Serafim Leite Volume 4 Livro 1

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i, , I

SERAFIM LEITE S.I.


História
da Companhia deJesus
no Brasil
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COLEÇÃORECONQUISIAOOBRASIL-r'SÉRIE

160. A CONQUISTA DO DESEXTO OCIDENTAL - Craveiro Costa - (393/0)


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162. DICIONÁRIO MUSICAL BRASn.EIRO - Mmo de Anchade - (0560/3)
163. CRÔNICA DE UMA COMUNIDADE CAFEElRA - Paulo M=adantc / (1100/6)
164. DA MONARQUIA À REPÚBUCA- George C. A- Boebrer - (1015/5)
165. QUANDO MUDAM AS CAPITAIS - J. A- Meira P= - (101611)
166. CORRESPONDêNCIA ENTRE MARIA GRAMAM E A IMPERATRIZ DONA LEOPOLDINA - Américo Jaco-
biDa Lacombe - (111718)
167. HEITOR VUJ..A-LOBOS - Vasco Mariz - (112112)
168. DICIONÁRIO BRASn.EIRO DE PLANTAS MEDICINAIS - J. A. Meira Penna - (312/1) mSTÓRIA
169. A AMAZÔNIA QUE EU VI - GaSIão Cruls
170. HILÉlA AMAZÔNICA - Gaslio Cruls
171. AS MINAS GERAIS - MiIan de Barros Latif - (909/6)
DA
172. O BARÃO DE LAVRADJO E A HIGIENE NO RIO DE JANFlRO IMl'ERIAL - LourivaI Ribeiro - (061M:l)
173. NARRATIVAS POPULARES - Oswaldo EIias Xidieh - (315/0)
174. O PSD MINERO - Plínio de Abreu Ramos - (795/4)
COMPANHIA DE JESUS
175. O ANEL E A PEDRA - Pc. Hélio Abranches Viotti - (792/5)
176. AS IDÉIAS FD...OSÓFICAS E POLfrICAS DE TANCREDO NEVES - J. M. de Carvalho - (91011)
lnnS. FORMAÇÃO DA LITERATURA BRASILEIRA - 2 vols. - Antônio Candido - (689/1)
NO
179. HISTÓRIA DO cAFÉ NO BRASIL E NO MUNDO - José Teixeira de Oliveira - (797n)
180. CAMINHOS DA MORAL MODERNA; A EXPERIÊNCIA WSO-BRASU...ElRA - J. M Cavalho - (92!J1) BRASIL
182. A REVOWÇÃO DE IS17 E A HISTÓRIA DO BRASIL - Um esmdo de hislória diploaWica - Gonçalves de Bar-
ros Carvalho e Mollo Mourão - (821/5)
183. HEI..ENA ANTIPOFF - Sua VidalSua Obra - Daniel I. Amipoff - (955/4)
184. HISTÓRIA DA INCONFIDÊNCIA DE MINAS GERAIS - Augusto ele Uma JÚDÍor - (326/0)
185/86. A GRANDE FARMACOPÉlA BRASILEIRA - 2 vols. - Pedra Lniz Napoleão Cbemoviz - (1123/0)
187. O AMOR INFEUZ DE MARÍI..IA E DIRCEU - Augusto de Lima JÚDÍor - (110219)
188. HISTÓRIA ANTIGA DE MINAS GERAIS - Diogo de Vasconcelos - (029613)
189. HISTÓRIA MÉDIA DE MINAS GERAIS - Diogo de Vascoocelos - (0298/6)
1901191. HISTÓRIA DE MINAS - Waldemar de Almeida Barbosa
192. INTRoDUÇÃo A HISTÓRIA SOCIAL ECONOMICA PRE-CAPITAUSTA NO BRASIL - OliveiIa V= . (089712)
193. ANTOLOGIA DO FOLCLORE BRASn.EIRO - Luis da Camara Cascudo - (083513)
194. OS SERMÕES - Padre Antônio Vieira - (2052/8)
195. ALIMENTAÇÃO INSTINTO E CULTURA - A- Silva Meio - (Onon)
196. CINCO UVROS DO POVO - Luis da Camara Cascudo - (083310)
197. JANGADA E REDE DE DORMIR - Luis da Camara Cascudo - (OS34n)
198. A CONQUISTA DO DESERTO OCIDENTAL - Craveiro Costa - (0393/0)
199. GEOGRAFIA DO BRASIL HOLANDÊS - Luis da Camara Cascudo - (083716)
200. OS SERrÕES. Campanha de Canudos - Euclides da Cunha - (110614)
201. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo 1. (S6cuJo XVI - O Estabelecimento). - Serafim
Leite. S. L - (0841/OB)
202. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo IL (Século XVI - A Obra). - Serafim
Leite. S. L - (084212B)
203. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo m (Norte-I) Fundação e Entradas - Séculos XD-
XVIII) - Serafim Leite. S. 1. - (0843I3B)
304. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo N. (None-2) Obra e Assumos Gerais - Séculos
XVII-XVIII) - S=fim Leite. S. L - (0844I4B)
205. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo V. (Da Baía ao Nordeste - Estabelecimentos o
assuntos locais • Séculos XVII-XVIII) - S=fim Leite. S. 1. - (0845/58)
206. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo VI. (Do Rio ele Janeiro ao Prata e ao Guaporé -
Estabelecimentos o assuntos locais - Séeulcs XVII-XVIII) - Serafim Leite. S. L - (0846I6B)
207. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo VIL (Séculos XVII-xvm - Assuntos Gerais) -
S=fim Leite. S. 1. - (0847nB)
208. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo vm (Escritores: de A a M - Suplemento
Biobibliográfico - I) - Ser.úim Leite. S. L - (0848I8B)
209. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo IX. (Escritores: do N a Z - Suplemento
Biobibliográfico) - S=fim Leite. S. L - (084919B)
210. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL - Tomo X. (Índice Geral) - Scrafun Leite. S. L - (0850/0B)
COLEÇÃO RECONQUISTA DO BRASIL (2a SÉRIE)
Dirigida por Antonio Paim, Roque Spencer Maciel de Barros SERAFIM LEITE. S. L
e Ruy Afonso da Costa Nunes. Diretor até o volume 92,
Mário Guimarães Ferri (1918-1985)

VOL.204
mSTÓRIA
DA
COMPANIllA DE JESUS
NO
BRASIL

Capa TOMO IV
Cláudio Martins
(Século XVI -o ESTABELECIMENTO)

Edição F 'ac-Simile Comemorativa dos


500 Anos da Descoberta do Brasil

EDITORA ITATIAIA LTDA


Belo Horizonte
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Tel.: (031) 212~4600 - Fax.: (031) 224-5151 EDITORA ITATIAIA
Rio de Janeiro Belo Horizonte - Rio de Janeiro
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Como se disse na abertura do 111 Tômo, também
ê.rte, COMagrado ainda ao Norte do Brasil, se publica pela
diligência e bOM ojEcio.rdo I nstituio Nacional do Livro, do
.Mini.rtério da Educação e Saúde.

2000

Direitos de Propriedade Literária adquiridos pela


EDITORA ITATIAIA LTDA
Belo Horizonte - Rio de Janeiro

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
HISTÓRIA
DA

COMPANHIA DE JESUS
NO

BRASIL

VE R A E F FI G r E S CELE BERHI.M:T
P. 'A N T O 'N I I V I. E Y R A /.
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P. ANTÓNIO VIEIRA

« Verdadeiro retrato do muito célebre P. António Vieira, da Companhia de Jesus,


Pregador dos Reis de Portugal e Príncipe dos Pregadores, que Portugal
deu ao mundo e Lisboa a Portugal e o Brasil à Companhia >.
(Da legenda latina do seu retrato feito em Roma por Amoldo Van \'(Iesterhout)
SERAFIM LEITE, S. I.

,
HISTORIA
DA
COMPANHIA DE JESUS
NO
BRASIL

TÔMO IV

NORTE - 2) OBRA E ASSUNTOS GERAIS

Séculos XVII-XVIII

I 9 4 3
AUTÓGRAFO DO P. ANTÓNIO VIEIRA INSTITUTO NACIONAL DO LIVRO LIVRARIA PORTUGÁLIA
(Última página da earta do Maranhão, de 11 de Fevereiro de 1660) Av. RIO BRANCO RUA DO CARMO, 75
Trata do bom govêrno dos Índios e das graças, que pede a Roma, para as RIO DE JANEIRO LISBOA
Cristandades do Maranhão e Pará. - Na íntegra em Novas Cartas f esuiticas,
À MEMÓRIA DE MEU PAI

Operário sombreireiro a quem a Amazónia atraiu,


e onde jaz para sempre, exemplificação prática, pessoal,
do dito de Camões, por bôca de Garrett, transferindo
ao «Generoso Amazonas » o legado paterno.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO AUTOR


P,REFÁCIO
Arrident vera, quia vera: displic,nl falsa,
qui a falsa, Neque enim me ""vilalis gralia, aul
anliquilalis auclorila3 sed rerum verlla3 rapit,
- Agradam as coisas verdadeiras, por serem ver-
..,
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dadeiras, desagradam as falsas, por serem falsas,
Não me move o encanto da novidade, nem a
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'C c-, autoridade dos antigos, arrebata-me a verdade

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-: das coisas, - FRANCISCO SOARES LUSITANO.,

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« da Companhia de Jesus fechou o I I I Tômo, no extrêmo
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Companhia e é hoje fronteira do Brasil. Cumpre-nos, na seqüência desta
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'o obra, completar o Brasil, ao sul, até ao Rio da Prata, onde os Jesuítas
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não apenas da Assistência de Espanha, mas, também, da Assistência
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~ Õ.., -g de Portugal (por isso, Jesuítas do Brasil) tiveram casa - a Resi-
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dência da Colónia do Sacramento - que foi algum dia fronteira da
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O América Portuguesa. Antes porém de assim ampliar o quadro, e retomar,


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~ ~ o•..•.. com êle, tôda a h istôr ia da Companh ia nos séculos XV 11 e XVIII,
-c :> o:J desde Pernambuco a S. Paulo, desde o Rio de Janeiro ao Rio Guaporê,
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:J f-< -u.., importa examinar alguns aspectos peculiares e importantes, um dos


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-u -o quais, o que se refere aos Índios, é o próprio fundamento da presença


c dos Jesuítas no Norte.
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eo Verdade é que a História da Companhia no Brasil sempre achou
:;;: Índios no seu percurso. Mas agora vai directa e expressamente ao en-
Contro dêles, estudando ao mesmo tempo o ambiente amazônico primitivo,
o grave problema das subsistências e a sua legislação colonial autônoma,
circunstâncias que influiram na catequese, aldeamentos e liberdade;
a organização regional interna da Companhia, a actividade ministerial
com tôda a classe de pessoas, e a influência dos f esuuas no movimento
geral da educação e cultura.

*
A questão dos Índios, a grande questão de sempre, é essencialmente
económica; e em todos os tempos existiu fundo conflito entre o moral
x HISTÓRIA DA Cü:\1PANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - PREFÁCIO
XI
e o econômico, entre a tendência ilimitada do homem para possuir,
e a contenção moral para que a posse se mantenha dentro dos limites para os Índios, como homens, a aperfeiçoar e educar. E .sob êste signo
da justiça. No Brasil dos primeiros séculos a posse da terra era inútil aliissimo, os Índios trocaram-se em Brasileiros.
sem braços para a sua cultura. Sem êles, a terra não era ainda terra:
era «mato », O descimento dos Índios do sertão para os núcleos produ-
tivos foi pois um [enômeno econômico, Os meios empregados era o *
aliciamento pacífico ou violento. Entradas ou guerra, justa ou injusta, Nas relações dos COl0110Scom os indígenas, os Portugueses criam
defensiva ou ofensiva, matizes de um problema único, a cultura da terra, na superioridade da sua civilização; mas envolviam nela, como todos
que, antes da chegada dos brancos, quási não existia, como nem sequer os Brancos, e os Portugueses menos que os outros, um sentimento
o Brasil, como expressão nacional. Na Amazónia, onde estamos agora, supersticioso de superioridade humana. O jesuíta do Brasil com ser
com a vinda dos Brancos ( e os Bran'cos na Amazónia já eram tanto
na ~:imensa maioria, também português, pioneiro da Civilizdção crist~
Portugueses como Brasileiros) começou a cultura, isto é, a civilização
em grande parte do mundo, procurou, como norma geral, abolir essa
actual. Mas os Brancos eram poucos para a terra imensa. E como
superioridade, proclamando que de homem para homem a diferença é
vencedores começaram a utilizar os vencidos, facto que estranhará apenas
nula, na sua essência humana. As diferenças acidentais de fortuna, de
quem ignore a história antiga ou moderna, que não se faz outra coisa
educação ou de côt ., tinham que se aferir pelo espírito cristão, dentro
ainda hoje nas guerras, justas a que assistimos.
ou injustas, Por uma dos dois têrmos da equação eterna, caridade e justiça.
fórmula ou por outra, obrigam-se os vencidos a trabalhar, aos milhões,
Por isso, além dos elementos diversos da actividade da Companhia:
para os vencedores, lei de ferro, que ainda levará tempo a desterrar
instrução, deuassamento dos sertões e catequese, há na história dos
do mundo.
jesuítas no Norte do Brasil um duelo formidável, como aliás no Sul,
O jesuíta colaborou nos descimenios, usando os meio..s de alicia-
entre os Padres e os Colonos, a respeito dos Índios: os Colonos olhavam
mento e de paz; colaborou também nas guerras com os I ndios (nas para os Índios com o pensamento no interesse. imediato: braços para
guerras justas,
a que chamaríamos antes guerras legais, que nem remar, braços para a lavoura, braços para ó serviço doméstico. Os je-
sempre legalidade é sinônimo de justiça) e colaborou, porque o jesuíta . suítas, repetimos, sem desprezarem os «braços », viam mais fundo.
no Brasil teve que ser tudo, sob pena de não ser nada. Mas com uma Defendiam a « alma» dos Índios, como susceptível de ser cristã, e a liber-
vantagem e esta foi a sua cruz e a sua glória. O jesuíta foi mestre-escola dade, que brota da raiz da alma, como o fruto humano mais precioso
e lavrador, construtor e mecânico, professor de Faculdades Acadé- da vida.
micas, e criador de gado, escritor e senhor de engenho; enfermeiro e O duelo entre os jesuítas e os Colonos, não obstanie tal ou qual
médico, explorou os rios e as terras, fundou povoações; foi confessor e colaboração naquelas guerras chamadas justas, [oi persistente e cons-
conselheiro de Governadores e Vice-Reis e como que secretário de Estado. tante E di h. , .
. LZ a tstôría que os colonos usaram de armas ora lícitas com
O jesuíta foi tudo, mas acima de tudo, mesmo quando acompanhava o recurso à Coroa, ora ilícitas, não excluindo as da violência e ~s da
as expedições, foi caiequista, amigo e defensor do I ndio, êsse miserável cal~nia (há exemplos concretos), logo desde o primeiro instante em que
«bugre» de certas narrações depreciativas, tão perseguido e tão desejado, LULz Figueira chegou ao Maranhão, até à hora em que sossoorados na
êle com o corpo para o trabalho, ela com o corpo para o trabalho ~e para tormenta e vencidos finalmente, se retiraram os últimos Padres da Com-
o prazer. A diferença está em que os Padres vislumbraram nos Indios,
Panhia. Luta a que não faltaram os seus lances êpicos e encheu mais
para além do corpo, uma alma, igual à de todos, que era preciso cate- de Um século.
quizar e remir. Por êste facto, 'entendem alguns que os Missionários
_ Lúcio de Azevedo, ao concluir a sua história sobre.« Os Jesuítas no

---
trocaram os Índios, e querem fazer disso alguma c~isa de menos bom. Grao-Pará» 1 co t põ doi .
, n ra oe os OLSmotwos preponderantes na colonização da
Não haverá um ligeiro equívoco, supondo que os I ndios haveriam de
ser apenas, e indefinidamente, objecto de museu? Os jesuítas olhavam
I. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, 381.
XII HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Amazónia: dum lado «os estímulos da ambição feroz », do outro o « ele-


XIII
vado ideal do catequista », - conclusãa que podia ser também a sentença
definitiva da história no tocante aos Índios. Mas nós adoçaríamos aquela
palavra «[eroz», aplicada aos colonos, tendo presente, para rectijicar seja contra c~~rentes preestabelecidas. E entendemos que ~em tudo o
a mentalidade actual do século XX, em que Portugueses e Brasileiros que Pombal fez foi mau e que algum bem, sob alguns aspectos, resultou
são cidadãos de Pátrias distintas, que os Portugueses, de que fala Vieira, da sua obra. Quanto à perseguição aos Jesuítas, que já se vislumbra,
de compatriota para compatriotas, eram em grande parte Brasileiros aqui e além, nas páginas dês te volume, a reacção do historiador mani-
de nascimento, englobados todos, então, com o nome único de Portugueses. festa-se sobretudo contra o modus faciendi e contra a violência, bebida
Nós adoçaríamos a palavra, porque na história da Companhia de por êle nas margens do Danúbic, alheia à tradição portuguesa e contra
Jesus mistura-se em geral tanto amor e tanto ódio, e foram tantos os de- a calúnia como arma que êle utilizou sem consciência'. '
bates e propagandas contraditórias, que é preciso um esjôrço de apli- Mas o estudo geral dessa época, a segunda metade do século XVI I I
cação quási perene para trilhar, na vereda histórica, o caminho da re- os motivos de vária índole, que a condicionam, tanto de idéias como de
ctidão. E como nós próprios, no fundo de nosso ser, trilhamos o caminho interesses, a atitude das côrtes europeias, a pensão "em dinheiro"
do amor, é possível que no rastro das nossas palavras se ache esta cen- com que os homens de Grimaldi gratificavam o confessor de Clemente X IV,
telha divina, mesmo a respeito dos que avaliam os factos de maneira e os «frutos do Brasil» (diamantes), com que os homens de Pombal com-
diferente. Mas que fazer, se só os mortos não odeiam nem amam? pravam conivências em Roma, tudo isto fica para o último tômo desta
E é êste o mais angustioso problema do historiador: Ser parcial? História. Observe-se, entretanto, mantendo-nos estritamente no âmbito
Ser imparcial? Parcial, dizer sempre bem ou mal; imparcial, dizer o do Norte, que Nóbrega, ao iniciar a famosa « empresa» do Brasil, reduzia
mal e o bem? Tentamos o meio têrmo da verdade. Mas o meio têrmo
não tem sempre cabida, Item se pode admitir sempre sem provas. Quando
=: as dificuldades =« a duas: o mau exemplo dos que se diziam
cns.taos; e a, servidão dos I ndios que com o nome de liberdade pouco
alguém se lembrasse de caluniar um terceiro, e êste respondesse, defen- m~ls suportavel era que a mesma escravidão. Isto dizia Nóbrega ao co-
dendo-se, o historiador que passasse por cima das provas, e admitisse meço. No entanto estas palavras são de Lourenço Kaulen missionário
o meio têrmo, caluniaria a meias. da Amazónia, e foram escritas em 1753, isto é, no fim 1. '
Escrito o "Emilio", Rousseau viu-se objecto de perseguição geral, . ?ura/:te dois séculos de incansável actividade, os Jesuítas ficaram
em que os inimigos da religião tinham o quinhão maior. Rousseau IguaIs a SI mesmos. Passada a crise, a Companhia refloreceu em novas
« começou a inquietar-se, perdeu a firmeza e, diz Romain Rolland, viu Obras, novas Missões, novos Colégios, novas Universidades, ainda mais
o perigo onde não existia. Acusou os J esuitas, que se encontravam nesse do que antes. Não haveria então naquele longo prazo de tempo, da actiui-
momento ocupados com assuntos bem diferentes, pois eram perseguidos dade dos Jesuítas no Brasil, deslize algum .?Crê-lo seria pouco inteli-
e expulsos de todos os países católicos» I. g~~te. Equivaleria a admitir na terra a organização estável da impeca-
A calúnia contra os Jesuítas era doença endêmica então no mundo, blltdade, sem o uso ou abuso da liberdade pessoal. O mais que na terra
dado o ambiente de que o próprio Rousseau era em parte responsável, :e pode organizar são estados de vida, onde a santidade e perfeição se
ateada também pelo contágio dos libelos do valido de D. José e seus uscam realmente, sem desconhecer que a fragilidade humana, ainda
agentes. Acharemos, neste tõmo, vestígios dêsses libelos. Casos parti- quando
. se ampara não se su prinme. P or ISSO, . t.
nouve f esuuas que preva-
ncaram - . à
culares, como tais também os tratamos, mostrando, com factos, a razão ' e nao estiueram altura da sua missão e a deslustraram ou
ou sem razão dêles, destruindo poruentura a falsidade em que assentam. a bandonaram Com h A' l
P rel ados que .' o ouve posto os que prevaricaram, Pontífices e
Com Francisco Soares Lusitano, dizemos o que pensamos, ainda que p . P d
reuartcaram, a res e Religiosos que prevaricaram, para
s Ó f alar na classe l . , . ..
l ec esiasuca, em que ISSO mais se nota, e não noutras
c asses do mundo em . _ ,
di á ,que certas prevancaçoes (e desnecessário in-
I. Romain RoIland. O pensamento vivo de Rousseau (S. Paulo 1940) 23. IC -las ) ási -
. .. qu SI se nao notam, por serem comuns.
-------
I. Carta de Lourenço Kaulen, em Lamego, A Terra Goitacâ, Ll l, 292.
XIV HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Sejam, porém, quais forem as faltas individuais, a obra dos Jesuitas


do Brasil, em conjunto, mostram os factos que é admirável. E dela ainda
resta muito a estudar nos séculos XVI I e XVI I I, não só com as acti-
vidades propriamente sociais e econômicas, mas também com outras de
cultura geral, linguistica, etnograjia, arte, literatura e ensino da juuen-
Introdução bibliográfica
. tude e assistência religiosa a índios, negros, mestiços e brancos, equiva-
lente tudo ao realizado no primeiro século, mas em cenário a ampliar-se
de contínuo, no alargamento sucessivo dos contornos do Brasil. A Amazónia tem sido objecto de estudos modernos, alguns de
No cenário do Norte, em que estamos, quer no tõmo I I I, quer neste, ciência especializada, etnografia, arqueologia, geografia ou história;
que se abre agora, afigura central é Vieira, cuja personalidade se pro- outros de vulgarização; outros ainda de viagens ou fantasia. Seria
jecta nas lutas e na legislação, na clarividência e na generosidade e até tarefa de arquivista ou bibliotecário pretender citá-Ias todos nestes
no gênio com que movimenta tudo e o descreve, e com que ligou para tomos I I I e IV. No entanto, muitos dêles, ministraram ao Autor,
sempre o seu nome ao Brasil. De tal forma que o Gouêrno da grande aqui e além, subsídios úteis de confrontação ou esclarecimento ou
nação, nos Centenários de Portugal, de 1940, entre os selos com que os mesmo de sugestão, orientando as pesquisas em determinado rumo,
glorificou, incluiu o de Antônio Vieira, como no centenário da Com- entre as mil actividades da Companhia de Jesus, rumo ou ponto
panhia tinha divulgado o de Anchieta, que também corre nas moedas que, sem tais sugestões, porventura passaria indiscriminado na com-
do Brasil, comp que a nacionalizar brasileira a Companhia de Jesus. plexidade dos temas. Leitura vasta, mas prévia e indispensável.
Nem é outro o sentido profundo da frase de Vieira, quando desdobra E não só de Luso-Americanos e Europeus, mas também de Hispano-
aqueloutra frase inicial de Nôbrega (<< o Brasil é nossa emprêsa »), e -Americanos ou até Anglo-Americanos, como Up de Graff, que arras-
responde aos emissários do povo do Maranhão, que queria obrigar os tado pelas aventuras de Stanley também quis «penetrar num mundo
f esuuas da Assistência de Portugal, a votar contra os seus irmãos índios, desconhecido para além dos limites da civilização». Recue-se o tempo
também povo, mas que o povo desprezava: de dois séculos, e ter-se-á o ambiente da história dos Jesuítas na
«Respondemos-lhes com declarar a grande vontade que tínhamos Amazónia, quando nesse mundo sem balisas, êles próprios iriam
de servir a esta república, da qual também nós éramos parte, pois colocar algumas, entre as primeiras.
viéramos para viver e morrer nela». Naturalmente o valor dêstes já numerosos livros, quer de ciência,
Os Jesuítas vieram para viver e morrer no Brasil! E alguns, no quer de vulgarização ou fantasia, não é igual em todos. Nos de Rai-
século XVI I I, por êsse mesmo amor, ainda padeceram e foram morrer mundo Morais, por exemplo, seria para desejar maior cultura, que
em terra estranha, dispersas pelos cárceres e pelo mundo. Mas quando
se revela menos sólida, quando deixa a parte de literatura descritiva
isto sucedeu, já o Brasil saía da adolescência, e podia seguir por si
e se remonta aos planos da ciência ou da história, incompatíveis
mesmo o .seu glorioso caminho.
com improvisações livrescas. Em todo o caso, as suas obras, com as
de Alberto Rangel, Gastão Cruls, Abguar Bastos, Ferreira de Castro,
Lisboa, 1938 - Rio de Janeiro, 1942.
Peregrino J únior, Araújo Lima, Alfredo Ladislau e ainda outros
de merecimento, que encaram aspectos diferentes da região, e em
particular as de Euclides da Cunha, tiveram tôdas um resultado
positivo evidente, que foi popularizarem a Amazónia, pondo-a na
ordem do dia, a que veio dar ainda mais actualidade o já famoso
Discurso do Rio Amazonas, do Presidente Vargas, cuja obra moderna,
de notável equilíbrio e renovação, na linha histórica do Brasil, nos
XVI HISTÓRIA DA COMPANHIA DE )ESeS NO BRASIL
TÔMO IV - INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA
XVII

apraz registar neste livro consagrado ao estudo dum sector funda-


mental da história brasileira. . estudos que tocam todos indirecta, e alguns, directamente, à própria
história do Brasil, em particular a do Maranhão e da Amazónia.
Euclides da Cunha chamou «Terra sem história» à do grande rio,
olhando mais à sua formação telúrica, e à desproporção dos resul-
tados conseguidos, diante dos esforços humanos, do que à ausência
I - Bibliografia sôbre o P. António Vieira
de façanhas heróicas. Todavia nada há inútil no mundo, sobretudo
em história, que às vezes é tão instrutiva, quando expõe resultados
As fontes mais importantes, relativas ao P. Vieira, são as suas
grandiosos, como nas lições, que deixa, de trabalhos sem fruto ime- próprias cartas e as referências pessoais que se viu obrigado a fazer,
diato. em. defesa s~a, sobretudo perante a Inquisição; e, secundariamente,
Somos dos que crêem no futuro da Amazónia, e que ela não muitos sermoes seus e algumas cartas escritas por outros à raiz da
ficará, geológica, social ou economicamente em estado indefinido de su~. mort~. Deixou tamb~m um Diário, hoje desaparecido, mas que
formação. Claro está que não falamos das capitais, Belém e Manaus, utilizou ainda o P. Andre de Barros, <acadêmico de número da Aca-
formosas e impressionantes, de vida social e comercial já bem orga- demia Real da História Portuguesa», como se lê nas Vozes Saudosas
nizada. Belêm do Pará é até, na zona equatorial, a mais importante ~~~.' ,
cidade do mundo. Emoldurada pelo rio e a vegetação, dentre o mo- André de Barros, primeiro biógrafo de Vieira, tem contra si o
vimento popular do' Ver-o-Peso, do Largo da Pólvora, das Avenidas estilo, não porém a verdade. A Vida do Apostólico Padre António
e do pôrto, erguem-se para o céu as tôrres das igrejas ou as cumieiras Vieyra (Lisboa 1746) é ainda a fundamental. Num ponto peca: o
de edifícios, altos, multiplicados, e imprevistos para o viandante, prurido do encómio e o pendor a sobrenaturalizar acções a que muitas
que chega e vê surpreso, sublimar-se, repentinamente recortado, o ~e:.es bastavam simples explicações humanas. Mas quanto à expo-
horizonte raso, da água e da floresta. Não falamos das capitais do siçao dos factos, verificamos, pelas próprias fontes, que é geralmente
Pará e do Amazonas, mas da selva e dos mil meandros que a penetram. exacto e meticuloso.
E, se progridem também alguns dos seus núcleos ribeirinhos, virá Mais conforme ao gôsto moderno é a História de António Vieira
um dia em que a Amazónia será adulta, sob todos os aspectos e em . de ,L.ÚCiOde Azevedo, notável em muitos aspectos novos, sobretudo
todo o seu âmbito; e, então, como aliás já começa a ter consciência políticos, administrativos e polémicos. Não raro a feição científica
agora, os primeiros passos da sua vida civilizada, serão a glória do da ~b~a.é amenizada por vôos líricos, que não se coadunam bem com
seu passado. a ~Istofla, prejudicando tal interpretação subjectiva a realidade das
Entre essas glórias enfileiram-se,. sem .dúvida, os Jesuítas, COIS~. Peca pelo oposto de André de Barros: atribue com freqúência
objecto da história que nos ocupa, e, no primeiro plano, Ant6nio ~~tIVOS puramente de ambição, cálculo humano ou império po-
lítíco a acções A •

