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ARTIGO ORIGINAL DOI: 10.5216/PHI.V17I2.

15835

A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS1


Alcino Eduardo Bonella (UFU)2
[email protected]

Resumo: Este artigo analisa o uso de animais não humanos sob três aspectos
correlacionados: 1) aspectos fatuais acerca do tratamento que nós, seres hu-
manos, dispensamos aos outros animais, especialmente na indústria da ali-
mentação e da experimentação animal; 2) aspectos avaliativos sobre a ética
desse tratamento como aparecem em argumentos éticos favoráveis (Singer;
Regan) e contrários (Naverson; Cohen) ao uso de animais pela indústria da
alimentação e da experimentação animal; 3) alguns aspectos práticos sobre o
que devemos fazer. A avaliação ética fundamenta os aspectos práticos com
que concluímos o artigo: nesta conclusão são feitas sugestões de ações, em
especial a substituição da experimentação animal (inerentemente danosa, em
seu ideal e prática) pela investigação com sujeitos não humanos de pesquisa (não
danosa ou terapêutica).
Palavras-chave: Ética; Animais não humanos; Experimentação animal.

INTRODUÇÃO
Este artigo aborda o uso de animais não humanos sob três
aspectos correlacionados: aspectos fatuais acerca do
tratamento que nós, seres humanos, dispensamos aos
outros animais; aspectos avaliativos sobre a ética desse
tratamento; aspectos práticos sobre o que devemos fazer.
Neste tipo de abordagem utilizamos informações e
avaliações presentes no debate filosófico pertinente ao
problema, e em especial nos filósofos da moral que

1
Recebido: 30-09-2011/Aprovado: 03-01-2012/Publicado on-line: 27-02-2013.
2
Alcino Eduardo Bonella é Professor Adjunto da Universidade Federal de Uberlândia, Uberlân-
dia, MG, Brasil.

PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 11


Alcino Eduardo Bonella

disputam diferentes visões e propostas. Em geral, filósofos


como Peter Singer e Tom Regan apresentam os principais
argumentos em favor da ideia de que os animais têm de ser
tratados com o mesmo respeito básico que dispensamos aos
seres humanos, seja pela igual consideração de seus
interesses (versão utilitarista de Singer, para o respeito
moral), seja pela igualdade de direitos básicos (versão
baseada em direitos, ou kantiana, de Regan). Entre seus
adversários, encontramos alguns filósofos que também
apresentam argumentos baseados em direitos e nas
consequências, como Jan Naverson e Carl Cohen, que
defendem a manutenção do atual estatuto dado aos animais
em nossas sociedades, a posição que sustenta que os
animais podem ser usados para nosso benefício, desde que
o façamos sem crueldade.
Peter Singer raciocinou basicamente do seguinte modo:
o tratamento que dispensamos atualmente à maioria dos
outros animais revela especismo, que, como o racismo ou o
machismo, é fundamentalmente errado (porque não dá
igual consideração aos interesses similares dos outros animais,
e que são similares aos nossos). Por isso, devemos parar
com tal tratamento, o que contraria frontalmente nossas
práticas vigentes, especialmente na indústria da alimentação
e da experimentação animal. Tom Regan, por outro lado,
raciocinou da seguinte maneira: protegemos nossos interes-
ses fundamentais à vida, à liberdade e à integridade física
com os direitos humanos; ora, os outros animais são idênti-
cos a nós nesses interesses básicos, e, por isso, também de-
vem ter direitos básicos. Isso também contraria
frontalmente nossas práticas vigentes. Esse é o paradigma
básico da filosofia da libertação animal. Mas as práticas vi-
gentes se apoiam em longa tradição, filosófica, religiosa e
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científica, que entende hierarquicamente as espécies, no


topo superior a humana, dada suas capacidades especiais. É
por isso que Jan Naverson encontra na explicitação das ca-
pacidades racionais e autônomas dos seres humanos uma
justificativa para continuarmos usando os animais como
sempre o fizemos: somos racionais no grau mais elevado,
eles não. Em perspectiva similar, Carl Cohen raciocinou,
defendendo nossa suposta superioridade, que as noções de
direito e correção (certo e errado) só são usadas por nós e por
isso devem se limitar ao nosso mundo humano, e nunca se-
rem estendidas a nossa relação com os outros animais.

O DESAFIO DE SINGER: O VALOR DA IGUALDADE E OS


FATOS SOCIAIS DO USO DE OUTROS ANIMAIS

Peter Singer parte de nossa ideia ética de igualdade.


Aceitamos a igualdade entre todos os seres humanos
porque nossa ideia é a de que devemos tratar a todos os
seres humanos, em sua diversidade natural e social, com
igual consideração pelos seus interesses. Não é porque
somos de fato idênticos nos aspectos fatuais: uns são
grandes, outros pequenos; uns fortes, outros fracos; uns
negros, outros brancos; uns homens, outros mulheres, etc.
Assim, o que importa não é possuir características físicas ou
sociais idênticas ou similares, mas possuir interesses. Logo,
a igualdade entre nós e os outros animais também não
depende de averiguarmos alguma identidade ou
semelhança factual, suponha, entre um suíno e um
humano, mas simplesmente apreciar as consequências de
uma dada ação ou regra de ação (uma política) para os
interesses que são afetados por ela, considerando
alternativas de ação e equilíbrio de interesses ou
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imparcialidade. Se os suínos têm interesses, eles devem


contar moralmente e igualmente: se é ruim causar uma dor
em um ser humano que tem interesse no alívio da dor,
então também é ruim causar dor em um porco que tem
interesse em não sentir dor. Hoje em dia quase todo
mundo condena o racismo, mas não foi sempre assim.
Singer acredita que num futuro não muito distante quase
todo mundo condenará a discriminação com base na
espécie, o especismo, e perguntará: como é que aquelas
pessoas no século XXI ainda faziam aquilo com os animais
(por exemplo, confinavam porcos em granjas, restringindo
seu movimento e afetando seu bem-estar, além de matá-los
prematuramente para servirem de comida supérflua – sobre
a superfluidade da carne animal, ver adiante). Segundo
Singer (2010, 34):
[...] se um ser sofre, não pode haver justificação moral para nos recu-
sarmos a levar em consideração o seu sofrimento. Seja qual for a na-
tureza do ser, o princípio da igualdade exige que o seu sofrimento
conte o mesmo que o sofrimento semelhante de qualquer outro ser
[...]. O racista viola o princípio da igualdade ao dar mais peso aos in-
teresses dos membros de sua própria raça. Da mesma maneira, o es-
pecista admite que os interesses de sua própria espécie suplantem os
interesses mais fortes dos membros de outras espécies. O padrão é o
mesmo nos dois casos. Na sua maioria, os seres humanos são espe-
cistas.

