Mocambo

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Mocambo 1

Comunidade Quilombola
Sergipe
Mocambo
Terras de Quilombos
Coleção
2 Terras de Quilombos

As terras de quilombos são territórios étnico-raciais com


ocupação coletiva baseada na ancestralidade, no parentesco e em
tradições culturais próprias. Elas expressam a resistência a dife-
rentes formas de dominação e a sua regularização fundiária está
garantida pela Constituição Federal de 1988.
O Decreto 4.887/2003 define que o INCRA é o órgão federal
responsável pela titulação dos quilombos, com competência con-
corrente do Distrito Federal, estados e municípios. Para fins de re-
gularização fundiária, o INCRA elabora Relatórios Técnicos de Iden-
tificação e Delimitação (RTID) que reúnem informações fundiárias e
cadastrais das famílias, bem como a caracterização antropológica,
histórica, econômica e ambiental da área quilombola. Esse traba-
lho tem gerado um grande acervo de dados, registrando de ma-
neira inédita um arcabouço de manifestações e características dos
quilombos nos períodos escravocrata e pós-escravocrata.
O objetivo da parceria entre INCRA, NEAD (SEAD) e UFMG é sis-
tematizar e dar publicidade às informações contidas nos RTIDs, em
muitos casos ignoradas pela historiografia oficial. Esse material,
registrado no âmbito dos processos administrativos do INCRA, foi
transposto para uma linguagem acessível, com o apoio de diversos
colaboradores, destacando-se os autores das etnografias dos RTIDs.
Os livretos trazem também depoimentos dos próprios quilombolas.
Eles testemunham a continuidade de uma luta fortalecida pela es-
perança de que o conhecimento de sua história garanta finalmente
a compreensão da legitimidade de seu pleito pela titulação.
A publicação dos livretos visa, assim, a contribuir para o reco-
nhecimento das comunidades quilombolas, estimulando a difusão
de informações qualificadas sobre elas. Reunidas nesta Coleção,
as histórias de resistência quilombola agora podem ser conheci-
das mutuamente pelos quilombolas das diversas regiões do país.
Espera-se também que este material forneça a gestores públicos,
educadores, pesquisadores e demais interessados informações
acessíveis sobre essas comunidades.
Mocambo 1

Comunidade Quilombola
Mocambo
A comunidade quilombola de Mocambo está localizada no municí-
pio de Porto da Folha, no sertão sergipano, a aproximadamente 185
km de Aracaju, às margens do Rio São Francisco. Primeiro quilombo
de Sergipe a ser certificado pela Fundação Cultural Palmares,
em 2000, a comunidade de Mocambo reúne em torno de 100 famí-
lias distribuídas por dois núcleos residenciais, Mocambo e Ranchi-
nho, e algumas casas dispersas. Os quilombolas reivindicam
um território de 2.100 hectares, dos quais 704,1227 ha já
foram titulados pelo INCRA. No entanto, não houve a reti-
rada ou indenização dos ocupantes não quilombolas e, por
isso, o processo está sendo realizado pelo INCRA.
2 Terras de Quilombos

Comunidade de Mocambo, às margens do rio São Francisco.


Foto: Antônio Oliveira (INCRA – SE).

A história do Quilombo de Mocambo é extraordinaria-


mente rica e importante porque demonstra a solidarieda-
de entre os negros e os indígenas Xocó na luta pela terra e
por seus direitos.
Os mocambeiros estão na região desde pelo menos a primeira
metade do século 19, mas não lembram como seus antepassados
chegaram ali. Durante muito tempo, o Sertão de Porto da
Folha, também denominado Sertão do Rio São Francisco,
foi ocupado por negros aquilombados ou amocambados,
fazendo parte de uma extensa rede de mocambos mais ou
menos próxima à região de Palmares. O local era reconhecido,
inclusive em documentos oficiais, como uma “terra de refúgio”, onde
escravizados fugidos, negros livres e libertos, pardos e grupos indíge-
nas procuravam estabelecer uma vida livre e autônoma.
A história do nome da comunidade é composta por uma suces-
são de alusões ao termo de origem quimbundo, mukambu, usado
no Brasil para denominar povoações de negros fugidos. A primeira
alusão concerne propriamente aos grupos de negros que ocuparam
a região nos séculos 17 e 18. Em referência a esses grupos, o nome
foi dado a um riacho: Mocambo. Mais tarde, o nome foi dado à pri-
meira fazenda de gado instalada na área, a Fazenda Mocambo. O
povoado que permaneceu dentro da Fazenda Mocambo passou a ser
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Rua principal. Foto: Cristian Philippsen (INCRA – SE).

