Paisagens Culturais Da Vinha - Vários Autores
Paisagens Culturais Da Vinha - Vários Autores
Paisagens Culturais Da Vinha - Vários Autores
CULTURAIS DA VINHA
IDENTIDADES, DESAFIOS
E OPORTUNIDADES
XX ANIVERSÁRIO DA CLASSIFICAÇÃO
DO ALTO DOURO VINHATEIRO COMO
PATRIMÓNIO MUNDIAL
COORD.
GASPAR MARTINS PEREIRA
MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE
CARLA SEQUEIRA
1
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
© 2023 Autores
Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória
Via Panorâmica, s/n | 4150‑564 Porto | www.citcem.org | [email protected]
Este trabalho é sujeito a double-blind peer review.
Referees: Álvaro Domingues, Amândio Barros, Artur Cristóvão, Carlota Santos, Fátima Nunes, Fernando Bianchi
de Aguiar, Gaspar Martins Pereira, Giuliana Biagioli, João Luís Sequeira, João Rebelo, Mário Barroca,
Norberta Amorim, Otília Lage, Paulino da Costa, Phillipe Baumert.
Esta é uma obra em Acesso Aberto, disponibilizada online (https://ler.letras.up.pt/site/default.
aspx?qry=id024id1865&sum=sim&n0=Edi%C3%A7%C3%B5es%20do%20CITCEM&n1=Paisagens%20
Culturais%20da%20Vinha) e licenciada segundo uma licença Creative Commons de Atribuição Sem
Derivações 4.0 Internacional (CC BY 4.0).
eISBN: 978-989-8970-51-0
DOI: https://doi.org/10.21747/978-989-8970-51-0/pai
PEREIRA, Gaspar Martins; LAGE, Maria Otília Pereira; SEQUEIRA, Carla, coord. (2023). Paisagens Culturais da
Vinha: Identidades, Desafios e Oportunidades. XX Aniversário da Classificação do Alto Douro Vinhateiro
como Património Mundial. Porto: CITCEM. 368 p.
Porto, junho de 2023 (1.ª edição)
Paginação: João Candeias
Este trabalho foi elaborado no quadro das atividades do grupo de investigação «Valores de Transação/Valores em
Transição», e é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito
do projeto UIDB/04059/2020.
UIDB/04059/2020
2
SUMÁRIO
NOTA DE ABERTURA 5
Gaspar Martins Pereira, Maria Otília Pereira Lage, Carla Sequeira
I. A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM 9
A vinha, o vinho e o Douro: uma história de romanos 11
Pedro Pereira
O Douro vinhateiro para além das margens. A Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade
de Coimbra (1870-1882) 23
Ana Margarida Dias da Silva, M. Teresa Gonçalves
Inovação na vitivinicultura duriense na mudança do século XIX para o século XX — José Teixeira Rebelo
Júnior e o espumante de Lamego 47
Isilda Monteiro, Conceição Meireles Pereira
«Xisto, meteorologia, Vitis vinifera, talento e mãos»: a representação da paisagem duriense em Douro:
Pizzicato e Chula, de A. M. Pires Cabral 159
Isabel Maria Fernandes Alves
3
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
«I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato»: an italian example of UNESCO
cultural landscape based on the valorisation of traditional terroirs 249
Alessandra Renzulli
L’effet du classement UNESCO sur l’offre œnotouristique des vignobles européens 311
Sophie Lignon-Darmaillac
4
NOTA DE ABERTURA*
GASPAR MARTINS PEREIRA**
MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE***
CARLA SEQUEIRA****
No mapa mundial das paisagens vitícolas classificadas pela UNESCO como Património
da Humanidade, o Alto Douro Vinhateiro exibe uma notável singularidade e, simulta‑
neamente, partilha potencialidades, problemas e desafios comuns com outras regiões.
Daí que, por ocasião do vigésimo aniversário da sua classificação, o CITCEM — Centro
de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, tenha decidido organizar, com a colaboração de diversas
entidades, um Simpósio Europeu sob o tema Paisagens Culturais da Vinha: Identidades,
Desafios e Oportunidades, reunindo investigadores de diversas universidades portu
guesas e estrangeiras.
Apesar das circunstâncias adversas que marcaram a organização deste Simpósio
Europeu, ainda no ambiente de incerteza dos tempos de pandemia, foi possível
realizar catorze sessões temáticas e debates, que decorreram na Faculdade de Letras
da Universidade do Porto e na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila
Real, em 9 e 10 de Dezembro de 2021, reunindo mais de setenta participantes, que
apresentaram meia centena de comunicações em torno de cinco painéis temáticos:
A construção da paisagem; Ruralidade e desenvolvimento económico-social; Represen
tações literárias e artísticas; Patrimónios e desenvolvimento cultural; Gestão e salvaguarda
da paisagem classificada. Houve ainda lugar a uma sessão plenária de encerramento,
Alto Douro Vinhateiro Património Mundial, desafios e perspectivas para a próxima
década, presidida por Fernando Bianchi de Aguiar (coordenador da candidatura do
Alto Douro a Património Mundial), que introduziu a temática e moderou o debate,
com intervenções de Maria Helena Teles (chefe de Estrutura Sub-regional de Vila Real da
CCDR-N/Gabinete Técnico da Missão Douro), António Marquez Filipe (presidente
da Liga dos Amigos do Douro Património Mundial — LADPM) e Ana Paula Amen
doeira (vice-presidente do ICOMOS, Portugal), encerrando com comentários de
Giuliana Biagioli (professora da Universidade de Pisa).
5
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
1
Apenas catorze paisagens culturais vinhateiras foram reconhecidas pela UNESCO como Património Mundial,
entre 1997 e 2015, todas localizadas em países europeus: Cinque Terre, Itália, 1997; Saint Émilion, França, 1999;
Vale do Loire, França, 2000; Wachau, Áustria, 2000; Fertö-Neusiedler See, Áustria/Hungria, 2001; Alto Douro Vinhateiro,
Portugal, 2001; Tokaj, Hungria, 2002; Vale do Reno/Upper Midlle Rhine Valley, Alemanha, 2002; Val d’Orcia, Itália, 2004;
Pico, Portugal, 2004; Lavaux, Suíça/Piemonte, 2007: Langhe-Roero e Monferrato, Itália, 2014; Borgonha, França, 2015;
Champanhe, França, 2015.
2
Como aconteceu, anteriormente, nos três workshops que se realizaram em 2017, 2018 e 2019, no Porto e no Pico,
no âmbito do projecto do CITCEM — Douro e Pico: Paisagens culturais vitivinícolas históricas Património Mundial.
Estudo e valorização do património histórico e cultural —, que decorreu entre 2017 e 2021 e cuja fase final coincidiu
também com a organização deste Simpósio. As actas desses workshops estão disponíveis online em <https://douro-e
-pico-paisagens-culturais-patrimonio-mundia.mozello.com/publicacoes/>.
6
NOTA DE ABERTURA
7
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
8
I
A CONSTRUÇÃO
DA PAISAGEM
9
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
10
A VINHA, O VINHO E O DOURO:
UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
PEDRO PEREIRA*
Resumo: A vinha e o vinho são sinónimos do Vale do Douro. Além de ser a principal actividade econó-
mica da região, o ciclo da vinha marca e pauta a vida dos habitantes da região. A história da vinha no
Vale do Douro começa cedo. Desde a Pré-História existem dados que apontam para, pelo menos,
a recolecção e consumo do fruto da vitis vinifera. No entanto, os primeiros dados para falarmos de uma
verdadeira produção e consumo de vinho provêm do período romano, com a instalação de explorações
agrícolas pelo Vale do Douro e a construção dos primeiros lagares. Nas últimas décadas, têm vindo a ser
intervencionadas dezenas de estruturas de produção de vinho e armazenamento na região, tal como
têm sido estudados os recipientes de armazenagem e transporte de vinho, elementos que marcam o
início efectivo da saga da vitivinicultura duriense.
Palavras‑chave: vitivinicultura; romanização; vale do Douro.
Abstract: Wine and vineyards are today paramount to the Douro Valley. Wine is the main economic
activity in the region and its cycle marks and regulates the life of all who live in the region. The history of
wine in the Douro Valley has had an early beginning. Since pre-historical times that there is data that
indicates, at least, the recollection and consumption of the fruits of vitis vinifera. Nevertheless, the start
of a true production and consumption of wine appear to have been during the Roman period, with the
construction of farms and the first wine presses. For the last few decades, several wine production and
storage areas have been excavated in the region and storage and transport vessels have been studied,
elements that effectively mark the beginning of the Douro wine saga.
Keywords: wine production; romanisation; Douro valley.
* Arqueólogo. Doutor em História, Arqueologia e Línguas Antigas pela Universidade Lumière — Lyon II, França.
Investigador Integrado do CITCEM. O autor não segue o Acordo Ortográfico de 1990.
1
SEVERO, 1905-1908.
11
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
2
SEVERO, 1903.
3
TEIXEIRA, 1939.
4
CORTEZ, 1951.
12
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
5
PEREIRA, 2012.
6
COIXÃO, 2002, 2017.
7
ALMEIDA, 1999, 2006.
13
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Existem, todavia, duas questões essenciais ligadas ao estudo deste tipo de estru‑
turas cuja resposta é tanto ilusória como variável. A primeira tem que ver com a sua
cronologia. Embora sejam conhecidos lagares escavados na rocha de período romano,
uma vez que são identificáveis materiais deste período nas zonas limítrofes e, em alguns
casos, os lagares encontram-se enquadrados em sítios arqueológicos mais amplos que
permitem datar, pelo menos, o primeiro momento de construção, como sucede com
Rumansil I ou a lagareta de Vale do Mouro8, a maior parte das estruturas encontra-se
em zonas isoladas e sem elementos que permitam a sua caracterização. Paralelamente,
muitos destes lagares têm uma cronologia utilitária extremamente ampla: há notícias de
lagares escavados na rocha utilizados no século XX e cuja construção é imemorial.
A existência de material, por exemplo, do século XVI, associado a um lagar esca‑
vado na rocha poderá apenas significar que este lagar esteve funcional nesse momento,
embora possa ser anterior e com continuada utilização posteriormente.
A segunda grande questão ligada ao estudo dos lagares rupestres prende-se com
a sua localização. Na maioria dos casos, os lagares rupestres encontram-se em zonas
isoladas, sem outras estruturas associadas nem áreas de armazenamento e estágio.
Existem várias teorias para tentar explicar o porquê desta situação: para facilitar a
produção directa e apenas transportar o mosto ou evitar pagamentos de impostos ou
dízimas são duas das explicações mais citadas9. Porém, é necessário analisar caso a caso
e, muitas vezes, torna-se extremamente complexo tentar explicar a realidade de cada
uma das estruturas produtivas.
No Alto Douro Vinhateiro, os lagares escavados na rocha são um tema de interpre‑
tação difícil. Sabemos também que, no entanto, alguns, ainda que não todos, terão sido
construídos no período clássico.
8
PEREIRA, 2017.
9
PEÑA CERVANTES, 2019.
14
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
o sítio foi utilizado enquanto exploração agrícola entre, pelo menos, os séculos II e IV
da nossa era.
A ocupação romana do Prazo compreende uma série de estruturas, entre as quais
um edifício sub-rectangular, com um conjunto de três tanques e um pequeno pavimento
em opus signinum num extremo, quatro colunatas rectangulares com espaçamentos
regulares e, finalmente, uma entrada. Este edifício, a cella vinaria do Prazo, foi ocupado
durante a Alta Idade Média10, sofrendo algumas alterações. No entanto, os elementos
cruciais para a produção de vinho conservaram-se. O armazenamento e o envelheci‑
mento do vinho seriam, certamente, realizados em cupae ou barris, tal como sucede
noutros sítios com morfologias similares, como Torre de Palma, Monforte11.
10
COIXÃO, 1995.
11
PEREIRA, 2017.
15
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Intervencionado por António de Sá Coixão e, mais tarde, por Tony Silvino, o sítio de
Rumansil I divide-se em três conjuntos de edifícios, cercados por um pequeno muro em
pedra. O primeiro, de planta quadrangular e duas divisões internas, possui um pequeno
espaço de forja e terá certamente servido de local de habitação. Imediatamente a este,
encontram-se duas estruturas de planta circular, de dimensões distintas. Estas duas estru
turas são fornos cerâmicos, onde, no de menor dimensão, seria produzida cerâmica uti
litária e de mesa e, no de maiores dimensões, dolia, talhas para, pelo menos, serem utili
zadas como recipientes para vinho13. Finalmente, a norte, desenvolve-se a maior estrutura
do conjunto, sub-rectangular, construída em torno de um aglomerado rochoso. O aglo‑
merado foi escavado de forma a receber os vários tanques que compunham o lagar e a
area de prensagem, enquanto as duas divisões imediatamente mais próximas da estrutura
12
SILVINO, COIXÃO, PEREIRA, 2021.
13
SILVINO, COIXÃO, MAZZA, 2003; SILVINO, CAIXÃO, PEREIRA, 2021.
16
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
terão sido utilizadas como cave. As outras duas divisões são de natureza incerta, embora
Plínio aconselhe que um trabalhador viva próximo da cella vinaria de modo a poder
controlar as fermentações14. Poderão também ter tido outras funções, como suporte para
os trabalhos de olaria ou mesmo o armazenamento de peças terminadas15.
14
PEREIRA, 2017.
15
SILVINO, COIXÃO, PEREIRA, 2020.
17
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
16
LÉGIER-NICOLLE, 2021.
17
PEREIRA, 2018.
18
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
18
NICOT, 2019.
19
SILVINO, PEREIRA, 2017.
20
TCHERNIA, 1986; PEREIRA, 2017.
21
PEREIRA, MORAIS, 2015.
22
MARLIÈRE, 2002.
23
PEREIRA, 2017.
19
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fig. 6. Transporte de vinho em odres. Fonte: desenho de William Prater, 1872 (publicado em VIZETELLY, 1880)
Entre os outros tipos de recipientes que não referimos anteriormente e que, com
toda a certeza, seriam utilizados para o transporte de vinho são o uter e o culleus, ou os
odres. Composto, tal como os barris ou tonéis, por materiais totalmente perecíveis,
o uter constitui o que hoje chamaríamos de odre, com uma dimensão de trinta litros ou
menos, enquanto o culleus consiste numa medida de cerca de 200 a 215 litros, sendo,
normalmente, um recipiente preparado a partir da pele de um bovídeo.
Os recipientes de tipo odre são utilizados extensivamente para o transporte de
líquidos até ao século XX no território português e durante a Antiguidade. Infelizmente,
vestígios deste tipo de material apenas se conservam em contextos muito específicos,
não sendo conhecidos até ao momento vestígios, ainda que seja recorrente a sua repre‑
sentação em mosaicos, peças de cerâmica e outros24.
No Alto Douro Vinhateiro, infelizmente, apenas podemos efectuar comparações
com estes recipientes, extremamente efémeros. No entanto, a circulação do vinho para
os mercados de consumo, ainda que a uma escala microrregional, seria certamente feita
com recurso maioritário a cupae e culleii.
24
PEREIRA, 2022.
20
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
BIBLIOGRAFIA
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21
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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22
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS
MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA
DO JARDIM BOTÂNICO DA UNIVERSIDADE
DE COIMBRA (1870-1882)
ANA MARGARIDA DIAS DA SILVA*
M. TERESA GONÇALVES**
Resumo: Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (1809-1884), 2.º Visconde de Vila Maior (1861), perito espe-
cializado no Douro vinhateiro, com obra publicada sobre viticultura, ampelografia e enologia, aproveitou
a sua nomeação governamental como reitor da Universidade de Coimbra (1869-1884) para criar uma
escola (coleção) ampelográfica no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. Logo em 1870,
participou na escolha do terreno para instalar as castas de videiras cultivadas no país e em regiões viní-
colas estrangeiras. O estudo metódico de descrição e comparação permitiria a determinação das sino
nímias das castas, a preservação das castas nacionais e o estabelecimento de uma coleção de videiras
para cultivar no país. Além da coleção ampelográfica, seriam realizados estudos de enologia, com um
pequeno lagar e uma adega a estabelecerem os modelos para ensaios sobre métodos de vinificação.
O ataque da filoxera à «vinha das vinhas», como foi apelidada a Escola Ampelográfica do Jardim
Botânico, acabou por determinar o seu fim, com o arranque das cepas no inverno de 1882.
Palavras‑chave: ampelografia; viticultura; Visconde de Vila Maior; Júlio Augusto Henriques; arquivo
pessoal.
Abstract: Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (1809-1884), 2nd Viscount of Vila Maior (1861), a specialist
in the Douro winegrowing region with published works on viticulture, ampelography and oenology,
took advantage of his government appointment as Rector of the University of Coimbra (1869-1884) to
set up an ampelographic collection in the Botanic Garden of the University of Coimbra. As early as 1870,
he took part in the selection of the land on which to plant all the grape varieties grown in the country
and in foreign wine-growing regions. The grapevine varieties methodical study, description and compar-
ison would allow determining their synonymy, the preservation of the national varieties and the estab-
lishment of a grapevine collection to cultivate in the country. In addition to the ampelographic collec-
tion, oenological studies would be carried out, establishing a small wine press and a model winery for
tests on winemaking methods and wine conservation. The phylloxera attack on the «vineyard of vine-
yards», as the Ampelographic Collection of the Botanic Garden was nicknamed, brought it to an end,
with the vines being uprooted in the winter of 1882.
Keywords: ampelography; viticulture; Viscount of Vila Maior; Júlio Augusto Henriques; personal archive.
* Arquivista no Arquivo do Departamento das Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, Mestre em Ciência da
Informação e Documentação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e Doutora
em Ciência da Informação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. CHSC (UC)/CITCEM.
** Professora auxiliar no Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, e coordenadora do Arquivo de
Botânica da Universidade de Coimbra. Centro de Ecologia Funcional — Universidade de Coimbra.
23
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
INTRODUÇÃO
1
VILA MAIOR, 1865-1869: 1.
2
Por alvará de 10 de setembro de 1756, assinado pelo rei D. José e pelo secretário de Estado, Sebastião José de Carvalho e
Melo, foi instituída a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, que tinha como objetivo, entre outros,
cadastrar as costas setentrional e meridional do rio Douro, de forma a demarcar todo o território que produz vinhos
de carregação (PEREIRA, 1989: 311). A referida companhia visava, igualmente, apoiar o desenvolvimento industrial
da região e lutar contra a predominância dos mercadores ingleses no comércio do vinho do Porto (MATA, VALÉRIO,
2003: 122).
3
PEREIRA, 1996a: 179.
4
MARTINS, 2005: 232.
5
GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020: 168.
24
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
de 1788. Outros registos foram publicados, mas só em 1865 é que Júlio Máximo de
Oliveira Pimentel, Visconde de Vila Maior, à época diretor do Instituto Geral
de Agricultura6, «se ocupou seriamente do estudo da ampelografia nacional»7.
As coleções ou escolas ampelográficas são coleções de castas de videiras estabe
lecidas com os objetivos de caracterizar as castas e resolver as sinonímias, já que,
frequentemente, a mesma casta é designada por diferentes designações consoante a
região; estas coleções constituem um repositório da diversidade genética e garantem
a preservação de todas as castas.
O presente trabalho visa dar a conhecer a primeira coleção ampelográfica nacio‑
nal — a Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra —,
os principais mentores do projeto, bem como o processo gradual para o estabelecimento
da referida coleção desde 1870 e ao longo de mais de dez anos, até à sua destruição,
motivada pela filoxera.
A Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra é
exemplo de como o Douro vinhateiro, património construído numa paisagem c ultural
ímpar, ultrapassou as margens do Douro e se fixou em Coimbra, no âmbito de uma
profícua rede de conhecimento e de colaborações estabelecida sob o patrocínio do
Visconde de Vila Maior.
25
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
fazer uma avaliação da situação dos centros vinícolas do país e dos processos de
produção por eles adotados. As averiguações então conduzidas levaram-no a p erceber
a importância deste sector na agricultura nacional, vindo a dedicar-se daí em diante
de forma particular ao estudo da viticultura, ampelografia e enologia, visando intro-
duzir os saberes mais recentes na produção vinícola13.
12
VILA MAIOR, 1865-1869: 2.
13
MOTA, 2012: 272.
14
Sobre esta obra, António Augusto de Aguiar escreveu ao Visconde de Vila Maior: «Recebi hontem pelo correio o
Manual de Viticultura pratica, e embora não seja possível lê-lo em vinte em quatro horas, não preciso esperar mais para
assegurar a V. Exa., que acaba de fazer, com esta publicação, um grande serviço ao seu paiz, e muito particularmente aos
vinhateiros. Admiro, com grande desejo de o poder imitar, o desvello e a paciencia com que se dedica ainda hoje aos
trabalhos scientificos, depois de uma longa carreira em que não desperdiçou um dia sequer» (AGUIAR, 1875).
26
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
15
LAGE, 2013b: 121.
16
VILA MAIOR, 1878-1879: 18.
17
VILA MAIOR, 1870a: 33.
18
VILA MAIOR, 1870a: 33.
19
VILA MAIOR, 1870a: 33.
27
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
20
VILA MAIOR, 1870a: 33.
21
VILA MAIOR, 1870a: 35.
22
VILA MAIOR, 1870a: 36.
23
VILA MAIOR, 1870b: 49.
24
VILA MAIOR, 1870b: 51.
28
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
Todo este programa, que o Visconde de Vila Maior detalha em pequenos artigos
no «Jornal de Horticultura Prática», estava a ser posto em prática em Sintra, na G
ranja
do Marquês, e muito particularmente na cerca de São Bento anexa ao Jardim Botâ‑
nico da Universidade de Coimbra, que servirá de exemplo à formação das coleções
ampelográficas26.
25
VILA MAIOR, 1870c: 68.
26
VILA MAIOR, 1870c: 68.
29
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
27
VILA MAIOR, 1878-1879: 18.
28
Sobre Adolfo Frederico Möller (1842-1920), cf., entre outros, HENRIQUES, 1922; REIS et al., 2014: 98-99;
S EQUEIRA, 1891.
30
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
Fig. 2. Mapa do
Jardim Botânico
da Universidade
de Coimbra
Fonte: HENRIQUES,
1876. Assinala-se,
a verde, a localização
da Escola Ampelo-
gráfica
29
VILA MAIOR, 1878-1879: 18.
30
VILA MAIOR, 1878-1879: 19-20. Segundo dados fornecidos por MÖLLER, 1878.
31
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
De cada casta eram plantados, pelo menos, dez bacelos, e foi também preparado
um viveiro, aproveitando as varas úteis provenientes da poda, para garantir a substi
tuição de plantas que não sobrevivessem.
Os viveiros possibilitavam também a venda de plantas a particulares a preços redu
zidos: «O preço das castas portuguezas tem sido de 20 réis, e o das extrangeiras de 60
réis. A venda tem sido completa», afirma Júlio Máximo de Oliveira Pimentel31, o que
constituía uma fonte de rendimento para fazer face às avultadas despesas com a coleção
ampelográfica (Fig. 3)32. Ainda em 1875, iniciaram-se os ensaios de produção de vinho,
aspeto também importante para a caracterização das castas.
Fig. 3. Resumo da receita e despesa feita com a vinha desde o 1.º de janeiro de 1878 até 31 de março de 1879
Fonte: ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Reitor (SC), Correspondência recebida (SR)
31
VILA MAIOR, 1878-1879: 22.
32
HENRIQUES, 1877.
33
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1876.
32
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
34
SOARES, 1876.
35
HENRIQUES, 1876: 51.
36
Rodrigo Morais Soares fundou a escola regional de Sintra, o Instituto Agrícola (atual ISA), a revista «Archivo A
gricola»
e, quando em 1852 se criou a Secretaria das Obras Públicas, foi nomeado chefe da Repartição de Agricultura, e,
mais tarde, diretor-geral. Figura importante na agricultura nacional. Sobre a sua biografia cf. SARDICA, 2004: 776-777.
37
A ideia de excelência está sempre subjacente a esta expressão.
33
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
34
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
Segue-se uma extensa e cuidada lista de «Abreviatura dos caracteres» para facilitar
o registo das observações; por exemplo: «Da folha: muito grandes (mt. Gr), pequena
(pq), plana (plan.) […]; Bago: redondo (re), alongado (alg)». Contudo, as páginas de
registo dos carateres de cada casta estão em branco. Como o Visconde de Vila Maior
explica em Listagem das castas de videiras portuguezas:
A maior parte das castas que aqui vão indicadas já se acham representadas
na collecção ampelographica do Jardim Botanico de Coimbra; porém só mais tarde,
quando todas as videiras tenham chegado à idade de fructificar, é que se poderá
fazer o estudo dos seus caracteres, e as confrontações necessárias para lhes assignar a
synonnymia e fazer a sua descripção ampelographica39.
38
Catálogo Alphabetico da Escola Ampelographica, 1876.
39
VILA MAIOR, 1881: 487.
40
VILA MAIOR, 1878.
35
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Esta praga tinha sido detectada em França em 1863; foi introduzida na Europa
com as vides americanas. Era provocada por um insecto, à época designado Phylloxera
vastatrix [sinónimo actual: Dactylosphaera vitifoliae], que se apresenta sob diversas
formas e multiplica as suas colónias muito rapidamente. A destruição da vinha efec-
tuava-se a uma velocidade variável de acordo com as condições climatéricas e a natu-
reza do solo, mas na região duriense concretizava-se ao fim de 5 a 6 anos. A destruição
da vinha duriense, na sequência do ataque deste insecto, foi devastadora45.
41
VILA MAIOR, 1878-1879: 17-28.
42
MATA, VALÉRIO, 2003: 159.
43
MARTINS, 2005: 233-235.
44
MARTINS, 1991: 659.
45
LAGE, 2013b: 116.
36
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
doença» e «Oxalá que tal nunca suceda, pois seria isso uma verdadeira calamidade para
os nossos vinhedos, dos quaes ainda não desappareceram de todo os vestigios do outro
contagio, o oidium, que tantos estragos fez n’elles»46.
Os ecos da propagação da filoxera em França iam chegando ao Visconde de Vila
Maior através da sua rede de conhecimentos internacionais. Em 27 de janeiro de 1871,
V. Pulliat, da Sóciété Régionale de Viticulture de Lyon, dá nota que a marcha lenta da filo‑
xera nas vinhas francesas lhe dá alguma esperança e gostaria de acreditar que o desastre
será apenas na zona meridional do Rhône, não se alargando ao resto da França47.
Em carta de 26 de junho de 1873, Rodrigo de Morais Soares agradeceu ao Visconde
de Vila Maior a informação sobre a nova moléstia das vinhas, e disse antever, senão a
destruição completa dos vinhedos atuais, pelo menos uma grande devastação. Diz ter
mandado inspecionar as vinhas do Douro atingidas e aguardar mais esclarecimentos
sobre a «singular» filoxera. Em post scriptum diz que o amigo comum, António Augusto
de Aguiar, a quem mostrara a carta do Visconde de Vila Maior, informara que «o bicho
é um acarus já conhecido em algumas vinhas das vizinhanças de Lisboa»48.
Num país onde a viticultura se encontrava em expansão e o vinho constituía a
principal produção agrícola, é natural que a filoxera fosse encarada quase como uma
«calamidade nacional»49.
As pragas do oídio e da filoxera (e, mais tarde, do míldio) «acabariam por contribuir
para uma profunda renovação das técnicas de vitivinicultura e vinificação do Vinho do
Porto, no século XIX»50. A importância económica da cultura da vinha em P ortugal e o
conhecimento dos prejuízos causados em França pela nova praga da filoxera motivaram a
produção de muita informação e publicações sobre o assunto. Contam-se diversos artigos
da autoria do Visconde de Vila Maior publicados no «Jornal de Horticultura Prática»,
inclusive artigos com desenhos da filoxera, da autoria de Planchon e Lichtenstein, bem
como a divulgação da investigação realizada noutros países, nomeadamente em França.
Por seu lado, o governo nomeou, em 1872, uma comissão presidida por Morais
Soares para propor as medidas que achasse necessárias no combate à doença, tendo sido
criada uma comissão antifiloxera com duas delegações regionais51. O Visconde de Vila
Maior integrou a delegação de Coimbra dessa comissão, a que se seguiram várias outras.
Mais tarde, Oliveira Pimentel presidiu à comissão de estudo e tratamento das vinhas do
Douro (com sede no Porto), criada por decreto governamental de 7 de agosto de 1878.
46
OLIVEIRA JÚNIOR, 1870: 139.
47
SÓCIÉTÉ RÉGIONALE DE VITICULTURE DE LYON, 1871.
48
SOARES, 1873.
49
MARTINS, 1991: 654.
50
LAGE, 2013b: 116.
51
MARTINS, 1991: 656.
37
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
52
OLIVEIRA, 1879: 39.
38
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
53
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1879: 862.
39
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
54
VILA MAIOR, 1879.
55
VILA MAIOR, 1881.
56
HENRIQUES, 1880a.
57
VILA MAIOR, 1881.
58
HENRIQUES, 1880a: 11.
59
HENRIQUES, 1880b.
40
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
E, assim, a «vinha das vinhas», como Morais Soares apelidara a Escola Ampelo‑
gráfica do Jardim Botânico em carta dirigida ao Visconde de Vila Maior (1877)64, uma
coleção única em Portugal, sucumbiu perante a ameaça da filoxera e o zelo excessivo da
Comissão Anti-Filoxérica do Norte.
60
VILA MAIOR, 1881.
61
COMISSÃO CENTRAL DA FILOXERA, 1881.
62
HENRIQUES, 1883-1884: 264.
63
COMISSÃO CENTRAL ANTI-FILOXÉRICA DO NORTE, 1883a; HENRIQUES, 1883-1884.
64
SOARES, 1877.
41
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 1996, Gaspar Martins Pereira chamava a atenção para a importância da «criação de
um Arquivo Histórico do Vinho do Porto» tal a dispersão, desorganização e «dificul
dades de acesso ou mesmo inacessibilidade» de fontes de informação sobre o tema65.
Embora (ainda) não tenha sido possível apurar a razão da existência do Arquivo
do Visconde de Vila Maior e do Arquivo da Família Oliveira Pimentel no Arquivo de
Botânica do Departamento de Ciências da Vida (DCV) da Universidade de Coimbra,
o seu tratamento arquivístico e a sua disponibilização online foi do interesse da instituição
e possibilitado com o projeto O Arquivo Pessoal e Familiar do Visconde de Vila Maior —
preservar memória, divulgar o passado, financiado pela Fundação Calouste G ulbenkian,
em 2015 . A existência do arquivo do Visconde de Vila Maior no DCV é bem demons
66
65
PEREIRA, 1996b: 155.
66
SILVA, 2020.
67
SILVA, GOUVEIA, GONÇALVES, 2016: 4.
42
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)
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COMISSÃO CENTRAL ANTI-FILOXÉRICA DO NORTE (1883a). [Ofício] 1883 fev. 22 [a] Júlio
Augusto Henriques.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1880). [Ofício] 1880 [a] Júlio Augusto Henriques.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1882). [Ofício] 1882 dez. 22 [a] Júlio Augusto Henriques.
VILA MAIOR, Visconde de (1877). [Carta] 1877… [a] Júlio Augusto Henriques.
68
GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020.
69
GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020.
43
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
SÓCIÉTÉ RÉGIONALE DE VITICULTURE DE LYON (1871). [Carta] de 1871 jan. 27 [a] Visconde
de Vila Maior.
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46
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA
DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO
XIX PARA O SÉCULO XX — JOSÉ TEIXEIRA
REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE
DE LAMEGO
ISILDA MONTEIRO*
CONCEIÇÃO MEIRELES PEREIRA**
Resumo: Nas últimas décadas, os estudos em torno da história da vinha e do vinho da região do Douro
têm-se multiplicado, com destaque para o vinho do Porto, pela dimensão económica e social de que se
reveste. Contudo, o Douro vinícola tem outras vertentes. O vinho espumante produzido na região com
enquadramento empresarial constitui uma inovação na vitivinicultura duriense do final de Oitocentos,
que merece ser analisado historicamente. Compreender como foi introduzida na região esta técnica de
vinificação importada de França, identificar os protagonistas dessa inovação na vitivinicultura duriense,
analisar as dinâmicas sociais e económicas de Lamego, cidade, onde, entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX, surgiu uma empresa de sucesso vocacionada para a produção de espu-
mante, são os objetivos desta investigação. O estudo, cujas balizas cronológicas se situam entre as
décadas de 1880 e 1940, baseia-se em diversas fontes, em especial fontes periódicas — jornais publicados
em Lamego e no Porto —, mas também fontes arquivísticas públicas — registos paroquiais e notariais —,
bem como fontes de arquivos particulares, familiares e empresariais. Nascido e criado em Lamego, José
Teixeira Rebelo Júnior, juntamente com o sogro, Adelino Pereira do Vale, constituiu, nos últimos anos do
século XIX, uma firma familiar que rapidamente se impôs no mercado nacional e brasileiro, trazendo no
domínio vitivinícola uma nova imagem para a cidade e para a região. Do estudo realizado, ressalta a
capacidade empreendedora destes homens que, aproveitando as oportunidades e buscando os apoios
necessários, souberam procurar as técnicas e os produtos que se constituíssem como uma alternativa à
crise vitivinícola que então grassava no Douro.
Palavras‑chave: vinho espumante; Lamego; história empresarial; José Teixeira Rebelo Júnior; 1880-1947.
Abstract: In the last decades, studies on the history of vineyards and wine in the Douro region have
multiplied, with emphasis on Port wine, due to its economic and social dimension. However, the Douro
wine region has other aspects. The sparkling wine produced in the region with a business framework
constitutes an innovation in Douro winemaking at the end of the 19th century, which deserves to be
historically analyzed. To understand how this winemaking technique imported from France was intro-
duced in the the region, to identify the protagonists of this innovation in Douro, to analyze the social and
economic dynamics of Lamego, a city where, between the end of the 19th century and the first decades
of the 20th century, a successful company dedicated to the production of sparkling wine emerged, are the
goals of this research. The study, whose chronological landmarks are located between the 1880s and the
1930s, is based on several sources, especially newspapers (published in Lamego and Porto), but also
archival sources, both public (parish and notarial records) as private, coming from family and business
archives. Born and raised in Lamego, José Teixeira Rebelo Júnior, together with his father-in-law,
* Professora Adjunta da Escola Superior de Educação Paula Frassinetti (Porto) e Investigadora do CITCEM.
** Professora Associada com agregação no Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Investigadora Integrada do CITCEM.
47
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Adelino Pereira do Vale, established, in the last years of the 19th century, a family firm that quickly settled
itself in the national and Brazilian market, bringing a new image to the wine sector for the city and the
region. This paper highlights the entrepreneurial capacity of these men who, taking advantage of
opportunities and seeking the necessary support, knew how to look for techniques and products that
would constitute an alternative to the wine crisis that was then raging throughout the Douro.
Keywords: ampelography; viticulture; Viscount of Vila Maior; Júlio Augusto Henriques; personal archive.
INTRODUÇÃO
Se é verdade que a historiografia sobre a vitivinicultura duriense, sobretudo relativa ao
vinho do Porto, tem proliferado nas últimas décadas, não é menos incontestável que
o estudo da produção do vinho espumante nessa região revela um défice assinalável,
com especial relevância em Lamego e na região do Távora-Varosa, locais ainda não
abordados no tocante a este assunto.
Na realidade, é praticamente inexistente a produção historiográfica sobre o vinho
espumante no território português. Existe apenas escassa e dispersa bibliografia sobre a
produção vinícola no Douro e na Bairrada, bem como informações pertinentes em sites
de marcas de vinhos. Sobre o vinho espumoso produzido por Le Cocq, em Castelo de
Vide, no início da década de 1850, há referências num artigo1.
Nesta conformidade, colocam-se como objetivos primordiais deste estudo contex‑
tualizar o surgimento, no Douro, da produção do vinho segundo o método champanhês,
com a qualidade e a quantidade necessária para abastecer o mercado nacional e interna‑
cional, e, mais especificamente, identificar e compreender a ação de José Teixeira Rebelo
Júnior no que concerne aos primórdios da produção do vinho espumante em Lamego.
As fontes utilizadas são de natureza variada: arquivística, como registos paroquiais e
notariais, assim como documentação do Arquivo das Caves da Raposeira; hemerográ‑
fica, com a consulta da imprensa lamecense, mas também de periódicos de Lisboa e do
Brasil, além do «Diário do Governo»; e outras fontes impressas, concretamente diversos
estudos sobre a viticultura e o vinho espumoso, tanto a nível nacional como especifica‑
mente no Douro, na segunda metade do século XIX e inícios do seguinte.
1
CANELAS, 2008.
48
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
Não pretendo dissimular que em todas as operações do processo que fica descrito
para a conversão dos nossos vinhos, em vinhos espumosos de Champanhe, se carece de
muita inteligência e de génio empreendedor para adquirir-se uma boa prática; porém
conseguida esta já não nos resta a vencer senão pequenas dificuldades que facilmente
cedem diante de nossos pequenos esforços. Mas por que um trabalho apresenta graves
inconvenientes, devemos nós sucumbir diante destes, e abandonar a esperança de
avultados lucros, e mesmo a honra, que daquele trabalho nos podem provir? Seremos
nós menos capazes de conceber e executar, do que o são os estrangeiros? Decerto não.
Não foram já os povos da Borgonha, os da Alemanha, e outros, nesta parte imitadores
dos povos de Champanhe, onde há um século não era conhecido o meio de preparar
vinhos espumosos, e cujos processos talvez se devam ao acaso? Pois bem, sigamos
nós igualmente aqueles exemplos, demos novas forças ao nosso comércio de vinhos,
e subtraímo-nos ao oneroso imposto que deste género pagamos aos estrangeiros6.
2
RUBIÃO, 1844: VIII-XII.
3
RUBIÃO, 1844: 13, nota 1.
4
RUBIÃO, 1844: 205.
5
LÚCIO, 1846: 50-62.
6
LÚCIO, 1846: 61-62.
49
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
7
PORTUGAL, 1853: 1035.
8
REIS, 1871: 48.
9
FERRAZ, 1876: 48.
10
Catalogo dos Productos da Agricultura, e Industria Portugueza […], 1855: 20.
11
Como confirmado em Breve Noticia da Viticultura Portugueza […], 1874, sem qualquer menção à representação
portuguesa de vinhos espumosos.
12
CANELAS, 2008: s.p.
13
A primeira edição tinha sido publicada em 1846.
50
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
Pode depreender-se destas palavras que Le Cocq não usaria o método champa‑
nhês; era um homem que gostava de inovar na agricultura e, como Viu não deixou de
mencionar, utilizava máquinas que o próprio criava.
O barão de Forrester, por sua vez, apresentou vinhos espumosos na Exposição Agrí-
cola do Porto, de 1860, os quais «não ficaram muito abaixo dos melhores Sillery», como
o especialista químico Ferreira Lapa deixou registado numa obra de 1874, que muito
espaço dedicou às questões técnicas relativas à produção dos espumosos: referimo-nos
ao estudo de Ferreira Lapa que versava o amplo tema da tecnologia rural, em cujo capí‑
tulo VII — Vinhos especiais —, depois de abordar os brancos e os moscatéis, d emorou-se
na exposição sobre os espumosos da região de Champagne, mas sem esclarecer os
métodos usados por Forrester ou qualquer outro produtor português15.
Em 1861, uma tabela publicada no diário oficial indicava os direitos a pagar pelos
géneros de produção portuguesa e estrangeira em função da tarifa das alfândegas brasi
leiras fixada pelo decreto de 3 de novembro de 1860, e entre esses produtos encontra‑
vam-se os «vinhos espumosos de qualquer qualidade», por sinal, excetuados de 50%
mais que pagavam os restantes vinhos engarrafados ou acondicionados em vasilhas de
vidro ou louça16.
Nesta altura, a produção de vinhos espumosos era, pois, muito residual, confinada
a casos esporádicos de experimentação mais audaz, longe de metodologias consagradas
ou quantidades significativas. Não surpreende que a comissão que estudou os p rocessos
de vinificação em Portugal, nas vindimas de 1866 e 1867, em visitas aos locais, não
tivesse referido os vinhos espumosos17. No final da década de 1880, Pereira Coutinho
testemunhou isso mesmo, no Douro produziam-se vinhos espumosos a título experi‑
mental e, em Lisboa, vendia-se vinho espumoso dos Le Cocq, produzido em Castelo
de Vide, o qual se apresentou em ótimas condições na exposição de 1884, na Tapada da
Ajuda, onde obteve medalha de prata18.
A aposta nos vinhos espumantes derivou da conjuntura recessiva causada pela filo‑
xera, que, no Douro, constituiu uma oportunidade de inovação nos processos e técnicas
de vinificação, como Conceição Martins bem frisou, e no âmbito da qual se inseriu a
introdução do método champanhês para produzir vinho espumoso, embora a referida
autora não mencione nunca os vinhos espumosos:
14
VIU, 1852: 256-257. Optou-se pela atualização da grafia das transcrições das fontes documentais.
15
LAPA, 1874: 314-320.
16
«Diário de Lisboa», 15 jan. 1861: 105.
17
Memoria sobre os Processos de Vinificação […], 1867; Segunda Memoria sobre os Processos de Vinificação […], 1868.
18
COUTINHO, 1889: 274.
51
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
19
MARTINS, 2008: 69.
20
ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DO PORTO, 1889.
21
PORTUGAL, 1889c: 813-814.
22
SAMODÃES, 1889: 4-5.
23
FREITAS, 1890.
24
SAMODÃES, 1889.
25
Processo arbitral […], 1890: 35-46.
26
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1891: 47.
52
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
Carlos Correia Pinto de Lemos e José Taveira de Carvalho Pinto de Meneses. G randes
proprietários, a maioria destes homens integrava a elite duriense que, no final do século
XIX, se empenhou «fortemente nas reivindicações regionais de intervenção do Estado,
[…] suscitando agitação política e social»27. Foram eles que negociaram com o poder
político o apoio financeiro e o seu campo de ação, elaboraram os estatutos aprovados
em 30 de março de 188928, asseguraram a sua defesa e, assumindo os cargos diretivos,
a puseram em funcionamento para dar cumprimento ao contrato celebrado com o
governo e às cláusulas estatutárias. No contrato celebrado em 15 de março de 1889,
estipulava-se que além dos objetivos gerais, a companhia tinha a obrigação de:
O depósito de Berlim seria constituído por armazéns situados nessa cidade e por
aqueles que a companhia entendesse dever estabelecer em Hamburgo ou num outro
qualquer porto da Alemanha. A estes, deveria juntar outros três, no período de quinze
anos, na Alemanha ou nos países onde convier e se acordar com o governo30.
Compreensivelmente mais alargados são os objetivos exarados nos «Estatutos da
Real Companhia Vinícola», entre os quais, no âmbito deste estudo, se destacam:
· comprar vinhos nacionais e vendê-los no país e no estrangeiro, «conservando-
-lhes a justa fama, empregando todos os meios para que eles cheguem aos seus
comitentes, puros, genuínos e em conformidade com as ordens recebidas»;
• sustentar o crédito dos vinhos portugueses onde eles já fossem conhecidos e levá-
-los aonde o não fossem;
• explorar o mercado alemão, estabelecendo ali depósitos comerciais, especial‑
mente com vinhos de região e em lotes, e organizando tipos definidos, que
pudessem ter mais larga exportação;
• fazer exportação e venda dos vinhos portugueses ou com o nome da região
produtora, ou, quando lotados, com a indicação genérica de vinho português;
• receber nos seus depósitos gerais especiais vinhos dos produtores que aí os
quisessem depositar e exercer as funções de agência, como intermediária entre
27
SEQUEIRA, 2011: 263.
28
PORTUGAL, 1889b: 796-799.
29
PORTUGAL, 1889c: 814, art.º 3.º.
30
PORTUGAL, 1889c: 814, art.º 3.º.
53
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
31
PORTUGAL, 1889b: 796, art.º 2.º.
32
MONTEIRO, 2017: 111.
33
GONÇALVES, 2003.
34
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 20.
35
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 21.
36
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 50.
37
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 51.
38
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 52.
39
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1891: 39.
54
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
produzidos segundo o método champanhês, vinhos esses que, ainda antes de ter
assumido essas funções, Allen defendera publicamente deverem ser uma aposta da viti‑
vinicultura nacional. No relatório que fez em 23 de fevereiro de 1889 para o Ministério
das Obras Públicas, Comércio e Indústria, como delegado da circunscrição do Norte
à exposição dos vinhos portugueses em Berlim, de 1888, o enólogo refere ter sido sua
a ideia de aí apresentar vinhos «para matéria prima de espumosos»40, provenientes do
Minho, Beira e Douro. Relativamente a esta última região, indica especificamente os
vinhos do concelho de Lamego, produzidos pelo Conde de Alpendurada e por Miguel
Moreira da Fonseca, assinalando que foram muito apreciados e considerados de muita
qualidade «para a fabricação de vinhos espumosos de primeira ordem», podendo «vir a
ser um grande recurso ao consumo da crescente produção vinícola». Segundo ele, com
este primeiro vinho produzido, «a experiência está feita; resta pôr em prática, prudente e
discretamente o fornecimento do género, que nos parece há de agradar e pode competir
com os seus congéneres em todos os mercados»41. Os mesmos produtores de Lamego,
aliás, no ano seguinte, virão a expor os seus vinhos na exposição de Paris, apresentando
o Conde de Alpendurada um vinho branco maduro com «bouquet a champagne»42.
Como se pode assim verificar, no final da década de 1880, as referências a vinhos
espumosos produzidos no país e, em especial, na região do Douro, com qualidade para
serem expostos à apreciação do mercado estrangeiro, são escassas e denotam o caráter
experimental da sua produção, sem especificar o método utilizado no seu fabrico.
Esta situação alterou-se com a criação da Real Companhia Vinícola do N orte de
Portugal que, em novembro de 1891, apresenta, pela primeira vez, vinho espumoso
produzido «pelo sistema de Champagne»43 na Exposição Industrial Portuguesa no Palácio
de Cristal, no Porto, organizada pelo Palácio de Cristal Portuense, de cuja d ireção faziam
parte dois dos fundadores da companhia — o Conde de Samodães, presidente, e José
Taveira de Carvalho Pinto de Meneses, vice-presidente e secretário —, e que integraram
a comissão organizadora. Uma circunstância que terá certamente facilitado a partici
pação no evento da Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, passados pouco
mais de dois anos sobre a sua constituição.
Foi, assim, na Exposição Industrial Portuguesa do Palácio de Cristal, inaugurada
pelo monarca D. Luís em 22 de novembro de 189144, que a Real Companhia Vinícola
apresentou pela primeira vez ao público, com a sua marca, o vinho espumoso Alto Douro
Cristal e Portugal Flor (primeira reserva, seco, extrasseco e «bruto ou bravo»). O método
utilizado na produção destes vinhos não oferece dúvidas, uma vez que a c ompanhia
40
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1889: 60.
41
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1889: 66.
42
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1890: s.p.
43
Catalogo da Exposição Industrial Portugueza em 1891 […], 1892: 93.
44
«O Comércio do Porto», 24 nov. 1890: 1.
55
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
expôs também o material que usou no seu fabrico e arrolhamento, e que, nos primeiros
dias, os visitantes tiveram a oportunidade de ver a funcionar — « estantes de agitar
(pupitres), cheias de garrafas, com vinho, para desengasgar», «saca-rolhas horizontais
sobre pé firme, para desarrolhar quando as rolhas quebram durante o desengasga
mento», «primeiros torniquetes destinados a segurar as garrafas desengasgadas, por
meio de molas que lhe impelem os gargalos contra tampões cónicos de caoutchouc,
retendo o gás completamente», aparelhos de dosagem para «atestar as garrafas desen
gasgadas», segundos torniquetes para evitar a saída do gás, máquinas de arrolhar,
aparelhos de açamar «destinados a prender as rolhas com um açame de fio de ferro,
em lugar do arame comum e do cordel» e máquinas «de eletrizar, destinadas a fazer
despegar os precipitados da fermentação quando ficam aderentes ao vidro das garrafas,
sem correrem para os gargalos»45.
Sobre o pioneirismo da Real Companhia Vinícola na produção de vinho espu
moso, pode ler-se no Catálogo da Exposição Industrial Portuguesa em 1891:
45
Catalogo da Exposição Industrial Portugueza em 1891 […], 1892: 94-95.
46
Catalogo da Exposição Industrial Portugueza em 1891 […], 1892: 95.
47
VILAR DE ALLEN, 1896: 49.
48
VILAR DE ALLEN, 1896: 49-50.
56
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
49
PEREIRA, CRUZ, 2017: 410.
50
PORTUGAL, 1894b: 2756.
51
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1894, art.º 5.º, n.º 2.
52
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1896: 44.
53
PORTUGAL, 1897: 41.
57
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
54
PORTUGAL, 1897: 41.
55
PORTUGAL, 1896a: 1184.
56
PORTUGAL, 1889a: 214.
57
LISBOA, 1899a: 4.
58
LISBOA, 1899b: 4.
59
ADVIS. Registos Paroquiais, Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1860-1865, fol. 5.
58
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
acedo, três anos antes, em 15 de agosto de 185760. O pai, natural de Sarzedo, Moimenta
M
da Beira, negociante, tinha estabelecimento aberto na referida praça. F ilho único, José
Teixeira Rebelo estudou em Lamego no colégio dos irmãos António Joaquim Lopes
Roseira e Manuel António Lopes Roseira, mais tarde, entregue aos beneditinos, prepa‑
rando-se para um futuro que não passaria por assumir exclusivamente o lugar do pai à
frente do negócio da família. José Teixeira Rebelo Júnior tinha outros objetivos.
Um passo importante para a sua concretização terá sido certamente dado quando,
aos 23 anos, em 10 de novembro de 1883, casou no Porto, na Igreja de Santo Ildefonso,
com Maria Emília Pinto Pereira do Vale, natural de Viseu, da freguesia Ocidental, filha
de Adelino Pereira do Vale e de Maria Emília Pinto de Sousa Lemos. Com este casa‑
mento, José Teixeira Rebelo Júnior alargava de forma significativa o seu círculo social,
fazendo-o extravasar os limites da pequena cidade do interior duriense onde nascera.
Segundo o Censo da População efetuado em 1878, um pouco mais de um terço da
população residente no concelho de Lamego (23878) concentra-se nas freguesias urbanas
de Almacave (3428) e Sé (4696)61. Na primeira, situada na parte alta da cidade, localiza-se
a Praça do Comércio, que, na segunda metade do século XIX, constitui o polo principal da
atividade comercial que então animava Lamego. É aí, ou na sua imediação, que parte
da burguesia lamecense reside e tem os seus estabelecimentos — como José Teixeira
Rebelo, pai de José Teixeira Rebelo Júnior —, transformando-a num ponto de e ncontro
de pessoas que a proximidade ao emaranhado de casas e ruas do Bairro do Castelo,
à Câmara Municipal e à Santa Casa da Misericórdia potenciavam. A uma cota mais baixa,
na freguesia da Sé, localiza-se o Paço Episcopal e alguns solares de famílias aristocratas
com estreitas ligações familiares entre si62, como o dos condes de Alpendurada, viscondes
de Arneirós, viscondes de Guiães e a família Castro Osório da Fonseca e Sousa Pereira
Coutinho. Grandes proprietários dentro e fora do concelho, muitos deles exerciam cargos
administrativos e/ou políticos que os levavam a residir em Lisboa ou no Porto, fazendo
em Lamego apenas curtas estadas. Realidades sociais distintas, com diferentes formas de
viver e de pensar, que se cruzam no espaço reduzido da cidade, mas não se misturam.
Até ao seu casamento, José Teixeira Rebelo Júnior, nascido e criado em Almacave,
movia-se assim no círculo restrito da burguesia comercial local. É verdade que seu pai,
além da loja de fazendas, de alguns prédios em Meijinhos, de uns moinhos no Bairro
da Ponte, também possuía uma quinta, a Quinta da Recheca, em Cepões63, freguesia
rural de Lamego, mas cuja produção, incluindo a de vinho, se destinaria sobretudo ao
consumo doméstico.
60
ADVIS. Registos Paroquiais, Lamego, Almacave, Casamentos, liv. 1850-1877, fol. 49.
61
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1881: 388, 411.
62
MOREIRA, 2018: 407.
63
ACR. Inventário do activo e passivo em 31 de Maio de 1884.
59
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
64
ADVIS. Registos Paroquiais, Tondela, Batismos, liv. 1827-1852, fol. 152.
