Revista 11

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11 - Junho 2024

Expediente
Arte de capa:
Lupe Vasconcelos

Direção:
Tata Nganga Kamuxinzela
Tata Nganga Zelawapanzu

Diagramação:
Everton Martins

Artes Internas:
Lupe Vasconcelos

Fotos:
Tata Nganga Kamuxinzela e Tata Nganga Zelawapanzu

Revisão:
Danyo Nascimento

Sumario
Editorial.......................................................................................................................................4
Daemonium: A Hierarquia Infernal da Quimbanda - Parte I.......................................5
Beelzebuth é Chefe na Quimbanda................................................................................... 39
A Confusão de Doutrinas na Quimbanda........................................................................ 58
Santo Antônio na Quimbanda Nàgô.................................................................................. 61
Ninguém se forma sem o fundamental............................................................................ 64
Demonologia na Quimbanda............................................................................................... 67
Dos Oráculos do Kimbanda................................................................................................. 73
Quimbanda & Manipulação Energética........................................................................... 75
A Universalidade das Técnicas de Magia........................................................................ 77
O Fenômeno do Sincretismo no Mundo Antigo e sua Noologia................................. 84
Sofrimento, Violência & Sacrifício..................................................................................... 88
Alguns Exus e suas apresentações dentro do “Livro Das Sombras De Exu”......... 91
Editorial
A Revista Nganga rompeu limites que não eram esperados. Não só os adep-
tos da cultua de Quimbanda, mas vários outros adeptos de diversas correntes
mágicas, filosóficas e religiosas encontraram a revista e fizeram dela um porto
seguro em busca de informação de qualidade. Encerramos o primeiro ciclo na
edição de número 10 e agora iniciamos tudo novamente, sendo essa a décima
-primeira edição, mas também encerrando todo o simbolismo do número 11.
Nesta edição trouxemos um convidado para falar sobre sincretismo dentro
da demonologia, Professor Rafael Daher, desta forma expandindo os horizontes
daqueles que procuram por informação e não apenas propagação de conteúdo
enganoso.
Em meio a tantas desinformações, tantos ditos e não ditos e tantas elucubra-
ções, continuamos produzindo conteúdo para o público, de maneira acessível,
intelectualizada e gratuitamente.
Que Maioral de Todo o Inferno esteja com vocês!

Tata Nganga Zelawapanzu

4 Edição 11
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

Daemonium:
A Hierarquia Infernal da
Quimbanda - Parte I
Seção . I .
A Quimbanda Goécia

No fim da Antiguidade, durante o perí-


odo apostólico, a presença de demônios era
inferida muitas vezes através do mau com-
portamento das pessoas. Os ritos sacrificais
e a piedade aos antigos deuses greco-roma-
nos foram considerados, já nesse período,
como sacrifícios oferecidos aos demônios.
Tratava-se, portanto, de um comportamen-
to inadequado, indevido e desviado fazer
sacrifícios aos antigos deuses,[1] porque su-
bordinava o homem aos caprichos das hos-
tes do mal.[2] Nesse período construiu-se a
ideia de que a prática da magia estava dire-
tamente associada ao sacrifício aos antigos
deuses; logo, qualquer tipo de prática mági-
ca que ousou se valer de sacrifícios a partir
desse período recebeu a alcunha de magia
demoníaca porque envolve o exercício de ri-
tos e sacrifícios aos demônios.
A partir da Idade Média e se estendendo
por todo o período da Idade Moderna, um
conjunto de manuscritos mágicos de feiti-
çaria demonológica europeia (nigroman- demônios. Dentre eles existe um manuscri-
cia), conhecidos como grimórios, traziam to da família de textos atribuídos a Salomão
informações práticas acerca da convocação do Séc. XVIII chamado Grimorium Verum,
de espíritos ctônicos, telúricos e aéreos, os que foi associado à feitiçaria tradicional
brasileira, i.e. a Quimbanda, na década de
[1] Diferente das culturas anteriores ao cristianismo, o sacrifício 1950.[3] Essa associação transformou defi-
aos deuses nas sociedades tradicionais antigas era considerado
[3] Na Parte I do livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da
uma boa conduta, um bom comportamento. Veja o opúsculo O
Magia, me esforcei por demonstrar tendências higienístas que
Sacrificio Animal: Mundo Antigo, Cultura Africana & Quimbanda.
hoje são propagadas na Quimbanda, cuja intenção é invalidar o
[2] Valerie Flint. Ensaio Demonizando a magia e a feitiçaria na trabalho das vertentes tradicionais de Quimbanda, fundamental-
Antiguidade Clássica: redefinições cristãs das religiões pagãs. mente a Quimbanda Nàgô, e sua hibridização com a demonologia
Publicado em Bruxaria e Magia na Europa. Madras, 2004. europeia, classificando inúmeras famílias de Quimbanda Nàgô

5 Edição 11
nitivamente a Quimbanda em i. uma cultura Agente Mágico Universal de Levi, que em tra-
de goécia brasileira e;[4] ii. nigromancia bra- dições platônicas e mágicas anteriores era
sileira.[5] identificada como a alma do mundo.[9] Alu-
Na década de 1950, Aluízio Fontenelle ízio Fontenelle estabeleceu uma ponte con-
(1913-1952) estabeleceu definitivamente creta entre a feitiçaria brasileira e o Ocultis-
Exu-Diabo no imaginário brasileiro. Ele co- mo francês do fim do Séc. XIX. O Mestre de
nectou os Exus mais conhecidos da época a Quimbanda Muloji em seu livro Kiwanda:
demônios do Grimorium Verum. O trabalho Raízes perdidas da Kimbanda Malei, diz:
de Fontenelle proveu os rabiscos iniciais
da Quimbanda como praticamos hoje, sua A Kimbanda Nago sempre foi a mais difun-
iconografia e estética diabólica. É em Fon- dida, forte e conhecida em todo território
do Brasil e se não foi a primordial. [...] Com
tenelle que pela primeira vez a ideia de rei- o tempo alguns feiticeiros aderiram a mes-
nos começa a se estabelecer na Quimbanda, clagem da Kimbanda Nago com a cabala
goética dos demônios formando assim um
apresentando o Reino das Encruzilhadas e o submundo oculto para as práticas proíbi-
Reino do Cemitério. das. [...] Esta é a linha mais propagada e tra-
Ao divulgar a Chancela Imperial de Maio- dicional de Kimbanda existente no Brasil.
Cultuada com imagens trevosas de gesso.
ral, Fontenelle codificou os símbolos fun- [...] Apesar de Exu Gererê ser o comandante
damentais da Quimbanda, associando-a ao supremo, tornou-se comum o uso sincrético
esoterismo ocidental, inserindo no contexto da estatueta de Baphometh.[10]
do culto conceitos alquímicos e astrológicos
derivados da magia cerimonial, a cabalá eu- A Quimbanda Nàgô absorveu muitas
ropeia. Foi Fontenelle também que delineou influências demonológicas e diabólicas do
a ideia dos Maiorais ou os Chefes do Inferno Grimorium Verum e muitos a conhecem
no Grimorium Verum na Quimbanda (Lúci- pelo termo Quimbanda Raiz ou Quimbanda
fer,[6] Beelzebuth[7] e Ashtaroth[8]), e elegeu Goécia, porque seguindo o caminho esta-
o Baphomet de Eliphas Levi (1810-1875) belecido por Fontenelle que sincretiza os
como ícone central do culto, conectando o Exus aos demônios do Grimorium Verum,
trabalho e as ações de Exu a Luz Astral ou a Quimbanda Nàgô desenvolveu seus funda-
como dissidências ilegítimas.
mentos práticos nessa direção, onde o Exu
tutelar do kimbanda comanda uma miríade
[4] Como demonstrei nos dois volumes do Daemonium, a goécia
é uma prática de necromancia grega que data do Séc. V a.C. É so- de demônios, não só do Grimorium Verum,
mente com a interpretatio romana por volta dos Sécs. III-V d.C. que mas de todos estes classificados como ni-
a goécia grega assumiu a forma salomônica e, desde então, asso-
ciada a convocação de demônios. Veja Humberto Maggi. Goetia:
gromancia.
História & Prática. Clube de Autores, 2020. Para uma introdu- Aqui nos encontramos com a fórmula
ção ao tema da Quimbanda como goécia brasileira, veja Revista mágica universal do espírito tutelar. Assim
Nganga No. 10.
como na Magia de Abramelin o Sagrado Anjo
[5] A nigromancia é uma expressão medieval pejorativa derivada
do termo grego necromanteia, i.e. necromancia, a comunicação
Guardião é o agente de comando, poder e
com os espíritos dos mortos para fins de divinação e de magia autoridade sobre os demônios; assim como
(quando ganha também o epíteto de necrurgia). A nigromancia na feitiçaria dos papiros gregos o paredros
na Idade Média foi associada à prática de magia negra demoníaca
e a todo tipo de tabu mágico-religioso da sociedade europeia do auxilia o feiticeiro a conjurar espíritos di-
período. O termo nasce para i. condenar os sacrifícios a antigos versos e deificar sua alma; assim como Sa-
deuses pagãos, reclassificados como demônios e; ii. condenar o
lomão fez do demônio Ornias seu espírito
exercício ritual de grimórios noturnos, i.e. que lidam com todo
tipo de espírito sublunar, geralmente classificados como demô- assistente; assim como Cipriano e Fausto
nios também. Veja os livros Daemonium Vol. 2 (Clube de Autores, conjuraram o Diabo para aprenderem os se-
2022) e Ganga: a Quimbanda no Renascer da Magia (Clube de
Autores, 2023). A Quimbanda é, declaradamente, o único culto
gredos da magia para comandar espíritos,
nigromântico genuinamente brasileiro. obter conhecimento, poder e notoriedade,
[6] Sincretizado com Exu Lúcifer. de igual modo o kimbanda tem acesso a uma
[7] Sincretizado com Exu Beelzebuth.
[9] Veja Cornélio Agrippa. Três Livros de Filosofia Oculta. Ma-
[8] Sincretizado com Exu Rei das Sete Encruzilhadas. Na nossa
dras, 2008. Veja também Revista Nganga No. 8.
família Cova de Cipriano Feiticeiro, Astaroth é sincretizada com
Pombagira Rainha das Sete Encruzilhadas. Essa Trindade Infer- [10] Muloji. Kiwanda: Raízes perdidas da Kimbanda Malei. Edi-
nal ção do Autor, 2023, pp. 118-125.

6 Edição 11
miríade de demônios sob a autoridade e po- são feiticeiros, bruxos, religiosos e místicos
der de seu Exu tutelar. de muitas tradições espirituais distintas,
Na Quimbanda Nàgô os Exus e demônios tanto de um passado distante quanto dos
comem e atuam juntos;[11] o demônio poten- dias de hoje. Os espíritos que são os compo-
cializa a força e atuação do Exu. Trata-se, nentes desta linha são exímios entendidos na
portanto, de um poder utilizado por Exu, prática da magia, seja astral, ou natural, ou
um poder que está sob seu comando. Assim de qualquer outra forma ou modalidade a eles
como o mago salomânico entendeu que po- requisitados.[13] Isso indica que os Gangas da
deria utilizar o poder dos demônios para Quimbanda Nàgô têm a capacidade de atuar
servir aos seus propósitos, pelo simples fato dentro da prática mágica de muitos siste-
deles estarem disponíveis na Natureza, de mas distintos, assimilando-os e adaptando
igual modo e através de seu Exu tutelar, o -os a Quimbanda. Isso abre uma dimensão
kimbanda tem acesso a esse mesmo poder magística gigantesca, dando ao kimbanda a
disponível nos reinos fundamentais da Na- liberdade de adaptar qualquer tipo de sis-
tureza: submundo, terra e ar. tema magístico: Abordam facilidade em sua
Como veremos na Seção III a frente, os fundamentação permitindo ao mestre cria-
símbolos hieráticos que compõem o Brasão dor as mais diferentes e poderosas formas de
Imperial de Maioral codificam, ou pelo me- fundamentação.[14] E a Quimbanda Nàgô é
nos demonstram a codificação estrutural da conhecida como linha cruzada quando mes-
Quimbanda, onde uma força superior, um clam duas ou mais linhas com a nagô. Quan-
Mistério sem Nome, cresce a partir da junção do esta linha é cruzada com rituais de outros
dos poderes de Ògún, Èṣú, São Miguel e o cultos.[15]
Diabo. Dessa miscigenação mágico-cultural Os demônios são convocados pelo poder
nasce o Chefe Império Maioral e com ele, a do Exu tutelar e a autoridade da Trindade
Quimbanda com suas hordas de Exus-Dia- Maioral, seguindo o sistema tradicional de
bos. convocação demoníaca em nome de demô-
É essa força inominável, é este Mistério nios chefes de falange. Aos demônios são
sem Nome, que chamamos de Maioral o Dia- oferecidos sacrifícios e oferendas. No pri-
bo, a fonte do poder dos Exus sobre os de- meiro volume do Daemonium[16] eu resumi:
mônios do submundo, terra e ar.
No trato com demônios na Quimbanda Na história de Fausto, Mefistófeles lhe
Nàgô não são utilizadas nenhuma das tec- confere uma acurada descrição de como
se organiza a hierarquia espiritual, muito
nologias mágicas tradicionais da magia ce- similar a descrições que encontramos nas
rimonial: círculo, triângulo, baqueta, robe famílias de espíritos de diversas tradições
de cabala crioula:[17] espíritos menores são
etc. Outras, no entanto, são necessárias governados por espíritos maiores e mais
como a assinatura (cabalá) dos demônios. A poderosos. Tudo funciona como uma longa
metalinguagem hebraica da magia salomô- cadeia de transmissão onde o mago pede ao
espírito e ele leva a seu superior o pedido
nica pode ser utilizada se o kimbanda tiver do mago. E essa é a ideia central por trás da
um bom nível de hebraico e souber manipu- arte da goécia desde a Antiguidade clássica:
lar, por meio do Exu tutelar, a força ou as- o espírito ajuda o mago com a autorização
de um poder superior, muitas vezes uma di-
sinatura espiritual por trás de cada letra e vindade. Na recessão cristã da hierarquia
nome utilizado. infernal, é o Diabo que assume a posição de
Os espíritos que se apresentam dentro espírito superior,[18] da mesma maneira que
desta linha são denominados vulgarmente de os deuses nas culturas gregas e romanas.
bruxos ancestrais.[12] Existe um entendimen-
[13] Ibidem.
to de que a maioria dos Gangas que se apre-
[14] Ibidem.
sentam para trabalhar na Quimbanda Nàgô
[15] Ibidem.
[11] Eles podem, no entanto, comer separados e terem moradas
[16] Fernando Liguori. Daemonium. Vol. I. Clube de Autores, 2019,
de poder (assentamentos) distintos. Tudo dependerá da natureza
pp. 239.
do Exu e do demônio.
[17] Aqui, especificamente, eu me referia a Quimbanda.
[12] Muloji. Kiwanda: Raízes perdidas da Kimbanda Malei.
Edição do Autor, 2023, pp. 120. [18] Assim como na Quimbanda.

7 Edição 11
A Quimbanda Nàgô é a derivada mais
flexível da demonologia sincrética de O Li-
vro de São Cipriano (e toda corrente ci-
priânica-fáustica ibérica),[19] assim como da
diabologia do Grimorium Verum franco-i-
taliano assimiladas por Aluízio Fontenelle,
porque ela é muito rica em fundamentos, o
que lhe confere uma abordagem magística
abrangente. Um Mestre de Quimbanda Nàgô
é capaz de operar com qualquer tipo de de-
mônio derivado dos grimórios salomônicos,
associando-o aos Gangas da Quimbanda.

Seção . I I .
O Chefe Império Maioral: Rei
do Inferno

A qual comida, disse e confessou, que lhe fe-


dia muito a enxofre e alcatrão; e nas mesas
estavam por candeias umas tochas como
cabos de cordas alcatroadas com breu e al-
catrão que davam um negro, escuro e fedo- festa dos feiticeiros. Por isso a Quimbanda
rento lume. E na cabeceira da mesa estava tem sido reconhecida como a bruxaria tradi-
assentado o seu maioral em sua cadeira de cional brasileira.
espalda negra, com um roupão com capuz
frisado e, às vezes, o tinha tosado muito ne- Como o Chefe da Quimbanda, Maioral o
gro e uma barba muito comprida; e como rei Diabo aparece pela primeira vez na obra de
o adoravam e obedeciam todos os outros e o
serviam de joelhos e na mesa serviam mui- Lourenço Braga de 1942: Umbanda & Quim-
tos daqueles malignos espíritos.[20]
banda:

O excerto acima data de 1559; trata-se Todos os espíritos da Lei de Quimbanda


possuem luz vermelha sendo que o cha-
da descrição de um banquete diabólico for- mado «Maioral», conhecido no catolicismo
necido à Inquisição de Portugal, e é nele como Satam, Satanaz, Diabo, Capeta, Lúci-
que pela primeira vez o termo maioral é fer, Príncipe do Fogo, Tinhoso, Anjo do Mal,
etc. possui uma irradiação de luz vermelha
utilizado para descrever o Diabo como rei tão forte que nenhum de nós suportaria sua
do inferno pelas feiticeiras ibéricas e pelos aproximação.[21]
escribas do Santo Ofício. Nessa descrição
qualquer um que conhece os toques secre- Em Lourenço Braga o Chefe Império
tos da Quimbanda reconhecerá traços pecu- Maioral, o Diabo, se apresenta revestido de
liares ao culto: o enxofre, o cheiro de alca- todos os significados que o catolicismo po-
trão na fumaça do tabaco, o breu utilizado pular lhe atribuía na época, incluindo a ideia
em muitos feitiços, a iluminação pelo fogo
(tochas), a mesa com as comidas ou oferen-
[21] Lourenço Braga. Umbanda & Quimbanda. EDC, 1942, pp. 26.
das, o trono e a presença do Diabo. Tudo isso O vermelho é uma cor tradicionalmente associada ao deus egípcio
nós encontramos nos toques de Quimbanda, Set, ancestral do Diabo cristão. Os inúmeros templos modernos
de satanismo e luciferianismo utilizam o vermelho em suas ce-
regados à cachaça, pólvora, música, transe rimônias, assim como a Quimbanda, representando o próprio
e sangue, o sabbath brasileiro das bruxas, a ambiente mágico do culto. E é importante ter em conta, desde já,
que a primeira descrição de Maioral como aqui observamos, tem
[19] Veja também o artigo A Trindade Infernal: Satanás, Caifás e
um pano de fundo cristão. Quando chega na Quimbanda, o Diabo
Barrabás, nesta edição.
vem colorido pela cosmovisão cristã, simbolizando uma força de
[20] J.P.O. Martins, citado em Humberto Maggi. O Diabo. Clube de oposição ao cosmos da Umbanda, algo que se cristalizou somente
Autores, 2022, pp. 194-195. no trabalho de Aluízio Fontenelle.

8 Edição 11
de Lúcifer[22] como um anjo caído. Mas é so- cia planetarum in corpus humanum, Mesmer
mente com Aluízio Fontenelle que Maioral é postulou a existência de um fluido invisível
enriquecido ao ponto de se tornar o que ele espalhado por toda parte. Ele serviria como
hoje é, tradicionalmente, para Quimbanda. veículo para a influência mútua que os cor-
Fontenelle i. conectou a ideia de Maio- pos celestes exerceriam entre si, a Terra e
ral segundo Lourenço Braga ao conceito de os corpos animados – daí a expressão mag-
Baphomet delineado pelo ocultista francês netismo animal. Mas longe de se espalhar na
do Séc. XIX, Eliphas Levi (1810-1875); ii. forma específica que Mesmer tentou confe-
também sincretizou os Exus mais conheci- rir a ele, o magnetismo animal logo pôde ser
dos da época aos demônios de um grimório visto operando em várias direções, influen-
do Séc. XVIII conhecido como Grimorium ciando não só a ideia de luz astral de Eliphas
Verum e, a partir dali, os Exus da Quim- Levi, mas também os passes e os transes
banda foram completamente demonizados, mediúnicos do espiritismo de Allan Kardec
sendo tratados indiscriminadamente hora (1804-1869) no contexto de sua dissemina-
como almas de mortos deificados, hora ção na Europa e no Novo Mundo.[23]
como demônios. De acordo com uma das ideias mais di-
De importância fundamental é com- fundidas no pensamento alquímico, a maté-
preender o que Eliphas Levi chamou de luz ria contém uma luz ou um fogo invisível cuja
astral e como ela se associa a imagem te- natureza é a mesma da Palavra que criou a
riomorfa de Baphomet. Porquê dessa com- Luz no primeiro dia da Criação. Esse princí-
preensão depende o entendimento da fór- pio ígneo está situado a meio caminho entre
mula mágica da Quimbanda. o mundo natural e o mundo suprassensível,
Do magnetismo animal de Franz Anton e ele tem sido utilizado para interpretar a
Mesmer (1734–1815), Levi deriva a ideia de ideia platônica da Alma do Mundo e se diver-
luz astral ou agente mágico universal, asso- sificou em inúmeros temas como a luz astral.
ciado as ideias rosacricianas do Séc. XVII Correspondendo a essa luz ou fogo in-
acerca da penetração dos raios estelares visível existe uma contraparte terrestre,
(i.e. que vêm dos astros) nas fibras orgâ- que Levi chama de fluido terrestre, que é o
nicas, alterando sua natureza oculta. Em Grande Agente Magnético [...] saturado com
1766, em sua tese de doutorado, De influen- [23] A grande promulgadora das influências espíritas no Brasil
é a FEB – Federação Espírita Brasileira, fundada em 1884, que
[22] Lúcifer é uma deidade muito importante na Quimbanda. As- teve dentre seus presidentes (1895) Adolfo Bezerra de Menezes.
sim como os conceitos de Baphomet, Diabo e agente mágico uni- A FEB é a mais influente federação no que se tange o espiritismo e
versal em Aluízio Fontenelle vêm de Eliphas Levi, a própria ideia publicou as obras de Chico Xavier, que trariam a popularidade ao
de Lúcifer também. Como veremos, Eliphas Levi equipara o Diabo, espiritismo. Entretanto muitos acusam a FEB de não seguir com-
Satanás e Lúcifer, o anjo de luz caído, a uma agência cega, uma pletamente os ditames espíritas por não respeitar o CUEE deixa-
força cósmica moralmente neutra. Fontenelle traz a Quimbanda do por Kardec. CUEE é o Controle Universal dos Ensinamentos dos
esse Lúcifer de Levi, ao ponto dele ser completamente expresso Espíritos, método desenvolvido por Allan Kardec para diminuir a
pela autoridade espiritual de Exu Rei: Sua majestade Lúcifer ou influência do médium nas comunicações espirituais. A FEB tam-
Exu Rei, é dono e senhor das Trevas. Considerado pela sua falange bém publicou no Brasil o grande antagonista de Kardec em seu
como o «Absoluto», é quem domina o reino da terra. (Aluízio Fon- tempo, Jean Baptiste Roustaing, autor de os 4 Evangelhos, que os
tenelle. Exu. Gráfica Editora Aurora, 1954, pp. 103.) O Absoluto espíritas mais ortodoxos creditam ser uma obra escrita por espí-
na Quimbanda, portanto, é Lúcifer, o que está em sincronia com ritos das trevas, se contrapondo a Kardec. Desta forma, muito do
sua posição no Grimorium Verum. No sistema hierárquico dos pensamento espírita brasileiro foi formado a luz de Chico Xavier
demônios no Grimorium Verum, Lúcifer é a primeira emanação e pouco sobre Allan Kardec e a sua codificação, sendo os textos
sendo, portanto, uma potência andrógena, da qual emanam duas produzidos de Chico Xavier com metodologia muito parecida com
outras potências: Beelzebuth (macho) e Ashtaroth (fêmea). Existe a de Roustaing em sua obra, a escolha de um único médium para
um consenso em que a iconografia de Maioral como Baphomet na transcrever uma obra completa (o que contrapõe o CUEE). Dentre
Quimbanda costuma representar à unidade dos três Maiorais: as polêmicas e cisões encontradas no movimento espírita, encon-
Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth. Vamos entender isso: seguindo a tramos também a criação da Aliança Espírita Evangélica, fundada
própria ideia da hierarquia das emanações no Grimorium Verum, em 1973 por 8 casas espíritas a princípio, mas que é de interesse
a unidade da Trindade Infernal é simbolizada por Lúcifer, o pai geral, por conta de Edgard Armond. Edgard Armond foi o grande
de todos os demônios. Como um andrógeno ele simboliza o equi- responsável pela implementação da metodoliga de passes espíri-
líbrio alcançado pela união dos contrários macho e fêmea. Essa tas dentro dos centros espíritas. Apesar da prática já ser corrente
figura andrógena na alquimia medieval era tão importante que desde o começo do movimento espírita, ela era baseada nos estu-
representava a própria ideia de Grande Obra, que Eliphas Levi dos de Mesmer, que era uma figura de interesse de Allan Kardec.
associou também a Baphomet. Na Quimbanda, Lúcifer como Exu Entretanto a forma como o passe hoje é aplicado, com suas quali-
Rei representa essa potência andrógena e a incorporação total da dades, técnicas, duração e manejos, é algo formulado por Edgard
Trindade Maioral. Armond e os seus trabalhadores.

9 Edição 11
todos os tipos de imagens e reflexões. [24]Em pois a imagem, como ele a concebia, é um
outras palavras, a luz astral é um ambiente símbolo de domínio e maestria: a resolução
mágico protoplasmático, plástico, no senti- dos opostos em uma unidade superior, per-
do de ser o meio onde imagens podem ser tencente ao estado do Homem antes da Que-
magicamente impressas. O operador da ma- da na dualidade, manifestação e decadência.
gia pode manipular imagens, dissolvê-las, A Chama entre os Chifres da cabeça de Bode
coagula-las, projetá-las etc. É um espelho de é a flama da inteligência, a luz mágica do
toda imaginação e todas as imagens. [...] A equilíbrio universal das forças do Cosmos, e
luz astral reage ao próprio sistema nervoso. representa a alma que conquistou sua apo-
[...] Pode assumir todas as formas evocadas teose para além da matéria. O pentagrama
pelo pensamento e, nas coagulações transi- em sua cabeça é de ponta para cima e, como
tórias de suas partículas radiantes, aparece vimos, representa à vontade sobre os impul-
aos olhos; pode até oferecer uma espécie de sos dos instintos e a luxúria dos desejos. A
resistência ao toque.[25] sua mão direita aponta para a Lua Branca de
A luz astral era em essência, ensinava Chesed (misericórdia), e sua mão esquerda
Levi, a alma física dos quatro elementos: para a Lua Negra de Geburah (severidade/
terra, ar, fogo e água, cuja sujeição por um justiça), demonstrando o equilíbrio entre os
quinto agente, que é a Vontade, é simboli- fluxos-pilares da Árvore da Vida e a harmo-
zada pelo pentagrama. O pentagrama então nia de todas as forças dentro do Cosmos. No
se torna um glifo de poder sobre os espíri- braço-fêmea está escrito Solve (separar), e
tos elementais quando o signo é empregado no braço-macho está escrito Coagula (dis-
com compreensão, ou seja, quando a vonta- solver), dois princípios alquímicos de trans-
de é dedicada à sua soberania. Isso é o que se formação (morte). No peito, vemos seios de
entende pelo mago regerando o universo.[26] mulher e pelos de homem. No lugar da geni-
Para Levi a magia é o poder sobre si mes- tália está o Caduceu de Mercúrio, um símbolo
mo, o meio de dirigir à vontade. Para que para o poder de equilíbrio entre as forças de
isso aconteça de forma eficaz, e para evitar oposição no Cosmos. As asas de Baphomet
que o magista seja expulso de seu curso, é representam o conceito alquímico de volátil,
necessária uma disciplina essencial: equilí- que permite a mudança de um estado para o
brio e harmonia. O magista está lidando com outro no processo alquímico.
as correntes opostas de força ódica dentro Então, para olhos não iniciados, Bapho-
da luz astral e que mantêm unidas a dinâmi- met é um monstro. Para o iniciado – um gli-
ca do cosmos manifesto. O equilíbrio entre fo para a assunção do Homem sobre todas
luz e escuridão, positivo e negativo, requer as suas faculdades ocultas, capaz de exer-
a compreensão de um importante princí- cer na luz astral soberana a sua vontade, o
pio dos polos opostos, caracterizados como poder do homem-monstro sobre si mesmo
masculinos e femininos. Foi assim, pensan- pelo processo da iniciação. É uma imagem
do nisso, que Lévi apresentou ao mundo a para um objetivo e, portanto, é progressi-
imagem teriomorfa de Baphomet. va. Por uma lei persistente do paradoxo, o
A imagem de Baphomet é um símbolo belo parece a princípio monstruoso, já que
para androgenia (veja nota de rodapé sobre a bruxa na mitologia é revelada como a don-
Lúcifer acima), para reconciliação dos opos- zela. A verdade não vem ao mundo nua, mas
tos. Muito embora ela tenha sido diretamen- vestida de tipos e imagens. Baphomet é um
te associada ao Diabo da Igreja, o que Levi símbolo baseado na ideia da esfinge, uma
chegou a contestar, enfatizando que a Igreja quimera: metade animal, metade humana, o
havia perdido o arcano mágico do Diabo, do que significa que não é nenhuma das duas,
qual a imagem era a chave de interpretação, mas uma Forma para uma Ideia Sem For-
ma que, como veremos adiante, representa
[24] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Pensamento,
2017, pp. 139.
o Mistério Sem Nome que é o Chefe Império
[25] Ibidem.
Maioral, e que influenciou profundamente a
[26] Ibidem.
fórmula mágica da Quimbanda.

10 Edição 11
aos Exus e a natureza da Quimbanda.[30] Se
referindo a Baphomet, Levi o identificava
como:

O grande agente mágico, a dupla corrente


de luz, o fogo vivo e astral da terra.[31] [...] É
o fogo eterno da vida terrestre; é a Alma do
Mundo e a lareira viva do inferno. Dizemos
que a Luz Astral é o receptáculo das formas.
Evocadas pela razão, essas formas são pro-
duzidas em harmonia, evocadas pela loucu-
ra, tornam-se desordenadas e monstruosas.
[...] Quando invocamos o Diabo com as ce-
rimônias exigidas, o Diabo vem e nós o ve-
mos.[32]

Antes de Levi, o eminente ocultista Cor-


nélio Agrippa (1486-1535) já havia mencio-
nado em sua magna obra, Três Livros de
Filosofia Oculta, que a Alma do Mundo
– que Levi chama de luz astral – trata-se
uma força cósmica impessoal sobre a qual
é possível o mago imprimir a sua vontade,
daí o receptáculo das formas.[33] Quer dizer,
trata-se de um meio onde qualquer tipo de
criação é possível através da manipulação
das correntes mágicas de força ódica, i.e. a
Nos escritos de Fontenelle vamos encon- [30] Veja Revista Nganga No. 8 para um aprofundamento sobre
trar o mapa onde ele une o Maioral de Lou- a relação que se estabeleceu entre o Maioral da Quimbanda e o
renço Braga ao Baphomet de Eliphas Levi: Baphomet de Eliphas Levi.
[31] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Pensamento,
2017, pp. 132.
A Entidade Máxima [do Mal], denomina-se
«MAIORAL», tendo ainda outros denomi- [32] Ibidem, pp. 147. É possível ver na descrição do Diabo em
nativos, tais como: Lúcifer, Diabo, Satanaz, Eliphas Levi muita influência do Iluminismo e do Romantismo
Capêta, Tinhoso, etc., etc.[27] Lúcifer mostra do fim do Séc. XVIII. Por exemplo, a noção de energia criativa em
toda a sua supremacia como AGENTE MÁGI- William Blake (1757-1827) que tanto representa a corporeidade
CO UNIVERSAL.[28] Considerando Satanaz quanto a força ígnea que vem do inferno e, portanto, fonte do
como o grande agente mágico empregado verdadeiro mal, parece ter influenciado a noção de agente mágico
para as práticas do mal, pela sua vontade universal em Eliphas Levi.
perversa de criar uma força puramente [33] Formas aqui vem do grego eidos e simboliza a causa primeira
sobrenatural, é o dominador da Magia Ne- de todas as coisas; na modernidade costumamos utilizar a ideia
gra em todas as condições que regem os ou conceito de forma arquetípica ou simplesmente arquétipo,
destinos da humanidade, que se debate na quer dizer, a coisa primeira da qual deriva toda a multiplicidade
inconsciência de obter para si o domínio das formas sensíveis. Em Platão essas formas arquetípicas deri-
daquilo que possa existir além da vida co- vam do Plano das Ideias, nos cultos arianos hiperbóreos derivam
mum.[29] do Mundo Híper-Urano, i.e. acima do céu.
A Alma do Mundo também é a fonte de todas as outras almas: [...]
todas as almas que vagam ao redor do Mundo provém de uma úni-
Nessas passagens retiradas de duas ca Alma, a Alma do Todo. Corpus Hermeticum, Cap. X, Verso 7.
obras de Fontenelle revela-se toda a fór- Aqui Mundo é sinônimo de Cosmos material, cuja fonte é também
a Alma do Mundo. Donald Tyson comenta em sua edição da Filo-
mula mágica da Quimbanda. Para enten- sofia Oculta de Agrippa: No centro do corpo do mundo o Criador
dermos isso devemos retornar aos escritos colocou a alma, que é mais velha que o corpo. Isso é evidente, uma
de Eliphas Levi que influenciaram a visão vez que a alma governa o corpo e o Criador jamais permitiria que
o mais jovem dominasse o mais velho. A alma se difunde de um
que Fontenelle tinha da magia associada modo especial por todas as partes do mundo, e também pelo «am-
[27] Aluízio Fontenelle. Exu. Gráfica Editora Aurora, 1954, pp. 93. biente exterior dele», e é feminina, a amante do corpo do mundo.
Veja Cornélio Agrippa. Três Livros de Filosofia Oculta. Ma-
[28] Aluízio Fontenelle. Umbanda através dos Séculos. Editora
dras, 1998, pp. 907. Essa qualidade feminina da Alma do Mundo
Espiritualista Ltda, 1952, pp. 246.
é potência genitora de tudo o que existe materialmente, sendo,
[29] Aluízio Fontenelle. Exu. Gráfica Editora Aurora, 1954, pp. portanto, um meio adequado a todo e qualquer tipo de criação
229-30. mágica.

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energia vital, o moyo dos bantos ou o àṣẹ dos lar habilmente essa força. No entendimento
yorùbás, o magnetismo animal de Mesmer. de Fontenelle, entretanto, «fazer o mal» por
Eliphas Levi desenvolve a essa ideia, atri- si, a soldo ou movido por sentimentos como
buindo a luz astral ou Baphomet um poder a inveja, cobiça, vingança etc. é o que carac-
cego e moralmente neutro: Já dissemos que o teriza em essência a Quimbanda.[37] Daí que
Diabo não é uma pessoa. É uma força [...], uma Fontenelle afirma ser o agente mágico uni-
corrente ódica ou magnética.[34] versal empregado para as práticas do mal
Como se trata de uma força cega impes- por àqueles que desejam obter poder e do-
soal, Levi postula que ao homem comum mínio das forças sobrenaturais que estão
esse poder desencaminha e leva ao erro, daí para além da vida material, na intenção de
o Diabo na Magia Negra é o Grande Agente manipular seus eventos por motivos mes-
Mágico utilizado para fins do mal por uma quinhos e torpes. O mal, portanto, trata-se
vontade perversa;[35] então ele apresenta a do trabalho feito, da demanda encomendada,
luz astral, o agente mágico universal, a Alma do feitiço de amarração etc. Soldo: a Quim-
do Mundo ou Baphomet como uma nova ale- banda nasce como um sistema de feitiçaria
goria para a condução de seres vilmente ins- cujo objetivo é manipular as correntes de
tintivos por forças cegas que podem colocar força ódica da luz astral, o corpo de Maioral,
em movimento a má vontade e o erro.[36] Isso na intenção de resolver todo e qualquer tipo
significa que todos têm o poder de manipu- de mazela que aflija o ser humano. Então na
lar a luz astral; o homem torpe e ignoran- Quimbanda:
te não tem conhecimento disso, e devido as
suas inclinações passionais, torna-se o ca- [...] Lidamos com o fantasma de todos os
talisador de uma torrente maligna de força terrores, o dragão de todas as teogonias, o
Ahriman dos Persas, o Tifon dos egípcios,
ódica no mundo, criando a partir da luz as- a Piton dos gregos, a antiga serpente dos
tral todo tipo de ignorância, erro ou crime, hebreus, [...] a grande besta da Idade Média
e, pior ainda, o Baphomet dos Templários,
porque ela reage aos impulsos nervosos do o ídolo barbudo dos alquimistas, o obsce-
homem. no deus de Mendes, o bode do Sabbath. [...]
Aluízio Fontenelle entendeu muito bem Todos os iniciados nas ciências ocultas ado-
ravam, ainda adoram e sempre adorarão o
isso e trouxe essa ideia da impessoalidade que é simbolizado por este símbolo aterro-
da luz astral para a Quimbanda, que a partir rizante.[38]
daquele período, portanto, tornar-se-ia um
sistema de feitiçaria cujo objetivo é manipu- A Quimbanda & o
[34] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Pensamento, Aperfeiçoamento da Arte de
2017, pp. 246.
[35] Ibidem, pp. 147.
Fazer Magia
[36] Ibidem, pp. 246. Essa agência neutra, impessoal e amoral da
Alma do Mundo em Eliphas Levi está em sincronia com a Her-
mética. No Corpus Hermeticum (Cap. X, Verso 10), Hermes fala Esse é um lema que sempre ensino, e ele
acerca da natureza do Cosmos, que não está separado da Alma do é técnico: a Quimbanda se trata do aperfei-
Mundo, repositório de todas as formas que nele se encontram: O
Cosmos não é, na verdade, mau, mas também não é bom, como
çoamento da arte de fazer magia. Em Aluí-
Deus é bom; pois é material, e sujeito a perturbação. No Timeu, zio Fontenelle não apenas Maioral, o Lúcifer
Platão expressa essa mesma ideia quando diz que a Alma do Mun- e Exu Rei, é o agente mágico universal; os
do é a fonte do bem e do mal. Está presente nesse desenvolvimen-
to da Alma do Mundo ou Luz Astral em Eliphas Levi a própria ideia Exus também são agentes mágicos univer-
dessa força como o movimento potencial de todas as coisas. Isso sais[39] que tanto podem fazer o bem quanto o
nós encontramos também em Platão, que define a Alma do Mundo
como: primordial surgimento e movimento de tudo o que existe,
mal.[40] Na Quimbanda, são os Exus os agen-
existiu ou existirá, bem como de todos os seus opostos, uma vez tes que manipulam a força ódica, a substân-
que ela se revelou como a causa universal de toda mudança e mo-
vimento. Platão. Leis (Livro X, Verso 896, Edipro, 210, pp. 413-14). [37] Humberto Maggi. O Diabo. Clube de Autores, 2022, pp. 196.
É interessante notar que essa qualidade da Alma do Mundo como [38] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Pensamento,
fonte do movimento de todas as coisas seja compartilhada com o 2017, pp. 303.
Èṣú da cultura yorùbá, e que por sua vez a transferiu ao Exu da
[39] Aluízio Fontenelle. Exu. Gráfica Editora Aurora, 1954, pp.
Quimbanda. Todas essas ideias foram concentradas e agrupadas
229.
na codificação do culto da Quimbanda, e estão presente no Brasão
Imperial de Maioral. Veja Seção III abaixo. [40] Ibidem, pp. 105.

12 Edição 11
cia magnética e altamente volátil da Luz As- gira pra Exu fazer valer, saravá povo de
tral, o corpo de Maioral. Essas correntes de ganga saravá
Ògún Mege.
força que os Exus são capazes de manipular
à vontade têm caráter, quer dizer, qualidade No Brasão Imperial de Maioral estão im-
ou vibração peculiar, são fluxos ou torrentes pressas as chaves ou símbolos hieráticos[41]
de energia mágica distribuídos e organiza- que transmitem a fórmula mágica do Culto
dos nos Reinos da Quimbanda. de Exu a partir de seu segundo momento[42]
Do òrìṣà Èṣú da cultura yorùbá o Exu da no Brasil. O Brasão foi publicado pela pri-
Quimbanda herda a virtude do movimento, meira vez na obra de Aluízio Fontenelle, Exu,
da multiplicidade, do dinamismo e da co- de 1951. Muito embora ele não tenha feito
municação. O òrìṣà Èṣú está em toda parte nenhuma descrição acerca do Brasão Impe-
porque ele dá movimento a própria ordem rial nessa obra, o atribuiu a força mágica de
do cosmos, dinamizando todos os processos Maioral cuja hierofania, i.e. a experiência ou
cosmológicos. Èṣú é ainda o agente que pos- percepção espiritual concreta e objetiva, é
sibilita a comunicação entre o homem e as àquela mesma tradicional de Lúcifer, segun-
diversas deidades que existem no cosmos, do sua descrição, atribuída então à atua-
encarregado da entrega de todas as oferen- ção de Exu Rei na Quimbanda. Já em outra
das (ẹbọ) ofertadas ou realizadas em nome obra, A Umbanda através dos Séculos, de
dos òrìṣà ou dos ìrúnmolè. 1952, Fontanelle descreve os símbolos que
Imbuído, portanto, das virtudes do Èṣú compõem o conjunto do Brasão Imperial de
òrìṣà, o Exu da Quimbanda passa a ser o Maioral:
agente mágico que possibilita o kimbanda a
imprimir sua vontade na luz astral, o corpo É um ponto místico de chamada, onde Lú-
de Maioral. Assim como Èṣú òrìṣà leva até as cifer mostra toda a sua supremacia como
deidades as oferendas (ẹbọ) dos homens, de AGENTE MÁGICO UNIVERSAL. Está repre-
sentado com as seguintes características.
igual modo o Exu da Quimbanda leva a ten- O triângulo mágico de Salomão; tendo na
são mágica produzida pelo kimbanda em um parte superior o Sol tem a significação de:
feitiço ou oferenda até o corpo de Maioral, agente mágico dominador das forças natu-
rais e dos fenômenos da Natureza. A cobra
manipulando suas correntes de força mági- mordendo a cauda significa o domínio sobre
ca. a vida e a morte, pelos dogmas mágicos da
Em sua jornada de iniciação, i.e. o cami- medicina astral. O pentágono de Salomão
circunscrito à cobra, e tendo na sua parte
nho do Noviço ao Mestre, o kimbanda apren- superior o ponto de São Cipriano (pentácu-
de as técnicas de manipulação das corren- los de Ezequiel e de Pitágoras – duplo triân-
tes de força ódica que são oferecidas pelo gulo de Salomão), representam as ciências
ocultas (alta magia e magia negra). Os dois
sistema da Quimbanda. ponteiros perpendiculares ao crescente
lunar que têm sobre si sete cruzes, signifi-
cam o poder sobre a terra e o poder sobre
Seção . I I I . os homens, dominados pelas forças cósmi-
cas [as correntes de amor e cólera citadas
O Brasão Imperial de Maioral por Levi], e de natureza terrena. As duas
espadas cruzadas por trás do triângulo de
Salomão, significam o poder absoluto, tendo
Ògún encruza linha da Umbanda com a a dirigi-lo a irradiação de Marte e Mercúrio
Quimbanda, (duas estrelas laterais).
Ògún abre caminho pra Exu vir trabalhar,
Cavaleiro do além gira nas almas e no cru- O entendimento desse conjunto de sím-
zeiro, manda
povo de Exu pra curimba nesse terreiro, bolos hieráticos carrega uma hierofania que
Eu quero ver cruzar eu quero ver, chamamos de Mistério Sem Nome, porque
Cruza o garfo de Exu com sua espada Ògún sua apreensão não está diretamente asso-
Mege,
Mege abre as portas do cruzeiro, saravá ciada à intelecção, mas um conhecimento
Ògún das almas, [41] Palavra de origem grega, hiératiká, usada para significar tudo
Mege abre a porteira da calunga, saravá o que é sagrado, religioso ou sacerdotal.
Ògún das almas, abre essa
[42] Sobre o primeiro e o segundo momento da Quimbanda, veja o
segundo volume de Daemonium.

