunca me encaixei?!


Como eu poderia falar com você sobre isso se, categoricamente, você afirmava
que odiava os homossexuais?

— Filho...

150 Fique
— Eu estava inseguro e confuso, e tudo o que eu escutava eram instruções
rigorosas sobre como seguir a Deus e não pecar.

— Me desculpe — Rodrigo tentou novamente.

— É só isso que você vai falar?

— Deixe-me mostrar, em vez de falar. Eu quero me aproximar de você.


Participar das suas conquistas, ajudá-lo nos momentos difíceis, conhecer o
seu namorado, estar na igreja no dia do seu casamento... Eu o amo, filho, por
favor, deixe-me provar isso.

Uma batalha travou-se no coração de Guilherme. Deveria perdoá-lo ou


se manter distante? Aquela linha tênue entre o amor e o ódio, a compaixão e a
revolta. Ele o fitou pela primeira vez, o pai chorava. Então, o menino escolheu
o amor.

— Então mostre.

***

Uma hora ou outra, o amor se sobressai. É impossível resistir a tal


sentimento. Não importa se você é branco ou preto, hétero ou homo,
índio ou europeu. O amor é o mesmo, ele invade as entranhas e
percorre o sangue por todo o corpo. É impossível resistir.

O coração bate mais depressa, a voz fica rouca, as lágrimas escorrem


pelo rosto. É impossível resistir à imprevisibilidade do amor. Um pedido
de desculpas, não é feio reconhecer um erro, não é feio reconhecer
uma estupidez, um preconceito. Quando o amor percorre as veias, o
ódio torna-se ultrapassado.

Não há nada que se compare ao espetáculo que é amar e ser amado,


seja pelo pai, pela mãe, filho, namorado, noivo, esposa, sogra, avó,
neto, cachorro, papagaio... o amor vence qualquer tipo de barreira.

Fique 151
***

Assim que entrei no quarto onde Guilherme estava, logo pela manhã
do outro dia, meu coração apertou-se e não consegui evitar as lágrimas.
Ele estava extremamente machucado, com hematomas por todo o corpo, e
o seu olho estava inchado e roxo. Rosa encontrava-se sentada na poltrona,
enquanto o filho dormia inquieto.

— Você deve ser o Gustavo — ela me cumprimentou, levantando-se. —


Prazer, eu sou a mãe de Guilherme. Ele não para de falar de você, às vezes até
me irrita — ela brincou.

— O prazer é todo meu. Realmente, ele sabe ser chato quando quer
— entrei na brincadeira, dando um sorriso demorado e observando meu
namorado na cama.

— Pena que te conheci em tal situação, normalmente eu receberia visitas


importantes com a minha especialidade: lasanha!

— Alguém disse lasanha? — Guilherme acordou, ainda sonolento, não


perdendo a oportunidade de tirar-me uma risada. — Oi — ele me saudou com
um olhar meigo e alegre.

— Oi, amor. — Aproximei-me e o abracei. Ele gemeu, reclamando de dor,


fazendo-me afastar.

— Eu sei, estou um caco — ele brincou.

— Realmente. Não é esse o menino lindo que eu namorava — provoquei-o,


fazendo-o sorrir.

— O médico disse que eu vou poder ir para a casa hoje — Guilherme


explicou.

Comemorei, dizendo que era uma excelente notícia. Rosa concordou.


Depois de encará-lo por mais um tempo, um medo tomou conta do meu
interior. E se eu o perdesse? O preconceito, o ódio e a violência estão em todos

152 Fique
os lugares, arrancando vidas, ceifando um campo colorido das mais belas
flores, dando lugar à dor e à paisagem acinzentada.

— Nunca mais quero ver você assim, por favor! — eu confessei mais alto
do que deveria.

— Fique tranquilo, amor, não vou dar-me ao luxo de ficar mais feio que
você de novo — ele amenizou, descarregando o ambiente.

— Você já tem onde dormir esta noite? — Rosa interrompeu, dirigindo-


se a mim.

— Na verdade, não — eu expliquei envergonhado.

— Ótimo, irá dormir conosco.

— Essa, sim, é uma excelente notícia — Guilherme comentou, fazendo-


me corar.

Às onze, Rosa decidiu ir para a casa, comer e trocar de roupa, já que


estava desde a noite anterior no hospital com o filho. Eu me aconcheguei ao
lado de Guilherme, na cama, passando o meu braço por baixo de seu pescoço
e acariciando o seu peitoral com o dedo indicador, por cima da camiseta.

— Se alguma enfermeira nos pegar dessa forma, vamos levar uma


bronca — ele cochichou.

— Também acho — confirmei, mas ainda me mantive abraçado com ele.

— Obrigado por ter vindo.

— Não foi nada, eu fiquei preocupado com você.

— Eu tentei ligar a você ontem à noite, para acalmá-lo, mas o seu celular
estava desligado — Guilherme disse, passando, lentamente, o indicador nas
linhas da palma de minha mão.

— Acabou a bateria, e eu já estava no ônibus. Quando a sua mãe me


ligou, não daria tempo de vir de avião, então preferi pegar o primeiro ônibus
para cá.

— Eu imaginei. — Ele sorriu. — Não precisava ter se esforçado tanto para


me ver.

Fique 153
Um barulho, vindo da entrada do quarto, chamou a nossa
atenção. Rodrigo estava parado, junto à porta, esperando ser
convidado para entrar no local. Eu saltei da cama, colocando-
me de pé o mais rápido que consegui. Guilherme não se moveu,
apenas encarou o pai, atento, preparando-se para uma fuga.
— Bom dia. — Rodrigo cumprimentou firme, mas calmo.
— Bo... a... bom... da... — eu gaguejei.
— Pai, esse é o Gustavo, meu namorado — Guilherme
interveio convicto e confiante.
Rodrigo andou em minha direção vagorosamente, vi a
morte diante dos meus olhos. Mas ele apenas apertou a minha
mão com firmeza.
— É um prazer conhecê-lo, Gustavo.
— O prazer é meu — respondi, enquanto Rodrigo acomodava-se na
poltrona.

***

Assim que Guilherme foi liberado do hospital, o acompanhei até a casa


de Rosa. Quando chegamos, logo quis comentar de nosso encontro com seu
pai.

— Eu achei que o seu pai iria me bater quando entrou no quarto,


então seríamos dois machucados — eu confessei, ajeitando o travesseiro de
Guilherme.

— Por um momento, eu também achei.

— Como você se sente? — eu perguntei, encarando-o.

— Dolorido e, definitivamente, assustado. — Ele estremeceu.

Eu me aconcheguei ao seu lado, abraçando-o delicadamente. Guilherme


continuou:

154 Fique
— Eu nunca achei que iria sofrer uma agressão física por ser homossexual.
Foi tão rápido, não pude nem ao menos me defender. A cada golpe, eu sentia
uma dor extremamente aguda. Minha cabeça começou a rodar e, de repente,
apaguei. Minha mãe falou que chamaram uma ambulância. Ligaram para ela
quando eu já estava no hospital.

Sem saber como consolá-lo, dediquei-me em acariciá-lo. Ficamos


assim por alguns minutos, até que a irmã de Guilherme entrou no quarto,
encarando-me pela primeira vez. Guilherme sentou-se e pegou Elis no colo.
Ela observava a tudo atenta, mas sem falar nada. Eu tentei descontraí-la,
mexendo em suas mãozinhas, sem sucesso.

— Esse é o tio Gu — Guilherme introduziu-me. — Dê “um oi” para ele. —


O garoto levantou a mão direita de Elis e a chacoalhou no ar. Ela resmungou,
escorregando entre suas pernas e correndo para fora do quarto.

— Acho que ela ficou com vergonha — comentei.

— Ou se assustou com o meu rosto.

— Isso é mais provável — brinquei.

— Cuidado, eu estou dolorido, mas ainda consigo derrubá-lo fácil, fácil.

— Eu não duvido. — Beijei-o na testa. Ele reclamou de dor e riu.

— A minha mãe preparou a cama no quarto de visitas para você — ele


mudou de assunto, deitando-se novamente, agora em meu peito.

Eu concordei. Não esperava uma situação diferente. É claro que Rosa


não nos deixaria dormir juntos em sua casa. Guilherme não havia gostado da
ideia, alegando que queria dormir me abraçando.

— Você está manhoso demais, até para mim — eu o provoquei,


esfregando, de leve, a sua cabeça, como se faz em uma criança.

— Nossa, eu estou machucado e você tem a coragem de me dizer isso?!


— ele fingiu espanto, fazendo-se de ofendido.

— Você fica lindo quando tenta ficar bravo comigo — eu disse, fazendo-o
sorrir.

Fique 155
— E você sempre encontra uma forma de me fazer sorrir — ele concluiu,
segurando a minha mão e apertando-a carinhosamente.

Então Rosa nos chamou para o jantar. Eu e Guilherme sentamos em um


lado da mesa, Rosa e Elis no outro. A pequena ainda estava envergonhada
com a minha presença. Rosa havia feito um risoto de camarão e um molho
branco deliciosos.

Para puxar assunto, Rosa indagou-me sobre em qual ano da faculdade


eu estava. Respondi que um semestre atrás de Guilherme.

— Ele é de humanas, mãe, não dê moral! — Guilherme provocou-me.

— O mundo precisa das pessoas de humanas, elas são as mais sensatas.


— Rosa piscou para mim.

— Matemática é loucura, eu não entendo nada — concordei.

— Eu sei contar até dez. — Elis quis participar, deixando a timidez de


lado. — Um, dois, cinco, oito, quatro, dois, nove e dez!

Mesmo tendo errado a contagem, eu a incentivei, parabenizando-a.


Guilherme bateu palmas e Rosa deu risada. Imediatamente, Elis voltou-se
para a mãe, perguntando o porquê de ela ter rido. Rosa, perspicaz, safou-se:

— Porque a mamãe não sabe contar até dez. — Elis pareceu satisfeita
com a resposta.

***

Pouco tempo depois de todos irem dormir, Guilherme entrou sorrateiro


no quarto de visitas onde eu estava. Procurando fazer pouco barulho, deitou-
se ao meu lado, na cama de solteiro, e me abraçou.

— Eu não aguentei passar a noite inteira longe — ele sussurrou em meu


ouvido. Eu resmunguei concordando e sentindo o seu calor.

Comentei que eu não queria deixá-lo e voltar para o Mato Grosso.

156 Fique
Guilherme respondeu, em tom meigo, que logo estaria lá para me visitar.
Fiz ele prometer. Nesse instante, Rosa, na entrada do quarto, pegou-nos de
surpresa:

— Vocês dois! — ela exclamou. — Querem mais uma coberta?

— Quê? — eu e Guilherme perguntamos juntos, positivamente


desconcertados, já que esperávamos uma bronca.

— Está esfriando. — Ela entrou e abriu o guarda-roupa. — Tome. — Ela


nos entregou um edredom.

Guilherme agradeceu, ainda sem reação. Rosa pediu para que não
fizéssemos muito barulho por causa de Elis, cumprimentou-nos e voltou para
o seu quarto. Assim, aninhei-me em seus braços, sentindo um beijo de leve no
meu pescoço, e a sua mão direita sobre a minha coxa.

— Boa noite — sussurrou.

— Boa noite — respondi, dormindo quase instantaneamente.

Fique 157
Capítulo 11: Estou aqui

O
tempo passava rápido, e assim eu desejava. Logo terminaríamos
a faculdade e poderíamos decidir sobre o nosso futuro. Sem
mais distância, lado a lado. Porém, na véspera do natal daquele mesmo ano, o
penúltimo semestre de Guilherme, horas antes da ceia, algo não previsto no
meu roteiro aconteceu.