65
ADVIS. Registos Paroquiais. Tondela, Casamentos, liv. 1775-1827, fol. 123v.
66
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu, Ocidental, Casamentos, liv. 1853-1862, fol. 64v.
67
PORTUGAL, 1870: 5; 1871: 4; 1872: 4.
68
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1859-1863, fol. 8.
69
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1859-1863, fol. 194.
70
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1864, fol. 87v-88.
71
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1869-1874, fol. 80v.
72
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1869-1874, fol. 166v.
73
ADVIS. Registos Paroquiais. Porto. Santo Ildefonso, Batismos, liv. 1880, fol. 229.
74
PORTUGAL, 1877: 9.
75
PORTUGAL, 1901a: 11.
60
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
76
PORTUGAL, 1888: 2706.
77
PORTUGAL, 1894a: 3.
78
ADVIS. Registos Paroquiais. Mangualde, Casamentos, liv. 1859-1872, fol. 104v.
79
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1850-1859, fol. 67.
80
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 24.
81
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1889: 50.
82
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1889: 51.
61
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
embora com um número mais elevado de ações — Abel Pereira do Vale (três ações)83,
Bernardo Pereira do Vale (dez ações)84, Inácio Pereira do Vale (dez ações)85.
Desta forma, enquanto acionista, Teixeira Rebelo Júnior terá acompanhado de
forma muito próxima o trabalho desenvolvido pela Real Companhia Vinícola, podendo
ter sido dessa forma que percebeu o potencial de Lamego para a produção do vinho
espumante (tanto mais que, como atrás referido, já havia experiências anteriores,
pontuais, mas promissoras, feitas em propriedades próximas pelo Visconde de Alpen‑
durada e M iguel Moreira da Fonseca) e dado início às primeiras experiências na Quinta
da Recheca, em Cepões, propriedade do seu pai.
Em 2 de julho de 1893, no Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria,
registou em seu nome a sua primeira marca — «rotulo retangular atravessado diagonal‑
mente por um desenho figurando uma fita, em que se lê “Sedutor”, e por baixo desta:
“José Teixeira Rebelo Júnior — Lamego”. No canto superior à esquerda lê-se: “Vinho
clarete da quinta da Recheca — Douro”»86. Em 4 de janeiro de 1897, requer um novo
registo de uma marca de vinho, que se sabe apenas ter sido aceite87. Em 1898, e de a cordo
com o que a imprensa local virá mais tarde a escrever, já produzia vinho espumante em
Lamego, num armazém que construiu na parte baixa da cidade, na Preguiça88.
Entre a sua entrada como acionista da Real Companhia Vinícola do Norte de
Portugal e o início da produção própria de vinho espumante terão, assim, mediado nove
anos. Foi o tempo necessário para reunir à «vontade firme duma vibrante inteligência e
dum temperamento invulgarmente estudioso»89 de José Teixeira Rebelo Júnior o conhe
cimento técnico, o capital, os equipamentos e as instalações que essa produção, mesmo
que ainda muito incipiente, exigia. Segundo se escreverá, anos mais tarde, numa publi‑
cação patrocinada pela empresa Caves da Raposeira, Teixeira Rebelo Júnior não dispu‑
nha de conhecimentos nem teóricos nem práticos sobre a produção de vinho espumante
«porque nada havia então de valor, escrito sobre o assunto e ele nunca tinha sequer
visitado as instalações da “Champagne”» pelo que se lançou «afanoso e confiante no
labirinto das experiências, firme nos seus propósitos de dominar dificuldades, de vencer
deficiências, de triunfar plenamente», conseguindo «formar as primeiras massas vínicas
para o lote duns centos de garrafas»90, sem recorrer à colaboração de qualquer técnico
francês. Uma narrativa que não se afasta da que se pode ler na imprensa lamecense ao
longo da primeira metade do século XX.
83
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 1.
84
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 9.
85
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 16.
86
PORTUGAL, 1896b: 2793.
87
PORTUGAL, 1901b: 2585.
88
«A Fraternidade», 23 ago. 1930: 4.
89
Raposeira: vinhos espumantes naturais, 1936: s. p.
90
Raposeira: vinhos espumantes naturais, 1936: s. p.
62
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
91
«Beira-Douro», 22 fev. 1936: 1.
92
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Casamentos, liv. 1891, n.º 140.
93
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Casamentos, liv. 1894, n.º 17.
94
ACR. Inventário e Balanços de Valle, Filho e Genros.
63
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
A gerência ficou a cargo dos sócios que tinham residência permanente em L amego
— José Teixeira Rebelo Júnior e Eduardo Pereira do Vale, que exercia as funções de
médico no Hospital da Santa Casa da Misericórdia local e que virá a falecer poucos anos
depois, em 17 de janeiro de 190795. Compreensivelmente, será Teixeira Rebelo Júnior
que a imprensa lamecense sempre considerará ser o «chefe» das Caves da Raposeira:
Porque José Teixeira Rebelo [Júnior] marca na nossa terra, sem favor de
inguém, um lugar de merecido destaque. Homem de fortes iniciativas, inteligente e
n
trabalhador, foi ele o criador dessa quase única indústria da nossa terra, hoje em p leno
desenvolvimento, pela cooperação eficaz de membros da sua família que financeira-
mente uns, tecnicamente outros e dedicadamente todos, fizeram da Raposeira um
centro de atividade industrial e comercial que, se honra o iniciador e colaboradores,
é também um elemento de valor para a prosperidade de Lamego, tão carecida de
utilidades bem orientadas, como a de Teixeira Rebelo, para o seu engrandecimento96.
Em 1 de agosto de 1903, a empresa Vale, Filho & Genros solicitou o registo das
suas primeiras marcas de vinho espumante ao Ministério das Obras Públicas, C omércio
e Indústria destinadas quer às garrafas quer às caixas de transporte e às rolhas. T odas
apresentando o nome da firma e a indicação «Douro Espumante», as marcas das g arrafas
diferem na cor do centro — vermelho-escuro sobre fundo prateado com arabesco para
o vinho espumante «Doce»; azul sobre fundo a ouro com arabescos para o vinho espu
mante «Seco»; ouro sobre fundo azul com arabescos para o vinho espumante «Meio
seco»; verde sobre fundo prateado com arabescos para o vinho espumante «Bruto97.
A incorporação do topónimo «Raposeira» na denominação do vinho espumante produ
zido pela empresa de José Teixeira Rebelo Júnior começou a fazer-se desde logo. E mbora
a palavra não esteja inscrita no rótulo da garrafa aprovado, está no das caixas de trans‑
porte de garrafas como complemento do nome da firma — «Vale, Filho & Genros —
Caves da Raposeira»98.
Com a morte, em 1907, de Eduardo Pereira do Vale99 e, em 1911, de Adelino P ereira
do Vale100, foram admitidos à sociedade, por escritura de 29 de maio de 1915, as suas
viúvas, Maria Emília Pinto do Vale e Alzira do Vale, e, ainda, Eugénio do Vale Teixeira,
terceiro filho de José Teixeira Rebelo Júnior101 (do seu casamento com Emília Pereira do
Vale, falecida nos primeiros anos de 1900, nasceram, ainda, Fernando, em 26 de abril de
95
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Óbitos, liv. 1907, n.º 38.
96
«A Fraternidade», 19 abr. 1930: 1.
97
PORTUGAL, 1903: 3054-3055.
98
PORTUGAL, 1903: 3054.
99
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Óbitos, liv. 1907, n.º 38.
100
«A Fraternidade», 22 jul. 1911: 2.
101
Nascido a 25 de julho de 1889. ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1889, n.º 102.
64
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
102
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1886, fol. 25.
103
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Cepões, Batismos, liv. 1887, n.º 19.
104
«A Fraternidade», 7 jun. 1924: 2.
105
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO, 1912: Relação nominal dos Irmãos.
106
«Beira Douro», 11 abr. 1936: 1; «Beira Douro», 13 jul. 1940: 1.
107
«A Semana», 21 fev. 1903: 3.
108
«O Progresso», 26 jan. 1907: 2.
109
«Beira Douro», 13 jun. 1936: 2.
65
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
110
«A Fraternidade»,18 jan. 1930: 1
111
«A Fraternidade»,19 abr. 1930: 1.
112
«A Fraternidade», 7 mai. 1927: 1.
113
«A Fraternidade», 16 ago. 1930: 1.
114
«Lusitania», 1 ago. 1932: 12.
115
«Voz de Lamego», 30 set. 1933: 4.
116
«A Fraternidade», 9 mai. 1931: 2.
66
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
e que «os vinhos cuja efervescência é produzida, mesmo só parcialmente, pela intro
dução do gás carbónico puro, sob pressão, por meio de aparelhos apropriados, são
para todos os efeitos designados “vinhos espumosos”» (art.º 3.º). O referido decreto
estipulava ainda que «os preparadores de vinhos “espumantes naturais” não podem ser
simultaneamente fabricantes de “vinhos espumosos”» (art.º 6.º), proibindo o uso da
designação «Champagne» (art.º 7.º).
A clarificação desta situação beneficiou as Caves da Raposeira, produtoras de
vinho espumante natural, valorizando comercialmente a sua marca. A produção e a
comercialização dos vinhos espumantes estavam finalmente reguladas, c ongratulando-se
por esse facto o jornal lamecense «A Fraternidade». Classificando-o «como um ato de
justiça», refere que se punha «assim no seu devido lugar a superioridade incontestável
dos vinhos espumantes das Caves da Raposeira, orgulho máximo do seu inteligente e
infatigável fundador»117, o comendador José Teixeira Rebelo Júnior.
O jornal, contudo, não se fica por aqui e, utilizando uma retórica social bem ao
jeito do Estado Novo, faz questão de sublinhar que nunca essa empresa, mesmo quando
o trabalho escasseava, despediu um dos seus trabalhadores, só para que não vivessem na
miséria. Fornecia-lhes diariamente uma refeição «que se torna extensiva a outro tanto
número de criaturas desprotegidas, que àquela hora, ao toque da sineta que regulariza
os horários do pessoal, ali ocorre, certo de que a fome lhe é mitigada. São mais de trinta,
por vezes, se não sempre, principalmente crianças que àquela hora correm até à Rapo‑
seira para receberem o que a filantropia balofa de tantos outros “filantropos exibicio
nistas” lhes negam»118.
Poucos anos depois, em 1937, em assembleia geral de 2 de junho, Ricardo T eixeira
Vale pediu a sua exoneração do cargo de gerente119. Mas, nesse ano, as alterações não
se ficaram por aí. A morte inesperada de José do Vale, sobrinho de José Teixeira Rebelo
Júnior, em 31 de julho120, obrigou à realização de uma nova escritura, a 7 de outubro.
A sociedade foi então alargada aos dois filhos do sócio falecido que, por serem a inda
crianças, seriam representados pela mãe, Maria Luísa Andrade Pinto de Lemos do
Vale121. Tal como já acontecera no passado, a gestão volta a ficar a cargo de Eugénio
Teixeira Vale, que, entre outros afazeres, assegurava as frequentes deslocações no país
e ao Brasil para tratar dos interesses da empresa, e de José Teixeira Rebelo Júnior.
Com 77 anos, este era o único sócio fundador vivo das Caves da Raposeira, continuando
a dedicar-se ao trabalho, como a imprensa de Lamego faz questão de salientar:
117
«A Fraternidade», 25 fev. 1933: 2.
118
«A Fraternidade», 25 fev. 1933: 2.
119
«Voz de Lamego», 17 jun. 1937: 2.
120
«Voz de Lamego», 5 ago 1937: 1.
121
«Voz de Lamego», 14 out. 1937: 2.
67
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Contudo, em 1945, doente, José Teixeira Rebelo Júnior deixou de sair de sua casa
junto às caves que dirigira ao longo de mais de quatro décadas. Morreu dois anos depois,
em 4 de fevereiro de 1947. Tinha 87 anos. Os jornais de Lamego noticiaram, pesarosos,
o seu desaparecimento. A «Voz de Lamego» escreveu: «A Raposeira foi com ele escola
de virtudes austeras, de trabalho honroso, de valorização industrial, de distribuição de
riqueza pelos trabalhadores da sua Empresa, que o amavam como pai e como amigo»123.
Com a sua morte, virava-se uma página na história da empresa que irá permanecer na
família até ao final do século XX.
CONCLUSÃO
Nos finais do século XIX, o vinho espumante produzido segundo o método champa‑
nhês constitui uma inovação na vitivinicultura duriense. Uma inovação que ganhou
espaço para se afirmar no âmbito da conjuntura recessiva causada pela filoxera. Apesar
dos evidentes impactos negativos na economia e na sociedade da região, esta doença,
responsável pela destruição de grande parte da vinha, constituiu uma oportunidade que
alguns produtores souberam e puderam aproveitar para introduzir novos processos e
técnicas de vinificação.
Criada em 1889, a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, sociedade
anónima de responsabilidade limitada, desempenhou um papel primordial na p romoção
desses processos e técnicas na região, tendo sido determinante a ação desenvolvida pelo
Visconde de Vilar de Allen, fundador e enólogo da referida companhia. Apesar de haver
referências anteriores, poucas, a experiências de produção de vinho espumoso no Douro
e em outras regiões do país, só a partir de 1891, é que essa empresa passou a comercia
lizar, no mercado nacional, vinho com qualidade e quantidade suficientes, garantida‑
mente produzido segundo o método champanhês.
Sem os recursos e o conhecimento da Real Companhia Vinícola, mas imbuído de
uma forte capacidade empreendedora, José Teixeira Rebelo Júnior soube aproveitar as
oportunidades, experimentar as técnicas e procurar o apoio financeiro necessário para,
a partir de 1898, produzir à escala industrial o vinho espumante na cidade de Lamego.
A firma Vale, Filho & Genros, fundada em 1902, e de que Teixeira Rebelo Júnior foi um
122
«Beira Douro», 11 abr. 1936: 1.
123
«Voz de Lamego», 13 fev. 1947: 2.
68
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
dos sócios fundadores, juntamente com o sogro e os cunhados, foi a primeira socie‑
dade familiar especialmente constituída para esse efeito na região duriense. Tendo-se
afirmado rapidamente no mercado nacional e brasileiro com a marca Caves da Rapo‑
seira, esta empresa contribuiu para uma nova imagem da cidade de Lamego dentro e
além-fronteiras, criando condições para que, mais de oito décadas depois, se instituísse
nos vales do Távora e Varosa a primeira região demarcada de espumantes em Portugal.
FONTES
Fontes arquivistas
Arquivo das Caves da Raposeira
ACR. Extracto de Jornaes.
ACR. Inventário do activo e passivo em 31 de Maio de 1884.
ACR. Inventário e Balanços de Valle, Filho e Genros.
Fontes hemerográficas
«A Fraternidade». (22 jul. 1911) 2.
«A Fraternidade». (7 jun. 1924) 2.
«A Fraternidade». (7 mai. 1927) 1.
«A Fraternidade». (18 jan. 1930) 1.
«A Fraternidade». (19 abr. 1930) 1.
«A Fraternidade». (16 ago. 1930) 1.
«A Fraternidade». (23 ago. 1930) 4.
«A Fraternidade». (9 mai. 1931) 2.
«A Fraternidade». (25 fev. 1933) 2.
«A Semana». (21 fev. 1903) 3.
«Beira Douro». (22 fev. 1936) 1.
«Beira Douro». (11 abr. 1936) 1.
«Beira Douro». (13 jun. 1936) 2.
«Beira Douro». (13 jul. 1940) 1.
«Diário de Lisboa». (15 jan. 1861) 105.
LISBOA (1899a). «Diário da Câmara dos Senhores Deputados». (1899-06-27) 4.
69
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fontes impressas
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do Conselho de Ministros em 17 de janeiro de 1889 contra a concessão de subsidio e outros privilégios
do contracto de 5 de dezembro de 1888, do Ministerio das obras Publicas Commercio e Industria,
em favor da projectada Real companhia Vinicola do Norte de Portugal. Porto: Typographia do Commercio
do Porto.
BREVE NOTICIA DA VITICULTURA PORTUGUEZA ou Resumo dos Esclarecimentos Indispensaveis para
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CATALOGO DA EXPOSIÇÃO INDUSTRIAL PORTUGUEZA em 1891 no Palacio de Crystal Portuense,
2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892.
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COUTINHO, António Xavier Pereira (1889). Guia do Vinicultor. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
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FERRAZ, J. L. Magalhães (1876). Pharmacia. Estudos Bibliographicos. Coimbra: Imprensa da Universidade.
FREITAS, José Joaquim Rodrigues de (1890). A Questão dos Vinhos. Nullidade do contrato de 15 de Março
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70
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO
LAPA, João Inácio Ferreira (1874). Technologia Rural ou Artes Chimicas, Agricolas e Florestais. 2.ª ed. Lisboa:
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LÚCIO, João Baptista (1846). O Fabricante de Vinhos e Vinagres ou Methodo Pratico e Abreviado para Guia
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MEMORIA SOBRE OS PROCESSOS DE VINIFICAÇÃO empregados nos principaes Centros Vinhateiros do
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Commercio e Industria pela Commissão nomeada em Portaria de 10 de Agosto de 1866. Lisboa:
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PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (1889). Exposição de Vinhos Portuguezes
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em Assembléa Geral de 27 de março de 1890 e Lista dos Senhores Accionistas em 31 de Dezembro de
1889. Porto: Typographia de António José da Silva Teixeira.
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL (1890). Relatorio da Direcção da Real
Companhia Vinicola do Norte de Portugal, Memoria Elucidativa do Relatorio da Direcção e Parecer
do Conselho Fiscal relativo ao anno de 1890 apresentado em Assembléa Geral de 16 de março de 1891
e Lista dos Senhores Accionistas em 31 de Dezembro de 1890. Porto: Typographia de António José da
Silva Teixeira.
REIS, António Batalha (1871). Enxofre e Vinho. Lisboa: Typographia de Castro Irmão.
RUBIÃO, Francisco Inácio Pereira (1844). O Vinhateiro. Obra em que se trata da cultura; da fabricação,
conservação, e destilação do vinho. Porto: Typographia da Revista, tomo 1.
SAMODÃES, Conde de (1889). A Questão da Real Companhia Vinicola do Norte de Portugal. Conflicto entre
o Governo e a Companhia. Exposição aos Accionistas. Porto: Typographia de A. J. da Silva Teixeira.
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO (1912). Relatorio de contas da Gerencia da Santa Casa
da Misericordia de lamego no anno económico de 1911-1912. Mappas demonstrativos de toda a admi-
nistração. Lamego: Minerva da Loja Vermelha.
SEGUNDA MEMORIA SOBRE OS PROCESSOS DE VINIFICAÇÃO empregados nos principaes Centros
Vinhateiros do Continente e Reino apresentada ao Illustrissimo e Excellenrissimo Senhor ministro das
Obras Publicas, Commercio e Industria em resultado da excursão mandada fazer pela Portaria de 24 de
Agosto de 1867. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868.
71
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
VILAR DE ALLEN, Visconde de (1896). Breve Noticia sobre alguns vinhos portuguezes principalmente dos
que vende a Real companhia Vinicola do Norte de Portugal e indicação da maneiar de fazer uso dos
mesmos e de os conservar na garrafeira e na copa e da sua apresentação á mesa. Porto: Typographia de
A. J. da Silva Teixeira.
VIU, José de (1852). Estremadura. Colección de sus Inscripciones y Monumentos seguidas de reflexiones
importantes sobre lo passado, lo presente y el porvenir de estas províncias, 2.ª edición corregida y nota‑
blemente adicionada. Madrid: Imprensa de D. Pedro Montero, tomo II.
BIBLIOGRAFIA
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[Consult. 20 nov. 2020]. Disponível em <https://fontedavila.org/multimedia/doc_textos_artigos/
PratesCanelas.pdf>.
GONÇALVES, Eduardo C. Cordeiro (2003). O Conde de Samodães e as origens da Real Companhia Vinícola
do Norte de Portugal. «Douro — Estudos & Documentos». 8:16, 107-115.
MARTINS, Conceição Andrade (2008). A «era de progresso» da viticultura nacional. In CABRAL, Manuel
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MONTEIRO, Isilda (2017). Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar (2.º visconde e 2.º conde de Samodães).
In SOUSA, Fernando de, coord. Os Provedores da Santa Casa da Misericórdia do Porto, 1499-2017.
Coimbra: Almedina, vol. III, pp. 111-140.
MOREIRA, Ana Rita Ferreira (2018). O Estudo da Casa Nobre na Cidade de Lamego. Lamego: Museu de
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século XIX. «CEM — Cultura, Espaço e Memória». 8, 409-425.
SEQUEIRA, Carla (2011). O Alto Douro entre o Livre-cambismo e o Proteccionismo. Porto: CITCEM;
Edições Afrontamento.
72
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM
VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA*
MÁRCIO RIBEIRO MARTINS**
JORGE RICARDO PINTO***
Resumo: Na mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo podemos encontrar diferentes
soluções de armação ou sistematização dos terrenos agrícolas que resultaram em paisagens de rara
beleza. O Douro é um território marcado pelo despovoamento, pelo abandono dos campos, mas também
pela introdução de novas construções que, de forma mais ou menos vincada, têm descaracterizado a
paisagem rural tradicional, e que contribuem, no entanto, para a sua diversificação e enriquecimento
enquanto património de uma paisagem cultural evolutiva e viva. Pretende-se com este trabalho, inserido
no projeto de investigação interdisciplinar e de intervenção cultural, financiado pela FCT, Raízes da
Educação para o Futuro (ReduF), descrever a evolução da paisagem rural das freguesias pertencentes ao
concelho de Murça, localizadas na região demarcada, e explicá-la a partir do conhecimento relativo às
dinâmicas sociodemográficas desse território, desde os finais do século XIX até à atualidade. Como
metodologia de trabalho, serão cruzadas informações estatísticas, nomeadamente de carácter demo-
gráfico e de atividade agrícola e vinhateira.
Palavras‑chave: paisagem; Murça; vinha; identidade; memória.
Abstract: In the oldest Demarcated and Regulated Region in the world, we can find different vineyard
structures that have resulted in landscapes of rare beauty. The Douro region is a territory marked by depop-
ulation, by the abandonment of agricultural land, but also by the introduction of new vineyard structures,
that in a more or less pronounced way, have mischaracterized the traditional rural landscape, contri
buting, however, to its diversification and enrichment as heritage of a cultural, evolving and living land-
scape. This research is part of the interdisciplinary research project and cultural intervention funded by FCT
— Raízes da Educação para o Futuro (ReduF) — and aims to describe the evolution of the rural land-
scape of Murça located in the Douro Demarcated Region, and explain it taking into account the socio-
-demographic dynamics of this territory since the end of the 19th century to the present. The methodology
is characterized by the use of statistical information related with demographic and agricultural data.
Keywords: landscape; Murça; vineyard; identity.
INTRODUÇÃO
Na mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo1 podemos encontrar dife
rentes soluções de armação ou sistematização dos terrenos agrícolas que resultaram
em paisagens de rara beleza. O Douro é um território marcado pelo despovoamento,
* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence aos autores deste texto.
** Doutor em Turismo (Universidade de Aveiro). Professor Adjunto na Escola Superior de Comunicação, Administração
e Turismo do Instituto Politécnico de Bragança e investigador integrado no CITUR (Centro de Investigação, Desenvolvi‑
mento e Inovação em Turismo).
*** Doutor em Geografia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Professor Coordenador no ISCET, e professor
convidado na FLUP. Investigador Integrado do CEGOT (Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território).
1
AGUIAR, 2002.
73
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
pelo abandono dos campos, mas também pela introdução de novas construções que,
de forma mais ou menos vincada, têm descaracterizado a paisagem rural tradicional, e
que contribuem, no entanto, para a sua diversificação e enriquecimento enquanto patri
mónio de uma paisagem cultural evolutiva e viva.
Pretende-se com este trabalho, inserido no projeto de investigação interdisciplinar
e de intervenção cultural financiado pela FCT, Raízes da Educação para o Futuro (ReduF),
descrever a evolução da paisagem rural das freguesias pertencentes ao concelho de
Murça localizadas na região demarcada e explicá-la a partir do conhecimento relativo às
dinâmicas sociodemográficas desse território, desde os finais do século XIX até à atua‑
lidade. A partir da análise destas dinâmicas, pretende-se contribuir para a promoção da
sua identidade cultural, «usando o potencial criativo do património simbólico de todas
as gerações, nas suas múltiplas vertentes»2.
Parte da sub-região de Cima Corgo, o concelho de Murça transporta, nos seus
socalcos e na sua topografia irregular, um longo percurso histórico que inclui achados
romanos, medievais ou modernos, nas margens do rio Tinhela, no alto do Pópulo ou em
pleno centro urbano, como a conhecida «Porca de Murça», rodeada de solares do s éculo
XVIII ou casarões oitocentistas. Território que mistura a Terra Quente com a Terra
Fria transmontana, de elevada produção de vinho e de azeite, as grandes propriedades,
as quintas vinhateiras e os quintais de produção doméstica têm recebido a introdução de
vários elementos disruptivos ou camaleónicos, de feição contemporânea, que produzem
novas leituras sobre paisagem, provocando a interrogação em torno de (pre)conceitos
estéticos, morfológicos ou identitários.
Como metodologia de trabalho, serão cruzadas informações estatísticas, nomeada‑
mente de carácter demográfico e de atividade agrícola e vinhateira, assim como será reali
zado um levantamento fotográfico sistemático que servirá de base para a compreensão
das transformações da paisagem, em diferentes temporalidades e escalas geográficas.
2
REDUF, 2022.
3
ALMEIDA, 1996: 21.
74
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
dos castros antes da chegada dos romanos, como o podem provar algumas grainhas
de presumível vitis vinifera datadas do Calcolítico, encontradas no «Buraco da Pala»,
em Mirandela. Todavia, «a produção da vinha seria nula ou de expressão reduzida no
começo do reinado de Augusto»4. É sobretudo a partir do século XII que se produz mais
documentação sobre as vinhas ou tributos pagos em vinho, quando surgem a lgumas das
mais antigas quintas da região. Devido à influência dos conventos cistercienses, a cultura
da vinha começa a difundir-se e a produção de vinho permitiria já a sua comerciali
zação para lugares mais distantes. Até ao século XVIII, intensifica-se a cultura da vinha
e, em 1756, o Marquês de Pombal institui os primeiros mecanismos de regulação do
mercado vinícola do Douro, criando a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas
do Alto Douro, que darão origem à primeira região demarcada e regulamentada de
vinhos de todo o mundo5.
O cultivo da vinha é a atividade responsável pelas mais profundas alterações ocor‑
ridas num território definido pelas suas encostas declivosas, pela dureza do xisto e pela
escassez de água durante os meses secos. Como refere o projeto de candidatura apresen‑
tado à UNESCO, só a observação permanente e intensa e o conhecimento profundo,
proveniente de uma experiência acumulada de séculos de trabalho, poderia explicar a
expansão da vinha e a consequente ocupação humana, perante características naturais
tão adversas ao desenvolvimento da agricultura.
Segundo Orlando Ribeiro6:
os socalcos, com que se quebra o pendor das encostas e se retém a terra arável, consti-
tuem um traço bem marcado em todas as paisagens de relevo do Noroeste e da Beira
e apesar da sua origem mediterrânea, foi a difusão da cultura do milho o principal
motivo da sua divulgação, depois aplicados a culturas de sequeiro que se expandiram
em data mais recente: as vinhas do Douro, os olivais das montanhas da Beira.
rização por não possuírem um acesso por uma «estrada» aos geios ou parcelas de c ultura.
A construção dos terraços era feita com muros de pedra seca, onde se plantavam as v inhas
segundo as curvas de nível.
Dentro das formas tradicionais, podemos ainda referir o período pré-filoxérico
com socalcos de menor dimensão e o período pós-filoxérico com terraços e muros de
maior dimensão. Por volta das décadas de cinquenta e sessenta do século XX, c omeçam
4
ALMEIDA, coord., 2006: 369.
5
MARTINS, 2005.
6
RIBEIRO, 1963: 83-84.
7
AGUIAR, 1987; MARTINS, 2005.
75
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
8
MARTINS, 1991: 653-654.
76
Tabela 1. Evolução das técnicas de armação das vinhas na RDD
Alteração do
Fiadas de Data de Sistemas de
Técnica de armação da vinha perfil natural Vantagens Desvantagens
videiras introdução drenagem
do terreno
FORMAS Socalcos ou geios Pequenas Uma a duas Século XIX. Existência • Aumento do número • Não permite a
TRADICIONAIS recuperados de alterações do fiadas de de bons de cepas por hectare mecanização.
(PERÍODO contorno arredondado. perfil original videiras. sistemas de (de 3500 pés para • Construção
PÓS-FILOXERA) drenagem. mais de 5000 por dispendiosa.
Plataformas dos Pequenas Permitem Século XIX. hectare).
socalcos inclinadas alterações do a plantação
(acompanham perfil original de trinta
o declive natural a quarenta
da encosta). fiadas de
videiras.
77
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
78
Alteração do
Fiadas de Data de Sistemas de
Técnica de armação da vinha perfil natural Vantagens Desvantagens
videiras introdução drenagem
do terreno
FORMAS Terracea- Patamares Grandes Uma fiada de Décadas Sistemas de • Permitem a mecanização. • Substituição dos muros
MODERNAS DE mento estreitos. alterações. videiras. de 1950 drenagem • Aumento do número de de pedra por taludes de
IMPLANTAÇÃO — vinha e 1960. negligencia- cepas por hectare. terra.
DA VINHA em Patamares Duas ou mais dos ou mal • Se a vinha for construída • Perda efetiva do terreno
EM TERRENOS patama- largos. fiadas de construídos. segundo as curvas de ou de área útil.
DE ENCOSTA res. videiras. nível em vertentes, com • Maior dificuldade em
declives entre 15 a 20%, controlar a vegetação
Segundo Uma ou mais
não há necessidade de espontânea.
as curvas fiadas de
alterar o perfil original • Maior quantidade de solo
de nível. videiras.
da encosta. mobilizado (que poderá
• A longo prazo verifica-se ser facilmente erodido).
uma melhoria da • Os taludes com alturas
fertilidade do solo devido muito elevadas
à redução das perdas dos conduzem a uma
componentes mais finos; dissecação muito intensa
• Os patamares propiciam do solo e aumentam o
boas condições de risco de desabamento
interceção da escorrência e erosão;
da água superficial; • A curvatura dos bardos
• Nos patamares estreitos, impede a máxima
todas as videiras são rentabilização de
plantadas na zona de determinadas operações
aterro (facilidade de culturais;
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Vinhas plantadas Pequenas Várias dezenas Décadas • Permitem a mecanização, • Surriba profunda,
segundo as linhas alterações do de fiadas de de 1950 mesmo em declives da o que pode favorecer
de maior declive perfil original. videiras. e 1960. ordem dos 70% o movimento de
(«vinha ao alto»). (mecanização realizada terras perante
com tração por guincho). precipitações
• Surriba profunda e intensas.
homogénea. • Construção mais
• Linhas de plantação retas e onerosa para declives
sem necessidade de serem iguais ou superiores
intercaladas com taludes. a 40-45%.
• Manutenção das
condições favoráveis de
exposição da e
ncosta.
• Boa adaptação ao c ritério
usual da posse da terra
em parcelas.
• Permite uma grande inten-
sidade cultural com vista
à máxima produtividade
da t erra (bom coeficiente
de utilização do solo).
79
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
TOTAL 28 301
9
MARTINS, 1991.
80
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
É neste contexto que, nos anos oitenta do século XX, começaram a surgir programas
de apoio de ajuda financeira aos agricultores (Tabela 2) para a reconversão e construção
de vinhas com formas modernas de armação, apoiadas na experiência adquirida nas
regiões vitícolas do continente europeu, e que, até ao momento, terão financiado a
reestruturação de mais de 28 mil hectares de vinha em toda a RDD.
A introdução de mecanização foi fundamental para ajudar a resolver o problema
da falta de mão de obra, mas também para melhorar a produtividade e, dessa forma,
contribuir para melhorar a sua competitividade.
Como refere Helena Pina10, «as directrizes da Organização Comum do Mercado
Vitícola, quando se referem às novas plantações de vinhas (transposto para Portugal
pela Portaria n.º 461 de 21 de Julho de 2000), apresentam vários desenquadramentos
com as especificidades durienses, pois estabelecem a área mínima de vinha a plantar em
1 ha, quando mais de 75% dos prédios possuem área inferior a 0,5 ha», v erificando-se
uma preocupante subvalorização do Baixo Corgo, «envolto num deficiente parcela
mento, enquanto se privilegiava cada vez mais o Cima Corgo, num quadro que se alonga
progressivamente para o Douro Superior, onde a expansão da vinha é uma realidade»11.
área total <= 0,1 9419 1447 -85% 421 88 -79% 13 132 2234 -83%
0,1 < área total <= 0,5 14 524 6654 -54% 3736 1814 -51% 37 860 17 965 -53%
0,5 < área total <= 1 5959 3849 -35% 4249 2785 -34% 27 026 17 683 -35%
1 < área total <= 2 4235 3222 -24% 5954 4602 -23% 27 391 20 904 -24%
2 < área total <= 5 3000 2684 -11% 9326 8371 -10% 25 374 22 174 -13%
5 < área total <= 8 667 771 16% 4137 4854 17% 6677 7751 16%
8 < área total <= 10 222 259 17% 1974 2320 18% 2228 2982 34%
10 < área total <= 20 414 480 16% 5602 6672 19% 5157 6761 31%
área total > 20 242 267 10% 10 140 12 201 20% 4659 6168 32%
TOTAL 38 682 19 633 -49% 45 539 43 708 -4% 149 504 104 622 -30%
10
PINA, 2004: 341.
11
PINA, 2004: 340.
81
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
2. METODOLOGIA
Como metodologia de trabalho, realizou-se uma revisão da literatura, com foco em
trabalhos publicados sobre a paisagem da Região Demarcada do Douro, seguida de um
cruzamento de informações de índole estatística, nomeadamente de carácter demográ
fico e de atividade agrícola e vinhateira. Procedeu-se ainda a um levantamento foto
gráfico sistemático do território em estudo, que serviu de base à compreensão das trans‑
formações da paisagem em diferentes temporalidades e escalas geográficas.
12
COSTA, 1992.
82
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
83
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
84
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
Total Total
Noura Noura Candedo Candedo Murça Murça
concelho concelho
2010 2020 2010 2020 2010 2020 Evol.
2010 2020
%
Área (ha) Área (ha) Área (ha) Área (ha)
F 2 1 2 1 17 8 21 10 -52%
G 4 2 2 1 3 0 9 3 -67%
H 1 0 0 0 1 0 2 0 100%
I 2 2 0 2 1 4 3 -25%
Notas: • período de referência — período a que a informação se refere. Pode ser pontual (um ano específico) ou
um intervalo de tempo (vários anos); • localização geográfica — da RDD, por sub-região, concelho e freguesia,
conforme definido no n.º 1, do artigo 3.º, do decreto-lei n.º 173/2009, de 3 de agosto; os totais por sub-região
e para a totalidade da região podem não coincidir nos quadros do bloco «viticultura», visto serem obtidos a
partir de parciais diferentes (por parcela, por exploração ou por sub-região), com diferentes arredondamentos
à unidade. Fonte: disponível em <www.ine.pt>. Cálculos dos autores
85
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Nota: a sigla AaF indica a área, dentro da área apta, que tem aptidão à produção de vinho do Porto
Fonte: INSTITUTO DOS VINHOS DO DOURO E DO PORTO, 2021
Qt.
Armação dos terrenos Apta AaF Não apta Ilegal
parcelas
Nota: a sigla AaF indica a área, dentro da área apta, que tem aptidão à produção de vinho do Porto
Fonte: INSTITUTO DOS VINHO DO DOURO E DO PORTO, 2021
86
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
São vinhas em patamares largos, por vezes, até plantadas «ao alto», contrariando a
tradicional organização em curvas de nível. Desse passado, avesso a máquinas e m otores,
de terraços com muros de pedra seca, pouco sobra. Esta nova forma de plantar é, de certa
forma, ainda que pareça paradoxal ou anacrónico, o velho Douro, reclamado por Miguel
Torga, quando criticava aqueles que «iam de Cadillac a uma vindima […] fotografá-la
13
DOMINGUES, 2019.
87
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
e descrevê-la depois num chá das cinco ou num jornal da tarde»14. A paisagem da vinha
em Murça não é embrulho nem souvenir, mas produto da cultura local e de fim produ‑
tivo, que não fica fechada em práticas antigas, mas que aprende e inova numa constante
adaptação.
Murça não é um território carregado de histórias e imaginários, nem um espaço
de overtourism ou gentrificação. Não é também um lugar «com excesso de identi
dade»15, como Álvaro Domingues chamou ao Douro, porque fica na sua franja, longe
dos grandes roteiros turísticos, do comboio e do rabelo, das grandes quintas e do lastro
da comunidade britânica de Oitocentos. Hoje, é ainda sobretudo um lugar da terra e do
agricultor, constituído, na sua essência, por aldeias que pontuam a cartografia, rodeadas
de pequenas propriedades.
14
MATTOSO et al., 2010: 203.
15
DOMINGUES, 2019: 47.
88
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
O verão quente, livre da chegada das massas húmidas atlânticas que o Marão b loqueia,
aquece a massa xistosa e adoça as uvas e o vinho. É um pedaço do abrasador Mediterrâneo
encostado ao inverno transmontano. Em Murça, há vinhas e oliveiras na encosta, mas
despontam também, aqui e ali, figueiras e marmeleiros, que nascem em recantos das
propriedades e em pequenas nesgas junto às estradas, produzindo um odor mélico e ofere‑
cendo fruta à dieta local. Há, ainda, uns poucos sobreiros, relíquias vivas de onde se extrai
89
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
cortiça, que permaneceram de um tempo distante. No topo das vertentes, onde a vinha já
não chega, há cristas quartzíticas, blocos rochosos, urze e um ou outro p inheiro, que resiste
a ventos e tempestades, desde as campanhas de florestação do passado.
Como qualquer outra paisagem dinâmica, que resiste à musealização ou à crista
lização, há alguns elementos novos que a alteram e complexificam, pese embora a manu
tenção significativa da dependência do contexto biofísico para as atividades económicas
da região. Em Murça, os principais mecanismos de construção de paisagem c ontinuam
a ser ditados pelos interesses dos produtores de vinho e do azeite. Além do mais,
não se notam extraordinárias ruturas por ação da industrialização ou da urbanização.
Os pequenos aglomerados não têm uma presença muito significativa de estruturas
de alojamento local, nem tampouco são encontradas grandes unidades hoteleiras
que p ossam criar sobressalto na organização do espaço ou na leitura tradicional da
paisagem. Como apontou Natália Fauvrelle, «é o equilíbrio entre a morfologia aciden‑
tada e o sistema construtivo e produtivo das arquitecturas da paisagem que confere a
qualidade e a especificidade à Região Demarcada do Douro e que a torna única e irrepe
tível»16. Há transformações de pormenor com a introdução de elementos de arquite
tura contemporânea em alguma construção nova, em acréscimos de pisos ou de anexos,
e determinadas substituições de edificado, num processo que não cria rutura, mas parece
promover uma certa continuidade. As aldeias, por ação do regresso de alguns m igrantes,
passam a ser pontuadas por alguns elementos novos, em regra discretos, notórios mais
por serem recentes que por disrupção, mas que não alteram radicalmente a escala
dos aglomerados, nem tampouco a leitura do conjunto. Do ponto de vista produtivo,
as novas adegas, com arquitetura de feição industrial, têm aparência discreta na p
aisagem,
aproveitando materiais locais e assumindo, na maior parte das situações, uma postura
camaleónica, desaparecendo na paisagem.
Fig. 7. Intervenções recentes em habitação própria e novas adegas (Candedo e Martim, respetivamente)
16
FAUVRELLE, 2008: 18.
90
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
CONCLUSÕES
Como foi possível observar ao longo deste trabalho, a paisagem vinhateira da Região
Demarcada do Douro e do concelho de Murça, em particular, reflete as mudanças
sociais, demográficas e económicas ocorridas nos últimos séculos. Demonstrou-se,
através da recolha e apresentação de alguns dados estatísticos relativos à demografia
e à ocupação do solo agrícola, que o território continua a ser palco de profundas alte
rações com impacto quer na forma de ocupar e trabalhar a terra quer nas opções arqui
tetónicas. Trata-se de uma paisagem dinâmica que, como foi referido, vai resistindo
à musealização ou à cristalização, apesar dos elementos novos que pontualmente a
alteram e complexificam. Marcado pelo despovoamento e pela falta de mão de obra,
foi necessário introduzir neste território novas formas de sistematização dos terrenos
que alteraram a paisagem agrícola tradicional, caracterizada pelos seus muros de pedra
e sistemas de drenagem que impedem os movimentos de terreno em períodos chuvosos
mais intensos. As vinhas em patamares ou as vinhas «ao alto» são hoje um elemento de
modernidade, demonstrando simultaneamente que a paisagem, apesar de menos habi‑
tada, continua viva e num processo de adaptação aos desafios da contemporaneidade.
Por conseguinte, procedeu-se neste trabalho à descrição da evolução da p aisagem
rural das freguesias vinhateiras de Murça e à explicação da sua evolução a partir do
conhecimento relativo às dinâmicas sociodemográficas desse território. Com base
na análise destas dinâmicas, foi possível estudar e conhecer mais profundamente os
coautores deste vasto património que, «usando o potencial criativo do património
simbólico de todas as gerações, nas suas múltiplas vertentes», tem um grande potencial
para a promoção da sua própria identidade cultural.
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92
II
PATRIMÓNIOS E
REPRESENTAÇÕES DA
PAISAGEM
93
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
94
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA
DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS
DO SÉCULO XVI: O LIVRO SEXTO
O LIVRO DAS
SEXTO DAS
SAUDADES DA TERRA *
CATARINA R. M. MADRUGA**
Resumo: Numa entidade tão complexa quanto o é uma paisagem cultural, constitui um desafio
compreender os tempos da sua constituição e transformação, e traçar a sua história. No presente artigo,
propomos contribuir para este conhecimento, debruçando-nos sobre a crónica de Gaspar Frutuoso
— Saudades da Terra —, e procurando entender como seria, à luz do que nos é transmitido por esta obra,
o território da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico em finais do século XVI, nas múltiplas facetas
que definem uma paisagem e no âmbito alargado da unidade em que esta se insere: a ilha do Pico.
Palavras‑chave: Açores; paisagem da cultura da vinha; ilha do Pico; história da paisagem; Gaspar
Frutuoso; património mundial.
Abstract: In such a complex entity as a cultural landscape, it is a challenge to understand the times of its
constitution and transformation and to trace its history. In this article we propose to contribute to this
knowledge by looking at the chronicle of Gaspar Frutuoso — Saudades da Terra —, and trying to under-
stand how it was, in the light of what is transmitted by this work, the territory of the landscape of the Pico
island vineyard culture in the late sixteenth century, in the multiple aspects that define a landscape and in
the larger scale of the unit in which it is included: the Pico island.
Keywords: Azores; landscape of the vineyard culture; Pico island; landscape history; Gaspar Frutuoso;
world heritage site.
INTRODUÇÃO
A escolha da obra Saudades da Terra como objeto do presente trabalho justificou-se por
recuar a um tempo em que o território em estudo não estava associado a uma produção
vinícola de grande escala e, também, por conter dados suficientes para visualizar, com
alguma consistência e objetividade, algumas características definidoras da ocupação
humana do território e da definição da sua paisagem.
A análise da crónica é feita sobre os dois capítulos do Livro Sexto das Saudades da
Terra dedicados à ilha do Pico1 e organizada de modo a consubstanciar-se na recolha e
análise de um conjunto de dados, ao qual se associou a construção de um conjunto de
diagramas cartográficos relativos a seis temas:
* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence à autora deste texto.
** Investigadora independente. Arquitecta pela FAUTL e pós-graduada em reabilitação urbana e arquitetónica pelo ISCTE.
Projetista em Lisboa, tem desenvolvido estudos sobre a paisagem da cultura da vinha da ilha do Pico, no âmbito de sua
formação e atividade profissional.
1
Capítulo quadragésimo — Do incerto descobrimento da ilha do Pico e de sua descrição pela costa em circuito; Capítulo
quadragésimo primeiro — Da descrição da ilha do Pico pelo meio da terra e de um incêndio que nela houve.
95
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
• divisão administrativa;
• lugares habitados;
• portos;
• população;
• atividades;
• atividade vitivinícola.
1. DIVISÃO ADMINISTRATIVA
As informações transmitidas por Gaspar Frutuoso em relação à divisão administrativa
da ilha do Pico indicam a existência de sete freguesias: três na vertente sul (São M ateus,
Lajes e Ribeiras); duas na vertente norte (São Roque e Prainha); uma na ponta nascente
(Piedade) e outra na base da montanha, no lado poente da ilha (Madalena). É também
indicada a existência de duas vilas — uma na vertente sul (Lajes) e outra na vertente
norte (São Roque) —, sendo sublinhada a importância destacada da primeira em relação
à segunda.
Não há um conhecimento garantido sobre como se terá processado o povoamento
inicial da ilha do Pico, mas existe a suposição de que o mesmo possa ter acontecido na
sua vertente sul, na zona das atuais freguesias das Lajes e das Ribeiras, o que poderia
contribuir para justificar a relevância da vila das Lajes no contexto da ilha no final do
século XVI2.
Embora, a partir dos dados da crónica, não seja possível aferir as dimensões e xatas
que as freguesias teriam, é viável ter uma ideia aproximada de algumas das suas e xtensões
ao longo da costa, pois Gaspar Frutuoso indica-o para as freguesias da Madalena e da
Piedade (ambas com cerca de duas léguas para sul e duas léguas para norte) e para a
freguesia das Lajes (que teria mais de três léguas de extensão). Considerando-se a possi
bilidade da localização das fronteiras entre as freguesias se ter mantido relativamente
2
CHAGAS, 1989: 507.
96
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
constante ao longo do tempo (com exceção das que correspondem aos acidentes vulcâ
nicos de 1718 e que poderão, portanto, ter sido alteradas, entretanto), estabeleceu-se
recorrer a estas para efeitos de representação gráfica. Em relação às datas de formação
das freguesias Gaspar Frutuoso indica apenas que a freguesia de São Mateus teria sido
criada em 1588.
Fig. 1. Diagrama cartográfico relativo à divisão administrativa da ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com
base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso
Da análise do diagrama cartográfico construído para este tema (Fig. 1), constata-se
a existência de uma divisão administrativa fortemente influenciada pela natureza topo‑
gráfica da ilha. Identifica-se uma organização do espaço administrativo determinado
pelo planalto — que divide as vertentes sul (das freguesias das Lajes e das Ribeiras) e norte
(das freguesias de São Roque e da Prainha) —, das quais se destaca a ponta n ascente da
ilha, de relevo mais suave (correspondente à freguesia da Piedade) e o cone da m ontanha
propriamente dito (correspondente às freguesias da Madalena e de São Mateus). Cumu‑
lativamente, esta divisão administrativa parece confundir-se, também, com os próprios
ritmos de povoamento da ilha, correspondendo, as freguesias da vertente sul e norte do
planalto, aos primeiros impulsos povoadores, e a ocupação da faixa do cone da montanha
a um segundo momento, decorrente da atribuição da capitania da ilha do Pico ao capitão
donatário da ilha do Faial, em finais do século XV.
Comparando a divisão administrativa elencada por Gaspar Frutuoso com a quela
que é descrita por frei Diogo das Chagas, em meados do século XVII, na sua obra
Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores (Fig. 2), verifica-se um aumento signifi‑
cativo do número de freguesias nesta mesma faixa que contorna a montanha, a poente,
e que corresponde a uma considerável extensão do atual território da Paisagem da
97
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
ultura da Vinha da Ilha do Pico (Candelária, Bandeiras e Santa Luzia). A criação destas
C
três novas freguesias em apenas meio século poderá ter decorrido de um crescimento do
número de habitantes, da criação de novas paróquias e do eventual aumento da impor‑
tância económica deste território.
Fig. 2. Diagrama cartográfico relativo à divisão administrativa da ilha do Pico em meados do século XVII, feito com
base na informação transmitida por frei Diogo das Chagas, na obra Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores
Este dado pode fazer supor que, entre a data da crónica de Gaspar Frutuoso e a
data da crónica de frei Diogo das Chagas, esta parte da ilha poderá ter sido palco de alte
rações relevantes, eventualmente consequência do início de uma atividade vitivinícola
mais expressiva.
2. LUGARES HABITADOS
São poucas as informações concretas fornecidas por Gaspar Frutuoso relativamente à
distribuição do espaço habitado na ilha do Pico, não sendo possível identificar claramente
qual a sua distribuição ao longo do território. Relativamente à maioria dos p ontos onde
se estabelecia o contacto com o mar para embarcar mercadorias, por exemplo, a pesar
de haver uma atenção descritiva em relação ao tipo de condições naturais e xistentes e
em relação ao uso específico que lhes era dado, não há informações concretas quanto à
existência, ou não, de núcleos habitados correspondentes.
Não obstante, existe a informação de que tanto o porto da Calheta do Nesquim
como o da Calheta da Prainha do Galeão estavam associados a pequenos aglomerados
habitados, com cerca de seis a sete vizinhos cada. Também é possível concluir, pela infor
mação transmitida, que as freguesias da Madalena, da Prainha e das Ribeiras seriam
habitadas na proximidade dos seus correspondentes portos. Existem dados, também,
relativos a uma povoação interior na freguesia da atual Piedade. A estes aglomerados que
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O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
foi possível identificar juntam-se as vilas das Lajes e de São Roque, claramente elencadas.
Por fim, é feita referência a um eventual núcleo habitado de uso provisório ou sazonal,
correspondente à presença de casas de pastores na freguesia de São Roque, junto a uma
lagoa na fralda da montanha.
Paralelamente a esta ausência de informações concretas sobre a identificação
de aglomerados habitacionais, há a indicação de que, tanto na freguesia da Madalena
como nas freguesias de São Mateus e da Piedade, a população estaria instalada de modo
disperso no interior do território, imersa nos então existentes e designados matos.
Fig. 3. Diagrama cartográfico relativo à distribuição dos lugares habitados na ilha do Pico, em finais do século
XVI, feito com base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso e informação atual relativa à distribuição das
ribeiras da ilha
99
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
O recurso à água existente nos pontos mais altos da ilha (das nascentes dos aquíferos
de altitude, decorrentes do degelo da montanha ou das lagoas existentes no planalto da
montanha), seria uma dessas estratégias, embora seja mencionado que a deslocação até
estes pontos da ilha «custa muito trabalho por os caminhos serem fragosos e c ompridos
[…] e trabalhosos»3.
Outra estratégia passaria por preservar a água das ribeiras (nas épocas do ano em
que dispunham de água), recorrendo aos seus acidentes geológicos, como sucederia
com a ribeira Seca da vila de São Roque, «que tem dentro em si grandes concavidades
de pedra onde está água das enchentes das chuvas; fica por espaço de muito tempo,
que dura e se bebe dela»4.
A estratégia de captar a água proveniente de aquíferos costeiros também serviria
para colmatar os poucos recursos hídricos, recorrendo-se à execução de poços de água
da maré de baixa-mar, ou retirando-a, salobra, de covas feitas de areia ao longo da costa,
conforme descreve Gaspar Frutuoso.
Por fim, e numa estratégia que ajudará a justificar não haver concentração das
zonas habitadas junto à costa nas freguesias que carecem de ribeiras, recorria-se às
árvores para a recolha de água das chuvas:
fazem riscos nos troncos das árvores, cortando-as à roda, como anéis inclinados de
uma banda, onde lhe põem por bica uma folha de árvore e, pondo nela umas jarras,
cabaças, ou tinas, se estão enchendo, enquanto chove de dia e de noite, e principal-
mente fazem isto nos louros, porque acham ser melhor e mais sadia água que o utra
nenhum; há muitos homens que edificam suas moradas […] em parte onde há
louros, antre os matos, por rezão de ali se poderem aperceber de água pera beberem5.
100
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
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SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
Fig. 4. Azores or Western Islas (c. 1841-1845), da autoria do capitão Alexander T. E. Vidal
Fonte: VIDAL, c. 1841-1845
3. PORTOS
No primeiro capítulo de Saudades da Terra dedicado à ilha do Pico é feita uma descrição
pormenorizada da sua costa, sendo indicados os vários locais que funcionavam como
zonas de aproximação de embarcações, bem como o tipo de mercadorias que aí eram
embarcadas. Com frequência, são indicadas, também, as condições de utilização desses
embarcadouros: a época do ano em que podiam ser usados; as dificuldades que apresen‑
tavam; o tipo de embarcações que os podiam utilizar, ou o modo como determinadas
mercadorias eram embarcadas quando uma maior aproximação à costa não era viável.