13 Edição 11
(gnose) para além dos construtos da men- Quimbanda! Nesses anos iniciais dessa nova
te. Então sejam lá quais forem às descrições visão de Quimbanda, agora como um siste-
que construímos acerca de Maioral, ainda ma operacional de trabalho para comunica-
sim nenhuma delas conseguirá de verdade ção efetiva com Exu, e não mais como exer-
transmitir o que ou quem é o Chefe Império cício pessoal de feitiçaria, Ògún tornou-se o
Maioral. Por isso nós utilizamos metáforas Guardião e o Regulador da Quimbanda.
para descrevê-lo: primeira encruzilhada de A inspiração para isso obviamente vem
fogo, dragão negro, força cega, mistério sem do culto yorùbá. Na religião Tradicional
nome, luz astral etc., e gostamos de pensar Yorùbá, é Ògún que permite Èṣú, seu irmão,
que é melhor que seja assim. utilizar ou compartilhar seus poderes. Ògún
A ideia de Maioral na Quimbanda ini- é dono do mistério vermelho (awon pupa), a
ciou-se com Lourenço Braga (1942), foi mo- terra que provê sustentação a ação do pro-
delada como hoje a conhecemos por Aluízio gresso, mobilidade e evolução de tudo o que
Fontenelle (1951) e desenvolvida pelos au- é animado no reino da geração. Ògún é um
tores subsequentes como Antônio de Alva, mestre ferreiro que domina o fogo, além de
José Maria Bittencourt e outros. Todos es- guerreiro e patrono dos caçadores. Ògún
ses autores contribuíram para a construção, assume a própria forma do fogo e, portan-
pelo menos inicial, da ideia de Maioral que to, é o domador do ferro, componente que
hoje possuímos na Quimbanda. enriquece o sangue. Assim, Ógún é ainda o
O conceito central do Brasão Imperial é patrono do esqueleto humano e do uso do
demonstrar que os Gangas da Quimbanda sangue.
são regidos, comandados, regulados, orien- Na cultura yorùbá Ògún é a inteligência
tados e, modernamente, nascidos por meio espiritual que forja e transborda força e
de uma Força Superior, um Mistério Sem vida por meio de sua ação ígnea crepitante a
Nome que chamamos pelo epíteto de Maio- qualquer estrutura ou caminho. Por isso ele
ral, Exu-Rei ou Lúcifer, símbolos amalgama- é associado à força vital, seu impulso para
dos na iconografia teriomorfa de Baphomet. cópula sexual, guerra e agressão. Ògún re-
Mas para compreender isso, nós temos presenta toda força do fogo e o ímpeto de
de voltar às concepções teológicas e teogô- desenvolvimento no homem, no grupo e em
nicas dos umbandistas por volta das déca- toda a sociedade.
das de 1930 a 1950, onde o òrìṣà Ògún fora E é interessante notar também que Ògún
considerado o patrono, regulador, coman- é dito vir do lado esquerdo, daí sua ação de
dante e protetor da Quimbanda. domínio e expulsão de ajoguns, espíritos
Nas primeiras décadas da codificação
do culto branco da Umbanda, o Exu demoni-
zado da Macumba – por influência do òrìṣà
Èṣú diabolizado ainda na África no Séc.
XVIII e que permaneceu assim na estrutura
dos Candomblés até o Séc. XX – havia desa-
parecido completamente. Tanto que as en-
cruzilhadas, lócus de poder de Exu, haviam
sido transferidas para os domínios de Ògún.
A partir de 1940, a começar pela Tenda
Espírita São Jorge sob a autoridade do Cabo-
clo Tupinambás, os Exus retornaram as ce-
rimônias de Umbanda, no fim das sessões,
para fazer a limpeza energética do templo.
Os autores umbandistas da época tiveram
de lidar com essa situação, desde então, alo-
cando os Exus em algum lugar dentro da
cosmovisão da Umbanda. Seu destino foi a

14 Edição 11
zombeteiros associados a todo tipo de in-
fortúnios na vida do homem. Então Ògún
ganha um papel importante nas primeiras
décadas da Quimbanda pelas virtudes que
possui.
Como falei no livro Ganga: a Quimban-
da no Renascer da Magia, a influência de
Ògún na Quimbanda é transparente: a pi-
menta ardida, o ferro, o fogo, o sangue, as
bebidas quentes (água de fogo) etc., são ele-
mentos de culto a Ògún na África.[43]
Mas por outro lado, quando pensamos
na ação de Ògún na Quimbanda, percebe-
mos que ele carrega algumas virtudes ou
poderes acoplados, podemos dizer, sincre-
tizados, tanto da cultura banto, quanto do
catolicismo popular.[44] Dos bantos Ògún re-
cebe poder de Nkosi, palavra que significa
leão; do catolicismo popular Ògún recebe
poderes de São Miguel, o arcanjo exorcista
de demônios.
O pano de fundo da Quimbanda é a cos-
movisão banto, do Congo. Essa palavra,
Note que na primeira edição do livro
kongo, significa caçador, que é uma virtude
Exu de Aluízio Fontenelle, imagem acima,
associada ao t Nkosi que, por sua vez, com-
onde o Brasão Imperial de Maioral aparece
partilha com Ògún inúmeros de seus pode-
pela primeira vez, é São Miguel que estampa
res, mas o que Ògún recebe efetivamente de
a capa.
Nkosi é a capacidade de abrir caminhos e
São Miguel Arcanjo é associado ao Sol, ao
cruzar limiares.[45]
poder do fogo e ao exorcismo de demônios
[43] Na África a maioria desses elementos não tem relação com no catolicismo popular.[46] Exorcismos em
o culto de Èṣú, como as pimentas e o tabaco, que se relacionam
a Ògún. seu nome são encontrados em qualquer bre-
[44] O termo catolicismo popular é complicado. Dependendo do viário católico de orações:
país ou de regiões dentro de um só país, o catolicismo poder ser
mágico, místico ou ambos. Vou dar um exemplo da experiência São Miguel Arcanjo, defendei-nos no com-
pessoal com este culto. Há mais de 20 anos sou iniciado no Santo bate, contra as maldades e as ciladas do de-
Daime, um culto católico popular que agrega elementos da paje- mônio. Ordene-lhe Deus, instantemente O
lança cabocla, do espiritismo kardecista e da cultura aborígene pedimos, e Vós, príncipe da milícia Celeste,
brasileira, como uso ritual da ayahuasca e o ritual do bailado. precipitai no inferno a satanás e a todos os
Posteriormente as entidades da Umbanda e da Quimbanda come- espíritos malignos, que andam pelo mundo
çaram a aparecer em linhas de trabalho dentro da estrutura ritu- para perderem as almas. Assim seja.[47]
al do Santo Daime. Essas linhas de trabalho ficaram conhecidas + Em nome do Pai, do Filho e do Espírito
como Umbandaime. O Umbandaime é, portanto, um ritual, uma Santo. Amém!
linha de trabalho dentro do corpo estrutural do Santo Daime, não
Grande e glorioso Príncipe dos exércitos
fora! Com esse povo chegou à magia no Santo Daime, que até en-
celestes, São Miguel Arcanjo, defendei-nos
tão era apenas um culto místico de êxtase. A partir desse ponto
«Porque para nós a luta não é contra a carne
algumas igrejas do CEFLURIS começaram a agregar exorcismos,
e o sangue, mas sim contra as potestades,
conjuros, rezos e orações mágicas, algumas delas retiradas de O
contra os poderes mundanos destas trevas,
Livro de São Cipriano, ou pelo menos também são encontradas
nele. Outros elementos são agregados como o uso de velas, terços,
contra os espíritos da maldade celeste.»
cruzeiros, água e pólvora. Os rituais com estes elementos são, ob-
[Efes. 6, 12].
viamente, somente para fardados e ocorrem fora do calendário
Vem e assiste ao homem que foi criado na
oficial de rituais do CEFLURIS, e apenas em algumas igrejas.
Sua imagem e a quem Ele redimiu da tira-
[46] Não só no catolicismo popular, tecnicamente. São Miguel Ar-
[45] Na cultura banto estes caminhos e limiares, por outro lado,
canjo é o exorcista de demônios e protetor da Igreja de Roma. Veja
são portais de acesso a outros nkisis, Pambu ia-Njila e Àlùwàlá,
O Exorcismo de São Miguel Arcanjo do Papa Leão XIII.
relacionados as encruzilhadas e são senhores dos caminhos. Veja
Nicholaj de Mattos Frisvold. Seven Crossroads of Night: Quim- [47] Exorcismos e Orações de São Miguel Arcanjo. Invocação
banda in Theory and Practice. Headen Press, 2023, pp. 51. da Milícia Celeste. Vozes, 2008, pp. 22.

15 Edição 11
nia do demônio a um grande preço. A Santa Além das forças insidiosas do Sol (São
Igreja venera-vos como seu guardião e pro- Miguel)[53] e de Marte (Ògún) sobre a Quim-
tetor. A ti o Senhor confiou às almas dos re-
dimidos, para que as dirija ao Céu.[48] banda, também há a presença de Mercúrio,
Gloriosíssimo Príncipe da Milícia Celestial, que é a virtude planetária conectada ao
São Miguel Arcanjo, defendei-nos na luta òrìṣà Èṣú e por extensão deste, ao Exu da
que temos combatido «contra os principa-
dos e potestades, contra os chefes deste Quimbanda.
mundo tenebroso, contra os espíritos ma- Èṣú é o mensageiro das deidades yorùbá.
lignos espalhados pelos ares». Vinde em au- É ele quem carrega os sacrifícios dos ho-
xílio dos homens que Deus criou incorrup-
tíveis à sua imagem e semelhança, e a tão mens até os òrìṣà e ìrúnmolè, tornando-os
«grande preço resgatados» da tirania do efetivos. A alcunha de trapaceiro dada a Èṣú
demônio. Com os exércitos dos anjos bons nada mais é do que seu poder de escolha re-
peleja hoje os combates do Senhor, como
outrora lutaste contra Lúcifer, chefe da so- presentado pelo símbolo da encruzilhada.
berba e contra seus anjos apóstatas. Eles Èṣú é o guardião da própria força vital que
não puderam vencer, e perderam seu lugar anima o Cosmos e um de seus símbolos mais
no céu. «Foi precipitado o grande dragão, a
antiga serpente e denominado diabo e sata- potentes é o poder do magma, o fogo líqui-
nás, o sedutor do universo: foi precipitado do das profundezas da Terra (inferius) que
na terra e com ele foram lançados seus an- brota do centro da encruzilhada. Por conta
jos». (Apoc. 12,8-9).[49]
mundo, que anjos têm sido utilizados tanto para expulsar demô-
nios, como convocá-los e comandá-los, porque o mago que tem
Parece que Aluízio Fontanelle viu algu- poder para expulsar demônios, também tem poder para comandá
ma conexão entre o poder de São Miguel -los. Uma vez que o Diabo e seus demônios estão livres no Mundo
exorcista de demônios, e o poder de Ògún para assolar as vítimas humanas, o mago salomônico entendeu
que podia utilizar a força desses demônios para seus propósitos,
que expulsa todo tipo de ajogun, espíritos subjugando-os através do poder dos anjos.
obsessores diversos que trazem infortú- Isso é demonstrado nos dois livros que inauguram a tradição sa-
nios ao homem, sincretizando-os. Essa as- lomônica: O Testamento de Salomão e O Tratado de Salomão.
No primeiro os anjos são apresentados como forças que expulsam
sociação Fontenelle demonstrou no Brasão os demônios, medicinas que curam os males causados por eles.
Imperial da seguinte maneira: as duas es- Trata-se literalmente de um texto sobre exorcismo. É interessan-
te notar que o poder para comandar os demônios não está dispo-
padas cruzadas e ocultadas pelo triângulo
nível a qualquer pessoa, mas somente a Salomão, que recebeu o
salomônico de manifestação representam anel mágico que lhe garantia o poder sobre os espíritos malignos.
Ògún; as duas espadas cruzadas por trás do Não há invocações ou qualquer instrução do modo de operação
mágica.
triângulo de Salomão, significam o poder ab- Já em O Tratado de Salomão o poder está disponível. É nele que
soluto, tendo a dirigi-lo a irradiação de Marte pela primeira vez são apresentadas instruções para convocação
e Mercúrio (duas estrelas laterais).[50] O Sol de anjos e demônios, e estes, necessariamente são convocados
após os anjos, submissos, portanto, a autoridade deles. Diferente
que coroa o Brasão é uma referência a São dos anjos de O Testamento de Salomão que frustram os demô-
Miguel.[51] Então duas forças combinadas, nios, os anjos de O Tratado de Salomão os controlam para o
Marte (Ògún) e Sol (São Miguel) dirigindo benefício do mago.

o poder absoluto sobre os Gangas da Quim- [53] O Sol é um símbolo poderoso na magia, porque como um
fenômeno, ele tanto cria quanto destrói com seu poder. Algumas
banda foi a ideia inicial da força de comando pessoas podem se sentir frustradas por encontrarem no Brasão
do Chefe Império Maioral.[52] Imperial de Maioral a presença de um anjo/santo representando o
poder do Sol. Mas o que um kimbanda faz, porque vê o Cosmos sob
[48] O Exorcismo de São Miguel Arcanjo do Papa Leão XIII. o olhar do homem tradicional, é perceber a atividade (energeia)
do poder, não sua máscara deífica. Por outro lado, o Sol no Brasão
[49] Exorcismos e Orações de São Miguel Arcanjo. Súplica a Imperial de Maioral é o Sol no Submundo, cuja fórmula mágica é
São Miguel Arcanjo. Vozes, 2008, pp. 22. àquela dos heróis glorificados no inferno. O São Miguel aqui é, por-
[50] Aluízio Fontenelle. A Umbanda através dos Séculos. Edito- tanto, o Herói que, glorificado no inferno, tem o poder de comando
ra Espiritualista, 1952, pp. 247. sobre os demônios do Submundo, um santo ctoniano, como São
Cipriano, o Herói da goécia como tradição viva e cuja espinha dor-
[51] Nicholaj de Mattos Frisvold. Seven Crossroads of Night:
sal de seus grimórios são as orações de exorcismo. Como vimos no
Quimbanda in Theory and Practice. Headen Press, 2023, pp.
texto A Teologia Noturna da Goécia, a cosmogonia tradicional da
41-2.
goécia no Mundo Antigo e que se manteve preservada no sistema
[52] E isso parece estar em pleno acordo com a magia salomônica do Grimorium Verum, é noturna, sublunar. No pensamento tradi-
dos grimórios, que influenciou profundamente o trabalho de Alu- cional do Mundo Antigo, a esfera sublunar envolvia a totalidade
ízio Fontenelle por meio do Grimorium Verum. de todos os processos cíclicos da Natureza; o Sol e a Lua eram as
No contexto da magia salomônica, desde que Deus permitiu que Ilhas de Hades e de Perséfone: Hades como o Sol do Submundo no
uma parte dos espíritos malignos permanecessem livres para que fundo e Perséfone como a Lua no topo do firmamento. É somente
seu líder, o príncipe Mastema, pudesse agir sobre a humanidade dentro desta cosmogonia noturna, i.e. lunar do pensamento tradi-
em O Livro dos Jubileus, permitindo, portanto, a ação do mal no cional antigo, que faz sentido a Trindade Maioral.

16 Edição 11
disso, Èṣú é vitalidade e vigor, virtudes sem- mortos, e a de Fontenelle, passam a ser ado-
pre representadas na forma de um falo ere- tadas a partir daí, separadas ou em conjun-
to, e sem que, muitas vezes, os praticantes
to, um bastão ou tacape; portanto, Èṣú é a que adotam ambas se preocupem com har-
inteligência espiritual da força ativa e dinâ- monizações conceituais entre elas.[56]
mica do Cosmos, associado à multiplicidade,
porque está em toda parte e vai a todo lugar. Então na obra Exu de Aluísio Fontanel-
Assim como o Hermes-Thoth greco-egípcio, le aparece pela primeira vez à aglutinação
Èṣú é o Senhor do Bastão, àquele que carre- da força marcial do Ògún yorùbá, da força
ga a Dupla Baqueta de Poder que atravessa solar do São Miguel exorcista do catolicis-
o espaço e o tempo com rapidez. mo popular, e da força mercurial do Exu-
Fontenelle faz uma associação direta en- Diabo da Macumba, e dessa miscigenação
tre as virtudes de Èṣú òrìṣà e a ideia de luz nasceu assinatura espiritual que chamamos
astral ou agente mágico universal de Eliphas de Mistério Sem Nome no Brasão Imperial de
Levi: Sendo Exu o dono principal das ruas e Maioral e que comanda todos os Gangas da
encruzilhadas, é a ele quem primeiro devemos Quimbanda.
salvar, pois é somente com sua licença que po- Essa tem sido uma ideia difícil de trans-
demos dirigir um trabalho de Magia, pelo fato mitir. Maioral não é Ògún ou Mesmo São Mi-
de ser ainda ele, o elemento mágico univer- guel, mas o Mistério Sem Nome que miscige-
sal.[54] na suas potências associadas ao dinamismo
Mas o Èṣú yorùbá, no entanto, ainda é e multiplicidade de Exu. E dessa miscigena-
agregado a outra força. Por conta de suas ção também nasceu o Ògún de Quimbanda,
virtudes acima descritas, ele foi associado que é um Exu-Ògún, i.e. um Exu fundamenta-
ao Diabo, por sua vez associado ao acaso, à do na força de Ògún òrìṣà, como Ògún Xoro-
sorte e à escolha e por isso à trapaça, um po- quê, guardião das tronqueiras; Ògún Megê,
der muito próximo a Deus, mas com apetites guardião dos cemitérios; Ògún Malê, guar-
humanos, guardião das encruzilhadas, ma- dião das matas e clareiras; Ògún Retranca
nipulador do fogo mercurial etc. Esse Diabo do Mar, guardião das praias; Ògún Naruin,
possui muita ressonância com Èṣú sim, mas guardião das encruzilhadas etc.
sua característica cristã de genitor do mal A função do Ògún de Quimbanda é fisca-
no Mundo não possui ressonância alguma. lizar a Banda, a atuação dos Exus e Pomba-
Mesmo assim, esse Èṣú-Diabo, associado ao giras nos seus respectivos reinos ou pontos
mal e aos poderes demoníacos, foi o protó- de força, tratando-se de uma herança in-
tipo do Exu da Macumba e, posteriormente, tegral da poderosa influência de Ògún na
do Exu da Quimbanda: tanto alma quanto Quimbanda.
diabo.[55] Eliphas Levi associa o anjo radiante que
reprime e contém o dragão embaixo do seu pé
A Quimbanda, como é apresentada nessas e da sua lança, i.e. o São Miguel solar na capa
primeiras décadas, entretanto, adota o con- do livro de Aluízio Fontenelle, a vontade so-
ceito de multiplicidade de Exu herdado da
África, o reinterpreta em chave kardecista, berana do mago.
e o veste com a iconografia europeia asso-
ciada aos diabos e feiticeiros. Ao mesmo A vontade soberana é representada nos
tempo, a partir da obra seminal Exu de Aluí- nossos símbolos pela mulher que esmaga a
zio Fontenelle, se introduz uma visão diabó- cabeça da serpente, e pelo anjo radiante que
lica desses espíritos, que são identificados reprime e contém o dragão embaixo do seu
por este autor com os demônios do tratado pé e da sua lança.[57]
mágico de origem francesa intitulado Gri-
morium Verum. As duas interpretações,
a kardecista que vê os exus como alma de Isso é interessante de muitas maneiras,
porque todo império da vontade, seja no
[54] Aluízio Fontenelle. Exu. Editora Espiritualista, 1954, pp. 90. Cosmos ou no homem, tem como símbolo
[55] Por influência do kardecismo, o Èṣú òrìṣà tornou-se Exu alma
de morto; por outro lado, o Èṣú demonizado no Séc. XVIII pelos
[56] Humberto Maggi. O Diabo. Clube de Autores, 2022, pp. 194.
missionários cristãos na África, posteriormente com Aluízio
Fontenelle tornou-se definitivamente o Exu-Diabo no imaginário [57] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Madras, 2019,
brasileiro. pp. 66.

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o poder radiante do Sol. Esse poder, essa Toda obra mágica consiste, pois, em desem-
vontade no homem, é o agente fundamen- baraçar-se dos anéis da antiga serpente, e
depois pôr o pé na cabeça dela e guiá-la aon-
tal pelo qual o mago manipula a luz astral: de se quiser. «Eu te darei – diz ela, no mito
Dissemos que para adquirir o poder mágico evangélico – todos os reinos da terra se te
são necessárias duas coisas: desembaraçar ajoelhares e me adorares». O iniciado deve
responder-lhe: «Não me ajoelharei, e tu te
a vontade de toda servidão e exercê-la à do- arrastarás aos meus pés; nada me dará, mas
minação.[58] Por outro lado, ao descrever o servir-me-ei de ti e tomarei o que quiser:
Brasão Imperial, Aluízio Fontenelle diz que porque sou teu senhor e dominador!» Res-
posta que está compreendida, mas oculta,
o poder absoluto é dirigido pelas forças de na que lhe fez o Salvador.
Marte (vontade) e Mercúrio (imaginação). O Já dissemos que o diabo não é uma pessoa.
entendimento do uso dessas três correntes É uma força desviada, como, aliás, seu nome
indica. Uma corrente ódica ou magnética,
de força é fundamental a produção da ten- formada por uma cadeia de vontades per-
são mágica que dará movimento a luz astral, versas, constitui este mau espírito, que o
o Corpo de Maioral. O Caduceu de Mercúrio evangelho chama legião e, que precipita
os porcos ao mar: nova alegoria do arras-
no ventre de Baphomet também é associado tamento dos seres baixamente instintivos
ao poder da vontade do mago, representado pelas forças cegas que pode por em movi-
pela baqueta, bastão, cajado mágico ou falo, mento a má vontade e o erro.[59]
que manipula as correntes da luz astral: o
Aluízio Fontenelle após aglutinar todos
Sol comandando a força de Marte e Mercú-
esses símbolos no Brasão Imperial de Maio-
rio. Esse é o fluxo do Caduceu.
ral – a miscigenação simbólica dos elemen-
Na plenitude de sua potência o caduceu
tos marciais de culto a Ògún,[60] mercuriais
ganha asas, símbolo de sua transcendên-
de culto a Èṣú[61] òrìṣà e por extensão ao
cia. Note que Eliphas Levi é muito claro no
Exu-Diabo[62] da Quimbanda, e solares de
significado e importância da soberania da
vontade sobre os desejos e paixões anima- [59] Ibidem.

lescas – geralmente simbolizadas na região [60] De modo geral, Ògún teve um impacto profundo em vários
cultos e tradições derivadas da diáspora, sendo associado aos
do baixo ventre no homem – para a mani- poderes da magia para ataque e defesa, sob os símbolos vermelho
pulação das correntes de força da vontade e azul do fogo, a lança e a espada do ferro; a caça, o impulso de
(Marte) e imaginação (Mercúrio) no domí- desenvolvimento, a guerra e o domínio. No imaginário brasileiro,
Ògún é o arquétipo do caçador primordial. Daí, por extensão des-
nio da luz astral. É por isso que o Caduceu de de o início, devido à importância de Ògúm e sua representação
Mercúrio está no baixo ventre de Baphomet, hierofônica, a Quimbanda herda essa virtude ancestral de guerra,
harmonizando como um eixo, uma espinha caça, abate, domínio (força) e expansão do território, e iss está
em sincronia, em certa medida, com a tradição fáustica-cipriânica
dorsal, as partes bestiais teriomorfas que o europeia.
compõem. Eliphas Levi conclui: [61] No culto tradicional yorùbá, o Iṣéṣé Làgbà, Èṣú carrega a vir-
tude mercurial da comunicação entre os planos material e espiri-
Declaremos aqui, sem rodeios, que o gran- tual. É Èṣú o agente de comunicação que carregar as orações dos
de agente mágico, a dupla corrente de luz, homens até Olúdùmarè, o dono do Mundo. Èṣú é amigo íntimo e
o fogo vivo e astral da terra, foi figurado confidente de Òrúnmìlà, deidade yorùbá da sabedoria, e se encon-
pela serpente de cabeça de touro, de bode tra no centro de toda e qualquer encruzilhada, de onde ele obser-
ou de cão, nas antigas teogonias. É a dupla va todos os eventos em todos os lugares do Mundo. Èṣú carrega o
serpente do caduceu, é a antiga serpente do tacape da punição, com o qual ele castiga os homens, instigando
Gênese; mas é também a serpente de zinco -os a confusão na intenção de corrigir o caráter das pessoas. Al-
gumas casas antigas de Candomblé interpretaram que, sendo Èṣú
e Moisés, entrelaçada ao redor do tau, isto
esse espírito irascível e indomável, ele deveria comer primeiro na
é, do ligham gerador; é também o bode o Sa-
intenção de ser apaziguado e não trazer confusão para a ordem do
bbat e o Baphomet dos Templários; é o Hyle
ritual, deixando-o fora do ambiente do barracão.
dos Gnósticos; é a dupla cauda da serpente
Mas no Iṣéṣé Làgbà não é assim. Tanto no Iṣéṣé quanto no Ifá,
que forma as pernas do galo solar Abraxas;
Èṣú come primeiro porque ele está no limiar entre o mundo dos
é, enfim, o Diabo do Sr. Eudes de Mirville, e é espíritos e o mundo dos homens e, portanto, compreende todas
realmente a força cega que as almas têm de as situações da perspectiva espiritual e da perspectiva humana.
vencer para libertar-se das cadeias da ter- Èṣú é, assim, uma ponte, uma encruzilhada entre os reinos visível
ra; porque, se a sua vontade as não separar e invisível.
desta imantação fatal, serão absorvidas na O Exu-Diabo e seu culto na Quimbanda concentram as virtudes
corrente pela força que as produziu, e volta- destes dois òrìṣà, Èṣú e Ògún, fundidas em uma só entidade.
rão ao fogo central e eterno.
[62] Tanto Èṣú quanto Ògún na África foram diabolizados antes de
chegarem ao Brasil. Por conta de suas virtudes e características
[58] Ibidem. peculiares, para os cristãos missionários do Séc. XVIII eles eram

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[...] A antiga serpente da lenda nada mais é
do que o agente universal, é o fogo eterno da
vida terrestre, é a Alma do Mundo, e o fogo
vivo do inferno.
O grande agente mágico, a dupla corrente
de luz, o fogo vivo e astral da terra.[63] [...]
É o fogo eterno da vida terrestre; é a Alma
do Mundo e a lareira viva do inferno. Dize-
mos que a Luz Astral é o receptáculo das
formas. Evocadas pela razão, essas formas
são produzidas em harmonia, evocadas pela
loucura, tornam-se desordenadas e mons-
truosas.[64]
[...] O grande agente mágico se revela por
quatro espécies de fenômenos, e foi classifi-
cado, pelas experiências das ciências profa-
nas sob quatro nomes: calórico, luz, eletrici-
dade, magnetismo.
Deram-lhe também os nomes de Tetragra-
ma, Inri, Azoth, Éter, Od, fluido magnético,
Alma do Mundo, Serpente, Lúcifer, etc.
O grande agente mágico é a quarta emana-
ção da vida-princípio de que o Sol é a ter-
ceira forma (ver os iniciados da escola de
Alexandria e o dogma de Hermes Trisme-
gisto).[65]
De modo que o olho do mundo (como o cha-
mavam os antigos) é a miragem do reflexo
de Deus e a Alma do Mundo é um olhar per-
manente do Sol que a terra recebe e guarda
por impregnação.
A lua concorre para esta impregnação da
terra, repelindo para ela uma imagem solar
Hermes segurando o Caduceu de Mercúrio durante a noite, de sorte que Hermes teve
razão de dizer, falando do grande agente:
«O Sol é seu pai, a Lua é sua mãe». Depois,
São Miguel – ele associa todo o conjunto a acrescenta: «O vento o trouxe no seu ventre,
força solar e insidiosa de Lúcifer Exu-Rei. porque a atmosfera é o recipiente e como
que o cadinho dos raios solares, por meio
Mas essa associação também vem inspirada dos quais se forma esta imagem viva do Sol
em Eliphas Levi, que conecta todos os sím- que penetra a Terra inteira, vivifica-a, fe-
bolos da luz astral a irradiação solar de Lú- cunda-a e determina tudo o que se produz
na sua superfície, por seus eflúvios e suas
cifer: correntes contínuas, análogas às do próprio
sol».
Este agente solar é vivente por duas forças
contrárias: uma força de atração e uma for-
demônios e Èṣú em especial, o Diabo, devido aos cornos e o falo ma de projeção, o que faz Hermes dizer que
ereto, assim como era retratado o Diabo do Sabbath das Bruxas. ele sempre sobe e desce. [...] É por esta dupla
Mas não é sua associação com o princípio do Mal que o assemelha força que tudo é criado e tudo subsiste.[66]
a Éṣú; na Bíblia, o Diabo tentava os indivíduos por ordem do Deus
todo poderoso; o Diabo levou Jó ao limite do desespero porque
Deus permitiu ( Jó 2:7); no deserto, o Diabo tentou Jesus porque
Como vimos anteriormente, Lúcifer toma
Deus também permitiu (Mateus 4:1); quando o Diabo aplicava al- preeminência na Quimbanda e o Brasão
guma punição, era por meio do julgamento de Deus (Zacarias 3:1). Imperial de Maioral é onde Lúcifer mostra
Então o Diabo exerce uma função no Cosmos. O Diabo conhece
todos os segredos do Cosmos; o Diabo é capaz de curar, de amaldi- toda a sua supremacia como agente mágico
çoar e punir; o Diabo pode dar todas as coisas que facilitam a vida universal.[67] Em seu livro Trabalhos Prá-
na matéria; por isso ele é o Rei deste Mundo, o Senhor de todas
as Bestas, o Espírito Selvagem da Natureza. Todas essas virtudes [63] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Pensamento,
foram associadas a Exu e, sobre tudo, ao Chefe Império Maioral. A 2017, pp. 132.
própria ideia de que Exu é uma função, assim como o Diabo o é, já
foi interpretada de maneiras distintas por inúmeras vertentes de [64] Ibidem, pp. 147.
Umbanda. E isso está em acordo a uma passagem de Fontenelle, [65] Referência a Tábua de Esmeralda.
levando em conta toda essa miscigenação mágico-cultural que
[66] Eliphas Levi. Dogma e Ritual de Alta Magia. Madras, 2019,
tratamos até aqui, onde ele coloca Maioral como uma função:
pp. 86.
Ele [i.e. Maioral] trabalha com diversas falanges em cumprimento
às determinações que lhe são impostas pelo divino criador. Aluízio [67] Aluízio Fontenelle. Umbanda através dos Séculos. Editora
Fontenelle. Exu. Editora Espiritualista, 1954, pp. 105. Espiritualista Ltda, 1952, pp. 246.

19 Edição 11
Lúcifer é Exu-Rei, a Unidade Absoluta de
onde emana todo o poder da Quimbanda:

A Entidade Máxima, denomina-se «MAIO-


RAL», tendo ainda outros denominativos,
tais como: Lúcifer, Diabo, Satanaz, Capêta,
Tinhoso, etc., etc., sendo que nas umbandas
é mais conhecido como EXU-REI.[69]
Sua Majestade «Lúcifer» ou Exu-Rei, é o
dono e senhor das trevas. Considerado pela
sua falange como o «ABSOLUTO», é quem
domina o reino da terra. [...] Dotado de po-
deres infernais, intitula-se REI DOS ESPÍRI-
TOS ou o SACTUM REGUM.[70]

Na Quimbanda, portanto, Exu-Rei re-


presenta a unidade transcendente de to-
dos esses mitos e símbolos aglutinados sob
a alcunha de Lúcifer. Na figura de Exu-Rei,
representa a Unidade da Trindade Maioral:
Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth.[71] É por
isso que se diz que se trata de um Exu pri-
mordial e, portanto, nunca se apresentando
em terra, i.e. manifesto em incorporação.
Ele é o Sanctum Regnum, i.e. o Reino
Divino da Quimbanda, sua totalidade. Os
Reinos da Quimbanda derivam dele, que é a
Ilustração em Antônio de Alva
fonte ou o trono de onde surge, de onde co-
Trabalhos Práticos de Magia Negra, 1984
meça, toda a Quimbanda. Por isso é dito que
ticos de Magia Negra,[68] Antônio de Alva Maioral é a primeira encruzilhada de fogo, o
abre com uma prece a Sêo Lúcifer: princípio de tudo, o Absoluto. Na Quimban-
da Lúcifer é Deus!
Senhor LUCIFER, Salve o SENHOR! Salve a Mas este Lúcifer apresentado por Aluí-
VOSSA FORÇA! Salve o VOSSO PODER! Aqui zio Fontenelle também é uma síntese. Nele
estamos reunidos, por VóS e para VóS! Bem podemos ver a interpretação corrente da
sabeis que não aceitamos, de modo algum,
a existência de um DEUS e um DIABO! Não, Igreja, como o anjo belo caído, herança de O
de modo algum, não! Ao contrário - e nisto Livro de Enoch, aliada a síntese moderna
nos julgamos absolutamente certos - acei- de Eliphas Levi, acrescido da identidade que
tamos um só e único DEUS, PODER SUPRE-
MO e ABSOLUTO, com duas FACES, uma das recebeu no curso da tradição dos grimórios.
quais SOIS VóS! Eis porque, ao nos dirigir- Em seu estudo sobre o Grimorium Verum,
mos a VóS, à VOSSA MAJESTADE, fazemo-lo Jake Stratton-Kent diz sobre o Lúcifer que
como, na verdade, ao DEUS ou PODER SU-
PREMO, CRIADOR e SENHOR ABSOLUTO de ali aparece:
tudo e de todos! Vemos, pois, em VóS, tudo
o que, de mais belo, maior e melhor, se po- Palavra latina para Portador da Luz, um tí-
derá humanamente concebe-r e aceitar! E, tulo para Vênus como Estrela da Manhã, que
justamente por isso, na certeza de que nos também parece ter sido aplicado ocasional-
aceitareis e nos atendereis, pedimo-VOS, mente a Mercúrio, um deus das encruzilha-
por QUEM SOIS, LUZ, FORÇA e PODER para,
pelo mundo inteiro, espalhando o que te- [69] Aluízio Fontenelle. Exu. Editora Espiritualista Ltda, 1954, pp.
mos e aceitamos como certo e verdadeiro 93.
a VOSSO respeito, algo de grande e positi- [70] Ibidem, pp. 103-4.
vo podermos fazer, divulgando os nossos
[71] Também referida como Trindade Infernal porque Lúcifer,
pontos de vista, por intermédio desta nossa
Beelzebuth e Ashtaroth equiparam-se no Grimorium Verum
CRENÇA EM VóS! Assim o desejamos! Assim e zeitgeist da época, a uma trindade pagã do submundo, Lúcifer
será! Por VóS e para VóS! como uma figura de Hermes-Prometeu, mais Baal e Astarte. Veja
[68] Pallas, 1984. o segundo volume de Daemonium.

20 Edição 11
das com o papel de mensageiro. O fósforo Lúcifer na Quimbanda é uma potência
grego tem a mesma interpretação, incluindo andrógena. No ponto cantado de Maioral na
as associações astrológicas. Outra conexão
é com Prometeu que trouxe o fogo para a Quimbanda Nàgô nós aprendemos: São três
humanidade, que também tem associações potências, são três forças, são três Maiorais.
astronômicas de natureza semelhante.[72] Saravá Sêo Lúcifer, Ashtaroth e Beelzebuth.[76]
Em si mesmo, como um arquétipo andróge-
Como o Portador da Luz, na Quimbanda
no, Lúcifer encerra os poderes masculinos
Lúcifer tem uma exaltada posição – como
do Sol (Beelzebuth) e os poderes femininos
àquela que possuiu um dia nos Céus como
da Lua (Ashtaroth). Trata-se, portanto, do
o mais belo, exaltado e brilhante de todos
equilíbrio perfeito entre as forças solares
os anjos, e como o Soberano do Inferno após
e lunares no Cosmos e no homem, possibi-
sua queda – onde aparece na Quimbanda
litando a materialização do Cosmos.[77] Uma
como figura de altos conhecimentos, [...] pro-
deidade cognata seria Fanes, nome grego
metendo-nos este mundo e o outro, exigindo
que significa luz, no sentido de fazer-se apa-
tão somente que por nós, seja tratado por:
recer a criação ou o princípio celestial que
Majestade.[73] [...] Tendo começado o exercício
pervade e une todo o Cosmos: a Terra (Gaia)
de sua missão [...] Exu-Rei, o Maioral dos Exus,
ou mundo visível, e o Céu (Urano) ou mundo
[...] é invocado em trabalhos de «Alta Magia
invisível, representando a missiva herméti-
Astral», visto ser considerado como a entida-
ca tradicional de acima e abaixo no axioma
de de maior poder e de maior capacidade no
de Hermes. O princípio luciférico de Fanes,
culto de Magia Negra.[74]
neste caso, é a própria essência da gnose da
Sendo a Quimbanda um sistema de aper-
força mágica em sua forma transcendente e
feiçoamento da arte de fazer magia, Lúci-
que possibilita a criação ou materialização
fer nos confere através da gnose com ele, o
em todo e qualquer caso, i.e. poder de magia,
Maioral dos Infernos, o poder de fazer ma-
domínio das correntes de força que possibi-
gia; a luz que ele nos confere é o conheci-
litam a realização da magia, a taumaturgia.
mento para manipular as suas correntes de
A Unidade transcendente de todo esse
força na luz astral, seu corpo luminoso. E
mistério está impressa no Brasão Imperial
isso está em acordo com a tradição dos an-
no símbolo do Ouroboros,[78] representando
jos caídos que se tornaram demônios, dos
a Força Enteléquia[79] de Maioral.
quais Lúcifer tornou-se o Supremo Coman-
O dragão Ouroboros, o um o todo – tam-
dante no Inferno. Em O Livro de Enoch os
bém identificado com a Prima Matter – no
anjos ensinavam a humanidade os saberes
Brasão Imperial de Maioral, é um antigo
ocultos da magia, astrologia etc. Isso está
selo hermético de clausura nos livros da
em acordo também com a tradição cipriâni-
Arte Régia e está ali demonstrando a força
co-fáustica da magia, onde o Diabo pessoal
transcendente e a absoluta autossuficiência
ensina conhecimentos ocultos ao mago que
com ele pactua.[75] Na bruxaria tradicional, [76] Ponto cantado de autoria de Táta Nganga Malembu Mikunga
e Táta Nganga Kilumbu.
é o Diabo que confere acesso aos espíritos
[77] O entendimento disso é muito importante na Quimbanda,
da Natureza e através deles, operar magia. porque ele está apresentado iconograficamente na imagem de
Não é diferente na Quimbanda: é o Chefe Im- Baphomet de Eliphas Levi. Como um equilíbrio perfeito de forças,
pério Maioral que confere o acesso do kim- Baphomet torna-se o ícone ou o símbolo da Grande Obra alquími-
ca, i.e. o trabalho completo do iniciado.
banda as hordas de Exus, porque todo Rei-
[78] Tudo o que a Quimbanda representa, sua natureza e totalida-
nado vem dele. de (abrangência), está harmoniosamente demonstrado no Brasão
Imperial de Maioral. Ali estão todas as conexões hermético-alquí-
micas da Quimbanda.
[72] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia Go- [79] Enteléquia na filosofia aristotélica é a realização plena e
etica. Scarlet Imprint, 2022, pp. 196. completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natu-
[73] Aluízio Fontenelle. Exu. Editora Espiritualista Ltda, 1954, pp. ral, concluindo o processo transformativo de todo e qualquer ser
93. animado ou inanimado do Cosmos. É o ser em ato, i.e. plenamente
realizado, completamente iluminado, em oposição ao ser em po-
[74] Ibidem, pp. 103-4.
tência. Em Aristóteles, enteléquia é o impulso natural de realiza-
[75] Veja os dois volumes do Daemonium para aprofundar nesse ção interno a qualquer ser, ou melhor, sua realização. É a força
tema. inata que a tudo faz passar de potência a ato.

21 Edição 11
de Maioral, a força única de coesão entre os vertido no centro do Brasão reforça a ideia
Quatro Elementos e o domínio régio sobre de descida ou materialização da força espi-
eles, o todo que contém em si todas as po- ritual, o que efetivamente ocorre na ação
tências de desenvolvimento e geração de to- dos Gangas da Quimbanda, representados
das as coisas, perpassa todas as coisas, está pelas sete cruzes na parte de baixo do Bra-
latente em todas as coisas e é a totalidade são, as Sete Linhas de Quimbanda.
de tudo no todo. Fontenelle descreve o triângulo de mani-
Essa força basta a si mesma e também festação como sendo o triângulo mágico de
encerra a si mesma, contendo em si o po- Salomão. Na magia salomônica, de onde vem
der (veneno) da dissolução e a capacidade o uso do triângulo da arte ou de manifesta-
de transformação. Ao mesmo tempo que é ção, seu uso nunca é endereçado à comuni-
o princípio de domínio (macho), também é cação com deuses ou anjos, mas com espíri-
princípio dominado (fêmea), sendo, portan- tos ctônicos, telúricos e aéreos, os demônios
to, potência andrógena. É a matéria dos sá- dos grimórios. Trata-se da área destinada à
bios ou a Pedra, porque encerra e contém em manifestação material do demônio. Seu uso
si tudo o que necessitamos para o trabalho como um símbolo no Brasão Imperial de
mágico; é o ovo que contém em si todas as Maioral reforça o significado de que o po-
potências de desenvolvimento e geração de der impessoal do Mistério Sem Nome repre-
todas as coisas, a força que se desenvolve na sentado nele é capaz de materializar, cons-
multiplicidade caótica de todo o Mundo. É o tringir e dirigir os demônios, as forças das
tudo do todo. É a água divina cuja natureza trevas, e comandar a potência dinâmica do
é difícil de contemplar porque é indômita: reino da geração. O pentagrama invertido,
cria, destrói e recria; copula, impregna-se e por outro lado, é um símbolo universal das
dá a vida. O Dragão Indomável do qual falou forças elementais dominando a matéria e na
Eliphas Levi. magia negra da Quimbanda, o poder de ma-
terialização e realização da força espiritual
O grande agente mágico, que denominamos de Maioral. Em conjunto, esses dois símbo-
luz astral, que outros chamam de Alma do los, o triângulo salomônico de manifestação
Mundo, que os antigos alquimistas designa-
vam sob os nomes de Azoth e Magnésia, esta e o pentagrama invertido demonstram que
força oculta, única e incontestável é a chave toda a força espiritual ali descrita é mate-
de todos os impérios, o segredo de todos os
poderes; é o Dragão Volante da Idade Média rial ou, em outras palavras, tem pleno poder
[ouroboros], a serpente do mistério edênico; sobre tudo o que envolve o reino da geração.
é o espelho universal das visões, o laço das
simpatias, a fonte dos amores, da profecia e
da glória. Saber apoderar-se deste agente é Seção . I V .
ser depositário do próprio poder de Deus;
toda magia real, efetiva, todo o verdadeiro A Demonologia do Grimorium
poder oculto. Está aí, e todos os livros da
verdadeira ciência só têm o fim de o de-
Verum[80]
monstrar.
Para apoderar-se do grande agente mágico,
duas operações são necessárias: concentrar Em todos os países e em todos os tempos,
e projetar; em outros termos, fixar e mover. encontra-se comumente disseminada a
O autor de todas as coisas deu para base e crença em seres sobrenaturais, de uma
garantia do movimento a fixidez; o mago classe inferior à dos deuses, que interveem
deve agir da mesma forma. diretamente no curso das coisas e especial-
mente nos assuntos humanos, seres benfa-
zejos, maléficos ou indiferentes, com quem
Note como os dois pentagramas laterais, o homem procura se conciliar mediante
Marte e Mercúrio, formam com o Sol no topo práticas religiosas ou mágicas; é o povo inu-
do Brasão Imperial um triângulo ascenden- merável e temível dos espíritos, demônios,
anjos e gênios de toda espécie, invisíveis,
te, delineando essa influência mágica que ativos e obsessores.[81]
chamamos de Mistério Sem Nome. Todo esse
[80] Em conexão com esta seção, veja o artigo As Origens da Demo-
Mistério Sem Nome, por outro lado, é proje- nologia de Aluízio Fontenelle, nesta edição.
tado para baixo a partir do triângulo salo- [81] Jean Beaujeu. Apulée. Opuscules Philosophiques – Du Dieu
mônico de manifestação. O pentagrama in- de Socrate, Platon et sa Doctrine, Du monde. Citado em Luiz

22 Edição 11
A transcendência radical da divindade su-
prema e a distância intransponível entre os
deuses e os humanos, como postulado pelos
peripatéticos, alimentou a ânsia dos plato-
nistas de reconciliar o homem com o divino.
[...] A demonologia forneceu uma solução.
Postulou uma hierarquia divina na qual a
agência prometeica dos demônios garante
toda interação entre homens e divindade.
Ao atribuir multiplicidade e mobilidade a
esses seres intermediários, a demonologia
ajudou a preservar o politeísmo tradicional
e, ao mesmo tempo, a unidade, o afastamen-
to e a serenidade do reino divino.[82]

Na Quimbanda, carinhosamente cha-


mamos os Gangas de diabos. Tem um ponto
cantado de Exu dos Rios que começa assim:

Fui num riacho pra colher tabatinga


E pegar okutá pra assentar meu diabo...[83]

Esse apelido carinho de diabo dados aos


Gangas da Quimbanda é uma herança[84] do
Grimorium Verum, que começa assim:
lomão, mui sábio Nigromante, ou Rabino,
hebreu. Na primeira parte estão contidas
Aqui começa o Sanctum Regum, chamado diversas disposições de caracteres, pelos
o rei dos Espíritos, ou as Clavículas de Sa- quais são invocadas as Potências, os Espí-
Karol. De Deo Socrates: A Demonologia no contexto do Império ritos, ou melhor dizendo, os Diabos, para os
Greco-Romano. Tese de doutorado no Programa de Pós-gradua- fazer vir quando vos agradar, cada um de
ção em Letras Clássicas. UFRJ, 2016, pp. 65. acordo com sua potência, e para lhes cons-
tranger a fazer tudo que tu lhes ordenar, e
[82] Jean Beaujeu. Apulée. Opuscules Philosophiques – Du Dieu sem jamais se aquietar por qualquer coisa,
de Socrate, Platon et sa Doctrine, Du monde. Citado em Luiz desde que eles estejam satisfeitos com sua
Karol. De Deo Socrates: A Demonologia no contexto do Império parte, porque esse tipo de criatura não faz
Greco-Romano. Tese de doutorado no Programa de Pós-gradua- nada por nada.[85]
ção em Letras Clássicas. UFRJ, 2016, pp. 29.
[83] Ponto de autoria de Táta Nganga Malembu Mikunga, família
Danjilesunbu.
Os espíritos do Grimorium Verum são o
que denominamos em nossa cultura ociden-
[84] A alcunha de diabo é usada para se referir a demônios di-
versos desde o período colonial. O carpuchinho Yves d’Evreux foi tal de demônios. Tradicional, por definição,
outro europeu pródigo em alusões aos feiticeiros tupis, com os quais este livro [i.e. o Verum] pertence à magia ne-
os diabos mantinham comunicação constante com os índios [...] por
intermédio de demônios familiares. Laura de Mello e Souza. Infer-
gra, na medida em que ele ensina ao operador
no Atlântico: Demonologia & Colonização Séculos XVI-XVIII. a conjurar aqueles que ele admite serem demô-
Companhia das Letras, 1993, pp. 28. Como tenho demonstrado nios.[86] Como vimos nas edições anteriores,
desde o segundo volume do Daemonium, a incursão diabólica do
Diabo e sua corte demoníaca ocorreu nos dois momentos do Culto a palavra demônio evoluiu com o tempo. Ela
de Exu no Brasil. No primeiro momento (período colonial), ouve aparece primeiro na Ilíada e na Odisseia
uma disputa entre as forças do bem e do mal pelo Brasil e que, se- de Homero (928-898 a.C.) como referência
gundo os etnodemonólogos quinhentistas e seiscentistas da épo-
ca, foi personificada na própria identidade brasileira. Era comum aos próprios deuses do Olimpo. Em Hesío-
ver os espíritos reverenciados pelos aborígenes como diabos, do (c. 750-650 a.C.) os demônios aparecem
como nas peças de teatro compostas por José de Anchieta (1537-
1597), onde o Diabo e os demônios são associados diretamente a
como a alma dos homens que haviam vivido
cultura ameríndia. É interessante que o Novo Mundo criou um im- na era dourada da humanidade, responsá-
pacto profundo no imaginário Europeu, então faz sentido que um veis por distribuir as riquezas pelo mundo.
dos três Chefes Maiorais do Grimorium Verum, Ashtaroth, esteja
associado diretamente as Américas, porque no imaginário euro-
O demônio como distribuidor de coisas boas
peu, o Diabo e suas legiões de demônios fugiu para o Novo Mundo, ou ruins está em acordo com a origem eti-
onde o poder da Cruz de Jesus ainda não era tão insidioso sobre
[85] Grimorium Verum, 1817. Tradução em Humberto Maggi.
a terra, tanto que, pelos conluios ardilosos do Diabo, mudou-se o
Thesaurus Magicus, Vol. I. Clube de Autores, 2010, pp. 438.
nome da terra de Terra de Santa Cruz para Brasil. Para o tema dos
dois momentos do Culto de Exu no Brasil, veja o segundo volume [86] Idries Shah. A Tradição Secreta da Magia. Bertrand Brasil,
do Daemonium. 1998, pp. 96.