Eu estava em casa, esperando os meus pais voltarem do mercado, quando


recebi uma ligação do hospital, pedindo para que eu fosse, rapidamente, para
lá, porque o meu pai e a minha mãe haviam sofrido um acidente de carro.
Com o coração apertado e pressentindo o pior, dirigi o mais rápido que pude.
Atravessei os semáforos sem perceber. Estacionei o carro ocupando duas
vagas, o que me custou uma multa depois.

Ao entrar no hospital, informei o meu nome para a recepcionista, então


fui levado até a uma sala de espera. Fiquei a observar o ambiente enquanto
aguardava o médico. A minha respiração estava ofegante e parecia que eu
estava suportando mil quilos sobre o estômago. Mandei uma mensagem para
Guilherme.

— Amor, estou no hospital. Aconteceu algo com os meus pais.

— O que aconteceu? — Ele não tardou em responder.

— Ainda não sei, estou aguardando o médico. E se for algo grave?

— Fique calmo, amor. Dê notícias assim que puder — ele tentou me


acalmar.

Segurei o celular na mão, sem respondê-lo. Um médico entrou na sala


com um olhar complacente. Aproximou-se e colocou a mão esquerda em meu
ombro.

— Gustavo, certo?

Um tremor tomou conta de meu corpo, tive que me sentar. A expressão


do médico já me contava o que havia acontecido.

Fique 159
— Onde estão os meus pais?? — eu indaguei, não conseguindo controlar
a minha inquietação.

— Eles sofreram um acidente grave. Um motorista embriagado não


respeitou o sinal vermelho e bateu no carro de seus pais. — Ele fez uma pausa
para que eu absorvesse as suas palavras. — O carro capotou várias vezes...

— Onde eles estão? — eu insisti, sentindo as lágrimas escorrerem pelo


meu rosto. Já estava em desespero.

— Gustavo... seus pais não resistiram.

Meu celular caiu e se espatifou no chão. Ali, tudo havia mudado.

***

Todo mundo está cansado de escutar: bebida não combina com


direção. Mas não adianta estampar isso na televisão ou nos jornais
se acidentes terríveis continuam acontecendo. Famílias continuam
sendo destruídas por um motorista bêbado.

A vida já é curta o suficiente para brincarmos com a morte. Famílias


destruídas, desespero, dor, frustração. Eles partiram sem me avisar,
sem se despedirem. E o sentimento de injustiça pesa em minha
mente e faz o meu corpo transpirar de ódio.

É tão simples, óbvio e fácil de entender: não mate! Não acabe com a
vida do próximo por causa de trinta reais com o táxi. Dinheiro se luta
para conquistar. Agora, a vida é uma só.

Adeus, meus pais, eu amo vocês.

***

160 Fique
A mesa para a ceia de natal já estava arrumada: arroz, lentilha, pernil,
Chester, peru, leitoa, pavê de frango, torta e saladas. Não havia um espaço
vazio. A família de Rosa estava toda reunida, como em todos os anos. A noite
de natal era um ritual sagrado. Anualmente, no dia 24 de dezembro, à noite,
eles se encontravam e celebravam aquela data tão especial.

Os tios falavam sobre futebol perto do portão. A avó e a mãe terminavam


de arrumar os últimos detalhes da mesa. Outras duas tias fofocavam algo
sobre os maridos. As crianças corriam pelo quintal, ansiosas para abrir os
presentes. Elis, irmã de Guilherme, era a mais entusiasmada. Ela corria para
lá e para cá, brincando, fazendo maior barulho.

Guilherme estava sentado perto da mesa, observando a família. Ele


me mandou uma mensagem. Estava muito preocupado: “Oi, amor, você está
bem? Seus pais estão bem?”

— Gui, socorro! — Elis gritou, enquanto corria, fugindo das cócegas


que Rosa tentava fazer. Ele riu. Levantou-se, agarrou a irmã e a rodou no
ar. Elis soltou um grito ainda mais alto, seguido por uma gargalhada. Rosa
aproximou-se um pouco sem fôlego.

— Que menina bagunceira — Rosa brincou, tentando alcançar Elis com


uma das mãos. — Já está quase na hora de abrirmos os presentes.

— Presente! — Elis repetiu. — O papai Noel trouxe o meu?

— Eu acho que ele esqueceu — Guilherme brincou. Elis ficou séria.

— Para, filho, tadinha. Tenho a certeza de que ele trouxe, mas antes
de vermos, nós vamos comer. — Ela bateu palmas para chamar a atenção e
gritou. — Podem comer, família!

Não foi necessário avisar duas vezes. Até pareceu uma família de
taurinos. Entretanto, o genuíno do signo de touro, Guilherme, não estava com
tanta fome.

— O que foi, filho? — Rosa notou que algo estava errado.

Fique 161
— Estou preocupado com Gustavo. — Guilherme contou a história para
a mãe.

— Não se preocupe — disse ela com uma expressão séria. — Tenho a


certeza de que não é nada de mais.

— Eu estava pensando em ir visitá-lo no ano novo. O que você acha?

— Isso seria uma ótima ideia! — Rosa não tardou em responder. — Acho
que você deve ir sim, afinal, aqui não vai ter festa nenhuma.

Guilherme sorriu, a mãe sempre o surpreendia positivamente. Ele me


mandou outra mensagem: “Gu, por favor, responda... Estou preocupado.”

Depois do jantar e da sobremesa, era a hora de abrir os presentes. As


crianças estavam à beira da loucura. Não paravam de gritar e chacoalhar
as caixas embrulhas ao pé da árvore de natal. Elis leu seu nome em uma
embalagem azul. Pegou-a e rasgou ferozmente. Ela amou ao ver que era a
boneca que tinha pedido na carta que enviou ao Polo Norte.

— Mamãe, mamãe! Ele lembrou de eu sim! Eu fui uma boa menina —


Elis disse orgulhosa, mostrando o brinquedo para Rosa, enquanto Guilherme
estava com o pensamento longe dali.

***

Logo depois que recebi a notícia de que os meus pais haviam falecido,
liguei para Samira, a única cujo número de telefone eu sabia de cabeça, já
que o meu celular tinha quebrado ao cair, minutos antes. Pedi, gentilmente,
que ela avisasse Guilherme. Ela recebeu a notícia em choque, chorando ao
telefone.

— Eu não posso imaginar como você está. É véspera de natal, pelo amor
de Deus! — ela lamentou.

— Apenas ligue para o Gui, por favor, meu celular está quebrado —
instruí.

162 Fique
— Fique tranquilo, eu o avisarei. Você precisa de alguma coisa?

— Por enquanto não, estou pensando em como será o velório. vai


ser simples, temos poucos amigos. O enterro será amanhã bem cedo — eu
expliquei com as lágrimas ainda entaladas em minha garganta.

— Se você precisar de qualquer coisa... me ligue imediatamente.

Eu agradeci e encerrei a ligação.

No mesmo instante uma dor terrível tomou-me. Eu não havia


conseguido absorver tudo aquilo, parecia um sonho ruim. O meu coração
disparou, uma angústia tomou conta do meu peito, adoeci imediatamente.
Empurrei o telefone do hospital ao chão, as enfermeiras olharam-me atentas.
Eu as ignorei.

Parti em retirada pelo corredor, andando apressado, sem rumo, sem


destino. O médico falou-me algo. Não entendi, apenas continuei andando.
Uma vontade inexplicável de sumir tomou-me, eu não deveria existir! Não
era justo, eu precisava dos meus pais ao meu lado, eles eram a minha base, o
meu apoio!

Entrei no carro apressado, sem direção. Acelerei na avenida principal


da cidade. Cinquenta, sessenta, setenta... Minha visão se embaçou. Minha
vida toda passou como um filme a minha frente. Lembrei-me de minha
infância, das birras e bagunças. Da emoção de ter entrado na faculdade e
de como conheci Guilherme. Lembrei-me de quando contei aos meus pais
sobre Guilherme, de como eles ficaram felizes por eu ter encontrado alguém
importante.

Então, um barulho ensurdecedor despertou-me. Um carro buzinava


sem parar. Eu pisei fundo no freio, o carro derrapou, parando a centímetros
antes de acontecer a tragédia. O motorista xingou-me, mandou-me prestar
atenção, pois eu havia desrespeitado a sua preferencial. Sem escutá-lo, decidi
que era preciso encontrar uma forma de esquecer aquela noite desastrosa,
esquecer que os meus pais haviam partido. Voltei a acelerar o carro, agora
com um destino em vista.

Fique 163
Dirigi até um famoso bar da cidade. Respirei fundo, ainda dentro
do carro. Desejei ligar para Guilherme através de alguma rede social, eu
precisava apenas de um computador para fazer isso, mas escutar a sua voz,
naquela hora, seria aceitar que os meus pais se foram. Para ajudar, o meu
celular estava quebrado, sem sinal.

Desci do carro. Tomando coragem, caminhei até a porta do bar e entrei.


Uma música alta invadiu os meus tímpanos, um rock pesado dos anos noventa
tocava. O lugar estava cheio, luzes piscavam e me deixaram tonto. Avistei um
atendente, aproximei-me ligeiro e certo do que queria. Tive que desviar de
um rapaz que atravessou a minha frente com um copo com uma bebida rosa.
Uma dor invadiu a minha cabeça, a adrenalina tomou conta do meu corpo.

— Ouvi dizer que aqui é um ótimo lugar para fugir do mundo — Comentei,
sem saber ao certo como pedir.

— Quanto? — ele me perguntou direto.

— O suficiente para morrer — respondi sem brincar.

Ele me encarou, analisando-me, tentando decidir se eu falava a verdade


ou não, então pegou o dinheiro que eu segurava na mão e, ágil, entregou-me
um pacotinho com um pó cuja cor, naquelas luzes, era impossível distinguir.
Feito isso, virou as costas e caminhou, tranquilamente, em meio à multidão.
Fui ao bar, comprei uma cerveja, bebi em um só gole. Cambaleei até o
banheiro, tranquei-me em uma das cabines, coloquei uma parte do pó na
palma da minha mão e aspirei.

***

Quando abri meus olhos, eu estava em um quarto de hospital. Era


dia, e Guilherme encarava-me com uma expressão séria no rosto. Eu
cumprimentei-o, porém, não sei se alto o suficiente para ele escutar. O garoto
me encarava irritado e, ao mesmo tempo, aliviado.

164 Fique
— Você está aqui? — perguntei, com o tom de voz alto, pensando estar
no meio de um sonho.

— Estou, seu bobo — ele disse deixando-se relaxar, mas seu rosto estava
cansado, parecia que não dormia há dias.

— Quando você chegou?

— Há poucas horas.

— A Samira lhe contou? — perguntei com uma pontada aguda na cabeça,


percebendo que o meu estômago estava péssimo e o meu braço estava
enfaixado.

— Sim, ela me ligou. — Ele fez uma pausa, pensando no que dizer. — Eu
sinto muito.

Comecei a chorar. Eu é quem deveria manter a relação em pé,


cuidando de Guilherme, apoiando-o em suas dificuldades. Essa era a minha
responsabilidade. Agora, ali eu estava, desnorteado, sem nenhum rumo ou
esperança. Com uma dor insuportável, um peso esmagando o meu peito, com
dificuldade de respirar. Pânico. Medo. Raiva.

Nada que Guilherme dissesse, ou qualquer outra pessoa do mundo,


faria eu me sentir melhor. Deus precisaria descer ali, explicar-me o motivo,
convencer-me de que havia um propósito. Caso ao contrário, eu não queria
continuar a respirar.

Percebendo o meu estado deplorável, Guilherme tentou me acalmar,


dizendo que os preparativos para o enterro haviam sido finalizados pela
Samira e que tudo ficaria bem. Mas não, eu não queria um enterro, eu queria
abraçá-los mais uma vez.

— O que aconteceu ontem? — eu perguntei, retomando um pouco do


meu fôlego.

— Você ingeriu uma quantidade exagerada de cocaína. Alguém o


encontrou na rua e o trouxe para o hospital. Por que você fez isso, amor?

