Paisagens Culturais Da Vinha - Vários Autores

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 370

PAISAGENS

CULTURAIS DA VINHA
IDENTIDADES, DESAFIOS
E OPORTUNIDADES
XX ANIVERSÁRIO DA CLASSIFICAÇÃO
DO ALTO DOURO VINHATEIRO COMO
PATRIMÓNIO MUNDIAL

COORD.
GASPAR MARTINS PEREIRA
MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE
CARLA SEQUEIRA

1
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Título: Paisagens Culturais da Vinha: Identidades, Desafios e Oportunidades. XX Aniversário da Classificação


do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial
Coordenação: Gaspar Martins Pereira, Maria Otília Pereira Lage, Carla Sequeira
Design gráfico: Helena Lobo Design | www.hldesign.pt
Capa: Pormenor do cartaz do Simpósio Europeu Paisagens Culturais da Vinha: Identidades, Desafios e
Oportunidades da autoria de Marta Sofia Costa (CITCEM)

© 2023 Autores
Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória
Via Panorâmica, s/n | 4150‑564 Porto | www.citcem.org | [email protected]
Este trabalho é sujeito a double-blind peer review.
Referees: Álvaro Domingues, Amândio Barros, Artur Cristóvão, Carlota Santos, Fátima Nunes, Fernando Bianchi
de Aguiar, Gaspar Martins Pereira, Giuliana Biagioli, João Luís Sequeira, João Rebelo, Mário Barroca,
Norberta Amorim, Otília Lage, Paulino da Costa, Phillipe Baumert.
Esta é uma obra em Acesso Aberto, disponibilizada online (https://ler.letras.up.pt/site/default.
aspx?qry=id024id1865&sum=sim&n0=Edi%C3%A7%C3%B5es%20do%20CITCEM&n1=Paisagens%20
Culturais%20da%20Vinha) e licenciada segundo uma licença Creative Commons de Atribuição Sem
Derivações 4.0 Internacional (CC BY 4.0).

eISBN: 978-989-8970-51-0
DOI: https://doi.org/10.21747/978-989-8970-51-0/pai
PEREIRA, Gaspar Martins; LAGE, Maria Otília Pereira; SEQUEIRA, Carla, coord. (2023). Paisagens Culturais da
Vinha: Identidades, Desafios e Oportunidades. XX Aniversário da Classificação do Alto Douro Vinhateiro
como Património Mundial. Porto: CITCEM. 368 p.
Porto, junho de 2023 (1.ª edição)
Paginação: João Candeias

Este trabalho foi elaborado no quadro das atividades do grupo de investigação «Valores de Transação/Valores em
Transição», e é financiado por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, no âmbito
do projeto UIDB/04059/2020.

UIDB/04059/2020

2
SUMÁRIO

NOTA DE ABERTURA 5
Gaspar Martins Pereira, Maria Otília Pereira Lage, Carla Sequeira

I. A CONSTRUÇÃO DA PAISAGEM 9
A vinha, o vinho e o Douro: uma história de romanos 11
Pedro Pereira

O Douro vinhateiro para além das margens. A Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade
de Coimbra (1870-1882) 23
Ana Margarida Dias da Silva, M. Teresa Gonçalves

Inovação na vitivinicultura duriense na mudança do século XIX para o século XX — José Teixeira Rebelo
Júnior e o espumante de Lamego 47
Isilda Monteiro, Conceição Meireles Pereira

Temporalidades da paisagem vinhateira no concelho de Murça 73


Márcio Ribeiro Martins, Jorge Ricardo Pinto

II. PATRIMÓNIOS E REPRESENTAÇÕES DA PAISAGEM 93


O território da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico em finais do século XVI:
o Livro Sexto das Saudades da Terra 95
Catarina R. M. Madruga

Itinerários literários no Douro — aplicação do projeto Atlas das Paisagens Literárias de


Portugal Continental 115
Ana Lavrador

Marca de água do Douro Património Mundial: testemunhos históricos e evocações literárias


em Maria Angelina/Raul Brandão e Manuel Mendes 127
Maria Otília Pereira Lage, Carla Sequeira

«Xisto, meteorologia, Vitis vinifera, talento e mãos»: a representação da paisagem duriense em Douro:
Pizzicato e Chula, de A. M. Pires Cabral 159
Isabel Maria Fernandes Alves

Paisagem cultural e cenário museológico


171
Ivan Vaz

3
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

III. RURALIDADE E DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO-SOCIAL 189


À la conquête de l’Est: fronts pionniers et nouveaux territoires du Haut-Douro viti-vinicole 191
Philippe Baumert

Patrimoine Mondial vs. Marché: Tokaj a la croisée des chemins 215


Aline Brochot

Études d’évolutions paysagères dans le vignoble de Banyuls-sur-Mer (Pyrénées Orientales), stabilité ou


instabilité d’occupation des parcelles viticoles 229
Eric Rouvellac, Rémi Crouzevialle, Fabien Cerbelaud

«I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato»: an italian example of UNESCO
cultural landscape based on the valorisation of traditional terroirs 249
Alessandra Renzulli

A vinha na ilha de Santa Maria, Açores — recuperação e resiliência de valores paisagísticos,


socioculturais e produtivos 261
Bárbara Mesquita

IV. GESTÃO E SALVAGUARDA DA PAISAGEM CLASSIFICADA 297


O sistema de gestão e monitorização do Alto Douro Vinhateiro, Património da Humanidade —
reflexos e contributos de uma gestão adaptativa, pedagógica e proativa 299
Helena Teles

L’effet du classement UNESCO sur l’offre œnotouristique des vignobles européens 311
Sophie Lignon-Darmaillac

La patrimonialisation en faveur des paysages viticoles de la plaine de Mornag: un nouvel axe de


développement local d’un territoire a des conflits d’usage 323
Abdelkarim Hamrita, Amira Boussetta, Rafael Mata Olmo, Hichem Rejeb

Incentivos e restrições institucionais ao desenvolvimento do enoturismo: a perceção dos gestores de


oito quintas no Alto Douro Vinhateiro 339
Tissiane Schmidt Dolci, Artur Fernando Arêde Correia Cristóvão, Marcelino de Souza

4
NOTA DE ABERTURA*
GASPAR MARTINS PEREIRA**
MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE***
CARLA SEQUEIRA****

No mapa mundial das paisagens vitícolas classificadas pela UNESCO como Património
da Humanidade, o Alto Douro Vinhateiro exibe uma notável singularidade e, simulta‑
neamente, partilha potencialidades, problemas e desafios comuns com outras regiões.
Daí que, por ocasião do vigésimo aniversário da sua classificação, o CITCEM — Centro
de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, tenha decidido organizar, com a colaboração de diversas
­entidades, um Simpósio Europeu sob o tema Paisagens Culturais da Vinha: Identi­dades,
Desafios e Oportunidades, reunindo investigadores de diversas universidades portu­
guesas e estrangeiras.
Apesar das circunstâncias adversas que marcaram a organização deste ­Simpósio
Europeu, ainda no ambiente de incerteza dos tempos de pandemia, foi possível
­realizar catorze sessões temáticas e debates, que decorreram na Faculdade de Letras
da Univer­sidade do Porto e na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila
Real, em 9 e 10 de Dezembro de 2021, reunindo mais de setenta participantes, que
apresen­taram meia centena de comunicações em torno de cinco painéis temáticos:
A c­onstrução da paisagem; Ruralidade e desenvolvimento económico-social; Represen­
tações lite­rárias e artísticas; Patrimónios e desenvolvimento cultural; Gestão e salva­guarda
da paisagem classificada. Houve ainda lugar a uma sessão plenária de encerra­mento,
Alto Douro Vinhateiro Património Mundial, desafios e perspectivas para a próxima
­década, presidida por Fernando Bianchi de Aguiar (coordenador da candidatura do
Alto Douro a Património Mundial), que introduziu a temática e moderou o debate,
com intervenções de Maria Helena Teles (chefe de Estrutura Sub-regional de Vila Real da
CCDR-N/Gabinete Técnico da Missão Douro), António Marquez Filipe (presidente
da Liga dos Amigos do Douro Património Mundial — LADPM) e Ana Paula Amen­
doeira (vice-presidente do ICOMOS, Portugal), encerrando com comentários de
­Giuliana Biagioli (professora da Universidade de Pisa).

* Os autores não seguem o Acordo Ortográfico de 1990.


** Professor catedrático aposentado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Investigador do CITCEM.
*** Doutora em História Moderna e Contemporânea, Universidade do Minho. Investigadora do CITCEM.
**** Doutora em História pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto (FLUP). Investigadora contratada da
FLUP/CITCEM.

5
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Partindo do conceito largo de «paisagem cultural da vinha», enquanto c­ onstrução


histórica resultante da actividade humana e da sua relação com o meio natural, na dupla
dimensão material e imaterial, assumindo a adaptação de modos de vida e de t­ rabalho,
relações sociais e de poder, saberes e saber-fazer, crenças e tradições, a maior p ­ arte
dos autores integrou, em diferentes perspectivas, as dinâmicas evolutivas e, sobre­tudo,
a ­percepção do património como valor de memória e identidade e, também, como
­recurso para o desenvolvimento regional. No entanto, se a classificação de um patri­
mónio d ­ este tipo, representando o reconhecimento mundial de um bem raro1, ­permite
perceber potencialidades, valorizadoras de sectores económicos, a começar pelos do
­vinho e do turismo, nem sempre tais potencialidades são fruídas de forma integra­dora
e inclusiva pela maioria da população regional. Por outro lado, a classificação como
­«paisagem cultural evolutiva e viva» pressupõe uma «função social activa», «intima‑
mente associada ao modo de vida tradicional» e «exibindo, simultaneamente, significa‑
tivas evidências materiais da sua evolução ao longo do tempo», o que obriga a conjugar,
cuidadosamente, a modernização técnica e a adaptação a novos quadros de vida com a
preservação do património herdado.
Tanto o programa científico como o programa social do Simpósio, com destaque
para o dia de visita à região do Douro, propiciaram o diálogo e a partilha de conheci‑
mentos sobre projectos, experiências e desafios de diversas regiões vitícolas europeias
(e mesmo de outros continentes), numa perspectiva pluridisciplinar, tendo em conta a
formação diversificada dos participantes (desde a Arqueologia e História à Litera­tura,
Geografia, Agronomia, Economia e Gestão, Engenharia, Arquitectura, Museologia,
­entre outras), as suas origens e interesses de investigação.
Os textos reunidos neste ebook, cujos autores aceitaram o desafio da Comissão
Organizadora de transformar as suas comunicações em artigos, apesar de constituírem
cerca de metade das intervenções no Simpósio, traduzem, mesmo assim, a diversidade
de perspectivas e investigações em curso, bem como as vantagens deste tipo de inicia‑
tivas académicas, em colaboração com as instituições que têm por missão gerir o patri­
mónio, o território e os bens classificados2. Neste caso, além do CETRAD — Centro de
Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento e do Gabinete Técnico da Missão

1
Apenas catorze paisagens culturais vinhateiras foram reconhecidas pela UNESCO como Património Mundial,­
entre 1997 e 2015, todas localizadas em países europeus: Cinque Terre, Itália, 1997; Saint Émilion, França, 1999;
Vale do Loire, França, 2000; Wachau, Áustria, 2000; Fertö-Neusiedler See, Áustria/Hungria, 2001; Alto Douro Vinhateiro,
­Portugal, 2001; Tokaj, Hungria, 2002; Vale do Reno/Upper Midlle Rhine Valley, Alemanha, 2002; Val d’Orcia, Itália, 2004;
Pico, Portugal, 2004; Lavaux, Suíça/Piemonte, 2007: Langhe-Roero e Monferrato, Itália, 2014; Borgonha, França, 2015;
Champanhe, França, 2015.
2
Como aconteceu, anteriormente, nos três workshops que se realizaram em 2017, 2018 e 2019, no Porto e no Pico,
no âmbito do projecto do CITCEM — Douro e Pico: Paisagens culturais vitivinícolas históricas Património Mundial.
Estudo e valorização do património histórico e cultural —, que decorreu entre 2017 e 2021 e cuja fase final coincidiu
também com a organização deste Simpósio. As actas desses workshops estão disponíveis online em <https://douro-e
-pico-paisagens-culturais-patrimonio-mundia.mozello.com/publicacoes/>.

6
NOTA DE ABERTURA

Douro/CCDR-N, que colaboraram na organização, é-nos grato referir a adesão de um


conjunto alargado de instituições (Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto, A­ ssociação
das Empresas de Vinho do Porto, Liga dos Amigos do Douro Património Mundial,
­Comissão Nacional da UNESCO, ICOMOS — Comissão Nacional Portu­guesa e Museu
do ­Douro). O programa social teve também o apoio da Reitoria da Universidade do
­Porto, da Quinta de Ventozelo (Porto Cruz), da Quinta da Avessada, da Adega Coope‑
rativa de Favaios e do Museu do Pão e do Vinho de Favaios. Com a edição deste ebook,
o CITCEM exprime, publicamente, o seu reconhecimento a todas as pessoas e insti­
tuições que colaboraram nesta iniciativa, a começar pelos colegas que integraram a
­Comissão Organizadora, a Comissão Científica e todos os que aceitaram, generosa­
mente, ­proceder à revisão das propostas de comunicações e dos textos aqui publicados.

Porto, Setembro de 2022

7
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

8
I
A CONSTRUÇÃO
DA PAISAGEM

9
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

10
A VINHA, O VINHO E O DOURO:
UMA HISTÓRIA DE ROMANOS
PEDRO PEREIRA*

Resumo: A vinha e o vinho são sinónimos do Vale do Douro. Além de ser a principal actividade econó-
mica da região, o ciclo da vinha marca e pauta a vida dos habitantes da região. A história da vinha no
Vale do Douro começa cedo. Desde a Pré-História existem dados que apontam para, pelo menos,
a recolecção e consumo do fruto da vitis vinifera. No entanto, os primeiros dados para falarmos de uma
verdadeira produção e consumo de vinho provêm do período romano, com a instalação de explorações
agrícolas pelo Vale do Douro e a construção dos primeiros lagares. Nas últimas décadas, têm vindo a ser
intervencionadas dezenas de estruturas de produção de vinho e armazenamento na região, tal como
têm sido estudados os recipientes de armazenagem e transporte de vinho, elementos que marcam o
início efectivo da saga da vitivinicultura duriense.
Palavras­‑chave: vitivinicultura; romanização; vale do Douro.

Abstract: Wine and vineyards are today paramount to the Douro Valley. Wine is the main economic
activity in the region and its cycle marks and regulates the life of all who live in the region. The history of
wine in the Douro Valley has had an early beginning. Since pre-historical times that there is data that
indicates, at least, the recollection and consumption of the fruits of vitis vinifera. Nevertheless, the start
of a true production and consumption of wine appear to have been during the Roman period, with the
construction of farms and the first wine presses. For the last few decades, several wine production and
storage areas have been excavated in the region and storage and transport vessels have been studied,
elements that effectively mark the beginning of the Douro wine saga.
Keywords: wine production; romanisation; Douro valley.

1. UMA BREVE HISTÓRIA DA ARQUEOLOGIA DO VINHO


CLÁSSICO NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Ao longo dos séculos, são vários os autores que referem que a introdução da vinha e do
vinho no território duriense seria uma inovação romana. No entanto, as primeiras inter‑
venções documentadas sobre este tema partiram da mão de Ricardo Severo, ­arquitecto de
profissão, que, com a sua primeira escavação no castro de Vilarinho de Cotas, na Quinta
do Noval, encontra um dolium e um espaço revestido a opus e tegula. Pouco sabemos
­desta intervenção, além da singela publicação1, muito circunscrita no espaço. No ­entanto,
se compararmos a estrutura com a de outras conhecidas, como é o caso da base de
­lagareta de Vale do Mouro (Mêda), poderia Severo ter estado perante uma base de laga­
reta, entretanto reutilizada? A verdade é que esta questão dificilmente terá resposta.
Paralelamente, este estudo, a par e passo com outros, como o da descoberta do s­ítio

* Arqueólogo. Doutor em História, Arqueologia e Línguas Antigas pela Universidade Lumière — Lyon II, França.
Investigador Integrado do CITCEM. O autor não segue o Acordo Ortográfico de 1990.
1
SEVERO, 1905-1908.

11
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

a­rqueológico da Quinta da Ribeira, em Tralhariz, Carrazeda de Ansiães2, dará os


­primeiros passos de intervenções científicas sobre o período romano no território que
hoje conhecemos como Alto Douro Vinhateiro.
Em 1946, Fernando Russell Cortez inicia os seus trabalhos como bolseiro do Insti­
tuto do Vinho do Porto, com o objectivo de dar a conhecer a história do Douro antes da
demarcação, sobretudo a história antiga deste território. A primeira carta em registo do
investigador para o director do instituto traça já os supostos percursos das vias ­romanas
em torno da cidade do Peso da Régua e, nesse mesmo ano, decide empreender uma
intervenção num sítio onde, em 1908, Carlos Teixeira já havia dado notícia da ­existência
de uma presença romana com um potencial interessante3, o Alto da Fonte do Milho,
em Canelas.
A intervenção no Alto da Fonte do Milho revela, durante as primeiras campanhas
da década de 1940 do século XX, uma série de estruturas, com especial relevo para um
lagar, que Cortez interpreta como sendo um lagar de vinho4. O sítio será classificado

Fig. 1. Planta do Alto da Fonte do Milho


Fonte: CORTEZ, 1951

2
SEVERO, 1903.
3
TEIXEIRA, 1939.
4
CORTEZ, 1951.

12
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS

como ­monumento nacional em 1961 e, em 2010, será reintervencionado pela D ­ irecção


Regional da Cultura do Norte, com uma equipa coordenada por Javier Larrazabal.
Esta última intervenção permitirá a identificação do resto da cella vinaria, nomeada‑
mente de um conjunto de seis dolia enterrados, onde o vinho seria estagiado, e que
­Cortez já havia recolhido em grande quantidade durante as suas intervenções5.
Os lagares escavados na rocha, conhecidos um pouco por todo o Alto Douro
Vinha­teiro, são um dos elementos mais paradigmáticos ligados à história do vinho
­neste terri­tório. Vários investigadores dedicaram-se a este tema complexo, com especial
­relevo para os trabalhos de António de Sá Coixão, sobretudo nos territórios da Mêda
e Vila Nova de Foz Côa6, e das equipas do GEHVID — Grupo de Estudos de História
da Viticultura Duriense e do Vinho do Porto, principalmente sob a direcção de Carlos
­Brochado de ­Almeida7, entre a década de 1980 e os inícios de 2000.
O tema dos lagares rupestres tem vindo a obter maior visibilidade nas últimas
­décadas. Estruturas construídas directamente em afloramentos rochosos, os lagares
­rupes­tres a­ doptam diversas morfologias, normalmente englobando, pelo menos, uma area
de prensagem e stipites, estruturas negativas para a implantação de uma prensa. ­Muitos
­lagares deste tipo possuem ainda um lacus, ou área de recepção de mosto, ou ­dispõem de
um espaço para a colocação de um recipiente amovível para recolher o líquido.

Fig. 2. Reconstituição de lagar rupestre. Fonte: infografia de Pedro Pereira

5
PEREIRA, 2012.
6
COIXÃO, 2002, 2017.
7
ALMEIDA, 1999, 2006.

13
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Existem, todavia, duas questões essenciais ligadas ao estudo deste tipo de estru‑
turas cuja resposta é tanto ilusória como variável. A primeira tem que ver com a sua
crono­logia. Embora sejam conhecidos lagares escavados na rocha de período romano,
uma vez que são identificáveis materiais deste período nas zonas limítrofes e, em alguns
casos, os lagares encontram-se enquadrados em sítios arqueológicos mais amplos que
permitem datar, pelo menos, o primeiro momento de construção, como sucede com
Rumansil I ou a lagareta de Vale do Mouro8, a maior parte das estruturas encontra-se
em zonas isoladas e sem elementos que permitam a sua caracterização. Paralelamente,
muitos destes lagares têm uma cronologia utilitária extremamente ampla: há notícias de
lagares escavados na rocha utilizados no século XX e cuja construção é imemorial.
A existência de material, por exemplo, do século XVI, associado a um lagar esca‑
vado na rocha poderá apenas significar que este lagar esteve funcional nesse momento,
embora possa ser anterior e com continuada utilização posteriormente.
A segunda grande questão ligada ao estudo dos lagares rupestres prende-se com
a sua localização. Na maioria dos casos, os lagares rupestres encontram-se em zonas
­isoladas, sem outras estruturas associadas nem áreas de armazenamento e estágio.
­Existem várias teorias para tentar explicar o porquê desta situação: para facilitar a
­produção directa e apenas transportar o mosto ou evitar pagamentos de impostos ou
dízimas são duas das explicações mais citadas9. Porém, é necessário analisar caso a caso
e, muitas vezes, torna-se extremamente complexo tentar explicar a realidade de cada
uma das ­estruturas produtivas.
No Alto Douro Vinhateiro, os lagares escavados na rocha são um tema de interpre‑
tação difícil. Sabemos também que, no entanto, alguns, ainda que não todos, terão sido
construídos no período clássico.

2. AS EXPLORAÇÕES AGRÍCOLAS CLÁSSICAS COM


PRODUÇÃO VITIVINÍCOLA NO ALTO DOURO VINHATEIRO
Integrado nos projectos apoiados pelo GEHVID, a intervenção no sítio de Olival dos
­Telhões, Almendra, Vila Nova de Foz Côa, permitiu a identificação de uma exploração
agrícola, potencialmente de grandes dimensões.
No decurso do projecto coordenado por Susana Cosme, identificou-se um lagar,
com um calcatorium e dois tanques, e, embora já não se encontrasse no local original,
foi ainda descoberta a área de implantação do peso do lagar.
O sítio do Prazo, em Freixo de Numão, foi intervencionado por António de Sá
­Coixão e sua equipa durante as décadas de 1980 e 1990. Com uma diacronia de o
­ cupação
humana extremamente longa, desde a Pré-História Recente até à Alta Idade Média,

8
PEREIRA, 2017.
9
PEÑA CERVANTES, 2019.

14
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS

o sítio foi utilizado enquanto exploração agrícola entre, pelo menos, os séculos II e IV
da nossa era.
A ocupação romana do Prazo compreende uma série de estruturas, entre as quais
um edifício sub-rectangular, com um conjunto de três tanques e um pequeno pavi­mento
em opus signinum num extremo, quatro colunatas rectangulares com espaçamentos
regu­lares e, finalmente, uma entrada. Este edifício, a cella vinaria do Prazo, foi ocupado
durante a Alta Idade Média10, sofrendo algumas alterações. No entanto, os elementos
cruciais para a produção de vinho conservaram-se. O armazenamento e o envelheci‑
mento do vinho seriam, certamente, realizados em cupae ou barris, tal como sucede
noutros sítios com morfologias similares, como Torre de Palma, Monforte11.

Fig. 3. Planta do Prazo


Fonte: infografia de António de Sá Coixão

Em 2004, realizou-se uma pequena intervenção na área imediatamente a norte da


cella vinaria, onde foi identificada uma série de estruturas rectangulares, em negativo,
no solo. Estas estruturas poderão ter sido abertas para a plantação de vides, sendo um
dos ­raros exemplares em território português em que este tipo de estrutura clássica
se conservou.

10
COIXÃO, 1995.
11
PEREIRA, 2017.

15
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Na orla do território do Prazo, encontramos o sítio de Rumansil I. Localizado sobre


o vale da ribeira de Murça, o sítio de Rumansil aparenta ter feito parte de um aglome­
rado de sítios, dos quais o Prazo seria certamente o local central ou a villa12.

Fig. 4. Rumansil I. Planta do sítio. Fonte: SILVINO et al., 2021

Intervencionado por António de Sá Coixão e, mais tarde, por Tony Silvino, o ­sítio de
Rumansil I divide-se em três conjuntos de edifícios, cercados por um pequeno muro em
pedra. O primeiro, de planta quadrangular e duas divisões internas, possui um ­pequeno
espaço de forja e terá certamente servido de local de habitação. Imediatamente a este,
encontram-se duas estruturas de planta circular, de dimensões distintas. Estas duas estru­
turas são fornos cerâmicos, onde, no de menor dimensão, seria produzida cerâmica uti­
li­­­tária e de mesa e, no de maiores dimensões, dolia, talhas para, pelo ­menos, serem utili­
zadas como recipientes para vinho13. Finalmente, a norte, desenvolve-se a maior estrutura
do conjunto, sub-rectangular, construída em torno de um aglomerado rochoso. O aglo‑
merado foi escavado de forma a receber os vários tanques que compunham o lagar e a
area de prensagem, enquanto as duas divisões imediatamente mais próximas da estrutura

12
SILVINO, COIXÃO, PEREIRA, 2021.
13
SILVINO, COIXÃO, MAZZA, 2003; SILVINO, CAIXÃO, PEREIRA, 2021.

16
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS

terão sido utilizadas como cave. As outras duas divisões são de natureza incerta, embora
Plínio aconselhe que um trabalhador viva próximo da cella vinaria de modo a poder
­controlar as fermentações14. Poderão também ter tido outras funções, como suporte para
os trabalhos de olaria ou mesmo o armazenamento de peças terminadas15.

Fig. 5. Vale do Mouro.


Planta do sítio.
Fonte: infografia de
Damien Tourgon

14
PEREIRA, 2017.
15
SILVINO, COIXÃO, PEREIRA, 2020.

17
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

O sítio de Vale do Mouro, na Coriscada, Mêda, é talvez o mais paradigmático para


o estudo da exploração rural romana no Alto Douro. Apesar de já não se encontrar na
área demarcada, insere-se plenamente no mesmo tipo de paisagem do Douro Superior.
Localizado num pequeno vale sobre o rio Massueime, Vale do Mouro foi inter­ven­
cionado por uma equipa coordenada por António de Sá Coixão e Tony Silvino. E ­ mbora o
sítio tenha uma longa ocupação e sofrido extensas alterações arquitectónicas, entre o final
do século I e o século IV da nossa era, é notória a sua evolução de exploração agrícola de
tipo villa, de villa linear, o esquema mais simples deste tipo de estrutura, até villa de peris­tilo,
seguramente entre o final do século II e inícios do III. É neste momento que se inicia um
processo de embelezamento e ostentação arquitectónica da villa, em que são ­construídos
jardins e colocados mosaicos, como é o caso da única repre­sentação de Baco no norte de
Portugal16. É também deste momento que datamos a construção da cella vinaria.
A cella vinaria de Vale do Mouro é constituída por um contrapeso, arbol, zona de
entravejamento da vara e area, a norte, um calcatorium, um lacus musti e, final­mente,
um lacus. O restante edifício é composto por um grande espaço aberto, no qual se
identi­ficaram negativos de estruturas em madeira e colunatas rectangulares em granito.
Estes elementos, em paralelo com a configuração rectangular do espaço e a ausência
quase total de dolia, levam-nos a crer estar perante uma cella vinaria similar à do sítio do
Prazo e onde, certamente, terão sido utilizadas cupae para o estágio do vinho.
Finalmente, na zona do peristilo da pars urbana, identificou-se uma sala, com
o solo coberto com opus signinum e três concavidades preparadas no solo. Durante a
inter­venção, foi recolhido um dolium quase completo, cujo fundo aparenta ter a m ­ esma
dimensão destas concavidades. Poderia esta sala ser uma degustatio, uma sala de p ­ rovas
para os negotiatores e compradores? Esta questão já foi levantada anteriormente17 e,
­embora não sejam conhecidos paralelos deste tipo de estrutura no território peninsular,
continua a ser uma hipótese aliciante.
O sítio de Trás do Castelo, em Pegarinhos, Alijó, foi intervencionado a partir de
2012, num projecto de investigação ainda em curso. Localizado na vertente este do
­Castro de Vale de Mir, o sítio insere-se no extremo do planalto de Alijó.
A intervenção de Trás do Castelo revelou uma série de estruturas r­elacionada
com a área produtiva de uma exploração agrícola, uma pars rustica. Entre as várias
­produções identificadas descobriu-se, em 2016, um pequeno lagar de vinho. A estru­
tura, extremamente simples, compreende uma area de prensagem e um lacus, não tendo
sido ­possível discernir o tipo exacto de prensa utilizado. Aquando da escavação da area,­
muito dani­ficada com um nível de demolição, foi possível identificar um numisma
romano, em ­quase flor de cunho, que aparenta ter um carácter de deposição ­fundacional,

16
LÉGIER-NICOLLE, 2021.
17
PEREIRA, 2018.

18
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS

um ­denário de prata, cunhado em Roma, em 84 da nossa era, durante o reinado de


­Domi­ciano18. Este elemento, tal como outros identificados ao longo das várias campanhas
efec­tuadas, p ­ ermite atribuir uma cronologia de ocupação inicial do sítio de Trás do Castelo
que r­ emonta ao final do século I d. C., sendo esta a unidade de produção de vinho mais
antiga identificada na área do Alto Douro Vinhateiro. Foram também reali­zadas análises
analíticas às argamassas do lagar, que permitiram identificar a presença de uvas tintas.
Finalmente, na área a norte, identificou-se a cave, o resto da cella vinaria, onde o
vinho seria estagiado em dolia, de uma forma similar ao que sucedia em Rumansil I19.
O tema do vinho e da vinha na Antiguidade, sobretudo num território como o Alto
Douro Vinhateiro, levanta muitas questões. Uma das principais tem que ver com o objec­tivo
da produção nesta zona: o vinho seria produzido para consumo local ou para uma ­escala
regional, ou, ainda, seria exportado? Para tentar compreender esta questão, e na ­ausência
de documentos escritos, devemos centrar-nos no tema dos recipientes de ­transporte.
O tipo de peça que associamos mais frequentemente ao transporte de vinho
no mundo clássico é a ânfora. Sobejamente estudada, esta peça cerâmica conta com
­centenas de variantes e dezenas de zonas produtoras, por todo o mundo mediterrâneo.
No ­entanto, tal como observámos anteriormente20, a ânfora vinária entra em declínio
nos centros de consumo a partir do final do século II, sobretudo notório nos mercados
da Península Ibérica. Este indicador permite a ilação de que, nesse momento, a ­produção
local assegurava um abastecimento dos mercados regionais sem ser necessária a impor‑
tação de vinho em grandes quantidades, como sucedia anteriormente.
Os recipientes utilizados nas explorações rurais do Douro podem dar-nos a­ lgumas
pistas sobre a forma de transportar o vinho. Como observámos anteriormente, os dolia
são o único tipo de peça visível no registo arqueológico em quantidades e­levadas.
No ­entanto, o estudo destes elementos revela que a sua capacidade média, cerca de cem
­litros21, não permitiria um transporte simples, com o risco adicional dos grandes reci­
pientes racharem durante as viagens. Ao mesmo tempo, embora as condições, na m ­ aioria
dos sítios arqueológicos, não permitam uma fácil conservação, sabemos hoje que existe
uma forte probabilidade de tonéis ou barris terem sido utilizados para o ­estágio do v­ inho.
Eram produzidos com recurso a madeira e, normalmente, cordas. Este tipo de recipiente
era amplamente utilizado no mundo clássico22, embora, na Península ­Ibérica, não sejam
conhecidos elementos que tenham sobrevivido até aos nossos dias. No e­ ntanto, sobrevi­
veram representações, sob a forma das cupae funerárias ou mesmo de baixos-relevos,
como atesta o baixo-relevo funerário de Sena Amarantis, de Mérida23.

18
NICOT, 2019.
19
SILVINO, PEREIRA, 2017.
20
TCHERNIA, 1986; PEREIRA, 2017.
21
PEREIRA, MORAIS, 2015.
22
MARLIÈRE, 2002.
23
PEREIRA, 2017.

19
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 6. Transporte de vinho em odres. Fonte: desenho de William Prater, 1872 (publicado em VIZETELLY, 1880)

Entre os outros tipos de recipientes que não referimos anteriormente e que, com
toda a certeza, seriam utilizados para o transporte de vinho são o uter e o culleus, ou os
odres. Composto, tal como os barris ou tonéis, por materiais totalmente perecíveis,
o uter constitui o que hoje chamaríamos de odre, com uma dimensão de trinta litros ou
menos, enquanto o culleus consiste numa medida de cerca de 200 a 215 litros, sendo,
normalmente, um recipiente preparado a partir da pele de um bovídeo.
Os recipientes de tipo odre são utilizados extensivamente para o transporte de
líqui­dos até ao século XX no território português e durante a Antiguidade. Infeliz­mente,
vestígios deste tipo de material apenas se conservam em contextos muito específicos,
não sendo conhecidos até ao momento vestígios, ainda que seja recorrente a sua repre‑
sentação em mosaicos, peças de cerâmica e outros24.
No Alto Douro Vinhateiro, infelizmente, apenas podemos efectuar comparações
com estes recipientes, extremamente efémeros. No entanto, a circulação do vinho para
os mercados de consumo, ainda que a uma escala microrregional, seria certamente feita
com recurso maioritário a cupae e culleii.

24
PEREIRA, 2022.

20
A VINHA, O VINHO E O DOURO: UMA HISTÓRIA DE ROMANOS

As questões relacionadas com a vitivinicultura antiga constituem um tema que,


desde cedo, tem vindo a receber atenção no território do Vale do Douro, sobretudo
­devido à importância social, económica e cultural que o vinho tem neste território.
Tal como referimos anteriormente, são vários os autores que se dedicam ao tema na
­viragem do século XIX para o século XX. No entanto, será apenas em meados do
­século XX que Russell Cortez identificará a primeira estrutura de produção no D ­ ouro.
­Decorrem ­algumas décadas até que sejam identificadas e intervencionadas outras.
No entanto, o panorama que possuímos hoje continua algo incompleto. Sabemos que
o início da ­produção de vinho é anterior ao período que a historiografia tradicional
apontava para esta região, como, de resto, o comprova a intervenção no sítio de Trás
do Castelo, em Pega­rinhos, Alijó. Conhecemos mal o esquema comercial associado à
­produção do v­ inho neste território, tal como desconhecemos as razões para, em a­ lgumas
explorações, serem utilizadas cupae e noutras dolia ou, como sucede em Vale do Mouro,
coexistirem os dois tipos de recipientes, ainda que em períodos relativamente curtos.
Existe ainda uma panóplia de questões relacionada com os lagares rupestres, sobretudo
associada à falta de intervenções de escala neste tipo de estrutura.
Os resultados de dezenas de projectos e de centenas de intervenções realizadas em
sítios arqueológicos romanos com evidências de produção e/ou consumo de vinho no
Alto Douro Vinhateiro têm permitido desvendar uma história de produção rica, muitas
vezes adaptando-se ao território onde se insere. Todavia, existem ainda muitas q­ uestões
de resposta complexa, tais como os tipos de vides plantadas no Douro durante o período
clássico ou mesmo tipos de vinhos produzidos. O avançar das tecnologias de análise,
sobretudo sob a forma do Ancient DNA e outros métodos analíticos, poderá vir a forne­
cer-nos respostas a estas questões. Infelizmente, muitos sítios arqueológicos perma­
necem desconhecidos, o que faz com que hoje, com cada vez mais plantações e remo‑
delações de estruturas edificadas, seja cada vez mais necessário um trabalho ­preventivo,
de prospecção e sondagens no território, para não se perderem informações preciosas
sobre o início da longa história do vinho no Alto Douro Vinhateiro.

BIBLIOGRAFIA
ALMEIDA, Carlos Alberto Brochado de, coord. (2006). História do Douro e do Vinho do Porto. Porto:
Afrontamento. Vol. I: História Antiga da Região Duriense.
ALMEIDA, Carlos Alberto Brochado de; ANTUNES, João Manuel Viana; FARIA, Pedro Francisco Baére
de (1999). Lagares cavados na rocha: uma reminiscência do passado na tradição da técnica vinícola no
vale do Douro. «Revista Portuguesa de Arqueologia». 2:2, 97-103.
COIXÃO, António Nascimento de Sá (1995). Carta Arqueológica do Concelho de Vila Nova de Foz Côa. Vila
Nova de Foz Côa: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa.
COIXÃO, António Nascimento de Sá (2002). Lagares e lagaretas nas Áreas de Freixo de Numão e Murça do
Douro (Concelho de Vila Nova de Foz Côa). «Coavisão». 4, 57-71.

21
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

COIXÃO, António Nascimento de Sá (2017). A Romanização no Baixo Côa. Vila Nova de Foz Côa: Câmara
Municipal de Vila Nova de Foz Côa.
CORTEZ, Fernando Russell (1947). Breve relato da primeira viagem de prospecção arqueológica na Região
Demarcada do Douro. Dactilografado.
CORTEZ, Fernando Russell (1951). As escavações arqueológicas do «Castellum» da Fonte do Milho. Contri-
buto para a demogenia duriense. «Anais do Instituto do Vinho do Porto». 12:1, 17-88.
GARNIER, Nicholas (2019). Analyse chimique du contenu organique de bassins maçonnés. In SILVINO,
Tony; PEREIRA, Pedro, coords. Relatório do Projeto de Investigação Cella Vinaria de Trás do Castelo
(Vale de Mir, Pegarinhos). Relatório final de PIPA entregue à DGPC. Policopiado.
LÉGIER-NICOLLE, Melissa (2021). Les mosaïques de Coriscada — Vale do Mouro. In SILVINO, Tony;
NALDINHO, Sandra M. Euzébio, coords. Estudos em Homenagem ao Doutor António do Nascimento
Sá Coixão. Vila Nova de Foz Côa: Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa, pp. 245-262.
MARLIÈRE, Elise (2002). L’outre et le tonneau dans l’Occident romain. Montagnac: Ed. Mérgoil.
NICOT, Robert (2019). Les numismes. In SILVINO, Tony; PEREIRA, Pedro, coords. Relatório do Projeto
de Investigação Cella Vinaria de Trás do Castelo (Vale de Mir, Pegarinhos). Relatório final de PIPA,
entregue à DGPC. Policopiado.
PEÑA CERVANTES, Yolanda (2019). Los lagares rupestres en Peninsula Ibérica: sistemas de estrutujado y
problemática cronológica. «Revista ArkeoGazte Aldiskaria». 9, 83-99.
PEREIRA, Pedro (2012). Materiais esquecidos — o espólio cerâmico de armazenamento (dolia) do Alto da
Fonte do Milho, Peso da Régua. «Almadan». 17:1, 170-172.
PEREIRA, Pedro (2017). O Vinho na Lusitânia. Porto: Afrontamento.
PEREIRA, Pedro (2018). O mundo rural romano no Vale do Douro. In DIAS, Lino T.; ALARCÃO, Pedro,
coords. Construir, Navegar, (Re)Usar o Douro da Antiguidade. Porto: CITCEM, pp. 195-209.
PEREIRA, Pedro (2023). Não só da madeira se fez vinho: O Douro e Colección-os-Montes na Antiguidade
Clássica. In BALSA, Carlos, coord. Actas das segundas conferências sobre vias de comunicação e povoa-
mento do Marão. Vila Real: Biblioteca Municipal de Vila Real (no prelo).
PEREIRA, Pedro; MORAIS, Rui (2015). Estudo crono-tipológico de dolia romanos em Portugal. «Cuadernos
de la SECAH». II, 33-44.
SEVERO, Ricardo (1903). Notícia da estação romana da Quinta da Ribeira em Tralhariz. «Portugália». 1:1,
391-398.
SEVERO, Ricardo (1905-1908). O Castro de Vilarinho de Cotas. «Portugália». 1:2, 263-269.
SILVINO, Tony; COIXÃO, António do Nascimento de Sá; MAZZA, Guillaume (2003). Os fornos de cerâ­mica
do Rumansil I. (Murça do Douro, Vila Nova de Foz Côa). Estudo preliminar. «Côavisao». 5, 85-97.
SILVINO, Tony; COIXÃO, António do Nascimento de Sá; PEREIRA, Pedro (2021). Rumansil I. «Coním‑
briga». 5:59, 73-111.
SILVINO, Tony; PEREIRA, Pedro (2017). O projecto de investigação sobre a ocupação humana em torno
da aldeia de Pegarinhos (Alijó) — em busca das origens da Romanização do Douro. In Actas do II
­Congresso da Associação dos Arqueológos Portugueses. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portu‑
gueses, pp. 1085-1095.
SILVINO, Tony; PEREIRA, Pedro (2020). Trás do Castelo (Vale de Mir, Pegarinhos, Alijó) — Uma explo­ração
agrícola romana do Douro. In Actas do III Congresso da Associação dos Arqueólogos Portu­gueses — Arqueo-
logia Estado da Questão. Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses/CITCEM, pp. ­1243-1255.
TCHERNIA, André (1986). Le Vin d’Italie Romaine. Paris: E. de Boccard.
TEIXEIRA, Carlos (1939). Estação romana de Canelas (Poiares da Régua). «Trabalhos da Sociedade Portu‑
guesa de Antropología e Etnologia». IX, 130-135.
VIZETELLY, Henry (1880). Facts about Port and Madeira with notices of the wines vintaged abound Lisbon
and the wines of Tenerife. Londres: Ward, Lock and Co.

22
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS
MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA
DO JARDIM BOTÂNICO DA UNIVERSIDADE
DE COIMBRA (1870-1882)
ANA MARGARIDA DIAS DA SILVA*
M. TERESA GONÇALVES**

Resumo: Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (1809-1884), 2.º Visconde de Vila Maior (1861), perito espe-
cializado no Douro vinhateiro, com obra publicada sobre viticultura, ampelografia e enologia, aproveitou
a sua nomeação governamental como reitor da Universidade de Coimbra (1869-1884) para criar uma
escola (coleção) ampelográfica no Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. Logo em 1870,
­parti­cipou na escolha do terreno para instalar as castas de videiras cultivadas no país e em regiões viní-
colas estrangeiras. O estudo metódico de descrição e comparação permitiria a determinação das sino­
nímias das castas, a preservação das castas nacionais e o estabelecimento de uma coleção de videiras
para cultivar no país. Além da coleção ampelográfica, seriam realizados estudos de enologia, com um
pequeno lagar e uma adega a estabelecerem os modelos para ensaios sobre métodos de vinificação.
O ataque da filoxera à «vinha das vinhas», como foi apelidada a Escola Ampelográfica do Jardim
­Botânico, acabou por determinar o seu fim, com o arranque das cepas no inverno de 1882.
Palavras­‑chave: ampelografia; viticultura; Visconde de Vila Maior; Júlio Augusto Henriques; arquivo
pessoal.

Abstract: Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (1809-1884), 2nd Viscount of Vila Maior (1861), a specialist
in the Douro winegrowing region with published works on viticulture, ampelography and oenology,
took advantage of his government appointment as Rector of the University of Coimbra (1869-1884) to
set up an ampelographic collection in the Botanic Garden of the University of Coimbra. As early as 1870,
he took part in the selection of the land on which to plant all the grape varieties grown in the country
and in foreign wine-growing regions. The grapevine varieties methodical study, description and compar-
ison would allow determining their synonymy, the preservation of the national varieties and the estab-
lishment of a grapevine collection to cultivate in the country. In addition to the ampelographic collec-
tion, oenological studies would be carried out, establishing a small wine press and a model winery for
tests on winemaking methods and wine conservation. The phylloxera attack on the «vineyard of vine-
yards», as the Ampelographic Collection of the Botanic Garden was nicknamed, brought it to an end,
with the vines being uprooted in the winter of 1882.
Keywords: ampelography; viticulture; Viscount of Vila Maior; Júlio Augusto Henriques; personal archive.

* Arquivista no Arquivo do Departamento das Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, Mestre em Ciência da
­Informação e Documentação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e Doutora
em Ciência da Informação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. CHSC (UC)/CITCEM.
** Professora auxiliar no Departamento de Ciências da Vida, Universidade de Coimbra, e coordenadora do Arquivo de
Botânica da Universidade de Coimbra. Centro de Ecologia Funcional — Universidade de Coimbra.

23
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

INTRODUÇÃO

Entre os productos da agricultura portugueza é o vinho incontestavelmente o


mais consideravel, pelo menos em relação ao commercio externo, e entre os vinhos
portuguezes o que mais prepondera nos valores exportados é tambem, sem duvida
alguma, aquelle que se produz no paiz vinhateiro do Douro1.

Na verdade, a região do Douro foi a primeira região vitivinícola demarcada e regu‑


lamentada do mundo, no ano de 17562, reconhecida internacionalmente pela tradição
ligada ao vinho, numa paisagem única classificada como Património Cultural da Huma­
nidade pela UNESCO, em 2001. Os vinhedos de encosta de tradição histórica, como no
Alto Douro, beneficiam de condições geográficas excecionais e são património histó‑
rico-cultural desenvolvido e aperfeiçoado por «populações que, ao longo dos séculos,
criaram e desenvolveram técnicas e processos de organização do espaço, de adaptação
do solo e castas, de produção vitivinícola, de promoção e de comercialização»3.
A viticultura conheceu grande expansão no século XIX4 e a produção de vinho,
além das questões comerciais, foi alvo de estudos científicos que visavam melhorar o
conhecimento e o progresso da vinicultura.
A ampelografia (do grego clássico Αμπελος, «vinha», + γραφος, «descrição»),
­termo utilizado, pela primeira vez, em 1661, por Philipp Jacob Sachs5, é a disciplina que
estuda, identifica e classifica as castas (variedades) de videira com base na descrição
morfológica das folhas, dos cachos e das uvas, e, mais recentemente, no perfil genético
das plantas a partir do estudo do DNA. Para padronizar as observações, a Organização
Internacional da Vinha e do Vinho (OIV) estabeleceu os oitenta e oito descritores que
devem ser obtidos num estudo morfométrico completo e que são requeridos para o
registo de uma casta.
Em Portugal, estima-se a existência de um elevado número de castas ­autóctones
­(relativamente à dimensão do território nacional), sendo também cultivadas m ­ uitas
­castas estrangeiras. Félix de Avelar Brotero (1744-1828), ilustre botânico português,
­refere algumas variedades de videira (Vitis vinifera) na sua obra Compêndio de ­Botâ­nica,

1
VILA MAIOR, 1865-1869: 1.
2
Por alvará de 10 de setembro de 1756, assinado pelo rei D. José e pelo secretário de Estado, Sebastião José de ­Carvalho e
Melo, foi instituída a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, que tinha como objetivo, entre outros,
cadastrar as costas setentrional e meridional do rio Douro, de forma a demarcar todo o território que ­produz vinhos
de carregação (PEREIRA, 1989: 311). A referida ­companhia visava, igualmente, apoiar o desenvolvimento industrial
da região e lutar contra a predominância dos mercadores ingleses no comércio do vinho do Porto (MATA, VALÉRIO,
2003: 122).
3
PEREIRA, 1996a: 179.
4
MARTINS, 2005: 232.
5
GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020: 168.

24
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

de 1788. Outros registos foram publicados, mas só em 1865 é que Júlio Máximo de
Oliveira Pimentel, Visconde de Vila Maior, à época diretor do Instituto Geral
­
de ­Agricultura6, «se ocupou seriamente do estudo da ampelografia nacional»7.
As coleções ou escolas ampelográficas são coleções de castas de videiras estabe­
lecidas com os objetivos de caracterizar as castas e resolver as sinonímias, já que,
frequentemente, a mesma casta é designada por diferentes designações consoante a
região; estas coleções constituem um repositório da diversidade genética e garantem
a preservação de todas as castas.
O presente trabalho visa dar a conhecer a primeira coleção ampelográfica nacio‑
nal — a Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra —,
os principais mentores do projeto, bem como o processo gradual para o estabele­cimento
da referida coleção desde 1870 e ao longo de mais de dez anos, até à sua destruição,
­motivada pela filoxera.
A Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra é
­exemplo de como o Douro vinhateiro, património construído numa paisagem c­ ultural
ímpar, ultrapassou as margens do Douro e se fixou em Coimbra, no âmbito de uma
­profícua rede de conhecimento e de colaborações estabelecida sob o patrocínio do
­Visconde de Vila Maior.

1. O VISCONDE DE VILA MAIOR: UM ESPECIALISTA


DA VINHA E DO VINHO
Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, 2.º Visconde de Vila Maior (1809-1884)8, natural
de Torre de Moncorvo, «foi um dos nossos grandes vultos da cultura, do ensino e da
ciência do século XIX, além de destacado perito do Douro»9. Cursou Matemática na
Universidade de Coimbra e notabilizou-se na área da Química, tendo sido professor
na E­ scola Politécnica de Lisboa (1837-1857). Aliou a sua formação de químico à de
proprie­tário no Douro10 e dedicou-se ao estudo da viticultura, da ampelografia e da
­enologia, ­conjugou a teoria e a prática, e as suas obras publicadas sobre estas matérias
são ainda hoje refe­rências de reconhecido mérito. Durante os anos da crise filoxérica
(1860-1880), assumiu a presidência de diversas comissões e participou na elaboração
de importantes medidas e propostas promulgadas pelos governos de Fontes Pereira de
Melo e de Anselmo Braamcamp (1879-1880)11.
6
Após a implantação da República, em 1910, passou a designar-se Instituto Superior de Agronomia (ISA).
7
SILVA, 1930: 154; GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020: 169.
8
Sobre a vida e ação do Visconde de Vila Maior, cf, por exemplo, CALVO, D’ABREU, 2013; FERNANDES, 2013;
­GARCIA, 2013; LAGE, 2013a, 2013b; MOTA, 2011, 2012, 2013, 2021; PIMENTEL, 2014; SAMBADE, 2013; SILVA,
2017a, 2017b; SILVA, GOUVEIA, GONÇALVES, 2016.
9
LAGE, 2013a: 11.
10
Júlio Máximo de Oliveira Pimentel era proprietário de várias quintas: Quinta do Rego da Barca, Quinta do Cuco,
Quinta de Vila Maior e Quinta Branca (MOTA, 2020: 78, 84).
11
LAGE, 2013a: 14.

25
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

De entre os muitos cargos que desempenhou referiremos os de presidente da


­ âmara Municipal de Lisboa (1858-1859), deputado às Cortes por Lisboa em mais
C
do que uma legislatura, elemento da delegação do governo de Portugal à Exposição
­Uni­versal de Paris, em 1855, presidida pelo Marquês de Ficalho, e comissário régio às
Exposições Universais de Londres (1862) e de Paris (1867 e 1878).
Em 1864, foi incumbido, pela repartição de agricultura do Ministério das Obras
­Públicas, Comércio e Indústria (MOPCI), do estudo da ampelografia, enologia e
­economia vinícola do Douro, missão por si assim descrita:

Um estudo completo do paiz em que se gera um produto de tão grande esti­


mação e valor, como é o vinho do Douro, estudo que abranja a descripção physica do
território, a das castas das videiras ali cultivadas, a dos processos de cultivo e vinifi-
cação, e finalmente todas as particularidades da sua produção e commercio, é objecto
altamente interessante por si mesmo, e muito oportuno na epocha presente, em que a
atenção publica se volta de novo para a questão tantas vezes encetada, da mudança
de regímen económico do paiz vinhateiro. Fui pelo governo convidado a empreender
um trabalho d’esta natureza; antevejo as dificuldades da empresa; mas desejando ser
util ao meu paiz, empregarei no desempenho d’esta comissão todos os meus esforços12 .

Em 1866, integrou, juntamente com António Augusto de Aguiar e João Inácio


­Ferreira Lapa, uma comissão responsável por:

fazer uma avaliação da situação dos centros vinícolas do país e dos processos de
­produção por eles adotados. As averiguações então conduzidas levaram-no a p­ erceber
a importância deste sector na agricultura nacional, vindo a dedicar-se daí em diante
de forma particular ao estudo da viticultura, ampelografia e enologia, visando intro-
duzir os saberes mais recentes na produção vinícola13.

Da vasta produção científica e teórica do Visconde de Vila Maior sobre a região do


Douro interessa destacar: Preliminares de ampelographia e oenologia do país vinhateiro
do Douro (publicado em quatro fascículos, entre 1865 e 1869), com estampas coloridas
de folhas de diversas castas; Manual de viticultura practica, 187514; e O Douro ­Ilustrado:
album do Rio Douro e paiz vinhateiro: introdução e memoria descriptiva, de 1876,

12
VILA MAIOR, 1865-1869: 2.
13
MOTA, 2012: 272.
14
Sobre esta obra, António Augusto de Aguiar escreveu ao Visconde de Vila Maior: «Recebi hontem pelo correio o
Manual de Viticultura pratica, e embora não seja possível lê-lo em vinte em quatro horas, não preciso esperar mais para
assegurar a V. Exa., que acaba de fazer, com esta publicação, um grande serviço ao seu paiz, e muito particularmente aos
vinhateiros. Admiro, com grande desejo de o poder imitar, o desvello e a paciencia com que se dedica ainda hoje aos
trabalhos scientificos, depois de uma longa carreira em que não desperdiçou um dia sequer» (AGUIAR, 1875).

26
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

obra magnífica, reeditada em 1990 e amplamente citada. Publicou ainda numerosos


­artigos de divulgação dedicados aos viticultores, no novo «Jornal Horticultura Prática»,
desde o seu primeiro número, em 1870.
Pela obra escrita que legou, o Visconde de Vila Maior pode ser considerado, «além
de especialista e estratega do país vinhateiro duriense, como um pioneiro do Douro
Contemporâneo»15.
Em 1869, o Visconde de Vila Maior voltou à Universidade de Coimbra, onde fora
estudante. Por nomeação governamental, ocupou o cargo de reitor da Universidade de
Coimbra e teve o mais longo reitorado ao tempo da monarquia constitucional (1869-1884).

2. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO


DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1884)
Apesar da (inesperada) nomeação governamental de Júlio Máximo de Oliveira P ­ imentel
como reitor da universidade, e da interrupção forçada «[d]os trabalhos, que sobre esta
materia [estudos ampelográficos] havia começado na região vinícola do Douro»16,
o ­Visconde de Vila Maior continuou a escrever sobre a necessidade e a importância do
«conhecimento completo das castas da Vide commum, que nas nossas vinhas se c­ ultivam
ou podem cultivar» por considerar que «não interessa menos que o das arvores fructi‑
feras do nossos vergeis e pomares». E acrescenta: «Na actualidade é sem duvida até de
superior importancia, porque a viticultura, que é a origem da nossa maior riqueza, está
reclamando os esforços inteligentes de todos os lavradores»17.

2.1. A importância dos estudos ampelográficos


Júlio Máximo de Oliveira Pimentel reconhecia que as condições naturais da região
duriense, o clima e o solo eram apropriados «á producção dos mais ricos vinhos do
mundo», mas que a «confusão inextricável na nomenclatura e synonymia das castas
da Vide commum» prejudicava a indústria vinícola e impedia a produção de vinhos
de qualidade18.

Abundam hoje as descripções e classificações de numerosos generos e especies


de plantas, que servem apenas para ornato dos jardins e encanto da vista; gastam-se
sommas fabulosas para completar e entreter collecções de luxo, e não temos uma boa
classificação das castas e variedades do arbusto, que na Europa produz um rendi­
mento de muitos milhares de contos de reis, e que fornece trabalho e subsistência a
muitos milhões de habitantes19.

15
LAGE, 2013b: 121.
16
VILA MAIOR, 1878-1879: 18.
17
VILA MAIOR, 1870a: 33.
18
VILA MAIOR, 1870a: 33.
19
VILA MAIOR, 1870a: 33.

27
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Por esta razão, é necessário ir «creando mesmo os materiaes necessários para


orga­nizar uma boa Ampelographia»20. A ampelografia, ramo da ciência vinícola, tinha
por objetivo principal o conhecimento e a descrição das castas da videira e das suas
variedades, contribuindo para a melhor escolha das castas de uvas na produção de um
vinho superior.

Tudo isto justifica superabundantemente a importância dos conhecimentos


­ampelographicos.
Se o viticultor não tem em seu poder transformar a natureza do solo, pelo m
­ enos
economicamente; se é reconhecida a sua impotencia individual em tudo o que respeita
ao governo das condições meteorologicas do clima, tem pelo contrario o livre arbitrio
na escolha e apropriação das castas mais adequadas ao solo, ao clima e á exposição
do seu terreno21.

E conclui que, se a responsabilidade do viticultor é grande no que toca à quali­dade


dos seus vinhos, o enorme atraso em que se acha a ampelografia, a «anarchia que ainda
hoje reina sobre a nomenclatura das castas, nas difficuldades da classificação das ­mesmas
castas e suas variedades, e finalmente na escassez de boas e methodicas ­descripções»
provoca a produção de vinhos maus e medíocres22.
A proliferação de denominações das castas («a mesma casta tem nomes m ­ uito
­diversos nos differentes paizes, mas ainda muitas vezes o mesmo nome serve para
­designar castas muito differentes»23), que, para o Visconde de Vila Maior, provocava
o caos ampelográfico, só poderia ser ultrapassada com uma classificação metódica das
castas e o estabelecimento da sua perfeita sinonímia.

A classificação methodica das castas pelos seus caracteres phytographicos será


muito útil debaixo do ponto de vista puramente scientifico: a determinação exacta da
synonymia é extremamente vantajosa aos viticultores para bem entenderem o que
até hoje se tem escripto e praticado nas diversas regiões sobre viticultura; mas não
se podem alcançar resultados eminentemente práticos sem um estudo completo das
castas e dos seus productos, incluindo o vinho que ellas podem fornecer, porque este é
o ultimo termo dos trabalhos do viticultor24.

20
VILA MAIOR, 1870a: 33.
21
VILA MAIOR, 1870a: 35.
22
VILA MAIOR, 1870a: 36.
23
VILA MAIOR, 1870b: 49.
24
VILA MAIOR, 1870b: 51.

28
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

Fig. 1. Desenho de uva


nevoeira(?), possivelmente de
Emílio de Oliveira Pimentel,
filho de Júlio Máximo de
Oliveira Pimentel, 2.º Visconde
de Vila Maior
Fonte: ABUC. Arquivo do
2.º Visconde de Vila Maior

Assim, o Visconde de Vila Maior defendia a formação de grandes coleções ampe­


lográficas, nas quais se reunissem as castas de maior interesse, para facilitar o estudo
de comparação e classificação. Na verdade, a proposta de Júlio Máximo de Oliveira
­Pimentel era a da criação de coleções regionais organizadas em escolas de viticultura
prática, onde estivessem representadas as castas próprias de cada região.

No estudo a que me refiro não se deve ter unicamente em vista a descripção


phyto­graphica das plantas: é muito essencial conhecer a quantidade e qualidades
intrin­secas dos fructos que produzem e do vinho que fornecem, bem como o género
de cultura que lhes é mais adequado. Portanto, as collecções não devem conter apenas
dous ou tres exemplares de cada casta, mas sim um numero suficiente de cepas de cada
uma d’ellas para que possam fornecer uva bastante para a preparação de alguns hecto­
litros de vinho, e tambem para n’ellas se poderem experimentar os diversos methodos
de poda e empa, e reconhecer praticamente quaes d’estes lhe são mais apropriados25.

Todo este programa, que o Visconde de Vila Maior detalha em pequenos ­artigos
no «Jornal de Horticultura Prática», estava a ser posto em prática em Sintra, na G
­ ranja
do Marquês, e muito particularmente na cerca de São Bento anexa ao Jardim Botâ‑
nico da Universidade de Coimbra, que servirá de exemplo à formação das coleções
­ampelográficas26.
25
VILA MAIOR, 1870c: 68.
26
VILA MAIOR, 1870c: 68.

29
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

2.2. A fundação e desenvolvimento da Escola Ampelográfica no Jardim


Botânico da Universidade de Coimbra
Em Coimbra, o reitor Júlio Máximo de Oliveira Pimentel rapidamente colocou em
­marcha o estabelecimento de uma coleção ampelográfica no Jardim Botânico, como o
próprio descreve:

Convencido de quanto é indispensável o estudo da ampelografia para o


p­ rogresso da boa viticultura, e tendo sido forçado a interromper os trabalhos que
sobre esta matéria havia começado na região vinícola do Douro, aproveitei o ensejo
que me proporcionou a minha colocação em Coimbra, como reitor da Universidade,
para estabelecer, com o auxílio do director do Jardim botânico [Antonino Vidal] e do
chefe dos trabalhos práticos d’aquelle estabelecimento [E. Goeze], uma escola ampelo-
graphica onde fossem reunidas e ordenadas methodicamente todas as diversas castas
e variedades de videiras cultivadas no paiz e as que fosse possível adquirir das regiões
vinícolas extrangeiras, para as submeter a um estudo regular e minucioso, compa-
rando-as entre si, determinando-lhes as synonymias, descrevendo-as e fazendo sobre
ellas a maior somma de investigações que podessem ser uteis à mais importante das
nossas industrias agrícolas27.

E assim teve início «a nossa escola ampelographica», como se referia o reitor em


carta (24 de novembro de 1877) dirigida a Júlio Henriques, professor de Botânica,
bem como diretor do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra (1873-1918), e seu
interlocutor privilegiado.
Na verdade, se a fundação da escola ampelográfica no Jardim Botânico da Univer­
sidade de Coimbra e a plantação dos primeiros bacelos tiveram início ao tempo do
­diretor Antonino José Rodrigues Vidal (1849-1853 e 1868-1872), coadjuvado pelo
­chefe dos trabalhos práticos Edmond Göeze (contratado em 1866), foram Júlio Augusto
­Henriques e Adolfo Möller28 os principais mentores do projeto, sempre com o apoio
do Visconde de Vila Maior. A maior parte dos registos, observações e relatórios sobre a
Escola Ampelográfica, publicados ou inéditos, saiu do punho deste trio e é reveladora
do enorme empenho no desenvolvimento da escola que foi sendo enriquecida mercê da
rede de conhecimentos e colaborações fomentada pelo Visconde de Vila Maior.
Como conta o visconde: «No começo de 1870, escolhi um terreno […] para nele
fundar uma pequena vinha que pudesse servir de escola ampelographica», situada «na
antiga cerca dos frades de São Bento, anexa e incorporada actualmente» no Jardim

27
VILA MAIOR, 1878-1879: 18.
28
Sobre Adolfo Frederico Möller (1842-1920), cf., entre outros, HENRIQUES, 1922; REIS et al., 2014: 98-99;
S­ EQUEIRA, 1891.

30
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

­ otânico da Universidade de Coimbra29. Num vale pouco profundo que começa no


B
­jardim e desce até à estrada da Alegria, fez-se uma construção por socalcos na e­ ncosta,
por causa do declive, em local onde, no tempo dos monges, já tinha sido cultivada
vinha (Fig. 2).

Fig. 2. Mapa do
Jardim Botânico
da Universidade
de Coimbra
Fonte: HENRIQUES,
1876. Assinala-se,
a verde, a localização
da Escola Ampelo-
gráfica

Fizeram-se as primeiras plantações com bacelos oferecidos pelo Visconde de Vila


Maior e provenientes do Douro Superior, da Quinta do Rego da Barca, a que se j­ untaram
outros vindos de entre Tua e Corgo, enviados por José de Sousa Cardoso Pimentel,
­primo do Visconde de Vila Maior, e os de entre o Tedo e o Távora, oferecidos pelo doutor
Macedo Pinto. Bernardino António Gomes ofereceu bacelos de videiras provenientes de
Santarém, da sua Quinta das Ladeiras; Edmond Göeze obteve bacelos germânicos, e os
franceses foram comprados a M. Pepin, conforme relatório de Adolfo Möller enviado ao
Visconde de Vila Maior, em janeiro de 187830.
Nesse relatório, Möller descreve detalhadamente as plantações efetuadas nos anos
de 1871, 1872, 1874, 1876 e 1877 com bacelos de castas nacionais e estrangeiras ofere­
cidas por diversos proprietários de quintas ou adquiridas a produtores.

29
VILA MAIOR, 1878-1879: 18.
30
VILA MAIOR, 1878-1879: 19-20. Segundo dados fornecidos por MÖLLER, 1878.

31
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

De cada casta eram plantados, pelo menos, dez bacelos, e foi também preparado
um viveiro, aproveitando as varas úteis provenientes da poda, para garantir a substi­
tuição de plantas que não sobrevivessem.
Os viveiros possibilitavam também a venda de plantas a particulares a preços redu­
zidos: «O preço das castas portuguezas tem sido de 20 réis, e o das extrangeiras de 60
réis. A venda tem sido completa», afirma Júlio Máximo de Oliveira Pimentel31, o que
constituía uma fonte de rendimento para fazer face às avultadas despesas com a coleção
ampelográfica (Fig. 3)32. Ainda em 1875, iniciaram-se os ensaios de produção de vinho,
aspeto também importante para a caracterização das castas.

Fig. 3. Resumo da receita e despesa feita com a vinha desde o 1.º de janeiro de 1878 até 31 de março de 1879
Fonte: ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Reitor (SC), Correspondência recebida (SR)

Até 17 de março de 1875, as despesas com a Escola Ampelográfica foram custeadas


através da dotação do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra. Porém, em 1876,
o Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (MOPCI) concedeu a quantia de
300 mil réis para as despesas da Escola Ampelográfica (despacho ministerial de 7
de março de 1876)33. Em carta de 21 abril 1876, Morais Soares comunicava ao Visconde

31
VILA MAIOR, 1878-1879: 22.
32
HENRIQUES, 1877.
33
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1876.

32
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

de Vila Maior a concessão da verba para auxiliar a fundação e manutenção da Escola


Ampe­lográfica, quantia a ser deduzida nas verbas votadas no orçamento do MOPCI para
o ano económico 1876-1877. Na mesma missiva, diz ainda que o ministro se congratula:

com a fundação de um estabelecimento de incontestável necessidade num país onde


a produção vinícola representa uma boa parte da riqueza territorial, além de se
­dever a uma patriótica iniciativa do Visconde e com a zelosa e inteligente gerência do
Dr. Júlio Henriques34.

Em 1876, Júlio Henriques informava:

A vinha, cuja cultura tem tido considerável desenvolvimento, graças ao auxílio


e ­cuidados do ex.mo sr. Visconde de Vila Maior, está disposta na encosta do lado da
cidade. Contém 100 castas estrangeiras e 145 das cultivadas de longo tempo no paiz35.

A Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra era tema


recorrente nas redes de conhecimento e políticas do Visconde de Vila Maior. Em carta
de 4 julho 1877, o conselheiro Rodrigo Morais Soares36, entre outros assuntos, refere-se
à Escola Ampelográfica do Jardim Botânico da Universidade de Coimbra como «a vinha
das vinhas»37 e sublinha a expressão (Fig. 4).

Fig. 4. Carta de Rodrigo Morais Soares ao Visconde


de Vila Maior, 4 de julho de 1877
Fonte: ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior.
Reitor (SC), Correspondência recebida (SR)

34
SOARES, 1876.
35
HENRIQUES, 1876: 51.
36
Rodrigo Morais Soares fundou a escola regional de Sintra, o Instituto Agrícola (atual ISA), a revista «Archivo A
­ gricola»
e, quando em 1852 se criou a Secretaria das Obras Públicas, foi nomeado chefe da Repartição de Agricultura, e,
mais tarde, diretor-geral. Figura importante na agricultura nacional. Sobre a sua biografia cf. SARDICA, 2004: 776-777.
37
A ideia de excelência está sempre subjacente a esta expressão.

33
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Além das referências em trabalhos publicados (e. g. Manual de Viticultura ­Prática,


2.ª edição, 1881), também na documentação inédita do Visconde de Vila Maior se
­encontram muitas provas do interesse e do acompanhamento que sempre dedicou à
Escola Ampelográfica, pese embora os múltiplos afazeres como reitor. Provam-no as
diligências para obter financiamento governamental e diversos manuscritos, como por
exemplo aquele em que elenca a origem geográfica dos primeiros bacelos e identifica os
proprietários que as forneceram entre 1870 e 1877. No final, lista, por ordem alfabética,
as castas de videiras existentes na coleção (Fig. 5).

Fig. 5. Colecção das castas de vinha Fig. 6. Catalogo Alphabetico da Escola


Fonte: ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Ampelographica, 1876: 1-2
Reitor (SC), Colecção das castas de vinha Fonte: ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior

Outro documento interessante é o Catalogo Alphabetico da Escola Ampelographica


(Fig. 6), de 1876, um caderno manuscrito destinado ao registo dos carateres morfoló‑
gicos das castas; inicia-se com uma advertência sobre a verificação e a determinação da
sinonímia das castas mencionadas, e a indicação dos seguintes carateres a observar para
a caracterização das castas:

34
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

1.º Epoca e apparencea do gomo na ambientação


2.º Aspecto e caracteres das folhas, segundo as indicações adiante expostas
3.º Forma e aspecto do cacho, idem
4.º Forma, aspecto, sabor e mais características do bago, segundo as indicações
­adiante expostas
5.º Epoca da completa maturação
6.º Queda das folhas38

Segue-se uma extensa e cuidada lista de «Abreviatura dos caracteres» para facilitar
o registo das observações; por exemplo: «Da folha: muito grandes (mt. Gr), pequena
(pq), plana (plan.) […]; Bago: redondo (re), alongado (alg)». Contudo, as páginas de
registo dos carateres de cada casta estão em branco. Como o Visconde de Vila Maior
explica em Listagem das castas de videiras portuguezas:

A maior parte das castas que aqui vão indicadas já se acham representadas
na collecção ampelographica do Jardim Botanico de Coimbra; porém só mais t­arde,
quando todas as videiras tenham chegado à idade de fructificar, é que se poderá
­fazer o estudo dos seus caracteres, e as confrontações necessárias para lhes assignar a
­synonnymia e fazer a sua descripção ampelographica39.

Em 1877, em carta dirigida ao Visconde de Vila Maior, Júlio Henriques resume o


estado da Escola Ampelográfica e descreve detalhadamente o crescimento e a tolerância
a doenças das diferentes castas. Refere, por exemplo, que as castas da Madeira são as
que têm tido melhor vegetação e as que melhor resistem ao efeito do oídio; recomenda
a aquisição de mais castas estrangeiras, informando que se contabilizam, à época, treze
castas americanas. Acrescenta ainda que o principal modo de propagação tem sido por
estaca, porque por sementeira têm sido obtidas poucas plantas; que todos os anos têm
sido feitos viveiros, à data com 1793 plantas (974 portuguesas e 819 estrangeiras).
Em 1878, o Visconde de Vila Maior solicita a Júlio Henriques elementos sobre
«a nossa escola ampelographica»40 para elaborar o relatório destinado ao conse­lheiro
­Rodrigo Morais Soares, secretário e diretor-geral da Repartição de Agricultura do
­MOPCI, possi­velmente para justificar o subsídio concedido pelo governo, e admitimos
que também pelo interesse pessoal que Morais Soares diversas vezes manifestara pela
Escola Ampelográfica, em cartas endereçadas ao Visconde de Vila Maior.

38
Catálogo Alphabetico da Escola Ampelographica, 1876.
39
VILA MAIOR, 1881: 487.
40
VILA MAIOR, 1878.

35
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

O detalhado relatório, elaborado com a colaboração de Júlio Henriques e de A


­ dolfo
Möller, foi enviado ao diretor-geral do Comércio e Indústria do MOPCI, tendo sido
também publicado na revista «O Instituto», por ser «documento interessante à historia
da escola ampelographica»41.

3. AS PRAGAS DAS VINHAS: O OÍDIO E A FILOXERA


Em Portugal, a evolução da produção do vinho foi perturbada por pragas biológicas que
«quebraram por algum tempo a tendência de crescimento das colheitas e aumentaram
os custos de produção por causa dos tratamentos químicos e da replantação das vinhas
a que foi necessário recorrer para as combater»42.
A praga do oídio, na década de 1850, se, por um lado, provocou «quebras ­drásticas
e prolongadas» na produção de vinho, por outro, «marcou o momento de viragem da
viticultura portuguesa»: acelerou o processo de rejuvenescimento das vinhas, com ­novas
plantações a serem feitas em linha e com maior espaçamento entre bacelos; aperfei­
çoaram-se práticas e técnicas culturais; melhoraram-se os processos de vinifi­cação;
­desenvolveram-se novos estudos sobre a fisionomia das cepas; e a identificação das
­doenças das vinhas permitiu «apurar as castas mais resistentes ao oídio e as mais
­adequadas às características geomorfológicas e climatéricas de cada região»43. Em conse­
quência, começou a desenhar-se a carta vinícola nacional e a concentração de vinhas.
Nas décadas seguintes, a filoxera foi o maior flagelo das vinhas europeias, m
­ ormente
em França, mas, em Portugal, manteve-se circunscrita às vinhas do Douro até finais da
década de 187044.

Esta praga tinha sido detectada em França em 1863; foi introduzida na Europa
com as vides americanas. Era provocada por um insecto, à época designado Phyllo­xera
vastatrix [sinónimo actual: Dactylosphaera vitifoliae], que se apresenta sob ­diversas
formas e multiplica as suas colónias muito rapidamente. A destruição da ­vinha efec-
tuava-se a uma velocidade variável de acordo com as condições climatéricas e a natu-
reza do solo, mas na região duriense concretizava-se ao fim de 5 a 6 anos. A destruição
da vinha duriense, na sequência do ataque deste insecto, foi devastadora45.

Em julho de 1870, o «Jornal de Horticultura Prática», pelo punho de Oliveira


­Júnior, reportava que «Entre nós, felizmente, não há indicio algum de tão assoladora

41
VILA MAIOR, 1878-1879: 17-28.
42
MATA, VALÉRIO, 2003: 159.
43
MARTINS, 2005: 233-235.
44
MARTINS, 1991: 659.
45
LAGE, 2013b: 116.

36
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

doença» e «Oxalá que tal nunca suceda, pois seria isso uma verdadeira calamidade para
os nossos vinhedos, dos quaes ainda não desappareceram de todo os vestigios do outro
contagio, o oidium, que tantos estragos fez n’elles»46.
Os ecos da propagação da filoxera em França iam chegando ao Visconde de Vila
Maior através da sua rede de conhecimentos internacionais. Em 27 de janeiro de 1871,
V. Pulliat, da Sóciété Régionale de Viticulture de Lyon, dá nota que a marcha lenta da filo‑
xera nas vinhas francesas lhe dá alguma esperança e gostaria de acreditar que o ­desastre
será apenas na zona meridional do Rhône, não se alargando ao resto da França47.
Em carta de 26 de junho de 1873, Rodrigo de Morais Soares agradeceu ao ­Visconde
de Vila Maior a informação sobre a nova moléstia das vinhas, e disse antever, senão a
destruição completa dos vinhedos atuais, pelo menos uma grande devastação. Diz ter
mandado inspecionar as vinhas do Douro atingidas e aguardar mais esclarecimentos
sobre a «singular» filoxera. Em post scriptum diz que o amigo comum, António Augusto
de Aguiar, a quem mostrara a carta do Visconde de Vila Maior, informara que «o bicho
é um acarus já conhecido em algumas vinhas das vizinhanças de Lisboa»48.
Num país onde a viticultura se encontrava em expansão e o vinho constituía a
principal produção agrícola, é natural que a filoxera fosse encarada quase como uma
«calamidade nacional»49.
As pragas do oídio e da filoxera (e, mais tarde, do míldio) «acabariam por ­contribuir
para uma profunda renovação das técnicas de vitivinicultura e vinificação do Vinho do
Porto, no século XIX»50. A importância económica da cultura da vinha em P ­ ortugal e o
conhecimento dos prejuízos causados em França pela nova praga da filoxera moti­varam a
produção de muita informação e publicações sobre o assunto. Contam-se ­diversos artigos
da autoria do Visconde de Vila Maior publicados no «Jornal de Horticultura Prática»,
inclusive artigos com desenhos da filoxera, da autoria de Planchon e Lichtenstein, bem
como a divulgação da investigação realizada noutros países, nomeadamente em França.
Por seu lado, o governo nomeou, em 1872, uma comissão presidida por Morais
Soares para propor as medidas que achasse necessárias no combate à doença, tendo sido
criada uma comissão antifiloxera com duas delegações regionais51. O Visconde de Vila
Maior integrou a delegação de Coimbra dessa comissão, a que se seguiram várias outras.
Mais tarde, Oliveira Pimentel presidiu à comissão de estudo e tratamento das vinhas do
Douro (com sede no Porto), criada por decreto governamental de 7 de agosto de 1878.

46
OLIVEIRA JÚNIOR, 1870: 139.
47
SÓCIÉTÉ RÉGIONALE DE VITICULTURE DE LYON, 1871.
48
SOARES, 1873.
49
MARTINS, 1991: 654.
50
LAGE, 2013b: 116.
51
MARTINS, 1991: 656.

37
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Em agosto de 1877, realizou-se, em Lausanne, o «Congrès Phylloxèrique Interna‑


tional», no qual participaram os portugueses Manoel Paulino de Oliveira, entomólogo,
professor da Universidade de Coimbra e autor de Le Phylloxera et le sulfure de carbone
en Portugal52, e o Visconde de Coruche.
Onze anos após o flagelo da filoxera assolar e devastar os mais celebrados v­ inhedos
de França (em 1877, eram 28 os departamentos afetados e, em novembro 1878, ­chegavam
aos 39) e de Portugal, o governo português apresenta uma proposta de lei elaborada pelo
MOPCI e publicada a 17 de março de 1879.

N.º 84 — Q (Imprensa Nacional — 1879)


Proposta de Lei
Artigo 1.º É o governo auctorisado, depois de ouvidas as estações que tiver por mais
competentes:
1.º A decretar as medidas e regulamentos necessários para pôr em execução a
convenção internacional de Berne de setembro de 1878 e em geral quaisquer
providencias que tenham por fim combater o phylloxera vastatrix e obstar á
sua invasão e propagação;
2.º A conceder a entrada livre de direitos e o transporte gratuito nos caminhos
de ferro do estado das substancias e adubos destinados ao tratamento das
vinhas atacadas pelo phylloxera;
3.º A instituir concursos e conceder prémios aos proprietários ou viticultores que
mais se distinguirem no tratamento e reconstituição das vinhas infestadas.
Art. 2.º A ninguém é lícito resistir, ou pôr impedimentos de qualquer ordem, ao e­ xame
e a quaisquer trabalhos de investigação a que as commissões ou os delegados
­nomeados pelo governo entendam conveniente proceder com o fim de reco­nhecer
a existencia do phylloxera em vinhas ou videiras suspeitas de inficionadas.
Art. 3.º Se em alguma região vinícola considerada indemne apparecer algum fóco
ou nodoa phylloxerica, o governo ordenará immediatamente que se proceda á
prompta e completa extincção do mesmo fóco ou nodoa, por conta do estado,
não podendo a isso opor-se o proprietário ou quem suas vezes fizer. O governo
porém concederá uma indemnização pelos prejuízos causados, sob proposta das
estações competentes.
Art. 4.º Aos indivíduos que transgredirem as disposições d’esta lei ou dos regula­
mentos que forem decretados para a sua execução, será impostas correcional-
mente m ­ ultas que poderão variar entre os limites de 10 000 réis e 100 000 réis,
­conforme a gravidade da transgressão.

52
OLIVEIRA, 1879: 39.

38
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

Art. 5.º Fica o governo auctorisado a despender no futuro anno económico de


­1879-­1880 até á quantia de 25 000 000 réis, com aplicação aos serviços desig-
nados n’esta lei ou nos seus regulamentos, devendo propor para cada um dos
anos futuros a verba que julgar necessária.
Art. 6.º Fica revogada a legislação em contrario.
Ministerio das obras publicas, commercio e industria, em 17 de março de 187953.

Na Convenção Internacional de Berna, de 17 de setembro de 1878, e­ stabelece­ram-se


os cuidados a ter com a vigilância nas regiões indemnes, providenciando escrupulosa‑
mente sobre a introdução e as condições de transporte das plantas e objetos que ­pudessem
servir de veículo para a propagação da filoxera. O combate entretanto reali­zado contra
a dita praga mostrava que era possível reconstituir os vinhedos devas­tados pela filoxera,
por meio de processos economicamente praticáveis, e perfeitamente e­ xequível a extin‑
ção de um foco ou nódoa filoxérica em regiões consideradas indemnes.
O mesmo decreto-lei afirmava que, em Portugal, a filoxera começara os seus
­estragos em 1868 sob a forma de um mal inteiramente desconhecido, e só em 1872 ­ficara
demonstrada a existência da filoxera como causa única do mal, até então ainda limi­
tado à bacia hidrográfica do Douro. No entanto, importava combater o mal não só na
região do Douro, procurando restaurar e reconstituir as vinhas atacadas, como impedir
a propagação do flagelo às vinhas ainda isentas, e destruir, apenas reconhecida, qualquer
nódoa ou foco que aparecesse em qualquer região havida por indemne.
Nesse sentido, o governo português sentiu a necessidade de passar a letra de lei
o que dizia respeito à precaução e à vigilância da praga filoxérica, mas também aos
­processos empregados no curativo ou extinção do mal, formulados em harmonia com
a convenção internacional de Berna, no que respeitava aos meios para obstar à invasão
e propagação da filoxera. O governo português afirma que fará a sua parte, nomeada‑
mente através da constituição de uma comissão central, simultaneamente consultiva ou
executiva, auxiliada por comissões locais. O Estado ficava autorizado a exercer maior
vigilância nas vinhas ainda isentas do flagelo para, sem impedimentos de qualquer natu­
reza, empregar os meios para extinguir sem perda de tempo qualquer foco de infeção
que fosse descoberto nas regiões vinhateiras consideradas incólumes, e apostava na
­criação de postos experimentais no Douro, com técnicos competentes que ensaiassem
medicamentos para os proprietários tratarem as suas vinhas.

53
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1879: 862.

39
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

3.1. As «nodoas phylloxericas» na Escola Ampelográfica do Jardim


Botânico da Universidade de Coimbra e os tratamentos com sulfureto
de carbono
Face à ameaça da expansão da filoxera para além do Douro, o Visconde de Vila Maior
reafirmava, em 1879:

É escusado insistir na importância da Escola Ampelographica anexa ao J­ ardim


Botanico, e de quanto ella está ja sendo útil á viticultura sem mesmo notar que p­ oderá
ella vir a ser da maxima utilidade para ali se fazerem estudos e ensaios com o fim de
combater a praga da phyllozera, se tivermos a infelicidade de ver que a sua invasão se
estende a estas regiões, até hoje indemnes54.

Contudo, em 1880, foi registada a presença da filoxera na Escola Ampelográfica do


Jardim Botânico da Universidade de Coimbra, confirmando as suspeitas motivadas pela
fragilidade de algumas videiras. Escreve o Visconde:

no Jardim de Coimbra só em 1880, e na parte da vinha em que se haviam plantado


os bacellos vindos do Douro, é que ella [filoxera] se tornou patente pelos seus effeitos.
Dez anos gastou a colonia phylloxerica para se constituir e revelar a sua existência no
Jardim da Universidade55.

Face à evidência das «nodoas phylloxericas», foram efetuados os tratamentos


conhe­cidos mais eficazes de combate à filoxera, concretamente aplicação de sulfureto
de carbono ao solo, detalhadamente descritos por Júlio Henriques56 e pelo Visconde de
Vila Maior57. Ainda assim, Júlio Henriques dirigiu «uma comunicação circunstanciada
do aparecimento do phylloxera à ilustrada redacção do “Journal d’Agriculture Pratique”.
[…] A resposta sugeriu a manutenção da vinha com aplicação dos tratamentos»58.

As respostas dos editores da revista59, publicadas com a carta de Júlio Henriques,


desaconselharam a destruição da vinha, sugerindo a aplicação de novo tratamento com
sulfureto de carbono no inverno, o qual foi aplicado.
Na verdade, os resultados dos tratamentos foram encorajadores:

54
VILA MAIOR, 1879.
55
VILA MAIOR, 1881.
56
HENRIQUES, 1880a.
57
VILA MAIOR, 1881.
58
HENRIQUES, 1880a: 11.
59
HENRIQUES, 1880b.

40
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

A Collecção Ampelographica onde, se manifestou uma nodoa phylloxerica rela-


tivamente considerável, e que foi logo tratada pelo sulfureto de e que ainda no ultimo
inverno recebeu um novo tratamento, apresenta hoje [1881] todos os ­indícios de rege-
neração, e nella se não tem ultimamente encontrado uma só phylloxera, ­mostran­do-se
alem d’isso esperançosa a formação de novas raízes60.

Também o Visconde de Villar d’Allen, presidente da Comissão Central Filo­xera


nomeada em 1880, expressou satisfação por saber que «os tratamentos executados no
jardim botanico com o sulfureto de carbono produziram o desejado resultado […]
­embora seja necessário combater ainda alguma pequena reinvasão»61.
Em março de 1882, um ofício do MOPCI, assinado por Silvestre Bernardo Lima,
determinava a inspeção da coleção e da vinha do Jardim Botânico da Universidade de
Coimbra. Em dezembro do mesmo ano, a Comissão Central Anti-Filoxérica do N ­ orte
determinou o arrancamento da vinha, através de ofício do MOPCI, Repartição de
Agricultura, de 20 de dezembro de 1882. Neste ofício, o presidente da Comissão Anti-
-Filoxérica do Norte autorizava o dispêndio de verba para os trabalhos de arrancamento
da vinha e ordenava a entrega de um injetor e de dois barris de sulfureto de carbono.
Não pôde Júlio Henriques contrariar ordens superiores, pelo que, e apesar das
­evidências de sucesso dos tratamentos, se procedeu, no inverno de 1882, ao arranca­mento
da vinha. Vencido, mas não convencido, Júlio Henriques solicitou um relatório oficial que
permitisse avaliar os efeitos dos tratamentos efetuados com sulfureto de c­ arbono62.
Nesse relatório, o inspetor informou que:

de quasi todas as castas da colecção de videiras […] especialmente as estrangeiras,


foram colhidas nos pés mais robustos bons bacelos ou estacas e mandadas para a
Estação ampelo-phylloxerica da Regoa afim de ali reorganizar a mesma colecção,
visto nenhum perigo advir à região da Estação referida, também phylloxerada […].
Nenhuma intervenção directa teve o director do Jardim nos trabalhos de destruição
da vinha63.

E, assim, a «vinha das vinhas», como Morais Soares apelidara a Escola Ampelo‑
gráfica do Jardim Botânico em carta dirigida ao Visconde de Vila Maior (1877)64, uma
coleção única em Portugal, sucumbiu perante a ameaça da filoxera e o zelo excessivo da
Comissão Anti-Filoxérica do Norte.

60
VILA MAIOR, 1881.
61
COMISSÃO CENTRAL DA FILOXERA, 1881.
62
HENRIQUES, 1883-1884: 264.
63
COMISSÃO CENTRAL ANTI-FILOXÉRICA DO NORTE, 1883a; HENRIQUES, 1883-1884.
64
SOARES, 1877.

41
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 1996, Gaspar Martins Pereira chamava a atenção para a importância da «criação de
um Arquivo Histórico do Vinho do Porto» tal a dispersão, desorganização e «dificul­
dades de acesso ou mesmo inacessibilidade» de fontes de informação sobre o tema65.
Embora (ainda) não tenha sido possível apurar a razão da existência do Arquivo
do Visconde de Vila Maior e do Arquivo da Família Oliveira Pimentel no Arquivo de
Botânica do Departamento de Ciências da Vida (DCV) da Universidade de Coimbra,
o seu tratamento arquivístico e a sua disponibilização online foi do interesse da instituição
e possibilitado com o projeto O Arquivo Pessoal e Familiar do Visconde de Vila Maior —
preservar memória, divulgar o passado, financiado pela Fundação Calouste G ­ ulbenkian,
em 2015 . A existência do arquivo do Visconde de Vila Maior no DCV é bem demons­
66

trativa da dispersão de arquivos relacionados com o vinho e a vinha em ­Portugal.


Possivelmente, a forte ligação do reitor ao Jardim Botânico da universidade, muito por
causa da fundação da Escola Ampelográfica, será a razão pela qual o arquivo de Júlio
Máximo de Oliveira Pimentel terá ficado no Arquivo do Instituto Botânico, atualmente
o DCV da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra67.
O estabelecimento de uma Escola Ampelográfica no Jardim Botânico da Univer‑
sidade de Coimbra (1870-1882) deveu-se à nomeação governamental do Visconde de
Vila Maior como reitor da universidade (1869-1884).
Personalidade universal pela amplitude dos seus interesses e realizações, ­dedicou,
mercê da sua formação em química e das origens familiares, particular atenção ao
­estudo da viticultura, da ampelografia e da enologia do Douro vinhateiro. A sua deter‑
minação em dotar o país de uma coleção de castas de videiras que permitisse a respe‑
tiva preservação, caracterização e estudo da sinonímia, encontrou no Jardim Botânico
local adequado e colaboradores dedicados e empenhados: Júlio Augusto Henriques e
­Adolpho Möller. Compreensivelmente, a coleção iniciou-se com castas do Douro, mas
no período de dez anos reunia 128 castas portuguesas (do continente), 18 da Madeira
e 121 castas estrangeiras, e era, à época, a única coleção do género no país. Diversos
manuscritos do arquivo do Visconde de Vila Maior indicam claramente que os outros
objetivos cumprir-se-iam a breve trecho, com a descrição metódica e o estudo da sino‑
nímia das referidas castas.
A praga da filoxera impediu tal desígnio, embora pudesse não ter sido assim.
O químico Visconde de Vila Maior e o botânico Júlio Henriques estavam perfeitamente
a par do conhecimento científico da época sobre a filoxera e dos métodos de combate
da praga, tendo os tratamentos da vinha sido efetuados logo que as nódoas filoxé­ricas

65
PEREIRA, 1996b: 155.
66
SILVA, 2020.
67
SILVA, GOUVEIA, GONÇALVES, 2016: 4.

42
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

foram identificadas. Contudo, o veredito final da comissão regional antifiloxérica deter‑


minou o arranque da vinha em 1882, ignorando os resultados encorajadores dos trata‑
mentos e destruindo, assim, a única coleção ampelográfica nacional. Num país em que
a viticultura e a enologia assumiam, e continuam a assumir, grande relevância social e
económica, apenas em 1944 foi instalada uma coleção ampelográfica na Estação Vitivi‑
nícola Nacional, tendo sido arrancada em 196868.
Finalmente, em 1988, mais de cem anos depois da Escola Ampelográfica do J­ ardim
Botânico da Universidade de Coimbra, foi instalada a atual Coleção Ampelográfica
­Nacional (CAN), no Polo de Dois Portos do INIAV, com os objetivos de preservação da
diversidade genética intervarietal da videira em Portugal e de contribuir para resolver
os problemas de sinonímia e homonímia existentes nas diferentes regiões vitivinícolas
do país69.
No vigésimo aniversário da classificação do Alto Douro Vinhateiro como Patri­
mónio Mundial, este trabalho procura ser um contributo mais para a história da ampe‑
lografia, da viticultura e da enologia em Portugal.

FONTES MANUSCRITAS
Arquivo de Botânica da Universidade de Coimbra (PT-UC-FCT-DCV-ABUC)
ABUC. Direção (SC).
ABUC. Direção (SC), Correspondência recebida (SR).
COMISSÃO CENTRAL DA FILOXERA (1881). [Carta] 1881 jul. 20 [a] Júlio Henriques.
COMISSÃO CENTRAL ANTI-FILOXÉRICA DO NORTE (1883a). [Ofício] 1883 fev. 22 [a] Júlio
­Augusto Henriques.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1880). [Ofício] 1880 [a] Júlio Augusto Henriques.
UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1882). [Ofício] 1882 dez. 22 [a] Júlio Augusto Henriques.
VILA MAIOR, Visconde de (1877). [Carta] 1877… [a] Júlio Augusto Henriques.

ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior.


ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Catalogo Alphabetico da Escola Ampelographica, 1876.
ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Reitor (SC), Colecção das castas de vinha.
ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Reitor (SC), Correspondência recebida (SR).
AGUIAR, António Augusto de (1875). [Carta] 1875 set. 16 [a] Visconde de Vila Maior.
COMISSÃO CENTRAL ANTI-FILOXÉRICA DO NORTE (1883b). [Ofício] 1883 fev. 22 [a] Visconde
de Vila Maior.
HENRIQUES, Júlio (1877). [Carta] 1877 dez. 21 [a] Visconde de Vila Maior.
MÖLLER, Adolfo Frederico (1878). [Carta] 1878 jan. 3 [a] Visconde de Vila Maior.
SOARES, Rodrigo Morais (1873). [Carta] 1873 jun. 25 [a] Visconde de Vila Maior.
SOARES, Rodrigo Morais (1876). [Carta] 1876 abr. 21 [a] Visconde de Vila Maior.
SOARES, Rodrigo Morais (1877). [Carta] 1877 jul. 4 [a] Visconde de Vila Maior.

68
GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020.
69
GARCÍA-VEREDA, EIRAS-DIAS, 2020.

43
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

SÓCIÉTÉ RÉGIONALE DE VITICULTURE DE LYON (1871). [Carta] de 1871 jan. 27 [a] Visconde
de Vila Maior.
ABUC. Arquivo do 2.º Visconde de Vila Maior. Minutas de Correspondência expedida.
VILA MAIOR, Visconde de (1879). [Minuta de carta] [a] Director-Geral do Comércio e Indústria.

BIBLIOGRAFIA
FERNANDES, Adília (2013). Júlio Máximo de Oliveira Pimentel: reitor da Universidade de Coimbra
­(1869-1884). «Revista CEPIHS». 3, 19-40.
GARCIA, José Luís Lima (2013). O Visconde de Vila Maior e algumas das mais relevantes exposições univer-
sais do século XIX. «Revista CEPIHS». 3, 85-102.
GARCÍA-VEREDA, Ignacio; EIRAS-DIAS, José Eduardo (2020). Jardins e laboratórios de vinho: coleções
Ampelográficas em Portugal (1873-1974). In GUERREIRO, Alberto et al., eds. Enomemórias & Enotu­
rismo. O Património Secular do Vinho. História, Tradição, Identidades. Maia: ISMAI, pp. 167-189.
(Cadernos de Turismo; 6).
HENRIQUES, Júlio (1876). Jardim Botanico da Universidade de Coimbra. Coimbra: Imprensa da Universi‑
dade de Coimbra.
HENRIQUES, Júlio (1880a). Phylloxera. Apontamentos. Coimbra: Imprensa Académica. [Consult. 28 abr.
2022]. Disponível em <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k65441196/f45.item.r=henriques>.
HENRIQUES, Júlio (1880b). Le phylloxera au jardim botanique de Coimbra. «Journal d’Agriculture
­Pratique». 44:II, 39. [Consult. 28 abr. 2022]. Disponível em <https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bp‑
t6k65441196/f45.item.r=henriques>.
HENRIQUES, Júlio (1883-1884). Relatório do professor da cadeira de Botanica. «Anuário da Universidade
de Coimbra», 249-266.
HENRIQUES, Júlio (1922). Necrologia: Adolfo F. Moller; Dr. José da Ascenção Guimarães; Dr. Blas Lazaro
e Ibiza; Antonino Borzi; Sir Isaac Bayley Balfour. «Boletim da Sociedade Broteriana». 2:1, 168-174.
LAGE, Maria Otília Pereira (2013a). Visconde de Vila Maior: figura histórica de elevado capital simbólico-
social na política e na ciência. Perfil bio-bibliográfico. «Revista CEPIHS». 3, 11-17.
LAGE, Maria Otília Pereira (2013b). O Douro Ilustrado do Visconde de Vila Maior: homem de ciência, c­ ultura
e acção (século XIX). «Revista CEPIHS». 3, 103-121.
MARTINS, Conceição Andrade (1991). A filoxera na viticultura nacional. «Análise Social». XXVI: 112-113,
653-688.
MARTINS, Conceição Andrade (2005). A agricultura. In LAINS, Pedro; SILVA; Álvaro Ferreira da, orgs.
História Económica de Portugal 1700-2000. Lisboa: Imprensa de Ciências S­ociais, pp. 219-258.
Vol. II: O Século XIX.
MATA, Eugénia; VALÉRIO, Nuno (2003). História Económica de Portugal. Uma Perspetiva Global. Lisboa:
Editorial Presença.
MOTA, Guilhermina (2011). Um bolseiro em Paris em meados do século XIX: a preparação de um químico
notável, o visconde de Vila Maior. In FIOLHAIS, Carlos; SIMÕES, Carlota; MARTINS, Décio, coords.
Congresso Luso-Brasileiro de História das Ciências. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra,
pp. 260-278. [Consult. 28 abr. 2022]. Disponível em <https://www.uc.pt/congressos/clbhc/actas_con‑
gresso/#http://www.uc.pt/congressos/clbhc/actas_congresso/>.
MOTA, Guilhermina (2012). O Visconde de Vila Maior: alguns apontamentos sobre a sua vida e ação.
­«Biblos». X:2, 245-292.
MOTA, Guilhermina (2013). A ação do Visconde de Vila Maior enquanto químico: notas breves. «Revista
CEPIHS». 3, 77-83.

44
O DOURO VINHATEIRO PARA ALÉM DAS MARGENS. A ESCOLA AMPELOGRÁFICA DO JARDIM BOTÂNICO
DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA (1870-1882)

MOTA, Guilhermina (2020). A herança do 2.º Visconde de Vila Maior. «Boletim do Arquivo da Universi­
dade de Coimbra». XXXIII, 69-93. DOI: 10.14195/2182-7974_33_2_3.
MOTA, Guilhermina (2021). A livraria de Júlio Máximo de Oliveira Pimentel (1809-1884), 2.º V ­ isconde
de Vila Maior. «Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra». XXXIV:2, 91-245. DOI:
10.14195/2182-7974_34_2_5.
OLIVEIRA, Paulino (1879). Le Phylloxera et le sulfure de carbone en Portugal. «Journal de l’Agriculture».
(27 de setembro) 39.
OLIVEIRA JÚNIOR, José Duarte (1870). Phylloxera Vastratix. «Jornal de Horticultura Prática». I, 139.
PEREIRA, Gaspar Martins (1989). A produção de um espaço regional. O Alto Douro no tempo da filoxera.
«Revista da Faculdade de Letras — História». II:VI, 311-353.
PEREIRA, Gaspar Martins (1996a). A região do vinho do Porto — origens e evolução de uma demarcação
pioneira. «Douro — Estudos e Documento». I:1,177-194.
PEREIRA, Gaspar Martins (1996b). A Viticultura duriense e o vinho do Porto na época contemporânea
(Notas para um programa de pesquisa). «DOURO — Estudos & Documentos». 1:2, 155-165.
PIMENTEL, Júlio Máximo de Oliveira (2014). Memórias — Visconde de Vila Maior. Coimbra: Palimage.
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (1879). Lisboa: INCM, 862.
REIS, Catarina Shreck et al. (2014). No Jardim há Histórias Sem Fim. Coimbra: Jardim Botânico da Univer‑
sidade de Coimbra e Imprensa da Universidade de Coimbra.
RIVAS CALVO, Emílio; D’ABREU, Carlos (2013). O iberismo de Júlio Máximo de Oliveira Pimentel e a defesa
da união aduaneira. «Revista CEPIHS». 3, 51-76.
SAMBADE, Carlos (2013). Os Oliveira de Pimentel de Moncorvo: notas para um memorial. «Revista
­CEPIHS». 3, 41-49.
SARDICA, José Miguel (2004). Soares, Rodrigo Morais. In MÓNICA, Maria Filomena, dir. Dicionário
­Biográfico Parlamentar. Lisboa: ICS, vol. III, pp. 776-777.
SEQUEIRA, Eduardo (1891). Adolpho Frederico Moller. Esboço biographico. «Jornal de Horticultura
­Pratica». XXII, 18.
SILVA, Ana Margarida Dias da (2017a). Pressupostos teóricos e metodológicos aplicados aos arquivos pessoais:
o caso do arquivo de Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, 2.º Visconde de Vila Maior. In SANTOS, Eliete
Correia dos; SILVA, Alzira Karla Araújo; CARVALHO, Ediane Toscano Galdino de, org. Arquivo­
logia: História, Tipologias e Práticas Profissionais. Paraíba: EDUEPB, pp. 99-128.
SILVA, Ana Margarida Dias da (2017b). «De Vossa Excelência admirador e servo humilde». Catá­logo
da Corres­pondência recebida de Júlio Máximo de Oliveira Pimentel, 2.º Visconde de Vila Maior
­(1851-1884). «Boletim do Arquivo da Universidade de Coimbra». XXX, 133-268.
SILVA, Ana Margarida Dias da (2020). O arquivo da família Oliveira Pimentel, de Torre de Moncorvo (Séculos
XVII-XIX): classificação e representação da informação. In Actas do 5.º Congresso Internacional Casa
Nobre – Um património para o futuro. Arcos de Valdevez: Câmara Municipal de Arcos de Valdevez,
pp. 377-385.
SILVA, Ana Margarida Dias da; GOUVEIA, António do Carmo; GONÇALVES, M. Teresa (2016). ­Visconde
de Vila Maior: o arquivo (s)em reserva. Catálogo da exposição documental. Coimbra: Sociedade
­Broteriana.
SILVA, D. A. Tavares da (1930). Da Ampelographia. «Anais do ISA». 13, 151-175.
VILA MAIOR, Visconde de (1865-1869). Preliminares de ampelographia e oenologia do país vinhateiro do
Douro. Lisboa: Imprensa Nacional.
VILA MAIOR, Visconde de (1870a). Estudos Ampelographicos (I). «Jornal de Horticultura Prática». I,
­33-36.
VILA MAIOR, Visconde de (1870b). Estudos Ampelographicos (II). «Jornal de Horticultura Prática». I,
­49-52.

45
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

VILA MAIOR, Visconde de (1870c). Estudos Ampelographicos (III). «Jornal de Horticultura Prática». I,
65-68.
VILA MAIOR, Visconde de (1875). Manual de viticultura practica. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra.
VILA MAIOR, Visconde de (1876). O Douro Ilustrado: album do Rio Douro e paiz vinhateiro: introdução e
memoria descriptiva. Porto: Magalhães & Moniz.
VILA MAIOR, Visconde de (1878-1879). Notícia da Eschola Ampelographica do Jardim Botanico da Univer-
sidade de Coimbra. «O Instituto». XXVI, 17-28.
VILA MAIOR, Visconde de (1881). Manual de viticultura practica. Porto: Ernesto Chardon.

46
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA
DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO
XIX PARA O SÉCULO XX — JOSÉ TEIXEIRA
REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE
DE LAMEGO
ISILDA MONTEIRO*
CONCEIÇÃO MEIRELES PEREIRA**

Resumo: Nas últimas décadas, os estudos em torno da história da vinha e do vinho da região do Douro
têm-se multiplicado, com destaque para o vinho do Porto, pela dimensão económica e social de que se
reveste. Contudo, o Douro vinícola tem outras vertentes. O vinho espumante produzido na região com
enquadramento empresarial constitui uma inovação na vitivinicultura duriense do final de Oitocentos,
que merece ser analisado historicamente. Compreender como foi introduzida na região esta técnica de
vinificação importada de França, identificar os protagonistas dessa inovação na vitivinicultura duriense,
analisar as dinâmicas sociais e económicas de Lamego, cidade, onde, entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX, surgiu uma empresa de sucesso vocacionada para a produção de espu-
mante, são os objetivos desta investigação. O estudo, cujas balizas cronológicas se situam entre as
­décadas de 1880 e 1940, baseia-se em diversas fontes, em especial fontes periódicas — jornais publicados
em Lamego e no Porto —, mas também fontes arquivísticas públicas — registos paroquiais e notariais —,
bem como fontes de arquivos particulares, familiares e empresariais. Nascido e criado em Lamego, José
Teixeira Rebelo Júnior, juntamente com o sogro, Adelino Pereira do Vale, constituiu, nos últimos anos do
século XIX, uma firma familiar que rapidamente se impôs no mercado nacional e brasileiro, trazendo no
domínio vitivinícola uma nova imagem para a cidade e para a região. Do estudo realizado, ressalta a
capacidade empreendedora destes homens que, aproveitando as oportunidades e buscando os apoios
necessários, souberam procurar as técnicas e os produtos que se constituíssem como uma alternativa à
crise vitivinícola que então grassava no Douro.
Palavras­‑chave: vinho espumante; Lamego; história empresarial; José Teixeira Rebelo Júnior; 1880-1947.

Abstract: In the last decades, studies on the history of vineyards and wine in the Douro region have
multiplied, with emphasis on Port wine, due to its economic and social dimension. However, the Douro
wine region has other aspects. The sparkling wine produced in the region with a business framework
constitutes an innovation in Douro winemaking at the end of the 19th century, which deserves to be
historically analyzed. To understand how this winemaking technique imported from France was intro-
duced in the the region, to identify the protagonists of this innovation in Douro, to analyze the social and
economic dynamics of Lamego, a city where, between the end of the 19th century and the first decades
of the 20th century, a successful company dedicated to the production of sparkling wine emerged, are the
goals of this research. The study, whose chronological landmarks are located between the 1880s and the
1930s, is based on several sources, especially newspapers (published in Lamego and Porto), but also
archival sources, both public (parish and notarial records) as private, coming from family and business
archives. Born and raised in Lamego, José Teixeira Rebelo Júnior, together with his father-in-law,

* Professora Adjunta da Escola Superior de Educação Paula Frassinetti (Porto) e Investigadora do CITCEM.
** Professora Associada com agregação no Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais da Faculdade de
Letras da Universidade do Porto. Investigadora Integrada do CITCEM.

47
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Adelino Pereira do Vale, established, in the last years of the 19th century, a family firm that quickly settled
itself in the national and Brazilian market, bringing a new image to the wine sector for the city and the
region. This paper highlights the entrepreneurial capacity of these men who, taking advantage of
opportunities and seeking the necessary support, knew how to look for techniques and products that
would constitute an alternative to the wine crisis that was then raging throughout the Douro.
Keywords: ampelography; viticulture; Viscount of Vila Maior; Júlio Augusto Henriques; personal archive.

INTRODUÇÃO
Se é verdade que a historiografia sobre a vitivinicultura duriense, sobretudo relativa ao
vinho do Porto, tem proliferado nas últimas décadas, não é menos incontestável que
o estudo da produção do vinho espumante nessa região revela um défice assinalável,
com especial relevância em Lamego e na região do Távora-Varosa, locais ainda não
­abordados no tocante a este assunto.
Na realidade, é praticamente inexistente a produção historiográfica sobre o vinho
espumante no território português. Existe apenas escassa e dispersa bibliografia sobre a
produção vinícola no Douro e na Bairrada, bem como informações pertinentes em sites
de marcas de vinhos. Sobre o vinho espumoso produzido por Le Cocq, em Castelo de
Vide, no início da década de 1850, há referências num artigo1.
Nesta conformidade, colocam-se como objetivos primordiais deste estudo contex‑
tualizar o surgimento, no Douro, da produção do vinho segundo o método champanhês,
com a qualidade e a quantidade necessária para abastecer o mercado nacional e interna‑
cional, e, mais especificamente, identificar e compreender a ação de José Teixeira Rebelo
Júnior no que concerne aos primórdios da produção do vinho espumante em Lamego.
As fontes utilizadas são de natureza variada: arquivística, como registos paroquiais e
notariais, assim como documentação do Arquivo das Caves da Raposeira; hemerográ‑
fica, com a consulta da imprensa lamecense, mas também de periódicos de Lisboa e do
Brasil, além do «Diário do Governo»; e outras fontes impressas, concretamente diversos
estudos sobre a viticultura e o vinho espumoso, tanto a nível nacional como especifica‑
mente no Douro, na segunda metade do século XIX e inícios do seguinte.

1. BREVE ENQUADRAMENTO HISTÓRICO — OS VINHOS


ESPUMOSOS EM PORTUGAL
A primeira metade de Oitocentos, já para o seu final, assistiu a experiências pontuais de
produção de vinhos espumosos, todavia, sem menção ao método utilizado. Em 1844,
num dos seus ensaios, Francisco Rubião evidenciou a importância do método na fabri­
cação dos vinhos e criticou os portugueses por se fiarem quase exclusivamente no
­clima e terreno, descurando o que os especialistas recomendavam, desde os processos

1
CANELAS, 2008.

48
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

à ­necessidade da sua constante inovação, acomodação ao gosto e moda, etc., situação


que explicava os poucos progressos da enologia no país, ao contrário de França, que
apontava como m ­ odelo neste domínio2. Deu notícia que a fabricação dos vinhos espu­
mosos vinha sendo tentada por alguns portugueses, mas esses ensaios, «feitos mais por
curiosidade, não têm sido praticados em grande, posto que o seu trabalho tenha corres‑
pondido a t­odas as esperanças»3. Não indica, no entanto, claramente os métodos utili‑
zados, fazendo apenas, ao longo do texto, pequenas referências a aspetos específicos da
fabricação dos espumosos, como a altura do envasilhamento ou o estado de madureza
da uva, pese embora fosse conhecedor do método utilizado na região de Champagne,
já que, na vindima de 1831, visitara, em Epernay, o grande estabelecimento de fabrico e
comércio de vinhos espumosos de Moët, que com ele partilhou, pelo menos, a fórmula
das suas cubas de madeira4.
Num registo teórico pioneiro a nível nacional, João Baptista Lúcio indicou, com
algum detalhe, requisitos, métodos e cuidados para imitar o «vinho de Champanhe»5,
deixando uma exortação final à sua produção, pois, não obstante o seu grau de dificul‑
dade, traria benefícios substanciais:

Não pretendo dissimular que em todas as operações do processo que fica ­descrito
para a conversão dos nossos vinhos, em vinhos espumosos de Champanhe, se carece de
muita inteligência e de génio empreendedor para adquirir-se uma boa prática; porém
conseguida esta já não nos resta a vencer senão pequenas dificuldades que facilmente
cedem diante de nossos pequenos esforços. Mas por que um trabalho apresenta graves
inconvenientes, devemos nós sucumbir diante destes, e abandonar a esperança de
avultados lucros, e mesmo a honra, que daquele trabalho nos podem provir? Seremos
nós menos capazes de conceber e executar, do que o são os estrangeiros? Decerto não.
Não foram já os povos da Borgonha, os da Alemanha, e outros, nesta parte imitadores
dos povos de Champanhe, onde há um século não era conhecido o meio de preparar
vinhos espumosos, e cujos processos talvez se devam ao acaso? Pois bem, sigamos
nós igualmente aqueles exemplos, demos novas forças ao nosso comércio de vinhos,
e ­subtraímo-nos ao oneroso imposto que deste género pagamos aos estrangeiros6.

Prova de que havia preocupação em ensinar estes processos encontra-se no vasto


programa da cadeira de Engenharia e Artes Agrícolas que João Andrade Corvo regeu
no Instituto Agrícola de Lisboa, no ano letivo 1853-1854: uma alínea relativa ao p
­ onto

2
RUBIÃO, 1844: VIII-XII.
3
RUBIÃO, 1844: 13, nota 1.
4
RUBIÃO, 1844: 205.
5
LÚCIO, 1846: 50-62.
6
LÚCIO, 1846: 61-62.

49
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

«Líquidos fermentados» referia-se aos processos empregados em Portugal na fabri­


cação de vinho branco e concluía com a específica menção: «Dos vinhos espumosos»7.
Neste instituto, químicos destacados como Ferreira Lapa ou António Augusto de Aguiar,
que desenvolveram importantes estudos que em beneficiaram a qualidade dos vinhos
portu­gueses, seriam regentes de cadeiras.
Certas obras aludiam aos vinhos espumosos de forma mais ou menos indireta,
como no livro Enxofre e Vinho, onde António Batalha Reis sublinhou que estes vinhos,
«sujeitos a um contínuo desenvolvimento de ácido carbónico, a que o ­mercado está
­habituado e que estima por alto preço», não se deviam enxofrar, pois i­nibia a fermen­
tação que lhes fornecia o ácido carbónico «pelo constante desdobramento do açúcar,
e que lhe faz subir o valor»8.
Aliás, a especificidade do ácido carbónico foi matéria recorrentemente abordada
nas obras da época que analisavam os processos químicos da produção vinícola, como
é exemplo o estudo de farmácia de Magalhães Ferraz que, entre outros esclarecimentos,
evidenciava que os ácidos eram produtos secundários na composição dos vinhos, «a não
ser o ácido carbónico nos vinhos espumosos»9.
Por meados da centúria, no Alentejo, João José Le Cocq produziu, a título expe‑
rimental, vinho espumoso na sua Quinta do Prado, em Castelo de Vide, que enviou
para a Exposição Universal de Paris, de 185510. Já para a Exposição Universal de Londres,
de 1862, o vitivinicultor francês enviou amostras de «vinho gasoso» de 1858 e 1859.
Nos certames internacionais que se realizaram posteriormente — Londres (1874)11,
­Fila­délfia (1876) e Paris (1878) —, a produção da Quinta do Prado esteve representada
por vários tipos de vinhos — tinto, branco, moscatéis, entre outros —, mas não por espu­
mosos ou gasosos12.
Em 1852, na segunda edição da sua multifacetada obra sobre a Estremadura13,
o espanhol José de Viu referiu-se à visita que fez à Quinta do Prado de Le Cocq, deixando
informações interessantes sobre o vinho «semelhante ao Champanhe» que aí se produzia:

Cada una de las variedades es cultivada, vendimiada y prensada con sepa­


ración; y luego, ya mezclando, ya combinando, o ya fabricando á parte y con todo
conocimiento, resulta que [Le Cocq] siempre tiene provista su bodega de exce­lente
Porto, Madeira, Jerez, Málaga, y de otro gaseoso muy semejante al Champaña,

7
PORTUGAL, 1853: 1035.
8
REIS, 1871: 48.
9
FERRAZ, 1876: 48.
10
Catalogo dos Productos da Agricultura, e Industria Portugueza […], 1855: 20.
11
Como confirmado em Breve Noticia da Viticultura Portugueza […], 1874, sem qualquer menção à representação
portuguesa de vinhos espumosos.
12
CANELAS, 2008: s.p.
13
A primeira edição tinha sido publicada em 1846.

50
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

a­ creditado en Lisboa con el nombre particular de vino de Prado. Para la preparación


en general usa de diferentes máquinas de su invención, y pisa y exprime con facilidad,
con economía e con sumo aseo14.

Pode depreender-se destas palavras que Le Cocq não usaria o método champa‑
nhês; era um homem que gostava de inovar na agricultura e, como Viu não deixou de
mencionar, utilizava máquinas que o próprio criava.
O barão de Forrester, por sua vez, apresentou vinhos espumosos na Exposição Agrí-
cola do Porto, de 1860, os quais «não ficaram muito abaixo dos melhores Sillery», como
o especialista químico Ferreira Lapa deixou registado numa obra de 1874, que muito
­espaço dedicou às questões técnicas relativas à produção dos espumosos: ­referimo-nos
ao estudo de Ferreira Lapa que versava o amplo tema da tecnologia rural, em cujo capí‑
tulo VII — Vinhos especiais —, depois de abordar os brancos e os moscatéis, d ­ emorou-se
na exposição sobre os espumosos da região de Champagne, mas sem esclarecer os
­métodos usados por Forrester ou qualquer outro produtor português15.
Em 1861, uma tabela publicada no diário oficial indicava os direitos a pagar ­pelos
géneros de produção portuguesa e estrangeira em função da tarifa das alfândegas brasi­
leiras fixada pelo decreto de 3 de novembro de 1860, e entre esses produtos encontra‑
vam-se os «vinhos espumosos de qualquer qualidade», por sinal, excetuados de 50%
mais que pagavam os restantes vinhos engarrafados ou acondicionados em vasilhas de
vidro ou louça16.
Nesta altura, a produção de vinhos espumosos era, pois, muito residual, confinada
a casos esporádicos de experimentação mais audaz, longe de metodologias consagradas
ou quantidades significativas. Não surpreende que a comissão que estudou os p ­ rocessos
de vinificação em Portugal, nas vindimas de 1866 e 1867, em visitas aos locais, não
­tivesse referido os vinhos espumosos17. No final da década de 1880, Pereira Coutinho
testemunhou isso mesmo, no Douro produziam-se vinhos espumosos a título experi‑
mental e, em Lisboa, vendia-se vinho espumoso dos Le Cocq, produzido em Castelo
de Vide, o qual se apresentou em ótimas condições na exposição de 1884, na Tapada da
Ajuda, onde obteve medalha de prata18.
A aposta nos vinhos espumantes derivou da conjuntura recessiva causada pela filo‑
xera, que, no Douro, constituiu uma oportunidade de inovação nos processos e técnicas
de vinificação, como Conceição Martins bem frisou, e no âmbito da qual se inseriu a
introdução do método champanhês para produzir vinho espumoso, embora a referida
autora não mencione nunca os vinhos espumosos:
14
VIU, 1852: 256-257. Optou-se pela atualização da grafia das transcrições das fontes documentais.
15
LAPA, 1874: 314-320.
16
«Diário de Lisboa», 15 jan. 1861: 105.
17
Memoria sobre os Processos de Vinificação […], 1867; Segunda Memoria sobre os Processos de Vinificação […], 1868.
18
COUTINHO, 1889: 274.