23 Edição 11
mológica da palavra. Nesse contexto, Zeus cem na recessão mítica contada no Livro do
seria o grande demônio, por distribuir todas Gênesis. Considerando as sugestões de São
as coisas boas, mas também ruins, a huma- Justino (114-165 d.C.), alguns apologistas
nidade. O interessante é que em Hesíodo os gregos repetiram a fábula que afirmava que
demônios passam a ser criaturas espirituais os gigantes (nephilim) ou demônios nasce-
intermediárias entre os homens e os deu- ram do congresso sexual entre os anjos caí-
ses, além de terem a conotação de almas de dos e as filhas dos homens. Estes demônios
mortos. Platão reforça a ideia dos demônios habitavam entre os homens, afastando-os
como criaturas espirituais intermediárias da presença de Deus, além de serem a fon-
e distribuidoras de riquezas, destacando te que espalhou o conhecimento da magia,
Eros como o grande demônio. No fim da An- da idolatria e do vício no mundo. São Ireneu
tiguidade a palavra demônio já era utilizada (130-202 d.C.) e Tertuliano (155-220 d.C.)
como sinônimo para uma variedade de espí- foram profundamente inspirados por essa
ritos, indicando qualquer agência espiritual, tradição, e Lactâncio (260-325 d.C.) depois
não importando a diferença. Mortos, criatu- deles disse que dos anjos caídos nasceram
ras da natureza e deuses, todos eram cha- os demônios celestiais e deles, os demônios
mados de demônios. Herdando concepções terrenos, sendo estes os espíritos impuros
de Plotino (204-270 d.C.), Jâmblico destaca (i.e. malignos) que vagam pela terra. Então
o valor do demônio pessoal, ideia fundamen- Santo Agostinho (354-430 d.C.) fornece um
tal por trás do conceito medieval e moderno último detalhe importante desse desenvol-
de Sagrado Anjo Guardião. É a partir da Sep- vimento demonológico cristão: os deuses
tuaginta que os termos demônio e anjo co- das nações são demônios ainda mais impu-
meçam a ter o significado que hoje conhece- ros, e que desejam ser pensados como deu-
mos e usamos. E é somente na Septuaginta, ses, aproveitando-se dos nomes de antigas
i.e. o Velho Testamento traduzido para o almas e de aparência de criaturas grotes-
grego koiné[87] no Séc. III d.C. pela primeira cas. Essa demonologia construída no fim da
vez, que a palavra demônio aparece de for- Antiguidade forneceu o combustível para
ma pejorativa, designando todos os deuses demonologia que se estabeleceu na Idade
e espíritos menores adorados por outras Média.
nações, culturas e folclores, e essa é a raiz E os espíritos menores dos locais de po-
da demonologia estabelecida no Grimorium der e outras criaturas encantadas da na-
Verum. tureza, conhecidos na Antiguidade como
A partir da demonologia que se cons- faunos, sátiros etc. e na Idade Média como
truiu na Septuaginta e derivada dela, a íncubos, súcubos, elementais, duendes, gno-
demonologia do Novo Testamento e dos pri- mos, fadas etc.? Martianus Capella (360-428
meiros padres da Igreja, o Ocidente desde o d.C.) combina Lactâncio e Santo Agostinho
fim da Antiguidade criou uma demonologia para concluir no Séc. V d.C. que:
particular, modelada a partir de tradições
bíblicas e conjugada com elementos retira- Os locais [de poder] inacessíveis ao homem
dos das religiões pagãs da Europa e, a partir [comum, católico piedoso] são habitados
por uma legião de antigas criaturas que as-
do Séc. XV, das Américas também. Segue um sombram os bosques, clareiras, lagos, nas-
resumo de contextualização: centes, riachos e cavernas, cujos nomes são
Pã, Fauno, Sátiro, Ninfa, Fadas ou mesmo
A Igreja fabricou o mito[88] dos anjos neu- Fantasmas.[89]
tros (i.e. nem bons e nem maus), que apare-
[87] Aportuguesando, coiné. Significa comum. Era a língua co- O bispo Martinho de Braga (520-579
mum falada e escrita entre os gregos do Mediterrâneo oriental
d.C.) menciona os anjos que caíram do céu
nos períodos helenístico e romano. Foi o resultado da fusão de
diversos falares gregos entre os Sécs. I e V a.C., tendo como base junto com Lúcifer:
o dialeto ático.
son. A Bíblia e os Mitos Clássicos: A Estrutura Mitológica da
[88] O imaginário do homem ocidental foi construído sobre os
Cultura Ocidental. Sétimo Selo, 2023.
mitos criados na tradição bíblica, desde o Livro do Gênesis até o
Livro do Apocalipse, assim como sobre os mitos clássicos gregos. [89] Citado em Claude Lecouteux. Demons and Spirits of the
Para uma investigação incrível veja Northrop Frye e Jay Macpher- Land. Inner Traditions, 2015, pp. 25.

24 Edição 11
Geraldo de Gales (1146-1223) coletou
Muitos são aqueles que permanecem no um relato interessante e o disponibilizou
mar, nos rios, nas nascentes ou nas flores- em sua Jornada pelo País de Gales no Séc.
tas; a adoração popular [folclórica] deles
como deuses é reverenciada com sacrifí- XII:
cios. No mar eles invocam Netuno; nos rios,
as Lâmias; nas primaveras, as Ninfas; nas Um dia um estranho se aproximou do bispo
florestas, Diana; que não são nada além de de Dácia e lhe disse: «Antes de Jesus Cristo
demônios e espíritos malignos que oprimem nascer na carne», disse ele, «mas quando ele
a fé do homem que não sabe ou não pode se veio, esse poder foi muito diminuído. Eles
defender com o sinal da cruz.[90] [os demônios] estavam dispersos, alguns
aqui, outros lá, porque fugiram da presença
Hugo de Pisa (1115-1182 d.C.) baseando- dele. Alguns se arremessaram para o mar.
Outros se esconderam em árvores ocas e
se em Martinho de Braga diz: nas rachaduras das rochas.»[93]

Muitos dos demônios expulsos do céu vivem Walter Map (1130-1210 d.C.) acrescen-
no mar, nos rios, nas nascentes ou nas flo- ta que os anjos rebeldes foram lançados na
restas; os ignorantes os chamam de quase
deuses e lhes oferecem sacrifícios. No mar, terra às vezes em vastos desertos, e às vezes
eles são chamados de Netuno, Lâmia nos em lugares habitados, dependendo de seu pe-
rios, Ninfas nas fontes e Diana nas flores- cado.[94] Enganados pela astúcia do Diabo,
tas.[91]
nossos ancestrais pensaram que estes de-
Entre os Sécs. VI e XII d.C. essa demono- mônios eram semideuses e com base onde
logia cristã foi completamente desenvolvida habitavam, eram chamados de Criaturas dos
ao ponto de oferecer uma explicação canô- Montes, Silfos e Sílfides, Dríades, Oréadas,
nica pela Igreja. Um grupo pequeno de anjos Faunos, Sátiros e Náiades.[95] Os nomes aqui
não participou da luta que enfrentou Deus delineados são àqueles que figuravam na
contra Lúcifer. Como o pecado deles era cultura folclórica e cultos populares. E em
menor do que o dos anjos rebeldes, Deus os um texto do Séc. XIII, chamado de Magnifi-
lançou na terra e não no inferno. Esse mito cat, nomeia os demônios com base em sua
aparece na história irlandesa da Viagem de habitação:
São Brandão, aparecendo posteriormente
nos contos populares nas regiões germâni- Deus lançou os demônios na terra. Eles es-
tão em toda parte. Nas águas e nas monta-
cas em seguida no Parzival de Wolfram von nhas habitam o Nicker e os anões, nas flo-
Eschenbach (1170-1220 d.C.). O novo mito restas e pântanos Deus também colocou
se espalhou até aparecer nos registros do os pequenos peludos; Estes são os elfos, os
Thurses e os Wichte, que não valem nada.[96]
papa inquisidor Jacques Fournier (Bento XII
– 1285-1342 d.C.). Aqui nicker é sinônimo de sereia; os thur-
E o que aconteceu com esses anjos que ses são gigantes e wichte é um termo gené-
foram lançados na terra? Eles se tornaram rico utilizado para se referir aqueles cujos
os espíritos que habitam os locais de poder nomes não se deseja falar, por trazerem mau
na natureza selvagem e virgem.[92] Assim é augúrio. Estes correspondem aos nomes la-
estabelecida nessa demonologia uma cone- tinos de Lamia, Neptunos, gigas, spiritus etc.
xão direta entre os anjos caídos e os diver- e como tais, são espíritos das tradições po-
sos espíritos da natureza e deuses de inú- pulares, os seres da mitologia e folclore.
meras culturas e folclores: todos demônios. Em uma das melhores contribuições
[90] Ibidem, pp. 26. para o estudo da demonologia, o professor
[91] Ibidem. David Frankfurter em sua obra, Evil Incar-
[92] Nos relatos dos etnodemonólogos quinhentistas e seiscen- nate: Rumors of Demonic Conspiracy and
tistas é possível ver essa associação direta entre o Diabo, os de-
mônios e a natureza selvagem do Brasil, quando personificavam [93] Citado em Claude Lecouteux. Demons and Spirits of the
inúmeros impedimentos, cascatas e tempestades por exemplo, Land. Inner Traditions, 2015, pp. 27.
como obstáculos oferecidos pelo próprio Diabo contra a expansão [94] Ibidem.
do poder da Cruz de Cristo. Veja Laura de Mello e Souza. Inferno
[95] Ibidem.
Atlântico: Demonologia & Colonização Séculos XVI-XVIII.
Companhia das Letras, 1993. [96] Ibidem.

25 Edição 11
Satanic Abuse in History, levantando a in- rito é conhecido por habitar; a raiva desse
dagação de por que o demoníaco, associado espírito deve ter sido acesa recentemente
– ou há muito tempo? É a natureza habitual
ao marginal, o liminar, o caótico, o prometei- do espírito, ou é a negligência do pastor em
co, o não estruturado parece intercultural- não propiciar o espírito? A paisagem local
mente como um reino tão rigidamente orga- – com seus pontos de mistério (penhascos),
perigo (lagoas), extensão (campos), sigilo
nizado?,[97] descreve como a demonologia se (cavernas) e associações antigas (pedre-
organizou nos diversos períodos da história gulhos antropomórficos) – torna-se assim
religiosa do homem, a partir das institui- uma topografia de catástrofe, à medida
que o lugar e a passagem se correlacionam
ções já estabelecidas, sobre todos os espí- ao infortúnio através das histórias dos de-
ritos da cultura e do folclore, contrastando mônios locais. Consequentemente, evitar o
com a realidade dos cultos familiares e po- infortúnio é expresso através da evitação
consciente ou atenção ritual a lugares da
pulares. Ele diz: paisagem.
Os animais também servem a um propósito
Um paradoxo intrigante: [enquanto] as de conceituar o poder demoníaco. Em reli-
hierarquias [de demônios] precisas que as giões antigas, particularmente, a fauna é a
instituições religiosas constroem, com suas própria imagem dos poderes demoníacos
fileiras, títulos e armamentos, que con- e, portanto, serve como um meio adicional
sistem em seres meio animais e perversos para as culturas mapearem seu senso de
empenhados em causar estragos no mundo, poderes malignos. Os ritos de proteção pú-
[por outro lado] nas paisagens locais onde blica na Grécia antiga envolviam a repelên-
as pessoas realmente se emaranham com cia de leões, lobos, ursos e insetos e, no an-
demônios, nas quais se acredita que os de- tigo Egito, antílopes, escorpiões e serpentes
mônios representam ameaças concretas à – como manifestações de poder cósmico, em
saúde e ao bem-estar social, na verdade há vez de simples pragas ou vida selvagem, en-
pouca ou nenhuma organização ou sistema quanto até mesmo ritos privados de prote-
para essas crenças. Mesmo que os demônios ção podem jurar demônios exclusivamente
– seres sobrenaturais malignos – sejam uma como «lobos» ou «cães». Cabras e chacais
parte bastante real da experiência local, a representavam poderes demoníacos no an-
compreensão de como eles operam tanto no tigo Israel e certos gatos «briticária» para
universo imediato quanto no mais amplo os Azande. O demoníaco é frequentemente
dos seres permanece fluida e não sistemati- imaginado não apenas em termos de ani-
zada. Além disso, os demônios no ambiente mais, mas também como tendo uma afilia-
local não são maus em um sentido uniforme, ção intrínseca com o mundo animal, muitas
polarizados contra um reino de espíritos vezes manifestada nas aparências polimór-
benéficos, a maneira que as culturas cristãs ficas atribuídas a demônios: combinações
estão acostumadas a definir o «demoníaco». monstruosas de mulher e cavalo, pernas
Em vez disso, eles compreendem um reino e bunda e corpo humano, cabeça de lobo e
diversificado de fantasmas, bruxas notur- tronco de homem. Enquanto apresentam
nas, divindades menores caprichosas, dei- uma imagem horrível do monstruoso – o
dades maiores ambíguas na forma de locais marginal, o inclassificável, o perverso – es-
ou eventos, e espíritos facilmente irritados ses demônios são ao mesmo tempo fixos e
da paisagem [i.e. o bioma em que existem]. localizados por referência a animais espe-
E como na religião local moderna, assim cíficos e, portanto, organizados no mundo
nos mundos das aldeias da antiguidade: o compreensível.
«demoníaco» é menos uma categoria de ser Os demônios também ganham personagens
sobrenatural do que uma reflexão coletiva específicos por estarem ligados ao clima, às
sobre ocorrências infelizes, sobre a ambiva- estrelas, a pecados e impurezas (como luxú-
lência das divindades, sobre as tensões em ria ou menstruação), a partes do corpo e a
torno dos papéis sociais e sexuais e sobre doenças específicas. Mas em vez de perso-
os perigos culturais que surgem de pessoas, nificar os infortúnios dos demônios nesses
lugares e atividades liminares ou incompre- domínios, pode-se dizer que o infortúnio
ensíveis. em si é classificado e (portanto) controla-
De fato, a forma mais básica que uma noção do por referência a estes sistemas culturais
flexível de «demonologia» é sistematizada de classificação: o corpo, códigos morais,
para se tornar uma «demonologia» estabe- características observáveis do ambiente.
lecida está no mapeamento informal ou tra- Através de um contexto eternamente flutu-
dicional do infortúnio no meio ambiente. Um ante de cultos tradicionais, discussão públi-
grupo de aldeões concorda depois de muito ca e apelo às autoridades locais, o infortú-
debate que a morte de cinco vacas deve ser nio e o perigo não se tornam mais ambíguos
atribuída ao seu pastoreio por uma deter- e caóticos, mas localizados, como um siste-
minada árvore onde um determinado espí- ma rudimentar de demônios que podem ser
identificados, discutidos e ritualmente evi-
[97] David Frankfurter. Evil Incarnate: Rumors of Demonic
tados. Parafraseando Claude Lévi-Strauss,
Conspiracy and Satanic Abuse in History. Princeton and Ox-
animais, corpos e paisagens são bons para
ford, 2006, pp. 13.

26 Edição 11
se pensar quando uma comunidade é con- palavras, é o campo de estudo ou investi-
frontada com coisas que acontecem. gação sobre a natureza, objetivos, caráter e
Mas toda essa sistematização rudimentar assim por diante do demoníaco. Dada a faci-
de demônios pertence ao domínio oral e in- lidade de definir a demonologia, leva à par-
terativo da discussão popular, da lenda e da te complicada: ela depende da noção de um
recomendação (ou composição) de feitiços «demônio». Então, como caracterizar ou de-
de proteção. É na conversa que se identifica finir um demônio se torna a tarefa em mãos.
um demônio, a inferência de sua história e Na entrada do Oxford English Dictionary
tendências, propondo uma resolução para para «demônio», encontramos várias de-
suas aflições. A crença demoníaca neste finições distintas, as mais relevantes das
caso é específica do contexto – para uma quais são as seguintes:
certa aflição, para um certo grupo de par- «Um espírito maligno».
ticipantes da conversa – e é ad hoc. Não é «Uma pessoa ou animal cruel, perverso ou
relevante nem concebível contemplar toda destrutivo; especialmente uma emoção ou
a gama de espíritos potencialmente malig- atividade destrutiva».
nos ou integrá-los à teologia formal da ins- «A fonte ou a causa de um mal ou um grande
tituição religiosa dominante. Demonologias sofrimento».
desse tipo, envolvem a coleta, classificação «Um espírito associado a uma pessoa em
e integração de demônios fora de seus con- particular; um espírito atendente».
textos sociais imediatos, e surge em função «Especialmente em contextos não cristãos:
da centralização religiosa: às vezes nos en- qualquer espírito ou ser sobrenatural».
sinamentos orais dos profetas, preservados Tem as seguintes subdefinições:
ao longo do tempo em fórmulas e poesia, «Um espírito maligno ou ser sobrenatural
mas mais frequentemente em função da maligno; um diabo».
própria escrita. Em ambos os casos, o es- «Um ídolo, um -falso deus».
tágio essencial para tirar demônios de seu «Um espírito maligno que possui uma pes-
particular ambiente e discussão oral para soa, animal etc.».
um sistema especulativo envolvem algum
tipo de lista [classificação].[98] É também no sentido de (2) que o álcool
ou as drogas são frequentemente referidos
A demonologia no contexto da Antigui- como «demônio». Da mesma forma, muitas
referências a uma doença mental ou física
dade clássica e tardia é o estudo da natu- no sentido de (3). Então, enquanto (1) a (3)
reza dos demônios como espíritos inter- captam a visão tradicional (frequentemente
ocidental) dos «demônios» como puramen-
mediários, tutelares, deidades urânicas ou te negativos e maus, os sentidos (4) e (5)
ctônicas, espíritos dos mortos, genii loci etc. não têm tais conotações malignas. De fato,
O termo demonologia no contexto da cris- navegar entre esses dois polos nos valores
dos demônios – ou seja, negativo ou neutro
tandade designa o estudo acerca dos demô- – desempenha um papel na história do ter-
nios, a forma cristã, corrupta e pejorativa mo e sua base conceitual.
do termo grego original, associado a toda e Etimologicamente falando, o [termo] de-
mônio [demon] em inglês deriva do daimon
qualquer criatura espiritual greco-romana grego e do daemon latino. Tendo sua raiz no
e como vimos, acima de tudo os associando grego dividir, o daimon grego tem uma lon-
a anjos caídos. É por causa da demonologia ga história no pensamento e na literatura
gregas. Assim, o sentido grego original de
cristã que o imaginário cultural ocidental daimon conota, em vez de um ser maligno,
conecta a iconografia dos demônios (com uma classe de «seres espirituais que não
pés de bode e chifres a partir de uma res- são obviamente deuses». No entanto, essas
noções vagas de daimon/daemon seguiram
significação do sátiro greco-romano para uma trilha neutra em valor: um ser sobre-
o Diabo/Satanás adversário medieval). Em natural quase-deus, semideus ou subdeus
uma das melhores ontologias organizadas que não conota valor positivo ou negativo
intrínseco. Para obter o sentido intrinse-
sobre a demonologia, encontramos a seguin- camente negativo do demônio expresso nos
te categorização: sentidos (1) a (3) listados anteriormente,
precisamos considerar como o [termo] de-
mônio é adotado, integrado e utilizado den-
A etimologia de demonologia é bastante di- tro de certas tradições religiosas – mais no-
reta, embora se complique rapidamente. É tavelmente a tradição teísta ocidental.
uma combinação de daimon com a raiz grega Dada a neutralidade do demoníaco expressa
de logos, que significa, entre muitas outras nas definições (4) e (5) anteriores, podemos
coisas, argumento, conta, definição e assim estender nosso olhar sobre os demônios
por diante. Assim, a demonologia simples- além da abordagem teísta ocidental tradi-
mente promove um relatório ou substancia cional, tomando um demônio como exclu-
argumentos sobre os demônios. Em outras sivamente negativo, como visto nas defini-
ções (1) a (3). Consequentemente, devemos
[98] Ibidem, pp. 13-5.

27 Edição 11
fazer uma distinção entre a tradição teísta na Grande Obra, buscando assim sua pró-
ocidental e outras. [...] Parece haver uma de- pria imortalidade.[101]
voção religiosa precoce generalizada a «se-
res invisíveis que controlam ou afetam for- Os espíritos do Grimorium Verum são
temente as condições da vida humana [...].
Parece ser um traço essencial da humanida- antigas deidades pagãs. Esse termo, deida-
de pensar em suas próprias interações com de, associado aos espíritos do Verum deve-
o mundo físico em termos antropomórficos,
considerando forças e até objetos como se ria chamar atenção, porque também é um
tivessem personalidades». Tais seres comu- termo usado para se referir aos Gangas da
mente mantêm «proteção ou habitam luga- Quimbanda. Uma deidade trata-se de uma
res, corpos de água ou vegetação». Eles são,
portanto, candidatos plausíveis em tais cul- força divina reverenciada a qual confiamos
turas para «a conceituação antropomórfica nosso destino.[102] Essa força divina é reve-
de forças naturais discretas e invisíveis que renciada na forma de oferendas e sacrifícios
são perceptíveis principalmente através de
seus efeitos, como vento ou doenças especí- propiciatórios. No Ocidente as diversas for-
ficas». E, dada a identificação de demônios ças divinas da natureza (daimones na Gré-
(força personalizada) com tais fenômenos cia, genii em Roma, òrìṣà ou nkisi na África
naturais, «as tentações de controlar ou
aplacar essas forças invisíveis assumem a etc.) foram classificadas como demônios.
forma de exorcismo, trapaça (por exemplo, E é interessante que Idries Shah em seu
substituindo efígies ou potenciais vítimas comentário sobre O Livro do Diabo, i.e. o
humanas) ou adoração».[99]
Grimorium Verum, diz: As Artes Negras fo-
Comentando sobre a natureza de seus ram genericamente divididas em duas seções.
espíritos, o Grimorium Verum sumariza A primeira é a tradicional concepção cristã
assim: Na primeira parte [deste grimório] do Diabo e o pacto que se estabelece com ele,
são ensinados os meios para convocar os es- com a finalidade de trocar a alma imortal de
píritos elementais do Ar, Terra, Mar e Inferno, um homem ou mulher por vantagens mate-
de acordo com as correspondências corre- riais, [sendo o pacto] sujeito a um estreito li-
tas.[100] E Jake Stratton-Kent completa: mite de tempo. O segundo tipo de magia negra
envolve penalidades menos severas. O opera-
À primeira vista, os espíritos do grimorium dor trata com demônios da mesma maneira
verum são simplesmente maus, de nature- como faziam os babilônios e depois os árabes:
za infernal e cumprindo o estereótipo das assumindo que os diabos são menos podero-
ideias cristãs sobre pactos e ações pecami-
nosas. [...] Há também indicações no texto sos que Deus, e que certas palavras sagradas
de que verum considera os espíritos apro- (nomes ou palavras de poder) se conhecidas
ximados dos elementais descritos por Pa- pelo operador, podem compelir a aliança dos
racelso. A natureza geralmente benigna de
tais elementais é o tema central do Conde ditos demônios, gostem eles ou não.[103]
de Gabalis. Esta foi a fonte para a Oração O Grimorium Verum reintroduz na tra-
das Salamandras, e pelo menos parte da ins- dição dos grimórios as alianças espirituais
piração para a classificação elementar do
verum. com as antigas deidades pagãs, agora clas-
[...] Os elementais são, principalmente, alia- sificadas como demônios, na forma do pac-
dos de mente elevada e disponíveis aos Sá- to diabólico. Eu tratei na natureza do pacto
bios [i.e. magos], embora alguns entre os
espíritos subterrâneos sejam propensos à nos dois volumes anteriores do Daemonium,
influência das regiões infernais. Eles são demonstrando que o pacto diabólico se trata
idênticos aos antigos espíritos da natureza da recessão cristã da antiga fórmula mágica
da religião pagã, alguns dos quais (podemos
pensar em Astarte) eram então entendidos do pacto com espírito tutelar. Mas entreli-
como divindades e as vozes [por trás] dos nhas, o Grimorium Verum reestabelece o
oráculos. Mais tarde, todos eles foram mal contexto ctônico do pacto diabólico, restau-
interpretados como demônios pela Igreja.
Esta foi uma reputação muito imerecida, já rando a sua função teúrgico-soteriológica,
que eles são dados ao nobre pensamento re- mas mascarada pela natureza diabólica es-
ligioso. Eles ajudam alegremente o adepto
[101] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia
Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 130-1.
[99] Benjamin W. McCraw e Robert Arp, edit. Philosophical
Approaches to Demonology. Routledge, 2017, pp. 1-2. [102] S. Connolly. Demonolatria Moderna. Via Sestra, 2019, pp. 15.
[100] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia [103] Idries Shah. The Secret Lore of Magic. ISF Publishing,
Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, citação pp. 130. 2016, pp. 85.

28 Edição 11
tabelecida pela cristandade, daí que eles [i.e. associações astrológicas. Outra conexão é
os diabos do grimório] ajudam alegremente o com Prometeu, que trouxe fogo para a hu-
manidade, que também tem associações as-
adepto na Grande Obra, buscando assim sua tronômicas de natureza semelhante.
própria imortalidade.[104] A grande obra aqui
citada por Stratton-Kent é a deificação da Belzebuth
A forma bem conhecida de Belzebub, que
alma do operador através da ajuda do diabo significa Senhor das Moscas, é aparente-
pessoal, tema extensivamente abordado nos mente uma má-tradução insultuosa de ori-
dois volumes do Daemonium e nas edições gem judaica. É significativo que o verum
evite essa forma insultuosa em favor de
anteriores da Revista Nganga. algo mais parecido com a origem. O nome
Ao reintroduzir antigas práticas religio- original teria envolvido uma forma de Baal,
sas, banidas dos primeiros grimórios salo- um título comum de deuses fenícios e ca-
naneus, além de: zbvb (jorrando para fora);
mônicos latinos, o Grimorium Verum lida tzabaoth (dos Exércitos); sabaoth (sete).
com seus espíritos da forma como faziam Este presumivelmente seria um título de
as antigas religiões pagãs: com oferendas, Baal Shamem, o Senhor do Céu, identifi-
cado com Hadad e Zeus, de acordo com a
sacrifícios e uma abordagem mais branda, correspondência planetária do título Prín-
amistosa e respeitosa para com os diabos. cipe, o de Belzebuth em vários grimórios,
Abordagem essa que vai na contra-mão dos que equivale a Júpiter. Há também um Baal
Tzephon, considerado sinônimo de Belzebu-
grimórios salomônicos anteriores. O Diabo th, cujo nome está ligado ao do Tifon grego
do Grimorium Verum é àquele das bruxas e e egípcio, associado a Set.
feiticeiras, que embora astuto e traiçoeiro, Astaroth
era também amigo, professor, fonte de po- Esta é a forma hebraica da deusa cujo nome
der de magia, o protetor que não aponta o em grego era Astarte. Ambas as versões do
nome se referem a uma importante deusa
caminho, mas oferece as escolhas no meio lunar fenícia, adorada em todo o Oriente
da encruzilhada. Dessa forma, a Trindade Médio e também associada a Vênus. Ela é
Infernal, Lúcifer, Beelzebuth e Ashtaroth, é frequentemente emparelhada com uma ou
outra forma de Baal, e também – em uma
compreendida em última análise no seu sen- forma guerreira chamada Astoreth – com
tido mítico original: antigas deidades. Então Set. A Ishtar mesopotâmica e Inanna são
o Grimorium Verum resgata uma velha tra- outras formas dessa deusa. Os mistérios
de Inanna e Dumuzi, Ishtar e Tammuz, e
dição da magia, além de facilitar o acesso a de Astarte e Adonis, foram uma influên-
ela: Do ponto de vista de outros rituais desta cia nos mistérios egípcios de Ísis e Osíris,
natureza, o Grimorium Verum é simples, tem nos quais uma «Rainha Astarte» aparece.
Dada a influência combinada do culto de
menos tabus e restrições, e – acima de tudo Ísis e da Deusa Síria no culto cristão pos-
– assume que o operador não sabe nada da terior de Maria, Astarte está entre as mais
arte mágica, então ele [o grimório] começa influentes e importantes de todas as di-
vindades clássicas. Alguns tradicionalistas
do início e prove detalhes completos. [...] São modernos descartam muito prontamente
por essas razões que, durante o século deze- a identificação de Astaroth, o espírito, com
nove, este grimório foi considerado o livro a divindade mais velha. Na realidade, ape-
sar das inovações, a cosmologia [da] goécia
mágico par excellence da Europa.[105] Sobre deve muito a [cosmologia] dos papiros má-
a natureza mítica dos antigos deuses, agora gicos e de outras tradições antigas. Assim,
diabos no Grimorium Verum, Jake Stratton várias ex-rainhas do submundo podem ser
rastreadas em obras de fontes goécia, como
-Kent diz: Proserpina em Collin de Plancy e assim por
diante. Como Kore, ela aparece entre os es-
Lúcifer píritos menores no Abramelin alemão; sig-
Latim para portador de luz, um título de nificativamente, a adaptação francesa – que
Vênus como Estrela da Manhã, que também se baseia na tradição gótica – a eleva dessa
parece ter sido aplicado de vez em quando a posição subsidiária e a faz parceria com Ma-
Mercúrio, um deus das encruzilhadas com got como o chefe dos espíritos (observe que
um papel de mensageiro. O phosphorus gre- Magot é um título de Bael); é neste papel
go tem o mesmo significado, incluindo as Astaroth pode ser encontrado neste e em
outros grimórios. Mesmo Ísis, como noiva
[104] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia de Osíris, senhor do submundo na magia
Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 131. egípcia, não está fora do lugar em tal con-
texto; e de fato ela aparece – ou, pode ser
[105] Idries Shah. The Secret Lore of Magic. ISF Publishing,
mais preciso dizer, reaparece nas edições
2016, pp. 85-6.

29 Edição 11
italianas e espanholas do século dezessete ao fogo do inferno e como vimos anterior-
no Enchiridion do Papa Leão III.[106] mente, o Sol que coroa o Brasão Imperial
de Maioral, é associado ao poder e domínio
E sobre a natureza elemental dos espíri-
dos espíritos infernais e seu símbolo àque-
tos do Verum, trata-se de um eco de ideias
le do Sol da Meia Noite, o Sol do Submundo
mais antigas, como encontramos no Liber
que Reina no Inferno como um Mistério Sem
Juratus:
Nome. E no livro Ganga: a Quimbanda no
Renascer da Magia, demonstrei como a
Os Demônios Elementais não são nem bons
nem maus, nem benevolentes nem malévo- relação entre os Exus e os diabos do Gri-
los por natureza; assim, eles podem ser em- morium Verum foi intermediada pelos três
pregados para fins bons ou maus. Não são éteres sublunares: céu, terra e inferno, os
os demônios, nem o chamado deles, nem a
arte mágica que é má, mas é o uso que os reinos aéreo, telúrico e ctônico da Natureza.
homens maus podem fazer da arte mágica. É nestes três reinos ou éteres que habitam
Não há mal na arte mágica que não seja o os Exus (e toda sorte de espíritos de mor-
primeiro nos corações dos homens maus;
aqueles que são bons e pretendem o bem tos), e os demônios (espíritos sublunares de
produzem o bem; aqueles que são maus e todo tipo, encantados benignos e malignos).
pretendem o mal produzem o mal. Homens E finalmente, outra congruência. Assim
que são bons e fiéis não precisam temer mal
da arte mágica, pois os demônios são con- como os Gangas da Quimbanda, os diabos do
quistáveis e feitos subservientes à vontade Grimorium Verum não são bons ou maus,
de um bom homem por fortaleza e coragem. mas forças, potências mágicas disponíveis
Desses demônios, há quatro ordens, uma
para cada elemento: do oeste ou água, do na Natureza, ao bom ou mau uso do opera-
sul ou fogo, do norte ou da terra e do leste dor, porque estes espíritos, assim como qual-
ou do ar. Cada uma dessas ordens tem do- quer força no Cosmos, não respondem as in-
mínio sobre o funcionamento do elemento
para o qual a ordem é nomeada, e os demô- clinações ou premissas de ordem moral. São
nios de cada ordem possuem qualidades e forças dinâmicas da Natureza acessíveis por
poderes que estão em harmonia com o ele-
meio de fórmulas mágicas apropriadas, ma-
mento governado.[107] nipuladas pelo operador à revelia da ordem
moral para qualquer fim desejado, apropria-
O Grimorium Verum também categori-
do ou não, para o progresso ou para o caos.
za seus espíritos em inferiores e superiores,
No texto 11 Aforismo para Entender a Quim-
enfaticamente eleva o status dos elementais
banda,[109] escrevi:
ígneos, e geralmente usa o termo inferno ao
invés de fogo ao se referir a estes espíritos. O objetivo último da Quimbanda, motivo
Há uma ambiguidade enigmática nos termos e pelo qual ela existe de fato, trata-se do aper-
- mais importante - nas fontes usadas na com- feiçoamento da arte de manipular as diver-
posição deste famoso grimório. Verum diz, de sas correntes de energia dentro da Alma do
Mundo, o Corpo de Maioral, o Diabo, modifi-
pelo menos alguns de seus espíritos, que, sen- cando os padrões da Natureza, definindo o
do de natureza solar, eles são mais sábios e caminho do feiticeiro com liberdade e auto-
nomia. O kimbanda, assim, não «resiste» aos
melhores do que os outros; isso está de acordo padrões de força da Natureza (cosmos), ele
com a tradição de que os espíritos orientais (e apreende o seu movimento, fluxo e fluidez,
ocidentais) são mais brandos do que os do Sul manipulando-os em acordo a sua vontade
com a ajuda de Exu.
e do Norte, que são mais violentos. Também [...] Como Arte de feitiçaria a Quimbanda
pode se conectar com ideias antigas sobre o manipula correntes de energia, i.e. as cor-
Sol como governante do Fogo.[108] Interes- rentes mágicas que se movimentam em
direções ou fluxos distintos dentro corpo
sante notar, neste contexto, que os Gangas do Chefe Império Maioral nos três reinos
da Quimbanda são diretamente associados primordiais: ctônico, telúrico e aéreo. As
tecnologias espirituais da Quimbanda são
[106] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia produzidas dentro dos protocolos da Arte:
Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 134-5. trata-se de operações que envolvem pro-
[107] Citação em Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Ency-
cessos mágico-energéticos na intenção de
clopaedia Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 131.
produzir medicinas ou «alquimias» para a
[108] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia
Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 130. [109] Disponível no blog do site www.quimbandanago.com.

30 Edição 11
ce, o chefe das macumbas, Juca Rosa, que de-
clarava que sua deidade tutelar, o Pai Qui-
bombo, podia tanto executar o bem quanto
o mal.[111] Estabelecendo a mesma compara-
ção que fiz no livro Ganga: a Quimbanda no
Renascer da Magia, entre os jinn da magia
salomônica árabe e os demônios da magia
salomônica judaico-cristã, no que concerne
ao Grimorium Verum, Idries Shah diz:

Aqui pode ser instrutivo mencionar um tipo


de intermediário de magia, muito usado
pelos árabes e provavelmente derivado [da
magia] da Assíria. Isso consiste na utiliza-
ção dos poderes dos jinn (gênios) que não
são nem totalmente bons nem completa-
mente maus. Nisso, eles parecem se asse-
melhar à humanidade, pois são capazes de
exercer qualquer função que sejam obri-
gados a desempenhar. Há, é verdade, bons
jinns e os maus, machos e fêmeas. Aqueles
que a tradição diz que foram presos por Sa-
lomão e lançados no mar eram quase todos
maus. Mas há um número que é bom e al-
guns incertos. Eles podem ser comparados
a um símbolo de reconhecimento da possi-
bilidade de um poder mágico ser utilizado
manipulação dessas correntes de energia para [realizar] a vontade do operador.[112]
cujo objetivo serve a diversos fins.
[...] Quimbanda é feitiçaria, a arte de mani-
pular e projetar vetores de força mágica (i.e. Em uma entrevista que dei a uma emis-
energia/moyo) através de bases materiais. sora de TV local em Juiz de Fora (MG) em
Um kimbanda mensura tudo no cosmos em
quantitativos energéticos: as interações e 2014, e que está disponível no YouTube, afir-
relações pessoais, as paixões, desejos e im- mei que a magia é como a eletricidade, i.e.
pulsos por trás das ações, a atividade sexu- uma força da Natureza que pode ser utiliza-
al, os negócios e compromissos firmados, a
manipulação do oráculo (Ẹriṇ ou Cabalá de da para o bem (quando produz luz), ou para
Exu), o feitio de oferendas e feitiços. Absolu- o mal (quando usada para uma execução na
tamente tudo se mensura pela equalização cadeira elétrica). Nos termos da Quimban-
das forças envolvidas, porque um kimban-
da trata-se de um manipulador de energia! da, essa força é o agente mágico universal,
Isso não é fácil de conquistar e levamos a disponível a manipulação dos kimbandas.
vida toda para aperfeiçoar essa arte. Interessante que Idries Shah faz um comen-
tário na mesma direção. Ele diz:
Energia, i.e. o àṣẹ entre os yorùbás, o
moyo entre os bantos, o magnetismo animal É interessante notar, neste contexto, que
dos mesmeristas etc., em última análise, é um escritor e ocultista moderno árabe com-
a moeda de troca com os espíritos. Não é a parou o jinn à eletricidade. Jinn são, ele ex-
plica, bons ou ruins, dependendo de como
moral que os compele a agir, é a energia má- você os usa. Eles são uma força indubitável,
gica a eles fornecida por meio de fórmulas que existe em todos os lugares, mas seu uso
magísticas de comunicação, como o sacri- depende de certos requerimentos. Nós não
sabemos sua exata natureza, não mais do
fício animal.[110] E o leitor poderia indagar que qualquer pessoa sabe sobre a eletrici-
se os Gangas da Quimbanda não herdaram dade.[113]
essa virtude dos próprios diabos do Verum.
Mas não! Ainda no primeiro momento do [111] Gabriela dos Reis Sampaio, A História do Feiticeiro Juca Rosa.
Culto de Exu no Brasil (período imperial), Tese de Doutorado, maio de 2000.

nós temos o caso do kimbanda par excellen- [112] Idries Shah. The Secret Lore of Magic. ISF Publishing,
2016, pp. 84.
[110] Veja o texto Quimbanda & Manipulação Energética, também [113] Idries Shah. The Secret Lore of Magic. ISF Publishing,
disponível no blog do site www.quimbandanago.com. 2016, pp. 84-5.

31 Edição 11
ra não estejam associados a terra ou ao sub-
E para finalizarmos essa seção, podemos mundo, os teólogos os classificaram como
buscar descobrir a natureza dos diabos do seres malignos. E neste mesmo capítulo há
Grimorium Verum cruzando referências referências aos demônios conhecidos pelos
com as tabulações demonológicas de Cor- teólogos como falsos deuses, quer dizer, as
nélio Agrippa. Em seu Três Livros de Filo- antigas deidades de várias culturas demo-
sofia Oculta (Livro III, caps. 16, 17 e 18), nizadas pela Igreja. Então todas as deidades
Agrippa delineia uma classificação de espí- e espíritos menores que não podiam ser ca-
ritos que inclui àqueles conectados a goé- tegorizadas entre anjos e inteligências, tor-
cia. Suas fontes derivam dos neoplatônicos, naram-se demônios, todos associados aos
principalmente, mas também dos cabalistas éteres aéreo, telúrico e ctônico sublunares.
e cristãos teósofos. No cap. 16, os espíri- O Livro do Diabo, nome pelo qual se
tos são divididos em três éteres, sendo os popularizou o Grimorium Verum, é uma
dois primeiros supercelestial e celestial, o abordagem ritual que reinsere antigas prá-
terceiro sendo material. Os espíritos desse ticas e valores pagãos na literatura dos gri-
terceiro éter formam uma categoria extre- mórios, restaurando segredos arcaicos da
mamente ampla, incluindo todo tipo de es- feitiçaria na adoração de antigas deidades,
píritos astrais (aéreos), telúricos (terrestres agora como diabos, e com um pano de fun-
e aquáticos), e também os mortos. No en- do diabólico. Celebrando a herança da rica
tanto, separados destes espíritos materiais, corrente ancestral da goécia no Grimorium
existe ainda uma outra classe de espíritos Verum, Idries Shah romantiza:
de tipo inferior, os demônios do submundo.
São estes espíritos demoníacos do submun- No atual estágio do conhecimento mágico,
do àqueles classificados como malignos pe- nós temos a liberdade, plenamente justifi-
cável, de dizer que, diante de tudo o que sa-
los neoplatônicos. E no senso comum, todos bemos, o Grimorium Verum é mais original
os espíritos dos grimórios foram equipara- que a Chave [de Salomão]; ou que ele é um
dos livros originais da Biblioteca de Her-
dos a estes do submundo. E não há qualquer mes, ou até mesmo das bibliotecas de magia
boa razão para identificar a maioria dos es- dos babilônios.[114]
píritos dos grimórios com estes, e muitas
boas razões para não os identificar de modo
algum.
Seção . V .
Estes espíritos de ordem material foram
alocados sob uma ordem menor de anjos e A Incursão Diabólica na
fica claro que uma miríade de outros espíri- Quimbanda
tos da natureza foram deixados de fora, por
muitos motivos, como já apresentarem um
comportamento duvidoso em seus locais É significante o fato de que é o Grimorium
Verum a fonte que supriu estas «intrusões»
naturais de culto e adoração. Os espíritos dos espíritos [i.e demônios] dos grimórios
que se incluem nessa faixa cinza da classifi- na Quimbanda.[115]
cação de Agrippa foram, em grande medida, De algumas perspectivas, aqueles que en-
fatizam exageradamente expressões pura-
demonizados. Entre os espíritos materiais mente literárias da cultura, o Grimorium
também estão todo tipo de mortos, mas não Verum pode parecer ter sido particular-
os mortos sem descanso. Estes foram alo- mente influente. A realidade é que, como
um grimório popular com fortes conexões
cados no submundo, devido a sua atuação com a magia folclórica, ele reflete de forma
maléfica na vida dos homens, agindo como mais abrangente do que outros as amplas
espíritos demoníacos. Mas pouquíssima tradições de magia popular de origem euro-
peia que tiveram um forte impacto no Novo
atenção é dada aos mortos nessa classifica- Mundo. Não foi o principal veículo dessas
ção.
O cap. 17 traz referências aos famigera- [114] Idries Shah. A Tradição Secreta da Magia. Bertrand Bra-
sil, 1998, pp. 93.
dos demônios aéreos, presentes na maioria
[115] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia
dos manuais demonológicos. E muito embo- Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. xii.

32 Edição 11
tradições, mas sim um reflexo literário sin- Esses registros etnodemonológicos tiveram
gularmente rico delas. O verdadeiro veículo um impacto profundo no imaginário euro-
dessas tradições foram as pessoas, incluin-
do milhares de ciganos no caso do Brasil, peu, causando fascínio, medo e repulsa nas
cuja impressão na Quimbanda e, de fato, mentes europeias. Na época em que o con-
em toda a cultura, ainda é poderosamente tinente descoberto deixou de ser chamado
sentida. Os grimórios populares eram um
aspecto da tradição, mas enquanto estão de Terra de Santa Cruz para ser conhecido
entre os últimos vestígios dessa tradição com o nome que carrega hoje, Brasil, muitos
na Europa, eles são apenas uma pequena desses autores e até as autoridades da Igreja
parte de sua sobrevivência no Novo Mundo.
Em outras palavras, muito do que foi per- chegaram a acreditar que haviam perdido o
dido nas tradições mágicas europeias ainda novo continente para o Diabo.[118]
prospera nas religiões do Novo Mundo.[116] Matas fechadas, infestação de insetos,
correntezas e terras áridas, tempestades e
A incursão diabólica que aqui irei me de-
alagamentos, tudo o que a natureza selva-
bruçar nessas duas últimas seções é àquela
gem oferecia era considerado pelos etno-
que ocorreu em detrimento da nova síntese
demonólogos maquinações arranjadas pelo
da magia promulgada por Aluízio Fontenel-
Diabo para evitar que o poder da Cruz de
le na década de 1950 e que deu nascimento
Cristo se estabelecesse no novo continente.
a Quimbanda como a conhecemos hoje. No
Como o Diabo havia fugido da Europa para
segundo volume do Daemonium tivemos a
o Brasil, porque lá o poder da Igreja o ex-
oportunidade de sumarizar inúmeros pon-
pulsou, o novo continente se tornou tam-
tos dessa incursão diabólica, o que conti-
bém o novo campo de batalha entre Deus e
nuamos no livro Ganga: a Quimbanda no
o Diabo. Esses autores descreviam os pajés
Renascer da Magia, e nas edições da Re-
curandeiros como feiticeiros e as parteiras
vista Nganga. Entretanto, essa nova sínte-
como bruxas.[119] Então quando falamos de
se da magia estabelecida por Fontenelle,
incursão diabólica temos de nos lembrar que
que inaugura o segundo momento do Culto
desde que o Brasil foi descoberto, iniciou-
de Exu no Brasil, foi o ápice de um longo
se também uma luta entre Deus, seus anjos,
processo de miscigenação cultural que co-
santos e representantes terrenos, contra o
meçou no primeiro momento, i.e. no período
Diabo, seus demônios, e os idólatras que os
colonial e imperial.
cultuam pelo domínio da terra. E no imagi-
No período em que se desenvolveu a
nário de muitos cristãos europeus dos dias
colonização, degredo e o tráfico de escra-
de hoje, o Brasil permanece a terra do diabo.
vos entre os Sécs. XVI e XVIII, o Brasil foi
Bom, se o Brasil é a terra do diabo de fato,
considerado a terra do diabo. Os primeiros
então faz todo o sentido a Quimbanda, a
registros etnológicos continham profundas
bruxaria brasileira, representar no imaginá-
resenhas demonológicas, e é por isso que a
rio brasileiro uma expressão legítima deste
autora Laura de Mello e Souza[117] nomeou
domínio, reinado e rebelião do Diabo.
os autores desses registros de etnodemo-
Durante esse longo período que consti-
nólogos. A travessia no Atlântico, o contato
tuiu o primeiro momento do Culto de Exu no
com a terra selvagem e seus habitantes, fo-
Brasil, estabeleceu-se uma intensa misci-
ram completamente descritos sob as lentes
genação cultural entre os povos indígenas,
do imaginário europeu da época, no mesmo
os povos africanos e os povos europeus,
período em que eclodia o fenômeno cultu-
iniciando uma intricada amálgama de tra-
ral da bruxaria que pode ser resumido em
dições mágicas que se sincretizaram em
três pontos: i. o contato com diabos pessoais
troncos diversos. O sincretismo se caracteri-
(i.e. familiares mágicos); ii. o pacto que se
za fundamentalmente por uma intermistura
estabelece com o Diabo e a idolatria dele de-
de elementos culturais. Uma íntima interfu-
corrente; e iii. o sabbath, a festa das bruxas.
[116] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia [118] Ibidem.
Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 197.
[119] Ibidem. Veja também Luís Rafael Araújo Corrêa. Feitiço
[117] Laura de Mello e Souza. Inferno Atlântico: Demonologia Caboclo: Um Índio Mandingueiro Condenado pela Inquisição.
& Colonização Séculos XVI-XVIII. Companhia das Letras, 1993. Paco Editorial, 2018.

