Allan Kardec e o Progresso Da Ciência

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Dossiê: Allan Kardec: vida, ideias, obras e influências – Artigo Original

DOI – 10.5752/P.2175-5841. 2024v22n67e226704

Allan Kardec e o progresso da ciência

Allan Kardec and the progress of science

Ricardo Andrade Terini

Resumo
Na formulação do Espiritismo, diferentemente das tradições religiosas da época, Allan Kardec
sempre se preocupou em apresentar os conceitos espíritas associados às ideias científicas
vigentes então, com o objetivo de integrá-lo à cultura vigente. Para ele, as leis do mundo material
e as do mundo espiritual têm origem divina. O Espiritismo não deve ser sagrado, pode mudar a
partir de novas descobertas, novos fatos reconhecidos. A partir de pesquisa bibliográfica, o artigo
aborda os avanços científicos admitidos por Kardec em seus escritos em tópicos antes somente
do domínio religioso – como a evolução das espécies, a formação da Terra, a possibilidade de
vida em outros mundos, a Lua, a natureza da matéria –, bem como os desenvolvimentos
principais desde o século XIX até a atualidade. Esses avanços mostram que Kardec era um
homem de seu tempo, mas com visão progressista e aberta a novos desenvolvimentos
consolidados. Essa atitude dá indicações sobre como ele desejava que ocorresse o progresso e a
divulgação do Espiritismo em todas as épocas.
Palavras-chave: Espiritismo. Progresso científico. Idade da Terra. Lua. Pluralidade dos
mundos. Evolucionismo.

Abstract
In formulating Spiritism, unlike the religious traditions of that time, Allan Kardec was always
concerned with presenting spiritist concepts associated with scientific ideas in force at his time,
with the aim of integrating it into the current culture. For him, the laws of the material world and
those of the spiritual world have divine origins. Spiritism should not be sacred, it can change
based on new discoveries, new recognized facts. Based on bibliographic research, this paper
addresses the scientific advances admitted by Kardec in his writings on topics that were
previously only in the religious domain - such as the evolution of species, the formation of the
Earth, the possibility of life on other worlds, the Moon and satellites, the constitution of matter
- as well as the main new developments from the 19 th. century to the present. These advances
show that Kardec was a man of his time, but with a progressive vision, open to new consolidated
developments. This attitude gives directions about how he wished the progress and
dissemination of Spiritism to occur all over the time.
Keywords: Spiritism. Scientific Progress. Age of Earth. Moon. Plurality of inhabitated
worlds. Evolutionism.

Artigo submetido em 24 de novembro de 2023 e aprovado em 15 de agosto de 2024.



Doutor em Física Nuclear Experimental (PUC-SP). Pós-Doutorado no Instituto de Física da USP (IF-USP) em Dosimetria
das Radiações. Professor aposentado do Depto. de Física da PUC-SP. Professor no IF-USP e na UFABC nos últimos
anos. Atualmente pesquisador colaborador no IF-USP. Brasil. E-mail: [email protected]

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Ricardo Andrade Terini

Introdução

Importa não se esqueça que nos achamos nos


primórdios da ciência e que ela está longe de
haver dito a última palavra sobre esse ponto,
como sobre muitos outros (Kardec, 2017, 124).

Allan Kardec, na sua investigação com base nas manifestações espíritas,


procurou formular o Espiritismo como “uma ciência de observação e uma
doutrina filosófica” (Kardec, 2013). Dessa forma, diferentemente das tradições
religiosas da época, Kardec sempre se preocupou em consolidar e apresentar os
conceitos espíritas em associação com as ideias científicas aceitas então, com o
objetivo de integrá-lo à cultura vigente. Fez isso nas várias obras espíritas que
publicou, em particular com referência aos campos contemporâneos da
astronomia, da química, da física, da geologia, da paleontologia, da biologia, não
para congelar as noções científicas do seu tempo no corpo do Espiritismo, mas,
ao contrário, para apresentá-las em diálogo com os conceitos espíritas, com a
intenção de demonstrar que “fé inabalável é aquela que pode enfrentar a razão
face a face, em todas as épocas da humanidade”, como consta em suas obras
(Kardec, 2016).

Para ele, as leis do mundo material e as do mundo espiritual:

[...] tendo o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se.


[...] A incompatibilidade, que se acredita existir entre essas duas ordens
de ideias, provém de uma falha de observação, e do excesso de
exclusivismo de uma e de outra parte (Kardec, 2016).

Assim, os conceitos do Espiritismo e das Ciências Naturais deveriam se


complementar e se apoiar mutuamente e, não, se opor. Mas a visão da Ciência
não é estática, desenvolve-se com o tempo: teorias surgem e, posteriormente, a
partir de novos fatos, são derrubadas por novas teorias mais acuradas e
completas, consecutivamente. Kardec, como educador e homem de Ciência 1 ,
tinha consciência disso, e procurou deixar isso claro em suas obras espíritas.

Não vemos todos os dias as mais opostas opiniões serem


alternativamente preconizadas e rejeitadas, ora repelidas como erros
absurdos, para logo depois aparecerem proclamadas como verdades

1 H. L. D. Rivail atuou como professor em diversas disciplinas oferecidas no Liceu Polimático (pelo menos de 1832 a 1841),
como matemática, gramática, astronomia, física, química e anatomia comparada. Além disso, Rivail foi membro de
várias sociedades científicas, entre elas, a Sociedade de Ciências Naturais da França, e o Instituto Histórico, na área de
História das Ciências físicas, matemáticas, sociais e filosóficas. [Pimentel, 2014; Bastos, 2022]

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incontestáveis? Os fatos, eis o verdadeiro critério dos nossos


juízos, o argumento sem réplica (Kardec, 2012, Introdução – VII).