Fique 165
Deveria ter me ligado. — Guilherme estava extremamente irritado e, ao
mesmo tempo desolado e preocupado.

— Eu não sabia o que fazer. — Voltei a chorar.

Houve um silêncio, Guilherme encarava-me solidário. Disse que tudo


ficaria bem, enquanto afagava os meus cabelos.

— Você me deu um susto, Gustavo! — ele comentou, sem saber ao certo


como agir naquela situação impossível.

— Eu sei, eu deveria ter lhe ligado, mas não sabia o que dizer, eu perdi o
meu rumo... Me desculpe... — falei cabisbaixo.

— Eu sei. — dois sentimentos opostos o acometiam, ele não sabia se


ficava furioso ou se tinha compaixão.

— Preciso de você agora. — Eu desabei.

— Estou aqui — ele respondeu, envolvendo os seus braços em meu corpo,


repetindo a cada poucos segundos que estava ao meu lado.

***

É fácil dizer aos outros o que fazer. É fácil ouvir dos outros conselhos
certos. Mas não existe nenhuma fórmula para superar a dor. Ela corrói
a nossa alma, consome a nossa alegria e leva nossas esperanças.

Álcool. Drogas. A ilusão de sentir-se bem e de esquecer os problemas


consome e mata. O corpo desaparece. Tudo fica lúdico, leve. Mas do
que adianta, se depois de algumas horas a dor retorna? A culpa nos
carrega.

Assim, nada mais é o suficiente para fazer-nos melhorar. A única


solução é ir embora. É entregar-se. Fechar os olhos de uma vez por
todas.

Mas qual é o sentido disso? A vida é curta de qualquer forma. É difícil,

166 Fique
eu sei! Mas morrer não é a solução! Nunca é! Busque amigos. Busque
objetivos. Renasça e sopre as cinzas para longe. Sorria novamente.
Brinde as novas conquistas. Dedique-as ao seu passado. Viva!
Ressurja! Tenha esperanças e lute, fazendo o seu próprio destino!

***

O dia de natal não foi igual ao dos outros anos. Eu fui liberado do
hospital às duas da tarde. Guilherme, segurando a minha mão, guiou-me até
o meu carro, que estava estacionado por ali, explicando que alguns amigos o
haviam trazido até ali.

— Gui... ei... — Ele parou e me olhou. — Obrigado... de coração.

— Não tem o que agradecer. Vamos, vou levá-lo para a casa para
tomarmos um banho, depois vamos encontrar Samira para o enterro — ele
disse chateado com todas as situações que tinham surgido nas últimas vinte
e quatro horas.

— Me desculpe, tá? — implorei.

— Você não precisa se desculpar, nós vamos superar isso. Vamos...


o carro está ali — disse ele, com a voz calma, tão doce como a de costume,
apontando para o outro lado da rua.

O silêncio, durante o trajeto, foi rompido apenas por um comentário


sobre o trânsito. Guilherme estava sério e não tentou iniciar nenhuma
conversa. Eu o entendia e tentava imaginar o que se passava em sua cabeça.
É claro que ele estava bravo com o que eu havia feito... eu deveria ter ligado
para ele e ficado no hospital. Por outro lado, era indescritível o que eu estava
sentindo e, com certeza, ele entendia isso.

***

Fique 167
Às quatro horas, eu, Guilherme, Samira e alguns amigos da família
caminhávamos, lentamente, dentro do cemitério, até o local do enterro. Eu
ajudava a carregar o caixão de minha mãe, e Guilherme, do meu pai. Ele me
observava atento. Um padre acompanhava-nos com um olhar triste.

Os caixões foram colocados lado a lado, prontos para a cerimônia. A


profundidade dos túmulos, também lado a lado, assustou-me. Eu apertei a
mão de Guilherme, ele retribuiu, acariciando-me com o polegar.

— Boa tarde, irmãos e irmãs em Cristo — o padre começou. — Nessa


data, que será lembrada por toda a eternidade, viemos até aqui dizer adeus a
dois queridos membros de nossa igreja.

Eu comecei a chorar. Samira aproximou-se de nós, envolvendo o seu


braço por cima do meu pescoço, enquanto Guilherme segurava a minha mão.

— Estamos aqui — ela sussurrou, enquanto o padre continuava a falar.

— E nunca vamos ir embora — Guilherme completou.

— Está na hora de nos despedirmos desse casal, fiquem à vontade para


fazerem as suas preces — o padre instruiu.

Eu fui o primeiro a aproximar-me, tocando, simultaneamente, nos dois


caixões, já fechados, devido à gravidade do acidente.

— Adeus... mãe... pai... — cochichei de maneira que só Deus poderia


escutar.

Guilherme também fez a sua despedida, mesmo sem conhecê-los.


Samira chorou ao relembrar alguma história em voz alta, mas não o suficiente
para que todos a escutassem.

Então, após todos os poucos presentes fazerem as suas últimas orações,


o padre, com uma voz surpreendentemente doce e extremamente afinada,
começou a cantarolar uma música. Os coveiros, simultaneamente, iniciaram
o procedimento para baixarem os caixões até o fundo do túmulo.

Minutos depois, um barulho seco ecoou. Segurei, firme, a mão de


Guilherme. Deixei, mais uma vez, que a emoção tomasse conta do momento.

168 Fique
As lágrimas voltaram a escorrer pelo meu rosto. Vagarosamente, por cada
coveiro sobre um túmulo, a terra começou a ser jogada, atormentando-me.

Cada vez mais longe da superfície, mais sufocados, próximos do fim de


suas existências. A cada punhado de terra jogado o meu coração remoía-se.
Guilherme tirou a minha visão, abraçando-me e encostando a minha cabeça
em seu peito de tal forma que fui obrigado a fechar os olhos.

Senti o seu coração bater forte, a sua respiração ofegante bagunçar os


meus cabelos. Um vazio tomou-me mais uma vez. Nesse momento, senti o seu
perfume suave invadindo os meus pulmões. Uma nova chance de respirar, de
olhar para o alto e continuar. Ali, Guilherme me salvou, pela primeira vez.

***

Dizer adeus sempre machuca. Não importa se é um temporário ou


definitivo, o coração amarga-se, retorce-se, comprime-se. Quando
perdi os meus pais, um vazio enorme tomou-me, como se alguém
tirasse o único sentido de minha existência, deixando-me em um
vácuo eterno.

Sei que é natural ver os pais partirem, mas não dessa forma
prematura. Sem reação, entreguei-me à vasta solidão que a vida me
proporcionou. E tudo isso por causa de uma irresponsabilidade, de
um ato impensado.

É difícil não ter raiva de uma situação como essa. Odiar o motorista
que estava bêbado foi a saída mais evidente, para que eu pudesse
aceitar aquela tragédia. Porém, depois de pouco tempo, aquele
sentimento não era o suficiente para segurar-me de pé. Foi então
que o amor me fortaleceu. Guilherme fortaleceu-me.

Fique 169
O amor a tudo vence. Repetir isso traz-me a paz. O amor a tudo
vence. Repetir isso traz-me a esperança. O amor a tudo vence. Por
fim, repetir isso traz-me a vontade de continuar vivo.

***

Ter Guilherme ao meu lado salvou-me. Ele se dedicou a me dar toda a


atenção que conseguia. No mesmo dia em que chegamos do enterro, preparou
uma refeição enquanto eu descansava, colocou minhas roupas para lavar,
organizou a casa e, mais tarde, ainda me levou até o banho. Além disso, me
ajudou nas questões legais e burocráticas, como na transferência da herança
para minha conta bancária e a mudança de registro do apartamento e do
carro.

Foi maravilhoso tê-lo ali. Eu me sentia tão só... com Guilherme por
perto, aos poucos, eu voltei a pisar em solo firme. E o carinho e amor que
ele demonstrava era simplesmente espetacular. Todos os seus beijos
prolongados, todos os abraços apertados, dormir de conchinha. O rapaz foi
um romântico nato. Fez-me acreditar em que as coisas poderiam melhorar.
Fez-me enxergar que eu não estava sozinho.

Na véspera do ano novo, ele me fez uma surpresa. Enquanto eu dormia,


preparou, no terraço de meu prédio, um lugar para passarmos a noite e
vermos os fogos. Ele conseguiu convencer o zelador, Fagundes, a fornecer a
chave do local.

Sem saber de nada, perto das dez na noite, o indaguei:

— Meu anjo, você quer ir a algum lugar ver os fogos? Ou vamos ficar em
casa? Sinceramente... ainda estou desanimado para sair.

— Na verdade, eu quero. Mas não é longe... venha cá... — ele disse maroto,
segurando as minhas mãos e me puxando em direção à porta.

— Calma, amor, se formos sair, eu tenho que me trocar. Ainda estou de


pijama. — Eu tentei desvencilhar-me, ainda a contragosto.

170 Fique
— Você não precisa estar bem vestido para o lugar aonde nós vamos.
Confia em mim?

— Confio — cedi, deixando que ele me levasse.

Subimos as escadas, Guilherme estava ansioso. Ele tirou a chave da


porta do terraço do bolso, abriu e esperou para ver a minha reação. O lugar
estava pouco iluminado, apenas duas ou três lâmpadas acessas. Em um dos
cantos, duas cadeiras de praia e uma mesinha com uns petiscos, coberta com
uma toalha de mesa. Mais ao lado, uma barraca de camping que há anos eu
não tirava do guarda-roupa.

A vista era incrível, a cidade estava movimentada. Carros para lá e para


cá, barulhos de música, murmúrios dos bares próximos. A cada minuto, um
brilho iluminava o céu. Estava tudo perfeito. Acredito que a minha expressão
entregou-me, deixei o queixo cair enquanto olhava a tudo atentamente.

Subitamente, lembrei-me de meus pais. Uma lágrima escorreu pelo meu


rosto. Ele a enxugou com a ponta do indicador, delicadamente.

— Obrigado por tudo — eu disse. — Eu te amo muito.

— Eu também te amo. — Ele me beijou.

— Não precisava de tudo isso.

— Isso não é nada perto do que eu farei por você. Eu precisava dar um
jeito de animá-lo, nem que fosse um pouquinho.

— Obrigado, Gui, você não existe.

— Existo sim. — Beijou-me. — Viu?!

— Bobo! — brinquei.

Ele segurou em minha mão direita, guiando-me até as cadeiras. Não


resisti e acabei por sentar em seu colo, aconchegando-me em seu peito,
olhando atentamente para cada movimento da cidade. Quando alguma luz
iluminava o céu, nós sorríamos, aguardando a virada do ano.

Fique 171
De repente, um barulho surgiu lá de baixo. Os fogos subiram e
iluminaram todo o céu. Um novo ano começava. Um ano cheio de promessas
não ditas e de amor. Guilherme beijou-me demoradamente e sussurrou:

— Feliz ano novo, meu príncipe.

— Feliz ano novo. — E voltamos a admirar as cores que tomavam conta


do horizonte.

Uns vinte minutos depois, os fogos cessaram e os murmúrios foram


substituídos por música.

— É hora de levantar — ele disse, acariciando o meu cabelo. — Tenho


outra surpresa.

Guilherme beijou o canto dos meus lábios e se levantou, tirando o


celular do bolso e conectando na pequena caixa de som, que estava dentro da
barraca. Thinking out loud ecoou pelo terraço, fazendo-me sorrir.

— Dance comigo — ele convidou, estendo a mão.

Eu aceitei. Ele me puxou para o mais perto que podia, segurou em


minha cintura enquanto meus braços repousaram por cima de seus ombros.
A sua boca e o seu nariz encostavam-se em meu pescoço, o seu cheiro fez-
me esquecer tudo e entregar-me. Apertou-me contra a sua cintura, retribuí,
sorrindo e pousando uma das mãos em sua nuca, acariciando o seu cabelo.

Em um ritmo lento e contagiante, dançamos. Quando All of me começou,


ele me afastou carinhosamente. Beijou-me na testa e estendeu a mão.

