Pontourbe 3530

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Ponto Urbe

Revista do núcleo de antropologia urbana da USP


21 | 2017
Ponto Urbe 21

Cracolândia como campo de gravitação


A gestão da circulação de pessoas com acesso precário à moradia

Marina Mattar Soukef Nasser

Edição electrónica
URL: https://journals.openedition.org/pontourbe/3530
DOI: 10.4000/pontourbe.3530
ISSN: 1981-3341

Editora
Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo

Refêrencia eletrónica
Marina Mattar Soukef Nasser, «Cracolândia como campo de gravitação», Ponto Urbe [Online], 21 |
2017, posto online no dia 22 dezembro 2017, consultado o 07 agosto 2024. URL: http://
journals.openedition.org/pontourbe/3530 ; DOI: https://doi.org/10.4000/pontourbe.3530

Este documento foi criado de forma automática no dia 7 de agosto de 2024.

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos
importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Cracolândia como campo de gravitação 1

Cracolândia como campo de


gravitação
A gestão da circulação de pessoas com acesso precário à moradia

Marina Mattar Soukef Nasser

NOTA DO AUTOR
Este artigo foi extensivamente baseado na dissertação de mestrado da autora intitulada
“No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na Cracolândia” (Nasser,
2017).

1 Centenas de pessoas concentradas em um quarteirão, ocupando tanto as ruas quanto as


calçadas. Algumas permanecem em constante movimento, outras estão sentadas, em pé
ou deitadas, sozinhas ou em grupos. Fumam crack, conversam, cantam, improvisam
danças, escutam músicas em rádios de pilha, enquanto outras estão envolvidas em
vendas, trocas e negociações como em uma “feira do rolo”1 de itens diversos, entre
pedras de crack, itens artesanais, roupas, materiais encontrados no lixo, fitas de
videocassete. Ao redor, estão estacionadas algumas carroças de coleta de materiais
recicláveis com cachorros deitados em cima e abaixo delas.
2 Trata-se do fluxo, como dizem ali, ou da Cracolândia, como dizem fora dali. É difícil
descrever esse espaço tamanha a quantidade de situações e práticas que acontecem ao
mesmo tempo, não sendo possível reduzi-lo ao consumo e venda de crack.
3 Ao redor do fluxo, diversos agentes estatais, vestindo jalecos e coletes de diversas cores,
com pranchetas nas mãos, tentam conversar com quem permanecia no fluxo, mas
muitas vezes só ficavam ali à espera, em alguma sombra. A alguns metros de distância,
havia um grande terreno cimentado ocupado por estruturas de tendas e do outro lado
da rua, um hospital. No primeiro, pessoas assistiam televisão, faziam oficinas,
conversavam, dormiam, mas, sobretudo, eram atendidas por agentes de coletes verdes
da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMADS). Tratava-se da tenda de
atendimento do De Braços Abertos2, programa municipal de inclusão social de usuários

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de crack em situação de rua, criado durante a gestão de Fernando Haddad (PT/ 2013 -
2016) em 2014 e extinto na administração de João Doria em 20173. No segundo, em
determinados horários, havia filas para tomar banho e usar outros serviços de higiene.
Na outra esquina, no canto de um quarteirão todo demolido, outras tendas. Do mesmo
programa estatal que o hospital, possuíam banheiros para uso e eram repletas de mesas
e cadeiras de plásticos nas quais agentes, com seus coletes brancos e azuis,
conversavam com possíveis beneficiários do programa. Tratava-se de dois
equipamentos do Recomeço, programa estadual inaugurado em 2013, que oferece
tratamento a dependentes químicos, sobretudo usuários de crack, a partir de
internações em comunidades terapêuticas4. Em determinados dias da semana, grupos
religiosos, de diversas vertentes e tamanhos, também transitam pelo fluxo oferecendo
comida, tratamento religioso, empregos, serviços de barbearia, entre outros.
4 De forma bastante resumida, este é o retrato da Cracolândia de São Paulo que encontrei
enquanto fiz minha pesquisa de mestrado, durante os anos de 2014 até o final de 2015.
Foi neste contexto que conheci Raísa.
5 Ela não estava consumindo crack, mas estava na Cracolândia há algumas semanas. Vivia
nas ruas há 16 anos, desde quando saiu de casa aos seis fugindo de um pai adotivo que a
abusava sexualmente. Período que não ficou integralmente morando nas ruas:
enquanto menor de idade, passou por abrigos do Estado, da Igreja e de entidades
sociais, e pela então Febem; depois, morou na periferia da zona norte paulistana com
um companheiro, que acabou sendo preso, e em mais de uma ocupação de moradia, no
centro e na periferia da cidade, e em alguns albergues municipais. E, em março de 2015,
quando a conheci, estava na Cracolândia – mais exatamente, dormindo na Praça
Princesa Isabel, localizada a poucos quarteirões do fluxo. Não era beneficiária do
programa municipal De Braços Abertos nem possuía um parceiro ou parceira que
fizesse uso do crack. Nenhuma das explicações usuais para a pessoa permanecer
naquela territorialidade se encaixavam em seu caso. Passava seus dias entre os usuários
de crack e nos serviços destinados, segundo as descrições oficiais, a esse grupo,
estabelecendo relações afetivas também com os agentes desses programas. Apesar de
não estar fazendo uso de crack no momento da pesquisa, ela conhecia de longa data
muitos dos usuários que lá estavam, de sua vida nas ruas.
6 Nós nos conhecemos em março de 2015 em um piquenique de despedida de duas
operadoras estatais, uma do programa De Braços Abertos e a outra do Recomeço, no
Parque da Luz. Além de alguns poucos companheiros de trabalho dessas agentes,
estavam lá cerca de cinco frequentadores da Cracolândia, aqueles que haviam
estabelecido mais vínculo com elas. Entre esses, Raísa era a única que não estava no
projeto municipal. Estranhei essa situação, afinal por que ela estava lá se não usava
crack? Por que se importava com a demissão de duas agentes se nem era beneficiária
dos programas?
7 Depois desse dia, passei a acompanhar sua rotina na Cracolândia. Raísa dormia a dois
quarteirões do fluxo, na Praça Princesa Isabel, junto de um grupo de pessoas em
situação de rua, entre as quais se estabeleceu uma relação de solidariedade e proteção.
Alimentava-se a partir de doações de grupos religiosos e guardava seus pertences na
tenda do De Braços Abertos. Durante a tarde, fazia sua higiene diária no Hospital
Recomeço. Suas horas se dispendiam entre esperas nesses serviços e rondas a pé pela
Cracolândia, conversando com quem passava, antigos conhecidos, agentes estatais e
pesquisadores, como eu.