33 Edição 11
são, uma verdadeira simbiose, em alguns ca- Candomblés, Umbandas ou Quimbandas etc.
sos, entre os componentes das culturas que se Aqui, como se diz, é tudo junto e misturado:
põem em contato. Simbiose que dá em resul- preto, banco e amarelo. Essa desonestidade
tado uma fisionomia cultural nova, na qual se intelectual do purismo africanista chaga
associam e se combinam, em maior ou menor a ser nojenta! No Brasil o cristianismo se
proporção, as marcas características das cul- crioulizou e ainda na África, as culturas ne-
turas originárias.[120] A Quimbanda, com sua gras se cristianizaram e se islamizaram.
fusão entre os Exus e os diabos do Grimo- De certa forma, nem mesmo dentro da
rium Verum a partir do segundo momento, ciência da religião é aceito que haja uma re-
é o resultado desse longo período de sincre- ligião pura, pois todas as religiões surgem
tismos religiosos que se estabeleceram de de experiências culturais misturadas e por
diversas formas em todo território brasilei- dentro delas se estabelecem e se renovam.
ro. O autor Waldemar Valente,[121] rastrean- Se formos analisar pelo panorama das re-
do os troncos sincréticos que se formaram ligiões de massa, podemos afirmar sem
no Brasil, os elenca: nenhuma dúvida que o cristianismo surge
das concepções zoroastristas misturadas
1) jeje-nagô; 2) jeje-nagô-malê; 3) je- com as influências judaicas em menor grau,
je-nagô-banto; 4) jeje-nagô-mina; 5) je- trazendo assim a concepção por exemplo de
je-nagô-malê-banto; 6) jeje-nagô-malê-
mina; 7) jeje-nagô-malê-banto-mina; 8) bem e mal e de duas deidades brigando para
afro-tupi;[122] 9) afro-tupi-espírita; 10) se estabelecerem, sem falar em outras con-
afro-tupi-espírita-católico; 11) afro-tupi
-espírita-católico-protestante; 12) afro-tu- sonâncias dentro da teologia. Quando ana-
pi-espírita-cristão-teosófico; 13) afro-tupi lisamos as muitas religiões encontramos si-
-espírita-cristão-teosófico-esotérico. tuações próximas, mas narradas de formas
diferentes, vemos, por exemplo, o dilúvio
Dentro destes troncos sincréticos que defendido e acreditado se tratar de um tex-
se estabeleceram no Brasil você consegue to bíblico imutável, entretanto encontramos
determinar a origem de inúmeros Candom- um dilúvio similar em mitos gregos, onde
blés tradicionais ou de caboclo, assim como Zeus querendo destruir os homens por cau-
a Umbanda e a Quimbanda, que se enqua- sa de suas perversidades envia um grande
dram nos troncos 12 e 13. Porque é impos- dilúvio com a ajuda de Poseidon para que
sível falar da fusão entre Exus e demônios todas as águas dos rios e mares inundem
sem abordar a profunda questão do sin- toda a terra, engolindo tudo que havia por
cretismo religioso no Brasil. Hoje criticado sobre a terra. Porém Prometeu advertiu
por inúmeros africanistas de olhos azuis, o seu filho Deucalião e sua mulher Pirra so-
sincretismo é uma ferramenta do espírito bre o dilúvio, instruindo-os a construir uma
religioso do homem, e ocorreu em todas as barca, ou em outras palavras, uma grande
culturas mágicas do passado. É somente na arca e no final do dilúvio ficou encalhado
contemporaneidade que passamos a acredi- em uma montanha. Mas esse mito também
tar em religiões puras dentro de contextos é presente na epopeia de Gilgalmesh, um
de degredos e diásporas; até o Séc. XIX toda poema épico mesopotâmico, creditado por
e qualquer cultura religiosa se adaptou, muitos como a narrativa mais antiga que
evoluiu e se miscigenou, sempre na intenção se tem registro em escrita. Então, podemos
de perdurar no tempo. Esses africanistas afirmar que o judaísmo acabou por sincreti-
reivindicam um purismo religioso que já zar os conhecimentos mesopotâmicos e por
não existia na África cristianizada e islami- aí criou sua própria base teológica.
zada, quanto mais no Brasil. Não há nada de Contudo, sabemos que o sincretismo é
puro nascido em terras brasileiras, sejam algo que acaba por incomodar as pessoas
que não conseguem analisar nada muito
[120] Waldemar Valente. Sincretismo Religioso Afro-Brasilei-
ro. Brasiliana, 1977, pp. 11.
além da sua superfície revelada. O sincre-
[121] Ibidem, pp. 107-9.
tismo é uma realidade e deve ser entendida
[122] N.T. Aqui afro representa o composto jeje-nagô-malê-banto.
desta forma, pois o sincretismo está presen-

34 Edição 11
te em todo território nacional, mesmo não reduzidas a três grupos: europeus, indíge-
sendo exclusivo dele como tentam elencar nas e africanos. Entretanto quando se fala
alguns segmentos cristãos ou de pessoas de sobre Europeu na formação cultural de base
religiões afro-diaspóricas que consomem brasileira devemos nos lembrar que em sua
de forma ignóbil apenas o que revelam si- maioria eram portugueses, grande parte
tes e tutores mal formados. O sincretismo sem conhecimento ou estudo, muitos que
religioso é um processo de combinação ou foram enviados para cá como penitência
aproximação de várias práticas religiosas criminal, seja pelo motivo que for, de ori-
ou crenças populares em uma única forma gem secular ou religiosa como as heresias e
de pensar. Ele ocorreu em todas as religiões perseguições da Igreja; quando falamos de
da história humana e não apenas no con- indígenas em sua maioria imaginamos os
texto religioso, mas cultural e comporta- povos tupis, porém existiam diversos gru-
mental. Vemos uma expressão interessante pos culturais diferentes, com línguas dife-
do sincretismo de um povo dentro do Japão rentes, estimando-se que havia entre 1 e 5
onde há duas religiões dadas como oficiais milhões de indígenas em terras brasileiras,
e mais praticadas, sendo uma o xintoísmo e cada grupamento com um panteão próprio
a outra o budismo.[123] Há quem diga que no e com práticas religiosas e espirituais pró-
Japão todos nascem xintoístas, mas morrem prias; e por fim os africanos, que são dados
budistas. como os grandes detentores dos saberes dos
O movimento neopagão também é sinc- cultos de Quimbanda, Umbanda e similares.
rético, onde combinam-se várias divindades Porém, a África é um continente imen-
de diversos panteões em uma só estrutura so com diversas culturas e diversas etnias.
de pensamento, podendo uma pessoa evo- Quando falamos em África tentamos redu-
car Zeus como deus maior de sua sessão e zir isso em pensamento, mas em um mesmo
na sequência chamar por Amateratsu, sem espaço, como por exemplo o Reino do Congo,
qualquer problema ou preocupação de agra- havia diversos tipos de culturas coexistindo
dar a Brigite dos celtas. pacificamente ou não. Os primeiros homens
O próprio cristianismo surge de uma trazidos como escravizados para o Brasil
dissidência de pensamento judaico e se ma- eram originalmente do Reino do Congo e
nifesta em Roma, usando a figura de um das regiões próximas a ele, como Bengue-
Jesus Cristo similar com o Apolo greco-ro- la, Reino do Dongo (que se tornará Ango-
mano. A própria associação de feriados cul- la), Luanda etc. A esses povos dessa região
turais tidos como pagãos por cristãos é um – apesar da sua multiplicidade cultural – é
processo sincrético, o dia de Solis Invictus se dado o nome de cultura ou povos bantos.
torna o dia de nascimento de Cristo, a Pás- Esses africanos escravizados de origem
coa se torna o dia de sua morte e ressurrei- banto chegam ao Brasil no Séc. XVI por volta
ção etc. Esse mesmo movimento será segui- de 1535 por vias oficiais. Há quem diga que
do em terras brasileiras quando associamos os povos bantos representavam 75% de to-
os feriados cristãos (alguns antigos feriados dos os africanos trazidos para o Brasil. Eles,
pagãos) a data de comemoração dos santos, povos bantos, encontraram-se com os povos
que na verdade são os òrìṣà. Tudo isto é um indígenas, pois dentro das senzalas[124] e
processo sincrético. com certeza fizeram troca de saberes e de
Entretanto o grande incomodo sempre culturas, inclusive de cultura religiosa, o
se dá quando falamos de sincretismo de que já demonstra uma forma de sincretismo
práticas afro-diaspóricas, seja da via afri- natural ocorrendo, sem passar pelos olhos
cana para europeia e vice-versa. Precisa- do intelectual. Posso afirmar ainda, que
mos contextualizar que o Brasil é formado ele já se dá em África quando o Manicongo
por diversas etnias que erroneamente são Nzinga a Nkuwu (Rei do Congo) decide en-
[123] Xintoísmo é uma religião nacional e original japonesa que viar sua corte para aprender os costumes e
bebe de muito xamanismo das terras nipônicas. O budismo é uma
religião criada por Sidarta Gautama, que era um nepalês ou india- [124] O termo Senzala deriva do quimbundo Sa’nzala, que signi-
no, variando as fontes. fica povoação.

35 Edição 11
a religião portuguesa e ele mesmo se batiza ou isso só ocorre quando Oxalá toma a posi-
como João I dentro da religiosidade cristã, ção de Lembadilê dentro da mente religiosa
se arrependendo posteriormente, mesmo dos povos de terreiro?
assim usando dos seus saberes. Além da influência africana e indígena,
O entendimento aqui é que o povo banto temos também a grande influência ibérica
tem uma premissa diferente quando se tra- no pensamento religioso brasileiro. Quando
ta de adaptação e absorção de conhecimen- nos referimos as influências europeias esta-
to, seja ele de que natureza ou origem for. mos tratando das camadas mais pobres e os
Dentro da visão cultural banto, os nkisi não egressos das terras portuguesas, que geral-
são estritamente deidades, mas tudo aquilo mente eram enviados para cá sob acusação
que tem nguzo, ou seja, que tem poder. Des- de heresia, profanação e bruxaria. Mas, se
ta forma para uma pessoa de religiosidade eram profanos, como poderiam cultuar em
banta é bem natural absorver o santo de bases cristãs? De fato, eles não cultuavam,
uma outra religião e entender ele como uma pois muitos desses camponeses tinham seus
potência, uma força ou um nkisi. próprios métodos e tradições religiosas, que
Há os defensores de um purismo no res- sincreticamente, foram sendo associados ao
gate a culturas tradicionais, principalmente cristianismo, mas de uma forma mais popu-
do povo de òrìṣà, entretanto, Nanã Burukê, lar e orgânica, sem imposição ou um grande
Omulu, Obaluaiê, Ewá, Oxumarê e Ossaim pensamento intelectual sobre isso, simples-
são divindades estrangeiras que foram ab- mente aconteceu. Tanto é desta forma que
sorvidas na religiosidade yorùbá e passa- essa prática popular de bruxaria, atrelada
ram a compor seu panteão em um processo aos conhecimentos cristãos e toda a sorte
sincrético, afinal, o que antes se dizia sobre de influência africana e indígena posterior-
Obatalá e Iemanjá serem um casal (em algu- mente irá resultar na Macumba do Séc. XIX
mas fontes), passam também a determinar e início do Séc. XX, que por sua vez irá criar
que Obatalá tinha Nanã Burukê como sua a Umbanda e Quimbanda.
consorte, por quê? Este é um fato explica- Os Exus em suas figuras diabólicas mui-
do quando sabemos que Nanã não era uma tas vezes são encarados como entidades com
divindade esquecida, mas a mais importan- defeitos de fabricação, pois quem defende o
te divindade de um povo da região do atual purismo dos Exus irá dá-los como òrìṣà, mas
Benin, antigo reino do Daomé, que quando sem entender a diferença significativa entre
absorvido pela cultura yorùbá, não poderia a manifestação de um Exu-Entidade (ngan-
ser reduzida em importância, colocando-a ga) e um Èṣú òrìṣà. Quem defende o puris-
ao lado do òrìṣà dado como mais velho, já mo de falangeiros, sem se atrelar a òrìṣà e
que ela mesmo era a mais velha. Colocando ao Cristianismo, refuta veementemente a
assim, vê-se que Nanã e Obatalá poderiam versão diabólica destes Exus, dizendo que
ocupar a mesma posição, porém em pante- a associação feita por Aluízio Fontenelle em
ões diferentes. seu livro Exu, das figuras dos Exus com os
A questão do òrìṣà no Brasil também é demônios do Grimorum Verum, eram de-
complexa, visto que a cultura yorùbá se tor- vaneios. De fato, nada disso consegue se
nou dominante na literatura, na cultura e sustentar após um exame claro dessas en-
na arte, criando assim uma falsa impressão tidades e de sua real proximidade para com
da pureza e da antiguidade desse culto. Mas os demônios, porém não paramos nisso.
se pensarmos que os bantos não cultuavam Muito se diz sobre a figura de Exu associa-
òrìṣà, quem seriam as forças que eles evo- da a diversos Santos, como o próprio Santo
cavam? Claramente, seus próprios deuses, Antônio, Santo Expedito e outros, além da
na figura dos Mikice, que mais tarde serão associação até mesmo do Menino Jesus com
confundidos e absorvidos pelas figuras dos a figura de Legba em territórios cubanos e
òrìṣà e reinterpretados pela moda brasi- caribenhos.
leira. A questão é: Será que o sincretismo já Veja que apesar da crença cristã impu-
ocorria comparando Lembadilê à Jesus Cristo tar ao cristo uma visão de salvador bondoso

36 Edição 11
do universo, ele em muitas visões religiosas palavra já era amplamente utilizada para se
é visto como um grande dizimador da vida referir a livros de magia na França, porque
e da humanidade, vide ao Nosso Senhor do acredita-se que sua raiz venha do francês
Bonfim que foi idealizado por João de Ca- antigo, grimaire, que se referia a livros es-
margo, em sua Igreja das Águas Vermelhas, critos em latim.[125] Owen Davis diz:
na cidade de Sorocaba em São Paulo. João de
Camargo era um brasileiro ex-escravizado, A crescente indústria de publicações na Eu-
filho de africanos escravizados, que conse- ropa ocidental, que produziu jornais e [en-
cheu o mercado] com livros direcionados
gue sua liberdade que não é bem explicada, a melhoria moral das massas, alimentou a
mas é sabido da sua alforria. Ao lado de suas busca por literatura envolvendo a magia
entre os leitores rapidamente. Obscurantis-
imagens sempre havia suas pedras, criando mo, o impulso autoritário de repressão ao
a conexão da imagem iconográfica clara de acesso ao conhecimento estava vivo e era
cultura cristã, mas também o seu processo crescente, mas foi difícil se perpetuar. En-
quanto os Inquisidores Mediterrâneos con-
de feitura pelas mãos do próprio João de Ca- tinuavam a exercer um controle considerá-
margo e de alguns de seus discípulos, como vel, em outros lugares os censores seculares
assentamentos vivos (nkisi) conjuntamente e religiosos travavam uma batalha perdida.
Em nenhum lugar isso era tão evidente
a seus okutás (pedras) dispostas a sua fren- quanto na França e no gênero dos livretos
te. Sabido é que João de Camargo chamava chamados de bibliothèque blue [biblioteca
seu São Benedito as portas fechadas de Ron- azul]. Durante a primeira metade do século
XVIII um milhão de cópias desses livretos
gondongo, um nome de clara natureza ban- estavam sendo produzidos por ano. Eles in-
to. Desta forma, essa natureza tradicional cluíam inúmeros tipos de assuntos, lícitos e
banto de associação já existia desde épocas ilícitos. Entre romances, guias práticos de
jardinagem e culinária, a vida dos santos e
antigas na própria África e foi natural a sua reflexões piedosas, nós encontramos os se-
absorção pelas Macumbas, assim como por gredos mais obscuros da magia desvenda-
suas derivativas como a Umbanda e Quim- dos.[126] [...] Por um pequeno preço toda a
riqueza da prática do conhecimento oculto
banda. Desta forma, seja um Santo Antônio contido em manuscritos tão preciosos aos
sendo chamado de Exu, ou até mesmo a figu- magistas parisienses estavam disponíveis
ra do Exu de Duas Cabeças, sendo associado a todos, até aos mais pobres da sociedade.
Milhares de grimórios da bibliothèque blue
a Jesus de Nazaré e ao próprio Diabo em um circularam por todo o país durante o sé-
só corpo irmanados, deixa clara e evidente culo e no próximo.[127] [...] A influência dos
a condução de pensamento religioso e amal- grimórios da bibliothèque blue se expandiu
para além das fronteiras da França.[128]
gamado que cria a sociedade brasileira, sua
cultura e sua religiosidade. Como mencionei na Revista Nganga No.
Outro fator associado ao sincretismo re- 10, foram os grimórios da bibliothèque blue
ligioso e que envolve diretamente a incursão – e de modo geral os grimórios do gênero
diabólica na Quimbanda são os grimórios impresso e dentre eles o Grimorium Verum
populares que se crioulizaram no contexto e O Livro de São Cipriano – que mais se
da diáspora nas Américas. A revolução da miscigenaram com as culturas religiosas da
impressa que começa em 1455 com Johanes diáspora nas Américas. Jake Stratton Kent
Gutenberg (1395-1468) publicando a Bíblia diz:
Gutenberg, teve um profundo impacto na
cultura do Ocidente, tirando o monopólio Enquanto os grimórios franceses [da biblio-
da informação das mãos de uma elite aris- thèque blue] dessa época tiveram uma in-
tocrata, e possibilitando a difusão irrestri- fluência muito além da França, o gênero de
grimórios impressos como um todo exerceu
ta do conhecimento. Esse processo também uma influência muito além da Europa. Os
impactou profundamente o gênero dos gri-
mórios que, antes escassos, agora poderiam [125] Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de
autores, 2020, pp. 114-5.
ser encontrados em inúmeras versões po-
[126] Owen Davis. Grimoires: A History of a Magic Book. Oxford
pulares. Aliás, a própria palavra grimório University Press, 2009, PP. 94-5.
como hoje a conhecemos vem deste contex- [127] Ibidem, pp. 98.
to de publicações populares. No Séc. XVIII a [128] Ibidem, pp. 109.

37 Edição 11
Livros de Moisés é o mais cabalístico e cer- [...] É de particular interesse que nas tradi-
tamente influenciou o Hoodoo nos Estados ções de Umbanda e Quimbanda do Brasil a
Unidos, mas não dizem respeito especifica- hierarquia de Verum tenha sido amplamen-
mente a São Cipriano ou às fusões da goécia te associada a espíritos conhecidos como
dentro de tradições como a Quimbanda. O Exus, e muitas das correspondências entre
primeiro é melhor ilustrado pelos grimórios os dois são surpreendentemente apropria-
ibéricos [da tradição cipriânica] e o último das.[132]
pelos textos franco-italianos como o Grimo-
rium Verum e o Grand Grimoire.[129] A colonização, a escravidão, o trabalho
[...] Esses textos ibéricos incorporam o re-
nascimento da goécia [...] em comum com a imigrante nas Américas e a crioulização dos
Bibliothèque Bleue franco-italiana. [...] Da grimórios populares impressos como O Li-
mesma forma, sua influência e harmonia
com tradições vivas e prósperas no Novo vro de São Cipriano e o Grimorium Verum,
Mundo são importantes de reconhecer.[130] produziram uma fascinante fusão de cren-
ças e práticas religiosas, mágicas e medici-
E no seu comentário ao Grimorium nais, derivadas da Europa, das culturas afri-
Verum, Stratton-Kent ressalta a influência canas e dos povos autóctones ameríndios,
e impacto desses grimórios populares na dos quais, no Brasil, nasceram a Jurema, a
magia afro-diaspóricas nas Américas, bem Umbanda e, no caso da Quimbanda, permi-
como a miscigenação mágica que restaura- tiram uma profunda incursão diabólica. Eu
ria os antigos arcanos da magia ocidental cito em especial essas três culturas mági-
por meio da nova síntese da magia:[131] cas, a Jurema, a Umbanda e a Quimbanda,
porque são elas que foram profundamente
A influência de O Livro de São Cipriano, influenciadas pela crioulização de O Livro
bem como dos europeus que o trouxeram
consigo, fez-se sentir nas colônias espa- de São Cipriano e o Grimorium Verum.
nholas e portuguesas pelo menos desde o Como demonstrei no meu artigo A Trindade
século XIX. Isso está bem além da conhe- Infernal: Sataná, Caifás e Barrabás, O Livro
cida influência da magia cabalística sobre
o Hoodoo, através de Os Livros de Moisés de São Cipriano teve profunda influência
de fontes alemãs. [...] De algumas perspec- na formação da Jurema e da Macumba cario-
tivas, aquelas que enfatizam expressões ca, a genetrix da Umbanda e da Quimbanda.
puramente literárias da cultura, o Grimo-
rium Verum pode parecer ter sido particu- O Grimorium Verum, herdeiro do diabolis-
larmente influente. A realidade é que, como mo e da demonologia europeia, assim como
um grimório popular com fortes conexões um substrato da própria ideia de bruxaria
com a magia folclórica, reflete mais ampla-
mente do que outras tradições de magia po- como fenômeno cultural medieval, mudou
pular de origem europeia que tiveram um completamente a estrutura da Quimbanda,
impacto poderoso nas [religiões] do Novo dando a ela a forma que hoje conhecemos na
Mundo. Não foi o principal veículo dessas
tradições, mas uma reflexão literária sin- síntese estabelecida por Aluízio Fontenelle.
gularmente rica delas. O verdadeiro veículo
dessas tradições eram as pessoas, inclusi-
ve milhares de ciganos no caso do Brasil, Continua na próxima edição.
cuja impressão na Quimbanda e mesmo em
toda a cultura ainda é fortemente sentida.
Os grimórios populares eram um aspecto
da tradição, mas enquanto eles estão entre
os últimos vestígios dessa tradição na Eu-
Táta Nganga Kimbanda
ropa, são apenas uma pequena parte de sua Kamuxinzela
sobrevivência no Novo Mundo. Em outras
palavras, muito do que foi perdido nas as Cova de Cipriano Feiticeiro
tradições mágicas europeias ainda prospe-
ra nas religiões do Novo Mundo. O fato é que Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera
existem elementos da velha magia europeia Negra e Pombagira Dama da Noite
que influenciaram as tradições do Novo
Mundo que não são representadas em [ou-
tros] grimórios além de Verum.
[129] Jake Stratton-Kent. The Testamnent of Cyprian the
Mage. Scarlet Imprint, 2014, pp. 3-4.
[130] Ibidem, pp. 4.
[132] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia
[131] Sobre a nova síntese da magia veja Revista Nganga No. 10. Goetica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 196-8.

38 Edição 11
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

Beelzebuth é Chefe
na Quimbanda

Desde o tempo em que Jezabeu, que que somente o deus de Israel é verdadeiro e
prostituiu-se com os deuses de outras na- os outros deuses são falsos.
ções,[1] trouxe a Israel a adoração de Baal O que segue nessa seção é uma breve
(1 Reis 21), deus da fertilidade dos sírios e perspectiva histórica de modo a demons-
cananeus, que Beelzebuth causa problemas trar como Beelzebuth saiu do imaginário
e consternações no imaginário cultural do teológico dos cananeus e sírios no contexto
Ocidente. Quem não se lembra da conten- do Velho Testamento (2 Reis 1:1-2) onde
da entre Elias e os sacerdotes de Baal no aparece pela primeira vez, para se tornar
Monte Carmelo (1 Reis 18: 17-40)? Querela um Deus-Chefe na Quimbanda.
que começa como uma herança dos ensina- Mas antes de começar, preciso te lem-
mentos dos profetas, que queriam provar brar: o mito alimenta o rito e o rito reali-
o ininteligível para um religioso politeísta: menta o mito. Todo impulso mágico-reli-
gioso toma como ponto de partida um mito;
[1] A palavra prostituta no Velho Testamento quase sempre se este mito é repetido ritualisticamente, en-
refere a uma irregularidade teológica, não tendo nada a ver com
sexo ou infidelidade matrimonial. Jezabel, a esposa de Acabe, é riquecendo no imaginário de uma cultura
associada as prostitutas no Velho Testamento porque ela intro- ou grupo religioso os alicerces hierofâni-
duziu em Israel a adoração de Baal. Veja 1 Reis 21.

39 Edição 11
cos do mito, que por sua vez extrapola para Quando Beelzebuth aparece pela pri-
o dia-a-dia das pessoas, para as práticas meira vez no Velho Testamento na forma
religiosas individuais e para as convenções de Baal-Zebub, ele é descrito como um falso
sociais. Os alicerces míticos do imaginário deus reverenciado pelos filisteus na cida-
ocidental têm duas fontes: os mitos clás- de de Ecrom. Os israelitas traduziam esse
sicos gregos e os mitos bíblicos do Velho nome como senhor das moscas, provavel-
e Novo Testamento. Todas as manifesta- mente porque a sonoridade de zebub era
ções religiosas do Ocidente, da Antiguidade parecida com zebal, termo utilizado para
a Modernidade, são alimentadas por mito- produção de esterco, ao ponto de distor-
logemas provenientes dessas duas fontes, cerem completamente seu significado, em
em maior ou menor grau, tanto excludentes oposição ao seu culto. Mas é somente no
(cristianismo católico, protestante, judaís- Novo Testamento que Beelzebuth torna-
mo, islamismo etc.), como não excludentes se o arconte dos demônios, ganhando noto-
(Umbanda, Quimbanda, Jurema, Santo Dai- riedade em desenvolvimentos demonológi-
me, Palo, feitiçaria ibérica popular, papiros cos posteriores e na subsequente tradição
gregos etc.). Isso é importante dizer porque dos grimórios, garantindo seu lugar na li-
existe um desserviço religioso feito por derança hierárquica do Inferno.[4]
sectários africanistas e outros negando o É na tradição dos grimórios, bem antes
intricado processo de miscigenação cultu- de tornar-se um Chefe na Quimbanda, que
ral que houve na formação da identidade Beelzebuth conquistou sua apoteose. No
mágico-religiosa brasileira, como vimos no Grimório de Armadel (c. 1600) o operador
Capítulo 9.[2] Como demonstrei no segundo deve convocar conjuntamente Lúcifer, Bee-
volume do Daemonium, os Papiros Mágicos lzebuth e Ashtaroth para receber instru-
Gregos representaram no fim da Antiguida- ções, em primeira mão, da revolta e queda
de um esforço religioso em congruir os mi- dos anjos. Como vimos no Capítulo 13, a
tos de ambas as fontes, as mitologias grega mitologia dos anjos caídos de O Livro de
e bíblica, além de mitologemas provenien- Enoch está diretamente associada a Quim-
tes dos egípcios, persas etc. E como vere- banda. Em O Livro da Magia Sagrada de
mos na Parte III, a síntese que ocorreu nos Abramelin, o Mago (c. 1600), Beelzebuth é
Papiros Mágicos Gregos deu nascimento descrito como sendo capaz de transformar
a sistematização ocidental da magia como homens em bestas, quer dizer, de aumentar
a compreendemos hoje. Tal qual ocorreu no o potencial bestial no ser humano, desper-
contexto sincrético dos papiros gregos, a tando o poder de seus impulsos primitivos
identidade mágica e religiosa do Brasil for- e atávicos, sendo considerado um espíri-
mou-se a partir de um caudaloso caldeirão to maligno capaz de causar malefícios e
que não uniu apenas os mitologemas des- disseminar pragas. Em seu Dictionnaire
sas duas fontes, grega e bíblica, mas tam- Infernal, Collin de Plancy (1794-1881)
bém àqueles derivados das culturas tribais coloca Beelzebuth entre os oito governan-
da África e América. É por conta disso que tes do Inferno. É interessante que no livro
é possível encontrar uma antiga divindade do demonólogo Charles Berbiguier (1765-
da fertilidade dos cananeus e sírios, Baal, 1851), Les Farfadetes de 1821, Beelzebu-
como Chefe da Quimbanda no Brasil na for- th suplanta Satanás como governante do
ma de Beelzebuth, arconte dos demônios. Inferno, muito provavelmente inspirado no
Nesse texto vamos pontuar o caminho pelo Evangelho de Marcos (3:22-26), e a ele é
qual isso aconteceu.[3]
a superar todas as coisas, inclusive o mal no mundo (veja Logos
[2] Veja também o livro Ganga: a Quimbanda no Renascer da Teleios, 16). Essas duas ferramentas te possibilitam a transcen-
Magia, Parte I. Clube de Autores, 2023. der o sectarismo para não verborrear sandices como apropriação
cultural, que no contexto da religião e prática da magia, é de uma
[3] Você tem duas ferramentas extraordinárias para compreender
estupidez execrável. Veja Capítulo 9.
o tema do sincretismo religioso: sua inteligência e a capacidade de
aprendizado e compreensão. Na cosmogonia e cosmologia do her- [4] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp.
metismo tradicional alexandrino, isso são dádivas que te auxiliam 118.

40 Edição 11
dado o título de Chefe Império do Inferno. caíram com Satanás», embora o conceito da
Em O Testamento de Salomão o próprio Comunhão dos Santos tenha tornado essa
religião mais palatável para aqueles que
Beelzebuth reivindica seu posto de coman- não estavam dispostos ou [eram] incapa-
dante sobre todos os outros demônios, com zes de deixar de lado a reverência dos deu-
ses e ancestrais tribais em seus primeiros
o argumento de que não se trata de um fi- dias. Tão mutável era a natureza da Igreja
lho de qualquer anjo, mas sendo ele mesmo em desenvolvimento quando se tratava de
um anjo. Ele também declara ser o Primei- seus esforços para fazer proselitismo, que
mesmo um deus tão «demoníaco» como
ro Anjo do Primeiro Firmamento antes da Odin poderia ser remodelado em uma figu-
Queda, o que o coloca em pé de igualdade ra suficientemente semelhante a Cristo se
com o Lúcifer das recessões medievais dos os moradores locais se mostrassem muito
teimosos para visualizar e entender Jesus
grimórios e com o próprio Samyaza, líder Cristo como Roma o via.[5]
da rebelião dos anjos de O Livro de Enoch.
Em Os Segredos de Salomão (1539-1630), Jezabel, que se prostituiu com o fértil
o ancestral direto do Grimorium Verum deus Baal dos cananeus e sírios, foi mãe de
(1817), Beelzebuth é atribuída a regência Acazias, que se tornou o oitavo rei de Is-
do continente africano e em As Verdadeiras rael. Reinando em Samaria, Acazias sofre
Clavículas de Salomão (c. 1500), as Améri- uma queda da sacada de seus aposentos.
cas, junto com Ashtaroth. Temeroso por não conseguir se recuperar
É então na ocasião da incursão diabó- do acidente, Acazias, conduzido por sua he-
lica que ocorreu no segundo momento da rança ancestral materna, envia seus men-
Quimbanda no Brasil, a partir da década sageiros para se consultarem no oráculo
de 1950 na síntese estabelecida por Aluí- do deus tutelar[6] da cidade Ecrom, Baal-
zio Fontenelle, que absorveu a corrente no- Zebube, no sudoeste de Canaã, uma região
turna da goécia do Grimorium Verum na próspera e farta que Abraão chamou de
Macumba, que Beelzebuth se estabelece terra prometida. Beelzebuth acabou por se
definitivamente como um Chefe Infernal tornar, com o desenvolvimento mitológico,
em um culto necromântico iniciático e or- uma deidade amalgamada, sendo a união
ganizado: a Quimbanda. entre Baal, deus da fertilidade, agricultu-
ra e dos trovões (e, portanto, das chuvas)
Beelzebuth no Velho e Zebub, deus das pestilências (e, portanto,
Testamento das moscas). Hoje já existe certo consenso
de que a palavra zebub, geralmente usada
como um termo genérico para infestações
As raízes históricas de Belzebuth estão com de insetos,[7] trata-se do resultado de um
os deuses cananeus denunciados como fal-
sos ídolos pelos profetas hebreus em sua [5] David Crowhurst. Stellas Daemonium: The Order of the
longa e muitas vezes infrutífera luta contra Daemons. Weiser Books, 2021, pp. 40.
a apostasia. As origens dessa luta ideológica [6] A palavra Baal, que se traduz como senhor, era utilizada para
derivam em grande parte dos descendentes uma miríade de deidades tutelares, como Baal-Adir, que se traduz
da incapacidade de Jacó de se abster das como senhor poderoso, e era a deidade tutelar da cidade fenícia de
práticas de expressão religiosa politeísta Biblos; Baal-Biq’h, que se traduz como senhor da planície, e era a
que seus vizinhos ainda felizmente se entre- deidade tutelar da cidade cujo nome foi inspirado no seu próprio,
gavam. Durante o exílio babilônico, os deu- Balbeque, mais tarde conhecida como Heliópolis. Quando os hic-
teronomistas, cuja teologia foi sustentada sos, povo semita que invadiu o Delta do Nilo por volta de 1700 a.C.,
na fidelidade dos hebreus a Yahweh, empre- levaram o culto de Baal para o Egito, lá ele foi associado direta-
garam esse dispositivo propagandista com mente a Set. Baal-Hammon aparece como deidade tutelar da cida-
particular voracidade, intitulando os deu- de Cartago em uma inscrição fenícia encontrada em outra cidade,
ses de Canaã e das regiões vizinhas [como] Zincirli. Seu nome traduz-se como senhor dos altares de incenso,
«abominações» e «demônios que não eram provavelmente, e foi associado pelos gregos ao ctônico Cronos e
deuses». Essa atitude permaneceu em gran- pelos romanos a Saturno. Já Baal-Karmelos era a deidade tutelar
de parte intacta durante a disseminação do do Monte Carmelo, possuía templo e oráculo, e foi reverenciado
cristianismo por toda a Europa, com o Pa- pelo imperador romano Vespasiano (9-79 d.C.). Todos esses Baals
raíso Perdido de John Milton refletindo a se tornaram, com o posterior desenvolvimento da demonologia,
sobrevivência de séculos dessa crença com nos Baalim do Inferno. Veja M. Belanger. Dicionário dos Demô-
sua explicação de abertura de que os deu- nios. Dark Side, 2022, pp. 102.
ses de Canaã eram «idênticos aos anjos que [7] Karel Van Der Toorn, Bob Becking and Pieter W. Van Der Horst.

41 Edição 11
jogo de palavras derisório que levou a cor-
ruptela beelzebul, uma divindade tutelar
ctoniana filisteia e cananeia reverenciada
em Ecrom,[8] conectada diretamente aos
ciclos transitórios das estações. Esse, ali-
ás, foi um dos fatores que levaram os pro-
fetas do Velho Testamento a alegar que
toda prosperidade concedida por Baal aos
filisteus era transitória, sob o símbolo mí-
tico da árvore (prosperidade temporária),
em detrimento da prosperidade concedida
pelo deus de Israel, que era eterna (Eze-
quiel 31: 3-9; Daniel 4: 20-22).

Existem dois tipos de imagens demoníacas


na Bíblia. Em primeiro lugar, há o estranho
paradoxo do fato de que os únicos reinos
que são consistentemente bem-sucedidos e
prósperos são os reinos malignos. É o Egito,
a Assíria, a Babilônia e Tiro que têm o nível
de poder e prosperidade desesperadamente
desejado pelo próprio [povo de] Israel, que
o teria considerado como uma marca do fa-
vor divino se o tivesse. Assim, a prosperida-
de dos reinos pagãos forma uma categoria
de imagem que podemos chamar de paródia lutava perpetuamente para manutenção da
demoníaca, que tem todas as qualidades da vida. O caos, representado pelo deus Mot,
coisa real, exceto a permanência. [...] Não
nos surpreende observar que, quando os que literalmente significa morte, afligia a
profetas começam a denunciar a aparente ordem e ameaçava a continuidade da vida
prosperidade do Egito, da Assíria ou da Ba-
bilônia, eles usam uma imagem desse tipo com a falta de chuvas, a aridez do deserto,
[da árvore] em um contexto de paródia. [...] a infertilidade da terra e das mulheres etc.,
Nívile, a capital da Assíria, era a maior cida- incursões caóticas sazonais. Baal estabe-
de do mundo antigo e, de acordo com o Li-
vro de Jonas, gastava-se três dias para atra- lecia uma contenda anual contra Mot pela
vessá-la do arrabalde ocidental ao oriental. manutenção da ordem e continuidade da
No entanto, de repente, Nívile simplesmen- vida por meio da vegetação e da fertilidade
te sumiu. Desapareceu sob as areias, onde
permaneceu até meados do século XIX. Qua- das lavouras, animais e mulheres.
se imediatamente depois que foi destruída, Anualmente Baal morria e descia (catá-
tornou-se impossível, para qualquer pessoa,
localizar a maior cidade do mundo. Assim, a base) ao Submundo. Essa é a fórmula mági-
rapidez com que o poder pagão podia desa- co-ctônica do Sol da Meia Noite, o Sol que
parecer quase da noite para o dia era natu- brilha nas profundezas da terra, o mundo
ralmente um tema favorito da profecia.[9]
dos mortos. Com sua descida ao Submun-
O rito é uma mimetização do mito e do, estabelecia-se a estiagem e as sementes
o cerne do mito de Baal envolve os ciclos morriam. É sua esposa, Astarte (em outras
das estações. A narrativa mítica da vitória recessões míticas é Anat), que derrota Mot,
de Baal sobre as forças caóticas refletia a jogado por ela em um holocaustro sacri-
preocupação humana com a manutenção ficial do qual das cinzas ressuscita Baal
de sua existência. Baal era a divindade que (anábase), que restabelece as chuvas e a
fertilidade da terra. Essa fórmula mágica é
Dictionary of Deites and Demons in the Bible. Brill, 1999, pp. 154- típica de sociedades agrárias e cultos cto-
5. nianos.
[8] Ibidem. Quando os israelitas chegaram em Ca-
[9] Northrop Frye e Jay Macpherson. A Bíblia e os Mitos Clássicos: naã, eles se depararam com o culto mul-
A Estrutura Mitológica da Cultura Ocidental. Sétimo Selo, 2023,
pp. 24-5.
tifacetado de Baal, porque cada região, os

42 Edição 11
territórios palestinos da Jordânia, do Lí- gonia da Quimbanda, onde Beelzebuth é o
bano e do sul da Síria (Números 34: 1-15; Sol e Ashtaroth é a Lua? Pombagira não é a
Deuteronômio 3:8), possuía um Baal tute- contraparte de Exu?
lar. Os Baals ou baalim eram divindades O culto de Baal incluía sacrifícios diver-
masculinas que possuíam contrapartes sos, até de crianças,[12] e rituais orgiásticos
femininas, as astarotes (Ashtaroth).[10] E onde as secreções sexuais eram diretamen-
não é interessante que este princípio de te projetadas sobre o solo, representando a
contraposição da polaridade macho-fêmea própria fecundação da terra.[13] Nas cultu-
(que permeia todo o imaginário religioso ras religiosas do Mundo Antigo, a mulher
ocidental e oriental)[11] se repita na cosmo- mantinha uma conexão mágica com a Ter-
[10] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp.
ra, como vimos no Capítulo 2. Uma vez que
101. Tecnicamente os Baalim eram os espíritos dos locais de po- ambas estão ligadas à reprodução e à fer-
der, i.e. da terra ou geografia mágica: rios, arvores, montanhas tilidade, elas podem ser fecundadas e são
etc. e que posteriormente entraram para as listas demonológicas
como demônios. Veja Capítulo 12. Canaã era uma sociedade poli- capazes de reproduzir a vida. Foi a partir
teísta e de cultura altamente pluralizada, com grande diversida- da noção da fecundidade da terra e do co-
de de ideias religiosas em intercâmbio umas com as outras, o que
configurava uma multiplicidade de cultos espalhados pela região.
núbio entre os deuses para criar a vida nos
Por causa disso, muita ênfase era dada aos cultos ancestrais fa- mitologemas onde o deus fecunda a deusa,
miliares. Cada família possuía seu culto particular a um certo ar- que surgiu a ideia da relação sexual ritual
ranjo de divindades para apaziguar a ira de espíritos demoníacos.
Veja André Daniel Reinke. Os Outros da Bíblia. Thomas Nelson para a melhoria das colheitas.[14] Era esse
Brasil, 2023, pp. 134-6. o papel da deusa Astarte em Canaã.[15] Nos
[11] No imaginário simbólico do Ocidente e Oriente, as funções templos de Baal havia a prostituição ritu-
metafísicas dos gêneros (macho-fêmea) e a relação de polaridade
contraposta que se estabelece entre eles, está no cerne de quase
al, onde as sacerdotisas ofereciam serviços
todos os sistemas religiosos. O Logos Teleios (Asclépio latino), sexuais para aqueles que buscavam por
uma das mais belas e inspiradas escrituras do hermetismo ale- plantações e colheitas mais prósperas. A
xandrino, lemos (Verso 21): Tudo que é animado ou inanimado, já
que é impossível que sejam inférteis todas as coisas que existem. prostituição ritual que aqui me refiro não
Se removeres a fecundidade de tudo que existe, será impossível se trata do sentido corrente e moderno
que existam para sempre. Afirmo que {a sensação e o crescimen-
to são também próprios da natureza das coisas e que o mundo}
que ganhou o termo prostituição. Essas sa-
contém crescimento em si e preserva tudo que deverá surgir. Pois mantendo em equilíbrio, gera corpos bem formados.
todo sexo está pleno de fecundidade e a junção ou, de forma mais se, contudo, misturados os sêmens, as forças se opõem,
exata, a união de ambos é algo incompreensível. [...] Apreende isto e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis,
em teu intelecto como algo mais verdadeiro e mais claro do que atormentam o sexo da criança com o duplo sêmen.
qualquer outra coisa: Deus, o mestre de toda a natureza, idealizou Nós nos debruçaremos na Parte III, ao discutirmos a Quimbanda
e garantiu a todas as coisas o mistério da procriação que leva à no contexto do Ocultismo e esoterismo ocidental, sobre o simbo-
eternidade e no qual surge a maior afeição, prazer, felicidade, de- lismo do hierogamos que está contido no Mistério sem Nome do
sejo e amor divino. Talvez fosse necessário que se explicasse quão Chefe Império Maioral na relação que se estabelece entre Beelze-
grande é a força e a intensidade desse mistério, porém cada pessoa buth e Ashtaroth.
já o sabe se deixar se orientar pela contemplação e pela consciên-
cia interna. Se reparares no derradeiro instante de regozijo após [12] A prática do sacrifício de crianças era exclusiva dos fenícios,
a fricção, quando duas naturezas entregam seu sumo uma à outra que eram os cananeus que viviam no litoral e diferente dos ca-
e uma como que rouba o amor da outra parte, enterrando-o em si, naneus do interior, os fenícios gozaram de grandes cidades, do-
então, finalmente, nesse instante, por meio do acasalamento, as cumentação histórica e apurada expansão marítima comercial.
mulheres recebem a potência dos homens e os homens se deixam Entre os fenícios havia dois tipos de sacrifício envolvendo crian-
exaurir com a letargia das mulheres. Portanto, o ato desse misté- ças: os primogênitos e os molk. O sacrifício dos primogênitos era
rio, tão doce e vital, é realizado em segredo para que a divindade voluntário e as análises arqueológicas mostram que elas já chega-
que surge em ambas as naturezas do acasalamento sexual não se vam mortas antes de serem sacrificadas no holocaustro. Os molk
sintam obrigadas a sentir qualquer vergonha. E no Da Natureza de eram crianças sacrificadas em holocaustros em tempos de crise,
Parmênides, um poema anterior a Platão, lemos (B12, 13, 17 e 18): como o cerco de uma guerra, ou para aliviar a pressão demográfi-
Pois as coroas mais estreitas enchem-se de fogo sem mistura ca. Veja André Daniel Reinke. Os Outros da Bíblia. Thomas Nelson
E as que vêm à noite depois destas, mas com elas lança-se uma Brasil, 2023, pp. 139-40.
parte de chama. [13] Karel Van Der Toorn, Bob Becking and Pieter W. Van Der
No meio delas está a divindade que tudo governa; Horst. Dictionary of Deites and Demons in the Bible. Brill, 1999,
Pois em tudo comanda o parto doloroso e a mistura, pp. 155.
Impelindo a fêmea a unir-se ao macho, e ao contrário o macho à
[14] Mircea Eliade. O Sagrado e o Profano: a Essência das Reli-
fêmea.
giões. Martins Fontes, 2008, pp. 120-22. Veja também Joseph
Primeiro que todos os deuses, concebeu Eros.
Campbell. Deusas: Os Mistérios do Divino Feminino. Palas Atena,
À direita os machos, à esquerda as fêmeas.
2013, pp. 48-54.
Quando a mulher e o homem juntos misturam as sementes de
Vênus, [15] Carrol Poke Runyon, M.A. Seasonal Rites of Baal and Astarte.
a força que se forma nas veias a partir de sangues diversos, AHS Publications, 1998, pp. 69.