— Você confia em mim? — perguntou, repetindo a cena de mais cedo.

Sem dizer nada, eu a segurei. Ele me levou até a barraca de camping,


a luz do luar era a única coisa que iluminava o local. Esperou que eu me
acomodasse, deitando ao meu lado, acariciando meus cabelos e segurando
meu quadril.

— Eu te amo — falei novamente.

— Eu também te amo.

172 Fique
Aproximou-se lentamente, sensual, tão perto ao ponto de escutar a sua
respiração. Encostou seus lábios nos meus e, involuntariamente, suspirou.
Peguei em sua nuca e deixei que nossas línguas dançassem. Guilherme
aconchegou-se mais, seu corpo encostava no meu. Ele quase implorava para
que eu o tomasse.

O desejo aumentou, o calor aumentou. Beijei-o mais intensamente,


passei a mão em seu quadril e subi, levantando a sua camiseta. Tirei-a, ele
me imitou. Ele me desejava, eu o desejava. Nossas bocas encontraram-se
novamente, sua saliva estava quente. Eu gemi quando a sua mão puxou de
leve o meu cabelo.

Guilherme colocou-me com as costas no chão, beijou o meu pescoço e,


lentamente, desceu. Desabotoou minha calça jeans, tirou-a. Passou a mão em
meu corpo. Com a boca, ele tirou a minha cueca, o mais demorado que pôde.
Então, eu o senti.

Perdi-me no tempo, ele subiu e me beijou. Senti o meu gosto misturado


ao dele, o desejo chegou ao auge. Ele tirou a calça e a cueca, beijando-me
carinhosamente. Deslizou um preservativo sobre mim, torturando-me, e se
sentou, olhando-me contorcer de prazer.

***

O sol apontou no horizonte e me acordou. Eram seis da manhã do


primeiro dia do ano. Eu levantei sem acordar Guilherme e me sentei em uma
das cadeiras de praia, olhando o nascer do sol e relembrando a perfeita noite
anterior. Pouco tempo depois, Guilherme também acordou. Sorrateiramente,
ele se deslizou até a mim e tampou meus olhos.

— Bom dia. — Sua voz era doce. — Sabe quem é? — brincou.

— Bom dia... espero que seja o amor da minha vida.

— Isso só depende de você — ele disse sério. Ficou de frente comigo,

Fique 173
beijou meus lábios e me encarou. — É sério... isso só depende de você. Você
tem que se cuidar, Gustavo. Nada de outro susto como esse, ok?!

— Ok, amor. — Ele saboreou a minha voz.

***

Para Guilherme,

Eu escolhi você. De todas as escolhas que eu poderia fazer, decidi


por você. Algumas pessoas não me entenderam muito bem. Falaram
que eu estava escolhendo errado. Avisaram-me, tentando me fazer
desistir, mas eu não os escutei.

Eu escolhi você. Com todos os seus defeitos e erros. Com aquela cara
amassada que você tem pela manhã e com a sua gargalhada feia que
solta enquanto lhe faço cócegas. E agradeço aos céus, porque você
foi a escolha certa. Você se tornou o meu anjo, meu protetor. Cuida
de mim quando estou doente. Acaricia meu cabelo nas manhãs de
domingo, fazendo-me acordar preguiçoso. Beija o canto dos meus
lábios com carinho depois de um dia exaustivo.

Eu escolhi você, e escolhi certo. Você é o meu mais novo herói


preferido. Defende-me do invisível. Protege-me dos medos bobos e
dos não tão bobos assim. Descobri que amá-lo foi a melhor coisa que
me aconteceu. Você me permitiu experimentar outro gosto, outro
mundo. Você me fez feliz. E se tudo isso durar um dia ou mil anos,
serão os melhores um dia ou mil anos de minha vida.

De Gustavo.

174 Fique
Capítulo 12: Você e eu

C
onforme a primeira semana do ano findava-se, Guilherme
continuava a dedicar-se a mim. O rapaz prometeu passar
as férias inteiras da faculdade ao meu lado, ou seja, dois meses com ele só
para mim. Mas as coisas não foram só mil maravilhas, o vazio em meu peito
continuava fazendo-me contorcer de dor. Eu chorava pelos cantos, não
conseguia dormir, com saudade dos meus pais.

Muitas vezes ele não sabia como reagir, apenas sentava-se ao meu
lado, ou acariciava o meu cabelo, mas isso já bastava. Tê-lo por perto era
incrível e indescritível. Mesmo assim, ficou claro que eu precisava de ajuda
profissional. Não estava conseguindo lidar com todas aquelas mudanças e
não queria desistir de viver, nem, muito menos, partir para as drogas.

Guilherme concordou e apoiou-me. Disse que iríamos buscar um bom


psiquiatra para que eu me consultasse. Isso não tardou a acontecer, logo
o garoto fez uma lista de alguns psiquiatras da cidade. Em uma manhã,
enquanto preparava o café para mim, depois de termos adormecido no
sofá, com ele acariciando-me, Guilherme me mostrou um papel com alguns
números de telefone:

— Fiz uma pesquisa e encontrei três bons psiquiatras aqui na cidade. O


primeiro tem uns métodos meio antigos, não acho que você iria gostar. As
outras duas parecem boas, mas é você quem escolhe, só queria facilitar — ele
concluiu, percebendo minha expressão de surpresa por sua agilidade.

— Obrigado, de verdade. Você é um amor. Vamos tentar nessa — eu disse,


apontando para o terceiro nome da lista. Todos os nomes eram seguidos
de algumas anotações e, depois de lê-las, o método com o qual mais me
identifiquei foi da Dr.ª Mariana.

— Ótimo. Depois do café, ligamos para ela — ele disse satisfeito, servindo
minha xícara com café e entregando dois pães tostados.

Fique 175
— Você vai ir comigo? — perguntei manhoso.

— É claro! — ele respondeu de imediato. — Eu nunca deixaria você


enfrentar tudo isso sozinho.

***

Você já se sentiu sem saída? Preso em um quarto escuro sem nenhum


sinal de luz? Você já teve vontade de ficar o dia todo na cama? Ou, até mesmo,
de respirar pela última vez? Nada consegue encorajá-lo a continuar. Nada faz
o dia ser bonito. Ninguém consegue convencê-lo de que a vida é boa.

A cada palavra de incentivo, parece que um buraco maior se abre no


chão. Você vê a pessoa que ama tentando animá-lo, mas você não tem reação.
Está lá, inerte aos próprios pensamentos de solidão e sofrimento. Você até
sorri, brinca, conversa, bebe, mas, lá no fundo, está tudo um desastre.

Quando lhe perguntam se você está bem... você responde que sim, finge
um meio sorriso e bola para frente. Você se arrasta em vez de andar. Você se
levanta da cama porque é obrigado a trabalhar. Você come para não morrer
de fome. Você vive em um teatro sorrindo quando há plateia, chorando
quando está sozinho.

Era assim que eu me sentia. Apesar de Guilherme estar do meu lado,


apoiando-me, eu não conseguia sair daquilo. Era difícil ver uma solução para
a morte dos meus pais. Para mim, aquela dor insuportável nunca passaria.

E como foi difícil olhar aquele rosto brilhando de esperança sem poder
retribuir. Por mais amoroso que eu fosse, estava na cara que eu estava com
problemas. O garoto foi compreensível, ajudou-me a marcar uma consulta
com Mariana e ficou do meu lado o máximo de tempo que pôde.

Porém, faltavam apenas três semanas para ele voltar a São Paulo. As
aulas começariam novamente, eu precisava me esforçar para conseguir
focar na faculdade. Já Guilherme começaria seu tão sonhado TCC. Eu estaria

176 Fique
sozinho. Portanto, precisava de me concentrar para vencer aquela fase ruim
sem a companhia constante de meu namorado.

Guilherme me contou sobre os tempos em que sofria de depressão,


de como Elis foi importante para tirá-lo daquela situação, mas eu não tinha
irmãos nem nenhum familiar próximo. Guilherme era minha única fonte de
esperança. Aquele amor, ainda não tão sólido, era a única coisa boa que me
restava.

A agenda de Mariana era cheia, e Guilherme teve que insistir muito


para conseguir a consulta. Foi preciso esperar uma desistência para ela me
encaixar.

— Você está pronto, amor? Temos que ir — ele perguntou, na manhã da


consulta.

— Estou — respondi preocupado.

— Você vai melhorar — ele me encorajou.

— Eu não quero tomar remédio, Gui.

— Eu sei, mas, se precisar, não vai ser o fim do mundo. Eu continuarei


aqui.

— Não literalmente — comentei, lembrando-me de que o período de


férias estava acabando.

— Vamos dar um jeito. Logo eu termino a faculdade e volto para o


interior. É mais perto — ele me animou.

— Mesmo assim, ainda é longe. E falta um ano...

— Uma coisa de cada vez, Gu. Vamos resolver os problemas de hoje,


amanhã pensamos nos próximos. — Ele sorriu, tranquilizando-me. Concordei.

No trajeto até o consultório da Dr.ª Mariana, nós não conversamos


muito. A clínica ficava em um bairro nobre da cidade, mas era pequena e
simples. A recepcionista atendeu-nos alegre e nos disse que Guilherme
deveria aguardar na recepção, pois não poderia entrar comigo na consulta.
Ele me beijou de leve no rosto e sussurrou:

Fique 177
— Vai ficar tudo bem.

***

A sala de Mariana era azul, muito azul. Duas poltronas apenas, também
azuis. Alguns quadros distribuídos ao longo das quatro paredes e um vaso
de flor em um dos cantos. A psiquiatra estava bem vestida, com uma camisa
preta e uma calça de grife. Seus óculos lhe concediam uma imagem séria e, de
certa forma, carrancuda.

— Bom dia — ela me cumprimentou com uma voz firme e transparecendo


confiança. — Sente-se, por favor, vamos começar.

— Bom dia. Obrigado. — Eu me sentei. Minha primeira impressão do


ambiente foi negativa. Como aquela mulher conseguia atrair tantos pacientes?

— Seu nome é Gustavo, certo? — Ela não esperou que eu respondesse. —


Prazer, meu nome é Mariana, mas pode me chamar de Mari, ou Má, ou Ana,
ou até Maria.

— São muitas variações — brinquei.

— É verdade, mas a vida é uma infinita variação de momentos, dores e


alegrias, então por que meu nome também não pode ser? — Ela sorriu pela
primeira vez. Seu sorriso era contagiante. — O que o traz até aqui, rapazinho?

— Meu namorado... digo... meus pais...

— Noto uma leve confusão. — Ela riu. — Espero que você não esteja lelé
da cuca. Recebo vários aqui — ela sussurrou a última frase, como se alguém
pudesse ouvi-la.

— Acredito que não. Deixe-me explicar melhor então... meus pais


faleceram há poucas semanas. A casa ficou vazia e estou completamente
perdido. Aquele que me acompanhou até aqui é meu namorado, ele tem ficado
a meu lado desde que recebi a notícia, mas logo também terá de ir embora
porque mora em outro estado.

178 Fique
— Ainda bem que as coisas podem mudar. Às vezes a gente se enfia
em uns lugares estranhos mesmo, mas é normal. Eu, quando perdi meu
pai, resolvi largar a faculdade e começar uma banda de rock. Apesar de ser
péssima, aquilo me ajudou por um tempo. Às vezes, é disso de que a gente
precisa.

— Eu tenho a certeza de que montar uma banda de rock não vai me


ajudar.

— Provavelmente não — ela confirmou, puxando alguma memória de


sua própria experiência.

Então falei sobre como não achava justo eles terem morrido tão jovens,
ainda mais em um acidente como aquele. Ela concordou:

— A vida não é justa, Gu. Muitos, ao perderem pessoas amadas,


envolvem-se com bebida, jogos, drogas e até mesmo prostituição. Buscamos
nos prazeres mais destrutíveis algo para nos preencher. Mas a verdade é que
sempre vai faltar uma parte. Nós buscamos tanto não sofrer, estar felizes
cem por cento do tempo, nunca chorar, ganhar muito dinheiro, ter um amor
igual ao do cinema... mas a vida continua nos dando rasteiras. A verdade é
que sempre alguma coisa vai estar errada. E tudo isso é uma grande injustiça.