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8 Em abril de 2015, no entanto, uma operação conduzida pela Prefeitura a expulsou dessa
área. Ao não ser selecionada para participar do programa municipal, Raísa recebeu
encaminhamento para um albergue, onde não ficou por muito tempo. Esse evento
desencadeou uma série de deslocamentos territoriais em sua trajetória e são seus
efeitos que procuro analisar nesse artigo.
9 Partindo de seu percurso e de suas experiências, argumento que o Estado produz
espaços, territorialidades e “labirintos” ao induzir e condicionar o movimento de
diversos sujeitos de modo a criar pontos de dispersão e campos de gravitação na cidade.
A história da Cracolândia se inscreve nessa dinâmica de gestão dos espaços e
populações urbanas, o que envolve circuitos urbanos e outros espaços não contíguos
territorialmente. Em 2012, com o conflito erguido em torno da Operação Sufoco, como
se nota em Magalhães, nesse dossiê, há um ponto de inflexão nas formas de gestão
desse espaço: de uma racionalidade de dispersão, que visava impedir o agrupamento de
usuários de crack por meio do uso da força, para uma lógica de governo que precisa
desse espaço concentrado para executar seus programas.
10 Minha hipótese é de que a fixação territorial combinada a essa malha concentrada de
programas e instituições assistenciais acabou por construir um campo de gravitação em
torno da Cracolândia de modo a atrair sujeitos que, como Raísa, foram expulsos de
outras territorialidades e procuravam um local relativamente seguro das investidas
policiais para estabelecer suas “malocas” e levar suas vidas numa área de concentração
relativa de recursos e possibilidades. Há, portanto, uma articulação entre os modos de
atuação estatal nos locais e na malha urbana.
11 A fim de desenvolver esses argumentos, recorro também a uma brevíssima
reconstituição histórica de algumas territorialidades importantes para a vida nas ruas
do centro de São Paulo entre os anos de 2012 até 2015.

Dispersar e concentrar: tensões entre modos de


gestão do espaço na Cracolândia
12 Agora, o problema se espalhou pela cidade. Dias depois do início da etapa repressiva da
Operação Sufoco, em janeiro de 2012, quando policiais militares e guardas civis
metropolitanos perseguiam os frequentadores da Cracolândia com o objetivo de
dispersá-los mediante o uso da força, era essa a conclusão estampada nos jornais e
repetida à exaustão por moradores de bairros adjacentes, sobretudo Higienópolis, Santa
Cecília e Campos Elísios5. Das ruas adjacentes ao parque da Luz, os usuários de crack
passaram a ser vistos em locais que não habitavam antes da investida estatal. Em
pequenos grupos, ocupavam as ruas do centro, bem como de bairros próximos e até
mesmo mais periféricos. Alguns chegaram a anunciar a formação de
“subcracolândias”6; a manchete do principal programa televisivo destacava: eles “são
vistos até em frente à sede do Tribunal de Justiça”7. Cobradas pelos jornalistas, as
autoridades afirmavam que esses eram efeitos já esperados: nas palavras do então
comandante da Polícia Militar do Estado de São Paulo, “a polícia atuou para resgatar
aquele espaço público” (grifos meus) 8 e por isso, quando questionadas, as autoridades
afirmavam ter reforçado seu policiamento em “áreas estratégicas”9. Em tom de
desastre, a notícia da Folha de São Paulo anunciava: "Na padaria, na academia ou no
supermercado, moradores de Higienópolis comentam: Eles estão subindo” (grifos meus).

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Os moradores desse bairro abastado próximo à região da Luz começaram a reclamar da


presença desses “estranhos” e pedir que as autoridades dessem um jeito de tirá-los dali:
“aqui sempre foi muito tranquilo; não se via isso”, concluiu uma moradora. Outro
morador procurava explicar o que sentiu: “a sensação é de uma invasão, como uma
onda que você não tem controle. Se não agirem, a situação vai piorar. E não só aqui,
como em outras regiões”. Questionado sobre o incômodo causado, outro morador
afirmou que, apesar de não gostar da presença dos ‘noias’, não irá se mudar: “Eles que
têm que sair, não a gente”10.
13 As técnicas utilizadas pelos agentes estatais de dispersar os usuários não eram novas11,
mas a escala foi muito maior: as rondas de dispersão e abordagens policiais, descritas
enquanto "jogo de gato e rato" (cf. Rui, 2012: 46 e 199), se estenderam por semanas e
foram feitas de forma muito mais ostensiva, com a utilização, inclusive, de armas
menos letais.
14 Com esse novo cenário, as equipes municipais e estaduais de saúde e assistência social,
acionadas nessa fase da operação, encontravam dificuldades para atuar (cf. Magalhães:
2016) 12. Se antes os usuários permaneciam nas adjacências da região da Luz, depois da
investida, poderiam estar em qualquer lugar. Por esta razão, diversas instituições
passaram a mapear e monitorar as vias nas quais havia maior concentração de usuários
de crack: a Coordenadoria de Atenção às Drogas, órgão ligado à Secretaria de
Participação e Parceria da Prefeitura, identificou 33 pontos; a Secretaria Municipal de
Saúde, por sua vez, encontrou grupos em dez bairros: Sé, Santa Cecília, República e Bela
Vista (no Centro); Cambuci e Itaim Bibi (na Zona Sul); Pari (na Zona Norte); Mooca e
Belém (na Zona Leste); e Barra Funda (na Zona Oeste)13.
15 Em pouco mais de um ano, no entanto, os pequenos agrupamentos dispersos ao redor
da cidade diminuíram e a Cracolândia se reconstituiu. Na descrição do jornalista Bruno
Paes Manso, em reportagem publicada em setembro de 2013, a territorialidade voltou a
ser a mesma de um dito “tempo áureo”, com centenas de frequentadores todos os dias
da semana. Ainda segundo ele, as unidades móveis da Polícia Militar permaneciam
estacionadas em frente à Estação Júlio Prestes, na Alameda Cleveland, e na esquina da
Alameda Dino Bueno com a Rua Helvetia, mas as rondas constantes ou os “jogos de gato
e rato” pararam. “Com o fim das abordagens”, conclui Manso, “as procissões do crack
acabaram”14.
16 Neste mesmo período, multiplicaram-se programas e serviços de assistência social,
saúde, cuidado e atendimentos localizados na Cracolândia. O “buracão”, espaço entre
casas parcialmente destruídas na Rua Helvetia e ocupado por usuários de crack15 que foi
totalmente demolido na Operação Sufoco16, deu lugar à tenda municipal do De Braços
Abertos em julho de 2013. O programa seria lançado apenas em janeiro de 2014, mas
com esse local, a nova gestão da Prefeitura (Haddad/ 2013 - 2016) organizava os
primeiros atendimentos da Assistência Social e Saúde. Em dezembro de 2013, também
na Rua Helvetia, no antigo terreno da rodoviária da Luz, o Governo do Estado abriu a
tenda da equipe de rua do programa Recomeço, que havia sido lançado em janeiro
daquele ano.
17 O fluxo permaneceu no entorno desses serviços fixos e em dezembro de 2013, veículos
da grande mídia começaram a noticiar o surgimento da “favela do crack” entre a Rua
Helvetia e Alameda Dino Bueno. Dezenas de barracos feitos com madeirite, pedaços de
papelão e sacos de lixo foram erguidos nas calçadas dessas ruas e serviam de moradia
para centenas de pessoas. As construções improvisadas se instalaram nas cercanias do