especificamente conhecido como Mocambo. Já no século 20, o nome


Mocambo passou a se referir a uma comunidade quilombola mais
extensa, reunindo moradores de outros povoados.
O Quilombo Mocambo é vizinho dos indígenas Xocó e estabelece
com eles laços de parentesco e solidariedade, compartilhando uma
longa trajetória de resistências. Eles iveram os mesmos processos de
expropriação violenta de seus territórios, envolvendo as mesmas fa-
mílias de fazendeiros. Durante décadas, usaram o mesmo cemitério
na Ilha de São Pedro e até hoje guardam memórias em comum.
Os mocambeiros foram expulsos de grande parte das terras que
ocupavam tradicionalmente e sofreram restrições severas para rea-
lizar suas atividades agrícolas e de criação animal livremente, o que
inviabilizou muitas vezes o seu sustento. Hoje em dia, praticamente
todos os membros da comunidade têm parentes morando fora. Com
a carência de terras, muitos buscaram trabalho como diaristas em fa-
zendas e em outros municípios vizinhos, como Pão de Açúcar, Aracaju
e locais mais distantes.

A vida em Mocambo
A expoliação das terras indivisas e de uso comum, somada às
proibições de pequenas criações soltas, alterou o modo de vida em
Mocambo. Os quilombolas passaram a dividir suas atividades entre
quintais, áreas de beira e a terra do estado. No quintal, situado nos
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fundos das casas, algumas famílias possuem criações como galinhas


e porcos. Cultivam uma pequena horta onde colhem alimentos como
quiabo, abóbora e temperos, sobretudo em períodos de chuva. Re-
lativamente recentes, a pequenez desses espaços, somada à baixa
qualidade do solo, tornam a produção nos quintais pouco expressiva
na renda e na dieta das famílias.
A área de beira – trecho de terra seca entre as margens do rio e as
casas mais próximas – é um espaço de uso comum, tradicionalmente
formado pela vazante do Rio São Francisco. A beira teve sua extensão
terrestre ampliada e perenizada devido à construção de barragens
hidrelétricas, como a de Xingó, que alterou significativamente o vo-
lume e o ciclo das águas do rio. Isso contribuiu para a extinção
das cheias e das lagoas de várzea, utilizadas anteriormente de
modo comum e indiviso pelos quilombolas, para o plantio de
suas roças de arroz.
Hoje, a beira é utilizada em Mocambo como pasto para a criação
de cabras, ovelhas, vacas leiteiras, e animais de carga e de montaria.
É também uma boa área para plantar mandioca, mas, apesar dos es-
paços agrícolas serem restritos, os moradores não plantam na beira
porque é um espaço de uso comum, onde todos circulam livremente
em direção ao rio.
A terra do estado é um trecho de terra com cerca de 550 metros
de largura e entre 1.700 e 1.800 metros de comprimento. Foi transfe-
rida à comunidade na década de 1940, não se sabe ao certo se pelo

Rio São Francisco, Mocambo. Foto: Cristian Philippsen (INCRA – SE).