— Sim. — Eu não soube o que falar, a não ser concordar. Ela continuou:

— Seus pais morrerem cedo é injusto, sim. O emprego exigir muito e


pagar pouco é injusto. Meu cabelo ser essa esponja de lavar roupa também é
injusto. Porém, entrar em uma depressão, essa é a pior das piores injustiças
que existem, pois não poder escolher o próprio estado de espírito é a pior
coisa que pode acontecer a alguém. A pessoa doente não tem mais ânimo para
levantar-se da cama, para comer um prato de comida, para beber. Ela se torna
triste independentemente do que aconteça a sua volta.

— Isso é uma verdade. — Eu dei risada, não resistindo à maneira que


Mariana falava. Por um momento achei ter notado um sotaque nordestino
em sua voz.

Fique 179
— Pense comigo, se você está indo mal na faculdade, mas está feliz,
então ok. Se sua vida amorosa está um fracasso, mas a sua autoestima está
lá em cima, ok. Se o emprego está ruim, mas você se diverte e dá risada todos
os dias, ok. Se sua conta bancária está quase zerada, mas você se diverte,
arrumando os mais estranhos passatempos, ok. A realidade é que a vida
pode estar péssima, mas podemos ser felizes mesmo com tudo isso. Eu sei
que é injusto você considerar ser feliz enquanto seus pais não estão ao seu
lado. Eu sei disso. Eu também pensei nisso e vivi isso. A minha banda de rock
fracassou não porque eu cantava mal, ela fracassou porque eu estava infeliz.

— Eu não acho injusto ser feliz, apenas não consigo aceitar que eles
partiram antes do tempo — tentei posicionar-me.

— Eu entendo, mas sempre vamos ter alguém do nosso lado que nos
ama. Então viva, saia por aí rindo à toa. Brigue contra todas as atitudes ruins.
Peça seu boy em casamento. Lute, com unhas e dentes, contra a tristeza. Você
é novo, o seu namorado é novo. Vocês podem conquistar muitas coisas boas.
Apegue-se às coisas que ainda estão vivas. Tenha guardado em seu coração
as mais boas lembranças de seus pais. Chore quando precisar, mas não deixe
isso atrapalhar o seu futuro. O futuro é maravilhoso, Gustavo, basta olharmos
para frente e sermos felizes.

Ela foi espetacular. Eu fiquei sem reação e consegui entender o motivo


de sua popularidade na cidade. Vendo que eu não conseguiria encontrar as
palavras certas, ela concluiu:

— Escolha a vida, Gu. Escolha a vida!

— Você está certa, eu quero tentar — balbuciei.

— Nós vamos tentar, porque, a partir de hoje, estou junto com você
nessa. — Ela ergueu a mão fechada para o alto, igual à capa do filme do Rocky
Balboa.

***

180 Fique
O queixo de Guilherme caiu quando contei os detalhes da consulta. O
garoto perguntou se eu estava brincando, e, depois de afirmar que não, ele
comentou que eu parecia mais confiante.

— Ela receitou algum remédio? — indagou-me curioso.

Expliquei que sim, porém era algo fraco, apenas para ajudar-me a
dormir e melhorar o meu humor. Guilherme testou-me, questionando se eu
estava bem com o fato de ter que tomar medicação. Óbvio que não era o meu
desejo, porém eu precisava daquilo. Reconhecer isso era um grande passo.

Todos nós, às vezes, precisamos de uma ajuda externa. É difícil aguentar


todos os problemas sem nenhum auxílio. E, em alguns casos, a medicação
faz-se necessária.

— Estou ótimo com isso. Eu preciso ficar bem — respondi, depois de


refletir por um momento.

— É mesmo? — Guilherme surpreendeu-se. — Parece que essa mulher é


boa mesmo. Ela lhe deu alguma injeção, ou sei lá?

— Não, ela me deu esperança e alguém por quem lutar.

— Alguém por quem lutar?

— Você. — Eu sorri maroto.

***

— Vou sentir a sua falta — sussurrei em seu ouvido um pouco antes de


Guilherme entrar na área de embarque.

— Eu também vou — ele choramingou. — Por favor, Gu, se cuide.

— Pode deixar, meu anjo. Em breve estarei indo a São Paulo lhe fazer
uma visita. Obrigado por tudo. — Eu não o soltava do meu abraço.

— Se precisar de qualquer coisa, me ligue imediatamente.

Fique 181
Uma voz metálica anunciou a última chamada para embarque do voo de
Cuiabá para São Paulo pelo portão D. Guilherme cochichou que era o seu voo,
e estava na hora de ir embora. Eu concordei, triste.

— Eu te amo, Gui.

— Eu te amo, Gu.

Guilherme me beijou, afastando-se. Antes de entrar no portão, despediu-


se com um aceno e abriu um sorriso reconfortante. Logo ele estaria de volta.
Ele precisava voltar...

***

A vida é injusta, sim! Mas isso não pode ser motivo suficiente para
nos desanimar. Coisas boas também acontecem. O sol nasce todas
as manhãs, fornecendo uma chance para um recomeço, para uma
nova conquista. Ainda que as coisas não deem certo, no outro dia ele
estará lá, de novo, pronto para iluminar a terra.

A morte é injusta, sim! Mas não deve fazer com que a esperança
de um futuro melhor desapareça. O legado é passado de geração
para geração. Os ensinamentos, as coisas boas, o amor! Ele sempre
prevalece. Não importa quanto tempo se passe, o amor sempre
estará lá.

O preconceito é injusto! Nada justifica tamanha maldade. Ninguém


nasce preconceituoso, mas se torna. E não há nada mais cruel do
que uma injustiça criada pelo próprio homem. De qualquer forma,
o amor continua de pé.

A natureza é uma diversidade colorida, por que o ser humano não


pode seguir tal tendência? São as diferenças que nos fazem fortes.

***

182 Fique
A saudade é uma coisa engraçada. Existem horas em que nós sorrimos
ao nos lembrarmos de algo que nos faz falta, como um abraço carinhoso no
final do filme, ou um beijo no final de uma transa. Mas existem horas em que
a saudade dói. Ela machuca quando nos faz lembrar que as coisas boas podem
não acontecer novamente.

Sabe aquele ditado que tantas pessoas falam? Minha cantora predileta
canta uma música sobre isso, sobre aproveitar cada momento bom porque
nunca sabemos quando a tragédia vai chegar. Alegro-me em dizer que
nenhuma outra tragédia aconteceu por enquanto, porém a saudade que eu
sentia dos meus pais era gigantesca, eu nunca os abraçaria novamente.

Eu lutava, todos os dias, contra todos os problemas que a vida jogava na


minha cara. Tentava, de todas as formas, manter-me lúcido. Tomava meus
comprimidos corretamente. Para tudo isso, foi a saudade o combustível de
toda a minha força, porque em todas as vezes em que eu pensava em ceder, eu
me lembrava do beijo, e da voz, e do cheiro de Guilherme.

Ele continuava a me salvar e nem ao menos sabia disso. Aquele aperto


no coração, o medo de não o ver novamente, de perdê-lo... tudo isso me fez
lutar contra o passado e pensar sobre o futuro. Amadureci. Amadureci a
ideia de estar sem meus pais, lembrei-me dos momentos bons e deixei que a
saudade cicatrizasse minhas feridas.

Não vou mentir... eu pensava diariamente na sensação da droga


invadindo o meu corpo, mas imediatamente eu sentia o gosto dos lábios dele
nos meus. É clichê, eu sei, e foi o clichê do amor que me salvou. Foi entregar-
me a isso que me fez feliz e me deu esperanças para continuar.

Guilherme mantinha as suas promessas. Ele me ligava todos os dias,


trocávamos mensagens, fotos, vídeos, nós sempre tínhamos algum fato
interessante do dia a dia para mostrar. Nós mantemos a relação acesa,
mesmo longe um do outro. A distância me fez sofrer de saudade, mas sofrer
de saudade foi o que me fez ter forças para não cair.

Fique 183
A vida tem uma forma engraçada de nos mostrar o quanto o amor é
importante. Ela afasta as pessoas de que gostamos e nos obriga a enxergar
que, sem elas, o resto não vale nada. Porque essa foi a minha visão. Do que
adiantaria estar formado sem Guilherme ao meu lado? Do que adiantaria
ganhar dinheiro se eu não fizesse parte de sua vida?

Por mais que essa visão pareça destrutiva, ela me manteve de pé. O amor
me fez olhar além da dor da perda, além de qualquer obstáculo, e me mostrou
o futuro. Futuro este que eu já desenhava. Imaginei nosso casamento, nossos
filhos correndo pela casa e nosso cachorro latindo no quintal.

O amor forneceu-me esperança. A esperança de um futuro melhor,


sem rancor ou ódio. Sem preconceito. Um futuro sem que as pessoas fossem
julgadas pela cor da pele ou pela orientação sexual. Sim, o amor fez-me
enxergar a vida com outros olhos. E toda essa mudança de perspectiva me fez
querer continuar respirando.

***

Noemi ficou chocada ao escutar a história que Guilherme contava. A


morte de meus pais, a droga, o hospital e o tempo em que cuidou de mim. Ela
escutou atentamente, emocionando-se na parte em que Guilherme narrou o
acidente, e sorrindo ao ouvi-lo dizer da surpresa que me fez no terraço do
prédio.

Quando teve a oportunidade de falar, Noemi lamentou, desejou as suas


condolências e ofereceu seu apoio. Em poucas semanas coisas demais haviam
acontecido. Ninguém está preparado para tantas mudanças repentinas,
mas nenhuma mudança é pior que o falecimento inesperado de pessoas tão
próximas.

Guilherme tentou amenizar o clima pesado do ambiente e brincou,


dizendo que já tinha falado muito e que era a vez de Noemi fazer a “sua
mágica”. A psicóloga riu, saboreando a mudança de humor.

184 Fique
— Olha, Gui, conhecendo as tantas histórias que você já me contou,
torna-se impossível que não se sinta mal com tudo isso.

Ele balançou a cabeça, concordando. Ela continuou:

— Mas uma coisa é certa: vocês são fofos juntos, um completa o outro.

Guilherme repetiu o movimento, falando que concordava sem dúvidas


com aquela afirmação. Noemi animou-se e disse que queria ser convidada
para o casamento. O garoto sorriu e concordou.

— E agora? Qual é o próximo passo? — Ela se aprumou na cadeira.

— Próximo passo?

— Sim, o que você espera do futuro?

— Do futuro? — ele repetiu parecendo um gravador.

— Sim, do futuro. — Ela coçou a cabeça um pouco decepcionada. — Vocês


vão morar na mesma cidade depois que terminarem a faculdade?

Essa era uma ótima pergunta e eu adoraria saber a resposta, mas Noemi
exagerou ao pressioná-lo dessa forma. Guilherme fechou o semblante e
confessou que não havíamos conversado sobre isso, indagando-a se não era
muito cedo para pensar nesse tipo de coisa.

É óbvio que a psicóloga retomou o controle da situação e tentou


amenizar a pergunta. Evidentemente o tempo que nos conhecíamos era
favorável. Três anos conversando diariamente. Era o suficiente para saber se
queríamos algo a mais ou não. Porém, a distância e toda a questão familiar de
Guilherme atrapalhava a situação. Outra questão... se Guilherme conseguisse
um emprego no Mato Grosso as coisas ficariam mais fáceis. Porém, eu não sei
como faria para me manter em uma cidade cheia de lembranças por todos os
lados. Eu não queria viver na sombra dos meus pais e não queria abandonar a
faculdade faltando seis meses para seu término.