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fluxo em um quarteirão que havia sido quase que inteiramente demolido por operações
vinculadas ao Projeto Nova Luz, entre os anos de 2011 e 2013.
18 Os barracos foram desmontados em janeiro de 2014, na primeira ação do programa
municipal De Braços Abertos. Grande parte de seus moradores, cerca de 400 pessoas,
foram cadastrados no projeto e encaminhados para moradias em hotéis nas cercanias.
Além desse benefício, por meio do programa, receberam tíquetes de alimentação no
restaurante popular Bom Prato e teriam de trabalhar em uma das frentes do programa,
em serviços de limpeza, varrição, horta e outros, com remuneração diária de 15 reais
por uma jornada de quatro horas.
19 Conforme já discutido por Magalhães (2016 e nesse dossiê) e Rui (2013 e 2014), há uma
mudança na gestão estatal na Cracolândia depois da Operação Sufoco, que propicia o
surgimento de serviços e programas de cuidado em detrimento de investidas de caráter
repressivo associadas a projetos de revalorização urbana. Desdobrando essa hipótese,
argumento neste artigo que este deslocamento se articula a uma transformação nas
dinâmicas territoriais da Cracolândia, que envolve diretamente os modos de gestão
desse espaço.
20 O que essas cenas revelam é que há uma tensão entre duas formas de gestão do espaço,
manifesta na oposição entre a prática policial de dispersar os usuários na malha urbana
e a forma de atuação localizada das instituições de assistência e saúde. Tratam-se de
duas lógicas operacionais distintas: enquanto uma procura acabar com a
territorialidade da Cracolândia, impedindo o agrupamento de pessoas mediante o uso
da força, a outra precisa de formas de territorialização e fixação espacial para viabilizar
a execução de seus programas.
21 A dispersão observada em diversas pesquisas realizadas até 2012 (Rui: 2012; Frúgoli e
Sppagiari), no entanto, não ocorreu durante minha pesquisa de campo, feita em 2014 e
2015. A Cracolândia permanecia fixa na sua localização ao longo dos dias e, quando se
movia, era em bloco unitário, sendo cercada por policiais ou guardas civis
metropolitanos. Ao contrário de operações como a Limpa (2005) e a Sufoco (2012), cuja
principal direção era impedir o agrupamento dos usuários de crack17, as investidas
policiais que presenciei se direcionavam a cercar, limitando o espaço nos quais eles
poderiam ficar, e/ou a mudar esse agrupamento de local, mas de forma organizada e
centralizada, de modo a impedir sua dispersão.
22 Essas ações, segundo as constatações empíricas de pesquisas anteriores (Rui, 2012: 199)
e da presente etnografia, atuam segundo dois eixos, que se baseiam em duas
racionalidades distintas com efeitos díspares na territorialização da Cracolândia: a
ronda contínua para dispersar os usuários e evitar sua concentração; e o cerceamento
em um ponto, que pode implicar também em deslocamentos mas sempre voltados ao
princípio de concentração. Enquanto a primeira técnica contribui para criação de
diversos agrupamentos de usuários de crack espalhados pelo centro e regiões
adjacentes, e reagrupamento posterior em alguma área com menor presença policial, a
segunda opera na direção contrária, provocando uma concentração maior em um único
ponto próximo à área da Luz.
23 Em abril de 2015, a Prefeitura realizou uma nova operação para retirar os usuários da
esquina entre a Alameda Cleveland e a Rua Helvetia para a qual os havia deslocado
alguns meses antes. O fluxo se restabeleceu a poucos metros dali, em um quarteirão na
Alameda Dino Bueno entre a Rua Helvetia e a Praça Sagrado Coração de Jesus. Para

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assegurar sua permanência nesse local e impedir a dispersão, tanto a Guarda Civil
Metropolitana quanto a Polícia Militar montaram pontos de bloqueio ao redor deste
quarteirão, proibindo a circulação de ônibus e carros em ruas adjacentes e interpelando
pedestres considerados “suspeitos”. Segundo informações obtidas pela rádio CBN, os
guardas e policiais não estavam permitindo ninguém entrar ou sair do fluxo com
mochilas, malas, carroças e colchões.
24 Uma recepcionista de um salão de beleza, entrevistada pela Rádio CBN, louvou a
iniciativa: “melhorou muito porque antes eles (usuários de crack) ficavam transitando
pelos quarteirões ao redor”, o que, segundo ela, atrapalhava o movimento do comércio.
Essa fala capta muito bem um dos sentidos relacionados à prática de concentrar o
agrupamento de usuários de crack: o de tentar restringir sua circulação a um
determinado perímetro.
25 Se o cálculo para mover o fluxo da Alameda Cleveland para a Dino Bueno parece ser
situacional, variando conforme a pressão pública e conjuntura política (Rui: 2012, 199),
o território considerado para esse deslocamento não é genérico. Não se trata de
transferir o fluxo para qualquer rua entre os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Campos
Elísios, mas de deixá-lo nas cercanias da Estação Júlio Prestes, permitindo a circulação
de seus frequentadores nos quarteirões em que se estabeleceram os serviços
especializados voltados a esse público-alvo. Se as operações realizadas entre o final dos
anos 1990 e a Sufoco, de 2012, tiveram como resultado a dispersão da Cracolândia em
uma área de cerca de 780 mil metros quadrados (ver mapas abaixo), com o
estabelecimento das instituições em sedes fixas para atender os usuários de crack, a
partir de 2013, não faria sentido afastá-los de lá.

Mapa com deslocamentos da Cracolândia segundo operações

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Cracolândia encontrada durante a pesquisa (2014 a 2016), estabelecida pós-Sufoco/2012, com os


principais serviços em destaque.

Demolições, serviços estatais e barracos (2013/2014 e 2014/2015) na Cracolândia pós-Sufoco.

Cracolândia, campo gravitacional


Em janeiro, a gente mostrou o começo da Operação De Braços Abertos: a Prefeitura
ofereceu trabalho e hospedagem para os dependentes químicos saírem das ruas e

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tirou os barracos que ficavam perto da Sala São Paulo. Mas, a tranquilidade durou
pouco ... a situação voltou a ficar insuportável18.
26 O programa televisivo SPTV, da Rede Globo, deu um “furo” jornalístico e publicou antes
de qualquer outro veículo de imprensa a notícia de que novos barracos eram erguidos
na Cracolândia. A reportagem, do dia 19 de novembro de 2014, poucos meses antes do
programa municipal completar um ano, já fazia um balanço negativo de sua eficácia: o
número de pessoas no fluxo aumentou, ao contrário do esperado pela gestão.
27 Com duração de sete minutos, a matéria deu destaque para os moradores da região que
reclamavam não ter segurança perto de suas casas e de terem sido esquecidos pelo
poder público, apesar de “pagarem seus impostos”. Entre imagens atuais e antigas da
Cracolândia, a apresentadora recuperou outras intervenções na região e concluiu: “será
que vamos ver o fim da Cracolândia? O sonho de todos... tomara que isso aconteça”. No
estúdio, um especialista foi entrevistado acerca do que poderia ser feito para acabar
com essa cena de uso. Ao vivo, o helicóptero da Globo sobrevoava a “favela do
cimento”, na Radial Leste, em que também há concentração de barracos; em seguida,
uma repórter na Cracolândia entra no ar.
28 Não demorou muito para a notícia repercutir e se desdobrar em novas matérias de
outros jornais nas semanas seguintes19. Uma equipe da Folha de São Paulo foi ao local
no mesmo dia para contar o número de barracos erguidos: “a multidão se amontoa em
volta dos 48 barracos em busca das pedras de crack. É a feira de drogas que acontece 24
horas por dia na nova ‘favelinha’ da cracolândia, que cresce no centro paulistano”20. A
conclusão era de que o programa municipal não só não tinha conseguido diminuir o
número de usuários de crack nas ruas, como também, nesse período, havia aumentado
o fluxo de pessoas no local.
29 Em resposta, a Prefeitura de São Paulo emitiu nota afirmando que esse crescimento
estava “diretamente ligado à continuada oferta de drogas na região” e, portanto,
constituía, um problema da alçada do Governo do Estado que, lembrava, havia
diminuído o efetivo policial na região21. As acusações foram respondidas pela
administração estadual que declarou ter na Cracolândia “o maior efetivo por metro
quadrado do Estado” 22.
30 A situação se manteve durante meses até a operação de abril de 2015 que desmontou os
barracos, expulsando dezenas de pessoas dessa territorialidade e inserindo outras cem
no programa municipal, e deslocou o fluxo. Vale acrescentar que os barracos erguidos
durante esse período eram feitos de lonas dentro do fluxo, diferentemente dos barracos
de madeirite construídos nas ruas adjacentes em 2013 e removidos na ação inaugural do
De Braços Abertos, em janeiro de 2014.