Numa época em que o arquipélago dos Açores (tal como outros espaços geográficos
ocupados no decurso da expansão marítima portuguesa) era visto como espaço vital
para extrair e produzir bens que suprissem as carências do território europeu e permi
tissem uma participação nas trocas comerciais de grande escala, garantir a existência de
meios para embarcar esses mesmos bens era um fator crucial.
Da leitura do conjunto dos embarcadouros disponíveis na ilha do Pico ressalta
a utilização das condições naturais preexistentes — de baías, praias e «pontas» —,
101
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fig. 5. Diagrama cartográfico relativo aos portos/pontos de embarque da ilha do Pico, em finais do século XVI, feito
com base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso
6
FRUTUOSO, 1978: 292.
102
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
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SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
conduzidas, ao longo de rampas, até ao mar, para serem embarcadas, conforme se ilustra
no diagrama comparativo (Fig. 6).
Fig. 6. Diagrama cartográfico relativo aos portos/rola-pipas existentes na atualidade na Paisagem da Cultura da
Vinha da Ilha do Pico, com sobreposição das posições dos portos/pontos de embarque de finais do século XVI,
citados por Gaspar Frutuoso
4. POPULAÇÃO
As informações relativas ao número de habitantes apresentadas por Gaspar Frutuoso
surgem no decorrer de estatísticas eclesiásticas (provavelmente de róis de confessados e
comungados) e são apresentadas para cada uma das freguesias em separado. Incluem o
número de almas de confissão, o número de almas de comunhão e o número de fogos7.
O número de almas de confissão corresponderia ao número de todos os residentes
da freguesia, com exceção dos menores de 7 anos. O número de almas de comunhão
abarcaria todas as raparigas e mulheres residentes com 12 ou mais anos e todos os r apazes
e homens residentes com 14, ou mais anos. Subtraindo estes dois parâmetros (número
de almas de confissão e número de almas de comunhão) é possível estimar o número
de residentes entre os 7 e os 12 ou 14 anos (conforme sejam raparigas ou rapazes),
tendo este valor sido incluído no respetivo diagrama relativo à população da ilha.
O número de fogos estaria associado ao número de todos os núcleos familiares,
sedes de família ou cabeças de casal. Segundo Artur Boavida Madeira, tem sido comum
a utilização do coeficiente 3,5 para uma aproximação ao total da população a partir
deste dado, mas parece não haver consenso quanto à sua adequação8. Como neste caso,
7
Para a freguesia das Ribeiras só é indicado o número de vizinhos, correspondente ao número de núcleos familiares,
sedes de família ou cabeças de casal com mais de quatro anos de residência fixa.
8
MADEIRA, 1999: 141.
103
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
ao aplicar os coeficientes 3,5 e 4,0, o valor resultante apresentou-se mais baixo do que
o número de almas de confissão — o que seria um contrassenso —, fixou-se o intervalo
entre 4,5 e 5 para a estimativa da população total de cada freguesia, baseando-nos no
facto de João Alves Dias apontar os coeficientes 4 e 5 como os limites para a realidade
portuguesa continental da mesma época9.
Complementarmente a estes dados numéricos, Gaspar Frutuoso faz referência
a elementos caracterizadores da organização social que permitem compreender um
pouco mais o tipo de tecido social existente em cada freguesia. Por um lado, indicando a
existência de cargos específicos, como sejam o de vigário, de capitão de guerra, de bene
ficiado ou de tesoureiro. Por outro lado, indicando a existência de «homens nobres e
ricos» e registando (para o caso das freguesias das Ribeiras e das Lajes) os apelidos das
famílias que considerava, neste âmbito, relevantes.
Para as freguesias das Lajes e de São Roque, Gaspar Frutuoso descreve, também,
a existência de pessoas que se teriam diferenciado pela sua riqueza, pelo seu poder ou p elos
contactos sociais que estabeleciam, reforçando a importância destas duas vilas/freguesias
na trama social da ilha do Pico e do arquipélago, como seria o caso de Fernão d ’Alvres
(«que foi em seu tempo monarca da ilha do Pico» ) ou de André Roiz, considerado
10
«o mais rico de toda a ilha, […] vivia com muito mais aparato que todos e se carteava com
Pedreanes do Canto, que era o principal da ilha Terceira, e com Jos Dutra, capitão do Faial,
cada um dos quais, em cada uma das ilhas em que vivia, fazia o que queria»11.
Paralelamente à descrição destes elementos sociais destacados, Gaspar Frutuoso
faz referência a alguns hábitos, como sejam o calçado mais comum — as tradicionais
albarcas —, que o autor descreve como «não são senão um pedaço de pele que cobre o
pé, o qual cosem ou atam com umas correias do mesmo couro»12 e que se mantiveram
em uso até ao século XX; ou da apresentação dos cabelos, que usariam «pera dentro ou
pera fora, como lhes mais contenta»13, ficando a perceção da existência de um ambiente
social de alguma informalidade ou da existência de uma camada social com recurso
e acesso a bens, mais limitado.
Uma referência expressa à riqueza e à pobreza — bem como à sua relação direta
com a posse de terras —, é feita pelo autor, quando refere as escoadas lávicas (decorrentes
do episódio vulcânico da Prainha) terem destruído «muitas terras de homens ricos, que
com isso ficaram pobres, por perderem ali suas herdades e fazendas»14. Esta constatação
sugere que, para se conseguir atingir e manter um determinado estatuto económico,
9
MADEIRA, 1999: 141.
10
FRUTUOSO, 1978: 293.
11
FRUTUOSO, 1978: 302.
12
FRUTUOSO, 1978: 303.
13
FRUTUOSO, 1978: 303.
14
FRUTUOSO, 1978: 303.
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O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
seria fulcral dispor de propriedades. Ainda sobre o mesmo acidente v ulcânico, Gaspar
Frutuoso também refere a fuga de habitantes da ilha, testemunhando um dos impactos
dos fenómenos vulcânicos nas oscilações demográficas do arquipélago.
Outro dado importante da crónica, diz respeito à menção da existência de feitores
e de proprietários exteriores — que residiriam, sobretudo, noutras ilhas do arquipélago
— em duas zonas da atual Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico. Este tipo de
relação de posse será, no futuro, muito evidente na constituição deste território enquanto
espaço de atividade vitivinícola, sendo interessante constatar a sua existência nesta época.
Por fim, uma descrição presente na crónica relativa ao modo como os botes do
Faial eram chamados para transportar pessoas da freguesia da Madalena indica que
haveria um trânsito relativamente regular de pessoas entre estas duas zonas das ilhas.
Não se sabe ao certo o que justificaria estas viagens, sendo uma possibilidade a venda
de produtos e a compra de cereais (dada a sua elevada carência nesta parte da ilha do
Pico), eventualmente decorrente de uma maior proximidade, por mar, da freguesia
da Madalena à vila da Horta, comparativamente às vilas das Lajes e de São Roque.
Este trânsito de pessoas entre as duas ilhas ganhou pujança e manteve-se até aos dias de
hoje e foi também uma das particularidades das dinâmicas sociais associadas à Paisagem
da Cultura da Vinha da Ilha do Pico.
Fig. 7. Diagrama cartográfico relativo à população da ilha do Pico em finais do século XVI, feito com base na
informação transmitida por Gaspar Frutuoso
105
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
5. ATIVIDADES
O tipo de atividades de extração e produção praticadas e o tipo de mercadorias embar
cadas são outros dos temas presentes na crónica de Gaspar Frutuoso em relação à ilha
do Pico, acompanhados de informações sobre a vegetação, o solo e a presença de água na
ilha, que permitem enquadrar de um modo mais completo alguns dos motivos e formas
de desenvolvimento destas mesmas atividades.
O cultivo de cereais, que seria um dos principais objetivos iniciais nos territórios
do arquipélago, não era fácil na ilha do Pico. Em relação à sua população, por exemplo,
é referido na crónica que «come esta gente muito pouco pão por o não dar a terra»17,
havendo apenas referência à produção e embarque de trigo para a freguesia da Prainha,
e de produção de trigo, em pequena escala, para a freguesia das Lajes. Não havendo
abundância de cereais, a alimentação local baseava-se, segundo Gaspar Frutuoso,
sobretudo no consumo de abóboras, «dentabrum» (a partir da qual, assado e triturado,
fariam pão), talos de funcho, nabos, figos e pescado.
A dificuldade do cultivo de cereais — que implicava poder dispor de terrenos
aráveis — terá decorrido, numa parte considerável do território, de existir solo, muitas
formações rochosas à superfície e pedras soltas depositadas sobre os terrenos, decor‑
rentes de fenómenos vulcânicos («é toda a terra desta ilha mui áspera e muita parte dela
coberta de biscouto»18 e «não tem mais terra que a que se faz das folhas das árvores»19).
Se, por um, lado estas características poderão ter determinado a impossibilidade de
cultivo de cereais, por outro lado a presença de formações rochosas e de pedras de origem
vulcânica nos terrenos é reconhecida como podendo ser uma vantagem para o cultivo de
árvores de fruto e de vinhas («pedra mais quente, pera criar muito arvoredo e vinhas e
muita fruta de espinho de larangeiras, cidras e limeiras, e limões franceses e de sumo»20).
15
FRUTUOSO, 1978: 291.
16
FRUTUOSO, 1978: 292.
17
FRUTUOSO, 1978: 303.
18
FRUTUOSO, 1978: 302.
19
FRUTUOSO, 1978: 289.
20
FRUTUOSO, 1978: 304.
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O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
No âmbito das atividades é, também, dito haver muitos citrinos na ilha, de elevada
qualidade, como cidras, limas e limões franceses e de sumo, sendo mencionada expres
samente a sua produção na freguesia das Ribeiras. Os citrinos eram muito p opulares
à época, sobretudo, para a produção de conservas de açúcar (similares às atuais
frutas cristalizadas) não se sabendo, no entanto, se os citrinos produzidos na ilha do
Pico eram usados ou comercializados para tal. Paralelamente à existência de citrinos,
Gaspar Frutuoso também refere haver muitos e bons pêssegos, marmelos, maçãs e figos.
Uma das atividades que aparece referida com particular relevo ao longo da crónica
é a extração de madeira. Em praticamente todos as zonas de portos, esta é referida como
sendo embarcada em grande quantidade, de espécies variadas e/ou para usos específicos
como, por exemplo, para queimar ou construir carros e arados, atestando a abrangência
da importância da madeira na economia da época. Na descrição sobre as atividades das
freguesias das Lajes, é referido também, sobre a madeira, que esta «se tira do mato» e,
especificamente para a freguesia da Madalena, que os habitantes cortariam muitos tipos
de madeira e que a venderiam para outras ilhas, atestando o seu uso para fins comerciais
e a sua elevada disponibilidade.
Analisando o texto, encontram-se várias referências à existência de floresta (desig
nada de «matos») e de troços do território em que a mesma se estenderia até ao mar,
como é o caso da costa entre a Calheta de Nesquim e Santa Cruz das Ribeiras; da costa
entre os Calhaus do Galeão e de Domingos Gonçalves; da costa entre a Madalena e os
Lajidos; da costa entre a Furna de Santo António e o Cais do Norte; da atual zona da Baía
das Canas, ou da costa entre a Prainha e Santo Amaro.
A indicação expressa da presença de floresta nestes troços de costa, juntamente
com a indicação de que a população das freguesias da Madalena e de São Mateus v ivia
«metida antre os matos», permite supor que algumas partes do território da ilha do
Pico ainda não teriam sofrido um processo massivo de desflorestação, sendo mencio‑
nada por Gaspar Frutuoso a existência de diversas espécies na ilha: cedros, sanguinhos,
ginja, pau-branco, faias, louros, tamujo, urzes de grandes dimensões, zimbro e teixos
(que existiriam na freguesia de São Roque e teriam a sua extração limitada).
107
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fig. 8. Diagrama cartográfico relativo à extração de madeira na ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com base
na informação transmitida por Gaspar Frutuoso
Outra das ocupações que surge mencionada com frequência, tanto na descrição
das mercadorias embarcadas como das atividades desenvolvidas em cada freguesia, é a
criação de gado, que estaria de tal modo disseminada pela ilha que Gaspar Frutuoso diz
sobre o mesmo que «em qualquer parte que uma pessoa está da ilha do Pico lhe parece
que o tem [gado] junto de si e sobre sua cabeça»21.
É referida, inclusivamente, a existência de pessoas destacadas na sociedade que
se dedicavam a esta atividade, comprovando o sucesso da mesma, como Amaro Pires,
Rodrigalvres ou André Gonçalves, feitor de Dona Violante.
A criação de gado implicava dispor de zonas de pastagens e de água, o que poderá
ter sido conseguido recorrendo às zonas de maior altitude da ilha, mais húmidas, com
lagoas de água permanente e, eventualmente, já desflorestadas. O uso destes territórios
da ilha para a pastorícia poderá ter sido feito sazonalmente, pois, conforme Gaspar
Frutuoso escreve:
Os gados de toda a sorte, […] como vêm de Maio por diante, que se desfaz a
pedra [neve], se acolhem todos arriba dele [na montanha], por lhe não faltar lá o
pasto e água […] e, corno torna o mês de Setembro, os mesmos gados se acolhem logo
abaixo pera as terras feitas, por não poderem lá sofrer a muita frieza22.
21
FRUTUOSO, 1978: 298.
22
FRUTUOSO, 1978: 298.
108
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
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SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
Fig. 9. Diagrama cartográfico relativo à criação de gado na ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com base na
informação transmitida por Gaspar Frutuoso
Fig. 10. Diagrama cartográfico relativo ao resumo das atividades e dos bens embarcados na ilha do Pico, em finais
do século XVI, feito com base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso
23
FRUTUOSO, 1978: 291.
109
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Na sua produção, o pastel implica o cultivo da planta, o esmagamento das partes colhidas,
a moldagem de «bolos» e a sua secagem, exigindo a existência de utensílios e espaços
específicos — das roças onde seria feita a trituração aos tabuleiros nos quais seria feita
a secagem, por exemplo —, apontando para a necessidade de um investimento prévio
nestes meios.
Por outro lado, sendo um produto de aplicação muito específica e usado, s obretudo,
em meios de alguma sofisticação económica (pois serviria para tingimento de tecidos e
produção de tintas), é expectável que o pastel não fosse destinado a ser comercializado
dentro do arquipélago açoriano (como é expectável que pudesse suceder com o gado e a
madeira), mas destinado à exportação para o continente europeu.
6. ATIVIDADE VITIVINÍCOLA
Apesar da importância destacada da extração de madeira e da criação de gado no q uadro
das atividades desenvolvidas e nos produtos expedidos na ilha do Pico no final do
século XVI, existem referências à atividade vitivinícola na crónica de Gaspar Frutuoso,
nomeadamente a referência de que o vinho da ilha do Pico seria «melhor que em todas
as ilhas»24.
São quatro as freguesias associadas a este tipo de atividade — São Roque, Prainha,
Ribeiras e Lajes —, sendo claramente identificada a produção de vinho nas quatro
primeiras e havendo referência, em relação à freguesia das Lajes, a «muitas vinhas,
que vão em muito crescimento».
Fig. 11. Diagrama cartográfico relativo à produção de vinho na ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com base
na informação transmitida por Gaspar Frutuoso
24
FRUTUOSO, 1978: 303.
110
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
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SAUDADES DA
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Fig. 12. Diagrama cartográfico relativo à estimativa da produção de vinho na ilha do Pico num cenário de produção
intensa, equivalente à existente na freguesia da Ribeiras, por Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI
25
FRUTUOSO, 1978: 303.
111
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Com vista a obter uma estimativa do que poderia acontecer na globalidade da ilha
do Pico num hipotético cenário de produção de vinho equivalente ao praticado no final
do século XVI na freguesia das Ribeiras, foi calculada, em traços largos, a área de terri
tório que poderia ser considerada adequada para o cultivo da vinha26. Com base na área
obtida, elaborou-se uma relação de equivalência com o número de pipas que p oderia ser
produzido em cada freguesia, obtendo-se os resultados registados no respetivo diagrama
cartográfico (Fig. 12). Os valores obtidos através desta estimativa são particularmente
impressionantes pela sua grandeza. O número total de pipas de vinho produzidas,
por ano, em toda a ilha do Pico seria, neste cenário conjeturado de exploração intensa
e massiva, de quase 40 mil pipas. Curiosamente, este seria o valor registado pelo padre
Manuel Luís Maldonado, na Fénix Angrense, para o número de pipas de vinho produ
zidas na ilha do Pico no ano de 1658.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Face à análise feita ao longo do presente trabalho, considera-se não ser possível concluir
que, no final do século XVI, existissem práticas vitivinícolas com uma dimensão rele‑
vante na parcela de território da ilha do Pico atualmente classificado como Paisagem da
Cultura da Vinha da Ilha do Pico.
A ausência de referências às atividades de cultivo de vinha, de produção e de
embarque de vinho para esta parte do território da ilha, associada à existência de uma
população de dimensões reduzidas face às restantes zonas da ilha, sugere que a prática
vitivinícola não tivesse, aqui, expressão ou fosse de importância comercial residual.
Outro dos fatores que contribui para a presente conclusão é a relevância com que
é mencionada a extração e o embarque de madeira e a criação e o embarque de gado
para este território, sugerindo que, à época, estas talvez fossem as suas atividades mais
destacadas e proveitosas.
A descrição de uma presença relativamente abrangente de matos em troços signi‑
ficativos desta parte da ilha suscita, também, que ainda não teria havido um processo de
deflorestação intenso e que, portanto, ainda não existiriam grandes extensões de terreno
disponíveis para o cultivo da vinha, como mais tarde se verificaria.
Não obstante esta constatação, considera-se que a crónica revela algumas caracte‑
rísticas que podem ser entendidas como embrionárias do que viria a ser a Paisagem da
Cultura da Vinha da Ilha do Pico.
Por um lado, a constatação da existência de dinâmicas de proximidade e de depen‑
dência deste território da ilha do Pico em relação a outras ilhas do arquipélago, ilustrada
pela presença de transporte relativamente regular de pessoas entre a ilha do Pico e a ilha
26
Estabeleceu-se como limites da área a considerar a linha de costa e a linha de cota sensivelmente equivalente à mais
elevada da zona de cultivo da vinha na futura paisagem da cultura da vinha da ilha do Pico.
112
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA
27
Sendo esta Ilha em seus princípios tam áspera e intractavel, que muitos tempos não teve mais de hua so parochia e
hua so Igreja forão a cultivando, e domando do modo, que toda hoje em roda de cultiva, e habita, sendo a maior parte,
ou quasi todas as lavouras della vinhas, de que se colhem muitos mil pipas que rendem muitos mil cruzados, e só pera o
nosso Convento do Fayal se tirão da banda do Norte de Candelaria, até Prayinha, que não he meia ilha, 40 e 50 pipas de
esmola. CHAGAS, 1989: 523.
113
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
FONTES IMPRESSAS
CHAGAS, Frei Diogo das (1989 [1654]). Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores. Angra do Heroísmo:
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FRUTUOSO, Gaspar (1978 [1590]). Livro Sexto das Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto da Cultura
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VIDAL, Alexander T. E. (c. 1841-1845). Azores or Western Islas. [Consult. 20 abr. 2021]. Disponível em
<http: davidrumsey.com>.
114
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO
— APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS
PAISAGENS LITERÁRIAS DE PORTUGAL
CONTINENTAL
CONTINENTAL
ANA LAVRADOR*
Resumo: Neste artigo são apresentadas três propostas de itinerários literários no Alto Douro Vinhateiro.
A construção dos itinerários parte do enredo dos romances: A Noiva de Caná, de António Cabral,
Vindima, de Miguel Torga, e Porto Manso, de Alves Redol. Nas três rotas desenhadas, nos lugares de
paragem propostos, são indicados excertos literários com interesse para a interpretação das paisagens e
das vivências do Douro vinhateiro, importantes valias no desenvolvimento do turismo. Os excertos
constam de uma base de dados georreferenciada, no âmbito do projeto LITESCAPE.PT — Atlas das
Paisagens Literárias de Portugal Continental, assente na ecocrítica enquanto perspetiva de abordagem
da paisagem representada nas obras literárias.
Palavras‑chave: itinerários literários; turismo; Douro; projeto Atlas das Paisagens Literárias de
Portugal Continental.
Abstract: This article presents three proposals for literary itineraries in Alto Douro Vinhateiro. The design
of the itineraries is based on the plot of the novels: A Noiva de Caná, by António Cabral, Vindima, by
Miguel Torga, e Porto Manso, by Alves Redol. On the three routes, in the proposed stopping places excerpts
picked from the novels should be read, in order to better understand Douro landscapes and lifestyles, both
with tourism potential. The excerpts are picked from a georeferenced database, within the scope of the
LITESCAPE.PT project — Atlas of Literary Landscapes of Mainland Portugal, based on the ecocriticism as
a perspective of approaching the landscape representation in literary works.
Keywords: literary itineraries; tourism; Douro; Atlas of Literary Landscapes of Mainland P
ortugal
project.
INTRODUÇÃO
A literatura e a paisagem são importantes mais-valias na promoção e desenvolvimento
de um turismo cultural sustentável para as regiões1.
Por um lado, a literatura viabiliza relações emocionais e espaciais com a paisagem,
é uma forma de promoção de conhecimentos e de divulgação do património natural,
histórico e cultural das regiões, logo, representa um recurso, um «património literário»
e um produto vendável2.
* Doutora em Artes e Técnicas da Paisagem, Investigadora no CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais)
e IELT — FCSH, UNL (Instituto de Estudos de Literatura e Tradição — Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa).
1
UNESCO, 2010.
2
HOWARD, 2003 apud QUINTEIRO, HENRIQUES, 2012.
115
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Por outro lado, a paisagem, muitas vezes apenas considerada pano de fundo
a trativo da experiência turística3, é, na realidade, um sustentáculo físico e cultural para
o turismo. Com efeito, a paisagem é uma manifestação da interação da natureza com a
cultura, reflexo da economia e dos valores simbólicos, do indivíduo e das sociedades,
num determinado tempo e espaço4. Nesse sentido, a paisagem pode moldar decisi‑
vamente o produto oferecido e a forma como este pode ser apresentado e usufruído
pelo visitante5. Acresce que a paisagem é sempre o resultado de uma representação,
que advém em parte do real-racional e também de uma experiência sensorial, o que a
liga fortemente às representações literárias6.
No plano da aplicação, em associação com o conceito de paisagem e distinto de
enoturismo, surgiu recentemente o conceito de «turismo de terroir»7, um conceito inte
grado que inclui desenvolvimento regional, produto enoturístico, viticultura, enologia e
identidade. Nos territórios vinhateiros de elevado potencial económico, como o caso dos
patrimónios UNESCO, como o Alto Douro Vinhateiro, com elevadas taxas de mecani
zação e automação, é mais acutilante a preservação dos valores de diferenciação que os
caracterizam e conferem potencial de desenvolvimento no âmbito do turismo. Nesse
sentido, é crucial a atividade turística seguir o paradigma de sustentabilidade, oferecendo
produtos interpessoais ou experiências que respeitem as tradições, os rituais e as paisagens8.
Os itinerários literários permitem ir ao encontro desse tipo de desenvolvimento,
através da obtenção de experiências sensoriais e culturais enriquecedoras e oferecer
momentos de aprendizagem e de bem-estar, pois são leituras emotivas dos espaços
visitados9. Esses roteiros são igualmente estímulos à imaginação10, potenciando a valori
zação das obras literárias e a descoberta dos autores11.
No plano territorial, os itinerários literários podem ser definidos como «mapas
sobre os quais se localizam e sinalizam no espaço físico os pontos exatos em que se dá a
interseção entre a referência literária e a realidade»12. A cartografia literária atende a três
tipos de fontes: percursos realizados pelos escritores; lugares associados à vida/morte
dos autores; e textos que referem paisagens e lugares. Nesse sentido, as representações
literárias contribuem para o conhecimento do património natural, socioeconómico e
cultural dos lugares e regiões13.
3
MITCHELL, CHARTERS, ALBRECHT, 2012; GALLOWAY et al., 2008; CARMICHAEL, 2005.
4
COSGROVE, 1998.
5
MITCHELL, CHARTERS, ALBRECHT, 2012.
6
COLLOT, 2011.
7
HOLLAND, SMIT, JONES, 2014.
8
RUIZ PULPON, CAÑIZARES RUIZ, 2019.
9
LOUSADA, AMBRÓSIO, 2017 apud CONSTÂNCIO, ALVES, QUEIROZ, 2019.
10
WALFORD, RAYNER, 2019.
11
ROBINSON, 2002.
12
QUINTEIRO, 2019: 4.
13
LEWIS, 1985; CRANG, 1998.
116
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL
14
LAVRADOR, 2011.
15
UNESCO, 2001.
16
UNESCO, 2001.
17
CASTILLO RUIZ, 2013.
18
CABRAL, 1996.
19
TORGA, 1945.
117
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
1. PROCESSOS METODOLÓGICOS
A construção dos itinerários assenta em narrativas extraídas das obras dos escritores
durienses António Cabral e Miguel Torga, e de Alves Redol, escritor com uma forte
ligação ao Douro. Utilizaram-se os enredos dos romances enquanto guias das rotas
turísticas propostas, o que promove não só o conhecimento das obras literárias e dos
seus autores, como informação relevante sobre as paisagens durienses e sensibilização
dos visitantes e turistas para a sua preservação e qualificação.
As obras analisadas foram integralmente lidas, e seccionados excertos integrados
na Base de Dados (BD) do projeto LITESCAPE.PT — Atlas das Paisagens Literárias de
Portugal Continental, coordenado pelo IELT (FCSH-UNL).
O projeto LITESCAPE.PT enquadra-se no ecocriticismo21, ou ecopoética22, no qual
se procura refletir sobre a problemática ambiental, a partir da interação entre a literatura,
as ciências, a filosofia e as artes. Os excertos estão georreferenciados na BD do p rojeto
LITESCAPE, uma mais-valia de relevo para a construção dos itinerários literários.
O facto do projeto LITESCAPE integrar obras literárias do século XIX à atualidade
permite, a quem visita as regiões, no caso, o Alto Douro Vinhateiro, estabelecer uma
análise comparativa entre as paisagens do passado e as da atualidade, refletir sobre a
evolução temporal dos territórios e as suas consequências sobre valores ambientais,
patrimoniais e identitários23. Na BD, os excertos estão georreferenciados e associados a
descritores geográficos (geomorfológicos, uso do solo, elementos do património m aterial
e imaterial, atividades socioeconómicas) e ecológicos (espécies da fauna e da flora).
Os itinerários pretendem ter um modelo comum, que integra: a) espaço e tempo
previstos — que devem ser flexíveis; b) objetivos — integrar uma panóplia alargada
de interesses turísticos; c) exigências específicas — oferta de atividades alternativas,
ao encontro de eventuais motivações individuais de públicos específicos.
20
REDOL, 1946.
21
RUECKERT, 1978.
22
HÖLDERLIN apud PINEDA MUÑOZ, 2004.
23
LOWENTHAL, PRINCE, 1965; KENT, VUJAKOVIC, 2018.
118
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL
2. ITINERÁRIOS LITERÁRIOS
i) O itinerário «Roga» foi construído a partir da obra A Noiva de Caná, de António
Cabral, que representa vicissitudes sociais e económicas alusivas às vivências dos proprie
tários e empregados de uma quinta produtora de vinho do Porto. O percurso assenta em
descrições do romance que representam a roga que parte de Jales, lugar de origem dos
protagonistas da novela (Cristina — Cidadelha de Jales e Francisco — Cerdeira de Jales),
jovens vindimadores e futuros caseiros da Quinta das Combareiras, em Castedo (Alijó),
lugar central da novela, um percurso com cerca de 36 quilómetros (Fig.1 e Tabela 1).
119
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
ITINERÁRIO «ROGA»
1. JALES — visita guiada às minas de Jales e às aldeias mencionadas no romance, nomeadamente as aldeias natal de
Cristina (Cidadelha), «os cherrubiais» (chirivia — Pastinaca sativa, forrageira) «de Cidadelhe não dão quase para
nada» (p. 35), e de Francisco (Cerdeira), e aldeia de Vreia de Jales.
2. FIOLHOSO — lugar de contratação de vindimadores. Perceber impactos da emigração na aldeia, por exemplo,
na tipologia das casas e na sua ocupação anual.
3. LEVANDEIRA — leitura de excertos: lugar de encontro dos vindimadores de diferentes aldeias. «A roga tinha umas
vinte pessoas e juntou-se toda na Levandeira, a seguir ao Fiolhoso. Setembro ia no fim e o sol picava menos,
atarefado que andava a malhar umas nuvenzitas que lhe apareciam no caminho e donde ele, pelo visto, assim dizia
uma velhota, tirava os grãos de milho que à noite espalhava pela abóbada: eram as estrelas» (p. 29).
4. MURÇA — merenda na escola básica e secundária e leitura de excertos relativos à personagem Cristina (a Noiva
de Caná) que, conforme o romance, teria estudado nessa escola. «Lembrou-se das queijadas de Murça que tão bem
sabiam, quando havia desta na escola. Lembrou-se das casinhas da sua terra, algumas bem pobrezinhas, mas lindas,
lindas: era ali que tinha brincado, era ali que via pousar o sol e levantarem voo as andorinhas» (p. 36).
5. ALTO DO PÓPULO/PÓPULO — «pontos estratégicos, Ponte de Ribeira ou Alto do Pópulo» (p. 271). Ficha de
observação da paisagem.
6. RIBALONGA — lugar de contratação de vindimadores: «a poda das videiras e a apanha da azeitona. Para a primeira
trazia cinco montanheiros da Ribalonga o que pôde arranjar e era pouco, com tanto vinhedo pela frente, nesta
quinta que, se fosse minha, ainda havia de ter mais, surribava os olivais (p. 29). Antes da Chã, terra de muitos
castanheiros e grandes nabais» (p. 30).
7. CHÃ — almoço piquenique, idealmente com alguns produtos da região e registados no romance. «Estava
combinado irem numa camioneta do Loja Nova, de Alijó, mas, à última hora, soube-se que aquele ferro velho tinha
avariado e o remédio era seguirem, como dantes, a butes, estrada abaixo, uma pousa na Chã para a trincadeira»
(p. 29); «vinha trabalhar, sim, mas se lhe desse boas lecas, as mulheres quase tanto como os homens e vinho e carne
à lagúrdia, que se pudesse ver, nada de milhos com uma sardinha e arroz de feijão com toucinho, mesmo frango de
aviário a escangalhar- se nas unhas, à primeira trincadela» (p. 41); «Beber vinho por uma malga de barro grosseiro.
Assar um courato no lume» (p. 166); «doce da Teixeira» (p. 210); «— Ora, fazeis uma salada de bacalhau» (p. 210);
«Não há melhor aperitivo para uma travessa de peixes, pequeninos como fósforos, e para uma caçarola de coelho
do monte, sabor de estevas e queiroga, do que um cálice de vinho velho saboreado numa quinta do Douro,
enquanto a paisagem entra sinfonicamente no olhar desabitado» (p. 9); «malguinha de tripas» (p. 246).
8. PRESANDÃES — curiosidades da vivência de uma roga: «Os homens dos ferrinhos eram de Castedo e quem
tocava o bombo era um fedelho, filho de um deles, rapaz de uma figa, zupa-me nessa coisa a valer, assim, mais,
ora aí está, bum, bum, mestre Zé Pereira, palrava insofrido, subitamente iluminado, o Chico [Francisco], de alcunha
o bispo, que ia deitando o rabo do olho para a loira [Cristina], cintura fina como uma cabaça cheiinha de vinho a
espumar. Cantar não era com ele, mas havia ali quem o fizesse como mandam as ventarolas: o Tino, o Tino Raboto
de Cidadelhe, irmão da loira, que não saía de ao pé dela por mor dos beliscões. Quando passaram em deslado da
Ribalonga, o Chico deu conta que um mariola e uma gaurina do bando se atrasaram e meteram entre umas giestas»
(p. 30).
9. ALIJÓ — visita à vila e lugares referidos no romance (café Pisca-Pisca, pousada do Barão de Forrester): «no convívio
com os amigos — almoçaradas em Alijó, na Pousada Barão Forrester»
10. CASTEDO — visita à aldeia e ao lugar das Combareiras, no qual se pode efetuar leitura de excertos, observação
e leitura comparativa da paisagem; realização de torneio de jogos populares.
120
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL
ii) O itinerário «Roga», construído a partir da obra a Vindima, de Miguel Torga (1945),
retrata o percurso de uma roga (cerca de 40 quilómetros de extensão), que parte da Serra
do Alvão até à Quinta da Cavadinha, em Sabrosa, onde ocorre a vindima (Fig. 2 e Tabela 2).
ITINERÁRIO «ROGA»
IV. SANTA MARTA DE PENAGUIÃO — mapas e informações sobre a paisagem da Região Demarcada do Douro. «Eram
quarenta pessoas ao todo, entre homens, mulheres e crianças […], colhido o centeio, nos plainos altos do granito
pouco ou nada há a fazer durante uma temporada, e a palavra vindima soa como uma senha de recurso e de
libertação. […] Vai-se à festa pagã da colheita dos cachos com a seiva da mocidade a florir ou com a secura da
velhice a reverdecer» (p. 7).
2. PANÓIAS — visita guiada à estação arqueológica. «Amanheceu em Panóias, o pergaminho mais autêntico e antigo
que a Montanha tem das suas relações com o transcendente […], pisavam sem qualquer emoção os sagrados altares
que antepassados seus, num gesto de pânico preventivo, tinham erguido aos deuses Lapitas. Naquelas pias cavadas
na fraga, de tamanho variado consoante a aflição e as posses, imolavam as vítimas e as ilusões terrenas (p. 10).
3. SÃO MARTINHO DE ANTA — visita ao Espaço Miguel Torga, prova de vinhos, atuação de grupo folclórico.
«Em S. Martinho, primeira terra do Doiro, e por isso com um patrono vinhateiro, beberam. No eiró da terra formaram
roda, o harmónio, o bombo e os ferrinhos acertaram a voz, e, enquanto o copo passava de mão em mão,
a cana-verde ia saltando» (p. 11).
4. PAÇOS — exercício de leitura da paisagem. «Numa curva da estrada, o Douro apareceu. O rio Pinhão, depois de
atravessar as duas pontes, a da estrada de macadame e a do caminho-de-ferro, entrava-lhe no flanco ainda a
espumar, e a luz do sol a pino reverberava, crua, no caudal majestoso. Os olhos secos da Montanha, fundos como as
fontes de chafurdo, arregalavam-se de espanto diante da levada de oiro» (p. 12).
121
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
ITINERÁRIO «ROGA»
5. QUINTA DA CAVADINHA (SABROSA) — visita às vinhas e adega (refeição típica), participação em vindima. «E os
peregrinos acorriam de longe, chamados pelo aceno das vides […]. Encosta espraiada de cepas a olhar o rio ao
fundo e o céu no alto, a Cavadinha, com o nome em letras garrafais no arco de ferro que encima o largo portão da
entrada, é o mimo das quintas. Uma alta ramada dá sombra ao caminho varrido que liga a estrada à residência,
sólida construção sobranceira às várias dependências que a rodeiam: os lagares, os armazéns e a cozinha do pessoal.
Casas caiadas de branco, telhado e tudo, como as de Penaguião quando neva» (p. 14).
iii) O itinerário a rota dos «Rabelos» inspira-se na obra de referência Porto Manso,
de Alves Redol, 1946. A novela recorda o rio Douro anterior à construção das barragens,
um rio tormentoso, de muito difícil navegação e principal meio de transporte da região.
Evoca ainda a rudeza do trabalho dos barqueiros no transporte das pipas de vinho do
Porto, em barcos rabelos, entre o Cachão da Valeira24 e as caves de Vila Nova de Gaia
(Porto), e a tensão social havida na substituição do transporte fluvial pelo terrestre
(Fig. 3 e Tabela 3).
24
Afloramento rochoso na fronteira oriental da sub-região Cima Corgo com a sub-região Douro Superior, a montante.
Foi destruído no reinado de D. Maria II.
122
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL
ITINERÁRIO «RABELOS»
1. PESO DA RÉGUA — informações sobre a construção da paisagem da Região Demarcada do Douro. «Estava criado
o pó de terra, quase perdido no meio do cascalho que espirrava pelas encostas, já vencidas. Mas como nos pequenos
vales mais submissos e nos refegos das montanhas, as chuvas torrenciais despenhavam-se em cataratas e
arrastavam as pedras esmigalhadas, os calhaus e o pó de pedra. Cansado da tarefa do saibramento, ele volvia os
olhos para o céu e suplicava. A natureza, porém, ficava indiferente a rogos passivos. Contra o granito só homens de
granito […]. As montanhas enrugadas pelo caminho caprichoso dos calços, como se cada uma fosse um trono
coberto de escadarias monumentais, ficaram para deslumbrar os olhos estranhos» (p. 163).
2. SAMODÃES — leitura e interpretação da paisagem e participação em prova de vinhos. «As aldeias não escolheram
sítio para nascer, e empoleiraram-se nas cristas das serranias, acompanhadas de soutos e pinheirais, ou sem sombra
que lhes valha; suspendem-se de ravinas sobre o rio, como se viessem suicidar-se, lutando com penhascos
agressivos e possantes; despenham-se pelas vertentes dos montes, a modos com pressa de chegarem a um destino
que não se realizou; espraiaram-se por veigas verdes e risonhas, onde veios de água vêm sussurrar queixas da serra
e as árvores ganham alturas gigantes, esbracejando à vontade; babujam o rio como se precisassem das águas para
viver ou do seu espelho para se mirarem» (p. 25).
3. RESENDE/PARQUE FLUVIAL PORTO DE REI — passeio de barco e descanso na praia fluvial, parque de merendas e
ancoradouro de desportos náuticos. «O rio sinuoso, por entre montes, bramia nos refegos das águas desencontradas.
As fragas mostravam-se indomáveis; eles dobravam-nas com os pés e venciam-nas a poder de suor. O cansaço
oprimia-lhes o peito e o sol viera deitar-se sobre as suas costas. A pele ardia-lhes, parecendo que o calor a penetrava
em camadas e estava prestes a estorricá-los. A boca pastosa recusava-lhes os gritos de ajuda. E eles uivavam pelas
margens sinuosas, porque só falando tinham forças para continuar. Ala, força! Ala, ala! (p. 346).
4. CALDAS DE AREGOS — visita às termas. «A electrificação que o rio teima em oferecer, e o homem em ignorar,
ganhará o Douro, e tudo se moverá num ritmo novo, mais trepidante e construtivo, numa cavalgada de cilindros de
milhentas máquinas que darão pão e calor, luz e trabalho, confiança e vida. E as aldeias rirão de novo, e para sempre.
Outras quilhas cruzarão as carreiras do rio, mais redes se afundarão nas suas águas, e outros homens, de coração
aberto, rosto iluminado e esperanças nas mãos, darão o braço ao Douro e irão com ele na mais radiosa jornada que
os romances de aventuras nunca puderam contar. Rio Douro, rio Douro. Rio de tanto penedo» (p. 330).
5. PAÇO — a importância da paisagem na construção dos barcos rabelos (Baixo Corgo). «Construíam barcos toscos
para o navegarem e o seu feitio estranho não obedeceu a delírios poéticos. Foi a necessidade que tudo lhes ensinou,
mesmo a cauda longa da espadela, semelhante a uma ave que tivesse pousado no poleiro das apegadas» (p. 69).
6. PORTO ANTIGO/PORTO MANSO — alusão ao papel social dos arrais, à importância dos barcos rabelos para a
distinção social e subsistência de muitas famílias. «— Já te esqueceste que somos da família dos arrais mais antigos
de Porto Manso? E dos que sempre tiveram os maiores barcos daqui? […] — O nosso pai chamou-me antes de
morrer e disse-me que nunca largasse o rio. O comboio havia de ter mau fim e então todos se voltariam para o
rabelo. É preciso esperar. Custa, talvez, mas não posso fazer outra coisa. O nosso pai nunca se enganou» (p. 20).
123
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
CONCLUSÃO
Os itinerários literários apresentados neste artigo só podem ter sucesso se houver
condições territoriais e sociopolíticas que viabilizem a sua implementação, nomeada‑
mente: a) preservação dos valores, diversidade e unicidade da paisagem; b) coerência e
contiguidade territorial; c) redes de cooperação entre atores sociais, empresas, universi‑
dades e organismos oficiais.
As obras literárias analisadas e estudos académicos da autora25 indicam que existem
ameaças associadas à mecanização e às novas dinâmicas do mercado, estando em risco
elementos emblemáticos da região, em particular os terraços que, substituídos por pata‑
mares e vinha ao alto, retiraram singularidade à paisagem. Por outro lado, as entidades
políticas, os atores sociais e os agentes económicos têm recorrentemente alertado para
falta de mão de obra rural, como ameaça séria à preservação da paisagem duriense.
Propostas inovadoras para o turismo, como as que agora se apresentam, podem
ajudar a implementar dinâmicas de atração e criar riqueza na região. Nesse sentido,
importa fazer convergir interesses, agregando instituições públicas e empresas privadas,
em prol de atuações ajustadas ao desenvolvimento de uma região reconhecida no
mundo pela sua paisagem admirável e pelo potencial vitivinícola de excelência, como
é o caso do Douro.
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PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
126
MARCA DE ÁGUA DO DOURO
PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS
HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO
E MANUEL MENDES*
MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE**
CARLA SEQUEIRA***
Resumo: Atendendo a que o Alto Douro Vinhateiro paisagem cultural evolutiva e viva de valor universal
foi fonte inspiradora de representantes das artes e letras, revelando a inter-relação cultura e natureza,
revisita-se, na fronteira entre literatura e história, esta região em seus espaços-tempos, objecto de
invenção e originalidade criativa.
Dada a relevância da literatura como depositária das memórias socioculturais do «ser histórico»,
analisam-se, nas obras de Raul Brandão e Manuel Mendes, representações da paisagem física e humana
duriense (século XX), imagem tradicional de modernidade emergente.
O corpus de análise documental, literária e dialógica abarca obras emblemáticas do património
literário duriense: Portugal Pequenino, de Maria Angelina Brandão e Raul Brandão, e Douro, Roteiro
Sentimental, de Manuel Mendes.
Estes testemunhos históricos e evocações literárias configuram-se como «marca de água» do Douro
Património Mundial, garantia da identidade e autenticidade da paisagem física e humana, cujos rastros
de «bem comum» preservam e transmitem aos «filhos dos outros».
Palavras‑chave: Alto Douro Vinhateiro — património mundial; Douro — paisagem física e humana
(anos de 1920 a 1960); Raul Brandão; Manuel Mendes; literatura-história.
Abstract: Considering that the Alto Douro Wine Region, an evolving and living cultural landscape of
universal value, has been an inspiring source for representatives of the arts and literature, revealing the
interrelation between culture and nature, we revisit, on the border between literature and history,
this region in its space-time, object of invention and creative originality.
Given the relevance of literature as a depository of socio-cultural memories of the «historical being»,
the works of Raul Brandão and Manuel Mendes analyse the representations of the Douro physical and
human landscape (20th century), a traditional image of emerging modernity.
The corpus of documentary, literary and dialogical analysis includes emblematic works of Douro
literary heritage: Portugal Pequenino, by Maria Angelina Brandão and Raul Brandão, and Douro, Roteiro
Sentimental, by Manuel Mendes.
These historical testimonies and literary evocations are configured as a «watermark» of the Douro
World Heritage, guarantee of the identity and authenticity of the physical and human landscape, whose
traces of «common good», preserve and transmit to the «children of others».
Keywords: Alto Douro Wine Region — World Heritage; Douro — physical and human landscape
(1920s-1960s); Raul Brandão; Manuel Mendes; literature-history.
127
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
INTRODUÇÃO
A região e paisagem duriense e, mais recentemente, o Alto Douro Vinhateiro (ADV)
classificado como paisagem «cultural evolutiva e viva» de valor universal (UNESCO,
Dezembro de 2001)1 têm sido fonte inspiradora de escritores, pintores, fotógrafos,
cineastas e mais representantes das artes e das letras2, revelando a relação do Homem
com a espaciotemporalidade envolvente, vector preponderante da história, da literatura,
da arte e cultura em sentido lato.
Assim, procura-se revisitar, reflexivamente, na fronteira entre literatura e história,
cruzando aproximações históricas e estudos literários, esses espaços-tempos de i nvenção
e originalidade criativa a que não foram alheios muitos viajantes cultos que os atraves‑
saram, ao longo dos tempos, alguns dos quais contribuíram para elevar a identidade da
região duriense a património mundial, divulgando as suas potencialidades, constrangi‑
mentos e desafios no âmbito do desenvolvimento cultural.
Destacam-se, neste contexto, os legados singulares e valiosos da escrita de Raul
Brandão (1867-1930), autor da Foz do Douro e clássico da literatura portuguesa com
páginas ímpares sobre o Douro, da nascente à foz, e Manuel Mendes (1906-1969),
escritor lisboeta observador atento da região duriense, os quais importa conhecer e
apreciar, num cruzamento de estilos, contactos e ressonâncias, entre modernismo e neo-
-realismo, mas idêntico «testemunho da vida mais intensa»3.
As suas narrativas literárias e documentais da paisagem física e humana do Alto
Douro Vinhateiro, em momentos sequenciais do século XX, de referência incontornável,
configuram-se como relevantes testemunhos históricos e evocações literárias diferen
ciadas, cuja cartografia temática se ensaia em perspectiva comparada e registo intertextual.
Aí, a paisagem, objecto de múltiplas apropriações, é entendida como «representação
de um sistema de relação entre natureza e cultura, portanto uma construção c ultural
sobre o território»4 no sentido de que não há senão «híbridos de natureza-cultura que
se escalonam entre os dois extremos, […] onde as relações humanas não são puramente
sociais, nem as coisas são puramente naturais»5. A esta luz, observam-se e analisam-se
esses alicerces histórico-literários sedimentares da paisagem natural e humana i nstituinte
do património cultural de um Douro ainda tradicional, mas já em transformação
1
AGUIAR, 2002: 143-152.
2
São muitos os que nos deixaram memórias, testemunhos e obras marcantes sobre o Douro Vinhateiro, desde Dorothy
Wordsworth e o Barão de Forrester ao Visconde de Vila Maior, de Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Guerra
Junqueiro a Miguel Torga, Alves Redol, João de Araújo Correia, Domingos Monteiro, Pina de Morais, Manuel Monteiro,
ou, mais recentemente, outros autores destacados como Vasco Graça Moura, Agustina Bessa-Luís, António Cabral,
A. M. Pires Cabral, Camilo de Araújo Correia, Modesto Navarro, Nuno Rebocho, Inácio Nuno Pignatelli, António
Barreto, entre tantos mais.
3
LOPES, 1990: 120.
4
RIBEIRO, RAMALHO, 2011: 411-435.
5
RHEINEBERGER, 2013.
128
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
6
LE GOFF, 1984.
7
BAKHTIN, 2010.
8
CHARTIER, 1990: 19. Ver também CHARTIER (1994), O Mundo como Representação. «Estudos Avançados». 5:11,
e CHARTIER (2002), À beira da Falésia: A História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. U
niversidade/UFRGS;
CHARTIER (2001), Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED Editora. Para uma revisão da litera
tura sobre interpretação e usos deste conceito considerado uma questão da teoria da História, consultar SANTOS
(2011), Acerca do conceito de representação. «Revista de Teoria da História». 3:6, 27-53.
9
Cf. PEREIRA, BARROS, 2001.
129
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
10
MENDES, 2002.
11
Conceito elaborado pelo pensador e linguista russo Mikhail Bakhtin, que significa mecanismo de interacção textual,
isto é, a existência e presença no interior de um texto de outros textos ou obras que o influenciam ou inspiram de algum
modo, devendo assim o discurso ser observado em acção recíproca com textos idênticos ou imediatos.
12
BAKHTIN, 1988: 211.
13
A marca de água ou filigrana é, materialmente, definida na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura como «sinal
realizado na própria textura do papel e cujo desenho apenas é visível devido às alterações de translucidez provocadas
pelas diferenças de densidade e espessura da pasta». Dessa forma, e enquanto elemento fundamental para demonstrar
a autenticidade de origem de um documento impresso, a marca de água serve para impedir a falsificação do docu
mento. Nas tecnologias de informação, a marca de água digital, através da incorporação de imagens ou assinaturas
digitais, permite ainda identificar a origem de material sujeito a copyright. Como elementos distintivos, as marcas de
água c onferem especiais qualidades aos documentos, constituindo funções de metainformação a eles relativa. Se consi
deradas na sua génese, são base de identificação das fontes e crítica destas, nomeadamente no que à crítica textual diz
respeito. Cf. CARREIRA, 2012: 2-3.
14
PATO, SCHMIDT, GONÇALVES, orgs., 2013: 334.
130
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
15
Cf. CASTILHO, 2006.
16
Escreveu, entre outros jornais e revistas, no «Correio da Manhã», «Revista de Hoje», «Revista de Portugal», e foi chefe
de redacção de «O Dia» e «A República». Colaborou na «Revista Águia» e no movimento Renascença Portuguesa.
Fez parte do Grupo da Biblioteca quando Jaime Cortesão era director da Biblioteca Nacional de Lisboa, e do grupo
fundador da revista «Seara Nova», em 1921, que se propunha reformar a mentalidade portuguesa através de intensa
acção pedagógica e política.
131
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
17
Dedicou-lhe o livro Raul Brandão & Columbano: Artigos esquecidos do escritor, Reproduções de telas do mestre. Corres
pondência de ambos e breve Introdução de Manuel Mendes. Editora: Jornal do Fôro, 1959. Dicionário Cronológico de
Autores Portugueses, 1994.
18
MENDES, 2002: 176.
19
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, 1994.
20
SENA, 1978: 65.
21
Cf. texto original do escritor Ao Porto pelo Rio Douro. PROENÇA, Raul, dir. (1929). Guia de Portugal. Lisboa: Biblio‑
teca Nacional de Lisboa. Lisboa, pp. 532-533. ROSA, org., 2013: 466-469.
22
TORGA, 1995: 378.
132
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
23
REYNAUD, 2019: 34.
24
OLIVEIRA, REYNAUD, 2019.
25
BRANDÃO, 1959.
26
REYNAUD, 2019: 39.
27
REYNAUD, 2019: 38.
133
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
28
Cf. TORRES, 1983: 88.
29
MENDES, 2002: 183-185.
30
MENDES, 2002: 176.
31
Organização política de oposição legalizada à ditadura fascista portuguesa, criada em 1945, em luta pelo direito à
«liberdade de reunião, de associação e de imprensa» e pela seriedade nas eleições, mas dissolvida três anos depois pelo
regime salazarista, diferenciando-se, mas colaborando pontualmente com o MUNAF, organização clandestina fundada
em 1943. Manuel Joaquim Mendes, membro da maçonaria, foi um dos promotores da fundação do MUD, fez parte das
estruturas dirigentes centrais e distritais de Lisboa e foi alvo de prisões. Aderiu à Resistência Republicana e Socialista,
desde 1953, e à Associação Socialista Portuguesa (ASP), em 1964.
32
Apud Nota biográfica institucional da Fundação Mário Soares em cujo arquivo se encontra o espólio de Manuel
Mendes. Este situa-se entre as datas-limite de 1820 a 1988, documentos relativos às atividades políticas, literárias e
artísticas do escritor, ou por si reunidos, circunscritos entre 1917 e 1969, com excepção da colecção de fotografias, dos
documentos familiares e da correspondência recebida por Berta Mendes, enviada pelos amigos do casal, após o faleci‑
mento do marido e outros sobre a Casa-Museu de Manuel Mendes, constituída em 1977 (1950-1988). [Consult. 08 Jun.
2021]. Disponível em <http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_868#!e_868>.
33
MENDES, 2002: 15-19 (Prefácio de Mário Soares).
134
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
O Douro merece mais — merece tudo. Rincão admirável da fragueira terra portu
guesa, é ao mesmo tempo um vivo frémito da sua alma. As proporções da montanha
e a estatura do homem dessas bandas não se contemplam a frio, obrigam por força a
cismar. Pouco tenho conhecido de tanta e tão impressionante grandeza34.