De qualquer forma, Noemi percebeu a pressão desnecessária e recuou,


dizendo que cada coisa tinha o seu tempo e que na hora certa tudo se
encaixaria. Típico. Eu me recuperaria e conseguiríamos resolver toda aquela

Fique 185
situação, segundo ela. Guilherme contentou-se em concordar e, depois de
refletir por alguns segundos, manifestou-se:

— Posso lhe fazer uma pergunta?

— Fique à vontade — ela afirmou, provavelmente fazendo um gesto com


a mão para que ele prosseguisse.

— Por que você torce tanto por nós dois?

Noemi corou. Pela primeira vez em todas aquelas sessões, Guilherme


viu-a corar. O garoto disse que Noemi discursou por vários minutos
argumentando o porquê do nosso amor motivá-la tanto. O que eu imagino
que ela respondeu, ou ao menos o que eu responderia se fosse ela, é:

— A sua história com Gustavo traz-me a esperança de um mundo mais


belo. São tantas histórias de assassinatos, roubos, catástrofes, tantas coisas
ruins... o mundo esqueceu-se de que a coisa mais bela que existe é o amor. É
fácil acordar pela manhã e assistir às notícias de tragédias enquanto se toma
o café, mas se tornou difícil acordar e pronunciar um “eu te amo” à sua esposa
ou ao seu filho.

Até pararia alguns instantes, fingindo refletir como um bom profissional.


Pausando as falas para não ficar cansativo ao paciente, então retomaria:

— As tragédias tornaram-se corriqueiras. Vemos e ouvimos coisas sobre


coisas ruins o tempo todo. Mortes, agressões, roubos... são inúmeras. O amor
até parece tóxico, as pessoas não falam mais sobre ele. Amar é fora de moda.
Amar é brega. Amar é burrice. É anormal. É inaceitável. É inaceitável largar
a faculdade por amor. É inaceitável trocar o dinheiro por amor. É inaceitável
amar uma pessoa tão rápido. O homem criou tantos empecilhos para amar...
são tantos tabus, tantas regras... e não digo isso apenas sobre o amor de um
casal, mas sobre o amor à vida também.

Posso imaginar Guilherme resmungando, ou concordando com a


cabeça, ou até mesmo aplaudindo de pé, dependendo de como estivesse seu
estado de humor. Eu continuaria:

186 Fique
— Poucos buscam fazer o que realmente amam. Porque música não
dá dinheiro, porque escrever é perda de tempo. A sociedade exige que você
seja perfeito, ganhe dinheiro, seja o melhor, mas o que você ama de verdade?
Hoje, o que move o mundo, é a ganância e a soberba, mas o que deveria mover
é o amor. É por isso que eu torço tanto por você e pelo Gustavo. Vocês dois
são o mais puro exemplo de que a vida não é feita só de dinheiro, ou coisas,
ou conquistas. A vida é feita de pessoas, momentos especiais, um toque, um
abraço, um carinho, uma palavra de incentivo. A vida é, nada mais nada
menos, que o próprio amor em sua forma mais incorruptível.

Fique 187
Capítulo 13: Uma parte
sempre vai faltar

Q
uatro meses haviam se passado desde que os meus pais tinham
falecido. Semanalmente, eu ia ao consultório de Mariana
conversar sobre o assunto. Aos poucos, o sentimento de revolta foi sendo
dissipado, dando lugar para a saudade e o vazio. No fundo, o meu coração
ainda não entendia o motivo de tamanha distância, era estranho imaginar
que nunca os veria novamente.

De qualquer forma, viver sem meus pais mudou a minha rotina e até
afetou a minha saúde, de várias formas. Eu não estava alimentando-me de
forma correta, perdi quase dez quilos. Parei as atividades físicas e diminuí as
horas de estudo, tentando conseguir tempo para trabalhar e cuidar da casa,
afinal, o dinheiro da herança não duraria para sempre.

A minha primeira reação foi desabafar com Guilherme e, depois, com


Mariana. Guilherme sempre tentava incentivar-me, porém, em muitos
momentos, não sabia o que dizer e se sentia um pouco desconfortável
e incomodado com a situação. Não o culpo por isso, ele era arquiteto, não
psicólogo, e tentava, da melhor forma, fazer-me recuperar. Já Mariana
sempre tinha as palavras certas na ponta da língua:

— Você está se saindo bem até aqui — ela me incentivou. — Já atendi


a muitos casos parecidos e posso lhe garantir, você ainda está gordinho
comparado a outros — ela tentou descontrair, sempre profissional e
gesticulando as mãos.

— Eu me sinto mal por ter parado de me exercitar. E as minhas horas de


estudo, então, nem se fale, cortei pela metade — lamentei.

— Em contrapartida, já está trabalhando e adquirindo experiência para


o futuro — ela completou.

— É só um estágio, estou apenas assistindo a uma ou outra consulta.

Fique 189
— Você está vendo apenas o lado negativo das coisas! Tente se focar no
que há de bom. Eu sei que o mundo perdeu um pouco do brilho, mas ainda
existem pessoas que o amam e estão por perto. Samira e Guilherme, por
exemplo — Mariana explicou.

— Os dois estão me ajudando bastante. Ontem, Samira foi a minha casa


e levou um jogo para distrair-me. E Guilherme... ah! Ele tenta de tudo para me
animar — eu suspirei, lembrando-me de seu abraço.

— Você sente falta dele, por morar longe?

— Essa é a minha maior dificuldade — confessei.

— E como vocês vão resolver isso após a colação? — ela continuou a me


fazer pensar.

— Eu ainda não sei, recebi uma proposta para fazer mestrado aqui no
Mato Grosso.

— Isso é uma excelente notícia! — ela comemorou.

— Depende do ponto de vista. Caso eu aceite, não sei como eu e


Guilherme vamos continuar distantes por mais dois ou três anos — eu fiquei,
subitamente, triste.

Mariana me perguntou como Guilherme tinha reagido àquela notícia.


Revelei que ainda não tinha contado, estava sem coragem.

— Entendo, tente conversar, quem sabe vocês conseguem encontrar


uma boa solução — ela continuou positiva.

— Eu não quero ter que decidir entre a minha carreira e continuar com
Guilherme! — Falei, fazendo uma carranca.

— Talvez você não precise — Mariana tentou.

— A vida é isso: escolhas e consequências.

— Parece que o estágio está surtindo algum efeito — ela brincou,


debochando, amorosamente, de minha reflexão.

190 Fique
***

Eu e Guilherme tentávamos não esfriar o nosso relacionamento,


buscando sempre conversar sobre tudo. A cada poucas semanas, nós nos
encontrávamos, ora em São Paulo ora no Mato Grosso. Confesso que as coisas
não estavam perfeitas, mas estávamos amadurecendo e, aos poucos, subindo
os degraus para atingir um relacionamento sólido.

Foi, então, que eu resolvi contar ao garoto a proposta do mestrado,


causando-lhe uma surpresa e desestabilizando o equilíbrio do namoro.
Guilherme explodiu, perguntando por quanto tempo eu estava escondendo
aquilo. Falei, entrando na defensiva, que há apenas algumas semanas.

— E por que não me falou antes?? — ele gritou.

— Desculpe, amor, eu estava com receio. É na área que os meus pais


tanto sonharam, estou feliz por ter essa oportunidade.

— Aparentemente você já está decidido! Não temos o que conversar,


então — Guilherme cortou a minha empolgação e confirmou o que eu mais
temia.

— Não! Não estou decidido, eu queria conversar com você, para


encontrarmos uma boa solução — tentei o método de Mariana, fracassando.

— Uma boa solução é você falar comigo sobre as decisões importantes.


Se quisermos levar esse relacionamento para a frente, temos que confiar um
no outro e conversar sobre os assuntos importantes.

— Eu sei! E estou tentando fazer isso agora — rebati. — Eu quero que


você me ajude a decidir.

— Então por que demorou tanto para me contar? — insistiu na mesma


pergunta.

— Eu estava com medo da sua reação — mantive a mesma resposta.

— Então você realmente está decidido!

Fique 191
— Não estou, mas confesso que eu gostaria muito de fazer esse mestrado.

— Faça! Eu não vou decidir isso por você! — ele disse implacável.

— Não é assim, você ainda pode vir morar comigo — eu lancei a proposta,
na esperança de que a resposta fosse positiva.

— Não é bem assim mesmo, tem a Elis e a minha mãe... elas precisam de
mim.

— Eu também preciso de você, achei que você ficaria feliz com essa
notícia — entristeci-me.

— Como eu posso ficar feliz se vamos continuar longe?

— Você pode se mudar para cá, vamos dar um jeito. — Eu quase chorava.

— Eu não posso, Gustavo, eu tenho família no interior de São Paulo,


minha irmã é pequena e minha mãe está ficando velha, elas precisam de mim
— ele se irritou.

— Esse é o meu sonho... — balbuciei com a voz rouca, internalizando o


desejo de meus pais, que insistiam em que eu deveria ser mestre e doutor
algum dia.

— Não se faça de vítima! Meus pais estão vivos e precisam de mim. Você
não tem nada aí, só esse sonho estúpido... É... eu não quis dizer isso... — ele
notou o erro em sua fala e tentou amenizar.

Meu coração bateu mais rápido e uma tristeza súbita e profunda invadiu-
me. Desliguei o telefone sem dar uma resposta. Em menos de um minuto, meu
celular vibrou: Guilherme. E assim se seguiu pelas próximas horas.

Guilherme exaltou-se e complicou a situação. Era impossível conversar


e chegar a um consenso, para ele o meu mestrado nada tinha de valor. É claro
que eu entendia o seu lado, Rosa e Elis precisavam de ajuda e contavam com
Guilherme, mas nós podíamos conversar... chegar a um meio termo, ninguém
precisava ganhar ou perder.

Sei que pensar em um meio termo é difícil nessa situação, porque


acarretaria uma eterna discussão: família de Guilherme ou meu mestrado?

192 Fique
No fim, ninguém ficaria satisfeito e acabaria por desgastar-se o nosso
relacionamento. Alguém teria que decidir o que fazer e, de alguma maneira,
eu sabia que a escolha seria minha.

Assim, deparei-me com uma dualidade: amor ou agradar meus pais? Se


eu escolhesse pelo mestrado, provavelmente perderia Guilherme, já que não
existia a especialização que eu queria na cidade em que seus pais moravam.
Se eu escolhesse mudar-me para o interior de São Paulo com o garoto, eu
perderia o mestrado, e, inevitavelmente, não realizaria o sonho de meus pais.
Eu estava em um beco sem saída.

O garoto era privilegiado. Ter todo aquele amor por perto era quase
injusto. Sua família tinha suas brigas, é claro, mas, no geral, era unida e,
de certa forma, abençoada por Deus. Isso fez-me tremer, imaginando se
Guilherme tivesse que escolher entre mim e a família. Não havia dúvidas de
que ele optaria pela segunda opção.

Por outro ângulo, caso eu fosse para o interior de São Paulo, seria
possível eu me adaptar àquele mundo tão amoroso e feliz no qual o menino
vivia? Então, pela primeira vez, desde que eu tinha recebido a proposta do
mestrado, eu me senti egoísta e injustiçado.

Senti-me egoísta por querer roubar aquela relação que Guilherme tinha
com a mãe e com a irmã e com todo o restante da família. Porém, senti-me
injustiçado por ele ter tanto e eu não ter nada. Talvez até tenha sentido um
pouco de ciúmes... sim, senti ciúmes. A vida que eu tanto implorei a Deus
estava ali, mas não era minha. Guilherme esbanjava-se daquele amor de que
eu necessitava.

Mas seria tão errado eu seguir o sonho de meus pais de me tornar


mestre? Mas eu conseguiria viver longe dele? O conflito era gigantesco. Não,
não era errado eu aceitar a proposta para fazer o mestrado, mas também não
era errado largar o mestrado para viver com Guilherme.