Uma última característica da revelação espírita, que ressalta das


próprias condições em que ela é feita, é que, apoiando-se em fatos, ela
é, e não pode deixar de ser, essencialmente progressiva, como
todas as ciências de observação (Kardec, 2014, cap. I).

Assim, na consolidação do Espiritismo, Kardec buscava a segurança dos


fatos demonstrados para validar as concepções, que podem naturalmente mudar
a partir de novas descobertas e fatos reconhecidos. Dessa forma, o Espiritismo
deveria acompanhar as pesquisas (espíritas e não-espíritas) para ser progressivo,
assim como ocorre com as ciências; não poderia assumir um caráter sagrado e,
portanto, imutável. O próprio Kardec, durante a construção da Doutrina Espírita,
reelaborou ideias iniciais, a partir da análise de novas pesquisas, comunicações
mediúnicas e descobertas científicas, reconhecidas por ele, como atestam suas
próprias obras e também as várias edições que publicou das mesmas2.

O objetivo desse artigo é analisar, para alguns tópicos no campo das


Ciências Naturais, a evolução conceitual desde a época das obras espíritas de
Kardec, no século XIX, até os dias de hoje e refletir sobre sua influência na
compreensão da Doutrina espírita em comparação com o modo como, em geral,
ele é divulgado no Brasil na atualidade.

Metodologia e Resultados

Partindo da progressividade do Espiritismo como caracterizada por


Kardec (2014), a análise proposta foi realizada por meio da comparação entre
conceitos das ciências naturais do século XIX que aparecem em obras de Kardec
– sobre as questões do criacionismo vs. evolucionismo, a formação da Terra, a
pluralidade dos mundos habitados, a Lua, a constituição da matéria – e
desenvolvimentos que sofreram nos séculos seguintes.

1 Criacionismo vs. Evolucionismo

De muitos séculos, a tradição religiosa judaico-cristã, difundida pela Igreja


Católica, defendia a ideia da Criação geral em 7 dias, cf. o Gênesis da Bíblia, e

2 Como exemplo, O Livro dos Espíritos, publicado em 1ª. edição em 1857, foi reformulado em vários pontos e bastante
ampliado em sua 2ª. edição, lançada em 1860, incluindo então 1019 questões, praticamente o dobro da edição inicial.

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também que Deus teria criado as espécies vivas (inclusive o ser humano) com
forma e características imutáveis – em harmonia com a filosofia do essencialism3.
Desde o século XVIII, porém, com as descobertas da Paleontologia e as hipóteses
evolucionistas de naturalistas como Georges L. L. Buffon (1707-1788), Jean-
Baptiste de Lamarck (1744-1829) e outros, diferentes pontos de vista foram
formulados, alguns inclusive procurando conciliar a ciência da evolução com a
narrativa de criação do Gênesis. No século seguinte, surgiu o termo “criacionista”,
mais comumente aplicado para aqueles “defensores da criação” que rejeitavam,
por motivação religiosa ou não, certos processos biológicos, em particular a
evolução (Institute of Medicine, 2008).

Kardec foi contemporâneo do naturalista e geólogo britânico Charles R.


Darwin (1809-1882), que lançaria as bases do evolucionismo das espécies nas
ciências biológicas. Juntamente com Alfred R. Wallace (1823-1913), Darwin
estabeleceu a ideia de que todos os seres vivos descendem de um ancestral em
comum - argumento hoje amplamente aceito no meio científico - e propôs que os
ramos evolutivos das espécies são resultados de mecanismos de seleção natural
e sexual. O Livro dos Espíritos (Kardec, 2012) (LE) foi publicado por Kardec na
França em 1857 e, em sua 2ª. edição, em 1860. A Origem das Espécies e a Seleção
Natural (Darwin, 2007) é de 1859, mas só na década de 1870 a evolução se tornou
a principal explicação para a origem das espécies em países de língua inglesa,
demorando mais ainda para ser aceita em países com outros idiomas, como a
França 4.

N’O Livro dos Espíritos, Kardec tratou com cuidado dos temas das
Ciências Naturais, dando espaço para teorias em discussão na época – muitas
delas hoje superadas –, como a da geração espontânea (uma das preferidas pelos
criacionistas) (v. o LE, perg. 46), mas procurou focar mais nos aspectos
espirituais da natureza. Em A Gênese, os milagres e as predições (Kardec, 2014)
(G), publicada em 1868, Kardec já restringiria a explicação da geração espontânea
só para os “seres orgânicos elementares” – as conclusões da Ciência progrediam!
– e, em paralelo, já optaria pela direção daquela opinião científica que se

3 Essencialismo é uma doutrina filosófica que aceita que as formas viventes e mesmo os objetos têm um conjunto de
propriedades que são imutáveis, e definem sua essência.
4 Para mais informações, ver, por exemplo, a ref (Larson, 2004).

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consolidava:

Por pouco que se observe a escala dos seres vivos, do ponto de vista de
seu organismo, reconhece-se que, desde o líquen até a árvore, e desde o
zoófito até o homem, há uma cadeia que se eleva por graus, sem solução
de continuidade, e da qual todos os elos têm um ponto de contato com
o elo precedente; seguindo passo a passo a série dos seres, dir-se-ia
que cada espécie é um aperfeiçoamento, uma transformação da
espécie imediatamente inferior (Kardec, 2014, cap. X, 28).