Vieira, que lhe consagrou .as mais puras energias da sua alma . .' que tem em SI, e pela condição mesma da vida
de combatente construtivo e de apóstolo, não apenas como Pedro, reltglOsa de V!eira, e do direito eclesiástico vigente, explicação mais
trabalhando, mas como Paulo, trabalhando e escrevendo, que e~acta~ ~as fa-Io de boa fé e representa meritória reacção contra a
também é trabalho e não de menores conseqüências. Quando é o Slstem:tlc~ ~etracção dos panfletários da escola velha.
próprio Vieira que trata os assuntos, em que interveio, mal se podem i Na~ e ainda a .história definitiva de Vieira. A Lúcio de Azevedo
m~r~sslonou-o mais a parte política, combativa e dramática da
resumir as suas páginas, que se constituem, de direito, páginas inte-
~ctlvldade vieirense, deixando na penumbra muitos factos essenciais
grantes da História da Companhia de Jesus no Brasil. Muitas delas
Cescurando certos documentos importantes como a Resposta ao;
ficaram no I I I Tômo, Outras ficarão ainda neste, entre as quais algumas,
apítulo~, em que a verdadeira história de Víeira tem ainda muito
pouco conhecidas ou mesmo inéditas. Mas, dado o alto vinco da
que resplgar. Os aspectos da sua influência na instrução, assistência'
personalidade literária de Vieira, êle não é só agente e fonte de his-
.ent~adas, desenvolvimento económico e social do Brasil, e mesmo ~
tória, é também ocasião de investigações de maior ou menor relêvo,
TÔMO IV - INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA XIX
XVIII· HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
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escreve: «Aqui, como em vanos outros pontos, as idéias do Jesuíta
. literário, são mediocremente tratados e alguns totalmente esquecidos. Antônio Vieira tiveram por executor aquêle mesmo que, em rasgos
Lúcio de Azevedo deixou ainda outros escritos, que se referem de furor retrospectivo, lhe injuriou a memória com estrepitosos
a Vieira, entre os quais Os Jesuítas no Grão-Pará; e coligiu profi- baldões» 1.

cientemente as Cartas do Padre António Vieira, de que teve conhe- Ainda que escrita posteriormente, a Vida do Padre Ant6nio Vieira,
cimento, impressas pela Universidade de Coimbra, em 3 volumes, de João Francisco Lisboa (Obras, IV, Lisboa 1901) pertence a esta
inestimável serviço seu e da Universidade às letras e à história. A segunda categoria de critérios, onde se manifesta com evidência «o
estas Cartas devem juntar-se as duas que divulgou Clado Ribeiro rancor ou deferência cega ao conceito de ardentes e determinados
de Lessa(Cartas inéditas do Padre António Vieira, Rio, 1934) e as inimigos». Caindo em si, antes de morrer, João Lisboa deixou o ma-
nove, inéditas, que publicamos em Novas Cartas Jesuíticas (De nuscrito com os seguintes dizeres: <êstes papeís devem ser queimados
Nóbrega a Vieira), S. Paulo, 1940 (Brasiliana). sem serem lidos », arrependimento e última vontade, que desacataram
Sem o aparato de Lúcio de Azevedo é a Memória Histórica e seus amigos.
Crítica acêrca do Padre António Vieira e das suas obras, de D. Fran- Em francês escreveu E. Carel, Vieira, sa uie et ses oeuvres (Paris
cisco Alexandre Lobo. As abundantes notas da Memória Histórica srd), traduzido recentemente por Augusto Sousa e publicado com
serviram de guia a Lúcio de Azevedo, que a manuseou mais do que o título de Vida do Padre Ant6nio Vieira (S. Paulo s/d), sem o pre-
as citações, que dela faz, o deixam supor ao leitor pouco fam.líarizado fácio, nem a indicação de fontes que trazem, no original, alguns
com estudos de investigação literária. capítulos. Carel conheceu bem a bibliografia vieirense impressa.
Verificando o que sucedeu com Vieira, que, de homem de grande Obra estimada, sobretudo pela análise literária dos escritos de Vieira,
espírito, em que era tido, e de zêlo fora do comum, negociador pene- que vai seguindo e entressachando na sua vida.
trante e destro em matérias políticas, príncipe dos oradores cristãos, Sob feição parenética merece menção· a obra Vieira-Pregador,
passou na difamação do século XVIII, a ser considerado homem de estudo j ilosô]ico da eloqúência sagrada segundo a vida e as obras do
zêlo menos puro e orador quási desprezível, verificando êste con- grande orador português (Pôrto 1901), por Luiz Gonzaga Cabra!.
traste de apreciações, D. Francisco Alexandre Lobo a ambas con- Cabral deixou também em francês um pequenino livro, que ajudou
sidera injustas, «com a diferença que nos primeiros juizes me parece a divulgar no estrangeiro o nome de Víeira, Une grande [igure de
influir, diz êle, mais um êrro muito natural e por isso mesmo muito Prêtre.
desculpável; nos segundos obrou mais o rancor ou deferência cega Recentemente Hernani Cidade publicou Padre António Vieira.
ao conceito de ardentes e determinados inimigos» 1. colectânea de Sermões e escritos 'de Vieira (4 vol.), que faz preceder
O marco divisório daquelas apreciações contraditórias sôbre de um largo e muito valioso estudo biográfico e crítico.
Vieira é a Deducção Chronoiôgica, escrita por ordem e em grande Não fazemos, porém, o elenco das edições que tiveram as suas
parte pelo próprio punho de Pombal, fámulo do Santo Ofício. Dela obras, senão da bibliografia sôbre Vieira. Muitas destas colectâneas
escreve o mesmo D. Francisco Alexandre Lobo: «Não precisa de falam dêle, com maior ou menor desenvolvimento, como as traduções
outras provas a inimizade declarada do Author da Deducção Chro- estrangeiras em alemão, espanhol, francês, inglês, italiano, latim, etc.,
nolôgica, a respeito de Vieira, que o virulento e descomposto estilo publicadas nos prelos mais afamados do mundo, numa difusão edi-
por que fala dêle em tôda a parte» 2. O próprio Lúcio de Azevedo, torial que, para obras escritas em português, só têm equivalência
comentando o facto de Pombal imitar Vieira na questão dos judeus. em Camões. Não são fontes de informação os estudos que se lêem
nestas colectâneas, quer estrangeiras quer mesmo brasileiras ou por-
1. D. Francisco Alexandre Lobo, Bispo de Viseu, Obras, II (Lisboa 1849)
tuguesas. São antes obra de divulgação e crítica, em geral de bom
175-176. - Na primeira edição, de 1823, êste trabalho saiu com título de Discurso
Histôrico e Crítico. 1. Lúcio de Azevedo, Histôrta dos Cristãos novos portugueses (Lisboa 1921)354.
2. ts., 293.
TÔMO IV - INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA XXI

XX HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL


III - Alguns manuscritos

quilate. Merecem referência entre muitos outros, José Fernando de Citam-se com mais freqüência, e, por isso, abreviadamente,
I os
Sousa (Trechos selectos), Antonio Honorati (Vieira ou o Crisôstomo seguintes:
Português), Pedro Calmon com o livro de sermões (Por Brasil e por
Portugal), e com um estudo sôbre o processo da família de Vieira na a) Apologia da Companhia de Jesus em Portugal composta pelo P. José Caeiro,
Baía; António Sérgio, e Afrânio Peixoto, com Os melhores sermões de ms. do Archivio della Postulazione Generale, Sezione IV, Varia, Scaffale b (Roma).
Não estava paginado e nós próprios o paginamos, ao consultá-Io em 1938. Infor-
Vieira, e sobretudo com o seu Vieira brasileiro (2 vol., Lisboa, 1921),
mam-nos que passou depois para o Arquivo Geral com a cota Lus. 95n. É díre-
em que colaborou Constâncio Alves, e para o qual Afrânio escreveu ctamente sôbre a matéria do presente volume a parte Respublica do Maranhão.
uma Introdução crítica cheia de originalidade e bom gôsto. [Apologia de Caeiro, Respublica ... ].
Dado que o P. Antônio Víeira é, em prosa, e em dois géneros
(oratória e epistolografia), o maior vulto literário da nossa língua, b) Apontamentos para a Chronica da Missão da Companhia de Jesus no Es-
tado do Maranhão, ms. da Bibl. Nac. de Lisboa, fg. 4516. Demos breve notícia
não há dicionário, selecta, compêndio de história ou tratado de lite-
dêste códice em Luiz Figueira, 15. [BNL, fg 4516, Apontamentos, ... ]
ratura, onde se não cite o seu nome e se não analise a sua obra. Re-
senha longa, desde Cândido Lusitano a Sílvio Romero, Baptista Pe- c) Diário de Diversos acontecimentos do Maranhão e Pará feito por um Padre
reira e Fidelino de Figueiredo. A leitura de Fidelino impõe-se a quem da Companhia de Jesus nos anos de 1757-1759. É ms. da colecção de Alberto Lamego.
quiser conhecer a última palavra da crítica autorizada e compe- Feito, dia a dia, quando se oferecia matéria, por um Padre ou Irmão assistente
no Pará neste período trágico. Verificamos, pela fotocópia, que possuímos, que
tente, sôbre o grande escritor.
as referências são de 1756 a 1760. Por isso citamos [Diário de 1756-1760].

Pela mesma e justa razão, apontada no Tômo III, pág. XV, d) Historia Proprovinciae Maranoniensis [ou Maragnonensis] Societatis lesu
mantém-se também neste, quanto possível, a ortografia dos tomos Pars prima. Ortus, et res gestas ab anno 1607 ad 1700 complectans, pelo P. Matias
Rodrigues. [Hist. Propr, Maragn., ... ]
anteriores, oficial no momento em que se iniciou a impressão desta
obra.
e) Hlstorla Persecutlonls Maragnonensis et Brasiliensis Prooinciarum:
1. Pars Prima: Maragnonensls Vice-Provinciae Historia per litteras exhibetur
II - Arquivos Centum Cellis [Civitavecchia] scriptas a Patre Mathia Rodrigues Maragnonensis
Vice-Provinciae alumno ad R. Adm. P. N. Laurentium Ricci anno 1761 [Hist.
Arquivo Geral da Companhia de Jesus (Archivum Socletatls Iesu Romanum): Pers. Maragn., ... ]
Brasilia 25 - Epistolae Generalium [Bras. 25, ] 2. Pars Secunda Prouinciae Brasiliensis persecutio sive Brevis narratia eorum
26 - Epistolae Maragnonenses [Bras. 26, ] quae ab Archiepiscopo Reformatore nec non Prorege ac Regiis Mirüstrls de mandato
,. 27 - Catalogus Maragnonensis :[Bras. 27, ] Lusitani Regis peracta sunt in Dioecesi Bahiensi. Auctore P. Francisco da Svtoeira.
,. 28 - Inventarium Maragnonense [Bras. 28, ] Ambas na Bíbl. Real de Bruxelas, códice 20126. Da 2.· parte, do P. Silveira, vimos
Historia Societatis Iesu [Hist. Soe., ] outro exemplar no Arq. da Universidade Gregoriana (Roma), códice 138. [Provo
Lusitania [Lus.,. . . ] Bras. Pers., ... ]

Fondo Gesuitico, Plazza dei Cesü, 45 [Roma, Gesu, ] f) Inventário do Maranhão. É o códice Bras. 28, fI. l-93v (lnventarium Ma-
Biblioteca Nazionale Vittorío Emanuele [Roma, Bíbl, Vitt. Ern., ] ragnonense), caderno autógrafo do uso pessoal do P. Manuel Luiz. Em 1768 vivia
Archivio Segreto dei Vaticano ...•................ [Vaticano, ... ] em Roma no Palácio de Sora, Sala do Grão Pará, e em 1774 em Pésaro, última
Bíblíothêque Royale de Bruxelles [Bruxelas, Bibl. Royale, J referência que dêle vimos. [Inventário do Maranhão, f. .. ]
Arquivo Histórico Colonial, Lisboa [AHC, ]
Arquivo da Província Portuguesa S. I. [Arq. Provo Port., Pasta, ] g) Lembrança dos defuntos que estam enterrados na Igreja nova de N. S. da Luz
Biblioteca Nacional de Lisboa, fundo geral [BNL, fg., ] do Collegio da Companhia de JESU no Maranhão, ms. da Bibl. Nac. de Lisboa,
Biblioteca e Arquivo Público de Évora ...•....... [Bíbl.. de Évora, ... ] fg., 4518. (Lembrança dos dej., f. .. ]
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro [BNR, ]
Biblioteca e Arquivo Público do Pará [Arq. do Pará, ]
TÔMO IV - INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA XXIII
XXII HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

BRAGA, Teodoro. - Noções de Chorografia do Estado do Pará, Belêm, 1920. [Teo-


h) Livro dos Obitos dos Religiosos da Companhia de Jesus pertencentes a este doro Braga, Corograj ia ... ]
Collegio de Santo Alexandre. Vai de 1660 a 1737. Tem anexos três Róis, referentes CAEIRO, José. - De exilio Provinciarum Transmarinarum Assistentiae Lusitanae
ao movimento religioso na igreja de S. Francisco Xavier do Pará, de pessoas secu- Societatis lesu, com a tradução portuguesa de Manuel Narciso Martins,
lares, casamentos (1670-1724), baptizados (1670-1737) e óbitos (1732-1752). Traz, Introdução de Luiz Gonzaga Cabral e Nota Preliminar de Afrânio Peixoto,
na data do óbito dos Padres e Irmãos, breve notícia biográfica. Há dois exemplares Baía, 1936. [Caeiro, De exílio ... ]
na Bibl. Nac. de Lisboa, um no fg, 4518, a começar na folha n. 21; outro na Col. CALMON,Pedro. - História do Brasil, I, S. Paulo, 1939; 11, 1941. (Pedro Calmon,
Pomb., 4. Por êste último fazemos as citações [Livro dos 6bitos, f ... 1 H. do B., I, lI, ... )
CARAYON, Augusto. - Documents inêdits concernant Ia Compagnie de f êsus, 23
vol., Poitiers, 1863-1866. (Carayon, Doe. l nêdits, I, 11... ]
CIDADE, Hernani. - Padre António Vieira, 4 vols., Lisboa, 1940. [Hernani Ci-
IV - Bibliografia impressa dade, Padre Anlónio Vieira, I ... ]
Collecção dos Breves Pontificios e Leys Regias que [orão expedidos, e publicados desde
o anno de 1741. Lisboa s/d. (Collecção dos Breves e Leys Regias, número ... ]
Como nos tomas anteriores, indicamos também aqui, na biblio- CUNHA RIVARA, Joaquim Heliodoro. - Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca
grafia especial que corresponde a êste tômo, unicamente algumas Eborense, Lisboa, 1850-187\. [Cunha Rivara, Catálogo, I ... ] .
obras, cuja citação mais frequente nos levou a abreviá-Ia. Entre DANIEL, João. - Tesouro Descoberto no Máximo Rio Amazonas, em 6 Partes, de
cancelas, o modo de citação. O Índice de Nomes, no fim, completará que se publicaram três: a 2.' P. na Rev. do I nst. Bras. vol. I I, 321-364; 447-500;
vol. I1I, 39-52, 158-183, 282-299, 422-441; a 5." P .. Rio, 1820 (avulsa); a 6." P.
a lista, incluindo a todos.
na mesma Revista do Inst., vol. XLI, 33-142. As Partes \.", 3." e 4." conser-
vam-se inéditas na Bibl. Nac. do Rio, 1-2, I, 2\. Segundo estas referências,
ABREU E LIMA, José Inácio de. - Synopsis ou Deducção Chronologica dos [actos
uniformizamos a citação, indicando apenas a Parte e página respectiva. [João
mais notoveis da Htstoria do Brasil, Rio, 1845. [Abreu e Lima, Svnopsis ... )
Daniel, Tesouro Descoberto, P. I, 11. .. ]
ACUNA, Cristóbal de. - Nuevo descubrimiento dei gran Rio de las Amazonas, reim-
presso por Cândido Mendes de Almeida nas Memorias, lI, 57-151. (Acufia, Dicionário Histórico, Geográfico e Etnográfico do Brasil, 2 vol., Rio, 1922. (Dic.
Nueuo Descubrimiento ... ] Hist., Geogr. e Etnogr. do Brasil, I, 11. .. ]
AFRÂNIO PEIXOTO, J. - História do Brasil, Pôrto, 1940. [Afrânio Peixoto, H. Documentos Históricos. Publicação da Bíbl, Nacional do Rio de Janeiro, I-LIV
do B .... ] (em curso de publicação). (Doe. Hist., I, 11... ]
AGASSIZ,M. et Mme. - Voyc;ge au Brêsil. Abrêgê sur Ia traduction de F. Vogeli FRANCO, António. - Synopsts Annalium Societatis Jesu in Lusitania, Augsburgo,
par J. Belin de Launay, Paris, 1882. [Agassiz, Voyage au Brésil. .. ] 1726. (Franco, Svnopsis ... ]
Anais da Biblioteca e Arquivo Público do Pará, 10 vol., 1902-1926. (Anais do. Pará, GALANTI, Rafael M. - História do Brasil, 2." ed., S. Paulo, 1911. [Galanri. H.
1...) do B., I, 11. .. ]
Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 61 vol., 1876-1941. Em curso de GARCIA, Rodolfo. - Notas à História Geral do Brasil, de Pôrto Seguro. Cf. Pôrto
publicação. [Anais da BNR ... ] Seguro. [Garcia em HG, I, I I ... ]
ASTRAIN,António . ....:...
Historia de la Compaiiia de Jesús en la Asistencia de 'Espana,
HERIARTE, Maurício de. - Descripção do Estado do Maranhão, Pará, Corupá, e
7 vol., Madrid, 1905-1925. [Astrain, Historia, I, lI ... ] Rio das Amazonas. Na íntegra em Pôrto Seguro, HG, 111, 211-237. [Heriarte,
BAENA, António Ladislau Monteiro. - Compendio das Eras da Provincia do Pará. Descripção, p.)
Pará, 1838. [Baena, Compendio das Eras ... ]
I nstruções régias públicas e secretas para Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
BARATA, Manuel. - Apontamentos para as Ephemêrides Paraenses na Rev. do l nst.
Capitão-General do Estado do Pará e Maranhõo, BNL, Col. Pomb.626, 3-19,
Hist. e Geogr. Bras., vol., 144 (1925) 9-235. (Barata, Ejemérides Paraenses ... ]
30, em Lúcio de Azevedo. Os f esuitas no Grão-Pará, 416-427. [Instruções
BARROS, P. André de. - Vida do Apostolico Padre Antonio Vieyra da Companhia Secretas ... ]
de Jesus chamado por antonomasia o grande, Lisboa, 1746. (Barros, Vida do
JOUANEN, José. -Historia de la Compaiiia de f esús en 'la antigua Provincia de
P. Vieira .... ]
Quito, 1570-1774, I, Quito, 1941. [Jouanen, llistoria, 1. .. ]
BERREDO, Bernardo Pereira de. - Annaes Historicos do Estado do Maranhõo, 3." ed.
LA CONDAMINE, Carlos Maria de. - Relation abrégée d'un voyage [ait dans l'in-
2 vol., Florença, 1905. [Berredo, Anais Históricos, 1. .. ]
têrieur de t'Amérique Mêridionale, Paris, 1745. [La Condamíne, Relation abrê-
BETTENDORFF, João Filipe. - Chronica da Missão dos Padres da Companhia de
gée ... )
Jesus no Estado do Maranhão na Rev. do Inst, Bras., LXXII, 1." Parte (1910).
(Bet t., Crónica .•. J
XXIV H~IS_T_Ó~R_J_A
__D_A__C_O_M_P_A_N_H_J_A
__D_E~J_ES_USN_O__ B_RA
__ S-I-l_, _ TÔMO IV -- INTRODUÇÃO BIBLIOGRÁFICA XXV

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Resposta aos Capítulos ... ]
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[Palma Muniz, Limites Municipais ... ] - Memorial de MU propostas, que os Padres Missionários do Estado do Maranhõo
PÔRTO SEGURO, Visconde de (Francisco Adolfo Varnhagen). - Htstoria Geral do representão a S. Majestade para ser servido de mandar ver e dejerir-lbes, quando
. Brasil. Notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia, 5 vols., 3." ed. lhe pareça que elles voltem para as missões do dito Estado de que ao presente
[1684] [orão expulsos na cidade de S. Luiz M Maranhão, em Meio Morais,
(Tôrno I, 4."), S. Paulo, s/d. [Pôrto Seguro, HG, I, lI ... ]
Ccirografia, IV, 186-201. [Víeira, Memorial de Doze Propostas ... ]
Regimento e Leys sobre as Missões do Estado M Maranhõo e Pará e sobre a Liberdade
dos l ndios, Lisboa, 1724. [Regimento das Missões ... com a pág. do ms. au-
téntico, que .possuímos]
LIVRO PRIMEIRO

A MAGNA QUESTÃO DA LIBERDADE

UMA DAS CAPELAS LATERAIS DA IGREJA DE S. FRANCISCO XAVIER


DO PARÁ (S. MIGUEL)

Tôdas com magnífica obra de talha, variando nos lavores de umas para as outras.
A clássica Fênix das colunas salomónicas parece ir tomando o ar de aves
regionais da Amazónia ... Os nichos do lado, vazios, tinham suas
imagens, no tempo dos J esuítas.
CAPÍTULO I

Antônio Vieira antes de embarcar para o Norte


do Brasil (1608 -1652)

J - Seu nascimento em Lisboa e formação na Baía; 2 - Volta a Lisboa na Em-


baixada da Restauração e D. João IV escolhe-o para seu conselheiro e pregador;
3 - Embaixadas a França e Holanda e a questão dos Cristãos-novos; 4 - A
crise do ano 49 e a sua situação dentro da Companhia; 5 - Resultados posi-
tillOS da actividade politica e diplomática de Vieira; 6 - Embarca para as
Missões do Norte do Brasil.