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Igreja, Quilombo de Mocambo. Foto: Cristian Philippsen (INCRA – SE).

estado de Sergipe ou pela União. Apesar da dificuldade de se encon-


trar os documentos da doação, esse fato está marcado na memória
regional – não só do grupo, mas também de seus vizinhos e mesmo
dos proprietários que há tempos vêm se apossando das terras de
uso comum, mas respeitam esse trecho. A doação é também lembra-
da por todos, porque na ocasião foi realizada uma grande festa, na
qual se inaugurou a primeira escola da comunidade, a nova igreja e
o cemitério de Mocambo. Esses acontecimentos demonstram
o reconhecimento, há mais de meio século, pelos proprie-
tários e pelo poder público, da existência da comunidade e
de seus direitos de acesso à terra.
Essas terras do estado, até recentemente, eram a maior reser-
va territorial de Mocambo. Elas estão repartidas entre posseiros. Na
época de plantio, os lotes individuais são abertos ao cultivo de toda a
comunidade. Lá produzem principalmente feijão e milho.
A festa da Padroeira Santa Cruz, realizada em maio, é
um importante momento de celebração dos laços entre os
moradores de Mocambo e de sua luta pelo território. Motivo
de orgulho para a comunidade, a festa recebe em média três ônibus
de turismo e mais de cinquenta carros particulares. Ela é considera-
da a melhor festa da região e reúne praticamente todos os mocam-
beiros, inclusive aqueles que moram fora. São cinco dias de festa
organizados por grupos de pessoas de todas as idades, que compe-
tem entre si e administram cada um, um dia de festa. As casas ficam
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Moradores do Mocambo. Foto: Antônio Oliveira (INCRA – SE).

abertas e oferecem comidas e bebidas para todos, propiciando um


momento de confraternização e solidariedade. Outra tradição é
o samba de coco, que remonta aos tempos dos antepas-
sados da comunidade. Mantida até os dias de hoje, é um
momento de muitas trocas e laços. Em períodos de colheita de
arroz e em finais de semana, mocambeiros – de crianças a idosos –
se reúnem para dançar e cantar a vida e as histórias de resistência.
Samba negro, que branco não vem cá
Se vinhé, pau há de levá
(Trecho de samba de coco cantado em Mocambo)

Dos tempos de autonomia


à chegada das fazendas

Até meados do século 19, o Sertão do São Francisco


constituiu-se em terras de refúgio para negros e indígenas
que criaram ali um território de resistência. Por um longo pe-
ríodo a região era relativamente isolada, acolhendo uma população
camponesa livre.
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Estabelecidos ali, pelo menos desde a primeira meta-


de do século 19, a história do Quilombo de Mocambo é
marcada por um tempo de liberdade e autonomia, quando
eram conhecidos como os Negros do Pé da Serra. Viviam em
vários núcleos familiares associados a um pequeno rancho, conhe-
cidos como antigos chiqueiros. Ali criavam porcos e outros animais,
possuíam roçados familiares e se reuniam nas épocas de chuva para
o plantio de arroz nas lagoas que se formavam na beira do Rio São
Francisco.
Até hoje existem marcas de dezessete desses chiquei-
ros ao longo do território de Mocambo, cada um deles re-
lacionado a um antepassado conhecido. Nesses locais, em
capoeiras abertas na caatinga, ainda podem ser vistas as bases das
casas antigas, com restos de pratos, garrafas e uma grande pedra
onde maceravam o sal, o milho e outros grãos. Nos ranchos mais dis-
tantes das lagoas encontram-se também poços destinados a armaze-
nar água de chuva. Os Negros do Pé da Serra mantinham pequenas
trocas comerciais e serviços religiosos com Frei Doroteu, missionário
responsável pelo aldeamento indígena da Ilha de São Pedro.
Esse tempo de liberdade e autonomia foi rompido a par-
tir da segunda metade do século 19, dando início a um lon-
go período de expoliações e trabalhos forçados. A decadên-
cia das fazendas e engenhos de açúcar na região litorânea, somada
às mudanças trazidas pela Lei de Terras de 1850, impulsionaram os
investimentos estatais em direção à expansão das fazendas de gado
e algodão para o Sertão do São Francisco. As terras ocupadas pe-
los mocambeiros ancestrais foram declaradas devolutas,
por não possuírem registro legal.
Conta-se que Dom Pedro II, em pessoa, visitou a região e conhe-
ceu Frei Doroteu e os indígenas que ali viviam. Ao partir, prometeu
demarcar e doar as terras a seus ocupantes. Tempos depois, um en-
genheiro oficial foi até a região para demarcar um pequeno trecho
para os indígenas. Entretanto, o restante das terras e a Ilha de São
Pedro – onde moravam os aldeados e onde se localizava o cemitério
utilizado por eles e pelos mocambeiros – foram deixadas de fora da
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medição e registro. Seu destino foi a apropriação por famílias