43 Edição 11
cerdotisas realizavam um ritual sexual na dação do mundo». É esta afinidade do touro
terra que seria fecundada do fazendeiro. A com os reinos pagãos que o elimina como
uma imagem normal de um mundo pastoril;
prostituição ritual era um ofício sacerdotal e, com efeito, quase podemos classifica-lo
de fecundação da terra oferecido pelos sa- como uma imagem demoníaca.[16]
cerdotes de Baal. Daí que Jezabel, tal qual
Astarte e as sacerdotisas dos templos, se Desse conflito teológico, posterior-
prostituiu com Baal. mente resultou a demonização de Baal nas
Todo esse simbolismo mítico-sexual culturas abraâmicas subsequentes, onde
do Mundo Antigo e no culto de Baal repre- Beelzebuth chegou ao posto de arconte dos
sentado por sua relação com Astarte em demônios do Inferno, e muitos outros de-
Canaã, é herdado pela Quimbanda nas re- senvolvimentos demonológicos posterio-
lações que se estabelecem i. entre os Maio- res, como os Baalim infernais e o demônio
rais, onde o Lúcifer andrógeno manifesta o Belfegor.[17]
deus Beelzebuth e a deusa Ashtaroth, que
Um dos poucos demônios a receber nome
mantêm relações mítico-sexuais na criação próprio na Bíblia, Belzebu é um dos mais
dos Reinos da Quimbanda e individualida- conhecidos. Ao longo dos anos, passou a ser
de humana; ii. entre Exu e Pombagira, os visto como um dos principais dignitários
do Inferno. Mas, antes de ser um demônio,
Gangas polarizados macho-fêmea que nas- ele foi um deus. O nome Belzebu é prova-
cem da interação sexual de Beelzebuth e velmente uma forma de Baal Hadad, deus
Ashtaroth. das tempestades que aparece na mitologia
dos antigos sírios e cananeus. [...] Baal Ha-
Os embates que sucederam entre os is- dad é lembrado como Belzebu por conta de
raelistas e os sacerdotes do culto de Baal um processo de demonização: muitos dos
demônios mencionados no Velho Testa-
deram origem as polêmicas suscitadas pe- mento não eram demônios, mas sim deuses
los profetas no Velho Testamento. O inci- que pertenciam a culturas rivais. Para dis-
dente que envolveu o bezerro de ouro, por- suadir os antigos israelitas de venerar essas
divindades estrangeiras, os deuses passa-
que o touro era um símbolo de fertilidade ram a ser representados como malignos ou
e força no imaginário do Oriente Médio, foi monstruosos.[18]
resultado das incursões de Baal dentro do
culto ao deus de Israel. O Arconte dos Demônios
O touro era uma popular imagem de fertili- Os profetas sempre trouxeram às suas cul-
dade nos países vizinhos [dos israelitas], e turas alguma condenação de um mal no
por isso é encarado com alguma desconfian- mundo: um lapso na religião correta, talvez,
ça [...]. No Antigo Testamento, por exemplo ou algum tipo de bruxaria ou feitiçaria, ou
[...] Araão o sumo sacerdote, levou as tribos algum tipo de espírito maligno, cuja exis-
de Israel à idolatria fazendo um bezerro de tência, afirma o profeta, causou estragos e
ouro como um ídolo. «Bezerro» aqui signifi- poluição na sociedade e no cosmos. De fato,
ca touro. Esse é um tipo que se repete pos- o que torna o profeta atraente para a cul-
teriormente, quando o reino é dividido en- tura, mesmo que ele possa aparecer como
tre as dez tribos do norte de Israel e a tribo um estranho com noções destrutivas de re-
de Judá. Jerobão, o rei de Israel, estabelece novação cultural, é sua representação desse
santuários locais com o emblema de um be- mal como um sistema e uma ameaça à socie-
zerro de ouro – que novamente significa um dade: demônios e sua natureza, talvez sua
touro – indicando, assim, seu afastamento relação com Satanás, bruxas e como elas
da linha religiosa ortodoxa. Nos tempos do operam, e os sinais pelos quais podemos co-
Novo Testamento, o grande rival do cris- nhecê-las. Ainda mais importante, o profeta
tianismo no território do Império Romano demonstra como o mal pode ser localizado
era a religião chamada mitraísmo, em que e depois purgado, oferecendo ilustrações
o principal evento do ano era a celebração dramáticas como o exorcismo ou a identi-
do nascimento do Sol em 25 de dezembro. ficação de bruxas. No final, se ele for bem-
O mitraísmo atingiu todos os cantos do Im-
pério Romano. [...] O grande emblema do [16] Northrop Frye e Jay Macpherson. A Bíblia e os Mitos Clás-
mitarísmo era o touro, e seu grande rito sicos: A Estrutura Mitológica da Cultura Ocidental. Sétimo Selo,
era o sacrifício de um touro. Esse rito era 2023, pp. 60-1.
a repetição de um mito original da Criação [17] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp.
e é, também, um paralelo exato do sacrifí- 101.
cio cristão de um cordeiro que é, segundo o
[18] Ibidem, pp. 102.
Livro do Apocalipse, «imolado desde a fun-

44 Edição 11
sucedido, o público sente confiança de que o os quais haviam aqueles que incluíam o
profeta entendeu as realidades culturais lo- nome de Jesus, John Diminic Crossan diz:
cais dentro de um sistema maior e credível
– demonologia ou conspiração – e que seus
meios de purificar a cultura são poderosos Jesus, como um popular mago judeu do pri-
e eficazes. De fato, ao abraçar a ideologia do meiro século [...] pode muito bem ser com-
profeta e se submeter a seus rituais de cura parado aos magos profissionais que possuí-
e purificação, o público permite que uma am esses papiros mágicos, mas isso deve ser
nova dispensação – uma cultura livre de de- estabelecido comparando suas ações, não
mônios ou bruxas ou doenças – ocorra.[19] presumindo seus motivos.[22]

Quando Beelzebuth aparece pela pri- Os exemplos que encontramos dos exor-
meira vez como o arconte dos demônios no cismos de Jesus no Novo Testamento,
Evangelho de Marcos,[20] i.e. como o prín- como no Evangelho de Mateus (17:18) em
cipe regente de todos os espíritos infer- que ele repreendeu o demônio que saiu do
nais, haviam muitas personalidades caris- corpo do menino, e no Evangelho de Lucas
máticas alegando a capacidade de expulsar (9:42) onde o demônio coloca o menino em
demônios através do exorcismo. E como a convulsão, mas logo é expulso pelo coman-
linha que distingue a prática de expulsar do de Jesus, quer dizer, as descrições dos
demônios pelo exorcismo e a Arte da goé- efeitos físicos e dramáticos desses exorcis-
cia, a capacidade de comandá-los à vonta- mos, demonstra que eles foram editados
de,[21] é muito tênue, essas personalidades para transparecer que são fruto da santi-
carismáticas eram muitas vezes acusadas dade de Jesus, e não de seu poder de magia,
de serem feiticeiros (goēs), como o próprio quer dizer, foram descritos de maneira a se
Jesus o foi. Comentando as similaridades tornarem mais milagrosos e menos mági-
entre as ações exorcistas de Jesus e os fei- cos. E isso virou tendência na época, porque
tiços dos Papiros Mágicos Gregos, dentre muitas das proezas mágicas demonstradas
pelos magos eram as mesmas possuídas
[19] David Frankfurter. Evil Incarnate: Rumors of Demonic Cons-
piracy and Satanic Abuse in History. Princeton and Oxford, 2006,
pelos santos, mártires e apóstolos.
pp. 33.
[20] O Evangelho de Marcos foi por muito tempo considerado Os exorcismos são mantidos [nos evange-
posterior e até inferior aos evangelhos de Lucas e Mateus. Santo lhos] como evidência do status divino de Je-
Agostinho chegou a acusar Marcos de abreviador de Mateus. Mas sus, os detalhes de sua performance foram
estudos recentes comprovaram que o Evangelho de Marcos é um constrangimento para a igreja – eles re-
anterior aos de Lucas e Mateus, e que estes, além de posteriores, tratam um Jesus que pode ser considerado
incorporaram material de outras fontes. Não se conhecem os apenas como um entre muitos homens san-
verdadeiros autores dos evangelhos, e os nomes dos apóstolos e tos itinerantes que operavam maravilhas. A
seus discípulos foram a eles atribuídos posteriormente para ad- essa alta, a teologia já estava se afastando
quirirem credibilidade. Veja Humberto Maggi. O Diabo. Clube de constantemente do Jesus histórico, cujas fa-
Autores, 2022, pp. 67-8. lhas, particularmente sua reputação como
mago, estavam sendo repassadas ao mesmo
[21] E como vimos na Parte I, a distinção entre um morto sem
tempo que seu currículo oficial estava sen-
descanso e um demônio também era muito tênue. O O goēs é um
do editado.[23]
homem que acorda os mortos através da lamentação, um papel
Os magos inspirados pelo demônio deve-
tipicamente feminino, mas também é associado por escritores an-
riam tornar-se impotentes ou converter-se
tigos com a iniciação em cultos de mistério, protegendo os vivos
da ira de fantasmas irritados através de encantamentos escritos
ao Cristianismo. A simples condenação, po-
e cantados. Graf define o goēs como um homem que combina cura,
rém, logo passou a ser vista como ineficaz e
magia e a convocação da alma dos mortos. Robert Conner. Jesus
dispendiosa. Hábitos tinham sido formados
the Sorcerer: Exorcist & Prophet of Apocalypse. Mandrake, 2006,
pelas velhas ideias e costumes, os quais po-
pp. 100. Não demoraria muito para estabelecermos um campo
diam ser tenazes. Alguns desses pseudopar-
semântico, que é uma nuvem de palavras recorrentes, nas quais
tidários dos malévolos demônios tinham ca-
o termo goês estava essencialmente entrelaçado: Heráclito (final pacidades e dons que eram preciosos para a
do século VI a.C.), conforme supostamente citado por Clemente de religião mais nova, os quais ela não queria
Alexandria (século II d.C.), os associa com «aqueles que vagam à se dar ao luxo de perder. Nessas circuns-
noite (nyktipolois): Magi (magois), bacantes (bakchois), mênades tâncias, a atitude sábia era considerar com
(lênais), iniciados (mystais)». A maioria das outras pessoas teria atenção as conversões. Com esse propósito,
diminuído o tom de tal avaliação, relacionando-os também estrei-
[22] Citado em Robert Conner. Jesus the Sorcerer: Exorcist & Pro-
tamente com charlatães, bem como impostores e profanadores
phet of Apocalypse. Mandrake, 2006, pp. 123.
da religião oficial. Frater Archer. Goêtic Common Sense: An in-
terlude for the inveterate chthonic sorcerer. PDF do autor, [23] Robert Conner. Jesus the Sorcerer: Exorcist & Prophet of Apo-
disponível na Theomagica, pp. 10. calypse. Mandrake, 2006, pp. 125.

45 Edição 11
determinadas práticas pagãs talvez não ti-
vessem de ser destruídas, mas redefinidas.
Poderia ser necessário distinguir entre as
ações descritas como demoníacas para es-
colher quais eram menos prejudiciais que
outras, e tentar um acordo. Essa tendência
para a contemporização tornaria-se um
traço marcante no mundo do fim da Anti-
guidade. Esforços eram feitos para que al-
guns dos velhos costumes fossem mantidos,
e talvez alguns dos daimones mais antigos
recebessem um novo conceito; e também
havia o empenho em restringir as forças
de condenação. Alguns tipos de magia e fei-
tiçaria eram, assim, tolerados, pelo menos
por medo de algo pior, e talvez por ofere-
cerem alguns benefícios, afinal de contas.
Portanto, o processo de demonizar a magia
não veio completo, mas foi sendo redefinido
em seu desenrolar.[24]

Nos primeiros anos de desenvolvimento


do Novo Testamento, o mundo era povoa-
do por demônios.[25] O Evangelho de Mar-
cos apresenta o termo daimonizomenous,
que significa endemoniado, i.e. o sujeito
possuído por um demônio. Como vimos,
o uso da palavra daimon na Antiguidade exercícios sobrenaturais de seus inimigos.
podia indicar qualquer divindade: deuses, Em suma, à medida que a prática religiosa
organizada e institucional passava a ter um
espíritos tutelares, intermediários benig- lugar mais proeminente na vida cotidiana
nos ou malignos e espíritos dos mortos. A das pessoas, comandada em boa parte por
degradação do termo daimon ocorreu na uma forma exclusiva de monoteísmo; e à
medida que o Cristianismo, em particular,
Septuaginta, de onde derivou as conota- assumia por meio de seus proponentes um
ções negativas conectadas a sua corruptela papel quase imperial, as visões mais antigas
latina: daemon (demônio). e vagas da interação de seres humanos com
os daimones não podiam mais ser toleradas.
O termo daimon foi traduzido para o demô-
A caracterização de «magia» como obra nio maligno da literatura judaico-cristã –
exclusiva de demônios perversos e de «ma- uma figura que jamais contribuiria para o
gos» e «feiticeiros» como seus servos deri- bem do homem, mas era, isto sim, seu mais
va de dois desdobramentos convergentes. horrível inimigo. Portanto, aquelas pessoas
Em primeiro lugar, o conceito de daimon que buscavam ajuda sobrenatural segundo
mudara – e foi uma mudança em resposta os antigos costumes e através de daimon
às extensivas alterações na articulação de passavam a ser vistas por muitos como fa-
práticas religiosas e no poder institucional talmente iludidas, e suas práticas como a
a elas atrelado. Em segundo lugar, «magia» pior espécie de magia. Feiticeiros e magos
tornou-se o termo principal usado pelo mais passaram a ser «demonizados» sendo de-
poderoso de todos os sistemas religiosos clarados indivíduos submetidos somente às
emergentes para descrever e condenar os forças demoníacas do mal, e eram descritos
[24] Valerie Flint. Demonizando a magia e a feitiçaria na Anti-
como veículos que ofereciam reforços para
guidade Clássica: redefinições cristãs das religiões pagãs. Em
os desígnios das mais ímpias dessas forças.
Bruxaria e Magia na Europa: Grécia Antiga e Roma. Madras, 2004,
O processo de demonizar foi grandemen-
pp. 258.
te auxiliado pela extraordinária gama de
atividades que, nesse interim, caiam sob a
[25] O costume de «demonizar» a «magia» e a «feitiçaria» no fim classificação de magia.[26]
da Antiguidade veio de séculos de considerações a respeito dos
demônios. Aconteceu em grande escala somente quando chega-
va ao fim o período [...] aproximadamente os primeiros séculos A possessão demoníaca era um fenôme-
d.C., até a morte de Agostinho, em 430; mas quando veio, esta- no recorrente naquele período e a grande
va fundamentado numa crença real no poder demoníaco, uma
crença muito intensificada devido a sua longa gestação. Valerie [26] Valerie Flint. Demonizando a magia e a feitiçaria na Antigui-
Flint. Demonizando a magia e a feitiçaria na Antiguidade Clássica: dade Clássica: redefinições cristãs das religiões pagãs. Em Bruxa-
redefinições cristãs das religiões pagãs. Em Bruxaria e Magia na ria e Magia na Europa: Grécia Antiga e Roma. Madras, 2004, pp.
Europa: Grécia Antiga e Roma. Madras, 2004, pp. 257. 257-8.

46 Edição 11
demanda de endemoniados da época pro- foi identificado pelos escribas da lei como
veu as condições ideias para que inúmeros Belzebu, e que era através do poder de Bee-
exorcistas carismáticos surgissem de pos- lzebuth, segundo eles, que Jesus expulsava
se da medicina do exorcismo. Essa palavra, demônios. Essa era uma fórmula mágica
carisma,[27] é utilizada aqui no seu sentido muito comum e conhecida na época: o co-
técnico, i.e. representa o poder espiritual nhecimento e conversação com o espírito
inato em se comunicar ou comandar espí- tutelar. Como demonstrei fartamente nos
ritos. E o termo medicina também, porque dois volumes anteriores do Daemonium, é
inúmeras doenças eram creditadas a influ- por meio do poder do espírito tutelar, i.e. o
ência de demônios, como vimos no Capítulo paredros dos papiros gregos, o daimon pes-
12. O exorcismo não era, portanto, somente soal da teurgia neoplatônica, o Sagrado anjo
mágico, mas essencialmente terapêutico, e Guardião de Abramelin, o diabo pessoal de
fazia parte do ministério de Jesus, conti- Fausto, o Exu na Quimbanda etc., que todo
nuado posteriormente por seus apóstolos, o poder para operar o milagre da magia e
que receberam diretamente de Jesus as comandar outros espíritos é transferido ao
mesmas capacidades. operador. O argumento que Jesus utilizou
No início de seu relato, Marcos apresen- para se defender é tanto estúpido quanto
ta Satanás com o um tentador (1: 9-13), e revelador. Ele faz uma pergunta retórica:
isso era senso comum na época. Em segui- como pode Satanás expulsar Satanás? De
da Marcos descreve o confronto entre Jesus acordo com a fórmula mágica do espírito
e um homem endemoniado por um espírito tutelar, é através desse diabo pessoal que
imundo, quer dizer, um demônio. É interes- o mago comanda qualquer espírito, mas
sante que antes de ocorrer o exorcismo, os editores do Evangelho de Marcos ou
o homem endemoniado reconheça Jesus desconheciam ou se fizeram por desenten-
como Santo de Deus. A descrição de Marcos didos. Mas por outro lado Jesus revela que
faz crer que o poder do exorcismo estava Beelzebuth é apenas outro nome de Sata-
relacionado a virtude de Jesus ser o Santo nás. É nessa passagem também que Beel-
de Deus, daí sua autoridade. Por outro lado, zebuth é apresentado como príncipe dos
essa autoridade é atestada por testemu- demônios. Quando Marcos inicia seu rela-
nhos que, por sua vez, confirmavam o po- to, ele não deixa claro a posição de satanás
der de Jesus sobre os demônios, algo muito ou mesmo sua relação com a hierarquia de
próximo daquilo que Paulo fez, que foi atri- demônios. Jesus confirma, portanto, Beel-
buir a Satanás o poder sobre os espíritos zebuth como o líder de todos os demônios.
do ar.[28] Essas eram duas ideias comuns da E em O Testamento de Salomão, o li-
época: que Satanás é tanto um tentador dos vro grego que inaugura a tradição salomô-
homens, quanto um poderoso comandante nica e que foi escrito no mesmo período em
dos espíritos do ar (demônios). que os evangelhos do Novo Testamento
É nesse contexto que Beelzebuth entra estavam sendo editados, Beelzebuth con-
no jogo: no Evangelho de Marcos (3:20- firma sua posição hierárquica entre os de-
30) Jesus foi acusado de estar possuído por mônios e sua qualidade de espírito inter-
um espírito imundo, i.e. um demônio, que mediário:

[27] A palavra (khárisma) surgiu na Grécia Antiga, por volta de Eu sou Beelzeboul, o exarca dos demônios.
2.500 anos atrás. Descrevia um dom atribuído por graça divina, E todos os demônios têm seus assentos de
um tipo de vocação ou predestinação celestial, algo restrito a pou- chefia próximos a mim. E sou eu quem faz
cas pessoas. Contudo, a cronologia do conceito mostra como ele manifesta a aparição de cada demônio.[29]
tem acompanhado a história do desenvolvimento das sociedades
humanas, variando semanticamente de acordo com cada período
e cultura e tornando-se vital para o aprimoramento das nossas Beelzebuth revela a Salomão que ele
habilidades sociais. Hoje, a palavra carisma descreve um fenôme- é um dos anjos que caíram do céu, sendo
no social muito mais amplo do que seu contexto original. Heno Ozi
Cukier. A Inteligência do Carisma. Planeta, 2019, pp. 23-4.
[29] Humberto Maggi. Thesaurus Magicus Vol. I. Clube de Autores,
[28] Humberto Maggi. O Diabo. Clube de Autores, 2022, pp. 68. 2010, pp. 35.

47 Edição 11
ele mesmo o Primeiro Anjo do Primeiro rendas aos deuses, bastava apenas a fé, a
Firmamento, e que ele era, por causa dis- oração e o comportamento sóbrio na socie-
so, comandante de todos os demônios do dade para agradar a Deus;[32] e o medo de
Submundo. Como falei no início da seção, vagar perdido fora dos portões do Hades
ao apresentar-se como o Primeiro Anjo do no pós-vida foi erradicado com a garantia
Primeiro Firmamento, Beelzebuth colocou- da salvação da alma pelo arrependimento
se em pé de igualdade com Lúcifer, o Prín- dos pecados e a resiliência perante a práti-
cipe Rei dos demônios, como vimos, e com ca do mal.
Samyanza, o anjo que liderou a rebelião No paganismo as atividades religiosas
contra Deus em O Livro de Enoch, como eram restritas a uma classe aristocrata de
vimos no Capítulo 13. Além disso, Beelze- sacerdotes, além de permitir que apenas os
buth também se coloca como um destrui- cidadãos da cidade participassem da reli-
dor de reis e nações. Nos homens de Deus, gião. Se alguém desejasse agradar aos deu-
quer dizer, sacerdotes, santos e religiosos, ses particularmente, não era possível, pois
ele ínsita desejos, pecados, heresias e atos estes somente respondiam as ações dos
contrários a lei. Beelzebuth também diz sacerdotes chancelados pelo Estado. É por
causar inveja no coração dos homens, insti- isso que práticas religiosas como a goécia
gando-lhes ao assassinato e a sodomia. ou os cultos de mistérios, como vimos na
É por essas declarações, e em consequ- Parte I, eram condenadas pelos aristocra-
ência da demonização de divindades pagãs tas religiosos e pelo Estado. Sobre isso Fra-
em demônios que, além de arconte de todos ter Archer diz:
eles, Beelzebuth passa também a ser o che-
fe da goécia. Platão, em suas Leis, gostou de lidar rapida-
mente com a ralé dos goêtes, pois seu estado
ideal condenava qualquer forma de culto re-
O Chefe da Goécia ligioso privado com prisão perpétua.
Isso retrata Platão mais como inimigo das
práticas espirituais subjacentes ao amplo
termo goêteia em si, do que como um pro-
No fim da Antiguidade o paganismo tetor e preservador da ordem geral da pólis.
encontrava-se em seu declínio final; era a Pois os goêtes eram impostores que man-
chavam a reputação dos cultos religiosos
derrocada da era dos deuses e da adoração mágicos oficiais, ou eram renegados e de-
de seus ídolos. O cristianismo já havia an- sertores que, por sua arrogância e loucura,
gariado muitos adeptos, porque facilitou o perturbavam a relação ordenada de poder,
riqueza e negociações reguladas com espí-
exercício religioso e amenizou as preocu- ritos e deuses.
pações com a salvação da alma no pós-vida. Platão, assim, destaca o princípio central
dos goêtes, e todos os seus companheiros
Ser pagão não era uma atividade religiosa errantes noturnos, como bruxas, magoi e
fácil. Os deuses exigiam sacrifícios diver- pharmakoi, que operavam em um espíri-
sos e uma grande quantidade de oferendas, to de autodeterminação imprudente: eles
eram tolos ímpios que negociavam ilegal-
e mesmo assim, não havia qualquer garan- mente com a religião e ousavam destruir
tia de que a alma, efetivamente, encontra- linhagens familiares[33] e estados inteiros
ria morada no Hades; e muito embora essa em nome do dinheiro.[34]
não fosse uma boa opção,[30] por conta da [32] A Igreja romana usurpou a linguagem metafísica do sacri-
tediosa vida no Submundo,[31] ainda assim fício e a ressignificou para sua adequação as novas premissas
religiosas do cristianismo. Veja Robert J. Daly. Sacrifice in Pagan
era melhor do que vagar perdido como um & Christian Antiquity. T&Tclark, 2019. Para uma discussão no
fantasma pelo mundo. O cristianismo aca- contexto do paganismo, veja também Heidi Marx-Wolf. Spiritual
bou com toda essa ansiedade. Já não era Taxonomies and Ritual Authority. PENN, 2016.

preciso sacrificar animais ou oferecer ofe- [33] [.N.T.] i.e. destruir o trabalho sacerdotal de famílias aristo-
cratas.
[34] [N.T.] assim como os sacerdotes estatais cobravam somas
[30] Veja Humberto Maggi. Opus Diaboli: Coletânea de Textos.
de dinheiro por seu trabalho sacerdotal, os feiticeiros da goécia,
2024, pp. 154. Ensaio Padecer o destino da morte.
os errantes noturnos, manganeumatas das sombras, também co-
[31] Veja Rafael Resende Daher (trad.). O Verdadeiro Libelo dos bravam somas em dinheiro por seus serviços mágicos. Segundo
Jesuítas. Via Sestra, 2021, pp. 7-27. Platão, estes feiticeiros estavam interessados apenas no dinheiro,

48 Edição 11
O feiticeiro que encantava, envolvido com les. Os argumentos tecidos por estes filó-
os mortos sem descanso e navegando nas sofos, por outro lado, deram fôlego ao cris-
marés telúricas, era igualmente um repre-
sentante de um tipo estranho de trabalho tianismo para acirrar os ataques contra o
espiritual, assim como, especialmente des- paganismo – a goécia, a magia, a teurgia,
de o século V a.C., um estereótipo difama-
tório comum. Ao mesmo tempo, suas per- os mistérios etc. – e a perseguição de seus
sonas e trabalho eram desprezados como aderentes. Em uma última investida para
«fraudulentos e ilusórios» e ainda temidos salvar o paganismo de sua derrocada final,
como «ainda assim algo perigoso».
Localizado na escada social (de descendên- surge um reformador, o chefe da Academia
cia) em algum lugar acima do simples cor- Platônica da Síria, Jâmblico de Cálcis.
tador de raízes, mas abaixo do mago pro-
fissional estatal, o goês apresenta o (quase
esquecido) modelo da figura demoníaca da Jâmblico foi um reformador! Como filósofo
bruxa desde a Antiguidade greco-romana. ele soube avaliar com precisão os proble-
Ambos representam figuras de transgres- mas de seu tempo, oferecendo ao paganis-
são, de violações não apenas da religião mo e a filosofia helênica uma saída lúcida a
normativa, mas ainda mais essencialmente prática religiosa politeísta que na sua épo-
da convivência social. Sua comunhão cons- ca passava por uma perseguição radical do
tante não é com os seres humanos, mas com cristianismo que se espalhava como fogo no
espíritos que permaneceram em grande território de palha do Mediterrâneo desde
parte sem nome e não ligados aos líderes o Séc. I d.C. Foi a reforma que Jâmblico fez
sacerdotais dos cultos formais dos templos no politeísmo pagão que possibilitou uma
e igrejas posteriores. intricada classificação de criaturas espi-
Em um campo de tensão permanente, a re- rituais jamais vista até então. Ao revisar
presentação ética do goês oscilava entre e reformar a ontologia neoplatônica, Jâm-
dois reinos: de um ponto de vista da ordem blico abriu caminho para futuros filósofos
cosmológica, eles eram identificados como e escolas de mistérios classificarem e es-
transgressores perigosos, violadores e cau- truturarem cosmologias distintas. Jâmbli-
sadores de crises no mundo natural, social co influenciou profundamente a Tradição
e divino. De um ponto de vista de interesse Hermética de Mistérios.[36] Antes de Cor-
econômico, no entanto, eles eram os agen- nélio Agrippa (1486-1535) no fim da Idade
tes operativos de um mercado ilícito que Média, ele foi o responsável por uma síntese
negociava acesso ao poder.[35] que mudaria completamente a história da
filosofia e da magia.
[...] O novo olhar de Jâmblico sobre o neo-
O cristianismo, que no fim da Antigui- platonismo e o politeísmo religioso encon-
dade já era a religião oficial do Império Ro- trava singela sincronia no homem heleni-
zado de seu tempo, que ansiava tanto por
mano, democratizou o exercício religioso: um aprofundamento filosófico quanto por
agora era possível adorar e agradar a Deus uma prática religiosa pagã lucidamente
em casa, orando com a família; e além dis- fundamentada. Olimpiodoro (495-570), um
dos últimos filósofos pagãos a ensinar na
so, o exercício religioso foi estendido a to- escola de Alexandria no Séc. VI d.C., em seu
das as pessoas: aristocratas, comerciantes, comentário ao Fedro de Platão exalta as di-
ferenças na a interpretação de Jâmblico – e
camponeses, escravos e estrangeiros. To- de Siriano (falecido em 437 d.C.) e Proclo
dos podiam participar da fé cristã, desde que seguiram Jâmblico – em detrimento das
que tivessem passado pela metanoia, pala- interpretações de Plotino e Porfírio. Ele diz:
Alguns põem em primeiro lugar a filosofia,
vra grega que os cristãos traduziram equi- como Plotino, Porfírio e muitos outros filó-
vocadamente como arrependimento, detur- sofos; outros, porém, põem em primeiro lu-
pando o genuíno e real significado desta gar a arte sacerdotal como Jâmblico, Siriano
e Proclo.
experiência mística. O destaque dado a Jâmblico reside no fato
Os filósofos, descrentes e descontentes dele saber interpretar os problemas dos
pagãos letrados de seu tempo, encontrando
com os métodos religiosos pagãos, teciam saídas promissoras a justificativa religio-
duras críticas contra o paganismo, como sa politeísta do paganismo helênico, que
por exemplo a necessidade do sacrifício sedento estava por ritos soteriológicos de
aplacação de deuses e daimones. Enquanto
animal e a participação dos daimones ne- Plotino se preocupou em criticar os gnósti-
cos e Porfírio em criticar os cristãos, Jâm-
e não possuíam, de fato, linhagem sacerdotal aristocrata para exe- blico optou por não criticar ninguém, se
cutar o que propunham.
[35] Frater Archer. Goêtic Common Sense: An interlude for [36] [N.T.] Aqui me refiro ao hermetismo alexandrino ou herme-
the inveterate chthonic sorcerer. PDF do autor, disponível tismo tradicional. Seria técnico dizer que Jâmblico expõe, com a
na Theomagica, pp. 11-2. teurgia, o aspecto prático da filosofia do Corpus Hermeticum.

49 Edição 11
limitando apenas a expor lúcida e positiva- da antiga goécia necromântica grega para
mente o paganismo helênico em sua forma a goécia salomônica demoníaca que vemos
greco-síria. Para fazê-lo com eficiência Jâm-
blico precisava apresentar uma rigorosa cristalizada no Lemegeton.
fundamentação teórica; era preciso refun- Em seu texto Sobre a Abstinência de
damentar e reestruturar em níveis concei-
tuais todo o politeísmo da última fase da Carne, Porfírio tece inúmeros argumentos
cultura helênica. Para resolver essa questão sobre as razões pelas quais os sacrifícios
Jâmblico buscou na ontologia neoplatônica, são realizados e condena a participação
estimulado sobretudo a partir dos Orácu-
los Caldeus, toda fundamentação para o dos daimones malignos que se beneficiam
politeísmo. dos sacrifícios.[39] Ele diz:
O apego à teurgia pelo paganismo popular
e filosofia helênica tardia foi o ponto signi-
ficativo que possibilitou Jâmblico fazer sua É através do tipo oposto [i.e. maligno] de
reinterpretação e síntese. O Logos era jul- daimones que toda a feitiçaria [goēteia] é
gado insuficiente para garantir os fins últi- realizada, pois aqueles que tentam alcançar
mos da matéria, sendo para isso importante coisas ruins através da feitiçaria, honram
a intervenção dos deuses propícios. O que especialmente esse daimones e, em particu-
Jâmblico fez foi possibilitar uma comunhão lar, seu chefe.[40]
entre a mística filosófica e a transcendência
fecunda da adoração ritualística.[37] Porfírio está dizendo que a goécia como
prática religiosa lida com daimones malig-
Um dos críticos as abordagens reli- nos apenas, e estes possuem um líder. Eusé-
giosas do paganismo, principalmente em bio de Cesareia em sua Preparação para
relação a teurgia e a goécia, mas não um o Evangelho cita Porfírio, que atribui a
opositor do paganismo enquanto tradição, chefia dos daimones malignos e, portanto,
e severamente duro contra o cristianismo, a própria goécia, a uma divindade helênica
foi o professor de Jâmblico, o filósofo neo- ctoniana: Serápis.
platônico Porfírio de Tiro. A relação entre
esses dois filósofos, a importância do deba- E são estes [os daimones malignos] sobre
te entre eles para a história da magia, com quem Serápis governa, e cujo símbolo é o
cachorro de três cabeças [i.e. Cérbero, guar-
uma pequena biografia de ambos, eu ofe- dião do portão do Hades], esse é o daimon
reci no primeiro volume do Daemonium, e maligno nos três elementos, água [reino
não se faz necessário repetir aqui. O que é ctoniano], terra [reino telúrico] e ar [reino
aéreo]: estes são contidos pelo deus que os
relevante neste contexto é que as declara- tem debaixo da sua mão. Mas Hécate tam-
ções de Porfírio sobre a prática da goécia bém os governa, como segurando os três
foram utilizadas como argumentos pelos elementos juntos.[41]
cristãos para que Beelzebuth se tornasse o
Serápis, assim como Hécate e o Baal
chefe da goécia salomônica pós interpreta-
dos cananeus e sírios, era uma divinda-
tio-christiana.[38]
de ctoniana – theo-ctonius. Nos Oráculos
No contexto sobre o qual estamos nos
Caldeus, Hécate era considerada a pró-
debruçando, este termo, interpretatio-
pria Alma do Mundo platônica e, como tal,
christiana, trata-se da reinterpretação
estava presente em toda parte do Cosmos,
cristã de antigas práticas religiosas pagãs,
por isso sua identificação com a Natureza
seja para sua condenação ou para sua assi-
(terra) nos oráculos, sendo um agente me-
milação no corpo de doutrina. É a interpre-
tatio-christiana, substanciada por filósofos [39] Esse tema foi completamente explorado em meu texto A De-
como Porfírio e referendada por teólogos monologia de Porfírio de Tiro & Jâmblico de Cálsis, a ser publicado
como Eusébio de Cesareia (265-339 d.C.) e na ontologia Kalunga.

Santo Agostinho (354-430 d.C.), contempo- [40] Porfírio de Tiro. Citado por Humberto Maggi. Goetia: Histó-
ria & Prática. Clube de Autores, 2020, pp. 42.
râneo de Jâmblico, que marca a transição
[41] Ibidem. O simbolismo tradicional do tridente de Hécate ou a
iconografia de Hécate com três cabeças, não se referia original-
[37] Fernando Liguori. Daemonium Vol. I. Clube de Autores, 2019,
mente as fases da Lua como supõe-se no esoterismo moderno. Na
pp. 577-582.
verdade, o tridente ou as três cabeças representavam o poder de
[38] Veja Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Hécate sobre os éteres sublunares: os reinos ctoniano, telúrico e
Autores, 2020, pp. 56. aéreo.

50 Edição 11
diador entre os espíritos e seus reinos (lo- vimos, a linha que distingue esses dois ti-
cais de poder), portanto, uma deusa limiar pos de criaturas espirituais é muito tênue,
entre os homens e os espíritos. É por esse porque ambas infligem aos seres humanos
motivo que seu culto ocorria em pontos de sofrimentos diversos. Mas sua associação
força ou zonas de poder limiares, como as serviu de combustível para que os cristãos
encruzilhadas, e esteve associado a Lua, associassem a goécia aos demônios e a arte
porque os neoplatônicos da Antiguidade das trevas posteriormente em sua recessão
popularizaram a ideia de que a Lua é tanto salomônia. E não só os cristãos seguiram
um ponto de força limiar, quanto uma enti- nessa linha de interpretação. Os neoplatô-
dade mediadora entre os mundos Sensível nicos posteriores, cujas ideias herdaram
e Inteligível.[42] No mesmo texto Eusébio de do mundo bizantino e influenciaram dras-
Cesareia descreve Hécate referindo-se a si ticamente os grimórios após o Século XI,
mesma como minha ninhada negra de filho- também. No entanto, as descrições de Por-
tes de cães, um conceito que estava presen- fírio acerca da prática da goécia estão em
te nos Oráculos Caldeus e representava sincronia e são fieis as descrições homéri-
espíritos vingadores que saltam das pro- cas que vêm do Séc. VI e V a.C. E para ele,
fundezas da terra, muito provavelmente são estes daimones malignos que auxiliam
inspirados nas Erínias, deidades vingado- os feiticeiros em seus filtros, talismãs e
ras que habitavam o Submundo.[43] Serápis encantamentos, pensamento referendado
foi uma divindade sincrética greco-egíp- posteriormente por Eusébio de Cesareia
cia, que combinava as virtudes dos deuses em seu Preparação para o Evangelho e
egípcios Osíris, que reinava no Submundo, por Santo Agostinho em sua obra A Cida-
e Ápis, o touro sagrado que representava de de Deus, que os chamou de demônios. Já
a própria terra e era filho de Hathor. Seu no tempo de Agostinho era corrente a ideia
nome primeiro foi estabelecido como Aser de que por trás das ações e dos poderes do
-Hapi, i.e. Osíris-Ápis, e foi designado como mago sempre se encontrava um ardiloso
um dos deuses tutelares da cidade de Ale- demônio, o que não deixa de estar em sin-
xandria por volta do Séc. IV a.C. sob o do- cronia com a fórmula mágica do espírito
mínio de Ptolomeu I Sóter, o primeiro faraó tutelar, como vimos no primeiro volume do
da dinastia lágida, que reinou de 305-30 Daemonium.
a.C. Tendo recebido as virtudes destes dois Nos Capítulos 12 e 13, vimos que o cris-
deuses, assim como eles, Serápis era rela- tianismo tornou os deuses pagãos e espí-
cionado a vegetação e ao mundo ctônico, do ritos diversos da geografia mágica de mui-
mesmo modo que Baal em Canaã. Porfirio tas culturas em demônios. A essa altura,
identifica Serápis diretamente com Plutão, daimones malignos e mortos sem descanso
também regente do Submundo e dos mor- foram classificados genericamente como
tos. demônios. Levando as missivas de Porfí-
Porfírio se esforça em apresentar uma rio a sério, e se baseando nelas, foi o bispo
imagem depreciativa da goécia em todos Eusébio de Cesareia quem, de fato, nomeou
os contextos. É interessante que ele tenha Beelzebuth como chefe da goécia. Ele diz
identificado a goécia, inspirado nos Orá- em seu Preparação para o Evangelho:
culos Caldeus que tiveram grande apre-
ciação dos neoplatônicos, com os daimones E quem o poder que as preside acontece de
ser, será esclarecido novamente pelo mes-
malignos (daimonin poneron), e não com os mo autor, que diz que os governantes dos
mortos sem descanso (nekydaimones) como daemon maus são Serápis e Hécate, mas a
estudamos na Parte I deste livro. Como escritura sagrada diz que é Beelzebul.[44]

[42] Sarah Iles Johnston. Hekate Soteira. Scholar Press, 1990, pp.
29.
[43] Humberto Maggi. Goetia: História & Prática. Clube de Au- [44] Citado em Humberto Maggi. Goetia: História & Prática.
tores, 2020, pp. 47. Clube de Autores, 2020, pp. 56.

51 Edição 11
acoplamento divino encontrado na segunda
ordem de deuses do panteão cananeu. Uma
vez manifestado, seu acoplamento levou à
geração de todos os outros espíritos [demô-
nios] do domínio sublunar. Entre os maiores
desses espíritos estão os quatro Reis Cardi-
nais – dois dos quais são masculinos na apa-
rência e dois dos quais são femininos que
receberam o governo sobre os quatro ele-
mentos do reino terrestre e são governados
coletivamente pelo arquidemônio Satanás,
que governa a totalidade dos elementos. Na
linha de textos que seguem as tradições do
Livre des Esperitz e do Livro dos Ofícios
[dos Espíritos], é Satanás, em vez de Ashto-
reth, que aparece na trindade dominante,
possivelmente devido à ênfase que essas
obras colocam nos espíritos aéreos e nos
Reis Elementais, a quem Satanás governa.
No entanto, a presença de Ashtoreth no lu-
gar de Satanás no triunvirato dominante
do Grimorium Verum e Grand Grimoire –
onde os Reis Elementais não aparecem dire-
tamente, reflete sua posição como uma das
emanações preeminentes de Lúcifer.[46]

Pelo que vimos até aqui, os evangelhos,


a apologética dos primeiros padres da
Igreja, e até O Testamento de Salomão
É essa passagem de Eusébio de Casa-
consideram, pelo menos até o Séc. IV d.C.,
reia que marca a transição da goécia grega
que Beelzebuth era o regente de todos os
para a goécia salomônica e, neste contexto,
demônios do Inferno. Algumas destas fon-
Beelzebuth é declarado o chefe da goécia.
tes mencionam Satanás, como vimos. Mas
É Beelzebuth, portanto, o Arconte de todos
por causa da polêmica que envolvia o nome
os demônios no início da goécia salomôni-
satanás, termo que antes era considerado
ca, como ele mesmo se apresenta em O Tes-
apenas uma função, a do opositor ou acusa-
tamento de Salomão, o livro que inaugura
dor, e não um nome próprio, talvez ele fosse
a tradição salomônica. Eusébio de Cesareia
menos utilizado para designar o chefe dos
dá continuidade dentro do cristianismo a
demônios,[47] ou era mais um dos nomes
tradição de longa data, desde o Séc. V a.C.,
dele.[48] Seja como for, os termos satanás e
de difamar a goécia e o goēs. Ele diz: Os mi-
satã passaram a ser utilizados pelos padres
nistrantes de fato dos oráculos nós devemos
do Séc. V d.C. como referências comuns ao
em pura verdade declarar serem daimones
Diabo, de modo geral. Só que neste perío-
maus, jogando ambas as partes para enga-
do um outro arquidemônio, fruto direto da
nar a humanidade.[45]
primeira tradução do Velho Testamento

A Chefia Compartilhada nos [46] David Crowhurst. Stellas Daemonium: The Order of the
Grimórios Daemons. Weiser Books, 2021, pp. 39.
[47] Humberto Maggi. Opus Diaboli. Clube de Autores, 2024, pp.
296.
Após a entrada de Lúcifer no universo [dos [48] Enquanto, originalmente, o termo satanas, que significa «ad-
grimórios], a hierarquia de espíritos encon- versário» ou «oponente», poderia ser usado [para se referir a] qual-
trada nos grimórios pode ser vista como o quer demônio adversário e, portanto, também poderia ser usado no
fruto de suas emanações. Sendo andrógi- plural, na literatura apocalíptica e, particularmente, no Novo Tes-
no, essa emanação inicial pode ser pensada tamento, o termo está focado em um satanas em particular, o «Sa-
como tendo produzido um princípio mas- tanás» — também chamado de Diabo. (De certa forma relacionada
culino, Belzebuth, e um princípio feminino, ao uso inicial de satanas, o inglês também permite o plural.) Chris-
Ashtoreth, cujos nomes são refletidos no topher Partridge e Eric Christianson. The Lure of the Dark Side:
Satan & Western Demonology in Popular Culture. Routledge,
[45] Ibidem, pp. 58. 2009, pp. 2.

52 Edição 11
para o grego koiné, a Septuaginta, e da autores, que o fazem pouco antes do dilú-
primeira tradução do Novo Testamento vio.[51]
para o latim, a Vulgata: nascia Lúcifer, um A Septuaginta traduziu o termo he-
demônio exclusivamente cristão. braico heilel ben-Shahar da passagem do
Na seção anterior sobre Lúcifer nós vi- Livro de Isaías, que literalmente significa
mos que a aparição de seu nome foi uma o presunçoso filho de Shahar para o grego
tormenta nos primeiros séculos do cris- heōsphoros, que significa o trazedor da au-
tianismo, ao ponto de Orígenes (185-253 rora. O problema aqui é que este termo, hei-
d.C.) refutar duas especulações correntes lel e que foi utilizado 165 vezes no Antigo
da época. A primeira acerca da passagem Testamento (como em 1 Reis 20:1, Salmos
do Livro de Isaías (14:12),[49] de que seria 10:3 ou Provérbios 20:14 etc.), na maioria
uma referência não a Nabucodonosor, um das vezes se referia a vanglória. Na época
homem, mas a Lúcifer sim, um anjo caído. o termo heilel era utilizado intercambial-
Nabucodonosor nunca caiu do céu e muito mente para se referir a presunção ou ao
menos era a Estrela da Manhã, ele diz.[50] brilhantismo. No entanto, o termo também
A segunda, inspirada no zoroastrismo, que era utilizado para descrever um fenômeno
Lúcifer era tanto da natureza das trevas e, astrológico: o planeta Vênus que era avis-
portanto, do mal, quanto as trevas eram in- tado na aurora. Por outro lado, Shahar era
dependentes de Deus. Orígenes argumenta a divindade babilônica da aurora, identifi-
que não, porque Deus criou as trevas e, cado com o planeta Vênus. Daí que a tra-
caso fosse o contrário, Lúcifer não poderia dução ficaria: aquele que brilha, o Filho do
elevar-se luminoso todas as manhãs, pois Amanhecer. No Séc. V d.C. a Vulgata tradu-
sendo sua natureza de trevas, não conti- ziu o grego heōsphoros para o latino lucifer,
nha em si nada de luz. Além disso, Orígenes que se traduz como aquele que porta a luz.
aloca a apostasia e queda de Lúcifer antes Por um lado, essa foi uma tradução incor-
da criação do Cosmos, diferente de muitos reta: o equivalente grego ao lucifer latino é
phos-phoros. Por outro lado, Jerônino (347-
420 d.C.) optou por traduzir heilel por Lúci-
fer, assim parece, porque na época ambos
[49] Do hebraico para o português: Como despencaste do céu, ó os termos se referiam ao evento astrológi-
estrela da manhã, filho da aurora! Como foi derrubado por terra o
que ditava sorte entre as nações! David Gorodovits e Jairo Fridlim.
co.[52] Mas é somente no Séc. XV, na Bíblia
Tanah. Sefer, 2018, pp. 1117. Do grego para o português: Como o do Rei James (1611), onde lê-se a passagem
Trazedor da Aurora [Heōsphoros] caiu dos Céus, depois de ascender do Livro de Isaías (14:12): Como caíste dos
na manhã! Está abatido por terra, depois de exercer sua força sobre
todas as Nações! Timothy Allen Barber. Septuaginta Vol. 2. Clube céus, ó Lúcifer, que se erguia nas manhãs!
de Autores, 2021, pp. 1126. Esse versículo foi atribuído a Nabu- Como caíste à Terra, tu que feriu as nações;
codonosor, rei da Babilônia, cujo reinado chegou ao fim em 539
a.C., quando seu império foi dizimado por Ciro II da Pérsia. Essa
e também na obra de John Milton (1608-
passagem seria o comentário do profeta Isaías sobre essa derrota 1674), O Paraíso Perdido (1667), que
humilhante e vexatória. No contexto do Livro de Isaías 14, os aquele que porta a luz recebe a conotação
israelitas estavam para ser resgatados do exílio na Babilônia e
levados de volta para Jerusalém. Ao fim o insulto ao rei assírio de substantivo próprio e torna-se um nome
acaba por ser as palavras do Senhor através do profeta. associado ao Diabo. Não apenas o uso que
[50] João de Antioquia (429-441 d.C.) diz que, segundo Justino Milton faz do termo lux-fer é totalmente mal
Martir (100-165 d.C.), o Livro de Isaías, ao mesmo tempo que
era uma obra dramática acerca da Queda do Assírio, também era
interpretado, como também o próprio termo
um prelúdio da catástrofe do Diabo, a Tragédia de Satã. Em outras (derivado da tradução errônea da Vulgata) é
palavras, o relato da queda do rei assírio era uma metáfora para totalmente inadequado. A consequência dis-
a própria queda de Lúcifer, ao que concorda Orígenes, que opta
por compreender a passagem no seu contexto oculto, metafísico so é que a partir do século XVII Lúcifer, assim
e teológico, ao invés da análise da derrocada concreta de Nabuco- como Satanás, Mastema e Belial, tornou-se
donosor. Aquilo que é dito em diferentes lugares, e em especial em
[51] Hery Ansgar Kelly. Satã uma Biografia. Editora Globo, 2008,
Isaías, sobre Nabucodonosor, não pode ser atribuído a este indiví-
pp. 230-6. Veja também Laurence Gardner. O Diabo Revelado.
duo. Pois o homem Nabucodonosor nem «caiu dos Céus», nem era a
Madras, 2013, pp. 28-33.
«Estrela da Manhã», nem ele «se levanta de manhã sobre a Terra».
Orígenes citado em Hery Ansgar Kelly. Satã uma Biografia. Edi- [52] M. Belanger. Dicionário dos Demônios. Dark Side, 2022, pp.
tora Globo, 2008, pp. 232. 280.