34
MENDES, 2002: 23-24.
35
SARRAUTE, 1964 apud COMPAGNON, 2021: 178.
36
BRANDÃO, 1985: 61.
135
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
justiça de seu mestre face ao esforço ingente dos trabalhadores anónimos, em c ontraste
com a riqueza que produzem no Douro: «Quanto esforço insano e miséria c abem num
cálice de vinho fino do Douro, deste vinho que há séculos ganhou reputação no mundo!
Na sua transparência de âmbar, nada disto se adivinha»37.
Na verdade, podem encontrar-se, apesar das diferenças, várias afinidades entre Raul
Brandão e Manuel Mendes, escritores e jornalistas intrinsecamente ligados ao Douro,
que conheceram, amaram e descreveram além da epiderme, com fervor e respeito,
cada um em seu registo literário próprio: o primeiro, próximo do modernismo e de
grande modernidade, com um olhar íntimo e reflexivo; o segundo, viandante citadino,
afim do neo-realismo, de olhar nómada e ardente acalentado por seu mestre Brandão,
num «deslumbramento inesquecível»38.
Focamo-nos em primeiro lugar no livro Portugal Pequenino (1930) de Brandão
e sua mulher Maria Angelina, dedicado pelos autores «aos filhos dos outros», cujas
personagens são duas crianças: «ele, o Russo de Má Pelo, filho do amo onde ela, a P isca,
serve». Aí, «a impressionante descrição das paisagens raramente aparece dissociada
da humanidade que as habita»39 e, ao mesmo tempo, «o rigor descritivo e etnográfico
combina-se com o intenso visualismo da linguagem tão atenta aos cambiantes cromá
ticos como aos contrastes violentos na permanente busca de uma síntese entre a fideli
dade ao real ( assinalada muitas vezes por um simples detalhe que o exacerba) e a relação
da sua essência espiritual»40. Nesta escrita magistral de índole modernista, o capítulo
desta obra Duas gotas de água (pp. 71-86)41 sobre as paisagens naturais e humanas do
Douro Vinhateiro permite vivenciar de perto a dura faina fluvial, a ruralidade tradicional
ainda dominante na região, já ameaçada pela linha férrea oitocentista e o d espontar das
chaminés e fumo das fábricas na aproximação ao Porto urbano e fremente de negócios.
Contrastes e mudanças representadas e sugeridas em dinâmica pictural e sensorial de
«colorida visão».
À análise dialógica dessa memorável narração brandoniana da paisagem natural e
humana do Douro na década de 1920 segue-se a análise das «representações sociais» em
Roteiro Sentimental, Douro (1964-1967), de Manuel Mendes, livro a que o autor se refere
como «caderno de crónicas», escrito em «páginas de estudo e evocação […] com v erdadeiro
aprazimento de etnógrafo amador»42, porém já considerado «um dos mais belos e sérios
roteiros da região»43 e assim sugestivamente apresentado numa vertente histórica.
37
MENDES, 2002: 128.
38
MENDES, 2002: 175-180.
39
REYNAUD, 1995: 241.
40
REYNAUD, 1995: 233-243.
41
Cotejar esta versão do texto com versões das entradas do Guia de Portugal (dirigido por Raul Proença, amigo de
Brandão, da Renascença Portuguesa e do Grupo da Biblioteca Nacional), reeditadas nas edições da Fundação Calouste
Gulbenkian. ROSA, 2013.
42
MENDES, 2002: 82.
43
MENDES, 2002: 11 [Apresentação de Gaspar Martins Pereira].
136
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
44
MENDES, 2002: 11 [Apresentação de Gaspar Martins Pereira].
45
Cf. TORRES, 1983: 88.
46
Cf. GUICHARD, ROUDIÉ, PEREIRA, coords., 2019.
47
BAKHTIN, 1988: 211-362.
137
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
48
SENA, 1978.
49
VIÇOSO, 1999.
50
BAKHTIN, 1988: 211.
51
MACHADO, 1996: 89-105.
138
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
52
BAKHTIN, 2010: 307-335.
53
FIORIN, 2006; MAGALHÃES, 2007: 210-215.
54
RODRIGUES, 2013.
55
BAKHTIN, 2010: 307-335.
56
PIRES, KNOLL, CABRAL, 2016: 119-126.
57
MARTINS, 2018: 62.
139
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
cenários sobre cenários nos dias soturnos em que o fraguedo lhes parecia ainda
mais trágico, com o rio esganado entre pedras e montanhas socalcadas pelo homem,
para aguentarem alguns bocados de terra a esboroar-se. O Alto Douro, a terra do
vinho fino, é também a terra dos panoramas tétricos dos sítios onde reina a febre das
povoações concentradas, recozendo ao sol a fealdade60.
Qual foi o segredo que fez produzir uma terra só ossos? A gente olha para os
b agos de âmbar transparente, para os moscatéis que fazem chegar a água à boca,
para os cachos dourados com uma pele muito fina, e custa-lhe compreender que seja
a dor que produziu tudo isto. E é a dor da videira torcida ao sol, gritando maldição
porque não consegue naquele cascalho, por mais que penetre com as raízes, encontrar
algum suco. E a dor deste homem, que se sujeita, lívido de febre e com a magra compa
nheira ao lado, a viver preso à terra maldita e abençoada. Sujeita-se e range, obstina-se.
Foi ele que a criou, pelo menos tanto como Deus, e que não encontrando água para
regar, a substituiu pelo suor do seu rosto. Negra vida. Como resistiu à labareda?
Como pôde viver dentro daquele forno? Amando a terra61.
58
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 72-73 [capítulo Duas gotas de água].
59
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 71-86.
60
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 74.
61
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 72-73.
140
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
Deslizaram na água entre pedras, num rio de estanho fundido, que parecia
correr sobre ossadas e destroços. Às vezes cachões, redemoinhos, dornas. Um dia
estiveram para desaparecer abafados na água, perdido de todo um resto de indivi-
dualidade. Saltaram na escuma, irizou-os o sol, e foram ter a um côncavo na areia
onde repousaram. Livres de perigo? Uns pássaros vieram beber e por pouco os não
engoliram. Eram os corricões que vivem na duna, da cor da areia, e que quando
vêem gente se deitam de pernas para o ar — dizem os barqueiros — sendo difícil
distingui-los do chão. […] Escaparam por milagre e lá voltaram a descer o Douro que
ia alargando62.
São estes barcos estrambóticos que fazem todo o tráfego do Douro. Carregam
pipas, cortiça, casca, madeira, gente; e quando vem o Inverno e “anda o rio grande”,
o movimento nunca se interrompe. Os homens intrépidos, de pé sobre a pégada — o
nome da gaiola onde vai o arrais —, manobram com decisão a espadela, metendo
a charroa na água e imprimindo direcção ao barco. É preciso fazê-lo sem um movi
mento falso, sem um segundo de hesitação, nos sítios perigosos, descendo os galeiros
como quem cai por uma corda abaixo […]. Ali é que é vê-lo, ao barqueiro em ceroulas
a manobrar a charroa na água como se quisesse lavrar no campo! Quatro casqueiros,
meia dúzia de cavernas, a gaiola em cima e o homem em equilíbrio na quitanda,
tendo de descer lá do Alto até ao Porto com aquelas pipas todas, agarrado à espadela,
olho na água, olho nas pedras agudas como dentes […]. O barco oscila, põe-se de pé
— e ele lá vem, já desce. Como se aguenta? Arriscando a vida63.
O terceiro cronótopo que faz a ponte entre o Douro rural servido pela via-férrea
e o Porto urbano, comercial e industrial, exportador do vinho fino, define-se no movi‑
mento intenso e sonoro da faina fluvial duriense64, através de redes textuais cinéticas de
diferentes planos e variadas cenas.
62
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 74.
63
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 71-86. Ver também Guia de Portugal, vol. IV, pp. 10-12.
64
Contemporâneo do livro Portugal Pequenino é Douro, Faina Fluvial (1931), filme-documentário mudo de Manoel de
Oliveira, na época do cinema sonoro em Portugal (1930).
141
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
À medida que o rabelo desce — agora com serenidade e ao fio de água — melhor
se avalia o trabalho das mulheres, do rapazio nu, dos pescadores que lançam a rede
à tainha ou a fisga à enguia (o sável e a lampreia sobem no seu tempo até à Barca
de Alva), ou secam as redes nos varais; dos homens que carregam, atirando para
os barcos o carvão, a chamiça, ou as maroixas de lenha rachada e amontoada nas
margens. Tudo trabalha, e é para o Porto que sustenta o lavrador e o homem do rio.
Arrastam-se os pesados carvoeiros em flotilha, todos negros como pretos da Guiné.
Serra-se a madeira, vomitam fumo as chaminés das fábricas, e lado a lado o homem
e a mulher esbelta remam no mesmo barco. Tudo consiste em aproveitar a maré e o
vento favorável. […]
Estamos a dois passos da grande cidade. […] Entre um rasgão do arvoredo
avança para nós uma massa cinzenta e confusa com o recorte de uma igreja […]
numa miscelânea de casas de chaminés de fábricas, tudo enfumado e indeciso.
Chega até ao barco o apito de um comboio. E pouco e pouco a cidade aproxima-se com
uma auréola de cinza e prata e o rio empoado de roxo. Ao lado, em dois riscos, o arco
da ponte de D. Maria e do outro lado, numa só tinta, o morro espesso de Gaia. Depois
outra ponte. Da água um faiscar às chapadas onde arde lume dourado. Por fim,
a Ribeira velha e carcomida, cheia de povo, de mulherio, de gritos […]. Umas esca
dinhas, uma feira de fruta. Desembarcamos no Porto65.
As duas gotas de água saíram do rio com o nevoeiro e foram passear pela cidade.
Viram a praça e aquelas ruas íngremes uma de cada lado — a dos Clérigos com um
grande dedo apontado para o céu, como se esta cidade utilitária e prática fosse uma
cidade franciscana, e na praça a estátua de um homem a cavalo que nunca consegue
sair do mesmo sítio. Quem foi? Foi um ingénuo que quis dar ao seu país a liberdade,
quando o seu país não se importava com a liberdade para nada. Então deu-lhe a
força; deu-lhe a Carta que os homens trataram como um trapo. Rodeavam-no
algumas fi guras excepcionais, um Mouzinho da Silveira, um Herculano, um G arrett,
que tentaram renovar o país com ideias, livros, leis, reformas, esquecendo-se do
principal — de o ensinarem a ler. E é um problema cuja solução legamos ao futuro66.
65
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 75-85. Cotejar com Guia de Portugal, vol. IV, pp. 532-534.
66
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 85.
142
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
67
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 85-86.
68
BARBOSA, 2007: 1-9.
143
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
de certo desconexo, parcial, restrito na visão, quem sabe se em alguns passos incom
preensível, porque embora com devoção, nem sempre é fácil entrar na alma das
coisas. Sinto que aqui me ponho a titubear a história desses montes e desses homens;
ali eu erro acaso na soma dos valores; e muitas vezes acode-me a dúvida se na oração
acertei de facto com o nome predicativo do sujeito71.
Assim, também o estudo que o historiador faz da obra literária supõe distinguir
e ntre «ficção» e «verdade», elementos centrais da criação/produção ficcional sem destruir
a sua condição. Supõe então percepcionar o tempo histórico enquanto «representação
intelectual»72, um tempo «que não decorre com regularidade» — como sublinhou Raul
Brandão em suas Memórias, nas quais o tempo cronológico se afirma ou se suspende73.
Tal entendimento permite perceber como, em diferentes lugares e momentos, uma
dada realidade social é construída, pensada e dada a ler, e observar como as sociedades
deixam sua marca no mundo, o que exige da história um retorno interpelativo sobre o seu
estatuto e supõe considerar o processo e referenciais socioculturais da produção do autor.
Ora o movimento artístico e literário do neo-realismo português, em que se pode
enquadrar Manuel Mendes, é «uma linguagem narrativa ou poética comprometida com
a transformação do mundo, o que pressupõe simultaneamente o modo idiossincrático
como o autor se implicou, no plano ideológico e no da escrita, nessa prática de dizer
universos alternativos» à realidade coetânea de que fala numa «mensagem perene
[que é] o direito de todos à dignidade»74.
69
PEREIRA, 2021: 298-306.
70
PEREIRA, 2021: 298-306.
71
MENDES, 2002: 23.
72
REIS, 2011: 1-21.
73
LAGE, 2018a: 148-162.
74
VIÇOSO, 1959.
144
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
Fig. 3. Fotos de Manuel Mendes na descida de barco que o escritor descreve no Roteiro Sentimental (e também
do Douro e do barco rabelo, nessa altura). Fonte: autor das fotografias desconhecido (digitalizações oferecidas,
há cerca de dez anos, por José Alexandre Roseira a Gaspar Martins Pereira. Cortesia de Gaspar Martins Pereira,
a quem se agradece)
145
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
82
MENDES, 2002: 141-148.
83
MENDES, 2002: 93-99.
84
MENDES, 2002: 131-139.
85
MENDES, 2002: 75, 101, 119.
86
DELEUZE, GUATTARI, 2001: 8. Ver também DELEUZE, GUATTARI, 1990.
87
MENDES, 2002: 85-92.
88
MENDES, 2002: 109-117.
89
MENDES, 2002: 69-74.
90
MENDES, 2002: 149-156.
91
MENDES, 2002: 165-172.
146
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
• até aportar na foz do rio Douro e parar na Cantareira92, lugar histórico de vida-obra
de Raul Brandão, «onde conviveu sobretudo com os pescadores, seus irmãos
de sangue e desventura», íntimo de Manuel Mendes, que o venera e cuja obra
assim consagra:
Ouço-lhe distintamente a voz, porque cada vez os seus livros me parecem mais
repassados de amarga e deslumbrante poesia — porventura o maior poeta da sombra
e da dor que cantou ainda em língua portuguesa. […] Quero-lhe como a uma velha e
adorada estampa de família, tanto a obra do grande escritor me encheu e empapou a
alma. E, se aqui venho, é decerto para melhor o evocar, sentir de novo e junto de mim
a sua amiga e comovedora presença93.
A penedia foi reduzida a cisco, alinhada nos geios, e o monte já não capricha
nas suas brutas fantasias — domou-o a mão pertinaz do homem, como lho exigiam
as necessidades e porventura o seu amor e gosto. A montanha sujeitou-se à o bediência
de uma vontade prodigiosa, deixou de figurar tal como o génesis a pariu — subme
teu-se, fez-se instrumento útil, expressão do trabalho organizado, compreensível
nos seus objectivos, e não apenas beleza desabrida, gratuita e inumana. A lava de
que é feita a serrania do Alto Douro foi esculpida, parece que à força de cinzel. […]
De alvião ou marreta em punho, pancada a pancada, o ferro vai penetrando até
fender a laje, que depois de moída, desfeita em cascalho miúdo, compõe a terra dos
geios, tão grata à vinha duriense — plantio que Junqueiro dizia nutrir-se, florir e criar
os frutos à força de lava e fogo94.
92
MENDES, 2002: 173-180.
93
MENDES, 2002: 78, 180.
94
MENDES, 2002: 134-135.
147
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
95
MENDES, 2002: 135-136.
96
MENDES, 2002: 137.
148
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
97
Significam-se assim actividades, objetivos e áreas diversas: o filósofo lida com conceptos; o cientista trabalha perceptos ou
cria operadores para fazer experiências e obter resultados empíricos e concretos; o artista cria afectos a partir de imagens
visuais, sonoras ou de outro tipo.
98
LAGE, 2018b.
99
LAGE, 2018b: 109.
100
FAUVRELLE, 2007: 87-96.
149
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
101
FAUVRELLE, 2007: 87-96.
102
RHEINBERGER, 2013.
103
SGARD, 2011: 236.
104
DOMINGUES, SOTTO MAYOR, 2009: 168.
150
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
Nos inícios da década de 1920, o sector do vinho do Porto registava uma expansão
do comércio, com o aumento das exportações, que se manteria quase até ao final da
década. No entanto, a produção atravessaria uma das mais graves crises e «tal aspecto
tomou a crise que os operários rurais ofereciam o trabalho pela comida. Ainda assim o
vinicultor com dificuldade os aceitava»106. Aos baixos preços oferecidos pelo comércio
— em consequência «dos enormes stocks acumulados em Gaia e da queda das expor
tações que se tornou mais evidente a partir de 1927»107 — somavam-se as fraudes,
com a crescente entrada de vinho do Sul nos armazéns de Vila Nova de Gaia. Seria,
por isso, uma década agitada, do ponto de vista social e institucional, marcada por
greves e manifestações no Alto Douro, exigindo a intervenção do governo na defesa dos
interesses regionais108.
Face ao cenário de crise económica e social, as elites redobraram as suas inicia‑
tivas no sentido da intervenção do Estado e da reforma institucional e legal do sector.
Por exemplo, em 1929, ano da Grande Depressão, que se faria sentir duramente sobre
o Douro, os notáveis ocupar-se-iam a discutir o projecto de Lei de Salvação do Douro,
de Amílcar de Sousa. Numa conjuntura de superprodução, agravada em 1927 com a
elevação das t axas aduaneiras em Inglaterra, o que contribuiu para a limitação da expor
tação e a volumar de stocks, manutenção de preços baixos oferecidos ao p rodutor, fraudes
nos mercados externos, falência de várias firmas em Gaia e carestia da aguardente,
Amílcar de Sousa apresentava como solução a auto-suficiência em matéria de aguardente.
105
FAUVRELLE, 2019: 363-364.
106
ROSEIRA, 1992: 106.
107
PEREIRA, 2003: 52.
108
SEQUEIRA, 2011: 305-350.
151
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Desde 1925 que Amílcar de Sousa defendia esta via para o desenvolvimento e esta
bilidade da Região. Preconizava, assim, a auto-suficiência do Douro pelo equilíbrio da sua
produção: produzir vinhos generosos em proporção relativa à quantidade exportada no
ano anterior, e destilação do vinho de consumo para produção de aguardente para bene
fício. Em 1929, o projecto de Lei de São do Douro originou debate intra-regional, a par
da oposição do Sul e Gaia, da Comissão de Viticultura da Região do Douro, do Conselho
Superior de Agricultura e da Comissão Central de Viticultura, não tendo sido possível a
sua viabilização. Já em 1931, ano de grave crise no sector do vinho do Porto, Amílcar de
Sousa endereçaria uma carta ao presidente da Associação Central de Agricultura, anun‑
ciando que pretendia reapresentar a Lei de Salvação do Douro, adaptada à nova conjun‑
tura, embora ainda orientada por um caminho similar às leis pombalinas. O Douro vivia
mergulhado numa crise de excesso, e a salvação continuava a ser, segundo o seu ponto de
vista, produzir a própria aguardente e equilibrar a p
rodução. Por isso, o espírito era ainda
o mesmo, mas a formulação muito diferente, num projecto de lei condensado em apenas
dois artigos, proibindo a entrada de aguardente encascada na região duriense109.
Perante as reivindicações regionais, a acção do Estado far-se-ia notar através da
«criação de estruturas que visavam controlar e disciplinar as relações entre os vários
parceiros do sector. Com esse objectivo, criou a Casa do Douro, o Grémio dos Expor‑
tadores e o Instituto do Vinho do Porto, instituindo, simultaneamente, uma política de
preços mínimos, facilitando o crédito e disciplinando a concorrência»110.
Contudo, «os anos de 30 e 40 farão estagnar o vinho do Porto»111. «A década que
vai de 1935 a 1945 foi duríssima para os viticultores»112. No contexto da Segunda Guerra
Mundial, entre 1939 e 1945, avolumar-se-iam as dificuldades nas exportações. Por outro
lado, «as dificuldades de recuperação comercial do sector» no pós-guerra «repercu
tiram-se prolongadamente, sobre a região do Douro, acarretando uma diminuição das
quantidades aprovadas para benefício e uma estagnação dos preços»113, levando a que a
situação socioeconómica duriense fosse «geralmente reconhecida como muito má»114.
Mas, apesar da conjuntura de crise, «foi nesse tempo que se deram os primeiros passos
consistentes para a regularização da produção, com a discussão que resultaria, depois de
1950, na criação das adegas cooperativas»115.
Em 1949, a partir das Bases de fomento e constituição das adegas cooperativas,
dava-se início ao movimento cooperativo moderno na região do Douro, «uma das mais
109
SEQUEIRA, 2000: 106-121.
110
PEIXOTO, 2019: 186.
111
BARRETO, 1993: 100.
112
BARRETO, CARVALHO, 2016: 30.
113
PEREIRA, 2003: 56.
114
BARRETO, 1993: 100-101.
115
BARRETO, CARVALHO, 2016: 30.
152
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
116
BARRETO, 1993: 164.
117
BARRETO, 1993: 101.
118
BARRETO, 1993: 164. Adegas criadas na Região Demarcada do Douro: Mesão Frio (1950), Peso da Régua (1951),
Vila Real (1955), Favaios (1956; impulsionada por Carlos Amorim, que viria a ser o seu primeiro presidente; ARAÚJO,
COSTA, 2005: 139), Lamego e Armamar (1957), Meda (1958), Freixo de Numão e Pegarinhos (1959), Sabrosa, Sanfins
do Douro, Alijó e Foz Côa (1960), Trevões (1961), Freixo de Espada à Cinta, São João da Pesqueira e Medrões (1962),
Cumieira, Santa Marta de Penaguião e Torre de Moncorvo (1963), Vila Flor (1964), Murça e Vale de Teja (1965).
119
ROSEIRA, 1992: 129.
120
ROSEIRA, 1992: 129.
153
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Assim, as medidas tomadas pelo Estado tiveram efeitos reduzidos na situação social
duriense. Conforme refere Gaspar Martins Pereira, «só a partir de meados dos anos
sessenta, acompanhando a conjuntura geral de crescimento económico, o vinho do Porto
conheceu uma notável expansão comercial», em consequência do aumento dos v olumes
comercializados, à diversificação de tipos produzidos e de mercados e à subida dos p
reços.
Contudo, segundo o mesmo autor, «esta fase de recuperação do sector do v inho do Porto
ocorreu num contexto de perda e desestruturação regional», marcado pela guerra colo‑
nial, surto de emigração e a «atracção urbana», que tiveram como consequência o despo‑
voamento de «muitas aldeias de uma parte valiosa da sua população activa»121.
A população do Douro «está em decréscimo quase constante»122 desde o início
da década de 1960, «período em que se intensificaram os movimentos migratórios
para os países do centro da Europa»123. A perda de população, estimada em cerca de
20% de 1960 para 1970124, acarretou «impactos fortíssimos na vida económica e social»
do Douro: «a falta de mão-de-obra pressionou a elevação dos salários, mas também
a maquinização dos trabalhos mais pesados (como as surribas) e a adopção de novas
formas de plantio da vinha, em que os patamares separados por taludes substituíram os
socalcos e os respectivos muros de suporte, iniciando uma transformação, em muitos
casos radical, da paisagem do Douro»125.
121
PEREIRA, 2003: 56-57.
122
BARRETO, 1993: 71.
123
RAMOS, 2019: 393.
124
Cf. PEREIRA, 2003: 56-57.
125
PEREIRA, 2003: 56-57.
126
Cf. LEITÃO, 2017: 579-599.
154
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES
127
CARNEIRO, 1982.
128
DIAS, 2017: 41-51.
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PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS
VITIS VINIFERA,
VINIFERA,
TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO
DA PAISAGEM DURIENSE EM DOURO:
PIZZICATO
PIZZICATO E
E CHULA
CHULA, DE A. M. PIRES CABRAL
ISABEL MARIA FERNANDES ALVES*
Resumo: Esta proposta tem como âmago a análise de um dos volumes de poesia de A. M. Pires Cabral,
Douro: Pizzicato e Chula, obra que recebeu o Prémio D. Dinis, em 2006. Através dos poemas aí inscritos,
e tendo como referência o projeto LITESCAPE.PT, pretende-se sublinhar o interesse da literatura para a
compreensão da paisagem, uma vez que, através da linguagem literária, se manifestam não apenas o
território, em pormenores topográficos, climáticos, orográficos e botânicos, mas também o modo como
as gentes habitam e sonham esse mesmo lugar. Esta proposta argumenta igualmente que Douro:
Pizzicato e Chula veicula uma perspetiva poética e singular, não deixando, contudo, de constituir um
exemplo da responsabilidade pública que a Convenção Europeia para a Paisagem tem fomentado,
pois a paisagem poética é também ela uma forma de promover e proteger a paisagem duriense,
preservando o seu «carácter, qualidades e valores».
Palavras‑chave: Douro: Pizzicato e Chula; A. M. Pires Cabral; paisagem; literatura; Douro.
Abstract: This proposal focuses on A. M. Pires Cabral’s Douro: Pizzicato e Chula, a work of poetry that
received the D. Dinis Prize in 2006. Through the poems, and with reference to the LITESCAPE.PT project,
we intend to underline the interest of literature in understanding the landscape, since through literary
language the territory is manifested in topographic, climatic, orographic and botanical details, but also the
way people inhabit and dream about that place. This proposal also argues that Douro: Pizzicato e Chula
conveys a poetic and unique perspective, whilst remaining an example of the public responsibility that the
European Landscape Convention has fostered, since the poetic landscape is also a way of promoting and
protecting the Douro landscape, preserving «its character, qualities, and values».
Keywords: Douro: Pizzicato e Chula; A. M. Pires Cabral, landscape; literature; Douro.
* Professora auxiliar da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e investigadora do CEAUL (Centro de
Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa).
1
TELLES, 2004.
2
TELLES, 2004.
159
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Para Gonçalo Ribeiro Telles a paisagem é uma entidade viva e dinâmica, r esultando
sempre, como refere em relação ao Douro, do diálogo entre circunstâncias naturais
— orográficas, climáticas, botânicas — e a realização humana. Ou seja, se por um
lado entender um lugar é começar por compreender a geografia desse lugar, por o utro
lado, essa entidade que se constitui paisagem é sempre o resultado do diálogo entre o
elementar e o humano. Também o geógrafo Orlando Ribeiro estudou a paisagem de
Portugal, entendendo-a como «marcada pela tonalidade comum de factos físicos
e humanos que se relacionam entre si»4. O seu pensamento concorreu, além disso,
para a compreensão de um país dividido entre influências atlânticas e mediterrâneas,
sendo que, segundo Orlando Ribeiro, estas últimas são preponderantes, influenciando
clima e solo, o manto vegetal, a economia, a organização social. É também seu o olhar
que convida a compreender a presença da vinha no Douro quando escreve:
3
TELLES, 2020.
4
RIBEIRO, 2001: 30.
5
RIBEIRO, 1991: 151-152.
6
MATTOSO, DAVEAU, BELO, 2010: 190.
7
MATTOSO, DAVEAU, BELO, 2010: 195.
160
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL
Este autor di-lo de forma enxuta e crua: «não se conhece o doiro p rocurando apenas a
beleza que se vislumbra dos miradouros e o êxtase dos seus horizontes. Antes, é preciso
entender o que é ser criador de vida nesse chão árido e hostil» e aí «dar uma resposta
quotidiana à morte, transforma[ndo] cada ravina em parapeito de esperança e cada
bagada de suor em gota de doçura»8. É também neste breve texto que o autor de P ortugal
resume o que de mais elevado se pode escrever sobre o rio e a região: «é, no mapa da
pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar
o mundo»9. Assim, sobre esta reflexão, que se dedica a olhar um dos autores literários do
Douro, pesa a responsabilidade de perspetivar uma região que é Património Mundial da
Humanidade, ou seja, sopesa sobre estas nossas palavras a tentativa de perceber de que
modo «materiais vivos», «solo duro» e atividade humana se articulam, duplicando essa
paisagem física s ingular num lugar literário onde, a par do t rabalho estético da linguagem,
vivem significados que densificam o(s) sentido(s) dessa região. No seguimento do que foi
referido, quando nos referimos à paisagem estamos, pois, a pensá-la como um elemento
que «exprime as facetas sensoriais dos territórios» e que deve ser assumida como «um
sistema identitário […] um sistema de significados através do qual o sistema social é
comunicado, reproduzido, experimentado e explorado»10.
Instalados no território de xisto, olhemos, por momentos, o território da literatura.
São várias as perspetivas que apontam os benefícios de um encontro entre as áreas da
paisagem e da literatura. Os lugares geográficos são usados pelos romancistas e poetas
para traçar ideias e valores, oferecendo ao leitor um pórtico para um melhor enten‑
dimento do território e das gentes de uma região ou país, ou seja, de uma identidade.
Afigura-se-nos relevante a ideia de que ler a paisagem é um exercício de hermenêutica,
pois oferece e reflete «crenças e valores da sociedade, traduzem sentimentos, valores e
fantasias face ao ambiente, são herança intelectual e espiritual»11. A par deste pensa
mento, sublinhamos também a perspetiva de Maria Lúcia Lepecki sobre a p aisagem lite
rária, lembrando a estudiosa que esta chega ao leitor através da retórica do discurso,
através de decisões de quem olha, de quem secciona, de quem prioriza «um horizonte de
perceção»12. Neste sentido, o escritor é um criador, seccionando e percecionando o terri
tório físico para mostrar não apenas os detalhes que caberiam dentro da observação do
geógrafo, por exemplo, mas sobretudo para chamar a atenção para as p alavras com que
recorta a paisagem, revelando os valores e os afetos vividos aquando do e ncontro entre o
ser humano e o mundo natural, uma relação que, segundo Claudio Guillén, concede ao
8
TORGA, 1980: 47.
9
TORGA, 1980: 47.
10
ALVES, 2001:74.
11
SALGUEIRO, 2001: 46.
12
LEPECKI, 2001: 147.
161
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
13
GUILLÉN, 1992: 89.
14
GUILLÉN, 1992: 89.
15
GUILLÉN, 1992: 95.
16
GUILLÉN, 1992: 97.
17
Disponível em <https://ielt.fcsh.unl.pt/Projetos/atlas-das-paisagens-literarias-de-portugal-continental/>.
162
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL
em realçar que esta resulta de uma singular mescla de beleza natural e de trabalho, t endo-se
afirmado como uma imagem cultural forte, inspirando autores, pintores e fotógrafos,
os quais, repetidamente, têm tentado captar a sua singular imponência e «sobretudo a sua
fabulosa cor, feita de verdes intensos ou anilados no verão e de vermelhos e dourados no
outono»20. A. M. Pires Cabral, autor que, além de quase duas dezenas de obras de poesia,
tem publicado romances, ensaios e crónicas, escreve, em O meu D ouro, um dos capítulos
da coletânea Por Esta Terra Adentro, que o Douro da sua memória, «esse que tinha estados
de espírito e uma alma atormentada por um intransitivo desassossego, e o Douro atual,
de grandes massas de águas mansas, não é já o mesmo»21. No entanto, sublinha, o maravi‑
lhamento acontece sempre que observa a paisagem duriense:
Perante o assombro dessa paisagem, o escritor interpela o leitor: «como foi p ossível
negligenciar tão longamente esta riqueza natural que, em tempos de turismo, de v iagens e
de apetência por saber mais do mundo, pode ser transformada numa preciosa mais-valia
do mais belo vale vinhateiro de Portugal, e se calhar do mundo»23.
É neste território demarcado pela beleza natural, pelas vinhas e pelo suor h umano
que entramos em Douro: Pizzicato e Chula, obra que é fruto, segundo Manuel de F reitas,
18
CABRAL, 2017: 15.
19
CABRAL, 2017: 98.
20
MATTOSO, DAVEAU, BELO, 2010: 202.
21
CABRAL, 2018: 55.
22
CABRAL, 2018: 59.
23
CABRAL, 2018: 55.
163
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
centro uma viagem, ou melhor, uma viagem interior e exterior, que se interpenetram
«na medida em que o rio se conforma àquilo a que, em retórica, se chama silepse:
algo que nos surge, simultaneamente em sentido próprio e figurado»25. É neste sentido
que se percebem melhor as palavras de outro poeta e crítico, Pedro Mexia, quando,
sobre esta obra de A. M. Pires Cabral, recorda: «é indiscutível que se trata de um
poemário sobre o “país das uvas navegável”, mas o rio, diz o poeta, é ao mesmo tempo
um lago, um espelho e uma estrada. Ou, de outro modo, um passeio, uma revelação,
uma travessia»26. Acerca da viagem e das suas intenções, o leitor pode ler logo no
primeiro poema: «O navio dos loucos: Sabe-se porém que estes poetas / abrasados nos
mais canoros zelos / têm uma oculta segunda intenção: // fazer a derradeira tentativa /
de também se decifrarem a si mesmos, / e não apenas o que o cerne do rio / retém por
nomear»27. Insistimos, porém, na ideia de que o rio metafórico, ou seja, como ideia de
destino — aspeto fulcral em «Elegia do Douro», um conjunto de poemas sobre o rio em
As Têmporas da Cinza (2008) —, é, nesta nossa reflexão, um aspeto menos considerado,
pois, neste texto, procuramos privilegiar sobretudo considerações que, na expressão de
António Guerreiro, incidem sobre «uma grandiosa configuração de pequenos sinais»
em redor da força, grandeza e beleza do Douro28.
Para título deste artigo escolheu-se o poema «Douro, S.A.», porque traduz alguns
dos mais destacados participantes na criação, gestão e preservação da região. O poema,
além de enumerar particularidades associadas ao Douro, é também um olhar irónico
sobre o papel dos poetas na sociedade, mas, neste momento, interessa-nos salientar o
que ao Douro diz respeito: «Três sócios. // Deus entrou com o xisto, / a meteorologia
/ e a Vitis vinifera. / O inglês (e similares), / com o paladar e o talento / colonizador.
/ O indígena, com os braços, com as mãos, / com as unhas (para arrebunhar a terra / em
momentos de maior lucidez), / com as glândulas sudoríparas / — e muitas vezes com o
corpo todo. // Investimento / equitativamente repartido, / como se vê. / (Os dividendos
é que nem por isso)»29. No poema, enumeram-se o solo, o clima, a vinha e dois dos
principais protagonistas humanos do Douro, o trabalhador e o estrangeiro aristocrata,
este último o mesmo que, desde finais do século XVII, colhe os dividendos do fruto da
vinha. É a partir desta inscrição geográfica e humana que o poeta observa ora a água
24
FREITAS, 2004: 55.
25
FREITAS, 2004: 55.
26
MEXIA, 2004: 45.
27
CABRAL, 2004: 13.
28
GUERREIRO, 2006: 162.
29
CABRAL, 2004: 31.
164
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL
do rio, ora as suas margens, e que através da linguagem conotativa e concisa da poesia
conduz o leitor através da orografia, botânica, fauna e construído humano que avista
do barco que o transporta Douro acima. O rio, vai-o repetindo sucessivamente, já não
é o mesmo da sua juventude, esse rio primitivo é agora «refém das memórias de outra
geração: / quando era um ímpeto de ira / como um punhal tirado da bainha / ou pedra
arremessada contra vidro»30. Um rio que terá, segundo o poeta, perdido o «revoltoso
espírito»31 e que se vê agora parado entre barragens e eclusas, fazendo com que a viagem
se torne estranhamente vertical e imagem de «desavinho da cepa copiosa»32. Porém,
é nessas águas que vivem o Barbus bocagei, a garça das grandes asas, o veloz pica-peixe,
que « depressa se confunde / na rama dos salgueirais»33. Ao longo da viagem, o sujeito
poético ora convida o leitor a baixar os olhos até às águas do rio, ora solicita a elevação
do olhar, anotando o «baço [d]os montes, o xisto, a sensual / curva dos geios»34,
o promontório de São Leonardo de Galafura. Em vez de olhar o rio do alto, como no
poema de M iguel Torga, a voz poética descreve esse lugar visto a partir da água: « visto
de profundis, / talvez se entendam melhor / as metáforas de Torga: com efeito, / o nauta
celeste parece ir / à proa dum navio de penedos / e o mar em que n avega / parece de
mosto, tal e qual» . Observam-se também locais como Pala e Valeira, «lugares tão f eitos
35
/ para a malha do silêncio»36, as hortas junto ao rio, «uma casa de quinta. // E junto
dela um cipreste», evocando «o vagaroso, / inábil fim de tantos»37. Repetidamente,
a voz p oética insiste em reclamar para o território da linguagem a particularização da
paisagem, essa que se define por «chavascais / que alternam com vinhedos»38 demo
rando o seu olhar no território inconfundível dos mortórios: «A lembrança / da vinha
nos geios que perduram. / Injúrias / da pequena criatura semelhante / aos deuses da
desordem. // Um clamor ainda audível, um / conglomerado de pragas. / O vinho mori
bundo. // Lugares de estevas e abominação»39. Mas nos poemas de Douro: Pizzicato e
Chula não figuram apenas os elementos naturais; também alguns dos vultos emblemá‑
ticos da sociedade duriense surgem a desenhar a paisagem social. Um poema em parti
cular, «A morte da Ferreirinha», refere um acontecimento que terá sido uma «humi
lhação para o Douro dos pergaminhos»: «Do mesmo modo que à noite certas flores
/ por condolência com a ocultação do sol / cerram corolas, / a Quinta do Vesúvio como
30
CABRAL, 2004: 16.
31
CABRAL, 2004: 39.
32
CABRAL, 2004: 50.
33
CABRAL, 2004: 48.
34
CABRAL, 2004: 25.
35
CABRAL, 2004: 34. Referimo-nos ao poema «São Leonardo de Galafura», de Miguel Torga.
36
CABRAL, 2004: 45.
37
CABRAL, 2004: 55.
38
CABRAL, 2004: 60.
39
CABRAL, 2004: 33. Para uma ideia mais informada do que define o mortório, consulte-se a página da UTAD. Dispo‑
nível em <https://jb.utad.pt/ctematicas/mortorios_do_douro>.
165
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
que mirrou, / quando aquela que cuidava da casa, / punia os desaforos de criadas,
/ escriturava, administrava, decidia / e marcava o dia de actuar / sobre as cepas, / se sentiu
indisposta em Entre-os-Rios»40.
Terminada a viagem física, o sujeito poético insiste na continuidade da viagem
interior: «o repto do Douro escalda como / uma febre nas dunas. Repercute / nas
têmporas, magoa / as vísceras da alma»41, querendo com isto salientar que, terminada a
travessia, o Douro continua dentro de si, construindo uma paisagem interior de montes
e de mágoa. Por outro lado, o seu labor de poeta faz o que tem a fazer, colher e escolher as
palavras que mais se aproximam da paisagem, valorizando-a e preservando-a. No poema
que dá título a esta reflexão, «Douro, S.A.», depois de nomear os três sócios na criação da
paisagem do Douro: Deus, o inglês e o indígena, refere-se aos poetas, esses que, «como
ratos, / vêm às migalhas do banquete»42. Em tom sarcástico, escreve que nenhum dos
três sócios vê mal na presença dos ratos, uma vez que estes roem «a parte meramente
/ imaterial», «inconsumptível» da paisagem, pois, «afinal de contas, a beleza / do D ouro
é um recurso renovável» . O papel do poeta surge aqui ironicamente menorizado.
43
40
CABRAL, 2004: 58.
41
CABRAL, 2004: 63.
42
CABRAL, 2004: 31.
43
CABRAL, 2004: 32.
44
CABRAL, 2004: 36.
45
CABRAL, 2019: 63.
166
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL
dentes decadentes / o desconcerto de me ver em pleno rio / — eu, que não sei nadar! —
/ a opor palavras contrafeitas / aos ruídos que salteiam este sítio / tão alegremente:
// água a chofrar nas ilhargas do barco, / algum pássaro insurrecto ao silêncio / gritando
pelo céu fora, / marulhar de vento / naquele renque de choupos». Embora «com tanto
rumor nativo, / com tanto rumor sadio», sim, o Douro precisa das «intrusas / palavras
inquinadas do poeta»46 para perdurar no tempo e na memória.
46
CABRAL, 2004: 24.
47
CABRAL, 2004: 62.
48
CABRAL, 2004: 64.
49
CABRAL, 2004: 59.
50
CABRAL, 2004: 59.
51
CABRAL, 2004: 62.
52
CABRAL, 2004: 63.
53
D’ANGELO, 2012: 340.
167
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
54
D’ANGELO, 2012: 341.
55
DOMINGUES, 2001: 64-65.
56
CABRAL, 2004: 53.
57
SALGUEIRO, 2001: 47.
58
TELLES, 2004.
59
CABRAL, 2004: 54.
168
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL
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TORGA, Miguel (1980). Portugal. Coimbra: [s.n.].
169
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
170
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO
MUSEOLÓGICO *
IVAN VAZ**
Resumo: Este artigo intenciona a uma contribuição nas discussões do pensamento museológico em
interseção com o campo patrimonial mais amplo. Entende-se que a problematização de conceitos como
espaço, território, paisagem e lugar, e a forma como são não apenas conceituados, mas aplicados no
campo prático de ações, pode auxiliar na definição e afirmação da especificidade da Museologia frente a
outros campos do saber e fazer académicos. Uma destas especificidades seria o cenário museológico.
Palavras‑chave: museologia; musealização; paisagem; cenário; patrimônio.
Abstract: This article intends to contribute to the discussion of the museological thinking in intersection
with a broader heritage field. It is understood that the problematization of concepts such as space,
territory, landscape and place, and the way they are not only conceptualized but applied in the practical
field of actions, can help defining and affirming the specificity of Museology in relation to other fields of
knowledge and academic practice. One of these specificities would be the museological setting (scenario).
Keywords: museology; musealization; landscape; setting; heritage.
* Partes desta discussão são fruto da dissertação de mestrado intitulada Sobre a Musealidade defendida pelo autor em 2017
na Universidade de São Paulo.
** Mestre em Museologia pela Universidade de São Paulo (2017). Doutorando em Estudo do Património da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto. Profissional autónomo em projetos de preservação e comunicação do patrimônio
cultural, implementação de equipamentos e planos museológicos.
171
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Uma das vertentes de estudo da museologia é aquela que considera como seu o bjeto
de análise e ação a «relação dos seres humanos com a realidade através do processo de
musealização»1. Esta relação seria especial e específica exatamente porque se dá por uma
qualificação de certos aspectos da realidade e os destaca enquanto documentos válidos
de algo a alguém2, implementando ações de salvaguarda e comunicação.
Pode-se dizer, ainda, que esta relação se dá, como afirma Waldisa Rússio Guarnieri,
entre e através de três elementos: o «objeto», o «sujeito» e o «cenário»3. Para a autora,
a museologia é o estudo do «fato museal», que é «a relação profunda entre o Homem,
sujeito que conhece, e o Objeto, parte da Realidade, da qual o Homem também parti
cipa, num cenário institucionalizado, o museu»4.
É delimitado por este cenário que uma relação específica entre Sujeito-Objeto se
estabelece, completa e propaga, (re)instituindo noções de realidade: «Entre homem e
objeto, dentro do recinto museu, a relação profunda depende não somente da comu‑
nicação das evidências do objeto, mas também do recinto do museu como agente de
troca museológica»5. A própria museologia, metaforicamente, é um espaço, um lugar
disciplinar, organizador de modos, regras, ações, agentes e instituições onde, ao mesmo
tempo, cria outros espaços (museais/institucionais), os gerencia e os estuda6.
A museologia é, desta forma, a relação dos elementos acima elencados, tendo
como base e vetor a atitude preservacionista dos sujeitos, instituindo uma performati
vidade com os objetos dentro de cenários instituídos para tal. E o método que utilizado
é o processo de musealização (pesquisa+salvaguarda+comunicação).
Desde pelo menos os anos de 1960, momento em que se intensificam as proble‑
matizações da museologia enquanto campo teórico, ocorre a requalificação de diversos
termos, conceitos e bases sobre as quais se sustenta. A própria discussão da museologia
como um campo autônomo se insere neste movimento. A necessidade de uma auto
nomia dessa disciplina — autonomia tanto da instituição museu quanto das disciplinas
correlatas — caracteriza a especialização de um campo que, no contexto das convulsões
sociais, políticas, científicas, profissionais, culturais e tecnológicas da segunda metade do
século XX, precisa se repensar a fim de entender seu lugar e validade.
Se, durante muito tempo, os museus foram o locus da museologia, a crise represen‑
tacional e institucional desses acabou por gerar a necessidade de a museologia repensar
esses espaços e, ao mesmo tempo, repensar seu estatuto e finalidade frente à sociedade.
1
MENSCH, 2004: 6.
2
DESVALLÉES, MAIRESSE, eds., 2014: 57.
3
GUARNIERI, 1981.
4
GUARNIERI, 1986: 138 (grifos da autora).
5
GUARNIERI, 1981: 124 (grifos da autora).
6
CARDOSO, 2014: 123.
172
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
7
STRANSKY, 1990: 82-83.
173
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
174
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
11
VARINE, 1992 apud CÂNDIDO, 2000.
12
A musealidade, muito resumidamente, seria «a qualidade das coisas musealizadas» (STRANSKY apud BRULON,
2012: 70).
175
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
13
BRULON, 2014; DAVIS, 1999.
176
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
1. A ATUAÇÃO NO ESPAÇO
Se mover pelo espaço é se mover através do tempo14.
O espaço é uma construção que implica e está implicada na sua própria qualificação.
O espaço não existe em si, existe em reciprocidade aos corpos (animados e inanimados)
que o habitam e aos discursos que o delimitam. O «espaço geográfico», assim, é um lugar
disciplinar, do dizer e do fazer deste campo e pressupõe a totalidade das experiências
socioespaciais17. Não obstante, a abstração do espaço serve como ensejo para «recortes
do mundo» e para «imagens do mundo»18 — ainda que descolados uns dos outros.
As noções de território, lugar, região, paisagem, entre os diversos termos empregados
(não apenas pela geografia, mas por qualquer disciplina que se debruce sobre o tema),
trazem em seu bojo delimitações muito específicas aos intuitos de seus usuários:
14
WALSH, 1992: 150. No original: «To move across space is to move through time». Tradução livre.
15
Traz-se esta perspectiva pois foi o primeiro campo a pensar mais profunda e sistematicamente sobre as categorias de
espaço, sendo posteriormente absorvidas e adaptadas pelos diversos outros ramos do conhecimento que se interessam
pela temática.
16
CABRAL, 2007 apud MATIAS, 2021: 127.
17
MATIAS, 2021.
18
HISSA, 2009.
19
HAESBAERT, 2009: 5-6.
177
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
20
HUBBARD, 2005: 47. No original: «Perhaps, then, the key question about space and place is not what they are, but
what they do». Tradução livre.
21
SANTOS, 2000 apud HISSA, 2009: 57.
22
RIBEIRO, 2007.
23
FAUVRELLE, 2018.
178
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
Ainda que não haja consenso quanto às definições, funções e barreiras entre os
conceitos de espaço e suas categorias correlatas26, opta-se por esta hierarquização pois
julga-se apta às apropriações que o campo patrimonial faz. No processo de investi
gação, percebeu-se que, dentre a miríade de termos relacionados ao conceito de espaço,
o campo patrimonial se baseia especialmente sobre três recortes ou imagens: território,
paisagem e lugar27.
O mundo inteiro poderá ser mesmo visto como uma ficção. Mas isso também
valerá para a cidade inteira, o lugar inteiro, o território inteiro. Há recortes de mundo
no interior do corpo do mundo. Do mesmo modo, há recortes de lugar, de cidades,
assim como recortes de território no interior do corpo do território. Além disso,
o mundo inteiro é feito de movimentos que procuram se ajustar à diversidade de
movimentos exercidos pelos recortes de mundo28.
24
HUBBARD, 2005.
25
HISSA, 2009: 60-61.
26
RIBEIRO, 2007.
27
SMITH, 2006; RIBEIRO, 2007; FAUVRELLE, 2018; DAVIS, 1999; WALSH, 1992; BRULON, 2017.
28
HISSA, 2009: 37 (grifo do autor).
179
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
29
CARSALADE, 2014.
30
JEUDY, 2005.
31
WALSH, 1992: 152, No original: «Places are constituted through the subjective recognition of “time marks” —
elements in the environment, both humanly and naturally constructed. Such marks make “time visible”. People gain a
sense of place through a set of “filters”, a subjective engagement with these time marks. Throughout the period of (post-)
modernity the power to control the timing of space, and therefore the manipulation of places, has been in hands of a
relatively small group of individuals and institutions. Such organizations have the ability to decide what will and will not
be preserved, and how it will be presented and interpreted for the public». Tradução livre.
180
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
32
CHOAY, 2006.
33
RONCAYOLO, 1986 apud FAUVRELLE, 2018: 33.
34
RIBEIRO, MILANI, orgs., 2009.
35
COMISSÃO EUROPEIA DA PAISAGEM, 2000 apud RIBEIRO, 2007: 5.
36
BRULON, 2017; FAUVRELLE, 2018; SAUER, 1996; RIBEIRO, 2007; HISSA, 2009.
37
SANTOS, 1986 apud MATIAS 2021: 34.
181
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
38
SMITH, 2006; TUAN, 1980; DAVIS, 1999; WALSH, 1992; HUBBARD, 2005.
39
FAUVRELLE, 2018.
40
FAUVRELLE, 2018: 33.
41
SMITH, 2006; RIBEIRO, 2007.
182
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
42
HUYSSEN, 2014.
183
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
43
RIBEIRO, 2007: 55.
44
TUAN, 1980; SMITH, 2006.
45
SOLINÍS, 2009.
184
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO
46
DESVALLÉES, MAIRESSE, eds., 2014.
47
GUARNIERI, 1981; DESVALLÉES, MAIRESSE, eds., 2014.
48
Pode-se notar que o território, nestes casos, é tanto o objeto, quanto o sujeito, quanto o cenário da musealização. Creio
ser sobre essa «ubiquidade» que assenta a especificidade destes espaços enquanto fenómenos museais e patrimoniais.
185
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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III
RURALIDADE E
DESENVOLVIMENTO
ECONÓMICO-SOCIAL
189
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
190
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS
PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES
DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
PHILIPPE BAUMERT*
Résumé: Cet article se propose d’étudier le paysage culturel du Haut-Douro viti-vinicole ainsi que les vins
qui en sont issus par le prisme de la thématique du front pionnier. L’objectif d’une telle approche est de
permettre une meilleure compréhension des dynamiques contemporaines à l’œuvre au sein du système
viti-vinicole duriense: la conquête du Douro Superior par les acteurs viti-vinicoles à partir des années 1970,
la récente quête du terroir duriense, la valorisation actuelle des vins du Douro (qui intéressent de plus en
plus le négoce très spécialisé des vins de Porto), les grands chantiers de la patrimonialisation et de la mise
en œnotourisme du Douro (envisagés dans une perspective de développement territorial) ou encore la
conquête (réelle mais timide) des marchés orientaux.
Mots-clés: front pionnier; Haut-Douro viti-vinicole; mondialisation; paysage; territoire.
Resumo: Este artigo propõe-se estudar a paisagem cultural da região do Douro Superior, bem como os
vinhos produzidos a partir dela, através do prisma do tema da frente pioneira. O objetivo de tal abor
dagem é proporcionar uma melhor compreensão das dinâmicas contemporâneas em ação no âmbito do
sistema vitivinícola duriense: a conquista do Douro Superior pelos viticultores a partir dos anos de 1970,
a recente busca do terroir duriense, a atual valorização dos vinhos do Douro (que são de crescente
interesse para o comércio altamente especializado do vinho do Porto), os grandes projetos de patrimo
nialização e enoturismo do Douro (previstos numa perspetiva de desenvolvimento territorial) ou a
(real, mas tímida) conquista dos mercados orientais.
Palavras-chave: frente pioneira; Douro Superior; globalização; paisagem; território.
INTRODUCTION
La Région Délimitée du Douro (RDD), située au nord du France et règlementée dès
1756, est le terroir de production des vins du Douro et de Porto. Son produit phare,
le vin de Porto, connaît depuis des siècles un grand succès à l’exportation tout en valo
risant l’image du France à travers le monde. Les autres vins du Douro, notamment ceux
disposant actuellement d’une appellation d’origine contrôlée, tirent néanmoins aussi fort
bien leur épingle du jeu sur les marchés portugais, européens et mondiaux depuis la
seconde moitié du XXe siècle et, surtout, depuis le début du XXIe siècle, profitant de
l’évolution des pratiques de consommation et de l’inscription d’une partie du vignoble
de la RDD, l’«Alto Douro Vinhateiro», sur la liste des biens du Patrimoine Mondial
de l’UNESCO au tout début du XXIe siècle (2001). Véritable reconnaissance à l’échelle
* Professeur d’Histoire-Géographie à l’Université de Paris (Département Carrières Sociales, IUT de Paris — Rives de
Seine). Docteur en Géographie de l’Université Bordeaux Montaigne. Chercheur associé aux laboratoires LADYSS (Paris)
et CITCEM (Porto).