influentes de Sergipe, iniciando o avanço das fazendas de
gado em Porto da Folha.
As famílias de negros, que ocupavam cerca de um quilômetro de
beira do rio, também não foram contempladas. Esse trecho ocupado
pelos mocambeiros ficou com um “capitão” ou “coronel” conhecido
como Zezé. A vida antes livre entre os chiqueiros e as lagoas
de arroz agora estava sob os domínios da fazenda: planta-
ções, criações, ranchos e o trabalho dos negros passaram
a ser consideradas propriedades do Coronel Zezé.
Essa subordinação é considerada pelos mocambeiros
como “época da escravidão”. Sua marca também foi deixa-
da pelos “muros de pedra” que delimitam as antigas fazen-
das e podem ser vistas no território. Feitos de grandes pedras
encaixadas, cortadas e transportadas apenas com a força humana,
sua construção segundo a memória local foi realizada “pelo braço
escravo”.
Outros fragmentos de histórias demonstram também a realidade
opressiva em que passaram a viver os mocambeiros.
O tio-avô do Sr. Antônio (o principal responsável pela guarda e
transmissão da memória da comunidade), certa vez enamorou-se
da filha do fazendeiro para quem trabalhava, tendo encontrado na
moça correspondência do seu interesse. Ao saber do caso, no en-
tanto, o pai da moça enraivecido manda prendê-lo e como castigo
enterra-o vivo (ARRUTI, 1997, p.26).
Algumas dessas histórias evidenciam ações de coragem e enfren-
tamento a essa opressão. Uma delas é a história de uma mulher ne-
gra pega à força por capatazes para ser levada de volta à fazenda.
Quando eles atravessavam o rio, ela, mesmo amarrada,
preferiu jogar-se nas águas e morrer a voltar a ser escravi-
zada.
Nesse momento, os negros de Mocambo viveram o primeiro pro-
cesso de expropriação de suas terras que eram de uso comum. Ao
perder sua autonomia e liberdade para cultivar livremen-
te seus roçados e criar pequenos animais à solta foram
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obrigados a abandonar seus antigos chiqueiros. Passaram


então a se deslocar de um lugar para outro, até se dividirem em três
povoados, inseridos nas fazendas Jaciobá, Floresta e Mocambo, nas
quais passaram a trabalhar no plantio de arroz em sistema de “meia”.
Mesmo estando divididos em três diferentes núcleos residenciais, os
mocambeiros mantiveram o relacionamento entre eles, realizando
trabalhos e celebrações coletivos. As mulheres, por exemplo, se reu-
niam em tornos das lagoas, e cantavam samba de coco durante o
trabalho.

Expoliação recente
A partir da década de 1960, as fazendas Jaciobá, Floresta e partes
da antiga Fazenda do Mocambo foram unificadas. O novo proprie-
tário deixou de oferecer o trabalho à meia. Os trabalhos
temporários nas lagoas de arroz, bem como os demais
plantios, passaram a ser negados. No mesmo período, o par-
celamento das terras avançou e aumentou a repressão contra as pe-
quenas criações que ainda permaneciam em regime de solta. Esses
processos levaram os mocambeiros a abandonar suas moradias nas
fazendas. As famílias que permaneceram na região, principalmente
os residentes de Jaciobá, se dirigiram ao povoado do Mocambo, com
o qual mantinham fortes laços de compadrio e parentesco e que não
tinha sido englobada pela unificação das fazendas.
Diante da repressão às atividades agrícolas, restou às famílias o
trabalho como meeiros na antiga Fazenda São Francisco, cujo dono
era um ex-mocambeiro que tinha comprado a fazenda com dinheiro
ganho com o comércio. As relações de parentesco com o pro-
prietário possibilitaram aos quilombolas trabalhar durante
vinte anos na última lagoa de arroz, chamada Lagoa Sal-
gada.
Assim como em Mocambo, os indígenas Xocó vivenciaram um lon-
go processo de expoliação iniciado na década de 1870, quando as
missões indígenas foram extintas. Apesar de buscar apoio ao longo
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dos anos no SPI (Serviço de Proteção ao Índio), e depois na FUNAI,