Depois, o segundo aspecto a que Singer chama a aten-


ção é estritamente factual: fatos do modo como nós, seres
humanos, tratamos realmente os outros animais, fatos so-
bre a necessidade de explorarmos outros animais, fatos so-
bre o que e como são animais. A maior parte da carne de
nossos pratos não provém mais de imaginárias fazendas pa-
radisíacas, mas de animais criados em granjas e mortos
prematuramente em escala industrial. Para se produzir car-
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ne a um preço acessível, utilizam-se cada vez mais métodos


de confinamento dos animais, como aves e porcos, mas, em
certos casos, também de gado e vitela, em espaços pequenos
durante toda a sua curta vida. Porcos, por exemplo, compa-
ráveis aos cães e gatos em inteligência e sensibilidade, são
em sua maioria criados sob confinamento. A maioria de
nós não concordaria com o confinamento e a matança, em
escala industrial, de cães e gatos, mesmo para alimentação,
e ficaria chocada em saber das condições de sua criação e
abate, fossem elas idênticas à dos porcos, frangos ou gado.
Para Singer (2010, 37):
a prática de criar e matar outros animais para os comermos é um
exemplo claro do sacrifício dos interesses mais importantes de outros
seres para a satisfação de interesses triviais nossos. Para evitar o espe-
cismo temos de acabar com esta prática – e cada um de nós tem a
obrigação moral de deixar de apoiá-la. Os nossos hábitos dão à in-
dústria da carne todo o apoio de que esta precisa. A decisão de dei-
xar de dar este apoio pode ser difícil, mas para um branco sulista
não teria sido mais fácil ir contra as tradições de sua sociedade e li-
bertar os seus escravos. Se não mudarmos nossos hábitos alimenta-
res, como poderemos censurar esses proprietários de escravos que
não mudariam sua forma de viver.

Também é matéria de fato que nós já podemos viver ra-


zoavelmente bem sem a exploração animal, por exemplo,
sem o consumo de carne, sem o uso de peles nas vestimen-
tas, sem usar animais como entretenimento. No caso da
alimentação, por exemplo, há a opção do vegetarianismo.
Podemos ter nossas refeições com todos os nutrientes es-
senciais em uma dieta vegetariana adequada (adequada sig-
nifica ingestão balanceada, em quantidade e qualidade, de
alimentos vegetarianos e suplementos, mas isso vale para
qualquer alimentação). Há testemunho médico e científico
endossando isso (cf. FROM THE ASSOCIATION 2009;
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CRAIG 2009, BARNARD 2009). Assim, se nós juntamos o


conhecimento meramente factual de que em nossas socie-
dades industriais só é possível produzir carne a preços aces-
síveis desrespeitando o bem-estar e os interesses dos
animais, com o conhecimento disponível de que já é possí-
vel nos alimentarmos bem sem o uso da carne, nós conclui-
remos que das duas alternativas, alimentação omnívora e
alimentação vegetariana, a segunda é a que causa menos
danos aos animais, considerados imparcialmente (nosso
ponto de vista ético). Logo, devemos boicotar a indústria da
carne parando de dar-lhe nosso dinheiro e apreço (tornan-
do-nos vegetarianos ou predominantemente vegetarianos).
No caso da indústria da experimentação animal, Singer
nos oferece a mesma observação: os fatos reais eram bem
diferentes do que em geral imaginamos, os benefícios obti-
dos são menores do que em geral se alega, e nós já poderí-
amos deixar, na maioria dos casos, de usar os animais como
simples ferramentas de laboratório, como simples cobaias.
Singer nunca quis acabar totalmente com a experimentação
animal (nem com a alimentação omnívora). Na verdade, ele
não quis acabar totalmente nem com a experimentação
humana, no que é coerente com seu antiespecismo (por
exemplo, ele defende a experimentação com embriões e fe-
tos humanos). Em alguns casos tais práticas poderiam ser
necessárias e justificáveis. Mas não como regra, e sim como
exceção: a maioria dos usos de animais pela indústria da
experimentação seriam supérfluos e injustificáveis. Por
exemplo, há usos estritamente estéticos, testando cosméti-
cos; outros estritamente alimentares, testando fórmulas de
temperos e outros produtos alimentares; grande parte dos
projetos de pesquisa de professores e alunos em nossas uni-
versidades traz benefícios muito remotos ou quase inexis-
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tentes, à custa de malefícios reais para os animais envolvi-


dos e em geral sacrificados (mortos). Uma parte substancial
de tudo isso poderia simplesmente acabar, e a instituição da
pesquisa científica não seria abalada ou destruída.

ENFRENTANDO O DESAFIO DE SINGER: A TENTATIVA


(FRACASSADA) DE NAVERSON
Esses argumentos apelam diretamente para os interesses dos
animais e seu estatuto ético. Uma coisa é dizermos “prefiro
a dieta vegetariana porque é mais saudável para mim”. Ou-
tra é “prefiro o vegetarianismo porque é melhor para os
animais” ou “porque é melhor eticamente”. Em geral nos in-
comodamos mais com a segunda expressão do que com a
primeira, e muitos filósofos se mobilizaram para defender a
perspectiva mais tradicional, de que não precisávamos dar
igualdade aos animais, que a nossa liberdade nos autorizava
a utilizar os outros animais como bem nos conviesse. Por
exemplo, contra a ideia de que há algo de errado em nossas
práticas alimentares ou experimentais, Jan Naverson susten-
tou que os animais não estão na mesma categoria moral
que nós, humanos. Nós, seres humanos, somos especiais, e
o que fundamenta isso é nossa capacidade racional de fazer
acordos inteligentes com outros humanos para obter vanta-
gens recíprocas: os animais não podem ser agentes racionais
de acordos ou contratos mutuamente vantajosos:
A moralidade, para ser racional, tem de corresponder a acordos en-
tre pessoas. [...] Os animais são essencialmente incapazes de atividade
moral. Se adotarmos restrições morais em relação aos animais, pare-
ce que isso será algo necessariamente unilateral: os animais ganham
tudo e nós não ganhamos nada. [...] os animais não têm direitos básicos.
Não precisamos de lhes estender esse estatuto, pois não poderíamos
fazer um acordo mutuamente benéfico com eles mesmo que quisés-

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semos e, além disso, não temos nenhuma razão para o fazer. A pers-
pectiva antiga e do senso comum segundo a qual podemos usar os
animais como nos convier é a correta. (NAVERSON 2010, 96)