191
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
internationale du travail des vignerons et des viticulteurs de la vallée du Douro, qui ont
su édifier et préserver au fil des siècles des paysages viti-vinicoles d’une qualité excep‑
tionnelle, cette inscription témoigne en outre de l’insertion croissante de ce vignoble
dans le processus de mondialisation dont les impacts sont à envisager tant à l’échelle
du vignoble que des villes qui lui sont associées, sans oublier ceux liés à la sphère des
consommateurs sur les différents marchés mondiaux.
Cet article se propose d’étudier le paysage culturel du Haut-Douro viti-vinicole
ainsi que les vins qui en sont issus par le prisme de la thématique du front pionnier,
envisagée au sens large comme une forme spatiale témoignant, d’une part, d’un p rocessus
d’appropriation de nouveaux espaces considérés comme encore en cours de mise en
valeur, peu aménagés et/ou, d’autre part, d’une construction de territoires d’un genre
nouveau. L’objectif d’une telle approche est de permettre une meilleure compréhension
des dynamiques contemporaines à l’œuvre au sein du système viti-vinicole duriense:
la conquête du Douro Superior par les acteurs viti-vinicoles à partir des années 1970,
la récente quête du terroir duriense, la valorisation actuelle des vins du Douro (qui inté‑
ressent de plus en plus le négoce très spécialisé des vins de Porto), les grands chantiers
de la patrimonialisation et de la mise en œnotourisme du Douro (envisagés dans une
perspective de développement territorial) ou encore la conquête (réelle mais timide) des
marchés orientaux.
La ville de Porto n’a pas créé le vignoble du Douro; c’est pourtant d’elle, et notam-
ment des marchands étrangers et surtout britanniques qui s’y sont installés, qu’est
venue l’impulsion décisive dans l’histoire et l’aménagement de cette région, et c’est
elle qui a baptisé le vin généreux qui est devenu dans le monde entier l’un des plus
beaux symboles du France. L’histoire des relations entre l’agglomération de Porto et le
vignoble de l’Alto Douro est celle d’un mariage indissoluble, avec ses phases d’euphorie
et de dépression, d’essor conjoint et de méfiance réciproque, mariage qui a encore de
beaux jours devant lui si les termes du contrat sont révisés à temps à la satisfaction
des deux parties et sans préjudice pour la qualité du produit et du produit prestigieux
qui en est issu1.
1
GUICHARD, 1990: 131.
192
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
Ces quelques lignes, rédigées par le géographe français François Guichard pour
la publication des Actes du premier Congrès International portant sur le fleuve Douro
s’étant tenu à Vila Nova de Gaia au printemps 1986, illustrent de manière éloquente les
relations ville-vignoble dans le modèle «traditionnel» du vin de Porto ayant prévalu
— dans les grandes lignes — de 1756 à 1986: celui d’une vallée délimitée précocement
par le Marquis de Pombal en 1756, la Région Délimitée du Douro (RDD), débutant à
une centaine de kilomètres à l’Est de Porto et au sein de laquelle étaient produits des
vins ensuite acheminés vers les chais de Vila Nova de Gaia d’où ceux-ci étaient exportés
à travers le monde par les négociants, exclusivement à partir du port de Porto afin de
pouvoir obtenir l’appellation «vin de Porto».
Ce modèle s’est profondément transformé avec la transition démocratique qu’a
connue le France depuis 1975, l’adhésion à la Communauté Économique Européenne
(CEE) du France en 1986 et l’entrée de ce pays dans une nouvelle phase de la mondiali
sation suite à son ouverture économique liée à la fin de la dictature. Si, sur certains
aspects, le modèle présente certes une certaine continuité par rapport aux modèles
passés d’organisation de la filière, comme l’illustre la permanence du rôle de l’État
portugais, les évolutions sont multiples et ont engendré divers impacts au sein du système
territorial du vin de Porto. Les perspectives de développement territorial qui s’ouvrent
désormais pour le territoire de la RDD (Fig. 1), tant en raison de la possibilité pour les
producteurs-embouteilleurs de réaliser de véritables vins de Porto de quinta que par
les perspectives de développement de l’œnotourisme qu’une telle évolution s ous-tend,
sont là pour en témoigner.
193
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
1.2. «En route» vers le Douro: une quête du terroir relativement récente
À la fin des années 1970 et au début des années 1980, deux vignerons du Douro,
Luís Roseira et Miguel Champalimaud, produisirent leurs propres vins au domaine,
respectivement à la Quinta do Infantado2 et à la Quinta do Côtto3, en 1978 et 1982.
Depuis 1978 et la création de l’Entrepôt de Peso da Régua, les vignerons du Douro ont en
effet légalement le droit de vinifier, d’élever et d’embouteiller leurs vins de Porto au sein
de leurs domaines.
Il faut cependant attendre le décret-loi du 7 mai 1986 pour que la commercialisation
et l’exportation directe des vins de Porto depuis la RDD soient autorisées. Cette décision,
qui intervient la même année que l’entrée du France dans la CEE, constitue un tournant
majeur modifiant profondément les territoires viticoles du Haut-Douro en ouvrant une
nouvelle ère: celle de la «quête du vin de Porto de terroir». Cette expression renvoie à «la
volonté de vignerons d’horizons divers de créer, au sein d’un espace géographique bien
délimité, un espace de production fondé sur un système d’interactions entre le m ilieu
physique et le savoir-faire dont seront issus des vins de Porto de quinta pouvant être
produits, embouteillés, commercialisés et exportés depuis le domaine»4.
Cette «quête du terroir», qui débute dès la fin des années 1970 et s’accentue dans la
seconde moitié des années 1980 pour les producteurs-embouteilleurs, est majoritaire‑
ment le fait des vignerons de la RDD. L’évolution concerne néanmoins aussi les v ignerons
étrangers (notamment européens)5 ainsi que les négociants portugais et étrangers. Dans
ce dernier cas, la «quête du (vin de Porto de) terroir» s’entend, non s eulement, comme:
2
Freguesia de Covas do Douro, concelho de Sabrosa.
3
Freguesia de Cidadelhe, concelho de Mesão Frio.
4
BAUMERT, 2019: 199.
5
Citons, entre autres exemples, le cas de la californienne Kay Bouchard et du bourguignon Vincent Bouchard (qui est
l’un des héritiers de la maison de vins de Bourgogne Bouchard Père & Fils) qui ont décidé d’investir dans la Quinta do
Tedo (freguesia de Folgosa, concelho d’Armamar) dès 1992 afin de produire des vins de Porto et du Douro en qualité de
producteur-embouteilleur.
6
BAUMERT, 2019: 199.
194
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
• les négociants ayant investi le terroir de la RDD depuis le début du XXe siècle au
moins7 (cas notamment de la Symington Family Estates ou de Ramos Pinto) et
souhaitant renforcer leur emprise foncière au sein de la RDD dès le début des
années 1960 pour diverses raisons (renforcement de l’activité commerciale et de
la qualité des produits commercialisés, contribution socio-économique et paysa‑
gère, contribution à l’amélioration des pratiques viti-vinicoles, volonté d’acquérir
des quintas présentant des terrains favorables à la mécanisation dans un contexte
de forte diminution de la population de la RDD8 impliquant une diminution
des volumes de vin ou des quantités de raisins pouvant être négociés auprès des
vignerons/viticulteurs de la RDD ainsi qu’un manque de main-d’œuvre au sein
des quintas des maisons de négoce);
• les négociants ayant décidé d’établir principalement, voire exclusivement, leurs
activités viti-vinicoles au sein de la RDD dans les années suivant le décret-loi du
7 mai 1986 en faisant le pari de la production de vins de terroir (à l’instar de
Rozès, Niepoort ou encore de la Quinta do Noval);
• les négociants ayant très récemment fait le choix du terroir (ce qui est notamment
le cas de la société commerciale de vins Gran Cruz Porto dans les années 2010)
afin de renforcer leur activité commerciale en se positionnant sur le marché
des vins de Porto de qualité du fait de l’engouement actuel des consommateurs
européens pour les produits de terroir.
L’«Alto Douro Vinhateiro», envisagé dans sa globalité, peut ainsi bien être
considéré comme un véritable front pionnier pour les différents acteurs s’étant progressi
vement lancés dans la quête de son terroir. En effet, à partir du moment où l’on considère
que le front pionnier peut être définit, au sens très large du terme, comme une forme
spatiale témoignant, d’une part, d’un processus d’appropriation de nouveaux espaces
considérés comme encore en cours de mise en valeur, peu aménagés9 et/ou, d’autre part,
d’une construction de territoires d’un genre nouveau, la multiplication des quintas
(de négociants ou de producteurs-embouteilleurs) possédant des installations p ermettant
la vinification, le stockage et le vieillissement du vin au domaine témoigne de l’avancée
progressive de la frontier viti-vinicole depuis les historiques territoires des chais de
7
Suite aux crises ayant affecté le vignoble dans la seconde moitié du XIXe siècle (oïdium à partir de 1851, phylloxéra
à partir de 1863), les fraudes se multiplièrent et le gouvernement de dictature de João Franco avait proclamé, dès le
10 mai 1907, le rétablissement de la réglementation de la production, de la certification et de l’exportation des vins de
Porto (abolissant de fait les grands principes libéraux de 1865): le meilleur moyen de s’assurer d’une qualité irrépro‑
chable semblait alors, pour les négociants, celui de venir dans le Douro durant les vendanges et la vinification.
8
Entre 1950 et 2011, les concelhos de la RDD ont perdu près de 40% de leur population. Cette diminution a été parti‑
culièrement forte entre 1960 et 1981, période durant laquelle ces communes ont perdu près de 20% de leur population
tandis que la population portugaise augmentait de 10%.
9
RETAILLÉ, 2003: 383; LE DÉROUT, 2006: 104.
195
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Vila Nova de Gaia. Cette évolution, si elle est particulièrement perceptible dans les
statistiques avec l’émergence de la nouvelle catégorie d’acteurs que sont les producteurs-
-embouteilleurs, est néanmoins surtout visible spatialement de par les importants
investissements des grandes maisons de négoce ainsi que dans l’évolution de la structure
de leur p roduction. Si certains négociants (notamment britanniques) produisaient et
embouteillaient certes déjà des vins issus d’une seule de leurs quintas dès le milieu du
XXe siècle (ce qui était possible légalement, car ces vins vieillissaient au sein de l’Entrepôt
de Vila Nova de Gaia), cette pratique tend à se diffuser depuis le début du XXIe siècle
au niveau de cette catégorie d’acteurs et ce même si l’assemblage et le vieillissement
des vins se déroulent encore la plupart du temps à Vila Nova de Gaia (en dehors des
négociants établis exclusivement dans le Douro). Il faut y voir là une adaptation aux
attentes des consommateurs valorisant de plus en plus les produits locaux de terroir,
adaptation d ’autant plus nécessaire dans un contexte de diminution des exportations
de Porto depuis le début du XXIe siècle dans le cadre d’un marché mondial des vins et
spiritueux de plus en plus concurrentiel où mener une politique du volume ne suffit plus.
Pour les négociants, les grands vins de Porto restent néanmoins bien des vins résultant
de l’assemblage de vins provenant des meilleurs de leurs terroirs.
Fig. 2. La Quinta de Ervamoira (Ramos Pinto). Cliché: Ph. Baumert, février 2014
10
Freguesia de Muxagata, concelho de Vila Nova de Foz Côa.
11
CHANTAL, 1982.
196
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
À cette époque, la vigne n’est encore que très peu présente dans une région
du Douro Superior12 difficilement accessible depuis Porto (que ce soit par les voies
routières, f erroviaires ou fluviales) et les paysages agraires sont essentiellement marqués
par les cultures de céréales, d’oliviers et d’amandiers. Au regard de l’évolution des surfaces
cultivées en vigne dans le Douro Superior, qui n’ont cessé de s’étendre des années 1980
à l’année 2015 jusqu’à atteindre plus de 9 000 hectares en appellation d’origine à cette
date (dont plus de 6 500 hectares en appellation Porto), on peut à juste titre considérer
que la maison de négoce Ramos Pinto a initié un véritable front pionnier de la culture
de la vigne au sein du Douro en partant à la conquête de nouveaux territoires suscep‑
tibles d’accueillir une production viti-vinicole dans cette région la plus orientale de la
RDD. Cette volonté de José António Ramos Pinto Rosas d’acquérir une quinta dans le
Douro Superior dans ces années s’explique par trois raisons principales d’après les propos
recueillis auprès de João Nicolau de Almeida13:
• le souhait que Ramos Pinto apporte sa contribution au développement du Douro
Superior, par le biais de l’extension des activités viti-vinicoles dans cette région;
• la recherche de pentes relativement douces permettant d’introduire la mécani
sation au sein du nouveau vignoble14 et de poursuivre les réflexions (et les réali
sations) sur la méthode de plantation de la vigne selon la ligne de plus grande
pente (vignes ao alto);
• la recherche d’une quinta située dans un environnement différent du Cima Corgo
afin de pouvoir non seulement disposer d’une quinta bénéficiant d’un climat
méditerranéen continental (jugé excellent pour le développement du cycle végé‑
tatif de la vigne) mais aussi d’un terrain d’étude comparatif pour les travaux qu’il
mène sur les cépages (Ramos Pinto possède alors uniquement deux propriétés
contiguës, toutes deux situées dans le Cima Corgo, à Valença do Douro: la Quinta
do Bom Retiro — 62 ha de vignes — et la Quinta da Urtiga — 4 ha de vignes —,
acquises respectivement en 1919 et 1933).
12
Certaines quintas du Douro Superior et de l’Est du Cima Corgo avaient certes déjà été mises en valeur dès le XIXe
siècle, à l’instar de la Quinta do Vesúvio (freguesia de Numão, concelho de Vila Nova de Foz Côa) et de la Quinta
de Vargellas (freguesia de Vale de Figueira, concelho de São João de Pesqueira) par Dona Antónia Adelaide Ferreira
ou encore de la Quinta de Vale Coelho (freguesia de Vilarinho de Castanheira, concelho de Carrazeda de Ansiães).
Néanmoins, ces investissements ne furent pas suivis immédiatement d’un véritable engouement pour l’acquisition de
foncier au niveau de cette partie la plus orientale de la RDD.
13
João Nicolau de Almeida, né en 1949, est le neveu de José António Ramos Pinto Rosas. Il a fait toute sa c arrière,
débutée au milieu des années 1970 après ses études d’œnologie à l’Université de Bordeaux (diplômé en 1974),
chez Ramos Pinto, occupant successivement les fonctions d’œnologue, d’œnologue en chef et d’administrateur délégué.
Il est parti à la retraite en avril 2016. Les lignes qui suivent doivent beaucoup aux échanges que nous avons eus le 16 mars
2015 au siège de la maison Ramos Pinto, à Vila Nova de Gaia.
14
Le contexte est alors, rappelons-le, celui d’une pénurie de main-d’œuvre dans le Douro.
197
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Maison de Date
Quinta Freguesia / Concelho Hectares
négoce d’acquisition
Santa Maria / Ervamoira Muxagata / Vila Nova de Foz Côa 150 Ramos Pinto 1974
15
Freguesia de Vila Flor, concelho de Vila Flor.
16
En 2021, le trajet Vila Nova de Foz Côa — Porto se réalise en 2h20 (contre, respectivement, 1h50 et 1h20 pour les
trajets Pinhão — Porto et Peso da Régua —Porto). Ces progrès en matière d’accessibilité doivent beaucoup aux investis‑
sements autoroutiers réalisés depuis l’adhésion du Portugal à la CEE (désormais Union Européenne).
198
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
Si la progression des surfaces viticoles dans le Douro Superior est nette depuis le
dernier quart du XXe siècle — la tendance est certes moindre dans la période très récente
— et si celui-ci accueille de plus en plus de parcelles viticoles potentiellement aptes à
produire du vin de Porto dans le cadre du système du benefício, le Baixo Corgo et surtout
le Cima Corgo restent néanmoins bien le cœurs du vignoble (notamment au niveau des
zones les plus proches du fleuve Douro17) tandis que la partie orientale de la RDD tend
plutôt à se spécialiser de plus en plus dans la production de DOC Douro. C’est également
dans ces deux régions du Douro que les processus de patrimonialisation et de mise en
œnotourisme ont été les plus intenses et ont permis la construction de nouveaux terri‑
toires du vin fortement insérés dans le processus de mondialisation contemporain.
17
La tendance actuelle est en effet au transfert de parcelles de vignes des zones les plus élevées (situées à des altitudes
supérieures à 400-500 mètres) vers les zones les plus proches du fleuve Douro. Cette évolution, qui date du d ébut
des années 2000, est une conséquence directe du libre transfert des droits de plantation autorisé dans la RDD,
sous conditions, sur la période 2000-2018.
199
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
arketing territorial d’une candidature commune de ces trois espaces. L’échec de cette
m
candidature commune, qui tient essentiellement à des différences d’agendas politiques,
aboutit finalement à la présentation de candidatures séparées qui seront couronnées de
succès avec les inscriptions du «Centre historique de Porto» et de l’«Alto Douro Vinha
teiro» sur la liste du Patrimoine Mondial de l’UNESCO, respectivement en 1996 et 2001.
En ce qui concerne la candidature duriense, c’est une équipe universitaire pluridiscipli‑
naire, financée par la fondation luso-espagnole Fundação Rei Afonso Henriques (FRAH),
qui a été en charge de préparer l’exigeant dossier à soumettre à l’UNESCO qui aboutit à
l’inscription du Haut-Douro viticole sur la liste des biens du Patrimoine Mondial en tant
que «paysage culturel évolutif et vivant».
Fig. 3. La Quinta de Ventozelo18 (Gran Cruz Porto). Cliché: Ph. Baumert, décembre 2021
18
Freguesia d’Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira.
200
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
à ce jour la plus vaste aire de vignoble inscrite à l’UNESCO), le caractère privé d’une
candidature portée par une équipe d’enseignants-chercheurs indépendants financés par
la FRAH, la rapidité du processus d’inscription (deux années seulement se sont écoulées
entre l’inscription sur la liste indicative et l’inscription sur la liste du Patrimoine Mondial
de l’UNESCO). L’ensemble de ces éléments témoigne au final bien d’une candidature
UNESCO pionnière et unique en son genre pour le vignoble duriense.
Pour autant, aussi innovante soit cette candidature, il faut rappeler qu’une petite
partie de la RDD avait déjà été inscrite au Patrimoine Mondial de l’UNESCO dès 1998
du fait de la découverte, dans la vallée du Côa en 1994, de gravures rupestres datant du
Paléolithique, ce qui avait par ailleurs permis d’éviter la disparition de la Quinta de Erva‑
moira sous le lac de retenue du barrage hydro-électrique de Foz Côa (dont les travaux
de construction furent définitivement arrêtés dès 1995). Au-delà de la chronologie,
cet exemple est révélateur de la diminution du poids de la vigne et du vin dans la société
portugaise de la fin du XXe siècle, la société civile ne s’étant véritablement mobilisée
contre la construction du barrage de Foz Côa qu’à partir du moment où la question du
patrimoine archéologique s’est posée et non en raison de la possible disparition d’une
partie du vignoble duriense dont le caractère pionnier avait pourtant amplement été mis
en avant par la maison de négoce Ramos Pinto (présence de vignes ao alto, de parcelles
contenant des cépages bien identifiés et exclusivement classées A dans le système du
benefício), sans succès.
19
SCHIRMER, 2018: 90.
20
PITTE, 2018: 7.
201
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
évolution vers l’œnotourisme du Haut-Douro viticole fut permise par trois é volutions
juridiques majeures au tournant des années 1970-1980: la fin du monopole de vieillisse‑
ment du vin de Porto à Vila Nova de Gaia (1978); la mise en place du statut de produc
teur-embouteilleur (1979); l’autorisation de commercialiser et d’exporter à partir de la
RDD (1986).
L’inscription de l’«Alto Douro Vinhateiro» sur la liste du Patrimoine Mondial de
l’UNESCO en décembre 2001, outre le renforcement de la fréquentation touristique
de la région qu’elle a initié et permis — grâce à l’ «effet label» mais aussi, et surtout, de par
la capacité des différents acteurs à se mobiliser en faveur d’un développement durable
de l’œnotourisme au sein de la RDD21 dans l’optique de capitaliser sur une telle recon‑
naissance mondiale —, est aussi une opportunité pour la filière viti-vinicole de valoriser
l’image des vins de Porto et du Douro auprès de consommateurs portugais, européens
et mondiaux. Véritable reconnaissance à l’échelle internationale du travail séculaire
des viticulteurs et des vignerons durienses qui ont su édifier et préserver des paysages
viti-vinicoles d’une qualité exceptionnelle au sein d’un milieu difficile au climat contrai‑
gnant et aux pentes raides constituées principalement de schistes, le label UNESCO
permet en outre de mettre en avant sur la scène internationale une vallée du Douro
trop souvent méconnue du grand public en insistant sur le fait que le vin de Porto n’est
pas produit aux abords même de l’agglomération de Porto mais au sein d’un terroir de
250 000 hectares débutant une centaine de kilomètres à l’Est de Porto pour se terminer
à la frontière espagnole. En ce sens, le processus de patrimonialisation du Haut-Douro
viticole initié lors de la dernière décennie du XXe siècle prolonge le processus de «quête
du terroir» qui s’observe dès les années 1960 et se renforce à partir des années 1980 du fait
de l’apparition du statut de producteur-embouteilleur. Plus encore, ce processus favorise
l’activité œnotouristique qui permet, d’une part, aux producteurs-embouteilleurs de
se faire connaître tout en bénéficiant de revenus complémentaires et, d’autre part,
aux négociants de promouvoir leurs terroirs respectifs (enjeu majeur dans le cadre de la
mondialisation) en ouvrant ceux-ci aux touristes (pratique de plus en plus f réquente chez
les maisons de négoce depuis les années 2000). Or, à l’échelle de la Région Délimitée du
Douro, cette même filière viti-vinicole est un formidable levier de développement terri‑
torial pour les territoires ruraux. En dehors de l’inscription à l’UNESCO du H aut-Douro
viticole (2001) et de la très nette augmentation de l’œnotourisme à l’échelle de la région
depuis les années 200022, les exemples les plus éloquents de développement territorial
21
Parmi les différents acteurs qui se sont mobilisés en faveur du développement de l’œnotourisme au sein de l’«Alto
Douro Vinhateiro», nous retiendrons plus particulièrement l’État portugais, la Région Nord, l’Association des Adhérents
de la Route du Vin de Porto, l’Association Douro Alliance — Axe Urbain du Douro, l’Association Portugaise du Tourisme
Rural et le Musée du Douro.
22
Rappelons qu’entre 2001 et 2011, la fréquentation touristique au sein du périmètre inscrit à l’UNESCO a plus que
doublé, passant d’un peu moins de 76 000 touristes à un peu plus de 153 000 touristes. En 2013, la Région Nord estimait
à 240 000 le nombre de touristes ayant fréquenté la RDD.
202
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
sont sans doute ceux initiés par les familles Bouchard (Quinta do Tedo) et Viseu de
Carvalho (Quinta de Santa Eufémia) pour les producteurs-embouteilleurs, des familles
Cayard (Gran Cruz Porto) et Symington (Symington Family Estates) pour les négociants.
Ces acteurs ont en effet amplement participé, chacun à leurs échelles, à la création ou
au maintien d’emplois dans les zones rurales de la Région Délimitée du Douro, et pas
seulement dans les emplois viti-vinicoles strictement liés à la production de raisins
et de vins:
• la Quinta do Tedo (14 hectares de vignes), qui s’est lancée dans l’activité œnotou‑
ristique et œnogastronomique à partir des années 2010, non seulement en ouvrant
ses portes aux touristes et en proposant des chambres d’hôtes (2011) mais aussi en
développant son propre restaurant (Fig. 4) dont elle alimente bien évidemment la
carte des vins (2018), emploie ainsi près d’une vingtaine de personnes, principa
lement originaires de la vallée du Douro, dont plus de la moitié s’occupe justement
de l’œnotourisme (salle de dégustation, hébergement, personnel de cuisine du
restaurant);
• la Quinta de Santa Eufêmia (45 hectares de vignes), elle aussi ouverte à l’œnotou‑
risme (depuis 2007), emploie plus d’une quinzaine de personnes;
• la Symington Family Estates, qui possède 29 quintas et près de 1 200 hectares de
vignes dans le Douro en 2019, emploie quant à elle près de 200 travailleurs agri‑
coles dans ses différents vignobles, dispose d’accords de coopération avec environ
2 000 viticulteurs de la région et vient d’embaucher douze guides, tous originaires
du Douro, à la Quinta do Bomfim qu’elle a ouverte à l’œnotourisme en 2016;
• de son côté, Gran Cruz Porto, qui a acquis la Quinta de Ventozelo en 2014
(200 hectares de vignes), a développé l’activité œnotouristique dès septembre
2019 aux côtés de sa production de vin, d’huile d’olive et de gin; ce qui a permis,
là encore, la création de nouveaux types d’emplois venus compléter la vingtaine
d’emplois dédiés actuellement à la production.
Fig. 4. Le restaurant Bistro Terrace de la Quinta do Tedo. Cliché: Quinta do Tedo, 2018
203
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
23
SERRES, 2001 [1600]: 221.
24
LIGNON-DARMAILLAC, 2009a, 2009b.
204
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
et très récente p osition de l’Asie au sein de la «nouvelle planète du vin de Porto» s’explique
essentiellement par les réussites obtenues par les négociants sur les marchés japonais,
chinois et singapourien, marchés qui représentent, en 2020, près de 45% des volumes de
vin de Porto importés sur le marché asiatique et 60% de la valeur de ces mêmes volumes.
Quoiqu’il en soit, les marchés asiatiques sont aujourd’hui majoritairement envisagés,
tant par les négociants que par les producteurs-embouteilleurs, comme des marchés
porteurs d’avenir, non seulement au regard des fortes croissances observées dans la
période récente mais aussi du fait de l’orientation générale vers la qualité des pays émer‑
gents et développés de la région en question. Ils sont néanmoins tous conscients des
limites de cette croissance étant donné que ces marchés sont particulièrement sensibles
aux vins de prestige célèbres (à l’instar des vins bordelais Château Mouton Rothschild et
Château Pétrus, par exemple) auxquels la très grande majorité des vins de Porto semble,
à leur grand regret, ne pas appartenir. Quel consommateur japonais ou chinois citerait
en effet le vintage 2011 de la maison Dow’s, pourtant classé premier lors de l’édition 2014
du concours Wine Spectator, si on lui demandait de citer un grand vin qu’il connaît?
Tout au plus mentionnerait-il peut-être certains vintages de la Quinta do Noval,
notamment le N acional, dont la célébrité mondiale s’explique par les prix de vente élevés
(celui de 1931 a été vendu au prix record pour un vin de Porto de 4 775 € la bouteille,
ceux de 1994 et 2011 ont été vendus au prix moyen de 1 500 € la bouteille), résultat du
discours savamment orchestré par la maison négociante en question mettant en scène le
terroir agro-physique et notamment le fait que le vintage Nacional est un vin provenant
de vignes issues de ceps pré-phylloxériques.
À l’est de l’Europe, il convient aussi d’insister sur la très forte croissance du marché
russe, passé de moins de 1 000 à près de 7 000 hectolitres (1% de la commercialisation
mondiale en volume) et de 0,8 à 3,3 millions d’euros (1% des exportations mondiales en
valeur) sur la période 2006-2020. Cette reprise du marché russe a été permise et favo
risée, d’une part, par la libéralisation des importations en 1992 et, d’autre part, par la
reprise économique de la fin des années 1990. On assiste cependant ici à la réactivation
d’un courant de ventes ancien étant donné que la Russie représentait déjà 1,6% des expor
tations de vin de Porto de 1890 à 1920 et qu’elle continua à en importer dans le cadre de
l’URSS sur la période 1976-1985 entre 17 000 et 20 500 hectolitres par an (l’URSS s’était
hissée, en 1982, au huitième rang des importateurs) après avoir totalement arrêté les
importations durant une grande partie du XXe siècle correspondant à la période stali‑
nienne (1922-1953) et à une partie de la guerre froide (1947-1991). Au regard de l’inser‑
tion de la Russie dans le cadre de la mondialisation contemporaine, de la durabilité de la
reprise économique et de la consommation significative de vin par habitant (8,6 litres/
habitant en 2020), la profession pouvait a priori être confiante envers ce grand marché de
plus de 145 millions de consommateurs qui semblait pouvoir devenir non seulement un
grand débouché des exportations de vin de Porto mais aussi un marché fort intéressant
205
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
et très lucratif du fait de sa structure (un quart des importations de vin de Porto en
volume concerne des catégories spéciales et les consommateurs russes, s’ils sont particu‑
lièrement amateurs de vin de Porto de style ruby — qui représentent plus de la moitié des
volumes importés — apprécient également les tawny ainsi que les blancs). La décision
de Vladimir Poutine de déclarer la guerre à l’Ukraine, le 24 février 2022, qui a immédia‑
tement déclenché la mise en place d’une série de sanctions de la part de la communauté
internationale destinées à affaiblir durablement l’économie russe, réorientera néanmoins
nécessairement les échanges à l’est de l’Europe. De marché prometteur, le marché russe a
désormais endossé le costume du marché de l’incertitude par excellence.
206
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
la diminution des volumes de Porto importés sur ces derniers marchés (supérieure à
185 000 hectolitres sur la période 2000-2017) et que la «crise» n’affecte ainsi de loin
pas tous les marchés européens25, ni tous les continents d’ailleurs comme nous l’avons
constaté précédemment pour le marché asiatique. Parmi les grands pays importateurs
de Porto, ceux qui sont en difficulté sont en réalité ceux laissant très peu de place aux
catégories spéciales. À l’inverse, les marchés commercialisant une forte part de Porto de
haute qualité, qu’ils soient européens ou américains (marchés britannique, danois ou
encore états-uniens), se portent relativement bien (exception faite du marché canadien).
Hors de ce cœur des exportations, en dehors des marchés latino-américains (pour ne pas
dire brésilien…), africains et moyen-orientaux (moins de 1 000 hectolitres pour ces deux
derniers marchés), les marchés asiatiques (+59,4%) et océaniens (+64,2%) se portent
plutôt bien. Au-delà de ces très beaux chiffres de croissance, il faut néanmoins avoir à
l’esprit que les marchés asiatiques et océaniens du vin de Porto représentent moins de 8 500
hectolitres (contre plus de 500 000 et plus de 50 000 hectolitres exportés respectivement
en Europe et en Amérique du Nord la même année). Ce qui permet de comprendre que
les producteurs (qu’ils soient négociants ou producteurs-embouteilleurs) privilégient
actuellement les stratégies de consolidation et/ou de reconquête de leurs marchés tradi
tionnels ainsi que les investissements dans le créneau des vins du Douro, même si d
’aucuns
résistent encore à la tentation (à l’instar de la maison Taylor’s, par exemple).
25
À titre d’exemple, les marchés britannique et danois ont connu une croissance respective de 1,3 et 4,8% sur la période
2000-2017 alors que, dans le même temps, le marché français perdait 34,1% de ses volumes.
207
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Tableau 2. Les évolutions de la commercialisation de vin de Porto par grandes zones géographiques entre
2006 et 2020
Source: IVDP
26
Jusqu’à la fin du XVIIIe siècle, la majorité des vins produits dans la RDD était des vins secs non mutés.
208
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
alors que celle-ci était encore inférieure à 0,15 million en 2004 (134 280 hectolitres),
ce qui signifie que les volumes commercialisés de ces vins ont presque triplé en l’espace
d’une quinzaine d’années à peine. Ces volumes mis sur le marché représentent, en 2020,
l’équivalent de 57% des volumes de vin de Porto alors qu’ils en représentaient moins
de 15% en 2004. Au niveau de la production, l’analyse dévoile une évolution similaire:
en 2020, la RDD produit en effet quasiment 0,5 million d’hectolitres (478 848 hecto‑
litres) de DOC Douro alors qu’elle n’en produisait qu’à peine plus de 0,3 million en 2008
(329 908 hectolitres). Lorsque l’on compare ces volumes à ceux de vin de Porto, on mesure
l’importance du phénomène: alors que les volumes de DOC Douro ne représentaient qu’à
peine plus du tiers de l’équivalent des volumes de vin de Porto produits en 2008 (38%),
ils représentent dès 2015 plus des deux tiers de ces volumes (68%).
L’historique terroir du vin de Porto semble ainsi devenir de plus en plus un terroir
des vins de Porto et du Douro, la part de ces derniers étant quasiment similaire en matière
de production lorsque l’on considère l’ensemble des vins produits dans le H aut-Douro:
44% (DOC Douro, DOC Espumante, DOC Moscatel, IGP Duriense et autres vins sans
mention particulière) vs. 56% (DOC Porto) en 2020. Alors qu’au début des années 1990,
le géographe François Guichard écrivait, à propos des vins du Douro, qu’ils n’intéressaient
guère un négoce encore très spécialisé dans le vin de Porto et que son avenir restait plutôt
incertain27, les évolutions récentes soulignent tout l’intérêt du négoce pour la production
de ces vins (notamment du DOC Douro), l’importance des volumes p roduits et commer
cialisés ne pouvant assurément être l’unique fait des producteurs-embouteilleurs même si
ces derniers trouvent dans ces vins de très intéressants débouchés sur le marché p ortugais
ou à l’international. En dépit de l’intérêt tardif de la majorité des négociants pour les vins
du Douro, nos recherches démontrent que ce sont néanmoins bien eux qui ont initié
cette «ruée vers les vins du Douro»28 à travers la figure de l’œnologue de la maison de
négoce Ferreira, Fernando Nicolau de Almeida qui, à la suite d’un voyage dans le vignoble
bordelais au début des années 1950 et d’une rencontre avec l’œnologue français Émile
Peynaud, acheva de se convaincre de l’important potentiel des vins du Douro. En 1952
naissait ainsi le premier Barca Velha, un vin rouge du Douro millésimé mais non muté,
dont le succès sur le marché national suscita l’intérêt de quelques négociants en vin de
Porto sans pour autant déclencher un véritable engouement au sein de la profession.
À partir des années 1970, quelques négociants vont toutefois porter un intérêt certain
aux vins du Douro, certes plus dans l’optique de produire un vin rentable, issu des moûts
de raisin ne pouvant pas faire l’objet d’un mutage du fait de la contrainte du benefício,
27
GUICHARD, 1991: 377.
28
Soulignons toutefois, à une autre échelle certes, que dès le début du XXe siècle, certaines maisons de négoce s’étaient
déjà lancées dans la production de vins tranquilles dans la région du Douro, à l’instar de la maison Borges avec sa
marque Lello. Au début des années 1950, la cave coopérative de Mesão Frio produisait également de tels types de vins
(GUICHARD, ROUDIÉ, 1985).
209
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Tableau 3. Les évolutions de la commercialisation des vins du Douro (hors Porto) par grandes zones
géographiques entre 2006 et 2020
Source: IVDP
210
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
29
PITTE, 2000: 340-344.
30
VELASCO-GRACIET, 2009: 245.
211
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
31
PITTE, 2009: 299-300.
32
Même si le négoce produit bien évidemment des vins de terroirs d’une fort belle complexité et qu’il ne faut ainsi,
en aucun cas, associer exclusivement la qualité aux petits producteurs-embouteilleurs. L’évolution juridique de 1986
apporte toutefois assurément une réelle plus-value en matière d’image pour le vin de Porto.
212
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
urope met en effet en évidence trois caractéristiques principales qui permettent d’envi‑
E
sager l’avenir avec un certain optimisme en dépit des difficultés actuelles que connaissent
les exportations de vin de Porto:
• la volonté de la plupart des consommateurs (d’Europe occidentale) de boire des
vins de qualité de terroir et de leur enclin à associer le vin à la gastronomie ainsi
qu’aux paysages découverts dans le cadre de pratiques de tourisme et/ou loisirs
œnotouristiques;
• l’orientation d’un certain nombre de pays d’Europe de l’Est vers la production et
la consommation de vin dans la période récente (en particulier, la Pologne et la
République Tchèque);
• l’actuelle relance des anciens marchés consommateurs d’Europe du Nord (Suède,
Finlande, Danemark, Norvège), très tournés vers les vins de Porto de catégories
spéciales.
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PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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214
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ:
TOKAJ A LA CROISÉE DES CHEMINS
ALINE BROCHOT*
Résumé: Que peut le Patrimoine Mondial contre le marché? Telle pourrait être la question posée ici.
L’inscription de la région viticole historique de Tokaj sur la Liste du Patrimoine Mondial en 2002 s’inscrivait
dans une dynamique nationale de restauration auprès de la communauté internationale des fleurons de
l’économie et de la culture hongroise. Le vin de Tokaj, un grand liquoreux réputé dans toute l’Europe
depuis le 18ème siècle et véritable emblème national, en constituait un des atouts majeurs. Si la première
décennie qui a suivi la privatisation de l’économie après la période collectiviste a largement répondu à cet
objectif grâce à la reconstitution des domaines historiques et à la remise sur le marché européen des
grands vins de Tokaj, l’évolution qu’a connu ensuite le vignoble avec, notamment, l’élargissement de la
gamme des vins, montre que le marché conditionne bien plus l’avenir d’un vignoble que la consécration
de sa gloire passée par l’inscription sur la liste du Patrimoine Mondial.
Mots-clés: région viticole de Tokaj; Patrimoine Mondial; marché du vin.
Resumo: O que pode o Património Mundial contra o mercado? Esta poderia ser a questão aqui colocada.
A inscrição da histórica região vinícola Tokaj na lista do Património Mundial em 2002 fez parte de um
esforço nacional para devolver à comunidade internacional as joias da economia e cultura húngaras.
O vinho de Tokaj, um grande vinho doce conhecido em toda a Europa desde o século XVIII e um verdadeiro
emblema nacional, foi um dos seus principais trunfos. Se a primeira década sequente à privatização da
economia após o período coletivista cumpriu em grande parte este objetivo graças à reconstituição das
propriedades históricas e à reintrodução dos grandes vinhos de Tokaj no mercado europeu, a evolução que
a vinha sofreu posteriormente, em particular com o alargamento da gama de vinhos, mostra que o
mercado condiciona o futuro de uma vinha muito mais do que a consagração da sua glória passada pela
inscrição na lista do Património Mundial.
Palavras-chave: região vinícola do Tokaj; Património Mundial; mercado do vinho.
INTRODUCTION
La région viticole de Tokaj est sans conteste l’appellation la plus réputée de Hongrie grâce
à son produit-phare, l’Aszú, un des plus grands vins liquoreux au monde. Son inscription
sur la Liste du Patrimoine Mondial de l’UNESCO en 2002 dans la catégorie des paysages
culturels est venue conforter l’image d’excellence et le statut d’emblème national acquis
depuis le XVIIIème. Cependant, si les institutions nationales en charge de la protection
du patrimoine, raisonnant sur le temps long, s’engagent à mettre en œuvre des mesures
de préservation du bien dans les caractéristiques qui lui ont valu la reconnaissance de
l’UNESCO, les acteurs locaux, en particulier les viticulteurs, ont de leur côté à répondre
à des impératifs qui influencent leurs choix et stratégies de production à plus ou moins
court terme.
* CNRS — UMR LADYSS. Investigadora no LADYSS (Laboratoire Dynamiques sociales et Recomposition des espaces),
UMR 7533 do CNRS (Centre national de la recherche scientifique) — Paris (França).
215
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Le propos ici sera de montrer le poids relatif qu’ont pu avoir l’Inscription, d’une part,
et l’économie du vin, d’autre part, dans les choix opérés par les différents groupes d’acteurs
de la vitiviniculture au cours des vingt années écoulées. Il s’agira aussi de q uestionner, à
l’aune des évolutions en cours, la capacité des instances de gestion du Patrimoine Mondial
hongrois à préserver les caractéristiques qui ont justifié l’inscription.
216
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS
L’accent est mis d’emblée à la fois sur la profondeur historique de la production des
vins de Tokaj et sur les mesures destinées à en préserver la tradition. Lignes argumen‑
taires que l’on retrouve dans l’énoncé des deux critères mobilisés pour justifier l’existence
de la VUE auprès du Comité du Patrimoine Mondial:
Critère (iii): la région du vin de Tokay est le reflet d’une tradition viticole unique,
existant depuis au moins mille ans et qui est, à ce jour, restée intacte.
Critère (v): l’intégralité du paysage culturel de la région viticole de Tokay,
comprenant les vignobles ainsi que des établissements humains installés de
longue date, illustre de manière vivante la forme particulière d’occupation
traditionnelle du sol qu’il représente.
Deux autres éléments de preuve sont requis par l’UNESCO dans la démonstration
de la VUE: les critères d’Intégrité et d’Authenticité.
Là aussi, la culture de la vigne et la production du vin sont présentés comme «les
éléments constitutifs de la Valeur universelle exceptionnelle du bien», qui concourent à
l’intégrité du paysage culturel. Notons que si les rédacteurs envisagent «l’évolution des
exigences économiques» sans émettre de réserves quant à «la continuité de l’utilisation
traditionnelle des terres», il n’en est pas de même pour les effets de l’urbanisation et du
changement climatique, considérés comme des menaces potentielles.
Intégrité
Les éléments constitutifs de la Valeur universelle exceptionnelle du bien sont suffi-
samment intacts. Ils incluent les conditions environnementales (géologie, morphologie,
hydrologie et climat) favorables à la production d’un vin précis, les vignobles / terroirs
historiques, les établissement présents depuis longtemps et leur réseau, un riche patri-
moine culturel reflétant la diversité ethnique, les divers types de caves et une grande
diversité d’autres bâtiments qui contribuent au caractère du paysage et sont liés à la
culture de la vigne et à la production du vin (par exemple les terrasses, murs de pierres,
haies et réservoirs). […] Dans le contexte de l’évolution des exigences économiques,
la continuité de l’utilisation traditionnelle des terres est maintenue. À long terme,
la disparition des zones humides et l’expansion des zones construites, ainsi que le chan-
gement climatique, devraient être considérés comme des menaces potentielles.
217
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Authenticité
En ce qui concerne les structures bâties, de fréquentes incursions militaires et
des incendies ont entraîné au cours des siècles la destruction et la reconstruction ou
la restauration d’une part importante des bâtiments historiques. Toutefois, le respect
scrupuleux des normes internationales de conservation et de restauration, conforme
à la Charte de Venise, ont permis de maintenir, au cours du dernier demi-siècle, un
degré d’authenticité des édifices historiques entièrement conforme aux exigences des
Orientations. Les agglomérations historiques ont également conservé leur plan urbain
de base ainsi que leur interconnexion à la fois entre eux et avec le paysage. Le vin est
produit dans la région de Tokaj et les vignobles exploités depuis plus de 1000 ans.
Le paysage qui en résulte, avec ses villes et ses villages qui participent à la production du
célèbre Tokaji Aszú, n’a pas changé d’apparence générale tout au long de cette période.
La VUE a donc été construite, et validée par l’UNESCO, exclusivement sur l’histoire
et la tradition du vin de Tokaj, essentiellement le vin Aszú. Tradition qui a perduré quasi
intacte jusqu’à nos jours, à la fois dans son expression matérielle (paysage viticole, v illages,
bâtiments d’exploitation) et dans sa dimension culturelle, lui valant son inscription dans
la catégorie des «Paysages culturels» sous le nom de «Paysage culturel historique de la
région viticole de Tokaj».
218
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS
Cette reconnaissance est en quelque sorte venue parachever ce que l’on a appelé la
«Renaissance» de Tokaj4, engagée depuis le début des années 1990 sous l’impulsion des
cadres locaux de la vitiviniculture et d’une petite dizaine d’investisseurs, étrangers pour
la plupart, qui ont repris des domaines emblématiques5, «recréés» suite au démantè
lement du Borkombinat après la privatisation de l’économie. En une dizaine d’années,
ils replantent les coteaux, réhabilitent les bâtiments historiques, construisent des bâti‑
ments d’exploitation et chais de prestige, restructurent et modernisent les chaînes de
production ayant comme objectif premier la requalification des vins Aszú et leur réintro
duction sur les marchés à l’export.
Pour tous, investisseurs étrangers comme acteurs locaux de la filière, l’heure est à
la mobilisation de toutes les ressources qui doivent permettre un retour vers ce que l’on
considère comme «l’âge d’or» de Tokaj, celui, précisément, qui est évoqué dans le dossier
de candidature UNESCO.
Le début des années 2000 représente un tournant où des choix nouveaux vont
s’imposer. Si elles débutent sur un bilan très positif grâce à la remise à niveau de la qualité
et de la réputation du vin de Tokaj due en grande partie à l’action des investisseurs inter‑
nationaux, elles marquent aussi le début d’une nouvelle phase dans l’histoire de l’Appel‑
lation du fait de l’évolution globale de l’économie du vin, mais aussi des fluctuations de la
demande des consommateurs.
Les vins liquoreux produits traditionnellement à Tokaj subissent en effet une
mévente importante, due en grande partie à la désaffection générale des consommateurs,
y compris en Hongrie, pour ce type de vins le plus souvent cantonnés à l’accompagnement
de desserts. Désintérêt encore accru par le positionnement dans le haut de gamme des
vins Aszú qui réserve d’emblée leur consommation à une clientèle plutôt aisée6. C’est une
tendance lourde qui va s’amplifier et entraîner des phénomènes de surproduction et de
gonflement des stocks de la gamme des liquoreux, d’autant plus qu’après les investisseurs
de la première heure, le mouvement de création de domaines, largement favorisé par
l’afflux des fonds européens depuis l’entrée de la Hongrie dans l’UE en 20047, s’est pour‑
suivi, créant une concurrence nouvelle parmi les viticulteurs qui se retrouvent sur un
marché intérieur comme extérieur en manque de débouchés.
Les producteurs n’ont dès lors pas d’autre choix pour maintenir le niveau et la renta‑
bilité de leur exploitation que d’abandonner le parti du «tout liquoreux» qui avait prévalu
jusqu’alors et de diversifier leur gamme de produits. Cela passe en tout premier lieu par
4
CROS-KARPATI, 2003.
5
Il s’agit principalement des cinq plus grands domaines historiques ayant appartenu à la Couronne ou à la haute aristo
cratie et dont les terres avaient été confisquées et regroupées au sein de la ferme d’Etat.
6
A partir de 35 euros pour une bouteille de 50 cl et bien plus selon le producteur et le millésime, comme tous les
grands vins.
7
D’après le Tokaj Guide (RIPKA, 2019), qui recense tous les domaines de la région, 41 installations ont eu lieu entre 1988
et 1999 et 50 entre 2000 et 2009, dont 30 après 2005.
219
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
une augmentation de la production de vins blancs secs, qui présente d’ailleurs plusieurs
avantages: d’abord de pouvoir vendanger dès la maturation des raisins (sans attendre une
botrytisation toujours aléatoire pour pouvoir produire de l’Aszú); puis de pouvoir mettre
les vins sur le marché dans des délais beaucoup plus courts8 assurant ainsi des rentrées de
trésorerie plus régulières. Quant aux consommateurs, ce type de vin présente aussi pour
eux l’avantage d’être «facile à boire», susceptibles d’accompagner tout un repas et surtout
d’être plus abordables.
Tableau 1. La production des vins de Tokaj
Vins de Tokaj
En 2015, l’Appellation commercialise 100 000 à 120 000 hl de vin par an, dont:
• 20% blancs secs;
• 50% à 60% de vins demi doux;
• 10% à 15% de vins de type vendange tardives issus de pourriture noble;
• 5% à 8% de Tokaji Aszú.
Cette tendance se poursuit au cours des années 2010 où la vinification en blanc sec
se généralise et est adoptée par tous les domaines, y compris les plus grands, au point
de représenter plus de 20% des ventes en 2015 alors que les vins Aszú ne représentent
plus que 5 à 8% des transactions9 (cf. Tableau 1). Cependant, cela a aussi pour effet
d’accroître la concurrence sur ce segment de la gamme, encore amplifiée par la poursuite
du mouvement de création de nouvelles exploitations10. La recherche de nouvelles voies
et éléments de démarcation s’impose donc pour tous. L’accent est alors porté sur une plus
grande typicité des vins. On voit d’abord apparaître des «vins de terroir» où, sur le m
odèle
bourguignon, c’est le cru ou la parcelle, a fortiori quand c’est une parcelle historique,
qui est censée donner sa valeur et son identité au vin. Dans la même recherche de
distinction et de personnalisation, certains villages créent leurs propres marques et
cuvées (Mád, Olazliszka, Tarcal…). De leur côté, les plus grands domaines, qui disposent
de plus de latitude dans l’élevage et la commercialisation de leurs vins, s’orientent vers
l’élaboration d’un style-maison, grâce notamment à un vieillissement prolongé.
Une autre voie est ouverte en 2012 avec l’apparition, totalement inédite pour Tokaj,
des vins effervescents, qui représentent une possibilité de diversification bienvenue en
même temps qu’une alternative bon marché face aux mousseux d’importation.
8
Dans l’année suivant la vendange après un vieillissement en barriques neuves de 10 mois minimum, au lieu d’un
minimum de vieillissement de deux ans pour les vins Aszú (dont 18 mois en fût de chêne).
9
Mais néanmoins entre 27 et 35% de la valeur totale.
10
30 unités supplémentaires entre 2010 et 2015 d’après le Tokaj Guide (RIPKA, 2019).
220
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS
Sucre résiduel
Types de vins Caracteristiques
minimum (g/l)
Jus libéré par pressurage naturel (sous leur propre poids) des
Eszencia 450
grains aszú.
Tokaji Aszú 6 puttonyos 150 Assemblage de grains aszú, récoltés grain par grain, avec un vin ou
un moût de base; elevage pendant 2 ans minimum dont 18 mois
en fût de chêne.
221
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Sucre résiduel
Types de vins Caracteristiques
minimum (g/l)
Szamorodni sec: vin sec issu des raisins de vendange tardive, élevé
Száraz Szamorodni
en fût, souvent sous voile ou d’une façon oxydative.
222
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS
Quant au commerce des vins Aszús, il tend à se déplacer vers des marchés émer‑
gents hors Europe13, principalement la Chine et les Etats-Unis qui connaissent des
progressions spectaculaires. De plus en plus considérés comme des vins de luxe, l’Aszú
et l’Eszencia, reconnus parmi les plus grands liquoreux, ont en outre progressivement
acquis un nouveau statut: celui de vins de collection. Pour preuve, le succès grandissant
des ventes aux enchères organisées par la Confrérie du vin de Tokaj depuis 2013, relayées
en direct avec Londres depuis 2019; et, ce qui a fait la Une des médias spécialisés en
2019, la mise sur le marché du «vin le plus cher du monde»14, soit une cuvée d’exception
d’Eszencia de 2008 proposée par un grand domaine au prix de 40 000 USD (soit
35 000 Euros) le flacon d’1,5 L15.
Ainsi, depuis la Renaissance des années 1990, les évolutions des contextes écono
miques et sociétaux ont imposé des changements d’orientation et des choix parfois
radicaux qui modifient à la fois la matérialité et les représentations du vignoble et de
ses vins. C’est un véritable changement de paradigme16 qui se traduit non seulement par
l’élargissement de la gamme des vins proposés et par l’évolution de leur part relative dans
les volumes de production mais aussi, plus récemment, dans le paysage avec l’apparition
de constructions nouvelles dont le parti pris architectural rompt totalement avec le style
traditionnel que jusqu’à présent les investisseurs et nouveaux installés avaient toujours
respecté. L’archétype régional est en effet représenté par un bâtiment en longueur qui
présente un double toit en pente et dont la façade s’ouvre sur un porche (Figs. 2 et 3).
C’est d’ailleurs le motif que l’on retrouve dans le logo du Patrimoine Mondial (Fig. 4).
Pour être en accord avec une conception actuelle de l’architecture viticole ostentatoire
mondialisée, ces constructions n’en instaurent pas moins ici une véritable rupture
paysagère susceptible de contredire l’assertion de continuité historique et de permanence
des structures et éléments paysagers mise en avant dans l’exposé de la VUE (Figs. 5 et 6).
13
Même si, pour l’heure, les marchés traditionnels que sont la Pologne, la France, la Russie ou la Grande-Bretagne,
représentent encore la plus grosse part des exportations.
14
DILLOW, 2019.
15
Sur les 18 flacons proposés par la Royal Tokaji Company située à Mád, 11 étaient déjà vendus à la fin de l’année;
le premier acheteur était un collectionneur chinois.