51
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

De facto, as sucessivas doenças que atingiram as vinhas a partir da década de


1850 (oídio, filoxera, míldio, maromba, antracnose, etc.) funcionaram como fatores
de aceleração da introdução, divulgação e generalização de novas práticas culturais
e de processos e técnicas de vinificação mais aperfeiçoados, e contribuíram decidi­
damente para a modernização da vitivinicultura portuguesa19.

2. A REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL


E A IMPLEMENTAÇÃO, NO DOURO, DO MÉTODO
CHAMPANHÊS PARA A PRODUÇÃO DE VINHOS ESPUMOSOS
Na região duriense, a criação da Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, no final
da década de 1880, veio intensificar o debate em torno da questão vinícola, acentuando
a divergência de posições entre produtores, defensores da implementação de um sistema
de regulação protecionista, e exportadores de vinhos, adeptos da manutenção do livre-
-cambismo. Ambicionada pelos primeiros e criticada pelos segundos, a Real ­Companhia
Viní­ cola, sociedade anónima de responsabilidade limitada, viu-se enredada num
­complexo jogo de interesses e poder que, com cedências e reajustes, acabou por vencer.
Suplantado o primeiro obstáculo — o recuo do governo progressista de Luciano
de Castro, por pressão da Associação Comercial do Porto20, que obrigou à assinatura de
um novo contrato, em 15 de março de 188921, menos vantajoso, de acordo com o Conde
de Samodães22, do que o anterior, celebrado em 5 de dezembro de 1888 —, seguiu-se-
-lhe um segundo obstáculo que também veio a ultrapassar. Em novembro desse mesmo
ano, após a denúncia de Rodrigues de Freitas na imprensa23, o governo considerou o
referido contrato de 15 de março nulo e sem efeito, alegando o incumprimento do prazo
de noventa dias contratualmente definido para a sua constituição (art.º 8.º) e a aquisição
indevida de ações pela Liga dos Lavradores do Douro24. O processo arrastou-se pelos
meses seguintes até que, em 22 de junho de 1890, na sequência do recurso apresentado
pela companhia, esta foi considerada legalmente constituída por sentença do Tribunal
Arbitral25, embora, segundo a direção, isso não tenha ditado o final da luta26.
Em todo este processo, foi determinante o prestígio social e político dos homens
que idealizaram e fundaram a companhia — o Conde de Samodães, o Visconde de V ­ ilar
de Allen, Manuel Duarte e José Joaquim Guimarães Pestana da Silva, Manuel de
­Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, Joaquim Pinheiro de Azevedo Leite, António

19
MARTINS, 2008: 69.
20
ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DO PORTO, 1889.
21
PORTUGAL, 1889c: 813-814.
22
SAMODÃES, 1889: 4-5.
23
FREITAS, 1890.
24
SAMODÃES, 1889.
25
Processo arbitral […], 1890: 35-46.
26
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1891: 47.

52
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

Carlos Correia Pinto de Lemos e José Taveira de Carvalho Pinto de Meneses. G ­ randes
proprietários, a maioria destes homens integrava a elite duriense que, no final do ­século
XIX, se empenhou «fortemente nas reivindicações regionais de intervenção do Estado,
[…] susci­tando agitação política e social»27. Foram eles que negociaram com o poder
polí­tico o apoio financeiro e o seu campo de ação, elaboraram os estatutos aprovados
em 30 de março de 188928, asseguraram a sua defesa e, assumindo os cargos dire­tivos,
a ­puseram em funcionamento para dar cumprimento ao contrato celebrado com o
­governo e às cláusulas estatutárias. No contrato celebrado em 15 de março de 1889,
­estipulava-se que além dos objetivos gerais, a companhia tinha a obrigação de:

desenvolver o comércio de exportação de vinhos da sua circunscrição e dos tipos


comer­ciais de lotação para o império da Alemanha, estabelecendo para isso um depó­
sito comercial em Berlim, no qual exclusivamente estarão armazenados e expostos
ao público os vinhos da companhia e os dos produtores e comerciantes portugueses,
e cuja propaganda e vulgarização na Alemanha ficará a cargo da nova companhia29.

O depósito de Berlim seria constituído por armazéns situados nessa cidade e por
aqueles que a companhia entendesse dever estabelecer em Hamburgo ou num outro
qualquer porto da Alemanha. A estes, deveria juntar outros três, no período de quinze
anos, na Alemanha ou nos países onde convier e se acordar com o governo30.
Compreensivelmente mais alargados são os objetivos exarados nos «Estatutos da
Real Companhia Vinícola», entre os quais, no âmbito deste estudo, se destacam:
· comprar vinhos nacionais e vendê-los no país e no estrangeiro, «conservando-
-lhes a justa fama, empregando todos os meios para que eles cheguem aos seus
comitentes, puros, genuínos e em conformidade com as ordens recebidas»;
• sustentar o crédito dos vinhos portugueses onde eles já fossem conhecidos e levá-
-los aonde o não fossem;
• explorar o mercado alemão, estabelecendo ali depósitos comerciais, especial‑
mente com vinhos de região e em lotes, e organizando tipos definidos, que
­pudessem ter mais larga exportação;
• fazer exportação e venda dos vinhos portugueses ou com o nome da região
produ­tora, ou, quando lotados, com a indicação genérica de vinho português;
• receber nos seus depósitos gerais especiais vinhos dos produtores que aí os
­quisessem depositar e exercer as funções de agência, como intermediária entre

27
SEQUEIRA, 2011: 263.
28
PORTUGAL, 1889b: 796-799.
29
PORTUGAL, 1889c: 814, art.º 3.º.
30
PORTUGAL, 1889c: 814, art.º 3.º.

53
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

os produtores e compradores, para a venda dos seus vinhos e de acordo com as


ordens recebidas;
• promover o aperfeiçoamento da viticultura e do fabrico dos vinhos, publicando
instruções para esclarecer os processos que se deviam empregar, conforme os
gostos dos mercados a que se destinavam31.

Entre os fundadores da Real Companhia Vinícola, dois nomes assumem especial


relevância — o do Conde de Samodães e o do Visconde de Vilar de Allen. Enquanto o
primeiro — Par do Reino, figura de destaque na sociedade portuense, com uma i­ntensa
atividade associativa e política, tendo desempenhado, entre 1851 e 1871, as funções de
deputado, ministro da Fazenda e governador civil32 — assumiu, por diversos meios,
a defesa da empresa33, o Visconde de Allen foi, enquanto enólogo, o homem no terreno.
Responsável pela gerência técnica, Allen ocupou os primeiros meses de exercício
da sua função com uma viagem pela Europa — a Berlim, Hamburgo e Paris, para esta‑
belecer depósitos comerciais; a Roterdão para estabelecer uma agência da companhia; a
Londres para lançar as bases do comércio com a Inglaterra. Deste périplo, trouxe, além
das bases dos contratos a fazer, «os seus apontamentos, os seus estudos e informações»34,
que certamente terá tido em conta na «prova, análise e exame de a­ mostras, adminis­
tração de armazéns, preparação de lotes e tipos e expedição de vinhos para expor­tação
para o estrangeiro e consumo no país»35. Os membros do conselho fiscal, no parecer que
emitiram sobre o relatório elaborado pela direção relativo a 1889, o primeiro ano da Real
Companhia Vinícola, sublinharam a acreditação de novos tipos de vinho de consumo
como um objetivo definido pela empresa para destacar o papel essencial d ­ esempenhado
por Allen, «distinto enólogo», na «criação e formação de verdadeiros ­tipos de vinho de
consumo»36, alguns dos quais já lançados pela companhia no mercado e que «consti‑
tuem grande esperança»37. Por essa razão, propuseram um voto especial de louvor ao
Visconde de Allen em reconhecimento dos serviços prestados à empresa em 188938, voto
esse que voltaram a enunciar no ano seguinte no parecer sobre o relatório relativo às
atividades desenvolvidas em 189039.
Embora o conselho fiscal não indique os novos tipos de vinho promovidos pelo
enólogo da companhia, entre estes incluir-se-iam, certamente, os vinhos espu­mosos

31
PORTUGAL, 1889b: 796, art.º 2.º.
32
MONTEIRO, 2017: 111.
33
GONÇALVES, 2003.
34
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 20.
35
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 21.
36
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 50.
37
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 51.
38
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 52.
39
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1891: 39.

54
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

produ­zidos segundo o método champanhês, vinhos esses que, ainda antes de ter
­assumido essas funções, Allen defendera publicamente deverem ser uma aposta da viti‑
vinicultura nacional. No relatório que fez em 23 de fevereiro de 1889 para o Ministério
das Obras Públicas, Comércio e Indústria, como delegado da circunscrição do Norte
à exposição dos vinhos portugueses em Berlim, de 1888, o enólogo refere ter sido sua
a ideia de aí apresentar vinhos «para matéria prima de espumosos»40, provenientes do
Minho, Beira e Douro. Relativamente a esta última região, indica especificamente os
vinhos do concelho de Lamego, produzidos pelo Conde de Alpendurada e por Miguel
Moreira da Fonseca, assinalando que foram muito apreciados e considerados de muita
qualidade «para a fabricação de vinhos espumosos de primeira ordem», podendo «vir a
ser um grande recurso ao consumo da crescente produção vinícola». Segundo ele, com
este primeiro vinho produzido, «a experiência está feita; resta pôr em prática, prudente e
discretamente o fornecimento do género, que nos parece há de agradar e pode competir
com os seus congéneres em todos os mercados»41. Os mesmos produtores de Lamego,
aliás, no ano seguinte, virão a expor os seus vinhos na exposição de Paris, apresentando
o Conde de Alpendurada um vinho branco maduro com «bouquet a champagne»42.
Como se pode assim verificar, no final da década de 1880, as referências a vinhos
espumosos produzidos no país e, em especial, na região do Douro, com qualidade para
serem expostos à apreciação do mercado estrangeiro, são escassas e denotam o caráter
experimental da sua produção, sem especificar o método utilizado no seu fabrico.
Esta situação alterou-se com a criação da Real Companhia Vinícola do N ­ orte de
Portugal que, em novembro de 1891, apresenta, pela primeira vez, vinho espu­moso
produ­zido «pelo sistema de Champagne»43 na Exposição Industrial Portuguesa no ­Palácio
de Cristal, no Porto, organizada pelo Palácio de Cristal Portuense, de cuja d­ ireção faziam
parte dois dos fundadores da companhia — o Conde de Samodães, presidente, e José
­Taveira de Carvalho Pinto de Meneses, vice-presidente e secretário —, e que inte­graram
a comissão organizadora. Uma circunstância que terá certamente facilitado a partici­
pação no evento da Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, passados pouco
mais de dois anos sobre a sua constituição.
Foi, assim, na Exposição Industrial Portuguesa do Palácio de Cristal, inaugurada
pelo monarca D. Luís em 22 de novembro de 189144, que a Real Companhia Viní­cola
apresentou pela primeira vez ao público, com a sua marca, o vinho espumoso Alto Douro
Cristal e Portugal Flor (primeira reserva, seco, extrasseco e «bruto ou bravo»). O método
utilizado na produção destes vinhos não oferece dúvidas, uma vez que a c­ ompanhia

40
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1889: 60.
41
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1889: 66.
42
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1890: s.p.
43
Catalogo da Exposição Industrial Portugueza em 1891 […], 1892: 93.
44
«O Comércio do Porto», 24 nov. 1890: 1.

55
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

expôs também o material que usou no seu fabrico e arrolhamento, e que, nos ­primeiros
dias, os visitantes tiveram a oportunidade de ver a funcionar — «­ estantes de agitar
­(pupitres), cheias de garrafas, com vinho, para desengasgar», «saca-rolhas hori­zontais
­sobre pé firme, para desarrolhar quando as rolhas quebram durante o desengasga­
mento», ­«primeiros torniquetes destinados a segurar as garrafas desengasgadas, por
meio de molas que lhe impelem os gargalos contra tampões cónicos de c­aoutchouc,
­retendo o gás completamente», aparelhos de dosagem para «atestar as garrafas desen­
gasgadas», segundos torniquetes para evitar a saída do gás, máquinas de ­arrolhar,
­aparelhos de açamar «destinados a prender as rolhas com um açame de fio de ferro,
em lugar do arame comum e do cordel» e máquinas «de eletrizar, destinadas a fazer
­despegar os preci­pitados da fermentação quando ficam aderentes ao vidro das garrafas,
sem ­correrem para os gargalos»45.
Sobre o pioneirismo da Real Companhia Vinícola na produção de vinho espu­
moso, pode ler-se no Catálogo da Exposição Industrial Portuguesa em 1891:

Como grande indústria, é a Real Companhia Vinícola a iniciadora dos vinhos


espumosos do Alto Douro e dos vinhos de lotação portugueses espumosos.
Os vinhos do Alto Douro, ou antes do Douro Alto, bem escolhidos para serem
apropriados a esta indústria, apresentam-se com uma grande semelhança em flavor
aos do Marne, sendo esta qualidade a que principalmente instigou o sr. Visconde
de Vilar de Allen, gerente técnico da Companhia, a aproveitá-los para espumosos,
tornando-os tais, com a aplicação rigorosa dos mais perfeitos sistemas adotados na
Champagne46.

O caráter inovador da companhia na produção dos vinhos espumosos, em­


Portugal, «como grande indústria enológica», foi novamente sublinhado poucos anos
­depois, em 1896, pelo próprio Visconde de Allen, na Breve Noticia sobre alguns ­vinhos
portuguezes principalmente dos que vende a Real Companhia Vinicola do N ­ orte de
­Portugal. Sobre os vinhos espumosos, aos quais dedica um capítulo, refere a boa ­aceitação
do ­produto, fazendo questão de notar que essa aceitação seria ainda maior se a opção
tivesse sido a de «adotar rótulos estrangeiros com a denominação de champagne e preços
mais ­subidos»47, justificando — «temos para nós a certeza de que vendemos um vinho
que se pode comparar com boas marcas daquele seu congénere; existem em nossa mão
provas escritas de conhecedores eminentes estrangeiros que o provaram em paralelo a
essas afamadas marcas e classificaram a sua qualidade igual àquela»48.

45
Catalogo da Exposição Industrial Portugueza em 1891 […], 1892: 94-95.
46
Catalogo da Exposição Industrial Portugueza em 1891 […], 1892: 95.
47
VILAR DE ALLEN, 1896: 49.
48
VILAR DE ALLEN, 1896: 49-50.

56
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

O investimento da companhia nos vinhos espumosos produzidos no Douro


c­ ontinuou após a exposição no Palácio de Cristal. Em 30 de julho de 1894, a Repar­
tição da Indústria do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, que, desde
1883, recebia os pedidos de registo das marcas dos produtos industriais e comerciais49,
­inclui na lista publicada no «Diário do Governo» relativa àquele mês, pela primeira vez,
a dos vinhos espumantes da Real Companhia Vinícola — a do Alto Douro extrarre­serva
e ­primeira reserva50. Nos anos seguintes, outras marcas serão registadas pela referida
­empresa. ­Tratava-se de um produto prometedor, o que justifica que nas Instruções regu-
lamentares para a revenda de vinhos, aguas-ardentes e vinagres da Real Companhia Viní­
cola do Norte de Portugal, datadas de novembro de 1894, quando se determina que os
revendedores da cidade do Porto ou de outras localidades da região norte do país eram
obrigados a ter nos depósitos, à venda, os vinhos engarrafados, se abrisse uma exceção
para os vinhos espumosos, referindo-se especificamente sobre esses «que a Direção se
reserva o direito de vender em quaisquer locais concedendo uma comissão não inferior a
7% àqueles revendedores que quiserem ter nos seus depósitos estes vinhos»51.
Apostada em montar uma boa rede de divulgação e distribuição dos seus ­produtos,
a Real Companhia Vinícola fez chegar, com sucesso, os seus vinhos espumosos aos
­mercados europeu e africano. Em 1896, os vários tipos de vinho espumoso Alto ­Douro
constam do Catálogo dos vinhos enviados para Exposição na África do Sul52 e, no ano
seguinte, em 14 de fevereiro, foram objeto da apreciação do cônsul de Portugal em
­Pretória, Demétrio Cinatti, no relatório que enviou para Lisboa:

O Alto Douro Bruto, da Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, modi­


ficado, seria de ótima concorrência e fácil introdução. Tenho-o visto apreciar: a sua
cor agrada, o seu bouquet assemelha-se muito ao dos antigos verdadeiros Cliquot
Pousardin, o seu preço é razoável, tem bastante base espumante, que, todavia, não
conserva depois de vertido no copo, onde deve manter uma ação continua de acido
carbónico a subir, e finalmente não é bastante seco53.

A modificação deveria fazer-se, segundo Cinatti, «quanto ao grau sacarino e modo


de desenvolvimento do ácido carbónico», tendo condições para, na África do Sul, «dar
vitorioso cheque a todos os outros estrangeiros, se conservar a sua cor, o seu bouquet e o
vinho base, que são excelentes».

49
PEREIRA, CRUZ, 2017: 410.
50
PORTUGAL, 1894b: 2756.
51
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1894, art.º 5.º, n.º 2.
52
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1896: 44.
53
PORTUGAL, 1897: 41.

57
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Relativamente aos outros «Champagnes» da companhia, o cônsul refere que


«­ serão ótimos para o Brasil e nossas colónias, mas não podem satisfazer aqui, porque,
cá ­pelas Áfricas, o Champagne toma-se no decurso das refeições, como vinho de pasto,
e, ­portanto, requer-se muito seco»54.
Entretanto, a produção de vinho espumoso segundo o método champanhês ­ganhava
espaço numa outra região do país. Em 1896, a 23 de janeiro, a Associação Viní­cola da
Bairrada, constituída em 1893, deu entrada na Repartição da Indústria do Ministério das
Obras Públicas, Comércio e Indústria do primeiro pedido de registo de marcas de vinho
espumante produzido sob a sua tutela55. Era o culminar do trabalho desenvolvido pelo
engenheiro agrónomo José Maria Tavares da Silva, que introduziu nessa região a técnica
de produção de vinho espumoso com recurso ao método champanhês, usufruindo dos
conhecimentos e da experiência adquiridos no Douro, como chefe da região agronómica
sediada na Régua, cargo que deixou para assumir, a partir de 25 de janeiro de 188956, o de
diretor da recém-criada Escola Prática de Viticultura e Pomologia da Bairrada.
Bastaram poucos anos para que os vinhos espumosos começassem a ganhar e­ spaço
na vitivinicultura nacional. Reconhecia-se-lhes o potencial para virem a ter um lugar de
destaque no comércio externo português e, dessa forma, aproveitar o gosto crescente
por este tipo de bebida dentro e fora da Europa. Em 27 de junho de 1899, o deputado
Melo e Sousa, a propósito da ratificação do acordo comercial com os Estados Unidos da
Amé­rica, referiu que a diminuição dos direitos de entrada para os vinhos espumosos
então em discussão não teria qualquer significado «porque não poderemos ainda assim
competir com o Champagne e com os vinhos de outros países»57. Sem discordar, Veiga
Beirão, então ministro dos Negócios Estrangeiros, não deixou, contudo, de notar que,
embora a indústria deste tipo de vinhos estivesse apenas no início em Portugal, isso
não o impedia de «supor que sendo os nossos vinhos espumosos realmente bons com
a proteção que se lhes concede, eles se não aperfeiçoem por forma a competir, não com
o legítimo Champagne, mas com as outras marcas comuns, que têm largo consumo»58.

3. JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR — O PERCURSO DE UM


HOMEM EMPREENDEDOR
José Teixeira Rebelo Júnior nasceu na Praça do Comércio, na cidade de Lamego, em
7 de abril de 1860, tendo sido batizado em 26 do mesmo mês na Igreja de Alma­cave59,
a ­mesma onde casaram seus pais, José Teixeira Rebelo e Maria Augusta P ­ ereira de

54
PORTUGAL, 1897: 41.
55
PORTUGAL, 1896a: 1184.
56
PORTUGAL, 1889a: 214.
57
LISBOA, 1899a: 4.
58
LISBOA, 1899b: 4.
59
ADVIS. Registos Paroquiais, Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1860-1865, fol. 5.

58
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

­ acedo, três anos antes, em 15 de agosto de 185760. O pai, natural de Sarzedo, ­Moimenta
M
da ­Beira, negociante, tinha estabelecimento aberto na referida praça. F ­ ilho único, José
Teixeira Rebelo estudou em Lamego no colégio dos irmãos António ­Joaquim Lopes
Roseira e Manuel António Lopes Roseira, mais tarde, entregue aos beneditinos, prepa‑
rando-se para um futuro que não passaria por assumir exclusivamente o lugar do pai à
frente do negócio da família. José Teixeira Rebelo Júnior tinha outros objetivos.
Um passo importante para a sua concretização terá sido certamente dado quando,
aos 23 anos, em 10 de novembro de 1883, casou no Porto, na Igreja de Santo Ildefonso,
com Maria Emília Pinto Pereira do Vale, natural de Viseu, da freguesia Ocidental, filha
de Adelino Pereira do Vale e de Maria Emília Pinto de Sousa Lemos. Com este casa‑
mento, José Teixeira Rebelo Júnior alargava de forma significativa o seu círculo social,
fazendo-o extravasar os limites da pequena cidade do interior duriense onde nascera.
Segundo o Censo da População efetuado em 1878, um pouco mais de um t­erço da
população residente no concelho de Lamego (23878) concentra-se nas freguesias ­urbanas
de Almacave (3428) e Sé (4696)61. Na primeira, situada na parte alta da cidade, localiza-se
a Praça do Comércio, que, na segunda metade do século XIX, constitui o polo ­principal da
atividade comercial que então animava Lamego. É aí, ou na sua ­imediação, que ­parte
da burguesia lamecense reside e tem os seus estabelecimentos — como José Teixeira
­Rebelo, pai de José Teixeira Rebelo Júnior —, transformando-a num ponto de e­ ncontro
de pessoas que a proximidade ao emaranhado de casas e ruas do Bairro do Castelo,
à Câmara Municipal e à Santa Casa da Misericórdia potenciavam. A uma cota mais baixa,
na freguesia da Sé, localiza-se o Paço Episcopal e alguns solares de famílias aristocratas
com estreitas ligações familiares entre si62, como o dos condes de Alpendurada, viscondes
de Arneirós, viscondes de Guiães e a família Castro Osório da Fonseca e Sousa Pereira
Coutinho. Grandes proprietários dentro e fora do concelho, muitos deles exerciam cargos
administrativos e/ou políticos que os levavam a residir em Lisboa ou no Porto, fazendo
em Lamego apenas curtas estadas. Realidades sociais distintas, com diferentes formas de
viver e de pensar, que se cruzam no espaço reduzido da cidade, mas não se misturam.
Até ao seu casamento, José Teixeira Rebelo Júnior, nascido e criado em Almacave,
movia-se assim no círculo restrito da burguesia comercial local. É verdade que seu pai,
além da loja de fazendas, de alguns prédios em Meijinhos, de uns moinhos no Bairro
da Ponte, também possuía uma quinta, a Quinta da Recheca, em Cepões63, freguesia
rural de Lamego, mas cuja produção, incluindo a de vinho, se destinaria sobretudo ao
consumo doméstico.

60
ADVIS. Registos Paroquiais, Lamego, Almacave, Casamentos, liv. 1850-1877, fol. 49.
61
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, 1881: 388, 411.
62
MOREIRA, 2018: 407.
63
ACR. Inventário do activo e passivo em 31 de Maio de 1884.

59
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Foi também na atividade comercial que os Pereira do Vale — família da mulher


de José Teixeira Rebelo Júnior, originária de Tondela, distrito de Viseu — investiram,
ao longo da segunda metade do século XIX, dinheiro e conhecimento, construindo
uma consistente rede familiar de negócios. Para isso, contribuiu não só a capacidade
empreendedora de alguns dos seus membros como a estratégia matrimonial que lhes
permitiu alargar o seu espaço social e financeiro pela ligação a determinadas famílias.
Os casamentos consanguíneos e os segundos casamentos com um irmão ou irmã do
cônjuge falecido ocorreram com alguma frequência na geração de Adelino Pereira
do Vale e na dos seus filhos.
Adelino Pereira do Vale, sogro de José Teixeira Rebelo Júnior, nasceu em T­ ondela,
a 26 de dezembro de 1838 . Era o nono dos doze filhos nascidos do casamento do
64

­negociante Daniel Pereira do Vale com Maria da Conceição, ocorrido em 29 de julho


de 1822, na igreja dessa localidade65. Em 21 de novembro de 1858, prestes a completar
20 anos, Adelino casou com Maria Emília Pinto de Sousa e Lemos, na Sé de Viseu66,
­cidade onde o casal fixou residência. Entre 1870 e 1872, Adelino Pereira do Vale e­ xerceu
as ­funções de gerente do Banco Agrícola e Industrial Viseense67. Contudo, no final da
década de 1870, já com cinco filhos — Ricardo, nascido em 6 de outubro de 185968,
Virgínia, a 20 de agosto de 186269, Maria Emília, a 1 de novembro de 186470, Alzira,
a 29 de julho de 187071 e Adelaide, em 22 de março de 187272 — mudou-se para o Porto,
passando a residir na Rua das Liceiras, freguesia de Santo Ildefonso, onde nasceu a sua
última filha, Fernanda, a 26 de agosto de 188073.
O dinamismo comercial da cidade do Porto ajustava-se melhor à capacidade
empre­endedora de Adelino Pereira do Vale e dos seus irmãos, Inácio e Bernardo Pereira
do Vale, entretanto regressados do Brasil, após alguns anos de permanência nesse país.
É, assim, no Porto que, antes de 1877, constituem a sociedade Vale & Irmãos e C.ª74,
ainda ativa no início do século XX75.
Enquanto negociante da praça do Porto, Adelino Pereira do Vale foi nomeado
pelo ministro da Fazenda, Mariano Cirilo de Carvalho, em 7 de dezembro de 1888, para
­integrar uma comissão presidida pelo conselheiro administrador geral das Alfândegas,

64
ADVIS. Registos Paroquiais, Tondela, Batismos, liv. 1827-1852, fol. 152.
65
ADVIS. Registos Paroquiais. Tondela, Casamentos, liv. 1775-1827, fol. 123v.
66
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu, Ocidental, Casamentos, liv. 1853-1862, fol. 64v.
67
PORTUGAL, 1870: 5; 1871: 4; 1872: 4.
68
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1859-1863, fol. 8.
69
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1859-1863, fol. 194.
70
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1864, fol. 87v-88.
71
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1869-1874, fol. 80v.
72
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu. Ocidental, Batismos, liv. 1869-1874, fol. 166v.
73
ADVIS. Registos Paroquiais. Porto. Santo Ildefonso, Batismos, liv. 1880, fol. 229.
74
PORTUGAL, 1877: 9.
75
PORTUGAL, 1901a: 11.

60
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

responsável por determinar que fazendas ou manufaturas deveriam ser submetidas à


­selagem nos termos do regulamento, então em vigor e quais as providências a tomar na
transição para o novo regime76. Sócio da Associação Comercial do Porto, Pereira do Vale
foi nomeado vogal efetivo do tribunal do contencioso técnico de primeira instância, junto
da Alfândega do Porto77, em representação dessa associação, em 19 de janeiro de 1894.
Maria Emília Pinto Pereira do Vale foi a primeira das filhas de Adelino Pereira do
Vale a casar. A escolha de Maria Luísa Beires Pereira do Vale, filha do doutor José de
Beires e mulher do seu tio paterno, Bernardo Pereira do Vale78, para madrinha do seu
casamento com José Teixeira Rebelo Júnior poderá significar que, sendo ela conterrânea
de José Teixeira Rebelo Júnior (nasceu em Almacave, em 14 de fevereiro de 185379),
­assumiu um papel relevante na apresentação deste aos Pereira do Vale e no estreita­
mento da ligação através do seu casamento com a filha mais velha daquela família.
Uma ligação que serviu de alicerce a uma bem-sucedida atividade empresarial com
a constituição de uma inovadora e dinâmica empresa produtora de vinho espumante
no início do século XX, em Lamego, cidade onde o casal José Teixeira Rebelo Júnior
e Maria Emília Pinto Pereira do Vale passou a residir após o seu casamento em 1883.
Sem o apoio financeiro do sogro e dos cunhados teria sido certamente mais difícil a José
­Teixeira Rebelo Júnior construir a empresa a que dedicou grande parte da sua vida e
­entrar, através da produção do vinho espumoso, no círculo restrito dos grandes produ­
tores de vinho no Douro. Foi, no entanto, graças à sua capacidade empreendedora e à
forma como percecionou os impactos destruidores da filoxera na sociedade e na eco­
nomia duriense, que José Teixeira Rebelo Júnior se aventurou na área da produção viní­
cola que, pelo enquadramento familiar, não era a sua, apostando num tipo de vinho
cuja produção, recém-introduzida na região, como foi referido atrás, era dominada pela
poderosa Companhia Vinícola do Norte de Portugal.
Em abril de 1889, Teixeira Rebelo Júnior subscreveu uma80 das dez mil ações
que a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal abriu à subscrição pública em
14 ­desse mês, a 100$000 réis cada uma81, certamente no Banco do Douro, em Lamego,
um dos locais indicados para o fazer. O pagamento foi feito de forma faseada — até ao
final de 1889, 40% do valor total (10% no ato da subscrição ou 10$000 réis por ação;
10% a 1 de junho, 10% a 2 de setembro e 10% a 4 de novembro), o restante quando a
Assem­bleia Geral o indicasse82. Alguns tios paternos de sua mulher também o fizeram,

76
PORTUGAL, 1888: 2706.
77
PORTUGAL, 1894a: 3.
78
ADVIS. Registos Paroquiais. Mangualde, Casamentos, liv. 1859-1872, fol. 104v.
79
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1850-1859, fol. 67.
80
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 24.
81
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1889: 50.
82
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1889: 51.

61
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

embora com um número mais elevado de ações — Abel Pereira do Vale (três ações)83,
Bernardo Pereira do Vale (dez ações)84, Inácio Pereira do Vale (dez ações)85.
Desta forma, enquanto acionista, Teixeira Rebelo Júnior terá acompanhado de
­forma muito próxima o trabalho desenvolvido pela Real Companhia Vinícola, ­podendo
ter sido dessa forma que percebeu o potencial de Lamego para a produção do vinho
espu­mante (tanto mais que, como atrás referido, já havia experiências anteriores,
­pontuais, mas promissoras, feitas em propriedades próximas pelo Visconde de Alpen‑
durada e M ­ iguel Moreira da Fonseca) e dado início às primeiras experiências na Quinta
da Recheca, em Cepões, propriedade do seu pai.
Em 2 de julho de 1893, no Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria,
registou em seu nome a sua primeira marca — «rotulo retangular atravessado diagonal‑
mente por um desenho figurando uma fita, em que se lê “Sedutor”, e por baixo desta:
“José Teixeira Rebelo Júnior — Lamego”. No canto superior à esquerda lê-se: “Vinho
clarete da quinta da Recheca — Douro”»86. Em 4 de janeiro de 1897, requer um novo
­registo de uma marca de vinho, que se sabe apenas ter sido aceite87. Em 1898, e de a­ cordo
com o que a imprensa local virá mais tarde a escrever, já produzia vinho espumante em
Lamego, num armazém que construiu na parte baixa da cidade, na Preguiça88.
Entre a sua entrada como acionista da Real Companhia Vinícola do Norte de
­Portugal e o início da produção própria de vinho espumante terão, assim, mediado nove
anos. Foi o tempo necessário para reunir à «vontade firme duma vibrante inteli­gência e
dum temperamento invulgarmente estudioso»89 de José Teixeira Rebelo Júnior o conhe­
cimento técnico, o capital, os equipamentos e as instalações que essa ­produção, mesmo
que ainda muito incipiente, exigia. Segundo se escreverá, anos mais tarde, numa publi‑
cação patrocinada pela empresa Caves da Raposeira, Teixeira Rebelo Júnior não dispu‑
nha de conhecimentos nem teóricos nem práticos sobre a produção de vinho espu­mante
«porque nada havia então de valor, escrito sobre o assunto e ele nunca tinha sequer
visitado as instalações da “Champagne”» pelo que se lançou «afanoso e confiante no
labirinto das experiências, firme nos seus propósitos de dominar dificuldades, de vencer
deficiências, de triunfar plenamente», conseguindo «formar as primeiras massas vínicas
para o lote duns centos de garrafas»90, sem recorrer à colaboração de qualquer técnico
francês. Uma narrativa que não se afasta da que se pode ler na imprensa lamecense ao
longo da primeira metade do século XX.

83
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 1.
84
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 9.
85
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL, 1890: 16.
86
PORTUGAL, 1896b: 2793.
87
PORTUGAL, 1901b: 2585.
88
«A Fraternidade», 23 ago. 1930: 4.
89
Raposeira: vinhos espumantes naturais, 1936: s. p.
90
Raposeira: vinhos espumantes naturais, 1936: s. p.

62
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

Superadas as dificuldades, dominada a técnica, atingida a desejada qualidade do


produto, faltavam apenas a José Teixeira Rebelo Júnior os capitais que permitissem a
produção deste vinho em quantidade suficiente para se afirmar no mercado nacional e
internacional, visando competir com a da poderosa Real Companhia Vinícola do Norte
de Portugal. A oportunidade surgiu dentro da família, juntando numa sociedade sob a
firma Vale, Filho & Genros, o sogro, Adelino Pereira do Vale, «alta figura do ­comércio
portuense»91, e os cunhados, Ricardo Pereira do Vale (irmão de sua mulher, Maria
­Emília), Eduardo Pereira do Vale (médico e marido de sua cunhada Alzira Pereira do
Vale92), Álvaro da Silva (marido de sua cunhada Adelaide Pereira do Vale93).

4. AS CAVES DA RAPOSEIRA SOB A DIREÇÃO DE JOSÉ


TEIXEIRA REBELO JÚNIOR (1902-1947)
No dia 1 de dezembro de 1902, foi constituída por escritura pública celebrada no ­notário
Francisco de Melo Ilharco, em Lamego, a sociedade comercial em nome coletivo Vale,
Filho & Genros, sob a divisa «Sociedade Vinícola do Douro», destinada à preparação e
venda de vinhos espumantes, que o jornal «A Fraternidade» diz serem, então, já bem
conhe­cidos. José Teixeira Rebelo Júnior, seu sogro e cunhados não estavam, assim,
a partir do zero. Como já mencionado, a constituição da sociedade em 1902 foi o c­ ulminar
de anos de trabalho, organização e investimento na aquisição de bens — ­entre os quais
sobressai a da Quinta da Raposeira, na vertente norte do Monte de Santo E ­ stêvão — e na
construção das caves subterrâneas, escavadas na rocha, que asseguravam a temperatura
estável que estes vinhos exigiam.
No registo do primeiro «Inventário do ativo e passivo» datado desse mesmo dia,
refere-se como ativo da sociedade a propriedade agrícola Quinta da Raposeira, cave
e armazéns, vasilhame, máquinas e acessórios, objetos de laboratório e de escritório,
­móveis, material de expedição, garrafas, bem como mercadorias — vinhos engarrafados
de 1898, 1899 e 1900, vinhos por engarrafar, licores preparados e aguardente. Por sua
vez, o passivo era constituído pelo capital social fornecido por cada um dos sócios:

• Adelino Pereira do Vale — 15 000 000 réis;


• Ricardo do Vale — 8 250 000 réis;
• Álvaro da Silva — 6 750 000 réis;
• Eduardo da Pereira Vale — 7 500 000 réis;
• José Teixeira Rebelo Júnior — 611 110 réis94.

91
«Beira-Douro», 22 fev. 1936: 1.
92
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Casamentos, liv. 1891, n.º 140.
93
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Casamentos, liv. 1894, n.º 17.
94
ACR. Inventário e Balanços de Valle, Filho e Genros.

63
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

A gerência ficou a cargo dos sócios que tinham residência permanente em L ­ amego
— José Teixeira Rebelo Júnior e Eduardo Pereira do Vale, que exercia as funções de
­médico no Hospital da Santa Casa da Misericórdia local e que virá a falecer poucos anos
depois, em 17 de janeiro de 190795. Compreensivelmente, será Teixeira Rebelo Júnior
que a imprensa lamecense sempre considerará ser o «chefe» das Caves da Raposeira:

Porque José Teixeira Rebelo [Júnior] marca na nossa terra, sem favor de
­ inguém, um lugar de merecido destaque. Homem de fortes iniciativas, inteligente e
n
traba­lhador, foi ele o criador dessa quase única indústria da nossa terra, hoje em p­ leno
desenvolvimento, pela cooperação eficaz de membros da sua família que financeira-
mente uns, tecnicamente outros e dedicadamente todos, fizeram da Raposeira um
centro de atividade industrial e comercial que, se honra o iniciador e colabora­dores,
é também um elemento de valor para a prosperidade de Lamego, tão carecida de
utilidades bem orientadas, como a de Teixeira Rebelo, para o seu engrandecimento96.

Em 1 de agosto de 1903, a empresa Vale, Filho & Genros solicitou o registo das
suas primeiras marcas de vinho espumante ao Ministério das Obras Públicas, C ­ omércio
e Indústria destinadas quer às garrafas quer às caixas de transporte e às rolhas. T ­ odas
apresen­tando o nome da firma e a indicação «Douro Espumante», as marcas das g­ arrafas
diferem na cor do centro — vermelho-escuro sobre fundo prateado com arabesco para
o vinho espumante «Doce»; azul sobre fundo a ouro com arabescos para o vinho espu­
mante «Seco»; ouro sobre fundo azul com arabescos para o vinho espumante «Meio
seco»; verde sobre fundo prateado com arabescos para o vinho espumante «Bruto97.
A incorporação do topónimo «Raposeira» na denominação do vinho espumante produ­
zido pela empresa de José Teixeira Rebelo Júnior começou a fazer-se desde logo. E­ mbora
a palavra não esteja inscrita no rótulo da garrafa aprovado, está no das caixas de trans‑
porte de garrafas como complemento do nome da firma — «Vale, Filho & Genros —
Caves da Raposeira»98.
Com a morte, em 1907, de Eduardo Pereira do Vale99 e, em 1911, de Adelino P ­ ereira
do Vale100, foram admitidos à sociedade, por escritura de 29 de maio de 1915, as suas
viúvas, Maria Emília Pinto do Vale e Alzira do Vale, e, ainda, Eugénio do Vale Teixeira,
terceiro filho de José Teixeira Rebelo Júnior101 (do seu casamento com Emília Pereira do
Vale, falecida nos primeiros anos de 1900, nasceram, ainda, Fernando, em 26 de abril de

95
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Óbitos, liv. 1907, n.º 38.
96
«A Fraternidade», 19 abr. 1930: 1.
97
PORTUGAL, 1903: 3054-3055.
98
PORTUGAL, 1903: 3054.
99
ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso. Óbitos, liv. 1907, n.º 38.
100
«A Fraternidade», 22 jul. 1911: 2.
101
Nascido a 25 de julho de 1889. ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1889, n.º 102.

64
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

1886102, Luciana, em 15 de março de 1887103, Ricardo e Leonor). A socie­dade em nome


coletivo passou então a sociedade por quotas. Por escritura de 10 de agosto de 1921
— após alteração do pacto social e cedência de Álvaro da Silva das ­quotas que ­detinha
na sociedade em 3 de setembro de 1917 —, continuavam como sócios Maria Emília
Pinto do Vale, Alzira Vale Teixeira (viúva de Eduardo Pereira do Vale, mas já c­ asada
em ­segundas núpcias com José Teixeira Rebelo Júnior), José Teixeira Rebelo ­Júnior e
­Eugénio do Vale Teixeira, juntando-se-lhe José do Vale (filho único de Eduardo Pereira
do Vale e Alzira Vale Teixeira)104.
A gerência da empresa continuava a ser assegurada por Teixeira Rebelo Júnior,
­tendo, a partir de 1921, o seu filho Eugénio como subgerente. A presença cada vez mais
significativa da empresa no mercado estrangeiro, sobretudo no Brasil, exigiu a este
­último frequentes deslocações a esse país, onde, em poucos anos, se havia montado uma
ativa rede de representantes. Responsáveis por criativas campanhas publicitárias dos
­vinhos das Caves da Raposeira na imprensa local, terão sido certamente estes homens os
responsáveis pelo envio, para a sede da empresa em Lamego, dos recortes de jornais com
notícias sobre o sucesso do seu vinho espumante em terras brasileiras, coligidos cuida‑
dosamente num livro intitulado «Extracto de Jornaes», que se encontra no seu arquivo.
Paralelamente à sua atividade como gestor empresarial, Teixeira Rebelo Júnior
parti­cipou de forma ativa na vida da cidade — irmão da Santa Casa da Misericórdia
­desde 26 de junho de 1896, foi mesário em 1902-1903105 e, entre 1936 e 1940, presi­
dente da comissão administrativa nomeada pelo governador civil de Viseu106, ­comandou
os bombeiros voluntários, em 1903107, e foi presidente da Associação Comercial de
­Lamego, em 1907108. Com a implantação da República, ligou-se ao Partido Republicano
­Português, mostrando-se muito ativo ao nível da política local, conforme se pode veri­
ficar pela leitura da imprensa lamecense da época.
Este passado republicano não parece ter sido visto, no entanto, como um problema
pelos homens que assumiram o poder em Lamego durante a Ditadura Militar e o Estado
Novo. Conscientes de que isso era determinante para a manutenção da empresa, José
Teixeira Rebelo Júnior, o filho Eugénio do Vale Teixeira e o sobrinho José do Vale ter-se
-ão compreensivelmente ajustado à nova realidade política, tendo este último integrado,
desde muito cedo, a comissão concelhia da União Nacional109.

102
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, liv. 1886, fol. 25.
103
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Cepões, Batismos, liv. 1887, n.º 19.
104
«A Fraternidade», 7 jun. 1924: 2.
105
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO, 1912: Relação nominal dos Irmãos.
106
«Beira Douro», 11 abr. 1936: 1; «Beira Douro», 13 jul. 1940: 1.
107
«A Semana», 21 fev. 1903: 3.
108
«O Progresso», 26 jan. 1907: 2.
109
«Beira Douro», 13 jun. 1936: 2.

65
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Foi, aliás, na vigência da Ditadura Militar que a vereação camarária, na sessão de


2 de janeiro de 1930, requereu às devidas instâncias a atribuição do grau de comen­
dador da Ordem de Mérito — Classe de Mérito Industrial a José Teixeira Rebelo Júnior,
o que lhe veio a ser concedido110. Numa festa especialmente organizada nas Caves da
Raposeira, em 7 de abril de 1930, dia em que comemorava os 70 anos, foi-lhe entregue a
comenda adquirida pela família111.
Era o reconhecimento da cidade que, desde a sua fundação, em 1902, t­ ransformou
as Caves da Raposeira numa espécie de sala de visitas para receção dos visi­tantes ­ilustres.
Visitantes esses que Teixeira Rebelo Júnior fazia sempre questão de receber pessoal­
mente. Entre estes podem referir-se: o ministro da Justiça, Manuel Rodrigues Júnior, e o
ministro da Agricultura, Felisberto Pedrosa, em maio de 1927112; o ministro do ­Interior,
António Lopes Mateus, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Fernando Branco,
em agosto de 1930113; o antigo presidente da República do Brasil, Washington Luís, em
­agosto de 1932114, o presidente do Conselho de Ministros, António de Oliveira Salazar,
em 1933115.
Em 7 de abril de 1931, refletindo a maior complexidade da gestão da empresa
­devido ao aumento do volume de negócios, foi celebrada uma nova escritura que deter‑
minava uma nova organização. A parte técnica, relacionada com a propriedade agrícola,
a produção do vinho espumante e a sua preparação para expedição, ficava a cargo de
José Teixeira Rebelo Júnior e do seu filho, Eugénio Teixeira Rebelo, e a parte c­ omercial
— administração, publicidade e venda do vinho — passava a ser assegurada por ­Ricardo
do Vale Teixeira (filho de José Teixeira Rebelo Júnior), José do Vale e Eugénio do
Vale Teixeira116.
Em 1933, as Caves da Raposeira integravam certamente o conjunto de marcas
de vinhos espumantes naturais «muito apreciáveis» que, então, já existia em Portugal
e que, com o objetivo de assegurar o seu desenvolvimento, o Ministério do Comércio,
Indústria e Agricultura considerou ser necessário «estabelecer garantias de genuinidade
e proveniência […] e uma distinção legal entre os fabricados pelos processos clássicos
e os parcial ou totalmente gaseificados». Por decreto de 7 de fevereiro de 1933, ficou
final­mente definido que «os vinhos “espumantes naturais” são aqueles cuja eferves­
cência ­resulta de uma segunda fermentação alcoólica em garrafas ou outros recipientes
­fechados, quer seja espontânea quer produzida pelos processos tecnológicos clássicos
ou ­pelos destes derivados» (art.º 2.º), como, desde 1902, se fazia nas Caves da Raposeira,

110
«A Fraternidade»,18 jan. 1930: 1
111
«A Fraternidade»,19 abr. 1930: 1.
112
«A Fraternidade», 7 mai. 1927: 1.
113
«A Fraternidade», 16 ago. 1930: 1.
114
«Lusitania», 1 ago. 1932: 12.
115
«Voz de Lamego», 30 set. 1933: 4.
116
«A Fraternidade», 9 mai. 1931: 2.

66
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

e que «os vinhos cuja efervescência é produzida, mesmo só parcialmente, pela intro­
dução do gás carbónico puro, sob pressão, por meio de aparelhos apropriados, são
para todos os efeitos designados “vinhos espumosos”» (art.º 3.º). O referido decreto
estipu­lava ainda que «os preparadores de vinhos “espumantes naturais” não podem ser
­simultaneamente fabricantes de “vinhos espumosos”» (art.º 6.º), proibindo o uso da
desi­gnação «Champagne» (art.º 7.º).
A clarificação desta situação beneficiou as Caves da Raposeira, produtoras de
­vinho espumante natural, valorizando comercialmente a sua marca. A produção e a
­comercialização dos vinhos espumantes estavam finalmente reguladas, c­ ongratulan­do-se
por esse facto o jornal lamecense «A Fraternidade». Classificando-o «como um ato de
justiça», refere que se punha «assim no seu devido lugar a superioridade incontestável
dos vinhos espumantes das Caves da Raposeira, orgulho máximo do seu inteligente e
infatigável fundador»117, o comendador José Teixeira Rebelo Júnior.
O jornal, contudo, não se fica por aqui e, utilizando uma retórica social bem ao
jeito do Estado Novo, faz questão de sublinhar que nunca essa empresa, mesmo quando
o trabalho escasseava, despediu um dos seus trabalhadores, só para que não vivessem na
miséria. Fornecia-lhes diariamente uma refeição «que se torna extensiva a outro tanto
número de criaturas desprotegidas, que àquela hora, ao toque da sineta que regulariza
os horários do pessoal, ali ocorre, certo de que a fome lhe é mitigada. São mais de trinta,
por vezes, se não sempre, principalmente crianças que àquela hora correm até à Rapo‑
seira para receberem o que a filantropia balofa de tantos outros “filantropos exibicio­
nistas” lhes negam»118.
Poucos anos depois, em 1937, em assembleia geral de 2 de junho, Ricardo T ­ eixeira
Vale pediu a sua exoneração do cargo de gerente119. Mas, nesse ano, as alterações não
se ficaram por aí. A morte inesperada de José do Vale, sobrinho de José Teixeira ­Rebelo
Júnior, em 31 de julho120, obrigou à realização de uma nova escritura, a 7 de outubro.
A sociedade foi então alargada aos dois filhos do sócio falecido que, por serem a­ inda
­crianças, seriam representados pela mãe, Maria Luísa Andrade Pinto de Lemos do
Vale121. Tal como já acontecera no passado, a gestão volta a ficar a cargo de Eugénio
Teixeira Vale, que, entre outros afazeres, assegurava as frequentes deslocações no país
e ao Brasil para tratar dos interesses da empresa, e de José Teixeira Rebelo Júnior.
Com 77 anos, este era o único sócio fundador vivo das Caves da Raposeira, continuando
a dedicar-se ao trabalho, como a imprensa de Lamego faz questão de salientar:

117
«A Fraternidade», 25 fev. 1933: 2.
118
«A Fraternidade», 25 fev. 1933: 2.
119
«Voz de Lamego», 17 jun. 1937: 2.
120
«Voz de Lamego», 5 ago 1937: 1.
121
«Voz de Lamego», 14 out. 1937: 2.

67
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Quem entrar no seu gabinete de trabalho, logo no primeiro momento sentirá


atraída a sua atenção para as sugestivas palavras desta legenda, que se destacam
numa das paredes e são bem uma revelação da [sua] envergadura psicológica […]
«Não fales em crise. A crise é tua: de energia, de atividade e de entusiasmo. Trabalha,
procura, tem confiança no teu esforço, na tua ação e verás o milagre»122.

Contudo, em 1945, doente, José Teixeira Rebelo Júnior deixou de sair de sua casa
junto às caves que dirigira ao longo de mais de quatro décadas. Morreu dois anos depois,
em 4 de fevereiro de 1947. Tinha 87 anos. Os jornais de Lamego noticiaram, pesarosos,
o seu desaparecimento. A «Voz de Lamego» escreveu: «A Raposeira foi com ele escola
de virtudes austeras, de trabalho honroso, de valorização industrial, de distribuição de
riqueza pelos trabalhadores da sua Empresa, que o amavam como pai e como amigo»123.
Com a sua morte, virava-se uma página na história da empresa que irá permanecer na
família até ao final do século XX.

CONCLUSÃO
Nos finais do século XIX, o vinho espumante produzido segundo o método champa‑
nhês constitui uma inovação na vitivinicultura duriense. Uma inovação que ganhou
espaço para se afirmar no âmbito da conjuntura recessiva causada pela filoxera. Apesar
dos evidentes impactos negativos na economia e na sociedade da região, esta doença,
responsável pela destruição de grande parte da vinha, constituiu uma oportunidade que
alguns produtores souberam e puderam aproveitar para introduzir novos processos e
técnicas de vinificação.
Criada em 1889, a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal, sociedade
anónima de responsabilidade limitada, desempenhou um papel primordial na p ­ romoção
desses processos e técnicas na região, tendo sido determinante a ação desenvolvida pelo
Visconde de Vilar de Allen, fundador e enólogo da referida companhia. Apesar de haver
referências anteriores, poucas, a experiências de produção de vinho espumoso no Douro
e em outras regiões do país, só a partir de 1891, é que essa empresa passou a comercia­
lizar, no mercado nacional, vinho com qualidade e quantidade suficientes, garantida‑
mente produzido segundo o método champanhês.
Sem os recursos e o conhecimento da Real Companhia Vinícola, mas imbuído de
uma forte capacidade empreendedora, José Teixeira Rebelo Júnior soube aproveitar as
oportunidades, experimentar as técnicas e procurar o apoio financeiro necessário para,
a partir de 1898, produzir à escala industrial o vinho espumante na cidade de Lamego.
A firma Vale, Filho & Genros, fundada em 1902, e de que Teixeira Rebelo Júnior foi um

122
«Beira Douro», 11 abr. 1936: 1.
123
«Voz de Lamego», 13 fev. 1947: 2.

68
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

dos sócios fundadores, juntamente com o sogro e os cunhados, foi a primeira socie‑
dade familiar especialmente constituída para esse efeito na região duriense. Tendo-se
afir­mado rapidamente no mercado nacional e brasileiro com a marca Caves da Rapo‑
seira, esta empresa contribuiu para uma nova imagem da cidade de Lamego dentro e
­além-fronteiras, criando condições para que, mais de oito décadas depois, se instituísse
nos vales do Távora e Varosa a primeira região demarcada de espumantes em Portugal.

FONTES
Fontes arquivistas
Arquivo das Caves da Raposeira
ACR. Extracto de Jornaes.
ACR. Inventário do activo e passivo em 31 de Maio de 1884.
ACR. Inventário e Balanços de Valle, Filho e Genros.

Arquivo Distrital de Viseu


ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Almacave, Batismos, livs. 1850-1859, 1860-1865, 1886, 1889;
­Casamentos, liv. 1850-1877.
ADVIS. Registos Paroquiais. Lamego, Cepões, liv. 1887.
ADVIS. Registos Paroquiais. Mangualde, Casamentos, liv. 1859-1872.
ADVIS. Registos Paroquiais. Tondela, Batismos, liv. 1827-1852; Casamentos, liv. 1775-1827.
ADVIS. Registos Paroquiais. Viseu, Ocidental, Batismos, livs. 1859-1863, 1864, 1869-1874; Casamentos, livs.
1853-1862, 1891, 1894.

Arquivo Distrital do Porto


ADP. Registos Paroquiais. Porto, Santo Ildefonso, Batismos, liv. 1880; Casamentos, livs. 1891, 1894; Óbitos,
liv. 1907.

Fontes hemerográficas
«A Fraternidade». (22 jul. 1911) 2.
«A Fraternidade». (7 jun. 1924) 2.
«A Fraternidade». (7 mai. 1927) 1.
«A Fraternidade». (18 jan. 1930) 1.
«A Fraternidade». (19 abr. 1930) 1.
«A Fraternidade». (16 ago. 1930) 1.
«A Fraternidade». (23 ago. 1930) 4.
«A Fraternidade». (9 mai. 1931) 2.
«A Fraternidade». (25 fev. 1933) 2.
«A Semana». (21 fev. 1903) 3.
«Beira Douro». (22 fev. 1936) 1.
«Beira Douro». (11 abr. 1936) 1.
«Beira Douro». (13 jun. 1936) 2.
«Beira Douro». (13 jul. 1940) 1.
«Diário de Lisboa». (15 jan. 1861) 105.
LISBOA (1899a). «Diário da Câmara dos Senhores Deputados». (1899-06-27) 4.

69
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

LISBOA (1899b). «Diário da Câmara dos Senhores Deputados». (1899-06-28) 4.


«Lusitania». (1 ago. 1932) 12.
«O Comércio do Porto». (24 nov. 1891) 1.
«O Progresso». (26 jan. 1907) 2.
PORTUGAL (1853). «Diário do Governo». 168 (1853-07-20) 1035.
PORTUGAL (1870). «Diário do Governo». 276 (1870-12-06) 5.
PORTUGAL (1871). «Diário do Governo». 147 (1871-07-05) 4.
PORTUGAL (1872). «Diário do Governo». 18 (1872-01-24) 4.
PORTUGAL (1877). «Diário do Governo». 259 (1877-11-14) 9.
PORTUGAL (1888). «Diário do Governo». 1282 (1888-12-10) 2706.
PORTUGAL (1889a). «Diário do Governo». 21 (1889-01-26) 214.
PORTUGAL (1889b). «Diário do Governo». 77 (1889-04-05) 796-799.
PORTUGAL (1889c). «Diário do Governo». 79 (1889-04-08) 813-814.
PORTUGAL (1894a). «Diário do Governo». 17 (1894-01-21) 3.
PORTUGAL (1894b). «Diário do Governo». 234 (1894-10-15) 2756.
PORTUGAL (1896a). «Diário do Governo». 108 (1896-05-15) 1184.
PORTUGAL (1896b). «Diário do Governo». 231 (1896-10-13) 2793.
PORTUGAL (1897). «Diário do Governo». Apêndice, 2 (1897-04-02) 41.
PORTUGAL (1901a). «Diário do Governo». 109 (1901-05-17) 11.
PORTUGAL (1901b). «Diário do Governo». 215 (1901-09-25) 2585.
PORTUGAL (1903). «Diário do Governo». 195 (1903-09-03) 3054-3055.
«Voz de Lamego». (30 set. 1933) 4.
«Voz de Lamego». (17 jun. 1937) 2.
«Voz de Lamego». (5 ago. 1937) 1.
«Voz de Lamego». (14 out. 1937) 2.
«Voz de Lamego». (13 fev. 1947) 2.

Fontes impressas
ASSOCIAÇÃO COMERCIAL DO PORTO (1889). Memoria dirigida pela Associação a Sua Ex.ª o P ­ resi­dente
do Conselho de Ministros em 17 de janeiro de 1889 contra a concessão de subsidio e outros privi­légios
do contracto de 5 de dezembro de 1888, do Ministerio das obras Publicas Commercio e Industria,
em favor da projectada Real companhia Vinicola do Norte de Portugal. Porto: Typographia do ­Commercio
do Porto.
BREVE NOTICIA DA VITICULTURA PORTUGUEZA ou Resumo dos Esclarecimentos Indispensaveis para
se avaliar a Collecção dos Vinhos de Portugal apresentados na Exposição Internacional de 1874 em
Londres. Lisboa: Imprensa Nacional, 1874.
CATALOGO DA EXPOSIÇÃO INDUSTRIAL PORTUGUEZA em 1891 no Palacio de Crystal Portuense,
2.ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1892.
CATALOGO DOS PRODUCTOS DA AGRICULTURA, e Indústria Portugueza mandados à Exposição
­Universal de Paris em 1855. Lisboa: Imprensa Nacional, 1855.
COUTINHO, António Xavier Pereira (1889). Guia do Vinicultor. Porto: Livraria Internacional de Ernesto
Chardron.
FERRAZ, J. L. Magalhães (1876). Pharmacia. Estudos Bibliographicos. Coimbra: Imprensa da Universidade.
FREITAS, José Joaquim Rodrigues de (1890). A Questão dos Vinhos. Nullidade do contrato de 15 de Março
de 1889. Porto: Typographia do Commercio do Porto.

70
INOVAÇÃO NA VITIVINICULTURA DURIENSE NA MUDANÇA DO SÉCULO XIX PARA O SÉCULO XX
— JOSÉ TEIXEIRA REBELO JÚNIOR E O ESPUMANTE DE LAMEGO

LAPA, João Inácio Ferreira (1874). Technologia Rural ou Artes Chimicas, Agricolas e Florestais. 2.ª ed. Lisboa:
Typographia da Academia.
LÚCIO, João Baptista (1846). O Fabricante de Vinhos e Vinagres ou Methodo Pratico e Abreviado para Guia
das Pessoas que se Occupão no Fabrico e Commercio destes Líquidos em Portugal. Lisboa: Tip. De
Francisco Xavier de Sousa.
MEMORIA SOBRE OS PROCESSOS DE VINIFICAÇÃO empregados nos principaes Centros Vinhateiros do
Continente e Reino apresentada ao Illustrissimo e Excellenrissimo Senhor ministro das Obras P ­ ublicas,
Commercio e Industria pela Commissão nomeada em Portaria de 10 de Agosto de 1866. Lisboa:
­Imprensa Nacional, 1867.
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (1881). População no 1.º de Janeiro.
1878. Lisboa: Imprensa Nacional.
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (1890). Relatorio da Analyse dos Vinhos
apresentados nas Exposições de Berlim e de Paris em 1888 e 1889. Lisboa: Imprensa Nacional.
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (1896). Commercio de Vinhos e Azeites.
Catalogo dos Vinhos enviados á Exposição movel na Africa do Sul. Lisboa: Imprensa Nacional.
PORTUGAL. Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria (1889). Exposição de Vinhos Portuguezes
em Berlim em 1888. Relatorios dos delegados de Lisboa e Porto. Lisboa: Imprensa Nacional.
PROCESSO ARBITRAL entre o Governo e a Real Companhia Vinícola do Norte de Portugal sobre a Questão
de saber se a Companhia se constituiu, ou não, legalmente dentro do praso contratado e Accordão defi-
nitivo sobre essa questão. Lisboa: Imprensa Nacional, 1890.
RAPOSEIRA: vinhos espumantes naturais. Porto: Lit. Nacional, 1936.
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL (1889). Estatutos da Real Companhia
­Vinicola do Norte de Portugal, sociedade anonyma, responsabilidade limitada, com sede na sociedade
do Porto, aprovados por Alvará de 30 de Março de 1889 e Contrato de 15 de Março de 1899 entre o
­Governo e os fundadores da mesma. Porto: Typographia de António José da Silva Teixeira.
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL (1890). Relatorio da Direcção da Real
Companhia Vinicola do Norte de Portugal e Parecer do Conselho Fiscal no anno de 1889 apresentado
em Assembléa Geral de 27 de março de 1890 e Lista dos Senhores Accionistas em 31 de Dezembro de
1889. Porto: Typographia de António José da Silva Teixeira.
REAL COMPANHIA VINÍCOLA DO NORTE DE PORTUGAL (1890). Relatorio da Direcção da Real
­Companhia Vinicola do Norte de Portugal, Memoria Elucidativa do Relatorio da Direcção e Parecer
do ­Conselho Fiscal relativo ao anno de 1890 apresentado em Assembléa Geral de 16 de março de 1891
e Lista dos ­Senhores Accionistas em 31 de Dezembro de 1890. Porto: Typographia de António José da
Silva ­Teixeira.
REIS, António Batalha (1871). Enxofre e Vinho. Lisboa: Typographia de Castro Irmão.
RUBIÃO, Francisco Inácio Pereira (1844). O Vinhateiro. Obra em que se trata da cultura; da fabricação,
conservação, e destilação do vinho. Porto: Typographia da Revista, tomo 1.
SAMODÃES, Conde de (1889). A Questão da Real Companhia Vinicola do Norte de Portugal. Conflicto entre
o Governo e a Companhia. Exposição aos Accionistas. Porto: Typographia de A. J. da Silva Teixeira.
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LAMEGO (1912). Relatorio de contas da Gerencia da Santa Casa
da Misericordia de lamego no anno económico de 1911-1912. Mappas demonstrativos de toda a admi-
nistração. Lamego: Minerva da Loja Vermelha.
SEGUNDA MEMORIA SOBRE OS PROCESSOS DE VINIFICAÇÃO empregados nos principaes Centros
Vinhateiros do Continente e Reino apresentada ao Illustrissimo e Excellenrissimo Senhor ministro das
Obras Publicas, Commercio e Industria em resultado da excursão mandada fazer pela Portaria de 24 de
Agosto de 1867. Lisboa: Imprensa Nacional, 1868.

71
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

VILAR DE ALLEN, Visconde de (1896). Breve Noticia sobre alguns vinhos portuguezes principalmente dos
que vende a Real companhia Vinicola do Norte de Portugal e indicação da maneiar de fazer uso dos
mesmos e de os conservar na garrafeira e na copa e da sua apresentação á mesa. Porto: Typographia de
A. J. da Silva Teixeira.
VIU, José de (1852). Estremadura. Colección de sus Inscripciones y Monumentos seguidas de reflexiones
impor­tantes sobre lo passado, lo presente y el porvenir de estas províncias, 2.ª edición corregida y nota‑
blemente adicionada. Madrid: Imprensa de D. Pedro Montero, tomo II.

BIBLIOGRAFIA
CANELAS, Manuel Ferreira Prates (2008). João José Le Cocq, A Quinta do Prado e Castelo de Vide.
­[Consult. 20 nov. 2020]. Disponível em <https://fontedavila.org/multimedia/doc_textos_artigos/
PratesCanelas.pdf>.
GONÇALVES, Eduardo C. Cordeiro (2003). O Conde de Samodães e as origens da Real Companhia Vinícola
do Norte de Portugal. «Douro — Estudos & Documentos». 8:16, 107-115.
MARTINS, Conceição Andrade (2008). A «era de progresso» da viticultura nacional. In CABRAL, Manuel
Villaverde et al., orgs. Itinerários. A investigação nos 25 anos do ICS. Lisboa: ICS, pp. 69-87.
MONTEIRO, Isilda (2017). Francisco de Azeredo Teixeira de Aguilar (2.º visconde e 2.º conde de Samodães).
In SOUSA, Fernando de, coord. Os Provedores da Santa Casa da Misericórdia do Porto, 1499-2017.
Coimbra: Almedina, vol. III, pp. 111-140.
MOREIRA, Ana Rita Ferreira (2018). O Estudo da Casa Nobre na Cidade de Lamego. Lamego: Museu de
Lamego; Direção Regional de Cultura do Norte.
PEREIRA, Gaspar Martins; CRUZ, Marlene (2017). Origem e distinção: As marcas de vinhos no final do
século XIX. «CEM — Cultura, Espaço e Memória». 8, 409-425.
SEQUEIRA, Carla (2011). O Alto Douro entre o Livre-cambismo e o Proteccionismo. Porto: CITCEM;
­Edições Afrontamento.

72
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM
VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA*
MÁRCIO RIBEIRO MARTINS**
JORGE RICARDO PINTO***

Resumo: Na mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo podemos encontrar diferentes
soluções de armação ou sistematização dos terrenos agrícolas que resultaram em paisagens de rara
beleza. O Douro é um território marcado pelo despovoamento, pelo abandono dos campos, mas também
pela introdução de novas construções que, de forma mais ou menos vincada, têm descaracterizado a
paisagem rural tradicional, e que contribuem, no entanto, para a sua diversificação e enriquecimento
enquanto património de uma paisagem cultural evolutiva e viva. Pretende-se com este trabalho, inserido
no projeto de investigação interdisciplinar e de intervenção cultural, financiado pela FCT, Raízes da
Educação para o Futuro (ReduF), descrever a evolução da paisagem rural das freguesias pertencentes ao
concelho de Murça, localizadas na região demarcada, e explicá-la a partir do conhecimento relativo às
dinâmicas sociodemográficas desse território, desde os finais do século XIX até à atualidade. Como
metodologia de trabalho, serão cruzadas informações estatísticas, nomeadamente de carácter demo-
gráfico e de atividade agrícola e vinhateira.
Palavras­‑chave: paisagem; Murça; vinha; identidade; memória.

Abstract: In the oldest Demarcated and Regulated Region in the world, we can find different vineyard
structures that have resulted in landscapes of rare beauty. The Douro region is a territory marked by depop-
ulation, by the abandonment of agricultural land, but also by the introduction of new vineyard structures,
that in a more or less pronounced way, have mischaracterized the traditional rural landscape, contri­
buting, however, to its diversification and enrichment as heritage of a cultural, evolving and living land-
scape. This research is part of the interdisciplinary research project and cultural intervention funded by FCT
— Raízes da Educação para o Futuro (ReduF) — and aims to describe the evolution of the rural land-
scape of Murça located in the Douro Demarcated Region, and explain it taking into account the socio-
-demo­graphic dynamics of this territory since the end of the 19th century to the present. The methodology
is characterized by the use of statistical information related with demographic and agricultural data.
Keywords: landscape; Murça; vineyard; identity.

INTRODUÇÃO
Na mais antiga região demarcada e regulamentada do mundo1 podemos encontrar dife­
rentes soluções de armação ou sistematização dos terrenos agrícolas que resultaram
em paisagens de rara beleza. O Douro é um território marcado pelo despovoamento,

* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence aos autores deste texto.
** Doutor em Turismo (Universidade de Aveiro). Professor Adjunto na Escola Superior de Comuni­cação, Adminis­tração
e Turismo do Instituto Politécnico de Bragança e investigador integrado no CITUR (Centro de Investigação, Desenvolvi‑
mento e Inovação em Turismo).
*** Doutor em Geografia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Professor Coordenador no ISCET, e professor
convidado na FLUP. Investigador Integrado do CEGOT (Centro de Estudos em Geografia e Ordenamento do Território).
1
AGUIAR, 2002.

73
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

pelo abandono dos campos, mas também pela introdução de novas construções que,
de forma mais ou menos vincada, têm descaracterizado a paisagem rural tradicional, e
que contribuem, no entanto, para a sua diversificação e enriquecimento enquanto patri­
mónio de uma paisagem cultural evolutiva e viva.
Pretende-se com este trabalho, inserido no projeto de investigação interdisci­plinar
e de intervenção cultural financiado pela FCT, Raízes da Educação para o ­Futuro ­(ReduF),
descrever a evolução da paisagem rural das freguesias pertencentes ao ­concelho de
­Murça localizadas na região demarcada e explicá-la a partir do conhe­cimento rela­tivo às
dinâmicas sociodemográficas desse território, desde os finais do ­século XIX até à atua‑
lidade. A partir da análise destas dinâmicas, pretende-se contribuir para a ­promoção da
sua identidade cultural, «usando o potencial criativo do património simbólico de todas
as gerações, nas suas múltiplas vertentes»2.
Parte da sub-região de Cima Corgo, o concelho de Murça transporta, nos seus
socalcos e na sua topografia irregular, um longo percurso histórico que inclui achados
romanos, medievais ou modernos, nas margens do rio Tinhela, no alto do Pópulo ou em
pleno centro urbano, como a conhecida «Porca de Murça», rodeada de solares do s­ éculo
XVIII ou casarões oitocentistas. Território que mistura a Terra Quente com a Terra
Fria transmontana, de elevada produção de vinho e de azeite, as grandes propriedades,
as quintas vinhateiras e os quintais de produção doméstica têm recebido a introdução de
vários elementos disruptivos ou camaleónicos, de feição contemporânea, que produzem
novas leituras sobre paisagem, provocando a interrogação em torno de (pre)conceitos
estéticos, morfológicos ou identitários.
Como metodologia de trabalho, serão cruzadas informações estatísticas, nomeada‑
mente de carácter demográfico e de atividade agrícola e vinhateira, assim como será reali­
zado um levantamento fotográfico sistemático que servirá de base para a compre­ensão
das transformações da paisagem, em diferentes temporalidades e escalas geográficas.

1. EVOLUÇÃO DA PAISAGEM VINHATEIRA NA REGIÃO


DEMARCADA DO DOURO
Ao longo da sua história, a Região Demarcada do Douro (RDD) foi alvo de profundas
mudanças. Essas transformações ficaram impressas numa «cultural landscape of out‑
standing beauty», assim definida pela UNESCO, em 2001, quando a classificou como
Património Cultural da Humanidade, no âmbito da categoria de paisagem cultural
evolu­tiva e viva. De acordo com Carlos Almeida3, «remonta à conquista romana a ­altura
em que a região do Alto Douro se tornou em território capaz de produzir trigo, azeite e
vinho», não excluindo por completo a hipótese do cultivo da vinha ter ­chegado à área

2
REDUF, 2022.
3
ALMEIDA, 1996: 21.

74
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

dos castros antes da chegada dos romanos, como o podem provar algumas grainhas
de presumível vitis vinifera datadas do Calcolítico, encontradas no «Buraco da Pala»,
em Mirandela. Todavia, «a produção da vinha seria nula ou de expressão reduzida no
­começo do reinado de Augusto»4. É sobretudo a partir do século XII que se produz mais
documentação sobre as vinhas ou tributos pagos em vinho, quando surgem a­ lgumas das
mais antigas quintas da região. Devido à influência dos conventos cistercienses, a cultura
da vinha começa a difundir-se e a produção de vinho permitiria já a sua comerciali­
zação para lugares mais distantes. Até ao século XVIII, intensifica-se a cultura da vinha
e, em 1756, o Marquês de Pombal institui os primeiros mecanismos de regulação do
­mercado vinícola do Douro, criando a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas
do Alto ­Douro, que darão origem à primeira região demarcada e regulamentada de
­vinhos de todo o mundo5.
O cultivo da vinha é a atividade responsável pelas mais profundas alterações ocor‑
ridas num território definido pelas suas encostas declivosas, pela dureza do xisto e pela
escassez de água durante os meses secos. Como refere o projeto de candidatura apresen‑
tado à UNESCO, só a observação permanente e intensa e o conhecimento profundo,
proveniente de uma experiência acumulada de séculos de trabalho, poderia explicar a
expansão da vinha e a consequente ocupação humana, perante características naturais
tão adversas ao desenvolvimento da agricultura.
Segundo Orlando Ribeiro6:

os socalcos, com que se quebra o pendor das encostas e se retém a terra arável, consti-
tuem um traço bem marcado em todas as paisagens de relevo do Noroeste e da Beira
e apesar da sua origem mediterrânea, foi a difusão da cultura do milho o principal
motivo da sua divulgação, depois aplicados a culturas de sequeiro que se expandiram
em data mais recente: as vinhas do Douro, os olivais das montanhas da Beira.

A literatura refere a existência de formas antigas e tradicionais e de formas m


­ odernas
de armação dos terrenos vitícolas . As primeiras não permitem a mecanização ou moto­
7

rização por não possuírem um acesso por uma «estrada» aos geios ou parcelas de c­ ultura.
A construção dos terraços era feita com muros de pedra seca, onde se plantavam as v­ inhas
segundo as curvas de nível.
Dentro das formas tradicionais, podemos ainda referir o período pré-filoxérico
com socalcos de menor dimensão e o período pós-filoxérico com terraços e muros de
maior dimensão. Por volta das décadas de cinquenta e sessenta do século XX, c­ omeçam

4
ALMEIDA, coord., 2006: 369.
5
MARTINS, 2005.
6
RIBEIRO, 1963: 83-84.
7
AGUIAR, 1987; MARTINS, 2005.

75
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

a ser introduzidas novas técnicas de armação da vinha já utilizadas em alguns países


europeus: as vinhas em patamares, estreitas e largas, com os taludes de variadas a­ lturas e
sem qualquer tipo de proteção; a vinha plantada transversalmente ao declive e a c­ hamada
vinha «ao alto» com a vinha plantada no sentido das linhas de maior declive. Como se
pode verificar pela análise da Tabela 1, a cada forma de armação do terreno implantada
corresponde um contexto económico-social diferente.
Com a chegada da filoxera na década de sessenta do século XIX, a produção de
­vinho nacional fica profundamente afetada. Segundo Conceição Martins8, agrava­ram-
-se consideravelmente os custos de produção do vinho e verificou-se uma diminuição
da sua qualidade. Muitos viticultores ficaram na ruína, originando o crescimento acele‑
rado da emigração e o despovoamento das áreas rurais. As finanças públicas e a ­balança
comercial portuguesa foram gravemente prejudicadas. No Douro, muitos vinhedos
­viram-se abandonados ou substituídos por outras plantações como o olival, o amendoal
ou a cerealicultura. Os que resistiram foram alvo de profundas alterações nas décadas
seguintes. É importante salientar que muitos viticultores tentaram salvar as suas vinhas
com a aplicação de sulfureto de carbono e adubação. Mas com a ineficácia, a prazo, desses
processos, sobretudo a partir de 1892, inicia-se uma fase intensiva de novas plantações.

8
MARTINS, 1991: 653-654.

76
Tabela 1. Evolução das técnicas de armação das vinhas na RDD

Alteração do
Fiadas de Data de Sistemas de
Técnica de armação da vinha perfil natural Vantagens Desvantagens
videiras introdução drenagem
do terreno

FORMAS Alterações Uma a duas ? Existência • Existência de muros • Não permite


ANTIGAS E pouco fiadas de de bons de suporte aos a mecanização.
TRADICIONAIS significativas videiras sistemas de socalcos; boa • Não possibilita
(PERÍODO PRÉ- ao perfil (podendo ser drenagem. adaptação à estrutura a plantação de mais
-FILOXÉRICO) original. mais, minifundiária. de 3500 cepas por
dependendo • Equilíbrio entre as hectare.
da inclinação atividades agrícolas e • Construção
do terreno). as condições edáfico- dispendiosa.
-climáticas da região.

FORMAS Socalcos ou geios Pequenas Uma a duas Século XIX. Existência • Aumento do número • Não permite a
TRADICIONAIS recuperados de alterações do fiadas de de bons de cepas por hectare mecanização.
(PERÍODO contorno arredondado. perfil original videiras. sistemas de (de 3500 pés para • Construção
PÓS-FILOXERA) drenagem. mais de 5000 por dispendiosa.
Plataformas dos Pequenas Permitem Século XIX. hectare).
socalcos inclinadas alterações do a plantação
(acompanham perfil original de trinta
o declive natural a quarenta
da encosta). fiadas de
videiras.

Plataformas dos Pequenas Cinco a seis Século XIX.


socalcos pouco alterações do fiadas de
inclinadas e com muros perfil original videiras.
de contornos retilíneos
(sistematização do
terreno intermédia).
(continua na página seguinte)

77
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
78
Alteração do
Fiadas de Data de Sistemas de
Técnica de armação da vinha perfil natural Vantagens Desvantagens
videiras introdução drenagem
do terreno
FORMAS Terracea- Patamares Grandes Uma fiada de Décadas Sistemas de • Permitem a mecanização. • Substituição dos muros
MODERNAS DE mento estreitos. alterações. videiras. de 1950 drenagem • Aumento do número de de pedra por taludes de
IMPLANTAÇÃO — vinha e 1960. negligencia- cepas por hectare. terra.
DA VINHA em Patamares Duas ou mais dos ou mal • Se a vinha for construída • Perda efetiva do terreno
EM TERRENOS patama- largos. fiadas de construídos. segundo as curvas de ou de área útil.
DE ENCOSTA res. videiras. nível em vertentes, com • Maior dificuldade em
declives entre 15 a 20%, controlar a vegetação
Segundo Uma ou mais
não há necessidade de espontânea.
as curvas fiadas de
alterar o perfil original • Maior quantidade de solo
de nível. videiras.
da encosta. mobilizado (que poderá
• A longo prazo verifica-se ser facilmente erodido).
uma melhoria da • Os taludes com alturas
fertilidade do solo devido muito elevadas
à redução das perdas dos conduzem a uma
componentes mais finos; dissecação muito intensa
• Os patamares propiciam do solo e aumentam o
boas condições de risco de desabamento
interceção da escorrência e erosão;
da água superficial; • A curvatura dos bardos
• Nos patamares estreitos, impede a máxima
todas as videiras são rentabilização de
plantadas na zona de determinadas operações
aterro (facilidade de culturais;
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

acesso), as vinhas • Maior dificuldade de


apresentam maior acesso à face exterior dos
uniformidade de bardos, particularmente
maturação e uma maior nos tratamentos
facilidade de manutenção fitossanitários.
dos taludes. • Difícil adaptação dos
• Por facilitarem a patamares à estrutura
mecanização, as vinhas minifundiária.
segundo as curvas de • Os patamares estreitos
nível são uma boa opção não permitem uma
para declives não densidade da plantas por
superiores a 20%. hectare muito elevada.
(continua na página seguinte)
Alteração do
Fiadas de Data de Sistemas de
Técnica de armação da vinha perfil natural Vantagens Desvantagens
videiras introdução drenagem
do terreno
FORMAS Vinhas plantadas Alterações Várias dezenas Década de Sistemas de • Permitem a mecanização • Em declives
MODERNAS DE transversalmente pouco de fiadas de 1970. drenagem até declives da ordem dos ­superiores a 25% não
IMPLANTAÇÃO ao declive. significativas. videiras. negligen­ 25%. podem ser
DA VINHA EM ciados ou mal • Não exigem uma armação ­mecanizáveis.
TERRENOS DE construídos. especial do terreno.
ENCOSTA

Vinhas plantadas Pequenas Várias dezenas Décadas • Permitem a mecani­zação, • Surriba profunda,
segundo as linhas alterações do de fiadas de de 1950 mesmo em ­declives da o que pode favorecer
de maior declive perfil original. videiras. e 1960. ordem dos 70% o movimento de
(«vinha ao alto»). (mecani­zação realizada terras perante
com tração por guincho). precipitações
• Surriba profunda e intensas.
homogénea. • Construção mais
• Linhas de plantação retas e onerosa para declives
sem necessidade de serem iguais ou superiores
intercaladas com taludes. a 40-45%.
• Manutenção das
condições favoráveis de
exposição da e
­ ncosta.
• Boa adaptação ao c­ ritério
usual da posse da terra
em parcelas.
• Permite uma grande inten-
sidade cultural com vista
à máxima produtividade
da t­ erra (bom coeficiente
de utilização do solo).

Fonte: AGUIAR, 1987; MAGALHÃES, 2019; MARTINS, 2005: 42. Adaptado

79
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

O período pós-filoxera é então marcado pela introdução de novas técnicas como


o espaçamento das videiras, o alinhamento das vinhas e a intensificação dos t­rabalhos
­culturais e das adubações9, que exigiram também o desenho de novas formas de
­armação dos terrenos, facilitando os trabalhos agrícolas. É no período pós-filoxera que
surgem também mudanças na estrutura fundiária. Apesar da prevalência de uma estru‑
tura ­fundiária caracterizada pelas reduzidas dimensões das explorações, o abandono de
­terras por parte dos pequenos agricultores foi aproveitado pelos grandes proprietários,
que viram uma oportunidade para aumentar as suas explorações vitícolas.
Um outro momento que deixou marcas indeléveis no cultivo da vinha e na
­paisagem duriense vive-se a partir da década de setenta do século XX. O contínuo
­aumento da ­falta de mão de obra devido aos fluxos migratórios internos e externos,
a subida dos preços praticados pelos assalariados e a necessidade de mecanização,
entre outros, impõem, uma vez mais, a necessidade de se proceder a alterações significa‑
tivas nos vinhedos de toda a região, assegurando a sua viabilidade económica.

Tabela 2. Evolução da área de vinha reestruturada com apoios comunitários na RDD

Anos Área (ha)

PDRITM (1985-1990) 2800

Programa Operacional (1990-1993) 1950

PAMAF (1994-1999) 2450

VITIS (2000-2007) 10 000

RARRV (2008-2009) 1094

RARRV (2009-2010) 1274

RARRV (2010-2011) 1126

RARRV (2011-2012) 1049

RARRV (2013-2014) 1329

VITIS -2015 1588

VITIS -2016 1252

VITIS (2017-2018) 1676

VITIS (2018-2019) 713

TOTAL 28 301

Fonte: disponível em <www.ivdp.pt>

9
MARTINS, 1991.

80
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

É neste contexto que, nos anos oitenta do século XX, começaram a surgir ­programas
de apoio de ajuda financeira aos agricultores (Tabela 2) para a reconversão e ­construção
de vinhas com formas modernas de armação, apoiadas na experiência adquirida nas
regiões vitícolas do continente europeu, e que, até ao momento, terão financiado a
­reestruturação de mais de 28 mil hectares de vinha em toda a RDD.
A introdução de mecanização foi fundamental para ajudar a resolver o problema
da falta de mão de obra, mas também para melhorar a produtividade e, dessa forma,
contribuir para melhorar a sua competitividade.
Como refere Helena Pina10, «as directrizes da Organização Comum do Mercado
Vitícola, quando se referem às novas plantações de vinhas (transposto para Portugal
pela Portaria n.º 461 de 21 de Julho de 2000), apresentam vários desenquadramentos
com as especificidades durienses, pois estabelecem a área mínima de vinha a plantar em
1 ha, quando mais de 75% dos prédios possuem área inferior a 0,5 ha», v­ erifican­do-se
uma preocupante subvalorização do Baixo Corgo, «envolto num deficiente parcela­
mento, ­enquanto se privilegiava cada vez mais o Cima Corgo, num quadro que se alonga
progres­sivamente para o Douro Superior, onde a expansão da vinha é uma realidade»11.

Tabela 3. Evolução da dimensão das explorações na RDD (2010-2020)

N.º explorações Área total (ha) N.º parcelas


Intervalos de área
da exploração (ha)
2010 2020 Var. (%) 2010 2020 Var. (%) 2010 2020 Var. (%)

área total <= 0,1 9419 1447 -85% 421 88 -79% 13 132 2234 -83%

0,1 < área total <= 0,5 14 524 6654 -54% 3736 1814 -51% 37 860 17 965 -53%

0,5 < área total <= 1 5959 3849 -35% 4249 2785 -34% 27 026 17 683 -35%

1 < área total <= 2 4235 3222 -24% 5954 4602 -23% 27 391 20 904 -24%

2 < área total <= 5 3000 2684 -11% 9326 8371 -10% 25 374 22 174 -13%

5 < área total <= 8 667 771 16% 4137 4854 17% 6677 7751 16%

8 < área total <= 10 222 259 17% 1974 2320 18% 2228 2982 34%

10 < área total <= 20 414 480 16% 5602 6672 19% 5157 6761 31%

área total > 20 242 267 10% 10 140 12 201 20% 4659 6168 32%

TOTAL 38 682 19 633 -49% 45 539 43 708 -4% 149 504 104 622 -30%

Fonte: disponível em <www. ivdp.pt>

10
PINA, 2004: 341.
11
PINA, 2004: 340.

81
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Como se pode verificar pela leitura da Tabela 3, apesar do número de explo­rações


de pequena dimensão (até dois hectares) ter diminuído de forma significativa, e as explo­
rações de maior dimensão terem aumentado a sua representatividade, observa-se ainda
uma grande preponderância das explorações de pequena dimensão, visíveis não só nos
valores da área total como também no número de parcelas: em 2020, existiam 17 856
explorações de dimensão igual ou inferior a cinco hectares, correspondendo a 90,9%
do total de explorações. Esta realidade é responsável pelo grande mosaico de pequenos
vinhedos que continua, ainda hoje, a dominar a paisagem agrícola da RDD.

2. METODOLOGIA
Como metodologia de trabalho, realizou-se uma revisão da literatura, com foco em
­trabalhos publicados sobre a paisagem da Região Demarcada do Douro, seguida de um
cruzamento de informações de índole estatística, nomeadamente de carácter demográ­
fico e de atividade agrícola e vinhateira. Procedeu-se ainda a um levantamento foto­
gráfico sistemático do território em estudo, que serviu de base à compreensão das trans‑
formações da paisagem em diferentes temporalidades e escalas geográficas.

3. ÁREA DE ESTUDO: MURÇA


Localizado no distrito de Vila Real e na NUT III do Douro, o concelho de Murça é um
terri­tório de transição onde se distinguem diferentes zonas de acordo com as altitudes
encon­tradas: Terra Fria de Planalto (acima dos 600 metros); Terra de Transição (entre os
450 e 600 metros) e Terra Quente (altitudes iguais ou inferiores a 450 metros). No seu
­território, ocupado há milhares de anos, podemos encontrar achados pré-históricos com
incidência no Calcolítico e na Idade do Ferro, vestígios romanos, medievais ou modernos.
Apesar de uma longa tradição na produção de vinho, atestada pelos impostos de
colheita de três puçais de vinho referidos no foral de 122412, o concelho de Murça a­ penas
é incluído na RDD com a nova demarcação de 1907, decretada por João Franco. Não
obstante esta inclusão tardia, os vinhos produzidos no concelho serviam, há muito,
como matéria-prima para a produção de aguardente necessária à produção de vinho
do Porto e, quando a produção de vinho do Porto era reduzida, era misturado com os
vinhos durienses.
No ano seguinte (1908), a polémica resultante dos excessivos alargamentos resulta
numa redução da área da RDD, passando esta a ser demarcada por freguesias, o que
reduziu a região produtora de vinho do Porto praticamente ao território ocupado na
atualidade. Por conseguinte, permanecem na RDD as freguesias de Murça, Noura e
Candedo, conhecidas por freguesias da «Terra Quente» (Fig. 1).

12
COSTA, 1992.

82
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

Fig. 1. Freguesias do concelho de Murça

Ao longo da primeira metade do século XX, as dinâmicas demográficas do


c­ oncelho acompanham a dinâmica nacional, marcada por um crescimento significativo
da população, apenas interrompido entre 1911 e 1920 devido ao impacto da partici­
pação portuguesa na Grande Guerra, à grave situação pandémica da pneumónica,
ou gripe espanhola, e à forte vaga emigratória, especialmente até 1914.
As migrações (internas e externas) da década de 1950 justificam a redução do cresci­-
mento efetivo da população, mas os elevados valores de natalidade impedem um
crescimento negativo. A partir de 1960, incapaz de assegurar mão de obra sufi­
­
ciente e bem remunerada, o concelho vai perdendo população. Muitos partiram para
«o ­Ultramar», incorporados no exército português para combater na Guerra Colonial.
A maioria emigrou depois, na década de 1970, para a Europa.
Este fluxo emigratório foi interrompido devido à crise económica resultante do
choque petrolífero de 1973, que levou ao aumento do desemprego na Europa e ao
­regresso de muitos emigrantes. A manutenção de valores de natalidade ainda elevados
irá contribuir para o aumento da população residente na década de 1980 (Fig. 2). ­Note-se
que esta será a única década de crescimento demográfico desde 1960 até aos dias de hoje,
não só no município de Murça, mas em toda a região do Douro.
Nas décadas seguintes, e não obstante a melhoria das qualificações dos residentes
(ou talvez até por isso), os mais jovens continuam a procurar nas cidades do litoral,
nas capitais de distrito ou no estrangeiro empregos com remunerações superiores,
­deixando para trás os mais velhos que teimosamente continuam a tratar da vinha e do
olival e a produzir vinhos e azeites valorizados em Portugal e no estrangeiro.
A diminuição é mais sentida nas freguesias que constituem a Terra Fria (Fig. 2),
cujo peso na população total do concelho vai sendo cada vez mais reduzido. São as
­freguesias pertencentes à RDD, onde se produz vinho generoso e azeite, que melhor
resistem ao despovoamento: em 2021, as freguesias produtoras de vinho (Terra Quente)
tinham 68,5% da população residente.

83
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 2. Evolução da população residente nas freguesias do concelho de Murça (1900-2021)


Nota: os valores de 2021 correspondem aos dados preliminares dos Censos 2021
Fonte: disponível em <www.ine.pt>

A freguesia do Candedo, localizada mais a sul, é dominada pelos apertados vales


dos rios Tinhela e Tua. A sua localização, geomorfologia e menor altitude conferem-
-lhe um conjunto de condições naturais muito favorável à produção de vinho, atestado
pela maior área dedicada ao cultivo da vinha e pela existência de mais área de vinha
com letras A, B e C (Tabela 4). A freguesia de Murça, localizada mais a norte e com
uma ­altitude média superior, tem uma grande incidência de parcelas classificadas
com classe E.
A análise da Tabela 4 permite ainda perceber a evolução ocorrida ao longo da
última década (2010-2020), verificando-se um aumento significativo da área de vinha
plantada em parcelas classificadas com as letras A e B na freguesia de Candedo, e uma
diminuição da área de vinha plantada em parcelas classificadas com letras compreen‑
didas entre C e I em todas as freguesias. Esta situação pode ser explicada pela maior
valorização das parcelas com letras A e B para efeitos de atribuição do benefício.

84
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

Tabela 4. Evolução da área de vinha e sua composição, por freguesia (2010-2020)

Total Total
Noura Noura Candedo Candedo Murça Murça
concelho concelho
2010 2020 2010 2020 2010 2020 Evol.
2010 2020
%
Área (ha) Área (ha) Área (ha) Área (ha)

A 71 113 71 113 59%

B 1 2 295 326 296 328 11%

C 93 118 327 304 3 1 423 423 0%

D 266 223 99 91 128 124 493 438 -11%

E 10 17 16 8 100 67 126 92 -27%

F 2 1 2 1 17 8 21 10 -52%

G 4 2 2 1 3 0 9 3 -67%

H 1 0 0 0 1 0 2 0 100%

I 2 2 0 2 1 4 3 -25%

379 365 813 845 255 202 1445 1410 -2%

Notas: • período de referência — período a que a informação se refere. Pode ser pontual (um ano específico) ou
um intervalo de tempo (vários anos); • localização geográfica — da RDD, por sub-região, concelho e freguesia,
conforme definido no n.º 1, do artigo 3.º, do decreto-lei n.º 173/2009, de 3 de agosto; os totais por sub-região
e para a totalidade da região podem não coincidir nos quadros do bloco «viticultura», visto serem obtidos a
partir de parciais diferentes (por parcela, por exploração ou por sub-região), com diferentes arredondamentos
à unidade. Fonte: disponível em <www.ine.pt>. Cálculos dos autores

Pode-se ainda verificar a diminuição da área total de vinha no concelho de M


­ urça
(-2%) no período considerado. Esta diminuição pode ficar a dever-se ao abandono das
terras como consequência do envelhecimento da população ou à substituição da ­vinha
por olival. O azeite produzido no concelho tem gozado de uma grande reputação à
­escala nacional e internacional, o que poderá justificar uma mudança na ocupação no
solo agrícola, nomeadamente, nas parcelas de vinha classificadas com letras de m ­ enor
benefício. A construção da barragem de Foz Tua também poderá ajudar a explicar
esta diminuição devido à submersão de algumas vinhas mais próximas dos rios Tua e
­Tinhela. Informação recente fornecida pelo Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto
revela a existência de 1278 hectares de vinha no concelho de Murça em 2021, dos quais
1057 hectares correspondem a vinhas com aptidão para a produção de vinho do Porto.

85
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Tabela 5. Vinha no concelho de Murça

Apta AaF Não apta Ilegal Qt. parcelas

MURÇA 1278,197 1057,705 18,6964 89,9189 5046

Nota: a sigla AaF indica a área, dentro da área apta, que tem aptidão à produção de vinho do Porto
Fonte: INSTITUTO DOS VINHOS DO DOURO E DO PORTO, 2021

A Tabela 6 revela a distribuição das vinhas do concelho segundo as formas de


a­ rmação dos terrenos. Esta informação, atualizada com recurso a um Sistema de Infor-
mação Geográfica (SIG), foi igualmente fornecida pelo Instituto dos Vinhos do ­Douro
e do Porto (2021). Verifica-se a predominância de formas de armação modernas
(pata­mares e vinha ao alto), que exprimem as mudanças ocorridas nas últimas décadas
em toda a paisagem das freguesias do concelho de Murça que se encontram inseridas
na RDD. Estas mudanças refletem o esforço de modernização da atividade agrícola,
nomea­damente de mecanização, que levou:
• à substituição de vinhas com formas de armação tradicionais (pré e pós-filoxera);
• à substituição de outras áreas agrícolas por vinha;
• ao plantio de novas vinhas em terrenos ocupados por mato ou floresta.

Tabela 6. Vinha no concelho de Murça segundo a armação dos terrenos

Qt.
Armação dos terrenos Apta AaF Não apta Ilegal
parcelas

Patamares — duas ou mais linhas 276,2978 226,6119 0,7118 27,0551 434

Vinha s/armação de terreno 36,8599 31,7091 0,3947 4,8675 143

Terraços pós-filoxera 4,0712 3,7003 0 0,0308 10

Patamares — uma linha 20,711 18,0923 0 1,0396 31

Outras 0 0 0,2748 0,2314 22

Terraços pré-filoxera 0,7757 0,7757 0 0,0123 5

Vinha ao alto 84,9293 75,1964 0,1513 9,2089 184

Nota: a sigla AaF indica a área, dentro da área apta, que tem aptidão à produção de vinho do Porto
Fonte: INSTITUTO DOS VINHO DO DOURO E DO PORTO, 2021

86
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

4. A PAISAGEM NAS FREGUESIAS VINHATEIRAS


Um percurso pelos caminhos alcatroados ou em terra batida do concelho de Murça
permite desvendar um território de transição. Não é um lugar feito apenas dos clichés
do Douro ou da estética imperturbável dos socalcos sobre um espelho de água travado
por uma barragem. E não é também apenas a fria e pedregosa planura transmontana de
lameiros e matagais. É um lugar de confluência de múltiplas realidades, marcadamente
construído a partir de uma história vínica, mas menos romantizada e «paisagificada»
(na expressão de Álvaro Domingues13) que as margens imediatas do Douro, e parti‑
lhada, com frequência, por largas extensões de olivais de onde se extrai o ouro líquido,
famoso um pouco por todo o mundo.
A paisagem evoluiu organicamente e, por isso, encontram-se ainda, aqui e ali, ­fósseis
de um passado distante, como os mortórios, de que já falámos, ruínas de um tempo que
passou, marca da destruição causada pela filoxera. Ali, impera hoje um certo silêncio que
se ouve profundo no vento que perpassa pelas oliveiras que se erguem sobre os ­socalcos
abandonados. Embora vinhateira, a paisagem de Murça não parece estar presa a uma
­dimensão excessivamente nostálgica ou de obsessão estética. Estão ali os socalcos e a
­vinha, mas quase toda transformada para produzir, e não para responder a anseios de
embelezamento, incorporando as novas técnicas de armação do final do século XX.

Fig. 3. Mortório pré-filoxérico ocupado com oliveiras

São vinhas em patamares largos, por vezes, até plantadas «ao alto», ­contrariando a
tradicional organização em curvas de nível. Desse passado, avesso a máquinas e m ­ otores,
de terraços com muros de pedra seca, pouco sobra. Esta nova forma de plantar é, de certa
forma, ainda que pareça paradoxal ou anacrónico, o velho Douro, reclamado por Miguel
Torga, quando criticava aqueles que «iam de Cadillac a uma vindima […] f­otografá-la

13
DOMINGUES, 2019.

87
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

e descrevê-la depois num chá das cinco ou num jornal da tarde»14. A ­paisagem da vinha
em Murça não é embrulho nem souvenir, mas produto da cultura local e de fim produ‑
tivo, que não fica fechada em práticas antigas, mas que aprende e inova numa constante
adaptação.
Murça não é um território carregado de histórias e imaginários, nem um ­espaço
de overtourism ou gentrificação. Não é também um lugar «com excesso de identi­
dade»15, como Álvaro Domingues chamou ao Douro, porque fica na sua franja, longe
dos ­grandes roteiros turísticos, do comboio e do rabelo, das grandes quintas e do lastro
da comunidade britânica de Oitocentos. Hoje, é ainda sobretudo um lugar da terra e do
agricultor, constituído, na sua essência, por aldeias que pontuam a cartografia, rodeadas
de pequenas propriedades.

Fig. 4. Vinha tradicional pós-filoxera

14
MATTOSO et al., 2010: 203.
15
DOMINGUES, 2019: 47.

88
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

Fig. 5. Vinha moderna em patamares

Quando se abrem os horizontes a quem passa, a partir de uma linha de cumeada


ou de um miradouro numa encosta, o que se vê assemelha-se a uma manta de retalhos,
vislumbrando-se ainda algumas marcas de abandono de campos agrícolas, alguns dos
quais, entretanto, incorporados em explorações de maior dimensão. Intrincada e hete‑
rogénea, a paisagem de Murça é, por isso, diferente da norma duriense, apesar de incor‑
porar inevitavelmente elementos comuns.

Fig. 6. Mosaico de pequenos vinhedos

O verão quente, livre da chegada das massas húmidas atlânticas que o Marão b ­ loqueia,
aquece a massa xistosa e adoça as uvas e o vinho. É um pedaço do abrasador Medi­terrâneo
encostado ao inverno transmontano. Em Murça, há vinhas e oliveiras na encosta, mas
­despontam também, aqui e ali, figueiras e marmeleiros, que nascem em r­ecantos das
proprie­dades e em pequenas nesgas junto às estradas, produzindo um odor mélico e ofere‑
cendo fruta à dieta local. Há, ainda, uns poucos sobreiros, relíquias vivas de onde se extrai

89
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

cortiça, que permaneceram de um tempo distante. No topo das vertentes, onde a vinha já
não chega, há cristas quartzíticas, blocos rochosos, urze e um ou outro p­ inheiro, que resiste
a ventos e tempestades, desde as campanhas de florestação do passado.
Como qualquer outra paisagem dinâmica, que resiste à musealização ou à crista­
lização, há alguns elementos novos que a alteram e complexificam, pese embora a manu­
tenção significativa da dependência do contexto biofísico para as atividades econó­micas
da região. Em Murça, os principais mecanismos de construção de paisagem c­ ontinuam
a ser ditados pelos interesses dos produtores de vinho e do azeite. Além do mais,
não se notam extraordinárias ruturas por ação da industrialização ou da urbani­zação.
Os ­pequenos aglomerados não têm uma presença muito significativa de ­estruturas
de aloja­mento local, nem tampouco são encontradas grandes unidades hoteleiras
que p ­ ossam criar sobressalto na organização do espaço ou na leitura tradicional da
­paisagem. Como apontou Natália Fauvrelle, «é o equilíbrio entre a morfologia aciden‑
tada e o sistema construtivo e produtivo das arquitecturas da paisagem que confere a
quali­dade e a espe­cificidade à Região Demarcada do Douro e que a torna única e irrepe­
tível»16. Há transfor­mações de pormenor com a introdução de elementos de arquite­
tura contempo­rânea em alguma construção nova, em acréscimos de pisos ou de anexos,
e determi­nadas substituições de edificado, num processo que não cria rutura, mas parece
­promover uma certa continuidade. As aldeias, por ação do regresso de alguns m ­ igrantes,
passam a ser pontuadas por alguns elementos novos, em regra discretos, notórios mais
por serem r­ecentes que por disrupção, mas que não alteram radicalmente a escala
dos aglom­erados, nem tampouco a leitura do conjunto. Do ponto de vista produtivo,
as ­novas adegas, com arquitetura de feição industrial, têm aparência discreta na p
­ aisagem,
aproveitando materiais locais e assumindo, na maior parte das situações, uma postura
camaleónica, desaparecendo na paisagem.

Fig. 7. Intervenções recentes em habitação própria e novas adegas (Candedo e Martim, respetivamente)

16
FAUVRELLE, 2008: 18.

90
TEMPORALIDADES DA PAISAGEM VINHATEIRA NO CONCELHO DE MURÇA

CONCLUSÕES
Como foi possível observar ao longo deste trabalho, a paisagem vinhateira da Região
­Demarcada do Douro e do concelho de Murça, em particular, reflete as mudanças
­sociais, demográficas e económicas ocorridas nos últimos séculos. Demonstrou-se,
­através da recolha e apresentação de alguns dados estatísticos relativos à demo­grafia
e à ocu­pação do solo agrícola, que o território continua a ser palco de profundas alte­
rações com ­impacto quer na forma de ocupar e trabalhar a terra quer nas opções arqui­
tetónicas. Trata-se de uma paisagem dinâmica que, como foi referido, vai resistindo
à musealização ou à cristalização, apesar dos elementos novos que pontualmente a
­alteram e complexificam. Marcado pelo despovoamento e pela falta de mão de obra,
foi necessário introduzir neste território novas formas de sistematização dos terrenos
que alteraram a paisagem agrícola tradicional, caracterizada pelos seus muros de pedra
e sistemas de drenagem que impedem os movimentos de terreno em períodos chuvosos
mais intensos. As vinhas em patamares ou as vinhas «ao alto» são hoje um elemento de
modernidade, demonstrando simultaneamente que a paisagem, apesar de menos habi‑
tada, continua viva e num processo de adaptação aos desafios da contemporaneidade.
Por conseguinte, procedeu-se neste trabalho à descrição da evolução da p­ aisagem
rural das freguesias vinhateiras de Murça e à explicação da sua evolução a partir do
conhe­cimento relativo às dinâmicas sociodemográficas desse território. Com base
na análise destas dinâmicas, foi possível estudar e conhecer mais profundamente os
­coautores ­deste vasto património que, «usando o potencial criativo do património
simbó­lico de todas as gerações, nas suas múltiplas vertentes», tem um grande potencial
para a promoção da sua própria identidade cultural.

BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Fernando Bianchi de (1987). Cultura da Vinha em Terrenos de Encosta: alternativas para a sua
implantação. Vila Real: Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
AGUIAR, Fernando Bianchi de (2002). O Alto Douro Vinhateiro, uma paisagem cultural, evolutiva e viva.
«Douro — Estudos & Documentos». 7:13, 143-152.
ALMEIDA, Carlos A. Brochado de (1996). O Cultivo da Vinha Durante a Antiguidade Clássica na Região
Demarcada do Douro. Ponto da Situação. «Douro — Estudos & Documentos». 1:2, 18-30.
ALMEIDA, Carlos A. Brochado de, coord. (2006). História do Douro e do Vinho do Porto — História Antiga
da Região Duriense. Porto: Edições Afrontamento.
COSTA, António (1992). O concelho de Murça (Retalhos para a sua história). Murça: Câmara Municipal de
Murça.
DOMINGUES, Álvaro (2019). De que é que se fala quando se fala de paisagem? In PEREIRA, Gaspar
­Martins; AMORIM, Maria Norberta; LAGE, Maria Otília Pereira (2019). Douro e Pico — Paisagens
Culturais Património da Humanidade. Porto: CITCEM, pp. 41-52.
FAUVRELLE, Natália (2008). Arquitecturas da paisagem vinhateira — técnicas e saber fazer. In ­FAUVRELLE,
Natália; ROSAS, Lúcia, coords. Arquitecturas da paisagem vinhateira. Peso da Régua: Fundação
­Museu do Douro, pp. 14-18.

91
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

INE (2021). Censos. Lisboa: INE. [Consult. 3 ago. 2021]. Disponível em <https://www.ine.pt/xportal/
xmain?xpid=INE&xpgid=ine_publicacoes&PUBLICACOESpagenumber=11&PUBLICACOESte‑
ma=00&PUBLICACOESfreeText=censos>.
IVDP (2021). Área de vinha e sua composição. Porto: Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto. ­[Consult.
3 ago. 2021]. Disponível em <https://areareservada.ivdp.pt/estatisticas_novo2.php?codEstatisti‑
ca=2&periodos=897&codFreguesia=>.
IVDP (2021). Estatísticas. Porto: Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto. [Consult. 26 jul. 2021]. Dispo‑
nível em <https://areareservada.ivdp.pt/estatisticas_novo2.php?codIdioma=0>.
IVDP (2021). Evolução da área de vinha reestruturada com apoios comunitários. Porto: Instituto dos Vinhos
do Douro e do Porto. [Consult. 26 jul. 2021]. Disponível em <https://areareservada.ivdp.pt/estatisti‑
cas_novo2.php?codEstatistica=6&codIdioma=0>.
MAGALHÃES, Nuno (2019). A evolução tecnológica da cultura da vinha. In GUICHARD, François;
­ROUDIÉ, Philippe; PEREIRA, Gaspar Martins, coords. O vinho do Porto e o Douro no século XX
e início do século XXI. Porto: Edições Afrontamento, pp. 300-328. Vol. 5 de História do Douro e do
vinho do Porto.
MARTINS, Conceição Andrade (1991). A filoxera na viticultura nacional. «Análise Social». XXVI:112-113,
653-688.
MARTINS, Márcio (2005). Processos de Erosão Acelerada na Região Demarcada do Douro. Porto: Faculdade
de Letras da Universidade do Porto. Dissertação de mestrado.
MATTOSO, José et al. (2010). Portugal: O sabor da terra. Lisboa: Círculo de Leitores.
PINA, Helena (2004). A expansão e a reconversão vitícola na Região Demarcada do Douro — algumas proble­
máticas. In V Congresso da Geografia Portuguesa, Portugal: territórios e protagonistas. Guimarães:
Universidade do Minho, pp. 340-341.
REDUF (2022). Raízes da Educação para o Futuro. Projeto financiado pela Fundação para a Ciência e a
Tecnologia, IP (FCT): Universidade do Porto. [Consult. 5 mar. 2021]. Disponível em <https://www.
fpce.up.pt/ciie/?q=content/reduf-raizes-da-educacao-para-o-futuro>.
RIBEIRO, Orlando (1963). Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas. 2.ª ed.
Lisboa: Livraria Sá da Costa.

92
II
PATRIMÓNIOS E
REPRESENTAÇÕES DA
PAISAGEM

93
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

94
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA
DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS

DO SÉCULO XVI: O LIVRO SEXTO
O LIVRO DAS
SEXTO DAS
SAUDADES DA TERRA *
CATARINA R. M. MADRUGA**

Resumo: Numa entidade tão complexa quanto o é uma paisagem cultural, constitui um desafio
compreender os tempos da sua constituição e transformação, e traçar a sua história. No presente artigo,
propomos contribuir para este conhecimento, debruçando-nos sobre a crónica de Gaspar Frutuoso
— Saudades da Terra —, e procurando entender como seria, à luz do que nos é transmitido por esta obra,
o território da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico em finais do século XVI, nas múltiplas facetas
que definem uma paisagem e no âmbito alargado da unidade em que esta se insere: a ilha do Pico.
Palavras­‑chave: Açores; paisagem da cultura da vinha; ilha do Pico; história da paisagem; Gaspar
Frutuoso; património mundial.

Abstract: In such a complex entity as a cultural landscape, it is a challenge to understand the times of its
constitution and transformation and to trace its history. In this article we propose to contribute to this
knowledge by looking at the chronicle of Gaspar Frutuoso — Saudades da Terra —, and trying to under-
stand how it was, in the light of what is transmitted by this work, the territory of the landscape of the Pico
island vineyard culture in the late sixteenth century, in the multiple aspects that define a landscape and in
the larger scale of the unit in which it is included: the Pico island.
Keywords: Azores; landscape of the vineyard culture; Pico island; landscape history; Gaspar Frutuoso;
world heritage site.

INTRODUÇÃO
A escolha da obra Saudades da Terra como objeto do presente trabalho justificou-se por
recuar a um tempo em que o território em estudo não estava associado a uma produção
vinícola de grande escala e, também, por conter dados suficientes para visualizar, com
alguma consistência e objetividade, algumas características definidoras da ocupação
­humana do território e da definição da sua paisagem.
A análise da crónica é feita sobre os dois capítulos do Livro Sexto das Saudades da
Terra dedicados à ilha do Pico1 e organizada de modo a consubstanciar-se na recolha e
análise de um conjunto de dados, ao qual se associou a construção de um conjunto de
diagramas cartográficos relativos a seis temas:

* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence à autora deste texto.
** Investigadora independente. Arquitecta pela FAUTL e pós-graduada em reabilitação urbana e arquitetónica pelo ISCTE.
Projetista em Lisboa, tem desenvolvido estudos sobre a paisagem da cultura da vinha da ilha do Pico, no âmbito de sua
formação e atividade profissional.
1
Capítulo quadragésimo — Do incerto descobrimento da ilha do Pico e de sua descrição pela costa em circuito; Capítulo
quadragésimo primeiro — Da descrição da ilha do Pico pelo meio da terra e de um incêndio que nela houve.

95
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

• divisão administrativa;
• lugares habitados;
• portos;
• população;
• atividades;
• atividade vitivinícola.

Pretendeu-se reunir informações que permitissem uma visualização clara e compa­


rável dos dados fornecidos pela crónica de Gaspar Frutuoso e, deste modo, construir hipó­
teses de interpretação relativas ao tipo de ocupação humana do território da P
­ aisagem da
Cultura da Vinha da Ilha do Pico no final do século XVI, tanto numa perspetiva compa­­-
rativa em relação ao restante território da ilha à época, como numa perspetiva compa­ra-
­tiva em relação aos aspetos que caracterizam a consubstanciação da Paisagem da C ­ ultura
da Vinha da Ilha do Pico enquanto tal, oferecendo uma leitura entrecruzada que p ­ ossa
contribuir para um entendimento mais completo desta paisagem como resultado
­complexo de fenómenos de transformação, supressão, transmissão e hibridização ao
­longo do tempo.

1. DIVISÃO ADMINISTRATIVA
As informações transmitidas por Gaspar Frutuoso em relação à divisão administrativa
da ilha do Pico indicam a existência de sete freguesias: três na vertente sul (São M ­ ateus,
Lajes e Ribeiras); duas na vertente norte (São Roque e Prainha); uma na ponta nascente
(Pie­dade) e outra na base da montanha, no lado poente da ilha (Madalena). É também
indicada a existência de duas vilas — uma na vertente sul (Lajes) e outra na ­vertente
­norte (São Roque) —, sendo sublinhada a importância destacada da primeira em ­relação
à segunda.
Não há um conhecimento garantido sobre como se terá processado o povoamento
inicial da ilha do Pico, mas existe a suposição de que o mesmo possa ter acontecido na
sua vertente sul, na zona das atuais freguesias das Lajes e das Ribeiras, o que poderia
contribuir para justificar a relevância da vila das Lajes no contexto da ilha no final do
século XVI2.
Embora, a partir dos dados da crónica, não seja possível aferir as dimensões e­ xatas
que as freguesias teriam, é viável ter uma ideia aproximada de algumas das suas e­ xtensões
ao longo da costa, pois Gaspar Frutuoso indica-o para as freguesias da Mada­lena e da
Piedade (ambas com cerca de duas léguas para sul e duas léguas para norte) e para a
freguesia das Lajes (que teria mais de três léguas de extensão). Considerando-se a possi­
bilidade da localização das fronteiras entre as freguesias se ter mantido ­relativamente

2
CHAGAS, 1989: 507.

96
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

constante ao longo do tempo (com exceção das que correspondem aos acidentes vulcâ­
nicos de 1718 e que poderão, portanto, ter sido alteradas, entretanto), estabeleceu-se
recorrer a estas para efeitos de representação gráfica. Em relação às datas de formação
das freguesias Gaspar Frutuoso indica apenas que a freguesia de São Mateus teria sido
criada em 1588.

Fig. 1. Diagrama cartográfico relativo à divisão administrativa da ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com
base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso

Da análise do diagrama cartográfico construído para este tema (Fig. 1), ­consta­ta-se
a existência de uma divisão administrativa fortemente influenciada pela natureza topo‑
gráfica da ilha. Identifica-se uma organização do espaço administrativo determi­nado
pelo planalto — que divide as vertentes sul (das freguesias das Lajes e das ­Ribeiras) e ­norte
(das freguesias de São Roque e da Prainha) —, das quais se destaca a ponta n ­ ascente da
ilha, de relevo mais suave (correspondente à freguesia da Piedade) e o cone da m ­ ontanha
propriamente dito (correspondente às freguesias da Madalena e de São ­Mateus). Cumu‑
lativamente, esta divisão administrativa parece confundir-se, t­ambém, com os próprios
ritmos de povoamento da ilha, correspondendo, as freguesias da ­vertente sul e norte do
planalto, aos primeiros impulsos povoadores, e a ocupação ­da faixa do cone da ­montanha
a um segundo momento, decorrente da atribuição da capi­tania da ilha do Pico ao capitão
donatário da ilha do Faial, em finais do século XV.
Comparando a divisão administrativa elencada por Gaspar Frutuoso com a­ quela
que é descrita por frei Diogo das Chagas, em meados do século XVII, na sua obra
­Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores (Fig. 2), verifica-se um aumento signifi‑
cativo do número de freguesias nesta mesma faixa que contorna a montanha, a poente,
e que corres­ponde a uma considerável extensão do atual território da Paisagem da

97
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

­ ultura da Vinha da Ilha do Pico (Candelária, Bandeiras e Santa Luzia). A criação destas
C
três novas freguesias em apenas meio século poderá ter decorrido de um crescimento do
número de habitantes, da criação de novas paróquias e do eventual aumento da impor‑
tância económica deste território.

Fig. 2. Diagrama cartográfico relativo à divisão administrativa da ilha do Pico em meados do século XVII, feito com
base na informação transmitida por frei Diogo das Chagas, na obra Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores

Este dado pode fazer supor que, entre a data da crónica de Gaspar Frutuoso e a
data da crónica de frei Diogo das Chagas, esta parte da ilha poderá ter sido palco de alte­
rações relevantes, eventualmente consequência do início de uma atividade vitivinícola
mais expressiva.

2. LUGARES HABITADOS
São poucas as informações concretas fornecidas por Gaspar Frutuoso relativamente à
distribuição do espaço habitado na ilha do Pico, não sendo possível identificar clara­mente
qual a sua distribuição ao longo do território. Relativamente à maioria dos p ­ ontos onde
se estabelecia o contacto com o mar para embarcar mercadorias, por exemplo, a­ pesar
de haver uma atenção descritiva em relação ao tipo de condições naturais e­ xistentes e
em relação ao uso específico que lhes era dado, não há informações concretas quanto à
existência, ou não, de núcleos habitados correspondentes.
Não obstante, existe a informação de que tanto o porto da Calheta do Nesquim
como o da Calheta da Prainha do Galeão estavam associados a pequenos aglomerados
habitados, com cerca de seis a sete vizinhos cada. Também é possível concluir, pela infor­
mação transmitida, que as freguesias da Madalena, da Prainha e das Ribeiras seriam
habitadas na proximidade dos seus correspondentes portos. Existem dados, também,
­relativos a uma povoação interior na freguesia da atual Piedade. A estes aglomerados que

98
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

foi possível identificar juntam-se as vilas das Lajes e de São Roque, claramente elencadas.
Por fim, é feita referência a um eventual núcleo habitado de uso provisório ou ­sazonal,
correspondente à presença de casas de pastores na freguesia de São Roque, j­unto a uma
lagoa na fralda da montanha.
Paralelamente a esta ausência de informações concretas sobre a identificação
de aglomerados habitacionais, há a indicação de que, tanto na freguesia da Madalena
como nas freguesias de São Mateus e da Piedade, a população estaria instalada de modo
­disperso no interior do território, imersa nos então existentes e designados matos.

Fig. 3. Diagrama cartográfico relativo à distribuição dos lugares habitados na ilha do Pico, em finais do século
XVI, feito com base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso e informação atual relativa à distribuição das
ribeiras da ilha

Analisando o diagrama decorrente da reunião da informação (Fig. 3), ­verifica-se


que a distribuição dos lugares habitados assenta numa característica relativamente
­constante: a proximidade da costa. Esta localização é cumprida nas duas vilas da ilha
(Lajes e São Roque), bem como na grande maioria dos restantes núcleos identificados.
Numa lógica de apropriação do território, em que a possibilidade de troca e venda de
produtos (feitas por via marítima) era basilar, compreende-se o motivo desta opção.
Por outro lado, a proximidade do mar permitia o desenvolvimento de atividades pisca‑
tórias, relevantes para a alimentação da população.
Outro fator determinante para a compreensão da localização das povoações, e que
Gaspar Frutuoso refere com bastante relevo, é a disponibilidade de água doce. Sobre este
aspeto é registado que a ilha do Pico era carecida de água, sobretudo no verão, dispondo
apenas de três fontes pequenas. O acesso à água seria, portanto, difícil, sendo várias as
estratégias utilizadas para a suprir.