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Cracolândia como campo de gravitação 9

Foto 5: Maio/2015 – Depois da operação de abril de 2015, o cruzamento entre a Rua Helvetia x
Alameda Cleveland

31 As descrições da imprensa e as respostas das autoridades carregam um caráter


sensacionalista e de criminalização ao mobilizar uma figura bastante estereotipada do
tráfico de drogas. Apesar disso, tratam de um fenômeno que de fato ocorreu na
Cracolândia e foi possível de ser observado durante a pesquisa: desde o estabelecimento
do De Braços Abertos, em janeiro de 2014, o fluxo aumentou, assim como o número de
barracas e de outras atividades e formas de comércio, com a intensificação de vendas e
trocas, em relações embaralhadas entre o ilegal, informal e ilícito (cf. Telles), seguindo
um modelo semelhante ao de outras “feiras dos rolos”.
32 Esse cenário foi atribuído pelas autoridades municipais ao mau policiamento e por
grande parte da mídia ao fracasso do programa municipal, como se as pessoas que
estivessem montando os barracos nesse momento fossem as mesmas inclusas no
projeto no início de 2014.
33 Argumento, em oposição a essas perspectivas, que tanto o desenvolvimento de redes de
comércio informal quanto a chegada de novas pessoas ao local são dinâmicas
decorrentes das políticas que fixaram espacialmente a Cracolândia articuladas às de
dispersão em outras regiões da cidade. Ou seja, a fixação dos programas articulada ao
fim das rondas policiais de dispersão do fluxo acabam criando um polo de gravitação em
torno da Cracolândia, atraindo populações afetadas por operações repressivas de
dispersão em outros territórios da cidade, relacionadas a outras situações e programas
assistenciais, que colocam em circulação sujeitos com acesso precário à moradia23.

Da Cracolândia à cidade: formas de gestão dos


espaços e das populações
34 A gestão municipal de Gilberto Kassab, entre os anos de 2006 e 2012, conduziu uma
política de dispersar pessoas em situação de rua dos bairros centrais de São Paulo24. Por
meio de diversas medidas, induzia-se o deslocamento desse grupo para bairros mais
periféricos. Albergues foram fechados nas cercanias da Sé, República e Glicério,
extinguindo cerca de 4 mil vagas; a lei 14.146, sancionada em 2006, proibiu a circulação
nas ruas de São Paulo de carroças, principal instrumento de trabalho de catadores de

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materiais recicláveis, que passaram a ser alvo de apreensões da Guarda Civil


Metropolitana; medidas administrativas, como a Ordem Interna da Secretaria de
Segurança Urbana, determinaram metas para os guardas civis metropolitanos
expulsarem moradores de rua do centro; e tentou-se proibir práticas assistenciais e de
caridade à população em situação de rua, realizadas nessa região, como por exemplo, a
distribuição do “sopão”.
35 Em uma das reportagens publicadas durante o período, a fala de um dos usuários do
albergue parece resumir as diretrizes desse governo: “Quando me tiraram do Glicério,
me mandaram para a zona leste. Mas, lá, não tem atendimento de saúde e falta lugar
para vender lixo ou papelão. O governo fecha os albergues centrais e diz para irmos
para outros na periferia”. Assim como muitos outros, Cícero decidiu não seguir o
encaminhamento, pois além de precisar de diversas instituições assistenciais, dependia
de estabelecimentos localizados no centro para coletar e vender materiais recicláveis e,
portanto, desenvolver sua atividade econômica.
36 Concomitante a esse processo de desmantelamento dos programas assistenciais no
Centro, a gestão municipal inaugurou espaços de convivência no Parque Dom Pedro II
(2010), e na Mooca (2012), Brás (2012) e Ermelino Matarazzo (2012). Essas tendas
contavam com uma equipe de orientadores e possuíam espaço para higiene e lazer, mas
não ofereciam vagas de pernoite como os albergues. Dessa forma, muitos usuários desse
serviço acabaram por se instalar nas cercanias desses espaços em “malocas” ou com
barracas de camping.
37 Em abril de 2013, na gestão de Fernando Haddad, a tenda do Parque Dom Pedro II foi
fechada, o que incitou um deslocamento dessas pessoas para outros pontos da cidade.
Enquanto algumas pessoas foram para a Cracolândia, estabelecendo-se nos barracos
posteriormente removidos com o De Braços Abertos em janeiro de 2014, outras
receberam encaminhamentos para a tenda na Mooca. Um grupo se fixou na Praça da Sé,
onde ficou até outubro de 2013 quando uma operação municipal os despejou. Nessa
ocasião, estimou-se que cerca de 200 pessoas viviam na praça.
38 A investida foi conduzida pela Guarda Civil Metropolitana, equipe de limpeza urbana e
de assistência social, seguindo o mesmo modelo da operação de abril de 2015 de
deslocamento do fluxo e remoção das barracas na Cracolândia: enquanto o primeiro
grupo jogava no lixo colchões, barracas e pertences deixados no chão, os trabalhadores
da Assistência Social davam encaminhamentos para a tenda do Parque Dom Pedro II,
reaberta no mesmo dia para receber o grupo. A promessa era de que nesse espaço,
teriam um lugar provisório para morar por um mês e seriam inscritos na fila
habitacional de São Paulo, podendo se aplicar, posteriormente, para receber auxílio-
moradia.
39 Não havia a opção de permanecer na Praça da Sé. Para assegurar que não houvesse
reagrupamento de pessoas, a Guarda Civil Metropolitana instalou uma base no local e
estacionou um dos ônibus de vídeomonitoramento recebidos pelo programa federal
“Crack, é possível vencer”. A tenda estava, no entanto, bastante deteriorada e suja.
Como relatado por moradores e ativistas, o único banheiro estava imundo e com o
encanamento estragado. Os poucos orientadores presentes não sabiam das promessas
feitas e nem quais seriam os próximos passos para as pessoas que chegavam. Com o fim
da fase crítica da operação, que durou dez dias, somente um trabalhador da Assistência
Social continuou a frequentar a tenda. Um morador entrevistado pelo Estadão disse:

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Cracolândia como campo de gravitação 11