16
BROCHOT, ALBERT, 2020; BROCHOT, 2021c.
223
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
224
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS
225
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
17
Act LXXVII of 2011 on the World Heritage.
226
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS
site inscrit. A Tokaj, cette structure, animée par une équipe réduite de deux personnes,
est placée directement sous la tutelle du «Conseil de Développement Régional» et a
donc très peu d’autonomie et de pouvoirs décisionnels dans la mise en œuvre du Plan de
gestion. Si elle ne peut naturellement pas intervenir dans les choix opérés par les acteurs
privés de la filière en matière vitivinicole, elle n’a semble t-il guère plus de latitude et de
réel pouvoir de contrôle en matière architecturale et paysagère puisque ces questions
sont traitées à l’échelle départementale par un «Conseil Régional pour l’Architecture et
l’Aménagement», cet éloignement relatif du milieu local entraînant des retards voire des
lacunes dans la transmission et la conduite des projets. Néanmoins, parmi les missions
du Bureau du Patrimoine Mondial de Tokaj, figure l’élaboration d’un Guide d’architec‑
ture et du paysage destiné à poser des règles claires pour la mise en œuvre des orien
tations prévues par le Plan de gestion, mais, principalement pour des raisons financières,
sa réalisation a jusqu’à présent été retardée.
Les acteurs et gestionnaires du Patrimoine Mondial ont par ailleurs à composer
avec une certaine indifférence des populations locales, qui n’ont que peu adhéré à ce
projet devant les faibles retombées économiques procurées par l’attribution du label,
le tourisme en particulier ne connaissant qu’un développement limité, et devant les limi‑
tations imposées à la poursuite de certaines activités traditionnellement pourvoyeuses
d’emploi (carrières et exploitation minière).
Ainsi, l’objectif poursuivi par l’Etat hongrois de relance du développement local
grâce au Patrimoine Mondial peine à se réaliser pleinement. Si le soutien du gouver
nement est constant grâce à de nombreux programmes de développement en faveur de
la région de Tokaj18, il ne peut contrer les effets des fluctuations d’un marché auxquelles
les producteurs sont contraints de s’adapter, sous peine de risquer de disparaître.
Le Patrimoine Mondial a t-il les moyens de ses ambitions à Tokaj? Telle est in fine la
question que l’on pourrait poser. Au regard des évolutions en cours, il semble bien que les
recommandations de l’UNESCO soient quelque peu inopérantes face aux injonctions
du marché. Le risque étant qu’à terme la région viticole de Tokaj perde sa spécificité et
les caractères qui l’ont fait reconnaître comme un bien de l’humanité.
18
Par exemple, la région de Tokaj est l’une des trois régions qui ont été déclarées «région de développement prioritaire»
par le gouvernement en 2014 et bénéficie à ce titre de subventions pluriannuelles. En outre, plusieurs programmes
européens (Leader…) sont essentiellement consacrés à la région.
227
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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228
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES
DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-
-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES), STABILITÉ
OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES
PARCELLES VITICOLES
ERIC ROUVELLAC*
RÉMI CROUZEVIALLE*
FABIEN CERBELAUD*
Abstract: Located in the eastern Pyrenees, the Banyuls vineyard presents heritage landscapes and
emblematic of steep artificial slopes to fight against erosion. The qualitative evolution of these landscapes
marked by viticulture has been studied through the example of the Ravaner watershed, from the 19th to
the 21st centuries, at the plot scale. Then only through the wine prism, the landscape developments in the
Ravaner watershed were examined quantitatively. There appear to be changes in the plot occupation,
inside and outside viticulture, which certain environmental peculiarities (slope, altitude, exposure) can
influence. Over the past two centuries, there has been overall great instability in the vines, but in a
nuanced man.ner in the cultural environment, the altitude, the discrimination linked to the different
appellations, to a lesser extent with seaside urbanization. The vines are unstable inside all the plots
planted; stability is better present outside these sectors.
Keywords: Banyuls-sur-Mer; landscape evolutions; viticultural landscapes; stability; instability.
Resumo: Localizada nos Pirenéus Orientais, a vinha Banyuls apresenta paisagens patrimoniais e emble
máticas com encostas íngremes artificializadas para combater a erosão. A evolução qualitativa destas
paisagens marcadas pela viticultura tem sido estudada a partir do exemplo da bacia do Ravaner,
dos séculos XIX ao XXI, à escala do terreno. Em seguida, através do prisma vitícola apenas, as evoluções da
paisagem na bacia de Ravaner foram examinadas quantitativamente. Existem alterações na ocupação das
parcelas, dentro e fora da viticultura, que podem influenciar determinadas particularidades a mbientais
(declive, altitude, exposição). Ao longo dos últimos dois séculos, observamos globalmente uma grande
instabilidade das superfícies ocupadas pela vinha no espaço, mas de forma matizada no meio cultural,
a altitude, a discriminação ligada às diferentes denominações, em menor medida com a urbanização
litorânea. A videira é instável dentro de todas as parcelas plantadas, enquanto a estabilidade está mais
presente fora desses setores.
Palavras-chave: Banyuls-sur-Mer; alterações paisagísticas; paisagens vitícolas; estabilidade; instabi
lidade.
* Université de Limoges, Umr Cnrs 6042 Géolab — 39E, rue Camille Guérin, 87036 Limoges cedex, France. Eric
Rouvellac, professeur à l’Université de Limoges, Faculté des Lettres et Sciences Humaines, il travaille depuis plus de
25 ans sur les terroirs et paysages viticoles en France, en Espagne, en Afrique du Sud et au Chili. Fabien Cerbelaud et
Rémi Crouzevialle, ingénieurs spécialisés en bases de données, cartographie et systèmes d’information géographique
au laboratoire Geolab.
229
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
INTRODUCTION
Abritée dans la partie la plus orientale des Pyrénées, la chaîne des Albères et la côte
associée Vermeille abritent les vignobles de Banyuls et de Collioure1 (Fig. 1). A la fron‑
tière franco-espagnole, se jetant littéralement dans la mer Méditerranée, amenant des
contrastes altitudinaux de plusieurs centaines de mètres en quelques kilomètres de l’inté‑
rieur des terres vers la mer, la vigne constitue ici une monoculture renommée pour ses
vins mutés de Banyuls ou secs de Collioure. Le vignoble s’étage du niveau de la mer
jusqu’à près de 500 m d’altitude, sur des terrains à très fortes pentes (parfois plus de 80%,
c’est-à-dire que pour 1 mètre à l’horizontale l’altitude s’élève de 80 cm, soit une pente
de presque 39 degrés) et des sols constitués par les schistes des Albères. Les aména
gements réalisés au cours des siècles pour lutter contre l’érosion ont créé des paysages
bien particuliers, marqués durablement par la structure du territoire, sa morphologie,
la répartition sociale des terrains à travers l’éclatement parcellaire et la généralisation
de la micro-propriété. La lutte contre l’érosion façonne les paysages. Les éléments les
plus marquants de ceux-ci sont les «peus de gall». L’eau de ruissellement est collectée
par le vigneron dans une rigole pavée et parementée, disposée en diagonale. Ces rigoles
se jettent dans une branche principale, généralement disposée dans le sens de la pente
et l’ensemble forme un réseau de géométrie particulière en forme de trident appelé de
façon imagée en catalan «peus de gall», littéralement pieds de coq. Ces aménagements
sont complétés par des terrasses sèches qui strient le paysage perpendiculairement aux
«peus de gall»2.
Fig. 1. Le bassin-
-versant du Ravaner
à cheval entre
les appellations
Banyuls – Collioure
et Roussillon
Sources: IGN BD
TOPO®,
© Google INAO.
Réalisation :
R. Crousevialle,
F. Cerbelaud
1
Il est composé de 4 communes montagneuses, Banyuls-sur-Mer, Cerbère, Collioure, Port-Vendres.
2
OLIVIER, 2002; BONARDI, 2018.
230
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
Nous avons souhaité nous intéresser aux transformations durant les deux derniers
siècles des paysages construits par la viticulture dans les quatre communes des appella‑
tions Banyuls et Collioure, en cartographiant et quantifiant ces changements, en prenant
comme exemple représentatif le bassin-versant du Ravaner, dont le cours sépare les
AOC Banyuls Collioure à l’est et Roussillon à l’ouest, entre les communes de Collioure
et Argelès-sur-Mer (Fig. 1). Les données utilisées sont les cadastres napoléoniens et
du début du Xxe siècle et des photos aériennes prises depuis la deuxième moitié du
XXe siècle (1953, 1988, 2010). Grâce aux séquences d’évolution déterminées entre ces
données spatiales à résolution fine, nous souhaitons mettre en valeur les mutations du
début du XIXe à nos jours, nous espérons proposer une vision des évolutions dans un
continuum historique. Dans quelles directions, avec quelle ampleur, à quels rythmes
se produisent les mutations3? Notre interrogation principale porte sur la pérennité et
la stabilité du vignoble, dans ce bassin versant de 16,3 km2, et à l’échelle de la parcelle
cadastrale. Nous avons pu suivre l’évolution qualitative et quantitative de l’occupation des
parcelles, en déterminant une typologie diachronique prenant en compte non seulement
les différents états évolutifs d’occupation liés à la vigne, mais également tous les autres
types d’occupation. L’analyse de la cartographie résultante montre de manière précise les
changements paysagers des lieux et la place de la vigne dans ces derniers. La détermi‑
nation de ces évolutions est croisée avec trois paramètres morphométriques (altitude,
pente et orientation), d’un point de vue physique, et mise en regard avec les évolutions
environnementales (crise du phylloxéra, changement climatique) et sociétales comme
les labellisations des productions ou le tourisme.
3
ROCHARD, HERBIN, 2006; COMBAUD, MARRE, STROPPA, 2012; LAMMOGLIA, LETURCQ, 2017.
4
BRUN, LAUBENHEIMER, 2001.
5
ROUVELLAC, 2013.
231
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
6
Port-Vendres et Cerbère ne seront créées qu’à la fin du XIXe siècle, pour accompagner la Révolution industrielle et la
construction du chemin de fer.
7
ALCARAZ, 1999.
8
ALCARAZ, 1997.
232
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
encouragée par des primes, jusqu’à la fin des années 1980. La prise de conscience de la
richesse patrimoniale du vignoble, le poids du au tourisme, l’intérêt des vignes coupe-feu,
le rôle de l’emblématique cépage grenache, l’effet de niche des vins mutés, l’essor des vins
de pays assurent un maintien de la superficie du vignoble mais qui tend aujourd’hui
cependant à diminuer9.
L’exploitation de la vigne s’est accompagnée de l’aménagement des «peus de galls»,
complétés par les terrasses, clés de voute des paysages banyulencs. La vigne est plantée
en foule, puis au fur et à mesure en rangées après le phylloxéra (Fig. 2)10. Les «peus de
gall» apparaissent comme des rigoles le plus souvent pavées, ce qui peut protéger le sol
fragile, empêcher le développement de la végétation, lutter contre l’érosion. Malgré tout,
cette dernière est importante11.
9
ROUVELLAC, 2013.
10
ALCARAZ, 1997, 1999; MABY, 2002b; ROUVELLAC, 2013, 2016.
11
MICHEL, 1960.
233
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Des puits secs sont alors mis en place et permettent de décanter et de récupérer
une partie de la terre enlevée qui était remontée périodiquement, tous les 4 à 5 ans12.
Les sols demeurent fragilisés par le désherbage systématique et le caractère non couvrant
des vignes.
L’érosion n’est pas le seul enjeu que rencontre le vignoble. Vieil endroit de villégia‑
ture avec la renommée de Collioure construite par les peintres impressionnistes dès la
fin du XIXe siècle, le tourisme s’est considérablement accru depuis les années 1960 dans
la région13, grignotant par ses installations spécifiques et par l’extension de l’habitat le
vignoble à partir du littoral. Les vignes demeurent touchées également de façon récur‑
rente par l’enfrichement après l’apogée ante phylloxérique et une lente reconstruction
(Fig. 3). Elles subissent, au fil du temps, des transformations socio-économiques et
techniques qui ont modifié les méthodes culturales ainsi que les paysages, notamment
parfois avec la destruction des terrasses anciennes et des «peus de gall» au profit d’un
remodelage au bulldozer. Depuis ces dernières années, les vignes de la région jouent un
rôle nouveau de coupe-feu pour lutter contre les trop nombreux incendies; la géographie
de leur implantation se trouve modifiée. De plus, il faudrait s’interroger sur la place
omniprésente qu’occupe la pratique du désherbage et des amendements.
12
FERRER, 1930; OLIVIER, 2002.
13
Notamment sous l’influence du plan Racine, plan d’aménagement du littoral des Languedoc et Roussillon à partir de
1963, destiné à favoriser le tourisme.
234
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
235
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
236
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
t raditionnel, au mépris du risque érosif14. Nous sommes passés d’un paysage de la terrasse
arrimée sur des lignes rocheuses, en suivant les courbes des versants, à terrasser en
entaillant une pente pour créer le plat au risque de générer de nouvelles pentes plus rudes.
Le paysage traditionnel s’arrête là où prenait fin la viticulture avant la crise du phylloxéra,
au niveau du hameau du Rimbau, derrière le massif de la tour Madeloc (Fig. 1).
Cette analyse qualitative et spatiale a été reproduite sur différents bassins versants
de l’appellation, Le Ravaner, le bassin versant du Cosprons, commune de Port-Vendres,
les bassins versants du Mas des Abeilles et des Escoumes, commune de Banyuls-sur-
-Mer15. A chaque fois les mêmes tendances générales se dégagent.
La stabilité d’occupation des parcelles examinées de façon générale en fonction des
différents pas de temps paraît bien faible. Ce qui explique l’instabilité en amont versant
et l’évolution vers la déprise, des parcours pâturés et des parcelles labourées devenant
maquis et même forêt si l’incendie n’intervient pas souvent. Les parcelles stables sont
occupées seulement par quelques bois et forêts dans les parties les plus reculées et les
plus pentues du bassin-versant.
L’instabilité en aval versant relève des crises viticoles (phylloxéra en premier lieu),
et du cortège socio-économique accompagnant le système vitivinicole (phases de
méventes, de concurrence balnéaire et/ou immobilière). La Fig. 4 montre aussi le glisse‑
ment qui s’est opéré en deux siècles vers le maquis, les reboisements en chêne-liège dont
certains perdurent, et la construction des zones bâties liées à la littoralisation. Dans la
partie nord en rive droite du Ravaner, c’est une partie de la vigne exposée au sud-ouest qui
se maintient sur les deux siècles étudiés. Cette stabilité à quelques endroits précis dépend
d’un côté de la structuration en AOC de plus forte valeur ajoutée (Banyuls et Collioure)
en rive droite qu’en rive gauche (Côtes du Roussillon). Elle dépend d’un autre côté d’un
facteur naturel, des expositions ouest à sud-ouest favorisant une viticulture de qualité.
Au-delà des évolutions à l’échelle du bassin-versant, la vigne apparaît comme très
peu stable à l’échelle parcellaire. On y constate souvent la succession de vigne, de formes
dégradées de celle-ci, ou de maquis.
L’instabilité est illustrée par la disparition mais aussi par la plantation de nouvelles
parcelles dans l’amont-bassin en rive droite à la fin du XXe siècle, témoins de l’essor du
vignoble à cette époque. Le système patrimonial conserve une même vocation, la vigne
y revient tant que le marché le permet, mais c’est l’enfrichement qui prend généralement
le pas aujourd’hui.
14
CONSTANS, 2010.
15
ROUVELLAC, 2013.
237
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fig. 5. Évolutions et stabilités quantitatives des superficies en vignes dans le bassin versant du Ravaner
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud
238
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
239
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
240
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
Fig. 7. Variations de l’orientation, de la pente et de l’altitude des vignes plantées entre 1813 et aujourd’hui
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud
241
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
242
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
Au-delà de cette évidente variabilité, nous pouvons tenter de décrire l’évolution qualita‑
tive de ces parcelles de vigne pour nous interroger sur son aspect systémique.
L’observation de l’occupation précédente des parcelles sur lesquelles sont plantées de
nouvelles vignes, ou à l’inverse, de la nature suivante des parcelles de vignes a bandonnées
nous permet d’affiner et mettre en perspective l’image d’instabilité de la vigne que nous
avons jusqu’alors établie (Fig. 8).
Fig. 8. Remplacement des vignes disparues et origines des vignes crées depuis 1813
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud
Si on examine les créations, jusqu’en 1953 les vignes sont majoritairement plantées
au détriment des pâtures, même si la part des bois remplacés augmente. Après ce sont
les maquis qui constituent le principal support des vignes créées. Quelques vignes aban‑
données sont replantées.
Concernant les disparitions, jusqu’en 1920 la plupart des vignes abandonnées ont
disparu au profit de pâtures et de bois. Le phénomène de développement de subéraies
destinées à la production de chêne liège comme alternative aux vignes détruites par le
phylloxéra est observé à cette époque de manière importante dans tout le vignoble de
Banyuls — Collioure.
Après 1920, nous observons davantage des phénomènes d’abandon, la vigne cédant
la place à des formes dégradées évoluant naturellement vers le maquis. Nous observons
donc un phénomène souvent circulaire. Les vignes abandonnées évoluent en pâtures
et certaines pâtures sont plantées en vigne au début de la période étudiée. Par la suite,
le maquis prend la place de la pâture.
243
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fig. 9. Évolution du l’occupation du parcellaire dans le bassin-versant du Ravaner au cours des 2 derniers siècles
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud
En définitive, les vignes sont assez instables mais évoluent à l’intérieur d’un système
plutôt stable (Figs. 9 et 10). En dehors d’une faible proportion évoluant vers l’artificiali‑
sation (balnéaire, chemin de fer ou route), ou en terres et vergers, leur majorité s’inscrit
dans un système où se succèdent vigne dégradée, pâture, maquis et bois.
244
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES
Depuis l’optimum ante-phylloxérique et les crises qui s’en sont suivies, la vigne
connaît une évolution soit en pâture soit en vigne dégradée. Ces dernières se végétalisent
en maquis puis en bois si les incendies n’en décident pas autrement, à cause de l’exode
rural, de la perte de rentabilité du vignoble la fin locale du pastoralisme. En revanche,
ce sont des processus culturels et socio-économiques qui amènent des parcelles à être
replantées, si le marché et les habitudes du consommateur le permettent. Autour de rares
îlots de parcelles toujours en vigne depuis le début du XIXe siècle, la grande majorité des
autres parcelles obéit à la logique d’évolution à l’intérieur du système que nous avons mis
en avant (Fig. 11).
Ce système dominant d’évolutions du parcellaire viticole est la règle pour 20,5% de
la superficie totale du bassin-versant et surtout 85% de la superficie des parcelles ayant été
plantés au moins une fois en vigne. Celui-ci est marqué par la déprise progressive, avec
une constance dans la recherche des meilleurs potentiels des lieux, des meilleurs terroirs.
245
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
CONCLUSION
Y-a-t-il des paysages viticoles historiques à Banyuls? Une certaine image d’un paysage
viticole et de ses caractères historiques sont entretenues par la communication et le
marketing16. Cette idée est renforcée par les aménagements pérennes et patrimoniaux
des versants, en murettes et «peus de gall».
Le paysage patrimonial est-il forcément emblématique? Les vignes n’ont pas forcé
ment une antériorité allant bien au-delà de deux siècles, mais leur superficie varie à
l’intérieur d’un système qui lui a au moins deux siècles. Stabilité et instabilité ne sont pas
en opposition, mais opèrent en fonction de l’échelle. Les vignes se situent dans un système
qui varie assez peu à l’extérieur des groupes de parcelles plantées puis abandonnées,
ce qui donne une fausse impression de stabilité, la vigne variant de place de manière
assez importante à l’intérieur de ce système.
Il y a des paysages patrimoniaux dans le vignoble de Banyuls mais ce ne sont pas
obligatoirement ceux mis en avant ou les plus productifs. Leur nature est à nuancer,
par rapport à la vision proposée dans le cadre de la communication autour du tourisme
balnéaire ou œnologique. Il existe un paysage historique dont il faut chercher les origines
au XIXe siècle. Si la vigne y joue un rôle important, sa culture n’est pas la seule à façonner
sa physionomie. Ce paysage historique est vivant et son image est loin d’être immuable.
Si la vigne et ses aménagements en sont le trait principal et spectaculaire, le paysage
banyulenc n’est pas un jardin construit artificiellement autour d’eux et il se dessine autour
de dynamiques socio-économiques plutôt que patrimoniales, culturelles ou esthétiques.
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247
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
248
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE:
LANGHE, ROERO E MONFERRATO»:
AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON
THE VALORISATION OF TRADITIONAL
TERROIRS *
ALESSANDRA RENZULLI**
Abstract: Wine-growing landscapes represent the intersection and dialogue of natural and human
factors, a cultural landscape that is stratified over time to represent the customs of the local community.
They describe a living landscape where transformation reflects farmers’ desire to improve forms of
construction and design content concerned with the cultivation of wine. Wine has a determined value
because of the territory’s historical context, and it becomes a tool for enhancing the territory as an
economic driver. In particular, the UNESCO cultural landscapes constitute a trademark that attracts
people worldwide and is a brand of global significance in tourism. An example is «I paesaggi vitivinicoli
del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato» that, since becoming part of the UNESCO heritage in 2014,
has brought a significant increase in tourist flow to the region. The brand power acquired over time has
also shaped the identity of neighbouring areas not included in the nomination.
Keywords: wine-growing landscapes; Italian cultural landscapes; wine tradition; Langhe-Roero e
Monferrato; UNESCO brand effect.
Resumo: As paisagens vitícolas representam a intersecção e o diálogo de fatores naturais e humanos, uma
paisagem cultural que inclui elementos estratificados ao longo do tempo para representar os hábitos da
comunidade local. Descrevem uma paisagem viva em que a transformação reflete o desejo dos agricul
tores de melhorar as formas de construção e o conteúdo do projeto relacionado com o cultivo do vinho.
O vinho determinou um valor através da história do território, e torna-se um instrumento para valorizar o
território como motor económico. Em particular, as paisagens culturais da UNESCO constituem uma
marca que ainda atrai pessoas de qualquer parte do mundo e é uma marca de importância global no
turismo. Um exemplo italiano é «I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato» que,
desde que se tornou parte do património da UNESCO em 2014, trouxe um aumento significativo do fluxo
turístico para a região. O poder adquirido ao longo do tempo modelou a identidade das áreas vizinhas não
incluídas na nomeação.
Palavras-chave: paisagens vitícolas; paisagens culturais italianas; tradição vinícola; Langhe-Roero e
Monferrato; efeito da marca UNESCO.
* If the copyright for tables, graphs and other images is not indicated, it belongs to the author of this text.
** Architect, Master in Architecture for Sustainable Design, PhD candidate in Ingegneria dell’Architettura e dell’Urba‑
nistica, at Sapienza Università di Roma (Italy) and in Géographie Humaine et Régionale, at Université Paris 8 (France).
249
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
INTRODUCTION
A cultural landscape represents the dialogue between space and time, the outcome and
mirror of the action of natural and human factors and their interrelationship. The a djective
cultural is added when the community recognises it and launches initiatives to protect,
enhance and maintain it with a perspective of continuous balance and adaptation to time
and events. In particular, the tradition of local production linked to wine often defines
the basis for representing a territory: hills, rows of vines, architecture and a vernacular
heritage are the elements stratified over time, in addition to the raw material, the grape,
that determine the form of the land and the community’s identity that has shaped it and is
cultivated through the ages. This cultural landscape is a unique and complex system that
UNESCO assigns and recognises with a universal value. These countryside landscapes
are considered among the most significant expressions of h uman activity for the impor‑
tant impact they leave on the land and represent a remarkable and rare example of the
cultural landscape that the vineyard provides due to the massive presence of social tradi‑
tions associated with them. They describe a living landscape, where every transformation
reflects man’s desire to improve forms, contents and functions concerning the cultivation
of wine1. Wine has determined a value precisely because of the story that the territory
tells, and at the same time, it becomes a tool for enhancing the terroir as an e conomic
driver. The main purpose of the international, national and local administration is to
recognise those values within it and to protect it as a vital testimony and identity resource,
as a demonstration of one of the factors contributing to the identity-building processes.
The admission of landscape as UNESCO cultural heritage takes into account, through
ambitious management plans, the maintenance of very high-quality standards, ensuring
a proper balance between conservation, sustainability and economic development and
presenting new opportunities for the area. In particular, by economic solid impulses
and strategies.
1
GANDINO, MERIGGIO, 2016.
250
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS
of the Langhe and three in the Monferrato. The landscape components were selected
to exemplify the significant places of winemaking from cultivation to p roduction,
from conservation to distribution, retracing and emphasizing all the elements that
distinguished them in the production process, the historic settlement and architectures,
road networks, etc. Each area is linked to specific a wine grape variety, a terroir,
a winemaking technique, or significant historical places, ranging from castles to artefacts
of a v ernacular nature, for the history and development of wine growing and w inemaking
on a national and international scale. The structure of the native vineyards is distinctive:
they are planted around the hilltops with moderate or gentle slopes characterised by
the absence of walls and terrain, resulting in a systematic arrangement of rows running
along the oblique curves of the hillside. All these elements have created a district in a
unitary and complete geographical reality: it has made the cultural heritage capable of
fortifying and shaping the identity of the UNESCO landscape.
251
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
2
VALLE, 2015.
252
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS
c arried out first of the tourist flow balance in terms of presence and arrivals in the Langhe
Roero and Monferrato area, second the accommodation offered, and the beds occupied
by tourists. The presence data indicate the number of nights spent by the clients in the
receptive e stablishments (hotel or complementary accommodations); the arrivals i nstead
indicate the number of Italian and foreign clients hosted in the respective establishments
(hotel or complementary accommodation) in the period considered.
As shown in the chart in the Fig. 2, the analysis of tourist influx increased through
2018: in terms of presence, a value of 640,485 in 2014 to 803,600 in 2018. In 2019,
due to the imposed national and global shutdown of COVID-19, the influx trend
dropped to 622,122 and continued to drop in the year 2020 with 561,630 total p resence.
The same phenomena impacted the total arrivals in the year 2019: from 2018, 803,600
arrivals in the territory, it reverts to a value of 277,961 (about 275,536, value of 2014)
and c ontinues to fall to 249,468 in 2020. The percentage compared to the previous year
is equivalent to a loss of -51.69% for total presence and -54.39% for total arrivals in the
Langhe Roero and Monferrato area. The distribution between the national and foreign
markets remains more or less the same through the period analysed and is around
40% for Italian presence, 60% for foreigners, around 47% for Italian arrivals, and 53%
for foreigners. As reported for 2020, following the pandemic the Italian market has
invested mainly in the Langhe Roero and Monferrato areas. Indeed, the p ercentage
of presences is reported to be about 62% and arrivals about 69% for foreigners.
The foreign countries that have benefited, and continue to benefit, from the beauty of
this area are primarily Switzerland, Belgium, Germany, France, the USA, the United
Kingdom and the Netherlands.
Moreover, the trends related to accommodation facilities and the number of
occupied beds have been increasing since the admission of Langhe Roero Monferrato
as a UNESCO World Heritage. In particular, the trend has remained positive until 2018
with a value of 832, the maximum recorded in the years for accommodation facilities,
and 12,292, slightly lower than the previous year, the maximum recorded value of 12,418.
The value is being normalized slowly with the recovery after COVID 19.
253
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Fig. 2. The analysis of tourist influx in the Langhe Roero and Monferrato areas during the year from 2014 to 2020
As far as 2021 is concerned, data are still being processed by the SPOT project
and by the Osservatorio Turistico della Regione Piemonte. They analyse several factors
regarding culture and tourism during the COVID-19 pandemic in Langhe, Monferrato
and Roero, and found a strong correlation to the UNESCO brand. Looking at the trends
in the territories under the jurisdiction of the Agenzie Turistiche Locali, all the districts
increased their tourist movements compared to 2020, reducing the gap recorded last
year compared to 2019. The best positive outcome of the Piemonte region was recorded
in the Langhe Monferrato Roero areas, where the 2021 final balance was less than 20%
lower than in 2019. The UNESCO value maintained a stable trend over nineteen years,
notwithstanding the imposed shutdown in 2020.
Recently, a first data analysis reveals that residents embraced a static represen
tation of the local cultural tourism’s appeal and heritage, while tourists were moti‑
vated primarily by gastronomic and wine experiences. According to this provisional
data accumulated, the percentage of potential Italian and foreign tourist influx to the
Piemonte region is that 57% of Italians who plan to go on holiday will choose Piemonte
during the autumn period. As far as foreigners are concerned, tourists from Benelux,
Switzerland and Scandinavia seem to prevail, as they prefer to go there during autumn
254
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS
and summer. The s entiment analysis, carried out on the territory by point of interest and
interviewees, show that the value of the sentiment analysis of the Langhe Monferrato
Roero is +1.3% compared to the previous year and more optimistic compared to Italy as
a whole. Moreover, more positive among users from the foreign market (Swiss, French,
and Germans)3.
The first results seem to be positive compared to the year of standstill that the
territory suffered during 2020, the COVID year. In the UNESCO cultural landscapes
of the three municipalities of Alessandria, Asti and Cuneo, with an increase of 20% in
a tourist presence and an economic impact on the entire area estimated at around 425
million euros over five years. In 2019 tourism in Piemonte recorded a +1.82% growth
in terms of arrivals, with a greater gain for foreign visitors, equal to +3.7%. Although
overnight accommodation decreased by one percentage point, visitor satisfaction and
positive sentiment increased. In particular, for the accommodation segment that relates
significantly to tourist arrivals, the number of reviews posted by operators in Piemonte’s
tourism industries throughout 2021 increased by +33.3% compared to 2020. The senti
ment index for the period for the Piemonte tourism product as a whole (accommo
dation, restaurants and attractions) stands at 88/100, more positive than the overall
number for Italy, which is 87.2/100. The index for the accommodation sector, 87.7/100
for Piemonte, is also better than the national index (86.5/100). The analysis of tourist
flows shows that the ATL Langhe Monferrato Roero is the best performing area in
Piemonte when c omparing the 2021 and 2019 data on arrivals and presences. Langhe
Monferrato Roero registered 1,028,036 presences for 2021: a figure that is close to the
total presence of the pre-pandemic year, with a loss reduced to 12%, the best Piemonte
data. A positive performance supported by the absolute record of presences reached for
four consecutive months, from August to November 2021, which therefore recorded a
greater monthly flow of tourists than pre-pandemic levels.
In addition to surveys and statistical measurements, another set of data that make
up the new LRM Observatory is based on the monitoring of online reviews of visitor
destination points of interest (accommodation, catering, and attractions), which show a
decrease in the number of reviews posted, in line with the spring lockdown and summer
recovery. The attractiveness of the area was able to recover from the losses in arrivals
and presences after the spring lockdown, reaching, in August, the levels recorded in
2019. During three separate surveys, carried out in May, August and November,
on Italians’ inclination to spend their holidays in Italy on the one hand, it emerged
that the number of holidaymakers who would have chosen Piemonte for holiday has
progressively decreased from 58% in May to 12% in November; on the other hand,
the share of those who would have chosen Piemonte for holiday has progressively
3
RECH, MIGLIORATI, 2021.
255
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
increased from 25% to 42%. In all three surveys, Langhe Roero e Monferrato remain
consistently in second place among the Piemonte destinations chosen, after the Turin
area. In the first seven months of 2021, the sentiment of the Langhe Monferrato Roero
tourism destination in online reviews increased. There was an increase in reviews:
+12.1% in the o verall sector, +34.5% in accommodation and +6.6% in catering, and the
sentiment indicator improved 90.6/100 in the overall sector (+1.3% compared to
the same period last year), 93.2/100 In accommodation (+0.8%) and 89.8/100 in catering
(+1.1%). For the city of Asti, there were more than 10,000 reviews for the total services
of the wine sector with an overall sentiment of 86.9/100. The sentiment index for the
tourism product of the ATL areas as a whole (accommodation, catering and attractions)
is higher than the national value, 87.2/100, with the Langhe Monferrato Roero recording
a better rate than the Piemonte region: 90.1/1004.
The UNESCO effect has guaranteed an even more significant increase in cultural
tourism, business development and the property land market. In the first few years,
the influx of tourists and accommodation facilities improved considerably. A ccording
to the Annual report published by CREA (Consiglio per la Ricerca in Agricoltura e
l’Analisi dell’Economia Agraria) on the value of Italian vineyards, prices were stable in
2019 at 53,600 euros per hectare. To understand real trends, we need to look at least
at five and ten year data sets: only the Piemonte region, among all Italian regions,
had a growth of more than 2% in both periods. If we look at the average value per hectare
of Piemonte vineyards, we can see that from 2014 to 2019 the values have risen signifi
cantly: in 2014, the value is 64.9 EUR/hectare compared to 72.1 EUR/hectare in 2019.
In the last year surveyed alone (2018/2019) there is an increase of +2.7% in property
value, while the annual variation in vineyard prices between 2014 and 2019 is around
2.1%. As CREA also declared, the average land value of vineyards in Asti, Alessandria and
Cuneo peaked after three years after 2014, whereas in the other municipalities o utside
the UNESCO heritage area, Turin Biella, Novara and Vercelli, values have decreased.
The graphical chart included shows that in the Alessandria, Asti and Cuneo areas,
values have increased respectively.
4
OSSERVATORIO TURISTICO DELLA REGIONE PIEMONTE, 2020.
256
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS
Fig. 3. On the top: average values of vineyards by UNESCO provincial altitude zone (Cuneo, Asti, Alessandria); on
the bottom: Average values of vineyards by UNESCO regional altitude zone (Cuneo, Asti, Alessandria, Torino,
Biella Vercelli)
257
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
258
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS
eritage site. Although it would be of great merit the inclusion of these municipalities
h
and their relative areas would nevertheless entail a strong anthropisation. Assessed
not just in terms of built-up areas, but in terms of the transformation of the landscape
as well. The intense anthropization could compromise the agricultural territorial system
of these landscapes. For example, the Roero has plenty of forestry crops, unlike Langhe,
where the landscape is largely vines, such as Monferrato, where polyculture is still preserved.
The UNESCO effect could resonate to such an extent that the strong tourist momentum
would lead to a considerable increase in vineyards closely related to them. As well as the
desire to plant new vines in the Monferrato area to contrast the meticulous work carried
out over the years by flavescence dorée and the lack of income in the vineyards.
Following this logic, it sways the neighbouring territories outside the buffer zone
boundary, as in Alta Langa, a hilly area located more on the border with Liguria to pursue
a similar UNESCO designation. It is mainly characterised by thick vegetation alternating
with cultivated farmland and forests. Hazelnuts are a typical product of the area, and the
fields permit the cultivation of large areas of cereals and wine and the grazing of animals for
cheese production. In recent years, the landscape has been undergoing significant trans‑
formation mainly linked to the desire to plant new vineyards in the high hills to e xpand
the DOCG area. As of 2018, the Piemonte region has promoted calls for increasing it to
produce Alta Langa DOCG. On the one hand, this has made it possible to recover aban‑
doned or uncultivated terroir to upgrade. On the other hand, it has also eliminated crop
expansion due to higher value return from forest planting. However, this process is not
only linked to the specific area of Alta Langa, though there are also numerous requests for
admission to the DOCGs of Barolo or Barbaresco every year. Neighbouring areas such as
Verduno and La Morra submit similar requests to be included in higher sector and value
production and thus sell more bottles with more prestigious affiliations.
CONCLUSION
Even though the UNESCO brand is regulated and strict guidelines have been drawn
up for its use, the effects it intrinsically has on the territory are considerable: from the
general attitude and willingness by citizens and enterprises to use the logo for any type
of product or event, to the increase in business development, market value and tourism
in the geographical borders; from the desire to become part of the landscape at any
cost by entering into new buffer zone boundaries or the most important DOCG zones,
to the transformation of more traditional agricultural landscapes to be associated with
the iconicity of vineyard scenery. In particular, the economy of the Langhe has driven an
already wine-growing landscape to increase its product with 85/90% vines, with peaks of
increase in recent years. However, it is necessary to be careful about the transformation
of the landscape towards monoculture, especially in consideration of climate change and
the historical and cultural dedication that belongs to the varied areas.
259
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
For example, in the case of Monferrato Alessandrino, the negative economic conse
quences of flavescence dorée did not allow the natural evolution of the monocultural
landscape. Farmers cut down and removed plants which had little value in the present
condition in favour of accelerating the planting and cultivation of forest ecosystems that
produced a higher economic return. The thought and decision by many farmers were
mainly related to the family heritage, in particular to pass on to their children and grand‑
children a landscape of little to no value. This has been the reason why many vines have
been uprooted and how the landscape has been radically transformed in the region.
Climate change initiatives are helping this process of landscape transformation,
but the continuing drive to the iconic nature of the Langhe’s rows of vines encourages
new winegrowers to plant new ones and above all to buy plots of land on higher ground,
at around 500 m.
To conclude, «I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato»
constitutes a unique testimony to a cultural tradition that is still powerfully alive, as its
UNESCO fame and quality attest. Today’s Langhe landscape results from a h istorical
attachment to the land on the part of countless generations of winegrowers and centuries
of intense and constant work necessary to carry out an agricultural transformation of
exceptional dimensions and original character. To this end, care must be taken to ensure
that the characteristic elements of each part of the Piemonte landscape system, stimu
lated by excessive attractiveness to the site, do not compromise the universally recognised
underlying value to the detriment of the minor elements that have enabled its recognition.
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Executive Summary. Paris: World Heritage.
260
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA,
AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA
DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS*
BÁRBARA MESQUITA**
Resumo: Na ilha de Santa Maria, a vitivinicultura teve expressão na agricultura e na economia desde os
primórdios do povoamento. O cultivo da vinha é tradicionalmente feito em socalcos nas baías, num sistema
de currais estruturados por muros de pedra, tirando proveito das condições ambientais. Nas últimas
décadas, tem-se assistido, contudo, ao abandono das vinhas. A relevância destas paisagens, a par da sua
adequação para os vinhedos, conduziu a diversas iniciativas de recuperação, sobretudo desde 2018.
O presente estudo pretende fazer uma apresentação deste processo de recuperação. Partindo-se da contex-
tualização temporal e espacial da vinha nos Açores, introduzem-se diferentes valores paisagísticos,
socioculturais e produtivos intrínsecos às paisagens marienses. Tendo presente a necessidade da resi
liência da paisagem, as reflexões conclusivas atendem ao contexto tempo-espaço e às iniciativas de
recuperação. Para existir resiliência, consideraram-se essenciais duas condições: o reconhecimento dos
valores paisagísticos; a continuidade da função produtiva que presidiu à construção desta paisagem.
Palavras‑chave: vinha em currais; recuperação; paisagem; Santa Maria; Açores.
Abstract: On the island of Santa Maria, viticulture has been relevant in agriculture and in the economy
since the settlement. The cultivation of the vine is traditionally done on terraces in the bays, in a system of
corrals structured by stone walls, taking advantage of the environmental conditions. In recent decades
vineyards have been abandoned. The relevance of these landscapes, along with their suitability for vine-
yards, has led to recovery initiatives, especially since 2018. This paper aims to present this recovery process.
Starting from the temporal and spatial contextualization of the vineyard in the Azores, different landscape,
social-cultural and productive values intrinsic to the vines of Santa Maria are presented. Taking into
account the need for landscape resilience, the conclusive reflections are drawn upon the time-space
context and the recovery measures. In order to achieve resilience, two conditions were considered essential:
the recognition of the landscape values; the continuity of the productive function which originated the
construction of this landscape.
Keywords: vineyard in corrals (currais); recovery; landscape; Santa Maria; Azores.
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar o processo de recuperação da paisagem de v inha
tradicional da ilha de Santa Maria, Açores. As vinhas marienses foram construídas
através de socalcos e muros de pedra, principalmente localizados nas baías, em sistemas
destinados à sustentação dos terrenos e à proteção das videiras. Trata-se de paisagens
vinhateiras de reconhecido valor, mas que conhecem um abandono parcial.
* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence à autora deste texto.
** Doutoranda em Geografia, com projeto de investigação na ilha de Santa Maria, Açores, no IGOT-ULisboa (Instituto
de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa).
261
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Muito embora se trate de um texto sobre Santa Maria, não se pôde deixar de o bservar
o contexto açoriano, ou, pontualmente, o madeirense e o canário. Com efeito, a vitivinicul‑
tura açoriana tem especificidades locais e, simultaneamente, características transversais a
praticamente toda a região, e com extensões a outros territórios insulares atlânticos.
Após as palavras introdutórias, serão desenvolvidos, no ponto 1, elementos gerais
de contextualização temporal e espacial da vitivinicultura na região dos Açores. Segue-se,
no ponto 2, uma caracterização, não exaustiva, do cultivo da vinha em Santa Maria.
Procurando enfatizar a singularidade das vinhas marienses, o trabalho foi orientado pela
ideia de «valores», tendo sido considerados os seguintes: paisagísticos, socioculturais e
produtivos. Trata-se de uma separação cujos limites são indefinidos, havendo temáticas
que naturalmente se cruzam. Serve-se, contudo, o propósito de sistematizar a informação
mobilizada. Neste ponto, haverá igualmente remissões para o contexto regional açoriano.
O ponto 3 contém a enumeração de dificuldades e das principais iniciativas do processo
de recuperação. Finaliza-se no ponto 4, com quadros-resumo dos valores identificados e
algumas reflexões conclusivas1.
Os conteúdos aqui apresentados resultam de: 1) revisão extensiva de literatura, que
abrangeu simultaneamente publicações científicas e literatura genérica; 2) trabalho de
campo, que englobou o reconhecimento de terreno e reuniões exploratórias com dife
rentes atores e stakeholders. De notar que a literatura existente incide principalmente
sobre a vitivinicultura das ilhas do Grupo Central, justificando-se a necessidade de ter
mais investigação sobre o cultivo da vinha e a produção de vinho nas restantes ilhas.
1
Este estudo resulta dos trabalhos preparatórios para o projeto de doutoramento em Geografia, que tem a orientação
da Professora Doutora Margarida Queirós, no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) — Univer‑
sidade de Lisboa.
2
GIL, 1981: 371-374.
262
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
Santa Maria, a par de São Miguel e da Terceira, são as ilhas açorianas nas quais
a estrutura fundiária de propriedade vinculada, característica do Antigo Regime,
persistiu mais intensamente. Nestas ilhas, nos primeiros anos do século XIX, haveria
poucas terras libertas, o que, à época, foi visto como obstáculo ao desenvolvimento das
atividades agrícolas3.
A introdução da vinha e a produção de vinho nas ilhas terão primeiramente assegu
rado a manutenção dos hábitos alimentares e tradições religiosas dos primeiros povoa‑
dores. O vinho tornou-se, depois, um produto duplamente destinado ao consumo local
e ao comércio com o exterior — era controlado oficialmente e tributado nas diferentes
fases do seu comércio, gerando importantes receitas para os concelhos. Perante crises de
abastecimento, as autoridades podiam recorrer ao controlo da produção vinícola através
de medidas como o embargo da exportação4.
Nos Açores, as terras foram exploradas de forma quase integral — desde os t errenos
mais pobres do litoral até às serras. Houve o aproveitamento em função dos cultivos
permitidos pelos diferentes patamares ecológicos, gerando-se uma agricultura diversifi‑
cada, que congregou plantas autóctones com plantas provenientes de regiões climáticas
que variam entre as subtropicais e as temperadas5.
Assim, o cultivo da vinha nos Açores, já generalizado no século XVI, foi a justado
às condições físicas insulares: ocupou preferencialmente solos pedregosos e pouco
evoluídos, nomeadamente de lavas recentes (caso dos «biscoitos»), e não colidiu com
culturas essenciais como a dos cereais. Originou-se, desta forma, um padrão princi‑
palmente caracterizado por porções de vinhas descontínuas e de pequena dimensão.
O transporte das uvas e/ou do mosto podia ser feito por terra ou por mar, consoante o
tipo de acessibilidade às parcelas. De uma forma geral, mas com variações temporais e
espaciais, o cultivo teve maior peso relativo na economia agrícola do Grupo Central,
particularmente na Graciosa, Pico e São Jorge. Assumiu, ainda, muita importância no
Faial, Santa Maria, São Miguel e Terceira, tendo sido residual no Corvo e nas Flores.
Historicamente, foi na ilha do Pico, por um conjunto de condições físicas e humanas,
que o cultivo da vinha e a produção de vinho atingiram maior relevância e reputação6.
Existindo um padrão geral de aproveitamento e uso das terras, o impacto paisagís‑
tico da vinha difere de ilha para ilha: as paisagens do Pico impressionam pela extensão;
na Graciosa existe um mosaico diversificado de paisagem agrícola, onde as vinhas estão
3
COSTA, 2003: 255-256, 259.
4
LIMA, 1960: 233-234; SOUSA, 2004: 126; MENESES, 2011: 180-182, 185; MADRUGA, BORBA, 2017: 79-80.
O papel regulador cabia tradicionalmente aos municípios que, em períodos de escassez, controlavam as exportações,
facto também observado aquando da falta de cereais. A ilha de Santa Maria terá conseguido escapar a alguns dos flagelos
cíclicos de falta de alimentos (COSTA, 2003: 200-201).
5
SOUSA, 2004: 127-128; 2015: 150.
6
MEDEIROS, 1994: 199-202, 209-210, 226; SOUSA, 2004: 126-128, 131.
263
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
7
Observa-se que o plantio da vinha na Graciosa faz o aproveitamento das terras mais quentes e secas da beira-mar,
mas em articulação com outras culturas como árvores de fruto, batata, milho e, até mesmo, matos nas extremas dos
terrenos (SOUSA, 2015: 153-154).
8
SOUSA, 2004: 129-131. O autor alerta para o facto de haver poucos estudos sobre o mercado regional do vinho
açoriano. Por outro lado, tem dominado a tendência de generalização, importando aferir os contextos locais de cada
ilha quando se estudam os produtos agrícolas e seus ciclos económicos. Nesta mesma linha, importa notar que a ideia
de ciclo de um produto de exportação não deve ser extrapolada para a conclusão de práticas de monocultura — nas
economias insulares atlânticas nunca vigoraram produtos únicos e houve sempre os destinados às economias de subsis
tência (VIEIRA, 2003: 39-40).
9
MENESES, 2011: 178-185. Este autor sugere que a constituição do concelho da Madalena até teria sido tardia face ao
desenvolvimento económico ocorrido. Este facto pode assentar na sujeição socioeconómica ao Faial e na consolidação
da viticultura picoense na segunda metade do século XVII (MENESES, 2011: 184).
10
VIEIRA, 1990: 11; 2003: 65.
264
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
é visível que as diferentes regiões vitivinícolas europeias têm a sua dinâmica produtiva e
comercial na estreita dependência da procura de vinho para o abastecimento dos navios
comerciais e militares11.
Ao longo da sua história, a agricultura açoriana teve sempre em vista os cultivos
diversificados, vitais à subsistência, e as produções destinadas aos negócios e à exportação12.
O vinho enquadrou-se, como já se viu, nesta dupla orientação. A par do autoabas
tecimento, o vinho foi produto de exportação, num período que se prolongou, com dife
rentes intensidades e características, até ao século XIX. Conjuntamente com os cereais,
o vinho figurou nas principais exportações até ao início do século XIX. A sua comerciali
zação com o exterior funcionava na estreita dependência das relações comerciais atlân‑
ticas e, particularmente, no papel desempenhado por alguns portos do arquipélago.
No último quartel do século XIX, o vinho encontrava-se eminentemente destinado ao
consumo local e regional, perdendo relevo nas exportações açorianas13.
11
BONARDI, 2019: 15.
12
MADRUGA, BORBA, 2017: 79.
13
JOÃO, 1991: 41, 43, 47, 49; 1992: 293, 300.
14
Adota-se aqui a definição de «paisagem» da Convenção Europeia da Paisagem de 2000, e que define no seu artigo 1.º:
a paisagem «designa uma parte do território tal como apreendido pelas populações e cujo carácter resulta da ação e da
interação de fatores naturais e/ou humanos» (EUROPA. Conselho da, 2000).
15
VIEIRA, 1990: 103.
16
COSTA, 2018; 2019; VISEU, 2018. Estes estudos estão enquadrados em publicações do CITCEM.
17
MACÍAS HERNÁNDEZ, 2005: 352, 354, 360.
265
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
18
GASPAR, 2005: 328; ALBERGARIA, 2021: 270, 273. No caso da ilha da Madeira, os terraços estreitos que caracte
rizam a paisagem agrícola são designados por «poios».
19
AGNOLETTI, 2019: V.
20
FERNANDES, JANEIRO, MESTRE, 2000: 44.
21
BONARDI, 2019: 7-9, 14-15.
22
ALBERGARIA, 2021: 275.
266
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
23
CONSTÂNCIA, 1982: 233-235, 237.
267
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Nesta ilha de pequena dimensão, muito embora a extensão das vinhas e a produção
vinícola possam ter tido um peso inferior a outras do arquipélago, está certamente entre
aquelas onde a marca paisagística é das mais impactantes24. A vinha foi plantada, princi
palmente, nas baías e fajãs, ocupando arribas íngremes que dificilmente se poderiam
destinar a outro tipo de plantio. Originou escadarias em socalcos, principalmente a sul
e leste da ilha, semelhantes na sua construção a algumas regiões do território conti‑
nental25. Nestas arribas, os «currais» estão distribuídos entre o mar e o ponto onde a
inclinação ainda permite o cultivo, originando propriedades estreitas no sopé, mas que
se alongam pela encosta acima.
Deve referir-se que foram também plantadas vinhas no interior da ilha, habitual‑
mente a cotas entre 100 e 200 m, as denominadas «vinhas por terra dentro». Nestes casos,
as vinhas são preferencialmente protegidas com sebes vivas. O vinho que destas se obtém
é tido como de qualidade inferior ao das arribas26.
Sendo Santa Maria a ilha açoriana de povoamento mais antigo, observam-se
aspetos dos primórdios desta cultura, nomeadamente os lagares escavados na rocha.
A localização destes lagares, atualmente em diferentes estados de conservação, ou já
desaparecidos, foi descrita com detalhe por Gaspar Frutuoso, podendo a sua existência
estar refletida na toponímia27.
O já assinalado impacto paisagístico assume as suas maiores proporções em São
Lourenço e na Maia, onde a extensão de vinhas ocupa, ainda hoje, e apesar do p rocesso
de abandono, largas porções das baías. Outro lugar onde este tipo de paisagem de v inha
ainda resiste, embora em abandono, é a localidade de Sul. Aqui, é particularmente
ilustrativo como foram ocupados terrenos de muito difícil acesso, obrigando a um árduo
trabalho físico, não só na construção da paisagem, como na manutenção dos vinhedos
e nas operações das vindimas28.
24
Santa Maria, com uma área de 97,2 km2, é a terceira ilha de menor dimensão do arquipélago (Corvo: 17,1 km2; Graciosa:
61,2 km2). De acordo com os Censos 2021 — Dados Provisórios, Santa Maria tem 5408 habitantes, sendo a quarta com
menos população (Corvo: 384 habitantes; Flores: 3428 habitantes; Graciosa: 4091 habitantes). Cf. INE. Censos 2021 —
Dados Provisórios. Disponível em <https://www.ine.pt/scripts/db_censos_2021.html>. [Consult. 04 jan. 2022].
25
MEDEIROS, 1994: 203.
26
GASPAR, 2005: 334, 336.
27
Este tipo de lagar, de dimensões variáveis, foi amplamente utilizado no território continental português, e existem
evidências do seu uso na ilha da Madeira (VIEIRA, 1990: 65; 2003: 21). Em Santa Maria, foi recentemente realizada uma
inventariação e estudo dos lagares rupestres, da autoria de RAMALHO (2021) e com edição da Câmara Municipal de
Vila do Porto. Foram descritos dezassete lagares, um número muito superior aos habitualmente referenciados.
28
A paisagem vinhateira de Santa Maria está exemplarmente documentada no trabalho fotográfico de José Guedes da
Silva, publicado em três edições da Câmara Municipal de Vila do Porto: Pedras da Maia — Santa Maria (1995); O Sul de
Nossa Senhora da Boa Morte (1999); Basalto Azul — S. Lourenço, ilha de Santa Maria (2001). A tese de RUGHI contém
um detalhado dossiê fotográfico das vinhas da Maia e de São Lourenço (2019: 56-71).