99
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

O recurso à água existente nos pontos mais altos da ilha (das nascentes dos aquí­feros
de altitude, decorrentes do degelo da montanha ou das lagoas existentes no ­planalto da
montanha), seria uma dessas estratégias, embora seja mencionado que a deslocação até
estes pontos da ilha «custa muito trabalho por os caminhos serem fragosos e c­ ompridos
[…] e trabalhosos»3.
Outra estratégia passaria por preservar a água das ribeiras (nas épocas do ano em
que dispunham de água), recorrendo aos seus acidentes geológicos, como sucederia
com a ribeira Seca da vila de São Roque, «que tem dentro em si grandes concavidades
de pedra onde está água das enchentes das chuvas; fica por espaço de muito tempo,
que dura e se bebe dela»4.
A estratégia de captar a água proveniente de aquíferos costeiros também serviria
para colmatar os poucos recursos hídricos, recorrendo-se à execução de poços de água
da maré de baixa-mar, ou retirando-a, salobra, de covas feitas de areia ao longo da costa,
conforme descreve Gaspar Frutuoso.
Por fim, e numa estratégia que ajudará a justificar não haver concentração das
­zonas habitadas junto à costa nas freguesias que carecem de ribeiras, recorria-se às
­árvores para a recolha de água das chuvas:

fazem riscos nos troncos das árvores, cortando-as à roda, como anéis inclinados de
uma banda, onde lhe põem por bica uma folha de árvore e, pondo nela umas ­jarras,
cabaças, ou tinas, se estão enchendo, enquanto chove de dia e de noite, e principal-
mente fazem isto nos louros, porque acham ser melhor e mais sadia água que o­ utra
nenhum; há muitos homens que edificam suas moradas […] em parte onde há
­louros, antre os matos, por rezão de ali se poderem aperceber de água pera beberem5.

Voltando a analisar o diagrama efetuado, no qual se integrou a informação sobre


as ribeiras atualmente existentes na ilha do Pico, ressalta que uma parte considerável da
atual Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico não dispõe de ribeiras, o que terá
contribuído para que este território tenha sido dos últimos a ser explorado e ­povoado
no contexto da ilha do Pico. Por outro lado, é interessante verificar que, nestas zonas,
a distribuição dos espaços habitados é dispersa e desenvolve-se até zonas mais inte­
riores, afastadas em relação à costa, provavelmente potenciada pela existência de estra‑
tégias de captação de água doce que não passariam por uma concentração nas zonas de
­confluência de ribeiras e, portanto, de aglomeração junto à costa.
Nas épocas subsequentes ao final do século XVI, as estratégias de captação de água
serão desenvolvidas e vulgarizadas e permitirão que elementos como os poços de maré,
3
FRUTUOSO, 1978: 300.
4
FRUTUOSO, 1978: 299.
5
FRUTUOSO, 1978: 300.

100
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

os tanques e as cisternas ganhem uma dispersão considerável, tornando-se ­elementos


importantes na própria caracterização dos espaços construídos da ilha do Pico. E permi-
­tirão que em territórios como o da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico,
a distribuição dos lugares habitados continue a ser praticada numa posição interior em
relação à costa, conforme se constata no mapa detalhado que Alexander T. E. Vidal fez
da ilha do Pico em meados dos anos quarenta do século XIX.

Fig. 4. Azores or Western Islas (c. 1841-1845), da autoria do capitão Alexander T. E. Vidal
Fonte: VIDAL, c. 1841-1845

3. PORTOS
No primeiro capítulo de Saudades da Terra dedicado à ilha do Pico é feita uma descrição
pormenorizada da sua costa, sendo indicados os vários locais que funcionavam como
zonas de aproximação de embarcações, bem como o tipo de mercadorias que aí eram
embarcadas. Com frequência, são indicadas, também, as condições de utilização desses
embarcadouros: a época do ano em que podiam ser usados; as dificuldades que apresen‑
tavam; o tipo de embarcações que os podiam utilizar, ou o modo como determinadas
mercadorias eram embarcadas quando uma maior aproximação à costa não era viável.
Numa época em que o arquipélago dos Açores (tal como outros espaços geográ­ficos
ocupados no decurso da expansão marítima portuguesa) era visto como espaço vital
para extrair e produzir bens que suprissem as carências do território europeu e permi­
tissem uma participação nas trocas comerciais de grande escala, garantir a ­existência de
meios para embarcar esses mesmos bens era um fator crucial.
Da leitura do conjunto dos embarcadouros disponíveis na ilha do Pico ­ressalta
a utilização das condições naturais preexistentes — de baías, praias e «pontas» —,

101
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

para zonas de aproximação das embarcações, existindo a referência a apenas um ­porto


construído na zona do atual Cais de São Roque «que é um cais e porto que se fez
ao picão»6.
Nas situações menos favoráveis de aproximação à costa eram usadas medidas alter­
nativas de carregamento, como sucedia com a madeira embarcada na Furna de Santo
António ou na Ponta do Mouro (ou de André Roiz), onde a mesma era lançada ao mar
e, daí, recolhida pelos barqueiros.
Há indicação de vários pontos da costa onde poderiam aceder caravelas, carave‑
lões e «barcos grandes», atestando a aproximação de embarcações de maior capacidade
de transporte à ilha do Pico. Este tipo de embarcações surge mencionado com maior
­expressão na vertente norte e na ponta nascente (freguesias de São Roque, Prainha e
Piedade), sugerindo um maior desenvolvimento das relações comerciais com o exterior
desta parte da ilha. Não é possível verificar se o mesmo se passaria com a vertente sul,
pois são prestadas poucas informações sobre o porto das Lajes e das Ribeiras. Compara‑
tivamente com estas situações, a costa da freguesia da Madalena apresenta um número
de portos muito reduzido e nenhuma referência à aproximação de grandes embarcações.

Fig. 5. Diagrama cartográfico relativo aos portos/pontos de embarque da ilha do Pico, em finais do século XVI, feito
com base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso

Da análise do diagrama (Fig. 5) é também possível aferir que o futuro território


da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico se encontraria, do ponto de vista da
distribuição dos seus pontos de contactos com o mar e embarque de mercadorias, numa
fase de desenvolvimento muito distante da que determinaria o ciclo da sua pujança
­produtiva, no qual seriam inúmeros os pequenos portos através dos quais as pipas eram

6
FRUTUOSO, 1978: 292.

102
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

conduzidas, ao longo de rampas, até ao mar, para serem embarcadas, conforme se ilustra
no diagrama comparativo (Fig. 6).

Fig. 6. Diagrama cartográfico relativo aos portos/rola-pipas existentes na atualidade na Paisagem da Cultura da
Vinha da Ilha do Pico, com sobreposição das posições dos portos/pontos de embarque de finais do século XVI,
citados por Gaspar Frutuoso

4. POPULAÇÃO
As informações relativas ao número de habitantes apresentadas por Gaspar Frutuoso
surgem no decorrer de estatísticas eclesiásticas (provavelmente de róis de confessados e
comungados) e são apresentadas para cada uma das freguesias em separado. Incluem o
número de almas de confissão, o número de almas de comunhão e o número de fogos7.
O número de almas de confissão corresponderia ao número de todos os resi­dentes
da freguesia, com exceção dos menores de 7 anos. O número de almas de comunhão
abarcaria todas as raparigas e mulheres residentes com 12 ou mais anos e todos os r­ apazes
e homens residentes com 14, ou mais anos. Subtraindo estes dois parâmetros (número
de almas de confissão e número de almas de comunhão) é possível estimar o ­número
de residentes entre os 7 e os 12 ou 14 anos (conforme sejam raparigas ou r­apazes),
tendo este valor sido incluído no respetivo diagrama relativo à população da ilha.
O número de fogos estaria associado ao número de todos os núcleos familiares,
sedes de família ou cabeças de casal. Segundo Artur Boavida Madeira, tem sido comum
a utilização do coeficiente 3,5 para uma aproximação ao total da população a partir
­deste dado, mas parece não haver consenso quanto à sua adequação8. Como neste caso,

7
Para a freguesia das Ribeiras só é indicado o número de vizinhos, correspondente ao número de núcleos familiares,
sedes de família ou cabeças de casal com mais de quatro anos de residência fixa.
8
MADEIRA, 1999: 141.

103
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

ao aplicar os coeficientes 3,5 e 4,0, o valor resultante apresentou-se mais baixo do que
o ­número de almas de confissão — o que seria um contrassenso —, fixou-se o intervalo
entre 4,5 e 5 para a estimativa da população total de cada freguesia, baseando-nos no
facto de João Alves Dias apontar os coeficientes 4 e 5 como os limites para a realidade
portuguesa continental da mesma época9.
Complementarmente a estes dados numéricos, Gaspar Frutuoso faz referência
a elementos caracterizadores da organização social que permitem compreender um
­pouco mais o tipo de tecido social existente em cada freguesia. Por um lado, indi­cando a
­existência de cargos específicos, como sejam o de vigário, de capitão de guerra, de bene­
ficiado ou de tesoureiro. Por outro lado, indicando a existência de «homens nobres e
­ricos» e registando (para o caso das freguesias das Ribeiras e das Lajes) os apelidos das
famílias que considerava, neste âmbito, relevantes.
Para as freguesias das Lajes e de São Roque, Gaspar Frutuoso descreve, também,
a existência de pessoas que se teriam diferenciado pela sua riqueza, pelo seu poder ou p­ elos
contactos sociais que estabeleciam, reforçando a importância destas duas vilas/freguesias
na trama social da ilha do Pico e do arquipélago, como seria o caso de Fernão d ­ ’Alvres
(«que foi em seu tempo monarca da ilha do Pico» ) ou de André Roiz, consi­derado
10

«o mais rico de toda a ilha, […] vivia com muito mais aparato que todos e se ­carteava com
Pedreanes do Canto, que era o principal da ilha Terceira, e com Jos Dutra, capitão do Faial,
cada um dos quais, em cada uma das ilhas em que vivia, fazia o que queria»11.
Paralelamente à descrição destes elementos sociais destacados, Gaspar Frutuoso
faz referência a alguns hábitos, como sejam o calçado mais comum — as tradicionais
albarcas —, que o autor descreve como «não são senão um pedaço de pele que cobre o
pé, o qual cosem ou atam com umas correias do mesmo couro»12 e que se mantiveram
em uso até ao século XX; ou da apresentação dos cabelos, que usariam «pera dentro ou
pera fora, como lhes mais contenta»13, ficando a perceção da existência de um ambiente
social de alguma informalidade ou da existência de uma camada social com recurso
e acesso a bens, mais limitado.
Uma referência expressa à riqueza e à pobreza — bem como à sua relação direta
com a posse de terras —, é feita pelo autor, quando refere as escoadas lávicas (decorrentes
do episódio vulcânico da Prainha) terem destruído «muitas terras de homens ricos, que
com isso ficaram pobres, por perderem ali suas herdades e fazendas»14. Esta constatação
sugere que, para se conseguir atingir e manter um determinado estatuto económico,

9
MADEIRA, 1999: 141.
10
FRUTUOSO, 1978: 293.
11
FRUTUOSO, 1978: 302.
12
FRUTUOSO, 1978: 303.
13
FRUTUOSO, 1978: 303.
14
FRUTUOSO, 1978: 303.

104
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

seria fulcral dispor de propriedades. Ainda sobre o mesmo acidente v­ ulcânico, Gaspar
Frutuoso também refere a fuga de habitantes da ilha, testemunhando um dos impactos
dos fenómenos vulcânicos nas oscilações demográficas do arquipélago.
Outro dado importante da crónica, diz respeito à menção da existência de feitores
e de proprietários exteriores — que residiriam, sobretudo, noutras ilhas do arquipélago
— em duas zonas da atual Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico. Este tipo de
relação de posse será, no futuro, muito evidente na constituição deste território ­enquanto
espaço de atividade vitivinícola, sendo interessante constatar a sua existência nesta época.
Por fim, uma descrição presente na crónica relativa ao modo como os botes do
Faial eram chamados para transportar pessoas da freguesia da Madalena indica que
haveria um trânsito relativamente regular de pessoas entre estas duas zonas das ilhas.
Não se sabe ao certo o que justificaria estas viagens, sendo uma possibilidade a ­venda
de produtos e a compra de cereais (dada a sua elevada carência nesta parte da ilha do
Pico), eventualmente decorrente de uma maior proximidade, por mar, da f­reguesia
da Madalena à vila da Horta, comparativamente às vilas das Lajes e de São Roque.
Este trânsito de pessoas entre as duas ilhas ganhou pujança e manteve-se até aos dias de
hoje e foi também uma das particularidades das dinâmicas sociais associadas à Paisagem
da Cultura da Vinha da Ilha do Pico.

Fig. 7. Diagrama cartográfico relativo à população da ilha do Pico em finais do século XVI, feito com base na
informação transmitida por Gaspar Frutuoso

Analisando o diagrama resultante (Fig. 7) é possível concluir que a dimensão da


população da freguesia da Madalena (em que se insere grande parte da Paisagem
da ­Cultura da Vinha da Ilha do Pico), considerando a área do seu território, era relativa­
mente reduzida comparada com a de outras freguesias. Também se verifica não e­ xistir

105
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

referência a cargos ou a posições de destaque social nesta freguesia, o que sugere a


­existência de uma estrutura social relativamente simples, sendo estas suposições refor­
çadas pelas próprias palavras de Gaspar Frutuoso quando diz, sobre esta freguesia,
que «tem poucos fregueses»15 e sobre os seus habitantes, que «vivem por suas ­lavouras e
são fragueiros»16. Este tipo de estrutura social, mais homogénea, pontuada pela ­existência
de feitores e de proprietários não residentes, será um dos traços sociais ­marcantes da
­Paisagem da C­ ultura da Vinha da Ilha do Pico na sua época de maior pujança econó­
mica, sendo inte­ressante verificar que estas mesmas características já existiriam no final
do século XVI.

5. ATIVIDADES
O tipo de atividades de extração e produção praticadas e o tipo de mercadorias embar­
cadas são outros dos temas presentes na crónica de Gaspar Frutuoso em relação à ilha
do Pico, acompanhados de informações sobre a vegetação, o solo e a presença de água na
ilha, que permitem enquadrar de um modo mais completo alguns dos motivos e formas
de desenvolvimento destas mesmas atividades.
O cultivo de cereais, que seria um dos principais objetivos iniciais nos territórios
do arquipélago, não era fácil na ilha do Pico. Em relação à sua população, por exemplo,
é referido na crónica que «come esta gente muito pouco pão por o não dar a terra»17,
havendo apenas referência à produção e embarque de trigo para a freguesia da Prainha,
e de produção de trigo, em pequena escala, para a freguesia das Lajes. Não ­havendo
abundância de cereais, a alimentação local baseava-se, segundo Gaspar Frutuoso,
­sobretudo no consumo de abóboras, «dentabrum» (a partir da qual, assado e triturado,
fariam pão), talos de funcho, nabos, figos e pescado.
A dificuldade do cultivo de cereais — que implicava poder dispor de terrenos
­aráveis — terá decorrido, numa parte considerável do território, de existir solo, muitas
formações rochosas à superfície e pedras soltas depositadas sobre os terrenos, decor‑
rentes de fenómenos vulcânicos («é toda a terra desta ilha mui áspera e muita parte dela
coberta de biscouto»18 e «não tem mais terra que a que se faz das folhas das árvores»19).
Se, por um, lado estas características poderão ter determinado a impossibilidade de
cultivo de cereais, por outro lado a presença de formações rochosas e de pedras de origem
vulcânica nos terrenos é reconhecida como podendo ser uma vantagem para o cultivo de
árvores de fruto e de vinhas («pedra mais quente, pera criar muito arvoredo e vinhas e
muita fruta de espinho de larangeiras, cidras e limeiras, e limões franceses e de sumo»20).
15
FRUTUOSO, 1978: 291.
16
FRUTUOSO, 1978: 292.
17
FRUTUOSO, 1978: 303.
18
FRUTUOSO, 1978: 302.
19
FRUTUOSO, 1978: 289.
20
FRUTUOSO, 1978: 304.

106
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

No âmbito das atividades é, também, dito haver muitos citrinos na ilha, de ­elevada
qualidade, como cidras, limas e limões franceses e de sumo, sendo mencionada expres­
samente a sua produção na freguesia das Ribeiras. Os citrinos eram muito p ­ opulares
à época, sobretudo, para a produção de conservas de açúcar (similares às atuais
­frutas cristalizadas) não se sabendo, no entanto, se os citrinos produzidos na ilha do
Pico eram usados ou comercializados para tal. Paralelamente à existência de citrinos,
Gaspar ­Frutuoso também refere haver muitos e bons pêssegos, marmelos, maçãs e figos.
Uma das atividades que aparece referida com particular relevo ao longo da crónica
é a extração de madeira. Em praticamente todos as zonas de portos, esta é referida como
sendo embarcada em grande quantidade, de espécies variadas e/ou para usos específicos
como, por exemplo, para queimar ou construir carros e arados, atestando a abrangência
da importância da madeira na economia da época. Na descrição sobre as atividades das
freguesias das Lajes, é referido também, sobre a madeira, que esta «se tira do mato» e,
especificamente para a freguesia da Madalena, que os habitantes cortariam muitos tipos
de madeira e que a venderiam para outras ilhas, atestando o seu uso para fins comerciais
e a sua elevada disponibilidade.
Analisando o texto, encontram-se várias referências à existência de floresta (desig­
nada de «matos») e de troços do território em que a mesma se estenderia até ao mar,
como é o caso da costa entre a Calheta de Nesquim e Santa Cruz das Ribeiras; da costa
entre os Calhaus do Galeão e de Domingos Gonçalves; da costa entre a Madalena e os
Lajidos; da costa entre a Furna de Santo António e o Cais do Norte; da atual zona da Baía
das Canas, ou da costa entre a Prainha e Santo Amaro.
A indicação expressa da presença de floresta nestes troços de costa, juntamente
com a indicação de que a população das freguesias da Madalena e de São Mateus v­ ivia
«metida antre os matos», permite supor que algumas partes do território da ilha do
Pico ainda não teriam sofrido um processo massivo de desflorestação, sendo mencio‑
nada por Gaspar Frutuoso a existência de diversas espécies na ilha: cedros, sanguinhos,
­ginja, pau-branco, faias, louros, tamujo, urzes de grandes dimensões, zimbro e teixos
(que existiriam na freguesia de São Roque e teriam a sua extração limitada).

107
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 8. Diagrama cartográfico relativo à extração de madeira na ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com base
na informação transmitida por Gaspar Frutuoso

Outra das ocupações que surge mencionada com frequência, tanto na descrição
das mercadorias embarcadas como das atividades desenvolvidas em cada freguesia, é a
criação de gado, que estaria de tal modo disseminada pela ilha que Gaspar Frutuoso diz
sobre o mesmo que «em qualquer parte que uma pessoa está da ilha do Pico lhe parece
que o tem [gado] junto de si e sobre sua cabeça»21.
É referida, inclusivamente, a existência de pessoas destacadas na sociedade que
se dedicavam a esta atividade, comprovando o sucesso da mesma, como Amaro Pires,
Rodrigalvres ou André Gonçalves, feitor de Dona Violante.
A criação de gado implicava dispor de zonas de pastagens e de água, o que poderá
ter sido conseguido recorrendo às zonas de maior altitude da ilha, mais húmidas, com
lagoas de água permanente e, eventualmente, já desflorestadas. O uso destes territórios
da ilha para a pastorícia poderá ter sido feito sazonalmente, pois, conforme Gaspar
­Frutuoso escreve:

Os gados de toda a sorte, […] como vêm de Maio por diante, que se desfaz a
pedra [neve], se acolhem todos arriba dele [na montanha], por lhe não faltar lá o
pasto e água […] e, corno torna o mês de Setembro, os mesmos gados se acolhem logo
abaixo pera as terras feitas, por não poderem lá sofrer a muita frieza22.

As lagoas do dorso da ilha constituiriam um bem fundamental para a criação de


gado, sobretudo nas épocas mais secas. A criação de gado na ilha do Pico incluiria o
gado bovino, caprino e ovino, sendo também referida a criação de porcos, éguas e mulas.

21
FRUTUOSO, 1978: 298.
22
FRUTUOSO, 1978: 298.

108
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

Fig. 9. Diagrama cartográfico relativo à criação de gado na ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com base na
informação transmitida por Gaspar Frutuoso

Fig. 10. Diagrama cartográfico relativo ao resumo das atividades e dos bens embarcados na ilha do Pico, em finais
do século XVI, feito com base na informação transmitida por Gaspar Frutuoso

Outras atividades mencionadas para a ilha do Pico são a apicultura (associada à


extração de mel e de cera) e a produção de pastel e extração de semente da sua ­planta.
Sobre esta última, é dito que a produção de pastel não seria feita em grande quanti­dade,
mas que, na opinião de Gaspar Frutuoso, seria de boa qualidade, «por ser todo feito
em roças novas»23. Esta atividade é indicada para as freguesias da Piedade e da Mada­
lena, sendo um dado interessante por constituir uma atividade que implica um ­processo
de transformação, menos direto do que a extração da madeira ou a criação de gado.

23
FRUTUOSO, 1978: 291.

109
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Na sua produção, o pastel implica o cultivo da planta, o esmagamento das partes ­colhidas,
a moldagem de «bolos» e a sua secagem, exigindo a existência de utensílios e espaços
específicos — das roças onde seria feita a trituração aos tabuleiros nos quais seria feita
a secagem, por exemplo —, apontando para a necessidade de um investimento prévio
nestes meios.
Por outro lado, sendo um produto de aplicação muito específica e usado, s­ obretudo,
em meios de alguma sofisticação económica (pois serviria para tingimento de tecidos e
produção de tintas), é expectável que o pastel não fosse destinado a ser comercializado
dentro do arquipélago açoriano (como é expectável que pudesse suceder com o gado e a
madeira), mas destinado à exportação para o continente europeu.

6. ATIVIDADE VITIVINÍCOLA
Apesar da importância destacada da extração de madeira e da criação de gado no q ­ uadro
das atividades desenvolvidas e nos produtos expedidos na ilha do Pico no ­final do
­século XVI, existem referências à atividade vitivinícola na crónica de Gaspar ­Frutuoso,
nomeadamente a referência de que o vinho da ilha do Pico seria «melhor que em todas
as ilhas»24.
São quatro as freguesias associadas a este tipo de atividade — São Roque, ­Prainha,
Ribeiras e Lajes —, sendo claramente identificada a produção de vinho nas quatro
­primeiras e havendo referência, em relação à freguesia das Lajes, a «muitas vinhas,
que vão em muito crescimento».

Fig. 11. Diagrama cartográfico relativo à produção de vinho na ilha do Pico, em finais do século XVI, feito com base
na informação transmitida por Gaspar Frutuoso

24
FRUTUOSO, 1978: 303.

110
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

Os vinhos só são referidos, como produto embarcado, no Cais do Norte e no


­ orto da Prainha do Norte, ou seja, na vertente norte da ilha. No entanto, é provável
p
que ­também o fosse nas Ribeiras, onde a sua produção é indicada como sendo particu­
larmente expressiva.
Para a vertente norte da ilha, Gaspar Frutuoso indica especificamente a presença de
vinhas junto ao mar na zona da freguesia da Prainha e a destacada importância do vinho
na vida económica da freguesia de São Roque. Não há referência à presença de vinhas
ou produção de vinho nas freguesias de São Mateus ou da Madalena (correspondentes
aos futuros territórios da paisagem da cultura da vinha) e supõe-se que, quando Gaspar
Frutuoso refere, para a ilha do Pico, que «em toda a terra há muitas vinhas, que dão bom
vinho»25, estivesse a apontar para a existência de uma disseminação desta atividade no
contexto da ilha. No entanto, julgamos que o facto desta atividade não ser mencio­nada
para os territórios da faixa que envolve a montanha da ilha poderá apresentar como
justi­ficação esta mesma atividade ter, à época, nesta parte da ilha, pouca expressão.
Relativamente à quantidade de pipas produzidas por ano, é dito serem mais de 700
na freguesia de São Roque, e cerca de 1200 na freguesia das Ribeiras. Em relação a esta
última freguesia, é reforçado existirem produtores que alcançariam cerca de 100, 120 ou
130 pipas anuais, como Belchior Homem, para o qual é indicada uma produção anual de
100 a 120 pipas de vinho. Considerando a dimensão relativamente pequena do território
desta freguesia, estes valores não deixam de ser surpreendentes.

Fig. 12. Diagrama cartográfico relativo à estimativa da produção de vinho na ilha do Pico num cenário de produção
intensa, equivalente à existente na freguesia da Ribeiras, por Gaspar Frutuoso, em finais do século XVI

25
FRUTUOSO, 1978: 303.

111
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Com vista a obter uma estimativa do que poderia acontecer na globalidade da ilha
do Pico num hipotético cenário de produção de vinho equivalente ao praticado no ­final
do século XVI na freguesia das Ribeiras, foi calculada, em traços largos, a área de terri­
tório que poderia ser considerada adequada para o cultivo da vinha26. Com base na área
obtida, elaborou-se uma relação de equivalência com o número de pipas que p ­ oderia ser
produzido em cada freguesia, obtendo-se os resultados registados no respe­tivo ­diagrama
cartográfico (Fig. 12). Os valores obtidos através desta estimativa são parti­cularmente
impressionantes pela sua grandeza. O número total de pipas de vinho produ­zidas,
por ano, em toda a ilha do Pico seria, neste cenário conjeturado de exploração intensa
e ­massiva, de quase 40 mil pipas. Curiosamente, este seria o valor registado pelo padre
Manuel Luís Maldonado, na Fénix Angrense, para o número de pipas de vinho produ­
zidas na ilha do Pico no ano de 1658.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Face à análise feita ao longo do presente trabalho, considera-se não ser possível concluir
que, no final do século XVI, existissem práticas vitivinícolas com uma dimensão rele‑
vante na parcela de território da ilha do Pico atualmente classificado como Paisagem da
Cultura da Vinha da Ilha do Pico.
A ausência de referências às atividades de cultivo de vinha, de produção e de
­embarque de vinho para esta parte do território da ilha, associada à existência de uma
população de dimensões reduzidas face às restantes zonas da ilha, sugere que a prática
vitivinícola não tivesse, aqui, expressão ou fosse de importância comercial residual.
Outro dos fatores que contribui para a presente conclusão é a relevância com que
é mencionada a extração e o embarque de madeira e a criação e o embarque de gado
para este território, sugerindo que, à época, estas talvez fossem as suas atividades mais
destacadas e proveitosas.
A descrição de uma presença relativamente abrangente de matos em troços signi‑
ficativos desta parte da ilha suscita, também, que ainda não teria havido um processo de
deflorestação intenso e que, portanto, ainda não existiriam grandes extensões de terreno
disponíveis para o cultivo da vinha, como mais tarde se verificaria.
Não obstante esta constatação, considera-se que a crónica revela algumas caracte‑
rísticas que podem ser entendidas como embrionárias do que viria a ser a Paisagem da
Cultura da Vinha da Ilha do Pico.
Por um lado, a constatação da existência de dinâmicas de proximidade e de depen‑
dência deste território da ilha do Pico em relação a outras ilhas do arquipélago, ilustrada
pela presença de transporte relativamente regular de pessoas entre a ilha do Pico e a ilha

26
Estabeleceu-se como limites da área a considerar a linha de costa e a linha de cota sensivelmente equivalente à mais
elevada da zona de cultivo da vinha na futura paisagem da cultura da vinha da ilha do Pico.

112
O TERRITÓRIO DA PAISAGEM DA CULTURA DA VINHA DA ILHA DO PICO EM FINAIS DO SÉCULO XVI:
O LIVRO
LIVRO SEXTO
SEXTO DAS
DAS SAUDADES
SAUDADES DA
DA TERRA
TERRA

do Faial, e pela existência de feitores locais, representantes de proprietários residentes


fora da ilha do Pico. Estas dinâmicas estarão bastante presentes na gestão da proprie­
dade, investimento e canais comerciais da futura Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha
do Pico, na qual uma parte considerável dos proprietários, investidores e expedidores
era faialense ou residia fora da ilha do Pico.
A verificação de que, à época, haveria um conhecimento sobre como os terrenos
de «biscoitos» e «pedra quente» seriam adequados para a plantação de vinhas, também
indicia a possibilidade deste tipo de exploração poder tornar-se interessante para esta
parte da ilha, considerada imprópria para outros tipos de cultivo, dadas as particulari‑
dades dos seus terrenos.
Cumulativamente, a existência de produção de pastel — que remete para um inves­
timento numa atividade que implica a criação de meios e conhecimentos técnicos espe‑
cíficos e, também, de redes comerciais exteriores ao arquipélago — testemunha haver
uma tentativa de aproveitamento deste troço da ilha do Pico para uma produção que
alimentasse um mercado comercial exterior ao próprio arquipélago.
A presença, à época, de alguns sistemas de captação e armazenamento de água com
vista a suprir as carências das zonas mais áridas da futura Paisagem da Cultura da Vinha
da Ilha do Pico denota, também, haver uma adequação às preexistências naturais, o que
faz prever a possibilidade de um crescimento populacional nesta zona da ilha.
Para efeitos de uma aproximação a uma datação, a comparação dos dados
­constantes na obra de Gaspar Frutuoso com os dados transmitidos por frei Diogo das
­Chagas ­permite verificar que houve um aumento significativo do número de freguesias
no terri­tório da Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico até meados do século
XVII, eventual­mente potenciado por um aumento da população e crescimento da impor‑
tância económica ­destas zonas da ilha.
Cumulativamente, na obra de frei Diogo das Chagas, de meados do século XVII,
é referida expressamente a produção de vinho para uma parte considerável do território
correspondente à atual Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico27, o que sugere
que, entre finais do século XVI e meados do século XVII, se terá iniciado um investi‑
mento mais robusto nas atividades vitivinícolas desta parcela da ilha, conducentes à sua
consubstanciação enquanto paisagem física, social, económica e cultural diferenciada,
conforme hoje a identificamos e reconhecemos.

27
Sendo esta Ilha em seus princípios tam áspera e intractavel, que muitos tempos não teve mais de hua so parochia e
hua so Igreja forão a cultivando, e domando do modo, que toda hoje em roda de cultiva, e habita, sendo a maior parte,
ou quasi todas as lavouras della vinhas, de que se colhem muitos mil pipas que rendem muitos mil cruzados, e só pera o
nosso Convento do Fayal se tirão da banda do Norte de Candelaria, até Prayinha, que não he meia ilha, 40 e 50 pipas de
esmola. CHAGAS, 1989: 523.

113
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

FONTES IMPRESSAS
CHAGAS, Frei Diogo das (1989 [1654]). Espelho Cristalino em Jardim de Várias Flores. Angra do Heroísmo:
SREC.
FRUTUOSO, Gaspar (1978 [1590]). Livro Sexto das Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto da Cultura
de Ponta Delgada.

BIBLIOGRAFIA
CORDEIRO, Padre António Cordeiro (1981 [1717]). História Insulana das Ilhas a Portugal Sujeitas no
Oceano Ocidental. Angra do Heroísmo: SREC.
COSTA, Susana Goulart (1997). Pico. Séculos XV-XVIII. Lajes do Pico: Associação de Municípios da Ilha
do Pico.
DUARTE JR, Tomaz (2001). O vinho do Pico. Ribeira Grande: Coingra.
FORJAZ, Victor Hugo, ed. (2004). Atlas Básico dos Açores. Ponta Delgada: OVGA.
GIL, Maria Olímpia da Rocha (2017). Os Açores e o Atlântico: estudos de história económica (séculos
­XV-XVII). Angra do Heroísmo: SREC.
MACEDO, António Lourenço da Silveira (1981 [1871]). História das Quatro Ilhas que formam o distrito da
Horta. Angra do Heroísmo: SREC.
MADEIRA, Artur Boavida (1999). As fontes demográficas de Antigo Regime nos Açores. «Arquipélago.
­História». 2:3, 139-176.
MENESES, Avelino Freitas de (1998). O Município da Madalena (Pico), subsídios para o seu estudo. Mada­
lena: Câmara Municipal da Madalena.
RODRIGUES, Francisco Cota (2014). Sistemas Aquíferos dos Açores. [Consult. mai. 2022]. Disponível em
<http://siaram.azores.gov.pt/recursos-hidricos/Sistemas-Aquiferos.pdf>.
VIDAL, Alexander T. E. (c. 1841-1845). Azores or Western Islas. [Consult. 20 abr. 2021]. Disponível em
<http: davidrumsey.com>.

114
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO
— APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS
PAISAGENS LITERÁRIAS DE PORTUGAL
CONTINENTAL
CONTINENTAL
ANA LAVRADOR*

Resumo: Neste artigo são apresentadas três propostas de itinerários literários no Alto Douro Vinhateiro.
A construção dos itinerários parte do enredo dos romances: A Noiva de Caná, de António Cabral,
Vindima, de Miguel Torga, e Porto Manso, de Alves Redol. Nas três rotas desenhadas, nos lugares de
paragem propostos, são indicados excertos literários com interesse para a interpretação das paisagens e
das vivências do Douro vinhateiro, importantes valias no desenvolvimento do turismo. Os excertos
­constam de uma base de dados georreferenciada, no âmbito do projeto LITESCAPE.PT — Atlas das
­Paisagens Literárias de Portugal Continental, assente na ecocrítica enquanto perspetiva de abordagem
da ­paisagem representada nas obras literárias.
Palavras­‑chave: itinerários literários; turismo; Douro; projeto Atlas das Paisagens Literárias de
­Portugal Continental.

Abstract: This article presents three proposals for literary itineraries in Alto Douro Vinhateiro. The design
of the itineraries is based on the plot of the novels: A Noiva de Caná, by António Cabral, Vindima, by
Miguel Torga, e Porto Manso, by Alves Redol. On the three routes, in the proposed stopping places excerpts
picked from the novels should be read, in order to better understand Douro landscapes and lifestyles, both
with tourism potential. The excerpts are picked from a georeferenced database, within the scope of the
LITESCAPE.PT project — Atlas of Literary Landscapes of Mainland Portugal, based on the ecocri­ticism as
a perspective of approaching the landscape representation in literary works.
Keywords: literary itineraries; tourism; Douro; Atlas of Literary Landscapes of Mainland P
­ ortugal
project.

INTRODUÇÃO
A literatura e a paisagem são importantes mais-valias na promoção e desenvolvimento
de um turismo cultural sustentável para as regiões1.
Por um lado, a literatura viabiliza relações emocionais e espaciais com a paisagem,
é uma forma de promoção de conhecimentos e de divulgação do património natural,
histórico e cultural das regiões, logo, representa um recurso, um «património literário»
e um produto vendável2.

* Doutora em Artes e Técnicas da Paisagem, Investigadora no CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais)
e IELT — FCSH, UNL (Instituto de Estudos de Literatura e Tradição — Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da
Universidade Nova de Lisboa).
1
UNESCO, 2010.
2
HOWARD, 2003 apud QUINTEIRO, HENRIQUES, 2012.

115
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Por outro lado, a paisagem, muitas vezes apenas considerada pano de fundo
a­ trativo da experiência turística3, é, na realidade, um sustentáculo físico e cultural para
o ­turismo. Com efeito, a paisagem é uma manifestação da interação da natureza com a
­cultura, reflexo da economia e dos valores simbólicos, do indivíduo e das socie­dades,
num determinado tempo e espaço4. Nesse sentido, a paisagem pode moldar decisi‑
vamente o produto oferecido e a forma como este pode ser apresentado e usufruído
pelo visitante5. Acresce que a paisagem é sempre o resultado de uma representação,
que ­advém em parte do real-racional e também de uma experiência sensorial, o que a
liga fortemente às representações literárias6.
No plano da aplicação, em associação com o conceito de paisagem e distinto de
­enoturismo, surgiu recentemente o conceito de «turismo de terroir»7, um conceito inte­
grado que inclui desenvolvimento regional, produto enoturístico, viticultura, enologia e
identidade. Nos territórios vinhateiros de elevado potencial económico, como o caso dos
patri­mónios UNESCO, como o Alto Douro Vinhateiro, com elevadas taxas de mecani­
zação e automação, é mais acutilante a preservação dos valores de diferenciação que os
­caracterizam e conferem potencial de desenvolvimento no âmbito do turismo. Nesse
­sentido, é crucial a atividade turística seguir o paradigma de sustentabilidade, ofere­cendo
produtos interpessoais ou experiências que respeitem as tradições, os rituais e as paisagens8.
Os itinerários literários permitem ir ao encontro desse tipo de ­desenvolvimento,
através da obtenção de experiências sensoriais e culturais enriquecedoras e oferecer
­momentos de aprendizagem e de bem-estar, pois são leituras emotivas dos espaços
­visitados9. Esses roteiros são igualmente estímulos à imaginação10, potenciando a valori­
zação das obras literárias e a descoberta dos autores11.
No plano territorial, os itinerários literários podem ser definidos como «mapas
sobre os quais se localizam e sinalizam no espaço físico os pontos exatos em que se dá a
inter­seção entre a referência literária e a realidade»12. A cartografia literária atende a três
tipos de fontes: percursos realizados pelos escritores; lugares associados à vida/morte
dos autores; e textos que referem paisagens e lugares. Nesse sentido, as representações
literárias contribuem para o conhecimento do património natural, socioeconómico e
cultural dos lugares e regiões13.

3
MITCHELL, CHARTERS, ALBRECHT, 2012; GALLOWAY et al., 2008; CARMICHAEL, 2005.
4
COSGROVE, 1998.
5
MITCHELL, CHARTERS, ALBRECHT, 2012.
6
COLLOT, 2011.
7
HOLLAND, SMIT, JONES, 2014.
8
RUIZ PULPON, CAÑIZARES RUIZ, 2019.
9
LOUSADA, AMBRÓSIO, 2017 apud CONSTÂNCIO, ALVES, QUEIROZ, 2019.
10
WALFORD, RAYNER, 2019.
11
ROBINSON, 2002.
12
QUINTEIRO, 2019: 4.
13
LEWIS, 1985; CRANG, 1998.

116
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL

Neste artigo, os excertos literários selecionados espelham formas particulares e


indi­vidualizadas de olhar elementos territoriais representativos da identidade d ­ uriense14,
um património cultural de referência mundial15. Nos excertos literários utilizados,
­procura-se individualizar elementos naturais e culturais, aspetos tangíveis e intangíveis,
gerados e usados nas práticas vinhateiras no tempo histórico em que as obras foram
escritas, verdadeiros testemunhos históricos e culturais do Douro. Na construção dos
itinerários procura-se evidenciar valores contidos nas diretrizes para a gestão do Douro
Vinhateiro16 e as recomendações contidas na Carta do Património Agrário de Baeza17,
na qual se incluem:
• aspetos tangíveis — transitórios no tempo (técnicas, utensílios, tipos de trans‑
porte e comunicação, formas de armazenamento, outros); construções (­ quintas,
parcelas, adegas, associação de culturas, outros); tipos de povoamento rural e
paisagens (especificidade dos sistemas de condução, de associação de culturas,
de delimitação das parcelas, outros);
• aspetos do património intangível (rituais, crenças, festas religiosas, jogos tradi­
cionais, gastronomia regional, técnicas de artesanato, outros). Integram-se
­também aspetos do património natural (xisto, antrossolos, elementos e ­fatores
climá­ticos, matas, matos, mortórios) e do património ecológico e genético
­(riqueza de variedade de vides, presença de culturas mediterrâneas particulares,
espécies da fauna e flora específicas), reconhecíveis nas obras literárias analisadas.

No âmbito do património intangível do Douro, as rogas — formas de ­deslocações


temporárias de trabalhadores para as vindimas — são importantes exemplos da r­ udeza,
da exigência e do heroísmo inerentes à construção da paisagem duriense. Por esse
­motivo, estas migrações detêm grande importância cultural e identitária no Douro.
Ineren­temente comportam um elevado potencial turístico.
Neste artigo, apresentam-se dois itinerários «roga», centrados nas obras: i) A Noiva
de Caná, de António Cabral18, um percurso de cerca de 36 quilómetros, que repre­senta
as vivências e as vicissitudes sociais e económicas alusivas às vivências dos proprie­tários
e empregados de uma quinta produtora de vinho do Porto, em Castedo do Douro;
ii) Vindima, de Miguel Torga19, na qual o autor representa o percurso com cerca de
40 quilómetros, de uma roga que parte da Serra do Alvão até à Quinta da Cavadinha,
em Sabrosa, onde ocorre a vindima.

14
LAVRADOR, 2011.
15
UNESCO, 2001.
16
UNESCO, 2001.
17
CASTILLO RUIZ, 2013.
18
CABRAL, 1996.
19
TORGA, 1945.

117
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Outra importante dimensão identitária da região é o rio Douro, elemento de


l­igação ao mundo e central no transporte do vinho do Porto, durante séculos. O papel
de via de comunicação protagonizado pelo rio Douro é hoje mantido com o turismo
de cruzeiros, mas deixou de ter expressão no caso do transporte do vinho. Neste artigo,
o «percurso dos rabelos» (iii) retirado da novela Porto Manso, de Alves Redol20, é uma
rota com cerca de 42 quilómetros, que evoca a rudeza do trabalho dos barqueiros do rio
Douro e do transporte das pipas de vinho do Porto em barcos rabelos, até meados do
século XX, desde o centro produtor no Douro até aos armazéns de Vila Nova de Gaia,
centro exportador do vinho.

1. PROCESSOS METODOLÓGICOS
A construção dos itinerários assenta em narrativas extraídas das obras dos escritores
durienses António Cabral e Miguel Torga, e de Alves Redol, escritor com uma forte
­ligação ao Douro. Utilizaram-se os enredos dos romances enquanto guias das rotas
turís­ticas propostas, o que promove não só o conhecimento das obras literárias e dos
seus autores, como informação relevante sobre as paisagens durienses e sensibilização
dos visitantes e turistas para a sua preservação e qualificação.
As obras analisadas foram integralmente lidas, e seccionados excertos integrados
na Base de Dados (BD) do projeto LITESCAPE.PT — Atlas das Paisagens Literárias de
­Portugal Continental, coordenado pelo IELT (FCSH-UNL).
O projeto LITESCAPE.PT enquadra-se no ecocriticismo21, ou ecopoética22, no qual
se procura refletir sobre a problemática ambiental, a partir da interação entre a ­literatura,
as ciências, a filosofia e as artes. Os excertos estão georreferenciados na BD do p ­ rojeto
­LITESCAPE, uma mais-valia de relevo para a construção dos itinerários lite­rários.
O ­facto do projeto LITESCAPE integrar obras literárias do século XIX à atualidade
­permite, a quem visita as regiões, no caso, o Alto Douro Vinhateiro, estabelecer uma
­análise comparativa entre as paisagens do passado e as da atualidade, refletir sobre a
­evolução temporal dos territórios e as suas consequências sobre valores ambientais,
­patri­moniais e identitários23. Na BD, os excertos estão georreferenciados e associados a
descri­tores geográficos (geomorfológicos, uso do solo, elementos do património m ­ aterial
e ima­terial, atividades socioeconómicas) e ecológicos (espécies da fauna e da flora).
Os itinerários pretendem ter um modelo comum, que integra: a) espaço e ­tempo
previstos — que devem ser flexíveis; b) objetivos — integrar uma panóplia alargada
de interesses turísticos; c) exigências específicas — oferta de atividades alternativas,
ao ­encontro de eventuais motivações individuais de públicos específicos.

20
REDOL, 1946.
21
RUECKERT, 1978.
22
HÖLDERLIN apud PINEDA MUÑOZ, 2004.
23
LOWENTHAL, PRINCE, 1965; KENT, VUJAKOVIC, 2018.

118
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL

No plano da ilustração, as rotas literárias são representadas em mapas elaborados


com o apoio do Google Maps, e acompanhadas de fotografias.
Nos itinerários, é proposta a leitura de excertos associados aos pontos de ­paragem
selecionados das obras literárias. São promovidas atividades, adaptáveis a diferentes
­tipos de público, nomeadamente: o reconhecimento de lugares emblemáticos do patri­
mónio duriense; a leitura crítica da paisagem, incluindo a identificação de elementos
territoriais, e a discussão da importância da sua preservação e qualificação.

2. ITINERÁRIOS LITERÁRIOS
i) O itinerário «Roga» foi construído a partir da obra A Noiva de Caná, de António
­Cabral, que representa vicissitudes sociais e económicas alusivas às vivências dos proprie­
tários e empregados de uma quinta produtora de vinho do Porto. O percurso assenta em
descrições do romance que representam a roga que parte de Jales, lugar de origem dos
protagonistas da novela (Cristina — Cidadelha de Jales e Francisco — Cerdeira de Jales),
jovens vindimadores e futuros caseiros da Quinta das Combareiras, em Castedo (Alijó),
lugar central da novela, um percurso com cerca de 36 quilómetros (Fig.1 e Tabela 1).

Fig. 1. «Rota da Roga», CABRAL, 1996


Fonte: disponível em <https://maps.google.pt>.
[Consult. 7 out. 2020]

119
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Tabela 1. Itinerário «Roga», CABRAL, 1996 — lugares de visita e excertos associados

ITINERÁRIO «ROGA»

1. JALES — visita guiada às minas de Jales e às aldeias mencionadas no romance, nomeadamente as aldeias natal de
Cristina (Cidadelha), «os cherrubiais» (chirivia — Pastinaca sativa, forrageira) «de Cidadelhe não dão quase para
nada» (p. 35), e de Francisco (Cerdeira), e aldeia de Vreia de Jales.

2. FIOLHOSO — lugar de contratação de vindimadores. Perceber impactos da emigração na aldeia, por exemplo,
na tipologia das casas e na sua ocupação anual.

3. LEVANDEIRA — leitura de excertos: lugar de encontro dos vindimadores de diferentes aldeias. «A roga tinha umas
vinte pessoas e juntou-se toda na Levandeira, a seguir ao Fiolhoso. Setembro ia no fim e o sol picava menos,
atarefado que andava a malhar umas nuvenzitas que lhe apareciam no caminho e donde ele, pelo visto, assim dizia
uma velhota, tirava os grãos de milho que à noite espalhava pela abóbada: eram as estrelas» (p. 29).

4. MURÇA — merenda na escola básica e secundária e leitura de excertos relativos à personagem Cristina (a Noiva
de Caná) que, conforme o romance, teria estudado nessa escola. «Lembrou-se das queijadas de Murça que tão bem
sabiam, quando havia desta na escola. Lembrou-se das casinhas da sua terra, algumas bem pobrezinhas, mas lindas,
lindas: era ali que tinha brincado, era ali que via pousar o sol e levantarem voo as andorinhas» (p. 36).

5. ALTO DO PÓPULO/PÓPULO — «pontos estratégicos, Ponte de Ribeira ou Alto do Pópulo» (p. 271). Ficha de
observação da paisagem.

6. RIBALONGA — lugar de contratação de vindimadores: «a poda das videiras e a apanha da azeitona. Para a primeira
trazia cinco montanheiros da Ribalonga o que pôde arranjar e era pouco, com tanto vinhedo pela frente, nesta
quinta que, se fosse minha, ainda havia de ter mais, surribava os olivais (p. 29). Antes da Chã, terra de muitos
castanheiros e grandes nabais» (p. 30).

7. CHÃ — almoço piquenique, idealmente com alguns produtos da região e registados no romance. «Estava
combinado irem numa camioneta do Loja Nova, de Alijó, mas, à última hora, soube-se que aquele ferro velho tinha
avariado e o remédio era seguirem, como dantes, a butes, estrada abaixo, uma pousa na Chã para a trincadeira»
(p. 29); «vinha trabalhar, sim, mas se lhe desse boas lecas, as mulheres quase tanto como os homens e vinho e carne
à lagúrdia, que se pudesse ver, nada de milhos com uma sardinha e arroz de feijão com toucinho, mesmo frango de
aviário a escangalhar- se nas unhas, à primeira trincadela» (p. 41); «Beber vinho por uma malga de barro grosseiro.
Assar um courato no lume» (p. 166); «doce da Teixeira» (p. 210); «— Ora, fazeis uma salada de bacalhau» (p. 210);
«Não há melhor aperitivo para uma travessa de peixes, pequeninos como fósforos, e para uma caçarola de coelho
do monte, sabor de estevas e queiroga, do que um cálice de vinho velho saboreado numa quinta do Douro,
enquanto a paisagem entra sinfonicamente no olhar desabitado» (p. 9); «malguinha de tripas» (p. 246).

8. PRESANDÃES — curiosidades da vivência de uma roga: «Os homens dos ferrinhos eram de Castedo e quem
tocava o bombo era um fedelho, filho de um deles, rapaz de uma figa, zupa-me nessa coisa a valer, assim, mais,
ora aí está, bum, bum, mestre Zé Pereira, palrava insofrido, subitamente iluminado, o Chico [Francisco], de alcunha
o bispo, que ia deitando o rabo do olho para a loira [Cristina], cintura fina como uma cabaça cheiinha de vinho a
espumar. Cantar não era com ele, mas havia ali quem o fizesse como mandam as ventarolas: o Tino, o Tino Raboto
de Cidadelhe, irmão da loira, que não saía de ao pé dela por mor dos beliscões. Quando passaram em deslado da
Ribalonga, o Chico deu conta que um mariola e uma gaurina do bando se atrasaram e meteram entre umas giestas»
(p. 30).

9. ALIJÓ — visita à vila e lugares referidos no romance (café Pisca-Pisca, pousada do Barão de Forrester): «no convívio
com os amigos — almoçaradas em Alijó, na Pousada Barão Forrester»

10. CASTEDO — visita à aldeia e ao lugar das Combareiras, no qual se pode efetuar leitura de excertos, observação
e leitura comparativa da paisagem; realização de torneio de jogos populares.

120
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL

ii) O itinerário «Roga», construído a partir da obra a Vindima, de Miguel Torga (1945),
­retrata o percurso de uma roga (cerca de 40 quilómetros de extensão), que parte da Serra
do Alvão até à Quinta da Cavadinha, em Sabrosa, onde ocorre a vindima (Fig. 2 e Tabela 2).

Fig. 2. «Rota da Roga», TORGA, 1945


Fonte: disponível em <https://maps.google.pt>.
[Consult. 6 nov. 2018]

Tabela 2. Itinerário «Roga», TORGA, 1945 — lugares de visita e excertos associados

ITINERÁRIO «ROGA»

IV. SANTA MARTA DE PENAGUIÃO — mapas e informações sobre a paisagem da Região Demarcada do Douro. «Eram
quarenta pessoas ao todo, entre homens, mulheres e crianças […], colhido o centeio, nos plainos altos do granito
pouco ou nada há a fazer durante uma temporada, e a palavra vindima soa como uma senha de recurso e de
libertação. […] Vai-se à festa pagã da colheita dos cachos com a seiva da mocidade a florir ou com a secura da
velhice a reverdecer» (p. 7).

2. PANÓIAS — visita guiada à estação arqueológica. «Amanheceu em Panóias, o pergaminho mais autêntico e antigo
que a Montanha tem das suas relações com o transcendente […], pisavam sem qualquer emoção os sagrados altares
que antepassados seus, num gesto de pânico preventivo, tinham erguido aos deuses Lapitas. Naquelas pias cavadas
na fraga, de tamanho variado consoante a aflição e as posses, imolavam as vítimas e as ilusões terrenas (p. 10).

3. SÃO MARTINHO DE ANTA — visita ao Espaço Miguel Torga, prova de vinhos, atuação de grupo folclórico.
«Em S. Martinho, primeira terra do Doiro, e por isso com um patrono vinhateiro, beberam. No eiró da terra formaram
roda, o harmónio, o bombo e os ferrinhos acertaram a voz, e, enquanto o copo passava de mão em mão,
a cana-verde ia saltando» (p. 11).

4. PAÇOS — exercício de leitura da paisagem. «Numa curva da estrada, o Douro apareceu. O rio Pinhão, depois de
atravessar as duas pontes, a da estrada de macadame e a do caminho-de-ferro, entrava-lhe no flanco ainda a
espumar, e a luz do sol a pino reverberava, crua, no caudal majestoso. Os olhos secos da Montanha, fundos como as
fontes de chafurdo, arregalavam-se de espanto diante da levada de oiro» (p. 12).

(continua na página seguinte)

121
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

ITINERÁRIO «ROGA»

5. QUINTA DA CAVADINHA (SABROSA) — visita às vinhas e adega (refeição típica), participação em vindima. «E os
peregrinos acorriam de longe, chamados pelo aceno das vides […]. Encosta espraiada de cepas a olhar o rio ao
fundo e o céu no alto, a Cavadinha, com o nome em letras garrafais no arco de ferro que encima o largo portão da
entrada, é o mimo das quintas. Uma alta ramada dá sombra ao caminho varrido que liga a estrada à residência,
sólida construção sobranceira às várias dependências que a rodeiam: os lagares, os armazéns e a cozinha do pessoal.
Casas caiadas de branco, telhado e tudo, como as de Penaguião quando neva» (p. 14).

MIRADOURO DE SÃO LEONARDO DA GALAFURA — workshop de escrita criativa, de pintura ou de fotografia.


«À proa de um navio de penedos,
A navegar num doce mar de mosto,
Capitão no seu posto
De comando,
S. Leonardo vai sulcando
As ondas
Da eternidade».

iii) O itinerário a rota dos «Rabelos» inspira-se na obra de referência Porto Manso,
de Alves Redol, 1946. A novela recorda o rio Douro anterior à construção das ­barragens,
um rio tormentoso, de muito difícil navegação e principal meio de transporte da ­região.
Evoca ainda a rudeza do trabalho dos barqueiros no transporte das pipas de vinho do
Porto, em barcos rabelos, entre o Cachão da Valeira24 e as caves de Vila Nova de Gaia
(Porto), e a tensão social havida na substituição do transporte fluvial pelo terrestre
(Fig. 3 e Tabela 3).

Fig. 3. A rota dos


«Rabelos», REDOL, 1946
Disponível em <https://
maps.google.pt>.
[Consult. 4 abr. 2019]

24
Afloramento rochoso na fronteira oriental da sub-região Cima Corgo com a sub-região Douro Superior, a montante.
Foi destruído no reinado de D. Maria II.

122
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL

Tabela 3. Itinerário «Rabelos», REDOL, 1946 — lugares de visita e excertos associados

ITINERÁRIO «RABELOS»

1. PESO DA RÉGUA — informações sobre a construção da paisagem da Região Demarcada do Douro. «Estava criado
o pó de terra, quase perdido no meio do cascalho que espirrava pelas encostas, já vencidas. Mas como nos pequenos
vales mais submissos e nos refegos das montanhas, as chuvas torrenciais despenhavam-se em cataratas e
arrastavam as pedras esmigalhadas, os calhaus e o pó de pedra. Cansado da tarefa do saibramento, ele volvia os
olhos para o céu e suplicava. A natureza, porém, ficava indiferente a rogos passivos. Contra o granito só homens de
granito […]. As montanhas enrugadas pelo caminho caprichoso dos calços, como se cada uma fosse um trono
coberto de escadarias monumentais, ficaram para deslumbrar os olhos estranhos» (p. 163).

2. SAMODÃES — leitura e interpretação da paisagem e participação em prova de vinhos. «As aldeias não escolheram
sítio para nascer, e empoleiraram-se nas cristas das serranias, acompanhadas de soutos e pinheirais, ou sem sombra
que lhes valha; suspendem-se de ravinas sobre o rio, como se viessem suicidar-se, lutando com penhascos
agressivos e possantes; despenham-se pelas vertentes dos montes, a modos com pressa de chegarem a um destino
que não se realizou; espraiaram-se por veigas verdes e risonhas, onde veios de água vêm sussurrar queixas da serra
e as árvores ganham alturas gigantes, esbracejando à vontade; babujam o rio como se precisassem das águas para
viver ou do seu espelho para se mirarem» (p. 25).

3. RESENDE/PARQUE FLUVIAL PORTO DE REI — passeio de barco e descanso na praia fluvial, parque de merendas e
ancoradouro de desportos náuticos. «O rio sinuoso, por entre montes, bramia nos refegos das águas desencontradas.
As fragas mostravam-se indomáveis; eles dobravam-nas com os pés e venciam-nas a poder de suor. O cansaço
oprimia-lhes o peito e o sol viera deitar-se sobre as suas costas. A pele ardia-lhes, parecendo que o calor a penetrava
em camadas e estava prestes a estorricá-los. A boca pastosa recusava-lhes os gritos de ajuda. E eles uivavam pelas
margens sinuosas, porque só falando tinham forças para continuar. Ala, força! Ala, ala! (p. 346).

4. CALDAS DE AREGOS — visita às termas. «A electrificação que o rio teima em oferecer, e o homem em ignorar,
ganhará o Douro, e tudo se moverá num ritmo novo, mais trepidante e construtivo, numa cavalgada de cilindros de
milhentas máquinas que darão pão e calor, luz e trabalho, confiança e vida. E as aldeias rirão de novo, e para sempre.
Outras quilhas cruzarão as carreiras do rio, mais redes se afundarão nas suas águas, e outros homens, de coração
aberto, rosto iluminado e esperanças nas mãos, darão o braço ao Douro e irão com ele na mais radiosa jornada que
os romances de aventuras nunca puderam contar. Rio Douro, rio Douro. Rio de tanto penedo» (p. 330).

5. PAÇO — a importância da paisagem na construção dos barcos rabelos (Baixo Corgo). «Construíam barcos toscos
para o navegarem e o seu feitio estranho não obedeceu a delírios poéticos. Foi a necessidade que tudo lhes ensinou,
mesmo a cauda longa da espadela, semelhante a uma ave que tivesse pousado no poleiro das apegadas» (p. 69).

6. PORTO ANTIGO/PORTO MANSO — alusão ao papel social dos arrais, à importância dos barcos rabelos para a
distinção social e subsistência de muitas famílias. «— Já te esqueceste que somos da família dos arrais mais antigos
de Porto Manso? E dos que sempre tiveram os maiores barcos daqui? […] — O nosso pai chamou-me antes de
morrer e disse-me que nunca largasse o rio. O comboio havia de ter mau fim e então todos se voltariam para o
rabelo. É preciso esperar. Custa, talvez, mas não posso fazer outra coisa. O nosso pai nunca se enganou» (p. 20).

7. MOSTEIRÔ (estação de caminhos de ferro) — as mudanças tecnológicas, na paisagem e na sociedade. Leitura de


excertos. «O silvo das locomotivas rasgou o silêncio dos campos e das serranias, levando outro mundo consigo.
Houve gente que fugiu espavorida clamando protecção ao céu, para que aquele monstro de ferro não voltasse
mais. Na fornalha que expedia faúlhas e deixava incêndios, aqui e ali, nos pinheirais e soutos, eles sentiam que se
gerava uma maldição para a sua vida simples e quieta. Aquele era o cavalo que trazia o Diabo no corpo. Cruzes,
Mafarrico!» (p. 295).

123
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

CONCLUSÃO
Os itinerários literários apresentados neste artigo só podem ter sucesso se houver
­condições territoriais e sociopolíticas que viabilizem a sua implementação, nomeada‑
mente: a) preservação dos valores, diversidade e unicidade da paisagem; b) coerência e
contiguidade territorial; c) redes de cooperação entre atores sociais, empresas, universi‑
dades e organismos oficiais.
As obras literárias analisadas e estudos académicos da autora25 indicam que ­existem
ameaças associadas à mecanização e às novas dinâmicas do mercado, estando em risco
elementos emblemáticos da região, em particular os terraços que, substi­tuídos por pata‑
mares e vinha ao alto, retiraram singularidade à paisagem. Por outro lado, as enti­dades
políticas, os atores sociais e os agentes económicos têm recorrentemente alertado para
falta de mão de obra rural, como ameaça séria à preservação da paisagem duriense.
Propostas inovadoras para o turismo, como as que agora se apresentam, podem
ajudar a implementar dinâmicas de atração e criar riqueza na região. Nesse sentido,
­importa fazer convergir interesses, agregando instituições públicas e empresas ­privadas,
em prol de atuações ajustadas ao desenvolvimento de uma região reconhecida no
­mundo pela sua paisagem admirável e pelo potencial vitivinícola de excelência, como
é o caso do Douro.

BIBLIOGRAFIA
CABRAL, António (1996). A Noiva de Caná. Lisboa: Ed. Notícias.
CARMICHAEL, Barbara (2005). Understanding the wine tourism experience for winery visitors in the
­Nia­gara region, Ontario, Canada. «Tourism Geographies: An International Journal of Tourism Space,
Place and Environment». 7:2, 185-204.
CASTILLO RUIZ, José (2013). Carta de Baeza sobre el Patrimonio Agrario. Sevilla: Universidad Internacio‑
nal de Andalucía. [Consult. 21 jan. 2019]. Disponível em <https://www.unia.es/explorar-catalogo/
item/carta-de-baeza>.
COLLOT, Michel (2011). La Pensée-paysage. [S.l.]: Actes Sud.
CONSTÂNCIO, Natália; ALVES, Daniel; QUEIROZ, Ana Isabel (2019). LITESCAPE.PT — Atlas das
­Paisagens Literárias de Portugal Continental como uma ferramenta para o t­ urismo literário. «Cultur —
Revista de Cultura e Turismo». 13:2, 14-39.
COSGROVE, Denis (1998). Cultural Landscapes. In UNWIN, Tim, ed. A European Geography. Harlow:
Addisson Wesley Longman, pp. 65-81.
CRANG, Mike (1998). Cultural Geography. Londres: Routledge.
GALLOWAY, Graeme et al. (2008). Sensation seeking and the prediction of attitudes and behaviours of wine
tourists. «Tourism Management» 29:5, 950-966.
HOLLAND, Tara; SMIT, Barry; JONES, Gregory V. (2014). Toward a conceptual framework of terroir
­tourism: A case study of the Prince Edward County, Ontario Wine Region. «Tourism Planning &
­Development». 11:3, 275-291.

25
LAVRADOR, 2011, 2014, 2019; LAVRADOR, BARBOSA, 2019.

124
ITINERÁRIOS LITERÁRIOS NO DOURO — APLICAÇÃO DO PROJETO ATLAS DAS PAISAGENS LITERÁRIAS
DE PORTUGAL CONTINENTAL

KENT, Alexander; VUJAKOVIC, Peter (2018). Maps and identity. In KENT, Alexander; VUJAKOVIC,
­Peter, eds. The Routledge Handbook of Mapping and Cartography. Londres: Routlege, pp. 413-426.
LAVRADOR, Ana (2011). Paisagens de Baco: Identidade, Mercado e Desenvolvimento. Lisboa: Editora
­Colibri.
LAVRADOR, Ana (2014). O Projeto Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental — uma aplicação
a itinerários turísticos no Douro. «Revista Lit&Tour». 203-222.
LAVRADOR, Ana (2019). A paisagem rural e as representações literárias como ferramentas educativas e
turísticas. Uma aplicação tecnológica na região demarcada do Porto/Douro. In MACÍA ARCE, Xosé;
ARMAS QUINTÁ, Francisco; RODRIGUEZ LESTEGÁS, Francisco, coords. La Reconfiguración del
Meio Rural en la Sociedad de la Information. Nuevos Desafíos en la Education Geográfica. Santiago de
Compostela: Ed. Andavira, pp. 1103-1136.
LAVRADOR, Ana; BARBOSA, Sílvia (2019). Discovering the Douro Literary Landscape in A Noiva de Caná
from António Cabral through Corpus Linguistics. Trabalho apresentado em «II International Meeting
Histories of Nature and Environments: Shaping Landscapes». Lisboa: Faculdade de Letras, 21 a 23
novembro 2019.
LEWIS, P. (1985). Beyond description. «Annals of the Association of American Geographers». 75:4, 465-477.
LOWENTHAL, D.; Prince, H. C. (1965). English landscape tastes. «Geographical Review». 55:2, 186-222.
MITCHELL, Richard; CHARTERS, Steve; ALBRECHT, Julia Nina (2012). Cultural systems and the wine
tourism product. «Annals of Tourism Research». 39:1, 311-335.
PINEDA MUÑOZ, Jaime (2004). Relatar, Narrar y Fabular los Modos del Habitar Ecopoético. [Consult. 21
jan. 2019]. Disponível em <http://lunazul.ucaldas.edu.co/downloads/Lunazul19_4.pdf>.
QUINTEIRO, Sílvia (2019). Os lugares da literatura: mapas e rotas literárias. «Cultur — Revista de Cultura
e Turismo». 13:2, 4-13.
QUINTEIRO, Sílvia; HENRIQUES, Cláudia (2012). Olhão Cidade de Turismo Literário uma Realidade
­Longínqua? «Revista Turismo e Desenvolvimento». 17/18: 1583-1596.
REDOL, Alves (1946). Porto Manso. Lisboa: Ed. Inquérito.
ROBINSON, M. (2002). Between and beyond the pages: Literature-tourism relationships. In ROBINSON,
M.; ANDERSEN, H.-C. eds. Literature and Tourism: Reading and Writing Tourism Texts. Londres:
Continuum, pp. 39-79.
RUIZ PULPÓN, Ángel Raúl; CAÑIZARES RUIZ, Maria del Carmen (2019). Potential of vineyard land-
scapes for sustainable tourism. «Geosciences». 9:11, 472. DOI: 10.3390/geosciences9110472.
RUECKERT, William (1978). Into and Out of the Void: Two Essays. II. Literature and Ecology: An Experiment
in Ecocriticism. «The Iowa Review». 9:1, 71-86.
TORGA, Miguel (1945). Vindima. Coimbra: Coimbra Editora.
UNESCO (2001). «UNESCO». [Consult. dez. 2021]. Disponível em <http://www.unesco.org>.
UNESCO (2010). The Power of Culture for Development. [Consult. 21 jan. 2019]. Disponível em <https://
unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000189382>.
WALFORD, David F; RAYNER, Catherine (2019). Literary Trails: Haworth and the Brontës. Barnsley:
Pen & Sword History.

125
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

126
MARCA DE ÁGUA DO DOURO
PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS
HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO
E MANUEL MENDES*
MARIA OTÍLIA PEREIRA LAGE**
CARLA SEQUEIRA***

Resumo: Atendendo a que o Alto Douro Vinhateiro paisagem cultural evolutiva e viva de valor universal
foi fonte inspiradora de representantes das artes e letras, revelando a inter-relação cultura e natureza,
revisita-se, na fronteira entre literatura e história, esta região em seus espaços-tempos, objecto de
­invenção e originalidade criativa.
Dada a relevância da literatura como depositária das memórias socioculturais do «ser histórico»,
analisam-se, nas obras de Raul Brandão e Manuel Mendes, representações da paisagem física e humana
duriense (século XX), imagem tradicional de modernidade emergente.
O corpus de análise documental, literária e dialógica abarca obras emblemáticas do património
literário duriense: Portugal Pequenino, de Maria Angelina Brandão e Raul Brandão, e Douro, Roteiro
Sentimental, de Manuel Mendes.
Estes testemunhos históricos e evocações literárias configuram-se como «marca de água» do Douro
Património Mundial, garantia da identidade e autenticidade da paisagem física e humana, cujos rastros
de «bem comum» preservam e transmitem aos «filhos dos outros».
Palavras­‑chave: Alto Douro Vinhateiro — património mundial; Douro — paisagem física e humana
(anos de 1920 a 1960); Raul Brandão; Manuel Mendes; literatura-história.

Abstract: Considering that the Alto Douro Wine Region, an evolving and living cultural landscape of
universal value, has been an inspiring source for representatives of the arts and literature, revealing the
interrelation between culture and nature, we revisit, on the border between literature and history,
this region in its space-time, object of invention and creative originality.
Given the relevance of literature as a depository of socio-cultural memories of the «historical being»,
the works of Raul Brandão and Manuel Mendes analyse the representations of the Douro physical and
human landscape (20th century), a traditional image of emerging modernity.
The corpus of documentary, literary and dialogical analysis includes emblematic works of Douro
­literary heritage: Portugal Pequenino, by Maria Angelina Brandão and Raul Brandão, and Douro, Roteiro
Sentimental, by Manuel Mendes.
These historical testimonies and literary evocations are configured as a «watermark» of the Douro
World Heritage, guarantee of the identity and authenticity of the physical and human landscape, whose
traces of «common good», preserve and transmit to the «children of others».
Keywords: Alto Douro Wine Region — World Heritage; Douro — physical and human landscape
(1920s-1960s); Raul Brandão; Manuel Mendes; literature-history.

* As autoras não seguem o Acordo Ortográfico de 1990.


** Doutora em História Moderna e Contemporânea (Universidade de Minho) e investigadora integrada do CITCEM.
*** Doutora em História. Investigadora contratada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, a exercer funções
no CITCEM.

127
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

INTRODUÇÃO
A região e paisagem duriense e, mais recentemente, o Alto Douro Vinhateiro (ADV)
classificado como paisagem «cultural evolutiva e viva» de valor universal (UNESCO,
Dezembro de 2001)1 têm sido fonte inspiradora de escritores, pintores, fotógrafos,
­cineastas e mais representantes das artes e das letras2, revelando a relação do Homem
com a espaciotemporalidade envolvente, vector preponderante da história, da literatura,
da arte e ­cultura em sentido lato.
Assim, procura-se revisitar, reflexivamente, na fronteira entre literatura e história,
cruzando aproximações históricas e estudos literários, esses espaços-tempos de i­ nvenção
e originalidade criativa a que não foram alheios muitos viajantes cultos que os atraves‑
saram, ao longo dos tempos, alguns dos quais contribuíram para elevar a identidade da
região duriense a património mundial, divulgando as suas potencialidades, constrangi‑
mentos e desafios no âmbito do desenvolvimento cultural.
Destacam-se, neste contexto, os legados singulares e valiosos da escrita de Raul
Brandão (1867-1930), autor da Foz do Douro e clássico da literatura portuguesa com
­páginas ímpares sobre o Douro, da nascente à foz, e Manuel Mendes (1906-1969),
­escritor lisboeta observador atento da região duriense, os quais importa conhecer e
­apreciar, num cruzamento de estilos, contactos e ressonâncias, entre modernismo e neo-
-realismo, mas idêntico «testemunho da vida mais intensa»3.
As suas narrativas literárias e documentais da paisagem física e humana do Alto
Douro Vinhateiro, em momentos sequenciais do século XX, de referência incontor­nável,
configuram-se como relevantes testemunhos históricos e evocações literárias diferen­
ciadas, cuja cartografia temática se ensaia em perspectiva comparada e registo intertextual.
Aí, a paisagem, objecto de múltiplas apropriações, é entendida como «represen­tação
de um sistema de relação entre natureza e cultura, portanto uma construção c­ ultural
­sobre o território»4 no sentido de que não há senão «híbridos de natureza-cultura que
se escalonam entre os dois extremos, […] onde as relações humanas não são puramente
sociais, nem as coisas são puramente naturais»5. A esta luz, observam-se e analisam-se
esses alicerces histórico-literários sedimentares da paisagem natural e humana i­ nstituinte
do património cultural de um Douro ainda tradicional, mas já em transformação

1
AGUIAR, 2002: 143-152.
2
São muitos os que nos deixaram memórias, testemunhos e obras marcantes sobre o Douro Vinhateiro, desde Dorothy
Wordsworth e o Barão de Forrester ao Visconde de Vila Maior, de Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós e Guerra
Junqueiro a Miguel Torga, Alves Redol, João de Araújo Correia, Domingos Monteiro, Pina de Morais, Manuel ­Monteiro,
ou, mais recentemente, outros autores destacados como Vasco Graça Moura, Agustina Bessa-Luís, António Cabral,
A. M. Pires Cabral, Camilo de Araújo Correia, Modesto Navarro, Nuno Rebocho, Inácio Nuno Pignatelli, António
Barreto, entre tantos mais.
3
LOPES, 1990: 120.
4
RIBEIRO, RAMALHO, 2011: 411-435.
5
RHEINEBERGER, 2013.

128
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

e com ­sinais de modernidade, que se consideram enquanto inscrição/reconhecimento do


­Douro Contemporâneo Património da Humanidade.
Tais são os tópicos essenciais a desenvolver de modo integrado no presente t­exto
que se estrutura nas seguintes secções: 1. Enquadramento: argumentos e disposi­tivos
­teórico-metodológicos; 2. Os autores: Maria Angelina Brandão e Raul Brandão, e ­Manuel
Mendes; 3. «Marca de água» do Alto Douro Vinhateiro — Património Mundial: corpus
documental; 4. O Douro dos anos de 1920 aos anos de 1960. Por sua vez, estas ­rubricas
organizam-se em articulação conceptual densa e abrangente, destacando-se, por fim,
­nalgumas reflexões, limites e vantagens que podem advir das abordagens experimentadas.

1. ENQUADRAMENTO: ARGUMENTOS E DISPOSITIVOS


TEÓRICO-METODOLÓGICOS
O corpus documental e literário seleccionado, qual «documento-monumento»6 do
patri­mónio literário e cultural do Douro, é constituído por duas obras mais significa­
tivas sobre a paisagem física e humana duriense, escritas na primeira e na segunda
­metade do século XX, respectivamente, por Maria Angelina Brandão e Raul Brandão,
e ­Manuel Mendes, autores de gerações diferentes, significado e valores distintos, mas com
­contactos e afinidades.
Por adequação aos atributos literários próprios da escrita de Raul Brandão, este
é objecto de uma análise dialógica e cronotópica7, segundo o princípio orientador do
­espaço-tempo: entidades objectivas ou categorias essenciais ao conhecimento do m ­ undo.
A abordagem também não-linear das crónicas de viagem que compõem a obra de Manuel
Mendes, metanarrativa literária, é informada pelo conceito de «representações sociais»,
desenvolvido pela «história cultural»8 e frequente actual no discurso historiográfico.
Em Portugal Pequenino (1930), última obra de Raul Brandão, em co-autoria com sua
mulher Maria Angelina Brandão, obra-prima de literatura para a infância e «­livro-­ponte»
para crianças e adultos, faz-se uma análise pormenorizada do capí­tulo Duas ­gotas de
água, texto fulcral sobre o Douro da dura faina fluvial dos ­barcos ­rabelos9, ­arrais e mari­
nheiros, já atravessado pela moderna linha férrea, e o Porto u­ rbano, ­comercial e cosmo­
polita. As suas descrições picturais, sensoriais e de «colorida visão», escritas nos anos
de 1920, época de profunda crise nacional e mundial, ­compõem a memorável ­narração
etnográfico-literária da região duriense fixada no seu devir socio-histórico.

6
LE GOFF, 1984.
7
BAKHTIN, 2010.
8
CHARTIER, 1990: 19. Ver também CHARTIER (1994), O Mundo como Representação. «Estudos Avançados». 5:11,
e CHARTIER (2002), À beira da Falésia: A História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. U
­ niversidade/­UFRGS;
CHARTIER (2001), Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED Editora. Para uma revisão da litera­
tura sobre interpretação e usos deste conceito considerado uma questão da teoria da História, consultar SANTOS
(2011), Acerca do conceito de representação. «Revista de Teoria da História». 3:6, 27-53.
9
Cf. PEREIRA, BARROS, 2001.

129
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Segue-se a análise documental do livro Roteiro Sentimental, Douro (1964-1967)10,


do escritor Manuel Mendes, obra solidária com os mais humildes e pobres da região e
teste­munho do Douro das barragens, das pontes e das estradas, dos inícios da mecani­
zação, da emigração e de outras transformações do Alto Douro, num passado mais
­recente. A observação das «representações sociais» nesse conjunto de crónicas de ­viagem
­permite ­integrar o que representam e é representado, ausência e distinção entre práticas e
­discursos, representação e apropriação, lugares e instituições socioculturais do autor-obra.
Subjacentes à abordagem dialógica do discurso literário brandoniano, documental
e ficcional, encontram-se as noções de «dialogia» ou «dialogismo»11 e de «cronótopo
artístico» — metáfora do «espaço-tempo» da teoria da relatividade de Einstein, que nos
permite percepcionar «o processo de assimilação do cronótopo do tempo, do espaço e
do indivíduo histórico real que se revela neles» em fluência complexa e intermitente12.
Este entendimento propicia uma aproximação densa a esses textos emblemáticos
da e sobre a região do Douro, onde se pode intuir uma partilha da paisagem material
e humana duriense, potenciada pela dialogia ou diálogo intertextual e pela cronotopia
(operador da assimilação pela literatura do tempo e do espaço históricos).
Deste modo, reconhece-se a relevância da literatura enquanto depositária de
­memórias, identidades e «representações» socioculturais do «ser histórico» em seus
espaços-tempos, o que nos permite então abordar, numa perspectiva interdisciplinar,
sedimentos cognitivos e expressivos que extravasam dos limites das áreas disciplinares
convocadas.
Daí que os testemunhos históricos e evocações literárias dos autores a seguir apre‑
sentados se considerem enquanto lastro de identidade e autenticidade duriense, «marca
de água»13 da Paisagem Cultural do Douro Património Mundial, «bem comum» que
abrange a salvaguarda do planeta, o abrigo da vida na sua plenitude e o compromisso
sucessivo das gerações14, cujos rastros se preservam na escrita de suas obras dedicadas
aos «filhos dos outros».

10
MENDES, 2002.
11
Conceito elaborado pelo pensador e linguista russo Mikhail Bakhtin, que significa mecanismo de interacção textual,
isto é, a existência e presença no interior de um texto de outros textos ou obras que o influenciam ou inspiram de algum
modo, devendo assim o discurso ser observado em acção recíproca com textos idênticos ou imediatos.
12
BAKHTIN, 1988: 211.
13
A marca de água ou filigrana é, materialmente, definida na Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura como «sinal
reali­zado na própria textura do papel e cujo desenho apenas é visível devido às alterações de translucidez provocadas
­pelas diferenças de densidade e espessura da pasta». Dessa forma, e enquanto elemento fundamental para demonstrar
a autenticidade de origem de um documento impresso, a marca de água serve para impedir a falsificação do docu­
mento. Nas tecnologias de informação, a marca de água digital, através da incorporação de imagens ou assinaturas
digitais, ­permite ainda identificar a origem de material sujeito a copyright. Como elementos distintivos, as marcas de
água c­ onferem especiais qualidades aos documentos, constituindo funções de metainformação a eles relativa. Se consi­
deradas na sua génese, são base de identificação das fontes e crítica destas, nomeadamente no que à crítica textual diz
respeito. Cf. CARREIRA, 2012: 2-3.
14
PATO, SCHMIDT, GONÇALVES, orgs., 2013: 334.

130
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

2. OS AUTORES: MARIA ANGELINA BRANDÃO


E RAUL BRANDÃO, E MANUEL MENDES
2.1. Maria Angelina Brandão e Raul Brandão

Fig. 1. Retrato de Raul Brandão e de


sua esposa D. Maria Angelina Brandão,
1928. Columbano Bordalo Pinheiro,
óleo sobre madeira
Fonte: Museu de Arte Contemporânea

Raul Germano Brandão (Porto, 1867-Lisboa, 1930), escritor finissecular e inte­lectual


entre dois séculos, natural da Foz do Douro, a que se encontra ligada a sua vida-obra
(expan­dida ainda a Lisboa e Guimarães)15, é um autor visionário e polifacetado ­(prosador,
ficcionista, dramaturgo, memorialista, publicista16). Personalidade literária com obras
intem­porais de elevada reputação e mestre de gerações sucessivas de destacados e­ scritores
portugueses, tornou-se um clássico da literatura nacional de notável actualidade.
Iniciou desde cedo, nos finais de Oitocentos, intensa actividade literária e inter‑
venção jornalística, tendo-se dedicado também à pintura, com particular sensibilidade,
atenção inteligente à realidade, e emocionada apreensão da Condição Humana, Vida e
Natureza — qualidades inerentes à sua mais profunda vocação, ao invés da carreira
­militar em que ingressou em 1888 e de que se reformou como capitão, em 1911.
Conviveu de perto com grandes nomes da literatura, da pintura e da cultura
­portuguesa, seus amigos, em que se destacam, designadamente, Teixeira de Pascoaes,
Correia de Oliveira, Batalha Reis, Jaime Cortesão, Aquilino Ribeiro, António Nobre,

15
Cf. CASTILHO, 2006.
16
Escreveu, entre outros jornais e revistas, no «Correio da Manhã», «Revista de Hoje», «Revista de Portugal», e foi chefe
de ­redacção de «O Dia» e «A República». Colaborou na «Revista Águia» e no movimento Renascença Portuguesa.
Fez parte do Grupo da Biblioteca quando Jaime Cortesão era director da Biblioteca Nacional de Lisboa, e do grupo
fundador da revista «Seara Nova», em 1921, que se propunha reformar a mentalidade portuguesa através de intensa
acção pedagógica e política.

131
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

­ ntónio e Carlos Carneiro (ilustradores de algumas obras suas), Columbano (que o


A
pintou em dois retratos) e Manuel Mendes17, que, mais tarde, assim evocará Brandão:
«Esse foi meu mestre e meu amigo o deslumbramento inesquecível da minha juventude
de incipiente sonhador, que ele acalentou a um fogo ardente e magnífico»18.
É difícil enquadrar Raul Brandão, personalidade literária de múltiplas facetas, em
géneros literários (épico/narrativo, lírico e dramático) e estilos específicos (naturalismo,
simbolismo, realismo, impressionismo, expressionismo). O que aliás se documenta e
confirma nos textos brandonianos que nunca deixaram de:

denunciar a mais extrema e genuína capacidade de espanto diante da vida. Aí, e na


confessada consciência da duplicidade do «eu», a fazer lembrar Proust e Dostoievski,
reside talvez a modernidade da sua prosa, que, se formalmente é ainda marcada pela
referência simbolista, já tem sido considerada simultaneamente como precursora do
existencialismo, de certos aspectos do neo-realismo e até do surrealismo19.

Daí que a sua escrita, considerada genial, dialógica, polifónica, fragmentária,


indis­ciplinada, transfiguradora e visionária ou, numa só palavra, «universal», deva ser
compre­endida na indecibilidade peculiar de sua prosa profundamente atravessada por
imanente intuição poética.
Raul Brandão, «caso relevante da força indestrutível do génio que o torna de ­hoje»20
e, como já sublinhado, escritor maior da Foz do Douro, legou-nos textos lite­rários ­únicos
sobre a região duriense21, onde «com a sua colorida visão, animou a­ lgumas das paisagens
mais profundamente humanas da nossa terra»22.

2.1.1. Maria Angelina Brandão


Raul Brandão, durante a sua carreira militar, conheceu, em 1896, Maria Angelina
­d’Araújo Abreu, órfã prematura de uma família de proprietários abastados, quando foi
colocado como alferes, no Regimento de Infantaria 20, em Guimarães. Com uma dife‑
rença de idades (ele com quase 30 e ela mais nova onze anos), casaram a 11 de março de
1897, véspera do aniversário do escritor, na igreja paroquial de Nespereira, aldeia onde o
casal viveu e partilhou vida e escrita, na Casa do Alto, comprada em 1898.

17
Dedicou-lhe o livro Raul Brandão & Columbano: Artigos esquecidos do escritor, Reproduções de telas do mestre. Corres­
pondência de ambos e breve Introdução de Manuel Mendes. Editora: Jornal do Fôro, 1959. Dicionário Cronológico de
Autores Portugueses, 1994.
18
MENDES, 2002: 176.
19
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, 1994.
20
SENA, 1978: 65.
21
Cf. texto original do escritor Ao Porto pelo Rio Douro. PROENÇA, Raul, dir. (1929). Guia de Portugal. Lisboa: Biblio‑
teca Nacional de Lisboa. Lisboa, pp. 532-533. ROSA, org., 2013: 466-469.
22
TORGA, 1995: 378.

132
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Essa amorosa relação de «admiração e respeito mútuos» e «complementari‑


dade ­absoluta»23 encontra-se patente nas cartas do casal24 e nas memórias que Maria
­Angelina25 escreveu pouco depois da morte do marido.
Maria Angelina Brandão foi biógrafa pioneira de Raul Brandão e referência dos
primeiros biógrafos do escritor (João Pedro de Andrade e Guilherme de Castilho) e
dedicada «secretária do Autor de Húmus. O seu romance póstumo, O Pobre de Pedir
(1931), ter-lhe-á sido inteiramente ditado»26. Com a publicação de Portugal Pequenino,
em 1930, «de que Raul Brandão e Maria Angelina são co-autores, os nomes de ambos
entram, lado a lado, na história da literatura portuguesa novecentista»27.

2.2. Manuel Mendes

Fig. 2. Manuel Mendes


Fonte: Autor desconhecido, propriedade
e digitalização de José Alexandre Roseira,
cortesia de Gaspar Martins Pereira

Manuel Joaquim Mendes (Lisboa, 1906-1969), escritor e jornalista com colabo­


ração em importantes jornais e revistas, com destaque para «República», «Seara Nova»,
«­Revista de Portugal» e «Vértice», foi também tradutor, crítico de arte e artista plástico,
com publicações sobre os principais artistas e pintores de sua época, como Columbano,
além de autor de romances, contos e outros textos de ficção, crónicas e memórias do
quoti­diano, prefácios e notas a traduções de sua mulher Berta Mendes, de obras clássicas
editadas na Biblioteca Cosmos.
Enquanto escritor, era já publicado e conhecido embora não como grande ­figura,
em obras antológicas do neo-realismo (1942), na primeira fase deste movimento l­ iterário
e cultural afirmado entre finais dos anos de 1930 e 1950, sendo neste ­contexto assim

23
REYNAUD, 2019: 34.
24
OLIVEIRA, REYNAUD, 2019.
25
BRANDÃO, 1959.
26
REYNAUD, 2019: 39.
27
REYNAUD, 2019: 38.

133
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

r­eferenciado: «Manuel Mendes (que a crítica “avisada” sempre classificaria de “popu­


lista”)»28. Por essa altura, escreveu e publicou biografias de autores portugueses em que
se contam Antero de Quental (1942), Alexandre Herculano, (1945), Oliveira ­Martins
(1947) e, mais tarde, Aquilino Ribeiro (1960), seu mestre e amigo íntimo.
«Ligado ao grupo da “Seara Nova”» e «frequentador assíduo de tertúlias políticas
e literárias» conviveu com notáveis intelectuais e outras figuras de relevo nacional como
«Raul Brandão, António Sérgio, Raul Proença, Jaime Cortesão, Câmara Reis, Mário de
Azevedo Gomes»29. Foi amigo e divulgador de Raul Brandão, que teve como seu «­ mestre
e paradigma literário»30.
No âmbito de sua intensa acção política e associativa, como político antifas­cista perse­
guido e preso, entre outras intervenções, participou no MUNAF (Movi­mento de Unidade
Nacional Antifascista), foi promotor da criação do MUD (Movimento de U ­ nidade Demo­
crática) e integrou as candidaturas de Norton de Matos (1948) e ­Humberto Delgado
31

(1958) à Presidência da República32.


Segundo Mário Soares, reputado dirigente socialista e antigo presidente da Repú­
blica Portuguesa, camarada do escritor na resistência antifascista e luta política pela
­liberdade e democracia:

Manuel Mendes foi um excelente escritor, hoje bastante esquecido, ­infelizmente.


Além disso, foi uma personalidade fascinante, de uma imensa riqueza humana,
­polí­tico e conspirador intemerato contra a ditadura, amador de artes plásticas,
­escultor nas horas vagas, extraordinário contador de histórias divertidas, de humor
simultaneamente enternecido e sarcástico, que passou a vida, desde rapaz, conde­
nado a um completo ostracismo político, embora cercado de amigos e admiradores33.

Foi, aliás, por intermédio de Soares e do amigo e companheiro de lides políticas,


o médico e produtor duriense Luís Roseira, que Manuel Mendes, escritor de grande

28
Cf. TORRES, 1983: 88.
29
MENDES, 2002: 183-185.
30
MENDES, 2002: 176.
31
Organização política de oposição legalizada à ditadura fascista portuguesa, criada em 1945, em luta pelo direito à
«liberdade de reunião, de associação e de imprensa» e pela seriedade nas eleições, mas dissolvida três anos depois pelo
regime salazarista, diferenciando-se, mas colaborando pontualmente com o MUNAF, organização clandestina fundada
em 1943. Manuel Joaquim Mendes, membro da maçonaria, foi um dos promotores da fundação do MUD, fez parte das
estruturas dirigentes centrais e distritais de Lisboa e foi alvo de prisões. Aderiu à Resistência Republicana e Socialista,
desde 1953, e à Associação Socialista Portuguesa (ASP), em 1964.
32
Apud Nota biográfica institucional da Fundação Mário Soares em cujo arquivo se encontra o espólio de Manuel
­Mendes. Este situa-se entre as datas-limite de 1820 a 1988, documentos relativos às atividades políticas, literárias e
artísticas do escritor, ou por si reunidos, circunscritos entre 1917 e 1969, com excepção da colecção de fotografias, dos
documentos familiares e da correspondência recebida por Berta Mendes, enviada pelos amigos do casal, após o faleci‑
mento do marido e outros sobre a Casa-Museu de Manuel Mendes, constituída em 1977 (1950-1988). [Consult. 08 Jun.
2021]. Disponível em <http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_868#!e_868>.
33
MENDES, 2002: 15-19 (Prefácio de Mário Soares).

134
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

afecti­vidade e sentido de humor, ficou intrinsecamente ligado à região duriense que


calcor­reou, conheceu e amou como poucos, e que descreve com deslumbramento e
­comoção, no seu Roteiro Sentimental: Douro, cuja dedicatória, aos filhos de Luís Roseira,
espelha esta sua relação engajada com o ser e o sentir do Douro profundo:

O Douro merece mais — merece tudo. Rincão admirável da fragueira ­terra portu­
guesa, é ao mesmo tempo um vivo frémito da sua alma. As proporções da ­montanha
e a estatura do homem dessas bandas não se contemplam a frio, obrigam por força a
cismar. Pouco tenho conhecido de tanta e tão impressionante grandeza34.

Em síntese, a escrita de grande humanidade e sensibilidade social dos dois escri­tores


em análise, expoentes do património literário duriense, destaca-se no vasto acervo ­cultural
do e sobre o Douro, cujos estudos históricos e literários supõem o seu contributo compro­
metido com um íntimo e profundo conhecimento desta paisagem cultural vinhateira.

3. «MARCA DE ÁGUA» DO ALTO DOURO VINHATEIRO —


PATRIMÓNIO MUNDIAL: CORPUS DOCUMENTAL

A literatura aparece-me como uma corrida de retransmissão. Cada um toma


o testemunho das mãos do escritor que o precedeu. Não é possível voltar atrás nem
mesmo permanecer no lugar35.

A análise interpretativa dos textos e fragmentos mais paradigmáticos das obras


seleccionadas nos escritores estudados em seus discursos literários próprios relativos ao
Alto Douro Vinhateiro dos anos de 1920 a 1960 partilha do enunciado na epígrafe sobre
literatura e inovação, perfilhando a concepção dinâmica aí defendida de retransmissão
literária e passagem de testemunho.
Para Maria Angelina Brandão e Raul Brandão, nos anos de 1920, «o Alto Douro,
a terra do vinho fino, é também a terra dos panoramas tétricos, dos sítios onde r­ eina
a febre, das povoações concentradas, recozendo ao sol a fealdade»; «sobre ossadas e
destroços»; «sombras temerosas»36. Ou seja, fantasmas, espectros, rastros que a escrita
brandoniana ressuscita do silenciamento a que são remetidos, num compromisso ético
de testemunhar para impedir que se calem os mortos, a que subjaz um pensamento de
espectralidade, de luto e de crença.
Ressonâncias desta mundivisão espectral de Brandão, vamos encontrar, já na
­década de 1960, em Manuel Mendes que, intertextualmente, se faz eco do sentido ­ético de

34
MENDES, 2002: 23-24.
35
SARRAUTE, 1964 apud COMPAGNON, 2021: 178.
36
BRANDÃO, 1985: 61.

135
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

justiça de seu mestre face ao esforço ingente dos trabalhadores anónimos, em c­ ontraste
com a riqueza que produzem no Douro: «Quanto esforço insano e miséria c­ abem num
cálice de vinho fino do Douro, deste vinho que há séculos ganhou reputação no mundo!
Na sua transparência de âmbar, nada disto se adivinha»37.
Na verdade, podem encontrar-se, apesar das diferenças, várias afinidades entre Raul
Brandão e Manuel Mendes, escritores e jornalistas intrinsecamente ligados ao ­Douro,
que conheceram, amaram e descreveram além da epiderme, com fervor e ­respeito,
cada um em seu registo literário próprio: o primeiro, próximo do modernismo e de
grande modernidade, com um olhar íntimo e reflexivo; o segundo, viandante citadino,
afim do neo-realismo, de olhar nómada e ardente acalentado por seu mestre Brandão,
num «deslumbramento inesquecível»38.
Focamo-nos em primeiro lugar no livro Portugal Pequenino (1930) de Brandão
e sua mulher Maria Angelina, dedicado pelos autores «aos filhos dos outros», cujas
perso­nagens são duas crianças: «ele, o Russo de Má Pelo, filho do amo onde ela, a P ­ isca,
serve». Aí, «a impressionante descrição das paisagens raramente aparece dissociada
da humanidade que as habita»39 e, ao mesmo tempo, «o rigor descritivo e etnográfico
­combina-se com o intenso visualismo da linguagem tão atenta aos cambiantes cromá­
ticos como aos contrastes violentos na permanente busca de uma síntese entre a fideli­
dade ao real (­ assinalada muitas vezes por um simples detalhe que o exacerba) e a relação
da sua ­essência espiritual»40. Nesta escrita magistral de índole modernista, o capí­tulo
desta obra Duas gotas de água (pp. 71-86)41 sobre as paisagens naturais e humanas do
Douro Vinhateiro permite vivenciar de perto a dura faina fluvial, a ruralidade tradi­cional
ainda dominante na região, já ameaçada pela linha férrea oitocentista e o d ­ espontar das
chaminés e fumo das fábricas na aproximação ao Porto urbano e fremente de negócios.
Contrastes e mudanças representadas e sugeridas em dinâmica pictural e sensorial de
«colorida visão».
À análise dialógica dessa memorável narração brandoniana da paisagem natural e
humana do Douro na década de 1920 segue-se a análise das «representações sociais» em
Roteiro Sentimental, Douro (1964-1967), de Manuel Mendes, livro a que o autor se refere
como «caderno de crónicas», escrito em «páginas de estudo e evocação […] com v­ erdadeiro
aprazimento de etnógrafo amador»42, porém já considerado «um dos mais belos e sérios
roteiros da região»43 e assim sugestivamente apresentado numa vertente histórica.

37
MENDES, 2002: 128.
38
MENDES, 2002: 175-180.
39
REYNAUD, 1995: 241.
40
REYNAUD, 1995: 233-243.
41
Cotejar esta versão do texto com versões das entradas do Guia de Portugal (dirigido por Raul Proença, amigo de
Brandão, da Renascença Portuguesa e do Grupo da Biblioteca Nacional), reeditadas nas edições da Fundação Calouste
Gulbenkian. ROSA, 2013.
42
MENDES, 2002: 82.
43
MENDES, 2002: 11 [Apresentação de Gaspar Martins Pereira].

136
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Estas crónicas são as histórias e as impressões que o autor recolheu, em contacto


com a gente humilde da Região — rurais, pescadores, barqueiros (os que a­ travessam
o rio de um lado para o outro), marinheiros (os que traziam o vinho do Alto Douro
até à Foz), profissionais de vários ofícios, alguns hoje em vias de se perder, ­conta­dores
populares de histórias, memórias esparsas da Região. […] Escritas entre 1961 e
1963, estas crónicas de viagem constituem o testemunho de uma época em que o
­Douro mantinha ainda uma imagem fortemente marcada pela tradicionalidade,
bem ­próxima da que nos deixaram os registos fotográficos da Casa Alvão ou da Foto
Beleza para os anos trinta e quarenta, ou mesmo de Emílio Biel para o início do
­século XX, mas em que já se entrevêem processos que viriam mudar, indelevelmente,
nessa década e nas seguintes, a paisagem física e humana da região. Nessa perspectiva
pode considerar-se um testemunho histórico44.

O conjunto destas crónicas, impressivas e solidárias com os mais humildes e esfor‑


çados da região, escritas numa prosa límpida e culta de feição neo-realista45, ­entre­te­ce-se
de memórias e depoimentos de trabalhadores do Alto Douro, documentos recolhidos
por Manuel Mendes, tal como Brandão, onde numa elegia sofrida ao trabalho árduo
sobrelevam os actores de carne e osso, obreiros anónimos das paisagens durienses.
Aí se identificam «representações socioculturais» ancoradas na historicidade densa e
tradição identitária de um Douro ainda antigo, mas já em transformação na diversi‑
dade emergente de alterações técnicas, económico-sociais, institucionais, demográficas,
­paisagís­ticas e culturais que se irão afirmar pós-anos de 196046.
A abordagem substantiva que agora se vai fazer aos textos literários destes a­ utores,
em suas visões diferenciadas e complementares do Douro, inspira-se nos anteriores
funda­mentos introdutórios e é informada pela noção de «cronótopo artístico», metáfora
do «espaço-tempo» de Einstein.

Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível, o p­ róprio


espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da h ­ istória, […]
o processo de assimilação do cronótopo do tempo, do espaço e do i­ndividuo h ­ istórico
real que se revela neles — têm fluído complexa e intermitentemente .
47

44
MENDES, 2002: 11 [Apresentação de Gaspar Martins Pereira].
45
Cf. TORRES, 1983: 88.
46
Cf. GUICHARD, ROUDIÉ, PEREIRA, coords., 2019.
47
BAKHTIN, 1988: 211-362.

137
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

3.1. Aproximação ao Douro com Maria Angelina Brandão


e Raul Brandão (1930)
O discurso literário de Raul Brandão, «poeta da prosa», no dizer de Jorge de Sena, que
assinala «a sua visão arrebatadora da humanidade» e «a violência da sátira social directa
e amarga»48, faz-se no cruzamento entrecortado de vários planos, de zonas descontínuas
e de convecção que apelam assim a dimensões e conhecimentos múltiplos. Parecendo
inicialmente saído de um sonho espraia-se por grandes extensões onde a luz impera sob
sombras49. Não segue a lei da causalidade nem o operador do terceiro excluído, ­princípio
de razão, o que o torna precursor da modernidade e do pensamento contemporâneo.
Como nenhum outro autor, Raul Brandão escreveu páginas únicas e memoráveis
sobre os «espaços-tempos» do Douro e «o indivíduo histórico real que se revela neles»50,
tendo-nos legado um património literário, cultural e histórico ímpar de suas ambiências
socioculturais e ambientes ecofísicos (territórios, climas, solos, faunas, floras).
A escrita literária de Raul Brandão, embebida de outras formas de linguagem como
a pintura, a fotografia e o cinema, que então se popularizava, trabalha, em elementos
naturalistas e simbolistas de que foi pioneiro e em linguagens impressionistas e expres‑
sionistas, «paisagens naturais, sociais e humanas», como as do Alto Douro Vinhateiro.
Possibilita entrever no Douro: a prodigiosa acção em redes locais e efeitos globais do
­trabalho de homens, mulheres e crianças em confronto com a geomorfologia de t­ errenos
rochosos, refeitos, na longa diacronia, por mão humana.
O que distingue e surpreende na escrita de Brandão é a sua própria colocação no
que descreve e narra, compondo as impressões que as coisas lhe dão, como sentimento,
e dando-as a ver em composições de linguagem, ora intensamente estáticas ora em movi­
mentos rápidos, apreendendo as mutações no material impressionado. Não ­reproduz
um real que sempre segue suas linhas de desenvolvimento, mas constrói, na linguagem,
a realidade do que dá a ver. Chega a criar o efeito de que é a própria escrita que segue a
sua linha de desenvolvimento, disseminando-se, sem que o autor a possa conter, nem,
aliás, o queira. Aí, é o movimento descontínuo, a fragmentação dos fenómenos, a incer‑
teza e a imprevisibilidade do mundo que nos são espantosamente reveladas.
Exige então uma abordagem cronotópica, em que se destacam «as relações dialó­
gicas existentes nos enunciados concretos elaborados no processo da interação socio-his‑
tórica»51, a qual permite uma análise comparativa entre as duas espaciotemporalidades
que nos surgem ancoradas em «cronótopos artísticos» identificados nos textos literários.

48
SENA, 1978.
49
VIÇOSO, 1999.
50
BAKHTIN, 1988: 211.
51
MACHADO, 1996: 89-105.

138
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

3.1.1. Cronotopia52 e interacção dialógica


No cronótopo artístico-literário, categoria formal e de conteúdo, derivada do espaço-
-tempo da teoria da relatividade einsteiniana, ocorre, segundo M. Bakhtin (1895-1975),
teórico do «formalismo russo», a fusão dos indícios espaciotemporais, nos quais se
­revela o indivíduo histórico real, num todo compreensivo e concreto, tal como sucede
no conhecimento histórico, cujos pilares são tempo, espaço e acção humana.
Esta perspectiva histórico-filosófica de «espaço-tempo aberto e colectivo, de liber­
dade e criação humana»53, que acompanha «a inscrição e materialização do tempo no
espaço da representação»54, é caracterizada pela interdisciplinaridade, diversidade e
hete­rogeneidade próprias do pensamento inovador de M. Bakhtin, para quem o escritor
é aquele que sabe trabalhar a língua, estando fora dela, que tem o dom do falar indirecto;
exprimir assim, significa fazer de si objecto para o outro e para si mesmo [e em que] as
relações dialógicas [são] relações «semânticas» entre toda a espécie de enunciados na
comunicação discursiva55.
Também em Raul Brandão «uma mesma língua é coabitada por falares diversos,
linguagens sociais dinâmicas que se cruzam atravessadas pelo social e pela ­história»56.
A estrutura da linguagem verbal pressupõe o diálogo entre diversos sujeitos, com
a ­consciência de que a linguagem é sempre herdada, estando o escritor imerso numa
­língua de muitos falantes (vivos e/ou mortos, «fantasmas», antepassados e os ainda por
vir). Daí que a dialogia seja a matriz do seu discurso literário que se revela por ­posições
estru­turadas contrastantes mediadas pelo «sonho que transforma o homem e que é,
para Brandão, o essencial na vida»57.
O dialogismo brandoniano é frequentemente impregnado de cronótopos que
dão a contextura espaciotemporal onde se movem sujeitos históricos, especialmente,
os ­humildes, esforçados e anónimos — trabalhadores, mulheres em destaque e ­crianças —,
que nele são os próprios desencadeadores do discurso literário. No caso c­ oncreto ­destas
suas duas obras, o dialogismo atinge desde logo a própria autoria de Portugal ­Pequenino e
do capítulo Duas gotas de água sobre o Douro.
O cronótopo organizador no Douro é o ciclo da água, figurando a fragilidade de
duas gotas que engrossam até ao caudal do rio que rompe o pedregulho interposto na
sua cavalgada para o mar, a do homem e da mulher que se obstinam em armar o terreno
em socalcos e subsistência duríssima, para que, do esmagamento das uvas, brote o vinho
fino qual sangue bíblico: «Que diabo de figura é esta, para quem olho com respeito,

52
BAKHTIN, 2010: 307-335.
53
FIORIN, 2006; MAGALHÃES, 2007: 210-215.
54
RODRIGUES, 2013.
55
BAKHTIN, 2010: 307-335.
56
PIRES, KNOLL, CABRAL, 2016: 119-126.
57
MARTINS, 2018: 62.

139
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

que se atreveu com o pedregulho e o abriu a marreta e a ferro, e às vezes a dinamite,


até pulverizar o chão para lhe meter os bacelos?»58.
Ainda sobre o Douro, identificam-se neste texto literário brandoniano os seguintes
cronótopos secundários: cultura vitivinícola; caminho/via fluvial; faina fluvial; metró­
pole/porto de chegada e de partida.
No cronótopo da cultura vitivinícola, o Vale do Douro, «de que o homem obsti­
nado extrai a melhor fruta do mundo e o melhor vinho do mundo o líquido dourado
que sabe a sol e é um extracto de sol»59, surge-nos em:

cenários sobre cenários nos dias soturnos em que o fraguedo lhes parecia ainda
mais trágico, com o rio esganado entre pedras e montanhas socalcadas pelo homem,
para aguentarem alguns bocados de terra a esboroar-se. O Alto Douro, a terra do
­vinho fino, é também a terra dos panoramas tétricos dos sítios onde reina a febre das
­povoações concentradas, recozendo ao sol a fealdade60.

A dada altura, «as duas gotas de água» interrogam:

Qual foi o segredo que fez produzir uma terra só ossos? A gente olha para os
b­ agos de âmbar transparente, para os moscatéis que fazem chegar a água à boca,
para os cachos dourados com uma pele muito fina, e custa-lhe compreender que seja
a dor que produziu tudo isto. E é a dor da videira torcida ao sol, gritando maldição
porque não consegue naquele cascalho, por mais que penetre com as raízes, ­encontrar
algum suco. E a dor deste homem, que se sujeita, lívido de febre e com a magra compa­
nheira ao lado, a viver preso à terra maldita e abençoada. Sujeita-se e range, obstina-se.
Foi ele que a criou, pelo menos tanto como Deus, e que não encontrando água para
regar, a substituiu pelo suor do seu rosto. Negra vida. Como resistiu à labareda?
Como pôde viver dentro daquele forno? Amando a terra61.

Na genial composição literária desta narrativa, os sujeitos de enunciação, duas g­ otas


de água, transformam-se em contacto com ínfimos fios de água, lama, gelo, ­nevoeiro,
riachos, pequenos ou grandes caudais do rio Douro e percolam os enunciados o mais
dentro possível da materialidade que se descreve e narra. Isto sem nunca se perder a
sua frágil e periclitante identidade nos avassaladores obstáculos até chegar ao mar largo,
permitindo, assim, retraçar o trajecto da penosa e grandiosa produção do vinho até ao
porto da sua exportação para o mundo.

58
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 72-73 [capítulo Duas gotas de água].
59
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 71-86.
60
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 74.
61
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 72-73.

140
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Deslizaram na água entre pedras, num rio de estanho fundido, que parecia
correr sobre ossadas e destroços. Às vezes cachões, redemoinhos, dornas. Um dia
esti­veram para desaparecer abafados na água, perdido de todo um resto de indivi-
dualidade. Saltaram na escuma, irizou-os o sol, e foram ter a um côncavo na areia
onde repou­saram. Livres de perigo? Uns pássaros vieram beber e por pouco os não
engo­liram. Eram os corricões que vivem na duna, da cor da areia, e que quando
vêem gente se deitam de pernas para o ar — dizem os barqueiros — sendo difícil
distingui-los do chão. […] Escaparam por milagre e lá voltaram a descer o Douro que
ia alargando62.

Outro cronótopo é o do caminho ou da via fluvial percorrida pelos barcos ­rabelos,


etnograficamente descritos e que Raul Brandão acompanha «entre montanhas de
­bronze que põem a alma negra e que estão à espera que se passe uma tragédia», descre‑
vendo como se estivesse a fotografar todas as componentes dos barcos rabelos, pipas,
pedras e olhos de água e ao mesmo tempo a filmar gestos, movimentos, ventos dos vales,
rede­moinhos, equilíbrios de arrais e marinheiros «à escota arriscando a vida, remando
­agarrados às pás».

São estes barcos estrambóticos que fazem todo o tráfego do Douro. Carregam
pipas, cortiça, casca, madeira, gente; e quando vem o Inverno e “anda o rio grande”,
o movimento nunca se interrompe. Os homens intrépidos, de pé sobre a pégada — o
nome da gaiola onde vai o arrais —, manobram com decisão a espadela, metendo
a charroa na água e imprimindo direcção ao barco. É preciso fazê-lo sem um movi­
mento falso, sem um segundo de hesitação, nos sítios perigosos, descendo os ­galeiros
como quem cai por uma corda abaixo […]. Ali é que é vê-lo, ao barqueiro em ­ceroulas
a manobrar a charroa na água como se quisesse lavrar no campo! Quatro casqueiros,
meia dúzia de cavernas, a gaiola em cima e o homem em equilíbrio na quitanda,
tendo de descer lá do Alto até ao Porto com aquelas pipas todas, agarrado à espadela,
olho na água, olho nas pedras agudas como dentes […]. O barco oscila, põe-se de pé
— e ele lá vem, já desce. Como se aguenta? Arriscando a vida63.

O terceiro cronótopo que faz a ponte entre o Douro rural servido pela via-férrea
e o Porto urbano, comercial e industrial, exportador do vinho fino, define-se no movi‑
mento intenso e sonoro da faina fluvial duriense64, através de redes textuais cinéticas de
diferentes planos e variadas cenas.

62
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 74.
63
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 71-86. Ver também Guia de Portugal, vol. IV, pp. 10-12.
64
Contemporâneo do livro Portugal Pequenino é Douro, Faina Fluvial (1931), filme-documentário mudo de Manoel de
Oliveira, na época do cinema sonoro em Portugal (1930).

141
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

À medida que o rabelo desce — agora com serenidade e ao fio de água — ­melhor
se avalia o trabalho das mulheres, do rapazio nu, dos pescadores que lançam a rede
à tainha ou a fisga à enguia (o sável e a lampreia sobem no seu tempo até à Barca
de Alva), ou secam as redes nos varais; dos homens que carregam, atirando para
os barcos o carvão, a chamiça, ou as maroixas de lenha rachada e amontoada nas
margens. Tudo trabalha, e é para o Porto que sustenta o lavrador e o homem do rio.
Arrastam-se os pesados carvoeiros em flotilha, todos negros como pretos da Guiné.
Serra-se a madeira, vomitam fumo as chaminés das fábricas, e lado a lado o homem
e a mulher esbelta remam no mesmo barco. Tudo consiste em aproveitar a maré e o
vento favorável. […]
Estamos a dois passos da grande cidade. […] Entre um rasgão do arvoredo
avança para nós uma massa cinzenta e confusa com o recorte de uma igreja […]
numa miscelânea de casas de chaminés de fábricas, tudo enfumado e indeciso.­
Chega até ao barco o apito de um comboio. E pouco e pouco a cidade aproxima-se com
uma auréola de cinza e prata e o rio empoado de roxo. Ao lado, em dois riscos, o arco
da ponte de D. Maria e do outro lado, numa só tinta, o morro espesso de Gaia. ­Depois
outra ponte. Da água um faiscar às chapadas onde arde lume dourado. Por fim,
a ­Ribeira velha e carcomida, cheia de povo, de mulherio, de gritos […]. Umas esca­
dinhas, uma feira de fruta. Desembarcamos no Porto65.

Este cronótopo artístico é atravessado por uma condensada reflexão sobre o


­ rocesso socio-histórico e político impregnado de sátira social, culminando numa
p
­projecção de pendor messiânico, próprios do inconfundível estilo literário brandoniano.

As duas gotas de água saíram do rio com o nevoeiro e foram passear pela ­cidade.
Viram a praça e aquelas ruas íngremes uma de cada lado — a dos Clérigos com um
grande dedo apontado para o céu, como se esta cidade utilitária e prática fosse uma
­cidade franciscana, e na praça a estátua de um homem a cavalo que nunca ­consegue
sair do mesmo sítio. Quem foi? Foi um ingénuo que quis dar ao seu país a liber­dade,
quando o seu país não se importava com a liberdade para nada. Então ­deu-lhe a
­força; deu-lhe a Carta que os homens trataram como um trapo. Rodea­vam-no
­algumas fi­ guras excepcionais, um Mouzinho da Silveira, um Herculano, um G ­ arrett,
que ­tentaram renovar o país com ideias, livros, leis, reformas, esquecendo-se do
­principal — de o ensinarem a ler. E é um problema cuja solução legamos ao futuro66.

65
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 75-85. Cotejar com Guia de Portugal, vol. IV, pp. 532-534.
66
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 85.

142
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Um quarto cronótopo em que ressalta a presença do indivíduo histórico no tempo-


-espaço identifica-se num fragmento cenográfico em torno da metrópole comercial de
aspiração mundial, escondendo-se e deixando-se vislumbrar entre contrastes.

O nevoeiro sobe, ascende dá a esta cidade de trabalho, em que o burguês é rei,


com a porta fechada e o dinheiro na burra — o seu verdadeiro carácter […]. Há n ­ esse
Porto, filho do rio e do mar, poentes extraordinários apertados entre os paredões formi­
dáveis das margens […]. Outra vez a cerração desaparece. Poviléu. Ruelas. A Sé acas-
telada com varandas de granito e serpentes feitas pelos pedreiros. A Misericórdia com
paredes monstruosas […], subterrâneos onde se passam decerto coisas terríveis entre
a doença e os doentes, […] a noite procede por grandes massas confusas ascen­dendo
dum lado desde o Barredo até ao Paço Episcopal; do outro desde o fundo até uma
mescla assombrosa, que parece despenhar-se, picada de lumes, no rio cheio de grandes
barcaças, de vapores ancorados, de confusão e riscos inexplicáveis. […] Constrói-se a
essa hora uma cidade estranha e desmedida, sórdida e esplêndida, uma cidade […]
que, se não é a mais bela, é a mais pitoresca que conheço no mundo, só me recordando
de outra que me tenha feito igual impressão — o Pequim alucinatório descrito por
Fernão Mendes Pinto67.

A aproximação dialógica ao Douro em Raul Brandão permitiu observar a inserção


da história nos textos literários estudados, à luz de que, «na literatura, a imagem repre­
senta os fenómenos espaciais e sensoriais no seu movimento e na sua transformação,
intro­duzindo no plano artístico da ficção os momentos essenciais da realidade ­temporal
e, até um certo limite histórico»68. A análise ensaiada sobre a projeção ficcional polifó­nica
e performativa da escrita universal brandoniana possibilitou uma abordagem ­cultural
­impressiva ao território duriense em sua paisagem física e humana, a partir dos «cronó­
topos artísticos» aí identificados, a qual permitiu intuir e sublinhar alguns dos seus
­recursos da região em transformação, a potenciar à escala global-local contemporânea.

3.2. Revisitação do Douro com Manuel Mendes (anos de 1960)


Manuel Mendes, observador atento do Douro, com deslumbramento e crença, tal como
Brandão em seu sentir de transmissão geracional na dedicatória de Portugal Pequenino
aos «filhos dos outros», dedica o seu Roteiro Sentimental, Douro aos três filhos p
­ equenos
do amigo e companheiro da oposição democrática, Luís Roseira. Nestes represen­
tantes simbólicos de uma nova geração de empreendedores entusiastas de um «Douro
­moderno, aberto ao mundo e consciente do património, da arte e da tradição de fazer

67
BRANDÃO, BRANDÃO, 1930: 85-86.
68
BARBOSA, 2007: 1-9.

143
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

vinhos de renome universal durienses»69 viria a destacar-se o «micro produtor-engar‑


rafador» pioneiro José Alexandre Roseira, que, «com o pai, se empenhou na criação
da Associação de Produtores Engarrafadores de Vinhos do Porto e Douro (AVEPOD),
em 1986». Com a veneração que dedicou a Manuel Mendes, criou e lançou «um vinho
puro» nomeado, em sua honra, Roteiro Sentimental, «um vinho biológico, de castas fortes
— Touriga Nacional, Sousão e Touriga Franca, a que sempre chamou Flor do Douro»70.
No caso de Manuel Mendes em que a escrita/produção da obra assenta na sua apro‑
priação da modernidade da escrita brandoniana e da estética neo-realista em ­osmose
forma-conteúdo, atente-se na sempre necessária mediação autor-leitor no ­ seguinte
­fragmento da dedicatória de Roteiro Sentimental, Douro, em que o autor, buscando ­atingir
a sensibilidade dos leitores, se refere assim, auto-reflexiva e criticamente, à construção
deste seu livro:

de certo desconexo, parcial, restrito na visão, quem sabe se em alguns passos incom­
preensível, porque embora com devoção, nem sempre é fácil entrar na alma das
­coisas. Sinto que aqui me ponho a titubear a história desses montes e desses homens;
ali eu erro acaso na soma dos valores; e muitas vezes acode-me a dúvida se na oração
acertei de facto com o nome predicativo do sujeito71.