Um problema para Naverson é que bebês humanos e


seres humanos com severas inabilidades mentais também
não são capazes de fazer acordos racionais ou de retribuir
com algo que valha a pena do ponto de vista do nosso inte-
resse próprio. Mesmo seres humanos que podem, mas estão
muito longe espacialmente (os pobres em lugares muito dis-
tantes) ou temporalmente (as futuras gerações), não parti-
lham desses acordos e estariam fora do âmbito moral.
Naverson sabe disso e pensa que, no entanto, eles obtêm
direitos derivadamente, por causa das relações especiais que
eles têm com os seres humanos digamos, paradigmáticos.
Agredir seres humanos deficientes ou fracos afetaria os in-
teresses dos seres humanos paradigmáticos que possuem re-
lações especiais com eles (pais, parentes, vizinhos, etc.). Para
Naverson (2010, 89, grifo meu): “Agredir estes seres huma-
nos é violar os direitos dos seus familiares e daqueles que se
importam com eles”. Mas isso parece levar à conclusão cho-
cante de que agredir um ser humano deficiente ou recém-
nascido, e que se encontre totalmente sem familiares ou ou-
tros que se importem com ele, não é desrespeitar os direitos
dele em primeiro lugar. Mas se não for lícito usar e prejudi-
car seres humanos que não são racionais e autônomos co-
mo bem nos convier, então também, provavelmente, não é
lícito prejudicar os animais não humanos do mesmo modo.
Naverson deve estar errado.
Desde a antiguidade, ao menos desde a tradição judai-
co-cristão-islâmica, que prevê o domínio, mandado por
Deus, do ser humano sobre toda a criação, chegando às fi-
losofias modernas, que negam consciência e sensibilidade
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aos animais, vistos como meras máquinas ambulantes, não


sem antes passar pela filosofia clássica de Aristóteles e To-
más de Aquino, que endossaram que os outros animais
existiam naturalmente apenas para os fins humanos, os
animais não humanos são vistos como seres inferiores, me-
ros objetos que podem ser usados para os fins dos seres
humanos, superiores. Singer sugeriu um experimento men-
tal para aplicar aos filósofos contemporâneos que negam
igualdade aos animais não humanos: substitua as expressões
“ser humano” ou “pessoa” por “branco” (ou “homem”), e
“animais” por “negro” (ou “mulher”). Ele pensa que isso
pode esclarecer a falta de fundamento da crença na superi-
oridade dos seres humanos: no passado esse era o raciocí-
nio racista e machista, e o ponto principal da exigência de
igualdade não era a identidade que negros e mulheres ti-
nham com brancos e homens, mas a existência de interesses
importantes similares.
Você pode fazer o teste e aplicá-lo à citação anterior, de
Naverson. Para Singer, levar a sério os interesses básicos dos
seres afetados e tentar ser imparcial quando estes conflitam
é o mínimo suficiente para defender a igualdade entre os
seres humanos, entre estes e os outros animais, e entre estes
e as futuras gerações também. Vejam que entre nós, huma-
nos, no caso das futuras gerações, ou daqueles muito pobres
que vivam muito distantes, também ficaríamos, estivesse
Naverson certo, com a proposta de “tratar-lhes” como bem
nos convier apenas, já que não podem fazer acordo conosco
ou nos beneficiar. Para Singer, tudo isso serve mais para
abandonar a abordagem contratualista de Naverson do que
para criticar as reivindicações de reformas sociais, ainda in-
cipientes. Singer também sugeriu um teste para avaliar a
imparcialidade na consideração dos interesses envolvidos
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Alcino Eduardo Bonella

na experimentação animal, algo que eu chamo de “a per-


gunta de Singer” (com ligeira modificação de minha parte):
o investigador consciencioso, que se propõe a fazer certa
experimentação potencialmente danosa com animais, está
disposto a usar um bebê humano órfão, caso não existam
mais outros animais? Se não, a inclinação em prol da expe-
rimentação animal é especista, e, por isso, injustificável3.

O DESAFIO A SINGER: O VALOR DA VIDA DEPENDE


SOMENTE DA PREFERÊNCIA POR VIVER?

Porém, um pesquisador consciencioso e mesmo Singer po-


deriam sustentar que, ao menos em certos casos, o interesse
do bebê citado não seria mais importante que os interesses
a serem satisfeitos em certas experimentações relevantes pa-
ra a vida e para a saúde humanas em geral. Se os benefícios
efetivos fossem líquidos e certos e afetassem também, e com
certeza, milhares de outras pessoas e outros animais, e se
não houvesse outro modo de chegar aos mesmos resulta-
dos, então a experimentação não seria injustificável. Para
Singer, se isso fosse o caso, deveríamos, inclusive, então,
aceitar a experimentação animal, em circunstâncias simila-
res. Singer poderia, entretanto, amenizar tal possibilidade,
primeiro afirmando que esse não é o caso na grande maio-
ria das vezes, ou seja, que raramente essas condições estarão
presentes; segundo, afirmando que proibirmos a experimen-

3
Singer pergunta se os pesquisadores fariam a pesquisa com bebês órfãos. Ora, a intenção é mos-
trar que os animais usados como cobaias são mais autoconscientes e complexos que tais seres hu-
manos, e que usamos os animais por sermos especistas. Também penso que se pode imaginar
bebês humanos, mentalmente deficientes e órfãos, produzidos e criados em útero artificial e labo-
ratório. Duvido que mesmo assim cientistas conscienciosos usassem os bebês como cobaias. Isso
torna a cobaia “humana”, porém, muito próxima das cobaias “não humanas”, e revelador também
do especismo simples.

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ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

tação humana (danosa) visando exclusivamente o benefício


de terceiros é o que produz as melhores consequências para
todos os afetados considerados imparcialmente. E, terceiro,
ele pode alegar, como de fato o faz regularmente, que nos-
sos preceitos práticos devem ser aqueles que valem para a
maioria dos casos, e, por isso, não deveríamos adotar um
preceito de aprovar a experimentação danosa, humana ou
animal, não facilmente.
Por outro lado, não é assim que qualquer defensor dos
direitos humanos, ou que qualquer membro de um comitê
de ética na pesquisa com seres humanos (no Brasil eles se
chamam CEPs e são regulados especialmente pela norma
196 do Ministério da Saúde), normalmente reage ao expe-
rimento sugerido com o bebê órfão. Nós só aprovamos pes-
quisa com bebês humanos se ela existe primariamente em
benefício do próprio bebê, se não causar dano desnecessário
ou excessivo a ele, e se contar com a autorização bem in-
formada dos pais ou responsáveis legais – que, se supõe,
julgarão e agirão no melhor interesse da criança. Quando
há seres humanos vulneráveis envolvidos em uma pesquisa
a regra é excluí-los, exceto se a pesquisa for para seu benefí-
cio ou não oferecer riscos. Chamamos isso de pesquisa te-
rapêutica ou não danosa. O ponto principal é que algo
parece faltar (ou exceder) na teoria de Singer, e este algo pa-
rece estar ligado à falta da noção de direitos básicos.
Por exemplo, Singer sustentou que o grande problema
na produção e no abate industrial de animais era o sofri-
mento que isso implicava, mas que formas mais benevolen-
tes de criação não seriam necessariamente erradas, já que
escapariam das objeções às granjas de confinamento e ao
abate em larga escala. Parece haver algo de estranho nisso:
uma ambivalência, no argumento, que parece servir para
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Alcino Eduardo Bonella