Kardec, então, avançaria incluindo também o ser humano na linha da


evolução biológica:

Verificado que o corpo do homem está em condições idênticas aos


outros corpos, que ele nasce, vive e morre da mesma maneira, deve ter
sido formado nas mesmas condições.
Embora isso possa lhe ferir o orgulho, o homem deve se resignar a ver
em seu corpo material o último elo da animalidade sobre a Terra. [...]
(Kardec, 2014, cap. X, 28 e 29).

Só em 1871, Darwin publicaria outro livro significativo, A Origem do


Homem e a Seleção Sexual (Darwin, 2019), em que concluiria pela descendência
da espécie humana em relação às espécies animais, mostrando a continuidade de
seus atributos físicos e mentais a partir dos primatas.

Com a contribuição das Leis da hereditariedade de Gregor Mendel (1822-


1884) e outros, a Ciência avançou muito desde então e, entre as décadas de 1930
e 1940, a combinação das teorias de Mendell e de Darwin deu origem à Biologia
evolutiva moderna. A estrutura do DNA foi elucidada em 1953 e, no ano 2003, o
Projeto Genoma 5 Humano (PGH), que envolveu laboratórios de vários países,
foi dado como concluído, com o sequenciamento de cerca de 90% do genoma da
espécie humana 6. Os dados mais recentes demonstram que o genoma de uma
pessoa tem cerca de 1% de diferença daquele de um chimpanzé, e é igual a 99,5%
da composição do DNA de qualquer outro indivíduo na face da Terra, seja qual
for sua etnia ou origem! Essa constatação ajudou a minar a base biológica das
teorias criacionistas e da discriminação baseada em teorias racialistas 7 (Cecheti,
2018; Terini, 2020).

5 Genoma: sequência genética do DNA (ácido desoxirribonucleico).


6 Para mais detalhes, ver, p. ex., a página da internet Human Project Genoma.
7 Ver sobre essa questão, p.ex., o artigo PENA, S.D.J.; BIRCHAL, T.S. A inexistência biológica versus a existência social

de raças humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP, São Paulo: n. 68, p. 10-21, 2005-2006.

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2 A Idade da Terra e do Universo

A tradição da Igreja cristã admitia desde muitos séculos a Criação por Deus
da Terra e tudo o mais em 7 dias, sendo a Terra o centro do Universo. Essa
concepção começou a ser questionada mais fortemente a partir dos trabalhos de
Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-1642), Johannes Kepler
(1571-1630), Isaac Newton (1643-1727) e outros, que pavimentaram o modelo
heliocêntrico do sistema solar. No século XIX, com base nas descobertas da
geologia e da astronomia, novas concepções cosmológicas também apareceram.
As teorias sobre a origem dos planetas então mais aceitas eram as do filósofo
Immanuel Kant (1724-1804) – que aceitava Deus como o criador da massa inicial
que deu origem ao Sistema solar e às estrelas – e a do astrônomo Pierre S. Laplace
(1749-1827) – a chamada hipótese nebular (1796), inédita para a época, que
tentava explicar a origem do Sistema solar sem necessidade de intervenção divina
(Pereira, 2022; Steiner, 2006).

Alguns aspectos dessas teorias foram analisados em A Gênese (Kardec,


2014). No cap. 8, Kardec critica a ideia de o Sol ser uma esfera incandescente (da
Teoria da Projeção, de Buffon), que resultaria em menos de 100.000 anos de
existência para a Terra. As opiniões do autor espiritual “Galileu” do cap. 6
aproximam-se muito da hipótese nebular, que Kardec apresentou, no cap. 8,
como a Teoria da Condensação, a qual “prevalece hoje na Ciência”. Desde o início
de suas pesquisas espíritas, porém, Kardec interessou-se em consultar os
Espíritos sobre vários aspectos desse tema:

37. O Universo foi criado ou existe de toda a eternidade como Deus?


— Ele não pode ter sido feito por si mesmo; e se existisse de toda a
eternidade, como Deus, não poderia ser obra de Deus.
42. Podemos conhecer a duração da formação dos mundos; da Terra
por exemplo?
— Nada te posso dizer, porque somente o Criador o sabe; e bem louco
seria quem pretendesse sabê-lo, ou conhecer o número de séculos dessa
formação (Kardec, 2012, cap. III).

Deus, existindo por sua natureza de toda a eternidade, criou desde toda
a eternidade e isso não podia ser de outro modo, pois em qualquer
época longínqua a que recuemos em imaginação os limites supostos da
criação, sempre haverá além desse limite uma eternidade [...] (Kardec,
2014, cap. VI, 14).

Nas questões do LE, os Espíritos apontam inequivocamente Deus como o

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criador do Universo, mas não avançam sobre o modo ou o tempo em que isso
teria ocorrido. A afirmação de que Deus criou “desde toda a eternidade” (A
Gênese, cap. 6, 14) torna difícil imaginar um início para o Universo. Nas obras
básicas do Espiritismo, os Espíritos também não avançaram na questão da idade
da Terra além do limite das ciências da época.

A tradição judaico-cristã afirmava que a Criação teria ocorrido em cerca de


4.000 anos a.C. Outras religiões indicavam idades bem diversas. Por sua vez, as
estimativas científicas a respeito, feitas então com base nas descobertas dos
geólogos, paleontólogos e naturalistas – como Charles Lyell (1797-1875) e Darwin
–, indicavam que muitos milhões de anos seriam necessários para formar as
camadas geológicas dos solos e os fósseis, tempo bem maior do que o das ideias
religiosas comuns daquele século (Tort; Nagarol, 2013; Pereira, 2022).