Assim, também o estudo que o historiador faz da obra literária supõe distinguir
e­ ntre «ficção» e «verdade», elementos centrais da criação/produção ficcional sem destruir
a sua condição. Supõe então percepcionar o tempo histórico enquanto «representação
intelectual»72, um tempo «que não decorre com regularidade» — como sublinhou Raul
Brandão em suas Memórias, nas quais o tempo cronológico se afirma ou se suspende73.
Tal entendimento permite perceber como, em diferentes lugares e momentos, uma
dada realidade social é construída, pensada e dada a ler, e observar como as sociedades
deixam sua marca no mundo, o que exige da história um retorno interpelativo sobre o seu
estatuto e supõe considerar o processo e referenciais socioculturais da produção do autor.
Ora o movimento artístico e literário do neo-realismo português, em que se pode
enquadrar Manuel Mendes, é «uma linguagem narrativa ou poética comprometida com
a transformação do mundo, o que pressupõe simultaneamente o modo i­diossincrático
como o autor se implicou, no plano ideológico e no da escrita, nessa prática de dizer
universos alternativos» à realidade coetânea de que fala numa «mensagem perene
[que é] o direito de todos à dignidade»74.

69
PEREIRA, 2021: 298-306.
70
PEREIRA, 2021: 298-306.
71
MENDES, 2002: 23.
72
REIS, 2011: 1-21.
73
LAGE, 2018a: 148-162.
74
VIÇOSO, 1959.

144
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Estas crónicas jornalísticas de Manuel Mendes, escritas em jeito breve, leve e


e­ nvolvente, descrevem num tom intimista e comprometido de larga visão social e ­cultural,
as andanças, vivências e impressões do escritor assim sintetizadas no seu R ­ oteiro Senti­
mental75. A partir de «São Salvador do Mundo», «No Douro, diante de cujo trabalho e sacri­
fício temos de nos curvar com respeitosa admiração»76, até à velha urbe do Porto, segue-
-se pelo «Douro Abaixo»77, na força da sua impressionante grandeza, mundo prome­tedor,
com um passado varonil de trabalho, um presente de incerteza e a esperança promis­sora
no seu futuro, em «Viagem»78, digressão resplandecente, de três belos dias de jornada; para
lhe conhecer a identidade — «O Rio»79, grande via de comu­nicação fluvial, vivo símbolo
da região que ele corre, com «Os barcos e os mari­nheiros»80, mestres e arrais dos rabelos,
cicerones de antiga jornada, donde passa a outras «Perspectivas»81 de horizontes físicos e
humanos das paisagens durienses em alterações que se pressentem.

Fig. 3. Fotos de Manuel Mendes na descida de barco que o escritor descreve no Roteiro Sentimental (e também
do Douro e do barco rabelo, nessa altura). Fonte: autor das fotografias desconhecido (digitalizações oferecidas,
há cerca de dez anos, por José Alexandre Roseira a Gaspar Martins Pereira. Cortesia de Gaspar Martins Pereira,
a quem se agradece)

Emergem aí em transformação latente e novos usos da paisagem natural e h ­ umana,


mudanças económico-sociais, desde a abertura de estradas, passando por alguma emi‑
gração até ao lento despontar do movimento das adegas cooperativas nascentes na
­década de 1950.
Todas essas crónicas de viagem constituem uma incursão humana e profunda na
região duriense dos inícios da década de 1960, traduzindo reflexões confiantes sobre
a vida social, política e económica, e estão intimamente relacionadas com as transfor­
mações sociais e a valorização da história social das populações, classes e grupos sociais
durienses e transmontanos.
75
Cf. MENDES, 2002 [Índice].
76
MENDES, 2002: 27-36.
77
MENDES, 2002: 37.
78
MENDES, 2002: 39-45.
79
MENDES, 2002: 52-59.
80
MENDES, 2002: 37-65.
81
MENDES, 2002: 59-65.

145
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Dão assim forma a um testemunho histórico projectado no futuro, que traça em


apurado estilo literário um quadro assaz complexo e vivo do Alto Douro Vinhateiro,
onde permanece uma diversidade de aspectos, tais como: «Os mortórios»82, ruínas da
filoxera «como as que deixa a guerra nas suas razias», onde a terra heróica volta a florir;
«A Cheia»83 do rio encolerizado, a paisagem espectral, desolada do Pinhão à Foz do
Douro; os antigos ofícios, «honra seja feita aos Pedreiros destes lugares», manifesto gosto
de artista, cujas armas e arte transmitiram aos filhos84; tradições ancestrais — consoada,
vindima, alheira85.
Sublinham ainda algumas destas crónicas, qual arqueologia bibliográfico-docu‑
mental, a importância de todo um património cultural legado por figuras literárias e
artísticas de nomes memoráveis, «espíritos tutelares» do Douro profundo que por aqui
pairam, rastros que o escritor reconstitui e sucintamente cartografa.
Aí se podem revisitar de passagem, à luz de uma filosofia político-literária,
­«conceptos», «perceptos» e «afectos»86, em algumas breves notas críticas ao roman­tismo
e, mais detalhadamente, noutras breves evocações literárias que o escritor, artista ­plástico
e crítico de arte Manuel Mendes inventaria através das seguintes «represen­tações socio‑
culturais»:
• obras, mapas e andanças do célebre Barão de Forrester87;
• o convencional livro A Cidade e as Serras, de Eça de Queiroz, com belas páginas
de descritivo paisagístico inspirado pela natureza destas terras88;
• Camilo Castelo Branco, o foragido no Douro em sua constante trepidação
­humana que dá grandeza à sua obra89;
• saudação à vasta e rica obra de Aquilino Ribeiro90, numa aldeia encravada nos
fraguedos e serranias do Douro, idêntica energia simples, brava e admirável,
igual sentimento em que se une a terra e o homem que a trabalha;
• em romagem de Barca de Alva à casa e quinta da Batoca do escritor ­Guerra
Junqueiro, símbolo de irreverência e rebeldia e lavrador vinhateiro moderno
do Douro Superior91, «que imprimiu à paisagem revolta a mesma grandeza
­inabalável de alma, com a mesma visão desmedida das coisas»;

82
MENDES, 2002: 141-148.
83
MENDES, 2002: 93-99.
84
MENDES, 2002: 131-139.
85
MENDES, 2002: 75, 101, 119.
86
DELEUZE, GUATTARI, 2001: 8. Ver também DELEUZE, GUATTARI, 1990.
87
MENDES, 2002: 85-92.
88
MENDES, 2002: 109-117.
89
MENDES, 2002: 69-74.
90
MENDES, 2002: 149-156.
91
MENDES, 2002: 165-172.

146
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

• até aportar na foz do rio Douro e parar na Cantareira92, lugar histórico de ­vida-obra
de Raul Brandão, «onde conviveu sobretudo com os pescadores, seus irmãos
de sangue e desventura», íntimo de Manuel Mendes, que o venera e cuja obra
assim consagra:

Ouço-lhe distintamente a voz, porque cada vez os seus livros me parecem mais
repassados de amarga e deslumbrante poesia — porventura o maior poeta da sombra
e da dor que cantou ainda em língua portuguesa. […] Quero-lhe como a uma velha e
adorada estampa de família, tanto a obra do grande escritor me encheu e empapou a
alma. E, se aqui venho, é decerto para melhor o evocar, sentir de novo e junto de mim
a sua amiga e comovedora presença93.

Estas crónicas de elevada sensibilidade humana e apurado sentido ético-estético


literário constituem-se ainda como um hino ao grandioso trabalho dos homens e das
mulheres durienses e uma elegia pré-ambiental aos ciclópicos paredões do coração do
Alto Douro, representações sociais e culturais com que Mendes compõe estas «paisagens
— memória», híbridas de natureza-cultura.
A esta luz, impressiona-nos pensar a monumentalidade dos vinhedos do D ­ ouro em
seus antigos e renovados esforços de construção de geios, socalcos, muros e m­ uretes de xisto
e outras armações recentes do terreno — matriz estrutural e física desta ­paisagem-mosaico
(natural, humano, cultural, paisagístico e económico-social) diversificada e profunda­
mente humanizada como se depreende destes fragmentos do Roteiro Sentimental.

A penedia foi reduzida a cisco, alinhada nos geios, e o monte já não capricha
nas suas brutas fantasias — domou-o a mão pertinaz do homem, como lho exigiam
as necessidades e porventura o seu amor e gosto. A montanha sujeitou-se à o­ be­diência
de uma vontade prodigiosa, deixou de figurar tal como o génesis a pariu — subme­
teu-se, fez-se instrumento útil, expressão do trabalho organizado, compreen­sível
nos seus objectivos, e não apenas beleza desabrida, gratuita e inumana. A lava de
que é feita a serrania do Alto Douro foi esculpida, parece que à força de cinzel. […]
De alvião ou marreta em punho, pancada a pancada, o ferro vai penetrando até
fender a laje, que depois de moída, desfeita em cascalho miúdo, compõe a terra dos
geios, tão grata à vinha duriense — plantio que Junqueiro dizia nutrir-se, florir e criar
os frutos à força de lava e fogo94.

92
MENDES, 2002: 173-180.
93
MENDES, 2002: 78, 180.
94
MENDES, 2002: 134-135.

147
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Capta-se assim a arte rústica perfeita do trabalho minucioso e geométrico dos


geios — referência fundamental na paisagem cultural do ADV —, «na beleza do seu
traçado», «manifesto gosto de artista» dos pedreiros galegos e nacionais em que assenta
a profunda transformação da pedra em solo fértil para a produção vitivinícola, principal
valor económico-social duriense.

O pedreiro do Douro põe no trabalho deleitação, esmera-se em ser perfeito no


seu acabamento, amontoando pedra sobre pedra com se compusesse um mosaico
[…]. Já na maneira como a ajusta, sem prisão de qualquer argamassa, laje sobre laje,
com o amparo e segurança da brita miúda que a calça, ele dá evidentes mostras de
apreciar os valores e os recursos naturais da matéria-prima com que trabalha95.

Este sublime empreendimento de construção de muros e muretes de xisto que


a­ inda hoje travam os antigos socalcos durienses exigiu uma divisão social do ­trabalho
manual em que se destaca o significativo esforço das mulheres no desempenho da
­função do carrego da pedra no local da obra, contributo feminino como assim releva
Manuel Mendes:

Pelo monte, as mulheres acarretam à cabeça as pesadas lajes que juncam o


chão da obra. É um trabalho violento que lhes pertence e elas sofrem com resignação,
pois lhes é vital acrescentar com a sua jorna os ganhos de que tão miseravelmente
­vivem — um pouco mais de untura para o caldo com que criam muitas vezes ranchos
­enormes de filhos. E horas sem conto, monte acima, monte abaixo, à torreira do sol
estival, que queima como fogo, ou pelos frios dias de inverno, são as mulheres que
fazem este carrego, na grande maioria dos casos para locais onde não há caminhos,
nem pode chegar carro de bois. Algumas dessas lajes pesam como chumbo, parecendo
esmagar as pobres, que sob elas vergam, gemem, com os músculos tensos, as cordo-
veias prestes a rebentar96.

As análises diferenciadas que privilegiaram o enfoque comparativo das ­evocações


literárias e testemunhos históricos sobre a região duriense de Maria Angelina e Raul
Brandão e Manuel Mendes permitem agora compreender melhor como e em que m ­ edida
estes textos se podem constituir em «marca de água» de uma identidade e a­ utenticidade
genuínas do Alto Douro Vinhateiro — Património Mundial, hoje ­paisagem cultural
­vinhateira singular da Humanidade a pensar e debater em suas múltiplas potenciali­
dades e novos horizontes.

95
MENDES, 2002: 135-136.
96
MENDES, 2002: 137.

148
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Na linguagem literária, do historiográfico ao cultural, são as narrativas e os ­discursos


próprios de cada um destes escritores que, observados numa óptica transdisciplinar em
seus «perceptos», «afectos» e «conceptos»97, conferem legibilidade à região duriense na
sua diversidade e polimorfia, qual palimpsesto em que a sua paisagem física e h ­ umana se
constrói e metamorfoseia em função de circunstâncias naturais ou de interesses e o ­ pções
político-económicas que a alteram constantemente como espaço identitário.
Conforme se acentuou noutra instância98 e se pode intuir da argumentação
­desenvolvida:

a harmonia equilibrada da paisagem do ADV dependeu, historicamente, de uma


sabedoria ancestral de gestão artesanal de três fatores essenciais: declive elevado e
­fragoso do terreno; escassez de solo e água; dinâmicas naturais que garantiram à
paisagem uma originalidade cultural polimorfa, uma «natureza» de mosaico multi-
forme e policromático, alternando áreas agrícolas de matas e povoamentos florestais,
o que lhe confere grande riqueza, e notável capacidade de sustentação99.

Considerando os riscos a que a paisagem cultural do Alto Douro Vinhateiro tem


vindo a ser sujeita e atendendo a algumas orientações do Plano Intermunicipal de Orde‑
namento do Território, o controlo dos principais problemas passa hoje por:
• eficientes sistemas de drenagem com recuperação de práticas tradicionais e
adopção de soluções sem impacto na paisagem;
• estudo da viabilidade de novos tipos de armação do terreno (em patamares,
­forma actualmente mais corrente com grande evolução na sua organização,
­vinha ao alto, micropatamares que permitem a conservação de muros pré-filo­
xéricos, etc.100.

No que concerne à conservação da polimorfia da paisagem, entende se ser


­necessário:
• a definição de um paradigma de qualidade para a conservação da polimorfia da
paisagem do Alto Douro Vinhateiro;
• planos de gestão e salvaguarda das explorações vinícolas que contemplem o
plantio da vinha, as áreas de mato e património vernacular, bem como a atenção
às dinâmicas naturais entre a manutenção de espaços de produção e protecção da
paisagem;

97
Significam-se assim actividades, objetivos e áreas diversas: o filósofo lida com conceptos; o cientista trabalha ­perceptos ou
cria operadores para fazer experiências e obter resultados empíricos e concretos; o artista cria afectos a partir de ­imagens
visuais, sonoras ou de outro tipo.
98
LAGE, 2018b.
99
LAGE, 2018b: 109.
100
FAUVRELLE, 2007: 87-96.

149
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

• não destruição de muros de pedra, edifícios vernáculos, calçadas de pedra,


­mortórios, núcleos de vegetação (sub)arbórea101.

Nesta sustentabilidade da paisagem polimórfica do Alto Douro Vinhateiro


­importa redescobrir os socalcos do Douro como construção sociotécnica conforma‑
dora dos ­alicerces de uma paisagem histórica e da cultura intrincada na natureza, em
suas ­múltiplas dimensões «naturais», «paisagísticas», históricas, sociais, económicas e
­técnicas. Qual arqueologia da paisagem cultural do Alto Douro Vinhateiro, permite
­revelar lhe a tessitura de redes locais de seus rastros e desocultar-lhe algumas das mais
decisivas (i)materialidades, em que não há senão híbridos de natureza e de cultura que
se escalonam entre os dois extremos102.
Neste sentido, há que mediar experiências/experimentações concretas e generali­
zações/abstracções da paisagem e do património em suas dinâmicas múltiplas e diver‑
sidade de procedimentos antecipatórios na interligação de temporalidades diversas,
como se pode depreender da seguinte constatação complexa, mas de grande abertura:

objecto paisagem, condenado a deixar o trabalho incompleto, aberto, inacabado,


impos­sível de contornar que implica na perspectiva da partilha da paisagem como bem
comum, pôr o acento nas temporalidades que permite sair de uma paisagem c­ oncebida
como fixa e inerte, prisioneira das políticas de patrimonialização e p­ rotecção, para a
inscrever em dinâmicas naturais (se é que assim se podem distinguir), económicas,
­culturais e políticas e pô-la no centro de procedimentos de antecipação, o que pode
então ajudar a abrir a brecha entre o passado e o futuro103.

O entrelaçamento destas indagações densifica a investigação dos processos de


construção da paisagem do Alto Douro Vinhateiro — Património Mundial e das suas
marcas de autenticidade que lhe valeram a classificação de paisagem cultural evolutiva
e viva (UNESCO, Dezembro de 2001) e se têm mantido, alicerçando a sua identidade
cultural e continuando a conferir lhe o seu especial fascínio.
Sendo certo que, como se procurou evidenciar na análise reflexiva e densa dos
teste­
munhos histórico-literários de Maria Angelina e Raul Brandão e de Manuel
­Mendes, «as paisagens do Douro guardam argumentos e poderosas seduções, serenas,
majestá­ticas, agitadas […] como as paixões»104.

101
FAUVRELLE, 2007: 87-96.
102
RHEINBERGER, 2013.
103
SGARD, 2011: 236.
104
DOMINGUES, SOTTO MAYOR, 2009: 168.

150
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

4. O DOURO DOS ANOS DE 1920 AOS ANOS DE 1960


Pudemos observar anteriormente, na interpretação analítica e por dentro dos testemu‑
nhos históricos e literários da paisagem física, humana e cultural do Alto Douro Vinha‑
teiro, nas décadas de 1920 e 1960, um Douro latejante de vidas e trabalhos, mosaico de
culturas e tradições, tal como representado nas imagens dos sucessivos registos fotográ‑
ficos de Emílio Biel, da Casa Alvão e da Foto Beleza.
Conforme refere Natália Fauvrelle:

ao longo do século XX as encostas durienses remodelaram-se de modo profundo,


teste­munhando a evolução da região que, neste período, se reinventou para vencer as
dificuldades impostas quer pela Natureza quer pela conjuntura económica e social.
As primeiras décadas do século são particularmente marcadas pelo efeito devastador
da filoxera, praga que dizimou os vinhedos durienses a partir de 1863 e que impôs
uma grande mudança na forma de construir a paisagem105.

Nos inícios da década de 1920, o sector do vinho do Porto registava uma ­expansão
do comércio, com o aumento das exportações, que se manteria quase até ao final da
­década. No entanto, a produção atravessaria uma das mais graves crises e «tal ­aspecto
­tomou a crise que os operários rurais ofereciam o trabalho pela comida. Ainda assim o
vini­cultor com dificuldade os aceitava»106. Aos baixos preços oferecidos pelo comércio
— em conse­quência «dos enormes stocks acumulados em Gaia e da queda das expor­
tações que se tornou mais evidente a partir de 1927»107 — somavam-se as fraudes,
com a crescente entrada de vinho do Sul nos armazéns de Vila Nova de Gaia. Seria,
por isso, uma década agitada, do ponto de vista social e institucional, marcada por
greves e mani­festações no Alto Douro, exigindo a intervenção do governo na defesa dos
interesses regionais108.
Face ao cenário de crise económica e social, as elites redobraram as suas inicia‑
tivas no sentido da intervenção do Estado e da reforma institucional e legal do sector.
Por ­exemplo, em 1929, ano da Grande Depressão, que se faria sentir duramente sobre
o ­Douro, os notáveis ocupar-se-iam a discutir o projecto de Lei de Salvação do ­Douro,
de Amílcar de Sousa. Numa conjuntura de superprodução, agravada em 1927 com a
­elevação das t­ axas aduaneiras em Inglaterra, o que contribuiu para a limitação da expor­
tação e a­ volumar de stocks, manutenção de preços baixos oferecidos ao p­ rodutor, ­fraudes
nos mercados externos, falência de várias firmas em Gaia e carestia da aguardente,
­Amílcar de Sousa apresentava como solução a auto-suficiência em matéria de aguar­dente.

105
FAUVRELLE, 2019: 363-364.
106
ROSEIRA, 1992: 106.
107
PEREIRA, 2003: 52.
108
SEQUEIRA, 2011: 305-350.

151
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Desde 1925 que Amílcar de Sousa defendia esta via para o ­desenvolvimento e esta­
bilidade da Região. Preconizava, assim, a auto-suficiência do Douro pelo equilíbrio da sua
­produção: produzir vinhos generosos em proporção relativa à quanti­dade exportada no
ano anterior, e destilação do vinho de consumo para produção de aguardente para bene­
fício. Em 1929, o projecto de Lei de São do Douro originou debate intra-re­gional, a par
da oposição do Sul e Gaia, da Comissão de Viticultura da Região do Douro, do Conselho
Superior de Agricultura e da Comissão Central de Viticultura, não tendo sido possível a
sua viabi­lização. Já em 1931, ano de grave crise no sector do vinho do Porto, Amílcar de
Sousa ende­reçaria uma carta ao presidente da Associação Central de Agricultura, anun‑
ciando que pretendia reapresentar a Lei de Salvação do Douro, ­adaptada à nova conjun‑
tura, embora ainda orientada por um caminho similar às leis pombalinas. O Douro vivia
mergu­lhado numa crise de excesso, e a salvação conti­nuava a ser, segundo o seu ponto de
vista, ­produzir a própria aguardente e equilibrar a p
­ rodução. Por isso, o espírito era ainda
o mesmo, mas a formulação muito diferente, num projecto de lei condensado em apenas
dois artigos, proibindo a entrada de aguardente encascada na região duriense109.
Perante as reivindicações regionais, a acção do Estado far-se-ia notar através da
«criação de estruturas que visavam controlar e disciplinar as relações entre os vários
­parceiros do sector. Com esse objectivo, criou a Casa do Douro, o Grémio dos Expor‑
tadores e o Instituto do Vinho do Porto, instituindo, simultaneamente, uma política de
preços mínimos, facilitando o crédito e disciplinando a concorrência»110.
Contudo, «os anos de 30 e 40 farão estagnar o vinho do Porto»111. «A década que
vai de 1935 a 1945 foi duríssima para os viticultores»112. No contexto da Segunda Guerra
Mundial, entre 1939 e 1945, avolumar-se-iam as dificuldades nas exportações. Por ­outro
lado, «as dificuldades de recuperação comercial do sector» no pós-guerra «repercu­
tiram-se prolongadamente, sobre a região do Douro, acarretando uma diminuição das
quantidades aprovadas para benefício e uma estagnação dos preços»113, levando a que a
situação socioeconómica duriense fosse «geralmente reconhecida como muito má»114.
Mas, apesar da conjuntura de crise, «foi nesse tempo que se deram os primeiros passos
consistentes para a regularização da produção, com a discussão que resultaria, depois de
1950, na criação das adegas cooperativas»115.
Em 1949, a partir das Bases de fomento e constituição das adegas cooperativas,
­dava-se início ao movimento cooperativo moderno na região do Douro, «uma das mais

109
SEQUEIRA, 2000: 106-121.
110
PEIXOTO, 2019: 186.
111
BARRETO, 1993: 100.
112
BARRETO, CARVALHO, 2016: 30.
113
PEREIRA, 2003: 56.
114
BARRETO, 1993: 100-101.
115
BARRETO, CARVALHO, 2016: 30.

152
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

impor­tantes instituições da Região Demarcada»116 enquanto «elemento essencial de


apoio à produção dos pequenos agricultores, especialmente dos que produzem vinhos
de ­consumo»117. Porém, só depois de meados dessa década, se assistiria à expansão do
­movimento das adegas cooperativas, na sequência da aprovação do Plano das adegas
coope­rativas para a Região Demarcada do Douro, elaborado pela Casa do Douro, em 1955.
Até finais de 1960, assistiu-se a um crescimento exponencial do número de coope‑
rativas e associados118. No entanto, segundo Luís Roseira:

todo o programa de desenvolvimento, não planificado das adegas cooperativas, f­ omentado


e criado à sombra da «Federação» como suporte da organização corporativa, indepen-
dentemente do isolamento de outras formas de cooperativas (consumo, crédito, etc.),
não assenta numa imprescindível doutrinação e formação de quadros. Peca, além de
­muitos outros defeitos, por uma deficiente cobertura das zonas dos v­ inhos mais qualifi­
cados. Ora, a recusa inicial do comércio causa confusão — ou pânico? — quanto à vali-
dade dos processos técnicos empregues e provoca nítida p­ aragem na cobertura das zonas
de vinhos de primeira, tanto mais que se teimou em não conceder às cooperativas de gene­
rosos a imprescindível diversificação estatutária em relação às de vinho de ­consumo119.

Além disso, o comércio:

aliado à tentação da formação da rede das cooperativas e à introdução de novos


processos de vinificação […] no sentido de, «fazendo o negócio todo seu» procurou
«impedir a lavoura de vir a comercializar directamente os seus vinhos», o que inevita-
velmente aconteceria quanto a cobertura da região pelas cooperativas atingisse deter­
minada capacidade e difusão […], dotada de poderes de venda directa dos vinhos
dos seus associados — generosos e lisos — como indevidamente o vinham fazendo as
cooperativas de consumo. Isto é, estavam lançadas as bases materiais mínimas para
se executar uma política de reorganização da nossa lavoura, com possibilidade de
trilhar um caminho que colocasse o consumidor em contacto directo como os nossos
renovados e genuínos tipos de «vinho fino», os tais que deviam «todo o primitivo ser
à natureza», em confronto com os vinhos «industrializados», crismados em Gaia de
«vinho do Porto», com todas as consequências que, tal porta aberta, traria à região120.

116
BARRETO, 1993: 164.
117
BARRETO, 1993: 101.
118
BARRETO, 1993: 164. Adegas criadas na Região Demarcada do Douro: Mesão Frio (1950), Peso da Régua (1951),
Vila Real (1955), Favaios (1956; impulsionada por Carlos Amorim, que viria a ser o seu primeiro presidente; ARAÚJO,
COSTA, 2005: 139), Lamego e Armamar (1957), Meda (1958), Freixo de Numão e Pegarinhos (1959), Sabrosa, Sanfins
do Douro, Alijó e Foz Côa (1960), Trevões (1961), Freixo de Espada à Cinta, São João da Pesqueira e Medrões (1962),
Cumieira, Santa Marta de Penaguião e Torre de Moncorvo (1963), Vila Flor (1964), Murça e Vale de Teja (1965).
119
ROSEIRA, 1992: 129.
120
ROSEIRA, 1992: 129.

153
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Assim, as medidas tomadas pelo Estado tiveram efeitos reduzidos na situação ­social
duriense. Conforme refere Gaspar Martins Pereira, «só a partir de meados dos anos
­sessenta, acompanhando a conjuntura geral de crescimento económico, o vinho do Porto
conheceu uma notável expansão comercial», em consequência do aumento dos v­ olumes
comercializados, à diversificação de tipos produzidos e de mercados e à subida dos p
­ reços.
Contudo, segundo o mesmo autor, «esta fase de recuperação do sector do v­ inho do Porto
ocorreu num contexto de perda e desestruturação regional», ­marcado pela ­guerra colo‑
nial, surto de emigração e a «atracção urbana», que tiveram como conse­quência o despo‑
voamento de «muitas aldeias de uma parte valiosa da sua população activa»121.
A população do Douro «está em decréscimo quase constante»122 desde o início
da década de 1960, «período em que se intensificaram os movimentos migratórios
para os países do centro da Europa»123. A perda de população, estimada em cerca de
20% de 1960 para 1970124, acarretou «impactos fortíssimos na vida económica e social»
do ­Douro: «a falta de mão-de-obra pressionou a elevação dos salários, mas também
a maqui­nização dos trabalhos mais pesados (como as surribas) e a adopção de novas
formas de ­plantio da vinha, em que os patamares separados por taludes substituíram os
socalcos e os respec­tivos muros de suporte, iniciando uma transformação, em muitos
casos radical, da paisagem do Douro»125.

REFLEXÕES FINAIS E PERSPECTIVAS


Moveu-nos, neste estudo, uma particular atenção à acção da natureza e da cultura que
constitui a paisagem duriense, em que permanecem latentes o trabalho obscuro dos
­homens e a espessura dos espaços-tempos do ser histórico com que história e literatura
nos desafiam e impulsionam.
Observou-se ética e estética ficcional em novos dispositivos de tratamento formal,
tendo em atenção a matéria histórica que paira nos textos literários e abre para a reflexão
do que se herdou do passado face ao qual há uma dívida que a literatura não vai saldar,
mas cuja compreensão permite ressignificar as relações de dívida/responsabilidade com
a nossa história.
Obviando esquecimentos recorrentes126 quanto ao património literário da ­paisagem
cultural duriense, destacamos para análise diferenciada, mas complementar, o capítulo
Duas gotas de água, sobre a região do Douro da obra brandoniana Portugal Pequenino,
em co-autoria, e Roteiro Sentimental: Douro, conjunto de crónicas de viagens de Manuel
Mendes, narrativas literárias de valor documental.

121
PEREIRA, 2003: 56-57.
122
BARRETO, 1993: 71.
123
RAMOS, 2019: 393.
124
Cf. PEREIRA, 2003: 56-57.
125
PEREIRA, 2003: 56-57.
126
Cf. LEITÃO, 2017: 579-599.

154
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

Como se demonstrou, essas narrativas de «percursos na paisagem, memória do


corpo sobre a terra»127, entendidas como evocações literárias e testemunhos histó­
ricos, indo além de significações tradicionais da paisagem cultural duriense, revigoram
os ­estudos sobre esta «paisagem-memória»/«paisagem-trabalho», numa dimensão de
­crença ético-estético-política e escrita de rastros, vestígios e espectros que fazem com
que as vozes dos desaparecidos e das vítimas não sejam só arquivadas na memória
­colectiva, mas ecoem de forma viva.
Por isso, em vez de se pretender esgotar as múltiplas e profícuas chaves interpreta­
tivas das duas obras literárias e documentais sobre o Alto Douro Vinhateiro, no século XX,
a partir de seu reconhecimento como património mundial, tentou-se enraizar a sua
­análise reflexiva, aproximando-nos do debate do «indecidível», aquilo que, no pensa­
mento derridiano, assombra a ficção e a história de forma subtil e velada. Daí a nossa
opção também por uma leitura fecunda no entrecruzar da espectralidade de J. Derrida,
em Espectros de Marx, com a escrita espectral de Raul Brandão e as crónicas neo-realistas
de Manuel Mendes, textos fragmentários e sedimentares do Douro que os dois escritores
dedicam aos «filhos dos outros» e aos jovens filhos de amigos durienses, num sentir de
responsabilidade da/com a memória e herança geracional. «Destitui-se, então, a imagem
de um passado linear e rememorado em sua totalidade para dar lugar ao […] compro‑
misso ético de testemunhar para impedir que se calem os mortos»128.
Assim, ao tratar do passado como motor da problematização histórica, recorreu-se
à ideia de espectros, fantasmas, ruínas, vestígios e fragmentos, reconhecendo que tais
noções expressam uma linha de força no pensamento da modernidade tardia forte­
mente disseminada ao longo do século XX, com prolongamentos na nossa contempora‑
neidade, como se procurou perscrutar na análise dos textos ficcionais e históricos estu­
dados. Porém, a melhor forma de se compreender a diversidade, complementaridade
e relevância dessas narrativas literárias e documentais sobre o Douro é, antes de mais,
lê-los e fruí-los com inspiração à altura da originalidade e valor patrimonial próprios.
Na tendência de se recuperar o lastro revigorante de um outro desenvolvimento
cultural sustentado nos rastros de um passado que ainda reverbera na nossa ­existência,
em osmose de espaços-tempos do ser histórico que palpita nos textos analisados,
foi possível percepcionar uma espessura sedimentar ética, estética e sensorial da
­paisagem cultural do Alto Douro Vinhateiro — Património Mundial, em suas identi­
dades partilhadas pelas gerações presentes e vindouras.
Numa compreensão complexa e abrangente como a que aqui se ensaiou, o Alto
­Douro Vinhateiro — Património Mundial, real ou imaginário, oferece aos ­estu­diosos
­novas pistas de abordagem que não esgotam a simbologia da sua tessitura, nem o

127
CARNEIRO, 1982.
128
DIAS, 2017: 41-51.

155
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

c­arácter multifacetado das suas múltiplas experiências históricas, representações lite­


rárias e c­ ulturais. Daí que os obstáculos e desafios socioculturais, com que hoje se ­debate,
em seus «usos», limites e potencialidades, tenham de ser compreendidos através da
­«potência política da literatura»129.

BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Fernando Bianchi de (2002). O Alto Douro Vinhateiro, uma paisagem cultural evolutiva e viva.
«Douro — Estudos & Documentos». VII:13, 143-152.
ARAÚJO, Jorge Filipe de; COSTA, Miguel Alexandre (2005). A Adega Cooperativa de Favaios: os antece­dentes
e os primeiros anos de laboração (1956-1960). «Douro — Estudos & Documentos». 20, 133-152.
BAKHTIN, Mikhail (1988). Questões de Literatura e de Estética: a teoria do romance. São Paulo: Ed. UNESP.
BAKHTIN, Mikhail (2010). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes.
BARBOSA, Márcia Helena Saldanha (2007). O Cronotopo e a inserção da história na narrativa de Dyonélio
Machado. «Revista de História e Estudos Culturais». 4:4, 1-9.
BARRETO, António (1993). Douro. Lisboa: Edições Inapa.
BARRETO, António; CARVALHO, Manuel (2016). O vinho no tempo de Guerra. O Dão, o Douro e os Vinhos
Verdes nas fotografias da Casa Alvão. Porto: Público.
BRANDÃO, Maria Angelina (1959). Um coração e uma vontade: Memórias. Coimbra: [s.n.].
BRANDÃO, Maria Angelina; BRANDÃO, Raul (1930). Portugal Pequenino. Lisboa: [Edição de autores].
BRANDÃO, Maria Angelina; BRANDÃO, Raul (1985). Portugal Pequenino. Lisboa: Eu.
CARNEIRO, Alberto (1982). Percursos na paisagem (memória de um corpo sobre a terra). In Exposição de
Alberto Carneiro. Lisboa: Galeria Quadrum. [Consult. 16 Out. 2022]. Disponível em <https://gul‑
benkian.pt/cam/works_cam/percursos-na-paisagem-memoria-do-corpo-sobre-a-terra-154246/>.
CARREIRA, Maria de São Luís da Silva (2012). Marcas de água: Arquivo Histórico Parlamentar (Monarquia
Constitucional 1821-1910). Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Dissertação de
mestrado.
CASTILHO, Guilherme (2006). Vida e Obra de Raul Brandão. Lisboa: INCM.
CHARTIER, Roger (1990). Introdução. Por uma sociologia histórica das práticas culturais. In CHARTIER,
Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, pp. 13-28.
CHARTIER, Roger (2001). Cultura Escrita, Literatura e História. Porto Alegre: ARTMED Editora.
COMPAGNON, Antoine (2021). Les relations de la littérature et de l’innovation. In PAVIE, Xavier. Imaginer
le monde de demain. Paris: Maxima, pp. 151-171.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1990). Kafka. Por una literatura menor. México: Era.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (1992). Conversações (1972-1990). São Paulo: Ed. 34.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix (2001). ¿Qué es filosofía? Barcelona: Editorial Anagrama.
DIAS, Felício Laurindo (2017). Espectros de Derrida na ficção brasileira contemporânea: 1964 e seus
­fantasmas consistentes nas obras A Resistência, de Julián Fuks, e Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar.
«Cadernos Literários». 25:1, 41-51.
Dicionário Cronológico de Autores Portugueses (1994). Lisboa: Publicações Europa América; Instituto
­Português do Livro e das Bibliotecas, vol. III.
DOMINGUES, Álvaro; SOTTO MAYOR, João Paulo (2009). Douro à la Carte. Peso da Régua: Edições de
Risco; Museu do Douro.

129
DELEUZE, GUATTARI, 1992: 213.

156
MARCA DE ÁGUA DO DOURO PATRIMÓNIO MUNDIAL: TESTEMUNHOS HISTÓRICOS E EVOCAÇÕES LITERÁRIAS
EM MARIA ANGELINA/RAUL BRANDÃO E MANUEL MENDES

FAUVRELLE, Natália (2007). Formas de armação do terreno no Alto Douro Vinhateiro: protecção e gestão da
paisagem. «População e Sociedade». 13, 87-96.
FAUVRELLE, Natália (2019). A evolução da paisagem. In GUICHARD, François; ROUDIÉ, Philippe;
­PEREIRA, Gaspar Martins, coords. O vinho do Porto e o Douro no século XX e início do século XXI.
Porto: Edições Afrontamento, pp. 363-384. Vol. 5 de História do Douro e do vinho do Porto.
FIORIN, José Luiz de (2006). Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática.
GUICHARD, François; ROUDIÉ, Philippe; PEREIRA, Gaspar Martins, coords. (2019). O vinho do Porto e o
Douro no século XX e início do século XXI. Porto: Edições Afrontamento. Vol. 5 de História do Douro
e do vinho do Porto.
LAGE, Maria Otília Pereira (2018a). Durante a Guerra, «Memórias» de Raul Brandão: a participação de
­Portugal na Grande Guerra (1914-1918). Aproximação a uma alegorização da história. In M ­ OREIRA
Fernando; RIBEIRO, Orquídea; PIMENTA, Susana, coords. Portugal na (e no tempo) da Grande
Guerra. Vila Real: UTAD, pp. 148-162.
LAGE, Maria Otília Pereira (2018b). Um caso de fronteira no «Douro Novo»: Carrazeda de Ansiães. Para a
história do vinho do Porto. Porto: Edições Afrontamento; CITCEM.
LE GOFF, Jacques (1984). Documento/Monumento. In Enciclopédia Einaudi. Lisboa: INCM, vol. I.
LEITÃO, Isilda (2017). Viajar pela paisagem do Alto Douro Vinhateiro — turismo, literatura e arte. «Interna‑
tional Journal of Scientific Management and Tourism». 3:1, 579-599.
LOPES, Óscar (1990). Cifras do tempo. Lisboa: Editorial Caminho.
MACHADO, Irene A. (1996). Texto como enunciação. A abordagem de Mikhail Bakhtin. «Língua e Litera‑
tura». 22, 89-105.
MAGALHÃES, Lucilha de Oliveira. (2007). Introdução ao pensamento de Bakhtin. «Locus: revista de
­História». 13:1, 210-215.
MARTINS, Nuno Ornelas (2018). As Ilhas Desconhecidas de Raul Brandão: Para além das notas e paisagens.
In Raul Brandão 150 anos. Porto: Câmara Municipal, pp. 54-63.
MENDES, Manuel (2002). Roteiro Sentimental, Douro. Porto: Edições Afrontamento; Peso da Régua: M ­ useu
do Douro.
OLIVEIRA, Célia; REYNAUD, Maria João (2019). Raul Brandão: Cartas a Maria Angelina. Guimarães:
Sociedade Martins Sarmento.
PATO, João; SCHMIDT, Luísa; GONÇALVES, Maria Eduarda, orgs. (2013). Bem Comum: Público e/ou
­privado? Lisboa: ICS-UL.
PEIXOTO, Fernando (2019). O triângulo corporativo. In GUICHARD, François; ROUDIÉ, Philippe;
­PEREIRA, Gaspar Martins, coords. O vinho do Porto e o Douro no século XX e início do século XXI.
Porto: Edições Afrontamento, pp. 186-224. Vol. 5 de História do Douro e do vinho do Porto.
PEREIRA, Gaspar Martins (2003). Um vinho com história. In PEREIRA, Gaspar Martins, coord. O vinho do
Porto. Porto: IVDP, pp. 37-61.
PEREIRA, Gaspar Martins (2021). Com um cálice de «Torga». In MORAIS, Maria da Assunção Anes,
org. Fragas. Homenagem a Miguel Torga nos 25 anos da sua morte. Chaves: Alecrim & Alfazema,
pp. 298-306.
PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio Morais (2001). Memória do Rio. Para uma história da nave-
gação no Douro. Porto: Edições Afrontamento; Instituto de Navegabilidade do Douro.
PIRES, Vera Lúcia; KNOLL, Graziela Freiner; CABRAL, Ederson (2016). Dialogismos e polifonia: dos
­conceitos à análise de um artigo de opinião. «Letras de Hoje». 51:1, 119-126.
RAMOS, Luís (2019). A situação actual do Douro: problemas e desafios. In GUICHARD, François; ­ROUDIÉ,
Philippe; PEREIRA, Gaspar Martins, coords. O vinho do Porto e o Douro no século XX e início do
­século XXI. Porto: Edições Afrontamento, pp. 385-431. Vol. 5 de História do Douro e do vinho
do Porto.

157
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

REIS, José Carlos (2011). O tempo histórico como «representação intelectual». «Fénix — Revista de História
e Estudos Culturais». 8:2, 1-21.
REYNAUD, Maria João (1995). Raul Brandão: Ficção e Infância. «Revista da Faculdade de Letras: Línguas
e Literaturas». XII, 233-243.
REYNAUD, Maria João (2019). Algumas reflexões por Maria João Reynaud. In OLIVEIRA, Célia;
­REYNAUD, Maria João. Raul Brandão: Cartas a Maria Angelina. Guimarães: Sociedade Martins
­Sarmento, pp. 33-39.
RHEINEBERGER, Hans-Jorg (2013). Iterations. Paris: Diaphanes.
RIBEIRO, António Sousa; RAMALHO, Maria Irene (2011). Identidade e Nação na(s) poética(s) da moder-
nidade: Os casos de Fernando Pessoa e Hugo von Hofmannsthal. In SANTOS, Boaventura. Entre ser e
estar: Raízes, percursos e discursos da identidade. Porto: Edições Afrontamento, pp. 411-435.
RODRIGUES, Ernaldina Sousa Silva (2013). Cronotopo: algumas reflexões. «Indícios». [Consult. 4 ago.
2018]. Disponível em <http://ernaldina.blogspot.pt/2013/06/cronotopo-algumas-reflexoes.html>.
ROSA, Vasco, org. (2013). A pedra ainda espera dar flor — Dispersos. Lisboa: Quetzal.
ROSEIRA, Luís (1992). Uma vida pelo Douro. Porto: Edições Asa.
SENA, Jorge de (1978). Estudos de Literatura Portuguesa. Lisboa: Edições 70.
SEQUEIRA, Carla (2000). A questão duriense e o movimento dos paladinos, 1907-1932. Da Comissão de
Viticultura Duriense à Casa do Douro. Porto: GEHVID/CIRDD.
SEQUEIRA, Carla (2011). O Alto Douro entre o livre-cambismo e o proteccionismo. A questão duriense na
economia nacional. Porto: Edições Afrontamento; CITCEM.
SGARD, Anne (2011). Le partage du paysage. Géographie. Grenoble: Université de Grenoble.
TORGA, Miguel (1995 [1949]). Diários. Vol. IV. Coimbra: [Edição de autor]. 2 vols.
TORRES, Alexandre Pinheiro (1983). O Movimento Neo-realista em Portugal na sua primeira fase. 2.ª ed.
Lisboa: Ministério da Educação Instituto de Cultura e Língua Portuguesa.
VIÇOSO, Vítor Pena (1959). Ler hoje o Neo-realismo. «Vértice». 187, 172.
VIÇOSO, Vítor (1999). A Máscara e o Sonho: Vozes, Imagens e Símbolos na Ficção de Raul Brandão. Lisboa:
Cosmos.

158
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS
VITIS VINIFERA,
VINIFERA,
TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO
DA PAISAGEM DURIENSE EM DOURO:
PIZZICATO
PIZZICATO E
E CHULA
CHULA, DE A. M. PIRES CABRAL
ISABEL MARIA FERNANDES ALVES*

Resumo: Esta proposta tem como âmago a análise de um dos volumes de poesia de A. M. Pires Cabral,
Douro: Pizzicato e Chula, obra que recebeu o Prémio D. Dinis, em 2006. Através dos poemas aí inscritos,
e tendo como referência o projeto LITESCAPE.PT, pretende-se sublinhar o interesse da literatura para a
compreensão da paisagem, uma vez que, através da linguagem literária, se manifestam não apenas o
território, em pormenores topográficos, climáticos, orográficos e botânicos, mas também o modo como
as gentes habitam e sonham esse mesmo lugar. Esta proposta argumenta igualmente que Douro:
­Pizzicato e Chula veicula uma perspetiva poética e singular, não deixando, contudo, de constituir um
exemplo da responsabilidade pública que a Convenção Europeia para a Paisagem tem fomentado,
pois a paisagem poética é também ela uma forma de promover e proteger a paisagem duriense,
­preservando o seu «carácter, qualidades e valores».
Palavras­‑chave: Douro: Pizzicato e Chula; A. M. Pires Cabral; paisagem; literatura; Douro.

Abstract: This proposal focuses on A. M. Pires Cabral’s Douro: Pizzicato e Chula, a work of poetry that
received the D. Dinis Prize in 2006. Through the poems, and with reference to the LITESCAPE.PT project,
we intend to underline the interest of literature in understanding the landscape, since through literary
language the territory is manifested in topographic, climatic, orographic and botanical details, but also the
way people inhabit and dream about that place. This proposal also argues that Douro: Pizzicato e Chula
conveys a poetic and unique perspective, whilst remaining an example of the public responsibility that the
European Landscape Convention has fostered, since the poetic landscape is also a way of promoting and
protecting the Douro landscape, preserving «its character, qualities, and values».
Keywords: Douro: Pizzicato e Chula; A. M. Pires Cabral, landscape; literature; Douro.

1. PAISAGEM E LITERATURA — PRESTAR ATENÇÃO


ÀS FORMAS E SENTIDOS DO MUNDO
Para pensar a paisagem, recorremos ao pensamento de Gonçalo Ribeiro Telles. À ­pergunta
sobre qual o seu significado, responde: «A paisagem é tudo. É um d ­ iagnóstico de uma
orga­nização humana do território. A paisagem não é natural. É construída com ­elementos
naturais. É do Homem, como uma casa. O Homem faz a paisagem com ­materiais vivos
e com solo duro»1. Acrescenta ainda: «A paisagem é a expressão do espaço que é vivido
pelo Homem. É a imagem, a expressão física, a visualização do espaço que é vivido pelo
Homem»2. Por seu lado, o Douro, descreve-o deste modo:

* Professora auxiliar da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) e investigadora do CEAUL (Centro de
Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa).
1
TELLES, 2004.
2
TELLES, 2004.

159
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Quando olho para o Douro vejo fundamentalmente um presépio de socalcos


lindís­simos a subir as encostas, coroadas por uma mata, que vão cair sobre um rio
cheio de salgueiros. Entramos no Douro e vemos aquela majestosa linha dos socalcos,
com a vinha encarniçada no outono e os castanheiros lá em cima. Aquilo foi feito e não
se pensou em paisagem. Mas o resultado está certo. As vidas e as técnicas ilustram-se3.

Para Gonçalo Ribeiro Telles a paisagem é uma entidade viva e dinâmica, r­ esultando
sempre, como refere em relação ao Douro, do diálogo entre circunstâncias naturais
— orográficas, climáticas, botânicas — e a realização humana. Ou seja, se por um
lado entender um lugar é começar por compreender a geografia desse lugar, por o ­ utro
lado, essa entidade que se constitui paisagem é sempre o resultado do diálogo entre o
­elementar e o humano. Também o geógrafo Orlando Ribeiro estudou a paisagem de
Portugal, enten­dendo-a como «marcada pela tonalidade comum de factos físicos
e ­humanos que se relacionam entre si»4. O seu pensamento concorreu, além disso,
para a compreensão de um país dividido entre influências atlânticas e mediterrâneas,
sendo que, segundo Orlando Ribeiro, estas últimas são preponderantes, influenciando
clima e solo, o manto vegetal, a economia, a organização social. É também seu o olhar
que ­convida a compreender a presença da vinha no Douro quando escreve:

Foi o homem, transformando, a partir do século XVII, os matagais que cobriam


as vertentes do Douro nos vinhedos onde se cria o porto, e difundindo, depois da
filoxera, a oliveira e a amendoeira em todas as baixas, que trouxe maior reforço à
meridionalidade da região. Para a vinha primeiramente, mas também para aquelas
árvores se ergueu, na escadaria dos geios, uma das mais extraordinárias paisagens
rurais construídas que se conhecem no mundo5.

O geógrafo alude ainda a outros elementos que caracterizam a paisagem duriense:


o terreno de xisto, os mortórios ou socalcos abandonados desde esse tempo e ­invadidos
pelo mato, a presença de oliveiras e amendoeiras, as quintas, a cardenha. Também na obra
­Portugal — o Sabor da Terra, uma obra que reflete sobre as especificidades das ­regiões de um
ponto de vista histórico e geográfico, se refere que o Douro, «nome de rio que t­ ransbordou
da água para as margens»6, é um dos mais singulares espaços do ­mundo, sendo o vinho
«o fulcro de todas as suas singularidades»7. De referir ainda, pela intensidade do ­desenho
das palavras que ali adquirem o «Rio Doiro» e a região, o texto de Miguel Torga em P ­ ortugal.

3
TELLES, 2020.
4
RIBEIRO, 2001: 30.
5
RIBEIRO, 1991: 151-152.
6
MATTOSO, DAVEAU, BELO, 2010: 190.
7
MATTOSO, DAVEAU, BELO, 2010: 195.

160
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL

Este autor di-lo de forma enxuta e crua: «não se conhece o doiro p ­ rocurando ­apenas a
beleza que se vislumbra dos miradouros e o ­êxtase dos seus horizontes. Antes, é preciso
entender o que é ser criador de vida nesse chão árido e hostil» e aí «dar uma ­resposta
quoti­diana à morte, transforma[ndo] cada ravina em parapeito de ­esperança e cada
­bagada de suor em gota de doçura»8. É também neste breve texto que o autor de P ­ ortugal
resume o que de mais elevado se pode escrever sobre o rio e a região: «é, no mapa da
­pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que ­podemos ­assombrar
o ­mundo»9. Assim, sobre esta reflexão, que se dedica a olhar um dos autores literários do
Douro, pesa a responsabilidade de perspetivar uma região que é Patri­mónio Mundial da
Humanidade, ou seja, sopesa sobre estas nossas palavras a tenta­tiva de ­perceber de que
modo ­«materiais vivos», «solo duro» e atividade humana se arti­culam, duplicando essa
paisagem física s­ ingular num lugar literário onde, a par do t­ rabalho ­estético da linguagem,
vivem signifi­cados que densi­ficam o(s) sentido(s) dessa região. No seguimento do que foi
referido, quando nos referimos à paisagem estamos, pois, a pensá-la como um ­elemento
que ­«exprime as facetas sensoriais dos territórios» e que deve ser assumida como «um
sistema identitário […] um sistema de significados ­através do qual o sistema social é
­comunicado, reproduzido, experimentado e explo­rado»10.
Instalados no território de xisto, olhemos, por momentos, o território da literatura.
São várias as perspetivas que apontam os benefícios de um encontro entre as áreas da
­paisagem e da literatura. Os lugares geográficos são usados pelos roman­cistas e poetas
para traçar ideias e valores, oferecendo ao leitor um pórtico para um melhor enten‑
dimento do território e das gentes de uma região ou país, ou seja, de uma identi­dade.
Afigu­ra-se-nos relevante a ideia de que ler a paisagem é um exercício de herme­nêutica,
pois oferece e reflete «crenças e valores da sociedade, traduzem sentimentos, valores e
fantasias face ao ambiente, são herança intelectual e espiritual»11. A par deste pensa­
mento, subli­nhamos também a perspetiva de Maria Lúcia Lepecki sobre a p ­ aisagem lite­
rária, lembrando a estudiosa que esta chega ao leitor através da retórica do ­discurso,
através de decisões de quem olha, de quem secciona, de quem prioriza «um horizonte de
perceção»12. Neste sentido, o escritor é um criador, seccionando e percecionando o terri­
tório físico para mostrar não apenas os detalhes que caberiam dentro da obser­vação do
geógrafo, por exemplo, mas sobretudo para chamar a atenção para as p ­ alavras com que
recorta a paisagem, revelando os valores e os afetos vividos aquando do e­ ncontro entre o
ser humano e o mundo natural, uma relação que, segundo ­Claudio Guillén, ­concede ao

8
TORGA, 1980: 47.
9
TORGA, 1980: 47.
10
ALVES, 2001:74.
11
SALGUEIRO, 2001: 46.
12
LEPECKI, 2001: 147.

161
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

indivíduo a possibilidade de «transcendência»13. Assim enten­dida, a ­paisagem é ­«origem


excecional de sentido»14, oferecendo um campo privilegiado para o exercício da imagi­
nação, figurando, desse modo, uma «zona de otreda»15, onde o ser humano ­procura
descobrir sentidos e valores «que justifican el mundo y su propria pertinência a él».
Justi­ficando o interesse da leitura da paisagem feita através da sensi­bilidade dos ­poetas,
Guillén acrescenta que estes procuram nela não tanto o detalhe descritivo ou a mera
experiência visual, mas, antes, a sua centralidade, a sua verdade consubstancial, ou seja,
a paisagem pensada como lugar ontológico, «cualitativamente y en profun­didad»16.
Em síntese, paisagem e literatura assumem-se aqui como espaços de possibilidade e
conhe­cimento, bem como modos de prestar atenção às formas e sentidos do mundo.
Neste momento introdutório, é ainda relevante salientar que, em termos de meto­
dologia, temos como referência o trabalho realizado no projeto LITESCAPE.PT — Atlas
das Paisagens ­Literárias de ­Portugal Continental, que pretende sublinhar o interesse da
paisagem lite­rária para a compre­ensão de uma região, de um território, de um país,
e que baseia a ­análise desta­cando os aspetos que, através da linguagem, são ­manifestação
do território — porme­ nores topográficos, climáticos, orográficos e botânicos —,
pois estes revelam não apenas o modo como as gentes habitam o lugar, mas a forma como
o sonham17. Posicio­nados neste patamar em que território e lugar literário se ­influenciam
mutuamente e procu­rando mostrar de que forma a geografia e o destino humano se
entre­laçam, dedi­quemos atenção ao espaço literário que aqui nos convoca: Douro:
­Pizzicato e Chula, obra de ­poesia de A. M. Pires ­Cabral, publicada em 2004. Esta resulta
de uma v­ iagem de barco no Douro, entre o ­Porto e Barca de Alva, em setembro de 1999,
a ­convite do Instituto de Navegabilidade do ­Douro, e a sua estrutura desenvolve-se em
­redor dessa viagem: pelo rio, olhando as ­margens e perscrutando as gentes — os ­humildes
que ­trabalham com as mãos o corpo da paisagem, e os aristocráticos que lhe emprestam
talento e c­ iprestes herál­dicos. Uma viagem física, mas também emocional; uma viagem
que se faz ao l­ongo do rio, mas ­também pelas emoções do poeta, que ­olhando o rio e as
suas margens daí retira a sua expe­riência poética. Além disso, a partir desse encontro
singular com a p ­ aisagem, o p
­ oeta regista também a memória do que ali permanece das
múltiplas e ­longas ­inter-relações entre o indivíduo com esse território.

13
GUILLÉN, 1992: 89.
14
GUILLÉN, 1992: 89.
15
GUILLÉN, 1992: 95.
16
GUILLÉN, 1992: 97.
17
Disponível em <https://ielt.fcsh.unl.pt/Projetos/atlas-das-paisagens-literarias-de-portugal-continental/>.

162
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL

2. «— PARA QUE DIABO, DOURO, QUERERÁS / AS INTRUSAS /


PALAVRAS INQUINADAS DO POETA?»
O Douro tem sido representado por autores tais como Guerra Junqueiro, Miguel ­Torga,
João de Araújo Correia e António Cabral. Deste último poeta, e na obra Poemas ­­Durienses,
publicada em 1963, alguns dos versos resumem a ligação entre os ­durienses e a paisagem:
«Estes montes que se dobram e desdobram como um ribombo […] / ­Montes parados e
­lançados, / doridos e convulsos, curvos, / recurvos e aturdidos! […] / Estes montes expli‑
cam-nos»18. De forma lapidar, sintetiza-se num outro poema: «Aqui, D ­ ouro. O paraíso /
Do vinho e do suor» . As perspetivas artísticas sobre a paisagem duriense são unâ­nimes
19

em realçar que esta resulta de uma singular mescla de beleza natural e de trabalho, t­ endo-se
afirmado como uma imagem cultural forte, inspirando autores, pintores e fotógrafos,
os quais, repetidamente, têm tentado captar a sua singular imponência e «sobre­tudo a sua
fabulosa cor, feita de verdes intensos ou anilados no verão e de vermelhos e dourados no
outono»20. A. M. Pires Cabral, autor que, além de quase duas dezenas de obras de poesia,
tem publicado romances, ensaios e crónicas, escreve, em O meu D ­ ouro, um dos capítulos
da coletânea Por Esta Terra Adentro, que o Douro da sua memória, «esse que tinha estados
de espírito e uma alma atormentada por um intransitivo desassossego, e o Douro atual,
de grandes massas de águas mansas, não é já o mesmo»21. No entanto, sublinha, o maravi‑
lhamento acontece sempre que observa a paisagem duriense:

combinando um número relativamente pequeno de espécies vegetais — a ­vinha,


a oliveira, a amendoeira, as carvalhas e o mato rastiço — produz uma infinidade de
panoramas. Os vinhedos extensos, baixando das alturas até quase à flor das águas,
dão lugar, às vezes, a cenários lunares de aridez total onde tudo parece ser pedra
e ­arbustos maninhos, para logo reaparecerem, agora em montes mais boleados,
­adoçados, sem ímpetos nem acrobacias22.

Perante o assombro dessa paisagem, o escritor interpela o leitor: «como foi p­ ossível
negligenciar tão longamente esta riqueza natural que, em tempos de turismo, de v­ iagens e
de apetência por saber mais do mundo, pode ser transformada numa preciosa ­mais-valia
do mais belo vale vinhateiro de Portugal, e se calhar do mundo»23.
É neste território demarcado pela beleza natural, pelas vinhas e pelo suor h­ umano
que entramos em Douro: Pizzicato e Chula, obra que é fruto, segundo Manuel de F ­ reitas,

18
CABRAL, 2017: 15.
19
CABRAL, 2017: 98.
20
MATTOSO, DAVEAU, BELO, 2010: 202.
21
CABRAL, 2018: 55.
22
CABRAL, 2018: 59.
23
CABRAL, 2018: 55.

163
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

«de uma mestria comparável na nossa tradição, ao legado trovadoresco, à “­cantiga”


de João Roiz de Castelo Branco ou à música tangível de Eugénio de Andrade e M ­ ário
­Cesa­riny» . O mesmo poeta assinala também que Douro: Pizzicato e Chula tem no
24

­centro uma viagem, ou melhor, uma viagem interior e exterior, que se interpenetram
«na ­medida em que o rio se conforma àquilo a que, em retórica, se chama silepse:
algo que nos surge, simultaneamente em sentido próprio e figurado»25. É neste ­sentido
que se percebem melhor as palavras de outro poeta e crítico, Pedro Mexia, quando,
sobre esta obra de A. M. Pires Cabral, recorda: «é indiscutível que se trata de um
poemário sobre o “país das uvas navegável”, mas o rio, diz o poeta, é ao mesmo ­tempo
um lago, um ­espelho e uma estrada. Ou, de outro modo, um passeio, uma revelação,
uma ­travessia»26. ­Acerca da viagem e das suas intenções, o leitor pode ler logo no
­primeiro poema: «O navio dos loucos: Sabe-se porém que estes poetas / abrasados nos
mais canoros zelos / têm uma oculta segunda intenção: // fazer a derradeira tentativa /
de também se deci­frarem a si mesmos, / e não apenas o que o cerne do rio / retém por
nomear»27. Insis­timos, ­porém, na ideia de que o rio metafórico, ou seja, como ideia de
destino — aspeto ­fulcral em ­«Elegia do Douro», um conjunto de poemas sobre o rio em
As Têmporas da ­Cinza (2008) —, é, nesta nossa reflexão, um aspeto menos considerado,
pois, neste texto, procu­ramos privilegiar sobretudo considerações que, na expressão de
António ­Guerreiro, incidem sobre «uma grandiosa configuração de pequenos sinais»
em redor da força, grandeza e beleza do Douro28.
Para título deste artigo escolheu-se o poema «Douro, S.A.», porque traduz alguns
dos mais destacados participantes na criação, gestão e preservação da região. O poema,
além de enumerar particularidades associadas ao Douro, é também um olhar irónico
­sobre o papel dos poetas na sociedade, mas, neste momento, interessa-nos salientar o
que ao Douro diz respeito: «Três sócios. // Deus entrou com o xisto, / a meteorologia
/ e a Vitis vinifera. / O inglês (e similares), / com o paladar e o talento / colonizador.
/ O indígena, com os braços, com as mãos, / com as unhas (para arrebunhar a terra / em
momentos de maior lucidez), / com as glândulas sudoríparas / — e muitas ­vezes com o
corpo todo. // Investimento / equitativamente repartido, / como se vê. / (Os divi­dendos
é que nem por isso)»29. No poema, enumeram-se o solo, o clima, a vinha e dois dos
­principais protagonistas humanos do Douro, o trabalhador e o estrangeiro aristocrata,
este último o mesmo que, desde finais do século XVII, colhe os dividendos do fruto da
vinha. É a partir desta inscrição geográfica e humana que o poeta observa ora a água

24
FREITAS, 2004: 55.
25
FREITAS, 2004: 55.
26
MEXIA, 2004: 45.
27
CABRAL, 2004: 13.
28
GUERREIRO, 2006: 162.
29
CABRAL, 2004: 31.

164
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL

do rio, ora as suas margens, e que através da linguagem conotativa e concisa da poesia
­conduz o leitor através da orografia, botânica, fauna e construído humano que ­avista
do barco que o transporta Douro acima. O rio, vai-o repetindo ­sucessivamente, já não
é o mesmo da sua juventude, esse rio primitivo é agora «refém das memórias de ­outra
­geração: / ­quando era um ­ímpeto de ira / como um punhal tirado da bainha / ou ­pedra
arremessada contra vidro»30. Um rio que terá, segundo o poeta, perdido o «revol­toso
espí­rito»31 e que se vê agora parado entre barragens e eclusas, fazendo com que a viagem
se torne estranha­mente vertical e imagem de «desavinho da cepa ­copiosa»32. Porém,
é nessas águas que vivem o Barbus bocagei, a garça das grandes asas, o veloz ­pica-peixe,
que «­ depressa se confunde / na rama dos salgueirais»33. Ao longo da ­viagem, o ­sujeito
poético ora ­convida o leitor a baixar os olhos até às águas do rio, ora soli­cita a ­elevação
do olhar, anotando o «baço [d]os montes, o xisto, a sensual / curva dos geios»34,
o promon­tório de São ­Leonardo de Galafura. Em vez de olhar o rio do alto, como no
­poema de M ­ iguel Torga, a voz poética descreve esse lugar visto a partir da água: «­ visto
de ­profundis, / ­talvez se entendam melhor / as metáforas de ­Torga: com efeito, / o ­nauta
­celeste parece ir / à proa dum navio de penedos / e o mar em que n ­ avega / parece de
mosto, tal e qual» . Observam-se também locais como Pala e Valeira, «lugares tão f­ eitos
35

/ para a malha do silêncio»36, as hortas junto ao rio, «uma casa de quinta. // E junto
dela um cipreste», ­evocando «o vagaroso, / inábil fim de ­tantos»37. Repetidamente,
a voz p ­ oética insiste em reclamar para o território da linguagem a particularização da
­paisagem, essa que se ­define por «chavascais / que alternam com vinhedos»38 demo­
rando o seu olhar no ­território inconfundível dos mortórios: «A lembrança / da vinha
nos geios que ­perduram. / Injúrias / da pequena criatura semelhante / aos deuses da
­desordem. // Um clamor ainda audível, um / conglomerado de pragas. / O vinho mori­
bundo. // Lugares de estevas e abominação»39. Mas nos poemas de Douro: Pizzicato e
Chula não figuram apenas os elementos naturais; também alguns dos vultos emblemá‑
ticos da sociedade duriense surgem a desenhar a paisagem social. Um poema em parti­
cular, «A morte da Ferreirinha», refere um acontecimento que terá sido uma «humi­
lhação para o Douro dos pergaminhos»: «Do mesmo modo que à noite certas flores
/ por condolência com a ocultação do sol / cerram corolas, / a Quinta do Vesúvio como

30
CABRAL, 2004: 16.
31
CABRAL, 2004: 39.
32
CABRAL, 2004: 50.
33
CABRAL, 2004: 48.
34
CABRAL, 2004: 25.
35
CABRAL, 2004: 34. Referimo-nos ao poema «São Leonardo de Galafura», de Miguel Torga.
36
CABRAL, 2004: 45.
37
CABRAL, 2004: 55.
38
CABRAL, 2004: 60.
39
CABRAL, 2004: 33. Para uma ideia mais informada do que define o mortório, consulte-se a página da UTAD. Dispo‑
nível em <https://jb.utad.pt/ctematicas/mortorios_do_douro>.

165
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

que mirrou, / quando aquela que cuidava da casa, / punia os desaforos de criadas,
/ escri­turava, administrava, decidia / e marcava o dia de actuar / sobre as cepas, / se sentiu
indisposta em Entre-os-Rios»40.
Terminada a viagem física, o sujeito poético insiste na continuidade da viagem
­interior: «o repto do Douro escalda como / uma febre nas dunas. Repercute / nas
­têmporas, magoa / as vísceras da alma»41, querendo com isto salientar que, terminada a
travessia, o Douro continua dentro de si, construindo uma paisagem interior de montes
e de mágoa. Por outro lado, o seu labor de poeta faz o que tem a fazer, colher e escolher as
palavras que mais se aproximam da paisagem, valorizando-a e preservando-a. No poema
que dá título a esta reflexão, «Douro, S.A.», depois de nomear os três sócios na criação da
paisagem do Douro: Deus, o inglês e o indígena, refere-se aos poetas, esses que, «como
ratos, / vêm às migalhas do banquete»42. Em tom sarcástico, escreve que nenhum dos
três sócios vê mal na presença dos ratos, uma vez que estes roem «a parte meramente
/ imaterial», «inconsumptível» da paisagem, pois, «afinal de contas, a beleza / do D ­ ouro
é um recurso renovável» . O papel do poeta surge aqui ironicamente meno­rizado.
43

No entanto, a perceção da paisagem do Douro constitui o alicerce poético de Douro: Pizzi­


cato e Chula, o labor perseverante de um poeta que insiste na preservação da ­paisagem,
acolhendo-a e recriando-a nos versos que germina: «não há poema que valha o oboé
/ oculto na voz desta cautelosa / ave ribeirinha / que vai monologando numa ­língua
/ que os poetas desconhecem // — mas se obstinam em arremedar»44. O poeta t­ ambém
não desistiu de perscrutar e procurar entender a singularidade do destino da Vitis
­vinifera — ao mesmo tempo planta a alma da paisagem duriense —, conti­nuando,
­mesmo em obras posteriores, a interrogar-se sobre o seu corpo, forma e ­mistério:
«Em vez de ­furar o ar em busca de horizonte, / a videira ama o rés da terra, ­prefere a
­companhia / dos homens à das nuvens e das aves. // Prefigura dessa forma o vinho que
dará: // longo, ­alastrando, amparando-se / aos arames da consolação»45. A planta é aqui
transfor­mada em imagem do próprio poeta, preferindo, também ele, o «rés da terra»,
ou seja, fazer o seu labor poético a partir do que conhece e experiencia, a paisagem e os
homens que a habitam, amparando-se nos arames da consolação que a poesia oferece,
produzindo uma ­colheita poética perdurável e vivificante. Assim se justifica o interesse
das palavras do poeta: manter a paisagem duriense visível e legível, não sem descurar
a possibilidade de, em algum momento, o milagre e o mistério que a definem ficarem
encerrados nas palavras que compõe: «Rilho como um osso rijo / demais para os meus

40
CABRAL, 2004: 58.
41
CABRAL, 2004: 63.
42
CABRAL, 2004: 31.
43
CABRAL, 2004: 32.
44
CABRAL, 2004: 36.
45
CABRAL, 2019: 63.

166
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL

dentes ­decadentes / o desconcerto de me ver em pleno rio / — eu, que não sei nadar! —
/ a opor palavras contrafeitas / aos ruídos que salteiam este sítio / tão alegremente:
// água a chofrar nas ilhargas do barco, / algum pássaro insurrecto ao silêncio / gritando
pelo céu fora, / marulhar de vento / naquele renque de choupos». Embora «com tanto
rumor nativo, / com tanto rumor sadio», sim, o Douro precisa das «intrusas / palavras
inqui­nadas do poeta»46 para perdurar no tempo e na memória.

3. «APÓS A DIFÍCIL, EXAUSTIVA / CONTEMPLAÇÃO


DA PAISAGEM»: ALGUMAS CONCLUSÕES
Como se referiu, a estrutura de Douro: Pizzicato e Chula vive da viagem — a que
­começa na Régua e termina em Barca de Alva, lugar que o sujeito poético vê como
«O ­Douro no seu mais alto / e mais perpendicular»47 —, mas também de uma t­ ravessia
interior, que, no final da viagem, pressupõe uma missão que o poeta descreve ­deste
modo: «­ devolver / em vinte laudas aproximadamente / a água ao rio, a vinha aos ­socalcos,
/ o voo ­amplo das garças aos pauis, / o Douro ao Douro»48. Embora o ­sujeito poético
nos diga que t­entou fazer com que aqueles que viajavam ao seu lado (mas t­ambém
os leitores, que ­farão a v­ iagem depois) reparassem «em qualquer coisa do Douro:
­socalcos, fadigas, sombras, / um cardenho de xisto destelhado, / um pássaro em fuga
/ de que nem o nome se ­adivinha»49, também escreve que, «viajando embora por este
rio acima, / bem vistas as coisas, / é por mim abaixo que viajo»50. Dupla viagem que
termi­nará com a visão do chão da vinha, «lava / que nunca conseguiu arrefecer»51,
e com a convicção de que «o repto do Douro escalda como / uma febre nas dunas»52.
Defen­demos, pois, a ideia de que o leitor, percorrendo os poemas de Douro ­Pizzicato
e Chula e confron­tando-se com a linguagem concentrada, musical, metafórica ­própria
da poesia, está também a trilhar vias de conhecimento relativamente a uma ­paisagem
que não é a­penas física, mas que é aqui entendida como «identidade estética»,
ou seja, e como ­defende ­Paolo ­D’Angelo, uma entidade cujos valores estéticos, ­neste caso
veicu­lados pelo olhar do p ­ oeta, ­funcionam como «valores intersubjectivos, ­culturais,
histó­ricos», isto é, um meio «de identifi­cação cultural para uma comunidade, para um
­povo»53. Em ­relação à impor­tância da herme­nêutica da paisagem, esta é reconhecida
pela ­Convenção ­Europeia da ­Paisagem, sublinhando-se ali o valor da interdisciplina­
ridade na leitura da p ­ aisagem como algo evolutivo, dinâmico e em c­ ontínuo ­diálogo

46
CABRAL, 2004: 24.
47
CABRAL, 2004: 62.
48
CABRAL, 2004: 64.
49
CABRAL, 2004: 59.
50
CABRAL, 2004: 59.
51
CABRAL, 2004: 62.
52
CABRAL, 2004: 63.
53
D’ANGELO, 2012: 340.

167
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

com o ser humano. Uma ­paisagem de ­«extraordinário valor»54, como é o caso da


­paisagem cultural da ­vinha no Douro, deve ser antes de tudo preservada, como afirma
Álvaro Domingues:

O desafio é, agora, desenhar e implementar políticas de recuperação, valori­


zação e de protecção que conciliem os valores culturais herdados, e saibam interpretar
o sentido das mudanças e a melhoria das condições de vida das populações vistas não
como uma espécie de «figurantes de um museu vivo, ou de jardineiros da paisagem,
mas como co-actores principais da construção de um território cujo valor identitário
também terá que incluir o presente e um projecto de futuro55.

É neste sentido que a nossa proposta relativamente à relevância da linguagem lite‑


rária nessa preservação se foi construindo; no caso da literatura, esse trabalho faz-se ao
nível da consciencialização. Assim, desejavelmente, depois da leitura de Douro: Pizzicato
e Chula, o leitor acolherá de forma mais consciente a ideia de que cada um é responsável
pela paisagem que cria, preserva ou destrói.
Concluindo, Douro: Pizzicato e Chula, de A. M. Pires Cabral, resulta de «uma
­difícil, exaustiva / contemplação da paisagem»56, ou seja, de uma apreciação e sensibi‑
lidade ­individual perante a paisagem duriense, mas que vai resultando também num
olhar mais global sobre a paisagem como um todo, pois esta afigura-se como «uma
­auto-biografia colectiva e inconsciente que reflete gostos, valores, aspirações e medos»57.
Se, como argu­menta Gonçalo Ribeiro Telles, «o futuro da paisagem está intimamente
relacio­nado com o nosso futuro»58, concluímos que é necessário que a auscultação esté‑
tica da ­paisagem seja entendida como um valor na preservação da paisagem, sendo que
o olhar atento, observador e sensível do poeta ajuda a identificar e a intensificar a singu­
laridade da paisagem duriense, contribuindo para que os leitores de Douro: Pizzicato e
Chula desenvolvam afetividade para com essa paisagem. À semelhança do trajeto do
poeta, o leitor, viajando embora ao longo da obra, bem vistas as coisas, é por si mesmo
e pelo seu país que viaja. No fim da viagem, dirão com o poeta: «Abençoado Douro,
abençoada / alquimia do Douro!»59.

54
D’ANGELO, 2012: 341.
55
DOMINGUES, 2001: 64-65.
56
CABRAL, 2004: 53.
57
SALGUEIRO, 2001: 47.
58
TELLES, 2004.
59
CABRAL, 2004: 54.

168
«XISTO, METEOROLOGIA, VITIS VINIFERA
VINIFERA, TALENTO E MÃOS»: A REPRESENTAÇÃO DA PAISAGEM DURIENSE
EM DOURO: PIZZICATO E CHULA,
CHULA DE A. M. PIRES CABRAL

BIBLIOGRAFIA
ALVES, Teresa (2001). Paisagem — Em Busca do Lugar Perdido. «Finisterra. Revista Portuguesa de G
­ eografia».
XXXVI:72, 67-74.
CABRAL, António (2017). Poemas Durienses. Guimarães: Opera Omnia.
CABRAL, A. M. Pires (2004). Douro: Pizzicato e Chula. Lisboa: Cotovia.
CABRAL, A. M. Pires (2018). Por Esta Terra Adentro. Páginas Transmontanas. Lisboa: Âncora Editora.
CABRAL, A. M. Pires (2019). Frentes de Fogo. Lisboa: Edições tinta-da-china.
DOMINGUES, Álvaro (2001). A paisagem revisitada. «Finisterra. Revista Portuguesa de Geografía».
­XXXVI: 72, 55-66.
D’ANGELO, Paolo (2012). Repensar a Paisagem. In SERRÃO, Adriana Veríssimo, coord. Filosofia e Arquitec-
tura da Paisagem. Um Manual. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, pp. 333-346.
GUERREIRO, António (2006). Convite à Viagem. «Telhados de Vidro». 7, 161-168.
GUILLÉN, Claudio (1992). Paisaje y Literatura, o los Fantasmas de la Otredad. In VILANOVA, Antonio,
ed. Actas del X Congreso de la Asociación Internacional de Hispanistas. Barcelona: Promociones y
Publicaciones Universitarias, pp. 77-98. [Consult. 1 fev. 2022]. Disponível em <http://www.cervan‑
tesvirtual.com/nd/ark:/59851/bmc3j5d5>.
FREITAS, Manuel (2004). Água Morrente. «Revista Actual/Expresso». (26 jun. 2004) 55.
LEPECKI, Maria Lúcia (2001). A Mãe promíscua: sobre natureza e paisagem. «Finisterra. Revista Portuguesa
de Geografia». XXXVI: 72, 141-147.
LITESCAPE.PT — Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental. [Consult. 1 fev. 2022]. Dispo­nível
em <https://litescape.ielt.fcsh.unl.pt>.
MATTOSO, José; DAVEAU, Suzanne; BELO, Duarte (2010). Portugal. O sabor da Terra. Um retrato histó­
rico e geográfico por regiões. Lisboa: Temas e Debates; Círculo de Leitores.
MEXIA, Pedro (2004). Um auto-retrato com rio ao fundo. «Diário de Notícias». (14 mai. 2004) 45.
PORTUGAL. Política Nacional de Arquitetura e Paisagem. Convenção Europeia da Paisagem. [Consult. 1 fev.
2022]. Disponível em <https://pnap.dgterritorio.gov.pt/convencao-europeia>.
RIBEIRO, Orlando (1991). Portugal: o Mediterrâneo e o Atlântico. Lisboa: Livraria Sá da Costa.
RIBEIRO, Orlando (2001). Paisagens, Regiões e Organização do Espaço. «Finisterra. Revista Portuguesa de
Geografia». XXXVI:72, 27-35.
SALGUEIRO, Teresa Barata (2001). Paisagem e Geografia. «Finisterra. Revista Portuguesa de Geografia».
XXXVI: 72, 37-53.
TELLES, Gonçalo Ribeiro (2004). A Paisagem é Tudo. «Jornal Pessoas e Lugares». II:16, 4-5. [Consult. 1 fev.
2022]. Disponível em <https://www.minhaterra.pt/a-paisagem-e-tudo-entrevista-a-goncalo-ribeiro-
telles.T13570.php>.
TELLES, Gonçalo Ribeiro (2020). “Se podemos ser um exemplo, sem andar a chatear ninguém, ótimo”: ­Gonçalo
Ribeiro Telles 1922-2020. Entrevista de Ana Soromenho. «Expresso». (11 nov. 2020). [Consult. 5 fev.
2023]. Disponível em <https://expresso.pt/arquivo/arquivos-expresso/2020-11-11-Se-podemos-ser
-um-exemplo-sem-andar-a-chatear-ninguem-otimo-Goncalo-Ribeiro-Telles-1922-2020>.
TORGA, Miguel (1980). Portugal. Coimbra: [s.n.].

169
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

170
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO
MUSEOLÓGICO *
IVAN VAZ**

Resumo: Este artigo intenciona a uma contribuição nas discussões do pensamento museológico em
interseção com o campo patrimonial mais amplo. Entende-se que a problematização de conceitos como
espaço, território, paisagem e lugar, e a forma como são não apenas conceituados, mas aplicados no
campo prático de ações, pode auxiliar na definição e afirmação da especificidade da Museologia frente a
outros campos do saber e fazer académicos. Uma destas especificidades seria o cenário museológico.
Palavras­‑chave: museologia; musealização; paisagem; cenário; patrimônio.

Abstract: This article intends to contribute to the discussion of the museological thinking in intersection
with a broader heritage field. It is understood that the problematization of concepts such as space,
territory, landscape and place, and the way they are not only conceptualized but applied in the practical
field of actions, can help defining and affirming the specificity of Museology in relation to other fields of
knowledge and academic practice. One of these specificities would be the museological setting (scenario).
Keywords: museology; musealization; landscape; setting; heritage.

INTRODUÇÃO OU DEFININDO UM ESPAÇO DE ANÁLISE


O espaço é uma categoria fundamental para se interpretar o patrimônio. Não apenas pelo
facto de o patrimônio ser um dado constitutivo (um lugar, uma construção ou um objeto)
do espaço, mas por ser um fator de sua representação, delimitação e experiência, mediando
e definindo as relações entre o sujeito e a realidade, tanto concetual quanto fisicamente.
Isto considerado, além do tempo, há o espaço como categoria basilar para p ­ ensarmos
o patrimônio. Esta fundamentação supera, no caso da museologia, as q ­ uestões especi­
ficamente arquitetônicas ou expográficas, de fluxos e desenhos, de ­gerenciamento
ou salva­ guarda, seja de público ou acervo. O patrimônio pode ser considerado,
no ­limite, um deter­minado arranjo (ou delimitação, «prova», evidência) espacial no
tempo, i­mpli­cando e sendo implicado constantemente em dinâmicas de ­permanência e
­mudança, ­perceção e experiência. O espaço é aqui encarado não apenas em sua p ­ erspectiva
­concreta, ­tangível, mas fenomenológica, como uma categoria de ­pensamento, de agência
na confi­gu­ração das interações, experiências e noções de identidade do ­próprio sujeito
ou dos grupos ­sociais.

* Partes desta discussão são fruto da dissertação de mestrado intitulada Sobre a Musealidade defendida pelo autor em 2017
na Universidade de São Paulo.
** Mestre em Museologia pela Universidade de São Paulo (2017). Doutorando em Estudo do Património da Faculdade
de Letras da Universidade do Porto. Profissional autónomo em projetos de preservação e comunicação do patrimônio
­cultural, implementação de equipamentos e planos museológicos.

171
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Uma das vertentes de estudo da museologia é aquela que considera como seu o ­ bjeto
de análise e ação a «relação dos seres humanos com a realidade através do ­processo de
musealização»1. Esta relação seria especial e específica exatamente porque se dá por uma
qualificação de certos aspectos da realidade e os destaca enquanto documentos válidos
de algo a alguém2, implementando ações de salvaguarda e comunicação.
Pode-se dizer, ainda, que esta relação se dá, como afirma Waldisa Rússio Guarnieri,
entre e através de três elementos: o «objeto», o «sujeito» e o «cenário»3. Para a autora,
a museologia é o estudo do «fato museal», que é «a relação profunda entre o Homem,
­sujeito que conhece, e o Objeto, parte da Realidade, da qual o Homem também parti­
cipa, num cenário institucionalizado, o museu»4.
É delimitado por este cenário que uma relação específica entre Sujeito-Objeto se
estabelece, completa e propaga, (re)instituindo noções de realidade: «Entre homem e
objeto, dentro do recinto museu, a relação profunda depende não somente da comu‑
nicação das evidências do objeto, mas também do recinto do museu como agente de
troca museológica»5. A própria museologia, metaforicamente, é um espaço, um lugar
disci­plinar, organizador de modos, regras, ações, agentes e instituições onde, ao mesmo
tempo, cria outros espaços (museais/institucionais), os gerencia e os estuda6.
A museologia é, desta forma, a relação dos elementos acima elencados, tendo
como base e vetor a atitude preservacionista dos sujeitos, instituindo uma performati­
vidade com os objetos dentro de cenários instituídos para tal. E o método que utilizado
é o processo de musealização (pesquisa+salvaguarda+comunicação).
Desde pelo menos os anos de 1960, momento em que se intensificam as proble‑
matizações da museologia enquanto campo teórico, ocorre a requalificação de diversos
termos, conceitos e bases sobre as quais se sustenta. A própria discussão da museologia
como um campo autônomo se insere neste movimento. A necessidade de uma auto­
nomia dessa disciplina — autonomia tanto da instituição museu quanto das disciplinas
correlatas — caracteriza a especialização de um campo que, no contexto das convulsões
sociais, políticas, científicas, profissionais, culturais e tecnológicas da segunda metade do
século XX, precisa se repensar a fim de entender seu lugar e validade.
Se, durante muito tempo, os museus foram o locus da museologia, a crise represen‑
tacional e institucional desses acabou por gerar a necessidade de a museologia repensar
esses espaços e, ao mesmo tempo, repensar seu estatuto e finalidade frente à sociedade.

1
MENSCH, 2004: 6.
2
DESVALLÉES, MAIRESSE, eds., 2014: 57.
3
GUARNIERI, 1981.
4
GUARNIERI, 1986: 138 (grifos da autora).
5
GUARNIERI, 1981: 124 (grifos da autora).
6
CARDOSO, 2014: 123.

172
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

A visão do museu tradicional, prédio dotado de coleção e protetor da Cultura e do


Conhecimento, sofre sérios abalos que, sem querer remontar a muito longe, se intensi‑
ficam com as duas grandes guerras. A constatação da impossibilidade de preservação
plena e do poder de destruição física, moral, cultural, social, política da Humanidade
colocam em crise os meios de operação desta instituição, assim como sua função frente
a essa Humanidade. Ou seja, há uma mudança de vetor. De local de guarda, busca-se
um lugar de comunicação, de educação humanitária. Uma das intenções da criação do
International Council of Museums (ICOM) pela Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1946, é agir sobre estes problemas.
Dialeticamente, a revisão do lugar na estrutura social, cultural e científica sobre o
qual o museu se assenta, gera a necessidade da revisão de seus conceitos. As noções de
Humanidade, patrimônio, cultura, herança, memória, história, identidade, arte, ciência,
território, etc., ao serem postas em questão, evidenciam a fragilidade do pensamento
museológico calcado na naturalização destes mesmos termos, tendo como única função
a ação «técnica» do museu sobre eles. É preciso dar respostas.

Atualmente, os problemas da existência do Museu não podem ser resolvidos no


domínio da prática. Para a realização de sua missão, precisamos de um i­nstrumento
especial, que nos permita descobrir as facetas objetivas da realidade, definir suas leis
e descobrir as melhores maneiras de não apenas resolver as tarefas do dia-a-dia,
mas de trabalhar para o futuro7.

Como tentativa de discutir esta crise institucional e epistemológica, e propor novos


caminhos, o campo museológico empreende movimentos de revisão de seus princípios
e funções. Pode-se elencar alguns movimentos definidores da problematização museo‑
lógica que lançarão bases para a discussão do seu estatuto, de seus métodos e conceitos.
Dentro do âmbito restrito do ICOM, há quatro documentos produzidos que indicam
uma mudança na postura dos museus e da museologia frente à sociedade e a si mesmos:
1. O Seminário Internacional de Museus Regionais da UNESCO sobre a Função
Educativa dos Museus, ocorrido no Rio de Janeiro, Brasil, em 1958.
2. A mesa-redonda de Santiago, Chile, em 1972.
3. A declaração de Quebeque, Canadá, em 1984.
4. A declaração de Caracas, Venezuela, em 1992.

Especificando rapidamente estes documentos, cada qual traz uma contribuição


parti­cular para o pensamento museológico e o modo de atuação dos museus. O semi­nário
do Rio de Janeiro destaca o caráter educacional dos museus e o papel da ­comunicação

7
STRANSKY, 1990: 82-83.

173
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

expositiva enquanto vínculo com a sociedade. A mesa-redonda de Santiago ­introduz


a ­noção do Museu Integral, trabalhando a totalidade dos problemas da socie­dade para
sua superação. A declaração de Quebeque, por sua vez, reforça a ideia do patrimônio a
­serviço do desenvolvimento da sociedade. E, finalmente, a declaração de Caracas revisa
a ideia do Museu Integral, reformulando-a para «Integrado», sendo um agente, em inte‑
ração com a sociedade, de processos patrimoniais, culturais e sociais.
Segundo Marília Xavier Cury, o que permeia todos estes documentos é a defla­
gração «[d]os sujeitos do processo museológico, o caráter social e ideológico da museo‑
logia e dos museus, entendem o museu espaço de exercício democrático e de cidadania
e, por isso, espaços dialógicos»8.
Da mesma forma, alguns autores identificam outros marcos fundamentais na
­revisão dos princípios museais e museológicos. André Desvallées9, na busca da gênese
da chamada Nova Museologia, elenca, além dos documentos acima citados, as Jornadas
de Lurs, em 1966, que dariam início à concepção dos ecomuseus; a criação, nos ­Estados
Unidos da América, dos museus de vizinhança, em 1969; a 9.ª Conferência Geral do
ICOM, em 1971, sob o tema Museu ao serviço do homem, hoje e amanhã, entre ­outros.
Estas inserções na história do movimento museológico indicam, em todos os c­ asos,
o deslocamento dos museus de sua função usual de guarda e tratamento de ­coleções para
a sua atuação em uma dinâmica social e cultural ampliada, envolvendo novos ­espaços,
sujeitos e objetos.
Em alguns casos mais, em outros menos, o processo de revisão do museu ­passa
pela consideração do ser humano como início, meio e fim das ações museológicas.
Há uma mudança de interesse das coleções, e das atividades sobre estas, para a comuni‑
dade e para o território onde esta comunidade estabelece relações (por mais amplo ou
restrito que esse território ou comunidade seja). Neste mesmo movimento, os objetos
perdem sua força, podemos assim dizer, aurática10, e passam a ser assumidamente selecio‑
nados e significados de acordo com os contextos e interesses sociais, culturais, políticos,
cientí­ficos, etc. Seus valores se dão pelas capacidades de comunicação, de interação com
os sujeitos, que passam a ser convocados a participar na construção de seus sentidos.
Novas tipologias de museu são experimentadas como forma de englobar estes
­atores, patrimônios, dinâmicas, espaços e representações que o museu tradicional não
é mais capaz de absorver. Os ecomuseus, museus de território, de comunidade, museus
sem acervo, virtuais, entre outros, mais do que meras experimentações teórico-metodo‑
lógicas, levam a fundo a revisão dos princípios museológicos, incidindo dialeticamente
no pensamento sobre categorias como público, patrimônio, espaço, tempo, identidade,
educação e, obviamente, museu.
8
CURY, 2004: 62.
9
DESVALLÉES, 1992 apud CÂNDIDO, 2000: 33.
10
BENJAMIM, 1994.

174
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

Estas experiências museológicas trazem em seu bojo uma mudança paradigmática


que retira a musealização do espaço restrito dos edifícios de museus, ampliando conse‑
quentemente os atores deste processo e seus objetos. Neste movimento de ampliação,
o objeto de ação museológica se espraia para além do objeto tridimensional das coleções
dos museus, envolvendo saberes, fazeres, práticas, imaginários e, ainda e fundamental‑
mente a esse artigo, outros espaços.
Há uma redefinição dos princípios museológicos que altera o tripé «edifício-
-co­leção-público» para o «território-patrimônio-comunidade»11, onde a circularidade
­entre esses elementos se intensifica e pode-se perceber a eminência de uma outra razão e
ação de musealização: o que se musealiza não são esses elementos, mas a própria relação
entre eles.
Em sua busca de compreensão e, mais, apreensão de referências de realidade,
a museologia acaba por alterá-las, pois, ao criar espaços e objetos de representação e
­discursos sobre estas, passa a instituir qualidades que as delimitam e classificam, catego­
rizam. Seria neste ponto que se operacionalizariam as estratégias de musealização, para se
entrar e sair da realidade museal — qualificando-a —, forjando a musealidade12.
A operação de configuração da musealidade — ou seja, a musealização — se
­torna uma ingerência sobre parcelas do real atribuídas por uma determinada socie-
dade/grupo/campo em um determinado contexto. Nesta operação, estão envolvidos
instru­mentos teórico-metodológicos, mas, também, anseios de identificação política,
­social, cultural e científica, contextualmente determinados pelos agentes que os manejam.
A museologia, como um dos campos de representação da sociedade, possui, através
­destes mecanismos, a capacidade delimitadora da realidade, de sua classificação e de sua
salvaguarda, buscando criar, assim, meios para sua comunicação.
Como uma relação do sujeito com a realidade a partir do patrimônio, atualmente,
a museologia se expande em novas possibilidades de teorização e operação. O que as
(nem tão) «novas» tipologias museais ou práticas e perspectivas museológicas — a
muse­ologia social ou os ecomuseus, por exemplo — trazem em seu bojo é a problema‑
tização da configuração desta relação, suas causas e efeitos.
Não obstante, as experiências museológicas são esta própria relação. O que
procura-se apontar é como a museologia é um quadro interpretativo amplamente utili‑
zado a definir abordagens e práticas de preservação e comunicação. Sob esta operação
e pensa­mento, portanto, a museologia, através da musealização, cria cenários museoló‑
gicos para possíveis relações entre os elementos que a compõem, é uma m ­ eta-operação
que condi­ciona e é condicionada pelos sujeitos, pelos objetos e pelos espaços onde

11
VARINE, 1992 apud CÂNDIDO, 2000.
12
A musealidade, muito resumidamente, seria «a qualidade das coisas musealizadas» (STRANSKY apud BRULON,
2012: 70).

175
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

i­nteragem. Sobre os sujeitos, os objetos e, ainda, sobre os tempos destas interações,


já há bastante teoria e problematização. Pouco se fala sobre estes espaços/cenários que não
o museu.
Estas experiências e tipologias, patrimonialmente falando, introduzem (ou ao ­menos
tornam mais evidentes) objetos — e se refere ao espaço como um artefato m ­ useológico
— antes relegados pelo discurso e pelo olhar hegemônicos da museologia tradicional,
especialmente a europeia. São uma forma de legitimar experiências, s­ ujeitos e bens que,
de alguma forma, não se encaixam nos padrões estéticos, institucionais, ­culturais estipu‑
lados, mas, ainda assim, possuem uma vocação importante na definição das identidades
e memórias locais. Ou seja, ao deslocar os parâmetros museológicos da tríade «museu-
-coleção-publico», para «território-patrimônio-comunidade», mais do que uma s­ imples
­ampliação do escopo de trabalho, há uma mudança ontológica e epistemológica do
­objeto de estudo da museologia, bem como das ações práticas sobre ele (os métodos).
O ­«cenário museológico» passa a abarcar mais possibilidades de confi­guração, envol­
vendo outros atores, objetos e espaços: entram em cena, literalmente, novos corpos.
Não obstante, os modelos teóricos e práticos convocados a isto — os ecomuseus
são o melhor e mais paradigmático exemplo — não conseguem dar conta da diversidade
percebida. Há, sobre a quebra da hegemonia do discurso europeu sobre o patrimônio,
a construção de um novo discurso homogeneizante, baseado sobre princípios preten­
samente mais democráticos e amplos, mas, ainda assim, redutores ou reificadores.
­Estes «novos» conceitos chamados ao discurso (­Território-Patrimônio-Comunidade,
bem como outros, tais quais Desenvolvimento, Cultura, Paisagem, Participação, Interdis­
ciplinaridade, etc.)13 são pouco problematizados ou refinados concetual e pragmatica‑
mente, e se tornam espécies de signos de aprovação e inserção numa ordem legitimada
de fala que pouco discute, exatamente, este poder de fala e seus sentidos.
É sob esta linha de pensamento que se interessa pelas categorias de espaço utili­zadas
pela museologia — especialmente a autointitulada «Nova Museologia» — ­enquanto
­fatores de construção do discurso e das ações museológicas. O que e como se definem
— ou não — território, paisagem, lugar e como estas definições implicam na consti­
tuição, por sua vez, de experiências e fenômenos museológicos?

13
BRULON, 2014; DAVIS, 1999.

176
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

1. A ATUAÇÃO NO ESPAÇO
Se mover pelo espaço é se mover através do tempo14.

Pode-se dizer que há, para a geografia15,


três caraterísticas que definem o «espaço geográfico»: 1) É sempre uma extensão fisi­
camente constituída, concreta, material, substantiva; 2) Compõe-se pela dialética
­entre a disposição das coisas e as ações ou práticas sociais; 3) A disposição das coisas
e as ações ou práticas sociais tem uma coerência. […] O espaço deve ser concebido
como algo que participa da condição do social e do físico, um misto, um híbrido16.

O espaço é uma construção que implica e está implicada na sua própria qualifi­cação.
O espaço não existe em si, existe em reciprocidade aos corpos (animados e inanimados)
que o habitam e aos discursos que o delimitam. O «espaço geográfico», assim, é um lugar
disciplinar, do dizer e do fazer deste campo e pressupõe a totalidade das experiências
socioespaciais17. Não obstante, a abstração do espaço serve como ensejo para ­«recortes
do mundo» e para «imagens do mundo»18 — ainda que descolados uns dos outros.
As noções de território, lugar, região, paisagem, entre os diversos termos ­empregados
(não apenas pela geografia, mas por qualquer disciplina que se debruce sobre o tema),
trazem em seu bojo delimitações muito específicas aos intuitos de seus usuários:

um conceito nunca é uma mera «representação», como se pretendesse fotografar o


real. Num jogo entre […] «categoria analítica» e «categoria da prática», o conceito
é, também, ele próprio, como indica de maneira um pouco mais específica (por se
­restringir à Filosofia) Deleuze, um «acontecimento»; isto é, mais do que mera «repre­
sentação do real», ele é, em si mesmo, uma «realidade» e, dependendo do contexto —
e de seu conteúdo político — acaba também por servir como uma espécie de instru­
mento («transformador») capaz de produzir novas realidades.
Dessa forma o território, mais do que uma definição acadêmica pretensa­mente
bem articulada dentro de uma constelação (teórica) de conceitos, é também um
­conceito construído nas lutas sociais que dele fazem uso, que o demarcam, que o
transformam em «arena política» […], que o refazem, enfim, como conceito, a partir
da própria prática social19.

14
WALSH, 1992: 150. No original: «To move across space is to move through time». Tradução livre.
15
Traz-se esta perspectiva pois foi o primeiro campo a pensar mais profunda e sistematicamente sobre as categorias de
espaço, sendo posteriormente absorvidas e adaptadas pelos diversos outros ramos do conhecimento que se interessam
pela temática.
16
CABRAL, 2007 apud MATIAS, 2021: 127.
17
MATIAS, 2021.
18
HISSA, 2009.
19
HAESBAERT, 2009: 5-6.

177
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

O autor se refere ao território, mas quaisquer dos termos mencionados ante­


riormente se encaixam em sua colocação. Ao buscar uma definição ou diferenciação
entre os ­conceitos de espaço e de lugar, Phil Hubbard sentencia que: «Talvez, então,
a questão ­central sobre o espaço e o lugar não seja o que são, mas o que fazem.»20 Milton
Santos, por sua vez, ao ser perguntado sobre os conceitos de espaço e território, responde:

Na verdade, eu renunciei à busca dessa distinção entre espaço e território.


­ ouve um tempo em que a gente discutia muito isso: «o espaço vem antes», «não,
H
o que vem antes é o território». Eu acho que são filigranas que não são indispensáveis ao
verdadeiro debate substantivo. Eu uso um ou outro, alternativamente, definindo antes o
que eu quero dizer com cada um deles. Agora, a retificação que ando fazendo é que não
serve falar de território em si mesmo, mas de território usado, de modo a incluir todos os
atores21.

Estas perspectivas condensam algumas questões centrais sobre o conceito de


­espaço que se irá seguir.
Primeiro, já desnaturalizam a visão usual de que o espaço é um local neutro, uma
superfície em branco sobre a qual os seres humanos constroem o mundo. Nesta ­visão,
está implícita uma perspectiva positivista22, que separa o sujeito do objeto, onde este
último é um dado ao olhar e, portanto, se torna apto a ser analisado e manipu­lado obje­
tivamente como um elemento da razão, havendo um prevalecimento da visão s­ obre os
outros sentidos23. O que as citações parecem indicar, é exatamente o oposto, é a capa­
cidade do objeto de análise em influenciar o sujeito do conhecimento, é a ­construção
recíproca destes elementos quando colocados em interação, como um todo. De um
­elemento passivo, manipulado e subalterno às ações dos sujeitos, o espaço passa a ser
um agente ativo na configuração daquilo que é chamado de realidade, pois não só
­compõe esta realidade enquanto elemento físico sobre a qual se baseiam os sujeitos, mas,
­influencia nas formas de relações e projeções imaginárias que estruturam, exatamente,
as relações e projeções frente uns aos outros e ao mundo. É uma relação dialética entre
o mundo e a experiência dos sujeitos com o mundo.
Na sequência, também problematizam algumas das categorias que irão circundar
ou compor o conceito de espaço e, neste sentido, já permitem uma definição. Conside‑
rar-se-á espaço como o conceito gerador a estruturar outras categorias espaciais. ­Estas
categorias buscam adjetivar ou definir modos específicos — sejam políticos, sociais,

20
HUBBARD, 2005: 47. No original: «Perhaps, then, the key question about space and place is not what they are, but
what they do». Tradução livre.
21
SANTOS, 2000 apud HISSA, 2009: 57.
22
RIBEIRO, 2007.
23
FAUVRELLE, 2018.

178
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

c­ ulturais, científicos/acadêmicos — de relações entre os sujeitos no e com o espaço.


­Portanto, é a partir da noção ampla de espaço que surgem categorias como o território,
a paisagem, o lugar, a região, etc.24. Sobre este conceito, sobrepõem-se categorias que
condicionam a experiência através de sua qualificação. É neste sentido que todo espaço
possui duas dimensões intrínsecas: uma material, física e sensível, e uma conceitual,
discursiva/imaginária ou simbólica.

Paisagem, território, limites, fronteiras, região, lugar, mundo, rede: em ­muitas


circunstâncias, esses conceitos se entrecortam, não sendo incomum, portanto, o e­ sforço
malsucedido de delimitar, com precisão, cada um deles. Todos estabelecem ­estreitas
relações, próximas o bastante para construir não só imagens teóricas de super­posição
como, também, de atravessamentos. Todos ainda podem ser interpretados como
deri­vações de um conceito-matriz: espaço. Todos eles poderão ser compreendidos
como objetos teóricos de um conhecimento socioespacial, feito de disciplinas que se
entrecortam, em cujo centro estariam aquelas que focalizam as espacialidades e os
­processos a elas associados25.

Ainda que não haja consenso quanto às definições, funções e barreiras entre os
conceitos de espaço e suas categorias correlatas26, opta-se por esta hierarquização pois
julga-se apta às apropriações que o campo patrimonial faz. No processo de investi­
gação, percebeu-se que, dentre a miríade de termos relacionados ao conceito de espaço,
o ­campo patrimonial se baseia especialmente sobre três recortes ou imagens: território,
paisagem e lugar27.

2. TERRITÓRIO, PAISAGEM E LUGAR: CENÁRIOS


MUSEOLÓGICOS

O mundo inteiro poderá ser mesmo visto como uma ficção. Mas isso ­também
valerá para a cidade inteira, o lugar inteiro, o território inteiro. Há recortes de mundo
no interior do corpo do mundo. Do mesmo modo, há recortes de lugar, de ­cidades,
assim como recortes de território no interior do corpo do território. Além disso,
o mundo inteiro é feito de movimentos que procuram se ajustar à diversidade de
­movimentos exercidos pelos recortes de mundo28.

24
HUBBARD, 2005.
25
HISSA, 2009: 60-61.
26
RIBEIRO, 2007.
27
SMITH, 2006; RIBEIRO, 2007; FAUVRELLE, 2018; DAVIS, 1999; WALSH, 1992; BRULON, 2017.
28
HISSA, 2009: 37 (grifo do autor).

179
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

A imaginação é um dos recursos fundamentais de composição do espaço, e,


na contemporaneidade, o patrimônio assume uma das formas diletas dessa imaginação
e de sua concretização. A imaginação espacial através do patrimônio — e vice-versa —
alia o que quer que se perceba ou nomeie como tradição, história, comunidade, nação,
autenticidade, modernidade e os conjuga em uma experiência sensorial, concreta e loca­
lizável, palpável.
Posto este princípio, o espaço, em seu modo patrimônio29, é uma ficção e não é.
Não é, pois é lugar/objeto concreto e material, é sentido, tocado, define limites, contatos,
sensações. É, pois é seleção/recorte, e depende de uma qualidade discursiva para sua
imaginação e formalização: o tempo é uma fundamental dessas qualidades.
Quando se refere acima à tradição, autenticidade ou outras qualificações, é ­neste
ponto de construção: o bem patrimonial só existe pela possibilidade de um imaginário
que faça sentido através de um objeto ou espaço. Quer dizer, nada existe como refe­
rente patrimonial, e muito menos permanece existindo, se não houver um sentido e um
discurso de qualidade histórica, social, cultural ou científica sobre aquilo. Essa ­pretensa
imanência do patrimônio esconde os próprios mecanismos que tornam o patri­mônio
uma «imanência». A amalgama que se nomeia patrimônio é a evidência de uma
­construção dos sujeitos sobre o espaço ao longo do tempo, alocada sobre e em meios
e marcos (objetos, lugares, instrumentos, instituições e tecnologias) que garantem seu
reconhecimento e sua reprodução30.

Os lugares são constituídos através do reconhecimento subjetivo de «marcos


­temporais» — elementos no ambiente, construídos humana ou naturalmente. Tais
marcos fazem o «tempo visível». As pessoas obtêm um sentido de lugar através de um
conjunto de «filtros», um engajamento subjetivo com esses marcos temporais. D
­ urante
o período da (pós-)modernidade, o poder de controlar os tempos do espaço, e, conse-
quentemente, a manipulação dos lugares, esteve nas mãos de um grupo relati­vamente
pequeno de indivíduos e instituições. Tais organizações têm a capacidade de decidir o
que será ou não preservado, e como será apresentado e interpretado para o público31.

Um dos elementos compositores do espaço contemporâneo é, assim, o patrimônio


cultural. Sempre houve, em toda a história, lugares/objetos/sujeitos qualificados como

29
CARSALADE, 2014.
30
JEUDY, 2005.
31
WALSH, 1992: 152, No original: «Places are constituted through the subjective recognition of “time marks” —
­elements in the environment, both humanly and naturally constructed. Such marks make “time visible”. People gain a
sense of place through a set of “filters”, a subjective engagement with these time marks. Throughout the period of (post-)
modernity the power to control the timing of space, and therefore the manipulation of places, has been in hands of a
relatively small group of individuals and institutions. Such organizations have the ability to decide what will and will not
be preserved, and how it will be presented and interpreted for the public». Tradução livre.

180
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

destaque para um imaginário sociocultural. No entanto, a categoria patrimônio cultural


é bastante recente, e ela se difere pela intencionalidade e racionalidade de sua p­ rodução
e, especialmente, «consumo» . Nesse sentido, o espaço contemporâneo é constituído
32

pelo patrimônio como uma exemplaridade de um tempo/grupo categóricos ou alegó­


ricos. Isso leva a uma divisão e não a uma coesão. Os marcos/objetos patrimoniais
­simultaneamente perpassam e cindem a relação temporal e a espacial do contempo­
râneo, marcam o antes e o depois, o Eu e o Outro, o aqui e o lá.
E uma vez que as categorias de tempo podem ser físico-morfológicas (o tempo
da terra e dos elementos naturais), sociais (os tempos narrativos, ­históricos/­mí(s)­ticos),
funcionais (o trabalho, o lazer), entre outras combinações, permeiam igualmente as
cate­gorias de espaço — também múltiplas —, (re)cortando aquelas que «definem»
(ou são) o patrimônio cultural: a paisagem cultural, o sítio arqueológico, o museu,
o «centro histórico», o lugar, o território…
Rapidamente se irá empreender uma discussão sobre a definição destes termos,
sem pretender dar conta da complexidade conceitual ou das mais diversas vertentes e
campos do conhecimento que se debruçam sobre cada qual. Aos fins deste artigo, o que
se procura é perceber a partir de que ponto foram apropriadas pelo discurso patrimonial
e como se desenvolveram neste meio. De forma esquemática:
• território — talvez seja o termo mais bem demarcado e tangível dos aqui anali‑
sados. A extensão territorial de um estado, província, nação ou qualquer outra
forma política de organização, ainda que tenha uma configuração imaginária
essencial, pode ser delimitada, diferentemente de uma paisagem33. O território é
uma área de fronteiras — ainda que não visíveis — delimitadas e hierarquizadas
política ou administrativamente34;
• paisagem — a Comissão Europeia da Paisagem a define como «uma parte do
terri­tório, tal como é apreendida pelas populações, cujo carácter resulta da ação
e da interação de fatores naturais e ou humanos»35. A paisagem, diferente­mente
do território, pressupõe o olhar, uma interpretação e uma interação, é uma ­parte
restrita — normalmente voltada ao estar presente — e percebida do território36.
Segundo Milton Santos37, uma paisagem não é natureza, mesmo que a c­ omporte,
é uma relação mais complexa entre o natural e o cultural, o presente e o passado;
• lugar — ainda mais específico do que a paisagem, o conceito de lugar está
­ligado à vivência individual ou comunitária, em pequena escala. Sua principal

32
CHOAY, 2006.
33
RONCAYOLO, 1986 apud FAUVRELLE, 2018: 33.
34
RIBEIRO, MILANI, orgs., 2009.
35
COMISSÃO EUROPEIA DA PAISAGEM, 2000 apud RIBEIRO, 2007: 5.
36
BRULON, 2017; FAUVRELLE, 2018; SAUER, 1996; RIBEIRO, 2007; ­HISSA, 2009.
37
SANTOS, 1986 apud MATIAS 2021: 34.

181
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

c­ aracterística é o senso de pertencimento, afetividade e comunhão que desperta


e c­ ompreende. Neste sentido, nenhum lugar existe precondicionado e sua efeti‑
vidade se dá pela capacidade em despertar sensações, memórias e laços, em criar
e recriar experiências38.

Não obstante, para certas correntes da geografia, o território comporta caracterís‑


ticas que podem tanto se aproximar da paisagem quanto do lugar. Para todos os efeitos,
os estudos do patrimônio se apropriam destes termos, dotando-os de características
­comuns e dependentes, que formam identidades específicas39, chegando mesmo a inter­
cambiá-los e a tratá-los como sinônimos.

Agudo Torrico confronta as noções de «território» e «paisagem» fazendo


­depender esta de uma interpretação, de um olhar, enquanto o território fica depen­
dente de ­elementos funcionais que se transformam. Essa transformação obedece a
­fatores como os recursos naturais, tecnologia e estruturas sociais, que se materializam
em factos culturais, havendo aqui uma aproximação daquilo que a paisagem contem-
poraneamente encerra. Assim, o conceito «paisagem» está dependente da interpretação
ulterior destes territórios40.

Em um ponto institucional formal/legal do patrimônio não existem legislações/re­-


comendações internacionais especificas sobre os conceitos de lugar ou território — ainda
que alguns países, sim, utilizem estes termos/conceitos em suas legislações n ­ acionais41.
O grande conceito aglutinador do espaço enquanto patrimônio, quando nos r­ eferimos
aos organismos internacionais, nomeadamente a UNESCO e a Convenção ­Europeia
da Paisagem, é o conceito de paisagem. Sob este termo, opera-se a constituição de
­espaços de interesse patrimonial que servem aos mais diversos propósitos e abordagens,
sejam políticos, culturais ou econômicos.
Portanto, o campo patrimonial irá adotar, preferencialmente, a paisagem enquanto
forma de organização espacial a ser conceitual e pragmaticamente delimitada. Devido
ao seu poder regulatório e à possibilidade de visibilidade alcançada, até mesmo como
forma de reparação a grupos e bens normalmente relegados ao grau de patrimônio
­cultural, a paisagem torna-se um conceito estruturador das ações e nomeações patrimo‑
niais e identitárias. Porém, os efeitos (e muito menos ainda, as causas) de sua utilização
são problematizados. A começar pelo próprio adjetivo que a compõe: cultural.

38
SMITH, 2006; TUAN, 1980; DAVIS, 1999; WALSH, 1992; HUBBARD, 2005.
39
FAUVRELLE, 2018.
40
FAUVRELLE, 2018: 33.
41
SMITH, 2006; RIBEIRO, 2007.

182
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

Se para a geografia a palavra cultural se refere às ações do ser humano — ou seja,


a paisagem cultural é toda aquela que sofre a sua ação —, ao ser empregada pelo campo
patrimonial adquire um estatuto de bem cultural. Melhor dizendo, é algo que se destaca
do território por algum grau de valor específico capaz de agregar ou representar identi‑
dades, tempos, formas, etc. Há, intrinsecamente atreladas ao adjetivo cultural utilizado
pelo campo patrimonial, medidas de gestão e organização do território, visando à sua
«preservação» e à sua «comunicação», tendo como fim, seu «Desenvolvimento».
Sob o valor patrimonial há diretrizes, vetores de direcionamento possíveis sobre
sua capacidade performática e utilitária para uma (re)composição do próprio espaço que
«habita», bem como das capacidades e valores dos agentes que utilizam este espaço.
A paisagem, em seu modo patrimônio, neste sentido, serve a estratégias de d ­ elimi­tações,
categorização e inter-relações do território, fazendo parte de alterações das escalas
­espaciais a fim de representar uma organicidade destes mesmos espaços. Estas estra­
tégias servem a propósitos de apaziguamento das tensões sociais e políticas através da
pretensa garantia das suas identidades ao serem encenadas e propagadas em um cenário
nacional ou global. Assim, se garante a inserção destes sujeitos/comunidades em uma
escala mais abrangente, mas «preservando» sua escala local. É um jogo de espelhos que
o discurso patrimonial não só naturaliza, como o próprio patrimônio se torna fator de
concreti­zação: é a prova, a evidência incontestável do discurso que o coloca, ironica­
mente, como prova. E a paisagem patrimonializada concretiza, então, não apenas no nível
institucional, mas de vivências, a corporificação de tempos e espaços específicos: vive-se o
patrimônio (condicionadamente).
A dicotomia natural/cultural implica, em mais do que uma separação entre ser
­humano e natureza, uma separação entre sujeito e objeto. Esta dicotomia implica,
no quesito patrimonial, uma confusão — ou simplificação — das medidas protetivas
­possíveis. Há uma tendência a encarar a proteção como conservação, como imutabili‑
dade, como referência ao «autêntico» e «original»42. Proteger uma área significa exercer
o mínimo de influência sobre ela e garantir a sua perpetuação enquanto tal ao longo do
tempo. Isto não leva em consideração, justamente, o tempo de sua formação e as visões
e interesses que definem em qual tempo se encontra a «autenticidade». Este meca­nismo
de composição e preservação de uma paisagem em seu modo patrimonial nega seu
­poder de composição através do destacamento de elementos pretensamente «naturais»
ou «originais» a serem protegidos, garantindo a perpetuação de interesses e discursos
nostálgicos e, no mais das vezes, estereotipados, tanto da natureza quanto da cultura.
É esta dicotomia que a Convenção Europeia sobre a Paisagem procura superar:

42
HUYSSEN, 2014.

183
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

A Convenção reconhece que, na procura por um justo equilíbrio entre ­proteção,


gestão e organização de uma paisagem, é necessário levar em conta o facto de que
não se procura preservar ou «congelar» as paisagens em um dado estado na sua
longa evolução. As paisagens sempre mudaram e continuarão a mudar, tanto sob o
­efeito dos processos naturais, como da ação humana. Na verdade, o objetivo é acom­
panhar as mudanças que ocorrerão, reconhecendo a grande diversidade e a quali­
dade das paisagens que serão herdadas, se esforçando em preservar, talvez enriquecer,
essa ­diversidade e essa qualidade43.

Neste sentido, percebe-se que a paisagem é um dos elementos que compõem o


território em seu modo patrimônio. É, em si, um recorte, seja visual, afetivo ou institu‑
cional, que busca delimitar práticas, vivências e organismos «característicos» e, funda‑
mental e principalmente, discursos sobre estes. O próprio senso (estético e/ou material)
da paisagem é uma construção, cuidadosamente elaborada ao longo do tempo, e busca
refletir modos de ser e fazer de uma determinada sociedade. A paisagem, como tanto,
se torna um artefato capaz de ser separado, analisado e trabalhado enquanto patri­mônio
destes sujeitos, representando não apenas a si mesmos, mas especialmente criando
uma perspectiva temporal de desenvolvimento e de diferenciação frente ao outro —
sejam estes outros sujeitos, tempos ou espaços. Através desta noção de paisagem, inter-
-relaciona-se e define-se a noção de «lugar»44, exatamente para dar conta da carga afetiva
e identitária, de reconhecimento e relação dos grupos com seus espaços constituídos.
A chamada «Nova Geografia Cultural», porém, retoma o conceito de território a
fim de abarcar esta dimensão afetiva e simbólica na constituição do mesmo. Além das
delimitações políticas e/ou físicas do território, postula-se que há um valor de territoria­
lidade que ativa e condiciona as ações de territorialização, formando, então, o terri­tório45.
Ou seja, para que este último exista, há uma qualidade possível de territorialidade e
uma forma de territorialização que o definem. Este valor e forma, diversos no espaço
e no tempo, são dados pelas comunidades, não apenas em resposta às condicionantes
físicas do ambiente que ocupam, mas, justamente, a partir dos laços que constroem de
forma orgânica entre si, o ambiente e as instituições. Há uma reciprocidade que abole as
dife­renciações entre natural e cultural, organizando-os como o mesmo todo que forma
aquilo que se conhece por território.
Isto nos interessa, pois este movimento de relação, compreensão e organização
do espaço (Territorialidade-Territorialização-Território) é muito similar à dinâmica de
musea­lização/patrimonialização.

43
RIBEIRO, 2007: 55.
44
TUAN, 1980; SMITH, 2006.
45
SOLINÍS, 2009.

184
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

Estes dois últimos termos, considerados sinônimos — e em muitos aspectos o


são46 —, em nossa visão, se diferenciam no ponto em que a musealização precisa necessa‑
riamente da sua institucionalização em espaços/experiências museais para se ­constituir
e, com isso, obedece aos parâmetros de salvaguarda e comunicação museológicos e,
espe­cialmente, à ética e ao processo educativo estipulados por este campo e pelo reco‑
nhecimento público47. Isto quer dizer, a musealização, enquanto (re)alocamento físico
e/ou simbólico de um objeto do seu local de origem a um contexto de interpretação e
proteção patrimoniais, institucionaliza este objeto exatamente através dos «processos»
e do «cenário» museológicos.
A qualidade que ativa o processo museológico é a musealidade; seu método,
a ­musealização; e seu efeito ou fenômeno, o museu (cenário). Neste sentido, a consti­
tuição de espaços museológicos é um processo de categorização do real, constituindo,
por sua vez, espaços de representação de uma dada realidade. Posto em outras palavras,
a museo­logia cria cenários museológicos onde a realidade é representada a partir dos
objetos e sujeitos que a compõem: a museologia impõe sobre uma realidade espacial
um espaço metafórico a partir das qualidades de sua musealidade e das ações e efeitos
da musealização.
Uma das formas que encontra para isto, nas novas experiências museais que
atualmente ainda se desenvolvem, é através da objetificação/reificação de territórios,
quali­ficando-os enquanto patrimônio. Nesta lógica, o território é uma qualidade/musea­
lidade que torna apta ou não a sua própria musealização. O efeito de real (cenário) do
­objeto/­território só irá se concretizar se houver o estabelecimento dialético de «valor»
através das relações de musealidade/territorialidade e musealização/territorialização,
compondo, por sua vez, um território/museu48.
Esta dinâmica é complexa, múltipla, extensa e constante, envolvendo, além dos
sujeitos e comunidades destes territórios, outros grupos de interesse e instituições na sua
composição. Não nos cabe agora destrinchar quais seriam ou em que graus de i­ nfluência
cada um vai determinar a configuração final de certa experiência (até porque, como
dissemos, são múltiplas e constantes). O que nos cabe aqui é apontar a existência desta
dinâmica justamente para não a naturalizar enquanto um dado objetivo, uma i­ manência
do território que cabe ao pesquisador apenas notar e estudar. A musealização é um
­processo de relações entre sujeitos e objetos a constituir um certo cenário, abrindo-se a
cada vez mais sujeitos, objetos e cenários — ou não.
É neste aspecto que a metáfora do espelho tão utilizada pela «Nova Museologia»
— especialmente pelas experiências do ecomuseu — é um falseamento (ou, em um

46
DESVALLÉES, MAIRESSE, eds., 2014.
47
GUARNIERI, 1981; DESVALLÉES, MAIRESSE, eds., 2014.
48
Pode-se notar que o território, nestes casos, é tanto o objeto, quanto o sujeito, quanto o cenário da musealização. Creio
ser sobre essa «ubiquidade» que assenta a especificidade destes espaços enquanto fenómenos museais e patrimoniais.