1. - O maior nome da Companhia de Jesus no norte do Brasil


é o Padre António Vieira: e anda de tal forma vinculado ao estabe-
lecimento da Companhia nêle, que em vez de se situar a sua acti-
vidade ao sabor dos acontecimentos, são os acontecimentos que
gravitam à roda de Vieira, como objecto directo da sua vontade,
ou como reacção, coeva ou póstuma, a actos que brotaram do seu
espírito, como inspirador ou agente.
Vieira é o Jesuíta que mais emparceira, no Brasil, com Nóbrega
e Anchieta, na celebridade, e os supera, a êsses e a todos, no campo
literário, por ser para a prosa português a o que é Camões para o
verso, motivo a mais para tudo assumir nêle particular relêvo. E bem
mal se compreenderia, aliás, o desassombro das suas atitudes missio-
nárias, sem os precedentes da sua vida nos púlpitos, nos conselhos de
S. INÁCIO E S FRANCISCO DE BORJA Estado e nas côrtes da Europa.
Imagens do tempo dos Jesuítas, recolhidas na sacristi~ da Igreja de N." S." António Vieira nasceu em Lisboa, a 6 de Fevereiro de 1608,
da Luz, hoje Catedral do Maranhão. na rua dos Cónegos, Vizinhança da Sé, e baptizou-se nove dias depois 1.

1. Dos livros de Baptismo da freguesia da Sé: c Aos 15 dias deste Fevereiro


~e 608 baptizei eu Jorge Perdigão, cura, a Antonio, filho de Christovão Vieira
avasco, e da sua mulher Maria de Azevedo. Padrinho é somente Fernão Telles
4 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 1 5

Filho de Cristóvão Vieira Ravasco, de Santarérn, mas de origem


alentejana de Moura, era neto de uma serviçal mulata, que traba- com o Divino Mestre, que o convidou a entrar na sua própria casa,
lhava em casa dos Condes de Unhão, de quem também eram empre- decidindo-se assim a sua vocação: "hora erat quasi decima' ...
gados o avô e o pai. O pai, Cristóvão, moço de câmara, elevou-se depois, A casa de Nossa Senhora da Ajuda, ligada dessa forma à vocação
em atenção aos merecimentos do filho, a fidalgo da Casa Real. de Vieira para a Companhia de Jesus, foi a primeira dos Jesuítas do
A mãe, Maria de Azevedo, lisboeta, era filha de Brás Fernandes, Brasil, a de Nóbrega, o fundador.
armeiro da Casa Real. Brás F ernandes obteve carta de lembrança Tomada a resolução, segue-se a execução. Vieira entra no Novi-
para um ofício da fazenda ou da justiça, a favor do homem que ciado a 5 de Maio de 1623. André de Barros acrescenta que Vieira
casasse com a filha. Em virtude dessa « lembrança », Cristóvão Vieira se retirou da casa sem avisar os pais, por conhecer ou temer oposição
Ravasco alcançou o ofício de escrivão dos agravos e apelações da dêles 1. Os cronistas antigos gostavam de assinalar, como actos exem-
Relação da Baía, criado em 1609. Neste mesmo ano seguiu para a plares e meritórios, estas fugas, que a mentalidade moderna reprova.
Baía, deixando mulher e filho em Lisboa, numa casa da freguesia Na realidade, a Companhia exige, se o candidato é de menor idade,
dos Mártires, perto da morada do Conde de Vila-Franca 1. Maria de prévio consentimento dos pais. Não deixaria de o exigir também
Azevedo, piedosa e diligente, acompanhou com amor o primeiro des- nêste caso. E se alguma dúvida houvesse, ter-se-ia resolvido a bem,
pertar da inteligência do filho, a quem educou e ensinou ela própria que não consta persistissem desinteligêncías entre uns e outros.
os primeiros rudimentos de ler e escrever. Reitor do Colégio, era o P. Fernão Cardim, o ilustre autor dos
Vieira Ravasco voltou a Lisboa em 1612, onde se demorou dois Tratados da Terra e da Gente do Brasil, já idoso, mas senhor ainda
anos, ao fim dos quais, em 1614, voltou com a família e portanto com das suas faculdades, e que faleceu dois anos depois, vindo a cons-
o filho para a Baía. É tradição que viveram, ao menos algum tempo, tituir o seu necrológio a própria estreia literária de Vieira.
na Rua da Gameleira. Maria de Azevedo continuou a educação do Ia o noviço em meio da sua provação, quando sucedeu a primeira
filho, que logo prosseguiu os estudos no Colégio da Companhia de invasão e tomada da Baía pelos Holandeses, a 8-9 de Maio de 1624.
Jesus, afeiçoando-se aos mestres; e não tardou que despontasse, com Ocupada a cidade e o Colégio, organizou-se a resistência na Aldeia
a convivência de anos, o desejo de ter a mesma vida que êles, Dos dos Jesuítas do Espírito Santo (Abrantes). Para evitar o estrépito
passos dela deixou Vieira um Diário, hoje perdido, mas que teve das armas, o Noviciado estabeleceu-se em sítio mais recolhido, na
presente André de Barros. Nêle indica Vieira o dia II de Março de Mata, a Aldeia de S. João, e « como as casas dos Nossos, aqui, não
1623 como o do primeiro movimento eficaz do seu espírito para entrar estavam mais que armadas, foi necessário aos Irmãos Noviços, por
na Companhia de Jesus. Sentiu-o, ouvindo pregar o Padre Manuel suas mãos levaram-nas por diante até onde o remédio da necessidade
do Couto, o do Auto de S. Lourenço 2. E um mês depois anota: requeria, e aqui com todo o recolhimento' possível se conservou a
« Aos li de Abril de 1623 me resolvi a ser Religioso, passando ordem do Noviciado» 2.
junto à igreja de Nossa Senhora da Ajuda» 3. Faz lembrar S. João Reconquistou-se a cidade em 1625. Cinco dias depois, concluído
Evangelista, naquele outro Diário, que é o seu Evangelho, deixando já o noviciado, emite Vieira, a 6 de Maio, os votos do biênio ",
nêle a nota pessoal, da hora exacta em que pela primeira vez falou Reorganiza-se logo a vida na cidade e no Colégio. E o jovem
religioso completa os estudos de letras, que no mesmo Colégio ini-
ciara, alguns anos antes, como simples escolar. Bastou-lhe para isso
ano e meio, e parte dêste tempo se deve englobar já com o final do
de Menezes >. - Cf. Dom Romualdo Ant6nio de Seixas, Breve Memória acêrca noviciado.
da naturalidade do Padre António Vieira, na Rev. do Inst. Bras., XIX (1856) 26.
1. Lúcio de Azevedo, História de António Vieira, I, 11-13.
n.
2. Barros, Vida do P. Vieira, 9; Cf. supra, História, 609-611.
------
1. Barros, Vida, 10.
3. Barros, Vida, 594. 2. Cortas de Vieira, I, 22-23.
3. Cartas de Vieira, I, 47; Barros, Vida, 12.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - §2 7
6 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Por esta reconstituição cronológica, vê-se que Vieira, quando se


Pertence a êste ano de 1625 o voto, que fêz, de se dedicar aos
ordenou, tinha já concluído o segundo ano de Teologia Dogmática
índios:
e feito o exame de Teologia Moral.
«De idade de dezassete anos fiz voto de gastar tôda a vida na
Faltavam-lhe dois meses para completar 27 anos.
conversão dos gentios e doutrinar aos novamente convertidos, e para
Depois, nova luta. Desde 16 de Abril a 29 de Maio de 1638,
isso me apliquei às duas línguas do Brasil e Angola, que são os gentios
Maurício de Nassau intentou repetir a façanha holandesa de 1624,
e cristãos boçais daquela Província: e porque para êste ministério
sitiando a Baía. A cidade porém, desta vez, estava prevenida e re-
me não era preciso mais ciência que a doutrina cristã, pedi aos Supe-
sistiu heroicamente. A retirada inglória do Conde foi o maior
riores me tirassem dos estudos». Mas os Superiores não o tiraram;
desastre militar de sua carreira.
pelo contrário, incluindo o Geral, lhe suspenderam. a obrigação do
"Com isso, a Baía exultou. Inútil repetir que na defesa e no contra-
voto, voltando depois Vieira a insistir nêle até o conseguir, indo en-
-ataque tomaram parte os Jesuítas como tôda a gente, aliás. Entre
fim, para as missões do Maranhão 1.
os que melhor se houveram, Vieira, que estava dentro da cidade, é
Vieira iniciou em 1626 a sua carreira de ensino. Durante ela,
expressamente nomeado 1. Quinze dias depois da vitória, na festa de
redigiu o seu primeiro escrito conhecido, que tem a data de 30 de
Santo Antônio, e na igreja do mesmo Santo, Vieira pregou um sermão
Setembro de 1626, Ânua da Província do Brasil, em latim, depois
gratulatório, o seu primeiro grande sermão desta campanha contra
traduzida e retocada por êle próprio, na qual desenvolve admira-
velmente os sucessos de 1624 a 1625, em particular a invasão holandesa as armas da Holanda, todo cheio de extraordinário vigor e beleza
literária 2.
da Baía, em cuja fase final da reconquista gloriosa, êle, como todos
os mais Jesuítas, interveio também pessoalmente 2. Vieira tinha revelado inegualáveis dotes oratórios. Manifestan-
Concluído o magistério, deu-se aos estudos de Filosofia. Diz o do-se agora num momento de entusiasmo patriótico, vitorioso, fir-
Catálogo de Agôsto de 1631: «Antonius Vieira ex Ulysippone civitate, maram-se para sempre os seus créditos; e a oratória iria constituir,
annorum23, firma valetudine, admissus Bahyae anno 1623, studuit e manter, por mais de meio século, o título imediato da sua cele-
linguae latinae annos quatuor cum dimidio, eam docuit annos fere bridade.
tres, nunc dat operam Philosophiae duobus abhinc annis» 3. Prêso mais tarde nos cárceres da Inquisição de Coimbra, Vieira
Tirando o grau de Mestre em Artes, começa a Teologia, orde- evoca, em dois traços, esta época da sua formação. Acusado de se
nando-o de sacerdote, na Baía, o Bispo D. Pedro da Silva. Recebeu meter, nas suas elocubrações escriturísticas, em cavalarias mais altas
ordens maiores no espaço de 15 dias: a 26 de Novembro de 1634, a do que permitiam o seu saber e talento, responde modestamente que
desubdiácono; a 30, a de diácono; e a 10 de Dezembro, a de pres- é verdade, mas que a culpa não é inteiramente sua: «esta culpa,
bítero 4. tiveram em parte meus Prelados, os quais de idade de dezassete anos
me encomendaram as Ânuas da Província, que vão a Roma histo-
riadas na língua latina, e de idade de dezoito anos me fizeram mestre
de Primeira, aonde ditei, comentadas, as tragédias de Séneca, de que
1. Víeira, Obras Inéditas, I, 49.
até então não havia comento; e nos dois anos seguintes comecei um
2. Cartas de Vieira, I, 3-74.
3. Bras. 5, 128.
4. CL Dom Romualdo António de Seixas, Breve Memória na Rev. do I nst. 1. CL Certificado de D. Pedro da Silva, na Baía, 25 de Janeiro de 1639,
Bras., XIX, 32, com os certificados autênticos dos registos diocesanos, e números Arq. Provo Port., Pasta 188 (10).
de ordem, respectivamente, 7, 29, 31. André de Barros (Vida, 18) diz que Vieira 2. Víeira, Sermões, VII, 306; S. L., Derrota de Maurício de Nassaú no cêrco da
recebeu o presbiterato a 13 de Dezembro de 1635, dia de Santa Luzia. Deve haver Baía, em Páginas de História do Brasil, 238-239, e nu Relação Diária do Cêrco da
equívoco no ano e no dia. Mas Santa Luzia bem podia significar, tendo-se orde- Baía de 1638 por Pedra Cadena de Vilhasanti, com notas de Manuel Múrias (Lis-
nado três dias antes, o da missa nova de Vieira, no ano anterior, em 1634. boa 1941) 13-14. CL Pedra Calmon, Por Brasil e por Portugal (S. Paulo 1938) 33.
3
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 2 9
8 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

lou-se arauto do sebastianismo, enfileirando porém não entre os


comentário literal e moral sôbre Josué, e outro sôbre os Cantares de «daquela seita ou desesperação dos que esperavam por EI-Rei D. Se-
Salomão em cinco sentidos; e indo estudar, de idade de vinte anos, bastião, de gloriosa e lamentável memória », mas entre os que, não
no mesmo tempo compus uma Filosofia própria; e passando à Teo- sabendo esperar, «souberam amar, e com muita ventura: que talvez
logia' me consentiram os meus Prelados que não tomasse postita, buscando a um rei morto, se veem a encontrar comum rei vivo ».
e que eu compusesse por mim as matérias, como com efeito compus, E logo também, desde êste primeiro sermão, alude à reconquista das
que estão na minha Província, onde de idade de trinta anos fui eleito ·terras ultramarinas, e à formação do Quinto lmpêrio ...
Mestre de Teologia, que não prossegui por ser mandado a êste Reino A lucidez do seu espírito, o ardor patriótico, a beleza da sua
na ocasião da Restauração dêle» 1. elocução, maravilhou a todos. Quando Vieira desceu do púlpito
estava sagrado o orador da Restauração. Nem tardou que o fôsse
2. - Na Restauração de Portugal, de 1 de Dezembro de 1640, como que oficialmente, nomeando-o depois D. João IV seu pregador.
o Brasil foi de um lealismo absoluto. O Vice-Rei, Marquês de Montal- Com tal aceitação ficou prejudicada a sua volta ao Brasil, para
vão, apressou-se a enviar uma embaixada a Lisboa, ignorando que onde devia tornar concluída a missão gratulatória que o levara a
alguns membros da sua família se comprometeram na causa oposta. Lisboa. Ficando na côrte, pregador régio, amigo e conselheiro de
Como embaixador enviou o seu próprio filho, Fernando de Mas- EI-Rei, ia-se associar durante um decênio a todos os sucessos polí-
carenhas. Nela, que partiu da Baía a 27 de Fevereiro de 1641, fo- ticos do Reino, nos quais Vieira deu sempre provas de dedicação
ram Simão de Vascoricelos, o cronista, e António Vieira, Aquelas sem limites, antepondo-a algumas vezes às obrigações do seu próprio
manifestações de deslealdade da família Mascarenhas, explicam a estado, acarretando emulações, despeitos e reacções que vieram a
hostilidade com que a embaixada foi recebida ao desembarcar em pôr em risco a sua permanência na Companhia, não por deficiência
Peniche, a 28 de Abril. salvando-a o Conde de Atouguia, governa- do seu ânimo, mas por imposições externas dos Superiores. Feliz-
dor da Praça: mente Vieira manteve sempre viva a chama do amor à vocação, e
«Aos 28 de 641 chegamos a Peniche, onde quiseram matar ao D. João IV, intervindo, evitou o desaire não só a Vieira, mas à
Marechal, aos 29 de 641 me quiseram matar e me prenderam; e parti mesma Companhia, que o seria inevitavelmente, a saída dela, de um
para Lisboa aos 30 de 641; cheguei a Lisboa e vi a S. Majestade» 2. homem, que constitue hoje, um dos grandes elementos do seu renome.
Historicamente é esta a primeira prisão de Vieira; a vista, logo Vieira desde 1643 declarou-se abertamente a favor dos Cristãos-
a seguir, de El-Rei D. João IV, quebrou essas cadeias e criou outras, -novos. O caso era melindroso, porque entrava nêle a alçada da In-
de amizade pessoal, indissolúvel, até à morte de António Vieira, pois quisição. Entre a instituição do Santo Ofício e a Companhia de Jesus
permaneceu intacta, e mais viva pela saudade, ainda depois da mor- nunca houve relações de amizade. Mútuo respeito sim, e uma ou
te do Rei Restaurador. outra vez alguma dissidência. E se algum Jesuíta aceitou cargo nela,
Oito meses depois de chegar a Lisboa, Vieira pronunciou, a 1 aliás secundário, foi sempre por imposição de pessoas estranhas à
de Janeiro de 1642, o seu primeiro sermão na Capela Real 3. Reve- Companhia, a quem não era fácil recusar. O Cardeal D. Veríssimo
ordenou fôssem comissários do Santo Ofício os Reitores do Maranhão
e Pará, que dêstes nos ocupamos nêste tômo. Logo no Maranhão em
1. Vleira, Obras inéditas, I (Lisboa 1856) 43. Vieira arredonda aqui os anos, 1688 ficou o Padre Bettendorff, ainda que o Geral sempre reagia
para 20, quando começou os estudos de Filosofia, e talvez os iniciasse já no terceiro desfavoravelmente. O primeiro comissário foi o Padre Manuel de
ano de magistério, dadas as circunstâncias especiais em que êle-próprio diz os re- Lima, que em 1653 chegou com Vieira. Outros ocuparam êsse cargo.
alizou. Oficialmente, segundo o Catálogo, só se começou a contar o tempo da Fi- E como o desempenharam? Diga-o Lúcio de Azevedo com a sua
losofia a partir de 1629.
competência especial nêste assunto de cristãos-novos: «O Santo Ofício
2. Barros, Vida, 20; Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 11; Pôrto Seguro,
HG, l I, 394, e nota de Rodolfo Garcia. tinha seu representante quási sempre algum sócio da Companhia de
3. Barros, Vida, 21.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 2 11
10 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

nação» 1. Trinta anos depois, e ainda por sugestão de Vieira, tratou-se


JesUS. Não se nos depara porém lembrança de qualquer acto de opres-
de favorecer os cristãos-novos para a organização da Companhia de
siva justiça, dêste tribunal. Os homens de nação, raros, ao que se
Comércio das Indias Ocidentais. Votaram contra, a Universidade de
pode coligir, dessa imunidade, viviam ali tranqüilamente, e, com a
Coimbra, o Episcopado, e, nas Côrtes, o Clero e o Povo e, depois
sua petulância habitual, logravam tomar assento nas Câmaras a
de alguma hesitação, a Nobreza. Só a Universidade de Évora, da
par das pessoas nobres e mais qualificadas» 1.
Companhia de Jesus, votou a favor 2.
O estudo sereno do assunto, hoje que se pode falar livremente,
A parte positiva, daquela Proposta de Vieira de 1643, era o desen-
mostra que da parte da Companhia havia reserva respeitosa, jamais
volvimento do comércio e da riqueza nacional. Nela surge, pela pri-
simpatia declarada. Alguns interpretam o facto como efeito de riva-
meira vez em Portugal, a idéia das Companhias de Comércio, idéia
lidades e predomínio no campo religioso. Talvez, tão subti! é a questão.
que seis anos depois havia finalmente de triunfar, na Companhia de
A necessidade de coesão das diversas famílias religiosas impõe a cada
Comércio do Brasil, com proveito para a nação e para a reconquista
uma a obrigação de amar o próprio espírito, que, sendo em tôdas
de Pernambuco.
católico, se manifesta de diversas formas, numa variedade que re-
Mas a Proposta, que devia ficar secreta, publicou-se. E foi um
produz a própria universalidade divina. Aliás é uma lei geral que se
assombro geral, incluindo o de alguns Jesuítas, que temiam compli-
aplica a todos os agrupamentos, a cada paróquia, a cada diocese,
cações com a Inquisição e não achavam bem que Vieira se metesse
a cada instituição, a cada 'universidade ou grupo. Cada qual ama
em assuntos dessa natureza, que reputavam alheios ao seu Instituto.
o que conhece melhor e tem mesmo obrigação de amar mais a sua
Pensou-se em infligir a Vieira algum castigo sério, talvez em impor-lhe
própria instituição, sem que êste amor implique desamor pelas outras
a volta ao Brasil. Atalhou a isso El-Reí, que escreveu ao Provincial:
paróquias ou dioceses ou instituições ou grupos, ainda que possa
«Padre António Mascarenhas: - Eu EI-Rei vos envio muito
haver, pelo paralelismo de actividades ou vizinhança, diferenças ou
saudar. O Padre António Vieira fêz um papel em que me represen-
até oposições. É, foi e será sempre da história, variando simplesmente
sentava alguns meios em ordem à conservação dêste reino; e ainda
o género de grupos. O que importa realmente é que nestas natura-
que foi conveniente recolher-se, por se haver publicado (pôsto que
líssimas emulações e debates, dentro da liberdade que Deus e a Igreja
sem culpa sua) contra o que pedia a importância da matéria e o se-
dá aos seus filhos, se salve sempre a caridade. Não se sa}vou sempre,
grêdo dela, eu me não houve por desservido do seu zêlo; e assim quero
nem se salva ainda hoje, em debates desta natureza. E humano.
que o tenhais entendido, e que me haverei por bem servido de que
Sem mais, pois não discutimos ideias, mas historiamos factos,
por esta causa não padeça vexação, e vo-lo encomendo assim o mais
o facto é que Vieira em 1643, redigiu uma Proposta feita a El-Rei
apertadamente que posso, e encarreguei-lhe fizesse uma Política para
D. João IV, em que lhe representava o miserável estado do Reino e a
o Príncipe: ordenareis que se lhe dê tôda a comodidade necessária
necessidade que tinha de admitir os Judeus mercadores que andavam para esta obra. Escrita em Lisboa a 6 de Setembro de 1644. - Rei» 3.
por diversas partes da Europa.
Aquela Política para o Príncipe, que Vieira nunca escreveu, deve
Convimos que é um escrito ousado. Nada continha porém dire-
ter sido simples pretexto para autorizar Vieira e justificar a sua perma-
ctamente contra o Santo Ofício, apenas se menciona o temor que os
nência em Portugal. E para ainda mais o autorizar, parece que foi
mercadores, que haviam de voltar a Portugal, tinham das culpas
nesta ocasião que D. João IV o nomeou Pregador Régio .
. de que eram acusados ou de virem a ser julgadas em Portugal as
causas da fé. Para dissipar êsses temores, Vieira apelava para os es-
tilos de Itália e do próprio Pontífice. A ousadia de Vieira estava sobre-
tudo em arrostar com o «sentimento por assim dizer unânime da 1. Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 83; Id., História dos Christãos novos
Portugueses (Lisboa 1921) 244-247.
2. Hemani Cidade, Padre Antônio Vieira, I, 129-131.
3. Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 91.
1. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, 175.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I -§ 3 13

12 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

ragens, chegou à Haia a 18 de Abril I. Avistou-se com as comunidades


hebraicas. Mais uma vez o seu espírito se manifestou abertamente
. Vieira continuou pois em Lisboa e a ser consultado, tanto nas
a favor da estada dos Judeus em Portugal e contra os estilos da Inqui-
coisas da guerra como nas da paz, e as ia aconselhando com o seu
sição, que deviam moldar-se pelos processos comuns, civis, tudo às
espírito dúctil, que não se prendia com idéias feitas, nem mesmo com
claras. E alguma vez o disse diante de Fr. António de Serpa, quali-
as suas próprias, e arremetia e clamava, segundo as circunstâncias
ficador do Santo Ofício, que o denunciou depois, a 22 de Outubro
do momento pedissem ou para onde visse mais inclinado o Rei. Apoi-
de 16492•
ava e defendia em público as opiniões que sabia serem as de EI-Rei,
Vieira dispôs favoràvelmente os financeiros israelitas para aju:-
pelo trato pessoal, directo e diuturno com êle, e buscava sempre, nos
darem a causa de Portugal. Todavia o fim da viagem ficou prejudicado,
seus escritos e nos seus sermões, <argumentação tendente a exaltar o
porque o motor secreto dêste movimento na Haia, Gaspar Dias Ferreira,
patriotismo e a inspirar confiança na vitória. Êle era verdadeiramente
foi descoberto, e prêso e faltaram recursos para na própria Haia mover
o tribuna das ocasiões de guerra» I.
os fios do movimento. E o levantamento de Pernambuco fêz sus-
peitar aos Holandeses que a política portuguesa tinha dupla face, e
3. - Entretanto, a questão dos Holandeses no Brasil permanecia
que o levante era obra de agentes de D. João IV.
em aberto e importava dar-lhe solução. El-Rei estava convencido de
Ficando as coisas indecisas na Holanda, D. João IV voltou-se
que Portugal não poderia sustentar luta simultânea com a Espanha
para a França. Para assegurar a independência pátria, o Restaurador
e a Holanda. Convinha acima de tudo garantir a indepêndencia pátria
não hesitaria em abdicar a favor de seu filho; o príncipe D. Teodósio,
e a vitória contra Castela. E seria impossível, sem a paz prévia com a
propondo casamento a Mademoiselle de Montpensier, filhado Duque
Holanda que, de inimiga poderia talvez transformar-se em aliada.
de Orleans. Realizado êle, seriam proclamados reis, sob a regência
Comprar-se Pernambuco, ou se se não pudesse comprar, ceder-se. Asse-
do DuqUE;. D. João IV iria ser Rei do Brasil, que assim se separaria
gurada a independência, Pernambuco, poderia reconquistar-se. . .
de Portugal. António Vieira foi incumbido de propor confidencial-
Tratou-se a princípio da primeira solução. O caso havia de ser venti-
mente êste negócio a Ana de Áustria e Mazarini. Tornou a embarcar
lado em Paris e na Haia, onde era embaixador Francisco de Sousa
em Lisboa a 13 de Agôsto de 1647 com destino ao Havre. Caindo em
Coutinho. Para tratar directamente do caso, e pelo conhecimento que
mãos de corsários, foi conduzido a Douvres. Estêve em Londres. E só
tinha do Brasil, El-Rei enviou como embaixador seu, particular, ao
a 1~ de Outubro chegou a Paris. António Vieira logo falou com Ana
P. António Vieira.
de Austria e Mazarini. O Ministro da França não acreditou na pro-
Antes de ir, fêz Vieira a sua profissão solene de 4 votos em S. Ro-
posta de D. João IV nem que êle estivesse disposto a abdicar, como
que, em mãos de Francisco Valente, no dia 21 de Janeiro de 16462•
realmente não estava ...
Onze dias depois, a 1 de Fevereiro, embarcou em Lisboa. A 8 de
Continuava pois sem solução a questão de Holanda. Tôda ela
Março estava na Rochela, dali seguiu para Paris, e, com várias pa-
consistia em evitar a guerra. Quanto a Pernambuco, ponto nevrálgico
da questão, as soluções então visíveis eram apenas duas: ou compra
I. Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 94. ou entrega. Correspondendo a estas preocupações a convite de El-Rei
2. Lus. 6, 124-125. Há sôbre êste acto da vida de Vieira grande diversidade V·· "
ieira redigiu dois pareceres: Parecer sõbre a compra de Pernambuco
nos autores. Andreoni na sua carta-necrológio, de 20 de Julho de 1697, dá 25 de 3
aos Holandeses, 14 de Março de 1647 ; e, se a compra se não pudesse
. Maio de 1644 e para ela se inclina Lúcio de Azevedo tH. de A. V., 1,87). Os catá-
logos da Provo do Brasil dão 1645 e para esta data se inclina Francisco
efectuar, a entrega: Papel que jêz o Padre Vieira a javor da entrega de
Rodrigues (O P. António Vieira, Contradições e aplausos, na Revista de História,
XI (1922) 89. Por nossa vez não temos dúvida em aceitar o verbete romano, de 1. Barros, Vida, 29.
21 de Janei~o de 1646. Teríamos em todo o caso pedido confirmação, se a guerra 2. Cf. Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 99-100.
actual não impedisse a comunicação com Roma (escrevemos no Rio de Janeiro. 3. Vieira, Obras Várias, I, 157-176.
em 1942). A profissão, em circunstâncias normais devia ter sido emitida em 1640,
17 anos depois da entrada na Companhia.
14 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - §4 15