Porém, somente no final do século XIX e início do XX, com a descoberta


da radioatividade e sua aplicação posterior na datação radioativa foi possível
estimar melhor o limite mínimo para a idade da Terra. O estudo dos materiais
radioativos abriu a possibilidade de avaliar a idade das rochas que continham
urânio e outros elementos radioativos, determinando-se a porcentagem do
minério que teria se desintegrado e transformado em outros elementos. Com base
na meia vida8 do urânio-238, por exemplo, a estimativa da idade da Terra foi
elevada então para bilhões de anos. Além disso, a análise, durante o século XX,
de meteoritos caídos na Terra e outros dados astronômicos conduziu à elevação
dessa estimativa para cerca de 4,5 bilhões de anos e a idade do Sistema solar, para
13 bilhões de anos (Martins, 2012).

Assim, pode-se dizer que, de fato, em meados do século XIX, não havia
nenhuma base científica para se fazer uma estimativa mais acurada do “número
de séculos” da formação da Terra (cf. afirmaram os Espíritos na questão 42 do
LE). Hoje, temos mais elementos para uma estimativa melhor (Terini, 2021b).

3 A Pluralidade dos Mundos habitados

A Igreja cristã considerava que apenas a Terra seria morada dos filhos

8 Nos processos radioativos, meia-vida de um radioisótopo é o tempo necessário para desintegrar (por emissão de
partículas ou processos de fissão, entre outros) a metade da massa deste isótopo, que pode durar desde frações de
segundo até bilhões de anos. A meia-vida do U-238 é de 4,5 bilhões de anos (Okuno & Yoshimura, 2010).

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criados por Deus; os outros corpos celestes não seriam habitados. Muitos autores,
porém, desde o Renascimento – como Giordano Bruno, Júlio Verne, Camille
Flammarion, Herbert G. Wells e outros –, publicaram obras explorando, mesmo
que timidamente, a ideia da pluralidade dos mundos, e de que não estamos sós
no universo. No campo das ciências do século XIX, as opiniões estavam abertas.
A hipótese nebular trouxe um impulso importante às especulações sobre a
pluralidade dos mundos e a vida extraterreste: se planetas são consequências da
formação das estrelas, então, por conta do número imenso delas, os sistemas
planetários devem ser muito comuns na natureza! Essa expectativa permeou as
especulações dos amantes da astronomia por todo o século XIX (Martins, 2012;
Flammarion, 2017). Kardec, também consultou os Espíritos a respeito:

55. Todos os globos que circulam no espaço são habitados?


– Sim e o homem terreno está bem longe de ser, como acredita, o
primeiro em inteligência, bondade e perfeição. Há, entretanto, homens
que se julgam espíritos fortes e imaginam que só este pequeno globo
tem o privilégio de ser habitado por seres racionais. Orgulho e vaidade!
Creem que Deus criou o Universo somente para eles.
Comentário de Kardec: [...] Nada, aliás, nem na posição, no volume ou
na constituição física da Terra, pode razoavelmente levar-nos à
suposição de que tenha o privilégio de ser habitada, com exclusão de
tantos milhares de mundos semelhantes9 (Kardec, 2012, cap. III).

Esse tipo de questão estava em sintonia com as elocubrações da época, e


tocavam, além disso, nas possíveis características dos habitantes dos diferentes
mundos e em pontos essenciais para a concepção de Deus e de sua justiça.

[...] Assim, não imagineis sistemas planetários semelhantes ao vosso


em torno de cada um dos sóis do espaço; não imagineis, nesses planetas
desconhecidos, apenas os três reinos da natureza que se apresentam
ao redor de vós 10 , mas pensai que assim como nenhum rosto se
assemelha a outro rosto em todo o gênero humano, da mesma forma
uma diversidade prodigiosa, inimaginável, foi espalhada nas moradas
etéreas que flutuam no seio dos espaços. (Kardec, 2014, cap. VI, 64)

Várias descobertas astronômicas foram feitas desde então, graças ao


desenvolvimento dos novos telescópios e das técnicas de pesquisa dos corpos
celestes – astrofotografia, espectroscopia etc. No século XX, o estudo da origem,
evolução, distribuição, e futuro da vida no universo, assumiu a posição de ciência

9 Encontramos essa mesma frase de Kardec na apresentação da obra A Pluralidade dos Mundos habitados, de Camille
Flammarion, feita na Revista Espírita (Kardec, 2023), no número de janeiro de 1863.
10 Aqui é patente o cuidado dos Espíritos em fazer referência ao conhecimento científico da época de Kardec. A biologia

progrediu muito desde então, e hoje já se aceita, e até é ensinado na escola básica, que a Natureza pode ser vista como
composta de 6 reinos: Protista, Archaebacteria, Eubacteria, Fungi, Plantae, Animalia (v., p.ex., Terini, 2020).

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interdisciplinar, a Astrobiologia, baseada nos dados astronômicos obtidos, que


são atualizados a cada nova descoberta. A NASA11 fundou seu primeiro projeto de
astrobiologia em 1959. Em 1971, a NASA fundou o projeto SETI - Search for
Extra-Terrestrial Intelligence 12 (Busca por Inteligência Extraterrestre) para
procurar evidências de comunicação interestelar originada de civilizações de
algum planeta distante.

