De Alima A Xilim: A Memória Ancestral e o Colonialismo No Romance de Orlando Mendes
De Alima A Xilim: A Memória Ancestral e o Colonialismo No Romance de Orlando Mendes
De Alima A Xilim: A Memória Ancestral e o Colonialismo No Romance de Orlando Mendes
ABSTRACT: this paper analyses the ancestral setting of memoir and its resistance in the
colonial situation lived by Mozambique in the 60’s and 70’s of the 20 th century. Thus, the novel
Portagem(1966), written by the Mozambican writer Orlando Mendes (1916-1990), is going to
present how the ancestry, combined with the colonial setting, is going to behave itself on a
process of the Mozambican literature formation and its society.
parte dos colonos brancos, todos eram vítimas, em grau variável, de um mesmo
processo: o colonialismo.” (MENDES, p.2).
Por isso, Portagem é considerado o primeiro romance de literatura
moçambicana que reflete a inaptidão do mestiço na sociedade colonial de
Moçambique, prensado entre brancos e negros, junto à dor que esta cor
carregará num país cercado de preconceitos raciais e injustiças sociais
instauradas no período colonial.
Assim sendo, em meio a uma situação em que as vozes são sufocadas
ao silêncio, sem poderem ressoar seus desejos e ambições, a luta pela
mudança da realidade fica presa a uma vontade inaudível. Por sua vez, uma
das possíveis maneiras para alteração da situação presente é deixar ecoar as
vozes do passado sobre ele, isto é, o apelo à memória e ao resgate da
preservação da ancestralidade, deve ocupar um local de destaque na formação
e na resistência de uma nação perante o invasor estrangeiro.
A narrativa, como se fosse a própria nação, (narrada e articulada por
suas personagens marginalizadas pelo processo imperialista-colonialista) dá
vida e existência a sua história: “Ouvir o apelo do passado significa também estar
atento a esse apelo de felicidade e, portanto, de transformação do presente, mesmo
quando ele parece estar sufocado e ressoar de maneira quase inaudível” (GAGNEBIN,
2006, p.12).
A preservação da memória, deixada, na sua grande maioria, pelas
vozes dos ancestrais aos seus descendentes e, também, as escritas e
documentos produzidos pelos intelectuais, são instrumentos essenciais na
constituição e rememoração de uma sociedade, pois ao trazer o passado ao
presente, uma nova perspectiva é acrescida a ele.
A figura do ancestral é muito significativa dentro desse processo, pois é
ela quem legitima e transfere aquilo que uma sociedade é na sua atualidade,
isto é, as glórias de grandes feitos executados no passado darão mais condições
essenciais à humanidade que reside no presente. Então, a preservação da
memória junto à constituição de uma nação, segundo Ernest Renan, é formada
pela legitimação dos sentimentos e sacrifícios daqueles que viveram no
uma conotação negativa posta sobre o termo, ou seja, como se nunca houvesse
tido uma troca mútua, mesmo que indireta, neste processo entre colonos e
colonizadores, somente deste para aquele. Mia Couto diz: “E se nos mestiçamos
significa que alguém mais, do outro lado, recebeu algo que era nosso...” (COUTO, 2002,
p.1) Isto é, assim como os colonizadores contaminaram com seus “costumes de
civilidade” a cultura local africana, automaticamente, os europeus também
receberam algo do ser africano. O que Mia Couto possivelmente quer ressaltar é
que mesmo que se busque a legitimação da ancestralidade, a sua tradição pura
como marca genuína do ser africano, sendo o continente um resultante de
diversidades mestiças, é quase impossível encontrar a marca de uma cultura
ancestral homogênea.
Aliás, não existe pureza ao tratar-se da humanidade. Edward Said, no
seu livro Cultura e Imperialismo, diz que todas as culturas estão envolvidas com
as outras, nenhuma delas é homogênea, pura, e, devido ao advento do
capitalismo, nenhuma cultura humana é isolada, mas sim extremamente
heterogênea. A pluralidade da cultura está enraizada no outro, ou seja, a
cultura são os outros, há uma forte hibridização dela, na qual as fronteiras
simbolicamente foram rompidas e abertas à coletividade.
Então, voltando à questão sobre a luta da Velha Alima e conectando as
duas ideias, há uma possibilidade deste fator, centralizada na personagem
protagonista do romance, João Xilim, desenvolver-se. Ele já herda, em sua pele,
as cores do híbrido (João Xilim é mulato, fruto do abraço mal infamado de uma
negra com um branco), por isso, carrega em si o resultado do cruzamento das
diversidades raciais e culturais que se cruzaram em Moçambique. Se Xilim irá
ou não perpetuar a voz ancestral tão resistente em sua avó, isto ficará para o
leitor refletir, mas algo já é possível adiantar, para que João Xilim consiga obter
êxito sobre sua trajetória clandestina, certamente, ele terá que negar os conceitos
do branco em sua morada, mas, ironicamente, fingir que os aceita, isto é, voltar-
se sobre seu passado e refleti-lo em seu presente. Eis uma arma poderosa: negar
a ideia de ser europeu sendo um deles. Xilim vai viver nestes dois polos de sua
não precisava ir muito longe, navegar por terras distantes, para perceber que já
era um estrangeiro de seu próprio espaço, de sua própria morada. Ou talvez
precisasse, pois a percepção do herói ao retornar das terras distantes lhe dá
mais convicção nas suas reflexões e ações sobre seu espaço, mesmo sendo elas
desiludidas e sem perspectivas valorosas. Estava confinado sob a sua cor de
pele. Ao mesmo tempo em que experimenta a liberdade (deixa sua terra natal
para viver longe de sua vergonha) exila-se mais ainda no âmago da sua
estigmatizada cor de sua pele. Quanto mais livre, na verdade mais confinado
ficava: não é de cá, não é lá, não é dos locais pelos quais passou e pelos quais há
de passar. É um ser estrangeiro vivendo seu entre-lugar numa terra
desconhecida.