53 Edição 11
desde então um dos nomes comumente usa- tempo de Salomão de Anthaon, e é o Maior
dos para o Diabo.[53] do Inferno depois de Lúcifer, e deve-se sa-
ber que ele governa os lugares orientais, e
Em detrimento disso, após a Vulgata aquele que o chama deve manter seu rosto
Beelzebuth deixa de ser o Arconte dos De- para o leste e ele aparecerá para ele em belo
rosto e aparência. Ele ensina todas as ciên-
mônios, i.e. o chefe de todos eles, e passa cias e dá ouro e prata àqueles que o restrin-
a ser mais um entre eles, sendo Lúcifer, a gem a vir, e dá uma resposta verdadeira ao
partir daí, o novo Chefe de toda Corte In- que se pede a ele, e revela os segredos do
Inferno se alguém lhe perguntar, e ensina
fernal dos demônios. E na sequência disso, verdadeiramente as coisas escondidas na
a chefia dos demônios começou a aparecer terra e no mar, e assim manifesta todos os
compartilhada nos grimórios. tesouros que estão descansando na terra, e
guarda os outros espíritos, e deve ser cha-
Em O Tratado Mágico de Salomão, mado em bom tempo.[57]
conhecido também como Hygromanteia
(1440),[54] Beelzebuth aparece como regen- No Grimorium Verum, Beelzebuth é
te da direção Sul, com muitos demônios a reestabelecido como uma divindade co-
ele subordinados, enquanto que Ashtarot nectada a fertilidade, compartilhando das
figura no Oeste. Em O Livro da Magia Sa- virtudes possuídas pelo Zeus dos gregos e
grada de Abramelin, o Mago, Beelzebuth o Hadad dos acádios, estando diretamen-
aparece como um demônio chefe de legião. te conectado a virtudes jupterianas. Jake
Em Le Livre des Espiritz (1500), que tem Stratton-Kent diz:
relação direta com a lista de demônios que
aparece em Pseudomonarchia Daemo- A forma bem conhecida de Belzebub, que sig-
num (1563), e por meio deste, com o Ars nifica Senhor das Moscas, é aparentemente
uma má-tradução insultuosa de origem ju-
Goetia (1641),[55] Beelzebuth compartilha daica. É significativo que o Verum evite essa
da chefia de todos os demônios, como uma forma insultuosa em favor de algo mais pa-
recido com a origem. O nome original teria
trindade, com Lúcifer e Satã. Este é um dos envolvido uma forma de Baal, um título co-
exemplos mais antigos onde esses nomes mum de deuses fenícios e cananeus, além
passaram a denominar espíritos distin- de: zbvb (jorrando para fora); tzabaoth (dos
Exércitos); sabaoth (sete). Este presumi-
tos.[56] E no Grimorium Verum, a partir do velmente seria um título de Baal Shamem,
Séc. XVIII, Beelzebuth passa a comparti- o Senhor do Céu, identificado com Hadad e
lhar a chefia de todo o Inferno com Lúcifer Zeus, de acordo com a correspondência pla-
netária do título Príncipe, o de Belzebuth
e Ashtarot. em vários grimórios, que equivale a Júpiter.
Há também um Baal Tzephon, considerado
Espírito licencioso, grande e maligno, é cha- sinônimo de Belzebuth, cujo nome está liga-
mado de Belzebuth, e foi chamado antes do do ao do Tifon grego e do Set egípcio.[58]

[53] Laurence Gardner. O Diabo Revelado. Madras, 2013, pp. Essa abordagem mítica de Beelzebuth
32-3.
no Grimorium Verum terá, como veremos
[54] O Hygromanteia é um dos manuscritos mágicos mais im-
portantes da tradição dos grimórios. É nele que, pela primeira
na próxima seção, um impacto profundo
vez, vemos as antigas práticas pagãs como sacrifícios e oferendas na sua iconografia na Quimbanda. Como
aos espíritos, organizadas e ajustadas a tradição dos grimórios. vimos, Baal era uma divindade associada a
Seu conteúdo influenciou diretamente outros grimórios, como A
Chave de Salomão, o Grimorium Verum, O Livro dos Segredos fertilidade (da terra, dos animais e das mu-
de Alberto Magno e outros. Ele contém uma detalhada lista de lheres), das chuvas e dos raios. Um símbolo
plantas e tabulações astrológicas que deveriam ser associadas
diretamente ao exercício ritual. É o protótipo par excellence dos
diretamente conectado a fertilidade era o
grimórios posteriores. touro (bezerro), e que o episódio envol-
[55] O Livre des Esperitz começa seu catálogo com Lúcifer, Belze- vendo o bezerro de ouro no Velho Testa-
buth e Satanás, passando para os Quatro Reis e depois um catálogo mento estava associado ao culto de Baal.
de espíritos. Isso agora é amplamente reconhecido como a estrutura
implícita por trás do catálogo de Weyer [Pseudomonarchia Da- Por outro lado, Hadad era uma divindade
emonum] e do Goécia [Ars Goetia], bem como explícita em outros
grimórios relacionados da mesma família. – Jake Stratton-Kent. [57] Le Livre des Espiritz, 2. Jake Stratton-Kent. Pandemonium.
Pandemonium. Hadean Press, 2016, pp. 27. Hadean Press, 2016, pp. xv.
[56] Humberto Maggi. Opus Diaboli. Clube de Autores, 2024, pp. [58] Jake Stratton-Kent. The True Grimoire: Encyclopaedia Go-
299. etica, Vol. I. Scarlet Imprint, 2022, pp. 134-5.

54 Edição 11
acadiana associada ao clima e seu nome, ro monstruoso, ou um bode com uma lon-
literalmente, traduz-se como trovão. Em ga cauda, e ainda mais frequentemente ele
aparece na forma de uma mosca de um ta-
sua iconografia, ele é representado com manho extremamente grande. Quando zan-
os chifres de um touro e segura em suas gado, ele vomita chamas e uiva como um
mãos um raio, representação de seu poder lobo.[60]
sobre as chuvas e tempestades, portanto,
provocador de inundações e destruições A forma iconográfica que Beelzebuth
diversas. Seu culto foi popular nas regiões posteriormente assumiu na Quimbanda foi
norte da Síria e da Babilônia. As divindades teriomorfa, i.e. bestial, envolvendo sempre
equivalentes a Hadad na Grécia e em Roma a presença dos chifres bovinos associados
eram Zeus[59] e Júpiter. E então o Grimo- a fertilidade e a força da terra. Esse ima-
rium Verum nos diz: ginário mítico de Beelzebuth na Quimban-
da se materializou na iconografia de Exu
Beelzebuth às vezes aparece em formas Beelzebuth, representado com a cabeça
monstruosas, como a forma de um bezer- de um touro com chifres, muitas vezes as-
[59] O culto de Zeus e seu epíteto ctônico, meilichios, relacionado sociado equivocadamente com o Boi-Zebu
com a morte pode ser melhor associado aqui. Foram encontra- (Bos taurus indicus), um touro grande e cor-
das diversas referências ao culto nas regiões de Argos e Atenas.
O culto era oficiado por sacerdotisas, as hydroforai, que iriam a
pulento. O totem animal de Beelzebuth na
zona rural para limpar o templo com água sagrada da fonte enn- Quimbanda é o touro, mas o bode também
neakrounos. Supostamente a participação das mulheres acontecia foi associado a ele.
por causa da sua proximidade com a vida e a morte (menstruação,
nascimento e o contato com os mortos). Partindo disso, percebe-
mos que Zeus poderia assumir diversas prerrogativas relaciona-
das tanto com a vida como quanto à morte.
Beelzebuth é Chefe na
Vale a pena notar que Zeus Meilichios serve como uma conexão en- Quimbanda
tre Zeus, o governante do céu, e Hades, o governante do submundo.
Devido à sua natureza ctônica, Zeus Meilichios foi identificado como
Zeus-Hades, embora ele também estivesse associado a Ploutos, a
divindade da riqueza. Apesar de ser um deus do céu que governa o Como vimos fartamente até aqui nes-
Monte Olimpo, o que é ostensivamente o reino celestial muito dos te livro, a Quimbanda como a conhecemos
cultos locais de Zeus eram de natureza ctônica, pois são dedicados a
um aspecto ctônico de Zeus. Além de Zeus Meilichios, havia Zeus Phi- hoje nasce da incursão diabólica que Beel-
lios que também era descrito como serpente, mas era uma divindade zebuth e os outros espíritos do Grimorium
muito mais amigável associada a banquetes. Havia também uma
divindade chamada Zeus Eubouleus, que fazia parte de uma tríade
Verum fizeram para dentro da Macumba
ao lado de Deméter e Kore (Perséfone) na Ática e que poderia ter carioca, associando-se aos Exus; e estes, a
sido tratado como uma divindade local de Ploutos ou um semideus. partir de então, efetivamente se tornaram
No entanto, havia também uma divindade separada, ou mais prova-
velmente um semideus ou herói, chamado Eubouleus (identificado diabos.
com Ploutos, também), que era o guardião dos porcos dos mistérios A Macumba carioca já havia assimilado
eleusinos e que presidia a agricultura, especificamente arando e o
plantio de grãos. Estranhamente, Eubouleus também é listado como
de outras práticas afro-religiosas brasilei-
um epíteto de Hades, bem como Zeus. Outro aspecto ctônico de Zeus, ras, como a Cabula e os Candomblés, seus
o espírito oracular Zeus Trophonios. Trophonios era o nome de um espíritos. Em seguida associou-se tam-
filho mortal de Apolo que foi engolido pela terra e ressurgiu como
uma divindade de uma caverna perto de Lebadeia, onde também bém com o Espiritismo. No livro Ganga:
ficou conhecido como Zeus Trophonios. a Quimbanda no Renascer da Magia, eu
Havia também Zeus Chthonios, que era Zeus da Terra, que era ado-
rado em Boeotia e Corínto. Da mesma forma, Zeus Katachthonious
demonstrei o intenso processo de branque-
(Zeus do Submundo), era provavelmente um nome alternativo para amento que se iniciou na Macumba a partir
Hades - para aqueles que ousavam não invocar seu nome real - in- das ideias espíritas, o que culminou na for-
dicativo do papel de Hades como governante do submundo em da
mesma maneira que Zeus governa o céu e seu domínio completo mação da Umbanda e da Quimbanda como
sobre o submundo. De acordo com Timothy Gantz (1993, 126), Ha- tradições religiosas distintas. A Quimbanda
des pode muito bem ter sido um alter ego sombrio de Zeus. De certa
forma, o fato de que os gregos, para evitar realmente se aproximar
começou indicar não apenas o trabalho de
de Hades, tinham que reconhecê-lo; identificando Hades como Zeus feiticeiros do mal que podiam fazer qualquer
Katachtonious, que representava a morte de certa maneira, como coisa por dinheiro, mas uma parte do ritual
a sombra da vida, como a sombra daquele grande trovão e do fogo
celeste (como observou Heráclito) que guiava o cosmos por toda a de Umbanda onde os exus atuariam contra
eternidade. Dr. José Roberto de Paiva Gomes. Zeus Meilichius: Culto
Olímpico ou Ctônico? 6º Seminário Fluminense de Pós-Graduação [60] Grimorium Verum. Citado em Humberto Maggi. Opus Diabo-
em História. li. Clube de Autores, 2024, pp. 300.

55 Edição 11
os ataques mágicos feitos contra a casa e tradicional de trabalho da goécia salomô-
seus clientes.[61] nica: os demônios são obrigados, polo po-
É nesse contexto do branqueamento da der e autoridade dos anjos, santos e nomes
Macumba, na década de 1950, que surge a de Deus, a trabalhar em função das deman-
síntese promovida por Aluízio Fontenelle: das do operador. Neste caso, nem sempre,
a Quimbanda se tornaria, doravante, a casa ou quase nunca, para o bem.
e o sistema de magia associados exclusiva- Com o desenvolvimento da Quimbanda
mente ao trabalho de atuação dos Exus e a partir desse momento inicial, a ideia do
Pombagiras, uma armada de espíritos es- Exu de Alta em Fontenelle se desenvolveu
pecializados na arte da guerra mágico-es- para o Exu Coroado. Se anteriormente fora
piritual. da Umbanda Exu era pagão e quando nela,
um batizado, no sistema da Quimbanda
Inicialmente os exus [...] passaram a ser as- todos os Exus da Umbanda, Jurema, Can-
sociados às almas de suicidas e criminosos
mortos, pessoas de natureza pervertida e domblés etc., foram considerados pagãos,
prostitutas. Esses espíritos selvagens e pe- os Exus da porteira ou da tronqueira para
rigosos deveriam aceitar a trabalhar para fora. Somente àqueles Exus iniciados na Lei
os Caboclos e Preto-Velhos, passando de
«exus-pagãos» a «exus-batizados» que não de Quimbanda são Exus Coroados, porque
mais serviriam para fazer o mal, mas ape- adquiriram o seu próprio reinado.
nas para praticar o bem, em troca de «luz». Em sua síntese Fontenelle apresenta
[...] Se tentarmos dar sentido às ideias de
Fontanelle, parece que ele tenta aproximar toda hierarquia demoníaca do Grimorium
as visões diabólicas [do Grimorium Verum] Verum como eixo central da teologia da
com o esquema evolutivo do kardecismo,
colocando os «espíritos inferiores ou atra- Quimbanda. Os Governantes do Inferno no
sados» que «compõem a casta dos maus Grimorium Verum, Lúcifer, Beelzebuth e
elementos, ignorantes, sofredores, obsesso- Ashtaroth, figuraram como a Trindade In-
res» sob o poder do Povo de Exu original. Os
mortos maus são «forçados por uma lei de fernal ou os Maiorais da Quimbanda, sob
justiça» a habitar o reino das trevas, o lugar os quais estão todas as falanges de Exus-
natural de «todas as falanges do mal sob o Diabos. Fontenelle apresenta Beelzebuth
domínio e direção do Exu-Rei Lúcifer».[62]
como:
Os autores dessa safra de intelectuais
Beelzebuth – Segunda pessoa de Lúcifer,
umbandistas como Fontenelle sistemati- apresentando-se sobre formas extraor-
zaram a Quimbanda como segue: se conec- dinárias, como por exemplo: na figura de
tada a Umbanda, os Exus da Quimbanda um bezerro [touro] monstruoso; e às vezes
como um bode de longa cauda. [... Ele é] um
estariam associados as práticas do bem, dos três poderes do Mal. Pelo fato de consi-
as limpezas e descarregos dos terreiros e derar-se superior a Deus, tendo pretendido
dos médiuns, e a proteção contra ataques elevar seu trono acima do Criador dos Mun-
dos, Lúcifer atribuiu também à sua pessoa,
mágicos nas tronqueiras. Quando desasso- três entidades nas mesmas modalidades
ciados da Umbanda, os Exus da Quimbanda que se conhecem na pessoa de Deus, e as-
sim concebeu o Anjo decaído, a encarnação
praticariam apenas o mal. Se conectados a de sua personalidade: Lúcifer (Deus do Mal
Umbanda, os Exus eram servos dos Cabo- – Absoluto – O Rei das Trevas); Beelzebuth
clos e Preto-Velhos,[63] forçados a trabalhar (Filho do Deus do Mal); Ashtaroth (O Espí-
rito do Mal ou das Trevas).[64]
para o bem; mas se independentes, os Exus
estariam associados apenas ao exercício do A iconografia de Beelzebuth na Quim-
mal, como os próprios demônios da cultura banda, assim como o sistema do culto, foi
judaico-cristã, aos auspícios da autoridade fruto de uma imbricada miscigenação cul-
de Lúcifer, a esta alta associado ao próprio tural tendo como influência fundamental
Diabo. Note que essa é a mesma mecânica o imaginário europeu, muito mais que o
[61] Humberto Maggi. Rainhas da Quimbanda. Via Sestra, 2020, africano. Como vimos, o Brasil recebeu via
pp. 75.
Europa, muito do conhecimento arcano das
[62] Ibidem, pp. 75 e 82.
[63] Nos Candomblés, servos dos òrìṣà. [64] Aluízio Fontenelle. Exu. Via Sestra, 2024, pp. 83 e 97.

56 Edição 11
culturas mediterrâneas na Antiguidade. Uma dessas tradições das quais fala
Falando sobre a imagem de gesso de Exu Mourão, é a corrente mágica-viva da goé-
Beelzebuth, Tadeu Mourão diz: cia do Grimorium Verum. Além do touro,
outro animal associado a pujança genésica,
Esta imagem traduz uma trama cultural a força vital e a fecundidade, e também ou-
que aproxima mitos. Os elementos da ico-
nografia que compõem essa escultura e sua tro totem de Beelzebuth, é o bode, animal
emanação simbólica – que do demônio cris- sagrado a Afrodite e a Dionísio na Antigui-
tão se liga às deidades pagãs europeias que dade. Tanto o touro como o bode, comparti-
remetem, por sua vez, à função mítica de
Èṣù orixá – o denotam fortemente. lham virtudes fundamentais com Èṣú òrìṣà,
Acredito que os nomes da mitologia judai- que por sua vez possui como totem de poder
co-cristã, como Belzebu e Lúcifer, incor- o opá-ogó, um cetro fálico. Por esse motivo
porados pela umbanda em seus exus, não
advêm apenas da presença do catolicismo, Èṣú òrìṣà foi também associado a divinda-
mas também, primordialmente, de outro de romana Príapo, patrono da sexualidade
viés: a feitiçaria popular portuguesa, que
também se imbrica na umbanda. Práticas relacionado ao deus Hermes/Mercúrio que,
que evocam estas mesmas entidades em ri- como vimos, também compartilha virtudes
tuais de magia estão documentadas como com Èṣú òrìṣà. Beelzebuth, dessa forma, foi
confissões das feiticeiras à Santa Inquisição
da Igreja Católica Ibérica. Uma bruxa lusi- associado também a tudo que envolve a se-
tana do século XVI teria relatado um con- xualidade, a fertilidade e a fecundidade, a
juro que fez a essas entidades a pedido de força e pujança sexual, ostentando em sua
uma esposa aflita que desejava «amarrar»
seu marido infiel para que este não a traísse iconografia um fálico Caduceu de Mercúrio,
mais. Nesse conjuro detectamos a presença que herdou de Baphomet. Falando da asso-
desses demônios que auxiliavam as feiticei- ciação entre o Baphomet de Eliphas Levi e
ras em seus intentos: «[...] eu te ligo André
Fernandes e te ato o caralho e os colhões e o Exu Beelzebuth, Mourão completa:
todos os mandamentos e todos os conjuros
com Barrabás e com Satanás e Barzabu, que Exu Belzebu na umbanda, portanto, é mais
tu não possas dormir com nenhuma mulher que um embranquecimento ou simples de-
senão com sua mulher?». generação do Èṣù africano mestiçado e mais
O Exu Belzebu da umbanda pode, assim uma vez identificado à iconografia demono-
como Maria Padilha, ter surgido nesse culto, lógica católica cristã. Essa escultura mos-
trazido pelos ritos mágicos dos portugue- tra, por meio da forma que conserva, a apro-
ses feiticeiros que se utilizavam da evoca- priação da gravura de Baphomet, e indica
ção dessas entidades em seus trabalhos de um imbricar de textos míticos, que remete a
magia. Nesses ritos, grande parte das vezes, um aspecto pouco rememorado de Exu nos
os feiticeiros eram solicitados pela popula- cultos afrodescendentes, mas que ainda se
ção para atenderem problemas ligados à apresenta vibrante em algumas figurações
sexualidade, à proteção e ao sucesso finan- da umbanda. O símbolo fálico, o bode, a du-
ceiro. Esses ritos são muito provavelmen- alidade complementar, todos elementos que
te heranças de práticas religiosas «pagãs» transcendem o ente humanizado do Exu da
ancestrais, que se hibridizaram, na Europa, umbanda, e que são trazidos à tona por uma
principalmente com o catolicismo popular. ilustração ocidental europeia, representan-
Entretanto, os entes evocados não prati- do um demônio místico. A imagem do ente
cavam necessariamente o que era julgado esotérico de Levi não retira e nem deturpa,
como mal. Ter ainda vivos na umbanda no- mas em certa medida devolve ao Exu bra-
mes como Lúcifer e Belzebu denota que há sileiro, por meio de suas formas e de toda
mais que uma simples demonização de Exu emanação simbólica agregada a ela, os fun-
em jogo. Há também uma ligação entre as damentos cosmológicos de Èṣù orixá.[66]
funções cosmológicas desses seres e aque-
las dos demônios evocados pelos portugue-
ses. Portanto, existe uma imbricada trama Táta Nganga Kimbanda
cultural de hibridações que ligam esta enti-
dade, o Exu Belzebu, a diferentes tradições Kamuxinzela
de cultos populares, todas elas livres das
ortodoxias doutrinárias. Essas tradições, Cova de Cipriano Feiticeiro
que aqui se encontraram, se identificaram, Templo de Quimbanda Maioral Exu Pantera
se atraíram e se mesclaram.[65]
Negra e Pombagira Dama da Noite

[65] Tadeu Mourão. Encruzilhadas da Cultura: Imagens de


Exu e Pombagira. Aeroplano, 2012, pp. 110-2. [66] Ibidem, pp. 119.

57 Edição 11
A Confusão de Doutrinas na
Quimbanda
Por Táta Nganga Kilumbu
@quimbandamarabo | @tatakamuxinzela | @covadecipriano |
@quimbandanago

Sabemos que até pouco tempo, o que tí- terísticas da Quimbanda Luciferiana, e que
nhamos de material escrito e público sobre o dá a ela sua identidade, é a forte e combatente
culto dos Exus e Pombagiras da Quimbanda abordagem contra o cristianismo e as ortodo-
eram os livros Kiwanda, do Muloji sobre a xias da sociedade. Por exemplo, é somente na
Quimbanda Malê, o livro Kimbanda: Origens Quimbanda Luciferiana que se costuma utili-
e Fundamentos de Quimbanda Mussurumim zar os famosos pontos cantados de blasfêmia,
da Bruxa Fernanda e o livro, talvez o mais po- inexistentes nas vertentes de primeira e se-
pular entre todos eles, Quimbanda: O Culto da gunda ondas (1950 e 1970 respectivamente).
Chama Vermelha e Preta escrito pelo Danilo Como é da natureza do satanismo e do luci-
Coppini da Corrente 49 e, assim, a literatura
da Quimbanda e suas vertentes se concentra-
vam principalmente sobre essas três obras,
tirando os antigos escritos de Fontenelle, Mo-
lina, Lourenço Braga, Bittencourt e Antônio
de Alva, é claro.
Nos últimos dez anos a literatura da
Quimbanda Luciferiana se sobressaiu so-
bre os outros autores, tanto por questões de
qualidade editorial e coesão textual, quan-
to por uma estruturação melhor elaborada
sobre o culto. Isso levou muitos kimbandas
de longa data, buscando por conhecimento
e fundamentação, a se debruçarem sobre a
literatura da Quimbanda Luciferiana e, por
extensão, adaptando e retificando seus fun-
damentos mais antigos segundo os postula-
dos dessa nova vertente. O problema disso é
que muito do material encontrado na litera-
tura da Quimbanda Luciferiana não vem da
Quimbanda, de fato, mas do luciferianismo
e satanismo anticósmico modernos. Essas
correntes mágico-filosóficas de inclinação
anticlerical e ideologicamente alinhadas à es-
querda, só chegaram no Brasil em meados da
década de 1990 e início da década de 2000,
período onde começaram a se proliferar as
vertentes de terceira onda. Umas das carac-

58 Edição 11
ferianismo uma abordagem descentralizado- estar em oposição, logo, precisa do confron-
ra, inúmeros bandas de casa começaram a se to. Diabo em Deus, fica difícil explicar. Tirar
autointitular Quimbanda Luciferiana, mistu- os símbolos cristãos ou dos brancos euro-
rando tudo e qualquer tipo de coisa, criando peus, como queiram chamar, da Quimbanda,
sistemas anômalos. Muito embora isso seja de dentro da Cafua de Quimbanda?
mais velho que a memória da cultura ociden- Oras, vejamos tudo que traz um sim-
tal, porque é da natureza religiosa do homem bolismo de origem católica, do catolicismo
e sempre ocorreu no contexto de religiões, popular e da feitiçaria ibérica: tiremos os
cultos e ordens mágicas modernas, as cópias cruzeiros das almas, grandes símbolos de
mal feitas sempre borram o nome do traba- santificação dos locais fúnebres e dos amal-
lho original. diçoados, que eram erguidos sobre antigos
Por um lado, pela abrangência literária templos de deuses romanos ou bárbaros para
da Quimbanda Luciferiana, por outro lado, impor a supremacia do Império, da Igreja e
por algumas vertentes tradicionais carece- de Cristo. Já temos que começar por aqui.
rem de fundamentação – por muitos motivos Afinal, inverter a Cruz só torna opositor do
como falta de acesso ao mais velhos e, por- mesmo, e reverenciador da mesma força pelo
tanto, aos segredos do culto – hoje podemos caminho oposto. Mas se não tiver o ícone
ver vertentes tradicionais de primeira onda de Jesus na Cruz, só o faz um devoto de São
como a Nàgô, uma das, senão a mais influente Pedro e do Bispo de Roma. Não busquemos
do Brasil, e vertentes de segunda onda como explicar a cruz por outros sentidos, você es-
a Kirumbo, com ritos, práticas, posiciona- tará sendo equivocado, se esquivando da re-
mentos filosóficos e ideológicos derivados da alidade da cruz no imaginário brasileiro, de
literatura da Quimbanda Luciferiana. que os Cruzeiros das Almas são marcos dos
É importante dizer que nosso papel aqui domínios da Cristandade. Seguiremos ainda
não é o de fiscalizar o culto de ninguém. To- retirando o tridente da mão dos Exus, de seus
dos nós sabemos que cada Reinado de Quim- pontos riscados também, afinal, não adianta
banda tem a sua própria identidade. Não afirmar que o tridente é símbolo de Poseidon
defendemos, também, qualquer pureza de ou Netuno, porque quando ele chegou aqui e
culto, porque a própria Quimbanda nasce de o macumbeiro o conheceu, foi como a arma
um caudaloso caldeirão de miscigenação cul- do Inimigo de Deus, o Diabo, que foi furtado
tural. Mas no contexto da Quimbanda Nàgô, de Netuno e entregue nas mãos do Diabo pela
dentro do fundamento do lastro ancestral, Igreja Medieval. Atribuído a Exu pelo fato do
o que buscamos é preservar a estrutura de próprio Èṣú já ser nomeado anos antes pelo
nosso culto, que vem sendo transmitido de bispo anglicano como o diabo yorùbá. Esque-
mestre a discípulo por gerações. É assim que ça de usar as famosas favas, head bat, que são
se estabelece e se perpetua uma tradição. No conhecidas aqui como Garra de Pombagira,
texto Tradição x Inovação, Danilo Coppini diz: que possuem origem estrangeira.
Para ser mais oposto ao branco europeu,
[…] juntam fundamentos de vários troncos tiraremos também as roupas dos mestres: o
para justificar aquilo que nunca aprende- estilo do lorde de capa, cartola e bengala, de-
ram, enfim, o empobrecimento da Quim-
banda começa quando os argumentos se monstrando sua importância social, oriunda
iniciam com teses catedráticas soltas. Pala- dos costumes ingleses, assim como as rou-
vras bonitas JAMAIS fizeram a Quimbanda. pas de Pombagira baseadas nas formatações
francesas da Belle Époque. Cabaré para que?
Sendo assim, não há de se falar nada, não Isso também é europeu. Chamemos Exu do
é mesmo? Vemos aí kimbandas oriundos de prostíbulo ou do puteiro. Sejamos mais pu-
vertentes de primeira onda que, influencia- ros, não? Usar designação francesa (branca,
dos por adeptos de vertentes da terceira onda, europeia) para que, já que buscam purismo
renegando e destituindo antigas práticas tra- afro-indígena? Porque arvorar um purismo
dicionais numa busca falsa de pureza afro-in- banto contra-eurocentrista e assentar Exu
dígena, em contraposição à cultura europeia Lúcifer não é só uma incoerência, mas deso-
no culto de Quimbanda. Quando você adora nestidade e, senão, charlatanismo.
o Opositor, você precisa do fundamento para

59 Edição 11
Não se revoltem! Não foi isso que apren- ligioso, tudo bem, mas não imponha regras
di com os antigos, aprendi que você pode até de outros cultos como sendo dela, pois aí se
tocar Quimbanda num templo de Umbanda, torna desonestidade religiosa e intelectual.
mas cubra o Congá primeiro, uma cortina Hoje alguns pontos já não se cantam, porque
nem que seja de rendas, vamos respeitar, ali falam em nome de òrìṣà diferentes de Èṣú,
a imagem do santo está mesmo na sua ex- mas cada vez que um kimbanda louva Exu,
pressão pura do catolicismo popular, quem ele remete ao arquétipo pátrio de Èṣú, acei-
dirá devoto de òrìṣà com Jesus no lugar de tando ou não. Simples assim. De igual modo o
Óṣàálà, complexo mas… se toca Umbanda, próprio Diabo europeu, cristão. Oras, as ope-
vamos respeitar e cobrir o Congá, afinal, isso rações mágicas, toda sorte de demônios que
não é novidade, já foi até relatado por pes- atuam dentro de muitas vertentes cruzadas
quisadores do passado de como a Umbanda de Quimbanda com magia, tal como Bechard,
e a Quimbanda conseguiam coexistir num Hael, Frutimiere, Baal, Andras etc., não tem
mesmos espaço, como falam Marco Aurélio e nada de africano nisso, e nem tem Deus pagão
Lapassades. E mesmo tocando no mesmo es- purinho, mas sim muitas egrégoras constru-
paço, vamos respeitar né, Quimbanda não é ídas em cima de nomes de entidades popula-
gira de esquerda que se toca em 20 minutos res maculadas (ou não) pelos padres ortodo-
antes da sessão terminar: ela abre só com ela xos e católicos os quais escreveram os mais
e se finda só com ela. Se toca Candomblé? Já antigos grimórios de evocação infernal. Para
está mais tranquilo, pois os ojubó dos òrìṣà já algo mais diabólico, afastado de Deus e de Je-
estão resguardados do espaço. O espaço tem sus Cristo, melhor seria assimilar as ideias de
que estar neutro. Isso sim aprendi com os Lavey, e se tornar um cristão às avessas...
antigos, aqueles que quando adentro a casa Em verdade, vai chegar uma hora que vão
e olho pra tronqueira, vejo de um lado Ògún surtar e querer adentrar a casa dos antigos
e do outro Exu Tranca Ruas, firmado, com mandando no que devem ou não fazer; vai
sua imagem e uma imagem menor do Santo chegar a hora que vão ter que parar de cantar
Antônio e São Miguel, que agora estão sendo a dona da catacumba que sem mistério, que
renegados por aqueles que estão se influen- mora no cemitério, mas que é loira, de olhos
ciando pelo satanismo e luciferianismo mo- azuis, a Pombagira filha de Omolu, de certo
dernos. Ou quando não, encontrava os santos porque é branquela-europeia. De origem afri-
replicados na cafua dos Exus, lá, realizando cana ou indígena pura, acho difícil achar den-
os propósitos mágicos e bruxedos dentro da tro de uma ancestralidade tão miscigenada.
banda, sob o aspecto de santidade e bondade, Mas quem sabe? Vamos pensar. Vou fechar
sendo que não é bem assim para quem conhe- como aprendi com os meus mais velhos:
ce. Mas o que fazer? Se os antigos kimbandas
faziam assim e os novos não? E se não era só Eu não tenho Pemba, não tenho nada
um símbolo de aceitação de Cristo, mas um Segura a Corimba Santo Antonio
símbolo de magia, que está ali à disposição Está na hora de Exu
do Exu? Eu prefiro me apegar as práticas dos Segura a Corimba Santo Antônio
antigos, porque elas já foram testadas e com-
provadas. Receitas novas podem dar certo, Cada um com sua caminhada, enquanto a
como podem dar errado. caravana passa, alguns quebram, outros per-
Aprendemos que a Quimbanda é um culto dem seus cavalos, o pneu do carro fura, mas
individual, com uma estrutura própria, que ela não para. Só prossegue. O antigo não é
descende de outro, porque não surgiu do nada ultrapassado e nem errado para quem tem a
pelas mãos do Maioral; e aprendemos que sabedoria e o conhecimento de que Exu não é
não é a Umbanda, nem o Candomblé, nem o guardião ou porteiro de viver em quartinho
Iṣéṣé Làgbà e nem o Catimbó de Jurema quem ou casinha de cachorro, mas quem sabe que
vai determinar o universo de conhecimento Exu é Rei e digno de viver num Reinado.
das vertentes de Quimbanda, afinal, cada um
na sua, e a Quimbanda constrói o seu univer- Tata Nganga Kilumbu
so próprio. Agora, se para você ela é apenas
uma ferramenta mágica e não um culto re-

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Santo Antônio na Quimbanda
Nàgô
Por Táta Nganga Kilumbu
@quimbandamarabo | @tatakamuxinzela | @covadecipriano |
@quimbandanago | @covadetiriri

O cenário atual da Quimbanda aos individual como feiticeiros e na expansão


olhos dos nossos ancestrais deve ser es- do reinado do Chefe Império Maioral. A
pantoso, levando em consideração a in- Quimbanda como inimiga feroz do cris-
serção de tantos elementos estrangeiros tianismo surge com a Quimbanda Luci-
e ideologias «separatistas» que colidem feriana a partir de 2010. Se você leitor
com quaisquer práticas que sejam oriun- enxerga o Cosmos desta forma, então é
das das Macumbas e Calundus. Existe melhor buscar a Quimbanda Luciferiana
um lugar para o satanismo na Quimban- e está tudo bem. Mas não imponha, por
da, àquele satanismo de tipo «universal» outro lado, seu conhecimento flagelado
tratado no livro Ganga: a Quimbanda no pelas crenças religiosas das igrejas den-
Renascer da Magia de Táta Kamuxinzela, tro de uma vertente que não está nem aí
não o satanismo luciferiano anticósmico para isso.
contemporâneo. A Quimbanda Nàgô não Quando a Quimbanda Nàgô começa se
perde tempo e energia para combater as estruturar como culto religioso, ela surge
ideias e os pilares teológicos do cristia- como uma expressão fiel da Macumba ca-
nismo; em verdade pouco nos importa rioca, trazendo em si os traços fundantes
qualquer religião que seja, porque esta- da formação da Macumbas, que se origi-
mos concentrados no nosso crescimento naram da mescla de três grandes culturas
religiosas: indígena, africana e europeia.
Quando falamos de bruxaria europeia,
devemos nos ater principalmente aos
conceitos e práticas da feitiçaria ibérica
como transmitida e demonstrada pelo O
Livro de São Cipriano, e a prática «dia-
bólica» ou «satânica» de associar Anjos
e Santos, e até mesmo os nomes divinos
da cultura judaico-cristã, aos ritos de
trabalho com os demônios nas práticas
de feitiçaria, onde os Santos passam a
ser conjurados para trazer os benefícios
místico-teúrgicos de purificação da Igre-
ja Católica, mas também benefício secu-
lares, como um bom casamento ou forçar
alguém se enamorar por outrem. Oras, os

61 Edição 11
famosos modelos de O Livro São Cipriano Podemos perceber essa herança da
estão por aí espalhados, e sabemos que feitiçaria popular, com práticas católicas
eles refletem na magia popular a bru- reinterpretadas pelo povo, pelo feiticei-
xaria folclórica dos povos ibéricos; logo, ro e pela necessidade, como na figura de
uma passagem simples ali, já se explica Santo Antônio sendo afastado do meni-
muita coisa. Não se trata de catolicismo no Jesus em seu colo, como um seques-
popular, se trata de feitiçaria do povo; é tro simbólico de que se o Santo não fizer
entender que tudo na natureza tem àṣẹ/ determinada coisa – no caso arranjar um
moyo, da mesma forma como os bantos casamento – o menino Jesus (sua fonte
que quando se depararam com essas cul- primordial de poder) lhe será retirada. É
turas em solo brasileiro, compreenderam como se fosse um sequestro mágico com
a força que poderiam agregar em seu cul- a promessa da troca. Vemos também den-
to antropofágico. Entender isso é enten- tro da prática de afogamento da imagem
der que tudo tem um símbolo; uma ima- do santo de cabeça para baixo, enquanto
gem pode remeter a algo, mas trazendo ele não traz a pessoa amada. Tudo isso
fundamento de outra coisa, basta saber é uma reinterpretação popular, baseada
preparar. nessa feitiçaria popular, que pode e deve
De certa maneira sim, o chamado ser entendida e usada com parte da feiti-
catolicismo popular é uma fórmula má- çaria brasileira.
gica profana, das pessoas comuns, onde Mas se não concorda com isso, o Dia-
benzedeiras, necromantes e feiticeiros bo que você acredita está fundamentado
do povo desenvolvem suas técnicas de em que? Qual a pedra angular de conhe-
curandeirismo, magia e espiritualidade cimento que você crê e coloca em oposi-
para alcançar efeitos mágicos palpáveis; ções?
e sim, se olharmos bem atentamente, Portanto, os antigos kimbandas ao ob-
essa manifestação religiosa popular inte- servarem todos esses bruxos e feiticeiros
gra as bases da magia/bruxaria popular, português que vieram para cá em meio a
estas mesmas que influenciaram o Espí- toda sorte de gente, e ao notar a força es-
rito de São Cipriano, assim como diversos piritual destes nomes e seres, souberam
grimórios e práticas da bruxaria popular manipular bem estas forças, a ponto até
ibérica, aquela afastada das fórmulas que em solo africano na época de Mwe-
eruditas mouras ou de origens salomô- ne Kongo, havia até um nkisi que surge
nicas. O dito «luciferiano» ao ler isso já de um santo, o chamado Ntoni Malau. Em
encherá sua boca ou seu texto de ódio em verdade, a Quimbanda Nàgô é Macum-
tentar bater de frente com tal premissa ba, e não um palco para satanista rebel-
dizendo que somos «servos do demiur- de sem causa, que em maioria são todos
go maligno», que «somos a quimbanda revoltados contra o sistema ou contra o
demiúrgica» e por aí segue as sandices cristianismo; sendo que muitas das ve-
que rondam o imaginário desse povo. zes não é incompetência religiosa, e sim
Mas pare e pense: eu utilizar um nome incompetência pessoal mesmo. Espírito
de um ser sagrado para os católicos em algum gosta de gente tola.
uma prática que é veementemente proi- Dentro da Quimbanda, em especial
bida pelo catecismo, é «obra do Diabo», a Quimbanda Nàgô, existe a presença
afinal as bruxas portuguesas o faziam, dentro do culto, ou melhor a herança da
assim como os ciganos também o faziam feitiçaria popular ibérica na qual o mor-
e ainda fazem em suas magias. to sagrado do catolicismo, i.e. um santo,
alvo de muitos mitos e lendas – principal-

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mente na região portuguesa e que chega
ao Brasil repleto de «atos milagrosos»,
tal como se materializar em diversos lo-
cais ao mesmo tempo, o que aproximou
os santos sincreticamente a Èṣú òrìṣà,
o senhor dos caminhos, que se encontra
em todos os limiares do àiyé – é cultu-
ado. Igualmente, baseado neste tipo de
sincretismo, Santo Antônio fora sincreti-
zado também com Ògún òrìṣà, demons-
trando sua força em defesa e proteção,
pelo fato de ter salvo a Bahia de invasões
estrangeiras segundo as crenças popu-
lares. Assim, o culto a este santo come-
ça a se mesclar com elementos da magia
popular europeia acrescida das virtudes
de ambos òrìsà desbravadores dos cami-
nhos.
Como Táta Kamuxinzela demonstrou
no livro Ganga: a Quimbanda no Renas-
cer da Magia, o Exu-Diabo da Quimbanda
possui todas as virtudes que esses dois
òrìṣà, Èṣú e Ògún, carregam. A junção Logo, o espírito de Santo Antônio den-
dessas virtudes, por outro lado, se con- tro da Quimbanda Nàgô é um mistério,
centra em um Santo-Exu: no fundamento um fundamento bem profundo que não
de Santo Antônio de Quimbanda Nàgô. se resume apenas ao que está exposto
Assim como na cultura yorùbá Èṣú, a for- aqui, pois não é possível revelar a tota-
ça espiritual de comunicação com todo o lidade dessa força. Mas este espírito que
Cosmos, é deveras convocado para consa- chamamos de Santo Antônio, que oras é
gração de magias (oogun), para ẹbó, para associado ao Santo Antônio de Pemba,
despachar o ibi (negatividade) e os ajo- Santo Antônio da Limeira ou mesmo San-
guns (forças destrutivas do cosmos), de to Antônio Negro, atua dentro da Quim-
forma semelhante Ògún atua nos emba- banda. Por outro lado, é um fundamento
tes às forças contrárias à vida humana. O que remete à sua formação, herança das
Santo Antônio na Quimbanda surge com Macumbas cariocas e da magia popular
essa força de ponto de equilíbrio entre brasileira. Por este motivo, um kimban-
as virtudes destes òrìṣà. É o fundamento da nàgô das antigas sempre possuíam o
que dentro da Quimbanda Nàgô atua lite- seu fetiche consagrado e ocultado na face
ralmente como um ponto de sustentação de Santo Antônio, e os novos que seguem
da banda dos Exus, sendo saudado num o exemplo e mantêm vivo os fundamen-
ponto antigo: tos dos antigos, detém também este to-
tem feiticeiro. Não é ser católico, não é
Eu não tenho Pemba, ser cristão; mas um feiticeiro tradicional
não tenho nada, brasileiro.
segura corimba Santo Antonio,
está na hora de Exu, Tata Nganga Kilumbu
segura a corimba Santo Antônio.