185
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

t­ermo menos rígido, naturalização) do próprio processo museológico, onde, segundo


esta visão, a musealização de uma comunidade através do seu território (e/ou vice-versa)
seria apenas a «apresentação» de suas evidências autoconstituídas, e não um processo de
«representação» de si para si mesmo e para o outro através do arcabouço discursivo e
formal do patrimônio e do museu49.
Sob esta perspectiva, mais uma vez, afirma-se a necessidade de se precisar ­melhor
os conceitos e categorias de espaço que a museologia utiliza em seu dizer e fazer.
Há uma diferença qualitativa entre os termos paisagem, sítio, território, lugar, quer dizer,
os ­espaços são categorizados de formas diversas a partir de interpretações e funcionali­
dades, o que, por sua vez, implica apropriações e interações diversas. Estes conceitos não
apenas recortam e delimitam o espaço, mas impõem formas discursivas e práticas de
ação e fruição, reconhecimento e experiência.
Museus de território, ecomuseus, museus de cidade, museus de comunidade, entre
outras tipologias, como estas categorias condicionam não apenas as formas de museali‑
zação, mas uma das fundamentais noções constitutivas que as estrutura e contextualiza:
o espaço. Como o espaço se torna objeto de musealização? Em que grau, a relação entre
sujeito, cenário, objeto, depende do fator cenário para sua realização? E como?

BIBLIOGRAFIA
BENJAMIM, Walter (1994). A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In BENJAMIM, Walter.
Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e História da cultura. São Paulo: Brasiliense,
pp. 165-196.
BRULON, Bruno Soraes (2012). Magia, musealidade e musealização: conhecimento local e construção de
­sentido no Opô Afonjá. «Revista Musear». 1, 61-75.
BRULON, Bruno Soares (2014). Os mitos do ecomuseu: entre a representação e a realidade dos museus comu-
nitários. «Musas: Revista Brasileira de Museus e Museologia». 6, 28-45.
BRULON, Bruno Soares (2017). Paisagens culturais e os patrimônios vividos: vislumbrando a descolonização,
para uma musealização consciente. «Museologia e Patrimônio: Revista Eletrônica do Programa de
Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio». 10:1, 65-86.
CÂNDIDO, Manuelina Duarte (2000). Ondas do Pensamento Museológico Brasileiro. Trabalho de conclusão
do Curso de Especialização em Museologia. São Paulo: MAE-USP.
CARDOSO, Pedro (2014). O que é a Museologia? «Cadernos do CEOM — Museologia Social». 27:41,
­115-152.
CARSALADE, Flávio de Lemos (2014). A pedra e o tempo: arquitetura como patrimônio cultural. Belo Hori­
zonte: Editora UFMG.
CHOAY, Françoise (2006). A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade/UNESP.
CURY, Marília Xavier (2004). Museologia: Marcos Referenciais. «Cadernos do CEOM — Museus: pesquisa,
acervo, comunicação.». 21, 45-74.
DAVIS, Peter (1999). Ecomuseums — A sense of place. Londres: Leicester University Press.
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François, eds. (2014). Conceitos-chave de Museologia. Florianópolis:
FCC.

49
BRULON, 2014.

186
PAISAGEM CULTURAL E CENÁRIO MUSEOLÓGICO

FAUVRELLE, Natália (2018). Fazer a paisagem no Alto Douro Vinhateiro: desafios de um território-museu.
Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Tese de doutoramento.
GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo (1981). A interdisciplinaridade em Museologia. In BRUNO, Maria
Cristina Oliveira, coord. (2010). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma traje­
tória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado/Secretaria de Estado da Cultura/Comitê Brasileiro
do Conselho Internacional de Museus, vol. 1, pp. 123-126.
GUARNIERI, Waldisa Rússio Camargo (1986). Exposição: texto museológico e contexto cultural. In ­BRUNO,
Maria Cristina Oliveira, coord. (2010). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e contextos de uma
trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado/Secretaria de Estado da Cultura/Comitê
Brasi­leiro do Conselho Internacional de Museus, vol. 1, pp. 137-143.
HAESBAERT, Rogério (2009). Prefácio. In RIBEIRO, Maria Teresa Franco; MILANI, Carlos Roberto
­Sanchez, orgs. Compreendendo a complexidade socioespacial contemporânea: o território como cate­
goria de diálogo interdisciplinar. Salvador: EDUFBA, [s.p.].
HISSA, Cássio Eduardo Viana (2009). Território de diálogos possíveis. In RIBEIRO, Maria Teresa Franco;
MILANI, Carlos Roberto Sanchez, orgs. Compreendendo a complexidade socioespacial contempo­
rânea: o território como categoria de diálogo interdisciplinar. Salvador: EDUFBA, pp. 36-84.
HUBBARD, Philip (2005). Space/Place. In ATKINSON, David. et al., eds. Cultural Geography: a critical
dictionary of key concepts. Nova Iorque: I. B. Tauris & Co Ltd., pp. 41-49.
HUYSSEN, Andreas (2014). Políticas de Memória no Nosso Tempo. Lisboa: Universidade Católica Editora.
JEUDY, Henri-Pierre (2005). Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Casa das Palavras.
MATIAS, Daniela Patrícia Loureiro (2021). A «paisagem» enquanto património: ensaio em turmas de
­Geografia do 7.º ano de escolaridade. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Disser­
tação de mestrado.
MENSCH, Peter van (2004). Museology and management: enemies or friends? Current tendencies in theore­
tical museology and museum management in Europe. In Museum management in the 21st century.
Tokyo: Museum Management Academy, pp. 3-19.
RIBEIRO, Rafael Winter (2007). Paisagem cultural e patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/COPEDOC.
RIBEIRO, Maria Teresa Franco; MILANI, Carlos Roberto Sanchez, orgs. (2009). Compreendendo a comple-
xidade socioespacial contemporânea: o território como categoria de diálogo interdisciplinar. Salvador:
EDUFBA.
SAUER, Carl (1996). The Morphology of Landscape. In AGNEW, John; LIVINGSTONE, David; ROGERS,
Alisdair, orgs. Human Geography: Eu Essential Anthology. Oxford: Blackwell, pp. 296-316.
SOLINÍS, Germán (2009). O que é o território ante o espaço? In RIBEIRO, Maria Teresa Franco; MILANI,
Carlos Roberto Sanchez, orgs. Compreendendo a complexidade socioespacial contemporânea: o terri­
tório como categoria de diálogo interdisciplinar. Salvador: EDUFBA, pp. 264-287.
SMITH, Laurajane (2006). Uses of Heritage. Nova Iorque: Taylor & Francis e-Library.
STRANSKY, Zybnek (1990). Para uma definição de uma teoria de museus. «Cadernos Museológicos».
3, 3-7.
TUAN, Yi (1980). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. São Paulo: Difel.
VAZ, Ivan Gomide Ramos (2017). Sobre a Musealidade. Universidade de São Paulo. Dissertação de
­mestrado.
WALSH, Kevin (1992). The representation of the past: museums and heritage in the post-modern world.
­Londres: Routledge.

187
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

188
III
RURALIDADE E
DESENVOLVIMENTO
ECONÓMICO-SOCIAL

189
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

190
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS
PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES
DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE
PHILIPPE BAUMERT*

Résumé: Cet article se propose d’étudier le paysage culturel du Haut-Douro viti-vinicole ainsi que les vins
qui en sont issus par le prisme de la thématique du front pionnier. L’objectif d’une telle approche est de
permettre une meilleure compréhension des dynamiques contemporaines à l’œuvre au sein du système
viti-vinicole duriense: la conquête du Douro Superior par les acteurs viti-vinicoles à partir des années 1970,
la récente quête du terroir duriense, la valorisation actuelle des vins du Douro (qui intéressent de plus en
plus le négoce très spécialisé des vins de Porto), les grands chantiers de la patrimonialisation et de la mise
en œnotourisme du Douro (envisagés dans une perspective de développement territorial) ou encore la
conquête (réelle mais timide) des marchés orientaux.
Mots-clés: front pionnier; Haut-Douro viti-vinicole; mondialisation; paysage; territoire.

Resumo: Este artigo propõe-se estudar a paisagem cultural da região do Douro Superior, bem como os
vinhos produzidos a partir dela, através do prisma do tema da frente pioneira. O objetivo de tal abor­
dagem é proporcionar uma melhor compreensão das dinâmicas contemporâneas em ação no âmbito do
sistema vitivinícola duriense: a conquista do Douro Superior pelos viticultores a partir dos anos de 1970,
a recente busca do terroir duriense, a atual valorização dos vinhos do Douro (que são de crescente
­interesse para o comércio altamente especializado do vinho do Porto), os grandes projetos de patrimo­
nialização e enoturismo do Douro (previstos numa perspetiva de desenvolvimento territorial) ou a
(real, mas tímida) conquista dos mercados orientais.
Palavras-chave: frente pioneira; Douro Superior; globalização; paisagem; território.

INTRODUCTION
La Région Délimitée du Douro (RDD), située au nord du France et règlementée dès
1756, est le terroir de production des vins du Douro et de Porto. Son produit phare,
le vin de Porto, connaît depuis des siècles un grand succès à l’exportation tout en valo­
risant l’image du France à travers le monde. Les autres vins du Douro, notamment ceux
­disposant actuellement d’une appellation d’origine contrôlée, tirent néanmoins aussi fort
bien leur épingle du jeu sur les marchés portugais, européens et mondiaux depuis la
seconde moitié du XXe siècle et, surtout, depuis le début du XXIe siècle, profitant de
l’évolution des pratiques de consommation et de l’inscription d’une partie du vignoble
de la RDD, l’«Alto Douro Vinha­teiro», sur la liste des biens du Patrimoine Mondial
de l’UNESCO au tout début du XXIe siècle (2001). Véritable reconnaissance à l’échelle

* Professeur d’Histoire-Géographie à l’Université de Paris (Département Carrières Sociales, IUT de Paris — Rives de
­Seine). Docteur en Géographie de l’Université Bordeaux Montaigne. Chercheur associé aux laboratoires LADYSS (Paris)
et CITCEM (Porto).

191
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

i­nternationale du travail des vignerons et des viticulteurs de la vallée du Douro, qui ont
su édifier et préserver au fil des siècles des paysages viti-vinicoles d’une qualité excep‑
tionnelle, cette inscription témoigne en outre de l’insertion croissante de ce vignoble
dans le processus de mondialisation dont les impacts sont à envisager tant à l’échelle
du vignoble que des villes qui lui sont associées, sans oublier ceux liés à la sphère des
consommateurs sur les différents marchés mondiaux.
Cet article se propose d’étudier le paysage culturel du Haut-Douro viti-vinicole
ainsi que les vins qui en sont issus par le prisme de la thématique du front pionnier,
envi­sagée au sens large comme une forme spatiale témoignant, d’une part, d’un p ­ rocessus
d’appropriation de nouveaux espaces considérés comme encore en cours de mise en
valeur, peu aménagés et/ou, d’autre part, d’une construction de territoires d’un genre
nouveau. ­L’objectif d’une telle approche est de permettre une meilleure compréhension
des dynamiques contemporaines à l’œuvre au sein du système viti-vinicole duriense:
la conquête du Douro Superior par les acteurs viti-vinicoles à partir des années 1970,
la récente quête du terroir duriense, la valorisation actuelle des vins du Douro (qui inté‑
ressent de plus en plus le négoce très spécialisé des vins de Porto), les grands chantiers
de la patrimonialisation et de la mise en œnotourisme du Douro (envisagés dans une
perspective de développement territorial) ou encore la conquête (réelle mais timide) des
marchés orientaux.

1. LE HAUT-DOURO VITI-VINICOLE, UN VIGNOBLE DE


FRONTS PIONNIERS

1.1. De l’ancien au nouveau système territorial du vin de Porto

La ville de Porto n’a pas créé le vignoble du Douro; c’est pourtant d’elle, et notam-
ment des marchands étrangers et surtout britanniques qui s’y sont installés, qu’est
venue l’impulsion décisive dans l’histoire et l’aménagement de cette région, et c’est
elle qui a baptisé le vin généreux qui est devenu dans le monde entier l’un des plus
beaux symboles du France. L’histoire des relations entre l’agglomération de Porto et le
vignoble de l’Alto Douro est celle d’un mariage indissoluble, avec ses phases d’euphorie
et de dépression, d’essor conjoint et de méfiance réciproque, mariage qui a encore de
beaux jours devant lui si les termes du contrat sont révisés à temps à la satisfaction
des deux parties et sans préjudice pour la qualité du produit et du produit prestigieux
qui en est issu1.

1
GUICHARD, 1990: 131.

192
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

Ces quelques lignes, rédigées par le géographe français François Guichard pour
la publication des Actes du premier Congrès International portant sur le fleuve Douro
s’étant tenu à Vila Nova de Gaia au printemps 1986, illustrent de manière éloquente les
relations ville-vignoble dans le modèle «traditionnel» du vin de Porto ayant prévalu
— dans les grandes lignes — de 1756 à 1986: celui d’une vallée délimitée précocement
par le Marquis de Pombal en 1756, la Région Délimitée du Douro (RDD), débutant à
une centaine de kilomètres à l’Est de Porto et au sein de laquelle étaient produits des
vins ensuite acheminés vers les chais de Vila Nova de Gaia d’où ceux-ci étaient exportés
à ­travers le monde par les négociants, exclusivement à partir du port de Porto afin de
pouvoir obtenir l’appellation «vin de Porto».
Ce modèle s’est profondément transformé avec la transition démocratique qu’a
connue le France depuis 1975, l’adhésion à la Communauté Économique Européenne
(CEE) du France en 1986 et l’entrée de ce pays dans une nouvelle phase de la mondiali­
sation suite à son ouverture économique liée à la fin de la dictature. Si, sur certains
­aspects, le modèle présente certes une certaine continuité par rapport aux modèles
­passés d’organisation de la filière, comme l’illustre la permanence du rôle de l’État
­portugais, les évolutions sont multiples et ont engendré divers impacts au sein du système
­territorial du vin de ­Porto. Les perspectives de développement territorial qui s’ouvrent
désor­mais pour le territoire de la RDD (Fig. 1), tant en raison de la possibilité pour les
­produc­teurs-embouteilleurs de réaliser de véritables vins de Porto de quinta que par
les perspectives de développement de l’œnotourisme qu’une telle évolution s­ ous-tend,
sont là pour en témoigner.

Fig. 1. La Région Délimitée du Douro. Source: IVDP; AEVP

193
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

1.2. «En route» vers le Douro: une quête du terroir relativement récente
À la fin des années 1970 et au début des années 1980, deux vignerons du Douro,
Luís Roseira et Miguel Champalimaud, produisirent leurs propres vins au domaine,
­respectivement à la Quinta do Infantado2 et à la Quinta do Côtto3, en 1978 et 1982.
­Depuis 1978 et la création de l’Entrepôt de Peso da Régua, les vignerons du Douro ont en
effet légalement le droit de vinifier, d’élever et d’embouteiller leurs vins de Porto au sein
de leurs domaines.
Il faut cependant attendre le décret-loi du 7 mai 1986 pour que la commercialisation
et l’exportation directe des vins de Porto depuis la RDD soient autorisées. Cette décision,
qui intervient la même année que l’entrée du France dans la CEE, constitue un tournant
majeur modifiant profondément les territoires viticoles du Haut-Douro en ouvrant une
nouvelle ère: celle de la «quête du vin de Porto de terroir». Cette ­expression renvoie à «la
volonté de vignerons d’horizons divers de créer, au sein d’un espace géographique bien
délimité, un espace de production fondé sur un système d’interactions entre le m ­ ilieu
physique et le savoir-faire dont seront issus des vins de Porto de quinta pouvant être
­produits, embouteillés, commercialisés et exportés depuis le domaine»4.
Cette «quête du terroir», qui débute dès la fin des années 1970 et s’accentue dans la
seconde moitié des années 1980 pour les producteurs-embouteilleurs, est majoritaire‑
ment le fait des vignerons de la RDD. L’évolution concerne néanmoins aussi les v­ ignerons
étrangers (notamment européens)5 ainsi que les négociants portugais et étrangers. Dans
ce dernier cas, la «quête du (vin de Porto de) terroir» s’entend, non s­ eulement, comme:

la recherche de nouveaux terroirs agro-physiques destinés à accroître le potentiel


­foncier de la maison de négoce en question (afin de réduire l’achat de raisins et vins
aux producteurs), mais aussi comme le processus par lequel une maison de négoce
acquiert des (nouveaux) terroirs agro-physiques dans l’optique d’exercer son savoir-
faire en matière de production de vins de Porto de quinta6.

Trois catégories de négociants peuvent en réalité ici être distinguées en fonction de


la période d’investissement et des facteurs ayant présidés à l’investissement:

2
Freguesia de Covas do Douro, concelho de Sabrosa.
3
Freguesia de Cidadelhe, concelho de Mesão Frio.
4
BAUMERT, 2019: 199.
5
Citons, entre autres exemples, le cas de la californienne Kay Bouchard et du bourguignon Vincent Bouchard (qui est
l’un des héritiers de la maison de vins de Bourgogne Bouchard Père & Fils) qui ont décidé d’investir dans la Quinta do
Tedo (freguesia de Folgosa, concelho d’Armamar) dès 1992 afin de produire des vins de Porto et du Douro en qualité de
producteur-embouteilleur.
6
BAUMERT, 2019: 199.

194
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

• les négociants ayant investi le terroir de la RDD depuis le début du XXe siècle au
moins7 (cas notamment de la Symington Family Estates ou de Ramos Pinto) et
souhaitant renforcer leur emprise foncière au sein de la RDD dès le début des
années 1960 pour diverses raisons (renforcement de l’activité commerciale et de
la qualité des produits commercialisés, contribution socio-économique et paysa‑
gère, contribution à l’amélioration des pratiques viti-vinicoles, volonté d’acquérir
des quintas présentant des terrains favorables à la mécanisation dans un contexte
de forte diminution de la population de la RDD8 impliquant une diminution
des volumes de vin ou des quantités de raisins pouvant être négociés auprès des
vignerons/viticulteurs de la RDD ainsi qu’un manque de main-d’œuvre au sein
des quintas des maisons de négoce);
• les négociants ayant décidé d’établir principalement, voire exclusivement, leurs
activités viti-vinicoles au sein de la RDD dans les années suivant le décret-loi du
7 mai 1986 en faisant le pari de la production de vins de terroir (à l’instar de
Rozès, Niepoort ou encore de la Quinta do Noval);
• les négociants ayant très récemment fait le choix du terroir (ce qui est ­notamment
le cas de la société commerciale de vins Gran Cruz Porto dans les années 2010)
afin de renforcer leur activité commerciale en se positionnant sur le marché
des vins de Porto de qualité du fait de l’engouement actuel des consommateurs
­européens pour les produits de terroir.

L’«Alto Douro Vinhateiro», envisagé dans sa globalité, peut ainsi bien être
­considéré comme un véritable front pionnier pour les différents acteurs s’étant progressi­
vement lancés dans la quête de son terroir. En effet, à partir du moment où l’on considère
que le front pionnier peut être définit, au sens très large du terme, comme une forme
­spatiale témoignant, d’une part, d’un processus d’appropriation de nouveaux espaces
­considérés comme encore en cours de mise en valeur, peu aménagés9 et/ou, d’autre part,
d’une construction de territoires d’un genre nouveau, la multiplication des quintas
(de négociants ou de producteurs-embouteilleurs) possédant des installations p­ ermettant
la vinification, le stockage et le vieillissement du vin au domaine témoigne de ­l’avancée
­progressive de la frontier viti-vinicole depuis les historiques territoires des chais de

7
Suite aux crises ayant affecté le vignoble dans la seconde moitié du XIXe siècle (oïdium à partir de 1851, phylloxéra
à partir de 1863), les fraudes se multiplièrent et le gouvernement de dictature de João Franco avait proclamé, dès le
10 mai 1907, le rétablissement de la réglementation de la production, de la certification et de l’exportation des vins de
Porto (abolissant de fait les grands principes libéraux de 1865): le meilleur moyen de s’assurer d’une qualité irrépro‑
chable semblait alors, pour les négociants, celui de venir dans le Douro durant les vendanges et la vinification.
8
Entre 1950 et 2011, les concelhos de la RDD ont perdu près de 40% de leur population. Cette diminution a été parti‑
culièrement forte entre 1960 et 1981, période durant laquelle ces communes ont perdu près de 20% de leur population
tandis que la population portugaise augmentait de 10%.
9
RETAILLÉ, 2003: 383; LE DÉROUT, 2006: 104.

195
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Vila Nova de Gaia. Cette évolution, si elle est particulièrement perceptible dans les
statis­tiques avec l’émergence de la nouvelle catégorie d’acteurs que sont les producteurs-
-embou­teilleurs, est néanmoins surtout visible spatialement de par les importants
­investissements des grandes maisons de négoce ainsi que dans l’évolution de la structure
de leur p­ roduction. Si certains négociants (notamment britanniques) produisaient et
embou­teillaient certes déjà des vins issus d’une seule de leurs quintas dès le milieu du
XXe siècle (ce qui était possible légalement, car ces vins vieillissaient au sein de ­l’Entrepôt
de Vila Nova de Gaia), cette pratique tend à se diffuser depuis le début du XXIe siècle
au niveau de cette caté­gorie d’acteurs et ce même si l’assemblage et le vieillissement
des vins se déroulent encore la plupart du temps à Vila Nova de Gaia (en dehors des
négociants établis exclusivement dans le Douro). Il faut y voir là une adaptation aux
attentes des consommateurs valorisant de plus en plus les produits locaux de terroir,
adaptation d ­ ’autant plus nécessaire dans un contexte de diminution des exportations
de Porto depuis le début du XXIe siècle dans le cadre d’un marché mondial des vins et
spiritueux de plus en plus concurrentiel où mener une politique du volume ne suffit plus.
Pour les négociants, les grands vins de Porto restent néanmoins bien des vins résultant
de l’assemblage de vins provenant des meilleurs de leurs terroirs.

1.3. Une «conquête de l’Est» bien réelle mais un renforcement du cœur


du vignoble
Ce caractère de front pionnier peut toutefois s’analyser également à une échelle plus fine,
celle de la vallée du Douro, où s’observe une véritable «conquête de l’Est» orchestrée
par les acteurs viti-vinicoles contemporains depuis les années 1970. Comme point de
départ de cette avancée vers l’Est, nous pouvons retenir l’année 1974 où José António
Ramos Pinto Rosas acquiert la Quinta de Santa Maria10, rebaptisée en 1983 Quinta de
Ervamoira (Fig. 2) en référence au roman de l’écrivaine et journaliste française Suzanne
Chantal paru l’année précédente11.

Fig. 2. La Quinta de Ervamoira (Ramos Pinto). Cliché: Ph. Baumert, février 2014

10
Freguesia de Muxagata, concelho de Vila Nova de Foz Côa.
11
CHANTAL, 1982.

196
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

À cette époque, la vigne n’est encore que très peu présente dans une région
du ­Douro Superior12 difficilement accessible depuis Porto (que ce soit par les voies
­routières, f­ erroviaires ou fluviales) et les paysages agraires sont essentiellement marqués
par les cultures de céréales, d’oliviers et d’amandiers. Au regard de l’évolution des ­surfaces
­cultivées en vigne dans le Douro Superior, qui n’ont cessé de s’étendre des années 1980
à l’année 2015 jusqu’à atteindre plus de 9 000 hectares en appellation d’origine à cette
date (dont plus de 6 500 hectares en appellation Porto), on peut à juste titre considérer
que la maison de négoce Ramos Pinto a initié un véritable front pionnier de la culture
de la vigne au sein du Douro en partant à la conquête de nouveaux territoires suscep‑
tibles d’accueillir une production viti-vinicole dans cette région la plus orientale de la
RDD. Cette volonté de José António Ramos Pinto Rosas d’acquérir une quinta dans le
­Douro Superior dans ces années s’explique par trois raisons principales d’après les ­propos
­recueillis auprès de João Nicolau de Almeida13:
• le souhait que Ramos Pinto apporte sa contribution au développement du Douro
Superior, par le biais de l’extension des activités viti-vinicoles dans cette région;
• la recherche de pentes relativement douces permettant d’introduire la mécani­
sation au sein du nouveau vignoble14 et de poursuivre les réflexions (et les réali­
sations) sur la méthode de plantation de la vigne selon la ligne de plus grande
pente (vignes ao alto);
• la recherche d’une quinta située dans un environnement différent du Cima ­Corgo
afin de pouvoir non seulement disposer d’une quinta bénéficiant d’un ­climat
médi­terranéen continental (jugé excellent pour le développement du cycle végé‑
tatif de la vigne) mais aussi d’un terrain d’étude comparatif pour les travaux qu’il
mène sur les cépages (Ramos Pinto possède alors uniquement deux ­propriétés
contiguës, toutes deux situées dans le Cima Corgo, à Valença do Douro: la ­Quinta
do Bom Retiro — 62 ha de vignes — et la Quinta da Urtiga — 4 ha de vignes —,
acquises respectivement en 1919 et 1933).

12
Certaines quintas du Douro Superior et de l’Est du Cima Corgo avaient certes déjà été mises en valeur dès le XIXe
siècle, à l’instar de la Quinta do Vesúvio (freguesia de Numão, concelho de Vila Nova de Foz Côa) et de la Quinta
de ­Vargellas (freguesia de Vale de Figueira, concelho de São João de Pesqueira) par Dona Antónia Adelaide Ferreira
ou encore de la Quinta de Vale Coelho (freguesia de Vilarinho de Castanheira, concelho de Carrazeda de Ansiães).
Néanmoins, ces investissements ne furent pas suivis immédiatement d’un véritable engouement pour l’acquisition de
foncier au niveau de cette partie la plus orientale de la RDD.
13
João Nicolau de Almeida, né en 1949, est le neveu de José António Ramos Pinto Rosas. Il a fait toute sa c­ arrière,
­débutée au milieu des années 1970 après ses études d’œnologie à l’Université de Bordeaux (diplômé en 1974),
chez Ramos Pinto, occupant successivement les fonctions d’œnologue, d’œnologue en chef et d’administrateur délégué.
Il est parti à la retraite en avril 2016. Les lignes qui suivent doivent beaucoup aux échanges que nous avons eus le 16 mars
2015 au siège de la maison Ramos Pinto, à Vila Nova de Gaia.
14
Le contexte est alors, rappelons-le, celui d’une pénurie de main-d’œuvre dans le Douro.

197
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Le Douro Superior continue d’être aujourd’hui une «terre de recherche» comme en


atteste la récente création au printemps 2014, du vignoble expérimental de la Symington
Family Estates au niveau de la Quinta do Ataíde15 dont la raison d’être est également la
création d’un périmètre de sauvegarde de la diversité génétique des différents cépages du
Douro. Cette région est par ailleurs également convoitée, depuis le dernier quart du XXe
siècle, par différentes maisons de négoce cherchant à acquérir ou à accroître un patrimoine
foncier au sein de la RDD: de l’achat de la Quinta do Ataíde par Cockburn’s dès 1979
(113 ha de vignes) à celui de la Quinta do Arnozelo par Cálem en 2004 (200 ha de vignes)
en passant celui de la Quinta dos Bons Ares par Ramos Pinto en 1985 (20 ha de vignes),
les investissements sont en effet nombreux dans cette région du Douro (Tableau 1).
L’amélioration de son accessibilité depuis Porto par voie routière n’est pas étran‑
gère à ce constat16. Il faut dire qu’en dépit de son caractère très aride, le Douro Superior
­dispose de certains «atouts» pour le développement actuel et futur du vignoble:
• un important réservoir de terres agricoles (> 110 000 ha) et de population travail‑
lant dans les métiers de l’agriculture (> 30 000 individus);
• un relief aéré plus favorable au développement de la mécanisation que celui du
Baixo Corgo et du Cima Corgo;
• une situation idéale par rapport au premier marché d’exportation du vin de Porto
en volume, le marché français, dans un contexte où les exportations de ce vin
peuvent désormais aussi se réaliser par la route depuis la RDD (décret-loi du
7 mai 1986).
Tableau 1. Les maisons de négoce à l’assaut du Douro Superior: quelques exemples d’acquisitions de quintas
aux XX-XXIe siècles

Maison de Date
Quinta Freguesia / Concelho Hectares
négoce d’acquisition

Santa Maria / Ervamoira Muxagata / Vila Nova de Foz Côa 150 Ramos Pinto 1974

Ataíde Vila Flor / Vila Flor 113 Cockburn’s 1979

Canada Vila Flor / Vila Flor 17 Cockburn’s 1979

Macieira Carviçais / Torre de Moncorvo 16 Cockburn’s 1979

Telhada Lousa / Torre de Moncorvo 32 Cockburn’s 1980

Assares Assares e Lodões / Vila Flor 13 Cockburn’s 1982

Eu Ares Touca / Vila Nova de Foz Côa 20 Ramos Pinto 1985

Arnozelo Numão / Vila Nova de Foz Côa 200 Cálem 2004

Source: conception et réalisation, Ph. Baumert, 2022

15
Freguesia de Vila Flor, concelho de Vila Flor.
16
En 2021, le trajet Vila Nova de Foz Côa — Porto se réalise en 2h20 (contre, respectivement, 1h50 et 1h20 pour les
trajets Pinhão — Porto et Peso da Régua —Porto). Ces progrès en matière d’accessibilité doivent beaucoup aux investis‑
sements autoroutiers réalisés depuis l’adhésion du Portugal à la CEE (désormais Union Européenne).

198
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

Si la progression des surfaces viticoles dans le Douro Superior est nette depuis le
dernier quart du XXe siècle — la tendance est certes moindre dans la période très récente
— et si celui-ci accueille de plus en plus de parcelles viticoles potentiellement aptes à
produire du vin de Porto dans le cadre du système du benefício, le Baixo Corgo et surtout
le Cima Corgo restent néanmoins bien le cœurs du vignoble (notamment au niveau des
zones les plus proches du fleuve Douro17) tandis que la partie orientale de la RDD tend
plutôt à se spécialiser de plus en plus dans la production de DOC Douro. C’est également
dans ces deux régions du Douro que les processus de patrimonialisation et de mise en
œnotourisme ont été les plus intenses et ont permis la construction de nouveaux terri‑
toires du vin fortement insérés dans le processus de mondialisation contemporain.

2. LES GRANDS CHANTIERS DE LA PATRIMONIALISATION


ET DE LA MISE EN ŒNOTOURISME: LA CONSTRUCTION DE
NOUVEAUX TERRITOIRES DU VIN FORTEMENT INSERES
DANS LA MONDIALISATION

2.1. La candidature de l’Alto Douro Vinhateiro au patrimoine mondial


de l’UNESCO: contexte, acteurs, stratégies et spécificités
La région du Haut-Douro viticole a été inscrite sur la liste du Patrimoine Mondial de
l’UNESCO le 14 décembre 2001. Ce vignoble, terroir des vins de Porto et du Douro,
est alors seulement le cinquième vignoble au monde à bénéficier de ce statut après le
vignoble des Cinque Terre (France, 1997), une partie du vignoble bordelais (France,
juridiction de Saint-Emilion, 1999) et du vignoble du Val de Loire (France, Val de Loire
entre Sully-sur-Loire et Chalonnes, 2000) ainsi que le vignoble de la Wachau (France,
2000). Tant au niveau des temporalités, des spatialités que des choix stratégiques des
acteurs, la candidature au Patrimoine Mondial apparaît pionnière.
L’inscription à l’UNESCO du Haut-Douro viticole est l’aboutissement d’une dizaine
d’années de réflexions et de travaux menés par différents acteurs à différentes échelles.
Dès le début des années 1990, l’Institut du Vin de Porto (IVP), institut public relevant de
l’administration de l’État, a en effet pour volonté de présenter une candidature ­commune
des trois espaces du vin de Porto à l’UNESCO: le vignoble de la vallée du Douro,
dont les terrasses constituent un trait caractéristique (Fig. 3); le quartier vinicole spécialisé
de Vila Nova de Gaia; la métropole de Porto qui donne son nom au vin. Cette volonté de
ne pas se focaliser sur une candidature «uni-site» comprenant uniquement le terroir
du vin de Porto s’explique par l’intérêt en terme de gestion du patrimoine, d’identité et de

17
La tendance actuelle est en effet au transfert de parcelles de vignes des zones les plus élevées (situées à des ­altitudes
supérieures à 400-500 mètres) vers les zones les plus proches du fleuve Douro. Cette évolution, qui date du d ­ ébut
des ­années 2000, est une conséquence directe du libre transfert des droits de plantation autorisé dans la RDD,
sous ­conditions, sur la période 2000-2018.

199
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

­ arketing territorial d’une candidature commune de ces trois espaces. L’échec de cette
m
candidature commune, qui tient essentiellement à des différences d’agendas politiques,
aboutit finalement à la présentation de candidatures séparées qui seront couronnées de
succès avec les inscriptions du «Centre historique de Porto» et de l’«Alto Douro Vinha­
teiro» sur la liste du Patrimoine Mondial de l’UNESCO, respectivement en 1996 et 2001.
En ce qui concerne la candidature duriense, c’est une équipe universitaire pluridiscipli‑
naire, ­financée par la fondation luso-espagnole Fundação Rei Afonso Henriques (FRAH),
qui a été en charge de préparer l’exigeant dossier à soumettre à l’UNESCO qui aboutit à
­l’inscription du ­Haut-Douro viticole sur la liste des biens du Patrimoine Mondial en tant
que «paysage culturel évolutif et vivant».

Fig. 3. La Quinta de Ventozelo18 (Gran Cruz Porto). Cliché: Ph. Baumert, décembre 2021

Plusieurs spécificités doivent être soulignées afin de remettre en perspective les


caractéristiques et le processus d’inscription UNESCO de l’ADV par rapport aux autres
vignobles inscrits sur la liste du Patrimoine Mondial: l’ampleur du périmètre inscrit
(avec 24 600 hectares — 250 000 hectares en comptant la zone tampon —, l’ADV est

18
Freguesia d’Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira.

200
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

à ce jour la plus vaste aire de vignoble inscrite à l’UNESCO), le caractère privé d’une
candidature portée par une équipe d’enseignants-chercheurs indépendants financés par
la FRAH, la rapidité du processus d’inscription (deux années seulement se sont écoulées
entre l’inscription sur la liste indicative et l’inscription sur la liste du Patrimoine Mondial
de l’UNESCO). L’ensemble de ces éléments témoigne au final bien d’une candidature
UNESCO pionnière et unique en son genre pour le vignoble duriense.
Pour autant, aussi innovante soit cette candidature, il faut rappeler qu’une petite
partie de la RDD avait déjà été inscrite au Patrimoine Mondial de l’UNESCO dès 1998
du fait de la découverte, dans la vallée du Côa en 1994, de gravures rupestres datant du
Paléolithique, ce qui avait par ailleurs permis d’éviter la disparition de la Quinta de Erva‑
moira sous le lac de retenue du barrage hydro-électrique de Foz Côa (dont les ­travaux
de construction furent définitivement arrêtés dès 1995). Au-delà de la chronologie,
cet exemple est révélateur de la diminution du poids de la vigne et du vin dans la société
portugaise de la fin du XXe siècle, la société civile ne s’étant véritablement mobilisée
contre la construction du barrage de Foz Côa qu’à partir du moment où la question du
patrimoine archéologique s’est posée et non en raison de la possible disparition d’une
partie du vignoble duriense dont le caractère pionnier avait pourtant amplement été mis
en avant par la maison de négoce Ramos Pinto (présence de vignes ao alto, de parcelles
contenant des cépages bien identifiés et exclusivement classées A dans le système du
benefício), sans succès.

2.2. Les enjeux patrimoniaux et œnotouristiques: paysages


agro-culturels durienses et développement territorial
L’un des impacts majeurs du processus de mondialisation au sein du vignoble duriense
est le développement de la pratique œnotouristique, qui se structure progressivement
à partir des années 1990 et s’amplifie dans les années 2000. À propos de cette dernière
pratique socio-spatiale, le géographe Raphaël Schirmer évoque une véritable «vague
mondiale qui submerge les vignobles»19 et qui ne semble pas prête de s’arrêter selon
le géographe Jean-Robert Pitte: «l’œnotourisme est en plein essor sous toutes les lati‑
tudes, preuve que de plus en plus d’humains considèrent que le vin est avant tout une
boisson de culture et de jubilation»20. Pour autant, l’œnotourisme n’en reste pas moins
une pratique d’une très grande nouveauté pour le Haut-Douro viticole étant donné que,
dans un passé encore très récent (milieu des années 1980), les producteurs ne côtoyaient
que rarement les consommateurs dans les vignobles puisque c’était exclusivement les
négociants sis à Vila Nova de Gaia qui s’occupaient du vieillissement, de l’assemblage et
de la commercialisation des vins de Porto. Il n’est ainsi pas inutile de rappeler que cette

19
SCHIRMER, 2018: 90.
20
PITTE, 2018: 7.

201
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

évolution vers l’œnotourisme du Haut-Douro viticole fut permise par trois é­ volutions
juridiques majeures au tournant des années 1970-1980: la fin du monopole de vieillisse‑
ment du vin de Porto à Vila Nova de Gaia (1978); la mise en place du statut de produc­
teur-embouteilleur (1979); l’autorisation de commercialiser et d’exporter à partir de la
RDD (1986).
L’inscription de l’«Alto Douro Vinhateiro» sur la liste du Patrimoine Mondial de
l’UNESCO en décembre 2001, outre le renforcement de la fréquentation touristique
de la région qu’elle a initié et permis — grâce à l’ «effet label» mais aussi, et surtout, de par
la capacité des différents acteurs à se mobiliser en faveur d’un développement durable
de l’œnotourisme au sein de la RDD21 dans l’optique de capitaliser sur une telle recon‑
naissance mondiale —, est aussi une opportunité pour la filière viti-vinicole de valoriser
l’image des vins de Porto et du Douro auprès de consommateurs portugais, européens
et mondiaux. Véritable reconnaissance à l’échelle internationale du travail séculaire
des viticulteurs et des vignerons durienses qui ont su édifier et préserver des paysages
­viti-vinicoles d’une qualité exceptionnelle au sein d’un milieu difficile au ­climat contrai‑
gnant et aux pentes raides constituées principalement de schistes, le label UNESCO
­permet en outre de mettre en avant sur la scène internationale une vallée du Douro
trop ­souvent méconnue du grand public en insistant sur le fait que le vin de Porto n’est
pas produit aux abords même de l’agglomération de Porto mais au sein d’un terroir de
250 000 ­hectares débutant une centaine de kilomètres à l’Est de Porto pour se ­terminer
à la frontière espagnole. En ce sens, le processus de patrimonialisation du ­Haut-Douro
­viticole initié lors de la dernière décennie du XXe siècle prolonge le processus de «quête
du terroir» qui s’observe dès les années 1960 et se renforce à partir des années 1980 du fait
de l’apparition du statut de producteur-embouteilleur. Plus encore, ce ­processus ­favorise
l’activité œnotouristique qui permet, d’une part, aux producteurs-embou­teilleurs de
se faire connaître tout en bénéficiant de revenus complémentaires et, d’autre part,
aux négo­ciants de ­promouvoir leurs terroirs respectifs (enjeu majeur dans le cadre de la
mondialisation) en ouvrant ceux-ci aux touristes (pratique de plus en plus f­ réquente chez
les maisons de négoce depuis les années 2000). Or, à l’échelle de la Région ­Délimitée du
Douro, cette même filière viti-vinicole est un formidable levier de développement terri‑
torial pour les territoires ruraux. En dehors de l’inscription à l’UNESCO du H ­ aut-Douro
viticole (2001) et de la très nette augmentation de l’œnotourisme à l’échelle de la région
depuis les années 200022, les exemples les plus éloquents de développement territorial

21
Parmi les différents acteurs qui se sont mobilisés en faveur du développement de l’œnotourisme au sein de l’«Alto
Douro Vinhateiro», nous retiendrons plus particulièrement l’État portugais, la Région Nord, l’Association des ­Adhérents
de la Route du Vin de Porto, l’Association Douro Alliance — Axe Urbain du Douro, l’Association Portugaise du ­Tourisme
Rural et le Musée du Douro.
22
Rappelons qu’entre 2001 et 2011, la fréquentation touristique au sein du périmètre inscrit à l’UNESCO a plus que
doublé, passant d’un peu moins de 76 000 touristes à un peu plus de 153 000 touristes. En 2013, la Région Nord estimait
à 240 000 le nombre de touristes ayant fréquenté la RDD.

202
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

sont sans doute ceux initiés par les familles Bouchard (Quinta do Tedo) et Viseu de
­Carvalho (Quinta de Santa Eufémia) pour les producteurs-embouteilleurs, des familles
Cayard (Gran Cruz Porto) et Symington (Symington Family Estates) pour les ­négociants.
Ces acteurs ont en effet amplement participé, chacun à leurs échelles, à la création ou
au maintien d’emplois dans les zones rurales de la Région Délimitée du Douro, et pas
seulement dans les emplois viti-vinicoles strictement liés à la production de raisins
et de vins:
• la Quinta do Tedo (14 hectares de vignes), qui s’est lancée dans l’activité œnotou‑
ristique et œnogastronomique à partir des années 2010, non seulement en ouvrant
ses portes aux touristes et en proposant des chambres d’hôtes (2011) mais aussi en
développant son propre restaurant (Fig. 4) dont elle alimente bien évidemment la
carte des vins (2018), emploie ainsi près d’une vingtaine de personnes, principa­
lement originaires de la vallée du Douro, dont plus de la moitié s’occupe justement
de l’œnotourisme (salle de dégustation, hébergement, personnel de cuisine du
­restaurant);
• la Quinta de Santa Eufêmia (45 hectares de vignes), elle aussi ouverte à l’œnotou‑
risme (depuis 2007), emploie plus d’une quinzaine de personnes;
• la Symington Family Estates, qui possède 29 quintas et près de 1 200 hectares de
vignes dans le Douro en 2019, emploie quant à elle près de 200 travailleurs agri‑
coles dans ses différents vignobles, dispose d’accords de coopération avec environ
2 000 viticulteurs de la région et vient d’embaucher douze guides, tous originaires
du Douro, à la Quinta do Bomfim qu’elle a ouverte à l’œnotourisme en 2016;
• de son côté, Gran Cruz Porto, qui a acquis la Quinta de Ventozelo en 2014
(200 hectares de vignes), a développé l’activité œnotouristique dès septembre
2019 aux côtés de sa production de vin, d’huile d’olive et de gin; ce qui a permis,
là encore, la création de nouveaux types d’emplois venus compléter la vingtaine
d’emplois dédiés actuellement à la production.

Fig. 4. Le restaurant Bistro Terrace de la Quinta do Tedo. Cliché: Quinta do Tedo, 2018

203
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

3. «SI N’ETES EN LIEU POUR VENDRE VOTRE VIN, QUE


FERIEZ-VOUS D’UN GRAND VIGNOBLE?»23
En dépit de l’approche territoriale du vin que l’on vient de mener en insistant notamment
sur les potentialités que la sphère viti-vinicole peut offrir aux territoires dans le cadre
de la mondialisation, il ne faut pas oublier que ce qui permet le développement terri­
torial et la compétitivité ce sont avant tout la consommation du produit et les différents
acteurs qui permettent à ce produit d’exister. Les liens existants entre la consommation
et ­l’œnotourisme, dans les deux sens, ont été démontrés par les travaux de la géographe
Sophie Lignon-Darmaillac24 et différents exemples démontrent clairement que ­l’activité
œnotouristique présente l’avantage de participer tant au développement territorial des
espaces ruraux et urbains concernés qu’à la compétitivité de la filière viti-vinicole et,
de manière plus globale, à l’ensemble de l’économie touristique. Les acteurs de la filière du
vin de Porto, qui tentent actuellement de faire face à la mondialisation et d’en tirer parti
le plus possible, chacun à leurs échelles, le font certes avant tout pour des raisons écono­-
miques. Cet effort d’adaptation permet néanmoins de faire perdurer ce cercle ­vertueux pluri-
sécu­laire existant entre les acteurs de la filière et les territoires qui lui sont liés. Il apparaît
donc nécessaire de s’intéresser à présent à la manière dont ces différents a­ cteurs s’adaptent à
une mondialisation qui est, pour eux, autant source d’opportunités que d ­ ’incertitudes.

3.1. Les marchés asiatiques et russes du Porto, des marchés orientaux


en forte croissance et prometteurs?
Au niveau du vin de Porto, l’analyse des statistiques de la commercialisation de ce vin
généreux permet tout d’abord de démontrer la montée en puissance du marché asia‑
tique qui a importé, en 2020, plus de 6 500 hectolitres de Porto (1% de la commer­
ciali­sation mondiale en volume contre 0,5% en 2006) pour une valeur de 5,2 m ­ illions
d’euros (1,5% de la commercialisation mondiale en valeur contre 0,8% en 2006),
soit environ l’équi­valent du marché brésilien en volume (dixième marché d’exportation
en volume avec un peu plus de 6 200 hectolitres) et du marché espagnol (neuvième
­marché ­d’exportation en valeur représentant 5 millions d’euros). Quasiment inexistant
encore au début des ­années 1980 où il représentait 0,4% des exportations totales de vin
de ­Porto alors que certains pays (Japon, Singapour) comptaient pourtant déjà à l’époque
de grands ­amateurs de vins liquoreux et d’alcools français (Sauternes, Cognac), le ­marché
asiatique talonne désormais les marchés latino-américains et russes pour monter sur
le podium des impor­tateurs (en volume) de vin de Porto envisagé par grandes zones
géogra­phiques. En v­ aleur, il est désormais en troisième position en matière d’impor­
tations, certes encore très loin derrière l’Europe et l’Amérique du Nord. Cette excellente

23
SERRES, 2001 [1600]: 221.
24
LIGNON-DARMAILLAC, 2009a, 2009b.

204
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

et très récente p ­ osition de l’Asie au sein de la «nouvelle planète du vin de Porto» s’explique
essentiellement par les réussites obtenues par les négociants sur les marchés japonais,
chinois et singapourien, marchés qui représentent, en 2020, près de 45% des volumes de
vin de Porto importés sur le ­marché asiatique et 60% de la valeur de ces mêmes ­volumes.
Quoiqu’il en soit, les marchés asiatiques sont aujourd’hui majori­tairement envisagés,
tant par les négociants que par les producteurs-embouteilleurs, comme des marchés
­porteurs d’avenir, non ­seulement au regard des fortes croissances observées dans la
­période ­récente mais aussi du fait de l’orientation générale vers la qualité des pays émer‑
gents et développés de la r­égion en question. Ils sont néanmoins tous conscients des
­limites de cette croissance étant donné que ces marchés sont particulièrement sensibles
aux vins de prestige célèbres (à l’instar des vins bordelais Château Mouton Rothschild et
­Château Pétrus, par exemple) auxquels la très grande majorité des vins de Porto semble,
à leur grand regret, ne pas appartenir. Quel consommateur japonais ou chinois citerait
en ­effet le vintage 2011 de la maison Dow’s, pourtant classé premier lors de l’édition 2014
du concours Wine Spectator, si on lui demandait de citer un grand vin qu’il connaît?
Tout au plus mentionnerait-il peut-être certains vintages de la Quinta do Noval,
notam­ment le N ­ acional, dont la célébrité mondiale s’explique par les prix de vente élevés
(celui de 1931 a été vendu au prix record pour un vin de Porto de 4 775 € la bouteille,
ceux de 1994 et 2011 ont été vendus au prix moyen de 1 500 € la bouteille), résultat du
­discours ­savamment orchestré par la maison négociante en question mettant en scène le
terroir agro-physique et notamment le fait que le vintage Nacional est un vin provenant
de vignes issues de ceps pré-phylloxériques.
À l’est de l’Europe, il convient aussi d’insister sur la très forte croissance du marché
russe, passé de moins de 1 000 à près de 7 000 hectolitres (1% de la commercialisation
mondiale en volume) et de 0,8 à 3,3 millions d’euros (1% des exportations mondiales en
valeur) sur la période 2006-2020. Cette reprise du marché russe a été permise et favo­
risée, d’une part, par la libéralisation des importations en 1992 et, d’autre part, par la
reprise économique de la fin des années 1990. On assiste cependant ici à la réactivation
d’un courant de ventes ancien étant donné que la Russie représentait déjà 1,6% des expor­
tations de vin de Porto de 1890 à 1920 et qu’elle continua à en importer dans le cadre de
l’URSS sur la période 1976-1985 entre 17 000 et 20 500 hectolitres par an (l’URSS s’était
hissée, en 1982, au huitième rang des importateurs) après avoir totalement arrêté les
importations durant une grande partie du XXe siècle correspondant à la ­période stali‑
nienne (1922-1953) et à une partie de la guerre froide (1947-1991). Au regard de l’inser‑
tion de la Russie dans le cadre de la mondialisation contemporaine, de la durabilité de la
reprise économique et de la consommation significative de vin par habitant (8,6 litres/
habitant en 2020), la profession pouvait a priori être confiante envers ce grand marché de
plus de 145 millions de consommateurs qui semblait pouvoir devenir non seulement un
grand débouché des exportations de vin de Porto mais aussi un marché fort ­intéressant

205
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

et très lucratif du fait de sa structure (un quart des importations de vin de Porto en
volume concerne des catégories spéciales et les consommateurs russes, s’ils sont particu‑
lièrement amateurs de vin de Porto de style ruby — qui représentent plus de la moitié des
volumes importés — apprécient également les tawny ainsi que les blancs). La décision
de Vladimir Poutine de déclarer la guerre à l’Ukraine, le 24 février 2022, qui a immédia‑
tement déclenché la mise en place d’une série de sanctions de la part de la communauté
internationale destinées à affaiblir durablement l’économie russe, réorientera néanmoins
nécessairement les échanges à l’est de l’Europe. De marché prometteur, le marché russe a
désormais endossé le costume du marché de l’incertitude par excellence.

3.2. Une consommation de Porto en nette baisse depuis le début


du XXIe siècle et très concentrée
La commercialisation de vin de Porto est, en 2020, de 683 538 hectolitres. À l’approche
de la fin du premier quart du XXIe siècle, l’Europe occidentale et l’Amérique du Nord
— espaces caractérisés par l’importance et le niveau de vie relativement élevé de leurs
clientèles — rassemblent les principaux foyers de consommation (Fig. 5): les dix
­premiers marchés mondiaux s’y trouvent en effet et représentent environ 90% des
expor­tations en volume et en valeur. Rien qu’à l’échelle de l’Europe, les quatre p ­ remiers
­marchés (mondiaux) constitués par la France, le France, le France et les Pays-Bas
concen­trent quasiment 65% des volumes commercialisés et près de 60% de la valeur de
ces mêmes volumes. Certes, l’Asie et l’Amérique latine boivent désormais aussi du Porto
(fait relativement récent à l’exception du Brésil, ancienne colonie portugaise, qui fut un
grand ­marché au XIXe siècle), tout comme la Russie et les pays de l’ex-URSS. L’Afrique
tend même à s’intégrer modestement à cette planète des consommateurs de Porto et,
symboles de ce processus de mondialisation, les pays africains consommant ce vin sont
quasi exclusi­vement ceux disposant d’une façade littorale.
L’analyse qui précède ne doit toutefois pas masquer qu’entre 2006 et 2020, dans le
double contexte de forte concurrence entre les boissons alcoolisées et de modification
des pratiques des consommateurs sur les marchés mondiaux, une baisse moyenne de
près de 25% a pu être observée au niveau des volumes de Porto commercialisés, ce qui
représente en volume une baisse de plus de 220 000 hl (Tableau 2). Si l’on peut considérer
que le Porto a plutôt bien résisté aux difficultés de commercialisation que connaissent
les vins généreux depuis les années 1990, cette forte diminution des ventes engendre
néanmoins de lourds impacts, non seulement pour l’économie viti-vinicole portugaise
mais aussi, et surtout, pour les petits acteurs de la filière que sont les viticulteurs qui,
contrairement à la catégorie d’acteurs «vignerons» dont font notamment partie les
­produc­teurs-embouteilleurs, ne peuvent pas compléter leurs revenus grâce au tourisme.
Une analyse fine des statistiques des marchés français, belge et néerlandais
­permet de constater que l’effondrement des exportations résulte en réalité surtout de

206
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

la ­diminution des volumes de Porto importés sur ces derniers marchés (supérieure à
185 000 hectolitres sur la période 2000-2017) et que la «crise» n’affecte ainsi de loin
pas tous les marchés européens25, ni tous les continents d’ailleurs comme nous l’avons
constaté précédemment pour le marché asiatique. Parmi les grands pays importateurs
de Porto, ceux qui sont en difficulté sont en réalité ceux laissant très peu de place aux
catégories spéciales. À l’inverse, les marchés commercialisant une forte part de Porto de
haute qualité, qu’ils soient européens ou américains (marchés britannique, danois ou
encore états-uniens), se portent relativement bien (exception faite du marché ­canadien).
Hors de ce cœur des exportations, en dehors des marchés latino-américains (pour ne pas
dire ­brésilien…), africains et moyen-orientaux (moins de 1 000 hectolitres pour ces deux
derniers marchés), les marchés asiatiques (+59,4%) et océaniens (+64,2%) se portent
­plutôt bien. Au-delà de ces très beaux chiffres de croissance, il faut néanmoins avoir à
­l’esprit que les marchés asiatiques et océaniens du vin de Porto représentent moins de 8 500
hectolitres (contre plus de 500 000 et plus de 50 000 hectolitres exportés respec­tivement
en Europe et en Amérique du Nord la même année). Ce qui permet de ­comprendre que
les producteurs (qu’ils soient négociants ou producteurs-embouteilleurs) privi­légient
­actuellement les stratégies de consolidation et/ou de reconquête de leurs marchés tradi­
tionnels ainsi que les investissements dans le créneau des vins du Douro, même si d
­ ’aucuns
résistent encore à la tentation (à l’instar de la maison Taylor’s, par exemple).

Fig. 5. La commercialisation de vin de Porto en 2020. Source: IVDP

25
À titre d’exemple, les marchés britannique et danois ont connu une croissance respective de 1,3 et 4,8% sur la période
2000-2017 alors que, dans le même temps, le marché français perdait 34,1% de ses volumes.

207
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Tableau 2. Les évolutions de la commercialisation de vin de Porto par grandes zones géographiques entre
2006 et 2020

Zones Volumes Volumes Évolutions Valeurs Valeurs Évolutions


géographiques 2006 2020 2006/2020 2006 2020 2006/2020

825 119 hl 608 307 hl -216 812 hl 330,5 M€ 279,1 M€ -51,4 M€


Europe
91,02% 88,99% -26,3% 84,14% 82,31% -15,6%

62 213 hl 50 170 hl -12 043 hl 51,4 M€ 44,8 M€ -6,6 M€


Amérique du Nord
6,86% 7,34% -19,4% 13,09% 13,21% -12,8%

11 432 hl 8 227 hl -3 205 hl 5,3 M€ 4,0 M€ -1,3 M€


Amérique latine
1,26% 1,20% -28,0% 1,35% 1,18% -24,5%

990 hl 6 949 hl +5 959 hl 0,8 M€ 3,3 M€ +2,5 M€


Russie
0,11% 1,02% +601,9% 0,20% 0,97% +312,5%

4 161 hl 6 634 hl +2 473 hl 3,2 M€ 5,2 M€ +2,0 M€


Asie
0,46% 0,97% +59,4% 0,81% 1,53% +62,5%

1 010 hl 1 658 hl +648 hl 0,7 M€ 1,5 M€ +0,8 M€


Océanie
0,11% 0,24% +64,2% 0,18% 0,44% +114,3%

1 381 hl 862 hl -519 hl 0,7 M€ 0,4 M€ -0,3 M€


Afrique
0,15% 0,13% -37,6% 0,18% 0,12% -42,9%

223 hl 728 hl +505 hl 0,2 M€ 0,8 M€ +0,6 M€


Moyen-Orient
0,03% 0,11% +226,5% 0,05% 0,24% +300,0%

906 529 hl 683 535 hl -222 994 hl 392,8 M€ 339,1 M€ -53,7 M€


Total
100% 100% -24.6% 100% 100% -13,7%

Source: IVDP

3.3. La récente «ruée vers les vins du Douro» ou le DOC Douro au


secours du Porto
Depuis le début de la seconde moitié du XXe siècle, et surtout depuis le milieu des années
1990, une tendance très nette se dessine: la redécouverte26 et la mise en avant des vins
tranquilles du Douro par les différents acteurs de la production viti-vinicole. Ce phéno‑
mène se traduit dans la période récente par une forte croissance de la production et de
la commercialisation de ces vins, notamment des vins d’appellation d’origine contrôlée
DOC Douro qui prennent une part de plus en plus importante dans la production des
vins de la région la plus orientale du Douro (Douro Superior).
L’analyse des données statistiques révèle que la commercialisation des vins d’appel­
lation DOC Douro s’élève, en 2020, à près de 0,4 million d’hectolitres (388 992 ­hectolitres)

26
Jusqu’à la fin du XVIIIe siècle, la majorité des vins produits dans la RDD était des vins secs non mutés.

208
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

alors que celle-ci était encore inférieure à 0,15 million en 2004 (134 280 hectolitres),
ce qui signifie que les volumes commercialisés de ces vins ont presque triplé en l’espace
d’une quinzaine d’années à peine. Ces volumes mis sur le marché représentent, en 2020,
l’équivalent de 57% des volumes de vin de Porto alors qu’ils en représentaient moins
de 15% en 2004. Au niveau de la production, l’analyse dévoile une évolution similaire:
en 2020, la RDD produit en effet quasiment 0,5 million d’hectolitres (478 848 hecto‑
litres) de DOC Douro alors qu’elle n’en produisait qu’à peine plus de 0,3 million en 2008
(329 908 hectolitres). Lorsque l’on compare ces volumes à ceux de vin de Porto, on mesure
l’importance du phénomène: alors que les volumes de DOC Douro ne représentaient qu’à
peine plus du tiers de l’équivalent des volumes de vin de Porto produits en 2008 (38%),
ils représentent dès 2015 plus des deux tiers de ces volumes (68%).
L’historique terroir du vin de Porto semble ainsi devenir de plus en plus un t­erroir
des vins de Porto et du Douro, la part de ces derniers étant quasiment similaire en ­matière
de production lorsque l’on considère l’ensemble des vins produits dans le H ­ aut-Douro:
44% (DOC Douro, DOC Espumante, DOC Moscatel, IGP Duriense et autres vins sans
­mention particulière) vs. 56% (DOC Porto) en 2020. Alors qu’au début des années 1990,
le géographe François Guichard écrivait, à propos des vins du ­Douro, qu’ils n’intéressaient
guère un négoce encore très spécialisé dans le vin de Porto et que son ­avenir ­restait plutôt
incertain27, les évolutions récentes soulignent tout l’intérêt du négoce pour la ­production
de ces vins (notamment du DOC Douro), l’importance des volumes p ­ roduits et commer­
cialisés ne pouvant assurément être l’unique fait des produc­teurs-embouteilleurs même si
ces derniers trouvent dans ces vins de très intéressants débouchés sur le marché p ­ ortugais
ou à l’international. En dépit de l’intérêt tardif de la majorité des négociants pour les vins
du Douro, nos recherches démontrent que ce sont néanmoins bien eux qui ont initié
cette «ruée vers les vins du Douro»28 à travers la figure de l’œnologue de la maison de
négoce Ferreira, Fernando Nicolau de Almeida qui, à la suite d’un voyage dans le vignoble
bordelais au début des années 1950 et d’une rencontre avec l’œnologue français Émile
Peynaud, acheva de se convaincre de l’important potentiel des vins du Douro. En 1952
naissait ainsi le premier Barca Velha, un vin rouge du Douro millésimé mais non muté,
dont le succès sur le marché national suscita l’intérêt de quelques négociants en vin de
Porto sans pour autant déclencher un véritable engouement au sein de la profession.
À partir des années 1970, quelques négociants vont toutefois porter un intérêt certain
aux vins du Douro, certes plus dans l’optique de ­produire un vin rentable, issu des moûts
de raisin ne pouvant pas faire l’objet d’un mutage du fait de la contrainte du benefício,

27
GUICHARD, 1991: 377.
28
Soulignons toutefois, à une autre échelle certes, que dès le début du XXe siècle, certaines maisons de négoce s’étaient
déjà lancées dans la production de vins tranquilles dans la région du Douro, à l’instar de la maison Borges avec sa
marque Lello. Au début des années 1950, la cave coopérative de Mesão Frio produisait également de tels types de vins
(GUICHARD, ROUDIÉ, 1985).

209
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

que de réaliser un grand vin. Cette vision «quantitative» et «utilitariste» de la production


des vins du Douro perdure jusqu’au début des années 1990 dans un monde du négoce
alors avant tout spécialisé dans les vins de Porto et se revendiquant comme tel. La fin de
cette période s’achève symboliquement avec la mise sur le marché, en 1990, des p ­ remiers
vins du Douro Duas Quintas par la maison Ramos Pinto. Issus de l’assemblage des ­terroirs
de la Quinta de Ervamoira et de la Quinta dos Bons Ares, ces vins produits par l’œnologue
João Nicolau de Almeida vont en effet connaître un succès non seulement sur le m ­ arché
portugais mais aussi à l’international du fait de l’achat de Ramos Pinto par la maison de
Champagne Louis Roederer en 1990. Depuis les années 2000 et la chute des exporta‑
tions de vin de Porto, les vins du Douro se sont imposés, pour la plupart des négociants
et ­producteurs-embouteilleurs, comme des vins stratégiques sur lesquels il faut désor‑
mais aussi investir. L’analyse des statistiques de la commercialisation des vins du Douro
sur la période 2006-2020 (Tableau 3) permet de constater que le commerce de ces vins
­portugais est plutôt prospère, même si très concentré encore sur les marchés européens
(surtout portugais en réalité) et américains (Fig. 6).

Tableau 3. Les évolutions de la commercialisation des vins du Douro (hors Porto) par grandes zones
géographiques entre 2006 et 2020

Zones Volumes Volumes Évolutions Valeurs Valeurs Évolutions


géographiques 2006 2020 2006/2020 2006 2020 2006/2020

298 904 hl 367 791 hl +68 887 hl 66,7 M€ 148,0 M€ +81,3 M€


Europe
91,08% 84,37% +23,0% 88,40% 83,29% +121,9%

15 617 hl 38 963 hl +23 346 hl 4,9 M€ 16,8 M€ +11,9 M€


Amérique du Nord
4,76% 8,94% +149,5% 6,50% 9,45% +242,9%

8 273 hl 15 796 hl +7 523 hl 2,2 M€ 6,4 M€ +4,2 M€


Amérique latine
2,52% 3,62% +90,9% 2,92% 3,60% +190,9%

1 293 hl 5 493 hl +4 200 hl 0,6 M€ 3,5 M€ +2,9 M€


Asie
0,40% 1,26% +324,8% 0,80% 1,97% +483,3%

3 997 hl 4 714 hl +717 hl 1,0 M€ 1,9 M€ +0,9 M€


Afrique
1,217% 1,08% +17,9% 1,33% 1,07% +90,0%

47 hl 2 811 h +2 764 hl 0,02 M€ 0,9 M€ +0,88 M€


Russie
0,01% 0,65% +5 880,9% 0,03% 0,50% +4 400%

11 hl 208 hl +197 hl 0,004 M€ 0,1 M€ +0,1 M€


Moyen-Orient
0,003% 0,05% +1790,9% 0,01% 0,06% +2 400%

36 hl 136 hl +100 hl 0,01 M€ 0,09 M€ +0,1 M€


Océanie
0,01% 0,03% +277,8% 0,01% 0,06% +900%

328 178 hl 435 912 hl +107 734 hl 75,4 M€ 177,7 M€ +102,3 M€


Total
100% 100% +32,8% 100% 100% +135,6%

Source: IVDP

210
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

Fig. 6. La commercialisation de vin du Douro (hors Porto) en 2020. Source: IVDP

CONCLUSION: L’AVENIR DES VINS DU DOURO ET DE PORTO


DANS LE CADRE D’UNE «NOUVELLE PLANETE DES VINS29 EN
MOUVEMENT30»
L’excellente troisième place obtenue par le DOC Douro Prats & Symington Chryseia 2011
lors de l’édition 2014 du concours Wine Spectator permet de mesurer le chemin parcouru
sur la scène internationale par les vins du Douro. Si la promotion et l’amélio­ration quali‑
tative des vins du Douro doivent beaucoup aux maisons de négoce, il convient également
d’insister sur le rôle primordial du réseau informel des «Douro Boys» (2003), composé
d’un négociant (Niepoort) et de quatre producteurs-embouteilleurs (Quinta do Vallado,
Quinta do Crasto, Quinta do Vale do Meão et Quinta do Vale Dona Maria). Partant du
constat que les vins tranquilles du Douro n’étaient alors que peu connus sur le marché
international, que leur région de production n’était que très rarement associée au célèbre
vin de Porto et que ces vins étaient bien trop spécifiques pour être facilement appréciés
des consommateurs encore peu habitués à boire du vin, les membres de ce réseau déci‑
dèrent de focaliser leur attention sur les marchés européens, nord-américains ainsi que
sur quelques marchés historiquement liés à l’histoire du France (Brésil, Angola, Chine).
Actuellement, ces vins apparaissent stratégiques pour le Douro dans un contexte où le
commerce du vin de Porto semble entré dans une phase plus délicate de son histoire.

29
PITTE, 2000: 340-344.
30
VELASCO-GRACIET, 2009: 245.

211
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Si le vin de Porto est assurément confronté à un certain nombre de difficultés


pour envisager la conquête de nouveaux marchés et consommateurs à travers le monde
(vin riche en sucre et en alcool traînant encore souvent l’image d’une boisson désuète et,
­malgré tout, relativement chère du fait de l’opération de mutage et des délicates condi‑
tions de production), dans un monde où «le terroir a le vent en poupe [et où] […] les
nouveaux consommateurs apprennent très vite à reconnaître la qualité des vins et se
­passionnent pour leur complexe géographie»31, il doit assurément pouvoir tirer son
épingle du jeu et mettre durablement en avant ses avantages comparatifs dans le cadre
de la compétition qui voit s’affronter les différents vins sur les grands marchés mondiaux.
Les négociants payent certes aujourd’hui le prix, pour la plupart, d’une entrée tardive
dans la compétition mondiale et le choix d’avoir privilégié les volumes plutôt que de
répondre à l’exigence de qualité qui a commencé à se faire sentir dès la fin des années
1980, alors que se développait pourtant une production prometteuse de vins de Porto de
quinta au début des années 1990.
Il n’empêche que le vin de Porto est une boisson de terroir à l’histoire et à la géogra‑
phie complexes qui a su traverser les siècles, façonnant des paysages d’une grande beauté
que l’UNESCO a récemment inscrits sur sa liste en tant que «paysage culturel évolutif et
vivant» (2001). Le décret-loi du 7 mai 1986, qui permet en quelque sorte de rapprocher
les producteurs-embouteilleurs durienses de leur terroir, en les autorisant justement à
exporter leurs vins de Porto depuis la Région Délimitée du Douro, permet par ailleurs
aux consommateurs de ne plus exclusivement identifier le vin de Porto comme un vin
de négociant, d’assemblage et de marque pour le considérer désormais aussi comme un
vin de propriétaire issu d’un terroir spécifique32.
Au regard des éléments d’analyse développés dans le cadre de cet article, notre
conclusion est toutefois bien de considérer qu’en dehors de certains marchés des pays
émergents (Brésil, France, Chine, Afrique du Sud) et de rares pays à économies déve‑
loppées (Japon, Singapour, Canada, Émirats Arabes Unis), les perspectives de relance
durable des exportations de vin de Porto à l’échelle mondiale passeront plutôt par la
(re)conquête de marchés et de nouveaux consommateurs sur le continent européen où
­s’exporte certes déjà l’écrasante majorité du vin de Porto. Partant du constat que le m­ arché
nord-américain du vin de Porto se porte actuellement relativement bien, ­l’Europe se
pose ainsi comme le véritable continent à (re)conquérir, et ce pour plusieurs raisons
principales qui ne tiennent pas qu’à l’ancienneté du marché ou à l’ampleur des volumes
qui y sont commercialisés et aux valeurs que ces volumes génèrent pour les expor­tations
(242 millions d’euros en 2017). L’analyse de la consommation de vin (de Porto) en

31
PITTE, 2009: 299-300.
32
Même si le négoce produit bien évidemment des vins de terroirs d’une fort belle complexité et qu’il ne faut ainsi,
en aucun cas, associer exclusivement la qualité aux petits producteurs-embouteilleurs. L’évolution juridique de 1986
apporte toutefois assurément une réelle plus-value en matière d’image pour le vin de Porto.

212
À LA CONQUÊTE DE L’EST: FRONTS PIONNIERS ET NOUVEAUX TERRITOIRES DU HAUT-DOURO VITI-VINICOLE

­ urope met en effet en évidence trois caractéristiques principales qui permettent d’envi‑
E
sager l’avenir avec un certain optimisme en dépit des difficultés actuelles que connaissent
les expor­tations de vin de Porto:
• la volonté de la plupart des consommateurs (d’Europe occidentale) de boire des
vins de qualité de terroir et de leur enclin à associer le vin à la gastronomie ainsi
qu’aux paysages découverts dans le cadre de pratiques de tourisme et/ou loisirs
œnotouristiques;
• l’orientation d’un certain nombre de pays d’Europe de l’Est vers la production et
la consommation de vin dans la période récente (en particulier, la Pologne et la
République Tchèque);
• l’actuelle relance des anciens marchés consommateurs d’Europe du Nord (Suède,
Finlande, Danemark, Norvège), très tournés vers les vins de Porto de catégories
spéciales.

BIBLIOGRAPHIE
BAUMERT, Philippe (2019). Territoires, paysages et sociétés du vin de Porto. Géographie d’une mondiali­
sation. Bordeaux: Université Bordeaux Montaigne. Thèse de doctorat.
CHANTAL, Suzanne (1982). Ervamoïra. Paris: Éditions Olivier Orban.
GUICHARD, François (1990). Les rapports entre la ville de Porto, l’Entrepôt de Gaia et le vignoble du Douro.
In GABINETE DE HISTÓRIA E ARQUEOLOGIA DE V. N. DE GAIA. Actas do 1.° Congresso Inter-
nacional sobre o Rio Douro (25 de Abril a 2 de Maio de 1986). Vila Nova de Gaia: Câmara Municipal
de Vila Nova de Gaia/Casa Municipal de Cultural/Solar dos Condes de Resende, pp. 131-139.
GUICHARD, François (1991). Quelle identité régionale et pour quoi faire? Un cas concret: le vin de Porto. In
L’identité régionale, l’idée de région dans l’Europe du Sud-Ouest (Actes des Deuxièmes Journées d’Études
Nord du France-Aquitaine organisées par le Centre d’Étude du Nord du France-Aquitaine — CENPA
— et la Maison des Pays Ibériques, Talence, 21-25 mars 1988). Paris: Éditions du CNRS, pp. 373-378.
GUICHARD, François, ROUDIÉ Philippe (1985), Vins, vignerons et coopérateurs de Bordeaux et de ­Porto.
Études viticoles franco-portugaises. Paris: Éditions du CNRS, Collection de la Maison des Pays
­Ibériques, Travaux et documents du Centre d’Études Nord du France-Aquitaine (CENPA) et du
Centre d’Études et de Recherches sur la Vigne et le Vin (CERVIN), tome I.
LE DÉROUT, Matthieu (2006). La région du Mato Grosso. «L’Information géographique». 70, 104-109.
LIGNON-DARMAILLAC, Sophie (2009a). L’œnotourisme en France. Nouvelle valorisation des vignobles.
Analyse et bilan. Bordeaux: Féret.
LIGNON-DARMAILLAC, Sophie (2009b). L’émergence œnotouristique en France et au France, de n ­ ouveaux
­itinéraires touristiques viticoles. In BARROS CARDOSO António; DURBIANO, Claudine; ­CORDEIRO,
Eduardo, coords. Enoturismo e Turismo em espaço rural: I Jornadas Internacionais sobre Turismo, Livro
de Atas de Conferência Internacional. Maia: Instituto Superior da Maia, pp. 387-396.
PITTE, Jean-Robert (2000). La nouvelle planète des vins. «Annales de Géographie». 614-615, 340-344.
PITTE, Jean-Robert (2009). Le désir du vin à la conquête du monde. Paris: Fayard.
PITTE, Jean-Robert (2018). Préface. In SCHIRMER, Raphaël. Vignes et vins, paysages et civilisations millé-
naires. Paris: Glénat, pp. 6-7. (La Société de Géographie).
RETAILLÉ, Denis (2003). Front pionnier. In LÉVY, Jacques; LUSSAULT, Michel, coords. Dictionnaire de la
géographie et de l’espace des sociétés. Paris: Belin, pp. 383-384.

213
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

SCHIRMER, Raphaël (2018). Vignes et vins, paysages et civilisations millénaires. Paris: Glénat. (La Société
de Géographie).
SERRES, Olivier de (2001 [1600]). Le Théâtre d’agriculture et mesnage des champs. Paris: Actes Sud.
VELASCO-GRACIET, Hélène (2009). Territoires, mobilités et sociétés. Contradictions géographiques et
­enjeux pour la géographie. Pessac: Maison des Sciences de l’Homme d’Aquitaine.

214
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ:
TOKAJ A LA CROISÉE DES CHEMINS
ALINE BROCHOT*

Résumé: Que peut le Patrimoine Mondial contre le marché? Telle pourrait être la question posée ici.
­L’inscription de la région viticole historique de Tokaj sur la Liste du Patrimoine Mondial en 2002 s’inscrivait
dans une dynamique nationale de restauration auprès de la communauté internationale des fleurons de
l’économie et de la culture hongroise. Le vin de Tokaj, un grand liquoreux réputé dans toute l’Europe
depuis le 18ème siècle et véritable emblème national, en constituait un des atouts majeurs. Si la première
décennie qui a suivi la privatisation de l’économie après la période collectiviste a largement répondu à cet
objectif grâce à la reconstitution des domaines historiques et à la remise sur le marché européen des
grands vins de Tokaj, l’évolution qu’a connu ensuite le vignoble avec, notamment, l’élargissement de la
gamme des vins, montre que le marché conditionne bien plus l’avenir d’un vignoble que la consécration
de sa gloire passée par l’inscription sur la liste du Patrimoine Mondial.
Mots-clés: région viticole de Tokaj; Patrimoine Mondial; marché du vin.

Resumo: O que pode o Património Mundial contra o mercado? Esta poderia ser a questão aqui colocada.
A inscrição da histórica região vinícola Tokaj na lista do Património Mundial em 2002 fez parte de um
esforço nacional para devolver à comunidade internacional as joias da economia e cultura húngaras.
O vinho de Tokaj, um grande vinho doce conhecido em toda a Europa desde o século XVIII e um verdadeiro
emblema nacional, foi um dos seus principais trunfos. Se a primeira década sequente à privatização da
economia após o período coletivista cumpriu em grande parte este objetivo graças à reconstituição das
propriedades históricas e à reintrodução dos grandes vinhos de Tokaj no mercado europeu, a evolução que
a vinha sofreu posteriormente, em particular com o alargamento da gama de vinhos, mostra que o
mercado condiciona o futuro de uma vinha muito mais do que a consagração da sua glória passada pela
inscrição na lista do Património Mundial.
Palavras-chave: região vinícola do Tokaj; Património Mundial; mercado do vinho.

INTRODUCTION
La région viticole de Tokaj est sans conteste l’appellation la plus réputée de Hongrie grâce
à son produit-phare, l’Aszú, un des plus grands vins liquoreux au monde. Son inscription
sur la Liste du Patrimoine Mondial de l’UNESCO en 2002 dans la catégorie des paysages
culturels est venue conforter l’image d’excellence et le statut d’emblème national acquis
depuis le XVIIIème. Cependant, si les institutions nationales en charge de la protection
du patrimoine, raisonnant sur le temps long, s’engagent à mettre en œuvre des mesures
de préservation du bien dans les caractéristiques qui lui ont valu la reconnaissance de
l’UNESCO, les acteurs locaux, en particulier les viticulteurs, ont de leur côté à répondre
à des impératifs qui influencent leurs choix et stratégies de production à plus ou moins
court terme.

* CNRS — UMR LADYSS. Investigadora no LADYSS (Laboratoire Dynamiques sociales et Recomposition des espaces),
UMR 7533 do CNRS (Centre national de la recherche scientifique) — Paris (França).

215
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Le propos ici sera de montrer le poids relatif qu’ont pu avoir l’Inscription, d’une part,
et l’économie du vin, d’autre part, dans les choix opérés par les différents groupes d’acteurs
de la vitiviniculture au cours des vingt années écoulées. Il s’agira aussi de q ­ uestionner, à
l’aune des évolutions en cours, la capacité des instances de gestion du Patri­moine Mondial
hongrois à préserver les caractéristiques qui ont justifié l’inscription.

Fig. 1. Paysage culturel historique de la région viticole de Tokaj


Source: <whc.unesco.org/fr/list/1063/>

1. UNE VALEUR UNIVERSELLE EXCEPTIONNELLE


ESSENTIELLEMENT CONSTRUITE SUR LA TRADITION DU VIN
Situé à l’extrême nord-est de la Hongrie, le vignoble de Tokaj est implanté sur les c­ oteaux
de l’ancien massif volcanique de Zemplén et couvre près de 6000 hectares. Si le site
­inscrit s’étend sur la totalité des 27 communes de l’aire d’appellation, une zone centrale a
cependant été délimitée, qui comprend partiellement les territoires de 9 communes au
sud du site, ainsi que quelques séries de caves historiques plus au nord (Fig. 1).
Selon les termes de la déclaration de la Valeur Universelle Exceptionnelle (VUE)1,
«Le paysage culturel de Tokaj […] illustre toutes les facettes de la production des fameux
vins de Tokaj, dont la qualité et la gestion sont strictement contrôlées depuis presque
trois siècles».
1
REPUBLIC OF HUNGARY, 2002.

216
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS

Le paysage culturel de Tokaj témoigne de façon vivante de la longue tradition de


production viticole dans cette région de collines, rivières et vallées. Ce réseau ­complexe
de vignobles, fermes, villages et petites villes avec son labyrinthe historique de caves à
vin, illustre toutes les facettes de la production des fameux vins de Tokaj, dont la qualité
et la gestion sont strictement contrôlées depuis presque trois siècles.

L’accent est mis d’emblée à la fois sur la profondeur historique de la production des
vins de Tokaj et sur les mesures destinées à en préserver la tradition. Lignes argumen‑
taires que l’on retrouve dans l’énoncé des deux critères mobilisés pour justifier l’existence
de la VUE auprès du Comité du Patrimoine Mondial:
Critère (iii): la région du vin de Tokay est le reflet d’une tradition viticole unique,
existant depuis au moins mille ans et qui est, à ce jour, restée intacte.
Critère (v): l’intégralité du paysage culturel de la région viticole de Tokay,
­comprenant les vignobles ainsi que des établissements humains installés de
longue date, illustre de manière vivante la forme particulière d’occupation
tradi­tionnelle du sol qu’il représente.

Deux autres éléments de preuve sont requis par l’UNESCO dans la démonstration
de la VUE: les critères d’Intégrité et d’Authenticité.
Là aussi, la culture de la vigne et la production du vin sont présentés comme «les
éléments constitutifs de la Valeur universelle exceptionnelle du bien», qui concourent à
l’intégrité du paysage culturel. Notons que si les rédacteurs envisagent «l’évolution des
exigences économiques» sans émettre de réserves quant à «la continuité de l’utilisation
traditionnelle des terres», il n’en est pas de même pour les effets de l’urbanisation et du
changement climatique, considérés comme des menaces potentielles.

Intégrité
Les éléments constitutifs de la Valeur universelle exceptionnelle du bien sont suffi-
samment intacts. Ils incluent les conditions environnementales (géologie, morpho­logie,
hydrologie et climat) favorables à la production d’un vin précis, les vignobles / terroirs
historiques, les établissement présents depuis longtemps et leur réseau, un riche patri-
moine culturel reflétant la diversité ethnique, les divers types de caves et une grande
diversité d’autres bâtiments qui contribuent au caractère du paysage et sont liés à la
culture de la vigne et à la production du vin (par exemple les terrasses, murs de pierres,
haies et réservoirs). […] Dans le contexte de l’évolution des exigences écono­miques,
la continuité de l’utilisation traditionnelle des terres est maintenue. À long terme,
la disparition des zones humides et l’expansion des zones construites, ainsi que le chan-
gement climatique, devraient être considérés comme des menaces potentielles.

217
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Quant au degré d’authenticité du bien, il est jugé «conforme aux exigences de


l’UNESCO» grâce au maintien en l’état des structures urbaines et des bâtiments histo‑
riques liés à la production du vin au cours des siècles, «Le paysage qui en résulte, avec ses
villes et ses villages qui participent à la production du célèbre Tokaji Aszú, [n’ayant] pas
changé d’apparence générale tout au long de cette période».

Authenticité
En ce qui concerne les structures bâties, de fréquentes incursions militaires et
des incendies ont entraîné au cours des siècles la destruction et la reconstruction ou
la restauration d’une part importante des bâtiments historiques. Toutefois, le respect
scrupuleux des normes internationales de conservation et de restauration, conforme
à la Charte de Venise, ont permis de maintenir, au cours du dernier demi-siècle, un
degré d’authenticité des édifices historiques entièrement conforme aux exigences des
Orientations. Les agglomérations historiques ont également conservé leur plan urbain
de base ainsi que leur interconnexion à la fois entre eux et avec le paysage. Le vin est
produit dans la région de Tokaj et les vignobles exploités depuis plus de 1000 ans.
Le paysage qui en résulte, avec ses villes et ses villages qui participent à la production du
célèbre Tokaji Aszú, n’a pas changé d’apparence générale tout au long de cette période.

La VUE a donc été construite, et validée par l’UNESCO, exclusivement sur l­’histoire
et la tradition du vin de Tokaj, essentiellement le vin Aszú. Tradition qui a perduré quasi
intacte jusqu’à nos jours, à la fois dans son expression matérielle (paysage viticole, v­ illages,
bâtiments d’exploitation) et dans sa dimension culturelle, lui valant son inscription dans
la catégorie des «Paysages culturels» sous le nom de «Paysage culturel historique de la
région viticole de Tokaj».

2. UN PATRIMOINE VITIVINICOLE EN MUTATION


Pilotée intégralement par l’Etat hongrois (le secrétaire d’Etat à la Protection de la Nature),
cette demande d’inscription s’inscrivait dans la dynamique de renouveau, tant politique
qu’économique, consécutive à l’éclatement du «bloc de l’Est» à l’orée des années 19902.
Il s’agissait alors de restaurer auprès de la communauté internationale les symboles forts
de la culture et de l’économie hongroise, quelque peu altérés durant la période collecti‑
viste. L’Aszú de Tokaj, véritable emblème national, figure incontestablement parmi eux,
ainsi que le rappelait en 2011 le ministre du développement rural: «Le vin de Tokaj,
c’est toute la Hongrie dans une bouteille»3.
2
Il y avait également un contexte d’opportunité. La session du Comité du Patrimoine Mondial se déroulant à Budapest
en juillet 2002, il importait pour l’Etat hongrois de faire inscrire au moins un site. Au cours de cette même session,
une extension du site «Budapest: le panorama des deux bords du Danube et le quartier du château de Buda» a par
­ailleurs été validée par l’UNESCO.
3
REPUBLIC OF HUNGARY. Ministry of Rural Development, 2011.

218
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS

Cette reconnaissance est en quelque sorte venue parachever ce que l’on a appelé la
«Renaissance» de Tokaj4, engagée depuis le début des années 1990 sous l’impulsion des
cadres locaux de la vitiviniculture et d’une petite dizaine d’investisseurs, étrangers pour
la plupart, qui ont repris des domaines emblématiques5, «recréés» suite au démantè­
lement du Borkombinat après la privatisation de l’économie. En une dizaine d’années,
ils replantent les coteaux, réhabilitent les bâtiments historiques, construisent des bâti‑
ments d’exploitation et chais de prestige, restructurent et modernisent les chaînes de
­production ayant comme objectif premier la requalification des vins Aszú et leur réintro­
duction sur les marchés à l’export.
Pour tous, investisseurs étrangers comme acteurs locaux de la filière, l’heure est à
la mobilisation de toutes les ressources qui doivent permettre un retour vers ce que l’on
considère comme «l’âge d’or» de Tokaj, celui, précisément, qui est évoqué dans le dossier
de candidature UNESCO.
Le début des années 2000 représente un tournant où des choix nouveaux vont
s’imposer. Si elles débutent sur un bilan très positif grâce à la remise à niveau de la qualité
et de la réputation du vin de Tokaj due en grande partie à l’action des investisseurs inter‑
nationaux, elles marquent aussi le début d’une nouvelle phase dans l’histoire de l’Appel‑
lation du fait de l’évolution globale de l’économie du vin, mais aussi des fluctuations de la
demande des consommateurs.
Les vins liquoreux produits traditionnellement à Tokaj subissent en effet une
­mévente importante, due en grande partie à la désaffection générale des consommateurs,
y compris en Hongrie, pour ce type de vins le plus souvent cantonnés à l’accompa­gnement
de desserts. Désintérêt encore accru par le positionnement dans le haut de gamme des
vins Aszú qui réserve d’emblée leur consommation à une clientèle plutôt aisée6. C’est une
tendance lourde qui va s’amplifier et entraîner des phénomènes de surpro­duction et de
gonflement des stocks de la gamme des liquoreux, d’autant plus qu’après les investisseurs
de la première heure, le mouvement de création de domaines, largement favorisé par
­l’afflux des fonds européens depuis l’entrée de la Hongrie dans l’UE en 20047, s’est pour‑
suivi, créant une concurrence nouvelle parmi les viticulteurs qui se retrouvent sur un
marché intérieur comme extérieur en manque de débouchés.
Les producteurs n’ont dès lors pas d’autre choix pour maintenir le niveau et la renta‑
bilité de leur exploitation que d’abandonner le parti du «tout liquoreux» qui avait prévalu
jusqu’alors et de diversifier leur gamme de produits. Cela passe en tout premier lieu par

4
CROS-KARPATI, 2003.
5
Il s’agit principalement des cinq plus grands domaines historiques ayant appartenu à la Couronne ou à la haute aristo­
cratie et dont les terres avaient été confisquées et regroupées au sein de la ferme d’Etat.
6
A partir de 35 euros pour une bouteille de 50 cl et bien plus selon le producteur et le millésime, comme tous les
grands vins.
7
D’après le Tokaj Guide (RIPKA, 2019), qui recense tous les domaines de la région, 41 installations ont eu lieu entre 1988
et 1999 et 50 entre 2000 et 2009, dont 30 après 2005.

219
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

une augmentation de la production de vins blancs secs, qui présente d’ailleurs plusieurs
avantages: d’abord de pouvoir vendanger dès la maturation des raisins (sans attendre une
botrytisation toujours aléatoire pour pouvoir produire de l’Aszú); puis de pouvoir mettre
les vins sur le marché dans des délais beaucoup plus courts8 assurant ainsi des rentrées de
trésorerie plus régulières. Quant aux consommateurs, ce type de vin présente aussi pour
eux l’avantage d’être «facile à boire», susceptibles d’accompagner tout un repas et surtout
d’être plus abordables.
Tableau 1. La production des vins de Tokaj

Vins de Tokaj

En 2015, l’Appellation commercialise 100 000 à 120 000 hl de vin par an, dont:
• 20% blancs secs;
• 50% à 60% de vins demi doux;
• 10% à 15% de vins de type vendange tardives issus de pourriture noble;
• 5% à 8% de Tokaji Aszú.

Source: TOKAJ MARKETING BOARD, 2015

Cette tendance se poursuit au cours des années 2010 où la vinification en blanc sec
se généralise et est adoptée par tous les domaines, y compris les plus grands, au point
de représenter plus de 20% des ventes en 2015 alors que les vins Aszú ne représentent
plus que 5 à 8% des transactions9 (cf. Tableau 1). Cependant, cela a aussi pour effet
­d’accroître la concurrence sur ce segment de la gamme, encore amplifiée par la poursuite
du ­mouvement de création de nouvelles exploitations10. La recherche de nouvelles voies
et éléments de démarcation s’impose donc pour tous. L’accent est alors porté sur une plus
grande typicité des vins. On voit d’abord apparaître des «vins de terroir» où, sur le m
­ odèle
bourguignon, c’est le cru ou la parcelle, a fortiori quand c’est une parcelle historique,
qui est censée donner sa valeur et son identité au vin. Dans la même recherche de
­distinction et de personnalisation, certains villages créent leurs propres marques et
­cuvées (Mád, Olazliszka, Tarcal…). De leur côté, les plus grands domaines, qui ­disposent
de plus de latitude dans l’élevage et la commercialisation de leurs vins, s’orientent vers
l’élaboration d’un style-maison, grâce notamment à un vieillissement prolongé.
Une autre voie est ouverte en 2012 avec l’apparition, totalement inédite pour Tokaj,
des vins effervescents, qui représentent une possibilité de diversification bienvenue en
même temps qu’une alternative bon marché face aux mousseux d’importation.
8
Dans l’année suivant la vendange après un vieillissement en barriques neuves de 10 mois minimum, au lieu d’un
­minimum de vieillissement de deux ans pour les vins Aszú (dont 18 mois en fût de chêne).
9
Mais néanmoins entre 27 et 35% de la valeur totale.
10
30 unités supplémentaires entre 2010 et 2015 d’après le Tokaj Guide (RIPKA, 2019).

220
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS

Enfin, autant en prévision des évolutions dues au réchauffement climatique que


pour ouvrir encore des pistes originales, quelques producteurs indépendants et grands
domaines engagent des expérimentations sur des cépages rouges (Pinot Noir, Merlot,
­Syrah) qui, bien que cela ne soit pas totalement étranger à la région car des cépages
rouges étaient présents dans la période pré-phylloxérique, portent en germe des modifi‑
cations profondes dans la structure et l’image de l’Appellation.
Pour autant, l’élaboration de vins doux de qualité reste l’objectif principal pour la
plus grande part des producteurs. Les efforts portent notamment sur la requalifi­cation
de la gamme traditionnelle des vins et la recherche d’une meilleure lisibilité sur le ­marché
international. Plusieurs séries de mesures sont édictées en ce sens par les i­ nstances profes­
sionnelles: en 2013, un nouveau cahier des charges de l’Appellation ­(Tokaj ­product speci-
fication) précise et resserre les critères de vinification pour les vins Aszú. Seuls d
­ ésormais
peuvent prétendre à la dénomination Tokaji Aszú les vins présentant un degré de sucre
résiduel minimum. (cf. Tableau 2). En 2016, les mesures concernent les autres types de
vins doux traditionnels (Szamorodni, Forditás, Máslás) et portent principalement sur les
conditions et la durée du vieillissement, les normes d’étiquetage, etc., dans le but d’assurer
une qualité minimum et une plus grande reconnaissance des vins de Tokaj à l’étranger.
Plus généralement, l’ambition de figurer sur les marchés à l’export amène la p ­ lupart
des producteurs à adopter des pratiques de communication, codes graphiques et déno‑
minations plus conformes aux pratiques du marketing international. Les cuvées Late
Harvest font leur apparition et l’usage d’un étiquetage bilingue, voire uniquement anglo‑
phone, se généralise.

Tableau 2. La gamme des vins de Tokaj

Sucre résiduel
Types de vins Caracteristiques
minimum (g/l)

Jus libéré par pressurage naturel (sous leur propre poids) des
Eszencia 450
grains aszú.

Tokaji Aszú 6 puttonyos 150 Assemblage de grains aszú, récoltés grain par grain, avec un vin ou
un moût de base; elevage pendant 2 ans minimum dont 18 mois
en fût de chêne.

Le nombre de puttonyos correspond à la quantité de grains aszú


Tokaji Aszú 5 puttonyos 120
incorporée dans le vin de base pour atteindre le degré de sucre
résiduel souhaité. A l’origine, le puttony désigne une hotte d’une
contenance d’environ 27 kg de grains aszú, mis à macérer dans un
fût traditionnel de 136 litres (fût de Gönc).

Szamorodni doux: vin issu de grappes vendangées tardivement, en


Édes Szamorodni 60 partie botrytisées; pressurage des grappes entières; elevage
pendant au moins 1 an dont 6 mois en fût de chêne.

(suite page suivante)

221
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Sucre résiduel
Types de vins Caracteristiques
minimum (g/l)

Vin doux issu d’une deuxième macération sur grains aszú et


Fordítás 45
nouveau pressurage.

Máslás 45 Vin doux élaboré au contact des lies de vins aszú.

Késői Szüret édes 45 Vendanges tardives; élevage en barrique.

Késői Szüret felédes 19 Vendanges tardives; semi-sucré.

Félszáraz Borok 9 Vins semi-secs.

Szamorodni sec: vin sec issu des raisins de vendange tardive, élevé
Száraz Szamorodni
en fût, souvent sous voile ou d’une façon oxydative.

Vin blanc issus de grappes saines, non botrytisées (Furmint,


Fehér bor
Hárslevelű).

Pezsgő Vin effervescent.

Source: BROCHOT d’après le Tokaj Product Specification, 2013

3. TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS


On le voit, Tokaj est une région viticole en mutation permanente depuis les années 1990,
qui a dû s’adapter aux fluctuations du marché et qui présente aujourd’hui une gamme
élargie de produits, avec pas moins de douze types de vins, du plus sec au plus liquo‑
reux11. Il est devenu ce qu’on pourrait appeler un vignoble «multi-cartes» où il n’y a plus
aucun producteur qui ne propose que la gamme traditionnelle des liquoreux telle qu’on
pouvait la trouver jusqu’aux années 1990 (Eszencia, Aszú, Szamorodni, Forditás, ­Máslás)
(cf. Tableau 2). A contrario, nombreux sont désormais ceux qui n’élaborent plus que des
vins blancs secs; mouvement encore appelé à prendre de l’ampleur si l’on en croit les
résultats d’une étude de marketing réalisée en 2015 à la demande des instances profes‑
sionnelles où on estimait à 60% de la production totale la part des vins blancs secs dans
les années 202012.
La production de vins effervescents, encore marginale (1% des ventes), est elle
aussi amenée à progresser rapidement du fait, non seulement de l’intérêt croissant
des consommateurs avides de vins festifs et relativement bon marché, mais aussi d’un
­soutien actif des instances professionnelles et de l’Etat avec l’inauguration en 2019 de
trois nouvelles unités coopératives entièrement subventionnées sur fonds publics et qui
proposent, entre autres équipements, une chaîne de production complète de vins effer‑
vescents. Et peut-être faudra aussi t-il dans un avenir proche incorporer des «rouges de
Tokaj» dans la gamme des vins proposés?
11
BROCHOT, 2021a, 2021b.
12
TOKAJ BORVIDEK FEJLESZTESI TANACS, 2015.

222
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS

Quant au commerce des vins Aszús, il tend à se déplacer vers des marchés émer‑
gents hors Europe13, principalement la Chine et les Etats-Unis qui connaissent des
­progressions spectaculaires. De plus en plus considérés comme des vins de luxe, l’Aszú
et l’Eszencia, reconnus parmi les plus grands liquoreux, ont en outre progressivement
­acquis un ­nouveau statut: celui de vins de collection. Pour preuve, le succès ­grandissant
des ventes aux enchères organisées par la Confrérie du vin de Tokaj depuis 2013, relayées
en direct avec Londres depuis 2019; et, ce qui a fait la Une des médias spécialisés en
2019, la mise sur le marché du «vin le plus cher du monde»14, soit une cuvée ­d’exception
d’Eszencia de 2008 proposée par un grand domaine au prix de 40 000 USD (soit­
35 000 Euros) le flacon d’1,5 L15.
Ainsi, depuis la Renaissance des années 1990, les évolutions des contextes écono­
miques et sociétaux ont imposé des changements d’orientation et des choix parfois
­radicaux qui modifient à la fois la matérialité et les représentations du vignoble et de
ses vins. C’est un véritable changement de paradigme16 qui se traduit non seulement par
l’élargissement de la gamme des vins proposés et par l’évolution de leur part relative dans
les volumes de production mais aussi, plus récemment, dans le paysage avec l’appa­rition
de constructions nouvelles dont le parti pris architectural rompt totalement avec le style
traditionnel que jusqu’à présent les investisseurs et nouveaux installés avaient ­toujours
respecté. L’archétype régional est en effet représenté par un bâtiment en l­ongueur qui
présente un double toit en pente et dont la façade s’ouvre sur un porche (Figs. 2 et 3).
C’est d’ailleurs le motif que l’on retrouve dans le logo du Patrimoine Mondial (Fig. 4).
Pour être en accord avec une conception actuelle de l’architecture viticole ostentatoire
mondia­lisée, ces constructions n’en instaurent pas moins ici une véritable rupture
­paysagère ­susceptible de contredire l’assertion de continuité historique et de permanence
des structures et éléments paysagers mise en avant dans l’exposé de la VUE (Figs. 5 et 6).

13
Même si, pour l’heure, les marchés traditionnels que sont la Pologne, la France, la Russie ou la Grande-Bretagne,
représentent encore la plus grosse part des exportations.
14
DILLOW, 2019.
15
Sur les 18 flacons proposés par la Royal Tokaji Company située à Mád, 11 étaient déjà vendus à la fin de l’année;
le premier acheteur était un collectionneur chinois.
16
BROCHOT, ALBERT, 2020; BROCHOT, 2021c.

223
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 2. Domaine Hétszőlő. Cliché de l’auteur

Fig. 3. Domaine Disznókő. Cliché de l’auteur

Fig. 4. Logo UNESCO. Source: disponible en


<https://www.vilagorokseg.hu/tokaj-wine-region-
historic-cultural-landscape>

224
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS

Fig. 5. Domaine Henye. Cliché de l’auteur

Fig. 6. Domaine Sauska, projet du BORD Architectural studio


Source: disponible en <https://bordstudio.hu/en/projects/new-sauska-winery/>

225
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

De fait, la région de Tokaj semble aujourd’hui évoluer vers un système ­«bi-polaire»


qui met en présence deux chaînes de production, reposant sur deux philosophies et deux
modèles qui tendent à se développer parallèlement: d’un côté, ce que l’on peut ­appeler
un «modèle patrimonial», ancré dans le territoire et qui prend appui sur l­’histoire
et la t­radition pour produire des vins Aszú de qualité, négociables sur le marché du
luxe international et qui incarnent la tradition jusques dans le rituel de la dégustation
dans les caves des bâtiments historiques; de l’autre côté un «modèle international» ou
«a-terri­torial» sans référence au lieu ni à l’histoire, plus axé sur la création de produits
­nouveaux qui répondent aux demandes du moment pour se positionner sur un marché
plus ­standard à l’échelle nationale avec des pratiques inspirées du modèle de la «winery»
­intégrée comprenant salles de dégustation ouvertes sur le paysage et privilégiant l’événe‑
mentiel (animations, réceptions, concerts…).
Entre ces deux pôles existent, bien sûr, une multitude de situations hybrides,
qui dépendent de la taille du domaine, de son ancienneté, de son assise financière, de sa
capacité à être présent à l’export, etc., mais les choix opérés par la majorité des acteurs de
la viticulture de Tokaj durant ces deux dernières décennies démontrent sans équivoque
que la priorité a été donnée aux voies assurant la survie des exploitations et partant de
l’Appellation, faisant passer à l’arrière-plan les objectifs de préservation du patrimoine
énoncés lors de l’Inscription.

CONCLUSION: LE PATRIMOINE MONDIAL FAIT-IL PARTIE DU


PROJET D’AVENIR DE TOKAJ?
Pour légitimes et sans doute inévitables qu’elles soient, ces évolutions amènent t­ outefois
à poser une série de questions quant à l’avenir du Patrimoine Mondial dans la région
viticole historique de Tokaj. C’est en tout premier lieu, on l’a vu, sur la tradition et la
­renommée du vin Aszú que se sont construites la VUE et l’image du Patrimoine ­Mondial,
mais que devient le patrimoine ainsi constitué et reconnu quand le produit qui l’a créé et
incarné change? Est-ce que les évolutions constatées, notamment dans le domaine archi‑
tectural, ne sont pas de nature à remettre en cause les argumentaires déployés lors de
l’Inscription? De quelle intégrité et de quelle authenticité le paysage culturel de la ­région
de Tokaj pourra t-il se prévaloir dans quelques décennies si les tendances ­observées
­devaient s’implanter durablement?
Pour l’heure, les instances mises en place par l’Etat hongrois pour assurer la ­gestion
conservatoire du site UNESCO semblent peiner à s’imposer face aux impératifs écono­
miques et aux choix qui en découlent pour les acteurs privés. La Hongrie est pourtant
l’un des quelques pays à disposer d’une loi spécifique sur le Patrimoine Mondial17,
qui prévoit notamment la mise en place d’une structure de gestion dédiée dans chaque

17
Act LXXVII of 2011 on the World Heritage.

226
PATRIMOINE MONDIAL VS. MARCHÉ: TOKAJ A LA CROISEE DES CHEMINS

site inscrit. A Tokaj, cette structure, animée par une équipe réduite de deux personnes,
est placée directement sous la tutelle du «Conseil de Développement Régional» et a
donc très peu d’autonomie et de pouvoirs décisionnels dans la mise en œuvre du Plan de
­gestion. Si elle ne peut naturellement pas intervenir dans les choix opérés par les acteurs
privés de la filière en matière vitivinicole, elle n’a semble t-il guère plus de latitude et de
réel pouvoir de contrôle en matière architecturale et paysagère puisque ces questions
sont traitées à l’échelle départementale par un «Conseil Régional pour l’Architecture et
l’Aménagement», cet éloignement relatif du milieu local entraînant des retards voire des
lacunes dans la transmission et la conduite des projets. Néanmoins, parmi les missions
du Bureau du Patrimoine Mondial de Tokaj, figure l’élaboration d’un Guide d’architec‑
ture et du paysage destiné à poser des règles claires pour la mise en œuvre des orien­
tations prévues par le Plan de gestion, mais, principalement pour des raisons financières,
sa réalisation a jusqu’à présent été retardée.
Les acteurs et gestionnaires du Patrimoine Mondial ont par ailleurs à composer
avec une certaine indifférence des populations locales, qui n’ont que peu adhéré à ce
projet devant les faibles retombées économiques procurées par l’attribution du label,
le tourisme en particulier ne connaissant qu’un développement limité, et devant les limi‑
tations imposées à la poursuite de certaines activités traditionnellement pourvoyeuses
d’emploi (carrières et exploitation minière).
Ainsi, l’objectif poursuivi par l’Etat hongrois de relance du développement local
grâce au Patrimoine Mondial peine à se réaliser pleinement. Si le soutien du gouver­
nement est constant grâce à de nombreux programmes de développement en faveur de
la région de Tokaj18, il ne peut contrer les effets des fluctuations d’un marché auxquelles
les producteurs sont contraints de s’adapter, sous peine de risquer de disparaître.
Le Patrimoine Mondial a t-il les moyens de ses ambitions à Tokaj? Telle est in fine la
question que l’on pourrait poser. Au regard des évolutions en cours, il semble bien que les
recommandations de l’UNESCO soient quelque peu inopérantes face aux injonctions
du marché. Le risque étant qu’à terme la région viticole de Tokaj perde sa spécificité et
les caractères qui l’ont fait reconnaître comme un bien de l’humanité.

18
Par exemple, la région de Tokaj est l’une des trois régions qui ont été déclarées «région de développement prioritaire»
par le gouvernement en 2014 et bénéficie à ce titre de subventions pluriannuelles. En outre, plusieurs programmes
­européens (Leader…) sont essentiellement consacrés à la région.

227
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

BIBLIOGRAPHIE
BROCHOT, Aline; ALBERT, Krisztina (2020). De transition en mutation, le vignoble de Tokaj aujourd’hui,
«Revue POUR». 237-238: «Dossier Vins, vignes et vignerons, quelles transitions?», 103-115.
BROCHOT, Aline (2021a). Image, marché et consommation des vins de Tokaj. «Territoires du vin». 13.
[Consult. 19 nov. 2022]. Disponible en <https://preo.u-bourgogne.fr/territoiresduvin/index.
php?id=2260>.
BROCHOT, Aline (2021b). S’appuyer sur la tradition pour renaître, innover pour résister: du vin de Tokaj aux
vins de Tokaj. «Revue de Géographie historique».19-20. DOI:10.4000/geohist.2482
BROCHOT, Aline (2021c). La renaissance du vignoble de Tokaj: la preuve par le paysage. In LEGOUY,
­François et al. Terre des Hommes, terres du Vin. Tours: Presses universitaires François-Rabelais,
pp. 21-34.
CROS-KARPATI, Zsuzsa (2003). Renaissance de la région viticole de Tokaj. «Europa Nostra». 5, pp. 55-59.
DILLOW, Clay (2019). The World’s Most Expensive Wine Is From Hungary. «Fortune». [Consult. 19 nov.
2022]. Disponible en <https://fortune.com/2019/03/09/most-expensive-wine-hungary/>.
KEZDY, Daniel (2014). Tokaj people and vineyards. Budapest: Gourmandnet Kft.
REPUBLIC OF HUNGARY (2002). Tokaj Wine Region Historic Cultural Landscape. [Consult. 19 nov.
2022]. Disponible en <http://whc.unesco.org>.
REPUBLIC OF HUNGARY. Ministry of Rural Development (2011). Tokaji Wine is Hungary in a Bottle.
[Consult. 19 nov. 2022]. Disponible en <https://2010-2014.kormany.hu/en/ministry-of-rural-deve‑
lopment/news/tokaji-wine-is-hungary-in-a-bottle>.
RIPKA, Gergely (2019). Tokaj Guide. Budapest: Ripka Gergely EV.
SZAKÁL, Zoltán (2009). A wine market and marketing analysis of wine specialities from the Tokaj-Hegyalja
wine district. «Studies in agricultural economics». 109, 85-102.
TOKAJ BORVIDÉK FEJLESZTÉSI TANÁCS [Conseil de Développement de la Région Viticole de Tokaj]
(2015). Tokaj wines to target the U.S., China and the UK. Budapest: press release.
ZELENAK, Istvan (2001). The historical values of Tokaj-Hegyalja. In World Heritage Expert meeting on
­Vineyard Cultural Landscapes. Budapest: Secretariat of the Hungarian World Heritage Committee;
UNESCO World Heritage Centre, pp. 33-37.

228
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES
DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-
-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES), STABILITÉ
OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES
PARCELLES VITICOLES
ERIC ROUVELLAC*
RÉMI CROUZEVIALLE*
FABIEN CERBELAUD*

Abstract: Located in the eastern Pyrenees, the Banyuls vineyard presents heritage landscapes and
emblematic of steep artificial slopes to fight against erosion. The qualitative evolution of these landscapes
marked by viticulture has been studied through the example of the Ravaner watershed, from the 19th to
the 21st centuries, at the plot scale. Then only through the wine prism, the landscape developments in the
Ravaner watershed were examined quantitatively. There appear to be changes in the plot occupation,
inside and outside viticulture, which certain environmental peculiarities (slope, altitude, exposure) can
influence. Over the past two centuries, there has been overall great instability in the vines, but in a
nuanced man.ner in the cultural environment, the altitude, the discrimination linked to the different
appellations, to a lesser extent with seaside urbanization. The vines are unstable inside all the plots
planted; stability is better present outside these sectors.
Keywords: Banyuls-sur-Mer; landscape evolutions; viticultural landscapes; stability; instability.

Resumo: Localizada nos Pirenéus Orientais, a vinha Banyuls apresenta paisagens patrimoniais e emble­
máticas com encostas íngremes artificializadas para combater a erosão. A evolução qualitativa destas
paisagens marcadas pela viticultura tem sido estudada a partir do exemplo da bacia do Ravaner,
dos ­séculos XIX ao XXI, à escala do terreno. Em seguida, através do prisma vitícola apenas, as evoluções da
paisagem na bacia de Ravaner foram examinadas quantitativamente. Existem alterações na ocupação das
parcelas, dentro e fora da viticultura, que podem influenciar determinadas particularidades a ­ mbientais
(declive, altitude, exposição). Ao longo dos últimos dois séculos, observamos globalmente uma grande
instabilidade das superfícies ocupadas pela vinha no espaço, mas de forma matizada no meio cultural,
a altitude, a discriminação ligada às diferentes denominações, em menor medida com a urbanização
­lito­rânea. A videira é instável dentro de todas as parcelas plantadas, enquanto a estabilidade está mais
presente fora desses setores.
Palavras-chave: Banyuls-sur-Mer; alterações paisagísticas; paisagens vitícolas; estabilidade; insta­bi­
lidade.

* Université de Limoges, Umr Cnrs 6042 Géolab — 39E, rue Camille Guérin, 87036 Limoges cedex, France. Eric
­Rouvellac, professeur à l’Université de Limoges, Faculté des Lettres et Sciences Humaines, il travaille depuis plus de
25 ans sur les terroirs et paysages viticoles en France, en Espagne, en Afrique du Sud et au Chili. Fabien Cerbelaud et
Rémi Crouzevialle, ingénieurs spécialisés en bases de données, cartographie et systèmes d’information géographique
au laboratoire Geolab.

229
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

INTRODUCTION
Abritée dans la partie la plus orientale des Pyrénées, la chaîne des Albères et la côte
associée Vermeille abritent les vignobles de Banyuls et de Collioure1 (Fig. 1). A la fron‑
tière franco-espagnole, se jetant littéralement dans la mer Méditerranée, amenant des
contrastes altitudinaux de plusieurs centaines de mètres en quelques kilomètres de l’inté‑
rieur des terres vers la mer, la vigne constitue ici une monoculture renommée pour ses
vins mutés de Banyuls ou secs de Collioure. Le vignoble s’étage du niveau de la mer
jusqu’à près de 500 m d’altitude, sur des terrains à très fortes pentes (parfois plus de 80%,
c’est-à-dire que pour 1 mètre à l’horizontale l’altitude s’élève de 80 cm, soit une pente
de presque 39 degrés) et des sols constitués par les schistes des Albères. Les aména­
gements réalisés au cours des siècles pour lutter contre l’érosion ont créé des paysages
bien particuliers, marqués durablement par la structure du territoire, sa morphologie,
la répar­tition sociale des terrains à travers l’éclatement parcellaire et la généralisation
de la micro-propriété. La lutte contre l’érosion façonne les paysages. Les éléments les
plus marquants de ceux-ci sont les «peus de gall». L’eau de ruissellement est collectée
par le vigneron dans une rigole pavée et parementée, disposée en diagonale. Ces rigoles
se jettent dans une branche principale, généralement disposée dans le sens de la pente
et l’ensemble forme un réseau de géométrie particulière en forme de trident appelé de
façon imagée en catalan «peus de gall», littéralement pieds de coq. Ces aménagements
sont complétés par des terrasses sèches qui strient le paysage perpendiculairement aux
«peus de gall»2.

Fig. 1. Le bassin-
-versant du Ravaner
à cheval entre
les appellations
Banyuls – Collioure
et Roussillon
Sources: IGN BD
TOPO®,
© Google INAO.
Réalisation :
R. Crousevialle,
F. Cerbelaud

1
Il est composé de 4 communes montagneuses, Banyuls-sur-Mer, Cerbère, Collioure, Port-Vendres.
2
OLIVIER, 2002; BONARDI, 2018.

230
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

Nous avons souhaité nous intéresser aux transformations durant les deux ­derniers
siècles des paysages construits par la viticulture dans les quatre communes des appella‑
tions Banyuls et Collioure, en cartographiant et quantifiant ces changements, en ­prenant
comme exemple représentatif le bassin-versant du Ravaner, dont le cours sépare les
AOC Banyuls Collioure à l’est et Roussillon à l’ouest, entre les communes de Collioure
et Argelès-sur-Mer (Fig. 1). Les données utilisées sont les cadastres napoléoniens et
du début du Xxe siècle et des photos aériennes prises depuis la deuxième moitié du
XXe siècle (1953, 1988, 2010). Grâce aux séquences d’évolution déterminées entre ces
données spatiales à résolution fine, nous souhaitons mettre en valeur les mutations du
début du XIXe à nos jours, nous espérons proposer une vision des évolutions dans un
continuum historique. Dans quelles directions, avec quelle ampleur, à quels rythmes
se produisent les ­mutations3? Notre interrogation principale porte sur la pérennité et
la stabilité du vignoble, dans ce bassin versant de 16,3 km2, et à l’échelle de la parcelle
cadastrale. Nous avons pu suivre l’évolution qualitative et quantitative de l’occupation des
parcelles, en déterminant une typologie diachronique prenant en compte non seulement
les différents états évolutifs d’occupation liés à la vigne, mais également tous les autres
types d’occupation. L’analyse de la cartographie résultante montre de manière précise les
changements paysagers des lieux et la place de la vigne dans ces derniers. La détermi‑
nation de ces évolutions est croisée avec trois paramètres morphométriques (altitude,
pente et orientation), d’un point de vue physique, et mise en regard avec les évolutions
environnementales (crise du phylloxéra, changement climatique) et sociétales comme
les labellisations des productions ou le tourisme.

1. L’ÉVOLUTION QUALITATIVE DU PAYSAGE VITICOLE DE


L’AOC BANYULS-COLLIOURE (DÉBUT XIXE, DÉBUT XXIE
SIÈCLES)
L’introduction de la culture de la vigne sur le littoral Méditerranéen est ancienne,
­remontant aux étrusques et aux grecs. Le vignoble de production romain s’y développe à
partir de la Narbonnaise dès la fin du IIe siècle avant notre ère4. Par contre la généralisation
de la viticulture à l’échelle des quatre communes de l’appellation est sans doute ­récente,
au gré de l’occupation de ce territoire à très faible densité longtemps enclavé et voué
­surtout aux parcours des troupeaux5. Des traces fiables et cartographiées de viticulture,
à l’échelle parcellaire, n’apparaissent qu’avec les premiers cadastres du 1er Empire et les cartes
d’État-major de la fin du XIXe siècle. Si nous nous fions aux cartes de Cassini (seconde

3
ROCHARD, HERBIN, 2006; COMBAUD, MARRE, STROPPA, 2012; LAMMOGLIA, LETURCQ, 2017.
4
BRUN, LAUBENHEIMER, 2001.
5
ROUVELLAC, 2013.