Pernambuco aos Holandeses 1. Escrito já em fins de 1648, é o célebre remos porém todos estes pormenores, compreensíveis numa biografia
Papel Forte, qualificativo que lhe deu D. João IV, cuja iniciativa autónoma, não em uma História geral. Aliás Lúcio de Azevedo, nesta
muitos atribuem a Vieira sem fundamento. E quási ninguém repara parte, sendo assuntos puramente seculares e políticos, penetrou bem
que o Papel Forte propunha medida transitória de salvação pública, o âmago dêles e os descreve com exactidão e perspicácia.
para assegurar antes de tudo, a independência da cabeça da monarquia, Acrescentamos porém lima observação que nos parece elucidar
sem cuja conservação redundaria inútil tudo o mais; e que na conclu- a tendência profetizante de Vieira. As discussões com os Rabinos de
são, expressamente se reserva «o que agora queríamos fazer aos Holan- Holanda, se despertaram no Jesuíta o desejo de os refutar, e para isso
deses, para tempo mais oportuno, em que não só lhes tornaremos a tomar escreveu o De regno Christi in terris consummato ou Clavis Prophetarum,
o que agora lhes restituímos, mas tudo o que injustamente' possuem nas devem ter influído também para lhe confirmar o gôsto pelas inter-
nossas conquistas» 2. pretações proféticas, entre as quais sobressairiam Esperanças de
De volta da Holanda, Vieira tomou pé em Lisboa a 15 de Outu- Portugal, escrito nas margens do Amazonas, que tão caro lhe iriam
bro de 1648. Esperava-o grave campanha em que teria contra si a custar na Inquisição. Dizemos confirmar, porque já desde 1642 Vieira
Inquisição, os políticos e os próprios Superiores maiores da Companhia. insinuava a doutrina do Quinto Império ...
Vestido como ainda estava à secular, fato de grã escarlate, espada
e bigode (não poderia andar de outra maneira, nos países hereges, 4. - Com isto chegamos a 1649, ano de crise. Os nove anteriores,
Inglaterra e Holanda),· foi falar a El-Rei a Alcântara, Êste traje de tão cheios de controvérsias, negócios públicos, defesa de cristãos-novos,
Vieira constitue uma das denúncias à Inquisição contra êle. Outras e com o incontestável e ininterrupto prestígio da amizade de D. João IV,
denúncias se fizeram das suas actividades e relações com os hebreus tinham concitado contra Vieira muitas invejas, que em alguns casos
de Holanda e das suas polémicas e controvérsias, atrevendo-se um degeneraram em ódio manifesto, como provam as denúncias. A estas
denunciante, Fr. Manuel Alves Carrilho, «a dizer que chegou a ter causas externas veio unir-se outra de carácter interno. Alguns Padres
casamento contratado com uma hebreia rica de Amsterdam ». Comen- da Companhia, alentejanos, cuidaram que a parte sul de Portugal
ta Lúcio de Azevedo: «Calúnia evidente, mas que em suma não era mais poderia constituir, dentro da organização geral da Companhia de
que a imagem das suas imprudências, através do prisma da aversão. Jesus, uma Província, por si só, com o nome de Província do Alentejo.
Não se cuide todavia que oferece Vieira, quanto a costumes, alvo a Manifestaram tal desejo a D. João IV, o qual, como alentejano, abra-
censura. A continência foi sempre virtude altamente prezada dos J e- çou logo a idéia e se revelou protector dela, intransigente. Vieira enfi-
suítas e raras vezes os mais ásperos adversários da Ordem lhes encon- leirou com os Alentejanos. Os Superiores da Província acharam ino-
traram falha nêste particular. A Vieira, comtantos e tão encarniçados portuna a divisão, e a maneira, como a promoviam, irregular. O caso
inimigos, nenhum lhe exprobou jamais acto impuro, a não ser um foi a Roma, e o Padre Geral manifestou-se também contra a divisão.
sicofante sem autoridade no Maranhão, que, chamado à prova, mise- Víeira, mais influente com D. João IV, era o mais visado, e re-
ravelmente se desdisse» 3. caiam sôbre êle acusações de fomentar a intromissão de EI-Rei em
Aludimos a estas denúncias, porque, elas vão explicar, em parte aSSuntos de regime interno da Companhia, da alçada puramente dos
a atitude dos Superiores da Companhia para com Vieira. Não segui- Superiores 1.

1. Víelra, Obras Inêditas, III (Lisboa 1857) 5-59. Sôbre a in\'asão holandesa 1. João Francisco Lisboa escreve que Vieira insinuou a EI-Rei a "divisão
em Pernambuco, e do que nela obraram os Jesuítas, trataremos em Tômo futuro, c multiplicação das diversas províncias da Companhia em Portugal e no Brasil,
quando o prosseguimento 16gico desta hist6ria a êle nos reconduzir. tornando-as independentes umas das outras, talvez na idéia de colocar-se na di-
2. Vieira, Obras Inéditas, 111,59; Cf. Afrânio Peixoto, História do Brasil recçào Suprema de alguma delas, já que para as governar a tôdas enccntraria maí-
or:s obstaculos" (Obras, IV, Vida do Padre Antóllio Vieira (Lisboa 1901) 350).
(Porto 1940) 120.
3. Lúcio de Azevedo, H. de A .V., 139. Joao Lisboa naquele talvez insinua uma falsidade em que Vieira nunca pensou: e
16 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - §4 17

Com esta displicência; iam para Roma informações sôbre o


. procedimento pessoal de Vieira, as suas faltas de observância, e ir:;pli- .:a mercê, que me quiseram fazer e me siginificaram por muitas vezes,
cância em negócios seculares, chegando alguns Padres, a de~uncl.a-lo, tem muitas testemunhas entre os mortos, e pode ser que ainda vivam
à Inquisição, de que trouxera do estrangeiro e guardava consigo hvr~s alguns, que por seu mandato me quiseram persuadir a que a aceitasse,
proibidos. (O facto era exacto, mas Vieira tinha licenç~, sem se sen~lr que também sabem quanto estimo mais o canto da minha cela que
obrigado a publicar pelas esquinas as licenças que tinha, con:o ele qualquer outro lugar dos que mais estima o mundo» 1.
próprio diz, defendendo-se). O P. Geral tomand~ tudo e~ _conjunto, Não querendo Vieira sair da Companhia, nem aceitar mercês
e não esquecendo que a atitude de Vieira, a respeito do: ~nstaos-no.vos, para si, fê-Ias EI-Rei a seus parentes, declarando expressamente que
dificultava as relações da Companhia com o Santo OfiCIO,determinou o fazia «em consideração do cuidado e zêlo, com que o Padre António
despedi~lo, dando ordens apertadas em carta, dos primeiros. m~ses de . Vieira, da Companhia de Jesus, e seu pregador, se empregou sempre
1649, ao Provincial de Portugal, Pedro da Rocha. O Provincial, sa- nas coisas de seu serviço, de que por várias vezes foi encarregado, e
bendo a amizade pessoal de EI-Rei ao P. Vieira, antes de dar nenhum satisfação que em tôdas as ocasiões deu do que se lhe encarregou, e
passo, fêz que El-Rei tivesse conhecimento dessa resoluç~o. D. João Iy assim a vontade com que de presente se dispôs para o serviço da jor-
ordenou se sobrestivesse no assunto; e foi o próprio Rei quem parti- nada a que agora é mandado» 2.
cipou a Vieira a ordem do Geral, recusando-se a tratar do. caso com O novo serviço a que Vieira era agora mandado por D. João IV,
mais ninguém, sentindo-se êle também atingido nessa medida .contra e para o qual embarcou em Lisboa a 8 de Janeiro de 1650 3, era uma
Vieira, cujos motivos, para a despedida, El-Rei considerava serviço seu embaixada a Roma, com dois fins: promover comoções políticas em
e do Reino. , . Nápoles, para «inquietar e divertir consideravelmente o Rei de Cas-
Vieira, que nos seus escritos se viu obrigado, em defes~ propna, tela"; e sondar a possibilidade do casamento do Príncipe D. Teodósio
a baixar a mínudências íntimas da sua vida, não fala nunca deste caso, com a herdeira de Espanha. O primeiro intento devia ser executado
nem do que se passou entre êle e EI-Rei. Todavia numa carta, .de por outrem, que não convinham tais andanças a um Religioso; o se-
Roma, em 1671, aO. Rodrigo de Meneses, tem urna frase que explica gundo, que parecia uma contradição, reavivando a questão ibérica,
o que Andrê de Barros lhe atribue noutra ocasião, mas que deve ser tinha uma cláusula que o justificava aos olhos de EI-Rei e dos que
esta de 1649, pois só desta há documentos positivos de que na Com~ o aconselharam, e do próprio Vieira, ao incumbir-se do negócio, se-
panhia se tratou de o despedir. Barros diz que El-Reí lhe ofer~c.eu gundo aquilode que onde estivesse a capital estaria a preponderância:
uma mitra, por intermédio do seu secretário do Esta~o, e que ~Ielra « Agora; explicou Vieira, me consintam os Portugueses que lhes
respondeu: «Que não tinha Sua Magestade tantas nutras em toda a tire urna espinha da garganta. Porque estão notando a El-Rei de que
sua Monarquia pelas quais êle houvesse de trocar a pobre roupeta da quisesse neste contrato desfazer o que tinha feito e tornar a unir o que
Companhia de Jesus; e que se chegasse a ser tão grande a sua des- tinha desunido. Mas é porque até agora calei uma cláusula do pro-
graça, que a Companhia o despedisse; da parte de fóra de suas p~r~as 1 Iecto, sem a qual eu também não havia de aceitar a comissão. A cláu-
se não apartaria jamais, perseverando em pedir ser outra vez admitido sula é que no tal caso a cabeça da monarquia havia de ser Lisboa;
nela, senão para Religioso, ao menos para servo :Ios que o era~ » 1.
A frase do biógrafo é perfeitamente plausível e a conSideramos 1. Cartas de Vieira, 11, 343.
transposição desta outra de Vieira, autêntica, a D. Rodrigo de Meneses: 2. As mercês eram: ao pai, Crist6vão Vieira Ravasco, «fôro de fidalgo com
mora:\ia ordinária >; ao irmão, Bernardo Vieira Ravasco, que o cargo que tem,
~~r três anos, de Secretário do Estado do Brasil, «o sirva sem limitação de tempo';
pela forma como generaliw para Províncias de Port~ga~ e Brasil, o que ;era sim- a Irmã, D. Maria de Azevedo, «o hábito de Cristo para quem com ela casar, com se-
plesmente dentro de Portugal com a formação da ProV1l1~la~o Alentejo, da mostra tenta mil rêis de renda»: e para os seus três cunhados «lembrança> para futuros
das ínexactídões em que incorre com demasiada frequencta. acrescentamentos: Portaria de 17 de Dezembro de 1694, Lúcio de Azevedo, H. de
1. Barros, Vida, 25. A. V.• I. 173-174.
3. Lúcio de Azev'edo, H. de A. V., I, 175.
18 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 4 19

e dêste modo se conseguia para o nosso partido a segurança, e para


o govêrno da monarquia a emenda» 1. sião de mais sentimento, porque o tinha mostrado muito com o aviso
Ao Duque do Infantado, embaixador de Castela em Roma, não que se lhe deu de Nosso Reverendo Padre Geral, cuja carta li ao
sorriu o projecto e mandou notificar ao P. Geral, que fizesse sair de Padre João Nunes para que pudesse praticar a Sua Majestade quão
Roma o P. António Vieira, senão que o mandaria assassinar. Já de apertada vinha esta ordem, como fêz; o que eu não pude fazer em
outras vezes os representantes portugueses em Roma se tiveram que pessoa por Sua Majestade me não dar licença para lhe falar. Dizem-me
defender com armas na mão de assaltos partidos da Embaixada de que o Padre Vieira está muito arrependido de se meter nestas coisas
Espanha. Vieira que nem sequer usava já o seu espadim de gentil- ~a divi,são e.que es~á com grandes propósitos de se retirar de negócios;
-homem como nos países protestantes (em Roma bastava-lhe a sua ele esta mui acreditado nesta terra em matéria de pulpito. Sua Ma-
roupeta), retirou-se nesse mesmo ano de 1650, e nisso ficou a embai- jestade lhe é muito afeiçoado; quando fala comigo se mostra mui
xada 2. sujeito e assim se deve mostrar lá a Sua Paternidade. Se se pudesse
Em Roma teve o P. Vieira ocasião de falar ao Geral sôbre a sua ganhar êste sujeito, seria bom. Vossa Paternidade julgará o que mais
situação na Companhia. Não nos ficaram ecos alguns do que se tratou. convem ... Vai também o P. Luiz Pessoa, por Sua Majestade me
Nas cartas dos Superiores, de Lisboa para o Geral, há alguns ante- mandar dizer que era necessário para acompanhar o P. António
riores, mas já de época em que o ProVincial achava relutância em Vieira; devia ser pelo mesmo Padre Vieira o pedir. Quando acabo de
EI-Rei e mesmo já depois que o soberano determinara enviâ-lo a Roma. escrever esta, são já 31 de Dezembro »1...
Escreve o Provincial, Pedro da Rocha, a 31 de Dezembro de 1649: Denotando menos simpatia é a carta do P. António Sarradas
«a resposta que tive de Sua Majestade acêrca do que lhe mandei Prcpósito da Casa de S. Roque, ao P. Nuno da Cunha, Assistente
dizer do Padre António Vieira haver de buscar Religião, foi que sobres- de Portugal em Roma:
tivesse e suspendesse a coisa, e que êle me mandaria resposta; não ma « Sôbre o Padre Vieira deve escrever largo o Padre Provincial

mandando, a procurei pelo P. João Nunes, confessor da Rainha nossa as razões que houve para se não executar o que Sua Paternidade
senhora, porém atêgora não pude alcançar outra resposta. O Padre ordenava~ e o que se fêz com EI-Rei e EI-Rei com o P. João Nunes.
António Vieira mandei chamar outra vez, sabendo que já tinha no- O certo e que o respeito de Sua Majestade sobresteve no tempo
tícia, por meio de Sua Majestade, da ordem que havia em buscar da execução. E esta lhe causou agora o dar-se-lhe o aviso, que se lhe .
Religião, e lhe disse que sua Paternidade sabia por via de Sua Majes- deu, para que Sua Majestade soubesse o estado do Padre e visse se
tade a ordem que havia de Roma, que eu não executava conforme o ~he;stava bem ir êle a seus negócios. Porém Sua Majestade cuida que
0
que sua Majestade me mandava dizer que suspendesse, mas que o ele e o 1 homem do mundo, e um dia dêstes o teve no Conselho de
avisava para que tivesse notícia de tudo, e depois se não achasse en- Estado, pôsto que se diz não votou. Dizem mais que Sua Majestade
ganado, pois ia a Roma aos negócios a que Sua Majestade o mandava. lhe ofereceu por vezes que saísse da Companhia e lhe faria tantos e
A isto me respondeu que êle não queria saber nada, e que não tinha quantos, e agora lhe deu grandes despachos para seu pai, irmãos e
culpas, e que obrasse cá como me parecesse justiça. Como Sua Ma- cunhados etc.; porém que o Padre não quer mais que viver e morrer
jestade me tinha mandado suspendesse a coisa, pareceu que não devia ~a Companhia. Mais dizem que vai muito arrependido de se ter me-
proceder mais por diante, para que Sua Majestade não tivesse oca- tido nesta's diIVIS0es,mas
rn;
. - que não se há-de meter mais, que nisso o

1. Vieira, Sermões (ed, princeps) XI, 493.


2. Cf. "Instrução que deu EI-Rei D. João 40 ao P. António Vieira para seguir
---et ia Paulo da Costa seu mestre, que Deus já levou 2. • . Também

~ I. Gesú, Maço 52, cf. Francisco Rodrigues, O P. António


çoes e aplausos, na Reu. de História, XI (1922) 89.91.
Vieira, Contradi.
nos negócios a que foi a Roma, 11 de Dezembro de 1649" e "Carta de D. João 4°
para o P. Antônio Vieira, de 16 de Abril de 1650", BNL, fg. 1461, 98v-106v, em _ 2. Do mestre de Vieira diz o Catálogo de 1646, o último em que aparece
entao
, e m L'ISbo a: "P . P au Io da Costa (sênior), do Rio de Janeiro 50 anos boa '
Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 372-382; Barros, Vida, 43.
.~ e. Entrou na B' ' ,
ala em 617. Estudou Latinidade 3 anos, e 3 Filosofia em que
20 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 5 21

dizem que se não há de meter mais nos negócios dos cristãos-novos


com o fisco contra a Inquisição. Queira Deus que assim seja, e que 5. - Antes, porém, de o estudarmos de perto na Missão, como
nos não ganhe mais ódio com êste Santo Tribunal do que nos tem objecto mais directo da nossa história, recopilemos, com o próprio
ganhado, que foi grande» 1••• Vieira, os rasgos mais salientes da sua actividade política e diplomática.
.A alusão final aos cristãos-novos e ao ódio da Inquisição pro- Víeíra nem sempre viu coroados de êxito os negócios de que o
vinha de que êsse mesmo ano de 1649 foi assinalado pelo maior triun- encarregaram. E damos graças a Deus! Alguns, se no momento pa-
fo de Vieira na sua carreira política: a 6 de Fevereiro de 1649 criou-se reciam oportunos, as circunstâncias revelaram que houve outros me-
a Companhia de Comércio, que Vieira preconizara anos antes; e, para lhores, como o caso de Pernambuco; mas há quem exagere, negando-
ela se organizar, no mesmo Alvarâ, se isentavam do confisco os cris- lhe qualquer êxito. Vieira em defesa própria enumera alguns dos seus
tãos-novos 2. A Companhia do Comércio prestou grandes serviços e serviços à Pátria. Abstraindo do encarecimento próprio de quem se
ajudou à reconquista de Pernambuco; a questão dos cristãos-novos defende, ainda nêles fica muito de positivo. Escreve em 1689 ao Conde
ainda deu ocasião a debates. O ajuste de contas da Inquisição com de Ericeira:
Vieira ficou adiado para quando lhe faltasse o apóio do Rei Restau- Excelentíssimo Senhor: - Como religioso, e também sem êste
rador ... respeito, antes quero padecer com silêncio, que defender-me com apo-
O ano de 1649, que foi para Vieira de crise na sua vida interna logias; contudo, como na carta que Vossa Excelência me fêz mercê
da Companhia, marca na sua vida política, o apogeu; a ida a Roma, escrever em 3 de Abril de 1678, entre as outras excelentes virtudes
resolvida nesse ano e realizada no seguinte, é como o seu epílogo. que nela venero, como aquela que Vossa Excelência chama sinceridade,
Tudo o mais nessa matéria, nos anos seguintes são meros episódios. me ordena Vossa Excelência diga o de que poderia estar queixoso na
E com êle se pode dar por terminada a carreira diplomática de Vieira. História de Portugal Restaurado, respondendo com a mesma since-
Como se sabe o século XVI I foi o da criação da diplomacia no sen- ridade, digo que não pude deixar de estranhar na dita História a
tido moderno. Na contribuição portuguesa para êsse movimento, avul- folhas 633, as palavras seguintes:
ta o nome do P. António Vieira. Fechada a carreira, ia seguir novo «E para que os negócios pudessem tomar melhor forma, depois de
rumo a sua vida. É ainda dêsse ano, célebre para Vieira, a Carta Régia várias conferências que houve entre os maiores ministros, mandou S. M.
ao Provincial do Brasil, que envie missionários para o Maranhão, a França o Padre António Vieira, da Companhia de Jesus, sujeito
onde os únicos três que lá estavam, tinham sido trucidados pelos em que concorriam tõdas as partes necessárias para ser contado pelo
Índios 3. Talvez o P. Vieira pensasse já um instante que, em vez de maior pregador do seu tempo: porém, como o seu juizo era superior, e
ir à Embaixada de Roma, lhe conviesse mais ir para a Missão. En- não igual, aos negócios, muitas vezes se lhe desvaneceram, por querer
tretanto, demorou-se tanto o envio de missionários do Brasil, que tratá-los mais subtilmenie do que os compreendiam os principes e mi-
havia de coincidir com a sua própria ida. .nistros com quem comunicou muitos de grande importância».
A Primeiramente admirei nesta sentença não ter matéria alguma
sobre que caísse; porque, se precedera a narração de algum negócio
é Mestre, Teolcgia mais de 3. Ensinou Humanidades 3 anos, outros tantos Filo-
proposto por mim, que El-Reí e os seus ministros não percebessem,
sofia, e Teologia mais de dois. Foi s6cio do mestre de noviços cêrca de um ano.
Sabe a língua brasílica. Professo de 4 votos desde 638. Prêgador >. Lê-se à margem: ou quando menos se tivesse desvanecido (ainda que não bastava ser
«Procuratura em Lisboa> (Bras. 5, 166v). Houve outro P. Paulo da Costa (J únior) um para se dizer muitas vezes e para que a proposição fôsse universal),
também procurador em Lisboa e que ali chegou em 1659 (Bett., Crônica, 150). dêste caso se poderia tomar ocasião para se estender a muitos o que
1. Gesú, Carta de 30 de Dezembro de 1649, em Francisco Rodrigues, op, cito se afirma. Mas ê certo que Vossa Senhoria, nêle foi informado por
2. J. J. de Andrade e Silva, Collecção Chronolôgica da Legislação Portuguesa.
VIII, 27-29; Rodolfo Garcia em HG., 11,201; Pedro Calmon, História do Brasil,
~u:m não sabia, nem soube, nem podia saber, o motivo por que El-
e! me mandou naquela ocasião a França, e daí a Holanda.
I I, 243.
3. Cf. Morais, História, 238-239. O fundamento e fim, por que Sua Majestade me mandou a estas
duas côrtes, foi porque não estava satisfeito dos avisos pouco coe-
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 5 23
22 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