"não tem chuveiro, o banheiro está entupido, a Prefeitura não dá comida e o material
de limpeza não dá para nada".
40 Se, por um lado, a investida na Praça da Sé procurava impedir o reagrupamento das
pessoas nesse local, a reabertura do espaço no Parque Dom Pedro II visava garantir que
o grupo não se dispersasse pela cidade, articulando, assim, a prática de dispersar e de
concentrar.
41 Apesar das péssimas condições da tenda, o grupo que havia vindo da praça da Sé
decidiu se instalar: ao redor e dentro da tenda, construíram “malocas” e outras pessoas
foram chegando. Segundo uma reportagem, parte das pessoas migrou de um viaduto
próximo a Rua 25 de Março para o Parque Dom Pedro II depois das autoridades
instalarem refletores no local. Em janeiro de 2014, o programa SPTV25 da Rede Globo
produziu uma reportagem sobre o espaço, na qual indicava a presença de pelo menos
350 famílias em barracos improvisados.
42 Poucos meses depois, em abril do mesmo ano, a Prefeitura começou a cadastrar os
moradores a fim de implementar a segunda fase do programa De Braços Abertos na
região. Assim, em setembro, o governo municipal conduziu uma operação no espaço,
combinando, novamente, despejo com encaminhamentos. Segundo dados do governo
municipal, 186 pessoas entraram no projeto Autonomia em Foco26, ganhando
acomodações em dois centros de acolhida. Na ocasião, a secretária de Assistência e
Desenvolvimento Social, Luciana Temer, afirmou que interessados também poderiam
ser encaminhados ao programa De Braços Abertos na Cracolândia.
43 Nem todos foram incluídos no programa, de modo que, com o despejo, se dispersaram e
alguns seguiram para a Cracolândia, incrementando a movimentação do fluxo no local.
Algo que era de conhecimento de diversos usuários de crack e trabalhadores de
programas na região e foi admitido até mesmo pelo então secretário de Segurança
Urbana, Roberto Porto. Essa movimentação em direção à Cracolândia indica que, assim
como Raísa, nem todos os moradores e frequentadores dessa territorialidade podem ser
reduzidos a uma figura do usuário compulsivo de crack. Poucos meses depois, em abril
de 2015, no entanto, a Prefeitura conduziu uma nova operação na Cracolândia a fim de
desmontar os barracos erguidos nessa territorialidade.

Os labirintos
44 No dia 29 de abril de 2015, a Prefeitura de São Paulo conduziu a operação já
mencionada, na qual retirou barracos instalados no fluxo, deslocando-o para uma rua
adjacente, incluiu 150 pessoas no programa De Braços Abertos, já em curso há um ano, e
encaminhou outras para diversos serviços municipais, despejando dezenas de pessoas
em situação de rua.
45 Os agentes da Assistência Social do programa passavam apressados com pranchetas
repletas de listas pela rua. Eram nesses papéis que constavam os nomes de quem
deveria entrar no De Braços Abertos e, por exclusão, de quem estava fora. “Tô na
lista?”, “tô dentro?”, “meu nome tá ai?”, os orientadores eram interpelados a todo
momento. Alguns rostos desesperados indicavam aqueles que haviam perdido o barraco
e não sabiam onde iriam dormir naquela noite, porque também não figuravam entre os
novos beneficiários do programa. Hotel, trabalho remunerado, cursos, assistência,
saúde e bom-prato, os benefícios do De Braços Abertos permaneciam restritos a alguns:

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Cracolândia como campo de gravitação 12

ali na Cracolândia tinha muito mais gente do que as 150 novas vagas abertas pela
prefeitura.
46 Foi nesse contexto que reencontrei Raísa. Com seus pertences na mão, ela parecia
desconcertada, pois não constava na lista dos novos beneficiários do programa
municipal. Algo que não conseguia compreender: ela havia se inscrito como lhe
informaram. Um de seus amigos de rua, que dormia ao lado de seu colchão, tinha
entrado nessa nova leva. “Como escolheram ele e não eu?”, questionou, “Só porque ele
fez cara de dó e chorou que elas botaram ele. Mas eu não vou me humilhar!”, repetia.
47 Encontramos uma das chefes do programa e lhe perguntei sobre como entrar no
projeto. Com a lista na mão e de forma apressada, ela diz que se Raísa não consta entre
os novos beneficiários é porque não se inscreveu na tenda ou não era da Cracolândia.
Raísa fica indignada e ironiza: “não, não sou daqui não. Só tô na rua há 16 anos” e eu
acrescento que ela se inscreveu e mora na rua, mais especificamente na região da
Cracolândia há meses. “É um programa para usuários de crack”, responde a agente e sai
andando. “E agora, eu tenho que usar crack pra poder entrar em um programa?”,
reclamou Raísa, “não basta ter conseguido parar de usar sozinha?”.
48 Alguns agentes da Assistência Social que eu conhecia por conta da pesquisa tentaram
ajudar, pensando em formas possíveis de encaixá-la no programa. Um deles perguntou
a Raísa se ela possuía filhos ou se estava grávida, pois assim conseguiriam uma vaga
especial. Ela, novamente, riu de forma irônica e falava “agora eu tenho que ter filho
nessa situação27_pra conseguir as coisas?”.
49 Olhamos para a rua mais à frente e percebemos que o “rapa” já havia concluído seu
trabalho na antiga territorialidade do fluxo e agora, avançava para os colchões,
cobertores e roupas estendidos ao longo da parede vizinha a tenda do De Braços
Abertos. Lá estavam os pertences de Raísa e corremos para ela não perder nada.
50 Raísa não conseguia entender os critérios e procedimentos empregados pelos agentes
estatais na seleção dos beneficiários do De Braços Abertos. Como alguns de seus
companheiros de rua haviam entrado e ela não? Sua condição de morar nas ruas há 16
anos não bastava para ter direito ao programa municipal? Precisaria agora estar
grávida ou ser mãe? Em tom irônico e furioso, Raísa parecia reconhecer que, na
perspectiva do De Braços Abertos, sua situação real de vítima não era suficiente: ela
precisaria estar em uma condição ainda pior. Então, ela afirmava que “não iria contar
sua triste história” a fim de causar algum tipo de compaixão na equipe de Assistência
Social para conseguir a vaga28.
51 Ao fim dessa jornada, Raísa entra em um dos veículos da Central de Atendimento
Permanente (CAPE)29 em direção ao albergue municipal para o qual foi encaminhada
por uma assistente social. No carro, estavam outras pessoas em situação semelhante à
sua, não inclusas no De Braços Abertos e indicadas para outros programas assistenciais
do município.
52 A opção de voltar a dormir em um albergue não agradava Raísa por várias razões: alta
incidência de doenças, como tuberculose; os horários estritos de entrada e saída; a
burocracia diária e as muitas regras institucionais; as condições precárias das
instalações, entre outras30. Ela apenas mudou de ideia e aceitou a proposta depois de a
orientadora lhe garantir que sua vaga seria fixa. Quando chegou ao albergue, Raísa logo
descobriu que a promessa não fora cumprida: estava no albergue como “pernoite”, o

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Cracolândia como campo de gravitação 13