No início do século XXI, a NASA criou o seu Programa de Exploração de


Exoplanetas, com o objetivo de pesquisar planetas além de nosso sistema solar
(exoplanetas), caracterizá-los e procurar vida entre as estrelas. Até 2 de novembro
de 2023, usando todos os métodos de detecção disponíveis, haviam sido
encontrados 5529 exoplanetas em 4078 sistemas planetários. Desses sistemas,
885 têm mais de um planeta; desses planetas, cerca de 70 são considerados hoje
potencialmente habitáveis, isto é, com possibilidade de vida semelhante às que
existem na Terra. A lista é principalmente baseada em estimativas de
habitabilidade do Catálogo de Exoplanetas Habitáveis 13 (HEC) e dados do
Arquivo de Exoplanetas da NASA 14 . O HEC é mantido pelo Laboratório de
Habitabilidade Planetária da Universidade de Porto Rico, em Arecibo. Acredita-
se que para um planeta ser habitável, entre outras coisas, ele deve orbitar a estrela
hospedeira a uma distância adequada, de modo que haja água líquida presente
na superfície, pressão atmosférica suficiente, massa e raio próximos dos
terrestres, além de intensidade de radiação adequada 15 . Entretanto, conforme
alguns trabalhos recentemente publicados, com base em dados coletados via
telescópio espacial Kepler, da NASA, o número de planetas potencialmente
habitáveis em nossa galáxia pode ser bem maior (Terini, 2021b).

Em paralelo, há ainda pesquisadores que especulam a hipótese de outra


bioquímica para a vida, como a que seria baseada em silício (e não em carbono),
e com outros solventes que não a água 16. Assim, as descobertas progressivas da

11 A NASA (National Aeronautics and Space Administration ou Administração Nacional da Aeronáutica e do Espaço) é
uma agência do governo federal dos Estados Unidos responsável pela pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e
programas de exploração espacial.
12 Ver, p. ex., a página https://www.if.ufrgs.br/ast/solar/portug/edu/lifeuniv.htm para mais informações a respeito.
13 Consultar o link https://phl.upr.edu/projects/habitable-exoplanets-catalog .
14 É possível consultar os dados por meio do link https://exoplanetarchive.ipac.caltech.edu/index.html .
15 Ver, p. ex., o artigo de divulgação: LAMMER, H. et al (2009). What makes a planet habitable? The Astronomy and

Astrophysics Review. 17 (2): 181–249. doi:10.1007/s00159-009-0019-z .


16 Ver a respeito o ótimo artigo da ref. (Vieira, 2018).

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Ciência seguem, no seu ritmo e dentro dos limites de suas descobertas, na direção
do comentário dos Espíritos e de Kardec na pergunta 55 do LE.

4 A Lua e seu movimento

A Igreja cristã ensinava que a Lua e todos os corpos celestes foram criados
por Deus nos 7 dias da Criação, e que a Lua girava em torno da Terra. Para outras
etnias e mitologias, a Lua era vista de formas bem diferentes 17. Segundo a Teoria
da Condensação de Laplace (séc. XIX), a Lua e os demais satélites foram
formados a partir da condensação de anéis de matéria que se destacaram durante
a formação dos planetas e que girariam em torno deles.

Em A Gênese, o cap. 6, Uranografia Geral, foi extraído de comunicações


assinadas pelo Espírito “Galileu”, e recebidas pelo médium sr. C. F. (o astrônomo
Camille Flammarion) na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, entre 1862 e
1863. Sobre a Lua, o Espírito afirmava, em bom acordo com a hipótese nebular:

Assim se formaram os planetas, com massas de matéria condensada,


embora ainda não solidificada, destacadas da massa central mediante a
ação da força centrífuga, e em virtude da lei do movimento[...]. Um
desses planetas foi a Terra, o qual antes que se esfriasse e fosse revestido
de uma crosta sólida, deu nascimento à Lua, pelo modo de formação
sideral ao qual ela deve sua própria existência [...] (Kardec, 2014, c. VI,
23).

Até o final do século XIX, porém, algumas inconsistências foram


encontradas na teoria de Laplace 18. Por ela, p. ex., os planetas e seus satélites
deveriam ter movimento orbital com sentido contrário ao que já era observado.
O autor do cap. 6 trouxe também outras características sobre a Lua.

As condições pelas quais se efetuou a desagregação da Lua lhe


permitiram pouco afastar-se da Terra, e a fizeram permanecer
perpetuamente suspensa em seu céu, como uma figura ovoide cujas
partes mais pesadas formaram a face inferior voltada em direção à
Terra, e cujas partes menos densas ocuparam o ponto mais alto,
designando por esse nome o lado oposto à Terra, que assim se conserva
saliente, voltado para o céu. Isto é o que causa o fato de que esse astro
conserve sempre a mesma face voltada para nós. [...]
(Comentário de Kardec) Embora seja racional e científica essa teoria,
como ainda não pode ser verificada por qualquer observação direta,
não pode ser aceita senão a título de hipótese, e como ideia que poderá
servir de baliza para a Ciência (Kardec, 2014, cap. VI, 25).

17 Ver a respeito, p. ex., o artigo de divulgação Sob o domínio da lua – os mitos deste satélite .
18 Ver, p. ex., a ref. CHAMBERLIN & MOULTON, 1909.