rentes, que lhe faziam os dois embaixadores de França e Holanda, igualmente efectivo, não só foi abraçada com a mesma condição, se-
e quis que eu, em uma e outra parte, me informasse do estado de não com outras muito mais largas, consultadas e aprovadas pelos le-
nossas coisas com tôda a certeza, sinceridade e desengano, o que 'os trados mais doutos do Reino.
embaixadores não faziam, querendo, com bom zêlo, antes agradar Assim que êste negócio se não desvaneceu, e sõmente tardou
que entristecer, que era a moeda que então corria, tão falsa como em se aceitar, até que a experiência desenganou aos ministros, que
perigosa. De onde também se convence que a minha jornada não ao princípio por ventura o não capacitaram. Quanta fôsse a uti-
foi tratada em conferência dos ministros, como acima se diz, pois lidade e eficácia dêle bem o mostrou a Companhia Ocidental, a qual
Sua Majestade não comunicou o seu intento a outra pessoa mais foi trazendo sempre do Brasil o que bastou para sustentar a guerra
que a mim; e, como não levei a meu cargo negócio algum mais que de CasteIa, conservar o Reino, restaurar Pernambuco, e ainda acudir
a dita informação, a qual sómente fiz com as cautelas necessárias, e com prontos e grandes cabedais às ocorrências de maior importância.
logo tornei para Portugal a informar de bôca a Sua Majestade: sôbre E, se juntamente se ajuntara e fizera a Companhia Oriental,
que desvanecimento dos meus negócios podia caber aquela proposição não chegara a Índia ao estado em que hoje a temos, tão desenganada
universal, metida, como ali se vê, entre os três navios do Varejão porém da utilidade e necessidade dêste mesmo meio, que agora em
mandados a França, e a partida do Duque de Guisa para Nápoles? Portugal e na mesma Índia se trata dêle. E, para que se veja quão
Supôsto, pois, que nem dêste lugar, nem de algum outro da mesma sólido e fundamental é e foi sempre êste meio, não deixarei de referir
Hisiôria consta que eu propusesse negócio que se me desvanecesse, aqui o que me escreveu o Padre João de Matos, Assistente das Pro-
há-de me dar licença Vossa Excelência para que, discorrendo por víncias de Portugal em Roma. Chegou lá o dito papel, e diz êle que
êles, demonstre o contrário. lendo-o os políticos romanos disseram: N6s aiêgora cuidávamos que
O primeiro negócio que propus a Sua Majestade, pouco depois Portugal se não podia conservar; mas, pois êle tem homens que sabem
da sua feliz aclamação e restauração, foi: que em Portugal, à imitação excogiiar semelhantes arbítrios, não duvidamos da sua conservação.
de Holanda, se levantassem duas companhias mercantis, uma oriental, E êste é o primeiro negócio meu, ou proposto por mim, que Vossa
e outra ocidental, para que, sem empenho algum da real fazenda, Excelência julgará se merece o nome de desvanecido.
por meio da primeira se conservasse o comércio da Índia, e por meio O segundo negócio que pratiquei a Sua Majestade foi que man-
da segunda o do Brasil, trazendo ambas em suas armadas, defendido dasse passar as drogas da Índia ao Brasil, referindo como nêle nasciam
dos holandeses, o que êles nos tomavam, e bastaria a sustentar a e se davam igualmente, e EI-Rei D. Manuel as mandara arrancar
guerra contra Castela. A isto se ajuntava que, como as nossas com- sob pena de morte, para conservar a Índia, como com efeito se ar-
panhias ficavam mais perto de uma e outra conquista, seriam me- rancaram tôdas, ficando sõmente o gengibre, do qual se disse discre-
nores os gastos seus e maiores os lucros,.os quais naturalmente cha- tamente que escapara por se meter pela terra dentro, como raiz que é.
mariam e trariam a Portugal o dinheiro mercantil de tôdas as nações Consistia a utilidade dêste meio em que, tendo nós no Brasil as ditas
e muito particularmente dos Portugueses, que em Holanda estavam drogas, e sendo a condução delas tanto mais breve e mais fácil, as
muito interessados nas companhias, e com Castela tinham todos os podíamos dar muito mais baratas que os holandeses, com que os
assentos. E, porque na dita proposta se dizia que o dinheiro aplicado ficávamos destruindo na Índia. Respondeu El-Rei: Que lhe parecia
às companhias de Portugal estivesse isento do fisco (porquanto de muito bem o arbítrio, e que o tivéssemos em segrêdo até seu tempo, pelos
outra maneira nem os mercadores estrangeiros nem os do mesmo embaraços com que de presente se achava.
Reino, que o trazem divertido por outras partes, o queriam meter Estando eu em Roma, me escreveu Duarte Ribeiro de Paris , I

nas nossas companhias sem a dita condição ou segurança), esta con- que tivera carta de D. Francisco de Meio, na qual lhe referia, dizer
dição foi causa de que o Santo Ofício proíbisse o papel da proposta, El-Rei de Inglaterra que só seu cunhado, sem fazer guerra aos ho-
pôsto que sem nome, e que ela por então não fôsse aceitada. Porém, landeses, os podia destruir"; mas que não descobriria o modo, nem
depois que os apertos da guerra mostraram que não havia outro meio D. Francisco nem êle o sabiam conjecturar; que, se a mim me ocor-
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TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 5 25
24 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Brasil se tinha comprado muito barato, e em Lisboa se vendia por


resse O avisasse. Avisei-lhe o sobredito meio, e êle o representou a subidíssimo preço; e, pagando cada arroba um tostão ou seis vintens,
Sua 'Majestade, em um papel particular, no qual ajuntou a minha bastaria para fazer os trezentos mil cruzados. Disse-me El-Rei que
car ta , e está também esta inserta no regimento do Provedor-mor lhe pusesse aquilo tudo em um papel, sem lábia, que foi o têrmo de
da fazenda desta Baía, a quem Sua Majestade encarecidamente en- que usou Sua Majestade; e, fazendo-o eu assim, me disse de aí a
carregou a planta das ditas drogas, e elas, encomendadas com o mesmo poucos dias que, mandando consultar o dito papel, responderam os
apêrto aos Vice-Reis e Governadores da Índia, ~e vê~ t:azendo e~ ministros que aquêle negócio estava muito crú. O meu intento era
tôdas as naus, plantadas e regadas, com que ja hoje ha no Brasil que, vindo as fragatas de Holanda, tivesse Sua Majestade duas ar-
grande número de arvores de c~nela, com~ t.ambém algu~as de pi- madas, uma que ficasse em Portugal, e outra que fôsse socorrer a
menta. E êste é o segundo negocio ou arbítrio que tambem tardou, Baía; e não se passaram seis meses, quando EI-Rei muito de madru-
mas não se desvaneceu, sendo tão pouco subtil que o entendem aqui gada me mandou chamar de Carcavelos, onde estava convalescente,
os cafres, e o exercitam com a enxada na mão. a Alcãntara. Fui, e as palavras com que Sua Majestade me recebeu,
Quando os franceses tomaram Dunquerque, cantou-se o Te-~eum foram: <Sois profeta; ontem à noite chegou caravela da Baía com
laudamus em a nossa Capela Real; e eu, entrando no Paço, VI que um. Padre da Companhia, chamado Filipe Franco, e traz por novas
iam saindo pela galé todos os presidentes e ministros depois de bei- ficar Segismundo fortificado em T aparica. Que vos parece que fa-
jarem a mão a Sua Majestade; então cheguei eu, e disse a Sua Ma- çamos ? » Respondi: «O remédio, senhor, é muito fácil. Não disseram
jestade: « Agora, soube, senhor, que todos beijaram a mão a V~~a os ministros a Vossa Majestade que aquêle negócio era muito cru?
Majestade pela tomada de Dunquerque, do que eu pel? contr~no Pois os que então o acharam crú cozam-no agora». Era mandado
dou a Vossa Majestade o pêsame », Perguntou-me EI-Rel porque, e chamar o Conselho de Estado; e, porque não havia de acabar senão
respondi: « Porque os holandeses atêgora sustentavam uma armada de noite, disse Sua Majestade que me recolhesse à quinta, e tornasse
defronte de Dunquerque, para assegurarem a passagem do canal aos ao outro dia. Tornei, e soube que todo o Conselho tinha representado
seus navios; e como sendo confederados de França, cessa êste temor, a importância de ser socorrida a Baía, e para isso eram necessários
desocupada de ali a armada a mandarão sem dúv.ida ao Br~sil, com? perto de trezentos mil cruzados, mas que os não havia, nem ocorria
antes de partir de Amsterdam me constou desejavam muito; e SI- meio algum de os poder haver. Isto me disse Sua Majestade, e eu
gismundo, que segunda vez governa Pernambuco, fará agora o q~e respondi como indignado: «Basta, senhor, que a um rei de Portugal
já no tempo de Diogo Luiz de Oliveira prometia, e é que se ~avla hão-de dizer seus ministros que não há meio para .haver trezentos
de fazer senhor da Baía, sem lhe custar um copo de sangue, Impe- mil cruzados com que acudir ao Brasil, que é tudo quanto temos!
dindo os mantimentos com os seus navios». Ora eu com esta roupeta remendada espero em Deus que hoje hei-de
E que vos parece que façamos ?- disse El-Rei.- « Quê, senhor? dar a Vossa Majestade tôda esta quantia».
Que em Amsterdam se oferecia, por meio de Jeróni~o Nunes 1, um Parti logo para Lisboa, escrevi um escrito a Duarte da Silva, a
holandês muito poderoso a dar quinze fragatas de tnnta peças, for- quem tinha conhecido mercador na Baía, representei-lhe a perda do
necidas de todo o necessário e postas em Lisboa até Março, por vinte Reino e do comércio, o apêrto e necessidade da Fazenda Real, e quanto
mil cruzados cada uma, que fôra o preço da fragata « Fortuna» que Sua Majestade estimaria que seus vassalos o socorressem nesta oca-
veio a Portugal; e tudo vinha a importar trezentos mil cruzados, e sião com trezentos mil cruzados, que eram necessários, dos quais
que esta quantia se podia tirar facilmente, lançando Sua Majestade se .embolsariam em um tributo de tostão ou seis vintens em cada
um leve tributo sôbre a frota, que poucos dias antes tinha chegado, arroba de açúcar do mesmo Brasil. Respondeu Duarte da Silva que
opulentíssima de mais de quarenta mil caixas de açúcar, o qual no o negócio era tão grande que o não podia tomar só sôbre si; mas que
bUscaria e falaria a algum amigo, e que pelas duas horas me traria
I. J er6nimo Nunes da Costa, judeu, agente do Govêrno Português, - anota a resposta a Santo Antão. Assim o fêz, .trazendo consigo a um fulano
Lúcio de Azevedo.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 5 27
26 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

que ela, são trinta as que deram escolta à mesma fragata e às duas
Rodrigues Marques, e ambos prometeram tomar o assento dos tre- naus da Índia.
zentos mil cruzados. Levei-os a EI-Rei, que lhes agradeceu muito Muitos outros exemplos pudera juntar aqui de propostas minhas
aquêle serviço, dizendo que tivessem segrêdo até Ihes mandar falar não desvanecidas; mas, porque não basta serem muitas para provar
por seus ministros. a coartada da proposição universal de Vossa Excelência é obrigado
Tornou naquela tarde o Conselho de Estado com as mesmas Vossa Excelência a me dizer algum negócio meu, ou aconselhado por
impossibilidades do dia antecedente; e nesta suspensão disse Sua mim, que se desvanecesse. Já estou vendo que Vossa Excelência com
Majestade ao Conde de Odemira e ao Secretário de Estado Pedro a voz popular, me há-de perfilhar a entrega de Pernambuco, que
Vieira, que fôssem a Lisboa tentear alguns mercadores, e que da também achei na bôca e conceito de Sua Majestade, que Deus guarde,
sua parte falassem a Duarte da Silva, e ao sobredito fulano Rodrigues quando me falou nisso. Respondo a Vossa Excelência o que respondi
Marques, os quais responderam o que não esperavam os dois mi- então a Sua Majestade, e é: que êste arbítrio ou meio de concertar
nistros, e às carreiras vieram trazer a nova a S. Majestade, dizendo a paz com os holandeses não foi meu, senão do senhor rei D. João IV,
todos os do Conselho de Estado que eram dignos de que Sua Ma- que' está no céu, e do seu Conselho de Estado. E como Sua Majestade,
jestade lhes mandasse muito agradecer um tão singular serviço. Re- que Deus guarde, me instasse, dizendo: «António Vieira, não pode
colheu-se EI-Rei com a Rainha, que se achou no Conselho, e me fêz provar isso» Respondi..« Sim, posso, e com três testemunhas as mais
mercê depois contar lhe dissera: «Eles querem que agradeça eu o autênticas. Vivo está Pedro Vieira, que então era Secretário de Estado,
negócio ao Conde e a Pedro Vieira, e António Vieira, é que o fêz 1. vivo F eliciano Dourado, Secretário da Embaixada de Holanda, e
Agora estimara ouvir de Vossa Excelência quem teve o juizo sobretudo vivas as mesmas ordens, que foram a Francisco de Sousa
igual a êste negócio, se quem previu o perigo, apontou o remédio e o Coutlnho, e haviam de ficar registadas na secretaria, de onde Vossa
executou, ou os primeiros que o não quiseram reconhecer, ou os úl- Majestade as pode mandar ver, e perguntar aos dois secretários a
timos que o não souberam remediar. Mas isto sucede muitas vezes, verdade do que digo».
quando uns são os que aconselham os negócios, e outros os que os Foi o caso da maneira seguinte: Mandou-me S. Majestade, que
executam; e por isso êste se não desvaneceu. Deus haja, a Munster, para dar a D. Luiz de Portugal, eleito em-
Na véspera de ·S. João, estando EI-Rei em Alcântara, disse eu baixador .daquele Congresso, as notícias que lhe' podiam faltar das
a Sua Majestade que lhe havia de inculcar uma festa, com que ma- coisas do Reino, e êle consultar e deliberar comigo as resoluções.
gnificamente celebrasse a noite do seu santo. E, perguntando-me Estava eu embarcado em uma nau inglesa em Paço de Arcos,
qual, respondi que com trinta e nove fogueiras, que tantas eram onde ela se deteve, esperando vento seis ou sete dias; nêste tempo
as caravelas que tinha contado, embarcando-me no Cais da Pedra chegou navio de Holanda com cartas do Embaixador, em que dizia
até Alcântara. - «As caravelas, senhor », são escolas de fugir, e de estavam tenazmente resolutos os holandeses a não concluirem a paz
fazer cobardes os homens do mar, e de entregar aos inimigos do pri- sem as três condições seguintes: que se lhes havia de entregar Per-
meiro tiro, a substância do Brasil. Proiba Vossa Majestade as cara- nambuco, isto é, a campanha, porque êles tinham os portos e as for-
velas, e mande que em seu lugar naveguem os Portugueses em naus talezas; que pelos gastos das armadas, que os rebeldes lhes tinham
grandes e bem artilhadas, as quais pelo contrário serão escolas em obrigado a fazer, se lhes pagasse uma grande quantidade de tonéis
que as armas de Vossa Majestade terão tão valentes soldados no de ouro, que é a frase do país; que para caução de outra vez se não
mar como na terra». rebelarem se lhes desse uma cidadela na Baía, presidiada por êles.
Este foi o consêlho ou negócio, o qual se se desvaneceu ou não, se Fez-se Conselho de Estado, e resolveu êste: que Pernambuco se
está bem vendo hoje neste pôrto da Baía, onde o combói consta de entregaria; que para os gastos se lhes dariam trezentos mil cruzados
uma só fragata pequena, e as naus mercantis, quási tôdas maiores de contado; que a cidadela se lhes entregaria também, mas não na
Baía, senão em S. João da Foz, da cidade do Pôrto,
1. Cf. Pôrto Seguro, HG, 111, 56.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 5 29
28 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

benignidade e grandeza aceitou bem S. Majestade, não calando os


Esta ordem se despachou logo ao embaixador, a qual chegou a motivos daquela mudança.
Holanda muito antes que eu lá chegasse por Inglaterra. Assim que Tinha chegado pouco antes a Lisboa um Francisco Ferreira
neste negócio nem eu tive parte em Lisboa, nem em Holanda, ou Rebelo, sobrinho de Gaspar Dias [FerreiraJ. o qual, com novas pro-
detido em Paço de Arcos ou navegando na mesma nau inglesa. Che- posições e esperanças contrárias ao que em Holanda. se tra,:ava;
gando a Holanda não teve efeito a embaixada e partida para Munster, fundadas em razões aparentes e feitas ao sabor dos OUVidos,nao so
e entre o Embaixador Francisco de Sousa Coutinho, o Secretário tinham alvoroçado o povo, mas persuadido a muitos conselheiros,
Feliciano Dourado, e eu se consultou o modo com que se havia de ainda de Estado, a quem informava e dizia que se arrependessem.
proceder nas execuções das ordens de Sua Majestade, e se assentou: do que' tinham votado. Era lástima que alguns dêles soubessem tão
quanto à cidadela, que êste ponto se calasse totalmente, por ser menos
pouco de Holanda e Pernambuco, que, por ouvirem falar no Arrecif~,
decoroso; quanto à satisfação dos gastos, que se prometessem tre-
diziam que tínhamos reduzidos os holandeses a um penhasco, domi-
zentos mil cruzados, não em dinheiro de contado, mas pagos em dez
nando actualmente êstes tôdas as costas do mar com dezassete for-
anos na Baía em açúcar, que êles navegariam nas suas naus; e, pois
talezas.
a utilidade era do Brasil, parecia justo que também êle concorresse;
Só El-Rei, firme na sua resolução, se fundava com a madu-
quanto à entrega de Pernambuco, que os moradores daquelas terras,
reza verdadeiramente Real do seu juízo em que a paz, com os holandeses
a que êles chamavam rebeldes, não podiam ficar sujeitos à sua vin-
era totalmente necessária e a guerra manifestamente impossível. A isto
gança, e que a todos haviam de dar liberdade para com seus escravos
mesmo mandou Sua Majestade que fizesse eu um papel, o qual
e fábricas, ou por mar ou por terra, se poderem retirar.
fiz, reduzindo ambas as 'proposições de EI-Rei a três razões muito
Onde se deve advertir que nesta circunstância tão justa, e que
breves, que foram estas. - Primeira: se Castela e Portugal juntos
se não podia negar, de tal modo dávamos Pernambuco aos holandeses, não puderam prevalecer contra Holanda, como poderá Portugal só
que juntamente lhe o ficávamos tirando; porque êles nunca tiveram prevalecer contra Holanda e Castela? Segunda: os holandeses hoje
indústria para tratar negros, nem lavouras ou engenhos de açúcar, têm onze mil navios de gávea, e duzentos e cincoenta mil homens
e sem os lavradores portugueses nenhuma utilidade podiam tirar marinheiros; contemos os nossos marinheiros e os nossos navios, e
daquela terra, antes fazer grandíssimos gastos, de sustentar tantas vejamos se podemos resistir aos holandeses, que em todos os mares
fortalezas, com que se resolveriam. a no-las vender fácilmente. E, por das quatro partes do mundo nos fazem e farão guerra. Terceira:
outra parte, passando-se os moradores pernambucanos com as suas os Conselheiros de Estado de Castela aconselham ao seu rei que com
fábricas à Baía, onde não faltavam iguais e melhores terras, o todo o empenho impida a paz de Holanda com Portugal, e assim o
mesmo Pernambuco, que deixávamos em sete graus, o teríamos fazem seus embaixadores com grande soma de dinheiro; será logo
em doze. bem que os conselheiros portugueses aconselhem a EI-Rei de Por-
Em quanto isto se tratava na côrte de Haia, recebi maço de tugal, para se conservar, o que os ministros de Castela aconselham
EI-Rei, no qual vinha uma carta, em que sua Majestade mandava para o destruir?
retirar a Francisco de Sousa Coutinho, e urna patente em que orde- Ninguém houve, então, nem até hoje, que respondesse a estas
nava ficasse eu com os negócios da Embaixada. A forma e sobres- três proposições, e contudo se não deixavam convencer delas a
crito para mim, e não para o Embaixador, lhe deu grande cuidado; maior parte dos que as liam; porque a Providência Divina deter-
o qual eu porém fiz desvanecer, e disfarcei, não lhe dando a sua carta, minava fazer em Pernambuco um milagre, que ninguém imaginou
com dizer que tivera ordem de Sua Majestade para tornar a Portugal; e todos reconheceram por tal. Mas êste mesmo milagre prova quão
e, por estarem navios prontos em o pôrto de Amsterdam, me despedi, certas e verdadeiras eram aquelas razões humanas, e quão sólidas e
e fui embarcar dentro de duas horas. invencÍveis naturalmente, pois só a omnipotência obrando mila-
A Sua Majestade representei que não usara da patente, porque grosamente as pôde vencer.
aquêles negócios não eram conformes ao meu hábito, escusa que por
30 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I -§ 5 31

Ficando por êste modo desvanecida a entrega de Pernambuco, notícia não chegou a Vossa Excelência, para que o Potosi não fôsse
ainda a proposição de Vossa Excelência não fica verificada; porque uma riquíssima prova dos meus negócios desvanecidos 1.
êste negócio não foi meu, senão resoluto e mandado expressamente Mas, deixando de acudir por mim, quero acudir pelo juízo dos
por Sua Majestade nas suas ordens; e no papel que Sua Majestade príncipes e ministros, que Vossa Excelência afirma não percebiam
me mandou fazer só fui relator das forçosas razões que êle tivera as subtilezas dos meus negócios. Se EI-Rei, D. João, que era Príncipe,
para isso, assim como Vossa Excelência não é o autor das acções os não percebia, como me encarregava os seus na forma que acabo
alheias, que refere na sua história. de referir? E, se êle e seus ministros me não percebiam em português,
E, para que a Vossa Excelência conste quão pouco inclinado como me mandavam patente para todos os dos holandeses, e a
fui a que nem um só palmo de terra déssemos aos holandeses, refe- Munster para os de todas as nações?
rirei o que passou entre mim e o Embaixador Francisco de Sousa De Roma veio aviso de Manuel Álvares Carrilho, enviado de Ná-
Coutinho. Estando êle com os Estados em Conferência, a qual os poles depois de o restaurarem os castelhanos, que aquêle reino se
Estados vinham fazer a sua casa, levantou-se da mesma Conferência, queria entregar a El-rei de Portugal. Se a mim me não entendiam,
e muito alegre nos veio dizer a Feliciano Dourado e a mim: «J á tenho como me mandou El-reí a Roma com poderes de examinar êste
concluída a paz». E. perguntando-Ihe eu como, respondeu que lar- negócio, e o resolver por mim só, e se despenderem por ordem minha
gando aos holandeses até o Rio S. Francisco. Ao que eu disse: «Bem seiscentos mil cruzados, que lá tinha Sua Majestade?
parvos são os holandeses em mandarem armadas ao Brasil; venham Para França nomeou Sua Majestade por Embaixador a Sebastião
fazer conferências com Vossa Excelência, porque mais ganham com Cêsar, com negócios para que tinha determinado o Duque de Aveiro.
uma conferência, que com muitas armadas». Então êle, lançando Se El-rei me não entendia, porque então se me entregaram as instruções
os braços na espalda de uma cadeira, disse: «Antes tomara ter cor- do dito Sebastião Cêsar, e a êle as minhas, para que de Paris a Roma
tadas as mãos, que ter feito.o que fiz; porque se o Padre me diz isso nos déssemos as mãos em todos os negócios? Antes dêstes, no mesmo
a mim, que escreverá a El-rei ?» Respondi: «muito em abôno de Paris, porque ordenou Sua Majestade que o Marquês de Niza a
Vossa Excelência; mas digo com esta clareza o que entendo». nenhuma audiência da Rainha Regente, e do Cardeal Mazarino,
Também quero dar a Vossa Excelência uma notícia, que ninguém fôsse sem eu assistir juntamente com êle a tudo o que se tratava,
tem nem teve: e é que os negócios a que El-reí muitas vezes me man- se eu não havia de ser entendido da Rainha, nem do Cardeal seu
dava eram mui diferentes do que se podia cuidar, ainda entre os primeiro ministro? E, quando o mesmo Marquês tratou com o Cardeal
ministros mui interiores, correndo a comunicação dos ditos negócios o negócio da Liga, com entrega de praças e outras condições, não
por cifra particular, de que só era sabedor o secretário Pedro Fernandes só aprovadas por outros embaixadores, mas também pelo senhor
Monteiro, e por isso ficaram sujeitas tôdas as minhas jornadas a Infante D.· Duarte, sendo eu do contrário parecer em carta que de
juízos e conjecturas muito erradas; as quais não são matérias de Holanda escrevi ao mesmo Marquês, e mandei a cópia a Sua Majestade:
história, antes tem ela obrigação de as emendar com a verdade, se se Sua Majestade me não entendia, porque lhe mandou que se con-
a sabe, e não com dizer que não tiveram fundamento. Seja o exemplo formasse em tudo com o que eu lhe tinha escrito em carta de tantos
quando parti para o Maranhão. Sendo o meu intento querer antes de tal mês?
arriscar a vida pelo rei do céu que pelo da terra, cuidaram muitos
que aquela resolução não era minha, senão de El-rei e a muito dife-
rente fim. Diziam: «Este Maranhão é maranha; e, declarando-se
I. Lúcio de Azevedo, não se isentou totalmente de dar curso a êstes boatos
comigo o Conde da Torre, o velho, o seu pensamento era: que pelo COrnoum dos motivos do embarque de Vieira, mas em sentido oposto: "A autori-
Rio das Amazonas havia de passar a Quito e de aí a Lima, onde era dade dos Superiores desacatada e porventura a razão de Estado, se havia compro-
Vice-Rei o Duque de Escalona, primo de El-rei de Castela, para o mi~~o com Costela ... (Os Jesuítas no Grão-Pará, 45). Suposição sem fundamento
persuadir que lá se levantasse com o Potosi. Quis Deus que esta Positivo.
32 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTlJLO I - § 6 33