231
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

partie du XVIIIe siècle), seules Collioure et l’actuelle Port-Vendres paraissent viticoles6,


les plantations restant presque toutes dans un contexte littoral. La vigne est ­absente à
Banyuls et la future Cerbère. Phénomène improbable si on examine les ­cadastres napo‑
léoniens levés quelques années plus tard début XIXe, où la vigne apparaît bel et bien et
occupe aux alentours de 8% du territoire de la commune de Banyuls, qui englobe alors la
moitié sud de Port-Vendres et Cerbère tout entière. La vigne commence à prendre une
place non négligeable dans un système agrosylvopastoral de faible densité. Elle colonise
peu à peu les versants avec des paysages particuliers créés par la lutte contre l’érosion.
En 1850 sa superficie représente 2 000 ha et ne cesse d’augmenter pour atteindre
6000 ha en 18807. 4 000 ha plantés en 30 ans. L’introduction du chemin de fer mi-XIXe
permet de vendre plus loin les produits et stimule la production, et couvre les pentes des
Albères de vignes, le vin devenant un élément important de l’économie liée à la révo‑
lution industrielle. Il y a en plus l’occasion d’un arbitrage nouveau entre l’élevage et la
culture des terres, avec les lois forestières et la lutte contre le libre parcours qui poussent
les populations à se détourner de formes anciennes d’usage des terrains. Le Roussillon
se spécialise en viticulture face à la forte demande en vin et spiritueux d’une nouvelle
main-d’œuvre ouvrière, après avoir été un vignoble tourné en partie non négligeable
vers la distillation pour approvisionner les navires marchands. Le vignoble est connu
surement depuis une longue période déjà pour ses vins mutés, eux aussi à destination
de la marine et du commerce, pouvant être transportés sans périr grâce au procédé de
rajout d’alcool dans le marc en fermentation. Il y a tout lieu de penser que les murets et
les agouilles fossilisées aujourd’hui par la végétation se situent dans le périmètre de cette
extension maximale8.
Ce vignoble de masse correspond alors à l’apogée de la viticulture à la fin du XIXe.
La vigne occupe les deux tiers de la superficie totale des 4 communes qui est d’un peu
moins de 8000 ha; à part les secteurs subverticaux et très pentus des amont versants,
le bâti et les champs et pâtures. L’omniprésence des terrasses et des pieds de coqs devait
­sauter aux yeux avant la crise du phylloxéra en 1888. Celle-ci met fin brutalement à l’acmé
de la situation du vignoble de Banyuls et ne laisse dix ans plus tard que 500 ha de vigne.
La reconstruction est lente et difficile dans un contexte d’exode rural et face à une
­proportion importante de viticulteurs totalement ruinés. Cependant les porte-greffes
américains et les plants hybrides permettent de retrouver 3000 ha en 1965. La concur‑
rence foncière, balnéaire et littorale, avec l’essor du tourisme à partir des années 1960,
l’interdiction des hybrides, le coup important de la main-d’œuvre accentuée par des ­terrains
pentus ne permettant que très peu de mécanisation, induisent une phase d ­ ’arrachage,

6
Port-Vendres et Cerbère ne seront créées qu’à la fin du XIXe siècle, pour accompagner la Révolution industrielle et la
construction du chemin de fer.
7
ALCARAZ, 1999.
8
ALCARAZ, 1997.

232
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

encouragée par des primes, jusqu’à la fin des années 1980. La prise de conscience de la
richesse patrimoniale du vignoble, le poids du au tourisme, l’intérêt des vignes ­coupe-feu,
le rôle de l’emblématique cépage grenache, l’effet de niche des vins mutés, l’essor des vins
de pays assurent un maintien de la superficie du vignoble mais qui tend aujourd’hui
­cependant à diminuer9.
L’exploitation de la vigne s’est accompagnée de l’aménagement des «peus de galls»,
complétés par les terrasses, clés de voute des paysages banyulencs. La vigne est plantée
en foule, puis au fur et à mesure en rangées après le phylloxéra (Fig. 2)10. Les «peus de
gall» apparaissent comme des rigoles le plus souvent pavées, ce qui peut protéger le sol
fragile, empêcher le développement de la végétation, lutter contre l’érosion. Malgré tout,
cette dernière est importante11.

Fig. 2. Les aménagements des versants en «Peus de gall».


Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud, d’apres GILLES, 2010

9
ROUVELLAC, 2013.
10
ALCARAZ, 1997, 1999; MABY, 2002b; ROUVELLAC, 2013, 2016.
11
MICHEL, 1960.

233
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Des puits secs sont alors mis en place et permettent de décanter et de récupérer
une partie de la terre enlevée qui était remontée périodiquement, tous les 4 à 5 ans12.
Les sols demeurent fragilisés par le désherbage systématique et le caractère non couvrant
des vignes.
L’érosion n’est pas le seul enjeu que rencontre le vignoble. Vieil endroit de villégia‑
ture avec la renommée de Collioure construite par les peintres impressionnistes dès la
fin du XIXe siècle, le tourisme s’est considérablement accru depuis les années 1960 dans
la région13, grignotant par ses installations spécifiques et par l’extension de ­l’habitat le
­vignoble à partir du littoral. Les vignes demeurent touchées également de façon récur‑
rente par l’enfrichement après l’apogée ante phylloxérique et une lente reconstruction
(Fig. 3). Elles subissent, au fil du temps, des transformations socio-économiques et
techniques qui ont modifié les méthodes culturales ainsi que les paysages, notamment
­parfois avec la destruction des terrasses anciennes et des «peus de gall» au profit d’un
remodelage au bulldozer. Depuis ces dernières années, les vignes de la région jouent un
rôle nouveau de coupe-feu pour lutter contre les trop nombreux incendies; la ­géographie
de leur implantation se trouve modifiée. De plus, il faudrait s’interroger sur la place
omni­présente qu’occupe la pratique du désherbage et des amendements.

Fig. 3. Évolution de la superficie en vigne dans l’appellation Banyuls


Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud, d’après ALCARAZ, 1999

12
FERRER, 1930; OLIVIER, 2002.
13
Notamment sous l’influence du plan Racine, plan d’aménagement du littoral des Languedoc et Roussillon à partir de
1963, destiné à favoriser le tourisme.

234
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

2. ANALYSE DES ÉVOLUTIONS À L’ÉCHELLE PARCELLAIRE,


L’EXEMPLE DU BASSIN-VERSANT DU RAVANER, FIN XIXE,
DÉBUT XXIE SIÈCLES
De manière à étudier ces évolutions de manière plus fine, nous nous sommes ­consacrés
ici à l’étude du parcellaire d’un bassin-versant du nord du vignoble, celui du Ravaner
(Fig. 4). Il présente la particularité de se situer à cheval sur les communes de Collioure
et ­Argelès-sur-Mer, et surtout sur les appellations de Banyuls — Collioure et Côtes
du ­Rou­ssillon. Ce choix permet notamment d’évaluer le rôle de différentes labelli­-
sations ­vitivinicoles.

Fig. 4. Évolution de l’occupation du sol du bassin-versant du Ravaner XIXe-XXIe siècles


Sources : IGN BD PARCELLAIRE (símbolo), BD ORTHO (símbolo) Historique, AD 66
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

235
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Ce bassin versant s’étale de la montagne frontalière avec l’France, du niveau de


la mer jusqu’à 981 m d’altitude, du nord au sud. En 1813, la vigne est déjà concentrée
dans la partie aval du bassin-versant, mêlée dans le cadre d’une économie traditionnelle
méditerranéenne avec l’olivier, des pâtures et des terres labourées. La vigne se répartie
de part et d’autre du Ravaner et occupe 14% du bassin versant, mais sa répartition doit
être analysée dans le détail. En rive gauche, elle comprend des ensembles très pentus à
des altitudes supérieures à 450 m, moins favorable à la viticulture. Les bois y constituent
l’ossature de l’occupation du sol depuis le début du XIXe, preuve de la sous-utilisation de
cet ensemble, toujours très dur à mettre en culture. La vigne est dominante dans l’aval
bassin, dans les collines au nord du hameau du Rimbau, avant que la vallée ne se resserre,
et n’a pas colonisé plus en amont jusqu’aux années 1980. Les aménagements en terrasses
et «peus de gall» ne vont pas plus en amont que ce que présente cette situation au début
du XIXe. Il s’agit également de la limite altitudinale supérieure des aménagements et
terrasses et «peus de gall».
Au début du XXe, la situation post-phylloxérique se fait encore sentir. La part de
la vigne a chuté de moitié au profit de la complantation avec les pâtures et surtout au
­profit des subéraies qui dominent principalement vers Argelès. L’exploitation du liège
était ­présentée alors comme une alternative à la viticulture. L’économie vivrière, marquée
par les terres ou les oliveraies, apparaît en net recul, au profit des pâtures qui se trans‑
forment progressivement en maquis. Ces tendances s’affirment au milieu du XXe siècle,
où les bois ont peut-être été exploités car ils régressent dans les parties les plus reculées,
cela est aussi dû à des destructions successives par incendies.
Une tendance lourde commence à voir le jour: le délaissement progressif de la
vigne rive gauche. En effet, la tradition des vins de Banyuls est consacrée par une recon‑
naissance en AOC qui est obtenue en 1936, l’AOC Collioure arrive en 1971, et l’AOC
Côtes du Roussillon (côté Argelès), est promulguée en 1977. Même si, aujourd’hui, le
label n’amène plus de façon systématique la même plus-value, ce sont les appellations et
les productions à plus forte valeur ajoutée comme les vins doux naturels qui ont donné
sa place à la viticulture dans le bassin-versant du Ravaner. Cette tendance ne se dément
pas aujourd’hui où le paysage est presque devenu binaire, vigne côté Collioure, maquis
mélangé aux bois côté Argelès. La vigne retrouve presque ses proportions ante-phylloxé‑
rique dès 1953 à cet endroit, et stagne depuis au même niveau. Sa répartition a évolué
près des côtes, grignotée par l’extension urbaine, routière et balnéaire de Collioure.
Le vignoble s’enfonce profondément à l’intérieur des terres en amont du hameau
du Rimbau, en rive droite du Ravaner, sur des parcelles qui n’ont jamais été dédiées à
la viticulture. Ces plantations sont essentiellement le fait de la cave coopérative «Terre
des Templiers» qui contrôle les trois quarts de la production de Banyuls et de Collioure.
Il faut remarquer que depuis trente ans maintenant, ces vignes ont été créées ex-nihilo
avec des engins de terrassement qui ont façonné des terrasses sans aucun ­aménagement

236
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

t­ raditionnel, au mépris du risque érosif14. Nous sommes passés d’un paysage de la ­terrasse
arrimée sur des lignes rocheuses, en suivant les courbes des versants, à terrasser en
­entaillant une pente pour créer le plat au risque de générer de nouvelles pentes plus rudes.
Le paysage traditionnel s’arrête là où prenait fin la viticulture avant la crise du phylloxéra,
au niveau du hameau du Rimbau, derrière le massif de la tour Madeloc (Fig. 1).
Cette analyse qualitative et spatiale a été reproduite sur différents bassins versants
de l’appellation, Le Ravaner, le bassin versant du Cosprons, commune de Port-Vendres,
les bassins versants du Mas des Abeilles et des Escoumes, commune de Banyuls-sur-
-Mer15. A chaque fois les mêmes tendances générales se dégagent.
La stabilité d’occupation des parcelles examinées de façon générale en fonction des
différents pas de temps paraît bien faible. Ce qui explique l’instabilité en amont versant
et l’évolution vers la déprise, des parcours pâturés et des parcelles labourées devenant
maquis et même forêt si l’incendie n’intervient pas souvent. Les parcelles stables sont
occupées seulement par quelques bois et forêts dans les parties les plus reculées et les
plus pentues du bassin-versant.
L’instabilité en aval versant relève des crises viticoles (phylloxéra en premier lieu),
et du cortège socio-économique accompagnant le système vitivinicole (phases de
méventes, de concurrence balnéaire et/ou immobilière). La Fig. 4 montre aussi le glisse‑
ment qui s’est opéré en deux siècles vers le maquis, les reboisements en chêne-liège dont
certains perdurent, et la construction des zones bâties liées à la littoralisation. Dans la
­partie nord en rive droite du Ravaner, c’est une partie de la vigne exposée au sud-ouest qui
se maintient sur les deux siècles étudiés. Cette stabilité à quelques endroits précis dépend
d’un côté de la structuration en AOC de plus forte valeur ajoutée (Banyuls et Collioure)
en rive droite qu’en rive gauche (Côtes du Roussillon). Elle dépend d’un autre côté d’un
facteur naturel, des expositions ouest à sud-ouest favorisant une viticulture de qualité.
Au-delà des évolutions à l’échelle du bassin-versant, la vigne apparaît comme très
peu stable à l’échelle parcellaire. On y constate souvent la succession de vigne, de formes
dégradées de celle-ci, ou de maquis.
L’instabilité est illustrée par la disparition mais aussi par la plantation de nouvelles
parcelles dans l’amont-bassin en rive droite à la fin du XXe siècle, témoins de l’essor du
vignoble à cette époque. Le système patrimonial conserve une même vocation, la vigne
y revient tant que le marché le permet, mais c’est l’enfrichement qui prend généralement
le pas aujourd’hui.

14
CONSTANS, 2010.
15
ROUVELLAC, 2013.

237
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

3. UNE INSTABILITE RELATIVE DE LA REPARTITION DE


LA VIGNE?
L’instabilité parcellaire est de mise, mais de manière différenciée et il serait très exagéré
d’imaginer des paysages en constante mutation. Nous avons pu mettre en évidence les
évolutions paysagères globales de l’AOC puis, à une granularité fine, les fluctuations de
la nature des parcelles et notamment de l’emplacement des vignes dans le bassin-versant.

Fig. 5. Évolutions et stabilités quantitatives des superficies en vignes dans le bassin versant du Ravaner
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

Au XIXe et jusqu’au début du XXe siècle, la mobilité de l’implantation parcellaire des


vignes peut paraître faible au regard de la durée de la période étudiée (Fig. 5), mais on peut
supposer que la disparition de 104 ha de vignes s’est en grande majorité produite à partir
des premiers effets de la crise du phylloxéra en 1888. Dans le contexte post-phylloxérique,
on constate une forte turbulence dans l’implantation des vignes. En 1953, la moitié des
200 ha de vignes est issue de parcelles renouvelées. Si entre 1920 et 1953, la superficie en
vigne augmente de 26 ha, soit de 13%, cela correspond en fait à un bilan de 74 ha disparus
pour 100 ha apparus. La phase suivante, entre 1953 et 1988, amène une stabilisation de
l’implantation des vignes existantes et l’apparition de vignes n ­ ouvelles notamment avec

238
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

la création de l’AOC Collioure en 1979, alternative au Banyuls en perte de vitesse à cause


de changements de goûts des consommateurs et de concurrence entre vins qui peuvent
satisfaire le même goût de ces derniers. Cette stabilité est confirmée malgré l’impact des
implantations balnéaires dont certaines remplacent les vignes les plus proches du littoral.
L’implantation des vignes existantes se renforce entre 1988 et 2011, 52 ha disparaissent
sous l’influence de la littoralisation mais surtout à cause des crises de méventes succes‑
sives qui touchent le secteur viticole dans son ensemble. Cependant c’est à la fin de cette
période qu’on observe la plus grande stabilité avec environ 80% des parcelles de vignes
n’ayant pas évolué. Si elles sont à nuancer en fonction des périodes, ces données montrent
une importante variabilité des parcelles plantées en vigne. Si on examine la superficie de
la totalité des parcelles ayant été plantées en vigne au moins une fois depuis 1813, 37,6%
ont aujourd’hui disparu et seulement 9,5% ont toujours été plantés en vigne. Les autres
possibilités sont très diverses. Par exemple, 19,6% ont connu au moins pendant un pas de
temps un abandon puis une replantation de la vigne. Cependant, cette instabilité n’est pas
propre à la vigne. Hormis jusqu’en 1920, l’ensemble des autres parcelles apparaît toujours
plus instable que celui des vignes. Ce renouvellement atteint 2,1% par an entre 1920 et
1953. Dans le contexte plus stable de la période suivante, il représente tout de même le
double de celle de la vigne (1,4% pour l’ensemble des parcelles contre 0,7% pour la vigne).

Fig. 6. Évolution spatiale de la vigne dans le


bassin versant du Ravaner entre 1813 et aujourd’hui
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

239
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Nos données nous permettent d’appréhender spatialement ces variabilités quanti­


tatives. L’abandon de la rive gauche du Ravaner (Fig. 6) prend sa source dans les répu­
tations des appellations forgées au XXe siècle par le monde socio-économique du vin
et des consommateurs, qui a vu ici les vins de Banyuls perdre de l’influence, mais ceux
de Collioure acquérir une certaine réputation alors que l’AOP Côtes du ­Roussillon ne
renvoyait pas une image assez qualitative. Il ne faut pas oublier la concurrence ­balnéaire
au détriment de la vigne dans les parties littorales, la déprise rurale par exode rural
­important jusqu’à la fin des années 1960, le vieillissement général des producteurs
(la moitié à plus de 60 ans), les difficultés à vaincre des conditions naturelles limitantes
(fortes pentes, érosion, absence de sol, rendements faibles par rapport aux exigences
du marché ayant impliqué un recours massif aux herbicides depuis 50 ans). Tous ces
­facteurs ne peuvent que favoriser des difficultés du maintien du vignoble banyulenc.
Au final, aucune superficie viticole ne peut se targuer d’une stabilité d’occupation
sur les périodes considérées ici, relativement courtes par rapport à l’histoire plurimillé‑
naire de la vigne dans le bassin méditerranéen occidental. Il y a ainsi de véritables petits
îlots abandonnés à cause de tous les facteurs cités plus haut, au sud à cause des pentes
fortes qui dominent, au nord par l’implantation de la route de contournement côtier
construite en 1993 qui favorise en plus des installations urbaines et balnéaires.
Ceci se déroule dans un contexte de fort morcellement parcellaire lié à la pluriac‑
tivité quasi généralisée dans le vignoble et dans un contexte de perte de rentabilité du
Banyuls, avec de faibles rendements par rapport à la somme de travail non mécanisable
et aux conditions naturelles limitantes (épaisseur très faible du sol, sécheresse…).
Le point positif qui peut être mis en avant est la valorisation en AOC puis AOP avec
l’introduction en appellation des vins secs de Collioure en 1979, à côté des vins mutés de
Banyuls. Ceci a permis de stabiliser l’emprise viticole face à la baisse de consommation
des vins mutés dits d’apéritifs ou de desserts. Au point que l’amont du bassin versant a
été planté pour répondre à la demande en vins de Collioure, assurant le maintien de la
vigne, mais sur une partie non viticole jusqu’alors, et renforçant donc l’instabilité spatiale
du vignoble sur de moyens termes.
Cela constitue un petit paradoxe. Non seulement à cause des risques d’érosion déjà
évoqués ou de l’empreinte patrimoniale particulière du paysage viticole, mais aussi par la
communication qui utilise les images des vignes traditionnelles autour du Rimbau, sans
jamais utiliser une partie des nouvelles plantations, beaucoup moins soignées et remar‑
quables, sans terrasses et «peus de gall» aménagées.
L’implantation de la vigne semble être parfois corrélée aux paramètres morphomé‑
triques, altitude, pente, exposition. Il faut cependant analyser avec prudence leur impact
et se demander s’ils ne révèlent pas, en trompe l’œil, la prédominance d’autres facteurs,
surtout socioéconomiques (Fig. 7).

240
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

La part de la vigne au-dessous de 100 m d’altitude baisse constamment de 1813 à


2011, de 120 ha à 61 ha, la part entre 100 et 200 m fluctue mais reste stable, autour de
85 ha. Par contre la part des vignes au-delà de 200 m est multipliée par 4 (de 12 à 45 ha),
et se remarquent désormais 14 ha au-dessus de 300 m, ce qui est un phénomène récent.
Si on observe de manière plus détaillée les surfaces de vignes abandonnées ou plantées,
ce phénomène apparaît nettement.
Les vignes abandonnées se situent majoritairement à des altitudes plus faibles,
tandis que les plantations se font désormais à des altitudes au-delà de la moyenne des
altitudes des autres vignes. Sur la période 1988-2011, la moyenne d’altitude des vignes
abandonnées est de 90 m, celle des vignes existantes est de 125 m, quant à celles plantées,
elle est de 175 m.

Fig. 7. Variations de l’orientation, de la pente et de l’altitude des vignes plantées entre 1813 et aujourd’hui
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

241
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Il serait tentant d’en déduire une conséquence du réchauffement climatique ou de


la prise de conscience de celui-ci. Mais la vigne a plutôt été plantée plus en altitude car
des terrains étaient vacants et plus facilement accessibles, peut-être aussi moins onéreux
et moins en concurrence avec les extensions immobilières et balnéaires. Au sein des
parcelles plus élevées, plantées en amont-versant du Ravaner entre 200 et 300 m, ce sont
les vignes plantées par la cave coopérative Terres des Templiers qui ont été introduites.
Les vignes se répartissent au final de manière assez harmonieuse sur les plus fortes
pentes, toujours entre 10 et 25°, durant les deux siècles étudiés. Elles sont aussi les plus
abandonnées au cours du XXe siècle, en effet ce sont les vignes les plus difficiles à entre‑
tenir. La reconstruction post-phylloxérique a touché des pentes un peu moins fortes,
surtout entre 5 et 20°, et de manière marginale des parcelles faiblement pentues de pieds
de versant ou de fond de vallon, de moins de 5.°.
L’analyse du critère de l’orientation montre l’abandon du versant ouest, rive gauche
du Ravaner et commune d’Argelès-sur-Mer, exposé principalement à l’est. Si ce versant
semble moins propice climatiquement à une viticulture de qualité que celui exposé à l’ouest,
cette évolution ne s’explique pas principalement par des critères environne­mentaux mais
plutôt par des critères économiques liés à la valorisation induite par le s­ ystème d’appellations.
Ce versant ouest ne fait pas partie des AOC Banyuls-Collioure mais est compris dans
l’AOC Côtes du Roussillon, cette dernière étant moins valorisée par le marché. L’augmen‑
tation de vignes exposées au couchant, à partir de 1953, paraît montrer que la valorisation
viticole se tourne vers l’appellation en vins naturels de Banyuls, avec un complément de
gamme non négligeable porté par les vins secs de l’appellation Collioure.

4. L’EVOLUTION DU PARCELLAIRE VITICOLE PEUT-ELLE


ETRE ENVISAGEE DE FRANCE SYSTEMIQUE?
On ne peut pas parler de permanence des parcelles plantées en vigne. Nous avons
­montré des variations historiques globales, et l’évolution de tous les types d’occupation de
­parcelles. Si l’instabilité des parcelles viticoles est un peu moins importante que les autres,
elles connaissent des changements, le phénomène de leur instabilité à l’échelle ­parcellaire
est observé de manière très nette. Très peu de parcelles sont restées plantées en vigne
depuis 1813 et, même au-delà de ces quelques cas exceptionnels, il apparaît rare que la
vigne se maintienne longtemps sur la même parcelle. Si on prend en compte les ­surfaces
actuelles de vigne, 23% ont toujours eu cette vocation depuis 1813. Si sont comprises
toutes les surfaces plantées en vigne lors d’au moins un des pas de temps étudiés,
cette proportion n’est que de 9,5%. On observe même un phénomène d’occupation éphé‑
mère puisque 33% de ces superficies n’ont été plantés en vigne que lors d’un seul pas de
temps. C’est par exemple autour du hameau du Rimbau que la vigne est la plus stable au
cours des deux derniers siècles, les viticulteurs y habitant traditionnellement entretenant la
continuité viticole.

242
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

Au-delà de cette évidente variabilité, nous pouvons tenter de décrire l’évolution qualita‑
tive de ces parcelles de vigne pour nous interroger sur son aspect systémique.
L’observation de l’occupation précédente des parcelles sur lesquelles sont ­plantées de
nouvelles vignes, ou à l’inverse, de la nature suivante des parcelles de vignes a­ bandonnées
nous permet d’affiner et mettre en perspective l’image d’instabilité de la vigne que nous
avons jusqu’alors établie (Fig. 8).

Fig. 8. Remplacement des vignes disparues et origines des vignes crées depuis 1813
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

Si on examine les créations, jusqu’en 1953 les vignes sont majoritairement plantées
au détriment des pâtures, même si la part des bois remplacés augmente. Après ce sont
les maquis qui constituent le principal support des vignes créées. Quelques vignes aban‑
données sont replantées.
Concernant les disparitions, jusqu’en 1920 la plupart des vignes abandonnées ont
disparu au profit de pâtures et de bois. Le phénomène de développement de subéraies
destinées à la production de chêne liège comme alternative aux vignes détruites par le
phylloxéra est observé à cette époque de manière importante dans tout le vignoble de
Banyuls — Collioure.
Après 1920, nous observons davantage des phénomènes d’abandon, la vigne cédant
la place à des formes dégradées évoluant naturellement vers le maquis. Nous observons
donc un phénomène souvent circulaire. Les vignes abandonnées évoluent en pâtures
et certaines pâtures sont plantées en vigne au début de la période étudiée. Par la suite,
le maquis prend la place de la pâture.

243
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 9. Évolution du l’occupation du parcellaire dans le bassin-versant du Ravaner au cours des 2 derniers siècles
Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

Fig. 10. Système dominant d’évolutions du parcellaire viticole


Réalisation : R. Crouzevialle, F. Cerbelaud

En définitive, les vignes sont assez instables mais évoluent à l’intérieur d’un système
plutôt stable (Figs. 9 et 10). En dehors d’une faible proportion évoluant vers l’artificiali‑
sation (balnéaire, chemin de fer ou route), ou en terres et vergers, leur majorité s’inscrit
dans un système où se succèdent vigne dégradée, pâture, maquis et bois.

244
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

Depuis l’optimum ante-phylloxérique et les crises qui s’en sont suivies, la vigne
connaît une évolution soit en pâture soit en vigne dégradée. Ces dernières se végétalisent
en maquis puis en bois si les incendies n’en décident pas autrement, à cause de l’exode
rural, de la perte de rentabilité du vignoble la fin locale du pastoralisme. En revanche,
ce sont des processus culturels et socio-économiques qui amènent des parcelles à être
replantées, si le marché et les habitudes du consommateur le permettent. Autour de rares
îlots de parcelles toujours en vigne depuis le début du XIXe siècle, la grande majorité des
autres parcelles obéit à la logique d’évolution à l’intérieur du système que nous avons mis
en avant (Fig. 11).
Ce système dominant d’évolutions du parcellaire viticole est la règle pour 20,5% de
la superficie totale du bassin-versant et surtout 85% de la superficie des parcelles ayant été
plantés au moins une fois en vigne. Celui-ci est marqué par la déprise progressive, avec
une constance dans la recherche des meilleurs potentiels des lieux, des meilleurs terroirs.

Fig. 11. Système dominant


d’évolutions du parcellaire viticole
Réalisation : R. Crouzevialle,
F. Cerbelaud

245
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

CONCLUSION
Y-a-t-il des paysages viticoles historiques à Banyuls? Une certaine image d’un paysage
viticole et de ses caractères historiques sont entretenues par la communication et le
­marketing16. Cette idée est renforcée par les aménagements pérennes et patrimoniaux
des versants, en murettes et «peus de gall».
Le paysage patrimonial est-il forcément emblématique? Les vignes n’ont pas forcé­
ment une antériorité allant bien au-delà de deux siècles, mais leur superficie varie à
­l’inté­rieur d’un système qui lui a au moins deux siècles. Stabilité et instabilité ne sont pas
en opposition, mais opèrent en fonction de l’échelle. Les vignes se situent dans un ­système
qui varie assez peu à l’extérieur des groupes de parcelles plantées puis abandonnées,
ce qui donne une fausse impression de stabilité, la vigne variant de place de manière
assez importante à l’intérieur de ce système.
Il y a des paysages patrimoniaux dans le vignoble de Banyuls mais ce ne sont pas
obligatoirement ceux mis en avant ou les plus productifs. Leur nature est à nuancer,
par rapport à la vision proposée dans le cadre de la communication autour du tourisme
­balnéaire ou œnologique. Il existe un paysage historique dont il faut chercher les origines
au XIXe siècle. Si la vigne y joue un rôle important, sa culture n’est pas la seule à façonner
sa physionomie. Ce paysage historique est vivant et son image est loin d’être immuable.
Si la vigne et ses aménagements en sont le trait principal et spectaculaire, le paysage
banyulenc n’est pas un jardin construit artificiellement autour d’eux et il se dessine autour
de dynamiques socio-économiques plutôt que patrimoniales, culturelles ou esthétiques.

BIBLIOGRAPHIE
ALCARAZ, Françoise (1997). Feixes, agouilles et peus de gall: le dispositif anti-érosion du vignoble de Banyuls.
Étude des pratiques d’entretien des terrasses de culture. «Montagnes méditerranéennes». 5, 21-26.
ALCARAZ, Françoise (1999). Les terrasses méditerranéennes, entre terroirs et paysages (nord-ouest du bassin
méditerranéen). Toulouse: Université de Toulouse Jean Jaurès. Thèse de doctorat.
BONARDI, Luca (2018). Les terrasses et la vigne, une histoire durable, In PÉRARD, Jocelyne; WOLIKOW,
Claudine, orgs. Quelle durabilité en vigne et en cave? Dijon: Centre Georges Chevrier, pp. 67-75.
BRUN, Jean-Pierre; LAUBENHEIMER, Fannette (2001). La viticulture en Gaule. «Gallia». 58.
COMBAUD, Anne; MARRE, Alain; STROPPA, Lionel (2012). Caractérisation physique et évolution
­historique d’un terroir viticole champenois: le cas de la commune de Sézanne (Marne — France).
«Physio-Géo». 6:1, 223-242. DOI: 10.4000/physio-geo.2758.
CONSTANS, Michèle (2010). Le patrimoine paysager viticole de Banyuls entre reconstruction et destruction.
In PERARD Jocelyne; PERROT Maryvvone, dirs. Paysages et patrimoines viticoles, Rencontres du
Clos-Vougeot 2009. Dijon: Chaire UNESCO Culture et tradition du vin; Centre Georges Chevrier,
pp. 181-199.
FERRER, Georges (1930). Le vignoble de Banyuls-sur-Mer. «Revue Géographique des Pyrénées et du
­Sud-Ouest». 2, 185-192.

16
GEORGIS, 2005; ROUVELLAC, 2016: 103-116.

246
ÉTUDES D’ÉVOLUTIONS PAYSAGÈRES DANS LE VIGNOBLE DE BANYULS-SUR-MER (PYRÉNÉES ORIENTALES),
STABILITÉ OU INSTABILITÉ D’OCCUPATION DES PARCELLES VITICOLES

GIORGIS, Sébastien (2005). Le paysage singulier du cru Banyuls dans les Pyrénées Orientales (France). In
DURIGHELLO Regina; PIERRE-Marie, Tricaud. ICOMOS, Études thématiques, les paysages culturels
viticoles dans le cadre de la Convention du Patrimoine mondial de l’UNESCO. Paris: [s.n.], pp. 78-83.
GILLES, Elodie (2010). Les dynamiques paysagères du vignoble de Banyuls. Limoges: Université de Limoges.
LAMMOGLIA, Adrien; LETURCQ, Samuel (2017). Le vignoble d’Azay-le-Rideau (XVIIe-XXIe siècles). À la
recherche de facteurs de dynamiques spatiales. «Mappemonde». 120. [Consult. 19 nov. 2022]. Dispo‑
nible en <http://mappemonde.mgm.fr/120as2/>.
MABY, Jacques (2002). Les enjeux paysagers viticoles. In Actes du IVe Symposium International sur le zonage
vitivinicole. Avignon: Office International de la Vigne et du vin, pp. 1-8.
MICHEL, André (1960). La forte pluviosité de l’automne 1959 à Banyuls, conséquences sur l’érosion des sols.
«Revue forestière française». 4, 257-266.
OLIVIER, Guy (2002). Le paysage de terrasses du cru Banyuls (Pyrénées Orientales) et son évolution. [Consult.
19 nov. 2022]. Disponible en <www.pierreseche.com>.
ROCHARD, Joël; HERBIN, Carine (2006). Les paysages viticoles. Regards sur la vigne et le vin. Bordeaux:
Éditions Féret.
ROUVELLAC, Eric (2013). Le terroir, essai d’une réflexion géographique à travers la viticulture. Limoges:
Université de Limoges.
ROUVELLAC, Eric (2016). Le terroir, outil ou prétexte dans le monde vitivinicole. In CORNOT, Danielle;
POUZENC, Michaël; STREHAIANO, Pierre, dirs. Les arts et les métiers de la vigne et du vin. Toulose:
Presses Universitaires du Midi, pp. 103-116.

247
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

248
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE:
LANGHE, ROERO E MONFERRATO»:
AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON
THE VALORISATION OF TRADITIONAL
TERROIRS *
ALESSANDRA RENZULLI**

Abstract: Wine-growing landscapes represent the intersection and dialogue of natural and human
factors, a cultural landscape that is stratified over time to represent the customs of the local community.
They describe a living landscape where transformation reflects farmers’ desire to improve forms of
construction and design content concerned with the cultivation of wine. Wine has a determined value
because of the territory’s historical context, and it becomes a tool for enhancing the territory as an
economic driver. In particular, the UNESCO cultural landscapes constitute a trademark that attracts
people worldwide and is a brand of global significance in tourism. An example is «I paesaggi vitivinicoli
del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato» that, since becoming part of the UNESCO heritage in 2014,
has brought a significant increase in tourist flow to the region. The brand power acquired over time has
also shaped the identity of neighbouring areas not included in the nomination.
Keywords: wine-growing landscapes; Italian cultural landscapes; wine tradition; Langhe-Roero e
Monfer­rato; UNESCO brand effect.

Resumo: As paisagens vitícolas representam a intersecção e o diálogo de fatores naturais e humanos, uma
paisagem cultural que inclui elementos estratificados ao longo do tempo para representar os hábitos da
comunidade local. Descrevem uma paisagem viva em que a transformação reflete o desejo dos agricul­
tores de melhorar as formas de construção e o conteúdo do projeto relacionado com o cultivo do vinho.
O vinho determinou um valor através da história do território, e torna-se um instrumento para valorizar o
território como motor económico. Em particular, as paisagens culturais da UNESCO constituem uma
marca que ainda atrai pessoas de qualquer parte do mundo e é uma marca de importância global no
turismo. Um exemplo italiano é «I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato» que,
desde que se tornou parte do património da UNESCO em 2014, trouxe um aumento significativo do fluxo
turístico para a região. O poder adquirido ao longo do tempo modelou a identidade das áreas vizinhas não
incluídas na nomeação.
Palavras-chave: paisagens vitícolas; paisagens culturais italianas; tradição vinícola; Langhe-Roero e
Monferrato; efeito da marca UNESCO.

* If the copyright for tables, graphs and other images is not indicated, it belongs to the author of this text.
** Architect, Master in Architecture for Sustainable Design, PhD candidate in Ingegneria dell’Architettura e dell’Urba‑
nistica, at Sapienza Università di Roma (Italy) and in Géographie Humaine et Régionale, at Université Paris 8 (France).

249
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

INTRODUCTION
A cultural landscape represents the dialogue between space and time, the outcome and
mirror of the action of natural and human factors and their interrelationship. The a­ djective
cultural is added when the community recognises it and launches initiatives to ­protect,
enhance and maintain it with a perspective of continuous balance and ­adaptation to time
and events. In particular, the tradition of local production linked to wine often defines
the basis for representing a territory: hills, rows of vines, architecture and a verna­cular
heritage are the elements stratified over time, in addition to the raw material, the grape,
that determine the form of the land and the community’s identity that has shaped it and is
cultivated through the ages. This cultural landscape is a unique and complex system that
UNESCO assigns and recognises with a universal value. These countryside landscapes
are considered among the most significant expressions of h ­ uman activity for the impor‑
tant impact they leave on the land and represent a remarkable and rare example of the
cultural landscape that the vineyard provides due to the massive presence of social tradi‑
tions associated with them. They describe a living landscape, where every transformation
reflects man’s desire to improve forms, contents and functions concerning the cultivation
of wine1. Wine has determined a value ­precisely because of the story that the territory
tells, and at the same time, it becomes a tool for enhancing the terroir as an e­ conomic
driver. The main purpose of the international, national and local adminis­tration is to
­recognise those values within it and to protect it as a vital testimony and identity resource,
as a demonstration of one of the factors contributing to the identity-building processes.
The admission of landscape as UNESCO cultural heritage takes into account, through
ambitious management plans, the maintenance of very high-quality standards, ensuring
a proper balance between conservation, sustainability and economic development and
presenting new opportunities for the area. In particular, by economic solid impulses
and strategies.

1. «I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE,


ROERO E MONFERRATO» ARE EXAMPLES OF UNESCO
EXCEPTIONALITY
«I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato» are an Italian ­cultural
landscape that was added into the World Heritage List in 2014 after ICOMOS declared a
recommendation deferral in 2012. The acknowledgement of their heritage is due to the
values of criteria III and V of the parameters defined by UNESCO and represent the mix
of different elements combined in a single territorial system. It is a serial site ­composed
of six land components within Alessandria, Asti and Cuneo’s terri­torial ­borders that
measure 10.789 hectares. From a geographical point of view, three are within the d ­ istrict

1
GANDINO, MERIGGIO, 2016.

250
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS

of the Langhe and three in the Monferrato. The landscape ­components were ­selected
to exemplify the significant places of winemaking from cultivation to p ­ roduction,
from conservation to distribution, retracing and emphasizing all the e­lements that
distin­guished them in the production process, the historic settlement and architectures,
road networks, etc. Each area is linked to specific a wine grape variety, a terroir,
a ­winemaking technique, or significant historical places, ranging from castles to ­artefacts
of a v­ ernacular nature, for the history and development of wine growing and w­ inemaking
on a ­national and international scale. The structure of the native vineyards is distinctive:
they are planted around the hilltops with moderate or gentle slopes characterised by
the absence of walls and terrain, resulting in a systematic arrangement of rows running
along the oblique curves of the hillside. All these elements have created a district in a
unitary and complete geographical reality: it has made the cultural heritage capable of
fortifying and shaping the identity of the UNESCO landscape.

Fig. 1. Monocultural landscape


of Langhe

251
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

2. UNESCO: AN ICONIC WORLDWIDE BRAND


The vineyard landscapes of Langhe, Roero e Monferrato comprises two buffer zone with
unique, different and incomparable landscapes. For buffer zone 1, we refer to a polycul‑
tural landscape: 8-10% vines, which despite attempts to increase the number of vines,
the percentages have remained very low. Their recognition as UNESCO World Heritage
Sites is due to a unique rural architecture as infernot, a small underground space, dug into
the stone without light and ventilation, usually reached through a cellar, and used to store
bottled wine. Buffer zone 2 instead is characterised by a historical monoculture land‑
scape: 80-90% vines; the high percentage of the wine-covered landscape was the main
element for including the areas in the nomination.
The notoriety of wine-growing landscapes continues to acquire worldwide prestige
over time and the choice of the Langhe monocultural landscape as the representative
backdrop for the Piemonte region in the Ti Amo Italia project. The Special Edition held
in 2020 and promoted by Ferrero, the producer of Nutella, comprising a limited series
of thirty jars celebrating all the regions of Italy. The project is realised by ENIT ­(Agenzia
Nazionale del Turismo). It aims to enhance and promote the Italian territory using a QR
code, in which consumers can virtually visit symbolic locations of Italy. As a consequence
of this iconic branding, it follows that economic results are closely linked to the valori­
sation and enhancement of those elements of the territory that are most attractive to
­tourists, sometimes at the expense of other traditional values, landscapes and architecture.

3. THE UNESCO BRAND EFFECT THROUGH DATA ANALYSIS


Since the cultural landscape of the Langhe, Roero and Monferrato became a UNESCO
World Heritage Site, it has brought significant increases in tourist flows to the region
(+4%). As Marco Valle, an expert in cultural heritage and one of the curators of the
UNESCO heritage nomination process of «I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe,
Roero e Monferrato», reports, if we consider that the national trend for the same period
was around 1% year on year, we can easily understand how strong the UNESCO brand
impact has been. This success can also be seen in the inclusion of Piemonte among the
ten most beautiful places in Europe as noted by the «Lonely Planet», by «Wine Enthu­
siast USA» and as the best wine travel destination by the «New York Times»2.
To gain a full understanding of the influence that the UNESCO nomination has
brought to these territories, we will proceed by reporting the data on the tourist influx
in Piemonte and the reference ATL (Azienda Turistica Locale) elaborated by the Osser‑
vatorio Turistico della Regione Piemonte in collaboration with the Direzione Turismo.
The data have been summarised from the annual reports from 2014 (year of publi­
cation 2015) through 2020. The charts and values reported in Fig. 2 show the evaluation

2
VALLE, 2015.

252
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS

c­ arried out first of the tourist flow balance in terms of presence and arrivals in the Langhe
­Roero and Monferrato area, second the accommodation offered, and the beds occupied
by ­tourists. The presence data indicate the number of nights spent by the clients in the
­receptive e­ stablishments (hotel or complementary accommodations); the arrivals i­ nstead
indicate the number of Italian and foreign clients hosted in the respective establishments
(hotel or complementary accommodation) in the period considered.
As shown in the chart in the Fig. 2, the analysis of tourist influx increased through
2018: in terms of presence, a value of 640,485 in 2014 to 803,600 in 2018. In 2019,
due to the imposed national and global shutdown of COVID-19, the influx trend
dropped to 622,122 and continued to drop in the year 2020 with 561,630 total p ­ resence.
The same phenomena impacted the total arrivals in the year 2019: from 2018, 803,600
arrivals in the territory, it reverts to a value of 277,961 (about 275,536, value of 2014)
and c­ ontinues to fall to 249,468 in 2020. The percentage compared to the previous year
is equivalent to a loss of -51.69% for total presence and -54.39% for total arrivals in the
Langhe ­Roero and Monferrato area. The distribution between the national and foreign
markets ­remains more or less the same through the period analysed and is around
40% for Italian presence, 60% for foreigners, around 47% for Italian arrivals, and 53%
for foreigners. As reported for 2020, following the pandemic the Italian ­market has
­invested mainly in the Langhe Roero and Monferrato areas. Indeed, the p ­ ercentage
of presences is reported to be about 62% and arrivals about 69% for foreigners.
The ­foreign countries that have benefited, and continue to benefit, from the beauty of
this area are primarily Switzerland, Belgium, Germany, France, the USA, the United
Kingdom and the Netherlands.
Moreover, the trends related to accommodation facilities and the number of
­occupied beds have been increasing since the admission of Langhe Roero Monfer­rato
as a UNESCO World Heritage. In particular, the trend has remained positive until 2018
with a value of 832, the maximum recorded in the years for accommodation facilities,
and 12,292, slightly lower than the previous year, the maximum recorded value of 12,418.
The value is being normalized slowly with the recovery after COVID 19.

253
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 2. The analysis of tourist influx in the Langhe Roero and Monferrato areas during the year from 2014 to 2020

As far as 2021 is concerned, data are still being processed by the SPOT project
and by the Osservatorio Turistico della Regione Piemonte. They analyse several factors
regarding culture and tourism during the COVID-19 pandemic in Langhe, Monferrato
and Roero, and found a strong correlation to the UNESCO brand. Looking at the trends
in the territories under the jurisdiction of the Agenzie Turistiche Locali, all the districts
increased their tourist movements compared to 2020, reducing the gap recorded last
year compared to 2019. The best positive outcome of the Piemonte region was recorded
in the Langhe Monferrato Roero areas, where the 2021 final balance was less than 20%
lower than in 2019. The UNESCO value maintained a stable trend over nineteen years,
notwithstanding the imposed shutdown in 2020.
Recently, a first data analysis reveals that residents embraced a static represen­
tation of the local cultural tourism’s appeal and heritage, while tourists were moti‑
vated ­primarily by gastronomic and wine experiences. According to this provisional
data ­accumulated, the percentage of potential Italian and foreign tourist influx to the
Piemonte region is that 57% of Italians who plan to go on holiday will choose Piemonte
during the autumn period. As far as foreigners are concerned, tourists from Benelux,
Switzerland and Scandinavia seem to prevail, as they prefer to go there during autumn

254
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS

and summer. The s­ entiment analysis, carried out on the territory by point of interest and
interviewees, show that the value of the sentiment analysis of the Langhe Monferrato
Roero is +1.3% compared to the previous year and more optimistic compared to Italy as
a whole. Moreover, more positive among users from the foreign market (Swiss, French,
and Germans)3.
The first results seem to be positive compared to the year of standstill that the
­territory suffered during 2020, the COVID year. In the UNESCO cultural landscapes
of the three municipalities of Alessandria, Asti and Cuneo, with an increase of 20% in
a tourist presence and an economic impact on the entire area estimated at around 425
million euros over five years. In 2019 tourism in Piemonte recorded a +1.82% growth
in terms of arrivals, with a greater gain for foreign visitors, equal to +3.7%. Although
overnight accommodation decreased by one percentage point, visitor satisfaction and
positive sentiment increased. In particular, for the accommodation segment that relates
significantly to tourist arrivals, the number of reviews posted by operators in Piemonte’s
tourism industries throughout 2021 increased by +33.3% compared to 2020. The senti­
ment index for the period for the Piemonte tourism product as a whole (accommo­
dation, restaurants and attractions) stands at 88/100, more positive than the overall
­number for Italy, which is 87.2/100. The index for the accommodation sector, 87.7/100
for ­Piemonte, is also better than the national index (86.5/100). The analysis of t­ourist
flows shows that the ATL Langhe Monferrato Roero is the best performing area in
Piemonte when c­ omparing the 2021 and 2019 data on arrivals and presences. Langhe
Monferrato Roero registered 1,028,036 presences for 2021: a figure that is close to the
total presence of the pre-pandemic year, with a loss reduced to 12%, the best Piemonte
data. A positive performance supported by the absolute record of presences reached for
four consecutive months, from August to November 2021, which therefore recorded a
greater monthly flow of tourists than pre-pandemic levels.
In addition to surveys and statistical measurements, another set of data that make
up the new LRM Observatory is based on the monitoring of online reviews of visitor
destination points of interest (accommodation, catering, and attractions), which show a
decrease in the number of reviews posted, in line with the spring lockdown and ­summer
recovery. The attractiveness of the area was able to recover from the losses in ­arrivals
and presences after the spring lockdown, reaching, in August, the levels ­recorded in
2019. During three separate surveys, carried out in May, August and November,
on ­Italians’ inclination to spend their holidays in Italy on the one hand, it emerged
that the ­number of holidaymakers who would have chosen Piemonte for holiday has
progres­sively ­decreased from 58% in May to 12% in November; on the other hand,
the share of those who would have chosen Piemonte for holiday has progressively

3
RECH, MIGLIORATI, 2021.

255
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

i­ncreased from 25% to 42%. In all three surveys, Langhe Roero e Monferrato remain
consistently in second place among the Piemonte destinations chosen, after the Turin
area. In the first seven months of 2021, the sentiment of the Langhe Monferrato ­Roero
tourism desti­nation in online reviews increased. There was an increase in reviews:
+12.1% in the o ­ verall sector, +34.5% in accommodation and +6.6% in catering, and the
sentiment indi­cator improved 90.6/100 in the overall sector (+1.3% compared to
the same period last year), 93.2/100 In accommodation (+0.8%) and 89.8/100 in ­catering
(+1.1%). For the city of Asti, there were more than 10,000 reviews for the total services
of the wine sector with an overall sentiment of 86.9/100. The sentiment index for the
tourism product of the ATL areas as a whole (accommodation, catering and attractions)
is higher than the ­national value, 87.2/100, with the Langhe Monferrato Roero recording
a better rate than the Piemonte region: 90.1/1004.
The UNESCO effect has guaranteed an even more significant increase in ­cultural
tourism, business development and the property land market. In the first few years,
the influx of tourists and accommodation facilities improved considerably. A ­ ccording
to the Annual report published by CREA (Consiglio per la Ricerca in Agricoltura e
l’Analisi dell’Economia Agraria) on the value of Italian vineyards, prices were ­stable in
2019 at 53,600 euros per hectare. To understand real trends, we need to look at least
at five and ten year data sets: only the Piemonte region, among all Italian regions,
had a growth of more than 2% in both periods. If we look at the average value per hectare
of Piemonte vineyards, we can see that from 2014 to 2019 the values have risen signifi­
cantly: in 2014, the value is 64.9 EUR/hectare compared to 72.1 EUR/hectare in 2019.
In the last year surveyed alone (2018/2019) there is an increase of +2.7% in property
­value, while the annual variation in vineyard prices between 2014 and 2019 is around
2.1%. As CREA also declared, the average land value of vineyards in Asti, ­Alessandria and
Cuneo peaked after three years after 2014, whereas in the other municipalities o ­ utside
the UNESCO heritage area, Turin Biella, Novara and Vercelli, values have ­decreased.
The ­graphical chart included shows that in the Alessandria, Asti and Cuneo areas,
values have ­increased respectively.

4
OSSERVATORIO TURISTICO DELLA REGIONE PIEMONTE, 2020.

256
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS

Fig. 3. On the top: average values of vineyards by UNESCO provincial altitude zone (Cuneo, Asti, Alessandria); on
the bottom: Average values of vineyards by UNESCO regional altitude zone (Cuneo, Asti, Alessandria, Torino,
Biella Vercelli)

The nomination as a UNESCO heritage area also continues to have a positive


­influence on wine and food tourism from abroad in the Langa areas and the vineyard
lands (especially for the production of Barolo and, with increased interest, Barba­resco)
maintain exceptionally high prices that continue to increase. According to CREA’s
­surveys, the most highly quoted vineyards are still those of Barolo DOCG (Denomina‑
zione di Origine Controllata e Garantita), with a range that can go from 200,000 euros to
1.5 million euros, ahead of those of Brunello di Montalcino, which produces an excep‑
tional Tuscany wine, which oscillates between 250,000 and 700,000 euros per hectare.
Barbaresco also ranks high overall, with quotations of around 600,000 euros.
The landscapes appear to continue to preserve their exceptional value on a
­national and international scale from the original survey result. This is attributable to
the consider­able attention and investments associated with their UNESCO nomination
and ­management pursuit.

257
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

4. THE UNESCO BRAND EFFECT ON THE NEIGHBOURING


LANDSCAPES
Undoubtedly, the UNESCO label attracts many people from within Italy and even more
so internationally. To increase visibility and tourist influx, a minor boundary modifi­cation
project has recently been proposed by the management body «I paesaggi vitivi­nicoli del
Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato» to extend the buffer zone to surrounding a­ reas.
The new boundaries would include about forty new municipalities divided among the
three provinces of Asti, Alessandria, and Cuneo. The project envisions the inclusion
of seventeen municipalities in the Roero area, in the province of Cuneo, five munici­
palities in the province of Asti and fifteen municipalities in the province of Alessandria.
The manage­ment body intends to create a stronger connection with the Roero region
which was previously excluded in the earlier nomination process and is nowadays repre­
sented in the UNESCO buffer zone boundaries by just two municipalities Monti­cello
d’Alba, and Santa Vittoria d’Alba and fortify it with the landscape of the province of
­Alessandria. ­Alessandria is the municipality associated with the UNESCO heritage area
of Monferrato. The area was selected within one of the buffer zones for the ­presence of
­infernot, a vernacular architectural typology built by farmers for the domestic conser­
vation of wine. The site «Il Monferrato e gli Infernot», which represents core zone 6,
­includes eight urban centres on high ground characteristic for the widespread use of
­Pietra da Cantoni, a sandstone which is only found in the hilly basin of Langhe, ­Roero
and Monferrato. The extension of the boundaries of the buffer zone, in this case, is due
to the desire to include new wine companies; already 104 in the Alessandria U ­ NESCO
area, and the vineyard landscape within the territorial dynamics. The aim is to make new
vine plantings sprout in the territory and to approach the problem of climate change
in an ­environmentally correct manner. The motivation is linked up with the idea that
the area is more related to polyculture than to monoculture, where the percentage of
wine-growing area is only around 5/10% of the total surface. This value is extre­mely low
when ­compared to the Langhe area, where 85/90% of the landscape is planted with vines.
In the 19th ­century, however, the Monferrato area had a vineyard coverage of 80/90%,
a value that at the time almost exceeded that of the Langhe and Roero. The lack of
­economy and the presence of flavescence dorée, however, led to the disappearance of the
wine-growing landscape and allowed for a change in cultivation, either by diversifying it or
by ­turning the hills into gerbido, in other words no longer cultivated. Currently, the land‑
scape does not have continuity with the Langhe in particular, as there is not a high percent‑
age of vines to give it this denomination. It is from this moment that the history and rural
­architecture linked to the wine production chain acquire an inestimable value: the site is
indeed made up of five components plus a sixth, that of the infernot whose presence was
essential for annexing the territory of Alessandria to have the nomination as a U ­ NESCO

258
«I PAESAGGI VITIVINICOLI DEL PIEMONTE: LANGHE, ROERO E MONFERRATO»: AN ITALIAN EXAMPLE OF UNESCO
CULTURAL LANDSCAPE BASED ON THE VALORISATION OF TRADITIONAL TERROIRS
TERROIRS

­ eritage site. Although it would be of great merit the inclusion of these ­municipalities
h
and their relative areas would nevertheless entail a strong anthropisation. Assessed
not just in terms of built-up areas, but in terms of the transformation of the landscape
as well. The intense anthropization could compromise the agricultural ­territorial ­system
of these landscapes. For example, the Roero has plenty of forestry crops, unlike Langhe,
where the landscape is largely vines, such as Monferrato, where polyculture is still ­preserved.
The UNESCO effect could resonate to such an extent that the strong tourist momentum
would lead to a considerable increase in vineyards closely related to them. As well as the
desire to plant new vines in the Monferrato area to contrast the meticulous work carried
out over the years by flavescence dorée and the lack of income in the ­vineyards.
Following this logic, it sways the neighbouring territories outside the buffer zone
boundary, as in Alta Langa, a hilly area located more on the border with Liguria to ­pursue
a similar UNESCO designation. It is mainly characterised by thick vegetation alter­nating
with cultivated farmland and forests. Hazelnuts are a typical product of the area, and the
fields permit the cultivation of large areas of cereals and wine and the grazing of animals for
cheese production. In recent years, the landscape has been undergoing significant trans‑
formation mainly linked to the desire to plant new vineyards in the high hills to e­ xpand
the DOCG area. As of 2018, the Piemonte region has promoted calls for i­ncreasing it to
produce Alta Langa DOCG. On the one hand, this has made it possible to recover aban‑
doned or uncultivated terroir to upgrade. On the other hand, it has also elimi­nated crop
expansion due to higher value return from forest planting. However, this process is not
only linked to the specific area of Alta Langa, though there are also ­numerous ­requests for
admission to the DOCGs of Barolo or Barbaresco every year. Neighbouring areas such as
Verduno and La Morra submit similar requests to be included in higher sector and value
production and thus sell more bottles with more prestigious affiliations.

CONCLUSION
Even though the UNESCO brand is regulated and strict guidelines have been drawn
up for its use, the effects it intrinsically has on the territory are considerable: from the
general attitude and willingness by citizens and enterprises to use the logo for any type
of product or event, to the increase in business development, market value and tourism
in the geographical borders; from the desire to become part of the landscape at any
cost by entering into new buffer zone boundaries or the most important DOCG zones,
to the transformation of more traditional agricultural landscapes to be associated with
the iconicity of vineyard scenery. In particular, the economy of the Langhe has driven an
already wine-growing landscape to increase its product with 85/90% vines, with peaks of
increase in recent years. However, it is necessary to be careful about the transformation
of the landscape towards monoculture, especially in consideration of climate change and
the historical and cultural dedication that belongs to the varied areas.

259
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

For example, in the case of Monferrato Alessandrino, the negative economic conse­
quences of flavescence dorée did not allow the natural evolution of the monocultural
landscape. Farmers cut down and removed plants which had little value in the present
condition in favour of accelerating the planting and cultivation of forest ecosystems that
produced a higher economic return. The thought and decision by many farmers were
mainly related to the family heritage, in particular to pass on to their children and grand‑
children a landscape of little to no value. This has been the reason why many vines have
been uprooted and how the landscape has been radically transformed in the region.
Climate change initiatives are helping this process of landscape transformation,
but the continuing drive to the iconic nature of the Langhe’s rows of vines encourages
new winegrowers to plant new ones and above all to buy plots of land on higher ground,
at around 500 m.
To conclude, «I paesaggi vitivinicoli del Piemonte: Langhe, Roero e Monferrato»
constitutes a unique testimony to a cultural tradition that is still powerfully alive, as its
UNESCO fame and quality attest. Today’s Langhe landscape results from a h ­ istorical
­attachment to the land on the part of countless generations of winegrowers and ­centuries
of intense and constant work necessary to carry out an agricultural transformation of
excep­tional dimensions and original character. To this end, care must be taken to ensure
that the characteristic elements of each part of the Piemonte landscape system, stimu­
lated by excessive attractiveness to the site, do not compromise the universally recognised
under­lying value to the detriment of the minor elements that have enabled its recognition.

BIBLIOGRAPHY
AGNOLETTI, Mauro (2013). Italian Historical rural Landscape. Cultural Values for the Environment and
Rural development. Berlin: Springer.
BOOKING PIEMONTE (2014). [Interview] 2015, How to nominate a site for UNESCO [to] Marco Valle.
GANDINO, Elisa; MERIGGIO, Luisa (2016). Valorizzare un patrimonio UNESCO. Il primo progetto finan-
ziato con la legge 77/2006 nei Paesaggi Vitivinicoli del Piemonte. Bra: Associazione per il patrimonio
dei paesaggi vinicoli di Langhe-Roero e Monferrato.
ITALIA. Ministero dei Beni delle Attività Culturali e del Turismo (2006). Legge 77/2006 Siti Unesco Italiani.
1.ª ed. Roma: Direzione Generale per la Valorizzazione del patrimonio culturale.
MAZELLI, Redina; RENZULLI, Alessandra (2019). Progettazione e realizzazione pratica del recupero di
­piccoli edifici in pietra in Alta Langa. Torino: Politecnico di Torino. Master’s thesis.
OSSERVATORIO TURISTICO DELLA REGIONE PIEMONTE TORINO (2020). VisitPiemonte — DMO
Piemonte. [Consult. 25 apr. 2022]. Available at <https://www.visitpiemonte-dmo.org/rapporti-sta‑
tistici/>.
RECH, Giovanna; MIGLIORATI, Lorenzo (2021). Social Representations about Cultural Tourism in the
Time of COVID-19: A Case Study of Langhe, Monferrato and Roero (Italy). «Sustainability». 13, 6301.
REGIONE PIEMONTE (1999). Sistema delle colline centrali del Piemonte Langhe Monferrato Roero. Torino:
Regione Piemonte.
UNESCO. World Heritage List (2014). The Vineyard Landscape of Piemonte: Langhe-Roero and Monferrato.
Executive Summary. Paris: World Heritage.

260
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA,
AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA
DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS*
BÁRBARA MESQUITA**

Resumo: Na ilha de Santa Maria, a vitivinicultura teve expressão na agricultura e na economia desde os
primórdios do povoamento. O cultivo da vinha é tradicionalmente feito em socalcos nas baías, num sistema
de currais estruturados por muros de pedra, tirando proveito das condições ambientais. Nas últimas
­décadas, tem-se assistido, contudo, ao abandono das vinhas. A relevância destas paisagens, a par da sua
adequação para os vinhedos, conduziu a diversas iniciativas de recuperação, sobretudo desde 2018.
O presente estudo pretende fazer uma apresentação deste processo de recuperação. Partindo-se da contex-
tualização temporal e espacial da vinha nos Açores, introduzem-se diferentes valores paisagísticos,
socioculturais e produtivos intrínsecos às paisagens marienses. Tendo presente a necessidade da resi­
liência da paisagem, as reflexões conclusivas atendem ao contexto tempo-espaço e às iniciativas de
recuperação. Para existir resiliência, consideraram-se essenciais duas condições: o reconhecimento dos
valores paisagísticos; a continuidade da função produtiva que presidiu à construção desta paisagem.
Palavras­‑chave: vinha em currais; recuperação; paisagem; Santa Maria; Açores.

Abstract: On the island of Santa Maria, viticulture has been relevant in agriculture and in the economy
since the settlement. The cultivation of the vine is traditionally done on terraces in the bays, in a system of
corrals structured by stone walls, taking advantage of the environmental conditions. In recent decades
vineyards have been abandoned. The relevance of these landscapes, along with their suitability for vine-
yards, has led to recovery initiatives, especially since 2018. This paper aims to present this recovery process.
Starting from the temporal and spatial contextualization of the vineyard in the Azores, different landscape,
social-cultural and productive values intrinsic to the vines of Santa Maria are presented. Taking into
account the need for landscape resilience, the conclusive reflections are drawn upon the time-space
context and the recovery measures. In order to achieve resilience, two conditions were considered essential:
the recognition of the landscape values; the continuity of the productive function which originated the
construction of this landscape.
Keywords: vineyard in corrals (currais); recovery; landscape; Santa Maria; Azores.

INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho é apresentar o processo de recuperação da paisagem de v­ inha
tradicional da ilha de Santa Maria, Açores. As vinhas marienses foram construídas
­através de socalcos e muros de pedra, principalmente localizados nas baías, em sistemas
destinados à sustentação dos terrenos e à proteção das videiras. Trata-se de paisagens
vinhateiras de reconhecido valor, mas que conhecem um abandono parcial.

* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence à autora deste texto.
** Doutoranda em Geografia, com projeto de investigação na ilha de Santa Maria, Açores, no IGOT-ULisboa (Instituto
de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa).

261
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Muito embora se trate de um texto sobre Santa Maria, não se pôde deixar de o ­ bservar
o contexto açoriano, ou, pontualmente, o madeirense e o canário. Com efeito, a vitivinicul‑
tura açoriana tem especificidades locais e, simultaneamente, características transversais a
praticamente toda a região, e com extensões a outros territórios insulares atlânticos.
Após as palavras introdutórias, serão desenvolvidos, no ponto 1, elementos gerais
de contextualização temporal e espacial da vitivinicultura na região dos Açores. ­Segue-se,
no ponto 2, uma caracterização, não exaustiva, do cultivo da vinha em Santa Maria.
Procu­rando enfatizar a singularidade das vinhas marienses, o trabalho foi orientado pela
ideia de «valores», tendo sido considerados os seguintes: paisagísticos, socioculturais e
produtivos. Trata-se de uma separação cujos limites são indefinidos, havendo temáticas
que naturalmente se cruzam. Serve-se, contudo, o propósito de sistematizar a informação
mobilizada. Neste ponto, haverá igualmente remissões para o contexto regional açoriano.
O ponto 3 contém a enumeração de dificuldades e das principais iniciativas do processo
de recuperação. Finaliza-se no ponto 4, com quadros-resumo dos valores identificados e
algumas reflexões conclusivas1.
Os conteúdos aqui apresentados resultam de: 1) revisão extensiva de literatura, que
abrangeu simultaneamente publicações científicas e literatura genérica; 2) trabalho de
campo, que englobou o reconhecimento de terreno e reuniões exploratórias com dife­
rentes atores e stakeholders. De notar que a literatura existente incide principalmente
sobre a vitivinicultura das ilhas do Grupo Central, justificando-se a necessidade de ter
mais investigação sobre o cultivo da vinha e a produção de vinho nas restantes ilhas.

1. A VITIVINICULTURA NOS AÇORES — ELEMENTOS DE


CONTEXTUALIZAÇÃO TEMPORAL E ESPACIAL
O povoamento insular, realizado no século XV, caracterizou-se genericamente por uma
distribuição de terras pelos capitães-donatários a colonos detentores de certo capital
­social e económico. Este processo permitiu que um grupo de terratenentes concen­trasse
a posse de vastas propriedades e, consequentemente, pudesse controlar as principais
produções agrícolas. Por outro lado, os produtos introduzidos nos Açores e na M
­ adeira
atenderam ao potencial de comercialização: plantas tintureiras, cereais, ou vinho
— t­ odos com valor nas economias da época. No período quinhentista, ambos os arqui‑
pélagos detinham já estruturas de tipo empresarial — do trabalho braçal até à venda
final estava envolvida toda uma cadeia produtiva e comercial2.

1
Este estudo resulta dos trabalhos preparatórios para o projeto de doutoramento em Geografia, que tem a orientação
da Professora Doutora Margarida Queirós, no Instituto de Geografia e Ordenamento do Território (IGOT) — Univer‑
sidade de Lisboa.
2
GIL, 1981: 371-374.

262
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Santa Maria, a par de São Miguel e da Terceira, são as ilhas açorianas nas quais
a estrutura fundiária de propriedade vinculada, característica do Antigo Regime,
­persistiu mais intensamente. Nestas ilhas, nos primeiros anos do século XIX, haveria
poucas ­terras ­libertas, o que, à época, foi visto como obstáculo ao desenvolvimento das
­ativi­dades ­agrícolas3.
A introdução da vinha e a produção de vinho nas ilhas terão primeiramente assegu­
rado a manutenção dos hábitos alimentares e tradições religiosas dos primeiros povoa‑
dores. O vinho tornou-se, depois, um produto duplamente destinado ao consumo local
e ao comércio com o exterior — era controlado oficialmente e tributado nas diferentes
fases do seu comércio, gerando importantes receitas para os concelhos. Perante crises de
abastecimento, as autoridades podiam recorrer ao controlo da produção vinícola através
de medidas como o embargo da exportação4.
Nos Açores, as terras foram exploradas de forma quase integral — desde os t­ errenos
mais pobres do litoral até às serras. Houve o aproveitamento em função dos cultivos
permitidos pelos diferentes patamares ecológicos, gerando-se uma agricultura diversifi‑
cada, que congregou plantas autóctones com plantas provenientes de regiões climáticas
que variam entre as subtropicais e as temperadas5.
Assim, o cultivo da vinha nos Açores, já generalizado no século XVI, foi a­ justado
às condições físicas insulares: ocupou preferencialmente solos pedregosos e pouco
­evoluídos, nomeadamente de lavas recentes (caso dos «biscoitos»), e não colidiu com
culturas essenciais como a dos cereais. Originou-se, desta forma, um padrão princi‑
palmente caracterizado por porções de vinhas descontínuas e de pequena dimensão.
O transporte das uvas e/ou do mosto podia ser feito por terra ou por mar, consoante o
tipo de acessibilidade às parcelas. De uma forma geral, mas com variações temporais e
espaciais, o cultivo teve maior peso relativo na economia agrícola do Grupo Central,
particularmente na Graciosa, Pico e São Jorge. Assumiu, ainda, muita importância no
Faial, Santa Maria, São Miguel e Terceira, tendo sido residual no Corvo e nas Flores.
Historicamente, foi na ilha do Pico, por um conjunto de condições físicas e humanas,
que o cultivo da vinha e a produção de vinho atingiram maior relevância e reputação6.
Existindo um padrão geral de aproveitamento e uso das terras, o impacto paisagís‑
tico da vinha difere de ilha para ilha: as paisagens do Pico impressionam pela extensão;
na Graciosa existe um mosaico diversificado de paisagem agrícola, onde as vinhas estão

3
COSTA, 2003: 255-256, 259.
4
LIMA, 1960: 233-234; SOUSA, 2004: 126; MENESES, 2011: 180-182, 185; MADRUGA, BORBA, 2017: 79-80.
O ­papel regulador cabia tradicionalmente aos municípios que, em períodos de escassez, controlavam as exportações,
facto ­também observado aquando da falta de cereais. A ilha de Santa Maria terá conseguido escapar a alguns dos flagelos
cíclicos de falta de alimentos (COSTA, 2003: 200-201).
5
SOUSA, 2004: 127-128; 2015: 150.
6
MEDEIROS, 1994: 199-202, 209-210, 226; SOUSA, 2004: 126-128, 131.

263
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

integradas com os restantes cultivos; os Biscoitos, na Terceira, constituem uma porção


de terra perfeitamente delimitada cujas características naturais são particularmente
­favoráveis ao cultivo da vinha7.
A produção de vinho no século XVII estava concentrada nas ilhas do ­Grupo
­Central, particularmente no Pico. No século XVIII, o vinho foi um produto que a­ ssegurou
a integração do Faial, Pico e São Jorge no comércio internacional, tendo por d ­ estinos a
Amé­rica do Norte e o Brasil, e funcionando a Horta como o seu principal p ­ orto
­comercial. Por comparação com a Madeira e Canárias, os vinhos açorianos, com a
­exceção do l­icoroso do Pico, não alcançaram renome. Assim, as estruturas de p ­ rodução
e de c­omércio nunca atingiram dimensão comercial de relevo além-arquipélago.
As ­vantagens da e­ xportação de vinho enquanto lastro foram perdidas com a evolução
para a navegação a vapor e consequente diminuição da relevância da localização dos
Açores nas rotas atlânticas8.
A vinha açoriana foi-se ajustando em função de diferentes fatores: tipos de s­ olos
disponíveis; necessidades de consumo local; gestão do cultivo com outros produtos;
­tipos de procura externa e capacidades de escoamento — nomeadamente a proximi­
dade a portos de maior dimensão e as rotas da navegação atlântica. No Grupo Central,
a viticultura e a produção de vinho contribuíram para o crescimento de atividades econó­
micas diversas, principalmente a partir do final do século XVI, com conse­quências como
a criação do concelho da Madalena (Pico), em 1723, ou o desenvolvimento do porto da
Horta (Faial) em escala comercial de grandes rotas. O alargamento do cultivo das vinhas
nos Açores ocorreu genericamente ao longo do século XVI, e perdeu expressão aquando
das pragas sobre os vinhedos, a partir de meados do século XIX9.
Algumas dinâmicas semelhantes às descritas caracterizaram a vitivinicultura
madei­rense. Assim, também nesta ilha, os tipos de solos e de microclimas contribuíram
para a definição das áreas de vinha. Em termos comerciais, o mercado consumidor ­foi-se
­moldando de acordo com as conjunturas económicas e políticas do Atlântico, s­ ofrendo
alterações provenientes dos destinos da exportação10. Aliás, em termos históricos,

7
Observa-se que o plantio da vinha na Graciosa faz o aproveitamento das terras mais quentes e secas da beira-mar,
mas em articulação com outras culturas como árvores de fruto, batata, milho e, até mesmo, matos nas extremas dos
terrenos (SOUSA, 2015: 153-154).
8
SOUSA, 2004: 129-131. O autor alerta para o facto de haver poucos estudos sobre o mercado regional do vinho
açoriano. Por outro lado, tem dominado a tendência de generalização, importando aferir os contextos locais de cada
ilha quando se estudam os produtos agrícolas e seus ciclos económicos. Nesta mesma linha, importa notar que a ideia
de ciclo de um produto de exportação não deve ser extrapolada para a conclusão de práticas de monocultura — nas
economias insulares atlânticas nunca vigoraram produtos únicos e houve sempre os destinados às economias de subsis­
tência (VIEIRA, 2003: 39-40).
9
MENESES, 2011: 178-185. Este autor sugere que a constituição do concelho da Madalena até teria sido tardia face ao
desenvolvimento económico ocorrido. Este facto pode assentar na sujeição socioeconómica ao Faial e na consolidação
da viticultura picoense na segunda metade do século XVII (MENESES, 2011: 184).
10
VIEIRA, 1990: 11; 2003: 65.

264
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

é visível que as diferentes regiões vitivinícolas europeias têm a sua dinâmica produtiva e
comercial na estreita dependência da procura de vinho para o abastecimento dos navios
comerciais e militares11.
Ao longo da sua história, a agricultura açoriana teve sempre em vista os cultivos
­diver­sificados, vitais à subsistência, e as produções destinadas aos negócios e à exportação12.
O vinho enquadrou-se, como já se viu, nesta dupla orientação. A par do auto­abas­
tecimento, o vinho foi produto de exportação, num período que se prolongou, com dife­
rentes inten­sidades e características, até ao século XIX. Conjuntamente com os cereais,
o vinho ­figurou nas principais exportações até ao início do século XIX. A sua comerciali­
zação com o exterior funcionava na estreita dependência das relações comerciais atlân‑
ticas e, particularmente, no papel desempenhado por alguns portos do arquipélago.
No último quartel do século XIX, o vinho encontrava-se eminentemente destinado ao
­consumo ­local e regional, perdendo relevo nas exportações açorianas13.

2. O CULTIVO DA VINHA EM SANTA MARIA — CARACTERIZAÇÃO

2.1. Valores paisagísticos


Os tipos de viticultura tradicionalmente praticados em Portugal estão, como se sabe,
­adaptados às diferentes regiões, originando paisagens distintas, nas quais se ­observam
­alguns traços comuns14. Na viticultura dos arquipélagos dos Açores e da Madeira é ­possível
identificar afinidades com regiões continentais, nomeadamente com a ­duriense15. O caso
da paisagem de vinha do Pico tem vindo, aliás, a ser também estudado na perspetiva
comparada com o Alto Douro Vinhateiro16.
Igualmente, nas ilhas Canárias, encontram-se exemplos de técnicas trazidas do
continente europeu e que foram adaptadas aos meios insulares. Os solos pouco ­erodidos,
resultantes de erupções vulcânicas — os malpaíses — foram aproveitados para o cultivo
da vinha, numa articulação eficaz entre as características físicas do meio e o seu apro‑
veitamento através dos muros de pedra seca para a proteção dos ventos dominantes17.
Os socalcos — bancales — são uma das principais características da paisagem agrícola
das Canárias, estando presentes em diversas ilhas e em tipos que variam na função das
condições ambientais ou dos cultivos praticados.

11
BONARDI, 2019: 15.
12
MADRUGA, BORBA, 2017: 79.
13
JOÃO, 1991: 41, 43, 47, 49; 1992: 293, 300.
14
Adota-se aqui a definição de «paisagem» da Convenção Europeia da Paisagem de 2000, e que define no seu artigo 1.º:
a paisagem «designa uma parte do território tal como apreendido pelas populações e cujo carácter resulta da ação e da
interação de fatores naturais e/ou humanos» (EUROPA. Conselho da, 2000).
15
VIEIRA, 1990: 103.
16
COSTA, 2018; 2019; VISEU, 2018. Estes estudos estão enquadrados em publicações do CITCEM.
17
MACÍAS HERNÁNDEZ, 2005: 352, 354, 360.

265
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

A técnica tradicional de cultivo de vinha nos Açores, recorrendo a parcelas simul‑


taneamente protegidas e divididas por muros de pedra — genericamente designadas
­«currais» —, agregadas em reticulados, está presente em diferentes ilhas do arquipélago.
No Pico, estes valores paisagísticos foram formalmente reconhecidos pela ­UNESCO,
com a atribuição do estatuto de Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico —
­Patri­mónio Mundial, em 2004.
Em Santa Maria, o pendor das falésias levou a que os «currais» vinhateiros das
principais extensões de vinha fossem construídos em sistemas de socalcos, ­gerando-se
paisagens deveras singulares. Estes socalcos declivosos, amparados por paredes de
­pedra, são consi­derados quase exceção no arquipélago, estabelecendo-se um paralelo
com a Madeira e as Canárias18. Os muros de pedra marienses têm uma dupla função:
suporte dos terrenos, minorando os processos da erosão, e proteção das plantas do efeito
de ventos marítimos.
Os socalcos são uma das mais importantes heranças agrícolas mundiais e
­acumulam conhecimento de milénios da história humana. Constituem sistemas paisa­
gísticos parti­cularmente importantes em ecossistemas frágeis, como é o caso dos de
montanha, r­ esultando de um trabalho intenso e duro para converter terrenos declivosos
em solos agrícolas produtivos19. O sistema dos socalcos marienses, exemplo do que atrás
foi dito, destaca a «densa compartimentação murada» dos «currais», dotando de inte‑
resse parti­cular a paisagem que originaram. As principais manchas de cultivo são as da
Maia e de São Lourenço, num esquema construtivo que se repete em ambos os lugares,
embora seja mais fragmentado no segundo caso20.
Os socalcos murados destinados à viticultura encontram-se disseminados pela
­Europa, em diversas regiões continentais, mediterrâneas e atlânticas. A sua locali­zação
está sempre marcada pela proximidade a vias fluviais ou marítimas, numa r­elação
direta com os sistemas de transporte. Este fator é particularmente importante para
­compre­ender a existência de vastas áreas de socalcos de vinha em regiões costeiras e
insulares. Considerando a densidade e extensão dos socalcos de vinha, os Açores encon‑
tram-se entre as regiões mais relevantes da Europa21.
Na ilha de Santa Maria, o cronista quinhentista Gaspar Frutuoso observou a e­ xistência
de vinha e a produção de vinho, permitindo concluir que estas atividades r­emontam
ao século XV22. Nos finais do século XV, a paisagem da ilha estaria já profun­damente

18
GASPAR, 2005: 328; ALBERGARIA, 2021: 270, 273. No caso da ilha da Madeira, os terraços estreitos que caracte­
rizam a paisagem agrícola são designados por «poios».
19
AGNOLETTI, 2019: V.
20
FERNANDES, JANEIRO, MESTRE, 2000: 44.
21
BONARDI, 2019: 7-9, 14-15.
22
ALBERGARIA, 2021: 275.

266
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

­ uma­nizada e, no século XVI, a vinha seria cultivada em larga escala. No ­decorrer do


h
século XVII, o cultivo intensificou-se, ocupando preferencialmente terrenos pedregosos e
com boa exposição solar23.

Fig. 1. Maia, novembro de 2021

Fig. 2. São Lourenço, outubro de


2021

23
CONSTÂNCIA, 1982: 233-235, 237.

267
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Nesta ilha de pequena dimensão, muito embora a extensão das vinhas e a ­produção
vinícola possam ter tido um peso inferior a outras do arquipélago, está certamente entre
aquelas onde a marca paisagística é das mais impactantes24. A vinha foi plantada, princi­
palmente, nas baías e fajãs, ocupando arribas íngremes que dificilmente se poderiam
destinar a outro tipo de plantio. Originou escadarias em socalcos, principalmente a sul
e leste da ilha, semelhantes na sua construção a algumas regiões do território conti‑
nental25. Nestas arribas, os «currais» estão distribuídos entre o mar e o ponto onde a
inclinação ainda permite o cultivo, originando propriedades estreitas no sopé, mas que
se alongam pela encosta acima.
Deve referir-se que foram também plantadas vinhas no interior da ilha, habitual‑
mente a cotas entre 100 e 200 m, as denominadas «vinhas por terra dentro». Nestes casos,
as vinhas são preferencialmente protegidas com sebes vivas. O vinho que destas se obtém
é tido como de qualidade inferior ao das arribas26.
Sendo Santa Maria a ilha açoriana de povoamento mais antigo, observam-se
­aspetos dos primórdios desta cultura, nomeadamente os lagares escavados na rocha.
A locali­zação destes lagares, atualmente em diferentes estados de conservação, ou já
desapa­recidos, foi descrita com detalhe por Gaspar Frutuoso, podendo a sua existência
estar refletida na toponímia27.
O já assinalado impacto paisagístico assume as suas maiores proporções em São
Lourenço e na Maia, onde a extensão de vinhas ocupa, ainda hoje, e apesar do p ­ rocesso
de abandono, largas porções das baías. Outro lugar onde este tipo de paisagem de v­ inha
ainda resiste, embora em abandono, é a localidade de Sul. Aqui, é particularmente
­ilustrativo como foram ocupados terrenos de muito difícil acesso, obrigando a um árduo
trabalho físico, não só na construção da paisagem, como na manutenção dos vinhedos
e nas operações das vindimas28.

24
Santa Maria, com uma área de 97,2 km2, é a terceira ilha de menor dimensão do arquipélago (Corvo: 17,1 km2; ­Graciosa:
61,2 km2). De acordo com os Censos 2021 — Dados Provisórios, Santa Maria tem 5408 habitantes, sendo a quarta com
menos população (Corvo: 384 habitantes; Flores: 3428 habitantes; Graciosa: 4091 habitantes). Cf. INE. Censos 2021 —
Dados Provisórios. Disponível em <https://www.ine.pt/scripts/db_censos_2021.html>. [Consult. 04 jan. 2022].
25
MEDEIROS, 1994: 203.
26
GASPAR, 2005: 334, 336.
27
Este tipo de lagar, de dimensões variáveis, foi amplamente utilizado no território continental português, e existem
evidências do seu uso na ilha da Madeira (VIEIRA, 1990: 65; 2003: 21). Em Santa Maria, foi recentemente realizada uma
inventariação e estudo dos lagares rupestres, da autoria de RAMALHO (2021) e com edição da Câmara Municipal de
Vila do Porto. Foram descritos dezassete lagares, um número muito superior aos habitualmente referenciados.
28
A paisagem vinhateira de Santa Maria está exemplarmente documentada no trabalho fotográfico de José Guedes da
Silva, publicado em três edições da Câmara Municipal de Vila do Porto: Pedras da Maia — Santa Maria (1995); O Sul de
Nossa Senhora da Boa Morte (1999); Basalto Azul — S. Lourenço, ilha de Santa Maria (2001). A tese de RUGHI contém
um detalhado dossiê fotográfico das vinhas da Maia e de São Lourenço (2019: 56-71).

268
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Fig. 3. Localidade de Sul,


julho de 2017

Atualmente, a Maia e São Lourenço integram o Parque Natural da Ilha de Santa


Maria29. Ambas as baías têm o estatuto de «área de paisagem protegida». Igualmente as
plantações de vinha na costa norte da ilha integram o território do parque: a Costa Norte
tem o estatuto de «área protegida de gestão de recursos»30.
Nas arribas, as vinhas encontraram condições muito adequadas, e o vinho p­ roduzido
com estas uvas foi sempre tido como de muito boa qualidade. Com efeito, o s­ istema de
«currais» em socalcos foi incrementado com «calçada» criando-se, d ­ esta ­forma, ­condições
ecológicas tão favoráveis que o cultivo de algumas castas podia ­dispensar os habituais
­tratamentos. Em diferentes períodos históricos, autores diversos observaram a fertili­
dade da ilha, indicando a sua autossuficiência em termos de vinho. As m ­ aiores ­manchas
de vinha, da Maia e São Lourenço, com orientação a nascente, ­detinham ­condições
­particularmente adequadas de exposição solar. Em ambas as localizações, a v­ inha era
plantada até à altitude aproximada de 100 m. Enquanto as vinhas da Maia surgem mais
fragmentadas, as de São Lourenço compõem uma paisagem compacta e uniforme31.
Existiu, ainda, o aproveitamento para o cultivo da vinha de outras baías e respetivas
­arribas, de menor dimensão, nomeadamente a Cré, Raposo e Tagarete na costa norte de
Santa Maria.

29
Os diplomas aplicáveis são: Decreto Legislativo Regional n.º 47/2008/A, de 7 de novembro — cria o Parque Natural
da Ilha de Santa Maria; Decreto Legislativo Regional n.º 39/2012/A, de 19 de setembro — primeira alteração ao Decreto
Legislativo Regional n.º 47/2008/A.
30
Disponível em <https://parquesnaturais.azores.gov.pt/pt/parques/2/areasprotegidas>. [Consult. 23 fev. 2022].
31
GASPAR, 2005: 328-331, 340.

269
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

A paisagem vinhateira açoriana obrigou primeiramente à remoção e arrumação


das pedras, num esforço que se tornava mais ou menos árduo de acordo com o tipo
de solos: de lajido ou mais evoluídos. Seguiu-se a construção dos diferentes e­ lementos
neces­sários às vinhas e que, no caso de Santa Maria, são principalmente: «quartéis»,
­«currais» ou «curraletas», as parcelas de poucos metros quadrados, muradas e de
­geometria regular, destinadas ao cultivo32; «paredes de encosto» ou «paredes secas»,
os muros em pedra, com altura variável e genericamente entre um a três metros, que
­sustentam os socalcos ou terraços escavados em terrenos declivosos; os «traveses» e
os «girões», paredes de proteção em pedra que dividem os «currais»; «escadórios»
e ­carreiros estreitos de acesso; «valados» que permitem a drenagem; «calçada», a pedra
solta que cobre os «quartéis»; e «casolas», «covachos» ou «caldeiras», os espaços livres
circulares com diâmetro de 50 a 60 cm, em número variável de acordo com a dimensão
do «quartel», onde crescem, em cada um, dois a três pés de videiras. Genericamente,
as paredes de sustentação diminuem de altura consoante ocorre afastamento do mar,
ou nos pontos mais elevados das arribas33.

Fig. 4. Escadório na Maia,


novembro de 2021

32
De acordo com GASPAR, a designação «quartel» é de uso mais antigo em Santa Maria, tendo vindo a ser substituída
por «curral» (2005: 337).
33
MEDEIROS, 1994: 216-218; SILVA, 1995, 1999; GASPAR, 2005: 336-341; ALBERGARIA, 2021: 270-272. De notar
que esta terminologia observa repetições, ou variações, nas diversas ilhas vinhateiras do arquipélago.

270
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Fig. 5. Interior do
curral de vinha —
Maia, novembro
de 2021

Associados a estes elementos, existem os destinados às funções de abrigo e/ou


­guarda de utensílios e à produção. No caso dos primeiros, trata-se de «casotas» ou
­«cafuas» de planta circular e podendo ter um assento, e que são escavados na parte
­inferior do socalco34. Este tipo de abrigo não é, no entanto, exclusivo das vinhas e está
disseminado por toda a ilha. Os abrigos podem ainda ser pequenas casas com as q ­ uatro
paredes em pedra seca e telhados cobertos com as tradicionais telhas de meia-cana.
Os segundos são os lagares, incluindo os escavados na rocha, as adegas, e, para o trans‑
porte, os pequenos embarcadouros e portos. O acesso às vinhas é feito preferencial­
mente pelas cotas mais baixas, onde também se situam adegas e casas.
Finalmente, são de registar alguns objetos necessários à vindima e à produção do
vinho, como os «cestos de almude», os «cestos de mão» ou os «quintos» (barris)35.
Os lagares escavados na rocha permitiam o transporte do mosto, já liberto do
­engaço, em barris de madeira, facilitando as operações da produção de vinho em
­terrenos de muito difícil acesso. Já o fabrico e a armazenagem do vinho decorriam,
princi­palmente, em adegas situadas nas áreas residenciais afastadas das vinhas36.
Na inventariação do património imóvel açoriano, Maia e São Lourenço foram
inscritas como «unidades paisagísticas construídas», num reconhecimento do interesse

34
GASPAR, 2005: 342.
35
Glossários constantes de SILVA, 1995, 1999.
36
GASPAR, 2005: 343-344.

271
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

destes dois conjuntos. Em São Lourenço, foi também inventariada uma adega, classifi­
cada como «construção utilitária». As funções associadas a este tipo de património são
as de cultivo de vinha e de habitação sazonal37.
Assim, tradicionalmente, as construções nas baías de São Lourenço e da Maia,
­junto às vinhas, eram adegas ou residências temporárias para o período das vindimas.
Nas ­últimas décadas, a sua função alterou-se para a de casas de veraneio habitadas
­sazonalmente. Este tipo de uso levou ao aumento da construção e a uma consequente
­pressão urbanística que coloca novos problemas, nomeadamente de acesso viário, sanea‑
mento e recursos hídricos. Estes problemas obrigam a uma gestão territorial complexa,
na ­medida em que se trata da orla costeira e de espaços pertencentes ao parque natural.

Fig. 6. Habitações de
veraneio em São Lourenço,
novembro de 2021

2.2. Valores socioculturais


O cultivo da vinha em Santa Maria, remontando ao povoamento, permitiu um a­ cu­mular
de práticas aperfeiçoadas ao longo de gerações. Este conhecimento, construído nas
­diferentes ilhas vinhateiras, contém um corpo comum que convive com variações locais
de nomenclatura e de técnicas. Em Santa Maria, infelizmente, uma parte deste conhe­
cimento tem-se perdido com as transições geracionais e o abandono gradual das vinhas.
Por outro lado, ocorreu uma simplificação de procedimentos, e as práticas tradicionais
não são já utilizadas na sua íntegra.

INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA (2005). O trabalho de campo para o levantamento do património de Santa
37

Maria foi realizado em 2000.

272
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Começa por destacar-se o conhecimento gerado na interação constante com o


meio, que permitiu a compatibilização entre as condições físicas e os objetivos do ­cultivo.
Para tal, como já foi dito, foram principalmente aproveitadas áreas de boa exposição
­solar e sem grande préstimo para outras culturas. Geraram-se paisagens culturais carac‑
teristicamente composta por reticulados de muros que sustentam os socalcos embutidos
no declive das vertentes. Estas construções, se por um lado respeitam as necessidades
da vinha, por outro, evitam a erosão e estabilizam as arribas através dos seus muros,
redes de acesso e de drenagem.
Os quartéis murados permitem proteger as plantas do ar salgado marítimo, e a
­cober­tura de calçada tem a dupla função de concentrar o calor irradiado pelo ­basalto,
­redu­zindo a humidade, e dispensar, ou facilitar, a monda. Cria-se, desta forma, uma ­espécie
de microclima com um ar mais seco e reforço da temperatura, adequado à manu­tenção
das ­plantas e maturação dos frutos. As vinhas eram regularmente ­mondadas e podadas;
a maior parte do ano cresciam horizontalmente e junto ao chão — rasteiros —, tendo em
vista a ­proteção dos rebentos. As operações de limpeza eram desig­nadas por «dar a volta
à vinha». A partir dos meses de verão, era tradicionalmente utili­zado o ­processo de «subir
as ­vinhas», com recurso a canas, para suspender os cachos, facili­tando a maturação dos
­bagos. Na operação de levantar as vinhas, era deixada certa proxi­midade à pedra para
­incrementar a maturação através do calor irradiado. A técnica da «virada», consistia em
retirar as p ­ edras que cobrem o solo, sachar e proceder à sua reco­locação. Aquando da
substi­tuição das ­vinhas velhas, através do plantio de novos pés, o revestimento era obriga‑
toriamente reti­rado para se «virar as terras». O chão empedrado era também utili­zado em
São Miguel e na Terceira; no caso de Santa Maria, a disponibilidade de pedra nas proximi‑
dades seria insuficiente para as construções, obrigando a operações de rachar e transportar
­rocha38. As práticas estão adequadas ao local de cultivo: o tipo de proteção das videiras
depende de a localização ser mais ou menos abrigada, nomeadamente arribas ou terras
interiores, podendo recorrer a paredes de pedra seca ou a sebes vivas. Nos locais mais
expostos, as vinhas são deixadas no chão e levantadas apenas no princípio do verão.
As mais protegidas são erguidas aquando da poda, podendo ficar amarradas a canas
para continuarem afastadas do chão39.
Seguidamente, destaca-se, enquanto valor, o aparecimento de um novo produto
­vínico em virtude da adaptação imposta pelas pragas de oídio e filoxera de meados do
­século XIX, que, como é sobejamente sabido, afetaram as diferentes regiões vinícolas euro‑
peias. Trata-se do «vinho de cheiro», tão enraizado no consumo açoriano, e que foi o resul‑
tado da substituição das castas europeias pelas americanas, naturalmente mais resistentes40.

38
MEDEIROS, 1994: 217-218; FERREIRA, 1997: 35, 37; SILVA, 1999; GASPAR, 2005: 337, 339-341; ALBERGARIA,
2021: 271-272; REIS, 2021: 100.
39
GASPAR, 2005: 337.
40
Em Portugal Continental, este tipo de vinho, popularizado em alguns lugares, é designado de «morangueiro».

273
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

A introdução das castas americanas no arquipélago terá ocorrido a partir de São


Miguel, cerca de 1854. Iniciou-se com a híbrida Isabela, chegada num lote de ­plantas
­exóticas, enquanto planta ornamental. Pela sua resistência natural, muito embora
­sujeita ao oídio se plantada em locais mais húmidos, foi alvo de atenção em contexto de
­destruição pelas pragas e posterior reconversão dos vinhedos41.
Na região dos Açores, as vinhas de castas europeias eram produtoras diretas até ao
período de pragas, a partir do qual as castas americanas ou as híbridas passaram a ser
os porta-enxertos e/ou a produzir diretamente as uvas. A alteração forçada no cultivo e
na produção teve consequências óbvias nas economias locais. Afetou mais as ilhas onde
a vinha assumia uma importância significativa, nomeadamente Graciosa e Pico: aqui,
diversas alterações de posse e uma certa fragmentação de propriedades ocorreram neste
período42. Em termos de organização administrativa territorial, houve consequências
como a extinção do concelho da Madalena, no Pico, entre 1895 e 1898, e, na Graciosa,
deu-se a extinção do concelho da Praia, em 185543.
Como foi dito, existiu uma fase anterior de cultivo e produção a partir das castas
europeias. Estas foram introduzidas no arquipélago, principalmente a partir da Madeira
e do território continental, sendo a mais conhecida a Verdelho, cujo vinho foi também
produzido em Santa Maria. No século XIX, a adaptação às então consideradas novas
­castas foi gradual e passou por um período de adaptação ao paladar dos consumidores.
O consumo e a preferência por este vinho ficaram fortemente enraizados, não apenas
pelo seu aroma, mas por se tratar de um vinho pouco graduado que permite ser bebido
em maior quantidade44. A título de curiosidade, vale a pena referir que, de acordo com
relato de viajante estrangeiro, no início do século XIX, os hábitos de consumo dos campo­
neses faialenses eram de um vinho jovem e fraco, que se misturava com água. Em 1876,
o abundante «vinho de cheiro» era vendido nas tabernas de São Miguel45. O consumo de
vinhos fracos, tanto por motivos de preço como para proporcionar ser bebido em maior
quantidade, foi aquele que vigorou junto da população com menor poder de compra.
O consumo dos vinhos de castas americanas ou híbridas, resistentes às pragas,
­tornou-se comum em todo o arquipélago e, a partir do final do século XIX, era um
produto autêntico e tradicional. Passaram a existir locais de proveniência bastante
­apreciados nos circuitos comerciais da região, nomeadamente os vinhos de Santa Maria,
São Miguel e Terceira (Biscoitos)46.

41
SOUSA, 2004: 150-151.
42
MEDEIROS, 1994: 214, 219.
43
MEDEIROS, 1994: 214; SOUSA, 2015: 160.
44
MEDEIROS, 1994: 200; GASPAR, 2005: 89, 93, 327; ALBERGARIA, 2021: 278.
45
SOUSA, 2004: 126, 176-177.
46
MEDEIROS, 1994: 207, 212-214, 223.

274
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Na opção de castas predominantes, parece ter havido uma evolução diferente nas
ilhas do Grupo Oriental e Central: enquanto em Santa Maria e São Miguel, de ­acordo
com informação oficial da década de setenta do século XX, já não se registavam ­vinhas
com castas europeias, o mesmo não se passava na Graciosa, Pico, São Jorge e ­Terceira,
onde o seu cultivo persistiu através do Verdelho e do Arinto47. É de sublinhar que os
viticultores micaelenses, na sua generalidade, não retêm memória do cultivo das ­castas
­europeias, muito embora na ilha possa ter restado um cultivo residual. No caso m­ ariense,
terá resistido a casta europeia Bastardo ou Bastardinho, e existem memórias e registos do
vinho Verdelho48. No entanto, terá existido uma certa variedade de uvas culti­vadas nas
fajãs, observando-se, na primeira metade do século XX: Isabela, ­Verdelho, D ­ iagalves,
Bastardo, Sabrainho, Mourisco, Alicante e Moscatel . 49

O «vinho de cheiro», proveniente de castas americanas e/ou híbridas, continuou


a ser produzido e consumido em Santa Maria. Era, aliás, o tipo de vinho tradicional‑
mente servido nos Impérios das importantes festividades do Espírito Santo, celebradas
em toda a região açoriana. Em Santa Maria, este vinho, conjuntamente com as sopas e
os dife­rentes pães e biscoitos, completava a tríade de ingredientes cereal-carne-vinho
proveniente das esmolas dadas pela população na época das colheitas e das vindimas.
Os alimentos confecionados para os bodos dos impérios eram, depois, repartidos pelos
mais carenciados no domingo de Pentecostes50.
No que respeita ao vinho dado como esmola para estas festividades, e de ­acordo
com Jaime Figueiredo, tratava-se do «vinho mosto, o bom vinho doce», de baixo grau
alco­ólico e parecido com o «verdasco, que se produz em toda a região nortenha». O v­ inho
era oferecido numa quantidade que dependia da abundância da colheita. O m ­ esmo autor
indica que também se servia o vinho por ocasião dos trabalhos preparatórios das festivi‑
dades, nomeadamente na escolha do cereal e na preparação da farinha51.
A persistência do «vinho de cheiro» nos Açores é interessante na medida em que,
há décadas, que a produção e a comercialização de vinhos de castas americanas foram
inviabilizadas na Europa. Em Portugal, data de 1935 e 1938 a legislação que tornou
­ilegal a plantação de vinhas americanas (designadas «produtores diretos americanos»).

47
De acordo com informação estatística constante de MEDEIROS, 1994: 223-224. GASPAR, 2005: 91.
48
De acordo com os testemunhos recolhidos por FERREIRA, o «vinho bastardo» era o melhor e, consequentemente,
servido nas missas (1997: 62); GASPAR, 2005: 91, 344, 512-514.
49
FIGUEIREDO, 1990 [1954]: 31.
50
FIGUEIREDO, 1990 [1954]: 32; 1957: 14-15, 53-57, 86-88. Veja-se ainda os versos do padre Serafim de Chaves na sua
descrição das Festas do Espírito Santo em Santa Maria (CHAVES, 1983: 63):
«Aparte em aposento reservado,
Espécie de telónio, mesureiro,
Serve o copeiro o bom vinho de cheiro
E o biscoito de orelha tão falado.
Com agrado oferece à ordeira gente
Que entra e sai, sem convite, alegremente.»
51
FIGUEIREDO, 1957: 56, 77, 85-86.

275
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Salvaguardando-se a produção para consumo familiar, a legislação classificou o vinho


­destas castas como «de inferior qualidade, desequilibrado e sem condições de conser­
vação»52. Alegadamente, a sua composição química também poderia ser prejudicial à saúde,
o que, entretanto, já não corresponde ao conhecimento atual. Após a adesão à União
Europeia, o hábito de consumo vigente nos Açores, a par da compensação pela insulari‑
dade, levou a uma exceção para a produção e consumo destes vinhos, embora circuns‑
crita ao espaço do arquipélago. Com efeito, a regulamentação comunitária não permite
fabricar vinhos com as castas Isabela, Jacquez e Herbemont, entre outras53.
É de ressalvar que as castas americanas, devido à resistência natural das plantas e
dos aromas peculiares das suas uvas, estão atualmente a despertar interesse em diversos
países europeus. Em França, país onde, na década de trinta do século XX, estas castas
foram proibidas, gerou-se recentemente um movimento para a sua legalização e revita‑
lização na produção vinícola54.

2.3. Valores produtivos


A economia da vinha e do vinho nos Açores é um tema cujo estudo tem vindo a ser
bastante aprofundado. São identificados períodos de produção e comercialização cujas
características derivam de diferentes condicionalismos: circuitos comerciais; regime
de propriedade; pragas que afetaram o cultivo (e, consequentemente, o tipo de vinho
produzido); hábitos de consumo; viabilidade económica; técnicas utilizadas55. Histori­
camente, estes condicionalismos estiveram presentes em todas as regiões vinhateiras;
e, no caso português, os mesmos estão associados a momentos de transformações
na vitivinicultura56.
Genericamente, as produções vinícolas insulares atlânticas, designadamente as dos
Açores, Canárias e Madeira, sofriam limitações específicas, como os custos de ­produção
mais elevados, ou a divergência de interesses económicos regionais face aos ­nacionais.
Detinham, por outro lado, uma forte vantagem: como portos de refresco, onde se
carre­gavam porões, eram pontos importantes da navegação atlântica. Neste contexto,
os Açores têm sido genericamente considerados como uma região com vinhos de menor
notoriedade e cuja produção estava essencialmente concentrada na Graciosa, Pico e São
Jorge. As áreas de cultivo fisicamente limitadas e consequentemente escassas eram fator

52
PORTUGAL. Ministério da Agricultura, 1935, 1938.
53
UNIÃO EUROPEIA. Parlamento e Conselho Europeu, 2013.
54
ASTIER, 2017.
55
Os autores assinalam insegurança nas estatísticas disponíveis, o que dificulta a reconstituição da economia vitiviní­cola
açoriana. Há, ainda, motivos para crer que exista subestimação da produção de algumas ilhas, nomeadamente Santa
­Maria, ou exagero nas exportações anuais do vinho açoriano. Finalmente, os estudos privilegiam a dimensão de expor‑
tação, sendo escassos, ou omissos, no que respeita à produção para consumo local. Veja-se a este propósito: MEDEIROS,
1994: 211-213, 215; COSTA, 2003: 285-287; SOUSA, 2004: 117-118, 120, 124, 131, 139; GASPAR, 2005: 442-443.
56
SOUSA, 2004: 115-116.

276
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

impeditivo para concorrer com os restantes exportadores. Assim sendo, as referências


aos vinhos açorianos são marginais se comparadas com os arquipélagos das Canárias
e da Madeira57.
Em realidades produtivas que diferem de acordo com períodos históricos e
­contextos locais, indicam-se, seguidamente, alguns factos genéricos que ilustram a
impor­tância da produção vinícola açoriana.
No século XVI, o vinho produzido nos Açores esteve presente nos circuitos
­comerciais em estreita relação com a cabotagem. Esta navegação fazia o transporte ­entre
ilhas, ou diversos locais da mesma ilha, assegurando as comunicações regionais. Ao ­longo
do século XVII, os Açores tornam-se centros de diversas produções: ­pastel, ­trigo, vinho e
aguardente assumem relevo no tráfego internacional. Neste mesmo ­século, há ­evidências
da integração do vinho açoriano nas grandes rotas oceânicas, ou, mais em parti­cular,
nas atlânticas. Muito embora considerado como um produto de qualidade limi­tada, o seu
­comércio externo era permitido pelo aproveitamento de escalas. Este v­ inho tinha o centro
produtor no Pico, contou com o envolvimento de mercadores estran­geiros e teve destinos
como o Brasil, ou as Antilhas. Por outro lado, a comercialização do ­vinho dinamizou
­ativi­dades associadas, como o fabrico de pipas e outros recipientes. Nas ­primeiras décadas
do século XVIII, em que os mercadores ingleses predominavam nas trocas, os Açores
eram um ponto de passagem principalmente no comércio com o Brasil. ­Chegavam ao
arquipélago produtos brasileiros como açúcar e t­abaco, estando o vinho e a aguar­dente
entre os produtos exportados. O arquipélago tinha os circuitos c­ omerciais preferencial‑
mente organizados em torno do Faial, São ­Miguel e Terceira. Nesta ­época, a ilha de Santa
­Maria está igualmente referenciada nos circuitos comerciais com o exte­rior58. No ­primeiro
quartel do século XIX, a economia dos Açores continuava a ter no vinho, a par dos cereais
e das laranjas, uma das principais exportações. O vinho era desti­nado a mercados como
a Inglaterra, o Brasil ou os Estados Unidos da América. No ­final do século XIX, com o
«vinho de cheiro» a substituir o ­antigo verdelho no consumo ­regional, procurou-se que
este então novo vinho encontrasse mercados mais vastos — foi exportado de São Miguel
para o Brasil, sob a marca Açor59.
Decorrente desta evolução, na primeira vintena do século XIX, a vinicultura era
uma atividade consolidada e com peso na economia do arquipélago. Contudo, a lite‑
ratura circunscreve-se ao comércio com o exterior, não estando estudado o consumo
local. No entanto, a produção para o autoconsumo é precisamente uma das caracterís‑
ticas das ilhas de menor dimensão como Santa Maria. Esta ilha teria, no conjunto do
arquipélago, pouco peso económico, mas com certo relevo na exportação de cereais,

57
SOUSA, 2004: 117-119, 132.
58
SILVA, 1999: 207-208, 212, 215.
59
LIMA, 1960: 234-238; GIL, 1982: 365-366; 1983: 143, 164, 171, 177-178; MEDEIROS, 1994: 202, 207-208, 215-216;
SILVA, 1999: 207-208, 212, 215; MADRUGA, BORBA, 2017: 105.

277
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

barro e ­objetos em barro60. Para 1801, um estudo detalhado do porto de Ponta Delgada
­evidencia o número de barcos com proveniência de Santa Maria, inferindo-se a inten‑
sidade do c­ omércio de proximidade. Releva-se a quantidade e variedade dos p ­ rodutos
desta ilha, que parecem ser todos de produção local, nomeadamente: trigo, cevada,
­barro, telhas, loiças e vinho (24 pipas)61. No século XX, e de acordo com informação
de 1938, as expor­tações de Santa Maria destinadas ao comércio de cabotagem eram
­compostas ­pelos produtos excedentários na ilha e incluíam «pipas de vinho de cheiro
e alguns quintos de verdelho»62.
Atendendo à importância da vitivinicultura na região, o oídio e as pragas subse‑
quentes tiveram um forte impacto nas economias locais. Em São Miguel, a chegada do
oídio é indicada em 1850, e quase deixou de haver uvas em 1852. Esta quebra afetou,
por um lado, os produtores agrícolas e, por outro, as receitas públicas associadas. No ano
de 1887, a filoxera é tida como existente em força na Terceira e em São Miguel. Levou à
prática de enxertar a casta Isabela noutras americanas mais resistentes. A partir de 1886,
surgia a antracnose, outra doença que atacava principalmente as vinhas mais afastadas
do litoral e que veio agravar os prejuízos63.
Para o período imediatamente anterior à chegada do oídio, tomando como refe‑
rência o ano de 1853, a produção de Santa Maria totalizaria quatrocentas pipas, e não se
destinava à exportação. A sua produção era a mais pequena das ilhas vinhateiras (não
inclui Corvo e Flores), seguindo-se a Terceira com seiscentas pipas64. Já as estatísticas de
produção para o concelho único da ilha, Vila do Porto, no período entre 1845 e 1863,
revelam uma quebra de 1030 para 30 barris, acompanhando a diminuição ocorrida em
todos os restantes concelhos do distrito de Ponta Delgada. Santa Maria, no ano de 1873,
teve a produção mais baixa do arquipélago: estimada em 65 hectolitros65. Existe, aliás,
um testemunho de viajante, datado de 1870, observando que as vinhas de São L ­ ourenço,
em terrenos pedregosos que apenas permitiam a vinha, à época pouco produziam
­devido ao oídio66.
Num relatório de 1891, dos serviços agrónomos do distrito de Ponta Delgada,
indi­cava-se que todos os vinhedos estavam a ser atacados pela filoxera, excetuando uns

60
COSTA, 2003: 251-252, 282, 285, 306, 321-322.
61
CID, 1979: 147-148, 159-160.
62
FIGUEIREDO, 1990 [1954]: 32-33.
63
SOUSA, 2004: 124-125, 154, 168-172. O autor salvaguarda que a ­progressão das pragas no arquipélago não é um
processo uniforme, nem existem certezas de datas.
64
MORELET, 1860: 109, 113-114. Este autor indica que a capacidade da pipa comercialmente utilizada nos Açores era
de 400 litros. De notar que, cerca de cem anos mais tarde, em Santa Maria, a capacidade da pipa é indicada em 480 litros,
FERREIRA, 1997: 40.
65
Estatística relativa à produção de vinho no distrito de Ponta Delgada, que incluía a Vila do Porto, SOUSA, 2004:
­154-155. Estatística de PERY, a partir de SOUSA, 2015: 161. Tomando como referência MORELET: 1 pipa = 400 litros,
seria uma produção de aproximadamente dezasseis pipas.
66
MACHADO, 1870: 24.

278
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

­ oucos hectares plantados sobre as areias, em Santa Maria. A par deste facto, é inte‑
p
ressante notar que, no Catálogo da Exposição Distrital de Artes e Indústrias de Ponta
­Delgada, de 1895, de trinta vinhos expostos, catorze eram originários de Santa Maria.
O clima mais seco desta ilha poderá tê-la tornado menos sujeita a pragas67. Assim,
e apesar do decréscimo, as condições naturais da ilha e a introdução de castas resistentes
poderão ter permitido uma recuperação mais fácil da produção.
As ilhas economicamente mais afetadas foram necessariamente as mais depen­
dentes da vitivinicultura: Pico, Faial e São Jorge, mas mais intensamente as duas
­primeiras68. O oídio, associado a uma série de maus anos agrícolas, em 1857-1858-1859,
­provocou f­omes e um consequente aumento da emigração do Pico para o Brasil e os
Estados ­Unidos da América. Os grandes proprietários e morgados do Faial e do Pico
­assistem à desvalorização das terras, e os lavradores mais abastados veem reduzir um
dos seus principais produtos de mercado. É feita alguma reconversão dos t­ errenos para
­cereais, mas, no caso do Pico, pelas características físicas e tradição agrícola d
­ esenvol­vida,
era ­difícil substituir a vinha. Em São Jorge, apesar de alguns esforços, ­nunca mais a
­produção de vinho atingiu a centralidade anterior às pragas. Os antigos terrenos de
­vinha foram reconvertidos para pastos ou cultura do milho. O quadriculado dos m ­ uros
­começou a cobrir-se de silvados e matos, provocando uma grande a­ lteração da ­paisagem
das vertentes a sul, e consequente desvalorização destas propriedades. As suas ­plantações
em pequena escala e em prédios de reduzida dimensão dificul­tavam a reconversão,
pelo que a vinha se foi tornando uma cultura local e destinada ao autocon­sumo. As ilhas
­menos dependentes da vinha, como a Terceira ou a Graciosa, terão s­ entido as conse‑
quências de forma mais atenuada. Na Graciosa, devido às suas c­ ondições ecológicas de
ilha mais seca, prosseguiu-se com as produções agrícolas tradi­cionais: vinho, comum‑
mente tido como de menor qualidade, e consequentemente ­afastado de mercados inter­
nacionais, cevada e trigo. Neste período de crise vinícola, a Graciosa assumiu impor­
tância no abastecimento do mercado regional69.
Os meados do século XIX foram, deste modo, determinantes para a vitivinicul­
tura açoriana: deu-se o quase desaparecimento das castas europeias — o Verdelho f­ oi-se
mantendo sobretudo no Pico e na Graciosa; fez-se a substituição pelas castas ameri‑
canas consideradas inferiores, mas resistentes e produtivas; e ocorreu a consequente
­alteração de mercados e do gosto dos consumidores locais. Estas circunstâncias criaram

67
Informação a partir de SOUSA, 2004: 184-185.
68
MENESES, 2011: 186.
69
SOUSA, 2004: 156-162, 173-174, 191-192; 2015: 151-152, 158, 160, 164. Este autor observa que o fabrico de aguar‑
dente na Graciosa permitiu obter um produto de conservação e valor comercial superiores ao do vinho. Assim, ficavam
parcialmente ultrapassadas as dificuldades de produzir numa ilha mais pequena e com menor capacidade de acesso aos
mercados e às redes comerciais (SOUSA, 2015: 154, 156).

279
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

um c­ ontexto em que o mercado interno (local e regional) se tornou o mais importante.


Este mercado, apesar de diminuto, oferecia rentabilidade ao pequeno e médio produtor,
que era, na verdade, a dimensão da maioria dos viticultores das ilhas70.
No Faial, Graciosa, Pico e São Jorge, os vinhedos eram uma significativa f­onte
de rendimentos para as elites possuidoras de terras. Estas famílias passavam os v­ erões
nas propriedades vinhateiras e recorriam a feitores que organizavam todo o p ­ rocesso,
incluindo o recrutamento de mão de obra. Este trabalho, com carácter sazonal,
­
era p ­ ossível em períodos onde a sempre presente emigração açoriana não se fazia sentir
tão intensamente. As décadas iniciais do século XIX são precisamente um período de
crescimento da plantação e da produção em todo o arquipélago71.
Em Santa Maria, a posse das vinhas estava igualmente concentrada nos ­principais
proprietários de terra. Muito embora não existam estudos aprofundados da posse e
usos das terras agrícolas, há registos que permitem inferir semelhanças com as ilhas do
­Grupo Central. O caso de São Lourenço, através dos testemunhos recolhidos, ­denota
seme­lhanças: propriedades pertencentes a elites da ilha; cultivo e produção vinícola
­organi­zado por vinhateiros; e trabalho realizado pelas gentes que precisavam do rendi­
mento das tarefas da vinicultura72. É de notar que, em Santa Maria, no decorrer do ­século
XIX, a divisão das propriedades rústicas, em consequência do aforamento, teria já tido
efeitos benéficos na atividade agrícola73. Eventualmente, após as pragas nos vinhedos,
e já na entrada no século XX, a pertença dos currais de vinha estava substancialmente
dividida por um número maior de proprietários.
No que respeita à qualidade atribuída aos vinhos açorianos, com a exceção
dos que mereceram reconhecimento, a sua fraqueza foi apontada aos cuidados e
métodos de cultivo, produção e conservação74. Perante este cenário, esforços de moder­
ni­zação e aperfeiçoamento foram encetados pelos viticultores açorianos75. No caso
de São M ­ iguel, aproveitando a reconversão operada com as castas híbridas, ocorreu,
no final do ­século XIX, o incremento técnico. Trabalhou-se no sentido de contornar
­características como, por exemplo, a maturação irregular dos bagos na casta Isabela.
Numa conjuntura expor­tadora favorável, e sendo estes novos vinhos apreciados no
­Brasil e em França, os viticultores micaelenses, tendo em vista ampliar a comercia­
lização, recorreram, em 1886, à orientação técnica francesa. Em 1887, perante a
­produção ­excedentária, houve expor­tação para o Brasil e a França de um vinho pouco
alcoólico da marca Açor. No ­entanto, terá sido um sucesso curto e de alcance ­reduzido76.

70
SOUSA, 2004: 148-152, 172.
71
SOUSA, 2004: 143-144.
72
FERREIRA, 1997.
73
CONSTÂNCIA, 1982: 240.
74
MEDEIROS, 1994: 208; SOUSA, 2004: 207; 2015: 156.
75
SOUSA, 2004: 125.
76
SOUSA, 2004: 178-179, 185, 189; GASPAR, 2005: 94-95, 100.

280
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Vale a pena anotar que isto foi ­possível num período anterior à ilegalização das
castas híbridas americanas em F ­rança, posta em prática na década de trinta do
século XX.
A preferência regional pelos vinhos das castas americanas garantiu um mercado
açoriano para o consumo. No caso de Santa Maria e de São Miguel, são três as castas
híbridas que ganharam preponderância: Isabela (também designada «vinha de cheiro»
ou «americana»), Jacquez e Herbemont. É de notar que, em Santa Maria, existe uma
inversão na designação das castas Jacquez (Herbemont nas restantes ilhas) e Herbemont
(Jacquez nas restantes ilhas)77.
Ao longo da primeira metade do século XX, nos Açores, observou-se um aumento
da superfície de vinha (excetuando em São Jorge). Nas décadas de cinquenta e s­ essenta
do século XX, surgem adegas cooperativas no Pico e na Graciosa78. Os vinhedos de
­elevada produtividade, a existência de mercado local e regional, os preços que viabili­
zavam a produção e garantiam o retorno do investimento podem ser fatores explicativos
para este aumento.
Nesta expansão, o «vinho de cheiro» ganhou terreno e teve a sua produção assegu­
rada particularmente em Santa Maria, São Miguel e Terceira. A produção a partir de
Verdelho era mais dispendiosa que a das castas americanas e, assim, na Terceira e no
Pico, foi-se reduzindo a área afeta a esta vinha. Por outro lado, a atividade da vitivinicul‑
tura aumentou a sua importância em São Miguel e na Terceira79.
Entre 1950 e 1970, Graciosa e Santa Maria encontravam-se no leque das principais
ilhas vinhateiras e com capacidade de exportação. Era enviado vinho da Graciosa para
o Faial, São Jorge, São Miguel e Terceira. O vinha de Santa Maria era remetido para São
Miguel, onde, apesar do custo do transporte, era vendido por melhor preço80. Em Santa
Maria, a produção vinícola conheceu uma curva ascendente ao longo deste século e até
196081. Já no ano de 1998, observou-se que o «vinho de cheiro» produzido era insufi‑
ciente para o consumo na ilha82.
O principal mercado para o vinho açoriano é, até presentemente, o próprio arquipé‑
lago, tanto para as castas híbridas como para as europeias. O vinho das castas híbridas tem
preços mais baixos — videiras mais produtivas e com uma resistência que permite evitar
alguns tratamentos83. A Isabela e as restantes castas americanas ou híbridas foram ­solução

77
GASPAR, 2005: 100-101, 344-345.
78
SOUSA, 2004: 210-211, 214.
79
SOUSA, 2004: 211-213; 2015: 151.
80
GASPAR, 2005: 479-480.
81
ALBERGARIA, 2021: 280.
82
GASPAR, 2005: 345-346, 512-514.
83
GASPAR, 2005: 476, 479.