apoiar ambos os lados da disputa, dependendo do cálculo


de benefícios que se apresente ou em que se acredite. Pare-
ce também haver algo de errado na concepção de dano: os
animais não são prejudicados apenas pela dor que sentem e
que lhes infligimos, mas também porque são mortos, inca-
pacitados e presos. Não seria a morte um malefício para um
ser já existente e que pode continuar a experimentar prazer
e satisfação num tempo maior de vida? Se tiramos, sem dor e
de modo instantâneo, a vida de uma criança humana sau-
dável, que ainda não entende o que é a morte nem tem pre-
ferências claras sobre continuar existindo no futuro, nós
não causaríamos nenhum dano a ela, mas diminuímos a
quantidade de satisfação e de valor (de bem) disponível a
este ser, por exemplo, todos os anos de vida agradável que
ela teria pela frente. Singer escreve que o valor da vida de
seres meramente sencientes – mas não autoconscientes –
como seria o caso talvez dos peixes, é uma função exclusiva
da satisfação de preferências que ele perde ao ser morto
(como ele não seria autoconsciente, não é um ser pessoal, se
fosse substituído por outro ser senciente cancelaríamos
aquele dano). Mas ele também escreve que se alguém salva
um recém-nascido da morte instantânea em um atropela-
mento não beneficiou o bebê, que não tinha preferência
explícita em continuar vivo, mas apenas em não sentir dor.
Para ele, a morte indolor e instantânea não causaria danos.
Singer argumenta no sentido de que o valor da vida dos
seres meramente sencientes (a palavra sentient, inglesa, re-
mete ao “que sente”) estava na sua capacidade de sentir pra-
zer ou dor e na quantidade disso prevista para sua vida (esse
valor, então, poderia ser comparado – e mesmo trocado –
com o mesmo valor em outros seres). Já o valor da vida dos
seres autoconscientes dependeria especialmente do desejo
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destes de continuar vivos, de querer evitar expressamente a


morte, mesmo indolor e instantânea, e, nesse caso, esse va-
lor não poderia ser comparado nem trocado por outra
quantidade de “vida”, pois não seria a mesma preferência,
já que aqui o valor é pessoal. Tirar a vida de seres que fos-
sem meramente sencientes, e por isso não tivessem o desejo
pela continuidade da existência, como peixes ou recém-
nascidos, não seria causar dano se tal fosse feito de forma
indolor e instantânea, e se eles fossem substituídos por ou-
tros seres com as mesmas características. Singer pensa que
os fetos e recém-nascidos, sejam de humanos e de outros
animais, e também que seres humanos e outros animais
com incapacidade mental para verem-se como distintos dos
demais, além de, provavelmente, os peixes e outros animais
similares a eles (ou com menos complexidade cerebral que
os invertebrados) são todos seres meramente sencientes,
dado o melhor conhecimento disponível do seu compor-
tamento e de sua biologia. Por outro lado, primatas (gorilas,
chimpanzés, orangotangos, humanos e bonobos) e, prova-
velmente, mamíferos e aves, são seres sencientes e auto-
conscientes (isso torna difícil aceitar a pecuária
benevolente, que implica o abate prematuro, já que bois,
carneiros, porcos, etc., seriam também autoconscientes).

A DIFERENÇA ENTRE BEM-ESTARISMO E UTILITARISMO


Muitos defensores do uso dos animais na alimentação e na
experimentação animal realmente existente justificam essas
instituições com a moeda de troca cuja coroa é o suposto
benefício humano (e animal) generalizado e a cara a alega-
ção de que os animais envolvidos não sofrem, são produzi-
dos e sacrificados humanitariamente. Estão de certo modo
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Alcino Eduardo Bonella

acomodando suas ideias aos desafios trazidos pelo movi-


mento de libertação dos animais. Mas há uma diferença
marcante entre o chamado utilitarismo de Singer e esta que
hoje é chamada de filosofia do bem-estarismo animal na in-
dústria da carne e na experimentação animal. Um utilitaris-
ta como Singer pensa que quando, e somente quando, uma
ação é a única forma de produzir mais benefícios que malefícios,
considerando imparcialmente os interesses afetados, então
ela é lícita. Já um bem-estarista pensa em termos de maximi-
zar os benefícios humanos, desde que não se cause com isso
sofrimento excessivo aos animais ou desde que se minimize
tais prejuízos. Estes últimos não pensariam em evitar o uso
de animais se os benefícios humanos fossem incertos ou
atendessem a interesses menos importantes (paladar e con-
veniência), se comparados com os malefícios certos e a frus-
tração de interesses mais sérios (a vida e a liberdade) dos
outros animais ou se há cursos alternativos de ação.
Isso deve nos fazer desconfiar da apressada aproxima-
ção, feita hoje por algumas pessoas, entre o utilitarismo e o
bem-estarismo animal. O abate e o manejo humanitários
são questionados por infringir, ainda, desconforto e dor aos
animais, apenas para evitar a diminuição nos lucros se mé-
todos ainda melhores do ponto de vista do bem-estar ani-
mal fossem adotados. Basta olhar as cenas em
documentários (como o brasileiro A carne é fraca) sobre cri-
ação e abate, mostrá-las a quem atua no ramo perguntando
se é normalmente daquela maneira que se cria e se abate
(eles dirão que sim), e pensar por si mesmo se a prática me-
rece o nome de humanitária e sem sofrimento. Nas universi-
dades e laboratórios, o bem-estar assegurado aos animais
aprisionados em pequenas jaulas e aos quais se inoculam
doenças ou se traumatizam corpos também não está nada
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ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

próximo de qualquer noção comum de bem-estar. Hoje em


dia, porém, seja na indústria da carne ou nas universidades,
todos são a favor do bem-estar animal (Tom Regan chamará a
isso de dito desconexo, ou, simplesmente, de ideologia au-
toenganadora, pois o que se diz não tem o mínimo funda-
mento nos fatos).
Mas vamos admitir, por causa do argumento de que os
animais usados pela indústria não são autoconscientes (não
são pessoas), que é possível um modo de criar e matar tais
animais sem nenhum sofrimento. Há ainda o problema dos
danos que causamos ao enjaular, incapacitar, impedir a ex-
pressão natural de seus instintos e tirar-lhes a vida. Singer
pode estar errado ao adotar uma perspectiva baseada em de-
sejos ou preferências, ao tratar do valor da vida. Por causa
disso há quem pense que o bem-estar não é tudo. Alguns
interesses básicos são tão importantes que mereceriam um
destaque especial em nossas considerações práticas, pois
implicariam em direitos. Além disso, parece difícil saber
como fazer exatamente um cálculo utilitarista ou bem-
estarista para avaliar quando se tem e quando não se tem as
melhores consequências. Ademais, é difícil saber como
aplicar tal cálculo corretamente a cada caso.