***

Fique 193
Enquanto isso, Guilherme já começava a despedir-se dos amigos. Sua
formatura aproximava-se, então ele resolveu almoçar com o Kléber, que,
ironicamente, também tinha uma decisão para tomar: contar ou não para os
pais que era bissexual. Guilherme o incentivou, dizendo que deveria contar,
pois seria uma sensação incrível de liberdade.

— Nem todos os pais são tão compreensíveis como os seus, Gui — Kléber
rebateu. — Eu queria apresentar meu namorado para eles. Mas eu sinto que
ou escondo isso pelo resto da minha vida ou estrago minha relação com eles.

— E o que te faria mais falta? — Guilherme perguntou, tentando ajudar.

— As duas coisas são igualmente importantes. O meu relacionamento


com os meus pais é uma das coisas pelas qual eu mais prezo na vida, mas sinto
que eu ficarei preso e acabarei perdendo o meu namorado por causa disso.
Não sei o que faço, Gui.

— O que o seu coração diz?

— Meu coração? — Kléber riu curioso com o rumo da conversa.


Guilherme reforçou a pergunta:

— Sim, seu coração. O que ele diz?

— Ele diz que eu não posso perder o amor da minha vida por causa de
um possível preconceito que minha mãe pode manifestar.

— Então está decidido, fale com a sua mãe e conte a verdade.

— Mas eu posso perder as coisas boas do nosso relacionamento — ele


disse com medo.

— Mas você pode perder o seu namorado — Guilherme completou.

— De um jeito ou de outro, eu vou perder algo — Kléber suspirou.

— Uma parte sempre vai faltar. Não tem jeito. O importante é você sair
de cima do muro e decidir, porque você corre o risco de sua mãe descobrir o
seu namoro por outros métodos, então você pode perder as duas coisas.

194 Fique
— Você tem razão. Acho que vou ter que aprender a lidar com a falta de
algo. Mas já sei o que vou escolher: o amor. Dane-se o preconceito — Kléber
decidiu.

— Ótima escolha. — Guilherme sorriu, levantando o copo de refrigerante


e brindando com o amigo.

***

A despedida mais difícil foi a de Noemi. Guilherme sentiria muito


a sua falta, já que foi ela que o ajudou a superar todos os desafios até ali,
contribuindo para o seu amadurecimento e crescimento pessoal.

— Você vai começar uma nova fase, Gui. Estou muito feliz por você estar
se formando. Vida nova! — Ela bradou, sorrindo.

— Vou deixar tantas coisas para trás, não sei se estou pronto para ir
embora.

— Isso é bom. Isso quer dizer que valeu a pena ter vindo para cá. Você
fez amigos, construiu uma vida, viveu paixões... é normal sentir-se inseguro
com a mudança.

— E se eu sentir falta daqui? E se eu não me sentir completo em São


Paulo, mesmo estando com a minha mãe? Todos os meus amigos são daqui...
a minha vida... todos os lugares que conheci, todas as risadas que dei. Tudo
vai ficar aqui.

— Não, tudo vai ficar aqui — Noemi falou, apontando para o coração e,
depois, para a cabeça. — Você vai levar tudo com você, todas as lembranças,
risadas e lágrimas... tudo vai estar com você para sempre.

— Eu estou com medo de recomeçar em outro lugar. Por mais que seja
perto de minha família, eu não queria abandonar tudo o que eu vivi aqui. — Os
olhos de Guilherme encheram-se de lágrimas.

Fique 195
— Mais uma vez... Você não vai abandonar nada, Gui. Você vai continuar
crescendo e, dependendo de suas atitudes, conquistando coisas boas. Perto
de sua mãe e de Elis, você vai ter a oportunidade de experimentar mais de
perto esse amor maternal, agora mais maduro e mais certo de quem você é.

— Eu me assumi aqui, eu descobri quem eu era aqui! Como


eu vou esquecer tudo isso? Aqui foi o começo de minha vida
— Guilherme insistiu, deixando as lágrimas rolarem pelo rosto.
— Você não vai esquecer de nada — Noemi reafirmou
apaziguadora. — O homem que você se tornou aqui vai guiá-lo
pelo resto da sua vida. A pessoa carinhosa e preocupada com
o próximo que eu conheci é a mesma que vai fazer a diferença
no interior de São Paulo. A sua vida não vai acabar, você só vai
trocar de livro, mas a sua essência será a mesma, apenas em um
lugar diferente.
— Será que eu estou pronto para isso?
— Ninguém nunca está pronto para nada. Mas a vida é,
entre outras várias coisas, isso: desafios novos. O mundo está
aí, vá e o enfrente, deixe sua marca.
— Minha marca?
— Já falamos muito sobre isso. Marque o coração das
pessoas com lembranças boas, sorrisos bobos e conversas
agradáveis. Ainda que não conquistemos o mundo todo... o
importante é estarmos felizes, mas encontrar a felicidade não é
uma tarefa tão difícil quanto parece. — Noemi levantou-se. — É
a hora, rapaz.
Os dois abraçaram-se demoradamente. O menino deixou
as lágrimas escorrerem, Noemi faria falta. A psicóloga também
se emocionou.
— Até logo! Eu vou sentir saudades — ela disse, enxugando as lágrimas.

196 Fique
— Obrigado por tudo, Noemi. Obrigado por me ajudar a ser feliz — ele
soluçou.

— Então, é isso! A gente se despede de uns, mas conhece outros. E em


cada pessoa deixamos nossa marca, a nossa história.

— Obrigado por fazer parte de minha história — Guilherme disse.

— Obrigado por me permitir isso — ela retribuiu.

Guilherme abraçou-a mais uma vez, despedindo-se, definitivamente, de


uma das pessoas mais importantes de sua vida.

***

De Gustavo,

Noemi, Fernando, Adriana, Mariana, Néri. Seja lá qual for seu nome,
obrigado por nos ajudar e dar a oportunidade para enxergarmos a
vida com um olhar alegre. Devemos a você muito do que temos hoje.

Tenho certeza de que todas as recordações das consultas ficarão para


sempre em nossa memória. Acolheu-nos, ajudou-nos a enfrentar
meus piores medos e a vencer os piores pesadelos.

Se hoje somos confiantes, devemos a você. Se hoje somos felizes,


uma grande disso parte devemos a você. Obrigado por nos mostrar
que a vida é leve e bela. Obrigado por nos ajudar a levantar da mais
profunda escuridão em que já estivemos.

Você nos salvou. Resgatou-nos no último segundo. Na última


oportunidade. Por pouco, eu não a conheci. Por pouco, eu não
conheci mais ninguém. Mas você foi meu anjo da guarda e me puxou
para luz.

A você, dedico este texto. A você, dedico parte de meu livro e minha
memória.

Para Noemi.

Fique 197
Capítulo 14: Fique

C
oloquei a minha melhor roupa. Rosa vestiu o melhor vestido.
Elis parecia uma princesa. E Guilherme estava maravilhoso, era
a primeira vez que eu o via de social. A gravata azul marinho se destacava e
combinava com o menino. Ele parecia um galã de novela pronto para salvar o
primeiro mocinho que aparecesse a sua frente.

— Espero que o mocinho seja eu — sussurrei no seu ouvido. Ele não


entendeu a piada e apenas sorriu.

Elis foi a primeira a entrar no carro, primeiro rumo à colação e,


depois, à festa. Ela estava empolgada com a formatura do irmão, porque
aquilo significava que Guilherme estava voltando para a casa. Rosa e Elis
sentaram-se atrás. Guilherme dirigiu. E eu, no banco de passageiro da frente,
admirava-o. O novo arquiteto mais gato que alguém poderia conhecer, o seu
olhar cruzou com o meu e ele corou levemente.

— O que foi, bobo? Você não parou de me encarar desde que saímos de
casa — Guilherme comentou.

— Ele te ama, Guilherme. Pare de ser sonso, todos te amamos e estamos


orgulhosos de você — Rosa interveio amorosa, deixando-me constrangido.

— Eu te amo — Elis gritou aos ventos. Guilherme emocionou-se e sorriu.

— Eu também te amo — disse, pela primeira vez na frente de Rosa.

— Eu também amo vocês, obrigado por fazerem parte desse momento


tão especial para mim. — Uma lágrima escorreu em sua bochecha.

— Não chore, amor. Pelo menos, ainda não. Vai estragar a make —
brinquei, passando, gentilmente, o indicador no rosto dele, acariciando-o. Ele
corou ainda mais.

Não demorou muito para chegarmos ao anfiteatro onde seria a


cerimônia. Devido à distância de sua cidade natal, apenas Rodrigo, Joana

Fique 199
e Pedro também foram prestigiá-lo. Os três já aguardavam sentados na
segunda fileira de poltronas.

Quando avistaram Guilherme se aproximando, todos desejaram


cumprimentá-lo. Ele, envergonhado, nesse momento, apertava a minha mão
com mais força que o de costume. Rodrigo abraçou-me rapidamente com um
sorriso amarelo. Joana foi a mais incisiva, apertou-me de forma um pouco
exagerada, quase me fazendo largar a mão de Guilherme. Pedro foi formal,
com um aperto de mão firme. Por um breve momento eu me senti parte
integrante daquela família.

A colação de grau de Guilherme foi um dos momentos mais emocionantes


que eu já havia presenciado. A beca, que lhe cobria todo o corpo, mostrava ao
mundo uma pessoa diferente daquela da adolescência. Guilherme havia se
tornado um homem, orgulhoso e confiante.

Durante os cinco longos anos em que estava na universidade, ele


aprendeu, entre outras coisas, que a sua orientação sexual não era uma
escolha nem muito menos mudaria. Ele se tornou corajoso e assumiu a
responsabilidade imposta, encarando os desafios de cabeça erguida, não
deixando um rótulo lhe dizer o que fazer ou não fazer.

Sentado, esperando o início da formatura, vendo-o feliz, dando risada


com os amigos, eu pude perceber, mais uma vez, o privilégio de tê-lo para
mim. O amor não deve ser subestimado, ele é essencial para a vida. Não me
canso de dizer que foi ele quem me salvou e me proporcionou uma segunda
oportunidade de viver.

Sei que tudo isso parece exagero e um baita de um clichê. Talvez você já
tenha lido algo parecido em outros livros de romances, quem sabe com um
casal heterossexual protagonizando. Mas histórias de amor são assim mesmo,
sempre únicas e idênticas com seus únicos e idênticos desafios, suspenses,
escolhas e felicidades.

Não existe um amor fácil, amar exige alguns sacrifícios diários. De


coisas simples, como deitar do lado da cama do qual você não gosta, para

200 Fique
agradar o companheiro, a complexas, como ajudar a pessoa que você ama a
se recuperar de uma depressão. Não pense, como eu já pensei, que escolher o
amor em detrimento de outras coisas é errado, porque não é!

É o amor que deve reger a sociedade. Imagine um lugar em que não


existisse ódio, em que as pessoas respeitassem e fossem respeitadas. É esse o
objetivo maior de nossas vidas: paz! Então, chame-me de louco e de sonhador,
mas não atrapalhe as minhas esperanças de viver em um mundo melhor.

De todas as expectativas que sondam a minha existência, a maior delas é


o fim do preconceito. Vendo Guilherme, um garoto gay, nascido em ambiente
extremamente religioso, advertido por um suposto Deus cristão irracional
e rancoroso, formar-se em pé, feliz, renova a minha fé. Fé em um Deus
misericordioso e amoroso, que respeita as diferenças que Ele mesmo criou.

Assisti a toda a cerimônia com o coração radiante e com os pensamentos


soltos. Depois de todas as solenidades, o mestre de cerimônias concluiu,
para o orgulho de todos que acompanharam a luta do garoto até ali, todos
os problemas e guerras, a homossexualidade, a perda do padrasto, as
dificuldades com o pai...