apenas nos anos de 1970 os Xocó conseguiram a primeira interven-
ção do órgão indigenista.
A atuação da Igreja Católica foi fundamental para a mobilização
política dos indígenas. Ao instituir um processo de luta pela terra
baseado nas mensagens bíblicas, a Igreja mobilizou não somente
os Xocó, mas também seus parentes do Mocambo. A década de
1980 foi um período de intensas lutas e conquistas para
os Xocó, repercutindo também na vida dos mocambeiros.
Com o falecimento do proprietário da antiga Fazenda São Francis-
co, em 1982, suas terras foram divididas entre seus herdeiros. Coube
a uma filha a administração de uma parte da fazenda: aquela situada
entre Mocambo e a Terra Indígena de Xocó, onde havia o plantio de
arroz na Lagoa Salgada. Sentindo-se ameaçada pela mobili-
zação dos indígenas, a nova proprietária decidiu encerrar
as atividades com os meeiros. Pela primeira vez Mocambo
vivenciou a fome.
Esse período de fome só não foi mais grave porque eles
podiam trabalhar na agricultura e na pecuária nas terras
de seus parentes indígenas. O arranjo podia ser o trabalho como
diaristas ou mediante a cessão de áreas para o plantio de palma
(uma cactácea comestível) e legumes. Os mocambeiros ficavam com
os legumes e deixavam as palmas para os Xocó.
Em 1992, a terra indígena dos Xocó foi homologada. As terras da
antiga Fazenda São Francisco não foram incluídas nessa primeira ho-
mologação. Acreditando que as negociações estavam encerradas, a
proprietária da antiga Fazenda São Francisco propôs aos moradores
um novo acordo. Suspendeu a proibição de uso da Lagoa Salgada,
porém reduziu o número de meeiros e a extensão de seus direitos,
como o de coletar os peixes encurralados, agora proibido. Apesar
das restrições, as famílias plantaram arroz e preparavam a colheita,
quando começou um novo conflito entre os Xocó e a fazendeira.
Como forma de pressão, os indígenas acamparam
no entorno da lagoa e os mocambeiros que ali trabalha-
vam deram assistência aos seus parentes. A proprietária
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revidou. Proibiu os mocambeiros de continuar a trabalhar


na fazenda, de colher o arroz plantado e de transitar pelo
trecho de beira que liga Mocambo à área indígena. A re-
pressão incluía intimidação pelo uso de força policial e de
pistoleiros.
Além das restrições impostas pela fazendeira, a comunidade de
Mocambo sofreu com a circulação de homens armados em suas pró-
prias terras. Os pistoleiros atiravam para o alto e invadiam as casas.
“No começo, muitos daqui foram ameaçados de morte.
Em todo o momento os jagunços dos fazendeiros estavam
por aqui nos ameaçando. Não foi fácil.” (Ademar Ricardo Rosa,
então presidente da Associação Quilombola, em reportagem do site Infonet).
Após algumas semanas de conflitos, a fazendeira propôs indeni-
zar os mocambeiros pelo arroz cultivado na lagoa. Os mocambeiros
consideraram o valor da indenização baixo. Ao ter sua proposta
recusada pela maioria, a fazendeira decidiu soltar o gado
sobre o arroz. Intensificou-se aí o processo de mobilização
política de Mocambo, com a ajuda do Sindicato dos Trabalhado-
res Rurais e da Comissão Pastoral da Terra.