O DESAFIO DE REGAN: ANIMAIS NÃO HUMANOS COM


DIREITOS BÁSICOS

Podemos, ainda, ser utilitaristas e tentar resolver o


problema mostrando que os fatos se encontram no sentido
contrário ao que o bem-estarismo sugere, além de
podermos dividir o pensamento moral em dois níveis, um
nível crítico de raciocínios hipotéticos abrangentes para a
reflexão filosófica e um nível intuitivo de traços de caráter e
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preceitos práticos gerais e seguros para a atuação sob


estresse na vida como ela é, divisão encontrada em Singer
(que a retirou de Richard Hare, que, por sua vez, a retirou
de J. S. Mill e Platão, e que provavelmente se encontra em
muitos bons pensadores da ética, como, por exemplo, em
Kant, Dewey e Bergson). Mas a filosofia dos direitos
animais, de Tom Regan, sugere-nos que podemos estar
sonhando acordados: esse cálculo seria impossível, mesmo
no nível crítico, diminuindo desnecessariamente a
importância dos animais e dos seus direitos: esses direitos
não seriam regras genéricas, mas injunções específicas de
justiça. O utilitarismo enfraqueceria nossa psicologia moral,
pois a questão principal não é produzir o maior bem, por
exemplo, ao sermos vegetarianos ou pararmos com a
experimentação animal, mas sim respeitarmos os direitos,
praticarmos o que é justo.
Estaríamos sonhando porque o que torna errado usar e
matar animais em experimentação ou na alimentação não é
apenas a dor que eles sentem, mas todos os malefícios que
lhes são causados, entre eles o de perder a vida, a integrida-
de corporal e a liberdade. Mesmo que os animais estejam
anestesiados (e não sintam dor), não demonstrem clara-
mente preferir continuar vivendo no futuro, não saibam
como seria ter os membros do corpo em integridade, te-
nham nascidos em jaulas e, portanto, se acostumado a isso,
permanece o fato de que essa poderia não ser a situação de-
les e que a alternativa lhes traria mais benefícios. Em geral
atribuímos direitos básicos à vida, à integridade física e à li-
berdade, aos seres humanos. É por isso, escreve Regan, que
muitos de nós hoje pensam ser absurdo utilizar seres hu-
manos em experimentações danosas e que, ao final, lhes ti-
rem a vida (lhes sacrifiquem), mesmo que isso prometa um
26 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

grande bem, como a cura do câncer, da Aids, do Parkinson,


do Alzeimer e assim por diante. Não. Os sujeitos humanos,
incluindo os bebês e os mentalmente incapazes (embriões e
fetos sendo um caso difícil), têm direitos morais de não ter
sua vida, sua integridade física e sua liberdade intencional-
mente ceifadas simples e exclusivamente porque isso pro-
mete trazer muitos benefícios a nós ou à sociedade humana
e animal em geral.
Para Regan, a razão fundamental dos direitos humanos
não é o fato de os seres humanos serem parte da espécie
humana, o que seria uma alegação meramente descritiva e
similar à alegação de pertença a uma raça ou a um sexo,
nada esclarecendo exceto repetir que humanos são huma-
nos. Também não seria o fato de serem racionais (inteligen-
tes) ou de serem autoconscientes (verem-se a si mesmos como
únicos e projetarem-se no futuro), ou, quem sabe, usarem
uma linguagem. Isso não é verdadeiro no caso já citado dos
bebês, de pessoas muito senis, de quem perdeu as capacida-
des cognitivas superiores ou nasceu sem elas, além de coma-
tosos persistentes e de pessoas com doenças cerebrais
degenerativas. E é a eles em especial que queremos garantir
os direitos humanos básicos. Mas, por coerência lógica (si-
tuações semelhantes devem ser julgadas de modo semelhan-
te), coerência fatual (os resultados da melhor ciência
disponível e da observação comum sobre as semelhanças
entre nós e os outros animais) e coerência valorativa (o va-
lor da vida, da integridade física e da liberdade para os seres
que se importam com isso por terem uma vida subjetiva,
uma unidade psicológica de dentro para fora), os animais
não humanos semelhantes a nós também devem ter ao me-
nos estes três direitos básicos: direito à vida, direito à liber-
dade e direito à integridade corporal.
PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 27
Alcino Eduardo Bonella

Regan está defendendo que os direitos humanos são di-


reitos morais e que faz todo sentido defendê-los quando
eles não estão garantidos pelas instituições sociais. Os seres
humanos devem ter direitos básicos porque, diferente de
cubos de gelo, pedras ou pés de alface, têm uma vida psí-
quica (mental) e são capazes de usufruir experiencialmente
de sua própria vida. Não tem sentido falar que o gelo ex-
posto ao sol é prejudicado em seu interesse na integridade
física, ou que as pedras, caso sejam chutadas, são prejudica-
das em sua liberdade de ficar onde estão, ou que a alface so-
fre danos com sua morte porque tinha uma vida pela
frente: até onde temos boas evidências, eles não sentem na-
da, não são sujeitos de nenhuma experiência subjetiva (não
tem sistema nervoso central funcional), não são “alguém”.
Já os seres que, ao contrário dos cubos de gelo, pedras e pés
de alface, podem usufruir de sua vida, gostar e desgostar,
sofrer perdas por ficar presos, sofrer perdas com a mutila-
ção, faz sentido falar em prejuízos e benefícios. Seres hu-
manos são seres assim, mas muitos outros animais não
humanos também, ao menos os mamíferos e as aves (talvez
os peixes) também o são. E se essa é a razão para não des-
respeitar seres humanos e garantir-lhes direitos básicos, en-
tão essa é uma razão para não maltratar os outros animais,
que levam uma vida similar à nossa nesse quesito (ter uma
vida mental ou psíquica mínima): eles também têm direitos
básicos ou, melhor dizendo, devem ter assegurados tal pro-
teção, de modo que sejam igualmente respeitados.
Para Regan, esse é o aspecto fatual que explica os direi-
tos humanos: todos nós, seres humanos, somos idênticos
nessa maneira subjetiva de existir. Mas esse aspecto também
está presente em alguns outros animais, como mamíferos e
aves (talvez parte dos peixes): todos os animais que experi-
28 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