63 Edição 11
Ninguém se forma sem o
fundamental
Eu gosto muito de pensar, talvez tivesse da fragilidade alheia. Claro, que em muitos
cursado filosofia em uma outra situação de casos, as pessoas generalizam tudo, como
vida, entretanto pensar é um prazer para o caso do “dinheiro” na religião. Não vejo
mim, mas que em alguns momentos se tor- como negativo você dar dinheiro para seu
na uma tortura, afinal, com o pensamento terreiro, para comprar os itens da sua ofe-
vem o discernimento e a crítica. Crítica, ao renda, para pagar o pai de santo que irá
contrário do que é pregado pelo conheci- fazer isso, afinal ele está dispondo de tem-
mento popular, não é uma inferiorização po, de vitalidade, de conhecimento e de axé
ou um juízo negativo sobre algo. A crítica é para te atender. Entretanto, sabemos que
um exercício de julgamento? Sim, mas por tem gente que “inventa” um problema para
ponderação. Pode ser que a crítica seja algo vender uma solução. O problema é que as
positivo, criticar é analisar algo e definir as soluções são bem temporárias e sempre
suas impressões sobre isso. Percebam que fica sendo necessário acrescentar um “ane-
disse “as suas impressões”, ou seja, não é xo” ao contrato principal. Óbvio que exis-
uma regra universal e pode até ser percebi- tem casos em que realmente é preciso fazer
da de uma outra maneira por alguns. Eu por mais de um trabalho ou reforçar trabalhos,
exemplo adoro coentro, mas tem gente que mas nem sempre é assim, então devemos
odeia, são dois tipos de críticas opostas. ser bem claros e transparentes quando isso
O pensamento crítico é fundamental ocorrer.
para o exercício da intelectualidade e para Seja como for, o que queria trazer nesse
você evitar ser pego em situações contrá- texto é que a Umbanda como conhecemos
rias à sua vontade. Exercer o pensamento está morta, como já disse em outros arti-
crítico é dominar a si mesmo e poder defi- go neste blog, entretanto o perigo agora é
nir se algo que se ouve é exatamente como a Quimbanda, que parece caminhar para o
deve ser ouvido ou se estão tentando te lu- mesmo rumo. Veja bem, eu não sou contrá-
dibriar. rio a manifestação múltipla da religiosida-
O cenário religioso é um terreno fértil de e da magia, mas sou crítico daqueles que
para pessoas que gostam de se aproveitar oferecem um “supletivo” para que a pessoa

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alcance a maestria de forma inadequada, tras devem ser usadas de demanda para
despreparada, só para ter um título a ser acabar com a fonte de emanação negati-
exposto nas redes sociais, pois se trata dis- va, mas sempre tudo é pautado no equilí-
so, títulos e visibilidade nas redes. Pense brio cósmico. Quando você caminha para
comigo, se uma pessoa adentrou agora a o sacerdócio do Nganga, o Kimbanda que
Quimbanda, como ela pode se tornar mes- recebeu mais outorgas para atender ter-
tre da arte se ela ainda está conhecendo o ceiros, ele deve no mínimo ter controle da
terreno que está pisando? Ela nem afinou sua própria vida, ter feito contato com seus
direito o instrumento mediúnico, não es- próprios Espíritos, saber como conduzir
treitou os laços com Exu após a iniciação – uma ritualística e um aconselhamento para
que muda muito – não conseguiu ainda nem quem irá procurá-lo. Mas, além disto, ele
sequer fazer trabalhos para si, como ela vai deve ter um comportamento adequado com
começar a cuidar dos outros? Você já viu o cargo sacerdotal, nunca usando do sacer-
alguém formado na Universidade que não dócio para fins puramente egoístas. Você
tenha feito o ensino fundamental? deve se perguntar agora: “Mas a Quimban-
A não ser que ele seja uma pessoa su- da não é o caminho do egoísmo?”. Sim, ego-
perdotada e quando falamos disto dentro ísmo no sentido de se pensar em si, antes
do cenário religioso ele tem que ser um EN- de pensar no outro, mas sabendo que como
VIADO, um AVATAR de uma divindade para sacerdote você deverá atender seus clientes
isso acontecer. Mas você conhece algum da melhor forma possível.
Avatar? São poucos na história, então por Certa vez uma pessoa me disse que que-
que agora abundam tantos escolhidos? ria aprender magias de amor para acabar
Outra questão que é preponderante com relacionamentos, pois ela não acre-
é o comportamento sacerdotal, que não ditava no sistema vigente de casamentos
está atrelado a aspectos moralistas, mas monogâmicos. Inclusive queria acabar com
a conceitos de compreensão do universo e casamentos que tinham filhos e que o casal
da comunidade. Quando nos tornamos um era feliz, baseado na sua ideia de mundo,
Kimbanda, partimos do pressuposto que que uma das pessoas do casal não queria
estamos nos tornando curadores. Algumas aquela vida (sem que a pessoa lhe tivesse
curas podem ser feitas a base da força, ou- dito nada). De fato, esse “feiticeiro” tinha

65 Edição 11
sem cunho de cura. Ele se torna um oposi-
tor do Kimbanda, que é um curador. Porém,
o tipo de trabalho também traz alguns ônus
para a vida da pessoa, com o tempo ela é
drenada, vampirizada e sucumbe a suas
próprias trevas interiores, ao contrário
do Kimbanda que aprende a abraçar suas
trevas e a absorvê-la em equilíbrio eterno,
como no exemplo do TAO, onde o Yin carre-
ga uma centelha do Yang e o Yang carrega
uma centelha do Yin e eles se tornam opos-
tos complementares, sempre buscando o
equilíbrio.
Hoje, o que importa é o Título comprado,
como dos antigos barões brasileiros, assim
como a relevância que se dará nas redes
sociais, pois com visibilidade, poderá exer-
cer seu fascínio nas mentes fracas de seus
seguidores para que ele tenha benefícios
pessoais, seja ele sexo, dinheiro ou apenas
o prazer da fama.
Cuidado, pois você é o responsável por
atração sexual por uma das partes desse cair nessas armadilhas e só você é capaz de
casal e queria se refastelar com essa pessoa sair dela.
de forma sexual apenas, sem envolvimen-
tos sentimentais ou familiares. Oras, não há
nada de errado em usar de magia para con-
Tata Nganga Zelawapanzu
seguir sexo, porém há algo errado quando Templo de Quimbanda Cova de Tiriri
você quer “quebrar” uma família, causando instagram.com/covadetiriri
sofrimento a um casal e a crianças por sim-
ples prazer carnal, ou não?
O mestre de Quimbanda, vulgarmen-
te chamado de Tata ou Mameto, deve ser
também um mestre da vida e mestres não
se curvam a desejos escravizadores. Tudo
aquilo que se torna algo que domina a sua
vida: sexo, comida, drogas, prazeres mun-
danos, preguiça, cobiça exacerbada, inveja
etc., tudo isso é sentimento escravizador e
um mestre não pode ser escravo de nada.
Muitos usam discursos de “liberdades”, mas
para justificarem libertinagens e desassos-
segos de suas almas. Essa pessoa que cito,
procurou quem lhe desse isso e se tornou
do dia para a noite um mestre... porém um
mestre que tem outro mestre, seus compor-
tamentos compulsivos.
Existe esse caminho da feitiçaria, onde
a destruição se torna o foco de tudo, ele é o
caminho do Ndoki ou do Muloji, aquele que
pratica puramente os feitiços maléficos,

66 Edição 11
Demonologia na Quimbanda
Este texto poderia facilmente se cha- povos. A religião é uma forma cultural de
mar: “Demonologia na Quimbanda: Por que designação de uma identidade de povo, hoje
você tá falando besteira o tempo todo?”, isso está menos evidente, restando pratica-
afinal muitos afirmam que em África não mente apenas os Judeus e os Muçulmanos,
havia a ideia de maldade e que a demonolo- que em sua maioria tem origens “biológi-
gia e diabologia da Quimbanda é uma atro- cas” sobre a religião, sendo os Judeus ainda
cidade cometida por quem nada entende de mais significativos nisto, pois você tem que
macumba. nascer com o sangue judeu para ser consi-
Mas será mesmo? derado um, podendo assim praticar o con-
Nós devemos sempre compreender, que junto de religião, cultura e vivência judaico.
apesar da quantidade de informações que Mas como fazemos quando há uma mis-
hoje temos a disposição, a faculdade do pen- cigenação e um apagamento das origens
sar crítico é algo restrito a algumas pesso- culturais? Como faz quando um povo é
as que se esforçam para entender além do formado de diversos tipos de influências
véu da ignorância. Isso não quer dizer que culturais estrangeiras, que tiveram que se
só acadêmicos e intelectuais podem ser adequar ao modo de viver do novo mundo?
capazes de compreender sobre os artigos Para essas questões, sempre fica a dúvida…
que discorremos, longe disso. Até mesmo O Brasil, queira você ou não, sofre influ-
porque quem determinou o diabolismo e a ência de diversos povos em sua formação,
demonologia na Quimbanda eram pessoas desde os indígenas, passando por africanos
sem títulos acadêmicos que o faziam pela de diversas regiões do continente africano
prática, pela tradição e pelo entendimento e os portugueses principalmente, contudo
das coisas na sua vivência pessoal ainda podemos considerar a influência es-
Para entender a formação de uma reli- panhola, italiana, alemã, libanesa, síria e
gião, devemos compreender todo o escopo japonesa (sem contar outras influências).
de sua formação, sempre colocando à frente Com esse amálgama cultural, vamos ver
em nossas mentes que não há PUREZA DOU- diversos tipos de religiosidades sendo ex-
TRINÁRIA, sendo assim, nenhuma religião pressos, como o catolicismo europeu, o
é isenta de influências culturais de outros catolicismo popular, a bruxaria ibérica e

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ciprianica, sem citar outras questões como Inclusive é importante relatar que o Rei-
a influência árabe, islâmica na Ibéria e no no de Israel tinha como capital a cidade de
próprio Brasil, as ortodoxias cristãs, as Samaria, de onde provinham os Samarita-
manifestações de religiosidade banto, jeje nos e acho que você deve se lembrar dessa
e nagô, o islamismo malê, a cultura dos passagem bíblica sobre os samaritanos, na
grimórios, o protestantismo alemão e a re- parábola do bom samaritano:
ligiosidade nativista dos povos indígenas “30 Em resposta, disse Jesus: “Um ho-
(que é plural e múltipla). mem descia de Jerusalém para Jericó, quan-
A visão da religiosidade ocidental foi do caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe
moldada pelo cristianismo, desta forma, tiraram as roupas, espancaram-no e se fo-
precisamos compreender as bases da re- ram, deixando-o quase morto. 31 Aconte-
ligiosidade que vem a dar forma ao cris- ceu estar descendo pela mesma estrada um
tianismo. O cristianismo em seus tempos sacerdote. Quando viu o homem, passou
primeiros era considerado uma heresia do pelo outro lado. 32 E assim também um le-
judaísmo, entretanto o próprio judaísmo vita; quando chegou ao lugar e o viu, passou
não é uma religião ancestral, sendo que di- pelo outro lado. 33 Mas um samaritano, es-
versos professores discorrem sobre a exis- tando de viagem, chegou onde se encontra-
tência de dois “cultos” judaicos, o pré-exílio va o homem e, quando o viu, teve piedade
e o pós-exílio. A região onde consideramos dele. 34 Aproximou-se, enfaixou-lhe as fe-
que existia o Reino de Israel, também con- ridas, derramando nelas vinho e óleo. De-
tava com o Reino de Judá e segundo infor- pois colocou-o sobre o seu próprio animal,
mações que hoje temos através dos arque- levou-o para uma hospedaria e cuidou dele.
ólogos religiosos, podemos constatar que o 35 No dia seguinte, deu dois denários[c] ao
judaísmo é uma resultado do Reino de Juda, hospedeiro e lhe disse: ‘Cuide dele. Quando
que ficava ao sul de Israel, sendo que Israel eu voltar lhe pagarei todas as despesas que
não era o país dos judeus, mas dos israeli- você tiver’.” (Lucas 10:30-35).
tas. Os samaritanos eram vistos como rivais
do povo do Reino de Judá, tanto que nesta

68 Edição 11
parábola vemos um certo “afronte” quase dos mortos e de um juízo final. Mas além
dizendo que “até um samaritano” ajudou disso, podemos perceber também a influ-
alguém e não um judeu em si, ou sacerdote ência babilônica (e posteriormente zoroas-
como diz o texto que é o mesmo que dizer trista, masdeísta) na figura dos Anjos. En-
Saduceu , ou um levita, ou seja, um descen- tão percebam, que o povo que volta a Judá
dente de Levi, que detinham controles polí- e a antiga Israel, volta com um pensamento
ticos e religiosos mais tradicionais. totalmente diferente do que foram e rees-
Os povos de Israel, segundo a professo- crevem suas teologias, como já citamos, o
ra Ângela Natel, carregam em seu próprio caso de algumas epopeias, que se tornam
nome a adoração de seu Deus, ou seja, El, por exemplo uma versão, no caso do dilú-
sendo que o termo aceito para a tradução vio que já é visto em textos antigos escritos
do nome seria “Aquele que luta com Deus”, em cuneiforme, antes de se apresentarem
mas que Deus? O Deus El, o mais importan- como textos judaicos.
te deus da religião canaanita, que também Mas, você deve estar se perguntando: “O
era Deus de Israel. Na Bíblia e na teologia que tudo isso tem a ver com demônios?”
moderna nos é forçado a acreditar que El Então, com essa mudança teológica im-
e Javé são o mesmo deus, mas percebemos portante, saindo do politeísmo para a ado-
pelos estudos arqueológicos que isso não ração monolátrica e monoteísta de um Deus
procede, que essa associação é tardia, for- Bom, Jeová, o povo judaico (descendentes
çada e ressignificada. Desta forma pode- do reino de Judá) encontrou um grande pro-
mos dizer que o reino de Israel era um local blema: “Como negar a existência de outros
de adoração do deus El e não só dele, sendo deuses que rivalizam com o grande deus
uma região politeísta, podendo ter culto Jeová?”. Para isso encontraram a ideia da
monolátricos ou polilátricos. O entendi- demonização dos elementos estrangeiros,
mento de uma monolatria e monoteísmo é desta forma veremos com o passar do tem-
tardio e vêm após o exílio babilônico. po que Baal, filho de El, se torna Baaltzebut,
O Reino de Israel é invadido por Nabu- ou Belzebu, o demônio Senhor das Moscas;
codonosor II, que escraviza as castas mais Astarte, a grande deusa, importantíssima
ricas de Israel e Judá, deixando apenas os para a cultura babilônica, sendo a grande
mais pobres na região de Canaã. Entretan- protetora de Nabucodonosor II e associa-
to, após a conquista da Babilônia pelo Impé- da a Vênus, a estrela da manhã/vespertina,
rio Persa, liberta o povo hebreu, que volta a se torna com o passar do tempo no demô-
sua região, mas não sem antes terem sido nio Astaroth; até mesmo Eósforo, um deus
influenciados fortemente pela religiosida- menor que abria as portas dos céus para a
de e cultura babilônica – principalmente passagem da carruagem solar de Apolo, se
do cultos as divindades babilônicas, da sua torna via latinização Lúcifer, que só é inter-
cultura como a epopeia de Gilgamesh, entre pretado como um “anjo caído” ou o Diabo,
outros, inclusive muitos textos bíblicos se 400-500 anos após o nascimento de Jesus
assemelham a textos religiosos, culturais e Cristo.
teatrais das culturas babilônicas – e tam- Quando pegamos os nomes de demô-
bém da cultura Persa, principalmente zoro- nios e comparamos com as religiões da
astrista que criara o dualismo na figura de Ásia menor, podemos perceber que muitos
duas divindades que combatiam por toda deles eram DEUSES que “caíram”, foram es-
existência, sendo uma a representação do quecidos no culto e substituídos pelo deus
bem supremo e outra a representação do monoteísta. Porém, o próprio Javé, segun-
mal supremo: Ahura-Mazda e Ariman. do constam em alguns estudos, seria um
Da crença Zoroastrista, os povos he- deus menor, um deus do deserto, vingativo
breus ainda levam o entendimento da imor- e selvagem, cultuado por povos nômades
talidade da alma, da vinda de um messias árabes. Curioso quando pensamos assim,
para libertação do seu povo, da ressureição vendo como os Judeus e Árabes se enten-

69 Edição 11
dem hoje no cenário político internacional, da influência fausto-ciprianica, mantém
não é? a chama da demonologia acesa. Contudo,
Esse pensamento demonológico, serviu, os grimórios carregam um profundo viés
de certa forma, para manter viva a compre- cristão, sendo muitas vezes evocado Deus
ensão dessas divindades do passado. En- e seus anjos para o controle desses demô-
tretanto, alguns não compreendem como nios, mesmo assim, trabalha-se e exige-se
deuses podem ser considerados demônios, dos demônios sortilégios e prodígios.
visto que um deus supostamente deve ser Esse saber influencia o pensamento da
BOM. Esqueçam isso, essa história de bon- bruxaria ibérica, que “corta” ou cria um
dade só existe após a implementação do atalho para a comunicação com esses de-
monoteísmo, antes disso todos os deuses mônios, associa o pensamento do Daemon,
eram bons e maus ao mesmo tempo, aí sim ou espírito/gênio tutelar dos gregos, asso-
podemos dizer que não havia o conceito de ciado com o pensamento cristão e da sub-
maldade, porém um conceito de maldade versão herege da sua aplicação e influen-
isolada. Os deuses – e veja os deuses gregos ciam as primeiras formas de macumba na
– desciam a terra e tinham fúria, desejo e terra que vem a ser o Brasil.
paixões, desposando inclusive de mortais e O povo africano, seja ele de que etnia
lhes gerando filhos, que eram considerados ou cultura, sempre teve o entendimen-
divinos ou semidivinos. Isso não lembra to de bem e mau, mas não associado a vi-
uma certa “queda de anjos” que se apaixo- são judaico-cristã (zoroastrista) de bem e
naram pelas mulheres filhas dos homens e mau. Aluvaiá e Exu sempre aplicam peças e
nelas fizeram filhos, que são chamados de criam celeumas nas pessoas, sendo que Exu
Nefilins ou Gigantes? Não eram esses caí- cria uma confusão que resulta na morte de
dos, entidades que ensinavam matemática, duas pessoas só pelo prazer de ver a briga;
agricultura, metalurgia, astronomia e toda Ogum mata toda uma cidade, que lhe rendia
uma sorte de saberes para os povos? Não culto, por ignorância que estavam em silên-
foram eles punidos – pela audácia de tirar cio em sua homenagem e ele consumido de
da ignorância os humanos – pelo grande vaidade, acaba com todos; as grandes mães
deus, sendo que alguns foram aprisionados – as Ia Mi Oxorongá – enviam pragas e in-
em árvores, no ar e no submundo? Sua prole fortúnios a diversas cidades, para demons-
não foi completamente dizimada pelo gran- trarem seus poderes etc. Vejam, as divin-
de Deus e seus emissários? Lembra também dades eram boas e más, eram duais, eram
o mito de Prometeu, que ousou entregar o completas.
fogo ao ser humano, tirando-o da ignorân- Aqui temos que dar um salto e compre-
cia e foi castigado por Zeus, tendo seu fíga- ender algo: “O Pensamento Banto”.
do devorado todos os dias, pela eternidade.
Zeus ainda manda pandora abrir a caixa
que continha todos os males do mundo para
que eles assolassem os humanos, Pandora
que se casou com Epimeteu, o irmão de Pro-
meteu. Não são muito similares?
Os demônios – na verdade divindades de
outras culturas – ficaram escondidos nas
escolas de mistérios, nas mitologias e na
magia, sendo transmitida posteriormente
para os europeus latinizados e então, para
os cristianizados. Esse saber sobreviveu
dentro dos grimórios e das magias cerimo-
niais, sendo interpretado posteriormente
por bruxos e bruxas ibéricos, que por meio

70 Edição 11
O povo banto, que não é um só povo, que os Congolenses não tinham, desta for-
mas um grande agrupamento de diversos ma eles viam “poder” e o poder podia ser
povos e culturas que compartilham de sa- “absorvido”. O Deus cristão se torna Nkisi
beres linguísticos, religiosos e culturais desta forma, assim como os santos e o pro-
semelhantes, que habitavam o centro-oeste cesso de batismo era uma aquisição e nunca
africano, na África subsaariana, tem uma uma escolha que afastava o conhecimento
compreensão interessante sobre o poder tradicional, tanto é, que os reis do Congo
do mundo e das coisas. Associado errone- (Manicongo) se batizam, mas retornam as
amente a uma divindade, o termo Nkisi, ex- suas práticas tradicionais por diversas ve-
pressa muito além do que apenas um deus. zes na história. Inclusive podemos até atri-
O termo Nkisi pode ser compreendido como buir a “prática cristã” dos pretos-velhos a
algo bem profundo, algo que representa um esse entendimento, sendo que o preto-ve-
poder possuído, desta forma, tudo que pos- lho reza para Jesus, vendo Lembadilê e can-
suí poder, ou Nguzo, como é chamado pelos tando para Oxalá, ao mesmo tempo.
povos bantos, é um Nkisi, sendo assim: Um Vocês acham que seria diferente com a
deus é um Nkisi, um Antepassado diviniza- visão dos “demônios”? De forma alguma.
do pode ser um Nkisi, um Santo é um Nki- Não tardou para o Livro de São Cipria-
si, um feitiço é um Nkisi, um assentamento no e outras formas de transmissão de saber
é um Nkisi, um Rio pode ser um Nkisi etc. pela oralidade, incrementar as práticas de
Tudo que detém poder é considerado um macumba. Afinal, os africanos ao se conec-
Nkisi, um possuídos de Nguzo. tarem aos saberes indígenas, absorveram
Desta forma, não é difícil entender, como as práticas de ervas, de feitiçaria, do fumo,
o povo do Congo se associa ao Cristianismo, da fumaçada, dos encantados e assim por
se converte (parcialmente) ao cristianismo diante; o mesmo ocorre com a bruxaria ibé-
e se usa desses elementos para suas prá- rica, naturalmente herege e as práticas do
ticas religiosas, porque afinal, o Santo e o catolicismo popular, como afogar Santo An-
Deus Cristão deram aos portugueses tecno- tônio para conseguir um casamento.
logias de armas, de barcas e de navegação

71 Edição 11
consideradas primitivas, vemos o distan-
ciamento também do pensamento demono-
lógico, criando assim uma dicotomia, que
para alguns relembra o dualismo de Ahura
-Mazda e Arimã, nas figuras de Umbanda e
Quimbanda.
Aqui, em meu achismo, estou para dizer
que a Quimbanda é a verdadeira Umbanda,
que guardou os saberes da Macumba e não
se deixou influenciar a ponto de perder a
sua identidade. O pensamento banto é de
absorção e nunca de negação, então a Um-
banda poderia absorver os saberes espíri-
tas, mas manter tudo que tinham antes, o
que infelizmente não aconteceu. Entretan-
to, isso ocorre com a Quimbanda, porém
como uma forma de contrapor esse sistema
pasteurizado, acaba se focando a cada dia
mais na sua visão demonológica, para afas-
tar de seu seio aqueles que queiram higieni-
zar a mesma.
Bom, com tudo aqui exposto, acho que
fica evidente que essas pessoas que defen-
Entretanto, no início do século XX, in- dem que “Não existe o conceito de demônio
fluenciado pelo pensamento positivista e na África”, “Que os africanos não entendem
pelo pensamento espírita, vemos as “ca- o mau”, “Que o demônio não pode coexistir
sas de macumba” começando a adentrar com Exu”, etc. estão completamente en-
um campo da sociedade de classe média e ganados em suas afirmações. Na verdade,
classe alta, principalmente no Rio de Janei- acredito que eles sejam apenas máquinas
ro, até então capital do país. Essa influên- que repetem a exaustão o que seus mestres,
cia retira das práticas de macumba alguns que também não conseguem pensar ade-
fundamentos dados como primitivos (afi- quadamente fora da castração mental que
nal, durante toda obra de Kardec se fala foram submetidos, falam. Eu digo isso, pois
dos selvagens e como eles eram atrasados), não quero acreditar – apesar de ser em al-
tais como os oráculos, os transes e posses- guns casos – essa uma tentativa consciente
sões mais agressivos, as manifestações de de “inferiorização” das práticas de macum-
entidades dadas como “não civilizadas” e o ba mais raiz.
sacrifício animal. As sessões de macumba Seja como for, agora com essa exposição,
eram regadas a uma “enebriação” digna dos você pode pensar por si mesmo e ver se isso
eventos dionisíacos, onde os médiuns ao tem coerência.
consumirem álcool e se intoxicarem com as
fumaças dos fumos, abriam portas senso- Tata Nganga Zelawapanzu
riais, se entregando a um transe que muitas Mestre de Quimbanda Nàgô e
vezes era visto como descontrolado, permi- Quimbanda Mussurumim
tindo a manifestação de entidades, dadas Dirigente Espiritual de Umbanda da
como selvagens e de difícil trato, como os T.E.U. Chão de Jorge
Gangas. Os Gangas que posteriormente irão
Dirigente Espiritual do Templo de
receber a alcunha de Exu e Pombagira.
Nessa tentativa de elitização da religião
Quimbanda Cova de Tiriri.
e da higienização da religião de práticas

72 Edição 11
Dos Oráculos do Kimbanda
Por Táta Nganga Kilumbu

@quimbandamarabo | @tatakilumbu

foram resumidas à responder positivo e ne-


gativo, sendo que quando bem fundamenta-
do, com as peças corretas por sinal, mesmo
sendo quatro apenas, irá responder com um
leque maior de quedas e seus significados
irão ultrapassar as meras cinco quedas de
confirmação com três resultados positivos e
dois resultados negativos.

Por outro lado, temos a manifestação es-


piritual das entidades por meio do transe de
incorporação, as quais irão transmitir suas
mensagens e orientar a comunidade para
seu melhoramento, seja espiritual ou ma-
terial. Este meio oracular é o mais buscado
pelas pessoas por ser mais humanizado, pois
o consulente poder falar diretamente com o
espírito e ouvir da boca dele os aconselha-
mentos e direcionamentos. Esse é meio de
Sabemos que dentro de toda genuína tra- comunicação oracular o padrão dos diversos
dição afro-brasileira de inclinação iniciática seguimentos de Umbanda, mas também é
existe um veículo oracular, que vai desde a uma realidade dentro das famílias de Quim-
utilização de búzios, moedas, frutos partidos banda, pelo menos das vertentes tradicio-
e até mesmo o próprio transe (a incorpora- nais mais antigas, as macumbas de raiz.
ção) da entidade como veículo oracular para Por último existem os oráculos mais
uma comunidade. E não é diferente dentro complexos, que surgem da utilização dos ba-
da Quimbanda Nàgô, que possui três tecno- ralhos, que podem ser as cartas ciganas, as
logias oraculares fundamentais: cartas cipriânicas ou o baralho fofoqueiro
(profano) etc., adaptados à cultura de algu-
I. Kawrifan (o Ẹrin de Exu). mas famílias de Quimbanda. Existem ainda
II. Cabalá de Exu. os oráculos compostos por ossos, por búzios
III. Espírito manifestado. (que por sinal são um tipo osso), moedas, da-
dos etc., enfim uma gama de elementos que
O primeiro oráculo é conhecido popular- agrupados constituem oráculos, sejam com
mente como jogo de confirmação, composto uma inclinação mais banto ou yorùbá, ou a
de 04 estruturas marinhas, os búzios, conhe- fusão de ambas influencias culturais; e às
cido por três nomenclaturas dentro da pró- vezes até com um toque cigano. Todos são
pria banda de Exu Gererê: ẹrin, kawrifan e válidos.
jogo de 4 búzios. Esse oráculo infelizmente Dentro da nossa tradição e família de
foi perdido na maioria das famílias de Quim- Quimbanda Nàgô possuímos a Cabalá de Exu,
banda, no sentido em que as suas quedas que é um oráculo formado por um brajá com-

73 Edição 11
posto pela variação dos Reinos da Quimban- cerdotes iniciantes de Quimbanda Nàgô do
da, acrescido de sete búzios africanos, qua- Domínio de Exu Marabô e Pombagira Maria
tro búzios brancos (todos abertos, pois este Padilha. Essa conformação de Cabalá de Exu
fundamento de abrir os búzios é de origem é um fundamento de nossa família e quem o
nàgó-yorùbá para o conceito de equilíbrio de possui, ou foi iniciado diretamente por mim,
quedas e armazenamento de àṣẹ), com dados Táta Kilumbu, ou por um dos Mestres de
e símbolos do povo de Exu em metal, que a Quimbanda aprontados em nossa família. É
princípio formam a estrutura deste oráculo, necessário expressar isso porque hoje vemos
mas que também pode – e normalmente o é – inúmeros bandas de casa valendo-se dessa
ser acrescido de outros elementos conforme conformação oracular da Cabalá de Exu sem
orientação do Exu tutelar. Este oráculo den- terem, de fato, recebido os fundamentos e o
tro de nossa tradição sempre foi muito com- àṣẹ de nossa família, inventando novas in-
plexo de ensinar para os kimbandas que es- terpretações que não têm nada a ver conosco
tão iniciando na jornada do sacerdócio (grau ou com as instruções transmitidas por Exu
iniciático de nganga). Por causa disso uma Marabô. Nossa família preserva a transmis-
adaptação foi feita para facilitar o traba- são do àṣẹ de oráculo (ou mão de oráculo) na
lho oracular dos novos ngangas a partir do base da tradição oral, dentro de uma transfe-
fundamento do oráculo da Quimbanda Mus- rência iniciática sacerdotal, evitando a bana-
surumin, que é o Àlagbá de Exu, banda essa lização de um sistema oracular tão sagrado
onde também sou Mestre de Quimbanda. e secreto.
O Àlagbá de Exu da Quimbanda Mussu- Qualquer material escrito acerca da utili-
rumin é um oráculo composto por sete bú- zação de oráculos a partir de nossa família é
zios inteiros (sem abertura para equilíbrio apenas a ponta do iceberg, servindo de cha-
de quedas conforme o conceito yorùbá, mas mariz para os fundamentos que possuímos e
baseados na cultura banto onde as peças transmitimos secretamente. Os verdadeiros
do oráculo são lançadas à revelia do equi- fundamentos da Cabalá de Exu são transmi-
líbrio das quedas) e um brajá direcionador tidos e, fundamentalmente, avaliados pelo
também com os Reinos da Quimbanda. Este próprio Táta Nganga iniciador. Portanto, é
oráculo possui um facilitador, porque é com- necessária essa declaração final:
posto por quatro búzios brancos represen- Existem famílias de Quimbanda que re-
tando o povo de Exu e três búzios africanos ceberam fundamentos oraculares em nosso
representando a Trindade Maioral. Com o templo, e que com divergências de pontos
direcionamento de Exu Marabô, desenvol- de vistas, criaram suas próprias linhas in-
vemos uma metodologia para sacerdotes terpretativas. Mas o oráculo sempre existiu
iniciantes para Cabalá de Exu a com uma linhagem, abordagem
partir do Àlagbá de Exu dentro e visão iniciática autêntica, com
de nossa família, o Domínio de uma assinatura mágica inde-
Exu Marabô. Nessa abordagem lével da Quimbanda Nàgô e de
para sacerdotes iniciantes uti- Exu Gererê, muito diferente da
lizamos essa configuração de Cabalá com as junções de bú-
búzios oriunda do Àlagbá de zios de quadro e sete. Que esteja
Exu, facilitando o entendimento claro que a Cabalá de Exu com
primário dos ngangas até que quatro búzios brancos e três
estes cheguem ao nível de Mes- búzios africanos trata-se de um
tres (táta-nganga) para receber oráculo intermediário, criado
Cabala de Exu com onze caurís. para servir como um facilitador
Onde vemos a utilização do e uma variação, sendo um tra-
oráculo Cabalá de Exu dentro balho exclusivo da casa de Exu
desta conformidade, i.e. sete Marabô.
búzios, sendo quatro brancos e
três africanos, trata-se de um Táta Nganga Kilumbu
fundamento exclusivo para sa-

74 Edição 11
Quimbanda & Manipulação
Energética
Por Táta Nganga Kamuxinzela
@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

Quimbanda é feitiçaria, a arte de pulador de energia! Isso não é fácil de


manipular e projetar vetores de força conquistar e levamos a vida toda para
mágica (i.e. energia) através de bases aperfeiçoar essa arte.
materiais. Um kimbanda mensura tudo
no cosmos em quantitativos energéti- A Trindade Maioral (Beelzebuth,
cos: as interações e relações pessoais, Lúcifer e Ashtaroth) como descrevi no
as paixões, desejos e impulsos por trás segundo volume do Daemonium, são
das ações, a atividade sexual, os negó- antigas forças cósmicas que estiveram
cios e compromissos firmados, a ma- envolvidas nos processos de formação
nipulação do oráculo (Ẹriṇ ou Cabalá do cosmos e no desenvolvimento da
de Exu), o feitio de oferendas e feitiços. consciência humana, sendo elas o Sol, o
Absolutamente tudo se mensura pela Fogo Mercurial e a Lua. Os símbolos des-
equalização das forças envolvidas, por- sas três forças estão presentes no Bra-
que um kimbanda trata-se de um mani- são Imperial do Chefe Império Maioral,
e sua interação e a compensação ener-
gética que dela deriva demonstra essa
característica singular de equilíbrio
das forças na Quimbanda nas ações do
Exu Beelzebuth, Exu Lúcifer e Pomba-
gira Rainha das Sete Encruzilhadas (ou
em algumas famílias Exu Rei das Sete
Encruzilhadas). As implicações alquí-
micas desse processo eu expliquei no
segundo volume do Daemonium e aqui
teço mais algumas considerações sobre
esses símbolos.

Todas as qualidades sensíveis (ou


virtudes) aparentes do Sol e da Lua
como sua cor, temperatura, formas etc.,
são simetricamente opostas. Isso os ca-
racteriza como forças que simbolizam
todas as oposições máximas e irredu-
tíveis, modelada pelo esquema de dois

75 Edição 11
pontos divergentes e equidistantes de
um terceiro ponto central: a consciên-
cia humana (Logos/Lúcifer) que os ob-
serva da Terra. Desde tempos imemo-
riais, a Lua que se levanta e o Sol que
se põe, formam o símbolo perfeito do
equilíbrio dos opostos, com o homem
(ou fogo mercurial criativo) no meio
como fiel da balança.

O Sol e a Lua, portanto, são símbolos


que evocam a ideia de equilíbrio entre o
ativo e o passivo, o masculino e o femi-
nino, a força centrífuga e a força centrí-
peta, a força linear e a força não linear,
o Od e o Ob no Caduceu de Mercúrio, o
claro e o escuro, o causal (cosmos) e o
acausal (caos) etc., tudo quanto à cul-
tura chinesa conseguiu exprimir nas
ideias de Yin e Yang e a Quimbanda na
manipulação – ou a aplicação da força
simbolizada – pelos tridentes dinâmico Exus e Pombagiras nascem do Trono
e receptivo na ação de Exu e Pombagi- Supremo de Maioral como forças com-
ra. A iconografia de Maioral demonstra plementares, pelo fato de que em seu
esse embate e interação de forças que Corpo, na Alma do Mundo, essas forças
delimitam o equilíbrio entre Caos e Or- causais e acausais não são opostas, mas
dem em uma relação de mútua compen- complementares, dando movimento a
sação, presente em absolutamente em Luz Astral.
todas as circunstâncias e fenômenos ao
nosso redor. A iconografia de um mago portan-
do em mãos o Caduceu de Mercúrio é
Mas este equilíbrio compensatório uma representação do domínio da for-
entre essas forças nunca é estático. Tão ça Luni-Solar, símbolo de seu manejo,
logo ele seja conquistado, imediata- arranjo e projeção. No dia-a-dia de um
mente seu ponto de convergência des- kimbanda esse domínio é simbolizado
liza, pendendo de um lado ou do outro, pelos tridentes (dinâmico e receptivo) e
compensando as tensões de cá e de lá, e pelo kimbanda empunhando a sua faca,
todo conjunto perde a simetria. Então é como uma trindade.
no jogo de desequilíbrio entre as partes
ou no equilíbrio dinâmico dessas forças, Isso é um símbolo!
que a ação de Exu e Pombagira ocorre.
Nenhum equilíbrio depende apenas de Táta Nganga Kamuxinzela
simetria e equidistância, mas também
de interação, conflito e reciprocidade. É
quando os opostos se tornam comple-
mentares. É por isso que se diz que os

76 Edição 11
A Universalidade das Técnicas
de Magia
Por Táta Nganga Kamuxinzela

@tatakamuxinzela | @covadecipriano | @quimbandanago

Nota: este texto é um excerto da apre-


sentação de um ensaio que será publicado
em minha ontologia, «Kalunga: Teurgia &
Cabalá Crioula».

Uma ideia fundamental que subjaz como


pano de fundo das pontes que construí
entre as religiões e cultos de mistérios da
Antiguidade e a Quimbanda nos volumes
que compõem a série Daemonium, é que as
técnicas de feitiçaria (goēteia) e de magia
(mageia) são universais. Elas mudam pouca
coisa de uma cultura para outra no contex-
to dos cultos ao longo da história religiosa
do homem. Na medida em que as culturas
se encontram e se miscigenam, as técnicas
mágico-religiosas se adaptam, se reconfi-
guram e se atualizam. No segundo volume
do Daemonium eu apresento o racional (ou
o fundamento) por trás do sacrifício animal
na Quimbanda através das argumentações
de Jâmblico de Cálcis (245-325 d.C.) acerca
do mesmo tema, a imolação ritual de ani-
mais na teurgia: não são os espíritos – i.e. de culturas diversas desde o Mundo Antigo
os daimones no contexto grego ou os Gan- até os dias de hoje, e pelos mesmos motivos.
gas no contexto da Quimbanda – que efeti-
vamente necessitam do sacrifício animal; Meus leitores estão acostumados com
somos nós, seres humanos encarnados no este meu bordão: o sacrifício é o eixo teúr-
reino da geração, que necessitamos. E no li- gico da Quimbanda. No sentido em que tudo
vro Ganga: a Quimbanda no Renascer da no culto gira ao redor desse eixo teúrgico,
Magia, eu dedico um capítulo ao tema do as purificações, o trabalho oracular (divi-
sacrifício no contexto das religiões grega nação), a catábase no Submundo, a paranor-
e romana, e também no contexto da Quim- malidade pessoal (mediunidade) e o fenô-
banda, porque o sacrifício é uma ferramen- meno do transe na incorporação. Tudo isso
ta religiosa, litúrgica, teúrgica, mágica e so- deriva do trabalho hierático e soteriológico
teriológica utilizada por cultos e religiões do sacrifício. O racional deste processo vem
diretamente do conhecimento que tenho

77 Edição 11
acerca da função soteriológica do sacrifí- é na Quimbanda e em todo culto que deriva
cio nas religiões e cultos de mistérios da da diáspora africana nas Américas.
Antiguidade, seja na África, Mediterrâneo
ou Oriente Médio. No contexto da teurgia, No terceiro volume do Daemonium
o sacrifício, a imolação animal ritual, é seu apresento uma discussão acerca da Quim-
motor, sem o qual nada no sistema funcio- banda ser ou não uma religião, em detri-
na, assim como é na Quimbanda. E não sou mento das considerações de muitos de que
eu que digo isso, é o próprio Jâmblico, que ela seja apenas um sistema ou ferramenta,
dedica todo o Livro 5 do De Mysteriis ao quer dizer, técnica de magia. Nas religiões
tema do ritual, i.e. o sacrifício. e cultos de mistérios do Mundo Antigo, as-
sim argumento, não havia distinção entre
O sacrifício foi a experiência basilar com magia e religião; e a Quimbanda, nas con-
o sagrado no Mundo Antigo e Antiguidade cepções modernas e acadêmicas acerca da
greco-helênica pré-cristã; portanto, é uma estrutura de uma religião organizada e
matéria importante para entender qual- sistematizada, contém todos os elementos
quer prática religiosa da época. Aos deuses, que fazem dela um culto religioso: cosmo-
libações eram derramadas, objetos eram gonia, antropogonia, cosmologia, teologia,
dedicados e animais eram sacrificados, ontologia, soteriologia e escatologia. No
queimados ou imolados e, na maioria dos fim apresento a Quimbanda tanto como
casos, comidos. A teurgia não foi exceção religião quanto um sistema de magia, seja
e para Jâmblico, o ritual se organizava ao nas concepções religiosas do passado ou
redor do sacrifício. Seu De Mysteriis tra- do presente. Mas diferente da teurgia e do
tou-se de uma justificativa efetiva da antiga hermetismo – posto que não faço distinção
prática do sacrifício diante dos desafios dos entre ambos,[1] sendo a teurgia o aspecto ri-
céticos, dos cristãos e, o mais importante, tual-soteriológico do hermetismo – que são
dos argumentos de seu professor, Porfírio cultos religiosos anabáticos, a Quimbanda
de Tiro (234-304 d.C.). Ao responder as é um culto religioso catabático, uma forma
provocações de Porfírio, Jâmblico proveu de goēteia. Mas como veremos, suas técni-
uma nova explicação para a realização do cas são equivalentes.
sacrifício aos deuses, legitimando e o co-
locando no contexto da prática teúrgica. O No primeiro volume do Daemonium, ao
trabalho de Jâmblico causou grande impac- estabelecer comparações entre a teurgia e
to no paganismo greco-sírio da época, ao a goécia, menciono que a diferença efetiva
ponto de ele ser o responsável pela última entre elas reside no operador e na finalida-
grande reforma do paganismo antes de sua de que ele dá as técnicas, e não nas técnicas
derrocada final diante do cristianismo. efetivamente, que são quase que equiva-
lentes. Enquanto que a teurgia é uma arte
No De Mysteriis Jâmblico discute os sacerdotal, tanto filosófica quanto técnica,
muitos fenômenos e os resultados associa- para reorientar a condição anatrópica (i.e.
dos à prática teúrgica. Mas quando procu-
[1] Neste livro faço uma relação direta entre o hermetismo ale-
ramos em seu trabalho as orientações práti- xandrino e a teurgia conforme exposta por Jâmblico e Proclo
cas para a realização do ritual, apenas uma (412-485 d.C.) no contexto do paganismo grego. O entendimento
ação é nomeada, muito embora seja comple- acadêmico corrente associa o trabalho destes dois filósofos dire-
tamente ao neoplatonismo (ou médio e baixo platonismo). Mas da
xa: o sacrifício. Por meio da realização cor- perspectiva do hermetismo, estes dois filósofos são exemplos par
reta do sacrifício, Jâmblico explica, todos os excellence de hermetistas na Antiguidade. Jâmblico abre e fecha
sua obra magna, o De Mysteriis, com referência a Hermes e sua
outros fenômenos associados à teurgia de- doutrina, i.e. o conhecimento exposto no Corpus Hermeticum.
rivam, como a purificação necessária para Então aqui trabalhamos com essa ideia fundamental: a teurgia
a anábase, a divinação via oráculos consi- que Jâmblico expõe trata-se do exercício mágico-religioso-sote-
riológico do hermetismo do Corpus Hermeticum. O texto hierá-
derados as vozes dos deuses, o transe e a tico, filosófico e teológico do Corpus Hermeticum é que provê a
realização do miraculoso. Do mesmo modo base para construção da prática teúrgica de Jâmblico. Trataremos
desse tema especificamente na Seção III abaixo.

78 Edição 11
invertida) da alma, produzindo uma aná-
base (ascensão) que inverte sua condição,
projetando-a a sua reintegração com o Uno
-Bem em um processo de apoteose ou deifi-
cação, a goécia é, por outro lado e segundo
Jâmblico no De Mysteriis (III:28),[2] apenas
técnica, desprovida de todo aparato filosó-
fico que possui a teurgia e que a enriquece.
Tanto que muitas das técnicas da teurgia
citadas por Jâmblico são deveras parecidas
com a feitiçaria que encontramos nos Papi-
ros Mágicos Gregos.[3]

No terceiro volume do Daemonium, que


é um tomo dedicado exclusivamente a goé-
cia, eu demonstro que a visão construída
pelos neoplatônicos e religião grega estatal
de modo geral acerca da goécia, é deprecia-
tiva e difamatória. Goécia, muito antes das
perseguições do cristianismo, já era calu-
niada como uma prática de transgressão
religiosa periférica ao pensamento aristo-
crata da religião grega desde a formação ser chamado de arte caldéia da teurgia. Os
da pólis. A goécia como tradição viva ances- pre-socráticos estavam muito mais preocu-
pados com a katabasis (retiro ou descida);
tral, assim demonstro neste volume do Da- os teóricos neoplatônicos, por outro lado,
emonium, é uma Religião Natural (diferente estavam totalmente preocupados com a
das Religiões Reveladas) que vivifica toda anabasis (subida ou ascensão).[4]
a tradição da magia no Ocidente, e contém
mistérios acerca da deificação catabática Então quando falamos que a goécia
da alma. Muito diferente do que postulam como tradição viva ancestral vivifica a tra-
seus detratores gregos, neoplatônicos e dição da magia no Ocidente, desde antes da
cristãos. A anábase, a subida pelos planos formação da pólis como vimos no terceiro
ou éteres superiores, só se torna o foco dos volume do Daemonium, e uma herança do
cultos de mistérios gregos muito depois do xamanismo hiperbóreo do Norte, a própria
advento da tradição platônica. Antes disso, teurgia de Jâmblico e dos neoplatônicos é
nas fontes para-homéricas e pré-socráticas, um exemplo disso. Newman continua:
o âmago da experiência espiritual para dei-
Porfírio e Proclo localizam as raízes da
ficação da alma era a catábase, a descida ao teurgia nos épicos homéricos arcaicos e in-
Submundo. Neste tomo apresento também sistem que as tendências proto-teúrgicas
a Quimbanda como a genuína goécia tradi- (e, portanto, os elementos xamânicos) já
estavam presentes na cultura grega anti-
cional brasileira. ga, mesmo durante o século VIII e anterior
a isso [a.C.] – um século ou mais antes do
Embora as descidas ao submundo pare- influxo proposto por Dodds de uma influên-
çam se tornar cada vez de menos interesse cia xamânica vinda do «Norte Hiperbóreo».
ao nos aproximamos do tempo de Platão e Esta linha do tempo entra em conflito dire-
especialmente dos neoplatônicos, a varie- tamente com a proposta de que a imagem
dade de voos xamânicos da alma que en- da alma como uma entidade volátil e móvel,
contramos em Abaris e Aristaeus persis- detectada entre os gregos dos séculos VII e
tiu e parece ter sido finalmente traduzida VI, foi importada dos citas e trácios após a
e expandida no que eventualmente viria a composição dos épicos homéricos.
[...] Isso não quer dizer que a presença des-
[2] P.D. Newman. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions,
ses elementos xamânicos não tenha sido
2023, pp. 1.
[3] Ibidem, pp. xii. [4] Ibidem, pp. 8.

79 Edição 11
importada do Norte. A Trácia, a casa-norte ficação) da alma e sua projeção (ascensão)
do lendário Orfeu, o herói prototípico da nos éteres superiores para união ou rein-
katabasis na mitologia grega, ou a desci-
da ao submundo, há muito tempo tem sido tegração com o Uno-Bem, quanto a arte de
associada pelos gregos com a Hiperbórea, criar (ou animar) estátuas dos deuses. A te-
meramente implicando «hiper-Bórea» para léstica da purificação da alma é apofática,[8]
«além de Bórea», sendo Bórea o deus grego
do vento norte. O hino órfico a esta divinda- enquanto que da animação de estátuas é
de, por exemplo, começa: catabática,[9] quando o poder (heka)[10] da
Bórea, explosão de inverno
da Trácia nevada, força mágica dos deuses é assentado dentro
você faz os céus tremerem. de um receptáculo adequado. A teléstica,
Assim, nas mentes dos gregos, a Trácia e a portanto, possui o poder de divinizar, seja
Hiperbórea eram, para todos os fins prá-
ticos, cognatos virtuais para a terra natal uma alma que busca purificação, seja uma
de Dionísio, cujos mistérios Orfeu inaugu- estátua que passa a atuar como uma divin-
rou, sendo o mesmo Norte Hiperbóreo. No dade terrestre.
entanto, por Hiperbórea, os antigos não ti-
nham apenas o Norte em mente; em vez dis-
so, o que eles falavam era do extremo Norte Podemos usar os termos telestikē e anagogē
– o Norte além do Norte.[5] para essas práticas; o primeiro refere-se à
perfeição ou purificação de coisas mortais
e materiais,[11] enquanto o último é uma
As raízes que sustentam e vivificam a elevação do indivíduo.[12] Embora, filoso-
tradição mágica ocidental e, neste contexto, ficamente falando, o reino dos deuses não
a própria teurgia grega são, portanto, bár- exista em um espaço fisicamente maior do
que o reino mortal, mas o transcenda, as
baras, no sentido de que elas vêm da goécia metáforas de ascensão e descida dominam
xamânica dos povos considerados bárbaros as descrições de todos esses procedimen-
como os trácios, os anatolianos, os caldeus tos – o magista pode ascender aos deuses
ou trazer os deuses para a terra. Em ambos
e os míticos hiperbóreos.[6] os casos, como os textos teóricos deixaram
claro, [...] as coisas materiais devem ser fei-
Na teurgia, que hoje defino como o exer- tas particularmente adequadas (epitēdeia)
ao divino para recebê-lo, ou o magista deve
cício mágico da espiritualidade transmiti- ser assimilado o máximo possível ao divi-
da pelo Corpus Hermeticum[7] na refor- no. Este princípio teórico se encaixa com
a gama de práticas teúrgicas mencionadas
ma estabelecida por Jâmblico no contexto nas fontes, particularmente as críticas hos-
do paganismo grego no Séc. IV d.C., parte tis – a criação de estátuas e outros objetos
fundamental do sacerdócio hierático era a materiais infundidos com o poder divino, a
invocação de poderes daimônicos e divinos
animação de deuses terrestres, uma prática
ritual conhecida como teléstica (telestikē).
A teléstica podia tanto se referir a purifica- [8] Termo que se refere a gnōsis para além da linguagem; um tipo
ção soteriológica para divinização (ou dei- de entendimento que transcende as formas, de forma que qual-
quer tentativa de definição a limita e leva, portanto, ao erro da
má interpretação.
[5] Ibidem, pp. 7.
[9] Termo que se refere a descida do poder, o aterramento ou as-
[6] Para uma contextualização deste tema, veja Jake Stratton-Ke- sentamento da força mágica.
nt. Geosophia: The Argo of Magic. Vols. I e II. Scarlet Imprint,
[10] Termo que designa a divindade que representava a força má-
2021. Veja também Frater Archer & José Gabriel Alegría Sabogal.
gica dos deuses egípcios. Veja o primeiro volume do Daemonium.
Clavis Goêtica: Keys to Chthonic Sorcery. Hadean Press, 2021.
O equivalente na cabalá crioula é o moyo dos bantos ou o àṣẹ dos
[7] A espiritualidade do Corpus Hermeticum é uma matéria co- yorùbás.
nhecida como hermetismo alexandrino. Neste livro faço a distin-
[11] [N.T.] em outros termos, a espiritualização ou deificação da
ção estabelecida por Antoine Faivre em sua obra O Esoterismo
matéria; a sutilização ou divinação dos elementos brutos (pesa-
(Papirus, 1994, pp. 32-3) entre hermetismo, termo que define
dos) da matéria. Como o feitio e consagração de uma estátua ani-
um conjunto de textos conhecido como Hermética (e a cosmovi-
mada, que passa a ser uma divindade terrestre.
são que deles se deriva, dos quais o mais importante é o Corpus
Hermeticum) e que surgiu pouco antes da queda do Império Bi- [12] [N.T.] a purificação e deificação da alma através do processo
zantino; e hermeticismo, para designar o conjunto de doutrinas anabático de projeção nos céus ou éteres superiores do Cosmos,
esotéricas que modernamente ganham a alcunha de herméticas uma epistophe anagógica ou repetição através da causalidade fatal
após as redescobertas de Marsílio Ficino (1433-1499) e Ludovico das sete esferas planetárias em uma região chamada de Ogdóade e
Lazzarelli (1447-1500), e que derivou no renascer da magia no fim as Enéadas, assim como as duas Hipóstases superiores, o Nous e a
do Séc. XIX em ordens como a Fraternidade Hermética de Luxor e a Mônada, descritas em um tratado hermético antigo chamado The
Ordem Hermética da Aurora Dourada, e a partir delas e de outras, Discourse on the Eighth and the Ninth [Discurso sobre a Oitava e a
no esoterismo Nova Era com os temas da Qabalah Hermética ou Nova, presente na Biblioteca de Nag Hammadi]. P.D. Newman.
das leis do Caibalion etc. Theurgy: Theory & Practice. Inner Traditions, 2023, pp. 2.