que implicava em um deslocamento urbano diário a lhe tomar (quase) todo o tempo
livre e rendendo muita tensão.
53 A vaga não permanente implica em um deslocamento urbano diário. A cada dois dias,
para poder passar a noite nesse albergue, localizado nas proximidades da estação de
metrô Armênia, Raísa teria de ir à Cracolândia, na tenda do De Braços Abertos, pegar
um encaminhamento com uma agente da Assistência Social para o Centro de
Convivência do Complexo Prates, onde conseguiria almoçar e com os assistentes sociais
de lá pegar um novo encaminhamento de vaga de pernoite para o albergue. Deveria,
então, ir para o albergue, onde ficava em uma fila desde as 15h para conseguir entrar às
18h, jantar e dormir. Às 8 horas, já tinha que pegar suas coisas para ir embora. Antes
disso, tomava banho e tomava o café da manhã. Raísa já conhecia todas essas
dificuldades e por isso, se arrependia de ter confiado na assistente social.
54 A fila de entrada no albergue se assemelha ao dia da operação na Cracolândia, por se
tratar também de um momento no qual os agentes do estado decidem quem está
incluído no programa. Assim como Raísa não conseguiu entender os motivos pelos
quais fora excluída do De Braços Abertos, durante essa espera no albergue, ninguém
sabia se seria aceito para dormir na instituição seja por algum problema no sistema
informatizado, seja pela falta de algum documento, seja pelo número de vagas (ver De
Lucca, 2007).
55 Incerteza que evoca a ilegibilidade do Estado tal como proposta por Veena Das (2006):
não se sabe se é o computador que poderá lhe barrar, o educador que pode avaliar seu
comportamento como inadequado, algum funcionário que pode não aceitar seu
documento. A cada tentativa de entrada no albergue, são horas de espera (De Lucca,
2007). A lentidão do sistema de inclusão e cadastro da instituição contrasta com o
tempo de urgência dos que querem dormir no local. Não ser aceito na instituição
significa ter de passar a noite nas ruas, em uma situação na qual a pessoa
explicitamente não deseja fazê-lo, pois não há mais tempo hábil para procurar outro
local (ibidem). Tal qual Raísa, que decide aceitar o encaminhamento para o albergue
por não ter mais segurança de dormir nas ruas, muitos dos que esperam na fila junto
dela também estão lá por alguma necessidade imediata – seja para se abrigar de uma
noite fria, cuidar de uma doença, fugir de alguma desavença, entre outros (ibidem)31.
56 Raísa permaneceu no albergue, no entanto, apenas por poucas semanas. Em meio a uma
trama nebulosa de afetos e brigas entre as conviventes, foi espancada e expulsa por
suas colegas. Situação essa testemunhada pelos operadores sociais do albergue que não
tomaram nenhuma atitude a respeito.
57 Enquanto conversávamos, Raísa desabafou: “é como se estivesse em um labirinto e não
conseguisse sair”32. Descrever seu trajeto por meio da metáfora do labirinto sugere que
ela não conseguia entender a sequência de deslocamentos territoriais pelos quais
passou em pouco menos de um mês. Ao refletir sobre seu percurso, ela diz não saber
nem onde ou como resolver sua situação a fim de se estabelecer em algum local com
segurança e um pouco mais de estabilidade. Como não conseguia entrar em algum
programa ou instituição estatal que lhe desse garantia, mesmo morando nas ruas desde
criança e não tendo casa nem trabalho? E continuava não compreendendo a razão pela
qual foi encaminhada para um albergue como pernoite, nem por que deveria ter um
grande deslocamento diário para garantir sua estadia, tampouco como pôde ser expulsa
da instituição sem ter feito nada.

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58 Quando perguntei sobre o caso de Raísa para um pessoa responsável pela coordenação
do trabalho dos orientadores da Assistência Social, ela me explicou que esses agentes
seguem um fluxograma previamente definido ao realizar seus encaminhamentos. Por
não se enquadrar nos critérios de vulnerabilidade do De Braços Abertos, mas estar
morando nas ruas, Raísa foi classificada como “em situação de rua”, sendo
encaminhada para a rede de serviços destinada a esse público em uma região próxima à
da Cracolândia. Conhecendo a trajetória de Raísa, de viver nas ruas desde criança, não
ter escolaridade e não fazer uso de drogas ou álcool, a orientadora procurou encaixá-la
nos programas e instituições disponíveis que acreditava cumprir com suas
necessidades.
59 Do ponto de vista do fluxograma e das tipificações dos programas, não há nada de
labiríntico no encaminhamento da orientadora; os casos e situações são tipificados e os
encaminhamentos seguem a lógica supostamente objetiva dos cadastros e
procedimentos codificados, normatizados. A agente estatal inscreveu Raísa em um
centro assistencial com programas educacionais para pessoas semi-analfabetas e auxílio
para inscrição em programas de transferência de renda; não seria preciso afastá-la da
Cracolândia, uma vez que não possuía problemas com consumo de drogas, de modo a
colocá-la em instituições próximas ao bairro da Luz.
60 Mas da perspectiva de sujeitos envolvidos, esse sentido ordenado e coerente fica
inteiramente esfumaçado. Para Raísa, as etapas encadeadas e bem delimitadas por
onde, em princípio, ela deveria passar, tornam-se um labirinto sem saída. O percurso
induzido pelo encaminhamento parece uma corrida de obstáculos, cujo sentido lhe
escapa e que torna tudo ainda mais complicado.

Conclusão
61 Sua experiência nessas instituições – os programas da Cracolândia, o albergue, o centro
de convivência, o complexo assistencial – permite compreender esses lugares dentro de
uma racionalidade de governo das populações e espaços urbanos por meio da gestão de
circulação. São pontos de triagem, nos quais a partir de determinados critérios, decide-
se quem entra e quem sai; quem pode se fixar, quem deve ser encaminhado e para onde,
seguindo uma lógica de distribuição das pessoas no espaço urbano.
62 O fluxograma se transforma em uma experiência de labirinto não por uma suposta falta
de esforço de Raísa em cumprir com o que foi sugerido pela orientadora; ela não
consegue resolver seu problema de analfabetismo, tampouco possuir uma moradia
estável, pelas regras e protocolos existentes em todos esses programas e instituições, de
modo que todo o seu dia é despendido em um entra e sai de espaços, relativamente
distantes territorialmente entre si, nos quais tem de garantir sua alimentação, estadia e
higiene. Por ter de passar sempre pelos filtros das instituições, sua rotina é marcada
por passagens muito incertas. Em cada fila de entrada, em cada conversa com
orientador, em cada encaminhamento, em cada operação, em cada enquadro policial,
em cada visita do “rapa”, há sempre a ameaça de ser excluída do programa ou
instituição. Ao acionar a representação de labirinto, ela procura dar inteligibilidade a
essa experiência incerta.
63 A exclusão sempre iminente dos programas estatais cria situações nas quais Raísa tem
de recolher tudo o que possui e partir para outro espaço onde estará mais segura. Por

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mais que não seja a intenção da orientadora nem dos coordenadores da Assistência
Social, é essa a racionalidade das formas de gestão dos espaços urbanos e seu efeito na
vida de Raísa é o de induzir sua circulação territorial pela cidade, o que possui diversas
implicações em suas relações sociais. Sua circulação é incessante, como na imagem do
labirinto, mas guiada por uma racionalidade de ir para pontos onde há recursos, acesso
a serviços e possibilidades, como por exemplo a de se mudar para a Cracolândia.
64 As lógicas de dispersão e concentração operam, pois, de forma articulada, de modo que os
deslocamentos das pessoas pela cidade são resultado de uma política que induz sua
circulação entre territorialidades por meio de ações repressivas articuladas à
interrupção ou instalação de programas assistenciais. Ou seja, na medida em que o
Estado deixa de oferecer atendimento em um determinado ponto e impede as pessoas
de permanecerem ali por meio do uso da força, elas passam a se fixar em outras
localidades nas quais esses serviços estão presentes, não há rondas policiais constantes
e existam formas de “viração” para garantir a sobrevivência por meio de expedientes
precários e incertos de trabalho33.
65 Os programas assistenciais acabam, portanto, se tornando pontos de gravitação dessa
população extremamente pobre e com acesso precário à moradia e ao trabalho de modo
que esses sujeitos que se instalam em suas adjacências são postos para circular assim
que os estabelecimentos são fechados, indo para novos pontos onde encontram a
possibilidade de se estabelecer. É uma racionalidade que perpassa as gestões municipais
ainda que sob formas mais ou menos repressivas e incidindo sobre localidades distintas.
66 Isto não significa que todos esses sujeitos sigam necessariamente um circuito pré-
estabelecido, mas suas trajetórias são fortemente condicionadas por essa dinâmica,
uma vez que a busca por recursos e segurança é o que enseja a transição de um local
para outro. A trajetória de Raísa, assim como a de outros personagens, foi fortemente
condicionada por essa dinâmica. Antes de chegar à Cracolândia, ela morou nos
arredores da tenda do Brás, posteriormente desativada pela gestão Haddad, e durante a
gestão Marta Suplicy (2001-2004), vivia nas adjacências de um centro assistencial na
Santa Cecília, fechado pela gestão seguinte de José Serra/ Gilberto Kassab [2005-2008].
Ainda que não tenha acompanhado sua trajetória antes da Cracolândia, a partir de seu
percurso depois da operação de abril de 2015, pude analisar mais detidamente as
engrenagens e efeitos dessa forma de gestão dos espaços urbanos.
67 Trata-se de um modo de gestão da população em que o Estado define e limita onde as
pessoas podem ou não permanecer de acordo com a conjuntura e interesses
situacionais, impondo às pessoas uma condição de circulação contínua e produzindo
“labirintos” dentro do espaço urbano.
68 Nessa perspectiva, a Cracolândia, entre os anos de 2014 e 2015, se configurou como um
ponto de concentração enquanto outros espaços como de dispersão. O que, no entanto,
parece ter sofrido alterações significativas com as políticas da nova gestão da Prefeitura
de São Paulo, sob João Doria (2017 – 2020). A partir das intervenções observadas no
primeiro semestre de 2017, pode-se concluir que a forma de gestão volta a se basear no
princípio de dispersão e não mais no de concentração. Algo que parece não se restringir
apenas à região da Cracolândia mas a todo o centro de São Paulo, afetando outros
pontos de moradia de pessoas com acesso precário à moradia, como ocupações, malocas
e ruas.