268
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
29
Os diplomas aplicáveis são: Decreto Legislativo Regional n.º 47/2008/A, de 7 de novembro — cria o Parque Natural
da Ilha de Santa Maria; Decreto Legislativo Regional n.º 39/2012/A, de 19 de setembro — primeira alteração ao Decreto
Legislativo Regional n.º 47/2008/A.
30
Disponível em <https://parquesnaturais.azores.gov.pt/pt/parques/2/areasprotegidas>. [Consult. 23 fev. 2022].
31
GASPAR, 2005: 328-331, 340.
269
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
32
De acordo com GASPAR, a designação «quartel» é de uso mais antigo em Santa Maria, tendo vindo a ser substituída
por «curral» (2005: 337).
33
MEDEIROS, 1994: 216-218; SILVA, 1995, 1999; GASPAR, 2005: 336-341; ALBERGARIA, 2021: 270-272. De notar
que esta terminologia observa repetições, ou variações, nas diversas ilhas vinhateiras do arquipélago.
270
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
Fig. 5. Interior do
curral de vinha —
Maia, novembro
de 2021
34
GASPAR, 2005: 342.
35
Glossários constantes de SILVA, 1995, 1999.
36
GASPAR, 2005: 343-344.
271
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
destes dois conjuntos. Em São Lourenço, foi também inventariada uma adega, classifi
cada como «construção utilitária». As funções associadas a este tipo de património são
as de cultivo de vinha e de habitação sazonal37.
Assim, tradicionalmente, as construções nas baías de São Lourenço e da Maia,
junto às vinhas, eram adegas ou residências temporárias para o período das vindimas.
Nas últimas décadas, a sua função alterou-se para a de casas de veraneio habitadas
sazonalmente. Este tipo de uso levou ao aumento da construção e a uma consequente
pressão urbanística que coloca novos problemas, nomeadamente de acesso viário, sanea‑
mento e recursos hídricos. Estes problemas obrigam a uma gestão territorial complexa,
na medida em que se trata da orla costeira e de espaços pertencentes ao parque natural.
Fig. 6. Habitações de
veraneio em São Lourenço,
novembro de 2021
INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA (2005). O trabalho de campo para o levantamento do património de Santa
37
272
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
38
MEDEIROS, 1994: 217-218; FERREIRA, 1997: 35, 37; SILVA, 1999; GASPAR, 2005: 337, 339-341; ALBERGARIA,
2021: 271-272; REIS, 2021: 100.
39
GASPAR, 2005: 337.
40
Em Portugal Continental, este tipo de vinho, popularizado em alguns lugares, é designado de «morangueiro».
273
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
41
SOUSA, 2004: 150-151.
42
MEDEIROS, 1994: 214, 219.
43
MEDEIROS, 1994: 214; SOUSA, 2015: 160.
44
MEDEIROS, 1994: 200; GASPAR, 2005: 89, 93, 327; ALBERGARIA, 2021: 278.
45
SOUSA, 2004: 126, 176-177.
46
MEDEIROS, 1994: 207, 212-214, 223.
274
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
Na opção de castas predominantes, parece ter havido uma evolução diferente nas
ilhas do Grupo Oriental e Central: enquanto em Santa Maria e São Miguel, de acordo
com informação oficial da década de setenta do século XX, já não se registavam vinhas
com castas europeias, o mesmo não se passava na Graciosa, Pico, São Jorge e Terceira,
onde o seu cultivo persistiu através do Verdelho e do Arinto47. É de sublinhar que os
viticultores micaelenses, na sua generalidade, não retêm memória do cultivo das castas
europeias, muito embora na ilha possa ter restado um cultivo residual. No caso m ariense,
terá resistido a casta europeia Bastardo ou Bastardinho, e existem memórias e registos do
vinho Verdelho48. No entanto, terá existido uma certa variedade de uvas cultivadas nas
fajãs, observando-se, na primeira metade do século XX: Isabela, Verdelho, D iagalves,
Bastardo, Sabrainho, Mourisco, Alicante e Moscatel . 49
47
De acordo com informação estatística constante de MEDEIROS, 1994: 223-224. GASPAR, 2005: 91.
48
De acordo com os testemunhos recolhidos por FERREIRA, o «vinho bastardo» era o melhor e, consequentemente,
servido nas missas (1997: 62); GASPAR, 2005: 91, 344, 512-514.
49
FIGUEIREDO, 1990 [1954]: 31.
50
FIGUEIREDO, 1990 [1954]: 32; 1957: 14-15, 53-57, 86-88. Veja-se ainda os versos do padre Serafim de Chaves na sua
descrição das Festas do Espírito Santo em Santa Maria (CHAVES, 1983: 63):
«Aparte em aposento reservado,
Espécie de telónio, mesureiro,
Serve o copeiro o bom vinho de cheiro
E o biscoito de orelha tão falado.
Com agrado oferece à ordeira gente
Que entra e sai, sem convite, alegremente.»
51
FIGUEIREDO, 1957: 56, 77, 85-86.
275
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
52
PORTUGAL. Ministério da Agricultura, 1935, 1938.
53
UNIÃO EUROPEIA. Parlamento e Conselho Europeu, 2013.
54
ASTIER, 2017.
55
Os autores assinalam insegurança nas estatísticas disponíveis, o que dificulta a reconstituição da economia vitivinícola
açoriana. Há, ainda, motivos para crer que exista subestimação da produção de algumas ilhas, nomeadamente Santa
Maria, ou exagero nas exportações anuais do vinho açoriano. Finalmente, os estudos privilegiam a dimensão de expor‑
tação, sendo escassos, ou omissos, no que respeita à produção para consumo local. Veja-se a este propósito: MEDEIROS,
1994: 211-213, 215; COSTA, 2003: 285-287; SOUSA, 2004: 117-118, 120, 124, 131, 139; GASPAR, 2005: 442-443.
56
SOUSA, 2004: 115-116.
276
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
57
SOUSA, 2004: 117-119, 132.
58
SILVA, 1999: 207-208, 212, 215.
59
LIMA, 1960: 234-238; GIL, 1982: 365-366; 1983: 143, 164, 171, 177-178; MEDEIROS, 1994: 202, 207-208, 215-216;
SILVA, 1999: 207-208, 212, 215; MADRUGA, BORBA, 2017: 105.
277
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
barro e objetos em barro60. Para 1801, um estudo detalhado do porto de Ponta Delgada
evidencia o número de barcos com proveniência de Santa Maria, inferindo-se a inten‑
sidade do c omércio de proximidade. Releva-se a quantidade e variedade dos p rodutos
desta ilha, que parecem ser todos de produção local, nomeadamente: trigo, cevada,
barro, telhas, loiças e vinho (24 pipas)61. No século XX, e de acordo com informação
de 1938, as exportações de Santa Maria destinadas ao comércio de cabotagem eram
compostas pelos produtos excedentários na ilha e incluíam «pipas de vinho de cheiro
e alguns quintos de verdelho»62.
Atendendo à importância da vitivinicultura na região, o oídio e as pragas subse‑
quentes tiveram um forte impacto nas economias locais. Em São Miguel, a chegada do
oídio é indicada em 1850, e quase deixou de haver uvas em 1852. Esta quebra afetou,
por um lado, os produtores agrícolas e, por outro, as receitas públicas associadas. No ano
de 1887, a filoxera é tida como existente em força na Terceira e em São Miguel. Levou à
prática de enxertar a casta Isabela noutras americanas mais resistentes. A partir de 1886,
surgia a antracnose, outra doença que atacava principalmente as vinhas mais afastadas
do litoral e que veio agravar os prejuízos63.
Para o período imediatamente anterior à chegada do oídio, tomando como refe‑
rência o ano de 1853, a produção de Santa Maria totalizaria quatrocentas pipas, e não se
destinava à exportação. A sua produção era a mais pequena das ilhas vinhateiras (não
inclui Corvo e Flores), seguindo-se a Terceira com seiscentas pipas64. Já as estatísticas de
produção para o concelho único da ilha, Vila do Porto, no período entre 1845 e 1863,
revelam uma quebra de 1030 para 30 barris, acompanhando a diminuição ocorrida em
todos os restantes concelhos do distrito de Ponta Delgada. Santa Maria, no ano de 1873,
teve a produção mais baixa do arquipélago: estimada em 65 hectolitros65. Existe, aliás,
um testemunho de viajante, datado de 1870, observando que as vinhas de São L ourenço,
em terrenos pedregosos que apenas permitiam a vinha, à época pouco produziam
devido ao oídio66.
Num relatório de 1891, dos serviços agrónomos do distrito de Ponta Delgada,
indicava-se que todos os vinhedos estavam a ser atacados pela filoxera, excetuando uns
60
COSTA, 2003: 251-252, 282, 285, 306, 321-322.
61
CID, 1979: 147-148, 159-160.
62
FIGUEIREDO, 1990 [1954]: 32-33.
63
SOUSA, 2004: 124-125, 154, 168-172. O autor salvaguarda que a progressão das pragas no arquipélago não é um
processo uniforme, nem existem certezas de datas.
64
MORELET, 1860: 109, 113-114. Este autor indica que a capacidade da pipa comercialmente utilizada nos Açores era
de 400 litros. De notar que, cerca de cem anos mais tarde, em Santa Maria, a capacidade da pipa é indicada em 480 litros,
FERREIRA, 1997: 40.
65
Estatística relativa à produção de vinho no distrito de Ponta Delgada, que incluía a Vila do Porto, SOUSA, 2004:
154-155. Estatística de PERY, a partir de SOUSA, 2015: 161. Tomando como referência MORELET: 1 pipa = 400 litros,
seria uma produção de aproximadamente dezasseis pipas.
66
MACHADO, 1870: 24.
278
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
oucos hectares plantados sobre as areias, em Santa Maria. A par deste facto, é inte‑
p
ressante notar que, no Catálogo da Exposição Distrital de Artes e Indústrias de Ponta
Delgada, de 1895, de trinta vinhos expostos, catorze eram originários de Santa Maria.
O clima mais seco desta ilha poderá tê-la tornado menos sujeita a pragas67. Assim,
e apesar do decréscimo, as condições naturais da ilha e a introdução de castas resistentes
poderão ter permitido uma recuperação mais fácil da produção.
As ilhas economicamente mais afetadas foram necessariamente as mais depen
dentes da vitivinicultura: Pico, Faial e São Jorge, mas mais intensamente as duas
primeiras68. O oídio, associado a uma série de maus anos agrícolas, em 1857-1858-1859,
provocou fomes e um consequente aumento da emigração do Pico para o Brasil e os
Estados Unidos da América. Os grandes proprietários e morgados do Faial e do Pico
assistem à desvalorização das terras, e os lavradores mais abastados veem reduzir um
dos seus principais produtos de mercado. É feita alguma reconversão dos t errenos para
cereais, mas, no caso do Pico, pelas características físicas e tradição agrícola d
esenvolvida,
era difícil substituir a vinha. Em São Jorge, apesar de alguns esforços, nunca mais a
produção de vinho atingiu a centralidade anterior às pragas. Os antigos terrenos de
vinha foram reconvertidos para pastos ou cultura do milho. O quadriculado dos m uros
começou a cobrir-se de silvados e matos, provocando uma grande a lteração da paisagem
das vertentes a sul, e consequente desvalorização destas propriedades. As suas plantações
em pequena escala e em prédios de reduzida dimensão dificultavam a reconversão,
pelo que a vinha se foi tornando uma cultura local e destinada ao autoconsumo. As ilhas
menos dependentes da vinha, como a Terceira ou a Graciosa, terão s entido as conse‑
quências de forma mais atenuada. Na Graciosa, devido às suas c ondições ecológicas de
ilha mais seca, prosseguiu-se com as produções agrícolas tradicionais: vinho, comum‑
mente tido como de menor qualidade, e consequentemente afastado de mercados inter
nacionais, cevada e trigo. Neste período de crise vinícola, a Graciosa assumiu impor
tância no abastecimento do mercado regional69.
Os meados do século XIX foram, deste modo, determinantes para a vitivinicul
tura açoriana: deu-se o quase desaparecimento das castas europeias — o Verdelho f oi-se
mantendo sobretudo no Pico e na Graciosa; fez-se a substituição pelas castas ameri‑
canas consideradas inferiores, mas resistentes e produtivas; e ocorreu a consequente
alteração de mercados e do gosto dos consumidores locais. Estas circunstâncias criaram
67
Informação a partir de SOUSA, 2004: 184-185.
68
MENESES, 2011: 186.
69
SOUSA, 2004: 156-162, 173-174, 191-192; 2015: 151-152, 158, 160, 164. Este autor observa que o fabrico de aguar‑
dente na Graciosa permitiu obter um produto de conservação e valor comercial superiores ao do vinho. Assim, ficavam
parcialmente ultrapassadas as dificuldades de produzir numa ilha mais pequena e com menor capacidade de acesso aos
mercados e às redes comerciais (SOUSA, 2015: 154, 156).
279
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
70
SOUSA, 2004: 148-152, 172.
71
SOUSA, 2004: 143-144.
72
FERREIRA, 1997.
73
CONSTÂNCIA, 1982: 240.
74
MEDEIROS, 1994: 208; SOUSA, 2004: 207; 2015: 156.
75
SOUSA, 2004: 125.
76
SOUSA, 2004: 178-179, 185, 189; GASPAR, 2005: 94-95, 100.
280
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
Vale a pena anotar que isto foi possível num período anterior à ilegalização das
castas híbridas americanas em F rança, posta em prática na década de trinta do
século XX.
A preferência regional pelos vinhos das castas americanas garantiu um mercado
açoriano para o consumo. No caso de Santa Maria e de São Miguel, são três as castas
híbridas que ganharam preponderância: Isabela (também designada «vinha de cheiro»
ou «americana»), Jacquez e Herbemont. É de notar que, em Santa Maria, existe uma
inversão na designação das castas Jacquez (Herbemont nas restantes ilhas) e Herbemont
(Jacquez nas restantes ilhas)77.
Ao longo da primeira metade do século XX, nos Açores, observou-se um aumento
da superfície de vinha (excetuando em São Jorge). Nas décadas de cinquenta e s essenta
do século XX, surgem adegas cooperativas no Pico e na Graciosa78. Os vinhedos de
elevada produtividade, a existência de mercado local e regional, os preços que viabili
zavam a produção e garantiam o retorno do investimento podem ser fatores explicativos
para este aumento.
Nesta expansão, o «vinho de cheiro» ganhou terreno e teve a sua produção assegu
rada particularmente em Santa Maria, São Miguel e Terceira. A produção a partir de
Verdelho era mais dispendiosa que a das castas americanas e, assim, na Terceira e no
Pico, foi-se reduzindo a área afeta a esta vinha. Por outro lado, a atividade da vitivinicul‑
tura aumentou a sua importância em São Miguel e na Terceira79.
Entre 1950 e 1970, Graciosa e Santa Maria encontravam-se no leque das principais
ilhas vinhateiras e com capacidade de exportação. Era enviado vinho da Graciosa para
o Faial, São Jorge, São Miguel e Terceira. O vinha de Santa Maria era remetido para São
Miguel, onde, apesar do custo do transporte, era vendido por melhor preço80. Em Santa
Maria, a produção vinícola conheceu uma curva ascendente ao longo deste século e até
196081. Já no ano de 1998, observou-se que o «vinho de cheiro» produzido era insufi‑
ciente para o consumo na ilha82.
O principal mercado para o vinho açoriano é, até presentemente, o próprio arquipé‑
lago, tanto para as castas híbridas como para as europeias. O vinho das castas híbridas tem
preços mais baixos — videiras mais produtivas e com uma resistência que permite evitar
alguns tratamentos83. A Isabela e as restantes castas americanas ou híbridas foram solução
77
GASPAR, 2005: 100-101, 344-345.
78
SOUSA, 2004: 210-211, 214.
79
SOUSA, 2004: 211-213; 2015: 151.
80
GASPAR, 2005: 479-480.
81
ALBERGARIA, 2021: 280.
82
GASPAR, 2005: 345-346, 512-514.
83
GASPAR, 2005: 476, 479.
281
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
para ultrapassar o período das pragas: além de se terem adaptado às condições ecológicas,
produziram vinhos para o mercado regional84. Assim, e ao longo do século XX, a p rodução
do arquipélago era escoada e gerava o rendimento necessário aos v iticultores.
A recolha de testemunhos orais evidenciou a importância do trabalho nas v inhas,
nas décadas de quarenta e cinquenta do século XX. Perante alguma escassez de oferta
laboral em Santa Maria, as vinhas representavam possibilidade de remuneração,
na maior parte das vezes paga em géneros, e que complementava magros rendimentos.
Foi uma altura em que o vinho da ilha tinha muita procura, um preço que assegurava o
lucro, e a produção conhecia escoamento garantido tanto dentro de Santa Maria como
para São Miguel85.
Para este período há relatos de atividades complementares: o fabrico de pipas e
tonéis pelos carpinteiros da ilha, simultaneamente tanoeiros, e a produção de «aguar‑
dente da terra», vendida na ilha — embora se assistisse a uma redução dos alambiques86.
Em Santa Maria, o vinho das uvas plantadas nas arribas da Maia e de São
Lourenço era o mais apreciado. No entanto, as «vinhas de terra dentro» revelavam-se
mais produtivas87. Desta forma, para rentabilizar, existia a prática de lotear o vinho.
Por outro lado, com o vinho da casta Herbemont (localmente designado Abremon
ou Bremon — e Jacquez nas restantes ilhas), um tinto menos apreciado, mas mantido
porque servia para lotear com o «vinho de cheiro» (casta Isabela), acentuando a cor, e do
seu mosto era produzido o «vinho abafado». Esta prática era corrente em São Miguel e
Santa Maria para o fabrico do típico «vinho de cheiro» que só raras vezes é feito exclusiva
mente de Isabela: acentuava-se a cor de vinho tinto, mas sem alterar o aroma típico,
indo ao encontro da preferência dos consumidores locais88. Esta prática detinha ainda a
vantagem de tornar o vinho mais graduado. O loteamento pode ser feito em separado,
respeitando os diferentes períodos de maturação dos frutos de cada uma das castas.
O vinho branco da casta Jacquez, localmente designado «Jacquês» (casta Herbemont
nas restantes ilhas), é produzido em maior quantidade; a facilidade de a planta pegar
de estaca foi condição para a disseminação desta videira na ilha. Acresce a sua resis‑
tência superior à das uvas tintureiras, que torna possível ser cultivada sem recurso aos
84
SOUSA, 2004: 187-188, 190. Apesar de tudo, e de acordo com este autor, no final do século XIX, observam-se anos em
que a produção do «vinho de cheiro» também ficava comprometida devido às doenças da vinha.
85
FERREIRA, 1997: 37, 39, 42, 46; REIS, 2021: 99-101.
86
FERREIRA, 1997: 40-41, 49.
87
Em termos históricos, esta mesma constatação foi feita para o Pico e para a Graciosa. No Pico, os terrenos de lagido,
mistério e biscoitos eram quase exclusivos para as vinhas, e, destas, obtendo-se vinhos de melhor qualidade. Já no chão de
terra, a produção era mais abundante, mas de qualidade inferior, e convivendo com o cultivo do milho e da batata-doce.
Na Graciosa, a vinha plantada em terras lavradias permitia aumentar a produtividade, mas obtinha-se vinho de qualidade
inferior. Veja-se, a este propósito, SOUSA, 2004: 205-207; 2015: 154-155. É de salientar que, na ilha da Madeira, existe
uma distinção entre vinhas do norte e vinhas do sul, e de acordo com a altitude. O vinho considerado de qualidade
superior era o das vinhas plantadas nas «meias terras abaixo» da vertente sul (VIEIRA, 1990: 27, 105; 2003: 71).
88
Localmente, esta prática de misturar para obter a mesma graduação e cor designava-se «passar o vinho a limpo»
(FERREIRA, 1997: 40). Sobre este procedimento, existem também testemunhos recolhidos por REIS, 2021.
282
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
3. O PROCESSO DE RECUPERAÇÃO
3.1. Dificuldades
O declínio do cultivo da vinha nos Açores deve ser enquadrado no decréscimo g eral
da atividade agrícola. Na década de sessenta do século XX, na Graciosa e no Pico,
foi feito um esforço de revitalização, nomeadamente através de adegas cooperativas.
Estes processos enfrentaram, desde logo, diversas dificuldades ao nível dos mercados e
dos custos elevados das explorações (inviabilidade de mecanização e preço da mão de
obra). Na Graciosa, observou-se até o declínio da adega cooperativa na década de oitenta.
A retoma da atividade tem enfrentado duplamente as limitações inerentes ao «vinho de
cheiro», e o ritmo lento da reconversão para castas europeias92.
Outros tipos de dificuldades foram identificados: os terrenos afetos às vinhas são
muito desiguais, o que dificulta um tipo comum de vinho; e, apesar da e xistência de
diferentes áreas de cultivo, genericamente, o clima húmido e a orografia são p ouco
favoráveis e tornam o rendimento por hectare inferior ao das restantes regiões viní
colas portu guesas. A modernização operada no setor, no final do século XIX,
em Portugal, teve componentes que dificilmente se adequavam à realidade dos A çores,
nomeadamente a mecanização e a dimensão das propriedades. A produção a çoriana
tornou-se pouco competitiva, restando o mercado regional e o cultivo preferencial
89
GASPAR, 2005: 341, 345-346, 465-470, 487-488.
90
Informação estatística constante de SOUSA, 2004: 178.
91
Informação a partir de MEDEIROS, 1994: 223-224.
92
MEDEIROS, 1994: 221-222, 225, 227.
283
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
93
Dificuldades identificadas para o período entre o final do século XIX e 1950, SOUSA, 2004: 182, 184, 194-195,
208-210; 2015: 151, 166, 170-171.
94
GASPAR, 2005: 335.
95
GASPAR, 2005: 332.
96
Em Santa Maria, a construção do aeroporto, na década de quarenta do século XX, ainda no contexto da Segunda
Guerra Mundial, terá sido a mais relevante.
97
FERREIRA, 1997: 37, 41-43, 45; REIS, 2021: 102-103.
284
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
98
FERREIRA, 1997: 41, 62; ALBERGARIA, 2021: 278, 280-281.
99
No caso de São Lourenço, este processo está parcialmente documentado em FERREIRA, 1997. Seria, contudo,
necessário um estudo detalhado da evolução da posse de propriedade.
100
É de sublinhar que, em virtude da evolução histórica do cultivo da vinha, em Santa Maria, tal como em São Miguel,
as práticas e o conhecimento estavam preferencialmente dirigidos para as vinhas híbridas e americanas.
101
MEDEIROS, 1994: 221; FERREIRA, 1997: 42, 71.
102
MEDEIROS, 1994: 224.
103
BASTOS, 2003: 69.
104
MEDEIROS, 1994: 227.
285
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
286
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
108
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Direção Regional do Desenvolvimento Rural, 2019.
109
RUGHI, 2019: 21-22.
110
Disponível em <https://rotas.azores.gov.pt/wineroute/>. [Consult. 20 mai. 2022].
111
ALBERGARIA, 2021: 273.
112
AÇORES. Governo, 2019.
287
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
4. REFLEXÕES CONCLUSIVAS
Aqui ninguém vive do vinho. Mesmo que se quisesse, era difícil. Aqui, faz-se o
vinho para ir vivendo e honrando o legado. Se não se fizer nada, dentro de poucos anos
esta extraordinária paisagem vinhateira vai ser completamente comida pela vegetação.
Há séculos de história condensados naqueles quartéis de pedra seca. Num mundo cada
vez mais igual, são lugares como estes que nos distinguem do resto do mundo113.
Tabela 1. Valores paisagísticos das paisagens de vinha da ilha de Santa Maria, Açores
Valores paisagísticos
Património construído, como os muros de pedra seca, escadórios, lagares, entre outros.
Foi já reconhecido no Inventário do Património Imóvel dos Açores (2005) que existe uma relevância forte das p
aisagens
de vinha de Santa Maria, surgindo a Maia e São Lourenço como «unidades paisagísticas construídas»; e estando em
curso junto da Direção Regional da Cultura dos Açores um pedido de classificação destas paisagens.
Cultivo de vinha em socalcos, num modelo de agricultura adequado às características físicas do território, que
permite um grau elevado de eficiência agroecológica. Será bastante relevante atender aos processos em curso em
unidades paisagísticas com afinidades, nomeadamente nos territórios insulares da Madeira e das Canárias.
Convivência de diferentes usos do território, que origina paisagens de forte impacto visual, genericamente
caracterizadas por uma harmonia entre os diferentes elementos que as compõem. Esta característica obriga à
necessidade da gestão e do ordenamento do território equilibrarem os diferentes usos.
«Currais» de vinha enquanto espaços que integram o Parque Natural da Ilha de Santa Maria, estando inseridos
em «áreas de paisagem protegida» (Baía da Maia e de São Lourenço) ou «área protegida de gestão de recursos»
(Costa Norte). Será relevante valorizar as funções ecológicas de uma paisagem humanizada que permite, por
exemplo, minorar os efeitos da erosão das arribas. A conservação tem necessariamente de ser multifacetada e sisté-
mica, atendendo a todos os elementos presentes na paisagem.
113
GARCIAS, 2018.
288
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
Tabela 2. Valores socioculturais das paisagens de vinha da ilha de Santa Maria, Açores
Valores socioculturais
Importância histórica da produção e do comércio do vinho produzido em Santa Maria, com relevância em
termos de estudos e de investigação, mas que permite, ainda, a identificação de sinergias com diversas atividades
económicas. Existe toda uma herança histórica e patrimonial que pode ser mobilizada para alavancar ações desti
nadas à recuperação das vinhas.
Riqueza cultural composta por tradições de cultivo, produção e consumo que remontam ao povoamento, ou que
podem ser mais recentes (caso do «vinho de cheiro»). A importância que o vinho tem assumido na cultura açoriana,
transversal a domínios, como a gastronomia ou as festividades, encerra um conjunto de valores que se justifica
manter e revitalizar.
Tabela 3. Valores produtivos das paisagens de vinha da ilha de Santa Maria, Açores
Valores paisagísticos
Potencial para produzir vinhos de qualidade e dirigidos a mercados mais vastos, atendendo às condições criadas
pela Indicação Geográfica «Açores» e eventuais possibilidades de futuras «DOP — Denominações de Origem Prote-
gida» e pelos incentivos dados à reconversão das vinhas.
Manutenção da produção tradicional, como o «vinho de cheiro», ou o «abafado». Enquanto produtos tradicionais,
desenvolvidos e consumidos localmente, justificam uma atenção renovada, mesmo não estando enquadrados nos
incentivos agrícolas.
Produção vitivinícola enquanto atividade de rendimento agrícola, que pode beneficiar, mesmo que comple-
mentarmente, os proprietários de vinha.
289
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
114
AGNOLETTI, 2019: VI.
115
PERDOMO MOLINA, 2019: 16.
116
ROMERO MARTÍN, 2020: 127-128.
117
MACÍAS HERNÁNDEZ, 2005: 363.
118
BRUNO, 2005.
290
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS
119
RUGHI, 2019: 49-51.
291
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
AGRADECIMENTOS
Sem pretender vincular os nomes mencionados às conclusões do presente estudo,
a autora agradece os contactos e reuniões exploratórias tão amavelmente concedidos
por: Alessia Rughi — Universidade de Bolonha | Graça Morais — vereadora da C âmara
Municipal de Vila do Porto | Isabel Albergaria — professora da Universidade dos
Açores | Isabel Mendes — técnica do Serviço de Desenvolvimento Agrário de Santa
Maria — Secretaria Regional da Agricultura e do Desenvolvimento Rural | Joana
Coutinho — fundadora e consultora da Sustain Azores | Manuel Amorim — mestrando
da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto | Paulo Ramalho — antropólogo
| Rita Câmara — diretora do Parque Natural da Ilha de Santa Maria — Serviço de
Ambiente e Alterações Climáticas de Santa Maria | Rosa Sousa — proprietária
de vinhas em São Lourenço | Rui Andrade — proprietário de vinhas na Maia.
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comparada. Porto: CITCEM, pp. 38-46.
295
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
296
IV
GESTÃO E SALVAGUARDA
DA PAISAGEM CLASSIFICADA
297
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
298
O SISTEMA DE GESTÃO
E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO
VINHATEIRO, PATRIMÓNIO
DA HUMANIDADE — REFLEXOS
E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO
ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
HELENA TELES*
Resumo: Decorridos vinte anos sobre a classificação do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial
(ADVPM) pela UNESCO, na categoria de paisagem cultural, evolutiva e viva, a entidade gestora, propõe,
como abordagem ao tema — Gestão e salvaguarda da paisagem classificada —, uma reflexão isenta
sobre os resultados alcançados com a implementação do atual sistema de gestão e monitorização.
A proximidade com o território e a interação proativa e pedagógica com os seus principais agentes têm
tido resultados e reflexos concretos na salvaguarda e valorização da paisagem vinhateira.
Palavras‑chave: gestão; monitorização; interação; resultados; salvaguarda.
Abstract: Twenty years after the Alto Douro Wine Region classification as World Heritage by UNESCO,
in the category of cultural, evolutional and living landscape, the management entity proposes to address
the theme — Management and safeguarding the classified landscape — by presenting an exempted
reflection on the results achieved with the implementation of the current management and monitoring
system. The proximity to the territory and the proactive and pedagogical interaction with its main agents
have had concrete results and reflexes in the safeguard and enhancement of this vineyard landscape.
Keywords: management; monitoring; interaction; results; safeguard.
* Licenciada em engenharia civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, é chefe de Estru
tura Sub-regional de Vila Real da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N);
Gabinete Técnico da Missão Douro.
299
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Assinalar esta data com um evento científico e cultural desta amplitude configura
uma mais-valia excecional, não só do ponto de vista da consolidação e difusão de conhe
cimentos, decorrentes da participação de especialistas e investigadores conceituados,
oriundos de vários pontos da Europa, mas também pela partilha de experiências e estrei
tamento de parecerias, fundamentais para a gestão diária do vasto território duriense.
Está ainda em causa o reforço de uma plataforma de cooperação que nos p ermita
enfrentar os desafios que se colocam à região e suas populações, tirando partido dos
ativos inerentes à classificação e ao reconhecimento mundial do seu Valor Universal
Excecional (VUE).
Com efeito, este é o momento de promover uma reflexão sobre a evolução recente
do território, repensando o futuro de forma prospetiva, envolvendo e valorizando o
apoio de todos aqueles que, diariamente, concorrem com o seu trabalho, conhecimento
e liderança para a salvaguarda deste património, a construção da paisagem e o desen‑
volvimento da região, personificados no Duriense, anónimo construtor da paisagem,
e em instituições como o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, a Liga dos Amigos do
Alto Douro Vinhateiro, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a Associação
de Empresas do Vinho do Porto e, como não poderia deixar de ser, a Comissão Nacional
da UNESCO e o ICOMOS Portugal, parceiros de relevo nesta missão conjunta.
Enfrentamos um futuro incerto e exigente, indissociável dos efeitos das alterações
climáticas, das crises socioeconómicas e sanitárias que nos afetam, veja-se a crise pandé‑
mica ainda em curso e as suas repercussões nos setores vitivinícola e turístico da região.
Como tal, é imperativo reforçar a apropriação dos valores intrínsecos à chan‑
cela UNESCO, consolidar a identidade coletiva em torno de uma herança secular,
incorporando novos fatores de sucesso com a inovação, a tecnologia, a competitividade,
a capacitação e fixação de recursos humanos, como forma de potenciar a região de
forma integrada e sustentável.
Neste contexto, a comunicação da Missão Douro pretende abordar os principais
desafios associados à operacionalização do sistema de gestão e monitorização, f ocando
alguns dos resultados alcançados, no que concerne à preservação e salvaguarda
da paisagem.
A partir de uma apresentação sucinta sobre os atributos que conferem VUE ao
Alto Douro Vinhateiro, realçam-se as intervenções que mais têm concorrido para a sua
evolução, em particular a reconversão da vinha e manutenção dos muros de p edra posta
de xisto. Destaque ainda para o papel do vitivinicultor duriense enquanto principal
agente de transformação do território e guardião de saberes e tradições associados à
cultura da vinha, um interlocutor ativo no que toca à disseminação e incorporação de
boas-práticas, técnicas e materiais tradicionais, imprescindíveis à preservação do patri
mónio, potenciando, em simultâneo, a sustentabilidade económica do setor. Ao longo
dos anos, a entidade gestora tem privilegiado o contacto direto com estes agentes,
300
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
301
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
que, em 1756, cria a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e
ordena a primeira delimitação da Região Demarcada do Douro, passando esta a consti
tuir-se como a mais antiga região vinhateira regulamentada e demarcada do mundo,
processo que em muito contribuiu para que os seus mais autênticos atributos chegassem
aos nosso dias.
Já no século XIX, as doenças fitossanitárias que atingiram as vinhas do Baixo e
Cima Corgo, em particular a filoxera, com um efeito verdadeiramente devastador,
constituíram um dos principais agentes de transformação da paisagem e da socio-
-economia, pela destruição dos vinhedos e outras perdas causadas aos vitivinicultores,
que se viram obrigados a vender e a abandonar as suas propriedades, deixando as suas
parcelas ao abandono, vindo-se a tornar num importante testemunho histórico e marca
paisagística dessa época — os mortórios. Esta crise fez emergir outra importante perso
nagem histórica, D. Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, pela busca de soluções
eficazes no combate desta praga e no investimento que fez na recuperação das proprie‑
dades devastadas e novas plantações.
Em paralelo, a melhoria das acessibilidades da via fluvial, nomeadamente com
a abertura do Cachão da Valeira à navegação e, posteriormente, com a chegada do
caminho de ferro a Barca de Alva, levaram à expansão da cultura da vinha para o Douro
Superior, onde hoje se consolida a produção de vinhos DOC de excelência reconhecida,
segmento que veio complementar o tradicional e único vinho do Porto.
Esta interação entre o Homem e a Natureza resultaram numa narrativa histórica
única, cujas camadas se encontram plasmadas num mosaico paisagístico polícromo,
rico e alternado de terraços, socalcos e outras formas de armação do terreno para a
sistematização e cultura da vinha, muros de pedra posta de xisto e outros elementos de
arquitetura vernacular (como casebres, escadas, condutas de água), de alternância
de culturas (com a presença de oliveiras, amendoeiras, pomares de citrinos) e p equenas
hortas, povoados, aldeias e vilas, as quintas, edifícios e locais de culto, entre muitos
outros, refletidos nos três critérios de classificação:
• critério iii — o Alto Douro Vinhateiro produz vinho desde há cerca de dois mil
anos; a sua paisagem foi moldada pelas atividades humanas;
• critério iv — as componentes da paisagem do Alto Douro Vinhateiro são repre
sentativas do completo leque de atividades associado à produção vitivinícola
— socalcos, quintas, aglomerados, capelas e vias de comunicação;
• critério v — a paisagem cultural do Alto Douto Vinhateiro constitui um exce
cional exemplo de uma região vitivinícola tradicional europeia, refletindo a
evolução desta atividade humana através do tempo.
302
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
303
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
quer pelos desafios constantes de uma entidade em permanente mudança, quer ainda
pelo leque de indicadores definidos que incluem, por exemplo, a área de vinha recon‑
vertida, os socalcos, os patamares, a vinha ao alto, a vinha sem armação, a área de olival,
a área de amendoal, a área ocupada por outras culturas, a existência de bordaduras,
os pomares de citrinos, os mortórios, a reconstrução e construção de muros tradicionais
do Douro, as manchas de matos, matas, povoamentos florestais e galerias ripícolas,
a preservação e valorização do edificado, entre outros elementos patrimoniais.
Com efeito, a gestão diária de outras competências relacionadas com o Ordena‑
mento do Território e Ambiente tem concorrido e facilitado a metodologia de trabalho
adotada e continuamente melhorada, nomeadamente pela georreferenciação de todos
os polígonos correspondentes a áreas intervencionadas no terreno. A gestão transversal
e holística dos projetos que enformam estas alterações ao uso do solo e outras de maior
envergadura e passíveis de gerar eventuais impactes leva a que sejam georreferenciados
e mapeados com recurso a uma base de dados geográficos, diariamente atualizada,
cuja informação é complementada e validada através de visitas de campo regulares.
A a nálise comparativa desta informação tem sido determinante para o acompanha
mento e avaliação das dinâmicas de mudança à luz da sua consentaneidade e compati
bilidade com os atributos e critérios de classificação do Alto Douro Vinhateiro.
Importa ainda referir que o processo de monitorização, além das áreas de
amostragem definidas como prioritárias, que correspondem às dez paisagens de refe‑
rência com uma área aproximada de 500 ha cada, tem sido alargado a toda a área deli‑
mitada pela respetiva ZEP.
Por outro lado, a gestão e monitorização destes processos têm obrigado a i ncursões
no terreno, não só em fase prévia ao sentido de decisão sobre os pedidos de inter
venção aí consubstanciados, como também em fase posterior, para verificação in loco
das disposições e orientações emanadas pela entidade gestora. Sobre esta metodologia
foram dados exemplos concretos: um com identificação e ilustração da mesma parcela
de terreno antes e depois da implementação do projeto, onde se sinalizaram as inter
venções, posteriormente verificadas e validadas; outro, ilustrando a aprovação parcial de
uma intervenção, acautelando a manutenção do património arbóreo e arbustivo medi‑
terrâneo e alguns elementos vernaculares aí presentes.
No que à monitorização diz respeito, importaria lembrar que o Alto Douro Vinha
teiro assume o cariz de uma paisagem marcada pela vitivinicultura de montanha,
cujas características se replicam noutras paisagens culturais classificadas da Europa,
enfrentando os desafios associados à sustentabilidade socioeconómica de base territorial.
Cinque Terre, em Itália, Wachau, na Áustria, Lavaux, na Suíça, são alguns e xemplos
de paisagens de forte pendor evolutivo e vivo, logo, em permanente mudança, recorrendo,
por questões operacionais, a plataformas de dados espaciais e sistemas de informação
304
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
geográfica que permitam, por um lado, mapear as alterações, por outro, reunir dados
de suporte a modelos de gestão adaptativos e colaborativos, adequados a identidades e
realidades territoriais distintas.
Outra das vantagens associadas à gestão integrada de competência, pela equipa
técnica no terreno, prende-se com o acompanhamento de projetos que, pela sua natureza,
tipologia e envergadura, estão sujeitos a Avaliação de Impacte Ambiental (AIA), sendo
que a Missão Douro integra as respetivas comissões de avaliação, analisando e emitindo
pareceres sobre diferentes fatores ambientais nas fases do procedimento, dando enfoque à
salvaguarda dos atributos do Bem, equacionando sempre as alternativas e soluções menos
lesivas dos valores em presença, avaliando ainda os efeitos cumulativos dos projetos.
Já a Avaliação de Impacte em Património (AIP) é uma prática de gestão que
tem vindo a ser implementada para outros projetos públicos e privados, que, mesmo
não estando sujeitos ao Regime Jurídico da AIA, merecem uma abordagem focada na
avaliação de eventuais impactes, considerando o Bem como um todo, onde, além dos
fatores ambientais, são consideradas outras componentes patrimoniais, como o contexto
histórico, o espírito de lugar, a perspetiva imaterial e demais atributos que conferem
Valor Universal Excecional ao Bem (em resultado da Declaração de Sintra, 2017).
A par da melhoria contínua da metodologia de trabalho, não só na aplicação dos
mecanismos e regulamentos de gestão e salvaguarda em vigor para a área classificada
e respetiva ZEP, a Missão Douro tem procurado tirar o máximo partido do capital de
experiência e conhecimento técnico da sua equipa e da relação de proximidade com o
território e seus agentes.
Depois de um processo de capacitação interna, que incluiu sessões de formação
para uniformização de abordagens aos principais aspetos a considerar na análise dos
processos, não só ao nível dos valores patrimoniais em presença, mas também das
boas-práticas agrícolas e ambientais a implementar, e ainda o manuseamento e domínio
destas novas ferramentas digitais de trabalho. A formação do quadro técnico incluiu
ainda trabalho de campo, com visitas acompanhadas a quintas de referência na região.
A aposta na capacitação e formação foi alargada aos vitivinicultores e suas
associações, complementada com numerosas sessões públicas de informação e sensibi‑
lização e ainda com visitas aos locais das intervenções visando a avaliação da situação de
partida para subsequente aconselhamento técnico quanto às soluções a adotar.
O fomento do trabalho em rede e o estabelecimento de parcerias com a gentes
públicos e privados de diferentes setores de atividade têm sido pedra de toque do
processo de governança e do envolvimento da comunidade local no acompanhamento
das dinâmicas atuais e desígnios futuros da região.
Aqui destacaram-se as ações em parceria com a Liga dos Amigos do Douro Patri
mónio Mundial, nomeadamente as edições consecutivas do curso de formação anual de
professores sobre o ADVPM, com comunicações sobre o ADV e o seu Valor Universal
305
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
CONCLUSÃO
Tendo em consideração que o limite temporal para uma apresentação desta n atureza
exclui uma abordagem mais abrangente e alargada ao ADVPM, importa reter, em síntese
conclusiva, alguns aspetos preponderantes para a reflexão a que nos propusemos:
• a primeira prende-se com o facto de o ADVPM ter uma localização geográfica
e estratégica privilegiada em relação aos outros sítios classificados do norte de
Portugal e da vizinha Espanha, mantendo a função secular de corredor de povos
e culturas;
• a segunda, com a riqueza natural, cultural e patrimonial excecional que detém,
associada à crescente notoriedade da chancela UNESCO, que lhe confere uma
margem de crescimento e de sustentabilidade, determinante para ultrapassar,
com resiliência, o efeito recessivo da pandemia; o desequilíbrio sociodemográfico
e correspondente tendência de esvaziamento do território e envelhecimento
306
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
Importa ainda considerar o sistema de gestão e monitorização que tem vindo a ser
implementado e a sua adequação à realidade territorial da área classificada e respetiva
ZEP. Sob este prisma, os resultados apurados a partir do último exercício de avaliação
permitem-nos perceber que, entre 2014 e 2021, as alterações ocorridas e monitorizadas
nas dez paisagens de referência foram muito reduzidas e resultaram de pequenas trans‑
formações à ocupação do uso do solo e ao sistema de armação da vinha, consideradas,
na globalidade, consentâneas com os valores de autenticidade e integridade do ADV.
A avaliação dessas alterações assume um carácter quantitativo e qualitativo, através da
Magnitude da Mudança e do Sentido da Mudança, respetivamente. A Magnitude da
Mudança indica-nos a evolução da paisagem em termos quantitativos e é avaliada com
base na diferença entre a área de uso de solo em 2014 e 2021 relativamente à área total de
cada local de amostragem, expressa em percentagem.
Assim, decorridos vinte anos sobre a classificação do Alto Douro Vinhateiro pela
UNESCO como paisagem cultural evolutiva e viva, podemos considerar que, apesar das
dificuldades e constrangimentos inerentes à dimensão, diversidade territorial e multipli‑
cidade de atores locais e regionais envolvidos no processo, o caminho por todos percor
rido tem-se revelado frutuoso, não só no que respeita à preservação e salvaguardados dos
seus valores e atributos, como à melhoria significativa das intervenções com reflexos na
paisagem, desde a mais pequena parcela de vinha ao empreendimento hoteleiro arqui
tetonicamente mais cuidado e integrado, culminando com o crescente enraizamento
comunitário do sentido de pertença e apropriação de uma herança secular e única.
Com efeito, a opção adotada pelo Estado Português em 2014 de internalizar na
CCDR-Norte a missão de proteger, conservar e valorizar, bem como divulgar e p romover a
paisagem classificada, trouxe como mais-valia o desempenho em paralelo das competências
no âmbito do Ordenamento do Território, Ambiente, Desenvolvimento R egional e Norte
2020 e da Missão Douro, com ganhos significativos para a gestão sistémica do território.
Atendendo ao carácter evolutivo deste sítio, o processo de monitorização sofreu
alguns desenvolvimentos pelo incremento de medidas tendentes à sua otimização,
quer ao nível da metodologia de trabalho quer ao nível da qualidade das intervenções no
terreno, no contexto de uma gestão adaptativa do território.
Os resultados da monitorização, expressos no último relatório enviado ao C entro
do Património Mundial, revelam que ocorreu uma transformação ao nível do uso do
solo, com o aumento de área de vinha, sem que, no entanto, se tenham afetado os valores
de autenticidade e integridade do ADV. Pelo contrário, algumas das intervenções levadas
a cabo contribuíram para a qualidade da paisagem.
307
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Nesta conclusão, cabe ainda uma referência à comemoração dos cinquenta anos
da Convenção do Património Mundial, motivo acrescido para a promoção de uma
discussão mais abrangente sobre esta temática, incorporando-a no programa come‑
morativo dos vinte anos do Alto Douro Vinhateiro Património da Humanidade que se
inicia a 14 de dezembro de 2021 e se prolonga durante um ano, até 14 de dezembro de
2022. Este programa inclui uma série de iniciativas desenvolvidas pelo conjunto de insti
tuições regionais ligadas ao Douro Património da Humanidade, integrantes dos Órgão
Consultivos da Missão Douro, que constituem uma Comissão Organizadora incluindo a
CIM do Douro, a Direção Regional de Cultura do Norte, a Direção Regional de Agricul
tura e Pescas do Norte, a Liga dos Amigos do Douro Património Mundial, a Universi
dade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a Entidade Regional do Turismo do Porto e
Norte, o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, Museu do Douro e Fundação do Côa.
A programação, além do conceito comemorativo que procura assinalar publica‑
mente a data e o seu significado, apresenta um pendor prospetivo e reflexivo sobre os
grandes desafios de desenvolvimento para o horizonte 2030, bem como de marketing
territorial cujas ações procurarão valorizar a identidade regional.
Importa, pois, continuar a fomentar um sentimento sustentável de autoestima
e pertença das comunidades locais, valorizando a identidade cultural, o património
imaterial, as pessoas e as suas conquistas coletivas a par de todos os fatores identitários e
diferenciados do Douro enquanto território de excelência.
A Missão Douro continuará, assim, focada no seu desígnio de entidade gestora de
um sítio tão exigente quanto desafiante, apostada na adoção de boas-práticas de planea‑
mento, gestão, comunicação, participação e cidadania.
FONTES ELETRÓNICAS
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <http://www.ccdr-n.pt/>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://en.unesco.org/>.
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308
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
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309
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
310
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO
SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES
VIGNOBLES EUROPÉENS*
SOPHIE LIGNON-DARMAILLAC**
Résumé: Ce texte analyse les effets de la labelisation UNESCO dans l’offre œnotouristique des vignobles
classés au Patrimoine Mondial de l’Humanité. Tous sont européens, alors même que de grandes destina-
tions en matière de tourisme vitivinicole appartiennent au Nouveau Monde. En quoi le classement
UNESCO différencie ces vignobles? Quelles sont les caractéristiques paysagères et patrimoniales des
vignobles UNESCO, en quoi sont ils valorisés, ou non, pour développer, plus qu’ailleurs, une activité
œnotouristique riche et diversifiée.
Mots-clés: vignobles; œnotourisme; patrimoine; UNESCO.
Resumo: Este texto analisa os efeitos do selo UNESCO na oferta enoturística das vinhas classificadas como
Património Mundial da Humanidade. Todos são europeus, embora os principais destinos do enoturismo
pertençam ao Novo Mundo. Como a classificação da UNESCO diferencia esses vinhedos? Quais são as
características paisagísticas e patrimoniais das vinhas da UNESCO, como são valorizadas, ou não, para
desenvolver, mais do que em qualquer outro lugar, uma atividade enoturística rica e proposta.
Palavras-chave: vinhas; enoturismo; património; UNESCO.
* Si le copyright des tableaux, graphiques et autres images n’est pas indiqué, il appartient aux auteurs de ce texte.
** Maitresse de Conférences-HDR, UFR de Géographie, Sorbonne-Université, Paris.
1
La reconnaissance d’un bien par l’UNESCO repose sur la Convention du Patrimoine Mondial concernant la p rotection
du patrimoine mondial, culturel et naturel, élaborée et adoptée par la Conférence Générale de l’UNESCO le 16 novembre
1972. Le concept de paysage culturel, soutenu par l’ICOMOS (International Council for Monuments and Sites) est
reconnu par le Comité du Patrimoine Mondial en 1994 en tant que «œuvre conjuguée de l’homme et de la nature».
Les paysages viticoles en sont une dimension; identifiés et préservés dans leur diversité à travers le monde, ceux qui sont
retenus expriment «la longue et intime relation des peuples avec leur environnement» (PRATS, 2014).
311
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Seuls des vignobles européens ont été classés, appartenant à sept pays: France,
Autriche, Portugal, Allemagne, Hongrie, Suisse et Italie. Certains d’entre eux comptent
plusieurs «vignobles UNESCO», la France (3), l’Italie (3), la Hongrie (3) le Portugal (2),
et l’Autriche (2), d’autres un seul, l’Allemagne et la Suisse. L’Espagne, grand pays viticole
européen, le premier par la superficie de ses vignes, n’en compte cependant aucun comme
tous les grands vignobles de l’hémisphère sud ou des Etats-Unis, Pour appartenir à ce
réseau UNESCO, tous répondent au moins à un des critères II, III, IV, V ou VI reconnus
par l’organisation internationale:
II. Témoigner d’un échange d’influences considérable pendant une période donnée ou
dans une aire culturelle déterminée, sur le développement de l’architecture ou de la
technologie, des arts monumentaux, de la planification des villes ou de la création
de paysages,
III. Apporter un témoignage unique ou du moins exceptionnel sur une tradition
culturelle ou une civilisation vivante ou disparue,
IV. Offrir un exemple éminent d’un type de construction ou d’ensemble architectural
ou technologique ou de paysage illustrant une ou des périodes significative(s) de
l’histoire humaine,
V. Etre un exemple éminent d’établissement humain traditionnel, de l’utilisation
traditionnelle du territoire ou de la mer, qui soit représentatif d’une culture (ou de
cultures), ou de l’interaction humaine avec l’environnement, spécialement quand
celui-ci est devenu vulnérable sous l’impact d’une mutation irréversible,
312
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS
France Autriche Portugal Allemagne Hongrie Portugal Suisse Italie France Italie
Paysage culturel de Fertö/
Neusiedlersee Frontière
caves de Champagne
Vallée du Haut Douro
Collines de Prosecco
Climats du vignoble
Juridiction de Saint-
Coteaux maisons et
Autriche-Hongrie
de Conegliano
de Bourgogne
Vallée du haut
Rhin moyen
Ile de Pico
-Emilion
Wachau
Piemont
Lavaux
Tokaj
III X X X X X X X X
IV X X X X X X
V X X X X X X X X X
VI X
En répondant à ces critères, les vignobles classés traduisent une parfaite adé‑
quation entre la nature et le savoir-faire humain, une totale adaptation à des environ
nements naturels souvent hostiles, là où de fortes pentes ou des sols volcaniques ne
semblaient pas destinés à l’origine à des productions d’excellence. Pour parvenir à
l’élaboration de paysages exceptionnels, des communautés humaines ont dû s’implanter
durablement, transmettre de générations en générations des savoirs-faire ingénieux,
pour développer des traditions tant dans l’art de produire que de vivre. Pour maintenir
une activité viticole si exigeante, ces communautés vigneronnes ont fait de leurs vins si
chèrement produits, beaucoup plus que des breuvages bons à boire. Elles ont élaboré
des boissons de fêtes, des symboles de vie, des vins qui ont inspiré de multiples œuvres
d’art, des sculptures, des peintures, des poèmes ou des musiques.
313
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
314
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS
Rhin, du Haut Douro ou dans les collines du Prosecco, ou par leur situation le long d’un
fleuve (Rhin, Douro, Danube) ou d’un rivage lacustre (Wachau). Ces régions viticoles
sont plus ou moins densément habitées, plus ou moins reconnues pour leur patrimoine
bâti (châteaux et église troglodyte de la Juridiction de Saint-Emilion). Leur offre œno‑
touristique est dès lors avant tout renforcée par leurs spécificités, et non par leur apparte‑
nance commune au club très restreint des vignobles UNESCO. Certains sont privilégiés
pour développer une activité touristique par la proximité d’une grande ville, Bordeaux,
Lausanne, Venise ou Turin, d’autres sont au contraire très isolés telle l’Ile de Pico,
ou plus difficilement accessibles comme le Haut-Douro, à une centaine de kilomètres de
Porto, loin des chais de Vila Nova de Gaia, qui seuls sont à proximité de la ville. Certains
bénéficient de la notoriété internationale de leurs vins, Champagne, Prosecco, Porto,
Bordeaux, d’autres moins reconnus sur les marchés d’exportation.