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Ciência

Note-se no comentário a prudência de Kardec em aceitar a explicação dada


pelo Espírito sobre a origem da Lua. Embora engenhosa, essa concepção
apresentada pelo Espírito Galileu inclui vários aspectos que já não se sustentam
na Ciência há bastante tempo. Sabemos hoje que a Lua tem movimento de
rotação, mas ela leva o mesmo tempo (27,3 dias terrestres) para girar ao redor do
seu eixo e para orbitar em volta da Terra (translação). Por conta disso, a mesma
face (o lado visível) está sempre voltada para nós. Essa é a causa fundamental da
existência do chamado lado oculto ou escuro, e, não, a fixação da Lua sem
rotação. O lado escuro da Lua também não tem a ver com “falta de iluminação” –
os dois lados da Lua experimentam o dia e a noite, a partir da variação na
incidência da luz do Sol, como acontece na Terra. Na verdade, essa expressão se
refere ao lado da Lua que nunca foi visto da superfície Terra.

A Lua tem a rotação sincronizada com a Terra por conta do fenômeno


denominado acoplamento de maré (ou travamento de maré). Todas as dezenove
luas redondas conhecidas no Sistema Solar são acopladas por maré com seus
planetas primários, porque elas orbitam muito próximas a eles e a força de maré
aumenta rapidamente com a diminuição da distância 19 (Kegerreis, 2022).

O hemisfério lunar “oculto” foi fotografado pela primeira vez pela sonda
espacial soviética Luna 3, em 1959, e observado inicialmente por olhos humanos
durante a missão americana Apollo 8, na órbita da Lua, em 1968. Em 1969,
astronautas da Apollo 11 pousaram em solo lunar e puderam observá-lo de perto
e coletar amostras dele. De lá para cá, várias missões espaciais procuraram
explorar e obter mais dados do nosso satélite. A primeira sonda a pousar no lado
oculto da Lua foi a chinesa Chang'e 4, em janeiro de 2019. Por datação
radiométrica de amostras do solo lunar, estima-se hoje que sua origem se deu há
cerca de 4,45 bilhões de anos. A atmosfera da Lua é tão rarefeita que, na prática,
é quase vácuo, portanto, incompatível com a existência de vida como
conhecemos. Hoje, além disso, estima-se que a crosta lunar tem espessura média
de cerca de 50 km no seu lado visível à Terra, e 100 km no seu lado oculto, com
densidade semelhante em ambos os lados.

19 Sobre esse tópico, ver, por exemplo, os ótimos artigos Tides e Tidal locking, de autoria de Tracy Vogel, publicado no
portal NASA Science Earth’s Moon.

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Esses dados são diferentes do que o Espírito Galileu indicou na obra A


Gênese. Assim, hoje, já com as necessárias “observações diretas”, pontuadas por
Kardec, o conhecimento sobre a Lua tornou-se muito mais preciso (Terini, 2023).

5 A natureza da matéria

Os filósofos gregos Leucipo e Demócrito (sécs. V a.C.) concebiam a matéria


formada de “átomos” impenetráveis, seus menores componentes, que estariam
em movimento no espaço vazio das vizinhanças. Já Aristóteles (384-322 a.C.)
negava a existência dos átomos e consequentemente do vazio, afirmando que a
matéria deveria ser contínua, podendo ser dividida indefinidamente, e o universo
seria totalmente preenchido por ela. No período medieval, a concepção de
Aristóteles popularizou-se na Europa, com a ideia de que “a natureza tem horror
ao vazio”, que tinha simpatia da Igreja cristã, que achava que Deus não poderia
criar o “nada” (vazio). Nos séculos XVI/XVII, os atomistas voltaram a ser
estudados, Galileu Galilei (1564-1642) e outros adotavam a teoria atômica da
matéria, e inventava-se as primeiras máquinas para produzir vácuo (bombas de
vácuo) (Martins, 2006).

Na época de Kardec, entendia-se majoritariamente que as propriedades


básicas da matéria eram a dureza, a continuidade e a ponderabilidade. Isso ficava
evidente nas próprias questões do Livro dos Espíritos:

22. Define-se geralmente a matéria como sendo o que tem extensão, o


que é capaz de nos impressionar os sentidos, o que é impenetrável. São
exatas estas definições?
– Do vosso ponto de vista, elas o são, porque não falais senão do que
conheceis. Mas a matéria existe em estados que ignorais. Pode ser, por
exemplo, tão etérea e sutil que nenhuma impressão vos cause aos
sentidos. Contudo, é sempre matéria. Para vós, porém, não o seria
(Kardec, 2012)

Apesar disso, alguns químicos já consideravam que a matéria deveria ser


formada de átomos e moléculas – cujos conceitos eram um pouco diferentes dos
atuais – diferentes para cada substância, conforme o modelo de John Dalton
(1766-1844) (Pereira & Silva, 2018). Nessa mesma linha, Kardec, n’O Livro dos
Espíritos (2012, cap. I), utilizou as expressões “moléculas primitivas” (átomos)
e “moléculas secundárias” (moléculas); em A Gênese, diferenciou “substâncias
elementares” ou “simples” (oxigênio, hidrogênio etc.) e “substâncias compostas”

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Ciência

(óxidos, sais etc.) (Kardec, 2014, caps. VI, 4 e X, 4). Os Espíritos, porém,
apresentariam uma visão um pouco diferente:

30. A matéria é formada de um só ou de muitos elementos?


– De um só elemento primitivo. Os corpos que considerais como corpos
simples não são verdadeiros elementos, mas transformação da matéria
primitiva.
31. De onde provém as diferentes propriedades da matéria?
– Das modificações que as moléculas elementares sofrem, ao se
unirem, e em determinadas circunstâncias.
33. [...] Comentário de Kardec: O oxigênio, o hidrogênio, o azoto, o
carbono e todos os corpos que consideramos simples não são mais do
que modificações de uma substância primitiva. Na impossibilidade,
em que nos encontramos ainda, de remontar de outra maneira, que não
pelo pensamento, a essa matéria, esses corpos são para nós verdadeiros
elementos, e podemos, sem maiores consequências, considerá-los
assim até nova ordem (Kardec, 2012).