mentam o mundo a sua volta são idênticos nisso e então


são iguais moralmente. Isso gera uma teoria moral bem
mais poderosa, porque elimina a necessidade de cálculos de
utilidade. Eu diria que tal aspecto é o fato de que todos
nós, mamíferos e aves (talvez os peixes), sermos pessoas (des-
toando, porém, aqui, da tradição filosófica predominante,
que identifica a pessoalidade com a racionalidade e a auto-
nomia); Singer diria que todos os mamíferos, aves e peixes
padrões (adultos normais) são sencientes. Regan, contudo,
não gosta de nenhuma das duas opções (pessoa; senciência),
tendo sugerido outro termo: para ele, todos os animais
humanos e não humanos que tem vida mental, ou uma
unidade psicológica de dentro, são sujeitos-de-uma-vida (subjects-
of-a-life), e nisso são iguais entre si e merecem igual respeito.
Não se trata de serem indivíduos (o cubo de gelo é um in-
divíduo) ou de estarem vivos (os pés de alface estão vivos),
mas de serem sujeitos (psíquicos) das suas experiências. Os
direitos dos animais, como os direitos humanos, são como
sinais invisíveis que dizem “entrada proibida”, prescrevendo
que não é lícito causar danos intencionais à vida, à integri-
dade corporal, e à liberdade natural desses sujeitos:
Dizer que os animais têm direitos não significa apenas que devemos
tratá-los com simpatia. Dado que eles, como nós, estão protegidos
por sinais invisíveis de entrada proibida, e dado que o respeito pelos
seus direitos, como no nosso caso, suplanta qualquer interesse pú-
blico ou privado que possamos ter, seja qual for a sua importância,
as implicações abolicionistas “radicais” ou “extremas” da perspectiva
dos direitos são inevitáveis. Moralmente, não devemos tirar a vida,
invadir ou maltratar o corpo ou limitar a liberdade de qualquer
animal que seja um sujeito-de-uma-vida simplesmente porque isso
nos beneficia pessoalmente ou trará benefícios à sociedade em geral.
A atribuição de direitos aos animais, se significa alguma coisa, tem
este significado. (REGAN 2010, 60-61)

PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 29


Alcino Eduardo Bonella

Isso produz uma teoria diferente do utilitarismo de


Singer e uma defesa também diferente dos direitos dos
animais. Para Singer, pensamos moralmente quando leva-
mos a sério os interesses dos que são afetados pela nossa
ação, em pé de igualdade com os nossos interesses, e, na
comparação dos interesses, aceitamos que os interesses mais
fortes suplantem os mais fracos. Os animais teriam direito
de não ser explorados do jeito que são hoje porque nestas
comparações, em geral, são massivamente prejudicados em
prol de interesses mais sérios, e nós somos relativamente
pouco beneficiados em interesses mais triviais (exceção feita
no caso de parte da experimentação científica que efetiva-
mente pudesse curar doenças ou melhorar a vida de outros
seres). Já para Regan, nós tomamos os interesses dos outros
em pé de igualdade com os nossos e os respeitamos efeti-
vamente apenas quando barramos os cálculos de utilidade
social, mesmo que eles indiquem ganhos maiores para ter-
ceiros, e garantimos certos direitos básicos aos seres assim
constituídos, no caso, ao menos, todos os mamíferos (cate-
goria na qual nos encontramos como grandes primatas so-
ciais) e aves. Nesse caso, nada menos que a abolição, e não
a reforma, da indústria da carne e da experimentação ani-
mal, como a conhecemos, é um imperativo retirado dos di-
reitos básicos desses seres: é uma questão de justiça. Não
basta melhorar o bem-estar dos animais ou aceitar o sacrifí-
cio apenas quando os julgamentos de utilidade assim o indi-
carem.
Psicologicamente parece mais fácil ser vegetariano se
acreditamos que os animais que costumamos comer (bois,
porcos e frangos) são sujeitos de direitos, os direitos ani-
mais, porque são sujeitos-de-uma-vida a que se deve respeito.
Filosoficamente, a teoria de que o valor da vida não depen-
30 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

de só de desejos ou preferências manifestas, mas também de


estados de coisas bons e oportunidades valiosas que conti-
nuar vivendo oferece ao mesmo ser, parece mais coerente
com nossas intuições morais, como a crença nos direitos
humanos, e com nosso pensamento crítico sobre o que há
de errado em matar, como quando pensamos no desvalor
da morte e em todos os aspectos ligados ao ato de tirar a vi-
da de alguém. Por tudo isso, parece ser mais fácil também
entender o que está errado com a experimentação animal e
combatê-la: não se trata só de que ela não entrega o que
promete (o que pode ser o caso muitas vezes ou sempre),
mas de que os bons fins da saúde humana e animal não jus-
tificam o uso de quaisquer meios, não justificam, por
exemplo, meios que desrespeitem os direitos básicos dos
afetados.

O ERRO “GIGANTESCO” DOS DIREITOS ANIMAIS SEGUNDO


COHEN
Não se pretende, portanto, conseguir jaulas maiores e mais
confortáveis, ou métodos mais humanos de sacrifício. O
que se quer é o reconhecimento de que ao menos alguns
animais, todos os mamíferos e as aves têm direitos básicos e
que é uma questão de justiça respeitá-los. Nada mais de in-
dústria da carne. Nem de experimentação animal. Nem de
uso de peles. Nem de circos com animais. Nem de zoológi-
cos. Muitos acham isso radical demais. Novamente, houve
vários filósofos que se insurgiram contra tais ideias. Veja o
problema colocado pelo filósofo Carl Cohen (um dos prin-
cipais adversários de Regan). Cohen aceita que se admitir-
mos que os animais têm direitos então a experimentação
animal terá de acabar, mas alerta que isso incluiria todas as
PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 31
Alcino Eduardo Bonella

investigações médicas mais importantes sobre doenças e


problemas graves. Daí sua posição:
Penso que as conseqüências desta perspectiva darão, à maior parte
de nós, uma boa razão para avaliar com muito cuidado os argumen-
tos de Regan em favor de suas posições de grande impacto. O leitor
acredita que a investigação dos drs. Salks e Sabin foi moralmente
certa? Apoiá-la-ia agora? Apoiaria as investigações semelhantes que
salvaram dezenas de milhares de crianças da difteria, da hepatite, do
sarampo, da raiva, da rubéola e do tétano (que dependeram essenci-
almente de animais), bem como, atualmente, as investigações da
Aids, da doença de Lyme e da malária? Eu apoiaria seguramente. Se
está do meu lado neste apoio, teremos de concluir que a defesa dos
direitos dos animais é um erro gigantesco. O objetivo é explicar ago-
ra porque razão os animais não podem ter direitos. (COHEN 2010,
67-68)