A l’occasion des Journées Européennes du Patrimoine, l’UNESCO a lancé en
septembre 2017 la première plateforme en ligne pour valoriser le Patrimoine M ondial et
le tourisme durable, le «World Heritage Journeys (Sur la route du Patrimoine M ondial)».
Conçue avec le soutien de l’Union Européenne, et développée en collaboration avec
«National Geographic», cette plateforme présente trente-quatre sites du Patrimoine
Mondial répartis dans dix-neuf pays de l’Union Européenne. L’objectif est de c hanger
la manière dont les gens voyagent en les incitant à rester plus longtemps sur place,
à explorer la culture locale, son environnement et se familiariser avec les valeurs du Patri
moine Mondial. Ces sites doivent appartenir à l’Europe antique, médiévale, royale ou
souterraine. Parmi eux, quatre paysages culturels viticoles bénéficient de cette n ouvelle
reconnaissance internationale: deux sites de l’Europe romantique, en Allemagne,
la Vallée du Haut-Rhin moyen, cœur du Saint-Empire romain, en Autriche, le Paysage
culturel de la Wachau, paysage médiéval remarquablement bien préservé, et deux autres
sites de l’Europe souterraine, en France, les Coteaux, Maisons et Caves de Champagne,
en Hongrie, le Paysage culturel historique de la région viticole de Tokaj.
Cette nouvelle classification, renforce le tourisme rural pour promouvoir le patri‑
moine ayant pour vocation un tourisme durable pour:
• promouvoir un tourisme en accord avec la valeur universelle exceptionnelle du
Patrimoine Mondial;
• attirer les visiteurs chinois en Europe dans le cadre de l’Année du tourisme Union
Européenne-Chine 2018;
• inciter les touristes à séjourner plus longtemps, à explorer la culture locale et son
environnement, et se familiariser avec les valeurs du Patrimoine Mondial de la
région visitée;
Comme pour l’ensemble des paysages culturels du Patrimoine Mondial, ces vignobles
revendiquent la valorisation de la nature à travers un tourisme vert, à travers vignes.
Ces vignobles sont sillonnés par diverses routes pédestres, cyclables, ferroviaires ou
315
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
uviales Des sentiers sont particulièrement renommés pour apprécier les sites remar‑
fl
quables de territoires viticoles. Tel est le cas du sentier des terrasses empierrées de la
Wachau, 180 km organisés en quatorze étapes, sentier relié à la section locale du c hemin
de Saint-Jacques. Le pic du Jauerling, le plus haut sommet qui domine le Danube,
750 m au-dessus du fleuve, permet une vue remarquable sur les pentes du vignoble,
la découverte d’une v ingtaine de forteresses, ruines et châteaux ou de trois monastères,
d’explorer ainsi un patrimoine architectural remarquable, qui renforce le caractère
culturel du vignoble. Ailleurs, l’Eurovelo 6 (1200 km de Donaueschingen en Allemagne
à Budapest en H ongrie) longe le Danube, en partie à travers les vignes de la Wachau,
le long de chemins de halage, en traversant les villages médiévaux de Spitz, Weißen‑
kirchen et Dürnstein.
Dans d’autres cas, des trains touristiques empruntent des voies panoramiques à
Lavaux ou dans le Douro, où le train historique est à nouveau à vapeur! Dans ce vignoble,
la desserte de la gare de Pinhão permet de découvrir à la fois le vignoble et ses vins,
mais aussi la culture des azulejos portugais, à travers de multiples tableaux de céramiques
qui illustrent la vie vigneronne, les paysages viticoles ou le commerce du Porto par les
embarcations traditionnelles, les rabelos (Fig. 2).
L’appartenance de ces circuits touristiques à des vignobles remarquables, se t raduit
aussi par l’offre des promenades gourmandes telle celle du «train des vignes» de Vevey
à Chexbres jusqu’au lac Léman. Ainsi, comme paysages culturels de l’Humanité, ces
vignobles conjuguent toujours un attrait pour la nature, tout autant dans sa dimension
culturale que culturelle.
Fig. 2. Azulejos de la
gare de Pinhão
316
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS
317
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
4
Ce réseau conduit des programmes de coopération et d’échanges, spécialement en matière d’œnotourisme. Le concours
des Best Of Wine tourism récompense les meilleures initiatives œnotouristiques des villes membres, réalise des études
de marché sur l’impact de l’œnotourisme dans l’activité de leurs propriétés viticoles, attribue des bourses de recherche,
organise des missions dans les vignobles…
318
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS
5
Disponible en <https://www.worldsbestvineyards.com>. [Consult. 2 Fév. 2022].
319
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
10
7
Nombre de caves
2019 2020
Fig. 3. Pays représentés au Top 50 des World’s Best Vineyards 2019 et 2020
6
GIRONDE TOURISME, 2022. Disponible en <gironde-tourisme.fr>. [Consult. 2 Fév. 2022].
7
PUYDEBA, [s.d.].
320
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS
CONCLUSION
Les vignobles UNESCO sont des destinations œnotouristiques reconnues à l’échelle
internationale. L’augmentation de la fréquentation des vignobles classés au Patrimoine
Mondial est sans doute le fruit de touristes sensibles à ce classement de renommée
mondiale, touristes adeptes des visites des lieux et biens inscrits à l’UNESCO. Pour a utant,
le label n’est pas une manne. L’inscription est certes une source de notoriété, mais la poli‑
tique menée par les Etats, les régions, la proximité d’une grande ville et la facilité d’accès
qui en découle restent plus fondamentaux. L’œnotourisme semble rechercher, plus que le
nombre, la qualité de l’offre et de la fréquentation des vignobles. Les vignerons verraient
mal les touristes en trop grand nombre dans les rangs de leurs vignes! L’image d’un
tourisme de masse serait très dommageable à leur notoriété.
8
PUYDEBAT, [s.d.].
9
XVI Rapporto Sul Turismo Del Vino In Italia, 2020: 35.
10
REYNARD et al., 2017-2019.
321
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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DES PAYSAGES VITICOLES DE LA
PLAINE DE MORNAG: UN NOUVEL AXE
DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN
TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE*
ABDELKARIM HAMRITA**
AMIRA BOUSSETTA***
RAFAEL MATA OLMO****
HICHEM REJEB*****
Abstract: The concept of patrimonialization of terroirs and local products concerns rural areas with a
strong identity and also so-called ordinary and peri-urban areas with quality products, know-how,
and elements with a strong patrimonial value […]. In Tunisia and since independence, the process of
heritage is set up by the strong will of public authorities supported by international organizations and
tourism. Currently, and based on research in Mornag, a rich agricultural plain located southeast of Tunis,
populated by village communities practicing various intensive crops, particularly market gardening and
vineyards inherited from Italian settlers and presenting conflicts of use, the process of heritage appears to
be bottom-up, mobilizing a diverse set of actors and resources. It illustrates the interaction between the
strategies carried by the still predominant public authorities and the intentions of local collectives or indi-
vidual actors, and it illustrates the evolution of the values attributed to the rural and peri-urban country-
side, re-interrogating their importance for local development.
Keywords: patrimonialization; terroir; local development; vineyards; Mornag; Tunisia.
Resumo: O conceito de património de terroirs e produtos locais diz respeito a zonas rurais com uma forte
identidade e também às chamadas zonas ordinárias e periurbanas com produtos de qualidade,
know-how e elementos com um elevado valor patrimonial […]. Na Tunísia, desde a independência,
o processo de desenvolvimento do património tem sido implementado por uma forte vontade das auto-
ridades públicas apoiadas por organizações internacionais e pelo turismo. Atualmente, e através do
estudo da zona de Mornag, uma rica planície agrícola situada no sudeste da metrópole de Tunes
povoada por c omunidades aldeãs que praticam várias culturas intensivas, em particular a horticultura
* Si le copyright des tableaux, graphiques et autres images n’est pas indiqué, il appartient aux auteurs de ce texte.
** Institut Supérieur Agronomique de Chott Mariem. Université de Sousse. Docteur en études du paysage et dévelop‑
pement territorial, professeur à l’ISA-IRESA-Université de Sousse et professeur invité à l’Universidad Autónoma de
Madrid.
*** Institut Supérieur Agronomique de Chott Mariem. Université de Sousse. Département des Sciences Horticoles et
du Paysage.
**** Departamento de Geografía. Universidad Autónoma de Madrid. Professeur ordinaire d’Analyse Géographique
Regionale et directeur du Département de Géographie et de Développement Territorial de l’Universidad Autónoma de
Madrid. Chercheur et conseiller auprès du Ministère de l’Économie et de la Compétitivité du gouvernement espagnol
et, à l’international (Europe, Amérique latine, UNESCO…).
***** Institut Supérieur Agronomique de Chott Mariem. Université de Sousse. Docteur en Sciences Agronomiques,
Gembloux – Belgique, professeur de l’Enseignement Supérieur, directeur de l’Unité de Recherche « Horticulture,
Paysage, Environnement » UR13AGR06, et co-responsable du Programme Doctoral « Etude des Paysages et Dévelop‑
pement des Territoires » de l’ISA- IRESA- Université de Sousse.
323
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
e a vinha herdada dos colonos italianos, e apresentando conflitos de utilização, o processo de patrimo-
nialização parece estar orientado numa abordagem ascendente mobilizando uma multiplicidade de
atores e recursos, ilustra a interação entre as estratégias das autoridades públicas ainda predominantes
e as intenções dos coletivos locais ou dos atores individuais e exemplifica a evolução dos valores
atribuídos à paisagem rural e periurbana e reinterroga a sua importância para o desenvolvimento local.
Palavras-chave: patrimonialização; terroir; desenvolvimento local; vinhas; Mornag; Tunísia.
Ce travail est structuré en trois parties. La première partie est consacrée à une r évision
conceptuelle des notions de paysage et de patrimoine afin de définir le concept des
paysages patrimoniaux. La seconde partie est consacrée au fait méthodologique de
rapprochement des paysages et des paysages patrimoniaux à partir des idées fortes
comme, le caractère, les représentations et les vecteurs patrimoniaux. La dernière partie
va se concentrer sur le processus de patrimonialisation des paysages de vignobles de la
plaine de Mornag et l’importance de la participation publique à identifier, caractériser et
évaluer les paysages significatifs pour monter le projet de développement local basé sur
les paysages patrimoniaux.
1
DI MÉO, 2008: 3.
2
PRATS, 2006.
3
UNESCO, 2003.
4
SILVA PÉREZ, 2016.
324
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
l’ensemble des éléments matériels et immatériels (un monument, une formation natu‑
relle, perception sociale, un paysage culturel…) et la volonté de protéger les biens appelés
naturels devient une action culturelle, levier de valorisation, de création et de renou‑
vellement des liens sociaux5, sous-tendu par des enjeux politiques6. Pour de nombreux
spécialistes en patrimoine, le paysage est c onverti en un type particulier de patrimoine;
une e xtension du patrimoine culturel et une interprétation de ses signes historiques et
culturels présentant dans une grande partie des configurations paysagères7. En conséquence,
le terme p aysage culturel d
éfinit comme ouvrage combiné de la nature et de l’homme,
est classé par l’UNESCO en trois types: a) paysage défini, conçu et créé par l’homme;
b) paysage évolutif résultant des e xigences sociales, économiques, administratives e t/ou
religieuses; et c) p aysage associatif c onjuguant des phénomènes religieux, artistiques, ou
culturels avec des éléments naturels8, souvent traité sans réflexion et vision stratégique,
donne place à l’expression de paysages patrimoniaux, afin de les considérer comme
paysages à forte signification et intérêts culturels. Ces paysages patrimoniaux corres‑
pondent à des unités territoriales singulières construites par une superposition de couches
spatiales (base naturelle, usage du sol, formes de p euplement, voies de communication…),
sociale (alimentation, habitat…) et temporelles (créées à différentes périodes historiques).
L’ensemble de ces éléments possédant une valeur identitaire attribuée par la population
locale e t/ou reconnue par les institutions constituent ce qu’on appelle les v ecteurs patrimo-
niaux9. La définition du paysage de la Convention Européenne du P aysage «une partie du
territoire, tel que perçu par la population, dont le caractère résulte de l’action de facteurs
naturelle et/ou humaines et de leurs interactions»10 et principalement sa dernière partie
considère le caractère de chaque p aysage comme le résultat de l’action de facteurs naturels
et humains et de ses interactions. Le sens du terme caractère comme signe ou marque qui
s’imprime sur le territoire devient très proche de l’idée d’empreinte singulière et signifi‑
cative de patrimoine et de territoire11. Le terme caractère est donc pertinent et abrite un
important contenant patrimonial. En conséquence, le patrimoine est considéré comme
l’expression du caractère symbolique et singulier qui favorise la proximité conceptuelle
entre patrimoine et paysage12. Le plus pertinent aujourd’hui est de considérer cette recon
naissance patrimoniale en un processus puisqu’il est plus significatif que son résultat pour
la société qui le crée. Le concept de patrimoine ne cesse de changer et son évolution conduit
à considérer davantage le processus de patrimonialisation que le patrimoine lui-même.
5
MICOUD, 2004: 81.
6
BORTOLOTTO, dir., 2011.
7
CRUZ PÉREZ, ESPAÑOL-ECHANIZ, 2009.
8
UNESCO, 1972.
9
SILVA PÉREZ, 2016; SILVA PÉREZ, FERNÁNDEZ SALINAS, MATA OLMO, 2018.
10
CONSEIL DE L’EUROPE SUR LE PAYSAGE, 2000.
11
MATA OLMO, 2010; MATA OLMO, MEER, PUENTE, 2012.
12
MATA OLMO, 2010; MATA OLMO, MEER, PUENTE, 2012.
325
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
13
SILVA PÉREZ, 2016.
14
STOBBELAAR, PEDROLI, 2011.
15
ARNESEN, 2011.
326
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
16
HAMRITA, 2017.
17
BOUSSETTA, 2019.
327
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
3. RESULTATS
18
CHAOUECH, 2010.
19
MIMOUNI, 2001.
20
PONCET, 1961.
328
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
dont plus de la moitié sont des terres agricoles utiles. Elle est dominée par un sommet,
le Jebel Ressas (795 mètres) et entourée par un ensemble de reliefs (Jebel Ressass, Jebel
Boukornine, collines de Rades…). Elle constitue la zone avale du bassin hydrographique
de l’oued Miliane qui s’étend sur une superficie de 2000 km² et auquel vient s’adjoindre
un affluent, l’Oued El Hamma. Historiquement peuplée par les colons français et italiens,
la population rurale estimée à 21.742 représente 40% de la population totale de la délé
gation21. La région de Mornag est caractérisée par trois éléments naturels essentiels;
une topographie plane, un climat de type méditerranéen et un sol assez riche. La plaine
de Mornag renferme, l’unique système aquifère de la région de Ben Arous d’où l’impor‑
tance qu’acquiert cette nappe pour soutenir les principales activités économiques de la
région; l’agriculture en premier lieu et l’activité industrielle et minière en second lieu.
Le territoire de Mornag était à peu près divisé en deux parties le long d’un axe sud-ouest/
/nord-est perpendiculaire à la route Tunis-Grombalia. Dans la partie nord-ouest on a pu
reconstruire la présence de l’olivier sur des terrains habous, composée de 321.000 pieds
d’olivier, assez morcelés et exploités par de petits agriculteurs. La partie sud-est consti‑
tuait le domaine des grands propriétaires exploitaient le terrain par la culture de céréales
et de vignes avec 56.000 ha en 1993. A ces trois principales cultures s’ajoute la culture des
arbres fruitiers et le maraîchage introduit suite aux encouragements de l’état et pour
des raisons d’approvisionnement alimentaire du pays. Comme toutes les plaines agri‑
coles périphériques, la plaine de Mornag a subi fortement l’emprise d’une bourgeoisie
citadine intéressée au développement de la production céréalière et d’un élevage indis‑
pensable aux besoins de la consommation urbaine, et ce bien sa considérée comme
bien fertile et porte des cultures commerciales et vivrières mais se trouve en ordure du
Grand Tunis22 qui renvoie à une diffusion incontrôlée de l’urbanisation au-delà de la
zone métropolitaine centrale, dans une zone qualifiée comme zone de solidarité métro
politaine et dans des nouvelles marges périurbaines23. Le grignotage des terres agri‑
coles a commencé depuis les années soixante-dix, particulièrement autour de Cébalat
Mornag24, se poursuit jusqu’à ces dernières années et se fait selon un ordre dispersé de
résidences pavillonnaires à l’intérieur du périmètre communal et une avancée m assive
dans des excentrées compactes le long de voies de communication à la faveur des
implantations industrielles. A cause de sa situation très proche de la métropole Tunis,
la plaine de Mornag a perdu une grande partie de ses terres agricoles fertiles et parti‑
culièrement des vignobles. L’analyse de la carte de l’occupation du sol (Fig. 3) montre le
recul de la viticulture au détriment de l’urbanisation du Grand Tunis et des petits noyaux
urbain à l’intérieur de la plaine qui ont tendance à grignoter mêmes les terres agricoles
21
BOUSSETTA et al., 2015b.
22
HAMMAMI, 2005.
23
DLALA, 2011.
24
DLALA, 2011.
329
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
25
CHALINE, 1996.
26
DLALA, 2011.
27
BOUSSETTA et al., 2015a.
330
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
28
DE LA FORGE, 1894.
331
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
29
MICHON et al., 2016.
30
ABDELKAFI, 2009.
333
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
• les caves à vin — le domaine viticole de Mornag est formé de plusieurs édifices
nécessaires pour la vinification. De plan rectangulaire, munie d’une toiture de
tuiles, la cave est construite avec soin afin de l’aérée et la protégée du soleil. L’utili
sation de la pente du terrain, naturelle ou artificielle, est importante dans la tech‑
nique de construction de ce bâtiment enterré aux deux tiers afin de réguler sa
température. Cet édifice est généralement pourvu de deux niveaux accessibles
ce qui va faciliter la réception de la récolte. Les caves sont les témoins de leurs
époques, elles présentent généralement une façade très bien architecturée et
décorée où on trouve la gravure des noms des propriétaires ainsi que les dates de
leurs constructions;
• Jebel Ressass — les paysages naturels marquent et structurent le territoire de
Mornag. Les espaces naturels sont composés essentiellement de Montagnes
de lacs et de forêts. Jebel Ressass est l’avant dernier massif de la dorsale tunisienne
qui est caractérisée par un alignement de massifs jurassiques bordés sur leurs
flancs orientaux par la faille de Zaghouan;
• le produit de terroir AOC — Grand Cru Mornag — le Château Mornag est le
vin tunisien le plus connu au monde, situé dans l’Appellation d’Origine Contrôlée
Grand Cru Mornag. Vendangé manuellement, ce vin est issu d’un assemblage
Carignan, Syrah et Merlot qui ensemble expriment une belle robe au rouge
profond, brillante et légèrement tuilée. Le vin de Sidi Sâad situé dans l’Appellation
d’Origine Contrôlée Grand Cru Mornag est un assemblage harmonieux par un
équilibre entre les raisins de Cabernet sauvignon et de Syrah vendangés manuel‑
lement et vinifiés traditionnellement, avec un contrôle rigoureux des tempéra‑
tures. La bouteille du Sidi Sâad dont la forme est une amphore rappelant le passé
carthaginois, est une exclusivité des Vignerons de Carthage;
• le Festival des vignes de Mornag — le Festival des vignes de Mornag a commencé
en 2016 afin de mettre en avant les richesses de la région ainsi que les produits du
terroir, notamment les raisins et les vins. Cette manifestation est organisée par la
Jeune Chambre Économique de Mornag, en partenariat avec l’Union Tunisienne
de l’Agriculture et de la Pêche (UTAP), la Municipalité de Mornag, la D irection
Régionale de la Culture de Ben Arous ainsi que la Direction Régionale de Déve
loppement Agricole de Ben Arous. Cette fête qui honore les vignerons et les habi
tants de cette région agricole était l’occasion de déguster les différentes sortes
de raisins et leurs dérivés ainsi que d’autres produits de la région et de profiter
des diverses animations proposées par les organisateurs. D’autres objectifs sont
assignés à ce festival, à savoir; la mise en valeur du patrimoine agricole et touristique
de Mornag, la création d’un espace commercial où se réunissent les agriculteurs,
les professionnels de l’agriculture, de l’agroalimentaire et du machinisme agricole,
afin de promouvoir leurs activités respectives et de partager l’information sur la
334
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
4. DISCUSSIONS
La valorisation des paysages patrimoniaux significatifs et/ou ordinaires, a augmenté
grâce à des initiatives top down souvent jouant un rôle moteur dans les dynamiques terri
toriales et économiques des terroirs, mais le rôle de l’État, reste toujours prédominant.
L’inventaire participatif des paysages patrimoniaux a tendance à être le principal moyen
d’identification, de caractérisation et d’évaluation des paysages patrimoniaux et de leurs
produits susceptibles de faire l’objet d’une indication géographique et d’une valorisation
commerciale, mais aussi paysagère. Cette initiative de protection et de valorisation des
paysages patrimoniaux par les collectivités territoriales (festival de vigne, itinéraire
des vins, stands de vente, stands de dégustation, le marché de produits de terroir)
fait l’objet d’une nouvelle stratégie de développement local des territoires défavorisés,
notamment de l’intérieur du pays. Le discours démontre combien cette stratégie est là
pour réaffirmer le rôle primordial du caractère de paysage périurbain et rural comme
alternative à la métropole en termes d’équipement culturels et patrimoniaux. Le renver
sement démographique de la ville de Tunis a été nourri par des produits de terroir de
voisinage qui a pris des nouvelles formes qui cherchent à se positionner et à montrer
qu’elles offrent une qualité de vie meilleure que le centre-ville dont la patrimonialisation
est une partie prenante dans ses stratégies urbaines et de développement local. Certes,
que les vignes et les vins de la plaine de Mornag constituent des produits de terroir de
renommée national et internationale, dont leurs paysages sont en processus de patrimo-
nialisation et contribuent à affirmer le caractère de la plaine, mais à côté de ces produits,
s’ajoute l’oléiculture, la polyculture fruitière et maraichère, les grandes cultures et l’élevage
335
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Dynamique
d’appropriation
Intensité Densité
patrimoniale patrimoniale
CONCLUSION
L’exemple développé de la plaine de Mornag illustre que la notion de patrimoniali
sation est le processus d’attribution de valeurs et d’appropriation d’un bien matériel
ou immatériel par la communauté locale. Le festival des vignes, l’itinéraire Iter Vitis
Magon, le marché des produits de terroir, la gastronomie…, sont des initiatives inno‑
vantes et très intéressantes pour les paysages patrimoniaux impliquant la population et
les acteurs locaux par opposition aux déclarations institutionnelles de biens culturels
par le gouvernement. Le processus de patrimonialisation peut contribuer à qualifier des
territoires et des paysages en devenir en s’appuyant sur leurs caractères et leurs vecteurs
336
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE
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338
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES
INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO
DO ENOTURISMO: A PERCEÇÃO DOS
GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO
DOURO VINHATEIRO*
TISSIANE SCHMIDT DOLCI**
ARTUR FERNANDO ARÊDE CORREIA CRISTÓVÃO***
MARCELINO DE SOUZA****
Abstract: This paper aims to analyze the institutional incentives and constraints to the development of
wine tourism in Alto Douro Wine Region (ADV), from the perception of tourism managers of eight farms
in the region. To this end, an exploratory and descriptive research was carried out, which included biblio-
graphic research, field observation and application of interview scripts to the tourism managers of the
respective farms. It was concluded that, in the perception of these managers, the listing of the ADV as a
UNESCO heritage site acted synergistically with the incentive policies for tourism in rural areas in Portugal,
with the mobilization of private and public resources in the qualification of tourism infrastructure,
being an important institution to encourage wine tourism. The main institutional constraints are related
to the lack of an efficient policy to prevent the emigration of young people and difficulties in collective
action for the implementation of wine tourism routes.
Keywords: institutions; tourism; heritage; vineyards.
* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence aos autores deste texto.
** Professora da Área Académica de Administração, Turismo e Economia, Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) — Campus Porto Alegre (Brasil).
*** Professor catedrático aposentado do Departamento de Economia, Sociologia e Gestão da Escola de Ciências Humanas
e Sociais da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro).
**** Doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Professor titular do Departa‑
mento de Economia e Relações Internacionais e dos Programas de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural e de
Agronegócio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.
339
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
INTRODUÇÃO
É recorrente, na literatura, a ligação do enoturismo à paisagem cultural, de forma que os
territórios que têm paisagens classificadas como Património Mundial da UNESCO são
propícios para o desenvolvimento do enoturismo, despertando o interesse de estudiosos
sobre a temática1.
Com base neste contexto do enoturismo e para sustentar a análise, o estudo funda‑
mentou-se na teoria institucional de Douglass North, que defende a ideia de que existe
uma matriz institucional que suporta e explica o desenvolvimento2, com a existência de
instituições que incentivam e outras que restringem a ação das organizações que atuam
nas interações socioeconómicas, de tal forma que promovem ou restringem o desem
penho económico.
A partir desta conceção, derivou-se a ideia de que existe uma matriz institucional
que suporta o desenvolvimento do enoturismo no Alto Douro Vinhateiro (ADV),
propondo-se a presente análise. Nesse sentido, este estudo propôs-se analisar os incen‑
tivos e restrições institucionais ao desenvolvimento do enoturismo no ADV a partir da
perceção de gestores de turismo de oito quintas que operam na região.
Este território é reconhecido, desde 2001, como Património Cultural da Humani‑
dade da UNESCO, tendo a sua história fortemente vinculada à vitivinicultura, possuindo
aspetos culturais e naturais que fornecem um bom pano de fundo para a implementação
de atividades enoturísticas. Para tal, foram delineados os seguintes objetivos específicos:
contextualizar, a partir de uma perspectiva histórica, o surgimento da vitivinicultura e
do enoturismo na região; caracterizar as quintas pesquisadas; e identificar as instituições
restritivas e incentivadoras do enoturismo, na perspetiva dos gestores de quintas que
operam neste território.
O presente artigo está estruturado em oito secções. A primeira secção traz esta
breve introdução, a segunda e o terceira apresentam, respetivamente, a abordagem
teórica e a metodologia utilizada na pesquisa. A quarta, a quinta e a sexta secções tratam
dos resultados da pesquisa, atendendo aos objetivos delineados. Finalmente, na última
secção do artigo são apresentadas as considerações finais.
1
SIGALA, 2019.
2
NORTH, 1990.
340
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
3
NORTH, 1990, 1991, 1994.
4
NORTH, 1990, 2005.
5
MANTZAVINOS, NORTH, SHARIG, 2004; NORTH, 2005.
6
WILLIAMSON, 2012.
7
NORTH, 1990.
8
AZEVEDO, 2000; BUENO, 2004.
9
NORTH, 1990, 2005.
341
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
10
NORTH, 1991.
11
NORTH, 1991, 2001.
12
NORTH, 1990, 1991, 2005.
13
NORTH, 1990, 2005.
14
NORTH, 1990, 1991, 1994.
342
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
15
NORTH, 1994.
16
NELSON, WINTER, 2002.
17
NORTH, 2005.
18
NORTH, 2001.
19
NORTH, 1991.
20
NORTH, 2005: 21.
21
GALA, 2003.
22
DENZAU, NORTH, 1994.
23
NORTH, 2005.
343
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
1.1. Metodologia
Para alcançar os objetivos delineados para este estudo, que assumiu um caráter explo‑
ratório e descritivo, foi adotada uma abordagem qualitativa. A perspetiva teórica de
Douglass North foi norteadora para a construção da problemática, escolha metodoló
gica, interpretação e análise das informações. A partir desta abordagem, evidenciou-se a
necessidade de compreender a história precedente ao surgimento do enoturismo.
Desse modo, realizou-se investigação bibliográfica sobre o desenvolvimento da
vitivinicultura e do enoturismo na região, observação de campo e entrevistas semiestru‑
turadas realizadas aos gestores de oito quintas situadas na região do Alto Douro Vinha‑
teiro, no período compreendido entre fevereiro e março de 2020, contemplando ainda
a aplicação de questionários com utilização de escalas Likert. O roteiro das entrevistas
abrangeu os eixos e variáveis apresentados na Tabela 1.
Os dados obtidos nas entrevistas foram organizados com o auxílio dos softwares
NVivo12 e Excel para posterior análise, juntamente com as observações de campo.
Os dados obtidos foram codificados em nós primários e secundários, correspondentes
aos eixos e variáveis, respetivamente.
A escolha das oito quintas ocorreu através da definição de uma amostra inten
cional, não probabilística, levando em conta o conhecimento e a experiência de um dos
autores, melhor conhecedor da região e das empresas ligadas ao setor.
344
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Instituições Instituições informais (crenças sobre competição, cooperação, história e cultura do vinho,
trabalho familiar)
Instituições formais (leis, programas, projetos, linhas de incentivo financeiro)
345
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Isto posto, destaca-se que a RDD é a mais antiga região do mundo com regula‑
mentação e delimitação da produção vitivinícola. A primeira demarcação da RDD data
de 175625 e já sofreu várias alterações, datando de 1921 a última mudança significa
tiva26. Parte do território da RDD, o Alto Douro Vinhateiro (ADV), é reconhecido pela
UNESCO, desde 2001, como Património Cultural da Humanidade, tendo a sua história
fortemente vinculada à vitivinicultura e constituindo-se na porção mais representativa
e preservada da RDD27.
A vinha e a produção do vinho nesse território têm origem em tempos longínquos,
que frequentemente remetem à ocupação romana28. Registos documentais da época
medieval revelam que, desde o século XII, havia uma produção vitícola intensa que foi
expandida ao longo dos séculos XIII e XIV. Essa intensificação da produção e melhoria
da qualidade das vinhas vinculam-se à fixação de mosteiros da ordem monástica de
Cister, que investiram em grandes explorações vitivinícolas na região29.
Os negócios relacionados com a exportação de vinhos foram crescendo ao longo
do século XVII, atraindo parceiros de outros países, predominantemente os ingleses30.
É nesse período que se tem a primeira referência ao vinho do Porto para indicar os vinhos
produzidos na região do Douro31. Essa época é marcada por divergências políticas entre
a Inglaterra e a França, que culminaram com a assinatura do Tratado de M ethuen,
entre Portugal e Inglaterra, em 1703 . A partir daí, o vinho do Porto assumiu um papel
32
25
PEREIRA, 2006.
26
SOUSA, 2007.
27
TELES, SOARES, 2019.
28
PEREIRA, BARROS, 2016.
29
PEREIRA, 2006; TELES, 2018.
30
PEREIRA, BARROS, 2016.
31
TELES, 2018.
32
PEREIRA, 2006; TELES, 2018; SOUSA, 2007.
33
AGUIAR, 2002; SOUSA, 2007.
34
PEREIRA, 2006.
35
SEQUEIRA, 2013.
346
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
orientando as ações das organizações. No decorrer das primeiras décadas do século XX,
continuaram os esforços para regulamentação, fiscalização e certificação dos vinhos,
com a criação de várias organizações, entre as quais se destacam a Casa do Douro e o
Instituto do Vinho do Porto36.
No início do século XXI, algumas características do setor vitivinícola do Douro
são: expansão da área de vinhedos; incremento da produção de vinhos, com crescimento
das exportações e dos preços; melhoria da qualidade dos vinhos; reforço da reputação
de qualidade dos vinhos; reestruturação do modelo institucional de regulamentação da
RDD, com o objetivo de regular e controlar a produção e comercialização dos vinhos
com Denominação de Origem37; criação do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto
(IVDP), que, desde então, atua como órgão regulador das Indicações Geográficas
Douro e Porto38; patrimonialização do Alto Douro Vinhateiro na categoria de Paisagem
Cultural Evolutiva e Viva, da classificação da UNESCO39.
Os avanços do final do século XX e início do século XXI na vitivinicultura são
acompanhados pelo início da estruturação do enoturismo nas quintas. De acordo com
Joukes e Rachão40, apesar da beleza cénica do território, devido ao relevo montanhoso
e características do rio, por muito tempo, o Douro permaneceu isolado. Aliado a isso,
a falta de recursos financeiros e o atraso tecnológico da região foram impeditivos do
rompimento das barreiras geográficas que afastavam visitantes e turistas.
Apesar disso, existem relatos do século XIX sobre a realização de atividade de
lazer e turismo nas quintas. Tais atividades eram sobretudo realizadas por viajantes que
negociavam vinho e promovidas por proprietários das quintas, que reuniam amigos
e parentes41. A linha de comboio do Douro foi implementada na segunda metade do
século XIX, dada a necessidade de escoar a produção, de trazer produtos fitossanitários
para combater a filoxera e de atender a procura dos grupos exportadores de vinho que
se estabeleceram na região e propulsionaram tal implementação42.
Conforme Joukes e Rachão43, em 1936, realizou-se o I Congresso Nacional de T
urismo
em Portugal, evento em que foram auscultadas as partes interessadas em iniciar um
planeamento do turismo no país. No entanto, estas autoras destacam que não há q ualquer
menção ao Douro como atrativo a ser alvo de planeamento do ponto de vista turístico.
As grandes mudanças para oferta turística têm início na década de 1980, com a
melhoria dos acessos à região e a adesão de Portugal à CEE. Em 1985, abriu-se a última
36
PEREIRA, 2006.
37
PEREIRA, 2006.
38
BRITO, 2006.
39
TELES, 2018.
40
JOUKES, RACHÃO, 2019c.
41
JOUKES, RACHÃO, 2019b.
42
MESQUITA, PINA, 2003: 400 apud BENTO, coord., 2019: 63.
43
JOUKES, RACHÃO, 2019b.
347
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
eclusa do rio Douro, que possibilitou a navegabilidade desde a sua foz até a fronteira,
desvelando os caminhos para o turismo de cruzeiros. É importante referir que foi através
do rio Douro que, em tempos já longínquos, se fez o escoamento da produção vitivi‑
nícola para a cidade do Porto, criando reputação aos vinhos produzidos nesse terri
tório44. Atualmente, é no rio que acontece grande parte do turismo, com os cruzeiros que
partem da cidade do Porto trazendo visitantes das mais variadas nacionalidades para o
interior do norte de Portugal45 e fazendo com que o turismo de cruzeiros seja um dos
principais subsetores na região46.
A adesão de Portugal à CEE, em 1986, é um marco institucional importante na
análise da expansão e organização do enoturismo na região do Douro. A partir da e ntrada
de Portugal nas Comunidades, tem-se acesso a apoios económicos, materializados nas
políticas de desenvolvimento territorial e nos incentivos financeiros, com a implemen
tação de programas voltados para a dinamização da economia e do turismo47. Em 1986,
ocorre ainda a promulgação do primeiro instrumento normativo planificador do turismo
em Portugal, o Plano Nacional de Turismo 1986-199248.
No início da década de 1990, no âmbito da CEE, criou-se o Programa Ligação
entre Ações de Desenvolvimento da Economia Rural (LEADER), com fundos comuni
tários de apoio financeiro, com o objetivo de incentivar o desenvolvimento de comu‑
nidades rurais, dinamizando a economia49. Paralelamente, ao longo dos anos de 1990,
tem-se o primeiro quadro de referências do papel da União Europeia (UE) no turismo50
com o lançamento do Livro Verde da Comissão Europeia, O Papel da União em Matéria
de Turismo51.
Portanto, é nesse período, em consonância com as políticas vigentes de desenvolvi‑
mento rural da UE, que são criadas várias Associações de Desenvolvimento Local, entre
as quais a Associação Douro Superior, a Associação Douro Histórico e a Associação
Beira Douro. Essas associações, dentro das suas áreas de intervenção, vêm apoiando
projetos de fortalecimento do turismo e de dinamização das áreas rurais52. Na década
de 1980, essa estruturação tem início por meio dos projetos de Turismo de Habitação
em Espaço Rural (TER), o que viria converter-se em enoturismo na década de 1990,
com degustações e visitas às adegas53 e a criação da Rota do Vinho do Porto54.
44
PEREIRA, 2006.
45
JOUKES, RACHÃO, 2019b.
46
BERNARDO, coord., 2018.
47
LEAL, 2001.
48
MILHEIRO, SANTOS, 2005.
49
COMUNIDADE EUROPEIA, 2006.
50
SANTOS, 2014.
51
MILHEIRO, SANTOS, 2005: 123.
52
MANFIO, MEDEIROS, CRISTOVÃO, 2020.
53
SANTANA, 2019b.
54
CRISTÓVÃO, 2011.
348
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
55
BERNARDO, coord., 2018.
56
BENTO, coord., 2019.
57
BERNARDO, coord., 2018.
58
BENTO, coord., 2019: 47.
59
JOUKES, RACHÃO, 2019a.
60
SANTANA, 2019b.
61
TELES, 2018.
62
SANTANA, 2019a.
63
AGUIAR, 2002; TELES, 2018.
64
CRISTÓVÃO, 2011.
349
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
350
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
351
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Quinta 1 Turismo rural com Provas de vinhos com visita. Sobrevivência. Necessidade.
oferta de quartos, Gastronomia com agendamento. Não sobrevivem somente com
pequeno-almoço. Os quartos estão desativados devido o vinho.
às adequações para obra de
ampliação.
Quinta 2 Turismo rural com Hospedagem com pequeno-almoço. Estratégia para pagar as contas
oferta de quartos Provas de vinhos, visita workshops de da restauração da quinta.
e pequeno- vinhos e cozinha portuguesa. Passeios Somente com o vinho não
almoço. e disponibilização de bicicletas, sobrevivem.
piscina. Colheita e pisa na vindima.
Quinta 3 Turismo rural com Hospedagem em treze quartos com Promover imagem e marketing
cinco quartos na oferta de pequeno-almoço, serviço de para vender os vinhos. Levar
casa, pequeno- spa, piscina, disponibilização de a marca ao conhecimento
-almoço e refeições bicicletas e caiaques. Restaurante com de pessoas de outros países.
caseiras sob almoço e jantar harmonizados. Visitas E, mais adiante, vender vinhos
agendamento para na adega, provas de vinho, loja de pelo canal direto.
os hóspedes. vinhos, passeios de jipe na quinta,
piquenique e experiências na
vindima.
Quinta 5 Provas de vinho Programas de provas de vinho (mais A procura. Turistas que
com curtos e mais extensos). Refeições passavam pela região e vinham,
agendamento. Loja harmonizadas com escolha de e o enólogo tinha de parar
de vinhos. ementa prévia. No verão, é possível o que estava a fazer para
usufruir atender. Foi uma ação reativa
do terraço e piscina. Tudo sob e não proativa.
agendamento.
Quinta 6 Pequena loja Loja com provas de vinhos. Visitas Alavanca e uma forma mais
de vinhos. guiadas com três programas fácil de chegar ao consumidor.
diferentes: visitas de autocarro, visitas Mostrar a singularidade dos
de jipes e visita Vintage (personalizada vinhos diante da globalização
com prova de vinhos premium). e da massificação do mercado.
352
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
65
CARLSEN, 2004.
66
MITCHEL, HALL, 2004; MITCHELL, 2006; PATEL-CAMPILLO, DELESSIO-PARSON, 2016.
353
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Outras duas quintas percebem que, nos seus casos, o crescimento do turismo na
região e o aumento da procura foram os fatores que impulsionaram o desenvolvimento
do enoturismo. A Quinta 4, apesar de citar essa motivação, foi uma das pioneiras na
oferta enoturística. Já a Quinta 5 iniciou a operação de enoturismo em 2011, quando,
de facto, existia um volume considerável de turistas circulando na região.
Observa-se que o fluxo de turistas nas quintas varia bastante. A quinta que mais
recebe turistas é a que tem uma maior diversificação da oferta de produtos e serviços
enoturísticos, incluindo hotel, restaurante aberto ao público, visitas guiadas, provas de
vinho, eventos e uma diversidade de experiências turísticas. As quintas 2 e 5 recebem
um menor número de turistas contabilizados, não possuindo capacidade para ampliar
esse fluxo devido à sua atual estrutura para receção de visitantes.
Cinco das quintas pesquisadas recebem grupos de turistas de cruzeiros e de
excursões de autocarro, sendo que, em algumas delas, os grupos são divididos em
subgrupos menores, com cerca de quinzd pessoas, para que se possa realizar uma expe‑
riência satisfatória. Outras três quintas recebem apenas visitantes particulares e grupos
menores. Das oito quintas, apenas duas não têm contratos com agências e operadoras
de turismo, sendo que a Quinta 6, apesar de não ter contratos formais, faz negociações
de preço e reservas com agências e operadoras. A existência de contratos com agências e
operadoras mostra como o enoturismo está institucionalizado nessas quintas.
A institucionalização e profissionalização é notada também na contratação de
gestores específicos para tratar do enoturismo, que ocorre nas quintas 3, 4, 5, 7 e 8.
Na Quinta 6, um mesmo profissional gere a parte de vitivinicultura e a de enoturismo.
Nas quintas 1 e 2, o enoturismo e as demais atividades da propriedade rural são ainda
geridos pela família.
354
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
100
87,5%
80 75%
60
40 37,5%
25% 25%
20
12,5% 12,5% 12,5% 12,5%
0
1 2 3 4 5
Existe cooperaçãoentre
Existe cooperação entre empresas
empresas Importância dacooperação
Importância da cooperação Atua comvalores
Atua com valoresdede cooperação
cooperação e parceria
e parceria
355
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Porque a associação no Douro é muito difícil. Nós já tentamos fazer uma rota,
três ou quatro vezes, e não foi possível. Porque ninguém está de acordo. E eu, ainda há
2 anos telefonei para uma quinta vizinha. E eu perguntei o que ela fazia, quais os preços
que ela praticava, para podermos oferecer o mesmo serviço dentro do mesmo padrão de
preços. E fui corrida. Disseram que não diziam nada, e que não tinha nada que saber.
E, portanto, as relações empresariais do Douro ainda são muito complicadas68.
Não vou dizer que as rotas ou essas associações na realidade funcionem muito
bem. Portanto, não podemos esperar que uma rota nos traga clientes, todos nós temos
de fazer por isso. Nós pertencemos a uma associação. […] Eram dezasseis quintas,
que já nos recomendávamos umas às outras. […] Então, tentámos juntar todos
e trabalhar um bocadinho a promoção, criar um mapa, criar um flyer, ter alguma
coisa mais personalizada. […] Só que, na realidade, andámos um ano em reuniões,
ver o que íamos fazer e não fizemos nada. Foi perda de tempo. Porquê? Porque
são empresas. Cada uma tem a sua forma de ver. As associações nunca resultam.
67
NORTH, 2005.
68
Depoimento da entrevistada da Quinta 2, obtido a 05 de fevereiro de 2020.
69
Depoimento da entrevistada da Quinta 4, obtido a 06 de fevereiro de 2020.
356
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Estamos falando com pessoas com diferentes formas de ver e resolver. Não a credito
muito. Já estive no Alentejo, como eu disse, quatro anos. Tem rota dos vinhos do
Alentejo. Funciona um pouco melhor. Porque, como as coisas são muito distantes, eles
precisam. É que nós também precisamos. Porque não podemos ser egoístas ao ponto
de dizer que não precisamos. Aliás, eu fui uma das pioneiras a dizer isso e eu era uma
das que não precisava. Porque a quinta estava sempre cheia. […] Mas não deu em
nada. Acabou que todos se zangaram e infelizmente acabou. Mas, acho que elas d evem
existir e que haja tentativas. Mas depois, como são diferentes empresas, para dar
certo é difícil70.
70
Depoimento da entrevistada da Quinta 3, obtido a 14 de fevereiro de 2020.
71
NORTH, 1990, 2005.
72
NORTH, 1990.
73
NORTH, 1990.
74
SALVADO, 2016; SALVADO, KASTENHOLZ, 2017.
75
NORTH, 1994.
357
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Apesar da maior parte dos gestores das quintas se assumir como empresa compe
titiva, como pode ser evidenciado na Figura 2, não há uma percepção forte de que a
competição seja importante para o desenvolvimento do enoturismo. Nesse gráfico,
apenas três entrevistados enfatizaram que a região é beneficiada com a competitividade
e a ampliação da oferta, pois possibilita que o turista tenha mais opções de atividades e
permaneça por mais tempo, observando que há bastante espaço para empreender no
mercado enoturístico do Douro.
Ainda sobre as instituições informais, os entrevistados foram questionados sobre
a sua percepção em relação à valoração da história e da cultura da região e do trabalho
familiar. Verificou-se que, além de perceberem a importância da história para o enotu‑
rismo, a totalidade dos entrevistados concorda inteiramente com a afirmação de que a
história é valorizada no âmbito do enoturismo nas quintas em que atuam. Da mesma
forma, todos os entrevistados afirmaram que o trabalho familiar é importante para o
desenvolvimento do enoturismo no território, e 87,5% percebe que a quinta que repre‑
senta foi alicerçada no trabalho familiar.
100
80
60 55,56%
50%
44,44%
40 37,5%
0
1 2 3 4 5
Existe competição entre as empresas Importância da competição Esta empresa/organização busca ser competitiva
358
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Eu acho que ajudou como uma alavanca. Como arranque, como início. Que era
necessário fazer algumas alterações, pelo facto de termos ganho, ou termos sido consi
derados. Uma delas foi realmente a mais importante, os acessos. Depois, foi abertura
ao financiamento. Alguém olhar para esta região e achar. Se alguém viu que tem
potencial, então nós temos de ajudar. Estava tudo centralizado na capital ou no
litoral. E o interior ficava muito esquecido. O facto de termos sido considerados veio
ajudar a olharem para o Douro. Dar atenção ao Douro. E isso fez com que realmente
muitas das coisas despontassem77.
359
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
90
80
70
62,50%
60
50
40 37,50%
30
20
10
0
1 2 3 4 5
360
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Os entrevistados relatam que, nos últimos vinte anos, tem ocorrido muito investi
mento privado em projetos de enoturismo na região, com melhoria das quintas,
qualificação das adegas e salas de provas, construção de alojamento e de pequenos
hotéis. Quando questionados sobre os valores e crenças que orientam os empresários
no desenvolvimento do enoturismo, cinco entrevistados percebem que existe um tecido
empreendedor proativo e dinâmico neste território.
Além dos investimentos próprios, algumas quintas receberam recursos financeiros
de incentivo, como pode ser evidenciado na Tabela 5, demonstrando que houve uma
conjunção de investimentos privados e públicos.
Quinta 2 Sim Primeiramente, recebemos um apoio, que era de 30%, mas, depois, houve
apoios melhores, programas que ofereciam 50% dos fundos e financiavam os
outros 50%. Houve outros apoios dos quais eu não beneficiei, mas sei que houve
imensos apoios ao longo desses anos todos. Eram fundos europeus e depois
tinha uma participação portuguesa também
Quinta 3 Sim Apoio com subsídios do Turismo de Portugal e fundos da Comunidade Europeia
Quinta 5 Não _
Quinta 6 Não _
Quinta 7 Não _
Quinta 8 Sim Fundos da Comunidade Europeia. O recurso foi para outro empreendimento,
para um grupo e não especificamente para a quinta
79
NORTH, 1990.
361
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
Não há uma rota, por exemplo, específica das quintas, nós vamos para outras
regiões do mundo, Napa Valley, Rioja, as coisas estão muito mais bem organizadas e
aqui não existe essa organização80.
Nós não sabemos vender como um todo. Nós tivemos de fazer publicidade da
quinta, o hotel X faz publicidade do hotel X, e não é tão fácil como às vezes viajar
para um outro destino qualquer, em que nós sabemos, que vamos, «eu vou marcar a
viagem e sei que quero ir ali» e está tudo de forma clara. Um turista inglês ou ameri
cano, que procura no Google, que nós começamos por aí, vamos ser honestos, e que
coloque wine tourism, ele vai sentir-se completamente perdido. Já começa a haver
um site ou outro que funcionam como motores de reserva, não de informação, mas
de r eserva, em que têm o país dividido por regiões, que sugerem não só as atividades,
mas os hotéis e alojamentos para dormir. Mas acho que ainda falta muita dessa infor
mação sair por exemplo do Turismo de Portugal ou do turismo do Porto e Norte de
Portugal. Esses departamentos que haviam de trabalhar a região como um todo lá fora,
no mercado nacional, acho que só orienta um pouco melhor. Mas lá fora sobretudo81.
362
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Mão de obra. Falta de mão de obra. Falta de formação da mão de obra. Portanto,
falta de mão de obra qualificada. Porquê? Pensando que as pessoas a inda preferem o
litoral. Ainda preferem o litoral e as grandes cidades. Portanto, tem de haver atrativos
do governo para colocar pessoas no interior. Portanto, no interior tem de haver,
pelo menos, melhores condições para as pessoas que vêm. Baixa de impostos. As pessoas
têm de pagar menos impostos no interior, porque é mais difícil viver aqui. Não é?
Portanto, esperamos que no futuro isso possa acontecer. Porque, mesmo assim, a região
83
PORTUGAL. Ministério da Economia e da Inovação, 2007: 6.
84
PORTUGAL. Ministério da Economia, 2015.
85
PORTUGAL. Ministério da Economia, 2017.
86
PORTUGAL. Ministério da Economía, 2017: 46-48.
363
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
O maior medo, hoje, para nós, é a cultura do povo daqui que trabalhava 90%
para a vinha, que se vai acabando. Jovens não vão querer trabalhar na vinha. Esse é o
nosso maior medo. É o que mais assusta para nós, produtores de vinhos, para o futuro.
Porque a maioria dos nossos colaboradores da vinha tem uma idade média entre 50 e
60 anos. E todos eles eram filhos de antigos funcionários daqui. Todos eles. Se formos
ver, todos aqueles funcionários têm a mesma origem familiar. Porque são primos e
tios, irmãos. E todos vêm de gerações anteriores, estão há gerações na mesma empresa.
Agora, a nova geração, já não88.
Mão de obra qualificada. Essa é uma das dificuldades no Douro. Acho que não
só no turismo, mas muito no turismo, a mão de obra. Estamos a pagar caro agora,
o facto de sermos do interior, e grande parte da juventude quer fugir para as zonas
litorais e grandes cidades e acabamos por não ter a mão de obra que necessitamos.
Está melhor, a UTAD tem ajudado muito nisso, porque acaba retendo ou até atraindo
jovens que não são daqui. A escola de turismo de Lamego também e, enquanto m
iúdos,
enquanto crianças, percebem que não têm de fugir daqui ou emigrar .
89
87
Depoimento da entrevistada da Quinta 2, obtido a 05 de fevereiro de 2020.
88
Depoimento da entrevistada da Quinta 3, obtido a 14 de fevereiro de 2020.
89
Depoimento da entrevistada da Quinta 5, obtido a 11 de março de 2020.
90
Depoimento da entrevistada da Quinta 7, obtido a 11 de fevereiro de 2020.
364
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, a partir das informações analisadas, conclui-se que, na perceção dos gestores
das quintas estudadas, a institucionalização do ADV como património da UNESCO,
abrangendo um quadro normativo para salvaguarda e valorização do território e da
paisagem, com mobilização de recursos financeiros, atuou incentivando o desenvolvi‑
mento do enoturismo neste território. A classificação do ADV, em sinergia com as insti‑
tuições que melhoraram os acessos à região, nos âmbitos rodoviário e fluvial, propiciou
uma conjuntura institucional, incentivadora para os investimentos privados na requali‑
ficação das quintas e na oferta enoturística.
As principais restrições institucionais estão relacionadas com a falta de uma polí‑
tica eficiente para evitar a migração dos jovens para outras regiões e países. Além disso,
a assimetria de interesses entre os proprietários das quintas de diferentes dimensões e
a path dependence dos stakeholders em trabalhar individualmente dificultam a organi
zação e a ação coletiva para a criação de rotas do vinho e outras iniciativas em coope
ração. A inexistência de uma rota enoturística institucionalizada, situada num território
cuja paisagem da vinha é classificada pela UNESCO e a denominação de origem dos
vinhos tem notoriedade mundial, impede as quintas de usufruírem dos benefícios sinér‑
gicos proporcionados por esse tipo de ação coletiva, sendo, assim, um fator restritivo ao
desenvolvimento do enoturismo.
Essa análise institucional revela que as instituições formais e informais se entre‑
laçam, delineando caminhos de desenvolvimento singulares às especificidades de cada
território, reforçando, assim, a premissa de que é preciso olhar as instituições em toda
a sua complexidade para compreender o desenvolvimento de um destino enoturístico.
91
BERNARDO, coord., 2018.
365
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES
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