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Cracolândia como campo de gravitação 16

BIBLIOGRAFIA
DE LUCCA, Daniel. A rua em movimento: experiências urbanas e jogos sociais em torno da
população de rua. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Antropologia Social da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: São Paulo, 2007.

FRÚGOLI JR., Heitor & SKLAIR, Jessica. O bairro da Luz em São Paulo: questões antropológicas
sobre o fenômeno da gentrification. Cuadernos de Antropologia Social, UBA, n. 30, 2009.

FRÚGOLI JR., Heitor & SPAGGIARI, Enrico. Da cracolândia aos nóias: percursos etnográficos no
bairro da Luz, 2010.

MAGALHÃES, Taís Rodrigues Pereira. Campos de disputa e gestão do espaço urbano: o caso da
“cracolândia” paulistana. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Sociologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: São Paulo, 2016.

NASSER, Marina Mattar Soukef. No labirinto: formas de gestão do espaço e das populações na
Cracolândia. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Sociologia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP: São Paulo, 2016.

___________________________ "Entre a ameaça e a proteção: categorias, práticas e efeitos de uma


política de inclusão na Cracolândia de São Paulo". Porto Alegre: Revista Horizontes
Antropológicos (ISSN 1806-9983/ 0104-7183), ano 24, n.50, janeiro de 2018. No prelo.

RAUPP, Luciane. Circuitos de uso de crack nas cidades de São Paulo e Porto Alegre: cotidiano,
práticas e cuidado. Tese de Doutorado. Faculdade de Saúde Pública da USP, São Paulo, 2011.

RUI, Taniele. Corpos Abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack. Tese de
Doutorado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp: Campinas, 2012.

__________. Depois da “Operação Sufoco”: sobre espetáculo policial, cobertura midiática e


direitos na “cracolândia” paulistana. Revista Contemporânea, v. 3, n. 2, Jul/Dez 2013, pp. 287-310.

__________. Entre asfixiar y abrir los brazos: el caso da cracolandia brasileña. Dossiê Derecho a la
ciudad y al territorio - publicação especial para o Foro Mundial Urbano – Medellin. Desde la
Region, vol. 1, 2014, pp. 26-31.

SILVA, Selma Lima. Mulheres da Luz: uma etnografia dos usos e preservação no uso do crack.
Dissertação de Mestrado. São Paulo, Faculdade de Saúde Pública da USP, 2000.

NOTAS
1. As “feiras do rolo” acontecem em vias públicas em diversos espaços de São Paulo, deslocando-
se territorialmente segundo a repressão estatal. São locais de comercialização de itens muito
variados, em sua grande maioria de origem ilícita por furtos ou roubos. Dessa forma, as pessoas
permanecem andando e oferecendo a quem está ali seus itens, conversando rapidamente em
pequenas rodas com os interessados.
2. O De Braços Abertos foi um programa municipal criado durante a gestão de Fernando Haddad
(PT/ 2013 - 2016) em 2014 baseado em preceitos da redução de danos, oferecendo moradia,
trabalho, assistência social e de saúde a usuários de crack. O atual prefeito de São Paulo, João

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Cracolândia como campo de gravitação 17

Doria, anunciou em maio de 2017 o fim do programa da gestão municipal anterior e o início do
Redenção, projeto delineado por sua administração.
3. Apesar de diversas ações de propaganda, entre as quais retirar a placa do De Braços Abertos da
tenda municipal, até o presente momento de redação deste texto, não está claro como o
programa será encerrado de modo que para os beneficiários, os hotéis, trabalho e renda ainda
continuam.
4. O programa não se limita à Cracolândia, atendendo a todo o estado de São Paulo.
5. Ver, por exemplo, notícia “Higienópolis teme invasão de craqueiros”, Folha de São Paulo:
06/01/2012. Também “Ação na Cracolândia deixa morador de bairro nobre apreensivo”, G1:
04/01/2012.
6. Ver “Ação da polícia cria 'subcracolândias' no centro de São Paulo”, IG São Paulo: 13/01/2012.
7. Ver “Dois meses após ação na Cracolândia, viciados se espalham por SP”, G1: 02/03/2012.
Disponível no link: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/03/dois-meses-apos-acao-na-
cracolandia-viciados-se-espalham-por-sp.html
8. Ibidem.
9. Em entrevista a Folha de São Paulo, o tenente-coronel Wagner Rodrigues afirmou: “o
policiamento está sendo reforçado em pontos estratégicos, inclusive em Higienópolis”. Ver
“Higienópolis teme invasão de craqueiros”, Folha de São Paulo: 06/01/2012.
10. Ibidem.
11. Conforme discutido, essa prática já havia sido adotada pela polícia na Cracolândia em diversas
ocasiões, incluindo outras operações como a Limpa (2005). É interessante notar, entretanto, que
essa tática passou a pautar também o modo de operação da Polícia Militar em manifestações
desde pelo menos junho de 2013. De forma bastante semelhante, depois de dispersar o protesto,
os policiais passam a perseguir pequenos agrupamentos de manifestantes que muitas vezes,
acabam encurralados.
12. Ver “Ação policial na 'Cracolândia' prejudicou atendimento aos moradores”, Rede Brasil
Atual: 31/05/2012.
13. Informações retiradas da reportagem especial do Portal G1 de um ano da Operação Sufoco:
“Um ano após operação no Centro de SP, cracolândia resiste e ganha filiais”, 03/01/2013.
14. Ver reportagem “Cracolândia resiste à PM e de novo ruas lotam”. Estado de São Paulo,
21/09/2013. Disponível no link: http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,cracolandia-
resiste-a-pm-e-de-novo-ruas-lotam-imp-,1076748
15. Diversas reportagens foram escritas e filmadas nesse local. Por exemplo: “Ruínas de cortiço
revelam cotidiano da cracolândia; veja galeria de fotos”. Folha de São Paulo, 06/01/2012.
Disponível no link: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2012/01/1030768-ruinas-de-cortico-
revelam-cotidiano-da-cracolandia-veja-galeria.shtml. E o vídeo “Não temos para onde ir, diz
viciado expulso da Cracolândia”. TV Folha, 05/01/2012. Disponível no link: http://
www1.folha.uol.com.br/multimidia/tvfolha/2012/01/1030086-nao-temos-para-onde-ir-diz-
viciado-expulso-da-cracolandia.shtml
16. Sobre a demolição, ver notícia “Prefeitura começa a demolir prédios usados pelo tráfico na
Cracolândia”. G1, 18/01/2012. Disponível no link: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/
2012/01/prefeitura-comeca-demolir-predios-usados-pelo-trafico-na-cracolandia.html
17. Sobre a “Operação Limpa”, de 2005, o então sub-prefeito da Sé, Andrea Matarazzo afirmou: “O
importante é que a “cracolândia” não é mais aquela coisa concentrada, um endereço do crime”.
18. Ver “Cracolândia volta a ocupar rua no centro de São Paulo”. SPTV, 19/11/2014. Disponível
no link: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/11/cracolandia-volta-ocupar-rua-no-
centro-de-sao-paulo.html
19. Ver, por exemplo, “Reinaldo Azevedo fala sobre a Cracolândia na gestão Fernando Haddad”.
Jovem Pan, 20/11/2014. “Grupo resiste em sair da Cracolândia, diz Haddad”. R7, 24/11/2014.
“Grupo usa de violência para montar barracos, diz Haddad”. G1, 24/11/2014. “Operação falha na