— Declaro encerrada esta cerimônia de colação de grau. Parabéns,


Arquitetos! — O cerimonialista encerrou.

O público colocou-se de pé, aplaudindo os formandos. Rosa não


conseguiu controlar a emoção e deixou as lágrimas escorrerem pelo rosto.
Guilherme gritou algo incompreensível, levantando o braço direito, fazendo-
me lembrar, mais uma vez, a cena de Rocky Balboa. O meu homem estava
crescendo!

***

No salão, com todos já acomodados na mesma mesa, Rosa foi a primeira


a se manifestar:

Fique 201
— Eu estou tão orgulhosa por você, Gui. Não é, filha?

— O que, mamãe?

— Não é verdade que nós estamos felizes por causa do seu irmão? —
Rosa explicou.

— Sim, mamãe. Eu estou muito feliz e gosto muito do meu irmão. — Elis
pulou da cadeira e correu até Guilherme, abraçando-o.

— Eu preciso conversar um negócio com você — eu sussurrei em seu


ouvido.

— Não me diga que é sobre o mestrado! — Ele soltou a irmã e fechou o


semblante para mim. — Hoje eu quero me divertir, não quero pensar nisso.

— É sobre o mestrado sim, mas...

— Formandos, por favor, compareçam à área de encontro para darmos


início ao nosso baile de formatura — alguém anunciou no microfone.

— É a minha deixa. — Guilherme levantou-se sem me olhar.

— Amor... — tentei.

— Todos os formandos, compareçam à área de encontro — a voz repetiu,


fazendo com que Guilherme se apressasse sem me dar atenção.

— Ele não é uma graça? — perguntou Rosa retoricamente.

— Ele é — eu balbuciei para mim mesmo, consternado.

— Com licença, eu posso conversar com você? — Joana me perguntou


parada em pé ao lado da minha cadeira.

— Pode sim! — eu respondi entusiasmado.

— Em particular — ela pediu. Rosa observou-nos preocupada, mas não


se pronunciou.

— Ok — concordei.

Levantei-me da cadeira e a segui. Andamos alguns passos até


uma extremidade do salão. Os formandos estavam no palco, recebendo
homenagens.

202 Fique
— Vou ser direta com você — ela começou encarando-me enfurecida. —
Eu não vou deixar que o Guilherme perca a vida dele por causa de você.

— Oi?! — Encarei-a incrédulo.

— Isso mesmo, ele é um garoto espetacular, merece se casar com


uma mulher bonita que vai ajudá-lo a crescer. Ele não pode ceder para essa
historinha de ser gay. Depois que ele te conheceu, as coisas pioraram. Eu
tinha tudo sobre controle.

— Oi?! — Espantei-me, chocado e sem reação.

— Você está surdo ou o quê?! Você vai ficar no Mato Grosso e fazer o seu
mestrado longe do Guilherme. Termine com ele, imediatamente!

— Você não pode me obrigar a fazer isso... Joana... eu... o Guilherme...


eu... eu o amo...

— Não importa, eu não vou deixar que ele destrua a vida dele por causa
de você, seu veadinho abusado — ela me xingou.

— Ele é gay, Joana, nunca vai querer ficar com uma mulher — tentei
rebater.

— Então, que fique solteiro, mas não vou deixá-lo perder oportunidades
de trabalho e de ganhar dinheiro por causa dessa escolha terrível.

— Mas... — eu tentei falar, mas estava estupefato.

— Não tem mais. E eu vou ajudá-lo com esse término, já pensei em tudo
— ela disse, apontando para a entrada do salão, por onde um moço acabara
de entrar.

— Quem é esse? — eu perguntei.

— É um velho conhecido de Guilherme, ele se chama Alexandre. Os dois


se conheceram há um tempo — ela explicou, com um sorriso perverso.

— Guilherme não está me traindo!

— Ah! Coitadinho! Você não sabia? — ela retrucou. — Como você é


ingênuo! Você realmente achou que ele estava só com você? Vocês estão a mil
quilômetros de distância, seria impossível darem certo.

Fique 203
— Isso não é verdade, ele me ama.

— Ama tanto que está com outro e o convidou para a sua festa de
formatura.

— Não, não, não... Você está blefando... quer me confundir.

— O único confuso neste salão é o Guilherme, o pobre ainda pensa que


é homossexual — ela disparou. — Mas, depois do término desse namorinho de
vocês, eu vou ajudá-lo a restaurar as coisas.

— Joana...

Ela deu as costas e caminhou, decidida e apressada, de volta à mesa.


Olhei em direção a Alexandre. Guilherme estava com ele, gesticulando,
aparentemente, bravo. Dei alguns passos a sua direção, cambaleando,
nervoso, com raiva. Quando faltavam poucos metros, Alexandre o beijou.

Correndo, saí do salão. Guilherme tentou dizer algo, eu não escutei.


Corri o mais rápido que pude, sem olhar para trás, chorando, desesperado.
Uma dor insuportável tomou conta de meu peito, eu não conseguia respirar.
Aquilo podia ser um sonho, um pesadelo do qual, daqui a poucos minutos, eu
acordaria. Mas não, o vento gelado batia em minhas lágrimas e deixava claro
que aquilo não se tratava de um sonho. Continuei apressado, sem destino,
destruído.

Bati a mão no bolso, procurando o celular. Lembrei-me de que o


havia deixado em cima da mesa na festa. Encontrei apenas a chave de seu
apartamento, que ele tinha me entregado, para que eu a guardasse. Tive uma
ideia. Tinha de ir para o apartamento de Guilherme.

Cheguei cansado, ofegante por ter corrido tanto. Eram mais de cinco
quilômetros de distância. Abri o portão, saltei os degraus, passando direto
pelo andar em que Guilherme morava, e subi mais oito andares, até a porta do
terraço. Estava trancada. Chutei-a, sem sucesso. Então, tomei certa distância
e corri, batendo com os ombros e quebrando a frágil fechadura.

Respirei, tentando controlar-me, com as mãos no joelho, inclinado,

204 Fique
ainda de pé, com o coração acelerado pela adrenalina. Pensei na traição de
Guilherme e em todos os momentos juntos que tivemos. Lembrei-me da
morte dos meus pais. Mergulhei num mar profundo de mágoas e tristeza.

— É culpa sua!!! — gritei a Deus, olhando para cima e levantando as


mãos. — Você os tirou de mim, você fez Guilherme me trair!!! Me fez acreditar
no amor, mas, adivinha só, ele não existe!

Caminhei a passos largos em direção ao parapeito do terraço. Meu corpo


doía. Com a respiração ofegante, imaginando se eu encontraria os meus pais
quando pulasse. Fechei os olhos, senti a brisa tocar o meu rosto, as lágrimas
voltaram a escorrer. Inclinei-me para a frente, pronto para acabar com aquilo
de uma vez por todas. Eu não precisava mais daquilo, eu não queria sofrer,
muito menos queria tentar ou lutar.

Era a minha história, o meu desfecho. Eu colocaria o ponto final.


Encerraria aquele drama desnecessário. Esqueceria qualquer dor, qualquer
pranto. Ficaria tudo para trás. Bastava pular. Sentir a vida esvaziar-se de um
momento para o outro. Deixar que o mundo vencesse.

Ainda em pé, deixando o meu corpo amolecer. As minhas pernas


bambearam e comecei a tombar, rumo ao chão. Então, senti uma mão apertar
o meu ombro, segurar-me com tanta força que chegou a me machucar.
Guilherme, desesperado, agarrou-me no último momento.

— Amor... — ele começou.

— Eu não quero ouvir as suas desculpas, Guilherme! — Gritei, sentindo


que a única coisa que me mantinha vivo era a sua força em me segurar.

— Não são desculpas, eu não queria aquele beijo!

— Eu vi vocês se beijarem!!! Com meus olhos!!! — continuei berrando,


forçando o meu corpo para a frente. Guilherme tentava, de todas as maneiras,
me segurar.

— ELE me beijou, eu não queria...

Fique 205
— Chega, Guilherme, hoje esse problema será resolvido de uma vez por
todas — Esbravejei.

— Amor, eu não...

— Não quero ouvir — cortei-o. — Estou cansado de acumular tragédias e


tristezas por onde eu passo. Primeiro, meus pais, agora, você! Você me traiu!

— Eu não o traí, e posso provar!

— Como?? — Gritei chorando, voltando a ficar de pé no beiral, sem


inclinar-me para a frente. Guilherme recuou alguns passos e disse:

— Venha comigo, e eu te mostro. — Ele estendeu a mão cauteloso.

— Mesmo se for verdade, do que adianta? A sua família não me suporta,


e isso ficou claro — rebati, perdendo o equilíbrio, quase caindo.

— Gustavo, eu te amo. Estou aqui, para você e com você. Nunca passou
pela minha cabeça traí-lo. Eu quero você para sempre, e isso eu posso provar.

Guilherme tirou o telefone do bolso, o vento gelado uivava em meio aos


prédios. Ele ligou para Rosa e colocou no viva-voz.

— Alô! Onde vocês estão? — ela atendeu com urgência.

— Mãe, preciso que você repita o que nós conversamos nessa manhã.

— Como assim? O que está acontecendo? Vocês estão bem?? — ela


perguntou assustada.

— Mãe, apenas conte, por favor! — Guilherme elevou a voz, enquanto eu


observava atento.

— Está bem! Você me disse que iria se mudar para o Mato Grosso, para
que o Gustavo fizesse o mestrado. E me perguntou o que eu achava disso.

— Certo, e o que você respondeu? — ele insistiu.

— Guilherme? O que está acontecendo? Me diga, eu posso ajudar?

— Mãe, o que você respondeu? — Guilherme pediu com os olhos


lacrimejando.

— Eu respondi que seria ótimo você ir para lá, e que eu o apoiava, pois

206 Fique
eu gosto muito dele e quero que dê tudo certo. Eu não estou entendendo o que
está acontecendo, Guilherme!

— Obrigado, mãe. Eu te ligo daqui uns minutos para explicar. — E desligou


sem esperar a resposta. Eu o olhava soluçando, ainda de pé no parapeito.

— Eu nunca o abandonaria, amor, e, acredite, nem trairia a sua confiança!


Por favor, desça daí, eu não quero que você se machuque. Por favor...

As lágrimas correram no rosto de Guilherme. Eu comecei a tremer sem


controle, totalmente perdido, sem saber o que fazer ou em quem acreditar.
Se eu escolhesse ficar, teria que suportar a eterna saudade dos meus pais,
viver sabendo que nem todos da família de Guilherme me amavam e que,
provavelmente, afastá-lo-ia de sua mãe e irmã. Se eu fosse embora, tudo
acabaria, seria tudo mais fácil, não precisaria suportar a saudade de meus
pais e não estragaria a vida de Guilherme.

— Eu...

— Amor, eu te amo — ele repetiu. — Eu não fiz nada e vou provar assim
que conversarmos com a Joana. Ela vai dizer a verdade.

— Ela não vai, pelo jeito, ela tem planejado isso há semanas.

— Você confia em mim? — Ele perguntou, fazendo-me lembrar daquele


dia, no terraço do meu prédio, na noite de ano-novo.

— Guilherme...

— Você confia em mim? — ele perguntou novamente, dando um passo em


minha direção.

— Eu... eu... não sei. Como você vai largar tudo, para seguir o meu sonho?
Você tem os seus próprios sonhos para buscar.

— O meu único sonho é você. Sem você, todo o resto não faz sentido.
Eu quero ter filhos com você, construir uma casa com você e conhecer outros
países com você. Principalmente, eu quero cuidar de você.

— Amor... — eu balbuciei, quase cedendo.

Fique 207
— Você confia em mim? — Ele deu mais um passo, de maneira que, se eu
estendesse a mão, o alcançaria.

— Confio. — Agarrei a sua mão.

— Então fique! — Ele me puxou para os seus braços, apertando-me de


maneira exagerada, como se nunca mais fosse largar.

208 Fique

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