A tensão espacial e subjetiva gerada por Xilim, ao longo de sua trajetória,
são intensificadas ao perceber que a sua única ligação com o passado ancestral
havia falecido. A velha Alima morre em sua palhota e lá, debaixo do cajueiro, é
enterrada. O deslocamento de João Xilim é acentuado assim que descobre este
fato, pois após retornar de sua viagem de seis anos por outras terras, a notícia é
dada e recebida com a abertura de um remorso muito grande em seu
sentimento. Agora, sua avó é somente um símbolo do um passado esquecido
nas terras do Ridjalembe. Todos os destinos dos moradores deste vilarejo, que
emigraram para as terras do Marandal, foram governados pelos brancos da
mina, nenhum deles seguiu a resistência e a convicção da velha Alima. Como
Xilim havia saído do Ridjalembe e viajado para as terras distantes, diferenciava-
se dos demais, ou seja, pelo fato do herói de ter saído de sua terra natal, ao
retornar tem a sua percepção distinta dos demais, talvez, se não tivesse saído,
seria igual a eles.
Portanto, mesmo com o deslocamento e fuga de seu espaço de origem,
um fator positivo é acrescido à personagem, a qual agora, mesmo sofrendo as
dores de mulato e de um ser forasteiro de sua própria terra, é uma das
esperanças de mudança sob o espaço opressivo e dominado pelos
colonizadores.
seus frutos não mais germinarem. Portanto, João Xilim, sendo seu neto, tem
uma tarefa árdua, mas muito importante: é filho da miscigenação, a qual tem
em sua cor o estigma de mulato, mas ao mesmo tempo, é a representante da
hibridação, a mistura e contaminação das culturas, a local com a do
colonizador, sendo que esta hibridização incide, também, positivamente sobre a
personagem, pois é o ser que desequilibrará seu espaço, entre a resistência da
cultura local com a cultura colonial. É o único que sai do vilarejo e vê as terras
distantes. Volta diferente, podendo mudar o destino de sua geração, pois tem
em suas mãos a experiência da vida interna e externa sobre o vilarejo.
Quase ao fim do primeiro capítulo, a negra Kati, filha da Velha Alima,
retorna as terras do Ridjalembe para visitar a mãe e tentar convencê-la a deixar
a sua palhota no meio das terras sem vida do Marandal de uma vez por todas.
Mas, sem sucesso, não consegue, pelo contrário, este pedido reacende um
rancor, uma raiva e uma dor incomensurável na Velha Alima, ao ponto de
mostrar a sua própria filha que ali queria morrer, nem que fosse sob os olhos e
cuidados de ninguém, já que esta escolha não seria tão diferente da qual já
estava vivendo, pois já vivia aos cuidados de si mesma, ela e a sua terra, cuja
secura ainda infiltrava a memória de seus avós e, ali, naquela terra batida, onde
a saudade dos tempos em que “os negros eram os donos da planície e não tinham
outras ambições” que queria ser enterrada, até que os pássaros da sua terra, do
Ridjalembe, comessem seus olhos.
João Xilim sabia internamente que enquanto a sua avó estivesse sobre as
terras do Ridjalembe, ela era a representante do seu passado, da sua origem,
pois tinha para quem a para onde voltar, mas só que desta vez, ao retornar para
as terras dos seus ancestrais, tudo isso já tinha ido, o espaço da memória teria
sido apagado, ou melhor, a sua maior representante se juntou ao cajueiro e está
agora junto ao seu avô Mafanissane, completando a ascendência entre os galhos
ressequidos do cajueiro que agora dependem de João Xilim para serem levados
adiante ou serem extintos de vez, nesta terra em que se nasce estrangeiro da
própria pátria:
Referências bibliográficas
GAGNEBIN, Jeanne Marie.Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006.
HAMILTON, Russel G. Literatura Africana, literatura necessária.Tradução Russel
Hamilton. Lisboa: Edições 70, 1984.
HOMI, Bhabha. Nation and narration.London and New York: Routledge, 1990.
MENDES, Orlando. Portagem. São Paulo: Ática, 1981.
SANTILLI, Maria Aparecida. Estórias africanas: história e antologia. São Paulo:
Ática, 1985.
SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
SILVIANO, Santiago. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência
cultural. 2.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.