Como ele reconhece que ter direitos é algo tão impor-


tante que desembocaria na abolição da experimentação
animal, é óbvio que ele não está dizendo que os animais
não podem ter direitos por causa dessas implicações morais,
como se dissesse que “como seria muito oneroso para nós
deixar de lado os benefícios da sua exploração, vamos fingir
que eles não têm direitos”. Não. Ele na verdade apresenta
um argumento baseado na premissa de que direitos são um
conceito estritamente humano: ele está “enraizado num
mundo moral humano e tem força no seu interior”
(COHEN 2010, 70). Por que ele não é um conceito que se
aplica aos animais? Cohen parece entender que, como ele
não pode ser entendido e vivido pelos animais (entre eles;
não pode ter força no mundo dos animais), então eles não
têm direitos. Eles merecem ser tratados com alguma consi-
deração e não devem ser torturados gratuitamente, pois não
são pedras, podem sofrer. Mas não têm direitos: uma zebra
não tem direito de não ser comida pelo leão, e o leão não
tem a obrigação de não comer a zebra.
32 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

Mas porque exatamente nós, seres humanos, temos


direitos? Para Cohen, as respostas principais são: porque
Deus nos fez à sua imagem e semelhança, com o poder de
reconhecer essa mesma imagem nos outros; porque
nascemos e vivemos numa comunidade moral; porque
temos intuição desses direitos humanos, mas não dos
direitos dos animais; porque temos a capacidade de
autonomia moral. Ele está inclinado a ficar com a última:
nenhum animal, escreve, pode dizer que seria vantajoso agir
de certo modo, mas que não o fará porque seria errado.
Todavia, como já vimos, há seres humanos que não
possuem estas capacidades racionais e morais. Ele também
reconhece e trata desse problema, mas de um modo um
pouco diferente do de Naverson. Para Cohen, o que
qualifica o ser humano à posse de direitos não é a
capacidade individual de alguém, mas o simples fato de que
a noção de direitos está espalhada por todo o mundo moral
humano, e não em parte dele. Mesmo que um animal
individualmente tivesse essas capacidades, ele não teria
direitos. Os direitos não são uma categoria utilizada no
mundo animal. Já um ser humano, mesmo que
individualmente não tenha as capacidades da autonomia
moral e racional, ainda detêm os direitos humanos, porque
no mundo humano há a utilização da categoria dos direitos
e eles são humanos.
E por que, por fim, Regan chegou a uma filosofia tão
equivocada? Porque confundiu um sentido de valor, o valor
dos agentes morais (sentido 1), que torna tais seres iguais e
titulares de direitos, incluindo, segundo Cohen (2010, 79),
usando um texto de Regan (!), todos os seres humanos,
mesmo “os solitários, abandonados, indesejados e privados
de amor”, que “não têm nem mais nem menos valor ine-
PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 33
Alcino Eduardo Bonella

rente do que aqueles que gozam de uma relação mais favo-


rável com os outros”, com um sentido diferente de valor,
que não se aplica a agentes morais, mas a pacientes (sentido
2). Pacientes são aqueles que não podem fazer algo certo ou
errado, como os animais. Eles podem ser muito valiosos em
muitos aspectos e ter valor no sentido de que são insubsti-
tuíveis e únicos, mas isso não era o sentido 1. Regan, para
Cohen, confunde o sentido 1 com o 2 e conclui apressa-
damente que os animais também têm direitos básicos e di-
reitos básicos iguais. Mas só os agentes teriam esses direitos.
Regan não concordou com a crítica, nem com a posição
sobre o estatuto dos animais. Do fato de os animais não te-
rem direitos e obrigações perante eles, ou entre eles próprios
(porque não entendem tal conceito), não se segue a ideia de
que eles não têm direitos perante nós, que podemos entender e
aplicar esse conceito, nem a negação de que nós devemos respei-
tar os direitos deles. É como dizer: a zebra não tem direito
diante do leão, mas tem direito diante do ser humano; o
leão não tem o dever de se abster de matar a zebra, até por-
que não pode escolher isso, mas o ser humano pode e deve
se abster de matar a zebra. Cohen errou o foco. Regan de-
fende que os animais têm direitos em nosso mundo moral
humano, e que nossas práticas e instituições, e não as deles,
precisam ser reformadas. Por outro lado, do fato de que a
ideia de direitos é usada no mundo humano pelos agentes
morais não se segue logicamente (senão por alguma decisão
não explicada claramente) que aqueles humanos que não
são agentes, mas pacientes, como bebês, deficientes mentais
e senis, não tenham esses direitos. E se eles os têm, então os
animais também os têm.
Também não se segue logicamente (senão por uma es-
colha ainda não explicada claramente) que um animal indi-
34 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

vidual que seja um agente moral e racional não tenha direi-


tos, pois ele preenche os requisitos que dão sentido aos di-
reitos entre humanos, ou seja, terem a capacidade da
autonomia racional e moral. Imagine que um chimpanzé
aprenda a falar e a usar o raciocínio lógico: segundo Cohen,
ele não terá direitos porque outros chimpanzés não fazem is-
so; ele por si mesmo não conta nada. Já se um ser humano
não fala nem raciocina, de acordo com Cohen, ele ainda te-
rá direitos porque outros humanos falam e raciocinam, e
não porque ele, este ser humano, tenha tais capacidades.
Não há muita lógica nisso. Parece apenas especismo refina-
do: a comunidade moral humana significa nada mais do
que espécie humana, como poderia significar raça branca
ou sexo masculino, mesmo depois que alguém apresentasse
indivíduos negros ou femininos com capacidades cognitivas
acima da média de brancos e homens. Por fim, Cohen pa-
rece não entender que Regan chama não só aos animais,
mas aos seres humanos, de pacientes morais. São tanto os
agentes quanto os pacientes morais que têm direitos iguais.
A diferença é que os pacientes não têm deveres como os
agentes.
Há algo a ser dito sobre a crença de Cohen, muito di-
fundida entre parte dos cientistas, de que sem a experimen-
tação animal os avanços médicos não teriam sido possíveis e
não serão possíveis no futuro. Antes de mais nada, essa é
uma hipótese fatual (empírica), precisa de evidências e pode
ser falsa. Como escreve David DeGrazia (2002, 104), “só
porque você me deu uma passagem de metrô não significa
que eu precisava dela para chegar aí. Talvez eu poderia ir a
pé ou de ônibus. Alguns críticos dizem que nós fizemos
progresso biomédico a despeito da experimentação animal”,
e não por causa dela. Hugh Lafollete e Niall Shanks (1996)
PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 35
Alcino Eduardo Bonella

avaliaram que a confiança nos modelos animais atrasou o


desenvolvimento de uma vacina antipólio efetiva por mui-
tos anos. Pode ser que o mesmo aconteceu em outros casos
de vacinas e medicamentos e esteja acontecendo hoje com
as atuais investigações “mais importantes”. Podem, afinal de
contas, existir métodos de investigação sem experimentação
animal que nos conduzam aos mesmos progressos. Como
saber disso racionalmente sem investir neles e fazermos a
avaliação comparativa seriamente? Além disso, qualquer
análise honesta do custo-benefício tem de multiplicar o va-
lor de um benefício esperado pela probabilidade de atingi-
lo e diminuir deste o desvalor de um malefício multiplicado
pela probabilidade de fazê-lo. No caso da experimentação
animal, os malefícios são sempre líquidos e certos, mas não
os benefícios (cf. DeGraiza 2002, 105).