Luta pelo território quilombola


“Se a polícia vinhé, que nós faz?
Morre tudo na bala, ninguém sai,
Ninguém sai, ninguém sai,
Morre tudo na bala, ninguém sai.”
(Trecho de samba de coco cantado em Mocambo)

Os Xocó são referências para Mocambo na luta por seu


território. Estiveram ao lado dos quilombolas durante todo o proces-
so de mobilização, participando das reivindicações pela manutenção
das terras mocambeiras, das reuniões, viagens e contatos com auto-
ridades municipais e estaduais e até na própria definição do território
pleiteado.
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Em setembro de 1993, os mocambeiros, em conjunto com os


Xocó, passaram a acionar o INCRA e agências de apoio aos indígenas,
visando transferir o conflito para as autoridades federais. Decidiram,
então, ocupar conjuntamente a antiga Fazenda São Francisco, atual
Rosa Cruz. A ocupação foi alvo de uma intervenção policial, mas toda
a comunidade se mobilizou para impedir a chegada das patrulhas. O
mês de setembro prosseguiu com intensas mobilizações, tentativas
externas de desmobilização, reuniões, formação de lideranças, acio-
namento de juiz, delegado, procurador da república, dentre outros.
Como alternativa, os Xocó tentaram ampliar sua reivindicação territo-
rial para incluir as terras de seus parentes e vizinhos, mas o pedido
foi negado pela FUNAI.
A segunda metade do ano de 1993 foi um período de fortaleci-
mento da luta de Mocambo. A comunidade passou a valorizar
as suas lembranças sobre o território tradicional, e com
o tempo a memória do grupo em relação à ocupação e
posse foi recuperada. Com isso, passaram de uma reivin-
dicação trabalhista para uma luta de toda a comunidade
de Mocambo pelo direito à retomada da terra. Em 1994, a
mobilização ganhou novos apoiadores, como movimentos sociais,
sindicatos e entidades de apoio aos direitos humanos. Nesse mesmo
ano, os mocambeiros acionaram a Fundação Cultural Palmares para
reivindicar, por meio do direito quilombola reconhecido na Constitui-
ção Federal, os 2.100 hectares do território ocupado por eles há mais
de um século.
Em 1995, criaram a Associação Comunitária Remanescentes do
Quilombo Mocambo. Apesar dos inúmeros desafios enfren-
tados ao longo desses anos, a comunidade vem obtendo
conquistas históricas. O Território Quilombola teve titulação par-
cial em 2012 (2 títulos) e 2013 (10 títulos), somando 704,1227 ha
titulados até o momento “(...) após 13 anos de luta que fizemos no dia
27 de maio e muito sofrimento nós conseguimos um pedaço de terra
para plantar (...)” (Ademar Ricardo Rosa, 2010).
Apesar dos inúmeros desafios ainda a enfrentar, a ti-
tulação parcial do território de Mocambo recompensa a
Mocambo 13

trajetória secular de lutas, a coragem e a resistência vivi-


das por eles. Hoje, a reivindicação dos quilombolas de Mocambo
inclui não apenas a conclusão da titulação de seu território, como
também a recuperação de sua história e de seus laços ancestrais.
Ô negro, vamo tirá coco no coqueiro do sertão,
Quem não aguenta tirá coco, não aguenta a luta não
(Trecho de samba de coco, cantado em Mocambo)

Escola Quilombola 27 de Maio, Quilombo de Mocambo. Foto: Antônio Oliveira (INCRA – SE).