Se Vossa Excelência tem' os seus livros e copiadores, lá o achará
Vossa Excelência assim, em uma carta descontente, de duas regras deve ter sido posta de parte, nêsse momento, para que se não inter-
e meia. E à vista disto não era bem que Vossa Excelência escrevesse pretasse como fuga ou medo da lnquisição (acumulavam-se as de-
na sua história que, como o meu juizo era superior e não igual aos núncias contra êle) ou mesmo como sinal de que, efectivamente, algu-
negócios, muitas vezes se desvaneceram, ,por querer tratá-ias mais mas ~r~varicações ha.veria e que o Maranhão surgia como lugar
subtilmente do que os compreendiam os príncipes e ministros, com de refúgio e de esquecimento. El-rei também se não resignava, ainda
quem comuniquei muitos de grande importancia. então, a vê-Io longe de si. E convinha quebrar os dentes à maledi-
Guarde Deus a Vóssa Excelência como desejo, por muitos anos. cência e a uma emulação que nem sempre se destinguia bem da
Baía, 23 de Maio de 1689. - Criado de Vossa Excelência - inveja e da calúnia. Daí a sua ida ostensiva a Roma como Embaixador
António Vieira 1. de El-reí.
Quando Vieira se avistou com o Geral, ainda estava em aberto
6. - Sôbre a ida de Vieira para o Maranhão, a que êle próprio a sua questão pessoal dentro da Companhia e já se promovia o esta-
alude nesta carta, é ponto duvidoso de quem partiria a iniciativa belecimento da Missão do Maranhão, circunstâncias que devem ter
imediata, Mas não andaria longe da verdade o dizer-se que o pri- sugerido a todos que a ida de Vieira para aquela Missão resolveria
meiro pensamento de voltar para a sua Província do Brasil deve as dificuldades que criavam à Companhia a desafeição do Santo
ter despontado no coração de Vieira, quando em 1649, no auge das Ofício, as rivalidades políticas e a questão interna da nova Província
lutas e da questão da divisão da Província de Portugal, em que con- do Alentejo. Não teria já então o Geral Francisco Piccolomini ape-
citou contra si o ânimo dos Superiores que propuseram o seu afasta- la~~ par~ a dedicação de Vieira ? Não é suposição gratuita. O próprio
mento da Companhia. Recusando-se sair, talvez o deixar a Côrte Vieira diz que em 1649 tratou «de ir restaurar a dita missão», não
lhe surgisse como solução e satisfação suficiente e ao mesmo tempo o conseguindo então «pelas causas que são notórias» 1.
prova de que acima de tôdas as considerações humanas colocava a Assim, no espírito de Vieira, com os desenganos talvez menos
sua vocação religiosa. É dêsse ano, a seguir à morte dos Padres no de ,. d
negocíos, que e pessoas, e dalguns mesmos a quem estava unido
ltapicuru, a carta Régia a que Vieira não seria alheio, ao Provincial 'pelos laços fraternos da religião, se deve ter imposto a idéia de que
do Brasil, que' enviasse missionários para o Maranhão 2. Talvez, nas tabas dos Índios se encontrassem menos intrigas que nos palácios
Vieíra se imaginasse já um dêles. Não se sabe bem o que se passou e palratórios. E a resolução ou aceitação em breve se sobrepôs aos
entre Vieira e El-rei, quando êste lhe comunicou a resolução do hábitos d a po I'ítica,
. apesar d e ainda ser convidado a acompanhar
Padre Geral de o despedir da Companhia. Sabe-se apenas que Vieira a. Inglaterra, o embaixador Conde de Penaguião 2. Só poderia haver
se recusou a sair e que El-rei o apoiou e o autorizou mais ainda. Mas a~nda um elo a prendê-to à côrte, a amizade a D. João IV e ao Prín-
tanto o afastamento da Companhia como até a ida para o Maranhão cipe D. Teodósio; mas quando Vieíra compreendeu que a amizade
permanecia intacta e que dessa amizade ainda podia dispôr para a
nova em A b
l. Cartas de Vieira, 111, 556-571. CL Memoriul feito ao Príncipe Regente presa, a raçou-a com a fogosa sinceridade de seu ânimo.
D. Pedro I I pelo P. Anlónio Vieira sobre os seus serviços e os de seu irmão junta- ~ Entretanto, aquela carta Régia de 1649 ao Provincial do Brasil
nao c . " ,
mente, em Víeira, Obras Inéditas, Il I (Lisboa 1856)81-87. Vieira retoma neste co ala em terreno infecundo. Quando o P. Francisco Gonçalves foi
Memorial os pontos desta carta e com uma ou outra indicação nova; cf, A1fredo t mo procurador do Brasil a Roma insistiu com o Geral que se rea-
Pimenta, Elementos de História de Portugal, 5a ed. (Lisboa 1937)364. A p. 355 pu- asse a missão, oferecendo-se êle próprio. E em Lisboa, êle e Vieira
blica o retrato de Vieira com esta legenda: "jesuíta eminente, uma das persona- PrOcuraram ambos . El'
agenciar com -rei os fundos necessários para ela.
lidades mais notáveis do seu tempo. Orador incomparável, escritor puríssimo.
político arguto, habil diplomata, homem de acção, foi um dos grandes auxiliares
de D. João IV na consolidação da nossa índependencía".
----
2. Morais, História, 238-239. 1. P. Vleira, Resposta aos Capítulos, 225-226.
2, Lúcio de Azevedo, H. de A. v. I, 199.
34 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 6 35


Mas Gonçalves recebeu patente de Provincial do Brasil; e quanto à
Missão do Maranhão determinou o Geral que êle, Gonçalves, poderia 2° passo: Vieira, acompanhado do P. Ribeiro, quando já es-
ir para ela depois de concluído no Brasil o seu mandato 1. taVam embarcados quási todos os Padres da expedição, apresen-
Sôbre o embarque de Vieira costuma-se de tal modo baralhar, tou-se a bordo «como que nos íamos despedir dêles ao navio». Ao
interpretar e complicar a cena, que parece útil distinguir com clareza .passar a nau em Paço de Arcos, conheceu-o o Provincial de S. João
os seus passos, à luz dos documentos e unicamente dêles: de Deus, que passava numa fragata. Contou o que vira, e um dos
1° passo: o P. Vieira quer embarcar para o Maranhão: o P. que o ouviu foi o P. Inácio de Mascarenhas, por meio do qual a no-
Francisco Ribeiro, Procurador do Brasil, prepara tudo para a viagem. tícia logo chegou a Palácio. EI-Rei ordenou imediatamente que em
Vieira aparece metido na organização da viagem não como superior, qualquer navio em que se achasse, fôsse desembarcado. Vieira foi
mas como agente principal na Côrte afim de alcançar de EI-Rei, detido, indo já navegando pelas alturas de S. Julião da Barra. Es-
com a sua influência pessoal, os emolumentos indispensáveis para creve ao Provincial do Brasil: «Enfim cheguei ao Paço, onde Suas
a emprêsa, condição sine qua non a não aceitaria a Província do Brasil, Majestades e Alteza me receberam com graças, e zombando da minha
com os encargos dos Colégios que se projectavam. Mantém-se o si- fugida e festejando muito a prêsa; mas ajudou-me Deus a que lhes sou-
gilo do embarque, conhecido apenas ao que parece, do seu Superior besse declarar o meu sentimento e as justas razões dêle, que afirmo
imediato o Provincial do Brasil, P. Francisco Gonçalves, a êsse tempo a Vossa Reverência foi o maior que tive em minha vida, com me
já ido para a sua Província, e do P. Ribeiro, Procurador do Brasil ter visto nela tantas vezes com a morte tragada».
em Lisboa, com quem agenciava tudo. Cremos, por uma carta de Vi- 3° passo: Vieira, não desistia da ida para a Missão, tornada já
eira, posterior, que o P. Geral também estivesse conhecedor do facto, pública, e tomou como intermediário sobretudo o Príncipe D. Teo-
ou directamente por aviso e correspondência mútua, ou indirecta- dôOSlO:
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mente, por licença anterior, ou até recomendação de que voltasse


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«S. Alteza estava doente e nêstes dias com suspeitas de perigo,
logo que se lhe oferecesse oportunidade. No primeiro caso teria sido e foi mais fácil de persuadir, o que importou muito para que também
nomeado Superior do Maranhão pelo Geral; no segundo, pelo Pro- se viesse a render EI-Rei, o qual me levou à Rainha Nossa senhora,
vincial do Brasil, a quem pertencia a missão do Maranhão. De nada para que me dissuadisse; mas, como a piedade emambas Suas Ma-
disto ficaram documentos positivos. Em todo o caso inclinamo-nos jestades é tão grande, alfim puderam mais as razões do maior serviço
para a primeira hipótese precisamente pela carta de Vieira em que de Deus que todos os outros respeitos.
êle refere que a Missão não se fêz por ordem dos Provinciais do Brasil, Se algum sacrifício fiz a Nosso Senhor nesta jornada,foi em
mas do Geral 2. aceitar a licença a El-reí, quando me a concedeu; porque a fêz
Sua Majestade com demonstrações mais que de pai e assim eu a
I. Lúcio de Azevedo excogíta, para a volta dos Jesuítas ao Estado do Ma- não tive por segura, até que me a entregou por escrito e firmada de
ranhão e Grão-Pará, entre outros motivos, a vingança de lnácio do Rêgo Barreto
sua real mão, na forma da cópia que com esta remeto, em que tenho
e a do Vigário Mateus de Sousa Coelho, que tinham vindo à Corte, descontentes,
reclamar contra os atropelos supostos ou verdadeiros de que se diziam vítimas no por particular circunstância ser passada em dia das Onze-Mil- Vir-
Maranhão: "O bem estar dos índios foi o pretexto invocado; mas o fim real era gens, padroeiras dêsse Estado.
prejudicar a fortuna dos que os possuíam. Para isso eram os missionários o mais Mostrei-a aos Padres, e os poderes que nela Sua Majestade
adequado instrumento, e foi êsse que os descontentes chamaram em seu auxílio"
nos dá em ordem à conversão, e assentámos todos que o não partir
(Os Jesuítas no Grão-Pará, 50). Ê um dos pontos fracos de Lúcio de Azevedo atri-
o navio do Maranhão com a frota, havendo seis meses que estava
buir, sem provas documentais, a relações de simples concomitância, significação
de causa e efeito. Logo desde 1649, quando em Lisboa se soube o morricinio dos esperando por ela, o descobrir-se a minha jornada, o não se poder
Padres do Itapicuru, tanto El-Reí, por aquela carta de Outubro, como os Jesuítas levar a âncora, o mandar-me El-rei tirar do navio, o ficar em terra
procuraram com empenho reconstituir a Missão. o Padre Manuel de Lima, e o arribar depois,e tantas outras coisas
2. S. L., Novas Cartas, 304. particulares que nêste caso sucederam, tudo foi ordenado pela Pro-
Vidência Divina, que queria que eu fôsse, mas que fôsse com aprovação
36 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 6 37

e beneplácito de EI-rei, e com tão particulares recomendações suas,


aos governadores e ministros daquelas partes, que êstes meios humanos do demais, que vos for necessário; para o que Ihes mostrareis esta,
podem ajudar e facilitar os da conversão, servindo-se dêles a graça OU cópia dela, que guardarão inviolavelmente, e como nela se contém:
divina, como na Índia se experimentou pelos favores com que EI-rei e fazendo o contrário, me dareis logo conta, para mandar proceder
D. João III assistiu aos da Companhia, contra o poder dos capitães contra os que assim o não fizerem, como for justiça. Escrita em Lis-
das fortalezas, e outros poucos zelosos portugueses, que por seus in- boa a 21 de Outubro de 1652- Rei» 1.
teresses os impediam. Informados -estamos que em todos os lugares A licença de EI-rei ainda perseverava a 14 de Novembro, data
do Maranhão há muito disto: mas quererá Deus Nosso Senhor que da.carta de Vieira ao Provincial do Brasil em que dá parte dela.
possa com êles alguma coisa o mêdo, já que pode tão pouco a cris- 5° passo: El-rei revoga em particular a Vieira a licença e ma-
tandade» 1. nifesta-lhe a sua vontade de que fique. Mas para evitar desgôsto
4° passo: A licença para embarcar era de 21 de Outubro, e, já aos três Padres que deviam embarcar com êle, calaria Vieira a li-
agora, com o prestígio régio perante tôdas as autoridades do Mara- cença até se revogar publicamente, e procederia na suposição de que
nhão e Grão-Pará, porque a licença era simultaneamente provi- havia de embarcar.
são, fundamental, para se. justificar a actividade de Vieira, na 6° passo: Embarca efectivamente a 22 de Novembro e segue
Missão: viagem. A revogação pública, de El-rei não lhe chegou às mãos, ou
«Padre António Vieira: Eu El-rei vos envio muito saudar. Tendo porque se desencontrou, ou porque EI-rei lha não mandou, levado
consideração, ao que tantas vezes me representastes sôbre as reso- pela sua natural versatilidade, de que deu tantas provas, ou cedendo
luções, com que estais de passar ao Estado do Maranhão, para pros- finalmente à pressão dos Padres de Lisboa, que, sendo já pública
seguir nêle o caminho da salvação das almas, e fazer se conheça mais a ida de Vieira, lhe representariam' a dupla vantagem quer da au-
nossa Santa Fé, me pareceu não estorvar tão santo e pio intento: sência dêle para amainar os inimigos, quer da presença de tal homem
e sem embargo do que antes tinha ordenado acêrca da vossa viagem, na Missão difícil que recomeçava, ou ainda pura e simplesmente
mandando-vos tirar do navio, em que estáveis, conceder-vos licença porque entendesse que para Vieira não embarcar, bastava ter-lhe
para o fazerdes pelo fruto, que dela devo esperar ao serviço de Deus revogado em particular a licença.
e meu. E para que melhor se acerte, vos encomendo muito a continu- Do Cabo Verde, dia de Natal, Vieira escreve ao Príncipe D.
ação da propagação do Evangelho, que vos leva àquelas partes; e Teodósio:
que para isso levanteis as Igrejas, que vos parecer, nos lugares, que «Senhor. - Esta escrevo a V. A. no Cabo Verde, aonde arri-
para isso escolherdes, e façais as Missões, pelo sertão e paragens, bamos depois de trinta dias de viagem, obrigados de tempestades,
que tiverdes por mais conveniente, ou por terra, ou levando os corsários, e outros trabalhos e infortúnios que nela se padeceram.
Índios convosco, descendo-os do Sertão, ou deixando-os em suas Eu, senhor, não sei se os padeci; porque desde a hora em que o navio
Aldeias, como então julgardes por mais necessário à sua conversão: desamarrou dêsse rio, não estive mais em mim nem o estou ainda
atô . '
que de tudo terei grande contentamento pelo muito, que desejo, onito do caso e da fatalidade da minha partida, e de não saber
que aquelas terras se cultivem com a nossa Santa Religião Católica: como Sua Majestade e V. A. a receberiam, pois não é possível se-
e para melhor o conseguirdes, ordeno aos Governadores, Capitães- rem-Ihes presentes tôdas as circunstâncias dela; tais que não fui eu
mores, Ministros de Justiça e Guerra, Capitães das fortalezas, Câ- o que me embarquei, senão elas as que me levaram.
maras e Povos, vos dêem toda a ajuda, e favor, que lhes pedirdes, V. A. viu muito bem a prontidão e vontade com que me rendi
assim de Índios, canôas, pessoas práticas na terra e língua, como à d~ Sua Majestade, o dia que em presença de V. A. me fêz mercê
-----
lÚ .1. Barros, Vida, 62-63; Berredo, Anais, I, 87-88; Morais, Histôria, 276;
J. Cartas de Vieira, I, 284-285. CIO de Azevedo, H. de A. V., r, 205, completa nos primeiros autores incompleta
ho último. '
HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
38 TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 6 39

significar queria que agora ficasse, mas, como então se assentou que ultimamente me tinha ordenado e eu prometido. Não sei, senhor, que
procedesse eu em suposição de que havia de vir, enquanto Sua M.a- diga nêste caso, senão ou que Deus não quis que eu tivesse mereci-
jestade de público me não mandava revogar a licença, para satis- mento nesta missão, ou que se conheça que tôda ela é obra sua; por-
fação dos Padres, fi-lo eu assim, procedendo em tudo como quem que a primeira vez vinha eu contra a vontade de Sua Majestade, mas
vinha por minha vontade; e agora parti contra a de Sua Majestade
se embarcava 1. .
Na véspera da partida fui avisar a Sua Majestade e a V: Alteza e contra a minha, por mero caso ou violência: e, se nela houve alguma
da brevidade com que se apressava, e que naquele dia descia a ca- vontade, foi só a de Deus, a qual verdadeiramente tenho conhecido
ravela para Belém, e Sua Majestade e V. A. me fizeram mercê dizer em muitas ocasiões, com tanta evidência como se o mesmo Senhor
que logo da tribuna se mandaria recado a Pedro Vieira, e na mesma ma revelara. Só resta agora que eu não falte a tão clara vocação do
tribuna o tornei a lembrar a Sua Majestade: esperei todo aquêle céu, como espero não faltar com a divina graça, segundo as medidas
dia em casa por Pedro Vieira ou escrito seu, e não veio; mas à noite das fôrças, com que Deus fôr servido alentar minha fraqueza.
recado que nos fôssemos embarcar em amanhecendo. Enfim, senhor, venceu Deus! Para o Maranhão vou, voluntário
Não tive outro remédio mais que fazer o aviso que fiz a V. A., quanto à minha primeira intenção, e violento quanto à segunda;
o qual enviei pelo primeiro portador, que pude haver, ao bispo do mas mui resignado e mui conforme, e com grandes esperanças de que
Japão, assim por não ser hora de outra pessoa falar com V. ~., co~o êste caso não foi acaso, senão disposição altíssima da Providência
porque todo o outro recado, que Iôsse direito ao paço, sena mutto Divina, como já neste Cabo Verde tenho experimentado, em tão
suspeitoso naquela ocasião em que todos os incrédulos andavam manifesto fruto das almas que, quando não chegue a conseguir outro,
só por êste posso dar por bem empregada a missão e a vida.
espreitando minhas acções e esperando o sucesso.
Saí enfim, indo-me detendo quanto pude, como avisei a V. A.; O muito que nesta terra e nas vizinhas se pode fazer em bem
mas na praia soube que o Procurador do Brasil tinha recebido um das. almas, e a extrêma necessidade em que estão, aviso em carta
escrito de Salvador Correia, no qual lhe dizia que êle falara com Sua particular ao Bispo do Japão, para que o comunique a V. A., e o modo
Majestade, que eu não ia para o Maranhão, e que o sindicante tinh~ com que fácil e prontamente se lhe pode acudir. Não encareço êste
ordem de mo notificar assim, quando eu fôsse embarcar-me. Entendi negócio que é o único que hoje tenho no mundo, e o único queo
então que Sua Majestade tinha mudado de traça, e com esta notí~ia mundo devia ter, porque conheço a piedade e zêlo de V. A., a que
e suposição me fui mais desassustado para a caravela, onde achei o Nosso Senhor há-de fazer, por êste serviço, não só o maior monarca
da terra, mas um dos maiores do céu.
sindicante, mas êle não me disse coisa alguma.
As velas se largaram, e eu fiquei dentro nela e fóra de mim, Eu não me esquecerei nunca de o rogar assim a Deus em meus
como ainda agora estou e estarei, até saber que Sua Majestade e sacrifícios,oferecendo-os continuamente, como hoje fiz os três, um por
V. A. têm conhecido a verdade e sinceridade do meu ânimo, e que El-rei que Deus guarde, outro pela Rainha nossa Senhora e outro
em tôda a fatalidade dêste sucesso não houve da minha parte acção, por V. A.; e o mesmo se fará na nossa missão, tanto que chegarmos
nem ainda pensamento ou desejo, contrário ao que Sua Majestade a ela, e em tudo o que nela se obrar e merecer terão Sua Majestade
e V. A. sempre a primeira parte. Príncipe e senhor da minha alma,
a graça divina more sempre na alma de V. A., e o guarde com a vida,
1. Para satisjação dos Padres, os Padres Missionários com que Víeira haveria saúde e felicidade que a Igreja e os vassalos de V. A. havemos mister.
de embarcar, que malsatisjeitos ficariam se soubessem a novidade da contra-ordem Cabo Verde, 25 de Dezembro de 1652. ~ Antônio Vieira» 1.
e que haviam de ir sem êle. Interpretanto mal esta frase, aplicando-a aos Padres
Carta de despedida e explicação, em cujas entrelinhas ressalta
de Lisboa, que teriam imposto a sua ida e não conviria que soubesse~. a vontad:
A
a preocupação de que no seu embarque não vissem El-rei nem o Prín-·
régia, falaram alguns escritores em comédia, representada :ôda por Vieíra. Send .
falsa a interpretação, dêsses autores, de que qualidade hão-de ser os comentá-
rios que fazem? 1. Cartas de Vieira, I, 290-293.
6
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I - § 6 41
40 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

n~s entradas a rios e serras ou na direcção dos Colégios e Casas. Resta


cipe « acção, pensamento OU desejo» que significasse menosprêzo pelas ainda o aspecto mais vigoroso dela nas lutas travadas a favor da li-
suas ordens que não tinham chegado a ser públicas; não aparece berdade dos naturais do Brasil.
sombra de ressentimento, antes se vislumbra a satisfação de que
vencesse Deus. .. Parece-nos que há também uma secreta satisfação
de que triunfasse êle próprio e o seu desejo de ir para as Missões: Al-
guns anos depois, diante da Inquisição, aludindo a êste passo da sua
vida, e ao voto que tinha, diz que enfim o conseguira, « indo-me
para o Maranhão, tanto contra a vontade de El-rei e do Príncipe,
como é notório» 1.
Tôda a carta está repassada da delicadeza e elegância de um
homem, que ao separar-se de um afectuoso amigo lhe exprime o sen-
timento (que é lei da boa educação) de que lhe seria mais grato ficar
na sua companhia do que separar-se dêle, mas que, enfim convinha
ir. Desculpa, saudade, afecto e gratidão.
Alguns escritores, desconhecedores dos segredos e recursos da
àlma religiosa, dão asas à fantasia, diante desta partida de Vieira,
tomando à sua conta algumas expressões de humildade, religiosi-
dade e zêlo, escritas da missão a alguns amigos mais íntimos. Não
escapou a êsse pendor o próprio Lúcio de Azevedo, quando apre-
senta Vieira diante da perspectiva de partir, aterrado com o abandono
das vaidades da côrte: «A vida só tinha para êle [Vieira] significado
nestas satisfações da vaidade, e perdê-Ias, era deixar de existir» 2.
A verdade é, sem literatura, que depois de deixar a côrte, Vieira
ainda continuou a existir, felizmente, por mais de 43 anos ... E não
se pode dizer que não fôsse vida cheia, vibrante e significativa, a
ela entregue totalmente, essa que ainda iria ilustrar para sempre
nos novos campos da sua actividade no seu «desejado» Maranhão
e fora dêle". No tômo II I ficou já parte importante dessa actividade

1. Vieira, Obras Inéditas, I, 4l).


2. Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 202.
3. Na mesma data em que escrevera a D. Teod6sio, 25 de Dezembro de 1652,
escreveu também ao Bispo do ) apão, P. André Fernandes, recomendando-lhe a
Missão do Cabo-Verde, a cujo pôrto tinha arribado contra a vontade, "assim pelo
mal acreditado que está de doentio, como pela dilação forçosa que aqui se havia
de fazer tão contrária aos nossos intentos e aos desejos, com que íamos, de chegar
ao nosso desejado Maranhão" (Cartas de Vieira, I, 249). Foram êstes desejos de
Vieira os que prevaleceram, afinal, no meio de tôdas as ordens e contra-ordens,
de tôdas as intervenções contradit6rias de amigos e. inimigos.
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I - A primeira batalha ganha por Vieira; 2 - A lei de 9 de Abril de J 655 restrin-
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tôdas as partes do Brasil: os Jesuítas a defender a sua liberdade;
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de que anda cheia a história do Estado do Maranhão e Grão-Pará,
e não só a respeito de Jesuítas. Nêles tomavam parte preponderante
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 11 - § 1 45
44 HISTÓRIA DA COMPANHIA o'E JESUS NO BRASIL

se o naufrágio e a morte a não truncasse à nascença 1. Não se iniciou


as Câmaras, um "Estado no Estado", no dizer de Lúcio de Azevedo 1. também logo com a chegada de Vieira. Mas coincidiu com a sua
Visavam-se geralmente os que no momento detinham o poder ou vinda em 1653 a publicação de uma Ordem Régia, levada pelo Ca-
parcela dêle, quando de alguma forma êsse poder coibia os mora- pitão-mor do Maranhão no seu Regimento, de pôr em liberdade
dores em suas pretensões quer políticas, quer económicas, quer de todos os Índios até então cativos. Tal ordem, só publicada alguns
simples predomínio local. Eram vítimas não só os representantes dias depois da chegada de Vieira, provocou logo uma tentativa de
da autoridade, civis ou militares, mas até os Religiosos que parti- motim, tão semelhante a todos os mais, que se vêem já nêle in-
cipassem dessa autoridade. Basta dizer que no Pará, o próprio fun- citando o povo, contra os Jesuítas não só gente da Câmara, mas
dador da cidade, Francisco Caldeira de Castelo Branco, foi deposto Curas e Religiosos de outras Ordens, e aparece já, bem caracte-
e algemado, e que a 10 de Maio de 1637, o povo amotinou-se no Ma- rizada, a arma do boato e da calúnia, usada sempre, e até hoje,
ranhão e matou com um tiro de espingarda um frade franciscano quando, por qualquer interesse de carácter material, político ou re-
no seu próprio convento 2. Não admira, em tal ambiente, que também ligioso, importa desacreditar qualquer Corporação e, no caso de
se amotinassem contra os Jesuítas, quando êles, em virtude das leis, que se trata, a Companhia 2.
eram os responsáveis pela liberdade dos Índios. Parece-nos vis- Neste primeiro combate de 1653, ganho por Vieira, está em
lumbrar, depois de contacto directo e diuturno com esta questão, compêndio o espírito de tôdas as lutas dêste género. Variam apenas
que se dava nela o problema psicológico dos partidos políticos mo- os episódios e as pessoas. Desta é ele próprio o relator, em carta
dernos: o partido da escravidão e o partido da liberdade, às vezes para a Baía:
com posições irredutíveis, em que as coisas chegavam a vias de «Tinha mandado nesta ocasião Sua Majestade uma lei, na
facto, ou redundavam em pugnas de papelada que outra papelada qual declarava por livres, como nêsse Brasil, a todos os índios dêste
desfazia, ou se contemporizava com concessões mútuas. A variedade . Estado, de qualquer condição que sejam.
dêstes aspectos e a vastidão da documentação embaraça o conhe- Publicou-se o bando com caixas, e fixou-se a ordem de Sua
cimento da verdade, que se escoa entre leis e contra-leis, reque- Majestade nas portas da cidade. O efeito foi reclamarem todos a
rimentos e processos, ataques e defesas, política de báscula, ora a mesma lei com motim público, na Câmara, na praça e por toda
pender para um lado, ora para outro, flutuações perenes que tornam a parte, sendo as vozes, as armas, a confusão e perturbação, o, que
extremamente difícil seguir com segurança o fio condutor. costuma haver nos maiores casos, resolutos todos a perder antes a
Mas quem tiver a coragem de se desenvencilhar dos pretextos vida (e alguns houve que antes deram a alma) do que consentir
ocasionais e pormenores dos debates, averigua que o fio se desen- que se Ihes houvessem de tirar de casa os que tinham comprado
reda sempre nêste sentido único: os colonos a querer mão livre no por seu dinheiro. Aproveitou-se da ocasião o demónio, e pôs na
uso dos índios; a Companhia de Jesus, como instrumento de Estado, língua, não se sabe de quem, que os Padres da Companhia foram
a regular êsse uso, de acôrdo com leis contraditórias. os que alcançaram de El-Reí esta ordem, para lhes tirarem os índios
Pôsto isto, os factos. Os Jesuítas desde a sua chegada ao antigo de casa, e os levarem todos para as suas Aldeias e se fazerem se-
nhores dêles, e que por isso vinham agora tantos. .
Estado do Maranhão e Grão-Pará, em 1615, até à vinda de Vieira,
não estiv.eram encarregados oficialmente da administração dos Índios, Achou esta voz fácil entrada não só nos ouvidos mas nos
ocuparam-se apenas em os catequizar nas Aldeias, que visitavam, ânimos do vulgo, atiçando talvez ~ labareda alguns q~e tinham
obnngaçao
- d e a apagar. Mas esta a desgraça: que os da mesma pro-
e na defesa moral dêles em casos particulares. Com Luiz Figueira
se iniciaria essa administração, pelo Alvará de 25 de Julho de 1638,
I. CL S. L., Luiz Figueira, 64-65.
d6 .2. Até hoje: CL jesús Pab6n, La Revoluci6n Portuguesa, de Don Carlos a Si-
nto Paes (Madrid 1941). 34-35. .
1. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, 174-176.
2. Studart, Documentos, IV, 46.
46 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO II - § 1 47