ALGUMAS CONCLUSÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS


Há duas principais variedades de entendimento da igualda-
de entre humanos e outros animais: a teoria da igual consi-
deração de interesses dos animais, de Peter Singer e outros
utilitaristas, e a teoria da igual proteção dos direitos animais
básicos à vida, à integridade e à liberdade, de Tom Regan e
outros teóricos dos direitos. Elas têm muitas coisas em co-
mum e muitas em desacordo, mas, em geral, se identificam
nas consequências práticas mais gerais, como na oposição à
grande indústria da carne e da experimentação animal, na
crítica aos filósofos – e outros agentes culturais – especistas,
e na nova compreensão do lugar do ser humano no reino
animal, uma compreensão plenamente darwnista, na qual o
ser humano é proveniente dos animais, e do lugar e impor-
tância dos indivíduos no mundo moral (ambas são indivi-
36 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

dualistas morais, no sentido de que é o indivíduo que conta


primariamente, e não entidades supraindividuais). Elas su-
gerem, em geral, que boicotemos a indústria da carne e ou-
tros usos de animais pelos seres humanos. Podemos fazer
isso nos tornando desde já vegetarianos ou ao menos redu-
zindo significativamente o consumo de produtos animais.
No caso de apenas reduzirmos o consumo, devemos boico-
tar especialmente o uso de carne de porco, de frango e de
boi proveniente de confinamento (granjas) e o uso de ovos
e laticínios provenientes de grandes fazendas industriais.
Podemos também, no mínimo, aceitar publicamente a filo-
sofia dos direitos dos animais e defender que nossa socie-
dade deveria se tornar progressiva e coletivamente mais
pacífica em relação aos outros animais. Tudo isso para reti-
rar nosso apoio individual a essas práticas e deixar explícito
que são moralmente erradas.
Alunos de escolas e universidades já podem e deveriam
aprender sem o uso danoso didático (ou seja, em sala de au-
la) de animais. Devem ser oferecidos meios alternativos de
ensino, tais como: computadores, vídeos, livros, bonecos,
cadáveres preparados, observação ao vivo em hospitais, re-
sidência médica. Podemos nos recusar a assistir aulas que
sejam prejudiciais aos animais e usarmos o judiciário se a
escola ou a universidade nos punir por isso. Já podemos
evitar imediatamente, também, muitas das pesquisas dano-
sas com animais, mas que são pouco ou nada relevantes pa-
ra a produção de benefícios claros e importantes para a
sociedade. Singer sugere também que devemos falar disso
com outras pessoas, para que as ações tenham sentido e se-
jam esclarecidas e para que as pessoas sejam motivadas ou
questionadas a adotar o mesmo, alertando, porém, contra
os exageros de tipo “religioso” – quando queremos converter
PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 37
Alcino Eduardo Bonella

a todo custo e imediatamente as pessoas. Regan sugere ado-


tarmos plenamente o discurso dos direitos dos animais e,
ainda, práticas políticas semelhantes às dos ativistas pelos
direitos humanos e direitos civis, obviamente sem causar os
mesmos danos que criticamos aos seres humanos. Informa-
ção e mais divulgação de estudos e debates filosóficos sobre
o assunto são outros meios poderosos de atuar defendendo
os animais. Procurar meios de conciliar a filosofia da liber-
tação animal e dos direitos animais com nossas tradições fi-
losóficas, religiosas e jurídicas é outra sugestão prática
relevante.
Para a experimentação animal, a filosofia dos direitos
animais implica em sua abolição, exceto, obviamente,
quando se tratar de pesquisa terapêutica (não danosa). É to-
talmente compatível com os direitos animais a substituição
da simples experimentação animal (danosa) pela pesquisa tera-
pêutica com sujeitos de pesquisa, seguindo os mesmos padrões
que usamos na pesquisa com sujeitos humanos (assim como
a pesquisa terapêutica ou não danosa com seres humanos
vulneráveis é compatível com os direitos humanos). Por
exemplo, basta aplicarmos a resolução 196 aos animais não
humanos, em tudo que se aplica a sujeitos humanos vulne-
ráveis e que não são capazes de dar consentimento. Por
exemplo, quando um ser humano não tem familiares que
possam assumir sua tutela, a justiça estipula alguém como
seu responsável legal: os comitês de ética ou a justiça pode-
riam estipular indivíduos ou organizações defensoras dos
animais (sociedades protetoras) como responsáveis legais pe-
lo consentimento ao envolvimento de animais em pesqui-
sas. Na verdade os comitês de ética em pesquisa humana
também são explicitamente defensores dos sujeitos de pes-
quisa e dos pacientes, e os comitês de ética no uso de ani-
38 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012
ARTIGO ORIGINAL A ÉTICA NO USO DE ANIMAIS

mais deveriam explicitamente ter essa função e, para isso,


incorporar entre seus membros pessoas oriundas das socie-
dades protetoras dos animais, em número significativo e
com poder de veto, como no caso dos CEPs. Alternativa-
mente, podemos seguir um curso preferencial de alternati-
vas: (a) a alternativa sem animais vivos (simulação
computadorizada e tecidos celulares); (b) a alternativa com
animais vivos, mas sem causar danos (como já é hoje com
seres humanos); (c) a alternativa do uso arriscado ou mes-
mo danoso em animais e humanos, mas que necessitem
disso por razões médicas (pesquisa terapêutica); e, por últi-
mo, (d) a alternativa do uso arriscado ou danoso em huma-
nos que consintam livre e esclarecidamente no seu
envolvimento. Eu prefiro esse último cenário, mas isso po-
de ser perigoso: pode induzir a abusos dos sujeitos de pes-
quisa feitos por pesquisadores inescrupulosos. Nesse caso, o
melhor seria mesmo ficar com a primeira sugestão, sim-
plesmente abolir a experimentação (animal ou humana) e só
aceitar a investigação terapêutica com sujeitos de pesquisa (hu-
manos ou não humanos).
Abstract: This article discusses the use of nonhuman animals in three relat-
ed aspects: 1) factual aspects about the treatment that we, humans, dispense
to other animals, especially in meat and animal experimentation industries;
2) evaluative issues about the ethics of this treatment as we see in the ethical
arguments pro (Singer; Regan) and contra (Naverson; Cohen); 3) some practi-
cal aspects about what we should to do. The ethical evaluation gives funda-
ments to the practical aspects that we conclude, with suggestions of actions,
in particular the replacement of animal experimentation (inherently harmful)
for investigation with nonhuman subjects of research (inherently non harmful,
or therapeutic).
Keywords: Ethics; Nonhuman animals; Animal experimentation.

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PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.17, N. 2, P. 11-41, JUL./DEZ. 2012 41

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