Este texto foi construído a partir do Relatório Antropológico da Comunidade Rema-


nescente de Quilombo “Mocambo” - Porto da Folha/SE, constituído pelo Parecer His-
tórico e Antropológico “Mocambo de Porto da Folha” (Fundação Cultural Palmares)
e substanciado pelos seguintes ensaios: “As formas de Silêncio e a Emergência da
Memória”; “Por uma História à Contraluz: as sombras historiográficas, as paisagens
etnográficas e o Mocambo” e “Subversões Classificatórias no Sertão de Porto da
Folha: crônica da produção de um sujeito político”, realizados pelo antropólogo José
Maurício Arruti, em 1997. Informações complementares: INFONET. Comunidade
quilombola está sem posto de saúde há 5 anos. http://www.infonet.com.br/saude/ler.
asp?id=104416&titulo=especial. Acesso em: agosto de 2015.
14 Terras de Quilombos

Uma palavra da comunidade


Mocambo

A comunidade está organizada politicamente através de sua as-


sociação. Demos o nome de Associação Remanescente do Quilombo
Mocambo. Isto aconteceu em 1996, há vinte anos, e desde então
utilizamos o sistema de coordenação para encaminhar nossas pro-
postas e trabalhar coletivamente.
Aqui em Mocambo temos a tradição de criar gado de leite e temos
o hábito de plantar milho, feijão e hortaliças, bem como é possível
pescar. Uma das nossas maiores conquistas nos últimos anos foram:
o nosso reconhecimento enquanto quilombolas, o acesso à água tra-
tada, a chegada de energia elétrica e os benefícios do Programa fe-
deral “Minha casa minha vida”.
No momento, estamos preocupados com a presença de pessoas
que não são da comunidade, que não desocuparam a área, e que
muitas vezes trazem drogas ilícitas para nosso território. Para nosso
bem viver necessitamos ainda de transporte para emergências e faci-
lidade para o acesso de mais políticas públicas. No campo da educa-
ção, por exemplo, seria de grande importância a contínua formação
dos profissionais da educação escolar quilombola. Todas estas de-
mandas são para que tenhamos direito à cidadania.
Aproveitamos este material para rendermos homenagem à Maria
das Virgens Santos, uma das fundadoras da comunidade e respon-
sável por puxar o samba de côco nos momentos de festa. Ela nasceu
aqui em Mocambo (Porto da Folha, Sergipe) no ano de1935 e faleceu
Mocambo 15

na comunidade no ano de 2013. Sua casa era a pensão comunitária


para todos os irmãos que fizeram parte da luta da comunidade qui-
lombola. Maria das Virgens era ainda uma apaixonada pela luta con-
tra a escravidão dos nossos irmãos quilombolas. Recordamos com
alegria de um fato: enquanto o morador Zé Paulo cantava a história
de Mocambo, Maria das Virgens anotava a letra de uma música que
marcaria a nossa comunidade:
De mulher foi Dona Eunice foi uma grande guerreira
Não temia autoridades nem corria por besteira
Foi Wilson e Joca Boi, dois homens de opinião
Que lutaram com vida e também com o coração.
Já faz mais de doze anos que os negros estão sofrendo
E a maioria dos velhos não aguentam e vão morrendo
Mocambo é nosso de quem lutou
Teve Coragem e acreditou. (Refrão)
(Autoria: Zé Paulo)

Esta estrofe faz parte de uma música do Samba de Côco, uma


manifestação cultural de Mocambo. Por meio dela contamos nossa
história de luta para ser reconhecido e ter o direito à terra. Após o
reconhecimento quilombola descobrimos que temos parentes na co-
munidade quilombola Serra da Guia no município de Poço Redondo
(Sergipe).

Palavra construída por Paula Meire, moradora e liderança na comunidade Mocambo


– Porto da Folha. Data: 03 de Junho de 2016.
Projeto Formulação de uma
Linguagem Pública Sobre
Comunidades Quilombolas
Terras de Quilombos