281
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

para ultrapassar o período das pragas: além de se terem adaptado às condições ecoló­gicas,
produziram vinhos para o mercado regional84. Assim, e ao longo do século XX, a p ­ rodução
do arquipélago era escoada e gerava o rendimento necessário aos v­ iticultores.
A recolha de testemunhos orais evidenciou a importância do trabalho nas v­ inhas,
nas décadas de quarenta e cinquenta do século XX. Perante alguma escassez de ­oferta
laboral em Santa Maria, as vinhas representavam possibilidade de remuneração,
­
na maior parte das vezes paga em géneros, e que complementava magros rendimentos.
Foi uma altura em que o vinho da ilha tinha muita procura, um preço que assegurava o
lucro, e a produção conhecia escoamento garantido tanto dentro de Santa Maria como
para São Miguel85.
Para este período há relatos de atividades complementares: o fabrico de pipas e
­tonéis pelos carpinteiros da ilha, simultaneamente tanoeiros, e a produção de «aguar‑
dente da terra», vendida na ilha — embora se assistisse a uma redução dos alambiques86.
Em Santa Maria, o vinho das uvas plantadas nas arribas da Maia e de São
­Lourenço era o mais apreciado. No entanto, as «vinhas de terra dentro» revelavam-se
mais ­produ­tivas87. Desta forma, para rentabilizar, existia a prática de lotear o vinho.
Por ­outro lado, com o vinho da casta Herbemont (localmente designado Abremon
ou Bremon — e J­acquez nas restantes ilhas), um tinto menos apreciado, mas mantido
­porque servia para lotear com o «vinho de cheiro» (casta Isabela), acentuando a cor, e do
seu ­mosto era produ­zido o «vinho abafado». Esta prática era corrente em São Miguel e
Santa Maria para o fabrico do típico «vinho de cheiro» que só raras vezes é feito exclusiva­
mente de Isabela: acentuava-se a cor de vinho tinto, mas sem alterar o aroma típico,
indo ao ­encontro da preferência dos consumidores locais88. Esta prática detinha ainda a
­vantagem de tornar o vinho mais graduado. O loteamento pode ser feito em sepa­rado,
respeitando os dife­rentes períodos de maturação dos frutos de cada uma das castas.
O vinho branco da casta Jacquez, localmente designado «Jacquês» (casta Herbemont
nas restantes ilhas), é produzido em maior quantidade; a facilidade de a planta pegar
de estaca foi ­condição para a disseminação desta videira na ilha. Acresce a sua resis‑
tência superior à das uvas tintureiras, que torna possível ser cultivada sem recurso aos

84
SOUSA, 2004: 187-188, 190. Apesar de tudo, e de acordo com este autor, no final do século XIX, observam-se anos em
que a produção do «vinho de cheiro» também ficava comprometida devido às doenças da vinha.
85
FERREIRA, 1997: 37, 39, 42, 46; REIS, 2021: 99-101.
86
FERREIRA, 1997: 40-41, 49.
87
Em termos históricos, esta mesma constatação foi feita para o Pico e para a Graciosa. No Pico, os terrenos de lagido,
mistério e biscoitos eram quase exclusivos para as vinhas, e, destas, obtendo-se vinhos de melhor qualidade. Já no chão de
terra, a produção era mais abundante, mas de qualidade inferior, e convivendo com o cultivo do milho e da batata-doce.
Na Graciosa, a vinha plantada em terras lavradias permitia aumentar a produtividade, mas obtinha-se vinho de qualidade
inferior. Veja-se, a este propósito, SOUSA, 2004: 205-207; 2015: 154-155. É de salientar que, na ilha da Madeira, existe
uma distinção entre vinhas do norte e vinhas do sul, e de acordo com a altitude. O vinho considerado de qualidade
­superior era o das vinhas plantadas nas «meias terras abaixo» da vertente sul (VIEIRA, 1990: 27, 105; 2003: 71).
88
Localmente, esta prática de misturar para obter a mesma graduação e cor designava-se «passar o vinho a limpo»
­(FERREIRA, 1997: 40). Sobre este procedimento, existem também testemunhos recolhidos por REIS, 2021.

282
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

habituais tratamentos. Gene­ricamente, é um vinho sem expressão comercial e desti‑


nado ao c­ onsumo privado. No entanto, em Santa Maria, há alguma comercialização
de «Jacquês»89.
De acordo com informação oficial, no concelho de Vila do Porto, a superfície
­cultivada com vinha, em 1885, era de 103 ha90. Os dados do Recenseamento Geral Agrí‑
cola de 1989 registam, em Santa Maria, 132 ha de vinha e, em São Miguel, 471 ha, para
um total de 2297 ha em toda a região91. No decorrer do século XX, apesar das vicissi­
tudes, em Santa Maria a área de vinha aumentou.
Em 1994, o decreto-lei n.º 17/94, de 25 de janeiro, criou as zonas vitivinícolas
da ­Região Autónoma dos Açores e, em 1995, foi constituída a Comissão Vitivinícola
­Regional dos Açores (CVR Açores). Atualmente, existe a Indicação Geográfica «Açores»,
e três Denominações de Origem Protegida (DOP): Graciosa, Biscoitos (Terceira) e Pico.
Na ilha de Santa Maria, ao abrigo do VITIS, iniciou-se o processo de reconversão
de vinhas tradicionais, numa extensão inicial de 4 ha em 2020, que obriga à mudança
para castas europeias.

3. O PROCESSO DE RECUPERAÇÃO

3.1. Dificuldades
O declínio do cultivo da vinha nos Açores deve ser enquadrado no decréscimo g­ eral
da atividade agrícola. Na década de sessenta do século XX, na Graciosa e no Pico,
foi feito um esforço de revitalização, nomeadamente através de adegas cooperativas.
­Estes ­processos enfrentaram, desde logo, diversas dificuldades ao nível dos mercados e
dos ­custos elevados das explorações (inviabilidade de mecanização e preço da mão de
obra). Na Graciosa, observou-se até o declínio da adega cooperativa na década de oitenta.
A retoma da atividade tem enfrentado duplamente as limitações inerentes ao «vinho de
cheiro», e o ritmo lento da reconversão para castas europeias92.
Outros tipos de dificuldades foram identificados: os terrenos afetos às vinhas são
muito desiguais, o que dificulta um tipo comum de vinho; e, apesar da e­ xistência de
diferentes áreas de cultivo, genericamente, o clima húmido e a orografia são p ­ ouco
favo­ráveis e tornam o rendimento por hectare inferior ao das restantes regiões viní­
colas portu­ guesas. A modernização operada no setor, no final do século XIX,
em Portugal, teve componentes que dificilmente se adequavam à realidade dos A ­ çores,
nomeada­mente a mecanização e a dimensão das propriedades. A produção a­ çoriana
­tornou-se pouco competitiva, restando o mercado regional e o cultivo preferencial

89
GASPAR, 2005: 341, 345-346, 465-470, 487-488.
90
Informação estatística constante de SOUSA, 2004: 178.
91
Informação a partir de MEDEIROS, 1994: 223-224.
92
MEDEIROS, 1994: 221-222, 225, 227.

283
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

das castas ameri­canas. Apesar dos constrangimentos, o arquipélago observou um


aumento da área de cultivo no início do século XX, tal como sucedeu no restante
território português93.
O processo de recuperação e/ou reconversão da vinha em Santa Maria, mais
­tardio que o de outras ilhas vinhateiras, enfrenta as condições de partida transversais ao
­contexto açoriano, mas agravadas pelo difícil acesso às parcelas de vinha.
Nesta ilha, ainda antes do oídio e da filoxera, na segunda metade do século XIX,
já se observava o abandono das vinhas e se faziam esforços para a sua recupe­ração,
nomeadamente daquelas localizadas nos Anjos, Figueiral e Abegoarias, as áreas
­
de ­povoamento inicial da ilha e com proximidade à Vila do Porto94. Estas são, aliás,
também situadas junto ao mar, mas a cotas mais baixas, e com relevo menos vigoroso,
estando atualmente destinadas a outros usos.
No entanto, ao longo da história, Santa Maria faz parte das ilhas vinhateiras,
­preci­samente por dispor de áreas ecologicamente adequadas. Como referido, em determi­
nadas partes da ilha, as manchas dos vinhedos adquiriram uma extensão considerável
para a escala do território açoriano. É, a par da Graciosa, uma ilha tendencialmente
­menos húmida, e que foi produtora de vinhos apreciados no arquipélago.
O acesso aos «currais» de vinha marienses terá acentuado o seu abandono e
­passagem a mortórios. A ocorrência de movimentos de vertente é um fenómeno que
pode ter levado ao abandono de algumas vinhas situadas na orla costeira95. A dificul‑
dade física do acesso envolve esforços adicionais de mão de obra e, consequentemente,
­maiores custos de manutenção e de vindimas. Em virtude destas características, foi esta‑
belecida uma majoração nos apoios à reconversão das vinhas marienses.
Habitualmente, já no século XX, este trabalho sazonal nas principais extensões de
vinha da Maia e de São Lourenço recorria à mão de obra local, e era parcamente remu‑
nerado. A disponibilidade de força de trabalho ficou diminuída com a emigração para
o Canadá e os Estados Unidos da América, a par da criação de novas atividades econó­
micas na ilha96. Assim, a dificuldade em tornar rentável a produção de vinho é recorren‑
temente indicada como o principal obstáculo à recuperação das paisagens vinhateiras
marienses. Desta forma, a sobrevivência da atividade deriva da motivação pessoal de
alguns antigos vinhateiros e proprietários de vinhas97.

93
Dificuldades identificadas para o período entre o final do século XIX e 1950, SOUSA, 2004: 182, 184, 194-195,
­208-210; 2015: 151, 166, 170-171.
94
GASPAR, 2005: 335.
95
GASPAR, 2005: 332.
96
Em Santa Maria, a construção do aeroporto, na década de quarenta do século XX, ainda no contexto da Segunda
Guerra Mundial, terá sido a mais relevante.
97
FERREIRA, 1997: 37, 41-43, 45; REIS, 2021: 102-103.

284
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Foram também ocorrendo alterações do regime da posse das parcelas vinha­teiras:


de pertença das principais famílias proprietárias da ilha, num processo gradual de
­transferência, foram divididas e vendidas, resultando em propriedades na sua maioria
de ­pequena dimensão98.
Os emigrantes marienses desempenharam um papel considerável na transfor­
mação das propriedades na Maia e em São Lourenço: aproveitando a localização nas
baías, ­antigas construções de apoio às vinhas passaram a casas de veraneio99. Este
­processo, se, por um lado, aumentou a pressão urbanística, paralelamente, contribuiu
para manter o cultivo da vinha ou, pelo menos, para impedir a completa degradação
dos «currais» murados.
O abandono da atividade acarretou a perda dos conhecimentos e das t­écnicas
tradi­ cionais de cultivo, manutenção e produção, observando-se que os cuidados
prestados e a minúcia das tarefas do cultivo decaíam100. Adicionalmente, verificou-
-se um progressivo desinteresse no consumo de «vinho de cheiro», a par da maior
­preferência pelos vinhos oriundos de Portugal Continental101. Atualmente, em ­Santa
Maria, não existem estru­turas cooperativas, ou outras oficiais, destinadas ao apoio
à vinificação.
As propriedades marienses são de dimensão reduzida: entre 2000 e 800 m2 no caso
de parcelas maiores, e 50 m2 no caso das mais pequenas. Existe simultaneamente um
problema de atualização do cadastro: muitas heranças estão indivisas e/ou existe mesmo
um desconhecimento de quem são os proprietários.
O Recenseamento Geral Agrícola de 1989 registava, em Santa Maria, 132 ha de
vinha102. Para o início do século XXI, existe a indicação de uma área de exploração
de cerca de 60 ha e de um total de 225 explorações103. Na Maia e em São Lourenço,
­consi­deram-se atualmente recuperáveis aproximadamente 80 ha.

3.2. Principais iniciativas


Tal como notado por Medeiros104, a vinha açoriana caracteriza-se por uma «inserção
harmoniosa na paisagem rural do arquipélago», justificando-se ser do maior inte­
resse classificar e salvaguardar os valores paisagísticos, socioculturais e produtivos
­inerentes. O reconhecimento foi consagrado mundialmente pela UNESCO no caso

98
FERREIRA, 1997: 41, 62; ALBERGARIA, 2021: 278, 280-281.
99
No caso de São Lourenço, este processo está parcialmente documentado em FERREIRA, 1997. Seria, contudo,
­necessário um estudo detalhado da evolução da posse de propriedade.
100
É de sublinhar que, em virtude da evolução histórica do cultivo da vinha, em Santa Maria, tal como em São Miguel,
as práticas e o conhecimento estavam preferencialmente dirigidos para as vinhas híbridas e americanas.
101
MEDEIROS, 1994: 221; FERREIRA, 1997: 42, 71.
102
MEDEIROS, 1994: 224.
103
BASTOS, 2003: 69.
104
MEDEIROS, 1994: 227.

285
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

da paisagem picoense. Neste trabalho, procurou-se evidenciar e justificar a impor‑


tância das paisagens vinhateiras marienses, assim como da tradição vitivinícola que
ainda subsiste.
Em Santa Maria, a perda da viabilidade económica da vitivinicultura é a justifi­
cação corrente e consensual para o abandono das parcelas. Pode, assim, concluir-se que
foi a tradição produtiva e o consumo local que impediram a extinção da atividade. A par
da tradição local que ainda resta, há um interesse paisagístico e patrimonial das v­ inhas
marienses, que reconhecidamente extravasa o nível local. Essencialmente são estes
­fatores que têm contribuído para que, na ilha, pelo menos desde a década de noventa do
século XX, se vão mobilizando esforços dirigidos à recuperação das paisagens de vinha.
Em 1995, a Secretaria Regional da Agricultura e Pescas anunciou os apoios desti‑
nados à viticultura da Região Autónoma dos Açores. Com recurso às verbas do então
Quadro Comunitário de Apoio 1994-1999, foram criados incentivos à reestruturação
de vinha e incremento da qualidade do vinho. Para a produção de vinhos e licorosos de
qualidade as ajudas restringiram-se às ilhas Graciosa, Pico e Terceira. No que respeitava
aos apoios dirigidos a vinhos e uvas de mesa, as ajudas podiam ser acedidas pelos viticul‑
tores de todo o arquipélago. As condições estabelecidas para o acesso obrigavam a que
se fosse possuidor de vinhas abandonadas, assim como ao compromisso da recuperação
dos respetivos currais ou lagidos105.
Em 2018, arrancou o Projeto de Revitalização e Valorização da Paisagem Cultural
da Vinha de Santa Maria. Trata-se de uma parceria mobilizadora de diferentes entidades
locais e regionais, nomeadamente: Câmara Municipal de Vila do Porto, empresa Sustain
Azores, Universidade dos Açores, Parque Natural da Ilha de Santa Maria, Serviço de
Desenvolvimento Agrário e Direção Regional da Cultura. O objetivo principal reside
na recuperação da paisagem cultural das baías da Maia e São Lourenço. Sendo uma
­paisagem não formalmente reconhecida, foi iniciado um processo de classificação junto
da Direção Regional da Cultura dos Açores106.
Em termos da agricultura, existem diversos apoios dirigidos ao cultivo da vinha,
nomeadamente através do Regime POSEI — Apoio às regiões ultraperiféricas e do
PRORURAL+. Especificamente, tem vigorado anualmente o VITIS — Regime de apoio
à reestruturação e reconversão de vinhas, cujo objetivo é o «aumento da competitivi­
dade do setor vitivinícola através da reestruturação da vinha e melhoria da qualidade do
vinho»107. Existem apoios disponíveis para a exploração, nomeadamente na manutenção
de vinha orientada para a produção de vinhos com denominação de origem e vinhos
com indicação geográfica, e para a manutenção das «curraletas». Na campanha anual
de 2020-2021, as três castas prioritárias foram: Arinto dos Açores, Terrantez do Pico
105
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Secretaria Regional da Agricultura e Florestas, 1995a, 1995b.
106
As iniciativas apresentadas a partir deste parágrafo resultam da informação obtida nas reuniões exploratórias.
107
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Secretaria Regional da Agricultura e Florestas, 2019.

286
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

e ­Verdelho108. Dentro dos apoios ao investimento, existem os destinados aos equipa­


mentos. A ilha de Santa Maria, pelas características das suas principais manchas de
vinha, foi alvo de adequação e/ou majoração de apoios destinados a: preparação dos
terrenos; sendo a reconstituição dos muros especificamente para «muros de suporte de
terras». No âmbito das medidas existentes, em 2020, foi possível avançar com a recon‑
versão de quatro hectares de vinha. Tem existido um trabalho articulado e orientação
técnica entre os Serviços de Desenvolvimento Agrário de Santa Maria e os serviços
­congéneres do Pico. Foi realizada formação junto dos produtores interessados e encon‑
tra-se em preparação um projeto de instalação de estruturas de vinificação, enquadrado
na cooperativa agrícola.
Pela participação no projeto europeu RURITAGE, financiado pelo p ­rograma
­Horizonte 2020 e coordenado pela Universidade de Bolonha, através dos casos das
­paisagens de vinha da Maia e de São Lourenço, foi desenvolvido um processo de
­inovação sistémica que enfoca a importância do equilíbrio entre a conservação e a
­requalificação do património rural. Este trabalho sistémico procura que as ações de
rege­neração ­tenham em conta os interesses ambientais, agrícolas e culturais inerentes a
estas paisagens109.
Foram levadas a cabo iniciativas de reconhecimento, inventariação e estudo do
património, bem como de divulgação da paisagem de vinha. A título de exemplo,
pode referir-se o trabalho de integração de Santa Maria nas rotas de ­enoturismo
­nacionais e regionais. Um exemplo desta orientação para fins turísticos está materia‑
lizado nas ­«Rotas Açores — Itinerários Culturais e Paisagísticos», com a integração de
São ­Lourenço na «Rota das Vinhas»110.
Finalmente, foi recomendado o acompanhamento dos trabalhos sobre heroic
viti­culture promovidos pelo Center for Research, Study, Safeguarding, Coordination
and Valorisation of Mountain Viticulture — CERVIM, na medida em que as vinhas
­marienses se enquadram nesta tipologia111.
O IV Congresso Mundial ITLA — Territórios de Terraços e Socalcos, organizado nas
Canárias, em 2019, promoveu diversas viagens de reconhecimento aos territórios da
Macaronésia, e que incluíram a ilha de Santa Maria. Neste âmbito, o Governo Regional
dos Açores indicou a relevância paisagística do cultivo das vinhas marienses e a impor‑
tância de implementar medidas para a sua recuperação e valorização112.

108
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Direção Regional do Desenvolvimento Rural, 2019.
109
RUGHI, 2019: 21-22.
110
Disponível em <https://rotas.azores.gov.pt/wineroute/>. [Consult. 20 mai. 2022].
111
ALBERGARIA, 2021: 273.
112
AÇORES. Governo, 2019.

287
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

4. REFLEXÕES CONCLUSIVAS
Aqui ninguém vive do vinho. Mesmo que se quisesse, era difícil. Aqui, faz-se o
vinho para ir vivendo e honrando o legado. Se não se fizer nada, dentro de poucos anos
esta extraordinária paisagem vinhateira vai ser completamente comida pela vege­tação.
Há séculos de história condensados naqueles quartéis de pedra seca. Num mundo cada
vez mais igual, são lugares como estes que nos distinguem do resto do mundo113.

Retomando aquele que é o objetivo central do presente estudo — identificar os


v­ alores emanados das paisagens vinhateiras de Santa Maria —, finaliza-se com um
­resumo ­destes valores, aos quais se seguem reflexões conclusivas.
Partindo da ideia genérica e potencialmente consensual de que as paisagens
­vinhateiras de Santa Maria devem manter um carácter funcional e ser recuperadas,
valori­zadas e conservadas na dupla ótica da sustentabilidade e resiliência, passa-se a
­descrever num formato de quadro-resumo os valores identificados, e que desejavel­
mente devem estar presentes no desenho dos processos associados à recuperação
das vinhas.

Tabela 1. Valores paisagísticos das paisagens de vinha da ilha de Santa Maria, Açores

Valores paisagísticos

Património construído, como os muros de pedra seca, escadórios, lagares, entre outros.
Foi já reconhecido no Inventário do Património Imóvel dos Açores (2005) que existe uma relevância forte das p
­ aisagens
de vinha de Santa Maria, surgindo a Maia e São Lourenço como «unidades paisagísticas construídas»; e estando em
curso junto da Direção Regional da Cultura dos Açores um pedido de classificação destas paisagens.

Cultivo de vinha em socalcos, num modelo de agricultura adequado às características físicas do território, que
permite um grau elevado de eficiência agroecológica. Será bastante relevante atender aos processos em curso em
unidades paisagísticas com afinidades, nomeadamente nos territórios insulares da Madeira e das Canárias.

Convivência de diferentes usos do território, que origina paisagens de forte impacto visual, genericamente
­caracterizadas por uma harmonia entre os diferentes elementos que as compõem. Esta característica obriga à
neces­sidade da gestão e do ordenamento do território equilibrarem os diferentes usos.

«Currais» de vinha enquanto espaços que integram o Parque Natural da Ilha de Santa Maria, estando inseridos
em «áreas de paisagem protegida» (Baía da Maia e de São Lourenço) ou «área protegida de gestão de recursos»
(Costa Norte). Será relevante valorizar as funções ecológicas de uma paisagem humanizada que permite, por
exemplo, minorar os efeitos da erosão das arribas. A conservação tem necessariamente de ser multifacetada e sisté-
mica, atendendo a todos os elementos presentes na paisagem.

113
GARCIAS, 2018.

288
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

Tabela 2. Valores socioculturais das paisagens de vinha da ilha de Santa Maria, Açores

Valores socioculturais

Conhecimento — parcialmente perdido — de práticas e técnicas de cultivo e manutenção de vinha, acumu­


ladas e aperfeiçoadas ao longo de gerações, na sua interação com o meio. A recuperação, valorização e aprofunda-
mento deste conhecimento são essenciais para os objetivos de recuperação paisagística.

Importância histórica da produção e do comércio do vinho produzido em Santa Maria, com relevância em
termos de estudos e de investigação, mas que permite, ainda, a identificação de sinergias com diversas atividades
económicas. Existe toda uma herança histórica e patrimonial que pode ser mobilizada para alavancar ações desti­
nadas à recuperação das vinhas.

Riqueza cultural composta por tradições de cultivo, produção e consumo que remontam ao povoamento, ou que
podem ser mais recentes (caso do «vinho de cheiro»). A importância que o vinho tem assumido na cultura açoriana,
transversal a domínios, como a gastronomia ou as festividades, encerra um conjunto de valores que se justifica
manter e revitalizar.

Tabela 3. Valores produtivos das paisagens de vinha da ilha de Santa Maria, Açores

Valores paisagísticos

Potencial para produzir vinhos de qualidade e dirigidos a mercados mais vastos, atendendo às condições criadas
pela Indicação Geográfica «Açores» e eventuais possibilidades de futuras «DOP — Denominações de Origem Prote-
gida» e pelos incentivos dados à reconversão das vinhas.

Manutenção da produção tradicional, como o «vinho de cheiro», ou o «abafado». Enquanto produtos tradicionais,
desenvolvidos e consumidos localmente, justificam uma atenção renovada, mesmo não estando enquadrados nos
incentivos agrícolas.

Produção vitivinícola enquanto atividade de rendimento agrícola, que pode beneficiar, mesmo que comple-
mentarmente, os proprietários de vinha.

Os valores identificados podem ser equacionados e mobilizados sob diferentes


perspetivas que, seguramente, darão diferentes formas e rumos ao processo de recupe‑
ração da atividade vitivinícola que está já em marcha. Sendo os motivos de conservação
do património material e imaterial suficientemente fortes para preservar estas paisagens,
seriam, por si só, incapazes de abarcar toda a riqueza que está em causa. Assim, manter
estas paisagens produtivas e consonantes com a sua função de origem tem sido a opção
preferencial e seguramente um passo importante para reverter o seu abandono.
Em processos de recuperação de paisagem é sempre útil ter em conta ­realidades
seme­lhantes ou aproximadas. Neste estudo, olhou-se já pontualmente para o caso das
Canárias, onde se vislumbram diversas afinidades. Nomeadamente, os socalcos de
La Gomera, que revelam paisagens idênticas às marienses, têm assim sido equacio­nados
e valorizados sob a perspetiva da manutenção dos sistemas agroecológicos que lhes
estão subjacentes.

289
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Os socalcos são uma forma de uso do solo ecologicamente sustentável: p ­ reservam


a paisagem e a diversidade biocultural e protegem a qualidade da água e do solo.
­Constituem, assim, uma forma de prática agrícola que pode cumprir objetivos de resi‑
liência, garantindo a prestação continuada dos serviços dos ecossistemas114.
As paisagens em socalcos são justamente a expressão do conhecimento campesino
de gestão agroecológica do território para conseguir produzir alimentos sob condições
limitadoras como é o caso da escassez de solo fértil em regiões montanhosas. Nesta
medida, a sua conservação, quando é feita após o abandono, requer que, numa primeira
etapa, se recupere a funcionalidade. Caso não se observe esta condição, a recuperação
e conservação consubstanciam-se em paisagens «mortas». Manter a produção agrícola
perante dificuldades como o acesso às parcelas, ou a quase impossibilidade de mecani‑
zação, constitui um desafio. Uma das condições essenciais é, naturalmente, a valorização
dos produtos resultantes destas agriculturas115.
No caso de La Gomera, observou-se que o rompimento com o modelo econó­
mico agropastoril anterior à década de oitenta do século XX levou ao abandono gradual
dos socalcos (bancales), iniciando-se um processo de desapropriação social. Na ótica da
análise patrimonial, esta é a consequência esperada quando a paisagem, que é dinâmica,
deixou de cumprir a função socioeconómica para a qual foi construída. Desta forma,
a preservação das paisagens implica não só o reconhecimento dos seus valores patrimo‑
niais e culturais, mas, também, o sentimento de pertença coletiva que permite conservar
e transmitir esses valores116.
Ainda nas Canárias, é reconhecido que a vitivinicultura persistiu após um ­período
de contração do mercado externo graças a duas condições: o mercado local e a e­ xistência
de solos pobres, dificilmente adequados a outras culturas. Face a estes dois aspetos,
­tornou-se possível garantir um legado de grande valor, que, além de preservado, tem
vindo a ser revitalizado117.
Num reconhecimento geral das potencialidades que o património encerra, quer em
termos socioculturais quer em termos económicos, o Inventário Açoriano a­ ssinala como
a individualidade de cada ilha, o seu tipo de ocupação e as suas atividades se ­encontram
sintetizados nesse mesmo património imóvel. Justificou-se, assim, a decisão de inven­
tariar os diversos elementos «com qualidade intrínseca e significativa» e com ­«valor
coletivo, social ou cultural»118. Desta orientação, resultou a inclusão das paisagens
­
vinhateiras marienses.

114
AGNOLETTI, 2019: VI.
115
PERDOMO MOLINA, 2019: 16.
116
ROMERO MARTÍN, 2020: 127-128.
117
MACÍAS HERNÁNDEZ, 2005: 363.
118
BRUNO, 2005.

290
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

O trabalho em curso para Santa Maria inclui propostas de valorização da p ­ aisagem


que abrangem os aspetos estéticos, mas não esquecendo a importância de manter a
­produção vitivinícola, o reforço do conhecimento da história, da ­transmissão da ­memória
e da identidade cultural inerentes a este património vinhateiro. Nesta ­medida, os ­muros
de pedra seca e o reconhecimento pela UNESCO desta arte ­enquanto ­Patri­mónio
­Cultural Imaterial devem ser um dos elementos a valorizar nas paisagens vinhateiras de
Santa Maria119.
A dificuldade em tornar rentável o cultivo da vinha e a produção do vinho p ­ arece
ser o principal obstáculo em Santa Maria. Assim, a recuperação da paisagem, que ­assenta
­largamente na disponibilidade dos proprietários dos «quartéis» para levar a cabo o
­trabalho, tem progredido dentro de alguma complexidade. A disponibilização de apoios
públicos, podendo estimular, não parece ainda constituir, por diferentes motivos,
o ­elemento determinante e mobilizador. A maior adequação destes benefícios à realidade
de Santa Maria, nomeadamente as majorações e a dinamização de estruturas de apoio,
poderá, contudo, motivar um maior número de proprietários.
Conclui-se considerando que as iniciativas de recuperação beneficiarão se se
arti­cularem mais vigorosamente com o mosaico das atividades económicas da ilha.
A escala e as características do cultivo da vinha observados em Santa Maria podem não
viabi­lizar a recuperação sustentável e resiliente da paisagem caso o objetivo primordial
seja a p­ rodução vitivinícola rentável. Neste sentido, parece coerente que, para alcançar
o objetivo da recuperação paisagística, exista não só a integração das vinhas no setor
agrícola, mas que se faça uso das complementaridades existentes com as atividades
de conservação ambiental, patrimoniais-culturais, educativas-académicas e turísticas.
No entanto, parece essencial não perder de vista aquele que foi o garante da sobrevi­
vência desta atividade no arquipélago: o consumo local e regional dos vinhos produ­
zidos nas diferentes ilhas.

119
RUGHI, 2019: 49-51.

291
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

AGRADECIMENTOS
Sem pretender vincular os nomes mencionados às conclusões do presente estudo,
a ­autora agradece os contactos e reuniões exploratórias tão amavelmente concedidos
por: Alessia Rughi — Universidade de Bolonha | Graça Morais — vereadora da C­ âmara
Muni­cipal de Vila do Porto | Isabel Albergaria — professora da Universidade dos
­Açores | Isabel Mendes — técnica do Serviço de Desenvolvimento Agrário de Santa­
Maria — Secretaria Regional da Agricultura e do Desenvolvimento Rural | Joana
­Coutinho — fundadora e consultora da Sustain Azores | Manuel Amorim — ­mestrando
da Facul­dade de Ciências da Universidade do Porto | Paulo Ramalho — antropó­logo
| Rita ­Câmara — diretora do Parque Natural da Ilha de Santa Maria — Serviço de
Ambiente e Alterações Climáticas de Santa Maria | Rosa Sousa — proprietária
de vinhas em São Lourenço | Rui Andrade — proprietário de vinhas na Maia.

A autora está igualmente grata pelos comentários e sugestões de melhoria apresen‑


tados na revisão por pares.

BIBLIOGRAFIA
AÇORES. Governo (2019). Marta Guerreiro sublinha intercâmbio entre territórios da Macaronésia nas
políticas de paisagem. [Consult. 19 fev. 2022]. Disponível em <https://www.azores.gov.pt/Gra/srrn-
natureza/conteudos/noticias/2019/Junho/Marta+Guerreiro+sublinha+interc%C3%A2mbio+en‑
tre+territ%C3%B3rios+da+Macaron%C3%A9sia+nas+pol%C3%ADticas+de+paisagem.htm?lan‑
g=pt&area=ct>.
AÇORES. Governo (2022). Rotas Açores | Itinerários Culturais e Paisagísticos. [Consult. 20 mai. 2022].
­Disponível em <https://rotas.azores.gov.pt/wineroute/>.
AGNOLETTI, Mauro (2019). Series Editor’s Preface. In VAROTTO, Mauro; BONARDI, Luca; ­TAROLLI,
Paolo, eds. World terraced landscapes: history, environment, quality of life. Berlim: Springer, pp. V-VII.
(ENVHIS; 9).
ALBERGARIA, Isabel (2021). A paisagem da vinha em Santa Maria: génese e evolução de uma «viticultura
heroica» nos Açores. In CHAVES, Duarte, coord. Viagens à volta da mesa nas ilhas da Macaronésia
— Itinerários turísticos do património gastronómico e vinícola. Ponta Delgada: Edições Letras Lavadas,
pp. 269-282.
ASTIER, Marie (2017). Des paysans cévenols font renaître des vins issus des cépages «interdits». «Reporterre».
[Consult. 22 fev. 2022]. Disponível em <https://reporterre.net/Des-paysans-cevenols-font-renaitre-
des-vins-issus-des-cepages-interdits>.
BASTOS, Sérgio (2003). Um olhar geográfico sobre Santa Maria. Vila do Porto: Edição CADEP-CN — Clube
dos Amigos e Defensores do Património-Cultural e Natural.
BONARDI, Luca (2019). Terraced vineyards in Europe: the historical persistence of highly specialised regions.
In VAROTTO, Mauro; BONARDI, Luca: TAROLLI, Paolo, eds. World terraced landscapes: history,
environment, quality of life. Berlim: Springer, pp. 7-25. (ENVHIS; 9).
BRUNO, Jorge Paulus (2005). O Método. In INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA. Inventário do
Patri­mónio Imóvel dos Açores. [Consult. 29 jan. 2022]. Disponível em <https://www.iac-azores.org/
iac2018/projetos/IPIA/metodo.html>.

292
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

CHAVES de, Serafim (1983). Império — Função do Divino Espírito Santo na Ilha de Santa Maria, Açores.
Vila do Porto: Edição da Câmara Municipal de Vila do Porto.
CID, Isabel (1979). O porto de Ponta Delgada em 1801. Subsídios para o seu estudo. «Boletim do Instituto
Histórico da Ilha Terceira». XXXVII, 139-229. [Consult. 7 fev. 2022]. Disponível em <http://ihit.pt/
pt/boletins>.
CONSTÂNCIA, João (1982). A ilha de Santa Maria: evolução dos principais aspectos da sua paisagem huma-
nizada (sécs. XV a XIX). «Arquipélago». 4, 225-244. [Consult. 29 jan. 2022]. Disponível em <http://
hdl.handle.net/10400.3/599>. (Série Ciências Humanas).
COSTA, Manuel (2018). Paisagem da Cultura da Vinha da Ilha do Pico. In LAGE, Otília, coord. Alto Douro e
Pico — Paisagens Culturais Vinhateiras, património mundial em perspetiva multifocal: experimentação
comparada. Porto: CITCEM, pp. 47-61.
COSTA, Manuel (2019). Muros de basalto negro: um repositório da geodiversidade, da biodiversidade e da
­história da ilha do Pico. In PEREIRA, Gaspar Martins; AMORIM, Maria Norberta; LAGE, Maria Otília
Pereira, coords. Douro e Pico — Paisagens culturais património mundial. Porto: CITCEM, pp. 7-19.
COSTA, Ricardo (2003). Os Açores em finais do regime de Capitania Geral — 1800-1820. Ponta Delgada:
Universidade dos Açores. Tese de doutoramento.
EUROPA. Conselho da (2000). Convenção Europeia da Paisagem. Florença. [Consult. 06 fev. 2022]. Dispo‑
nível <https://www.coe.int/en/web/landscape/text-of-the-european-landscape-convention>.
FERNANDES, José; JANEIRO, Maria de Lurdes; MESTRE, Vítor (2000). Santa Maria. In TOSTÕES,
Ana et al. Concep. Geral Arquitectura Popular dos Açores. Lisboa: Ordem dos Arquitectos, pp. 30-81.
FERREIRA, Adriano (1997). São Lourenço — Um recanto de sonho. Santa Maria: Edição do Círculo de
Amigos de São Lourenço.
FIGUEIREDO, Jaime (1957). Impérios Marienses — Folclore Açoriano. Lisboa: C. de Oliveira, Limitada.
FIGUEIREDO, Jaime (1990) [1954]. Ilha de Gonçalo Velho — da Descoberta até ao Aeroporto. Vila do Porto:
Edição da Câmara Municipal de Vila do Porto.
GARCIAS, Pedro (2018). Tens de vir a Santa Maria antes que estas vinhas desapareçam. «Público». (28 jul.
2018). [Consult. 02 fev. 2022]. Disponível em <https://www.publico.pt/2018/07/28/fugas/opiniao/
tens-que-vir-a-santa-maria-antes-que-estas-vinhas-desaparecam-1838985>.
GASPAR, José (2005). Os Bons e os Maus — Vinhos e Categorias Nativas nos Açores. Lisboa: Instituto
­Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Tese de doutoramento.
GIL, Maria Olímpia (1981). Os Açores e a nova economia de mercado (séculos XVI-XVII). «Arquipélago
— Série Ciências Humanas». 3, 371-425. [Consult. 02 fev. 2022]. Disponível em <http://hdl.handle.
net/10400.3/588>.
GIL, Maria Olímpia (1982). Açores — Comércio e comunicações nos séculos XVI e XVII. «Arquipélago». 4,
349-415. [Consult. 02 fev. 2022]. Disponível em <http://hdl.handle.net/10400.3/604>. (Série Ciências
Humanas).
GIL, Maria Olímpia (1983). Os Açores e o comércio Atlântico nos finais do século XVII (1680-1700). «Arqui­
pélago». Número Especial, 137-204. [Consult. 19 fev. 2022]. Disponível em <http://hdl.handle.
net/10400.3/655>. (Série Ciências Humanas).
INSTITUTO AÇORIANO DE CULTURA (2005). Santa Maria — Vila do Porto. Inventário do Património
Imóvel dos Açores. [Consult. 29 jan. 2022]. Disponível em <https://www.iac-azores.org/iac2018/pro‑
jetos/IPIA/index.html>.
INE (2021). Censos 2021 — Resultados provisórios. [Consult. 04 jan. 2022]. Disponível em <https://www.ine.
pt/scripts/db_censos_2021.html>.
JOÃO, Maria Isabel (1991). Os Açores no século XIX — Economia, Sociedade e Movimentos Autonomistas.
Lisboa: Edições Cosmos.

293
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

JOÃO, Maria Isabel (1992). Economia e desenvolvimento dos Açores numa perspectiva histórica. «Boletim do
Instituto Histórico da Ilha Terceira». L, 289-305. [Consult. 20 jan. 2022]. Disponível em <http://ihit.
pt/pt/boletins>.
LIMA, Hélder (1960). Os Açores na economia Atlântica — Contribuição para o seu estudo nos séculos XV, XVI
e XVII. «Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira». XXXIV, 103-390. [Consult. 20 jan. 2022].
Disponível em <http://ihit.pt/pt/boletins>.
MACHADO, Marianno (1870). Uma viagem à ilha de Sancta Maria. São Miguel: Tip. De M. A. Tavares
Resende.
MACÍAS HERNÁNDEZ, Antonio (2005). El paisaje vitícola de Canarias. Cinclo siglos de historia.
«Ería». 68, 351-364. [Consult. 06 fev. 2022]. Disponível em <https://dialnet.unirioja.es/servlet/
articulo?codigo=1987730>.
MADRUGA, João; BORBA, Alfredo (2017). A Importância da Capitania-Geral na evolução económica dos
Açores. In MENDES, João; COSTA, Ricardo, eds. Actas da Conferência Comemorativa dos 250 anos
da Capitania Geral dos Açores. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, pp. 79-108.
MEDEIROS, Carlos (1994). Contribuição para o estudo da vinha e do vinho nos Açores. «Finisterra».
XXIX:58, 199-229. DOI: 10.18055/Finis1832.
MENESES, Avelino (2011). O vinho na história dos Açores — a introdução, a cultura e a exportação. «Arqui‑
pélago». 2:XIV-XV, 177-186.
MORELET, Arthur (1860). Notice sur l’histoire naturelle des Açores. Paris: J. B. Baillière et Fils.
PERDOMO MOLINA, Antonio (2019). Recuperando bancales: ¿taxidermistas del paisaje o revitalizadores de
su función productiva? In PALERM SALAZAR, Juan, dir. Re-Encantar Bancales — Habitar en terri­
torios de terrazas y bancales — Conclusiones del IV Congreso Mundial ITLA 2019 y Declaración de La
Gomera. Canarias: Ed. Gobierno de Canarias, Canarias Cultura en Red, Observatorio del Paisaje de
Canarias, p. 16. DOI: 10.5281/zenodo.5938505.
PORTUGAL. Ministério da Agricultura (1935). Lei n.º 1891. «Diário do Governo Série I». 67 (1935-03-23)
423-425.
PORTUGAL. Ministério da Agricultura (1938). Decreto-Lei n.º 28 783. «Diário do Governo Série I». 143
(1938-06-23) 1000-1001.
PORTUGAL. Ministério da Agricultura (1994). Decreto-Lei nº 17/94. «Diário da República Série I-A.», 20
(1994-01-25) 354-356.
RAMALHO, Paulo (2021). Lagares rupestres da ilha de Santa Maria. Vila do Porto: Edição da Câmara
­Municipal de Vila do Porto.
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Secretaria Regional da Agricultura e Pescas (1995a). Portaria
n.º 25/95. «Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores I Série». 17: Suplemento (1995-04-27).
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Secretaria Regional da Agricultura e Pescas (1995b). Portaria
n.º 47/95. «Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores I Série». 29 (1995-07-20).
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Assembleia Legislativa (2008). Decreto Legislativo Regional
n.º 47/2008/A. «Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores I Série». 217 (2008-11-13).
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Assembleia Legislativa (2012). Decreto Legislativo Regional
n.º 39/2012/A. «Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores I Série». 147 (2012-09-19).
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Direção Regional do Desenvolvimento Rural (2019). Aviso de
abertura para a submissão de candidaturas VITIS — Campanha 2020-2021. [Consult. 17 mar. 2023].
Disponível em <https://portal.azores.gov.pt/documents/37730/962681/AvisoVITIS1.pdf/0daa48e‑
3-a701-1f1b-8b94-2e520b05be0b?t=1597335373658>.
REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Secretaria Regional da Agricultura e Florestas (2019). Portaria
n.º 78/2019. «Jornal Oficial da Região Autónoma dos Açores I Série». 130 (2019-11-08).

294
A VINHA NA ILHA DE SANTA MARIA, AÇORES — RECUPERAÇÃO E RESILIÊNCIA DE VALORES PAISAGÍSTICOS,
SOCIOCULTURAIS E PRODUTIVOS

REGIÃO AUTÓNOMA DOS AÇORES. Secretaria Regional do Ambiente e Alterações Climáticas (2022).
Parque Natural de Santa Maria | Áreas Protegidas. [Consult. 23 fev. 2022]. Disponível em <https://
parquesnaturais.azores.gov.pt/pt/parques/2/areasprotegidas>.
REIS, Rosélio (2021). As vinhas. In REIS, Rosélio. Instantes do Passado II. Lisboa: Chiado Books, p
­ p. 99-103.
ROMERO MARTÍN, Lidia (2020). Los bancales como señas de identidades de los gomeros: uma m ­ irada
al territorio. In PALERM SALAZAR, Juan, dir. Re-Encantar Bancales — Habitar en territorios de
­terrazas y bancales — Conclusiones del IV Congreso Mundial ITLA 2019 y Declaración de La Gomera.
Canarias: Ed. Gobierno de Canarias, Canarias Cultura en Red, Observatorio del Paisaje de Canarias,
pp. 127-135. DOI: 10.5281/zenodo.5938505.
RUGHI, Alessia (2019). Valorizzazione del paesaggio vitivinicolo di Santa Maria: I casi dei vigneti di São
Lourenço e di Maia. Bologna: Università di Bologna. Dissertação de mestrado.
SILVA, José (1995). Pedras da Maia — Santa Maria. Vila do Porto: Edição da Câmara Municipal de Vila do
Porto.
SILVA, José (1999). O Sul de Nossa Senhora da Boa Morte. Vila do Porto: Edição da Câmara Municipal de
Vila do Porto.
SILVA, José (2001). Basalto Azul — S. Lourenço, ilha de Santa Maria. Vila do Porto: Edição da Câmara
Municipal de Vila do Porto.
SILVA, Maria Júlia (1999). A importância das Ilhas Atlânticas no comércio dos mercadores estrangeiros
— sobretudo ingleses — nas primeiras décadas do século XVIII. «Boletim do Instituto Histórico da Ilha
Terceira». LVII, 205-234. [Consult. 21 jan. 2022]. Disponível em <http://ihit.pt/pt/boletins>.
SOUSA, Paulo (2004). Para uma História da vinha e do vinho nos Açores (1750-1950). «Boletim do Instituto
Histórico da Ilha Terceira». LXII, 115-217. [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <http://ihit.pt/pt/
boletins>.
SOUSA, Paulo (2015). Produzir na Periferia: a Vinha e o Vinho na ilha Graciosa, 1800-1950. In VI Colóquio
O Faial e a Periferia Açoriana nos séculos XV a XX. Horta: Edição do Núcleo Cultural da Horta,
pp. 149-174.
UNIÃO EUROPEIA. Parlamento e Conselho (2013). Regulamento (EU) n. ° 1308/2013. «Jornal Oficial da
União Europeia». L347 (2013-12-20) 671-854. [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <http://data.
europa.eu/eli/reg/2013/1308/oj>.
VIEIRA, Alberto (1990). Breviário de vinha e do vinho na Madeira. Ponta Delgada: Marinho Matos
— ­Eurosigno Publicações, Lda.
VIEIRA, Alberto (2003). A vinha e o vinho na História da Madeira. Séculos XV a XX. Funchal: Centro de
Estudos de História do Atlântico.
VISEU, Albano (2018). Alto Douro e Pico — Territórios de pedra, territórios de vinha: como o relevo pode
condi­cionar ou definir a cultura vínica (1850-1970). In LAGE, Otília, coord. Alto Douro e Pico
—P ­ aisagens Culturais Vinhateiras, património mundial em perspetiva multifocal: experimentação
compa­rada. Porto: CITCEM, pp. 38-46.

295
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

296
IV
GESTÃO E SALVAGUARDA
DA PAISAGEM CLASSIFICADA

297
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

298
O SISTEMA DE GESTÃO
E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO
VINHATEIRO, PATRIMÓNIO
DA HUMANIDADE — REFLEXOS
E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO
ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA
HELENA TELES*

Resumo: Decorridos vinte anos sobre a classificação do Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial
(ADVPM) pela UNESCO, na categoria de paisagem cultural, evolutiva e viva, a entidade gestora, propõe,
como abordagem ao tema — Gestão e salvaguarda da paisagem classificada —, uma reflexão isenta
sobre os resultados alcançados com a implementação do atual sistema de gestão e monitorização.
A proximidade com o território e a interação proativa e pedagógica com os seus principais agentes têm
tido resultados e reflexos concretos na salvaguarda e valorização da paisagem vinhateira.
Palavras­‑chave: gestão; monitorização; interação; resultados; salvaguarda.

Abstract: Twenty years after the Alto Douro Wine Region classification as World Heritage by UNESCO,
in the category of cultural, evolutional and living landscape, the management entity proposes to address
the theme — Management and safeguarding the classified landscape — by presenting an exempted
­reflection on the results achieved with the implementation of the current management and monitoring
system. The proximity to the territory and the proactive and pedagogical interaction with its main agents
have had concrete results and reflexes in the safeguard and enhancement of this vineyard landscape.
Keywords: management; monitoring; interaction; results; safeguard.

Dando continuidade à parceria estabelecida com o CITCEM, da Faculdade de Letras


da Universidade do Porto, para a prossecução do projeto Douro e Pico — Paisagens
­Culturais Património Mundial, a Missão Douro tem a honra de participar neste S­ impósio
Europeu Paisagens Culturais da Vinha, num reforçado compromisso com o território,
os seus agentes e a chancela UNESCO, quando se celebram vinte anos da classificação do
Alto Douro Vinhateiro como Património Mundial.
A participação neste projeto, nomeadamente nos três workshops anteriormente
realizados, foi determinante para a comunicação e promoção dos atributos e valores
intrínsecos deste sítio, bem como do sistema de gestão e monitorização que tem vindo
a ser implementado.

* Licenciada em engenharia civil pela Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, é chefe de Estru­
tura ­Sub-regional de Vila Real da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N);
Gabinete Técnico da Missão Douro.

299
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Assinalar esta data com um evento científico e cultural desta amplitude confi­gura
uma mais-valia excecional, não só do ponto de vista da consolidação e difusão de conhe­
cimentos, decorrentes da participação de especialistas e investigadores concei­tuados,
oriundos de vários pontos da Europa, mas também pela partilha de expe­riências e estrei­
tamento de parecerias, fundamentais para a gestão diária do vasto território ­duriense.
Está ainda em causa o reforço de uma plataforma de cooperação que nos p ­ ermita
­enfrentar os desafios que se colocam à região e suas populações, tirando partido dos
ativos inerentes à classificação e ao reconhecimento mundial do seu Valor Universal
Excecional (VUE).
Com efeito, este é o momento de promover uma reflexão sobre a evolução ­recente
do território, repensando o futuro de forma prospetiva, envolvendo e valorizando o
apoio de todos aqueles que, diariamente, concorrem com o seu trabalho, conhecimento
e liderança para a salvaguarda deste património, a construção da paisagem e o desen‑
volvimento da região, personificados no Duriense, anónimo construtor da paisagem,
e em instituições como o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, a Liga dos Amigos do
Alto Douro Vinhateiro, a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a Associação
de Empresas do Vinho do Porto e, como não poderia deixar de ser, a Comissão Nacional
da UNESCO e o ICOMOS Portugal, parceiros de relevo nesta missão conjunta.
Enfrentamos um futuro incerto e exigente, indissociável dos efeitos das alterações
climáticas, das crises socioeconómicas e sanitárias que nos afetam, veja-se a crise pandé‑
mica ainda em curso e as suas repercussões nos setores vitivinícola e turístico da região.
Como tal, é imperativo reforçar a apropriação dos valores intrínsecos à chan‑
cela UNESCO, consolidar a identidade coletiva em torno de uma herança secular,
incorporando novos fatores de sucesso com a inovação, a tecnologia, a competitividade,
a capacitação e fixação de recursos humanos, como forma de potenciar a região de
­forma integrada e sustentável.
Neste contexto, a comunicação da Missão Douro pretende abordar os principais
­desafios associados à operacionalização do sistema de gestão e monitorização, f­ ocando
alguns dos resultados alcançados, no que concerne à preservação e salvaguarda
­
da paisagem.
A partir de uma apresentação sucinta sobre os atributos que conferem VUE ao
Alto Douro Vinhateiro, realçam-se as intervenções que mais têm concorrido para a sua
­evolução, em particular a reconversão da vinha e manutenção dos muros de p ­ edra ­posta
de xisto. Destaque ainda para o papel do vitivinicultor duriense enquanto ­principal
­agente de transformação do território e guardião de saberes e tradições associados à
­cultura da vinha, um interlocutor ativo no que toca à disseminação e incorporação de
boas-práticas, técnicas e materiais tradicionais, imprescindíveis à preservação do patri­
mónio, potenciando, em simultâneo, a sustentabilidade económica do setor. Ao l­ongo
dos anos, a entidade gestora tem privilegiado o contacto direto com estes agentes,

300
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA

por via da sensibilização e aconselhamento técnico no local, da formação e capacitação


e ainda da transmissão geracional do conhecimento tradicional, determinantes para a
manutenção do carácter antrópico desta paisagem vinhateira, enquanto herança coletiva
multissecular, numa gestão adaptativa, pedagógica e proativa.

1. IDENTIDADE E VALOR UNIVERSAL EXCECIONAL DO ALTO


DOURO VINHATEIRO
Localizado no interior norte do país, ocupando uma área de 24 600 ha ao longo do vale
do rio Douro, o Alto Douro Vinhateiro constitui a mancha mais representativa e bem
preservada da secular Região Demarcada do Douro, com uma área total de 250 mil ha,
que coincide, na generalidade, com a sua Zona Especial de Proteção (ZEP).
A paisagem vinhateira, tal como hoje a conhecemos, resulta da conjugação de
­inúmeros fatores e do trabalho, persistência e perseverança do Homem duriense na
apropriação e adaptação das condições naturais adversas à cultura da vinha. Com efeito,
características biofísicas do território condicionam a ocupação do solo, determinam a
sistematização e armação do terreno das vinhas, a alternância com outras culturas e,
consequentemente, as atividades económicas da região.
O vale encaixado do rio Douro e a sua rede de afluentes marcada por vertentes
abruptas e xistosas obrigaram o Homem duriense a um esforço hercúleo na modelação
do terreno para adaptação dos sistemas de cultivo da vinha, trabalho manual que só
recentemente tem vindo a ser parcialmente mecanizado. Também o clima é especial e,
hoje, os efeitos decorrentes das alterações climáticas que já se fazem sentir na região são
uma preocupação que tem levado os vitivinicultores e as instituições com responsabi­
lidade no território à definição de estratégias que permitam adaptar a produção vitivi­
nícola a novas condições, resultantes da escassez de água, do aumento das temperaturas
e da frequência de fenómenos extremos.
Este território distingue-se igualmente pelo seu riquíssimo património natural,
com destaque para um coberto vegetal autóctone, onde predominam espécies medi‑
terrâneas e uma biodiversidade exuberante, que, além das funções de sustentabilidade
ambiental, representam, no seu conjunto, um importante ativo turístico.
Do ponto de vista histórico, o Douro encerra toda uma herança coletiva forte‑
mente marcada pela vitivinicultura de montanha, cujos testemunhos são uma constante
na paisagem. Desde os primeiros vestígios arqueológicos que comprovam a ocupação
pré-histórica no Parque Arqueológico do Vale do Côa, aos primeiros indícios da cultura
da vinha nos achados do período romano, como a Fonte do Milho, passando pelo legado
da Ordem de Cister. O incremento da agricultura e da vitivinicultura muito ficou a dever
a estes monges que, a partir do século XII, se fixaram na região.
Porém, um dos momentos mais marcantes na história da região ficou a dever-se à
ação do ministro do rei D. José, Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de P ­ ombal,

301
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

que, em 1756, cria a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e
­ordena a primeira delimitação da Região Demarcada do Douro, passando esta a consti­
tuir-se como a mais antiga região vinhateira regulamentada e demarcada do mundo,
processo que em muito contribuiu para que os seus mais autênticos atributos chegassem
aos nosso dias.
Já no século XIX, as doenças fitossanitárias que atingiram as vinhas do Baixo e
Cima Corgo, em particular a filoxera, com um efeito verdadeiramente devastador,
consti­tuíram um dos principais agentes de transformação da paisagem e da socio-
-economia, pela destruição dos vinhedos e outras perdas causadas aos vitivinicultores,
que se viram obrigados a vender e a abandonar as suas propriedades, deixando as suas
parcelas ao abandono, vindo-se a tornar num importante testemunho histórico e marca
paisagística dessa época — os mortórios. Esta crise fez emergir outra importante perso­
nagem histórica, D. Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, pela busca de soluções
­eficazes no combate desta praga e no investimento que fez na recuperação das proprie‑
dades devastadas e novas plantações.
Em paralelo, a melhoria das acessibilidades da via fluvial, nomeadamente com
a abertura do Cachão da Valeira à navegação e, posteriormente, com a chegada do
­caminho de ferro a Barca de Alva, levaram à expansão da cultura da vinha para o Douro
Superior, onde hoje se consolida a produção de vinhos DOC de excelência reconhecida,
segmento que veio complementar o tradicional e único vinho do Porto.
Esta interação entre o Homem e a Natureza resultaram numa narrativa histó­rica
única, cujas camadas se encontram plasmadas num mosaico paisagístico polícromo,
rico e alternado de terraços, socalcos e outras formas de armação do terreno para a
sistematização e cultura da vinha, muros de pedra posta de xisto e outros elementos de
arquitetura vernacular (como casebres, escadas, condutas de água), de alternância
de culturas (com a presença de oliveiras, amendoeiras, pomares de citrinos) e p­ equenas
hortas, povoados, aldeias e vilas, as quintas, edifícios e locais de culto, entre muitos
­outros, refletidos nos três critérios de classificação:
• critério iii — o Alto Douro Vinhateiro produz vinho desde há cerca de dois mil
anos; a sua paisagem foi moldada pelas atividades humanas;
• critério iv — as componentes da paisagem do Alto Douro Vinhateiro são repre­
sentativas do completo leque de atividades associado à produção vitivinícola
— socalcos, quintas, aglomerados, capelas e vias de comunicação;
• critério v — a paisagem cultural do Alto Douto Vinhateiro constitui um exce­
cional exemplo de uma região vitivinícola tradicional europeia, refletindo a
­evo­lução desta atividade humana através do tempo.

Foram precisamente a antiguidade da cultura da vinha e as componentes únicas


e identitárias representativas desta atividade ao longo dos séculos que, com base nos

302
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA

critérios acima referidos, levaram ao reconhecimento e inscrição do Alto Douro Vinha‑


teiro na Lista do Património Mundial da UNESCO, em 14 de dezembro de 2001, com a
categoria de Paisagem Cultural Evolutiva e Viva, ponto de viragem para o seu reconhe‑
cimento e projeção à escala global. Mas também o assumir de um novo compromisso
com a herança patrimonial de Humanidade, facto que obrigou o Estado Português à
implementação de um conjunto de medidas e ao aperfeiçoamento contínuo do sistema
de gestão.

2. UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PROATIVA E DE PROXIMIDADE


Condicionada qualquer abordagem mais exaustiva sobres as soluções regulamen­
tares, programáticas e operacionais que marcaram a gestão deste sítio, importa referir
que uma das principais vantagens associadas à opção governamental de incorporar
a ­gestão do ADVPM na Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do
Norte ­(CCDR-Norte) se prende com a oportunidade e pertinência de uma abordagem
inte­grada no conjunto de competências que lhe estão atribuídas em termos de Ordena‑
mento do Território, Ambiente, Fiscalização, Desenvolvimento Regional, de gestão dos
­Quadros Comunitários de Apoio, tirando partido da sua posição estratégica, privile­
giada, enquanto interlocutora para a coordenação de políticas setoriais na região.
A publicação da Resolução Conselho de Ministros n.º 4/2014, de 10 de janeiro, veio,
precisamente, clarificar o sistema de gestão do ADVPM, determinando que a m ­ issão de
o proteger, conservar e valorizar, bem como divulgar e promover, passaria a ser dire‑
tamente assegurada pela CCDR-Norte, tendo sido criado o Gabinete Técnico Missão
Douro (GTMD), integrado e na dependência da Estrutura Sub-Regional de Vila Real
(ESRVR), cujo principal papel consiste na operacionalização da gestão e monitorização
do território classificado. Estabeleceu ainda o modelo de governança e representação
setorial, institucional e da sociedade civil pela constituição de dois órgãos consultivos:
o Grupo Coordenador Permanente, que integra entidades públicas com responsabili­
dade na gestão do território como a Direção Regional de Agricultura e Pescas do Norte,
a Direção Regional da Cultura, o Turismo de Portugal, a Universidade de Trás-os-Montes
e Alto Douro, a Liga dos Amigos do Douro Património Mundial e o Turismo do Porto e
Norte; já o Conselho Consultivo inclui cerca de cinquenta entidades públicas e p ­ rivadas,
representativas dos diferentes setores de atividade, fórum privilegiado para análise e
­discussão regular e sistemática sobre os principais desafios e dinâmicas r­ egionais.
No que concerne ao modelo de monitorização, este foi estruturado de forma a dar
resposta ao processo de gestão adaptativa do sítio e à necessidade de acompanhamento e
reporte sistémico do seu estado de conservação, atendendo à dimensão e circunstâncias
específicas de toda a área abrangida.
Do quadro de componentes de monitorização então estabelecido, a paisagem tem
merecido especial atenção, quer pela complexidade da sua estrutura e funcionamento,

303
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

quer pelos desafios constantes de uma entidade em permanente mudança, quer ainda
pelo leque de indicadores definidos que incluem, por exemplo, a área de vinha recon‑
vertida, os socalcos, os patamares, a vinha ao alto, a vinha sem armação, a área de olival,
a área de amendoal, a área ocupada por outras culturas, a existência de bordaduras,
os pomares de citrinos, os mortórios, a reconstrução e construção de muros ­tradicionais
do Douro, as manchas de matos, matas, povoamentos florestais e galerias ripícolas,
a preservação e valorização do edificado, entre outros elementos patrimoniais.
Com efeito, a gestão diária de outras competências relacionadas com o Ordena‑
mento do Território e Ambiente tem concorrido e facilitado a metodologia de trabalho
adotada e continuamente melhorada, nomeadamente pela georreferenciação de todos
os polígonos correspondentes a áreas intervencionadas no terreno. A gestão transversal
e holística dos projetos que enformam estas alterações ao uso do solo e outras de maior
envergadura e passíveis de gerar eventuais impactes leva a que sejam georreferen­ciados
e mapeados com recurso a uma base de dados geográficos, diariamente atuali­zada,
cuja informação é complementada e validada através de visitas de campo regulares.
A a­ nálise comparativa desta informação tem sido determinante para o acompanha­
mento e ­avaliação das dinâmicas de mudança à luz da sua consentaneidade e compati­
bilidade com os atributos e critérios de classificação do Alto Douro Vinhateiro.
Importa ainda referir que o processo de monitorização, além das áreas de
­amostragem definidas como prioritárias, que correspondem às dez paisagens de refe‑
rência com uma área aproximada de 500 ha cada, tem sido alargado a toda a área deli‑
mitada pela respetiva ZEP.
Por outro lado, a gestão e monitorização destes processos têm obrigado a i­ ncursões
no terreno, não só em fase prévia ao sentido de decisão sobre os pedidos de inter­
venção aí consubstanciados, como também em fase posterior, para verificação in loco
das dispo­sições e orientações emanadas pela entidade gestora. Sobre esta metodologia
foram ­dados exemplos concretos: um com identificação e ilustração da mesma parcela
de t­erreno antes e depois da implementação do projeto, onde se sinalizaram as inter­
venções, posteriormente verificadas e validadas; outro, ilustrando a aprovação parcial de
uma intervenção, acautelando a manutenção do património arbóreo e arbustivo medi‑
terrâneo e alguns elementos vernaculares aí presentes.
No que à monitorização diz respeito, importaria lembrar que o Alto Douro Vinha­
teiro assume o cariz de uma paisagem marcada pela vitivinicultura de montanha,
cujas características se replicam noutras paisagens culturais classificadas da Europa,
­enfrentando os desafios associados à sustentabilidade socioeconómica de base territorial.
Cinque Terre, em Itália, Wachau, na Áustria, Lavaux, na Suíça, são alguns e­ xemplos
de paisagens de forte pendor evolutivo e vivo, logo, em permanente mudança, ­recor­rendo,
por questões operacionais, a plataformas de dados espaciais e sistemas de informação

304
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA

geográfica que permitam, por um lado, mapear as alterações, por outro, reunir dados
de suporte a modelos de gestão adaptativos e colaborativos, adequados a identidades e
realidades territoriais distintas.
Outra das vantagens associadas à gestão integrada de competência, pela equipa
­técnica no terreno, prende-se com o acompanhamento de projetos que, pela sua natu­reza,
tipologia e envergadura, estão sujeitos a Avaliação de Impacte Ambiental (AIA), sendo
que a Missão Douro integra as respetivas comissões de avaliação, analisando e emitindo
pareceres sobre diferentes fatores ambientais nas fases do procedimento, ­dando enfoque à
salvaguarda dos atributos do Bem, equacionando sempre as alterna­tivas e soluções menos
lesivas dos valores em presença, avaliando ainda os efeitos cumulativos dos projetos.
Já a Avaliação de Impacte em Património (AIP) é uma prática de gestão que
tem vindo a ser implementada para outros projetos públicos e privados, que, mesmo
não ­estando sujeitos ao Regime Jurídico da AIA, merecem uma abordagem focada na
­avaliação de eventuais impactes, considerando o Bem como um todo, onde, além dos
­fatores ambientais, são consideradas outras componentes patrimoniais, como o ­contexto
histórico, o espírito de lugar, a perspetiva imaterial e demais atributos que conferem
­Valor Universal Excecional ao Bem (em resultado da Declaração de Sintra, 2017).
A par da melhoria contínua da metodologia de trabalho, não só na aplicação dos
mecanismos e regulamentos de gestão e salvaguarda em vigor para a área classificada
e respetiva ZEP, a Missão Douro tem procurado tirar o máximo partido do capital de
experiência e conhecimento técnico da sua equipa e da relação de proximidade com o
território e seus agentes.
Depois de um processo de capacitação interna, que incluiu sessões de formação
para uniformização de abordagens aos principais aspetos a considerar na análise dos
processos, não só ao nível dos valores patrimoniais em presença, mas também das
­boas-práticas agrícolas e ambientais a implementar, e ainda o manuseamento e domínio
­destas novas ferramentas digitais de trabalho. A formação do quadro técnico incluiu
ainda trabalho de campo, com visitas acompanhadas a quintas de referência na região.
A aposta na capacitação e formação foi alargada aos vitivinicultores e suas
­associações, complementada com numerosas sessões públicas de informação e sensibi‑
lização e ainda com visitas aos locais das intervenções visando a avaliação da situação de
partida para subsequente aconselhamento técnico quanto às soluções a adotar.
O fomento do trabalho em rede e o estabelecimento de parcerias com a­ gentes
­públicos e privados de diferentes setores de atividade têm sido pedra de toque do
­processo de governança e do envolvimento da comunidade local no acompanhamento
das dinâmicas atuais e desígnios futuros da região.
Aqui destacaram-se as ações em parceria com a Liga dos Amigos do Douro Patri­
mónio Mundial, nomeadamente as edições consecutivas do curso de formação anual de
professores sobre o ADVPM, com comunicações sobre o ADV e o seu Valor Universal

305
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Excecional, bem como o seu sistema de gestão e monitorização, acrescido do acompa‑


nhamento de visitas de campo. Enquadrados na mesma parceria, os concursos escolares
destinados à comunidade educativa da região visam premiar os melhores trabalhos ­sobre
o ADV e proporcionar às turmas vencedoras visitas de estudo ao Património Mundial.
Nesta vertente, importa ainda referir que, ao longo dos últimos anos, a entidade
gestora tem sido convidada a integrar fóruns temáticos promovidos por instituições de
ensino superior de referência, sendo que os membros da equipa técnica são convidados
a fazer comunicações, sobretudo para alunos de mestrado e a acompanhar os respetivos
grupos em visitas de estudo pelo ADVPM.
No entanto, o interesse pela temática do Património Mundial e pelas potenciali­
dades que esta classificação representa para a região e seus agentes, como fator diferen‑
ciador de desenvolvimento e competitividade, tem-se replicado noutros setores, que cada
vez mais se preocupam em incorporar nos seus projetos e eventos conhecimento sobre
esta temática. Nesta medida, multiplicam-se os convites para apresentação de comuni‑
cações em certames organizados por entidades associadas ao turismo, cultura, forças de
segurança, ordens profissionais, gestão autárquica, natureza e florestas, entre outras.
Assim, numa área territorial tão extensa e tão segmentada do ponto de vista insti­
tucional, a Missão Douro tem privilegiado a cooperação, o trabalho em rede e o esta­
belecimento de parcerias como formas de potenciar o desenvolvimento integrado,
­coeso e sustentável da região. No entanto, o alvo prioritário nesta gestão de proximi­dade
será sempre o construtor da paisagem e a comunidade local, no seio dos quais ­importa
­enraizar o sentido de pertença e a apropriação dos valores intrínsecos à ­chancela Patri­
mónio Mundial, como forma de preservar e levar às gerações futuras esta herança
­cultural única, potenciando o melhor aproveitamento de todos os seus recursos patri‑
moniais e endógenos na melhoria das suas condições de vida.

CONCLUSÃO
Tendo em consideração que o limite temporal para uma apresentação desta n ­ atu­reza
­exclui uma abordagem mais abrangente e alargada ao ADVPM, importa reter, em ­síntese
conclusiva, alguns aspetos preponderantes para a reflexão a que nos propusemos:
• a primeira prende-se com o facto de o ADVPM ter uma localização geográfica
e estratégica privilegiada em relação aos outros sítios classificados do norte de
Portugal e da vizinha Espanha, mantendo a função secular de corredor de povos
e culturas;
• a segunda, com a riqueza natural, cultural e patrimonial excecional que detém,
associada à crescente notoriedade da chancela UNESCO, que lhe confere uma
margem de crescimento e de sustentabilidade, determinante para ultrapassar,
com resiliência, o efeito recessivo da pandemia; o desequilíbrio ­sociodemográ­fico
e correspondente tendência de esvaziamento do território e envelhecimento

306
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA

da população; a falta de mão de obra qualificada para os trabalhos inerentes à


­vitivinicultura; o agravamento dos efeitos das alterações climáticas, entre outros
desafios futuros.

Importa ainda considerar o sistema de gestão e monitorização que tem vindo a ser
implementado e a sua adequação à realidade territorial da área classificada e respetiva
ZEP. Sob este prisma, os resultados apurados a partir do último exercício de avaliação
permitem-nos perceber que, entre 2014 e 2021, as alterações ocorridas e monitorizadas
nas dez paisagens de referência foram muito reduzidas e resultaram de pequenas trans‑
formações à ocupação do uso do solo e ao sistema de armação da vinha, consideradas,
na globalidade, consentâneas com os valores de autenticidade e integridade do ADV.
A ­avaliação dessas alterações assume um carácter quantitativo e qualitativo, através da
Magni­tude da Mudança e do Sentido da Mudança, respetivamente. A Magnitude da
­Mudança indica-nos a evolução da paisagem em termos quantitativos e é avaliada com
base na diferença entre a área de uso de solo em 2014 e 2021 relativamente à área total de
cada local de amostragem, expressa em percentagem.
Assim, decorridos vinte anos sobre a classificação do Alto Douro Vinhateiro pela
UNESCO como paisagem cultural evolutiva e viva, podemos considerar que, apesar das
dificuldades e constrangimentos inerentes à dimensão, diversidade territorial e multipli‑
cidade de atores locais e regionais envolvidos no processo, o caminho por todos percor­
rido tem-se revelado frutuoso, não só no que respeita à preservação e salvaguardados dos
seus valores e atributos, como à melhoria significativa das intervenções com reflexos na
paisagem, desde a mais pequena parcela de vinha ao empreendimento hoteleiro arqui­
tetonicamente mais cuidado e integrado, culminando com o crescente enraizamento
comunitário do sentido de pertença e apropriação de uma herança secular e única.
Com efeito, a opção adotada pelo Estado Português em 2014 de internalizar na
­CCDR-Norte a missão de proteger, conservar e valorizar, bem como divulgar e p ­ romover a
paisagem classificada, trouxe como mais-valia o desempenho em paralelo das competências
no âmbito do Ordenamento do Território, Ambiente, Desenvolvimento R ­ egional e Norte
2020 e da Missão Douro, com ganhos significativos para a gestão sistémica do território.
Atendendo ao carácter evolutivo deste sítio, o processo de monitorização sofreu
alguns desenvolvimentos pelo incremento de medidas tendentes à sua otimização,
quer ao nível da metodologia de trabalho quer ao nível da qualidade das intervenções no
terreno, no contexto de uma gestão adaptativa do território.
Os resultados da monitorização, expressos no último relatório enviado ao C ­ entro
do Património Mundial, revelam que ocorreu uma transformação ao nível do uso do
solo, com o aumento de área de vinha, sem que, no entanto, se tenham afetado os ­valores
de autenticidade e integridade do ADV. Pelo contrário, algumas das intervenções ­levadas
a cabo contribuíram para a qualidade da paisagem.

307
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Nesta conclusão, cabe ainda uma referência à comemoração dos cinquenta anos
da Convenção do Património Mundial, motivo acrescido para a promoção de uma
­discussão mais abrangente sobre esta temática, incorporando-a no programa come‑
morativo dos vinte anos do Alto Douro Vinhateiro Património da Humanidade que se
­inicia a 14 de dezembro de 2021 e se prolonga durante um ano, até 14 de dezembro de
2022. Este programa inclui uma série de iniciativas desenvolvidas pelo conjunto de insti­
tuições regionais ligadas ao Douro Património da Humanidade, integrantes dos Órgão
Consultivos da Missão Douro, que constituem uma Comissão Organizadora incluindo a
CIM do Douro, a Direção Regional de Cultura do Norte, a Direção Regional de Agricul­
tura e Pescas do Norte, a Liga dos Amigos do Douro Património Mundial, a Universi­
dade de Trás-os-Montes e Alto Douro, a Entidade Regional do Turismo do Porto e
­Norte, o Instituto dos Vinhos do Douro e Porto, Museu do Douro e Fundação do Côa.
A programação, além do conceito comemorativo que procura assinalar publica‑
mente a data e o seu significado, apresenta um pendor prospetivo e reflexivo sobre os
grandes desafios de desenvolvimento para o horizonte 2030, bem como de marketing
territorial cujas ações procurarão valorizar a identidade regional.
Importa, pois, continuar a fomentar um sentimento sustentável de autoestima
e pertença das comunidades locais, valorizando a identidade cultural, o património
­imaterial, as pessoas e as suas conquistas coletivas a par de todos os fatores identitários e
diferenciados do Douro enquanto território de excelência.
A Missão Douro continuará, assim, focada no seu desígnio de entidade gestora de
um sítio tão exigente quanto desafiante, apostada na adoção de boas-práticas de planea‑
mento, gestão, comunicação, participação e cidadania.

FONTES ELETRÓNICAS
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <http://www.ccdr-n.pt/>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://en.unesco.org/>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://www.apambi‑
ente.pt/>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://www.unescopor‑
tugal.mne.pt/pt/a-cnu>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://www.ivdp.pt/>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://www.rpmp.pt/
repositorio>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <http://www.parconazi‑
onale5terre.it/page.php?id=82>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://www.region-du-le‑
man.ch/en/Z9278/lavaux-unesco-terraced-vineyards>.
«Instituto dos Vinhos do Douro e Porto». [Consult. 14 jan. 2022]. Disponível em <https://kipdf.com/pro‑
ject-vitour-landscape_5aec18177f8b9a75508b4586.html>.

308
O SISTEMA DE GESTÃO E MONITORIZAÇÃO DO ALTO DOURO VINHATEIRO, PATRIMÓNIO DA HUMANIDADE
— REFLEXOS E CONTRIBUTOS DE UMA GESTÃO ADAPTATIVA, PEDAGÓGICA E PROATIVA

BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Fernando Bianchi de et al., coord. (2002). Plano Intermunicipal de Ordenamento do Território do
Alto Douro Vinhateiro. Vila Real: UTAD.
ANDRESEN, Teresa; REBELO, José (2013). Avaliação do Estado de Conservação do Bem Alto Douro
Vinhateiro — Paisagem Cultural Evolutiva Viva. Porto: CCDRN/EMD; CIBIO UP/UTAD, vol. 1.
Relatório de Avaliação.
FUNDAÇÃO REI AFONSO HENRIQUES (2000). Candidatura do Alto Douro Vinhateiro a Património
Mundial. Porto: Marca-Artes Gráficas.

309
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

310
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO
SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES
VIGNOBLES EUROPÉENS*
SOPHIE LIGNON-DARMAILLAC**

Résumé: Ce texte analyse les effets de la labelisation UNESCO dans l’offre œnotouristique des vignobles
classés au Patrimoine Mondial de l’Humanité. Tous sont européens, alors même que de grandes destina-
tions en matière de tourisme vitivinicole appartiennent au Nouveau Monde. En quoi le classement
UNESCO différencie ces vignobles? Quelles sont les caractéristiques paysagères et patrimoniales des
vignobles UNESCO, en quoi sont ils valorisés, ou non, pour développer, plus qu’ailleurs, une activité
œnotouristique riche et diversifiée.
Mots-clés: vignobles; œnotourisme; patrimoine; UNESCO.

Resumo: Este texto analisa os efeitos do selo UNESCO na oferta enoturística das vinhas classificadas como
Património Mundial da Humanidade. Todos são europeus, embora os principais destinos do enoturismo
pertençam ao Novo Mundo. Como a classificação da UNESCO diferencia esses vinhedos? Quais são as
características paisagísticas e patrimoniais das vinhas da UNESCO, como são valorizadas, ou não, para
desenvolver, mais do que em qualquer outro lugar, uma atividade enoturística rica e proposta.
Palavras-chave: vinhas; enoturismo; património; UNESCO.

L’œnotourisme ne cesse de se développer, tant dans l’Ancien-Monde viticole que dans


la nouvelle planète des vins. La concurrence augmente sur les marchés mondiaux du
vin, entrainant celle des différentes destinations œnotouristiques, chacune devant valo‑
riser l’image de son vignoble et de ses productions. Les vins sont reconnus par leurs
appellations, les offres œnotouristiques, à leur image, recherchent à accroitre leur noto‑
riété à travers différents labels, à l’échelle de leur pays, mieux, à l’échelle internationale.
C’est dans ce contexte que la reconnaissance par l’UNESCO1 de quinze paysages ­culturels
viticoles comme Patrimoine Mondial, entre 1999 et 2019, a offert à ces vignobles
une image d’exception, d’excellence, un signe de distinction recherché par nombre de
ceux restés à ce jour, à l’écart de ce club très exclusif. A côté de ces paysages culturels,
ont été classés au Patrimoine Mondial de l’UNESCO, trois «biens viticoles»: en Hongrie
— Hollókő, le vieux village et son environnement; le Parc National de Hortobágy et le
Paysage Culturel de Fertö / Neusiedlersee; en Italie — la Côte amalfitaine (Fig. 1).

* Si le copyright des tableaux, graphiques et autres images n’est pas indiqué, il appartient aux auteurs de ce texte.
** Maitresse de Conférences-HDR, UFR de Géographie, Sorbonne-Université, Paris.
1
La reconnaissance d’un bien par l’UNESCO repose sur la Convention du Patrimoine Mondial concernant la p ­ rotection
du patrimoine mondial, culturel et naturel, élaborée et adoptée par la Conférence Générale de l’UNESCO le 16 ­novembre
1972. Le concept de paysage culturel, soutenu par l’ICOMOS (International Council for Monuments and Sites) est
reconnu par le Comité du Patrimoine Mondial en 1994 en tant que «œuvre conjuguée de l’homme et de la nature».
Les paysages viticoles en sont une dimension; identifiés et préservés dans leur diversité à travers le monde, ceux qui sont
retenus expriment «la longue et intime relation des peuples avec leur environnement» (PRATS, 2014).

311
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 1. Vignobles classés au patrimoine mondial de l’UNESCO

Seuls des vignobles européens ont été classés, appartenant à sept pays: France,
Autriche, Portugal, Allemagne, Hongrie, Suisse et Italie. Certains d’entre eux comptent
plusieurs «vignobles UNESCO», la France (3), l’Italie (3), la Hongrie (3) le Portugal (2),
et l’Autriche (2), d’autres un seul, l’Allemagne et la Suisse. L’Espagne, grand pays viticole
européen, le premier par la superficie de ses vignes, n’en compte cependant aucun comme
tous les grands vignobles de l’hémisphère sud ou des Etats-Unis, Pour appartenir à ce
réseau UNESCO, tous répondent au moins à un des critères II, III, IV, V ou VI reconnus
par l’organisation internationale:
II. Témoigner d’un échange d’influences considérable pendant une période donnée ou
dans une aire culturelle déterminée, sur le développement de l’architecture ou de la
technologie, des arts monumentaux, de la planification des villes ou de la création
de paysages,
III. Apporter un témoignage unique ou du moins exceptionnel sur une tradition
culturelle ou une civilisation vivante ou disparue,
IV. Offrir un exemple éminent d’un type de construction ou d’ensemble architectural
ou technologique ou de paysage illustrant une ou des périodes significative(s) de
l’histoire humaine,
V. Etre un exemple éminent d’établissement humain traditionnel, de l’utilisation
tradi­tionnelle du territoire ou de la mer, qui soit représentatif d’une culture (ou de
cultures), ou de l’interaction humaine avec l’environnement, spécialement quand
celui-ci est devenu vulnérable sous l’impact d’une mutation irréversible,

312
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS

VI. Etre directement ou matériellement associé à des événements ou des traditions


vivantes, des idées, des croyances ou des œuvres artistiques et littéraires ayant une
signification universelle exceptionnelle (Le Comité considère que ce critère doit
préférablement être utilisé en conjonction avec d’autres critères).

La «valeur universelle exceptionnelle», reconnue pour devenir Patrimoine M ­ ondial,


n’est donc pas liée à la qualité des vins produits, mais bien à une culture historique,
­multi séculaire, qui a façonné des paysages originaux de terroirs ancestraux. Ces p
­ aysages
culturels témoignent d’échanges d’influences, qui ont enrichi les savoirs-faire locaux
pour engendrer des architectures et des constructions paysagères originales, uniques
(Tableau 1).

Tableau 1. Critères de sélection pour chacun des vignobles UNESCO

France Autriche Portugal Allemagne Hongrie Portugal Suisse Italie France Italie
Paysage culturel de Fertö/
Neusiedlersee Frontière

caves de Champagne
Vallée du Haut Douro

Collines de Prosecco
Climats du vignoble
Juridiction de Saint-

Coteaux maisons et
Autriche-Hongrie

de Conegliano
de Bourgogne
Vallée du haut
Rhin moyen

Ile de Pico
-Emilion

Wachau

Piemont
Lavaux
Tokaj

1999 2000 2001 2002 2004 2007 2014 2015 2019


II X X

III X X X X X X X X

IV X X X X X X

V X X X X X X X X X

VI X

En répondant à ces critères, les vignobles classés traduisent une parfaite adé‑
quation entre la nature et le savoir-faire humain, une totale adaptation à des environ­
nements naturels souvent hostiles, là où de fortes pentes ou des sols volcaniques ne
semblaient pas destinés à l’origine à des productions d’excellence. Pour parvenir à
l’élabo­ration de paysages exceptionnels, des communautés humaines ont dû ­s’implanter
durablement, transmettre de générations en générations des savoirs-faire ingénieux,
pour ­développer des traditions tant dans l’art de produire que de vivre. Pour maintenir
une activité viticole si exigeante, ces communautés vigneronnes ont fait de leurs vins si
chèrement produits, beaucoup plus que des breuvages bons à boire. Elles ont élaboré
des boissons de fêtes, des symboles de vie, des vins qui ont inspiré de multiples œuvres
d’art, des sculptures, des peintures, des poèmes ou des musiques.

313
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Ces vignobles reconnus au Patrimoine Mondial de l’Humanité offrent ainsi une


i­nestimable richesse tant culturelle que paysagère, tant par le soin apporté aux cultures
qu’à l’habitat, tant par l’originalité de leurs territoires que par leurs traditions festives. Dans
ces conditions, l’on peut penser que le potentiel œnotouristique est ici plus riche qu’ail‑
leurs, l’offre plus diversifiée, animée par la vie de ces sociétés reconnues au-delà d’une
notoriété locale. Cette mise en tourisme freine l’exode rural qui dans bien des ­campagnes
conduit à l’abandon des terres là où ces dernières ne permettent pas l’inten­sification des
cultures. L’œnotourisme peut alors être une activité d’appoint, une source de revenus
complé­mentaires, tout en permettant de conserver, à plus long terme, les paysages vivants.
Pour autant, dans ce contexte, les vignobles du Patrimoine Mondial de l’Humanité
­offrent-ils un développement touristique original, une plus grande fréquentation, un réel
enrichissement ou ne sont-ils que pipeau, pas plus attractifs que d’autres vignobles non
­labellisés UNESCO2? Les sites classés par l’Organisation des Nations Unies pour l’édu‑
cation, la science et la culture s’imposent-ils comme «une collection de lieux qu’il faut
absolument avoir vus dans sa vie»? Que leur apporte ce label? Quelle peut être la valeur
ajoutée par l’UNESCO, lorsque, par ailleurs, plusieurs vignobles d’un même pays bénéfi‑
cient de cette reconnaissance patrimoniale et peuvent, dans ce contexte, être concurrents,
alors que d’autres grands pays viticoles, telle l’Espagne, ne possèdent aucun vignoble
UNESCO, mais figurent pourtant parmi les destinations œnotouristiques les plus prisées
(Jerez, La Rioja, Le Penedès). Certes, des vignobles classés au Patrimoine de l’Humanité
sont parmi les principales destinations œnotouristiques de leur pays (Saint-Emilion,
leader des territoires œnotourisques bordelais, première destination française en matière
de tourisme viticole), mais d’autres vignobles, non classés par l’UNESCO, devancent
par leur fréquentation d’autres destinations œnotouristiques de leur pays, par exemple,
au Portugal, l’Alentejo, sans label UNESCO, est tout autant reconnu que le Haut Douro,
et bien plus fréquenté que le vignoble classé de l’Ile de Pico.

1. LES VIGNOBLES UNESCO: DES DESTINATIONS


PRIVILEGIEES DU TOURISME RURAL ET DURABLE
En 1992, l’UNESCO reconnait les premiers paysages culturels dans la Liste du Patri‑
moine Mondial de l’Humanité, parmi lesquels en 1999, le premier vignoble, la Juri­diction
de Saint-Emilion. Autrement dit, c’est précisément dans les années où l­’œnotourisme
­commence à se développer en Europe que certains d’entre eux bénéficient d’une recon‑
naissance internationale par la qualité de leurs paysages3.
Peu à peu réunis par leur appartenance au Patrimoine Mondial de l’UNESCO,
ces paysages culturels viticoles forment un ensemble de territoires très différents par leur
superficie, moins de 1000 ha pour Pico et Lavaux, plus de 20 000 ha dans la vallée du
2
FORRAY, 2021.
3
LIGNON-DARMAILLAC, 2009.

314
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS

Rhin, du Haut Douro ou dans les collines du Prosecco, ou par leur situation le long d’un
fleuve (Rhin, Douro, Danube) ou d’un rivage lacustre (Wachau). Ces régions viticoles
sont plus ou moins densément habitées, plus ou moins reconnues pour leur patrimoine
bâti (châteaux et église troglodyte de la Juridiction de Saint-Emilion). Leur offre œno‑
touristique est dès lors avant tout renforcée par leurs spécificités, et non par leur apparte‑
nance commune au club très restreint des vignobles UNESCO. Certains sont ­privilégiés
pour développer une activité touristique par la proximité d’une grande ville, Bordeaux,
Lausanne, Venise ou Turin, d’autres sont au contraire très isolés telle l’Ile de Pico,
ou plus difficilement accessibles comme le Haut-Douro, à une centaine de kilomètres de
Porto, loin des chais de Vila Nova de Gaia, qui seuls sont à proximité de la ville. Certains
bénéficient de la notoriété internationale de leurs vins, Champagne, Prosecco, Porto,
Bordeaux, d’autres moins reconnus sur les marchés d’exportation.
A l’occasion des Journées Européennes du Patrimoine, l’UNESCO a lancé en
­septembre 2017 la première plateforme en ligne pour valoriser le Patrimoine M ­ ondial et
le tourisme durable, le «World Heritage Journeys (Sur la route du Patrimoine M ­ ondial)».
Conçue avec le soutien de l’Union Européenne, et développée en collaboration avec
­«National Geographic», cette plateforme présente trente-quatre sites du Patrimoine
­Mondial répartis dans dix-neuf pays de l’Union Européenne. L’objectif est de c­ hanger
la manière dont les gens voyagent en les incitant à rester plus longtemps sur place,
à ­explorer la culture locale, son environnement et se familiariser avec les valeurs du Patri­
moine Mondial. Ces sites doivent appartenir à l’Europe antique, médiévale, royale ou
souterraine. Parmi eux, quatre paysages culturels viticoles bénéficient de cette n ­ ouvelle
reconnaissance internationale: deux sites de l’Europe romantique, en Allemagne,
la ­Vallée du Haut-Rhin moyen, cœur du Saint-Empire romain, en Autriche, le Paysage
culturel de la Wachau, paysage médiéval remarquablement bien préservé, et deux autres
sites de ­l’Europe souterraine, en France, les Coteaux, Maisons et Caves de Champagne,
en ­Hongrie, le Paysage culturel historique de la région viticole de Tokaj.
Cette nouvelle classification, renforce le tourisme rural pour promouvoir le patri‑
moine ayant pour vocation un tourisme durable pour:
• promouvoir un tourisme en accord avec la valeur universelle exceptionnelle du
Patrimoine Mondial;
• attirer les visiteurs chinois en Europe dans le cadre de l’Année du tourisme Union
Européenne-Chine 2018;
• inciter les touristes à séjourner plus longtemps, à explorer la culture locale et son
environnement, et se familiariser avec les valeurs du Patrimoine Mondial de la
région visitée;
Comme pour l’ensemble des paysages culturels du Patrimoine Mondial, ces ­vignobles
revendiquent la valorisation de la nature à travers un tourisme vert, à travers vignes.
Ces vignobles sont sillonnés par diverses routes pédestres, cyclables, ferroviaires ou

315
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

­ uviales Des sentiers sont particulièrement renommés pour apprécier les sites remar‑
fl
quables de territoires viticoles. Tel est le cas du sentier des terrasses empierrées de la
Wachau, 180 km organisés en quatorze étapes, sentier relié à la section locale du c­ hemin
de Saint-Jacques. Le pic du Jauerling, le plus haut sommet qui domine le Danube,
750 m au-dessus du fleuve, permet une vue remarquable sur les pentes du vignoble,
la découverte d’une v­ ingtaine de forteresses, ruines et châteaux ou de trois monastères,
d’explorer ainsi un patrimoine archi­tectural remarquable, qui renforce le caractère
­culturel du ­vignoble. ­Ailleurs, l­’Eurovelo 6 (1200 km de Donaueschingen en Allemagne
à Budapest en H ­ ongrie) longe le Danube, en partie à travers les vignes de la Wachau,
le long de chemins de halage, en traversant les villages médiévaux de Spitz, Weißen‑
kirchen et Dürnstein.
Dans d’autres cas, des trains touristiques empruntent des voies panoramiques à
­Lavaux ou dans le Douro, où le train historique est à nouveau à vapeur! Dans ce ­vignoble,
la desserte de la gare de Pinhão permet de découvrir à la fois le vignoble et ses vins,
mais aussi la culture des azulejos portugais, à travers de multiples tableaux de céramiques
qui illustrent la vie vigneronne, les paysages viticoles ou le commerce du Porto par les
embarcations traditionnelles, les rabelos (Fig. 2).
L’appartenance de ces circuits touristiques à des vignobles remarquables, se t­ raduit
aussi par l’offre des promenades gourmandes telle celle du «train des vignes» de ­Vevey
à Chexbres jusqu’au lac Léman. Ainsi, comme paysages culturels de l’Humanité, ces
vignobles conjuguent toujours un attrait pour la nature, tout autant dans sa dimension
culturale que culturelle.

Fig. 2. Azulejos de la
gare de Pinhão

316
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS

2. UNE OFFRE ŒNOTOURISTIQUE CULTURELLE


REMARQUABLE
Reconnus ou non par l’UNESCO, les terroirs viticoles sont toujours considérés comme le
fruit du travail de l’homme sur la nature, comme l’une des formes les plus remarquables
de paysages agricoles résultant de l’activité humaine. A ce titre, l’offre culturelle est indisso‑
ciable de l’œnotourisme, tout particulièrement par l’intérêt porté aux «­ paysages ­culturels»
de ce Patrimoine Mondial. Cette offre est parfois liée à l’architecture des villages ou des
monuments des vignobles, parfois liée à des évènements, de grandes manifes­tations
­festives qui incitent les œnotouristes à revenir pour découvrir des program­mations de
spectacles différentes d’une année à l’autre.
Ce patrimoine architectural, peut être historique, des châteaux tels le château de
Rheinstein qui surplombe le Rhin, ou le château de Pfalzgrafenstein à Kaub, lieu d’inspi­
ration pour Victor Hugo (île desservie par un petit ferry), des abbayes ou des monas‑
tères, des églises… Ce patrimoine architectural peut être celui de résidences seigneu‑
riales qui ont favorisé l’économie viticole locale, ou avoir une fonction spécifiquement
liée à l’élabo­ration du vin et à son vieillissement, grand ou petit patrimoine, murets et
cabanes de vignes ou chais. Des châteaux peuvent être des propriétés viticoles, dans le
Bordelais, ou de grandes maisons, dont les caves souterraines, comme les cratères de
Champagne, sont le principal intérêt des visites touristiques. Y sont alors organisées des
dégustations comme autant de visites insolites, telles celles de la Maison Ruinart à Reims
ou des caves hongroises, comme la cave de Rákóczi, peut-être la plus touristique des
caves de Tokaj. Construite au début du XVe siècle, elle a été la propriété de rois et de
princes, connue en 1526 par l’élection du roi János Szapolyai, elle présente un véritable
dédale de galeries creusées dans la roche volcanique, avec des milliers de fûts de chêne
impeccablement alignés.
Ces monuments historiques ouverts aux œnotouristes de l’Ancien-Monde des
­vignobles labellisés par l’UNESCO ont suscité de nouvelles architectures, de nouvelles
caves dignes de la plus grande renommée, pour intégrer pleinement le tourisme à l’éco‑
nomie viticole. Ainsi les wineries californiennes, malgré la non-reconnaissance du label
UNESCO, figurent parmi les caves les plus fréquentées. Dans des vignobles n’appar­tenant
pas au Patrimoine Mondiale de l’Humanité, en Rioja, comme en Amérique, apparaissent
des chais construits par des architectes de renom international, véritable winescapes
conçus par les starchitectes de grand renom. Conscients de l’image iconique de telles
constructions, les vignobles européens, classés par l’UNESCO, s’inspirent peu à peu de
ces nouvelles architectures. L’offre œnotouristique s’enrichit de nouveaux chais à visiter
à Saint-Emilion, le chai cathédral de Mario Botta du Château Faugères dès 2009 ou en
2011, au Château Cheval Blanc, où l’architecte Christian de Portzamparc construit un
nouveau chai qui symbolise «l’élèvement du sol, les voiles de béton, de la lumière au ciel»!

317
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Le classement UNESCO, encourage cependant un tourisme évènementiel.


En Champagne, depuis plus de vingt ans, les Habits de Lumière, organisent à Epernay
le ­festival annuel d’art et de gastronomie qui réunit des compagnies d’artistes chargés
­d’animer l’avenue de Champagne par des défilés d’art de rue, des spectacles pyrotech‑
niques, des parades automobiles de voitures anciennes. Parallèlement, dans une autre
approche culturelle les Habits de Saveurs permettent la rencontre de chefs étoilés et
de vignerons, pour animer des dégustations dans la cour des grandes maisons… Mais
en 2015, l’anniversaire du classement des Côteaux, Maisons, et Caves de Champagne
au Patri­moine Mondial de l’UNESCO, est célébré par le «Séjour des Réconciliations»,
Fête annuelle qui commémore, à travers un «tourisme d’Humanité», les valeurs
de l’UNESCO, en rappelant l’histoire de la Champagne, région de la réconciliation
­franco-allemande en 1962. Un dîner de gala est donné au profit d’une œuvre carita‑
tive, des conférences sur les enjeux de la réconciliation sont organisées, un grand lâcher
­nocturne de lanternes transporte des messages d’Humanité et de paix pour clore la fête.
Pour autant, malgré la richesse de ces patrimoines et de ces manifestations,
les vignobles classés au Patrimoine Mondial offrent-ils des atouts spécifiques, sont-ils
des destinations touristiques plus recherchées, plus attractives que d’autres vignobles?

3. LES VIGNOBLES UNESCO: DES DESTINATIONS


TOURISTIQUES PARMI D’AUTRES
Les vignobles classés au Patrimoine de l’Humanité ne sont pas toujours les plus grands,
ni les mieux desservis. Par exemple, l’île de Pico, perdue au milieu de l’archipel des Açores,
est particulièrement difficile d’accès. Certes, la richesse patrimoniale des v­ignobles
UNESCO est grande, mais les châteaux viticoles du Médoc ont une renommée compa­
rable à celle des châteaux de Saint-Émilion, les villages de la route des vins d’Alsace n’ont
rien à envier à ceux du Haut-Rhin moyen, les wineries de la vallée de la Napa ou les
­bodegas chiliennes et argentines offrent un plus grand nombre, une plus grande diversité
de winesacapes que les vignobles du Patrimoine Mondial.
Par ailleurs, outres le label UNESCO, un autre label, plus exclusif encore, ­reconnait
onze vignobles également de grande notoriété, ceux appartenant au réseau des Great
Wine Capitals (Capitales de Grands Vignobles) créé en 1999 à l’initiative de la CCI de
­Bordeaux4. Parmi ces dernières, cinq sont à la fois paysages culturels et capitales de grands
vignobles: les vignobles de Mayence-Hesse Rhénane en Allemagne, Porto au ­Portugal,
Vérone en Italie, Bordeaux en France et Lausanne en Suisse. Cependant, six autres
­capitales n’appartiennent pas au réseau des vignobles de l’UNESCO: ­Bilbao-Rioja en

4
Ce réseau conduit des programmes de coopération et d’échanges, spécialement en matière d’œnotourisme. Le concours
des Best Of Wine tourism récompense les meilleures initiatives œnotouristiques des villes membres, réalise des études
de marché sur l’impact de l’œnotourisme dans l’activité de leurs propriétés viticoles, attribue des bourses de recherche,
organise des missions dans les vignobles…

318
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS

Espagne, Mendoza en Argentine, Valparaíso Casablanca Valley au Chili, San F ­ rancisco


en Napa Valley aux USA, Adelaïde en Australie, le Cap-vignoble du Cap en Afrique du
Sud. Ainsi apparaissent de notoriété internationale des destinations œnotouristiques
incon­tournables, un vignoble du pays européen aux plus vastes surfaces viticoles, et des
­vignobles de la nouvelle planète des vins, jusque-là exclue des paysages culturels viticoles.
Les «meilleurs vignobles du monde» ne sont donc pas toujours labellisés UNESCO.
Ils sont par ailleurs reconnus selon la qualité de leur offre œnotouristique et non plus
spécifiquement par le caractère exceptionnel de leur patrimoine. Ainsi, le World’s best
vineyards5 établit le Top 50 des expériences viticoles les plus étonnantes, les meilleurs
endroits pour déguster des vins et en apprendre davantage sur la vinification et la viti‑
culture. Il classe des caves d’architecture remarquable, ancienne ou très contemporaine,
des caves qui associent à leurs infrastructures des restaurants étoilés Michelin, ou des
caves plus modestes de domaines familiaux où les propriétaires organisent des visites.
Les établissements classés proposent une offre œnotouristique originale: une visite en
­calèche d’époque à travers le vignoble, des tapas au milieu d’une collection de voitures
classiques magnifiquement restaurées, des œuvres d’art de Pablo Picasso, des cours
de cuisine sur un feu ouvert… La liste est établie par près de six cent experts du vin,
des voyages et de l’œnotourisme du monde entier. Pour concourir, les propriétés,
domaines ou caves viticoles, doivent seulement être ouvertes au grand public, sans autres
critères prédéterminés.
La liste 2020 couvre dix-huit pays, vingt en 2019, de l’Ancien comme du Nouveau-
-Monde, parmi lesquels seuls cinq pays ont des vignobles classés au Patrimoine ­Mondial:
la France, l’Italie, l’Allemagne, le Portugal et l’Autriche, la Hongrie et la Suisse n’y figurent
pas. A l’inverse, certains pays, peu connus pour leurs vignobles ont au moins une cave
classée dans ce Top 50: le Canada en 2019, le Japon et l’Inde en 2020. En 2020, Le Chili,
figure au niveau de la France, en tête du classement. L’Espagne, l’Argentine et les USA
devancent les autres pays classés à l’UNESCO.
Parmi les caves classées dans ce Top 50, une minorité, seize en 2019, dix-sept en
2020, appartiennent à un vignoble UNESCO. Aucune en tête de liste, au premier rang des
caves labellisées, la Quinta do Crasto du Haut-Douro portugais en 4ème position en 2019,
deux parmi les dix premières, le Domaine Wachau autrichien en 3ème position en 2020,
quatre parmi les dix premières.
Nous constatons ces mêmes conclusions à d’autres échelles d’analyse. En France,
selon les données d’Atout France, sans doute autant par la notoriété de leurs vins que
par leur label UNESCO, le vignoble bordelais est le plus fréquenté de France (18% des
visiteurs), puis la Champagne (17,2%), mais l’Alsace (16,9%), non labellisée UNESCO,
devance de peu la Bourgogne (16,2%).

5
Disponible en <https://www.worldsbestvineyards.com>. [Consult. 2 Fév. 2022].

319
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

10

7
Nombre de caves

2019 2020

Fig. 3. Pays représentés au Top 50 des World’s Best Vineyards 2019 et 2020

A l’échelle régionale, autant de châteaux médocains ont reçu un «Best of Wine


­ ourism» entre 2004-2016 que les châteaux saint-émilionnais. Certes, parmi les ­vignobles
T
girondins, le vignoble de Saint-Emilion a reçu le plus grand nombre de visites, 41% ont
choisi Saint-Emilion-Pomerol-Fronsac, 21% le Médoc, moins encore les Graves et le
­Sauternais, 10%, l’Entre-deux-Mers 6%, autant que les Côtes de Bourg et de Blaye, la mé‑
tropole de Bordeaux, pour d’autres types de visites, 15%6. Pourtant, plus que le ­classement
UNESCO, compte ici l’accessibilité de la destination, ou la nature de la visite, la Maison du
vin de Saint Emilion a reçu 149 214 visiteurs en 2018 lorsque la Cité du vin de Bordeaux
en recevait près de trois fois plus, 421 000 et la Citadelle de Blaye 460 870.
En Champagne, l’effet du classement ne semble pas non plus avoir totalement
bénéficié à la fréquentation œnotouristique locale. Le «rapport sur l’œnotourisme en
­Champagne, et plus spécifiquement sur le Grand Reims: vision quantitative et quanti­
tative des acteurs et de leur développement» atteste d’un effet UNESCO depuis le classe‑
ment de 2015, d’une croissance de 10-15% de la fréquentation les trois premières années.
­Cependant, depuis, «seuls quelques professionnels actifs et volontaires — à l’instar de
Taittinger et Ruinart — ont réussi à maintenir ces croissances annuelles»7. Malgré ce
­classement, les priorités de la Champagne ne sont pas prioritairement orientées vers
l’œnotourisme. L’Union des Maisons de Champagne recense 76 grandes maisons mais
toutes ne sont pas visitables, seules 21 le sont, soit moins de 30%. Quant aux vignerons,
ils sont d’après le comité Champagne 15 800. Pour autant, sur le site du Comité
­Champagne, 533 vignerons seulement ouvrent leur exploitation aux visiteurs ainsi que

6
GIRONDE TOURISME, 2022. Disponible en <gironde-tourisme.fr>. [Consult. 2 Fév. 2022].
7
PUYDEBA, [s.d.].

320
L’EFFET DU CLASSEMENT UNESCO SUR L’OFFRE ŒNOTOURISTIQUE DES VIGNOBLES EUROPÉENS

26 coopératives, soit au total, 559 exploitations ouvertes à l’œnotourisme, au total, moins


de 4% de la totalité des vignerons. Ce taux de caves ouvertes à la visite est très inférieur à
ce qu’il est dans les autres régions viticoles: 15% en Alsace,10% dans les Côtes du Rhône,
6% dans le Val de Loire, plus de 10% des propriétés du Bordelais8.
De même en Italie9, en 2019 la Toscane, par la richesse et la diversité de ces
­paysages agricoles était de loin la première destination œnotouristique du pays, 45,41%
des ­touristes, loin devant le Piémont qui en attirait 17,35%, malgré la présence sur son
territoire du vignoble de Langhe Roero Monferrato classé à l’UNESCO, les «Collines
del Prosecco di Conegliano e Valdobbiadene» ne rendant guère la Vénétie viticole plus
attractive, 6,12% des œnotouristes.
Pareillement, les caves champenoises reçoivent un peu moins de visiteurs que les
caves de Jerez de la Frontera dont le vignoble n’est pas classé à l’UNESCO, mais repré‑
sente la première destination œnotouristique espagnole, petit vignoble de 15 000 ha,­
les grandes maisons de sa route des vins reçevaient 568 997 visiteurs en 2019.
En Italie, la Toscane se confirme d’année en année comme la région œnotouristique
la plus attractive d’Italie, avec près de la moitié des préférences mondiales (45,41%), devant
le Piémont, le Trentin-Haut-Adige, la Vénétie et la Campanie. Au-delà de l’offre viticole de
ces vignobles, il faut noter que ces territoires sont très touristiques, leur offre paysagère et
patrimoniale est riche et variée, l’œnotourisme n’offre qu’un motif supplémentaire de visite
motivée par une expérience touristique originale, plus rare, mais non exclusive.
Ainsi en Suisse, à Lavaux, peu de personnes interrogées indiquent que le classe‑
ment UNESCO ait motivé leur visite. On vient à Lavaux pour le paysage, pour la ran‑
donnée, mais pas prioritairement pour le vignoble pourtant inscrit sur la liste du Patri‑
moine mondial, ni spécialement pour la renommée de ses vins10.

CONCLUSION
Les vignobles UNESCO sont des destinations œnotouristiques reconnues à l’échelle
internationale. L’augmentation de la fréquentation des vignobles classés au Patrimoine
­Mondial est sans doute le fruit de touristes sensibles à ce classement de renommée
­mondiale, ­touristes adeptes des visites des lieux et biens inscrits à l’UNESCO. Pour a­ utant,
le label n’est pas une manne. L’inscription est certes une source de notoriété, mais la poli‑
tique menée par les Etats, les régions, la proximité d’une grande ville et la facilité d’accès
qui en découle restent plus fondamentaux. L’œnotourisme semble rechercher, plus que le
nombre, la qualité de l’offre et de la fréquentation des vignobles. Les ­vignerons ­verraient
mal les touristes en trop grand nombre dans les rangs de leurs vignes! L’image d’un
­tourisme de masse serait très dommageable à leur notoriété.
8
PUYDEBAT, [s.d.].
9
XVI Rapporto Sul Turismo Del Vino In Italia, 2020: 35.
10
REYNARD et al., 2017-2019.

321
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Pourtant, certains vignobles, tels ceux de Sancerre, d’Alsace ou de Cadillac espèrent


intégrer la liste du patrimoine de l’UNESCO. Tous souhaiteraient améliorer ainsi leur
réputation, leur attractivité par une offre jugée plus exclusive, une réputation plus favo‑
rable à un œnotourisme haut de gamme.

BIBLIOGRAPHIE
CARDOSO, António (2009). A investigação fundamental em turismo e enoturismo. In CARDOSO, A ­ ntónio
Barros; DURBIANO, Claudine; GONÇALVES, Eduardo Cordeiro, coords. I Jornadas ­Internacionais
sobre Enoturismo e Turismo em Espaço Rural — Cadernos de Resumos. Maia: Edições ISMAI,
pp. 13-15.
FORRAY, Didier (2021). Le label UNESCO est ce du pipeau? «Espaces». [Consult. 2 Fév. 2022]. Disponible en
<https://documentation.departement06.fr/index.php?lvl=notice_display&id=753555>.
LIGNON-DARMAILLAC, Sophie (2009). L’œnotourisme en France, la valorisation des vignobles. Analyse et
bilan. Bordeaux: Féret.
MARTINEZ ARNALIZ, Marta; BARAJA RODRIGUEZ, Eugenio; MOLINERO HERNANDO, Fernando
(2019). Criterios De La UNESCO Para La declaración De Regiones vitícolas Como Paisaje Cultural:
Su aplicación Al Caso español. «Boletín De La Asociación De Geógrafos Españoles». 80, 1-33. DOI:
10.21138/bage.2614.
PRATS, Michèle (2011). Les retombées économiques du patrimoine culturel en France. In ICOMOS 17th
General Assembly. Paris.
­

PRATS, Michèle (2014). Les paysages viticoles: une quête d’excellence. «CULTUR». 8:03, 128-143.
PUYDEBAT, Jean-Michel [s.d.]. Rapport sur l’oenotourisme en Champagne, et plus spécifiquement sur le Grand
Reims: vision quantitative et quantitative des acteurs et de leur développement. Reims: Site de l’Office
du Tourisme. [Consult. 2 Fév. 2022]. Disponible en <https://ot-reims.fr/docs/observatoire/RAP‑
PORT%20SUR%20L%27OENOTOURISME%20EN%20CHAMPAGNE%20-%20PV2D.pdf>.
XVI RAPPORTO Sul Turismo Del Vino In Italia. Siena: Ed. Città Dell’vino, 2020.
REYNARD, Emmanuel et al. (2017-2019). Mieux connaitre le tourisme à Lavaux. Lausanne: Institut de
Géographie et Durabilité.

322
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR
DES PAYSAGES VITICOLES DE LA
PLAINE DE MORNAG: UN NOUVEL AXE
DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN
TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE*
ABDELKARIM HAMRITA**
AMIRA BOUSSETTA***
RAFAEL MATA OLMO****
HICHEM REJEB*****

Abstract: The concept of patrimonialization of terroirs and local products concerns rural areas with a
strong identity and also so-called ordinary and peri-urban areas with quality products, know-how,
and elements with a strong patrimonial value […]. In Tunisia and since independence, the process of
heritage is set up by the strong will of public authorities supported by international organizations and
tourism. Currently, and based on research in Mornag, a rich agricultural plain located southeast of Tunis,
populated by village communities practicing various intensive crops, particularly market gardening and
vineyards inherited from Italian settlers and presenting conflicts of use, the process of heritage appears to
be bottom-up, mobilizing a diverse set of actors and resources. It illustrates the interaction between the
strategies carried by the still predominant public authorities and the intentions of local collectives or indi-
vidual actors, and it illustrates the evolution of the values attributed to the rural and peri-urban country-
side, re-interrogating their importance for local development.
Keywords: patrimonialization; terroir; local development; vineyards; Mornag; Tunisia.

Resumo: O conceito de património de terroirs e produtos locais diz respeito a zonas rurais com uma forte
identidade e também às chamadas zonas ordinárias e periurbanas com produtos de qualidade,
know-how e elementos com um elevado valor patrimonial […]. Na Tunísia, desde a independência,
o processo de desenvolvimento do património tem sido implementado por uma forte vontade das auto-
ridades ­públicas apoiadas por organizações internacionais e pelo turismo. Atualmente, e através do
estudo da zona de Mornag, uma rica planície agrícola situada no sudeste da metrópole de Tunes
­povoada por c­ omunidades aldeãs que praticam várias culturas intensivas, em particular a horticultura

* Si le copyright des tableaux, graphiques et autres images n’est pas indiqué, il appartient aux auteurs de ce texte.
** Institut Supérieur Agronomique de Chott Mariem. Université de Sousse. Docteur en études du paysage et dévelop‑
pement territorial, professeur à l’ISA-IRESA-Université de Sousse et professeur invité à l’Universidad Autónoma de
Madrid.
*** Institut Supérieur Agronomique de Chott Mariem. Université de Sousse. Département des Sciences Horticoles et
du Paysage.
**** Departamento de Geografía. Universidad Autónoma de Madrid. Professeur ordinaire d’Analyse Géographique
Regionale et directeur du Département de Géographie et de Développement Territorial de l’Universidad Autónoma de
Madrid. Chercheur et conseiller auprès du Ministère de l’Économie et de la Compétitivité du gouvernement espagnol
et, à l’international (Europe, Amérique latine, UNESCO…).
***** Institut Supérieur Agronomique de Chott Mariem. Université de Sousse. Docteur en Sciences Agronomiques,
Gembloux – Belgique, professeur de l’Enseignement Supérieur, directeur de l’Unité de Recherche « Horticulture,
­Paysage, Environnement » UR13AGR06, et co-responsable du Programme Doctoral « Etude des Paysages et Dévelop‑
pement des Territoires » de l’ISA- IRESA- Université de Sousse.

323
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

e a vinha herdada dos colonos italianos, e apresentando conflitos de utilização, o processo de patrimo-
nialização parece estar orientado numa abordagem ascendente mobilizando uma multiplicidade de
atores e ­recursos, ilustra a interação entre as estratégias das autoridades públicas ainda predominantes
e as ­intenções dos coletivos locais ou dos atores individuais e exemplifica a evolução dos valores
­atribuídos à paisagem rural e periurbana e reinterroga a sua importância para o desenvolvimento local.
Palavras-chave: patrimonialização; terroir; desenvolvimento local; vinhas; Mornag; Tunísia.

Ce travail est structuré en trois parties. La première partie est consacrée à une r­ évision
conceptuelle des notions de paysage et de patrimoine afin de définir le concept des
­paysages patrimoniaux. La seconde partie est consacrée au fait méthodologique de
rappro­chement des paysages et des paysages patrimoniaux à partir des idées fortes
comme, le caractère, les représentations et les vecteurs patrimoniaux. La dernière partie
va se concentrer sur le processus de patrimonialisation des paysages de vignobles de la
plaine de Mornag et l’importance de la participation publique à identifier, caractériser et
évaluer les paysages significatifs pour monter le projet de développement local basé sur
les paysages patrimoniaux.

1. PAYSAGE, PATRIMOINE, PAYSAGES PATRIMONIAUX


«Aujourd’hui, tout est potentiellement patrimoine»1 grâce au caractère évolutif de ce
concept2. Pour avancer sur ce point, il nous semble indispensable d’effectuer un d ­ étour par
le concept du patrimoine et son évolution jusqu’à la considération croissante des ­valeurs
patrimoniales de la nature, des territoires et des paysages. Le concept de patrimoine évolue
d’une conception individuelle (héritage personnel) vers le bien commun: ­culturel. Dans
ce cadre, il a évolué d’une manière accumulative en trois directions: i) tempo­relle, jusqu’à
la considération des biens contemporains, industriels comme patri­moine; ii) séman­
tique, jusqu’à l’incorporation des biens en relation avec le monde du ­travail et biens de
nature imma­térielle (patrimoine ethnographique3); et iii) territoriale, à travers la considé­
ration de territoire comme bien culturel sur la base des figures patrimoniales émergentes
(itiné­raires et paysages culturels)4. Le patrimoine appelé naturel a aussi évolué de la valo‑
risation de la biodiversité à la signification des milieux et espaces par l’insistance sur le
caractère patri­monial de la biodiversité et des biotopes. Cette révision conceptuelle et
straté­gique permet l’ouverture du concept de patrimoine qui a commencé à abandonner
ses ­prétentions conceptuelles absolues de départ et donne naissance à des interprétations
en rénovation et révision continue comme produit enrichissant la gestion du patrimoine et
son rôle dans la réflexion culturelle. En accord avec cette ­évolution, le patri­moine r­ egroupe

1
DI MÉO, 2008: 3.
2
PRATS, 2006.
3
UNESCO, 2003.
4
SILVA PÉREZ, 2016.

324
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

l’ensemble des éléments matériels et imma­tériels (un monument, une formation natu‑
relle, perception sociale, un paysage ­culturel…) et la volonté de ­protéger les biens ­appelés
­naturels devient une action culturelle, levier de valorisation, de création et de renou‑
vellement des liens sociaux5, sous-tendu par des enjeux politiques6. Pour de nombreux
spécia­listes en patrimoine, le paysage est c­ onverti en un type particulier de patri­moine;
une e­ xtension du patrimoine culturel et une interpré­tation de ses signes histo­riques et
­culturels présentant dans une grande ­partie des configurations paysa­gères7. En conséquence,
le terme p ­ aysage culturel d
­ éfinit comme ouvrage combiné de la nature et de l’homme,
est classé par l’UNESCO en trois types: a) paysage défini, conçu et créé par l’homme;
b) paysage évolutif résultant des e­ xigences sociales, économiques, administratives e­ t/­ou
religieuses; et c) p ­ aysage associatif c­ onjuguant des phénomènes reli­gieux, artistiques, ou
culturels avec des éléments naturels8, souvent traité sans réflexion et vision stratégique,
donne place à l’expression de paysages patrimoniaux, afin de les considérer comme
­paysages à forte signification et intérêts culturels. Ces paysages patrimoniaux corres‑
pondent à des ­unités territoriales singulières construites par une superposition de couches
spatiales (base naturelle, usage du sol, formes de p ­ euplement, voies de communication…),
­sociale ­(alimentation, habitat…) et temporelles (créées à différentes périodes historiques).
­L’ensemble de ces ­éléments possédant une valeur identi­taire attribuée par la population
locale e­ t/­ou reconnue par les institutions constituent ce qu’on appelle les v­ ecteurs patrimo-
niaux9. La définition du paysage de la Convention Euro­péenne du P ­ aysage «une partie du
terri­toire, tel que perçu par la population, dont le caractère résulte de l’action de facteurs
naturelle ­et/­ou ­humaines et de leurs interactions»10 et principa­lement sa dernière partie
considère le caractère de chaque p ­ aysage comme le résultat de l’action de facteurs naturels
et humains et de ses interactions. Le sens du terme caractère comme signe ou marque qui
s’imprime sur le territoire devient très proche de l’idée ­d’empreinte singulière et signifi‑
cative de patrimoine et de territoire11. Le terme carac­tère est donc pertinent et abrite un
important contenant patrimonial. En conséquence, le patrimoine est considéré comme
l’expression du caractère symbolique et singulier qui favorise la proximité conceptuelle
entre patrimoine et paysage12. Le plus pertinent ­aujourd’hui est de considérer cette recon­
naissance patrimoniale en un ­processus puisqu’il est plus significatif que son résultat pour
la société qui le crée. Le concept de patrimoine ne cesse de changer et son évolution conduit
à considérer davantage le processus de patrimonialisation que le patrimoine lui-même.

5
MICOUD, 2004: 81.
6
BORTOLOTTO, dir., 2011.
7
CRUZ PÉREZ, ESPAÑOL-ECHANIZ, 2009.
8
UNESCO, 1972.
9
SILVA PÉREZ, 2016; SILVA PÉREZ, FERNÁNDEZ SALINAS, MATA OLMO, 2018.
10
CONSEIL DE L’EUROPE SUR LE PAYSAGE, 2000.
11
MATA OLMO, 2010; MATA OLMO, MEER, PUENTE, 2012.
12
MATA OLMO, 2010; MATA OLMO, MEER, PUENTE, 2012.