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Cracolândia”. Jovem Pan, 25/11/2014. “Com faxinas e guardas, barracos viram favela móvel na
Cracolândia”. Folha de São Paulo, 10/12/2014. Um contraponto a grande parte das reportagens é
o texto “O fracasso da política de Guerra às drogas em poucos quarteirões da cracolândia”, de
Bruno Paes Manso, publicado no dia 25/11/2014.
20. Trata-se da reportagem “Apesar de programas, cracolândia volta a crescer no centro de SP”.
Folha de São Paulo, 20/11/2014.
21. Ver “Haddad diz que faltam policiais na Cracolândia; PM nega”. Folha de São Paulo,
20/11/2014. Nessa linha de acusações, o prefeito Fernando Haddad escreveu, em sua conta oficial
de Twitter: “Crack: cobram da União a fiscalização de 17 mil km de fronteiras contra a droga, mas
as polícias locais não controlam um quarteirão da LUZ”. Ver “Em rede social, Haddad critica
policiamento na cracolândia”. Folha de São Paulo, 21/11/2014.
22. Magalhães (2016) remonta esses episódios, tratando, inclusive, dos pactos estabelecidos entre
os governos municipal e estadual a fim de supostamente combater o tráfico na Cracolândia.
23. Utilizo a ideia de pessoas com acesso precário à moradia ao invés do termo população em
situação de rua ao considerar que são pessoas que transitam entre ocupações, malocas, barracos e
ruas, não sendo possível enquadrá-las nessa categoria governamental. Para discussão sobre
surgimento da categoria “população em situação de rua” ver De Lucca (2007).
24. A gestão municipal de João Doria (2017 - 2020) parece estar seguindo o mesmo modelo de
tentar retirar essa população do centro. Projeto que se estende também para as dezenas de
ocupações de moradia no centro de São Paulo, muitas das quais sofrem com processos de despejo.
25. Vale notar que diversas operações de despejo são conduzidas depois de reportagens de
denúncias do Jornal SPTV.
26. Projeto criado durante a gestão de Fernando Haddad (2013-2016) para grupos familiares ou
pessoas adultas sozinhas em situação de rua em “processo de autonomia”. Além de oferecer
moradia, o programa previa acompanhamento sócio-assistencial.
27. Em sua pesquisa sobre territorialidades de consumo de crack, Taniele Rui (2012) observa o
uso da expressão “nessa situação” por muitos usuários quando não querem encontrar com seus
familiares, conhecidos ou redutores de danos por estarem em condições que não consideram
adequadas (Rui: 2012, 251). Há, segundo a autora, no emprego dessa expressão, uma forma de
referência muito negativa e um pressuposto de que é evidente o que significa estar “nessa
situação” (ibidem, 262). Explorando diversos casos e relatos etnográficos, Rui aponta que o termo
se refere a determinadas marcas corporais, como sujeira, dentes e dedos marcados, lábios
machucados, voz rouca e perda de peso, relacionadas tanto a morar nas ruas quanto ao consumo
de crack, que são muito difíceis de esconder (ibidem, 272). Ou seja, os usuários de crack refletem
sobre sua própria situação “e por vezes se envergonham dela; eles tentam tomar distância do
próprio corpo; e, principalmente, eles se veem em relação e em perspectiva a supostos “vocês”,
também a imaginados pensamentos e desejos dos outros” (ibidem, 249).
28. Em outros textos (Nasser: 2016 e 2018), discuti o processo de exclusão de Raísa do programa
municipal, tratando os modos de funcionamento, práticas e categorias acionadas pelos agentes
nessa intervenção, problematizando a noção de vulnerabilidade, bem como seus efeitos na
trajetória dessa personagem, que ao ser excluída do programa, passa a circular por diversos
espaços urbanos sem conseguir se estabelecer e reflete sobre sua experiência a partir da imagem
do labirinto. A partir de referências da Antropologia do Estado (Das: 2006; Das e Poole: 2008;
Poole: 2004; Telles: 2012), analisei os achados de pesquisa a partir do conceito de ilegibilidade do
Estado, enfatizando os modos pelos quais a personagem constrói suas experiências nas diversas
instituições pelas quais passa. Também discuti o poder discricionário de determinados
operadores estatais que dispõem da autoridade, ainda que momentânea, de decidir os modos de
aplicar as normas e regulamentos no momento de selecionar aqueles que entram ou não no
programa.

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Cracolândia como campo de gravitação 19

29. A CAPE constitui um sistema de transporte municipal, usando kombis, com a finalidade de
encaminhar pessoas a outros serviços, albergues, clínicas psiquiátricas, ou hospitais. Para saber
mais, ver De Lucca (2007, 184).
30. A recusa do albergue é bastante comum entre as pessoas em situação de rua. As razões
apontadas por Raísa ecoam a de muitos usuários desses serviços. Ver, por exemplo, a reportagem
“Por que as pessoas em situação de rua em SP não querem ir para os abrigos mesmo durante o
inverno?” da Revista Vice, julho de 2015.
31. Além das descrições de Raísa, baseio-me aqui na etnografia realizada por De Lucca (2007) em
um albergue no centro de São Paulo.
32. A estadia de Raísa no albergue, o processo cotidiano de entrada nessa instituição e seus
conflitos com as outras conviventes foram descritos e analisados em Nasser (2016).
33. Tratam-se de trabalhos extremamente precários e instáveis, como a coleta de materiais
recicláveis e posterior venda em postos de recolhimento, descarregar caminhões de produtos e
cargas em centros de distribuição comercial, entre outros. Por exemplo, a “favela do cimento”
localizada na Radial Leste nas proximidades da tenda da Mooca, mencionada acima e desativada
por Haddad, recebe esse nome pois muitos de seus moradores trabalham enquanto carregadores
de uma fábrica de cimento localizada nos arredores.

AUTOR
MARINA MATTAR SOUKEF NASSER

Mestre em Sociologia na Universidade de São Paulo.

Ponto Urbe, 21 | 2017

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