A teoria de Dalton, aceita na época, considerava que os átomos de cada


elemento eram distintos. O pensamento exposto pelos Espíritos – de que “a
matéria existe em estados que ignorais” e “os corpos simples seriam
modificações de uma substância primitiva” – era visionário para a época de
Kardec, levando em conta que só no final do século XIX e ao longo do século XX
aconteceram descobertas científicas que evidenciaram a existência de outros
estados da matéria (p.ex., o plasma , identificado por William Crookes (1832-
1919) em 1879) e que os átomos de todos os elementos são compostos dos
mesmos tipos de partículas elementares.

As descobertas científicas pós-Kardec – ondas eletromagnéticas, raios


catódicos, raios X, radioatividade natural e artificial (com a possibilidade da
transmutação 20 de isótopos), antipartículas etc. –, evidenciaram que a
constituição da matéria é bem mais c0mplexa do que se imaginava. Nos anos
1950, a Ciência já reconhecia, como constituintes de toda matéria, as seguintes
partículas “elementares”: prótons, elétrons, nêutrons, pósitrons, mésons,
neutrinos e fótons. Em 2013, o chamado Modelo Padrão21 aceitava já 17 entes
(partículas que transmitem as forças fundamentais e partículas elementares –
bósons e férmions, respectivamente) para explicar a constituição de todos os 118

20 Quando um isótopo radioativo emite partículas alfa ou beta, por exemplo, ele se transforma (transmuta) em outro
elemento, com diferentes números atômico e de massa (Okuno & Yoshimura, 2010).
21 Para mais detalhes, consultar, p. ex., a página https://neutrinos.propg.ufabc.edu.br/index.php/situando/modelo-

padrao/.

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elementos químicos conhecidos e os milhares de compostos formados com eles.

Além disso, as propriedades aparentes das substâncias (coesão, dureza,


continuidade...) seriam mantidas por forças eletromagnéticas entre as partículas
que as compõem (o que, na essência, concorda com a pergunta 31 d’O Livro dos
Espíritos) (Terini, 2021a).

Discussão

Neste artigo, historiamos sinteticamente a evolução das concepções sobre


alguns tópicos das Ciências Naturais – abordados nas obras básicas do
Espiritismo –, desde as ideias básicas da tradição judaico-cristã, passando pelas
obras espíritas básicas de Kardec, até os progressos científicos ocorridos desde
então. Para permitir uma visão mais global, a Tabela 1 a seguir compara visões
sobre as diversas questões filosófico/científicas que abordamos antes, da tradição
religiosa cristã, do Espiritismo e das Ciências naturais no século XIX, e também
nos séculos XX e XXI.

Tabela 1 – Comparação entre visões sobre algumas questões


filosóficas e científicas da tradição religiosa cristã, do Espiritismo e
das ciências no século XIX, e nos últimos dois séculos.

Tradição Obras de Kardec Ciência atual


judaico-cristã * séc. XIX (sécs. XX e XXI)

Cada espécie é um Projeto Genoma Humano: o


Todas as espécies vivas
aperfeiçoamento, uma genoma de uma pessoa difere
foram criadas por Deus
transformação da espécie ~1% daquele de um chimpanzé, e
na forma que existem
imediatamente inferior. Todas é igual a 99,5% do genoma de
hoje.
têm um ancestral comum. (G) qualquer outra pessoa na Terra.

Criação das espécies Origem das espécies ao longo Origem dos seres humanos
vivas, incluindo os de várias eras. Origem dos (homo sapiens sapiens) há
seres humanos, a partir seres humanos há milhares de ~150.000 anos. Antepassado
de Adão e Eva em anos (G); possivelmente a comum com os símios surgido há
~4000 a.C. partir da evolução dos símios. milhões de anos (Harari).

Criação do mundo em 7 Origem da Terra há milhões de Origem do sistema solar há 13


dias, em ~4000 a.C. anos; (G) bilhões de anos e da Terra há 4,5
Terra é o centro dos Evidências: fósseis, camadas bilhões de anos. Evidências:
corpos celestes. geológicas, obs. astronômicas. datação radioativa; meteoros.

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Ciência

Nada nas características físicas


da Terra, pode nos fazer supor Milhares de exoplanetas
Só há vida criada por
que só ela possa ser habitada. descobertos. ~70 exoplanetas
Deus na Terra.
Deve haver vida também nos similares à Terra (até 2024).
outros planetas (LE, G)

Lua tem translação e rotação.


Lua é um dos satélites do
Lua gira em torno da Período de rotação da Lua =
sistema solar, e translada com
Terra. Criadas juntas. período de translação em torno
face fixa voltada para a Terra.
da Terra.
Há átomos e moléculas (G).
A matéria é continua;
Divisão de opiniões entre Matéria é feita de átomos;
não há átomos (Deus
cientistas sobre a composição elétrons e núcleo; fótons, próton,
não poderia criar o
da matéria. Nem todos nêutron, mésons... quarks...
vazio)
aceitavam os átomos.
Fontes: (*) Genesis, Antigo Testamento, Bíblia.
KARDEC, A.: (LE) O Livro dos Espíritos (1857); (G) A Gênese (1868).