325
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Ce processus d’action et de perception sociale est partagé avec la notion de paysage,


particulièrement connue par une large t­ radition de sauvegarde et de protection en p­ remier
lieu, et ouverte sur l’aménagement et la ­gestion, en deuxième lieu. Les paysages ­présentant
une valeur exceptionnelle suscitent un ­intérêt croissant et ont généré des ­nombreuses
actions de p ­ rotection et de valori­sation13. En détournant la définition du paysage de la
Convention Européenne de Paysage (CEP), on pourrait dire que tous les paysages, habités
ou p­ euplés ou l’ayant été intègrent des valeurs identitaires et sont p
­ otentiellement patri‑
moniaux. Et sachant que le processus de patrimonialisation se caractérise par la s­ élection
de ce qui est significatif en raison de la reconnaissance de sa valeur élevée, par un ou des
groupes ­d’acteurs, tous ces paysages méritent potentiellement d’être ­reconnus et ­protégés.
En effet, la conversion d’un paysage en paysage patrimonial dépend des processus
d’appro­priation sociale et d’attribution des valeurs qui peuvent aller dans un double sens;
un sens ascendant bottom up quand la société civile insiste sur sa patrimonialisation14 et
un sens descendant top down quand la valorisation patrimoniale provient des références
normatives et institutionnelles ou de l’extension des études académiques à forte impact
social15. L’ensemble de cette démarche conceptuelle nous a aidé à établir la méthodologie
de travail qui ne correspond plus à un simple inventaire des éléments patrimoniaux et
paysagers de la plaine de Mornag mais, bien plus à une sélection des paysages signifi-
catifs et représentatifs basés sur les différentes composantes territoriales déterminant
leurs caractères, les différents et forts arguments patrimoniaux (vecteurs patrimoniaux)
et les processus d’appropriation sociale (processus de patrimonialisation).

Fig. 1. Évolution du concept du patrimoine vers le Processus de Patrimonialisation

13
SILVA PÉREZ, 2016.
14
STOBBELAAR, PEDROLI, 2011.
15
ARNESEN, 2011.

326
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

2. CLES DE LA DEMARCHE METHODOLOGIQUE


L’approche méthodologique sur la quelle est construit ce travail de recherche est une
approche pluridisciplinaire faisant référence au territoire, aux paysages et aux v­ ecteurs
patrimoniaux. La première entrée fait référence au territoire, vu comme modèle d’orga­
nisation sociale et fonctionnelle qui exprime les modèles de comportement spatial et les
valeurs que les communautés attribuent à l’espace dans son processus actuel. La deuxième
entrée fait référence au paysage comme expression du caractère de territoire (Landscape
Character Assessment)16. Les variables relevant de la structure du p ­ aysage (forme et orga­
nisation, systèmes de production…), les variables en rapport avec le fonction­nement
(orientations de production, orientations techniques, ménages des exploitations…),
les variables de la gestion (classification de l’occupation du sol, adaptation et résistance,
les politiques mobilisées…) et les variables de la perception sociale sont les variables
déterminantes pour l’identification et la caractérisation du paysage. La reconnaissance
patrimoniale d’un territoire est sélective et basé sur l’ensemble des ­vecteurs patrimo‑
niaux, leurs interactions et leur localisation afin de distinguer les zones de d ­ ensité et
de diversité patrimoniales différentes (zonage à dires d’acteurs)17. Les ­vecteurs patrimo‑
niaux sont capables d’établir pour l’ensemble des paysages que pour certaines parties qui
les composent, des zones d’intensité patrimoniale élevée, moyenne, faible ou en voie de
dé-patrimonialisation. L’intérêt de ce triple exercice n’est pas seulement analytique,
mais aussi prospectif, car il permet d’établir les lignes directives sur ce qu’il faut protéger
dans les paysages (caractères, vecteurs patrimoniaux) et souligner les aspects qui devraient
relever de la protection, de la planification et de la gestion des paysages patrimoniaux.

Fig. 2. Diagramme Méthodologique Intégré : Territoire-Paysage-Patrimoine (DMI_TPP)

16
HAMRITA, 2017.
17
BOUSSETTA, 2019.

327
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

3. RESULTATS

3.1. Histoire des paysages viticoles à Mornag


Les premières plantations de vigne remontent à la période punique (-800 av. JC), à l’initia­
tive des Phéniciens qui ont fondé Carthage. Les Carthaginois ont été les p ­ remiers à adopter
une approche scientifique pour développer le vignoble selon le traité d’agro­nomie rédigé
par le père de l’agronomie méditerranéenne Magon. La présence du vignoble dans le pays
est alors attestée depuis l’époque romaine, par le traité du carthaginois Magon. La culture
de la vigne a prospéré pendant l’époque carthaginoise et romaine. La riche ­collection de
mosaïques et de fresques notamment du Musée du Bardo à Tunis illustre la véracité et
permet d’attester l’habilité de ces anciens agriculteurs, et de montrer leur amour de la
vigne et du vin18. L’origine de la région de Mornag remonte à l’époque ­romaine .Sa proxi‑
mité de la mer et ses terres fertiles expliquent l’attractivité de cette région. Les nations
qui sont passées par Mornag sont les romains, les byzantins, les andalous, les conqué‑
rants arabes, les turques et les européens comme les italiens, les maltais et les français19.
Conscients des richesses et caractéristiques historiques et agronomiques de cette région,
les colons français, alsaciens et lorrains venus en 1871, contribuèrent à la ré-exploitation
et à l’expansion du vignoble dans cette vallée. Ainsi, d’immenses champs de vignes ont
réapparu, au milieu desquels furent construites plusieurs caves à vin. Un exemple est celui
de la ferme du colon Créte, qui, déjà en 1892, possédait 221 ha, dont la plupart étaient de
la vigne, et cultivés avec des moyens techniques très avancés comme la charrue à vapeur.
Il arrivait à employer quelques centaines de travailleurs et c’est justement là que s’était
formé le premier centre habité qui a pris le nom de Créteville ainsi qu’à la sédentarisation
des populations locales comme le déjà confirmé Poncet dans son livre sur la colonisation
agricole européenne de la Tunisie: «la vigne faisait vivre et fixait au sol une petite popula‑
tion européenne, transformant le paysage humain et physique des zones viticoles»20.

3.2. La plaine de Mornag: unité territoriale dynamique et à des conflits


d’usage
La plaine de Mornag est constituée par la basse vallée de l’Oued Miliane et entourée
par un ensemble de collines de faible altitude (Jebel Erorouf, Jebel Et Tella, collines de
­Khlidia et collines de Radès). Elle est située au gouvernorat de Ben Arous à 16 km au sud
de la capitale Tunis. Regroupant près de 20.000 hectares de zones agricoles utiles, la délé‑
gation de Mornag constitue le bastion agricole du gouvernorat appuyé par 8660 ­hectares
de zones irriguées, de barrages et de lacs collinaires. Elle s’étend sur 39.600 hectares

18
CHAOUECH, 2010.
19
MIMOUNI, 2001.
20
PONCET, 1961.

328
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

dont plus de la moitié sont des terres agricoles utiles. Elle est dominée par un sommet,
le Jebel Ressas (795 mètres) et entourée par un ensemble de reliefs (Jebel Ressass, Jebel
Boukornine, collines de Rades…). Elle constitue la zone avale du bassin hydrographique
de l’oued Miliane qui s’étend sur une superficie de 2000 km² et auquel vient s’adjoindre
un affluent, l’Oued El Hamma. Historiquement peuplée par les colons français et ­italiens,
la population rurale estimée à 21.742 représente 40% de la population totale de la délé­
gation21. La région de Mornag est caractérisée par trois éléments naturels essentiels;
une topographie plane, un climat de type méditerranéen et un sol assez riche. La plaine
de Mornag renferme, l’unique système aquifère de la région de Ben Arous d’où l’impor‑
tance qu’acquiert cette nappe pour soutenir les principales activités économiques de la
région; l’agriculture en premier lieu et l’activité industrielle et minière en second lieu.
Le territoire de Mornag était à peu près divisé en deux parties le long d’un axe sud-ouest/
/nord-est perpendiculaire à la route Tunis-Grombalia. Dans la partie nord-ouest on a pu
reconstruire la présence de l’olivier sur des terrains habous, composée de 321.000 pieds
d’olivier, assez morcelés et exploités par de petits agriculteurs. La partie sud-est consti‑
tuait le domaine des grands propriétaires exploitaient le terrain par la culture de céréales
et de vignes avec 56.000 ha en 1993. A ces trois principales cultures s’ajoute la culture des
arbres fruitiers et le maraîchage introduit suite aux encouragements de l’état et pour
des raisons d’approvisionnement alimentaire du pays. Comme toutes les plaines agri‑
coles périphériques, la plaine de Mornag a subi fortement l’emprise d’une bourgeoisie
citadine intéressée au développement de la production céréalière et d’un élevage indis‑
pensable aux besoins de la consommation urbaine, et ce bien sa considérée comme
bien fertile et porte des cultures commerciales et vivrières mais se trouve en ­ordure du
Grand Tunis22 qui renvoie à une diffusion incontrôlée de l’urbanisation au-delà de la
zone métro­politaine centrale, dans une zone qualifiée comme zone de solidarité métro­
politaine et dans des nouvelles marges périurbaines23. Le grignotage des terres agri‑
coles a commencé depuis les années soixante-dix, particulièrement autour de Cébalat
­Mornag24, se poursuit jusqu’à ces dernières années et se fait selon un ordre dispersé de
résidences pavillonnaires à l’intérieur du périmètre communal et une avancée m ­ assive
dans des excentrées compactes le long de voies de communication à la faveur des
implan­tations industrielles. A cause de sa situation très proche de la métropole Tunis,
la plaine de Mornag a perdu une grande partie de ses terres agricoles fertiles et parti‑
culièrement des vignobles. L’analyse de la carte de l’occupation du sol (Fig. 3) montre le
recul de la viticulture au détriment de l’urbanisation du Grand Tunis et des petits noyaux
urbain à l’intérieur de la plaine qui ont tendance à grignoter mêmes les terres ­agricoles

21
BOUSSETTA et al., 2015b.
22
HAMMAMI, 2005.
23
DLALA, 2011.
24
DLALA, 2011.

329
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

en zone d’interdiction et en zone de sauvegarde. Le changement de la perception


sociale des espaces agricoles périurbains comme celui des vignobles de la plaine M ­ ornag,
des ­espaces de production à des espaces de loisirs était aussi un facteur déclencheur de
l’appa­rition des nouveaux types d’urbanisation appelés résidentielle (villas et résidences
de plaisance) et agrotouristique (gîtes ruraux). Ce sont aussi les opérations d’habitat
réglementé qui menacent la plaine de Mornag et prévues par des organismes officiels
comme la SNIT (Société Nationale Immobilière de Tunisie)25. Cette zone périurbaine
récente forme une «ligne de conflit» avec le voisinage rural du secteur de la plaine26
confirmé par les résultats des interviews montrant que l’étalement urbain apparait
comme premier risque sur cette zone agricole. Selon les interviews, les nouveaux habi‑
tats de la SNIT, les habitats spontanés et les villas de la bourgeoisie tunisienne veulent
fuir le centre-ville et provoquent une marginalisation des ressources naturelles de la
plaine et un boulever­sement de son paysage à dominance rural. La plaine de Mornag
souffre aussi de p ­ lusieurs problèmes environnementaux, notamment, le changement
clima­tique, princi­palement, la pénurie d’eau et la dégradation e sa qualité, la dégrada‑
tion de ressources naturelles (eau, sol, paysage…), et la pollution atmosphérique et du
sol par les résidus de plomb et autres polluants dont les principales sources de pollu‑
tion sont les carrières et la cimen­terie de Carthage situés sur Jebel Ressass et appar­
tenant à la même société (Cimenterie de Carthage). Selon les acteurs de la plaine,
principalement les agriculteurs, cette pollution atmosphérique et du sol agit sur la ­qualité
de l’air, la couleur de la végé­tation et la fertilité du sol et sa vie microbiologique faisant
perdre à la plaine l’image d’un paysage méditerranéen qui s’est transformé en un ­paysage
sec, quasi-steppique et inondé de poussière et de polluants chimiques. En troisième
position vient le risque des déchets ménagers et des décharges publiques incontrôlées27.

Fig. 3. Carte des vignobles et caves à vin


de la plaine de Mornag
et le Cap Bon
Source: elaboration propre à l’auteur
principal

25
CHALINE, 1996.
26
DLALA, 2011.
27
BOUSSETTA et al., 2015a.

330
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

3.3. Le caractère des paysages viticoles de la plaine de Mornag


Selon les notes humoristiques de Jacques De La Forge dans son ouvrage (Tunis-Port-
-De-Mer), «Le Mornag, une immense plaine plantée de vignes et d’oliviers. […] Cette
immense plaine de Mornag ne renferme ni villages, ni hameaux, seulement quelques
domaines fort éloignés les uns des autres et dans ce désert de vignes, séparé de Tunis par
plusieurs lieux, il faut savoir suffire à soi-même»28. Cette plaine constitue la plus grande
partie de la ceinture verte de la capitale et présente des importants paysages agraires
qui confondent l’image de la nature, mais la nature «cultivée». Sur ces terres les vignes,
les oliviers et les pêchers se démarquent dans les paysages. Ils sont des éléments omni­
présents et symboles de ces paysages. La plaine de Mornag est caractérisée par un paysage
agraire dominé par des vergers d’oliviers, de pêchers et des champs de vignes et de céréales
délimités par des brise-vent. Les agglomérations sont développées autour de noyaux à
constructions coloniales et habitats dispersés. Les paysages viticoles de la plaine de
­Mornag, comme tous les paysages agraires, œuvres combinés de l’homme et de la nature,
sont classés en tant que paysages culturels et évolutifs résultant de l’exigence économique:
la production du vin. La couleur représente la composante la plus visible dans l’ensemble
de ce paysage, les feuilles de vigne possèdent une richesse chromatique intéressante tant
selon les saisons ou bien encore selon les cépages. La dimension paysagère du vignoble de
la plaine de Mornag est essentiellement fondée sur ses éléments naturels: les ceps nerveux
de la vigne avec leurs formes vivantes accrochés à des piquets en béton ou en métal, le sol
avec sa texture, sa couleur et sa topographie plate. A ces éléments naturels s’ajoute l’action
de la population sur la plaine avec le mode de conduite de la vigne et son architecture,
les formes géométriques des parcelles donnant naissance à une trame régulière en
timbre de poste, les voiries et les éléments du bâti (châteaux, caves à vin…). Le paysage
d’openfield est façonné par des espaces de verdure inscrits dans cette mosaïque paysa‑
gère, plus spécifi­quement prairial, offrant un aspect entretenu et maîtrisé, ouvert et clair.
A ce ­paysage agraire s’ajoute les paysages à dominance naturels marquant et structurant le
­territoire de Mornag. Les paysages naturels sont composés essentiellement de ­montagnes,
de lacs et de forêts. La montagne de Jebel Ressas est un massif imposant par sa domi­nation
de la plaine de Mornag, son sommet qui montre d’importantes falaises et ses ­versants
relati­vement abrupts. Outre son intérêt géologique qui le rapproche du Jebel Z ­ aghouan
il ­présente une flore et faune relativement riches (Thuya de Berberie associés à des
­formations oléo-lentisques). Le Jebel Ressas est un élément identitaire important du
­paysage de la région et crée un contraste frappant avec le relief plat de la plaine, d’où
des valeurs esthétiques écolo­giques ainsi qu’économiques (anciennes mines de Plomb
et carrière).

28
DE LA FORGE, 1894.

331
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Fig. 4. Oliveraie et vignoble


contrastant avec le relief
de Jebel Ressas
Source: BOUSSETTA et al., 2015b

3.4. Le patrimoine culturel dans la législation tunisienne


En Tunisie, le droit du patrimoine remonte à la fin du XIXème siècle. Ce code s’est formé
progressivement au fil des années et au fil de l’évolution même de la perception du patri‑
moine par le législateur et les collectivités territoriales et locales. En premier temps le
droit s’est limité aux biens historiques et archéologiques. Dès le début du XXème siècle,
des mesures spécifiques à la protection des médinas et de leurs faubourgs ont été
­décrétées. Les premiers textes législatifs qui ont introduit la notion du site dans le code
du patrimoine incluant ainsi à degrés variables l’espace environnant des biens patrimo‑
niaux sont assez récents et datent des années cinquante. Vers les années 1980, la nécessité
de ­protéger les sites naturels, ruraux et urbains symboliques et significatifs est affirmée
afin de sauvegarder le patrimoine culturel. Plus tard, la notion de bassin culturel est
mani­festée. Il s’agit d’un concept prioritairement organisationnel et économique pour
faciliter le tourisme culturel. Il correspond à l’ensemble patrimonial regroupant des sites
archéologiques, des monuments, des ensembles urbains historiques significatifs et/ou
ordinaires, des espaces naturels et ruraux. La création de l’Institut National du Patri‑
moine (INP) marque la volonté de l’état à prendre en charge la gestion de cet héritage,
avec un encadrement juridique clair, mais avec des moyens financiers et humains
modestes. P ­ lusieurs sites culturels sont inscrits sur la liste du Patrimoine Mondial de
l’UNESCO et une attention particulière est portée aux savoir-faire artisanaux forte‑
ment lié au t­ourisme et à l’export. L’intérêt pour le patrimoine immatériel est limité au
­domaine des arts du spectacle, en relation étroite avec le tourisme, notamment à travers
des festivals à thème. Le processus de patrimonialisation du rural est progressivement
lancé afin de mettre en place l’idéologie du développement durable, concilier la conser‑
vation et la valorisation économique des ressources et développer de formes alternatives

332
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

de tourisme en milieu rural et réhabiliter positivement le terroir comme modèle et base


d’un développement agricole durable et adapté aux zones rurales en difficulté29. En ce
qui concerne le paysage, un inventaire des paysages naturels et ruraux de la Tunisie a
été accompli en 200930. Il s’agit d’une première ébauche d’identification des paysages qui
a permis la mise en place d’une base des données pour approfondir les études sur les
­paysages, les paysages culturels et les paysages patrimoniaux.

3.5. Processus et vecteurs de patrimonialisation


Le paysage viticole de la plaine de Mornag est l’association d’un terroir, d’un climat,
d’un produit à forte plus-value est d’autre part la combinaison d’un terrain, d’un cep
et d’un savoir-faire. Tous ensemble s’associe pour donner un paysage rempli d’atouts
­naturels et d’apports culturels. Grâce à la démarche méthodologique employée dans cette
recherche, nombreux vecteurs patrimoniaux ont été sélectionnés comme significatifs et
représen­tatifs et considérés comme forts arguments patrimoniaux pour l’établissement
de processus d’appropriation social et de patrimonialisation dont les principaux vecteurs
patrimoniaux de la plaine de Mornag sont:
• l’Église de la Cebala — un des importants éléments architecturaux de M ­ ornag
construite en 1911. Désacralisée au moment du modus vivendi, signé le 10 ­juillet
1964, entre la république tunisienne et le Vatican. L’église a été cédée à l’état tuni­sien
sous condition de la dédier à des activités culturelles. C’est ainsi qu’un concours
a été lancé dont ce programme comprenait la restauration de l’église ainsi qu’une
extension avec des espaces d’exposition, une salle polyvalente, des clubs, une salle
de projection dans un style architectural contemporain mettant en valeur l’Église
de la Cebala;
• les anciennes fermes coloniales et son architecture — Le corps de la ferme colo‑
niale forme un paysage typique et singulier, constitué des parcelles de plantation,
une somptueuse avenue de cupressus conduit à une habitation château construite
en plein cœur de la ferme et entourée de beaux ombrages présentant une longue
terrasse à peine surélevée de quelques marches et un toit en tuiles patinées. L’archi­
tecture vitivinicole coloniale est une composante singulière du paysage de la plaine
de Mornag. En effet les colons agriculteurs ont construit dans ces espaces des bâti‑
ments et des corps de fermes bien intégrés dans le paysage. Ces fermes jalonnent
le paysage et se distinguent grâce aux toitures inclinées en tuiles rouges de leurs
châteaux et caves. La forme unificatrice de la toiture, la clarté des contours et les
façades constituent des parties parfaitement distinctes et identitaires;

29
MICHON et al., 2016.
30
ABDELKAFI, 2009.

333
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

• les caves à vin — le domaine viticole de Mornag est formé de plusieurs édifices
nécessaires pour la vinification. De plan rectangulaire, munie d’une toiture de
tuiles, la cave est construite avec soin afin de l’aérée et la protégée du soleil. L’utili­
sation de la pente du terrain, naturelle ou artificielle, est importante dans la tech‑
nique de construction de ce bâtiment enterré aux deux tiers afin de réguler sa
température. Cet édifice est généralement pourvu de deux niveaux accessibles
ce qui va faciliter la réception de la récolte. Les caves sont les témoins de leurs
époques, elles présentent généralement une façade très bien architecturée et
­décorée où on trouve la gravure des noms des propriétaires ainsi que les dates de
leurs constructions;
• Jebel Ressass — les paysages naturels marquent et structurent le territoire de
Mornag. Les espaces naturels sont composés essentiellement de Montagnes
de lacs et de forêts. Jebel Ressass est l’avant dernier massif de la dorsale tunisienne
qui est caractérisée par un alignement de massifs jurassiques bordés sur leurs
flancs orientaux par la faille de Zaghouan;
• le produit de terroir AOC — Grand Cru Mornag — le Château Mornag est le
vin tunisien le plus connu au monde, situé dans l’Appellation d’Origine ­Contrôlée
Grand Cru Mornag. Vendangé manuellement, ce vin est issu d’un assemblage
Carignan, Syrah et Merlot qui ensemble expriment une belle robe au rouge
­profond, brillante et légèrement tuilée. Le vin de Sidi Sâad situé dans l’Appellation
d’Origine Contrôlée Grand Cru Mornag est un assemblage harmonieux par un
équilibre entre les raisins de Cabernet sauvignon et de Syrah vendangés manuel‑
lement et vinifiés traditionnellement, avec un contrôle rigoureux des tempéra‑
tures. La bouteille du Sidi Sâad dont la forme est une amphore rappelant le passé
carthaginois, est une exclusivité des Vignerons de Carthage;
• le Festival des vignes de Mornag — le Festival des vignes de Mornag a ­commencé
en 2016 afin de mettre en avant les richesses de la région ainsi que les produits du
terroir, notamment les raisins et les vins. Cette manifestation est organisée par la
Jeune Chambre Économique de Mornag, en partenariat avec l’Union Tuni­sienne
de l’Agriculture et de la Pêche (UTAP), la Municipalité de Mornag, la D ­ irection
Régionale de la Culture de Ben Arous ainsi que la Direction Régionale de Déve­
loppement Agricole de Ben Arous. Cette fête qui honore les vignerons et les habi­
tants de cette région agricole était l’occasion de déguster les différentes sortes
de raisins et leurs dérivés ainsi que d’autres produits de la région et de ­profiter
des ­diverses animations proposées par les organisateurs. D’autres ­objectifs sont
­assignés à ce festival, à savoir; la mise en valeur du patrimoine agricole et touris­tique
de Mornag, la création d’un espace commercial où se réunissent les agriculteurs,
les professionnels de l’agriculture, de l’agroalimentaire et du machi­nisme agricole,
afin de promouvoir leurs activités respectives et de partager ­l’information sur la

334
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

situation de la viticulture à Mornag et ses problèmes, à travers un programme de


colloques et de séminaires ciblés et ouverts aux publics;
• l’itinéraire culturel des vins — Iter Vitis Magon — est un nouveau produit touris­
tique prometteur à vocation culturelle a vu le jour dans le cadre d’une coopé­ration
transfrontalière entre la Tunisie et l’Italie, les deux voisins du sud de la Méditer­ranée
aux particularités culturelles et historiques assez identiques. Ce nouvel itinéraire
culturel en Méditerranée entre la Tunisie et la région de Sicile est développé par la
société de services culturels «Animed» en partenariat avec ses partenaires tunisiens
dans le cadre du projet européen Magon. Ce produit touristique et c­ ulturel insiste
sur l’originalité de cet itinéraire qui se démarque des circuits habituels proposés aux
touristes qui viennent en Tunisie pour leur faire découvrir cet aspect peu connu de
la vitiviniculture et ses ramifications dans le patrimoine historique et archéologique
du pays. L’originalité de ce produit réside dans sa vocation basée sur la valorisation
de la culture de la vigne et du vin dans des contextes paysager patrimonial et du
terroir avec pour objectif primaire la promotion des produits «vins» et «paysages»
de qualité et de forte valeur patrimoniale.

4. DISCUSSIONS
La valorisation des paysages patrimoniaux significatifs et/ou ordinaires, a augmenté
grâce à des initiatives top down souvent jouant un rôle moteur dans les dynamiques terri­
toriales et économiques des terroirs, mais le rôle de l’État, reste toujours prédo­minant.
L’inventaire participatif des paysages patrimoniaux a tendance à être le ­principal moyen
d’identification, de caractérisation et d’évaluation des paysages patrimoniaux et de leurs
produits susceptibles de faire l’objet d’une indication géographique et d’une valorisation
commerciale, mais aussi paysagère. Cette initiative de protection et de valorisation des
paysages patrimoniaux par les collectivités territoriales (festival de vigne, itiné­raire
des vins, stands de vente, stands de dégustation, le marché de produits de terroir)
fait l’objet d’une nouvelle stratégie de développement local des territoires défavorisés,
­notamment de l’intérieur du pays. Le discours démontre combien cette stratégie est là
pour ­réaffirmer le rôle primordial du caractère de paysage périurbain et rural comme
alternative à la métropole en termes d’équipement culturels et patrimoniaux. Le renver­
sement démographique de la ville de Tunis a été nourri par des produits de terroir de
voisinage qui a pris des nouvelles formes qui cherchent à se positionner et à montrer
qu’elles offrent une qualité de vie meilleure que le centre-ville dont la patrimonialisation
est une partie ­prenante dans ses stratégies urbaines et de développement local. Certes,
que les vignes et les vins de la plaine de Mornag constituent des produits de terroir de
renommée national et internationale, dont leurs paysages sont en processus de patrimo-
nialisation et contribuent à affirmer le caractère de la plaine, mais à côté de ces ­produits,
s’ajoute l’oléiculture, la polyculture fruitière et maraichère, les grandes cultures et ­l’élevage

335
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

affirmant la diversité des productions de la plaine de Mornag et la possibilité d’offrir à


la métropole du Grand Tunis une gamme diversifiée de produits frais, de qualité, et de
proximité. Sur cette base, les projets de développement doivent insistés sur le fait que
cette agricul­ture périurbaine à forte valeur patrimoniale est garante du maintien de la
qualité de vie pour les résidents de ce territoire métropolitain et facteur d’attractivité
en termes de ­paysage patrimonial et tourisme alternatif de proximité. Le festival des
vignes de M ­ ornag ­cherchait à valoriser tous les patrimoines de la plaine de Mornag,
dont les paysages et les produits de terroir sont des composantes majeures. La vitivini‑
culture redevient un objet symbolique, identitaire et fédérateur du processus de patrimo­
nia­­li­sation de ce t­erroir et contribue à mettre en réseaux différents types ­d’acteurs:
agriculteurs, associations, habitants…, conscient que la métropole Grand Tunis a besoin
de ses compagnes proches pour ses prochains projets de développement.

Dynamique
d’appropriation

Intensité Densité
patrimoniale patrimoniale

Fig. 5. Diagramme de processus


de patrimonialisation des
paysages vitivinicoles selon les
acteurs de la plaine de Mornag.
0 = aucune, 1 = faible, Diversité
2 = moyenne, 3 = forte patrimoniale

CONCLUSION
L’exemple développé de la plaine de Mornag illustre que la notion de patrimoniali­
sation est le processus d’attribution de valeurs et d’appropriation d’un bien matériel
ou imma­tériel par la communauté locale. Le festival des vignes, l’itinéraire Iter Vitis
Magon, le marché des produits de terroir, la gastronomie…, sont des initiatives inno‑
vantes et très intéressantes pour les paysages patrimoniaux impliquant la population et
les ­acteurs ­locaux par oppo­sition aux déclarations institutionnelles de biens culturels
par le gouver­nement. Le ­processus de patrimonialisation peut contribuer à qualifier des
territoires et des paysages en devenir en s’appuyant sur leurs caractères et leurs vecteurs

336
LA PATRIMONIALISATION EN FAVEUR DES PAYSAGES VITICOLES DE LA PLAINE DE MORNAG:
UN NOUVEL AXE DE DÉVELOPPEMENT LOCAL D’UN TERRITOIRE A DES CONFLITS D’USAGE

­ atrimoniaux. Il apparaît davantage comme une valeur ajoutée identitaire et un outil;


p
de mobilisation des espaces périurbains pour le développement d’un nouveau produit
touris­tique de proximité et différent de celui du tourisme de masse, de développement
des produits agricoles de qualité et «courts», de résolution des conflits et de consoli­
dation des ­compromis entre ruralité et urbanité.

BIBLIOGRAPHIE
ABDELKAFI, Jellal (2009). Atlas des paysages de Tunisie. Tunis: Direction générale de l’aménagement du
Territoire/Ministère de l’equipement, de l’habitat et de l’aménagement du Territoire.
ARNESEN, Tor (2011). ‘Landscape’ as a sing: Semiotics and methodological issues in landscape studies.
In ROCA, Zoran; CLAVAL, Paul; AGNEW, John, eds. Landscapes, identities and development.
­Farnhan: Ashgate, pp. 363-376.
BOUSSETTA, Amira (2019). De la réinterprétation aux valorisations. Des paysages agri-urbains de Jebel
­Ressas et la plaine de Mornag de la ville de Ben Arous. [S.l.]: ISA- IRESA-Université de Sousse. Thèse
de doctorat.
BOUSSETTA, Amira et al. (2015a). Le zonage a dires d’acteurs un outil en faveur de l’éco-paysage: Mornag
et Jebel Ressas. In REJEB, Hichem, éd. Alternatives éco paysagères dans les régions méditerranéennes.
[S.l.]: Université de Sousse, pp. 63-72.
BOUSSETTA, Amira et al. (2015b). Comprendre un paysage et un territoire au travers d’un outil de spatiali-
sation participatif: Cas de la zone de Mornag-Jebel Ressas. Tunisia: Proceedings of the Spatial Analysis
and GEOmatics conference.
BORTOLOTTO, Chiara, dir. (2011). Le patrimoine culturel immatériel. Enjeux d’une nouvelle catégorie.
­Paris: La M ­ aison des Sciences de l’Homme.
CHALINE, Claude (1996) Les villes du monde arabe. Paris: A. Colin.
CONSEIL DE L’EUROPE SUR LE PAYSAGE (2000). Convention du Conseil de l’Europe sur le paysage.
[Consult. 12 sep. 2022]. Dispo­nible en <https://www.coe.int/fr/web/landscape/the-european-land‑
scape-convention>.
CRUZ PÉREZ, Linarejos; ESPAÑOL ECHÁNIZ, Ignacio (2009). El paisaje. De la percepción a la gestión.
Madrid: Ediciones Liteam.
DE LA FORGE, Jacques (1894). Tunis-Port-De-Mer. Notes humoristiques d’un curieux. Paris: Librairie
­Marpon et Flammarion.
DI MEO, Guy (2008). Processus de patrimonialisation et construction des territoires. In Colloque Patrimoine
et ­industrie en Poitou-Charentes: connaître pour valoriser. Poitiers-Châtellerault: Hal Open Science,
pp. 87-109. [Consult. 12 sep. 2022]. Disponible en <https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-00281934/
document>.
DLALA, Habib (2011). L’émergence métropolitaine de Tunis dans le tournant de la mondialisation. «Méditer‑
ranée. Revue géographique des pays méditerranéens». 116, 95-103.
HAMMAMI, Saida (2005). Analyse des relations agriculture périurbanisation dans le Grand Tunis: Etude de
cas de la région de Mornag. [S.l.]: PTP ISA-IRESA-Univ Sousse, pp. 109-111.
HAMRITA, Abdelkarim (2017). Le devenir des espaces agricoles et naturels dans le territoire de la ville métro-
politaine. De la protection au projet de paysage. Cas du Grand Sousse. [S.l.]: ISA-IRESA-Université de
Sousse; Madrid: Universidad Autónoma de Madrid. Thèse de doctorat.
MATA OLMO, Rafael (2010). La dimensión patrimonial del paisaje. Una mirada desde los espacios rurales.
In MADERUELO, Javier, dir. Paisaje y Patrimonio. Madrid: Abada Editores, pp. 31-74.

337
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

MATA OLMO, Rafael; MEER, Ángela de; PUENTE, Leonor de la (2012). Sustainable development and the
making of territory and everyday landscapes as heritage. An experience in the cantabrian mountains.
In MARIA FERIA, José, ed. Territorial Heritage and Development. London: Taylor & Francis Group,
pp. 141-158.
MICOUD, André (2004). La patrimonialisation ou comment redire ce qui nous relie (un point de vue socio­
logique). In BARRÈRE, Christian et al., dirs. Réinventer le patrimoine. De la culture à l’économie,
une nouvelle pensée du patrimoine? Paris: L’Harmattan, pp 81-97.
MICHON, Geneviève et al. (2016). Les enjeux de la patrimonialisation dans les terroirs du Maroc.
In ­BERRIANE, Mohamed; MICHON, Geneviève, dir. Les terroirs au Sud, vers un nouveau modèle?
Une expérience marocaine. Marseille: IRD Éditions, pp. 161-179.
MIMOUNI, (2001). L’étalement urbain au détriment des terres agricoles et ses influences sur la vie des agricul-
teurs. Cas de Mornag.
PONCET, Jean (1961). La colonisation et l’agriculture européennes en Tunisie depuis 1881. Étude de géogra-
phie historique et économique. Paris: Mouton & Co.
PRATS, Llorenç (2006). La mercantilización del patrimonio: entre la economía turística y las representaciones
identitarias. «Boletín del Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico». 14:58, 72-80.
SILVA PÉREZ, Rocío (2016). Landscape, heritage and territory. Some notes from the Spanish geographic
­perspective. Crisis globalization and social and territorial imbalances in Spain. In Spanish Contribution
to 33rd IGC Beijing 2016. Madrid: Spanish Committee International Geographical Union, pp. 54-62.
SILVA PÉREZ, Rocío; FERNÁNDEZ SALINAS, Víctor; MATA OLMO, Rafael (2018). Concepto, ámbito y
significado de los pasajes patrimoniales. In MOLINERO HERNANDO, Fernando et al., eds. Paisajes
patrimoniales de España. Madrid: Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación — Ministerio para
la Transición Ecológica, pp. 13-34. Tomo I: Paisajes patrimoniales de dominante natural.
STOBBELAAR, Derk Jan; PEDROLI, Bas (2011). Perspectives on Landscape Identity: A Conceptual ­Challenge.
«Landscape Research». 36:3, 321-339.
UNESCO (1972). Convention concernant la protection du patrimoine mundial culturel et natural. [Consult.
12 sep. 2022]. Disponible en <https://whc.unesco.org/archive/convention-fr.pdf>.
UNESCO (2003). Convention for the Safeguarding of the Intangible Cultural Heritage. [Consult. 12 sep.
2022]. Disponible en <https://ich.unesco.org/doc/src/15164-EN.pdfç>.

338
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES
INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO
DO ENOTURISMO: A PERCEÇÃO DOS
GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO
DOURO VINHATEIRO*
TISSIANE SCHMIDT DOLCI**
ARTUR FERNANDO ARÊDE CORREIA CRISTÓVÃO***
MARCELINO DE SOUZA****

Resumo: O presente trabalho visa analisar os incentivos e restrições institucionais ao desenvolvimento


do enoturismo no Alto Douro Vinhateiro (ADV), a partir da perceção de gestores de turismo de oito
­quintas da região. Para tal, realizou-se uma pesquisa exploratória e descritiva, que contou com investi­
gação bibliográfica, observação de campo e aplicação de roteiros de entrevistas aos gestores do turismo
das respetivas quintas. Concluiu-se que, na perceção destes gestores, a catalogação do ADV como
património da UNESCO atuou sinergicamente às políticas de incentivo ao turismo no espaço rural em
Portugal, com a mobilização de recursos privados e públicos na qualificação da infraestrutura turística,
sendo uma importante instituição incentivadora do enoturismo. As principais restrições institucionais
estão relacionadas com a falta de uma política eficiente para evitar a emigração dos jovens e dificuldades
na atuação coletiva para implementação de rotas enoturísticas.
Palavras-chave: instituições; turismo; património; vinhedos.

Abstract: This paper aims to analyze the institutional incentives and constraints to the development of
wine tourism in Alto Douro Wine Region (ADV), from the perception of tourism managers of eight farms
in the region. To this end, an exploratory and descriptive research was carried out, which included biblio-
graphic research, field observation and application of interview scripts to the tourism managers of the
respective farms. It was concluded that, in the perception of these managers, the listing of the ADV as a
UNESCO heritage site acted synergistically with the incentive policies for tourism in rural areas in Portugal,
with the mobilization of private and public resources in the qualification of tourism infrastructure,
being an important institution to encourage wine tourism. The main institutional constraints are related
to the lack of an efficient policy to prevent the emigration of young people and difficulties in collective
action for the implementation of wine tourism routes.
Keywords: institutions; tourism; heritage; vineyards.

* Se o copyright de tabelas, gráficos e outras imagens não for indicado, pertence aos autores deste texto.
** Professora da Área Académica de Administração, Turismo e Economia, Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) — Campus Porto Alegre (Brasil).
*** Professor catedrático aposentado do Departamento de Economia, Sociologia e Gestão da Escola de Ciências ­Humanas
e Sociais da UTAD (Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro).
**** Doutor em Engenharia Agrícola pela Universidade Estadual de Campinas (2000). Professor titular do Departa‑
mento de Economia e Relações Internacionais e dos Programas de Pós-graduação em Desenvolvimento Rural e de
Agronegócio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil.

339
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

INTRODUÇÃO
É recorrente, na literatura, a ligação do enoturismo à paisagem cultural, de forma que os
territórios que têm paisagens classificadas como Património Mundial da UNESCO são
propícios para o desenvolvimento do enoturismo, despertando o interesse de estudiosos
sobre a temática1.
Com base neste contexto do enoturismo e para sustentar a análise, o estudo funda‑
mentou-se na teoria institucional de Douglass North, que defende a ideia de que existe
uma matriz institucional que suporta e explica o desenvolvimento2, com a existência de
instituições que incentivam e outras que restringem a ação das organizações que atuam
nas interações socioeconómicas, de tal forma que promovem ou restringem o desem­
penho económico.
A partir desta conceção, derivou-se a ideia de que existe uma matriz institu­cional
que suporta o desenvolvimento do enoturismo no Alto Douro Vinhateiro (ADV),
­propondo-se a presente análise. Nesse sentido, este estudo propôs-se analisar os incen‑
tivos e restrições institucionais ao desenvolvimento do enoturismo no ADV a partir da
perceção de gestores de turismo de oito quintas que operam na região.
Este território é reconhecido, desde 2001, como Património Cultural da Humani‑
dade da UNESCO, tendo a sua história fortemente vinculada à vitivinicultura, possuindo
aspetos culturais e naturais que fornecem um bom pano de fundo para a implementação
de atividades enoturísticas. Para tal, foram delineados os seguintes objetivos específicos:
contextualizar, a partir de uma perspectiva histórica, o surgimento da vitivinicultura e
do enoturismo na região; caracterizar as quintas pesquisadas; e identificar as instituições
restritivas e incentivadoras do enoturismo, na perspetiva dos gestores de quintas que
operam neste território.
O presente artigo está estruturado em oito secções. A primeira secção traz esta
­breve introdução, a segunda e o terceira apresentam, respetivamente, a abordagem
­teórica e a metodologia utilizada na pesquisa. A quarta, a quinta e a sexta secções tratam
dos resultados da pesquisa, atendendo aos objetivos delineados. Finalmente, na última
secção do artigo são apresentadas as considerações finais.

1. A ABORDAGEM INSTITUCIONAL DE DOUGLASS NORTH


A Nova Economia Institucional (NEI) abrange estudos focados na análise de insti­
tuições, arranjos institucionais e custos de transação. Douglass North, um dos principais
expoentes desta corrente teórica, centra-se no estudo das instituições e sua relação com
o desempenho económico. No decorrer de sua obra, o autor tratou de compreender

1
SIGALA, 2019.
2
NORTH, 1990.

340
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

a dinâmica institucional, considerando as instituições como principais reguladores das


interações e atividades humanas3.
North propõe que a análise económica seja realizada ao longo do tempo. Ao incor­
porar a história no seu modelo de análise, admite que costumes, trajetórias, cultura, v­ alores,
leis, ou seja, instituições, têm influência, além do comportamento racional dos agentes
económicos. Ao fazer estas afirmações, admite ainda a incerteza, a racionalidade limitada
e a assimetria de informação como pressupostos fundamentais no ambiente das trocas
económicas e sociais. Neste sentido, as instituições são criadas para reduzir as incertezas,
estabelecendo uma estrutura estável que orienta as transações e interações humanas4.
O pressuposto da racionalidade limitada coloca em xeque a suposta racionalidade
económica e utilitarista, admitindo que o ser humano não consegue analisar todas as
alternativas possíveis na tomada de decisão. Motivações, bem como sistemas cognitivos,
afetam as perceções e as escolhas, de forma que não existe um comportamento humano
plenamente racional5. Sendo assim, num ambiente caracterizado pelas incertezas, em
que os agentes têm racionalidade limitada, assume-se que há assimetria de informação,
ou seja, nem todos possuem as mesmas informações para transacionar. Neste cenário,
há espaço para comportamentos oportunistas, como a busca do autointeresse6. ­Portanto,
há precaução das partes ao transacionar para evitar os prejuízos de um possível compor‑
tamento oportunista.
Historicamente, as sociedades começam com instituições mais simples, de modo
que as normas sociais, as tradições e os costumes são suficientes para orientar compor­
tamentos de pequenos grupos em que há confiança entre as partes. Porém, quando
­aumenta a complexidade das interações, as instituições vão evoluindo, tornando-se
estru­turas complexas com regras formais e informais que orientam as interações sociais,
económicas e políticas7.
As precauções para transacionar incluem coleta e aferição de informações, salvaguar‑
dadas em contratos e utilização do sistema jurídico. Os custos tidos com essas ­precauções
são os custos de transação8. Dito de outra forma, os custos de transação consistem nos
custos de mensurar os atributos valorativos do que está sendo transacionado e nos custos
de proteger os direitos de propriedade, de fiscalizar e de fazer cumprir os acordos9.
Por sua vez, tais custos são a fonte das instituições. Frequentemente, um c­ ontrato
será redigido com características específicas para que a transação seja cumprida,
­contudo tais contratos são incompletos devido ao custo de mensuração. Nesse ­contexto,

3
NORTH, 1990, 1991, 1994.
4
NORTH, 1990, 2005.
5
MANTZAVINOS, NORTH, SHARIG, 2004; NORTH, 2005.
6
WILLIAMSON, 2012.
7
NORTH, 1990.
8
AZEVEDO, 2000; BUENO, 2004.
9
NORTH, 1990, 2005.

341
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

as ­instituições informais (padrões de comportamento, reputação, convenções) terão


um papel principal no acordo10, bem como leis e sistema jurídico que possibilitem que
­sanções sejam implementadas, caso o contrato não seja cumprido.
Para o autor, a evolução das instituições cria um ambiente propício às soluções
cooperativas para as transações complexas do mundo moderno. Considerando essas
premissas, quanto mais eficientes forem as instituições em incentivar que os ­agentes
ajam buscando a eficiência económica, mais desenvolvimento haverá11. ­Portanto,
­depre­ende-se que instituições fortes e eficientes propiciam mais condições para ­países,
regiões, territórios e empresas se desenvolverem. Assim, pressupõe-se que um ­conjunto
de instituições conformou o desenvolvimento do enoturismo no Alto Douro ­Vinhateiro.
É necessário esclarecer a distinção que North faz entre instituições e organizações,
sendo as primeiras compreendidas como o conjunto de regras, e as segundas entendidas
como entidades que reúnem indivíduos com uma finalidade específica. Analogamente a
um jogo, as instituições são as regras e as organizações são os jogadores. As insti­tuições
são criadas com a função de reduzir as incertezas e inibir comportamentos oportu­
nistas nas transações e interações humanas, enquanto as organizações têm o objetivo de
­ganhar o jogo12.
O conceito de instituições inclui as restrições formais (leis, regras), informais
­(normas, crenças, padrões de comportamento, convenções) e as características de enfor-
cement (fazer cumprir), abrangendo regras escritas e não escritas, delimitando o que é
permitido e o que é proibido nas interações económicas e sociais. Já as organizações são
criadas para aproveitar as oportunidades oferecidas pelo ambiente institucional e vistas
como agentes de mudanças, que surgem dentro de um determinado contexto institu‑
cional, mas que, ao longo do tempo, ao interagirem com outras organizações e com as
instituições, têm o papel de mudar a estrutura institucional13.
Neste modelo, há uma contínua interação entre as instituições e organizações
que, no longo prazo, influenciam o desempenho económico14. O ambiente institu­
cional ­influencia a estruturação das organizações e, simultaneamente, as organizações
­influenciam a matriz institucional. Argumenta-se, assim, que o desenvolvimento do
­enoturismo num território é derivado de uma teia de instituições que, ao longo do tempo,
propiciou oportunidades de ação para organizações nesse âmbito. Assim, esse arca­bouço
institucional conforma o comportamento dessas organizações no d ­ esenvolvimento
do enoturismo.

10
NORTH, 1991.
11
NORTH, 1991, 2001.
12
NORTH, 1990, 1991, 2005.
13
NORTH, 1990, 2005.
14
NORTH, 1990, 1991, 1994.

342
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Compreende-se que o ambiente institucional direciona a busca de conheci­mentos


e habilidades por parte das pessoas e das organizações e que é fator essencial no desen‑
volvimento da sociedade. A competição, fruto da interação entre instituições e organi‑
zações, é ponto-chave para a mudança institucional, pois impulsiona as organizações
a investirem em competências e conhecimento para sobreviver15. Ademais, as tecno­
logias também são afetadas pelas instituições16, isto é, enquanto houver um quadro
institu­cional que estimule o investimento em determinadas tecnologias, competências
e conhe­cimentos, estas serão aplicadas para solucionar os problemas que se apresentam
na sociedade17.
Portanto, o processo de difusão da informação e inovação deriva do quadro insti‑
tucional. A falta de incentivos para gerar conhecimentos e inovações produtivas ­coloca
alguns países, regiões e territórios em posição de desvantagem perante aqueles que
esti­mulam esses processos18. Mudar esta trajetória de crescimento não é fácil. A matriz
insti­tucional caracteriza-se por ser estável, devido à variedade de instituições e possíveis
interações que a conformam e, principalmente, à path dependence. Por outras palavras,
não será a mudança numa única instituição que provocará a mudança da matriz institu‑
cional. A mudança institucional efetiva-se com base na mudança incremental no longo
prazo: a alteração de uma norma combina-se com a modificação de uma convenção e
assim por diante, resultando na elaboração de uma matriz institucional que irá deter­
minar o desempenho económico e político19.
A path dependence (dependência da trajetória) é entendida como «o caminho
pelo qual instituições e crenças derivadas do passado influenciam escolhas» presentes
dos indi­víduos e das organizações20. Tal conceito é fundamental para a compreensão
da dinâ­mica institucional, demonstrando que soluções ineficientes podem persistir
ao l­ongo do tempo21. Contudo, há um entendimento mais complexo sobre o termo,
que o torna um fator fundamental na continuidade de uma sociedade. A aprendizagem
cria path dependence de ideias, ideologias e instituições. Assim, os sistemas de ­modelos
­mentais apresentam path dependence, de tal forma que abordagens de desempenho
inefi­cientes podem persistir por períodos longos22. Posto isto, a dificuldade de alterar as
trajetórias das sociedades é evidente, sugerindo que o processo pelo qual as sociedades
­possuem determinadas matrizes institucionais no presente restringe as escolhas ­futuras23.

15
NORTH, 1994.
16
NELSON, WINTER, 2002.
17
NORTH, 2005.
18
NORTH, 2001.
19
NORTH, 1991.
20
NORTH, 2005: 21.
21
GALA, 2003.
22
DENZAU, NORTH, 1994.
23
NORTH, 2005.

343
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Sendo assim, sociedades cujas experiências passadas as condicio­naram a consi­derar a


­mudança inovadora com desconfiança contrastam com aquelas cuja ­herança forneceu
uma ­percepção favorável a essa mudança.
Enfim, é a partir desta abordagem que este trabalho se propõe a analisar os incen­tivos
e restrições institucionais ao desenvolvimento do enoturismo no ADV, conside­rando que,
antes de oferecerem atividades de enoturismo, as quintas tinham suas atividades focadas
essencialmente na produção vitivinícola e, em dado momento, uma conjuntura institu‑
cional propiciou que passassem a desenvolver o turismo em seus ­empreendimentos.
Assim, a partir da teoria de Douglass North, buscou-se responder às seguintes
questões de investigação: O que motivou as quintas ofertarem o enoturismo? Quando
e como isso aconteceu? Quais as instituições formais e informais que, na percepção dos
gestores, incentivaram e ou restringiram o desenvolvimento do enoturismo ao longo do
tempo neste território? Neste contexto, na próxima secção será apresentada a metodo­
logia utilizada para operacionalizar a investigação.

1.1. Metodologia
Para alcançar os objetivos delineados para este estudo, que assumiu um caráter explo‑
ratório e descritivo, foi adotada uma abordagem qualitativa. A perspetiva teórica de
­Douglass North foi norteadora para a construção da problemática, escolha metodoló­
gica, interpretação e análise das informações. A partir desta abordagem, evidenciou-se a
necessidade de compreender a história precedente ao surgimento do enoturismo.
Desse modo, realizou-se investigação bibliográfica sobre o desenvolvimento da
viti­vinicultura e do enoturismo na região, observação de campo e entrevistas semiestru‑
turadas realizadas aos gestores de oito quintas situadas na região do Alto Douro Vinha‑
teiro, no período compreendido entre fevereiro e março de 2020, contemplando ainda
a aplicação de questionários com utilização de escalas Likert. O roteiro das entrevistas
abrangeu os eixos e variáveis apresentados na Tabela 1.
Os dados obtidos nas entrevistas foram organizados com o auxílio dos s­oftwares
NVivo12 e Excel para posterior análise, juntamente com as observações de campo.
Os dados obtidos foram codificados em nós primários e secundários, correspondentes
aos eixos e variáveis, respetivamente.
A escolha das oito quintas ocorreu através da definição de uma amostra inten­
cional, não probabilística, levando em conta o conhecimento e a experiência de um dos
autores, melhor conhecedor da região e das empresas ligadas ao setor.

344
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Tabela 1. Características gerais das quintas estudadas

Eixos de Pesquisa Variáveis

Características das Tempo de existência


quintas Início do enoturismo
Tempo de existência do enoturismo
Administração familiar

Oferta turística dos Serviços e produtos ofertados no início


empreendimentos Serviços e produtos ofertados atualmente
Fluxo de turistas
Existência de excursões de autocarros turísticos
Existência de contratos com operadoras e agências turísticas
Percentual de lucros provenientes do turismo

Tomada de decisão Motivação para empreender


para investir em Apoio ou influência de alguma organização na decisão de empreender
turismo Decisões sobre a oferta de novos serviços aos turistas e investimentos em infraestruturas
Utilização de assessorias e consultorias técnicas em turismo

Instituições Instituições informais (crenças sobre competição, cooperação, história e cultura do vinho,
trabalho familiar)
Instituições formais (leis, programas, projetos, linhas de incentivo financeiro)

A análise das informações obtidas na pesquisa foi organizada em dois segmentos,


que serão apresentados a seguir, trazendo primeiramente a contextualização histórica
do surgimento da vitivinicultura e do enoturismo na região e, posteriormente, a a­ nálise
das percepções dos gestores das quintas sobre as restrições e incentivos institucionais
ao desenvolvimento do enoturismo, juntamente com dados de caracterização das
quintas estudadas.

2. CONTEXTUALIZAÇÃO DAS ORIGENS DA


VITIVINICULTURA E DO ENOTURISMO NO DOURO
A partir da premissa de North24, de que a história importa e que as instituições e organi‑
zações evoluem lentamente, não há como falar em desenvolvimento do enoturismo sem
primeiramente considerar o estabelecimento prévio da vitivinicultura no Douro. Afinal,
os padrões de comportamento das organizações nas interações económicas de hoje são
resultado da evolução da teia institucional ao longo do tempo.
Há que ressaltar que todas as quintas estudadas têm como principal atividade a
produção de vinho e, assim, as suas atuações no mercado foram, em grande medida,
influenciadas por uma matriz institucional ampla e sedimentada no âmbito da vitivini‑
cultura. Então, tem-se um cenário de organizações que possuem um path dependence
oriundo das suas experiências prévias e aprendizagens compartilhadas de geração em
geração no mercado vitivinícola.
24
NORTH, 1990.

345
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Isto posto, destaca-se que a RDD é a mais antiga região do mundo com regula‑
mentação e delimitação da produção vitivinícola. A primeira demarcação da RDD data
de 175625 e já sofreu várias alterações, datando de 1921 a última mudança significa­
tiva26. Parte do território da RDD, o Alto Douro Vinhateiro (ADV), é reconhecido pela
UNESCO, desde 2001, como Património Cultural da Humanidade, tendo a sua história
fortemente vinculada à vitivinicultura e constituindo-se na porção mais representativa
e preservada da RDD27.
A vinha e a produção do vinho nesse território têm origem em tempos longínquos,
que frequentemente remetem à ocupação romana28. Registos documentais da época
­medieval revelam que, desde o século XII, havia uma produção vitícola intensa que foi
expandida ao longo dos séculos XIII e XIV. Essa intensificação da produção e melhoria
da qualidade das vinhas vinculam-se à fixação de mosteiros da ordem monástica de
Cister, que investiram em grandes explorações vitivinícolas na região29.
Os negócios relacionados com a exportação de vinhos foram crescendo ao longo
do século XVII, atraindo parceiros de outros países, predominantemente os ingleses30.
É nesse período que se tem a primeira referência ao vinho do Porto para indicar os ­vinhos
produzidos na região do Douro31. Essa época é marcada por divergências polí­ticas entre
a Inglaterra e a França, que culminaram com a assinatura do Tratado de M ­ ethuen,
entre Portugal e Inglaterra, em 1703 . A partir daí, o vinho do Porto assumiu um papel
32

importante na balança comercial de Portugal. Nessa conjuntura, entre crises e adulte­


rações do produto, procedeu-se à primeira demarcação da RDD33.
Desde então, a especialização na vitivinicultura e a integração ao mercado expor‑
tador de vinhos têm caracterizado a economia do Douro. Entre ciclos de pujança e crise
económica, destacam-se as profundas mudanças ocorridas nesse território durante a
­segunda metade do século XIX provocadas pela filoxera, legislação mais liberal e ­avanços
nos meios de transporte, que propiciaram que a região de vinhedos se expandisse até à
fronteira, havendo uma reordenação do espaço vinícola pós-filoxera no final do século
XIX e início do século XX34.
No que toca ao ambiente institucional para o desenvolvimento da vitivinicul­tura,
há uma alternância entre períodos de maior ou menor regulação e protecionismo35,

25
PEREIRA, 2006.
26
SOUSA, 2007.
27
TELES, SOARES, 2019.
28
PEREIRA, BARROS, 2016.
29
PEREIRA, 2006; TELES, 2018.
30
PEREIRA, BARROS, 2016.
31
TELES, 2018.
32
PEREIRA, 2006; TELES, 2018; SOUSA, 2007.
33
AGUIAR, 2002; SOUSA, 2007.
34
PEREIRA, 2006.
35
SEQUEIRA, 2013.

346
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

orientando as ações das organizações. No decorrer das primeiras décadas do século XX,
continuaram os esforços para regulamentação, fiscalização e certificação dos vinhos,
com a criação de várias organizações, entre as quais se destacam a Casa do Douro e o
Instituto do Vinho do Porto36.
No início do século XXI, algumas características do setor vitivinícola do Douro
são: expansão da área de vinhedos; incremento da produção de vinhos, com cresci­mento
das exportações e dos preços; melhoria da qualidade dos vinhos; reforço da repu­tação
de qualidade dos vinhos; reestruturação do modelo institucional de regu­­la­mentação da
RDD, com o objetivo de regular e controlar a produção e comercialização dos ­vinhos
com Denominação de Origem37; criação do Instituto dos Vinhos do Douro e do ­Porto
(IVDP), que, desde então, atua como órgão regulador das Indicações Geográ­ficas
­Douro e Porto38; patrimonialização do Alto Douro Vinhateiro na categoria de ­Paisagem
­Cul­tural Evolutiva e Viva, da classificação da UNESCO39.
Os avanços do final do século XX e início do século XXI na vitivinicultura são
acompanhados pelo início da estruturação do enoturismo nas quintas. De acordo com
Joukes e Rachão40, apesar da beleza cénica do território, devido ao relevo montanhoso
e características do rio, por muito tempo, o Douro permaneceu isolado. Aliado a isso,
a falta de recursos financeiros e o atraso tecnológico da região foram impeditivos do
rompimento das barreiras geográficas que afastavam visitantes e turistas.
Apesar disso, existem relatos do século XIX sobre a realização de atividade de
­lazer e turismo nas quintas. Tais atividades eram sobretudo realizadas por viajantes que
nego­ciavam vinho e promovidas por proprietários das quintas, que reuniam amigos
e ­parentes41. A linha de comboio do Douro foi implementada na segunda metade do
­século XIX, dada a necessidade de escoar a produção, de trazer produtos fitossanitários
para combater a filoxera e de atender a procura dos grupos exportadores de vinho que
se estabeleceram na região e propulsionaram tal implementação42.
Conforme Joukes e Rachão43, em 1936, realizou-se o I Congresso Nacional de T
­ urismo
em Portugal, evento em que foram auscultadas as partes interessadas em iniciar um
planea­mento do turismo no país. No entanto, estas autoras destacam que não há q ­ ualquer
­menção ao Douro como atrativo a ser alvo de planeamento do ponto de vista turístico.
As grandes mudanças para oferta turística têm início na década de 1980, com a
melhoria dos acessos à região e a adesão de Portugal à CEE. Em 1985, abriu-se a última

36
PEREIRA, 2006.
37
PEREIRA, 2006.
38
BRITO, 2006.
39
TELES, 2018.
40
JOUKES, RACHÃO, 2019c.
41
JOUKES, RACHÃO, 2019b.
42
MESQUITA, PINA, 2003: 400 apud BENTO, coord., 2019: 63.
43
JOUKES, RACHÃO, 2019b.

347
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

eclusa do rio Douro, que possibilitou a navegabilidade desde a sua foz até a f­ronteira,
desvelando os caminhos para o turismo de cruzeiros. É importante referir que foi através
do rio Douro que, em tempos já longínquos, se fez o escoamento da produção vitivi‑
nícola para a cidade do Porto, criando reputação aos vinhos produzidos nesse terri­
tório44. Atualmente, é no rio que acontece grande parte do turismo, com os cruzeiros que
­partem da cidade do Porto trazendo visitantes das mais variadas nacionalidades para o
interior do norte de Portugal45 e fazendo com que o turismo de cruzeiros seja um dos
principais subsetores na região46.
A adesão de Portugal à CEE, em 1986, é um marco institucional importante na
­análise da expansão e organização do enoturismo na região do Douro. A partir da e­ ntrada
de Portugal nas Comunidades, tem-se acesso a apoios económicos, materializados nas
polí­ticas de desenvolvimento territorial e nos incentivos financeiros, com a implemen­
tação de programas voltados para a dinamização da economia e do turismo47. Em 1986,
ocorre ainda a promulgação do primeiro instrumento normativo planificador do turismo
em Portugal, o Plano Nacional de Turismo 1986-199248.
No início da década de 1990, no âmbito da CEE, criou-se o Programa Ligação
entre Ações de Desenvolvimento da Economia Rural (LEADER), com fundos comuni­
tários de apoio financeiro, com o objetivo de incentivar o desenvolvimento de comu‑
nidades rurais, dinamizando a economia49. Paralelamente, ao longo dos anos de 1990,
tem-se o primeiro quadro de referências do papel da União Europeia (UE) no turismo50
com o lançamento do Livro Verde da Comissão Europeia, O Papel da União em Matéria
de Turismo51.
Portanto, é nesse período, em consonância com as políticas vigentes de desenvolvi‑
mento rural da UE, que são criadas várias Associações de Desenvolvimento Local, entre
as quais a Associação Douro Superior, a Associação Douro Histórico e a Associação
Beira Douro. Essas associações, dentro das suas áreas de intervenção, vêm apoiando
projetos de fortalecimento do turismo e de dinamização das áreas rurais52. Na década
de 1980, essa estruturação tem início por meio dos projetos de Turismo de Habitação
em Espaço Rural (TER), o que viria converter-se em enoturismo na década de 1990,
com degustações e visitas às adegas53 e a criação da Rota do Vinho do Porto54.

44
PEREIRA, 2006.
45
JOUKES, RACHÃO, 2019b.
46
BERNARDO, coord., 2018.
47
LEAL, 2001.
48
MILHEIRO, SANTOS, 2005.
49
COMUNIDADE EUROPEIA, 2006.
50
SANTOS, 2014.
51
MILHEIRO, SANTOS, 2005: 123.
52
MANFIO, MEDEIROS, CRISTOVÃO, 2020.
53
SANTANA, 2019b.
54
CRISTÓVÃO, 2011.

348
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Já na década de 1990, a construção de autoestradas ajudou a romper com o isola­


mento histórico, possibilitando o aumento do turismo55. Atenta-se que, em paralelo
com a melhoria da rede rodoviária, nas décadas de 1980 e 1990, houve a desativação de
­vários trechos da Linha do Douro, inclusive a parte internacional, que foram ­deixados
em ­estado de total abandono56, constituindo um ponto negativo para a mobilidade
turís­tica na região.
Muito recentemente, com a abertura do túnel do Marão, esse território rompeu efeti­
vamente o seu isolamento57. Bento refere que o Túnel do Marão «quebrou uma ­barreira
física, geográfica, psicológica e social entre o litoral e o interior Norte de P ­ ortugal»58.
De acordo com Joukes e Rachão , entre 2012 e 2018, o número de turistas estran­geiros
59

quadruplicou. Segundo estas autoras, o enoturismo teve um desenvolvimento sem prece­


dentes, com a oferta de experiências que abrangem passeios de bicicletas nas vinhas,
­provas de vinhos, refeições harmonizadas, participação nas vindimas, assim como a
­ampliação da oferta de alojamento.
A oferta turística, composta por produtos culturais e naturais alicerçados na
­paisagem vinhateira classificada pela UNESCO, expandiu-se e consolidou-se, ­havendo
ainda investimentos em museus, centros de interpretação e revitalização de monu­mentos
que ampliam as opções turísticas60. Conforme Teles61, a classificação da U­ NESCO g­ erou
uma obrigação do poder público central de empreender esforços e recursos para a
­região62, havendo a criação de organismos para gestão e monitoramento da paisagem,
bem como para a dinamização do território63. Em tal contexto, o turismo vem g­ anhando
especial atenção, sendo estratégica para a valorização de recursos, a promoção da região
e a diversificação económica64.
Portanto, nesta breve contextualização das origens da vitivinicultura e do turismo
no Douro, demonstra-se que a vitivinicultura tradicional e a reputação dos vinhos produ­
zidos na região são elementos seculares, enraizados no território e que têm um papel
preponderante na economia do Douro há longo tempo. Entretanto, evidencia-se que o
enoturismo é um fenómeno recente, que teve sua real expansão somente no século XXI.

55
BERNARDO, coord., 2018.
56
BENTO, coord., 2019.
57
BERNARDO, coord., 2018.
58
BENTO, coord., 2019: 47.
59
JOUKES, RACHÃO, 2019a.
60
SANTANA, 2019b.
61
TELES, 2018.
62
SANTANA, 2019a.
63
AGUIAR, 2002; TELES, 2018.
64
CRISTÓVÃO, 2011.

349
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Retomando o objetivo do presente estudo de analisar a perceção dos gestores de


turismo das quintas sobre os incentivos e restrições do ambiente institucional ao desen‑
volvimento do enoturismo no Alto Douro Vinhateiro (ADV), na próxima secção será
apresentada a análise institucional a que se propôs esta investigação.

3. INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO


DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO NO ALTO DOURO
VINHATEIRO: PERCEPÇÃO DOS GESTORES
Nesta secção, busca-se analisar a percepção dos gestores das quintas pesquisadas s­ obre
os incentivos e restrições institucionais ao desenvolvimento do enoturismo no Alto
Douro Vinhateiro.
Primeiramente, na Tabela 2, expõem-se algumas características das quintas estu‑
dadas. Como pode ser notado, com exceção da Quinta 1, todas as outras têm uma l­onga
existência, com trajetórias que muito se assemelham ao que foi abordado na secção ante­
cedente, abrangendo a crise da filoxera, falências, mudança de mãos de proprie­tários,
vendas e aquisições por grandes grupos corporativos. Evidencia-se ainda que todas as
quintas possuem administração familiar. Entretanto, nesse ponto, há que referir que,
nas quintas pertencentes a grupos corporativos, a família envolve-se com a adminis­tração
mais ampla do grupo, isto é, não está presente no dia a dia das propriedades rurais.
Como pode ser visto, quatro quintas pertencem a grupos corporativos que
atualmente abrangem tanto a produção vitivinícola quanto o enoturismo. A Quinta 7
pertence a um grupo que conta com 27 quintas e é um dos maiores produtores de v­ inho
de ­Portugal, sendo a sua administração integrada pelas quarta e quinta gerações da
­família, de origem inglesa. A Quinta 8 pertence a um grande grupo administrado por
uma família inglesa desde o século XIX. Ao longo do tempo, essa família foi adqui‑
rindo outras quintas e várias marcas renomadas de vinho, sendo uma das pioneiras a
­ofertar enoturismo na década de 1990. Nos últimos vinte anos, esta empresa tem inves‑
tido forte­mente no turismo, possuindo hotéis, restaurantes, cafés, espaços para eventos e
serviço de travessia de barco no rio Douro, entre outros empreendimentos.
As quintas 4 e 6 pertencem a grupos corporativos menores, sendo o primeiro um
dos mais tradicionais de Portugal e o segundo criado recentemente, no final do ano
de 2020. A Quinta 1 é a de menor porte, com uma produção estritamente familiar e,
­embora a propriedade rural tenha sido herdada pela família, esteve abandonada até
1998. A Quinta 2 tem origem nos mosteiros, tendo passado pelas mãos de amigos dos
reis, nobres e outros proprietários até ser adquirida, em 1940, pela família que atual­
mente tem a sua posse.
A Quinta 3 pertence à família descendente de uma das personagens mais emble‑
máticas da história do Douro, possuidora de muitas quintas. Nos anos de 1990, ­grande
parte dos negócios dessa família, incluindo as suas marcas, foi vendida a um grupo

350
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

e­mpresarial. Apesar disso, a família não vendeu a Quinta 3 e continuou a p ­ roduzir


­vinhos, criando uma marca para esses produtos. Já a Quinta 5 possui registos da ­produção
de ­vinhos em seu território desde 1615, sendo que, somente no início do ­século XX,
a ­marca e a casa de vinhos foram criadas, com a aquisição dessa quinta pelos ascen­
dentes dos atuais proprietários.

Tabela 2. Características gerais das quintas entrevistadas

Desde quando Início do Administração Pertence a grupo


Quinta
existe? enoturismo familiar corporativo

Quinta 1 1998 2006 Sim Não

Quinta 2 XVI/XVII 2004 Sim Não

Quinta 3 1716 2005 Sim Não

Quinta 4 1738 1998 Sim Sim

Quinta 5 1615 2011 Sim Não

Quinta 6 1759 2005 Sim Sim

Quinta 7 1867 2015 Sim Sim

Quinta 8 Início do século XIX 1992 Sim Sim

Apesar da longa existência das quintas, verifica-se que a prática do enoturismo


é muito recente, sendo a Quinta 8 e a Quinta 4 pioneiras na oferta do turismo ligado
aos vinhos do Douro, nos anos de 1990. As demais quintas abriram-se ao enoturismo
somente nos anos 2000, após a paisagem desse território já ser reconhecida como patri­
mónio mundial pela UNESCO.
Sobre a oferta recente do enoturismo, evidencia-se que todos os entrevistados
mencionam o isolamento da região até os anos de 1990, enfatizando que o turismo era
muito reduzido, tanto no que diz respeito à oferta como à procura, em conformidade
com os estudos bibliográficos realizados. Posto isto, depreende-se que a lacuna de polí­
ticas e investimentos no acesso e mobilidade para a região foi uma restrição ao desenvol‑
vimento do turismo até a década de 1990.
Na Tabela 3, apresentam-se os produtos e serviços turísticos oferecidos pelas
­quintas, inicialmente e na atualidade (2019/2020), bem como os motivos pelos quais
as propriedades passaram a empreender experiências de enoturismo. Enquanto três
­quintas entraram no enoturismo por meio da oferta de quartos para alojamento em
­espaço r­ural, outras cinco detiveram-se na oferta tradicional de provas de vinhos
­(degustações) e loja para comercialização dos produtos, sendo que quatro também
­ofereciam visitas guiadas. Ao observar a oferta atual, nota-se que as provas de vinhos,
as visitas guiadas e o alojamento se mantiveram. Houve ampliação e diversificação nos

351
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

serviços oferecidos, que passam a ser denominados de experiências de enoturismo,


e incluem atividades na época da vindima, refeições e piqueniques harmonizados,
passeios, aulas e workshops de vinhos e culinária, entre outros.

Tabela 3. Mudanças na oferta de enoturismo

Oferta inicial de Motivos para empreender em


Quinta Oferta atual de enoturismo
enoturismo enoturismo

Quinta 1 Turismo rural com Provas de vinhos com visita. Sobrevivência. Necessidade.
oferta de quartos, Gastronomia com agendamento. Não sobrevivem somente com
pequeno-almoço. Os quartos estão desativados devido o vinho.
às adequações para obra de
ampliação.

Quinta 2 Turismo rural com Hospedagem com pequeno-almoço. Estratégia para pagar as contas
oferta de quartos Provas de vinhos, visita workshops de da restauração da quinta.
e pequeno- vinhos e cozinha portuguesa. Passeios Somente com o vinho não
almoço. e disponibilização de bicicletas, sobrevivem.
piscina. Colheita e pisa na vindima.

Quinta 3 Turismo rural com Hospedagem em treze quartos com Promover imagem e marketing
cinco quartos na oferta de pequeno-almoço, serviço de para vender os vinhos. Levar
casa, pequeno- spa, piscina, disponibilização de a marca ao conhecimento
-almoço e refeições bicicletas e caiaques. Restaurante com de pessoas de outros países.
caseiras sob almoço e jantar harmonizados. Visitas E, mais adiante, vender vinhos
agendamento para na adega, provas de vinho, loja de pelo canal direto.
os hóspedes. vinhos, passeios de jipe na quinta,
piquenique e experiências na
vindima.

Quinta 4 Visitas guiadas e Hospedagem no hotel e nos barris de A própria necessidade


provas de vinho. vinho com pequeno-almoço. do mercado.
Loja de vinhos. Restaurante. Eventos. Visitas guiadas
e provas de vinho. Piqueniques,
almoço ao ar livre. Aulas de cozinha,
wine blending (visitante produzir seu
próprio lote de vinhos). Colheita e pisa
da uva na vindima.

Quinta 5 Provas de vinho Programas de provas de vinho (mais A procura. Turistas que
com curtos e mais extensos). Refeições passavam pela região e vinham,
agendamento. Loja harmonizadas com escolha de e o enólogo tinha de parar
de vinhos. ementa prévia. No verão, é possível o que estava a fazer para
usufruir atender. Foi uma ação reativa
do terraço e piscina. Tudo sob e não proativa.
agendamento.

Quinta 6 Pequena loja Loja com provas de vinhos. Visitas Alavanca e uma forma mais
de vinhos. guiadas com três programas fácil de chegar ao consumidor.
diferentes: visitas de autocarro, visitas Mostrar a singularidade dos
de jipes e visita Vintage (personalizada vinhos diante da globalização
com prova de vinhos premium). e da massificação do mercado.

(continua na página seguinte)

352
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Oferta inicial de Motivos para empreender em


Quinta Oferta atual de enoturismo
enoturismo enoturismo

Quinta 7 Visitas Visitas autoexplicativas e guiadas. Conhecimento e comunicação


autoexplicativas Provas de vinhos. Piqueniques da marca, de forma que os
e guiadas. Provas no terraço. turistas sejam embaixadores das
de vinhos. Loja marcas do grupo em seus locais
de vinhos. de morada.

Quinta 8 Visitas guiadas. Visitas guiadas. Provas de vinhos. Conhecimento e projeção


Provas de vinhos. Piqueniques. Animações com grupos da marca.
Piqueniques. Pisa de cantares ou contadores de histórias,
de uva na vindima. canoagem, passeios de barco,
workshops de vinho do Porto, aluguel
de salas para reuniões e serviços.
Atividades na vindima.

Duas quintas mencionaram que empreender em enoturismo foi uma questão


de ­sobrevivência, visto que a produção vitivinícola não era suficiente para sustentar o
­negócio. Tais quintas caracterizam-se por serem as menores da amostra pesquisada;
a Quinta 1 não possui funcionários e conta com o trabalho de três membros da família,
e a Quinta 2 possui apenas um funcionário e um grupo familiar de três pessoas envol­
vidas nas atividades de vitivinicultura e de enoturismo. Em ambas as quintas, os trabalhos
na vinha são contratados por empreitada, quando há necessidade.
A estratégia de diversificação adotada pelas quintas 1 e 2 está em consonância com
­revisão de estudos sobre enoturismo65, que indica que muitas vinícolas pequenas ­dependem
do enoturismo para sustentar os seus negócios, sendo essa atividade um impor­tante
agregador de renda. Na Tabela 4, tem-se essa confirmação, já que o enoturismo repre­
senta 50% e 60% da faturação das quintas 1 e 2, respetivamente. Das quintas estu­dadas,
50% afirmaram que o objetivo inicial de empreender em enoturismo está relacionado com
a comunicação e imagem da marca, o que é suportado por vários estudos, indicando que
as experiências positivas vivenciadas pelos turistas têm impacto na sua percepção sobre
as marcas, podendo influenciar o consumo de uma determinada marca e/ou região66.
Para essas quintas, a faturação proveniente do enoturismo é bem menos expressiva.

65
CARLSEN, 2004.
66
MITCHEL, HALL, 2004; MITCHELL, 2006; PATEL-CAMPILLO, DELESSIO-PARSON, 2016.

353
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Tabela 4. Informações sobre o enoturismo nas quintas

Acolhimento de Existência de Existência de


Faturação
Número de grupos de contratos com funcionário
Quinta proveniente do
turistas/ano cruzeiros e agências e gestor do
enoturismo (%)
autocarros operadoras enoturismo

Quinta 1 Não tem dados Não Não 50% Não

Quinta 2 4000 Sim Sim 60% Não

Quinta 3 15 000 Sim Sim 20% Sim

Quinta 4 90 000 Sim Sim 50% Sim

Quinta 5 5000 Não Sim Muito pouco Sim

Quinta 6 15 000 Sim Não Menos de 5% Não

Quinta 7 20 000 Não Sim Cerca de 5% Sim

Quinta 8 60 000 Sim Sim Pouco Sim

Outras duas quintas percebem que, nos seus casos, o crescimento do turismo na
região e o aumento da procura foram os fatores que impulsionaram o desenvolvimento
do enoturismo. A Quinta 4, apesar de citar essa motivação, foi uma das pioneiras na
oferta enoturística. Já a Quinta 5 iniciou a operação de enoturismo em 2011, quando,
de facto, existia um volume considerável de turistas circulando na região.
Observa-se que o fluxo de turistas nas quintas varia bastante. A quinta que mais
recebe turistas é a que tem uma maior diversificação da oferta de produtos e serviços
enoturísticos, incluindo hotel, restaurante aberto ao público, visitas guiadas, provas de
vinho, eventos e uma diversidade de experiências turísticas. As quintas 2 e 5 recebem
um menor número de turistas contabilizados, não possuindo capacidade para ampliar
esse fluxo devido à sua atual estrutura para receção de visitantes.
Cinco das quintas pesquisadas recebem grupos de turistas de cruzeiros e de
­excursões de autocarro, sendo que, em algumas delas, os grupos são divididos em
­subgrupos menores, com cerca de quinzd pessoas, para que se possa realizar uma expe‑
riência satisfatória. Outras três quintas recebem apenas visitantes particulares e grupos
menores. Das oito quintas, apenas duas não têm contratos com agências e operadoras
de turismo, sendo que a Quinta 6, apesar de não ter contratos formais, faz negociações
de preço e reservas com agências e operadoras. A existência de contratos com agências e
operadoras mostra como o enoturismo está institucionalizado nessas quintas.
A institucionalização e profissionalização é notada também na contratação de
­gestores específicos para tratar do enoturismo, que ocorre nas quintas 3, 4, 5, 7 e 8.
Na Quinta 6, um mesmo profissional gere a parte de vitivinicultura e a de enoturismo.
Nas quintas 1 e 2, o enoturismo e as demais atividades da propriedade rural são ainda
­geridos pela família.

354
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Enfim, com a apresentação dessas características, é possível apreender que o


enoturismo nas quintas é um fenómeno recente, que teve a sua expansão no início do
­século XXI e se vem solidificando nos últimos anos. Os motivos que levaram as q ­ uintas
a inves­tirem em enoturismo divergem para as quintas maiores e menores: e­ nquanto
para as primeiras a projeção da marca é a principal motivação para oferta, para os
­pequenos empre­endimentos trabalhar com o enoturismo é uma questão de sobrevi­
vência. C
­ ontratos com agências e operadoras, oferta de serviços diversificados, receção
de ­grupos e contratação de mão de obra especializada em enoturismo já são uma reali‑
dade para a maioria dessas quintas, demonstrando a institucionalização dessa atividade.
No que toca à perceção dos entrevistados sobre as instituições informais que incen­
tivaram e restringiram o enoturismo, destacam-se as suas crenças sobre a cooperação
e competição. Na Figura 1, tem-se a perceção dos entrevistados sobre a cooperação,
­demonstrando que, embora 87,5% concorde com sua importância para o desenvolvi­mento
do enoturismo, e 75% concorde totalmente que sua empresa atua em parceria e coope­ração
com outras quintas, somente 50% percebe que a cooperação existe efetivamente.

100
87,5%

80 75%

60

40 37,5%

25% 25%

20
12,5% 12,5% 12,5% 12,5%

0
1 2 3 4 5
Existe cooperaçãoentre
Existe cooperação entre empresas
empresas Importância dacooperação
Importância da cooperação Atua comvalores
Atua com valoresdede cooperação
cooperação e parceria
e parceria

Fig. 1. Percepção sobre cooperação no desenvolvimento do enoturismo


Escala (1, discordo totalmente e 5, concordo totalmente)

Para os entrevistados das quintas 2 e 8, as dificuldades históricas com organizações


cooperativas e associativas na vitivinicultura do Douro, com uma trajetória de falências,
falta de pagamento aos agricultores, gastos excessivos e desavenças, fazem com que as
pessoas não acreditem no associativismo. Tal afirmação é congruente com a ideia de

355
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

path dependence proposta por North67, demonstrando que as experiências e trajetórias


passadas limitam as escolhas presentes e futuras, influenciando as interações econó­
micas. Conforme o depoimento de uma entrevistada:

Porque a associação no Douro é muito difícil. Nós já tentamos fazer uma rota,
três ou quatro vezes, e não foi possível. Porque ninguém está de acordo. E eu, ainda há
2 anos telefonei para uma quinta vizinha. E eu perguntei o que ela fazia, quais os preços
que ela praticava, para podermos oferecer o mesmo serviço dentro do mesmo padrão de
preços. E fui corrida. Disseram que não diziam nada, e que não tinha nada que saber.
E, portanto, as relações empresariais do Douro ainda são muito complicadas68.

Nesse ponto, é interessante destacar que a Rota do Vinho do Porto, referenciada na


literatura, não está ativa. As oito quintas estudadas participaram dessa rota e atribuem a
sua descontinuidade a uma diversidade de motivos. A entrevistada da Quinta 1 percebe
a falta de participação do empresariado nas assembleias, o não pagamento de quotas e
os problemas financeiros como motivadores do insucesso da rota.
Na perceção das entrevistadas das quintas 3 e 4, a dificuldade de trabalhar em
­conjunto está vinculada às assimetrias de interesse e visões entre as empresas, conforme
os depoimentos apresentados a seguir:

Eu acho que é porque há realmente muitas assimetrias. Casas com uma


­ imensão enorme, com centenas de anos, com uma história secular; grandes casas
d
do vinho do Porto, que originalmente estavam na mão dos ingleses: uma Taylor’s,
uma ­Sandeman… Todas essas marcas assim já com uma dimensão imensa; e depois,
com uma quantidade imensa de pequenos e médios produtores, que tem um negócio
mais familiar. Obviamente que os interesses nunca vão ser os mesmos. Obviamente.
­Portanto, o entendimento será sempre extremamente difícil de atingir69.

Não vou dizer que as rotas ou essas associações na realidade funcionem muito
bem. Portanto, não podemos esperar que uma rota nos traga clientes, todos nós temos
de fazer por isso. Nós pertencemos a uma associação. […] Eram dezasseis quintas,
que já nos recomendávamos umas às outras. […] Então, tentámos juntar todos
e ­trabalhar um bocadinho a promoção, criar um mapa, criar um flyer, ter alguma
­coisa mais perso­nalizada. […] Só que, na realidade, andámos um ano em reuniões,
ver o que íamos fazer e não fizemos nada. Foi perda de tempo. Porquê? Porque
são ­empresas. Cada uma tem a sua forma de ver. As associações nunca resultam.­
67
NORTH, 2005.
68
Depoimento da entrevistada da Quinta 2, obtido a 05 de fevereiro de 2020.
69
Depoimento da entrevistada da Quinta 4, obtido a 06 de fevereiro de 2020.

356
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Estamos falando com pessoas com diferentes formas de ver e resolver. Não a­ credito
­muito. Já estive no Alentejo, como eu disse, quatro anos. Tem rota dos vinhos do
­Alentejo. Funciona um pouco melhor. Porque, como as coisas são muito distantes, eles
precisam. É que nós também precisamos. Porque não podemos ser egoístas ao ponto
de dizer que não precisamos. Aliás, eu fui uma das pioneiras a dizer isso e eu era uma
das que não precisava. Porque a quinta estava sempre cheia. […] Mas não deu em
nada. Acabou que todos se zangaram e infelizmente acabou. Mas, acho que elas d ­ evem
existir e que haja tenta­tivas. Mas depois, como são diferentes empresas, para dar
certo é difícil70.

Nesses depoimentos, são evidentes os pressupostos de incerteza, a racionalidade


limitada e a assimetria de informação em que as interações económicas estão imersas71.
Dois entrevistados mencionam que essa descrença no trabalho em conjunto é limi­tante
ao desenvolvimento do enoturismo, que precisa da ação coletiva para a cons­trução de
rotas e de produtos turísticos. Conforme North72, é a evolução institucional que ­propicia
um ambiente favorável às soluções cooperativas, no entanto, a path dependence pode
­limitar essa evolução.
Nesse contexto, as entrevistadas das quintas 2 e 3 explicam que as parcerias e coope­
rações acontecem em termos mais privados, em pequenos grupos, em que os proprie­
tários dos empreendimentos têm um relacionamento pessoal próximo, o que, ­conforma
a ideia de que, em grupos pequenos, onde existe confiança, não é necessário uma
teia institucional complexa para orientar as interações73. Já as ações coletivas formais,
como a participação em associações e rotas, são consideradas difíceis de ser viabilizadas;
­prova disso é que, quando essa investigação foi conduzida, não havia uma rota de vinho
­ativa na região, concluindo-se que não existem hoje instituições estáveis que estimulem
o ­trabalho coletivo.
Juntamente com a cooperação, a competição entre as organizações é fundamental
para o desenvolvimento do enoturismo74. Conforme pode ser notado na Figura 2, a maior
parte dos entrevistados concorda totalmente (55,56%) e concorda (44,44%) com a afir‑
mação de que as empresas na qual atuam buscam ser competitivas. Na visão de N ­ orth75,
um ambiente competitivo é importante ao pressionar a busca, por parte das empresas,
de conhecimentos, tecnologias e competências para competir e sobreviver no mercado.

70
Depoimento da entrevistada da Quinta 3, obtido a 14 de fevereiro de 2020.
71
NORTH, 1990, 2005.
72
NORTH, 1990.
73
NORTH, 1990.
74
SALVADO, 2016; SALVADO, KASTENHOLZ, 2017.
75
NORTH, 1994.

357
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Apesar da maior parte dos gestores das quintas se assumir como empresa compe­
titiva, como pode ser evidenciado na Figura 2, não há uma percepção forte de que a
competição seja importante para o desenvolvimento do enoturismo. Nesse gráfico,
­apenas três entrevistados enfatizaram que a região é beneficiada com a competitividade
e a ampliação da oferta, pois possibilita que o turista tenha mais opções de atividades e
permaneça por mais tempo, observando que há bastante espaço para empreender no
mercado enoturístico do Douro.
Ainda sobre as instituições informais, os entrevistados foram questionados sobre
a sua percepção em relação à valoração da história e da cultura da região e do trabalho
familiar. Verificou-se que, além de perceberem a importância da história para o enotu‑
rismo, a totalidade dos entrevistados concorda inteiramente com a afirmação de que a
história é valorizada no âmbito do enoturismo nas quintas em que atuam. Da mesma
forma, todos os entrevistados afirmaram que o trabalho familiar é importante para o
desen­volvimento do enoturismo no território, e 87,5% percebe que a quinta que repre‑
senta foi alicerçada no trabalho familiar.

100

80

60 55,56%
50%
44,44%

40 37,5%

25% 25% 25%


20
12,5% 12,5% 12,5%

0
1 2 3 4 5
Existe competição entre as empresas Importância da competição Esta empresa/organização busca ser competitiva

Fig. 2. Perceção sobre a competição no desenvolvimento do enoturismo


Escala (1, discordo totalmente e 5, concordo totalmente)

Em termos de incentivos institucionais formais, os apoios às infraestruturas,


nomea­damente a navegabilidade do rio Douro e a melhoria da rede viária, c­ ulmi­nando
com a finalização do túnel Marão em 2016, são mencionados pelos entrevistados
como fatores determinantes para o desenvolvimento do enoturismo. Na percepção dos
entre­vistados das quintas 2, 3, 4, 7 e 8, o turismo de cruzeiros foi, em grande medida,
­responsável por aumentar o fluxo turístico no Douro.

358
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Considera-se que tais incentivos, possibilitadores de que a região transpusesse seu


isolamento histórico, estão relacionados com a classificação do Alto Douro Vinhateiro
como Paisagem Cultural Evolutiva e Viva, pela UNESCO, em 2001. Cabe ressaltar que
as instituições formais que são aderentes às instituições informais existentes costumam
ter mais sucesso76, ou seja, a patrimonialização terá mais hipóteses de ter sucesso se a
valoração da história da vinha na região estiver enraizada na cultura, e, conforme foi
observado quanto às instituições informais, esta valoração histórica existe.
A atenção à cultura, como âncora do turismo na região, foi reforçada com a e­ scolha
da cidade do Porto, Capital Europeia da Cultura em 2001, como principal porta de
­entrada no Douro. Conforme depoimento da entrevistada da Quinta 3, a chancela da
UNESCO funcionou como uma alavanca ao desenvolvimento do enoturismo:

Eu acho que ajudou como uma alavanca. Como arranque, como início. Que era
necessário fazer algumas alterações, pelo facto de termos ganho, ou termos sido consi­
derados. Uma delas foi realmente a mais importante, os acessos. Depois, foi ­abertura
ao financiamento. Alguém olhar para esta região e achar. Se alguém viu que tem
­potencial, então nós temos de ajudar. Estava tudo centralizado na capital ou no
­litoral. E o interior ficava muito esquecido. O facto de termos sido considerados veio
ajudar a olharem para o Douro. Dar atenção ao Douro. E isso fez com que realmente
muitas das coisas despontassem77.

Interpreta-se que a chancela da UNESCO atuou de várias formas no desenvolvi‑


mento do enoturismo, tanto na promoção do destino como na aplicação de recursos
financeiros e esforços por parte do poder público nessa região. Manter o ADV signi­
fica garantir que essa paisagem seja protegida, monitorizada e valorizada, contem­
plando ao mesmo tempo as especificações da UNESCO e as necessidades do território.
Nesse ­âmbito, um quadro institucional complexo para a proteção e monitorização da
­paisagem foi criado, incluindo a elaboração de um Plano Intermunicipal de Ordena‑
mento do Terri­tório do Alto Douro (PIOTADV)78.
Essa atenção do poder público, com a consequente melhoria dos acessos, sinérgica
ao reconhecimento da UNESCO, criou um ambiente oportuno para as quintas inves‑
tirem no enoturismo. As visitas às adegas, que já eram uma realidade em Gaia, foram
sendo implementadas também no interior (Douro), onde, de facto, a vinha é cultivada.
Conforme depoimentos dos entrevistados das quintas 2, 3, 4, 5, 6 e 7, os investimentos
feitos pelas grandes marcas de vinho do Porto no enoturismo do Douro incentivaram o
fluxo de turistas para a região.
76
NORTH, 1990.
77
Depoimento da entrevistada da Quinta 3, obtido a 14 de fevereiro de 2020.
78
TELES, 2018.

359
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

Na Figura 3, verifica-se que todos os entrevistados percebem que a instituciona­


lização do ADV foi importante para o desenvolvimento do enoturismo e que a paisagem
é um atrativo relevante para o enoturismo. Além disso, os entrevistados concordam ou
concordam totalmente que existem normativas adequadas à proteção dessa paisagem.
100% 100%
100

90

80

70
62,50%
60

50

40 37,50%

30

20

10

0
1 2 3 4 5

A paisagem é um atrativo importante para o enoturismo na região


A patrimonialização da paisagem pela UNESCO foi importante para o desenvolvimento do enoturismo
Existem normativas que protegem de forma adequada a paisagem da ADV

Fig. 3. Visão dos entrevistados sobra a paisagem, o património e as normativas


Escala (1, discordo totalmente e 5, concordo totalmente)

Na visão de todos os entrevistados, a patrimonialização trouxe visibilidade e


reco­nhecimento ao território. Conforme o depoimento da entrevistada da Quinta 5,
houve um aumento no número de turistas que visita a quinta pelas suas paisagens e
não especificamente pelos seus vinhos. Esse tipo de turista, segundo essa entrevistada,
define os roteiros pelo país em função dos sítios classificados pela UNESCO, que, em
Portugal, atualmente são 17.
Apesar de alguns entrevistados mencionarem a rigidez e a limitação nas regras
­sobre as construções e ampliações nas propriedades localizadas na área patrimonia­
lizada, p ­ ercebem que essas normativas de uso territorial e salvaguarda da paisagem são
benéficas para a região e o desenvolvimento do enoturismo, pois, em tempos anteriores,
houve um crescimento desordenado em muitos locais, trazendo prejuízos ao terri­tório
e à paisagem. Atualmente, o enforcement, com a aplicação de multas e penalizações,
­garante que os regulamentos e normas são cumpridos. Duas entrevistadas mencio­
naram que, por vezes, essas normas, ao limitarem as construções nas propriedades
­rurais, ­restringem a expansão do enoturismo.

360
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Os entrevistados relatam que, nos últimos vinte anos, tem ocorrido muito investi­
mento privado em projetos de enoturismo na região, com melhoria das ­quintas,
­qualificação das adegas e salas de provas, construção de alojamento e de pequenos
­hotéis. Quando questionados sobre os valores e crenças que orientam os empresários
no desenvolvimento do enoturismo, cinco entrevistados percebem que existe um tecido
empreendedor proativo e dinâmico neste território.
Além dos investimentos próprios, algumas quintas receberam recursos financeiros
de incentivo, como pode ser evidenciado na Tabela 5, demonstrando que houve uma
conjunção de investimentos privados e públicos.

Tabela 5. Incentivos financeiros para o desenvolvimento do enoturismo nas quintas

Quinta Apoio financeiro Quais incentivos financeiros?

Quinta 1 Sim Ministério da Agricultura começou a trabalhar com a Comunidade Europeia


e começaram a vir os subsídios, o dinheiro, para poder instalar gente e fazer
aquilo que queria fazer

Quinta 2 Sim Primeiramente, recebemos um apoio, que era de 30%, mas, depois, houve
apoios melhores, programas que ofereciam 50% dos fundos e financiavam os
outros 50%. Houve outros apoios dos quais eu não beneficiei, mas sei que houve
imensos apoios ao longo desses anos todos. Eram fundos europeus e depois
tinha uma participação portuguesa também

Quinta 3 Sim Apoio com subsídios do Turismo de Portugal e fundos da Comunidade Europeia

Quinta 4 Sim Turismo de Portugal, Norte 2020 e fundos da Comunidade Europeia

Quinta 5 Não ­_

Quinta 6 Não ­_

Quinta 7 Não ­_

Quinta 8 Sim Fundos da Comunidade Europeia. O recurso foi para outro empreendimento,
para um grupo e não especificamente para a quinta

Verifica-se, assim, que o turismo, de facto, se desenvolve no Douro a partir do


momento em que instituições formais, em nível nacional e da Comunidade Europeia,
começam a ser instauradas, incentivando o turismo rural, o turismo de cruzeiros e o
enoturismo, seja por meio de instrumentos planificadores, seja por incentivos finan‑
ceiros, demonstrando o quanto a definição de instituições formais é importante para
direcionar as inovações, os conhecimentos e as competências organizacionais79.
Apesar da percepção destes direcionamentos pela esfera pública, quatro entre‑
vistados percebem que os investimentos públicos nas infraestruturas, com exceção dos

79
NORTH, 1990.

361
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

acessos ­(rodoviário e fluvial), são residuais. A ausência de normalização e padronização


da sina­lética é indicada como uma restrição que dificulta a mobilidade do turista e gera
­poluição visual. Uma entrevistada citou, como restrição ao enoturismo, a falta de inicia‑
tivas ­efetivas para reativar trechos da linha férrea, que foram descontinuadas no passado
recente. A ­ demais, seis entrevistados consideram que, ao nível dos concelhos, o turismo
é bastante desordenado e que há vários organismos e associações que trabalham com o
­turismo, ­porém, sem que haja comunicação e estratégias conjuntas. Segundo a entrevis­
tada da Quinta 1, há imensa variação entre os concelhos no que se refere ao turismo, sendo
alguns mais a­ tivos, interagindo com as partes interessadas e outros nem tanto. Já o entre‑
vistado da Quinta 8 entende que as estruturas locais e regionais de turismo são ineficientes.
A inexistência de rotas turísticas e itinerários e de informação sistematizada sobre
a região são percebidos pelos entrevistados das quintas 3, 5, 7 e 8 como restrições ao
enoturismo, conforme é exemplificado nos seguintes depoimentos:

Não há uma rota, por exemplo, específica das quintas, nós vamos para outras
regiões do mundo, Napa Valley, Rioja, as coisas estão muito mais bem organizadas e
aqui não existe essa organização80.

Nós não sabemos vender como um todo. Nós tivemos de fazer publicidade da
quinta, o hotel X faz publicidade do hotel X, e não é tão fácil como às vezes viajar
para um outro destino qualquer, em que nós sabemos, que vamos, «eu vou marcar a
­viagem e sei que quero ir ali» e está tudo de forma clara. Um turista inglês ou ameri­
cano, que procura no Google, que nós começamos por aí, vamos ser honestos, e que
coloque wine tourism, ele vai sentir-se completamente perdido. Já começa a haver
um site ou outro que funcionam como motores de reserva, não de informação, mas
de r­ eserva, em que têm o país dividido por regiões, que sugerem não só as atividades,
mas os hotéis e alojamentos para dormir. Mas acho que ainda falta muita dessa infor­
mação sair por exemplo do Turismo de Portugal ou do turismo do Porto e Norte de
Portugal. Esses departamentos que haviam de trabalhar a região como um todo lá fora,
no mercado nacional, acho que só orienta um pouco melhor. Mas lá fora ­sobretudo81.

Cabe ressaltar que a institucionalização do planeamento estratégico do turismo


em Portugal é recente. Desde o primeiro plano, o processo de planeamento do turismo
vem-se transformando, havendo um esforço para auscultar os anseios das comunidades
regionais e locais. No entanto, alguns autores constatam que o nível regional de gover‑
nança da região do Douro vem exercendo um papel bastante restrito no planeamento
do turismo82.
80
Depoimento da entrevistada da Quinta 7, obtido a 11 de março de 2020.
81
Depoimento da entrevistada da Quinta 5, obtido a 11 de fevereiro de 2020.
82
RODRIGUES, BERNARDO, DOMINGUEZ, 2018.

362
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

Apenas em 2007 foi instituído o primeiro Plano Nacional Estratégico de T ­ urismo


(PENT), posicionando o turismo como um setor prioritário para o desenvolvi­mento de
Portugal e estabelecendo produtos estratégicos, entre os quais «Gastronomia e ­vinhos»83.
Posteriormente, no documento Estratégia Turismo 2020, não houve identi­ficação de
produtos estratégicos, mas a gastronomia e o vinho foram postos em destaque na o ­ ferta
turística nacional84. No instrumento Estratégia Turismo 2027, foram definidos ativos do
turismo, a saber: ativo estratégico, ativos diferenciadores, ativos qualificadores e a­ tivos
emergentes. Nesse documento, identificou-se «Pessoas» como o ativo estraté­gico do
país e definiu-se «História, cultura e identidade» como um dos ativos diferencia­dores
­(âncoras do turismo). A «Gastronomia e Vinhos» foram identificados como ativos
quali­ficadores, que agregam mais-valia à experiência turística85.
É importante constatar que o ativo estratégico «Pessoas», definido no documento
Estratégia Turismo 2027, trata da principal problemática enfrentada pelo enoturismo
no território investigado, segundo a percepção dos entrevistados. De um lado, o docu­
mento expressa:

Receber bem em Portugal não é mero marketing: é cultura, é atitude, é identi­


dade. Consubstancia-se numa vocação universalista que traduz um genuíno i­nteresse
por conhecer outras culturas, valorizar a diferença e o entendimento com ­outros ­povos;
a nossa vontade e capacidade de valorizar as relações humanas, expressa na forma
de nos relacionarmos com os outros e é consistentemente reconhecida por quem nos
visita. As pessoas são, assim, um ativo único e transversal, com particular importância
no Turismo — uma atividade de pessoas para pessoas86.

De outro lado, os entrevistados percebem que a inexistência de instituições que


incentivem as pessoas a permanecerem na região é a principal problemática presente e
imensa incerteza para o futuro da vitivinicultura e do enoturismo nesse território, o que
é exemplificado nos depoimentos dos entrevistados que seguem:

Mão de obra. Falta de mão de obra. Falta de formação da mão de obra. ­Portanto,
falta de mão de obra qualificada. Porquê? Pensando que as pessoas a­ inda preferem o
­litoral. Ainda preferem o litoral e as grandes cidades. Portanto, tem de haver ­atrativos
do governo para colocar pessoas no interior. Portanto, no interior tem de ­haver,
pelo menos, melhores condições para as pessoas que vêm. Baixa de ­impostos. As ­pessoas
têm de pagar menos impostos no interior, porque é mais difícil viver aqui. Não é?
­Portanto, esperamos que no futuro isso possa acontecer. Porque, mesmo assim, a ­região

83
PORTUGAL. Ministério da Economia e da Inovação, 2007: 6.
84
PORTUGAL. Ministério da Economia, 2015.
85
PORTUGAL. Ministério da Economia, 2017.
86
PORTUGAL. Ministério da Economía, 2017: 46-48.

363
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

de ­Trás-os-Montes é uma região muito pobre. Douro dentro do Trás-os-Montes desta­


ca-se um bocadinho por causa do vinho, e do vinho do Porto e do turismo. Mas Trás-os-
-Montes ainda é uma região muito fechada, com condições climáticas adversas,
com pouca população, as pessoas saem87.

O maior medo, hoje, para nós, é a cultura do povo daqui que trabalhava 90%
para a vinha, que se vai acabando. Jovens não vão querer trabalhar na vinha. Esse é o
nosso maior medo. É o que mais assusta para nós, produtores de vinhos, para o futuro.
­Porque a maioria dos nossos colaboradores da vinha tem uma idade média entre 50 e
60 anos. E todos eles eram filhos de antigos funcionários daqui. Todos eles. Se formos
ver, todos aqueles funcionários têm a mesma origem familiar. Porque são primos e
tios, irmãos. E todos vêm de gerações anteriores, estão há gerações na mesma empresa.
Agora, a nova geração, já não88.

Mão de obra qualificada. Essa é uma das dificuldades no Douro. Acho que não
só no turismo, mas muito no turismo, a mão de obra. Estamos a pagar caro agora,
o facto de sermos do interior, e grande parte da juventude quer fugir para as zonas
lito­rais e grandes cidades e acabamos por não ter a mão de obra que necessitamos.
Está melhor, a UTAD tem ajudado muito nisso, porque acaba retendo ou até ­atraindo
­jovens que não são daqui. A escola de turismo de Lamego também e, enquanto m
­ iúdos,
enquanto crianças, percebem que não têm de fugir daqui ou emigrar .
89

Temos problemas, temos, recursos humanos por exemplo e desertificação da r­ egião.


Acho que aqui, portanto, tem de haver um investimento do poder central nas infraestru-
turas, não podemos fechar escolas só porque há cinco alunos, tem de se ­manter a escola
nem que seja um custo social, porque, se queremos manter as pessoas aqui, t­emos de
dar condições às pessoas e jovens que querem regressar. Mas, então, e se eu tiver filhos
­pequenos? Vou pôr os meus filhos a andarem cinquenta minutos de autocarro de manhã?
Tem de haver, da parte do investimento do poder central, do governo, uma intervenção
imediata que é crítica na região, porque nós temos vindo a perder ­população jovem num
ritmo assustador e a população idosa está a ir embora também, não é? […] Portanto,
para mim, as peças fundamentais, neste momento do enoturismo, são r­ ecursos humanos
e a região precisa muito de investir para que, além das condições que os privados dão,
para que as pessoas consigam fazer vida aqui, ­tenham escolas, tenham hospitais, tenham
estruturas críticas essenciais para ­poderem viver aqui, e o que se vê é que realmente,
­infelizmente, temos a população jovem a sair da quinta, isso é crítico em tudo90.

87
Depoimento da entrevistada da Quinta 2, obtido a 05 de fevereiro de 2020.
88
Depoimento da entrevistada da Quinta 3, obtido a 14 de fevereiro de 2020.
89
Depoimento da entrevistada da Quinta 5, obtido a 11 de março de 2020.
90
Depoimento da entrevistada da Quinta 7, obtido a 11 de fevereiro de 2020.

364
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

O processo de esvaziamento populacional na região, iniciado nos anos sessenta do


século passado, vinculado à desvalorização das atividades económicas agrícolas e à b ­ usca
de melhores oportunidades em áreas urbanas, no litoral ou em países estran­geiros91,
é complexo e afeta profundamente a vitivinicultura e o turismo, e as dinâmicas socioeco­
nómicas gerais da região. Nos relatos dos entrevistados, percebe-se que, mesmo tendo
oportunidades de trabalho nas quintas, as pessoas preferem migrar para outras regiões e
países, que oferecem uma suposta melhor qualidade de vida. Nessa conjuntura, a falta de
incentivos estruturais à permanência das pessoas no interior e nas áreas ­rurais restringe
o desenvolvimento do enoturismo. Sendo assim, a definição de «Pessoas» como ativo
estratégico transversal do turismo carece de instituições estruturais que possibilitem que
as pessoas tenham melhores condições para viver no território estudado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, a partir das informações analisadas, conclui-se que, na perceção dos gestores
das quintas estudadas, a institucionalização do ADV como património da UNESCO,
abrangendo um quadro normativo para salvaguarda e valorização do território e da
­paisagem, com mobilização de recursos financeiros, atuou incentivando o desenvolvi‑
mento do enoturismo neste território. A classificação do ADV, em sinergia com as insti‑
tuições que melhoraram os acessos à região, nos âmbitos rodoviário e fluvial, propiciou
uma conjuntura institucional, incentivadora para os investimentos privados na requali‑
ficação das quintas e na oferta enoturística.
As principais restrições institucionais estão relacionadas com a falta de uma polí‑
tica eficiente para evitar a migração dos jovens para outras regiões e países. Além disso,
a assimetria de interesses entre os proprietários das quintas de diferentes dimensões e
a path dependence dos stakeholders em trabalhar individualmente dificultam a organi­
zação e a ação coletiva para a criação de rotas do vinho e outras iniciativas em coope­
ração. A inexistência de uma rota enoturística institucionalizada, situada num território
cuja paisagem da vinha é classificada pela UNESCO e a denominação de origem dos
vinhos tem notoriedade mundial, impede as quintas de usufruírem dos benefícios sinér‑
gicos proporcionados por esse tipo de ação coletiva, sendo, assim, um fator restritivo ao
desenvolvimento do enoturismo.
Essa análise institucional revela que as instituições formais e informais se entre‑
laçam, delineando caminhos de desenvolvimento singulares às especificidades de cada
território, reforçando, assim, a premissa de que é preciso olhar as instituições em toda
a sua complexidade para compreender o desenvolvimento de um destino enoturístico.

91
BERNARDO, coord., 2018.

365
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

BIBLIOGRAFIA
AGUIAR, Fernando Bianchi de (2002). O Alto Douro Vinhateiro, uma paisagem cultural, evolutiva e viva.
«Douro — Estudos & Documentos». 7:13, 143-152. [Consult. 10 abr. 2021]. Disponível em <https://
ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/9585.pdf>.
AZEVEDO, Paulo (2000). Nova economia institucional: referencial geral e aplicações para a agricultura.
«Agricultura em São Paulo». 7:1, 33-52.
BENTO, Ricardo, coord. (2019). Acessibilidades e mobilidades turísticas no Douro. Tenerife: Pasos. [­ Consult.
17 abr. 2021]. Disponível em <https://www.pasosonline.org/Publicados/pasosoedita/PSEdita26.
pdf>.
BERNARDO, Edgar, coord. (2018). Para um enfoque territorial do turismo no Douro. Tenerife: Pasos, [Consult.
20 nov. 2020]. Disponível em <https://www.pasosonline.org/Publicados/pasosoedita/PSEdita21.pdf>.
BRITO, Carlos (2006). A network perspective of the port wine sector. «International Journal of Wine Market‑
ing». 18:2, 128-138. DOI: 10.1108/09547540610681103.
BUENO, Newton (2004). Lógica da ação coletiva, instituições e crescimento econômico: Uma resenha temática
sobre a Nova Economia Institucional. «Economia». 5:2, 361-420.
CARLSEN, Jack (2004). Review of Global Wine Tourism Research. «Journal of Wine Research». 15:1, 5-13.
DOI: 10.1080/0957126042000300281.
COMUNIDADE EUROPEIA (2006). A abordagem LEADER. Um guia básico. Luxemburgo: Serviço das
Publicações Oficiais das Comunidades Europeias. [Consult. 25 nov. 2020]. Disponível em <https://
www.rederural.gov.pt/images/A_abordagem_LEADER.pdf.>.
CRISTÓVÃO, Artur (2011). Acção colectiva e turismo em espaço rural: as Rotas do Vinho e do Azeite no ­Douro
e Trás-os-Montes, Portugal. In SOUZA, Marcelino; ELESBÃO, Ivo, coords. Turismo rural: iniciativas e
inovações. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, pp. 101-142.
DENZAU, Arthur; NORTH, Douglass (1994). Shared Mental Models: Ideologies and Institutions. «Kyklos».
47:1, 3-31. DOI: 10.1111/j.1467-6435.1994.tb02246.x.
GALA, Paulo (2003). A teoria institucional de Douglass North. «Revista de Economia Política». 23:2 (90),
276-292. DOI: 10.1590/0101-31572003-0684.
JOUKES, Veronika; RACHÃO, Susana (2019a). Interligando o Douro com a História do Turismo. In ­SANTANA,
Maria Olinda, coord. Para uma história do Turismo no Douro. Vila Real: Sodivir, pp. 19-34.
JOUKES, Veronika; RACHÃO, Susana (2019b). Práticas Turísticas. In SANTANA, Maria Olinda, coord.
Para uma história do Turismo no Douro. Vila Real: Sodivir, pp. 93-136.
JOUKES, Veronika; RACHÃO, Susana (2019c). Vias e Meios de Transporte: algumas reflexões. In S­ ANTANA,
Maria Olinda, coord. Para uma história do Turismo no Douro. Vila Real: Sodivir, pp. 71-92.
LEAL, Catarina (2001). O turismo rural e a União Europeia: uma realidade em expansão. Guia prático de
investimento. Coimbra: Almedina.
MANFIO, Vanessa; MEDEIROS, Rosa; CRISTÓVÃO, Artur. (2020). Território, desenvolvimento e associa­
tivismo: uma análise sobre a Região do Douro, Portugal. «GEOUERJ». 36, 1-21. DOI: 10.12957/
geouerj.2020.35802.
MANTZAVINOS, Chrysostomos; NORTH, Douglass; SHARIG, Syed (2004). Learning, institutions,
and economic performance. «Perspectives on politics». 2:1, 1-19.
MILHEIRO, Eva; SANTOS, Jorge (2005). O turismo em Portugal: que passado? Que futuro? «Aprender».
30, 119-125.
MITCHELL, Richard (2006). Influences on Post-visit Wine Purchase (and non-purchase) by New Zealand
Winery Visitors. In CARLSEN, Jack; CHARTERS, Stephen, eds. Global wine tourism: research,
manage­ment & marketing. UK: CABI, pp. 95-109.

366
INCENTIVOS E RESTRIÇÕES INSTITUCIONAIS AO DESENVOLVIMENTO DO ENOTURISMO:
A PERCEÇÃO DOS GESTORES DE OITO QUINTAS NO ALTO DOURO VINHATEIRO

MITCHELL, Richard; HALL, Michael (2004). The Post‐visit Consumer Behaviour of New Zealand Winery
Visitors. «Journal of Wine Research». 15:1, 39-49. DOI: 10.1080/0957126042000300317.
NELSON, Richard; WINTER, Sidney (2002). Evolutionary Theorizing in Economics. «Journal of Economic
Perspectives». 16:2, 23-46. DOI: 10.1257/0895330027247.
NORTH, Douglass (1990). Institutions, institutional change, and economic performance — political economy
of instituions and decisions. Cambridge: Cambridge University Press.
NORTH, Douglass (1991). Institutions. «Journal of Economic Perspectives». 5:1, 97-112. DOI: 10.1257/
jep.5.1.97.
NORTH, Douglass (1994). Economic Performance Through Time. «The American Economic Review». 84:3,
359-368. [Consult. 20 nov. 2019]. Disponível em <www.jstor.org/stable/2118057>.
NORTH, Douglass (2001). Why Some Countries Are Rich and Some Are Poor. «Chicago-Kent Law Review».
77:1, 319-330. [Consult. 15 set. 2019]. Disponível em <https://scholarship.kentlaw.iit.edu/cklawre‑
view/vol77/iss1/13>.
NORTH, Douglass (2005). Understanding the process of Economic Change. Princeton: Princeton University.
PATEL-CAMPILLO, Anouk; DELESSIO-PARSON, Anne (2016). Why types of operations, trade ­associations,
and production trends matter in the geographic branding of an emerging Industry. «Journal of Wine
­Research». 27:3, 242-256. DOI: 10.1080/09571264.2016.1202218.
PEREIRA, Gaspar Martins (2006). A evolução histórica. In SOEIRO, Teresa et al. Viver e Saber Fazer Tecno-
logias Tradicionais da Região do Douro. Estudos Preliminares. 2ª ed. Peso da Régua: Fundação Museu
do Douro, 2006, pp. 103-12.
PEREIRA, Gaspar Martins; BARROS, Amândio (2016). O vinho do Porto e a Região do Douro na Época
­Moderna. «Revista Iberoamericana de Viticultura, Agroindustria y Ruralidad». 3:8, 110-126. ­[Consult.
14 nov. 2020]. Disponível em <https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=469546449007>.
PORTUGAL. Ministério da Economia e da Inovação (2007). Plano Estratégico Nacional do Turismo. ­[Consult.
17 out. 2020]. Disponível em <https://pt.scribd.com/document/7732801/Plano-Estrategico-Nacional-
do-Turismo-PENT-Min-Economia-e-Inovacao>.
PORTUGAL. Ministério da Economia (2015). Turismo 2020: Cinco princípios para uma ambição. [Consult.
17 out. 2020]. Disponível em <https://www.historico.portugal.gov.pt/me-dia/15123712/20150805-
turismo-2020.pdf>.
PORTUGAL. Ministério da Economia (2017). Estratégia turismo 2027: Liderar o turismo do futuro. ­[Consult.
17 out. 2020]. Disponível em <http://www.turismodeportugal.pt/SiteCollectionDocuments/estrate‑
gia/estrategia-turismo-2027.pdf>.
RODRIGUES, Vitor; BERNARDO, Edgar; DOMINGUEZ, Caroline (2018). Public tourism framework in
the Douro region: tourism governance in perspective. «Tourism and Hospitality International Journal».
10:1, 55-75. [Consult. 15 set. 2021]. Disponível em <https://thijournal.isce.pt/index.php/THIJ/issue/
view/20/25>.
SALVADO, Josefina (2016). Enotourism ecosystem: stakeholders’ coopetition model proposal. «Tourism and
Hospitality International Journal». 6:2, 77-93.
SALVADO, Josefina; KASTENHOLZ, Elisabeth (2017). Sustainable Wine Tourism Eco-systems through
­Co-opetition. «Revista Turismo & Desenvolvimento», 27/28, 1917-1931.
SANTANA, Maria Olinda (2019a). Breve Contextualização Histórica. In SANTANA, Maria Olinda, coord.
Para uma história do Turismo no Douro. Vila Real: Sodivir, pp. 57-70.
SANTANA, Maria Olinda (2019b). Algumas sugestões para novas práticas turísticas. In SANTANA, Maria
Olinda, coord. Para uma história do Turismo no Douro. Vila Real: Sodivir, pp. 200-211.
SANTOS, José (2014). Turismo: Uma nova política da União Europeia, Contributos para a sua Integração na
Política de Coesão 2014-2020. «Revista de Estudos Sociais», 16:31, 116-130. [Consult. 12 out. 2020].
Disponível em <https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/res/article/view/1992>.

367
PAISAGENS CULTURAIS DA VINHA: IDENTIDADES, DESAFIOS E OPORTUNIDADES

SEQUEIRA, Carla (2013). Modalidades de intervenção do Estado no sector do vinho do Porto, 1852-1932.
In PÉREZ, Sebastián; PÉREZ, Juan, coords. Património Cultural de la Vid y el Vino. Madrid: UAM
Ediciones, pp. 171-175.
SIGALA, Marianna (2019). Developing and Branding a Wine Destination Through UNESCO World Heritage
Listing: The Case of the Mount Lofty Ranges Agrarian Landscape. In SIGALA, Marianna; ­ROBINSON,
Richard, coords. Wine Tourism Destination Management and Marketing (Theory and Cases), pp. 1­ 13-134.
DOI: 10.1007/978-3-030-00437-8_9.
SOUSA, F. (2007). O Alto Douro. Da Demarcação Pombalina à Classificação de Património Mundial. «Popu‑
lação e Sociedade». 13, 18-30. [Consult. 10 abr. 2021]. Disponível em <https://www.cepese.pt/portal/
pt/populacao-e-sociedade/edicoes/revista-populacao-e-sociedade-no-13>.
TELES, Helena (2018). Plano de Gestão e Monitorização do Alto Douro Vinhateiro (ADV). In LAGE, Maria
Otília, coord. Alto Douro e Pico, Paisagens Culturais Vinhateiras Património Mundial em P
­ erspectiva
Multifocal: experimentação comparada. Porto: CITCEM, 2018, pp. 11-20. [Consult. 15 set. 2021].
Dispo­nível em <http://ler.letras.up.pt/site/default.aspx?qry=id024id1584&sum=sim>.
TELES, Helena; SOARES, Patrícia (2019). Alto Douro Vinhateiro património da humanidade — contributos
para a sua valorização e sustentabilidade. In PEREIRA, Gaspar Martins; AMORIM, Maria Norberta;
LAGE, Maria Otília Pereira, coords. Douro e Pico, Paisagens Culturais Património Mundial. Porto:
CITCEM, pp. 21-27. [Consult. 15 set. 2021]. Disponível em <https://ler.letras.up.pt/uploads/fichei‑
ros/17803.pdf>.
WILLIAMSON, Oliver (2012). As instituições Econômicas do Capitalismo: Firmas, Mercados, Relações
­contratuais. São Paulo: Pezco.

368

Você também pode gostar