fissão sejam de ordinário os mais apaixonados contra nós; porque alguns marinheiros da caravela em que viemos, contra os quais
só êles querem valer na terra, e ofende-Ihes os olhos tanta luz na arremeteu o povo, querendo-os matar por nos haverem trazido.
Companhia, e, pôsto que houvesse pessoas, das mais graves e au- Enfim o tumulto cresceu de maneira, que, para o sossegar, foi
torizadas, que se puseram em campo por nós, contudo contra um necessário que o Governador, com tôdas as três companhias que
povo furioso ninguém prevalece. aqui há de presídio, com balas e mechas acesas, os viessem arrancar
O furor que tinham concebido contra a lei de EI-Rei (à qual das nossas portas. Não houve porém eÍn todo êsse tempo, que se~ia
também não perdoaram, arrancando-a de onde estava), todo o con- espaço de uma hora, quem se atrevesse a pôr as mãos nelas; só o
verteram contra os Padres da Companhia, não duvidando já de vereador, que já dissemos, entrou a pedir que quiséssemos pôr al-
fazer alguma demonstração com êles, mas tratando ou tumultuando guma moderação no nosso parecer sôbre os pontos que tocavam à
em qual havia de ser. Para o fazer com maior justificação, como liberdade dos Índios, para que com isso se moderasse também e
a êles Ihes parecia, formaram uma proposta ao Capitão-mor gover- aquietasse o povo.
nador, em nome da nobreza, religiosos e povo de todo o Estado, Respondemos-lhe com declarar a grande vontade que tínhamos
na qual lhe requeriam levantasse Q bando, alegando que a repú- de servir a esta república, da qual também nós éramos parte, pois
blica se não podia sustentar sem Índios, e que os de que se serviam viéramos para viver e morrer nela; e que, por esta causa, no nosso
eram legitimamente cativos; que as entradas ao sertão e resgates papel seguíramos as opiniões mais largas e favoráveis aos moradores,
eram lícitos; que os Índios eram a mais bárbara e pior gente do e que só lhes negávamos nêle aquilo que em conciência Ihes não
mundo; e que, se se vissem com liberdade, se haviam de levantar podia de nenhum modo pertencer. Que o nosso primeiro intento
contra os Portugueses; e outras coisas a êste modo, umas verda- fôra não dar parecer nesta matéria, pelos não desagradar; mas que,
deiras e outras duvidosas, e as mais totalmente falsas e erradas. obrigados dêles mesmos a dizer o que sentíamos, faltaríamos muito
Esta proposta, assinada pelos Prelados das religiões e pelos dois ao que de nós se esperava, se disséramos coisa alheia da justiça
vigários, nos mandou a Câmara para que também a assinássemos. e da verdade: e no caso que, pelos contentar, nós o fizéssemos, então
Escusámo-nos de o fazer, porém insistiram a que respondêssemos. merecíamos não só que nos lançassem fóra, senão que nos tratassem
Pareceu a todos os Padres que devíamos responder, e que a res- muito pior.
posta fôsse a mais favorável ao povo, quanto desse lugar a con- Sôbre isto lhes referimos como em Lisboa renunciara o P. Ma-
ciência, para que entendessem, que só obrigados dela nos não con- nuel de Lima o ofício de Pai dos Cristãos, como na Índia, e eu o
formávamos, em tudo o que êles queriam. da administração e repartição dos Índios, tudo a fim de evitar en-
Feita esta resposta, e aprovada por todos os Padres, levaram-na contros nesta matéria com os Portugueses, cujas almas, primeiro
dois ao vereador mais velho, que é pessoa muito autorizada, Capitão- que as dos índios, vínhamos buscar ao Maranhão. Partiu-se o ve-
-mor que ficou do Gurupá, e dos maiores devotos e benfeitores que reador bem satisfeito da nossa resposta, e resultou o vir êle pela
tem nestas partes a Companhia. Era em papel apartado, para que manhã do dia seguinte com os mais, em forma de Câmara, a terem
pudessem usar dêle ou não, como Ihes parecesse. Disseram-se as satisfação conosco sôbre o tumulto da noite passada, estranhando
missas tôdas daquele dia por esta tenção; e, no seguinte; estando muito o atrevimento do povo, e sentindo que, na terra em que êles
nós conferindo que mais orações e penitências se haviam de aplicar, governavam, tivesse sucedido tal descompostura: e o mesmo cum-
era a primeira hora da noite, e eis que ouvimos um tumulto muito primento vieram também ter connosco os mais graves da terra.
maior que os passados, o qual cada vez soava mais, e se vinha avi- Aquietaram-se com isto as vozes e os tumultos, porém os ânimos
zinhando à nossa casa. Saímos a uma varanda, e as vozes que se Pouco ou nada sossegaram. Cada dia, de ali por diante, nos levan-
ouviam eram: «Padres da Companhia fóra! Fóra! inimigos do bem tavam um falso testemunho. Dia da Purificação de Nossa Senhora
comum! Metam-os em duas canoas rôtas!» Entre as vozes reluziam fêz o Padre Francisco Veloso a doutrina aos índios, como é costume,
as espadas, das quais escaparam com muita dificuldade o pilôto e à primeira missa da madrugada, e, sendo que de indústria só lhes
HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
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TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO li - § 1 49

ensinou as orações, sem lhcs falar outra palavra, disseram depois


que pregara aos índios como todos eram fôrros. De aí a poucos cerimônias a Capitães-mores, nem ainda aos que o são com nome
dias nos escreveu um prelado de certa Religião (assim nos tratavam') de Governadores. Para curar esta chaga, que era a que estava mais
que lhes tomáramos quatro índios que andavam trabalhando ~as em carne viva, lhe disse que, sem embargo de eu estar deliberado
suas obras, para nos irem remar uma canôa, estranhando-nos muito . a ir passar a quaresma nas Aldeias, pregaria o domingo seguinte
semelhante têrmo; e nem tal canôa nem tais índios houve, nem na Matriz, e lhe tomaria a vênia na mesma forma, para que todo
sombra de fundamento sôbre que tal quiméra se pudesse levantar. o povo conhecesse que a falta passada fôra esquecimento do pre-
Logo espalhou o Procurador do Conselho que um índio lhe fug.ira, gador, e não querer a Companhia negar-lhe a cortesia que as outras
e se recolhera na casa dos Padres, e que lá lho tinham escondido, Religiões lhe faziam. Com isto foi a licença para partir o barco».
sendo tão grande falsidade como as demais, as quais nós sem nenhum Entraram duas pessoas de maior porte e graduação da terra,
estrondo tirávamos logo a limpo: de maneira que constava serem as quais, a poucas palavras, meteram prática sôbre a nossa resposta
tôdas invenções de gente malévola, com que cansaram e desistiram acêrca da liberdade dos índios. Argumentaram rijamente contra
dêste modo de perseguição. Não faltou nêste tempo quem, lembrado êles, e o Capitão-mor-governador era o que estava mais duro, exa-
da diferença com que fôramos tratados e pretendidos em Cabo Verde, gerando suas maldades e barbarias, e aprovando as causas dos ca-
quási estêve arrependido de se não deixar ficar lá; m~s esta me:'~a tiveiros; mas explicando-Ihes eu ponto por ponto os fundamentos
perseguição devia animar mais nossa confiança, pOIS o demónio das nossas razões, e a verdade e justiça das nossas resoluções, e
nunca procura estorvar senão onde prevê alguma coisa que temer» 1 como era impossível ter salvação quem fizesse ou seguisse o contrário,
O Capitão-mor no meio do alvorôço praticou também um acto e de quanta utilidade, ainda temporal, podiam ser, se se abraçassem
aue mostrava o seu ânimo, a princípio, mal disposto, negando ordem os meios da conveniência que elas apontavam, ficaram tão con-
a dois Padres para se embarcarem para o Pará. vencidos todos da fôrça da verdade, que confessaram, não só que
Interveio Vieira: tínhamos razão, senão que era bem que todos se conformassem com
«Entendi que o homem queria quebrar comigo (que para tudo aquêle papel, e assim se executasse.
pode haver intentos): e eu, pelo mesmo caso, fiz uma resolução .muito O governador da praça se persuadiu tanto, que me pediu logo,
assentada de não quebrar com êle, por mais injúrias que me ==
ou fizesse. As palavras com que me recebeu foram as do cabo. Quei-
já que eu queria pregar no domingo seguinte, fôsse êste o assunto
do sermão, prometendo que, se o povo o aceitasse, êle disporia e
xou-se de que os Padres se embarcassem sem sua licença, a q~e sa- ajudaria o negócio, de maneira que viesse a surtir um grande efeito.
tisfiz com não sabermos que havia tal ordem, nem entendtamos Despedimo-nos com grandes demonstrações de amizade, e es-
como a poderia haver sôbre Religiosos; e em lhe dizer, e provar forçando as suas o mesmo Capitão-mor: «Ah! P. António Vieira-
com os criados de sua casa, que os mesmos dois Padres, naquela me disse - quem esperara que os princípios desta nossa prática
mesma manhã e dois dias antes, o tinham ido buscar para lhe darem haviam de ter semelhantes fins! Mas isto mostra que ê coisa de
conta da sua jornada. Sôbre esta queixa vieram outras, em que Deus, e que êle há-de ajudar».
nós tínhamos a razão de' sermos os queixosos, que era não lhe ter Preguei na seguinte Dominga, que era a das' Tentações, e tomando
o Padre Mateus Delgado tomado a vénia de Ilustríssimo Senhor POr fundamento o Haec omnia tibi dabo, que era a terceira, mostrei
na pregação da Cinza, que no dia antes pregara na nossa casa. . primeiramente, com a maior eficácia que pude, como uma alma
Certo é que o fêz o Padre por pura inadvertência, e por ser COIsa ~ale mais que todos os reinos do mundo; e, depois de bem assentado
nunca imaginada, nem imaginável no Brasil, fazerem-se semelhantes M,te ponto, passei a desenganar com a maior clareza os homens do
aranhão, mostrando-lhes com a mesma que todos estavam geral-
mente em estado de condenação, pelos cativeiros injustos dos Índios;
1. Cartas de Vieira, I, 331-335. ie que, enquanto êste habitual pecado se não remediasse, tôdas as
a ~as dos Portugueses dêste Estado iam e haviam de ir para o
50 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO li - § 2 51


inferno. Propus finalmente o remédio, que veio a ser em substância
as mesmas resoluções da nossa resposta, mais declaradas e mais
persuadidas, facilitando a execução e encarecendo a conveniência como pai, porque como tal Ihes acode: e assim foi esta eleição muito
delas; e acabei prometendo grandes bênçãos de Deus e felicidades, bem recebida de todos.
ainda temporais, aos que, por serviço do mesmo Senhor e por salvar Ajustada assim a forma de juízo e execução, fez-se logo um
a alma, lhe sacrificassem êsses interesses. têrmo, em que assinou o Capitão-rnor Governador, o Vigário Geral,
Nas côres, que o auditório mudava, bem via eu claramente os Sindicante, Ouvidor, Provedor da Fazenda, Câmara e Capitães,
afectos que, por meio destas palavras, Deus obrava nos corações de Prelados das Religiões, e tôdas as pessoas mais principais que se
muitos, os quais logo de ali sairam persuadidos a se querer salvàr, acharam presentes, dando-se todos mil parabens, e ouvindo-sea
e a aplicar os meios, que para isso fôssem necessários, a qualquer muitos, entre outras palavras de grande satisfação e contentamento:
custo. «Bendito seja Deus, que nos trouxe à terra quem nos alumiasse e
Na mesma tarde, antes que a memória se perdesse, ou alguma pusesse em caminho da salvação!» 1.
conferência secreta a confundisse, deu o Capitão-mor princípio a Assim ganhou esta primeira batalha o P. Vieira, «atleta he-
uma junta na mesma matriz, em que entrou o Sindícante, os Pre- róico », como lhe chama Hernani Cidade.
lados das Religiões, a Câmara, o Vigário Geral, e tôdas as mais pes-
soas assim de guerra como da república, e grande multidão de povo, 2. - Mas ainda nêsse mesmo ano, por representações dêstes
que sem ser chamado entrou e se não pôde estorvar que estivesse mesmos que pareciam conformados, expediu EI-Rei a 17 de Outubro
presente. de 1653, outra lei em que revogava a anterior e os capítulos da liber-
Pediram-me quisesse tornar a propôr o que de manhã dissera, dade, deixando a porta aberta a cativeiros injustos 2.
e aprovado por todos, nemine discrepante, chegou-se aos meios de E foi essa a novidade que esperava o P. Vieira da sua entrada
execução, em que houve grandes dificuldades, e claramente se via ao T ocantins. Quando voltou e soube dessa lei, e pela própria expe-
mexia muito o demónio, e não queria que aquêle negócio se levasse riência, adquirida naquela entrada, desenganou-se e compreendeu que
ao cabo; e, quando já todos desconfiávamos de lhe ver conclusão, tôda a atividade com os Índios se frustraria, se não houvesse amparo
em um momento o resolveu Deus, concordando todos se nomeassem mais eficaz e directo. «Outro desengano, escreve êle, alcançaram os
dois procuradores, um por parte dos Portugueses, outro por parte missionários neste mesmo tempo, e foi, que o mesmo poder e inte-
dos Índios, os quais tomando-os todos a rol, e informando-se de resse dos que governavam Ihes estorvava não só o fruto, que se podia
cada um em particular, o dos Portugueses alegasse pelo cativeiro colher nas almas dos Índios das Aldeias, mas quási totalmente Ihes
e o dos Índios pela liberdade; e que destas informações e alegações impedia o exercício de seus ministérios, doutrina e administração
fôssem juízes os oficiais da Câmara, com assistência do Sindicante. dos Sacramentos, porque quando iam pelas Aldeias ainda que fôsse
sem o qual se não sentenciassem os processos, e que as sentenças na quaresma, as achavam despovoadas, porque os Índios estavam
se dessem logo à execução, sendo declarados por livres todos os Índios, nas lavouras e safra, como dizem do tabaco, nas quais gastavam oito
de cujo cativeiro não constasse. e nove meses do ano, vivendo e morrendo totalmente como gentios,
Na mesma junta se elegeram os dois procuradores, que foram por ser nos matos e algumas vezes em partes mui distantes, sem missa,
pessoas conhecidas por maior desinteresse, consciência e verdade; nem dia santo, nem quaresma, nem sacramentos, nem poderem acudir
e particularmente o procurador dos Índios é homem que mais au- a fazer suas roças e lavouras particulares, com que êles, suas mulheres,
toridade tem com êles, e mais conhecimento de tôdas as suas nações,
e de todas as entradas que ao sertão se fizeram, por ser dos primeiros
conquistadores dêste Estado, e um dos mais práticos da língua dêle,
a quem os Índios em todos os seus trabalhos e desgostos recorrem
---
e filhos pereciam à fome e destas lástimas eram só testemunhas os

2 I. Cartas de Vieira, I. 336-340. Vieira completa na Resposta aos Capítulos,


26, o que sucedeu no Maranhão em 1653 quando se publicou a lei, e a parte activa
que teve Jorge de Sampaio nos distúrbios que então se esboçaram.
2. Lei na íntegra em Berredo, Anais do Maranhão, lI, 91-93.
52 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 11 - § 2 53


velhos e velhas, que os Padres sõmente achavam nas Aldeias, acres-
centando-se a êste trabalho comum dos tabacos, o de viagens, pes-
resolveu entre todos os Padres, que era necessário vir a esta Côrte
carias, cravo, breu, estopa, fábricas de navios, em que estavam au-
pessoalmente o Superior da Missão para informar em presença a Sua
sentes de suas casas dous e três anos, e talvez mandando-se as Aldeias
Majestade das causas porque não podiam obrar nem conseguir o
inteiras a trabalhar em engenhos e fazendas de açúcar, de que tinham
para que Sua Majestade os tinha mandado; e com esta resolução se
o lucro os que governavam, e os miseráveis Índios o trabalho e a vio-
partiu logo o Padre António Vieira do Pará ao Maranhão, e do Ma-
lência (porque nenhum ia por sua vontade) e o dano de todos os seus
ranhão a esta Côrte, onde nas duas Juntas acima referidas mandou
bens temporais e espirituais, sem poderem lograr, nem êles, nem seus
Sua Majestade considerar, depois resolveu e ordenou tudo o que na lei
filhos o benefício de sacerdotes, e mestres, que Deus e Sua Majestade
e regimento mais largamente se contém, que resumido vem a consis-
lhes tinham mandado, sucedendo muitas vezes, que estando os ditos
tir em três pontos principais, sem os quais não pode haver conversão.
missionários com os Índios dispostos para confessarem e comunga-
. O primeiro que aos Índios Gentios se não faça guerra ofensiva
rem, e com os catecúmenos instruidos para receberem o baptismo, e
sem ordem de Vossa Majestade, nem se lhes faça injúria, violência,
com os desposados apregoados e aparelhados para se receberem, no
ou moléstia alguma, e somente se possam resgatar dêles os escravos,
meio de tudo isto chegava um sargento ou cabo de esquadra, com
que forem legitimamente cativos, para que com êste bom trato quei-
ordem do capitão-mar aos principais, ameaçando-os com prisões e
ram receber a fé, e se afeiçoem à vassalagem de Vossa Majestade,
outros castigos, e dando-lhes muita pancada, sendo r;ecessário (e sem
. e a viver com os Portugueses.
o ser), para que os Índios fôssem a uma parte, e as Indias a outra, e
O segundo, que os Índios cristãos e avassalados, que vivem nas
assim se executavam com lágrimas e clamores dos miseráveis, ficando
Aldeias, não possam ser constrangidos a servir mais que no tempo e
frustrado o trabalhados missionários, e o que mais é, o sangue de
na forma determinada pela lei, e que no demais vivam como livres
Cristo, e a graça de seus sacramentos.
que são, e sejam governados nas suas Aldeias pelos principais da sua
Da violência deste trato se seguiam dois gravíssimos 'danos ao
nação, e pelos Párocos, que dêles têm cuidado.
temporal do Estado, e ao espiritual dos Índios, porque uns se saíam
Terceiro, que os missionários façam as missões ao sertão com tal
das Aldeias, e se iam meter entre os escravos dos Portugueses, vi-
independência dos que governam, que êles não possam impedir as
vendo e casando-se com êles, tendo por menor êste cativeiro seu, e
ditas missões, antes lhes dêem todo o favor, e ajuda para elas, e a es-
de tôda a sua descendência, que o falso nome de liberdade que tinham
colta de soldados que fôr necessária, quando se' houverem de fazer
nas Aldeias, e outros, em que havia mais brio e valor, se metiam pelos
por passos perigosos; e porque dos capitães depende o comedimento
matos e se voltavam para as suas terras, com que êles se perdiam
ou desordens dos soldados, que a pessoa, que os ditos governadores
entre os Gentios,e com as novas que lhes .levavam, os retiravam da
houverem de eleger por cabo dêles seja o que o Superior dos ditos
fé, e os confirmavam na vida que tinham e na resolução de se não
missionários julgar por idónea e conveniente para isso.
quererem sujeitar nunca aos Portugueses.
Com estas ordens se partiu o Padre António Vieira para o Ma-
, Com estas experiências, que os Padres achavam em tôda a parte,
ranhão, onde o governador André Vidal as deu logo à execução e co-
e com o conhecimento de que totalmente se lhes impossibilitavam as
meçou a pôr em prática, e os missionários deram princípio a fazer as
missões aos Gentios, e que com os já cristãos não podiam exercitar
missões do sertão na forma que entendiam ser necessário para terem
livremente seus ministérios nem acudir a suas almas como êles haviam o efeito que se pretende» 1.
.
mister e êles eram obrigados: e tendo experimenta d o outrossim.
. q ue
Esta lei, de 9 de Abril de 1655, ia ser a base da actividade subse-
as inf~rmações que tinham mandado por escrito a Vossa Majest~de,
quente dos Padres, ora desfeita, ora refundida, mas influindo sempre.
pela oposição dos interessados, não tinham a eficácia e pronto ef~lt~, .-----
que para tão grande necessidade se requeria, estando-;e .perdendo infi-
1. Vieira, Resposta aos Capítulos, 234-235. Vieira narra a seguir as entradas
nidades de almas,sem remédio, tendo o mesmo remêdio presente, se
qUe se fizeram no seu tempo e vão já indicadas no Tômo I I I. nos capítulos cor-
respondentes aos lugares e rios aonde se fizeram.
54 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 1I - § 3 55

Por aqui se vê já a variedade da legislação. Em três anos, três leis! o motivo, interior, único e total desta resolução, que há muito
Liberdade completa dos índios, com motim dos moradores; cativeiro se medita, é a cobiça, principalmente dos mais poderosos; e porque
dissimulado, com reacção dos Jesuítas, cativeiro dificultado e liber- esta se não contenta com o que lhe permitem 2S leis de Vossa Majes-
dade tutelada, com novas reacções dos moradores" primeiro com o tade; e não há outros que defendam as ditas leis e a liberdade e jus-
motim de Gurupâ, dominado vigorosamente pelo Governador André tiça dos índios senão os Religiosos da Companhia, resolveram final-
Vidal de Negreiros, o, que trouxe uma acalmia de cinco anos, mais mente de tirar êste impedimento por tão indignos caminhos. Eu lhes
aparente que real, entrecortada de reclamações, que vieram a reben- disse sempre que, se não estavam satisfeitos, recorressem a Vossa
tar em novos distúrbios em 1661, não dominados pelo novo Gover- Majestade, como o autor e senhor das leis, e que Vossa Majestade,
nador D. Pedro de Melo, que a-pesar de ser amigo de Vieira, e Vieira ouvidas as partes, revogaria ou confirmaria o que fôsse justo; mas
dêle, tergiversara à última hora, ficando os Missionários à mercê dos êles, como desconfiados da sua justiça, nunca quiseram aceitar esta
amotinados, com os concomitantes agravos e expulsão, Mas como es- razão.
tava presente Vieira, e êle tinha cabeça para arguir, argumentos para A última ocasião que tomaram para o que se fêz, escreve-me o
usar, e pena para os escrever, a sua figura é o centro dêste drama e Governador que foi pelas três causas seguintes.
se aiteia singularmente no meio da tormenta. Primeira: por se publicar nêste Estado a carta da Relação que
fiz a Vossa Majestade do que se tinha obrado nestas missões o ano
3. - Os distúrbios, propriamente ditos, começaram na cidade de de 659, a qual Vossa Majestade foi servido mandar que se imprimisse;
S. Luiz, a instigação de Belêm, com a prisão dos Padres do Colégio 1. e não se pode crer quanto com esta carta se acendeu a emulação dos
Vieira, que do Pará ia a caminho do Maranhão, foi surpreendido peJa que não podem sofrer que, havendo tantos anos que estão nêste Es-
novidade nas praias de Cumã, donde escreveu a D. Afonso VI no tado, nunca se obrassem nêle estas coisas senão depois que vieram
dia 22 de Maio de 1661: Os Padres da Companhia.
« Senhor. - Ficam ,os Padres da Companhia de Jesus do Ma- Segunda: virem também ao Maranhão, e publicarem-se umas
ranhão, missionários de Vossa Majestade, expulsados das Aldeias dos cartas que escrevi a Vossa Majestade por via do Bispo do Japão,
índios, e lançados fóra do Colégio e prêsos em uma casa secular, com em que dava conta a Vossa Majestade das contradições que tinha
outras afrontas e violências indignas de que as cometessem católicos neste Estado a propagação da fé, e quão mal se guardavam as leis
e vassalos de Vossa Majestade. de Vossa Majestade sôbre a justiça dos índios, das quais coisas me
Os executores desta acção foi o chamado povo, mas os que o tinha Vossa Majestade mandado repetidamente desse conta a Vossa
moveram e traçaram e deram ânimo ao povo para o que Iêz, são os Majestade por via do Bispo, e juntamente que apontasse os remédios
que já tenho por muitas vezes feito aviso a Vossa Majestade, isto é, com que se lhe podia acudir. E, porque assim o fiz, nomeando entre
os que mais deviam defender a causa da fé, aumento da' cristandade, os transgressores das leis aos religiosos do Carrno, cujo Provincial,
e obediência e observância da lei de Vossa Majestade 2. Frei Estêvão da Natividade, foi o primeiro que as quebrou, êste mes-
mo Provincial, indo embarcado para o Reino no navio em que iam as
ditas cartas, sendo tomado pelos Dunquerqueses, teve traça para as
L A Câmara de S. Luiz não estava a princípio inclinada e devolveu em Ja- haver à mão, e as teve em segrêdo até à morte do Bispo, e depois dela
neiro de 1660 a representação da de Belém «pela sua falta de decência e moderação) remeteu aos seus frades, e as publicaram e se executou o que por mui-
e que não fôra apresentada ao Governador para «não ser objecto de censura de tas vezes, no público e no secreto, tinham intentado.
toda a gente sisuda e bem criada> (Cêsar Marques, Dic. do Maranhão, 243, 244).
, . Terceira: a prisão do índio Lopo de Sousa Guarapaúba. Êste
,2. Dizia por exemplo na carta a D. João IV de 8 de Dezembro de 1655: «Temos
índio é Principal de uma Aldeia, e depois da publicação das leis de
contra nós o povo, as religiões, os donatários das Capitanias mores, e igualmente
todos os que nêsse Reino e nêste Estado são interessados no sangue e no suor dos Vossa Majestade nunca as quis guardar, e amparado dos poderosos,
Índios cuja menoridade nós só defendemos>, Cartas de Vieira, I, 452. a quem por esta causa fazia serviços, vivendo no mesmo tempo êle e
6
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO II - § 3 57
56 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