80 Edição 11
para fornecer revelações especiais e a ele- O corpo humano é como uma estátua eidé-
vação da alma do teurgo ao divino.[13] tica fixa ou como uma sequência iconogra-
ficamente estabelecida de escrita hieroglí-
fica dinâmica, [ou seja] é um instrumento
Na perspectiva do hermetismo e da da presença divina, porque essa presença
teurgia, todo o Cosmos material e, portanto, pode ser oculta ou revelada. Portanto, te-
o próprio homem na condição de alma en- lestike não deve ser pensado como indu-
zindo a presença de um deus (ou de seu dai-
carnada no reino da geração, são algamata mon representativo) apenas no receptáculo
animadas dentro de uma operação demiúr- artificialmente construído (hupodoche). O
gica de proporções cósmicas; i.e. dentro de ba[16] divino também pode permear o corpo
humano, confirmando assim a capacidade
um trabalho (ergon) divino e continuamen- deste último de participar dos princípios
te dinâmico e criativo entre deidades. É isso superiores.[17] Quando tal «encarnação» se
que possibilita a deificação de uma alma ou torna permanente,[18] o próprio corpo hu-
mano é transformado na estátua de ouro
de uma estátua no contexto da teurgia e do espiritual.[19]
hermetismo.
Os rituais egípcios, dos quais os filóso-
Os rituais diários que consistem no desper- fos-teurgos neoplatônicos derivam seus
tar, na purificação, na unção, na vestimenta,
na alimentação e na adoração da estátua, símbolos hieráticos, eram cerimônias má-
bem como o processo das oferendas de sa- gicas de teurgia no sentido – técnico – eti-
crifício (que são simbolicamente designa- mológico, porque a atividade (energeia) do
das como o Olho de Hórus restaurado e em
torno do qual o ritual opera), não devem ser moldada é conforme à alma que desce para nela se incorporar, para
concebidos como uma comunicação entre o ver que as almas vivas têm corpos vivos e as almas lentas têm corpos
humano e o divino, mas sim como uma in- lentos; que almas enérgicas têm corpos enérgicos e almas preguiço-
teração entre divindades, ou seja, como um sas corpos preguiçosos; que almas poderosas têm corpos poderosos
verdadeiro ergon divino, o trabalho sagrado e almas astutas corpos astutos; e, em geral, que toda alma obtém um
realizado pelos deuses e todas as classes su- corpo adequado para ela.
periores de seres.[14] E outra passagem de interesse também no Kore Cosmos (II:4):
De acordo com os neoplatônicos tardios, os Agora almas são enviadas de lá para reinar como reis, meu filho, por
deuses (como os neteru egípcio) estão pre- estas duas razões. As almas que executaram bem e sem culpa sua
sentes imaterialmente nas coisas materiais, raça designada e estão prestes a serem transmutadas em deuses,
portanto, ta sunthemata (os assentos teúr- são enviadas à terra para que, reinando aqui como reis, possam ser
gicos do poder de elevação) são considera- treinadas para usar os poderes que são dados aos deuses: e almas
dos como receptáculos para as irradiações que já são divinas e em alguma pequena coisa transgrediram as or-
divinas invisíveis (ellampseis) envolvidas denanças de Deus, são enviados para serem reis na terra a fim de que
na liturgia cósmica de descida e ascensão possam sofrer alguma punição ao serem encarnados, e ainda assim
[do poder espiritual]. Como o corpo é parte não sofrerem na mesma medida que o resto, mas em sua escravidão
integrante do trabalho demiúrgico, em sua ainda possam reter a mesma preeminência que eles desfrutaram
forma primordial perfeita servindo como enquanto estavam livres.
uma imagem (eikon) da auto-revelação di- [16] [N.T.] o poder de vida e manifestação noética da alma que
vina, a condição e a qualidade da matéria desce ao reino da geração. Na cosmogonia, teologia e cosmologia
incorporada indicam a condição interna da egípcia, uma parte da alma dos deuses (neteru) e dos homens que
alma.[15] encarnam no reino da geração. Na construção de uma imagem
animada, i.e. no receptáculo de poder que irá receber a presen-
[13] Radcliffe G. Edmonds III. Drawing Down the Moon. Prince-
ça divina, o ba da divindade desce e faz sua participação nele. É
ton University Press, 2019, pp. 343.
isso que possibilitará, efetivamente, que o daimon – de qualquer
[14] [N.T.] quando envelopado – para usar um termo de Jâmblico natureza - que ali habita assuma a identidade da divindade, com-
– pelo poder dos deuses, como se estivesse vestindo um manto partilhando de sua ousia (essência), dumanis (poder) e energeia
de realeza e pureza dos deuses, o teurgo se torna também deus (atividade). A linguagem da teurgia, assim como do hermetismo,
dentro da demiurgia do Cosmos. A teurgia é um trabalho dos relaciona símbolos imaginários hieráticos da cultura mágica
deuses porque se trata da própria demiurgia do Cosmos. Ela não greco-egípcia. Portanto é natural estabelecer relações e usar os
começa e termina na execução do ritual. É o ritual, que espelha a símbolos e mitos de ambas as culturas, a grega e a egípcia, na
própria demiurgia do Cosmos, que se insere dentro dela. A teur- apresentação dos temas dessas duas matérias.
gia, portanto, segue a demiurgia do Cosmos, constantemente em
[17] [N.T.] o vestir-se com o manto dos deuses, é receber deles, na
movimento e perpetuamente em operação criativa.
alma através do veículo pneumático, o seu ba. Isso possibilita que
[15] [N.T.] uma doutrina expressa pela Hermética: o corpo merece o teurgo se insira na demiurgia do Cosmos, por meio do ritual.
e reflete a condição de sua alma. No Kore Cosmos (IV:4): Sobre Então a teurgia como trabalho dos deuses tem duas perspectivas,
a terra está a Natureza, que é a criadora das estruturas mortais e a superior e a inferior. A superior vê a teurgia como a própria
modeladora dos recipientes nos quais as almas são colocadas. E a demiurgia do Cosmos; a inferior vê a teurgia como o ritual que
Natureza também tem ao seu lado dois Poderes em ação, a saber, possibilitará a inserção na demiurgia do Cosmos.
Memória e Habilidade. A tarefa da Memória é cuidar para que a Na-
[18] [N.T.] i.e. quando a alma do teurgo é divinizada.
tureza faça aderir ao tipo que foi estabelecido desde o início, e que
o corpo que ela molda na terra seja uma cópia do padrão no alto; [19] Algis Uždavinys. Philosophy & Theurgy in Late Antiquity.
e a tarefa da Habilidade é ver se, em cada caso, a estrutura que é Angelico Press, 2014, pp. 86.

81 Edição 11
ritual (estruturado pelo uso e inteiração de leios[21] (37) vemos que não é a divindade
máscaras deíficas) baseava-se na demiurgia que habita a zona de poder terrestre, mas
do Cosmos, no encontro e comunicação ge- um daimon que a representa, quer dizer,
nuína com a ousia (essência), dumanis (po- que assume seus vetores de manifestação.
der) e energeia (atividade) das divindades,
possibilitando a conexão genuína com a Uma vez que nossos antepassados erraram
muito sobre a natureza dos deuses, des-
permanência imanente das energias trans- crentes e não percebendo a religião e o cul-
cendentes do Uno-Bem. Os deuses (neteru) to divino, encontraram uma arte pela qual
não habitam literalmente em suas zonas de poderiam fazer deuses convenientes à na-
tureza do mundo; à qual adicionaram uma
poder terrestres (estátuas, templos, obje- virtude conveniente à natureza do mundo,
tos rituais como anéis ou talismãs, corpos e misturaram isso: pois não podiam fazer
humanos, animais, plantas etc.), mas se almas, evocando [então] as almas dos dai-
mones ou dos anjos,[22] as impuseram em
instalam lá, animando as imagens e sím- imagens sagradas e divinos mistérios, atra-
bolos. O ba de uma divindade, i.e. a mani- vés dos quais os ídolos poderiam ter poder
festação de seu poder noético e vivificante, tanto para fazer o bem quanto para fazer o
mal. Pois teu avô, Asclépio, o primeiro in-
em certa medida tanto vivifica os próprios ventor da medicina, a quem um templo foi
vetores de manifestação[20] dos daimones consagrado no Monte Líbio perto da costa
que habitam as zonas de poder terrestres dos crocodilos, no qual jaz o homem mun-
dano,[23] isto é, o corpo, pois o resto, ou me-
construídas, quanto une esses daimones às
estátuas do culto, as barcas processionais, [21] Também conhecido como Asclépio latino.
os santuários, relevos nas paredes, textos [22] [N.T.] o teurgo hermetista não fabrica uma alma, quer dizer,
não produz um espírito artificial. Ao invés disso, ele convoca um
sagrados, o templo ou o túmulo (considera-
daimon do reino da geração, espírito de morto ou encantado da
do semelhante a um templo). No Logos Te- natureza, uma inteligência terrestre, para morar na zona de poder
construída e dedicada a divindade, assumindo sua identidade,
[20] São três os vetores de força que, segundo Jâmblico, configu-
sendo, a partir dali representante terrestre da divindade.
ram a estrutura de manifestação dos deuses, daimones, heróis e
almas: ousia (essência), dumanis (poder) e energeia (atividade). [23] [N.T.] i.e. o corpo morto do defunto jaz jazida no templo.

82 Edição 11
lhor, o todo, se o homem é inteiro em senti-
do de vida, retornou ao céu, e ainda agora No mesmo princípio, então, o mundo como
oferece auxílio aos homens enfermos pelo um todo, espacialmente dividido como é,
seu próprio poder divino,[24] o que costu- traz a divisão em si mesmo da luz única in-
mava oferecer anteriormente pela arte da divisível dos deuses (to hen kai ameriston
medicina. Hermes, cujo nome ancestral é ton theon phos). Esta luz é uma e a mesma
meu, não está ele, estando presente em sua em sua totalidade em todos os lugares,
pátria, ajudando e preservando todos os está presente indivisivelmente a todas as
mortais que vêm de todos os lugares? Mas coisas que são capazes de participar dela,
quanto a Isis e Osíris, sabemos quão propí- e preencheu tudo com seu poder perfeito;
cia ela é para conceder muitos benefícios, em virtude de sua superioridade causal ili-
e quão prejudicial ela pode ser se estiver mitada, completa todas as coisas dentro de
irada! Pois é fácil para os deuses terrenos si mesma e, enquanto permanece em todos
e mundanos ficarem irados, pois são feitos os lugares unida a si mesma, reúne extre-
e compostos pelos homens a partir de am- midades com pontos de partida. É, de fato,
bas as naturezas. Portanto, acontece que os na imitação dele que todo o céu e o cosmos
egípcios chamam esses animais sagrados e realiza sua revolução circular, está unido a
veneram suas almas em cada uma de suas si mesmo e lidera os elementos em sua dan-
cidades, das quais elas são consagradas, ça cíclica.[25]
como se fossem imagens vivas, de modo que
vivem sob suas leis e são chamadas por seus
nomes. Na Quimbanda, por outro lado, um dos
ofícios sacerdotais mais importantes de um
A estátua que serve como um receptá- táta ou mameto é a confecção dos corpos
culo adequado (hupodoche) para a irradia- físicos dos Gangas, o fundamento de exu, na
ção divina é análoga ao corpo humano puri- forma de estátuas animadas ou vasos de
ficado pelo poder do ritual de teurgia, fosse poder. Pensando na universalidade das téc-
iniciado no culto dos deuses ou dos mortos nicas de feitiçaria, será possível encontrar
deificados. A descida do ba de uma divin- congruências entre a teléstica do hermetis-
dade se assemelha à Forma Platônica que mo teúrgico greco-egípcio e a arte de con-
ativa, informa o útero passivo da matéria e, feccionar as moradas físicas dos Gangas na
consequentemente, estabelece o teatro das Quimbanda? Neste ensaio nós veremos que
formas articuladas e animadas. Assim, o ba existe uma congruência íntima entre a te-
de uma divindade desce do céu (ou melhor, léstica greco-egípcia de deificação da alma
aparece do indeterminismo atemporal, já e animação de deuses terrestres e as tecno-
que as teofanias a priori constituem toda logias mágicas propostas pela Quimbanda.
a realidade manifesta) em suas imagens de O processo de assentar a presença de uma
culto (sekhem) se unido a elas, quando efeti- divindade[26] na Quimbanda, seja em vaso de
vamente tornam-se zonas de poder terres- poder ou estátua, segue os mesmos princí-
tres. pios que encontramos na teurgia hermética
greco-egípcia sobre a qual nos debruçamos
Sekhem geralmente significa poder, mas aqui.
neste contexto designa um símbolo que re-
vela e transmite o poder dos deuses, i.e. um Esse ensaio será dividido em cinco par-
ícone sagrado. Como Jâmblico diz em De tes: Seção I: Os Oráculos Caldeus & a Teurgia;
Mysteriis (31:4): a luz dos deuses ilumina o Seção II: O Hermetismo Alexandrino; Seção
sujeito [ou objeto] transcendentalmente (kai III: Hermética & Teurgia; Seção IV: O Sacri-
ton theon para o helmpei choristos), já que fício como ferramenta soteriológica na Teur-
até mesmo a luz visível (ou a heliofania de gia e na Quimbanda; e Seção V: Telestikē na
Ra representada por seu Disco Brilhante, o Teurgia e na Quimbanda.
Aten) prossegue por todo o cosmos visível.
No De Mysteriis (31:9) Jâmblico diz: Táta Nganga Kamuxinzela
[25] Citado em Algis Uždavinys. Philosophy & Theurgy in Late
[24] [N.T.] i.e. o ba do morto Asclépio, divinizado, ficou no templo,
Antiquity. Angelico Press, 2014, pp. 85.
enquanto que o resto da constituição de sua alma retornou ao Uno
-Bem. É por meio do poder do ba, seja de uma divindade ou alma [26] Na Quimbanda, os Gangas (i.e. os Exus e as Pombagiras) são
deificada, que o daimon assumirá os vetores de manifestação da consideradas divindades. No sentido técnico do termo, são divin-
divindade ou alma glorificada. dades ou inteligências terrestres ou ctonianas.

83 Edição 11
O Fenômeno do Sincretismo no
Mundo Antigo e sua Noologia
Por Rafael Resende Daher

1. Espaço do Sagrado x A Ideia


de Religião

Em primeiro lugar, temos uma ideia de


«religião» formada por um desenvolvimen-
to histórico que é totalmente estranha à
mentalidade antiga - não só dos hebreus,
como também de todos os povos antigos.
A palavra «religião» não existe nos idio-
Introdução: O mas semitas antigos: no árabe clássico, no
hebraico bíblico, no aramaico e no acádio,
sincretismo e seu não há um termo semelhante.
O que aqueles povos detinham e era cha-
significado ao longo do mado de religião é a palavra «Din» (árabe
tempo ‫ني ِد‬, hebraico ‫ןיד‬, acádio dīnu, onde dīnu
gamru tinha o sentido de «ultimato», isto
é, «julgamento da divindade») que significa
Quando falamos em sincretismo atual- «julgamento», «modo de vida». Isto é, estes
mente, a definição mais geral é aquela de povos encaravam o corpus de suas revela-
elementos religiosos, sejam eles folclóricos ções como uma forma de julgar e viver o
ou doutrinários, se cruzam entre diferentes mundo ao redor dentro de suas respectivas
religiões. Verbi gratia, há uma ideia de que cosmovisões. Nesse sentido, faz-se mister
o Brasil é um país de fenômenos religiosos notar que suas escrituras são baseadas em:
sincréticos, pois vemos manifestações re-
ligiosas antigas (povos originários, africa- a) Eventos cósmicos e divinos
nos) e modernas (kardecismo, umbanda) b) Eventos locais e naturais (míticos ou
presentes entre cristãos, a religião majori- reais)
tária no país. c) Figuras heroicas (míticas, arquetípi-
Entretanto, muitas vezes este fenômeno cas ou reais)
é compreendido de uma forma limitada, isto
é, como uma forma da má-formação doutri- Isto pode ser visto nas Crônicas de
nária ou como mera consequência de forma- Beroso (Babilônia), no Tanakh (hebreus)
ções socioculturais. e nos resquícios dos escritos dos gregos e
Para entender melhor este fenômeno, é egípcios. A partir de tais elementos, os sá-
preciso analisar a noologia do fenômeno do bios e líderes das respectivas gerações de-
sagrado como um todo - apenas assim con- finiam um caminho para o «Din» da época.
seguiremos adentrar naquilo que transfor- Em nenhum desses escritos há uma «formu-
ma a demonologia em algo essencialmente lação doutrinária». Isto quer dizer que, se
sincrético.

84 Edição 11
você ler os livros mencionados acima, você do antigo «din» foi trocado pelo «espaço fe-
não achará uma formulação doutrinária chado» absolutamente separado da vida ci-
como a encontrada no Livro dos Espíritos vil e, assim, surge a ideia de religião como
ou no Catecismo da Igreja Católica. uma mera «aderência» a um corpus doutri-
Longe de representar uma limitação, nários totalmente separado do espaço da
isso nos leva a identificar algo que pode- vida «civil» e dos fenômenos naturais.
mos definir no conceito de «espaço aberto»
versus «espaço fechado». Isto é, os povos 2. O «espaço aberto» do Mundo
antigos viviam aquilo que tentamos defi-
Antigo
nir como «religião» dentro de um «espaço
aberto», onde a noesis da revelação formava
o «din» sem limitações, muito além de uma A quem lê a Bíblia com atenção, é possí-
definição doutrinária. vel perceber ali que o «din» não era de um
Tal fenômeno pode ser visto até mes- «espaço fechado». Verbi gratia:
mo dentro do Cristianismo, que começou
como uma manifestação espiritual baseada E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás aos
no testemunho (daí a palavra martírio, do filhos de Israel: O Senhor Deus de vossos
pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e
grego «testemunhar» μαρτύριο, isto é, os o Deus de Jacó, me enviou a vós; este é meu
que davam testemunho da fé com a própria nome eternamente, e este é meu memorial
vida) e na liderança dos bispos, na época de geração em geração. - Êxodo 3:15
O Deus de Abraão e o Deus de Naor, o Deus
muito pouco dedicados à formulação doutri- de seu pai, julgue entre nós. E jurou Jacó
nária, mas sim à apologia. Santo Agostinho, pelo temor de seu pai Isaque. - Gênesis 31:53
o Venerável Beda e Boécio foram os primei- Dizendo: Eu sou o Deus de teus pais, o Deus
de Abraão, e o Deus de Isaque, e o Deus de
ros a formular uma literatura doutrinária, Jacó. E Moisés, todo trêmulo, não ousava
enquanto os próprios Concílios Ecumênicos olhar. - Atos 7:32
da Igreja o faziam apenas diante das contro-
vérsias cristológicas que surgiam, pois os As três citações bíblicas, pela ordem:
Concílios eram dedicados apenas a respon-
der às heresias que surgiam. 1. Um hebreu a reconhecer seu Deus
Entretanto, o desenvolvimento de uma como uma divindade familiar e única.
«doutrina» dentro do Cristianismo abriu um 2. Um idólatra (Labão) a evocar o Deus
primeiro espaço para uma transformação dos hebreus.
na ideia de «religião» e, através da necessi- 3. Paulo de Tarso, no Novo Testamento,
dade de evangelizar os pagãos, um «espaço a evocar a mesma expressão.
fechado» começou a ser formado: começa
a surgir a separação entre os «espaços» da
manifestação do sagrado e o fechamento
deste espaço em «religião»: isto é, o proble-
ma não é mais entre qual manifestação é a
mais presente na ordem da realidade, mas
sim uma disputa retórica e apologética en-
tre a verdade e a mentira.
Mas o ponto chave e mais grave que hoje
fundamenta a nossa ideia de «religião» só
foi aparecer na Revolução Francesa.
A separação completa entre o “sagrado
e profano” ocorreu ali, primeiro de forma
simbólica, ao substituir o calendário dos
santos pelos dias cívicos (o dia da mulher,
dia dos profissionais), mas na noologia foi
ainda mais abrangente: o «espaço aberto»

85 Edição 11
O que escapa da leitura mais simples a várias entidades demoníacas que podem
quer dizer o seguinte: o Deus familiar e tu- estar associadas às influências babilônicas.
telar dos hebreus não estava excluído do Esses demônios frequentemente aparecem
espaço dos pagãos. Labão não foi o único a em obras como o Talmud, o Zohar e vários
reconhecer isso (o faraó egípcio reconheceu textos do Midrash. Eis alguns demônios
reiteradamente em Êxodo), de modo que a babilônicos notáveis que aparecem na tra-
expressão ainda fez parte do Novo Testa- dição judaica:
mento.
Este é o mesmo raciocínio que leva ao se- 1. Asmodeus (Ashmedai): Muitas vezes
guinte ponto: considerado o rei dos demônios, As-
modeus tem um papel proeminente
Porque, naquela noite, passarei pela terra no Livro de Tobias e em várias len-
do Egito e ferirei na terra do Egito todos os das talmúdicas.
primogênitos, desde os homens até aos ani-
mais; executarei juízo sobre todos os deu- 2. Lilith: Embora suas origens sejam
ses do Egito. - Êxodo 12:29 mais complexas e multifacetadas,
Lilith é frequentemente associada à
Isto é, a realidade do mundo hebraico, demonologia babilônica e é conside-
ao contrário do que o desenvolvimento dou- rada um demônio noturno no folclo-
trinário que interpreta seus textos de for- re judaico, que se acredita prejudicar
ma pretérita, era uma realidade henoteísta. bebês e mulheres grávidas.
Isto também pode ser observado na forma 3. Naamah: Às vezes retratada como
como o Midrash Rabbá, antiga interpre- um demônio, Naamah é mencionada
tação medieval da Torá através de lendas, em textos místicos judaicos como
explica do surgimento da chamada idolatria parceira de Samael e é associada à
(adoração a outros deuses): ainda antes de sedução e ao caos.
Noé, os homens adoravam ao Deus Único, 4. Agrat bat Mahlat: Uma demônio as-
mas sabiam que as forças dos planetas e da sociada à prostituição e feitiçaria.
natureza produziam fenômenos na terra e Ela é uma das quatro rainhas dos
na vida humana. Assim, passaram a prestar demônios de acordo com a tradição
serviço a essas forças e nasceram com isso cabalística.
os cultos aos planetas e outras forças da na- 5. Samael: Muitas vezes considerado
tureza. Isto é, as «religiões pagãs», de uma um arcanjo com aspectos demonía-
perspectiva da Torá, nasceram de um culto cos, Samael é uma figura complexa
real. no misticismo judaico, às vezes asso-
Esta noção de espaço aberto fica ainda ciado à morte e destruição.
mais clara neste ponto. Então, quando um 6. Ketev Meriri: Um espírito destrutivo
homem do tempo antigo, fosse ele judeu, ou demônio mencionado no Talmud
babilônico ou persa, se deparava com outro e em vários outros textos judaicos,
«deus» ou «demônio», a inserção daquele que se acredita trazer doenças e pes-
elemento em sua realidade não era um “sin- tilências.
cretismo” como vemos hoje, mas a própria 7. Mastema: Mencionado no Livro dos
entrada em um outro espaço sagrado, habi- Jubileus, Mastema é uma figura fre-
tado por outras manifestações demoníacas quentemente associada a Satanás,
ou divinas. considerado um testador da humani-
dade e um portador de adversidades.
3. Os Demônios no «Espaço 8. Rabisu: Demônios das sombras de-
Aberto» do Levante rivados da mitologia babilônica, que
se acredita estarem à espreita em
lugares escuros e causar danos aos
Entre os hebreus, particularmente nos humanos.
textos místicos e apócrifos, há referências

86 Edição 11
9. Lilin: Contrapartes masculinas de nocivos com os quais as pessoas devem ter
Lilith, esses demônios também são cuidado, especialmente durante certas ho-
considerados espíritos noturnos ou ras do dia e períodos específicos do ano. O
súcubos, frequentemente menciona- Talmud desaconselha andar sozinho em de-
dos na literatura mística judaica. terminados momentos por causa dos peri-
10. Zebub: Às vezes chamado de Belzebu gos representados por tais espíritos. Tanto
ou Ba’al Zebub, o nome desse demô- ele como sua «ordem» são associados a mo-
nio se traduz como «Senhor das Mos- mentos específicos de perigo, especialmen-
cas» e é frequentemente associado à te durante os meses de verão, que também é
sujeira e à decadência. ligado a Belzebu. Existem horários específi-
cos do dia em que esse demônio é considera-
Estas entidades refletem a natureza sin- do mais perigoso, normalmente por volta do
crética da demonologia judaica, misturando meio-dia. Os textos judaicos tradicionais re-
influências das tradições babilônicas, per- comendam várias medidas de proteção para
sas e outras antigas tradições do Levante. evitar a influência prejudicial de Ketev Me-
Aqui, verbi gratia, faz-se mister mencio- riri, tais como recitar orações específicas e
nar a figura de Ketev Meriri, um demônio evitar certos comportamentos durante pe-
mencionado no folclore e nos textos judai- ríodos de alto risco.
cos, particularmente no Talmud e em ou- Aqui, é impossível não correlacioná-lo
tros escritos místicos. O nome «Ketev Meri- com Pazuzu, associado ao vento sudoeste,
ri» se traduz em algo semelhante a «espírito que trazia fome, seca e gafanhotos. Num
destrutivo» ou «destruição amarga». Ele é mundo onde a sobrevivência era muito di-
considerado um espírito malévolo ou de- fícil e os males da colheita e as dificuldades
mônio responsável por causar destruição, da vida próxima ao deserto eram uma re-
doença e pestilência e seu nome às vezes é alidade de todos da região, não é de se es-
interpretado como «destruição amarga», pantar como os demônios de uma mitologia
enfatizando sua natureza prejudicial e des- fossem transportados para outras.
trutiva.
No Talmud (Pesachim 112b), Ketev Me- Conclusão
riri é mencionado como um dos espíritos

Uma das grandes dificuldades no estudo


sério sobre qualquer fenômeno religioso é a
forma de julgar o passado com olhar do pre-
sente ou, tão prejudicial quanto, julgar uma
realidade distante da nossa com a nossa in-
terpretação de mundo.
Quando falamos de sincretismo, deve-
mos nos lembrar que seu fenômeno é na-
tural e orgânico e, sem exageros, holístico.
Isto, conforme argumentamos neste artigo,
não é fruto de confusão, mas de uma cosmo-
visão sagrada.
O «espaço fechado» tende a reduzir to-
dos os fenômenos religiosos a um contexto
inferior à vida orgânica, o que é um precon-
ceito de análise que leva à ignorância extre-
ma sobre o fenômeno analisado.

Rafael Resende Daher

87 Edição 11
Táta Nganga Kimbanda Kamuxinzela
Feitiçaria Tradicional Brasileira

Sofrimento, Violência &


Sacrifício
Um dos temas que mais me fascinam é a artigos na Revista Nganga e livros que
arte do sacrifício. Ele está dentre as maté- pretendo publicar.
rias de estudo (e quando me refiro a estu- Poucos dias atrás eu recebi uma críti-
do incluo a prática, porque quem é feiticei- ca feita por um covarde. Covarde porque
ro de verdade sabe que o estudo faz parte partiu de um perfil fake no Instagram, cujo
condicional da prática) que mais ocupam dono muito provavelmente é um kimbanda
meu tempo. Um dos meus ofícios sacerdo- ou pai de santo frustrado, por não conse-
tais é o sacrifício animal para os Gangas guir oferecer o trabalho de qualidade que
da Quimbanda, òrìṣà, égúngún e outros es- nós oferecemos na Cova de Cipriano Feiti-
píritos como Hermes, Lúcifer, Beelzebuth e ceiro. A crítica me acusava de açougueiro,
Ashtaroth. No livro Ganga: a Quimbanda por causa da técnica de limpeza e extração
no Renascer da Magia, dediquei um capí- dos àṣẹ dos animais de quatro patas que
tulo introdutório a arte do sacrifício animal ficam pendurados durante o curso da ceri-
na perspectiva da Quimbanda, da cultura mônia. Outro ponto da crítica me acusava
yorùbá e no mundo greco-romano. Eu pre- de cometer violência contra os animais, que
tendo ampliar esse estudo no futuro para morriam com sofrimento. Como ele sabe?
Só de ver nossa publicidade? O indivíduo
que fala de algo que ele não sabe, não co-
nhece e não viveu, não é um homem, mas
um imbecil com uma opinião idiota: a ter-
ceira pessoa depois de ninguém! E hoje
uma seguidora me perguntou se em nossas
cerimônias os animais são sacrificados de
forma humanizada, ela explicou: sem sofri-
mento. Essas duas questões me levaram a
escrever essa breve nota sobre a violência e
o sofrimento no contexto do sacrifício reli-
gioso, abordando também a ideia de parti-
lha e de higiene.
Esse é um dos tópicos mais antigos entre
os acadêmicos que escrevem sobre o sacri-
fício pelo menos desde a década de 1920.[1]
Os estudos acadêmicos sobre o sacrifício a
partir dessa época em sua grande maioria
focaram em avaliar a necessidade da vio-

[1] Veja uma retrospectiva dos estudos acadêmicos sobre o sacri-


fício animal na introdução de Jennifer Wright Knust e Zsuzsanna
Várhelyi. Ancient Mediterranean Sacrifice. Oxford University
Press, 2011, pp. 3-31.

88 Edição 11
lência e do sofrimento do animal na catarse
da ansiedade de culpas de inúmeros tipos:
usar os ossos e a pele dos animais, elevar
seus crânios no momento do ritual em hon-
ra aos ancestrais, honrar todas as partes da
carcaça do animal para alimento, vestimen-
ta, remédios e magia, aliviava a ansiedade
da comunidade inteira, principalmente da
culpa por ter de caçar e matar os animais
pela sobrevivência de todos. E a partir des-
tes primeiros estudos, nasceram àqueles
relacionados a psicologia do sacrifício nas
mãos de Freud (1856-1939), que inferiu que
o sacrifício estaria conectado diretamente
a um tipo de neurose, enraizada na repres-
são de desejos incestuosos. Para Freud o sa-
crifício emulava a morte primordial do pai
-ancestral, então substituído pela vítima do
sacrifício, que era abatida e consumida por
seus filhos distantes.
Os acadêmicos desta linha de raciocínio
então concluíram que o sacrifício animal
era uma prática que havia começado no dualmente ele deixa o antigo exercício do
período paleolítico e servia, fundamental- sacrifício religioso por métodos mais higiê-
mente, para aliviar o estresse e a ansiedade nicos. Nessa abordagem eles dizem também
decorrentes de um estilo de vida violento.[2] que o sacrifício servia como um presente as
O homem matava o animal para não matar divindades, para que elas pudessem aju-
outros homens da comunidade. Dessa for- dar os homens em troca desses sacrifícios.
ma, através deste rito sacrifical, mantinha- E muito embora essa abordagem não seja
se ordem e coesão social. Nessa perspectiva boa, é exatamente isso: o homem primitivo
acadêmica sobre o tema, violência e sofri- imolou aos deuses porque descobriu que o
mento são as peças fundamentais pelas sacrifício era a maneira mais eficaz de se
quais o ritual de sacrifício opera seus re- comunicar com eles.[4]
sultados na vida e na própria estrutura do Na arte do sacrifício animal, a imolação
tecido social.[3] ritual depende de alguns cuidados, passos
O nosso grande problema atual é olhar que devem ser executados antes do mo-
para as antigas culturas com as lentes do mento sacrifical. J.O. Awolalu[5] enumera
humanismo moderno! Pior que isso, visto muitos dos cuidados pertinentes a cada
como a prática religiosa primitiva de um tipo de animal: aves, caprinos, suínos, bo-
estágio primitivo na vida humana, alguns vinos etc. É interessante notar que muitos
têm o classificado como dispensável na destes cuidados – como venho demonstran-
contemporaneidade. Nessa linha de pensa- do em textos anteriores – foram preserva-
mento, acadêmicos têm argumentado que, dos e aperfeiçoados pela Quimbanda. Esses
na medida em que o homem se civiliza, gra- cuidados envolvem consagrações, purifi-
[2] Falo mais sobre esse tema no texto Telestikē, onde estabeleço cações e encantamentos que prepararão
comparações entre a arte teúrgica grega e hermética de consa-
gração de estátuas animadas e a arte de se construir as moradas [4] Uma das melhores abordagens sobre o tema na cultura yorùbá,
de poder dos Gangas na Quimbanda. Em breve na Revista Nganga que tratará do sacrifício como inserção, participação e atuação na
e no livro Kalunga: Teurgia & Cabalá Crioula. ordem do Cosmos, veja Yẹmí Ẹlẹbuobọn. The Healing Power of
Sacrifice. Athelia Henrietia Press, Inc., 2000.
[3] Veja um resumo interessante em C.A. Faraone e F.S. Naiden.
Greek and Roman Animal Sacrifice: Ancient Victims, Modern [5] J.O. Awolalu. Yoruba Beliefs and Sacrifical Rites. Long-
Observers. Cambridge University Press, pp. 13-31. man, 1979, pp. 371-426.

89 Edição 11
a vida deixa o corpo, o animal sofre. É im-
portante que se entenda que morte e sofri-
mento caminham juntos; é importante que
se entenda que em um culto de morte como
a Quimbanda, exige-se que o adepto apren-
da a lidar com a dor e com o sofrimento da
existência corporificada. Assim como ocor-
re o sofrimento inerente quando a alma se
desconecta do corpo no momento da morte,
qualquer tipo de desprendimento que ne-
cessite ocorrer na vida causará dor e sofri-
mento. O sofrimento é uma lei imperial da
experiência corporificada: nós entramos e
saímos deste mundo sofrendo! Um bordão
que sempre uso: se no momento do sacrifício
algo dentro de você não morre também, en-
tão você não entendeu essa arte direito, por-
que toda morte faz sofrer.
Na Quimbanda (e também nas culturas
tradicionais africanas) nós aprendemos
que absolutamente tudo no animal imolado
possui àṣẹ (força de vida). Por esse motivo
nós utilizamos todas as partes dos animais
sacrificados. A técnica de pendurá-los, que
inclusive é citada por J.O. Awolalu em seu
livro, serve para facilitar a retirada desses
àṣẹ, principalmente àqueles que serão con-
sumidos como alimento compartilhado en-
tre nós e os Gangas. Fundamentalmente, a
o corpo e a alma do animal a ser imolado. técnica está conectada a higiene requerida
Imediatamente antes da imolação, o animal para que não haja nenhum tipo de intoxica-
é acariciado, apaziguado e encantado, para ção alimentar nos adeptos do culto e seus
que esteja voluntariamente entregue no parentes, porque esse àṣẹ pode ser levado
momento da imolação. Isso, no entanto, não para casa e consumido pelos familiares.
evita sua dor ou sofrimento. Muitos chegam Um dos fundamentos conectados ao sa-
a enebriar o animal para evitar seu sofri- crifício, é a alimentação da comunidade.
mento, mas nós repudiamos esse tipo de Desde tempos imemoriais na cultura greco
ação, porque não é auspicioso que o animal -romana e em inúmeras culturas aboríge-
esteja enebriado antes do sacrifício. nes até os dias atuais, o alimento sacrifical
No momento da imolação, quando a lâ- é distribuído para todos os integrantes da
mina da faca corta a pele do pescoço do comunidade, para que todos, em maior ou
animal, imediatamente uma torrente de menor grau, comunguem com os próprios
adrenalina é acionada em seu cérebro, e é deuses e ancestrais. Porque ao ingerir um
por isso que suas pupilas se dilatam. Nes- alimento consagrado a uma deidade, tra-
se processo o animal sofre, menor que seja z-se a força dessa deidade para dentro do
pelas precauções que tomamos. Além dis- corpo, enriquecendo as potências da alma.
so, quando a vida se desloca de seu corpo,
iniciam-se os espasmos, típicos da maio- Táta Nganga Kimbanda
ria das mortes por motivos outros. Nesse
processo de espasmos corporais, quando
Kamuxinzela

90 Edição 11
Alguns Exus e suas
apresentações dentro do “Livro
Das Sombras De Exu”
Por Tata Zelawapanzu

Recentemente lancei o “Livro das


Sombras de Exu”, que dentro vários
objetivos, tem por missão descorti-
nar a minha visão sobre essas enti-
dades, trago a seguir o prefácio da
obra explicando a minha motivação
para escrever esse livro, que está
disponível para venda no Clube de
Autores.

“Eu sempre quis escrever um livro so-


bre Exu e de certa forma já o fiz, com
a edição chamada Exuzada. Entretan-
to, ela trouxe um viés bem diferente,
com conotação mais didática e lúdica,
sem se aprofundar na figura de Exu ou
em sua complexidade. Aliás, justamen-
te essa complexidade foi que me fez
temer escrever algo sobre Exu, tendo
alguns rascunhos feitos, mas sempre
deixados incompletos.
Essa minha reticência em lançar algo
nesse sentido sempre partiu pela mi-
nha mania perfeccionista de trazer Arte capa: Bebeto Daroz
uma informação gabaritada, mas sem
revelar o que é secreto em culto. Mas,
devido ao cenário que percebo nos di- debate que podem acrescentar ao co-
versos ensaios feitos no blog Perdido nhecimento dos leitores. Quem acom-
em Pensamentos sobre essa temáti- panha minhas outras obras sabe como
ca, era preciso amadurecer essa ideia sou minucioso muitas vezes, então não
para ajudar outras pessoas que tam- espere diferente no livro.
bém se sentem perdidas quando fala- Contudo, já ressalto algo como um
mos sobre Exu. alerta em nossas primeiras páginas:
Eu, como um mestre de Quimbanda, “Existe muito que está escrito neste
aliado à minha outorga sacerdotal livro, que para entender e praticar, é
dentro da Umbanda, não me julgo a preciso ter as chaves de acesso, os ar-
última palavra sobre essas entidades. canos de exu, que só são passados de
Mas, por trabalhar há muito tempo forma iniciática”. Além disto, muito do
com elas, percebo que tenho como tra- que está escrito neste livro guarda e
zer de maneira didática tópicos para oculta o que não está escrito, ou o que
está nas entrelinhas, sendo visível só

91 Edição 11
para aqueles que obtêm esse conheci-
mento e essa outorga espiritual.
Espero que esta leitura desconstrua
mitos, reforce certezas, mas que acima
de tudo lhe permita discernir, duvidar,
questionar e engrandecer o seu pró-
prio pensamento. Exu é força dinâmi-
ca na vida e ele está sempre em movi-
mento, por isso é preciso entender que
nenhuma outra entidade ou divindade
se atualiza e se torna tão contemporâ-
nea quanto Exu.
Que os olhos de ver se abram, e que os
ouvidos para ouvir estejam prontos,
pois aqui abrimos as portas do Abis-
mo.”

Dentre os capítulos, dois deles, te-


nho certeza de que chamarão grande
atenção: O Grimorium Negro de Exu charutos de boa qualidade, com capa
e o Grimorium Vermelho de Pomba- clara.
gira, que são fichas organizadas so- Oferenda: Padê de farinha de
bre as características das falanges mandioca misturada com marafo
dos Exus, separados dentro das tra- branco ou amarelo, sete bistecas de
porco e sete bifes bovinos selados no
dicionais sete linhas (e não sete rei-
nos). Quis listar como nos grimóriosazeite de dendê. Coloca-se batatas
medievais, com suas atribuições e inglesas assadas cortadas em rode-
oferendas, como um grande catálogo las em cima da farofa e rega-se tudo
enciclopédico para referência. A se-com azeite de dendê. Acrescente
guir eu trago alguns exus que foram também a firmeza, sendo sete o nú-
listados nesse livro mero chave: sete copos com whisky,
marafo amarelo ou branco, sete cha-
EXU TRANCA-RUAS rutos, e sete velas pretas-e-verme-
Demônio Associado: Tarchima- lhas ou brancas-e-pretas.
che
Palavras-Chave: Abre e fecha ca- EXU PEMBA
minhos de todos os tipos, conforme Demônio Associado: Brulefer
sua regência – Almas, Sete Encru- Palavras-Chave: Saúde Pulmo-
zilhadas, da Calunga, das Matas, de nar, Amores Ocultos, Traições, Feiti-
Embaré etc. ços Escritos, Questões de Ordem Se-
Positivo: Caminhos abertos, su- xual, Conquista Amorosa.
cesso em determinado objetivo. Positivo: Pode unir as pessoas,
Negativo: Caminhos fechados, trazer um amor para a vida das pes-
falta de sucesso nos objetivos. soas, criar contratos entre elas.
Firmeza: Vela preta-e-vermelha, Negativo: Pode desunir pessoas,
Marafo Amarelo ou Whisky esti- separar casais, promover adultério e
lo Tennessee como o Jack Daniels, e proliferação de doenças venéreas.

92 Edição 11
Firmeza: Velas pretas-e-brancas,
marafo branco e charutos de boa
qualidade.
Oferenda: Padê composto de fari-
nha de mandioca e farinha de milho
misturadas, junto com azeite de den-
dê. Em cima da oferenda acrescenta-
se raspas de coco e frutas cítricas,
e sete pembas de cores diversas.
Acrescente também a firmeza, sendo
sete o número chave: sete copos com
marafo branco, sete charutos e sete
velas pretas-e-brancas.
Firmeza: Vela preta-e-vermelha
ou preta-e-branca, marafo branco e
charutos de qualidade.
Oferenda: Padê composto de fa-
rinha de mandioca misturada com
cachaça e azeite de dendê; cebolas
e laranjas em rodelas por cima do
padê. Pode-se oferendar um frango
inteiro assado e recheado com fari-
nha de mandioca, pipocas, pimenta,
cebola roxa e laranjas cortadas em
meia-lua, temperando com sal. Jogue
por cima do frango já assado, azei-
te de dendê e pétalas de crisântemo
branco. Acrescente também a firme-
za, sendo sete o número chave: sete
EXU 7 CRUZES copos com marafo branco, sete cha-
Demônio Associado: Merifild rutos e sete velas pretas-e-brancas,
Palavras-Chave: Morte, Ameaça ou outras que o Exu aceite.
de Morte, Passagens, Limites, Por-
tas, Cruzeiros, Almas Desencarna-
EXU VENTANIA
das sem Descanso.
Demônio Associado: Bechard
Positivo: Controlam e conduzem
Palavras-Chave: Efeitos Climáti-
almas que tiveram vida ou morte
cos, Tempestades, Chuvas, Furacões,
violentas, espíritos selvagens.
Movimentação, Medo, Histeria, Fo-
Negativo: Pode ocasionar per-
bia.
turbação espiritual com espíritos
Positivo: Capaz de alterar o clima
violentos, homicidas e selvagens na
de um local e provocar chuvas. Con-
vida das pessoas.
segue afastar e movimentar situa-

93 Edição 11
ções e pessoas. Retira a inércia e o
medo das pessoas.
Negativo: Pode causar medo pa-
tológico, histeria e fobias. Pode ser
manipulado para criar vozes ilusó-
rias que irão deixar o alvo louco.
Firmeza: Vela preta-e-vermelha
ou amarela, marafo branco, às vezes
com água de coco dentro de copos de
bambu, e charutos que exalem bas-
tante fumaça.

Positivo: Muito utilizada para


resolver dificuldades financeiras e
promover limpezas espirituais.
Negativo: Faz terminar tudo que
não tem valor, encerra relaciona-
mentos, pode criar pobreza e dificul-
dades na vida.
Firmeza: Vela vermelha-e-pre-
ta, cachaça com canela (canelinha) e
charutos de boa qualidade.
Oferenda: Padê composto de fa-
rinha de mandioca misturada com
cachaça de canela; decorar com 9 ca-
Oferenda: Padê composto de fa-
nelas em pau, cebola roxa em rodelas
rinha de milho com azeite de dendê e
por cima, tudo regado com dendê.
alguns tipos de frutas, principalmen-
Acrescente também a firmeza, sendo
te as que nascem no alto das árvores.
sete o número chave: sete copos de
Acrescente também a firmeza, sendo
cachaça com canela, sete charutos
sete o número chave: sete copos com
e sete velas vermelhas-e-pretas, ou
marafo branco, sete charutos e sete
outras que a Pombagira aceite.
velas pretas-e-vermelhas, ou outras
que o Exu aceite.
Tata Nganga Zelawapanzu
Templo de Quimbanda Cova de Tiriri
POMBAGIRA MARIA MU-
instagram.com/covadetiriri
LAMBO
Palavras-Chave: Vícios, Dificul-
dades Financeiras, Dificuldades na
Vida, Movimento, Limpeza Espiritu-
al.

94 Edição 11
Idealizadores

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