Nas situações analisadas, Allan Kardec não se conformou com as


explicações teológicas das tradições religiosas cristãs, mas preferiu a maior
segurança dos resultados das pesquisas científicas de sua época, somados às
pesquisas dos fenômenos espíritas. Em todos esses casos, o progresso do
conhecimento científico evidenciou erros nas concepções científicas do século
XIX ou pelo menos ampliou e tornou mais precisos os conceitos da época. Pela
análise desses exemplos, podemos perceber a atitude de Kardec em diferentes
situações:

1) Kardec, ao longo das pesquisas espíritas, aperfeiçoou em suas


publicações as ideias a respeito da geração espontanea e da origem das
espécies, à medida que as pesquisas científicas também progrediam. No
século seguinte, a Ciência confirmou e aprofundou o entendimento do
mecanismo da evolução biológica das espécies;
2) Os Espíritos afirmaram ser loucura tentar estimar a idade da Terra,
mas Kardec preferia a hipótese nebular para explicar a formação do
sistema solar com uma estimativa de milhões de anos para esse tempo. A
Ciência do séc. XX pode elevar a estimativa para bilhões de anos.
3) Os Espíritos, desde o LE, sustentaram a multiplicidade dos mundos
habitados, tão ao gosto de astrônomos e da sociedade em geral da época
de Kardec, embora sem evidências concretas. Nos séculos seguintes, foi
possível encontrar dezenas de planetas com condições de habitabilidade

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próximas às da Terra, e com probabilidade de terem vida como a


conhecemos;
4) O Espírito Galileu publicou uma teoria sobre o movimento e a face
oculta da Lua, mas Kardec a indicou apenas como hipótese, aguardando
evidências futuras. Nos sécs. XX e XXI, observações mais precisas e
pousos na Lua, permitiram mostrar que a explicação cabível é bastante
diferente,
5) Os Espíritos indicaram a unicidade da constituição dos diferentes
corpos simples da natureza. Kardec adotou a natureza atômica em
algumas explicações, embora essa opinião ainda não fosse majoritária na
Ciência da época. O desenvolvimento das Ciências Naturais confirmou
que todas as substancias são constituidas dos mesmos tipos de entes
elementares.

Conclusão

Allan Kardec era um homem em sintonia com as questões científicas,


filosóficas e sociais de seu tempo. Em suas obras espíritas, diferentemente das
tradições religiosas de seu tempo, Kardec preocupou-se em apresentar os resultados
de suas pesquisas no campo da ciência e da filosofia espíritas, sempre que possível
junto com os conceitos aceitos pelas ciências de sua época. Após seu desencarne,
e com o passar do tempo, novas descobertas e concepções levaram naturalmente
à atualização dos conceitos científicos, em diversos campos das ciências. “O
Espiritismo marcha sobre o mesmo terreno que a Ciência, até os limites da
matéria tangível” (Kardec, 2023, Revista Espírita, 03/1868).

Por outro lado, os próprios Espíritos que auxiliaram Kardec na elaboração


do Espiritismo enfatizavam que não era papel deles fazer o que é trabalho do ser
humano na Terra, e evitavam ultrapasssar os limites da Ciência da época. Em O
Livro dos Médiuns (LM), ele comentaria, p. ex., que: “As perguntas sobre a
constituição física e as condições astronômicas dos mundos entram no campo das
pesquisas científicas, cujos trabalhos os Espíritos não podem poupar-nos”
(Kardec, 2017, 296).

As considerações das seções acima, encontradas nas obras espíritas de

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Ciência

Kardec, são evidências a favor da conclusão apontada por ele de que os Espíritos
não passam a conhecer tudo sobre o universo simplesmente por estarem
desencarnados, e que podem, muitas vezes, manter ideias pessoais por algum
tempo mesmo após o desencarne. Indicam também que, ainda que, por seu
progresso, eles conheçam algo mais avançado, nem sempre podem divulgá-lo,
quer porque isso poderia não ser ainda compreendido, quer porque as próprias
pesquisas da Ciência poderiam descobrir o fato no momento propício. Fica claro
também que cabe ao(s) pesquisador(es) da mediunidade proceder a essa análise,
aceitando ou não o que vem de Espíritos.

Por coerência, Kardec buscava se nortear em todas as obras com a


racionalidade e a atualidade ciêntífica, além da “conformidade com o ensino geral
dos espíritos”, não tendo dúvida em assumir, prudentemente, que “algumas
teorias ainda hipotéticas” deveriam “[...] ser consideradas como opiniões
pessoais, até que tenham sido confirmadas ou contestadas, a fim de não fazer
pesar a responsabilidade delas sobre a Doutrina” (Kardec, 2014).

A atitude de Allan Kardec aberta ao progresso da Ciência é um indício claro


da atitude que ele recomendava aos espíritas de todas as épocas, para que o
Espiritismo permanecesse na vanguarda cultural (das pesquisas espíritas e das
ciências em geral), de modo a não comprometer a sua credibilidade pública na
própria sociedade. Foi isso que ele fez até o final de sua vida, inserido na cultura
de sua época e na sociedade em que viveu. Sua atitude e metodologia ainda
precisam ser melhor avaliadas por trabalhos futuros. Análises estimulantes
constam, nesse sentido, das refs. Moreira-Almeida (2008) e Pimentel (2014).

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