PARCERIA INCRA/CGPCT/NEAD; UFMG/OJB, CERBRAS


COORDENAÇÃO GERAL Lilian C. B. Gomes, Juarez Rocha Guimarães,
Maria Consolação Lucinda, Leonardo Avritzer,
Rodrigo Ednilson de Jesus
CONCEPÇÃO DE TEXTO,
EDIÇÃO FINAL E SUPERVISÃO Fernanda de Oliveira, Rodrigo Ednilson de Jesus,
Juliana Soares Campos e Carlos Eduardo Marques
CONSULTA ÀS COMUNIDADES Aline Neves Rodrigues Alves, Marilene Ribeiro
ADMINISTRAÇÃO Agnaldo P. Ferreira Júnior, Priscila Z. Martins,
Danúbia Zanetti
MAPAS E FOTOGRAFIAS Alexander Cambraia N. Vaz
PROJETO GRÁFICO Paulo Schmidt

C331qm Carvalho, Maria Letícia de Alvarenga


Quilombo de Mocambo / Maria Letícia de Alvarenga Carvalho . - Belo
Horizonte : FAFICH, 2016.

16 p. (Terras de quilombos)
Baseada no Relatório Antropológico da Comunidade Remanescente de
Quilombo “Mocambo” - Porto da Folha/SE de José Maurício Arruti.

1. Quilombos. 2. Antropologia. 3. Relatório antropológico da comunidade


remanescente de Quilombo “Mocambo” - Porto da Folha/SE. I. Título. II. Série.

CDD:306
CDU:39
MICHEL TEMER
Presidente da República
ELISEU PADILHA
Ministro da Casa Civil

JOSÉ RICARDO RAMOS ROSENO LEONARDO GÓES SILVA


Secretário Especial de Agricultura Familiar Presidente do Instituto Nacional de
e do Desenvolvimento Agrário Colonização e Reforma Agrária - Incra
JEFFERSON CORITEAC ROGÉRIO PAPALARDO ARANTES
Secretário Executivo Adjunto de Agricultura Diretor de Ordenamento da Estrutura
Familiar e do Desenvolvimento Agrário Fundiária - Incra
CARLOS EDUARDO BOVO ANTONIO OLIVEIRA SANTOS
Diretor da Coordenação-Geral de Gestão Coordenador Geral de Regularização
Estratégica, Monitoramento e Avaliação de Territórios Quilombolas - Incra
(CGMA/ NEAD)
GUILHERME MANSUR DIAS
ISABELLE ALLINE LOPES PICELLI
WILLY DE LA PIEDRA MESONES
JULIA MARQUES DALLA COSTA
Coordenador-Geral de Gestão Estratégica,
Coordenação Executiva do Projeto
Monitoramento e Avaliação (CGMA/ NEAD)
SERVIÇOS QUILOMBOLAS
Apoio técnico – Superintendências do
Incra nos estados
A Coleção Terras de Quilombos reúne um conjunto de
narrativas a respeito da formação, do modo de vida e das lutas travadas por
comunidades quilombolas brasileiras para se manter em seus territórios
tradicionais. Em cada livreto, uma comunidade quilombola é apresentada
em sua singularidade.
Ao todo, a Coleção oferece um panorama da diversidade de trajetórias
vividas por ex-escravizados – incluindo por vezes indígenas e grupos em
outras situações sociais – para conquistar a sua independência e se esta-
belecer na terra autonomamente. O fato de terem sido deixados à própria
sorte após a Abolição resultou em uma multiplicidade de caminhos percor-
ridos para conseguirem consolidar os seus territórios. Foram muitos os mo-
dos como ocuparam as suas terras e distintas as maneiras como formaram
as suas comunidades, enfrentando todo tipo de desafios para se relaciona-
rem livremente com seu entorno.
O conceito de quilombo esteve associado ao período da colônia e do
império. Com a Abolição, os quilombos deixaram de ser mencionados, como
se o fim de quatro séculos de escravidão significasse a garantia de liberdade.
No entanto, os quilombolas continuaram e continuam a lutar para reproduzir
seus modos de criar, fazer e viver, resistindo às dificuldades, injustiças e pre-
concepções legadas pelo período escravocrata. São essas as histórias narra-
das nesta Coleção. São histórias do Brasil vistas pelo prisma de quem, com
suas tradições, formas de vida, religiosidades e respeito à terra, enriquece o
mosaico da sociodiversidade brasileira.

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