"leis de Vossa Majestade, e porque damos conta a Vossa Majestade dos


os seus como gentios, sendo cristãos mui antigos, porque, além das excessos com que são desprezadas e porque defendemos a liberdade
muitas amigas que tinha o dito Principal, estava casado iri fade Eccle- e justiça dos miseráveis índios cristãos e que de presente se vão con-
siae com uma irmã de outra de quem antes do matrimónio tinha publi- vertendo, e sobretudo porque somos estorvos aos infinitos pecados
camente filhos, calando êste impedimento, e intimidando a todos os de injustiça que neste Estado se cometiam, somos afrontados, presos
da Aldeia para que nenhum o descobrisse, consentindo-os viverem do e lançados fora dêle.
mesmo modo, e não tratando de missa, nem de sacramento algum, O que só sentimos (que pelo demais damos infinitas graças a Deus)
nem ainda na hora da morte, morrendo por esta causa todos sem é a ruina ele tantos milhares de almas, e dos felizes princípios de uma
confissão, e em mau estado; enfim, em tudo como gentios e desobe- tão florente cristandade, que por êste meiose destrue, descompondo-se
dientes às leis de Vossa Majestade, contra as quais o dito Principal e perdendo-se quanto atêgora se tinha obrado e conseguido com tantos
cativava índios fôrros e os vendia, e outros mandava matar a modo trabalhos: porque a razão total da conversão dos índios gentios, e
e com cerimónias gentílicas: e tudo isto lhe sofriam os que o deveram das pazes dos que eram inimigos, e de se virem para nós os que estavam
castigar, por interesses vilíssimos. Foi o dito Principal por muitas metidos pelos matos, e de aceitar~m a fé e obediência da Igreja, era
vezes admoestado pelos Padres dos ditos excessos, principalmente dos ter-se-lhes prometido em nome de Vossa Majestade que haviam de
que pertencem à Igreja, sem emenda alguma; e, não aproveitando estar debaixo do patrocínio dos Padres, que êles têm experimentado
nenhum meio suave, propus ao Governador que convinha ser aquêle são só os que os defendem; e com êste exemplo fica perdido o cré-
Índio castigado, para exemplo dos mais, que já alegavam e se descul- dito de nossa palavra, a autoridade das leis de Vossa Majestade, as
pavam com êle, o que o dito Governador não lhe pareceu fazer, di- promessas que em nome de Vossa Majestade Ihes fizemos, enfim tudo.
zendo-me que melhor era que o castigássemos por via da Igreja, e De tudo o que tenho referido a Vossa Majestade tive aviso no
me deu ordem para que, sendo-me necessários soldados para sua pri- mar, onde faço esta, vindo para o Maranhão de visitar as cristan-
são, os desse o Capitão-mor do Pará, e por esta causa foi prêso, não dades do Pará e rio das Amazonas, onde de-novo deixei assentadas
se amotinando por isso a Aldeia, como falsamente se publicou, mas duas missões, uma na nação dos T apajós, e outra na dos Nheen-
havendo muitas pessoas eclesiásticas e seculares, e ministros de Vossa gaíbas, os quais conforme o prometido se vão saindo dos matos
Majestade, que persuadiram aos Índios que se levantassem. ~ tên: já nove aldeias à beira dos rios. Até as nações qu~ têm o trat~
Estas três causas, tão justificadas, dizem, foram a última ocasião Imediato com os Holandeses nos mandaram pedir os aceitássemos
do que se Iêz, mas a causa verdadeira, é, Senhor, a que tenho dito ~or filhos,. debaixo das mesmas condições de paz, e vassalagem de
a Vossa Majestade: a cobiça insaciável dos maiores, a qual nêste ossa Majestade. Mas quando isto fazem os gentios bárbaros os
P " ,
mesmo ano, antes de haver estas coisas, tinha já dado princípio a .ortugueses e Religiosos nos prendem e nos desterram, e isto nas
motins, assim no Maranhão como no Pará. No Maranhão insistindo Cidades do rei mais católico, e no reino que Deus escolheu para si
que também se haviam de repartir as mulheres como os maridos e para propagação de sua fé.
para o serviço dos moradores, contra as leis de Vossa Majestade; Por esta causa, Senhor, desisto elo caminho que levava para
e no Pará, que haviam de ir ao resgate, fora do tempo e ocasião em o Maranhão,e torno ao Pará e rio das Amazonas a ver se posso de
que sõmente o permitem as ditas leis, ameaçando que se lhes não ai gum mo d o conservar esta parte do rebanho de Cristo
' e confirmar
os' di A '
consentissem o fariam por si mesmos, e de tudo fizeram papéis, 111 IOS, que cç>meste caso se consideram já todos na antiga servidão
convocando o povo, etc. : tira~i~, para que se ~ão tornem depois de baptizados para os matos
Agora, dizem, mandam procuradores a êsse Reino, e que levam gentlhdades, e tambem, Senhor, para animar aos mesmos Religiosos
alguns índios seus confidentes, que, por serem de abominável vida, da C ompan h'Ia, que, havendo deixado . o descanso e quietação de
não querem a doutrina e sujeição dos Padres: e todos dirão e levarão suas ' . I' .
patrías e co egios, levam muito desigualmente verem-se agora
escrito e jurado contra a verdade o que lhes ditar a paixão, o ódio nestas tempestades e perseguições, não padecidas pela fé" (que isto
e o interesse injusto e cego. Assim que, Senhor, por guardarmos as
TÔMO IV - LIVRO I - CAPíTULO \I - § 3 59

58. HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

nde alguns factos reais aparecem contados de forma tão alheia

estimariam muito), mas pela desobediência e pouca cristandade


? verdade, que Vieira diz simplesmente que são tão afrontosos à
a ma verdade que é vergonhoso tomar conhecimento dêles, Vieira
dos vassalos e ministros de Vossa Majestade» 1. mes d G-
faz a ressalva de que nem todos os moradores do Estado o rao-
h .
Ao chegar Vieira ao Pará pôs-sé em comunicação com a Câmara. -Pará e Maranhão incorriam nas suas censuras, e que muitos avia
Mas depois de. se trocarem cartas e explicações, a agitação trans- digníssimos e fidedignos. Convém ter presente a opinião de Mendonça
formou-se em motim e a 17 de Julho de 1661 o Colégio de S. Ale-
F url.tado , que , falando de cetto homem da terra, um século mais tarde,1
xandre foi assaltado e Vieira com os mais Padres, então residentes. di~ que « é um insigne mentiroso, como a maior parte dos desta terra»
na cidade, presos e levados para casas particulares. Os Missionários, ,. .
Apesar de faltos de verdade e caluniosos, Vieira com o seu espirito
que andavam nas Capitanias de Gurupá e Gurupi, só foram presos meticuloso não deixa nenhum capítulo sem resposta e com elas faz,
depois, ou mais propriamente, êles se deixaram prender, para seguir em seus pormenores, a própria história dêste período 2. Um dos pontos
a mesma sorte dos seus companheiros, recusando ofertas de defesa deturpados era aquela prisão do incestuoso Copaúba, pôsto no dilema
que lhes fizeram os seus Capitães-mores. ou de mudar de vida ou de retirar-se da Aldeia. Alude a essa detur-
Vieira foi recluso naerrriida de S. João Baptista, donde foi trans-
pação o próprio Vieira. O Governador, requ~rido PAaraisso ~elo Su-
ferido para uma caravela e dali remetido para o Maranhão e Lisboa.
perior, em vez de o fazer, respondeu que o fizesse ele p~lo foro e~l~-
A lenda apoderou-se de sua prisão no Pará e constitue o maior título siástico, pois tinha poderes competentes e êle lhe dana o «auxIi:o
de celebridade da ermida e actual igreja de S. João Baptista. E
do braço secular». Vieira mandou-o chamar em carta amiga ao Para.
andam associados a esta prisão e à dos outros Padres, duas figuras
Persistindo na recusa, o díscolo foi prêso no Colégio e remetido para
de mulher, D. Antônia de Meneses e Mariana Pinto, tapanhuna.
Gurupá. Os inimigos aproveitaram-se dêste facto para alvorotar a
Esta sobretudo; que ia pedir esmola para sustentar os Padres reclusos. Aldeia e fazer grandes requerimentos ao Governador. E êste, que
Os amotinados viram-no com maus olhos e ameaçavam queimar-lhe
não teve coragem para o prender, teve a fraqueza de se pôr depois
a casa, onde preparava as caridósas refeições para os presos. Respondeu
ao lado dos reclamantes, que calam nos seus requerimentos o motivo
que se lha queimassem; «faria de comer em a praça pública », Os
verdadeiro da prisão do índio e o modo dela, como se fôsse a chamado
Jesuítas deram-lhe depois carta de irmandade. E êste acto, como
por engano. Lúcio de Azevedo parece acreditar nessa falsidade e
que enobreceu aquela humilde tapanhuna. Porque, referindo-se a
acrescenta mais uma, dizendo que êle foi prêso no Colégio pelos
ela mais de ~O anos depois, Bettend~rff engloba-as já a ambas com « coadjutores », isto é, pelos irmãos, circunstância que se não pode
o mesmo título de dom: «Só advirto aos Padres todos que saibam
aduzir sem documento expresso 3. Em outros capítulos, sem o tal
o muito que devemos e deveremos sempre a Dona Antónia de Me-
neses e Dona Mariana Pinto, ambas nossas Irmãs por carta de
Irmandade, por serem elas que nos sustentaram em tudo, enquanto não só aquêles três iniciais, mas outros como os da Câmara do Maranhão (CL
estivemos desamparados de tudo» 2. Lúcio de Azevedo, Hist. de A. V., 1, 389-392).
Aquêles pretextos, três apenas, invocados a princípio para a I. Anais do Pará, V! (1906) 19. Notemos que o estudo atento dos actos do
mesmo Mendonça Furtado mostra que êle s6 tinha esta opinião quando as mentiras
expulsão dos Padres, transformaram-se logo num libelo de 25
dos moradores não estavam de acôrdo com as suas próprias. Do contrário fazia-se
Capítulos 3, onde se amontoaram tantas e tão evidentes calúnias e eco delas sem o menor escrúpulo e as transmitia à côrte como verdades da Escritura.
2. CL Resposta do P. António Vieira aos CaPítulos que deu contra os Reli-
giosos da Companhia (em 1662) o procurador do Maranhão Jorge de Sampaio em
1. Cartas de Vieira, I, 583-588. Meio Morais, Corograjia, IV, 186-253. Meio Morais, como em tantas outras publi-
2. Bett., Crónica, 189, 191. cações suas, cala o nome do Autor da Resposta aos Capítulos.
3. CL Representação de Jorge de Sampaio e Carvalho contra os Padres da Com- 3. CL Capítulo 18, Documentos, IV, 113-114; Resposta 18, Corograjia, IV,
panhia de Jesus, expondo os motivos que teve o povo para os expulsar do Maranhõo, 213-215, Lúcio de Azevedo, H. de A. V., I, 386-387.
Studart, Documentos, IV, 109-117. O Procurador retomava todos os motivos in-
vocados, muitos dos quais já enunciados em cartas e representações das câmaras:
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 11 - § 3 61
60 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

terrado para o Porto, em seguida o secretário do Estado e o Duque


00uqual fundamento dêste, não vale a pena deter-nos, nem na vesânia de Cadaval; a outros de menor responsabilidade tocou a vez suces-
daquele indigno homem que violou a correspondência particular e sivamente» 1.
como que oficial, dirigida a EI-Rei. Tal reviravolta comum em tôda a política, em vez de se con-
Vieira, que só escreveu esta Resposta aos Capítulos na segunda finar na metrópole, atingiu a Missão do Maranhão e Grão-Pará
metade de 1622, conclue que El-rei mandaria o que fôsse justo, que destruindo a obra de Vieira. A nova lei de 12 de Setembro de 1663:
seria a restituição pura e simples dos Missionários. Já o Sermão de restabelecendo com poucas modificações, a de 1653, entregava a
Epifania (6 de Janeiro de 1662), que. Víeira pregou pouco depois de administração civil das Aldeias a capitães seculares, nomeados pelas
chegar, evocando todos os grandes títulos de Portugal Missionário, Câmaras; aos Religiosos de tôdas as Ordens existentes no Estado,
competia a administração espiritual delas. E todos os Jesuítas po-
postos à prova pelos amotinados, tinha feito dizer à Rainha-Regente,
deriam voltar ao Maranhão, menos o Padre António Víeira 2, desgraça
D. Luisa: «Hoje resuscita o Maranhão por amor do Padre Vieira» 1.
que sentiram mais que ninguém os seus companheiros de missão,
E tudo se encaminhava à restituição, quando, não pelas acusações
empenhados numa luta de que êle era chefe e «apóstolo» 3.
insubsistentes dos colonos, mas por motivos extrínsecos à Colónia
Vieíra nesta volta da fortuna ficou entregue a si-próprio. E a
(como havia de ser mais tarde, daí a um século), tudo levou outro
luta deslocou-se dos redutos do Maranhão para a «Fortaleza do
rumo. E foi que uma revolução palaciana tirou a regência à Rainha
Rocio>, como Hernani Cidade apelida a Inquisição, que se apressou
D .. Luisa, ficando El-rei D. Afonso VI, manifestamente inepto,
em mover processo a Vieira pelo passado e pelo presente. Não entra
entregue ao Conde de Castelo-Melhor, o qual se apressou a pros-
no quadro da História do Brasil a narração desta batalha, que se
crever da Côrte aos homens de mais valia ou mais em evidência,
vinha incubando há muito. Vieira não a perdeu de-todo. Porque
que apoiavam a Rainha: «o primeiro de todos, António Vieira, des-
podia ser queimado e não o foi. O motivo das acusações antigas era
a sua simpatia e defesa da gente hebreia; o das acusações recentes, a
1. Barros, Vida, 338. Dêste Sermão diz Afrânio Peixoto: < Para os Brasi- interpretação política das profecias do Bandarra,que êle utilizara
leiros é a mais nossa das obras de Vieira > (Os melhores sermões de Vieira (Rio 1931) e aplicara, segundo o estilo da época, no seu fervor patriótico, a
214). Para os Portugueses é também a mais sua das obras de Vieira sob o aspecto
D. João IV, o novo D. Sebastião, que havia de resuscitar.
da vocação apostólica de Portugal. Por isso o propusemos à Comissão dos Cen-
tenários de Portugal, de que fazíamos parte, para a Evocação de Antóllio Vieira no Em resumo, desterrado de Lisboa e prêso desde 1663, inculp~do
templo de S. Roque. E depois de o reduzirmos à meia hora, que a cerimônia pedia, de judaísmo e outros erros, Vieira foi condenado à privação de pregar
foi admiravelmente pregado por um sucessor de Vieira no púlpito e na roupeta, e de voz activa e passiva para sempre, e a reclusão, por tempo inde-
António Pereira Dias de Magalhães, e publicado, nas Comemorações Centenárias, terminado, numa casa da Companhia. Hernani Cidade remata assim
de 1940 (Lisboa) com duas breves e elegantes introduções uma de Mons. Pereira
êste processo da Inquisição:
dos Reis e outra de Joaquim Leitão (esta sem o nome expresso).
Como dissemos, Vieira só escreveu a Resposta aos Capitulas depois de sair «O Conselho Geral resolveu que a sentença fôsse lida no Tri-
de Lisboa. Enquanto estêve nela, achou-se demasiado preocupado com os assuntos bunal perante o público costumado e não apenas perante os altos
da Côrte para se ocupar, por si mesmo, dos seus. Para tratar dêstes nomeou seu
advogado, • como Superior que sou da Missão do Maranhão>, ao Dr. Heitor Mendes 1. Lúcio de Azevedo, Hist. de A. V., I, 361.
Leitão (Procuração de 3 de Maio de 1662, em Studart, Documentos, IV, 127). O 2. Provisão de 12 de Setembro de 1663, Bibl. de Évora, cód. CXVf2-12, 27v
advogado pediu vista dos papeis e queixas dos moradores do Maranhão, c Rol, e 132-
_' MIM eo . Corograjia,Ó
orars, .1' II I, 175-178; Lúcio de Azevedo,. Os Jesuítas no
que consta de 22 números (Lúcio de Azevedo, Hist. de A. V., I, 396-399). Mais Grao-Pará, 129-130.
tarde, a 25 de Novembro de 1755, quando se organizava a detracção geral dessa 3. Assim se refere a ela o P. Gorzoni: • il nostro Apostolo il P. Visitadori
época contra os Jesuítas, enviaram-se ainda mais papeis, como os referentes ao ~ntonio V~ey.ra., Carta do P. Gorzoni de 1 de Outubro de 1662, Bras. 3 (2), 7. O
índiO Copaúba (Cons. Ultramarino, 645, f. 525-534); e ainda no Britisli Museum, r . Gorzom tinha-se mostrado em oposição e dera trabalho ao P. Vieira, cf. S.
addit. to the mss., 15198, f. 147, se encontra uma «Notícia dos sucessos e expulsam -., Novas Cartas, 298-312. O seu testemunho honra um e outro.
dos Padres da Companhia do Estado do Maranham >, por onde, com isto e o que
está dito, se póde calcular o volume da papelada infinita.
62 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 11 - § 4 63

funcionários, e no Colégio perante todos os religiosos, e não apenas liberdade aos Índios, a que se seguiu a criação das Juntas das Missões,
doze. Quando Vieira, alquebrado por uma recaída na velha doença, a 7 de Março de 1681.
se levantou para ouvir a sentença, todos os seus confrades se levan-
taram com êle. Assim lhe davam a prova de solidariedade que lhe . 4.-A Lei de I de Abril de 1680, depois de um preâmbulo justi-
deviam, numa questão que no fundo era um ataque, não tanto às ficativo, em que se refere às leis anteriores, entra na parte positiva:
extravagâncias do seu espírito, como a algumas das qualidades que «Ordeno e mando que daqui em diante se não possa cativar
mais lhe realçavam aalma e a alguns dos esforços que mais lhe podem Índio algum do dito Estado em nenhum caso, nem ainda nos exce-
ganhar a simpatia da posteridade» 1. ptuados nas ditas leis, que para êsse fim nesta parte revogo e hei
Mas a derrota não foi total. Daí a algum tempo foi até uma por revogadas, como se delas e das suas palavras fizera expressa e
vitória, porque mudado de novo o tablado político português com declarada menção, ficando no mais em seu vigor: e sucedendo que al-
a subida ao poder de D. Pedro lI, se Vieira não voltou a ter na Côrte guma pessoa de qualquer condição e qualidade que seja, cative, e
o prestígio do tempo de D. João IV (há situações que se não repetem mande cativar algum Índio, pública ou secretamente por qualquer
na mesma vida) recuperou contudo a liberdade, em 1667; e em 1669 título ou pretexto que seja, o ouvidor geral do dito Estado o prenda
foi a Roma para tratar, com o favor de D. Pedro li, da causa dos e tenha a bom recado, sem nêste caso conceder homenage~, alvará
Mártires do Brasil e mais ainda da sua própria causa 2; e tratou de fiança, ou. fieis carcereiros, e com os autos que formar, o remeta
dela tão bem que só voltou de Roma, com o Breve Pontifício de 17 a êste reino, entregue ao capitão, ou mestre do primeiro navio que
de Abril de 1675 que o isentava de tôdas as Inquisições da terra, para êle vier, para nesta cidade o entregar no Limoeiro dela, e me dar
alto privilégio de que nunca fêz uso 3. Mas era uma segurança futura. conta para o mandar castigar como me parecer. E tanto que ao dito
Com êle aparece na Côrte em que nem sempre era atendido, mas ouvidor geral lhe constar do dito cativeiro, porá logo em sua liber-
onde pregou mais alguns sermões, em que era sempre admirável. dade ao dito Índio, ou Índios, mandando-os para qualquer das Al-
E reatou-se o fio quebrado das Missões. Não que houvesse de voltar deias dos Índios católicos e livres, que êle quiser. E para me ser mais
a elas. Mas porque as Aldeias do Maranhão e Grão-Pará, entregues facilmente presente, se esta lei se observa inteiramente, mando que
a capitães seculares, estavam quási desertas. Era preciso remédio o Bispo, e Governador daquele Estado, e os Prelados das Religiões .
e reclamavam-no da Colónia. dêle, c os Párocos das Aldeias dos Índios, me dêem conta, pelo Con-
Vieira tornou a ser o árbitro, o homem experimentado e ouvido, selho Ultramarino, e J unta das Missões, dos transgressores que houver
o inspirador da nova lei, de 1 de Abril de 1680, que ia dar completa da dita lei, e de tudo o que nesta matéria tiverem notícia, e fôr con-
veniente para a sua observância. E sucedendo mover-se guerra de-
fensiva ou ofensiva, a alguma nação de Índios do dito Estado, nos
1. Hernani Cidade, Padre Anlónio Vieira, I, 117-118. Hernani Cidade trata casos e têrrnos em que por minhas leis e ordens é permitido: os Índios
êste assunto com elevação, concisamente, conforme a índole do seu livro. Com mais que na tal guerra forem tomados, ficarão somente prisioneiros como
pormenores, Lúcio de Azevedo (Hist. de A. V., 11, 5-82) que no entanto aqui e
ficam as pessoas que se tomam nas guerras de Europa, e somente o
além sacrifica ao seu habitual prurido de interpretar os sentimentos Íntimos de
governador os repartirá como lhe parecer mais conveniente ao bem
Vieira, no que em geral é menos feliz.
2. Aquela causa dos 40 Mártires foi o alvo a que "atirou para conseguir sua e segurança do Estado, pondo-os nas Aldeias dos Índios livres cató-
ida", diz o Procurador do Brasil em Lisboa, P . .J oão Pimenta, Carta de 11 de Agôsto licos, onde se possam reduzir à fé, e servir o mesmo Estado, e conser-
de 1669, Bras. 3 (2), 84. O Provincial do Brasil propôs a ida ao Geral: Como Vieira varem-se na sua liberdade, e com o bom tratamento que por ordens
é muito aceito de Sua Alteza, o seu valimento ajudará muito a causa dos 40 Már- repetidas está mandado, e de-novo mando, e encomendo que se Ihes
tires que tanto se dilata, Carta do P. Francisco Avelar, 5 de Julho de 1669.
dê em tudo, sendo severamente castigado quem Ihes fizer qualquer
Bras. 3 (2) 81. .
3. "Breve de isenção das Inquisições de Portugal e mais Reinos que alcançou vexação, e com maior rigor aos que lha fizerem no tempo em que dêles
em Roma a seu favor o Padre António Víelra", Obras Inéditas, I, 175-178 .. se servirem, por se Ihes darem na repartição.
64 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 11 § 4 65
Pelo que mando aos governadores e capitães móres, oficiais da
câmara e mais ministros do Estado do Maranhão, de qualquer qua- 50 - Que
. '
os Índios de serviço das Aldeias se dividam em três partI es
lidade e condição que sejam, a todos em geral, e a cada um em par- Iguais: a primeira para ficar nas mesmas Aldeias, tratando
ticular, cumpram e guardem esta lei, que se registrará nas câmaras de suas lavouras e famílias; a segunda para servir aos mora-
do dito Estado; e por ela hei por revogadas, não somente as sobreditas dores; a terceira para acompanhar os Missionários às Missões'
leis, como acima fica referido, mas tôdas as mais, e quaisquer regi- e que dentro do mesmo número que couber a esta terceira
mentos e ordens, que haja em contrário ao disposto nesta que somente parte tenham os ditos Missionários a liberdade de escolher
quero que valha, tenha fôrça e vigor como nela se contém, sem em- aquêles que forem mais práticos e idóneos para as Missões
bargo de não ser passada pelo chancelaria, e das ordenações c regi- que .se houverem de fazer, conforme as terras e línguas do~
mentos em contrário, Lisboa 1.0 de Abril de 1680. - Principe» 1. gentios.
Para assegurar a execução desta lei ou realizar o que ela supõe, 6° - Que a repartição dos Índios de serviço a faça o Senhor Bispo
expediram-se outras ordens importantes, de fomento econômico, co;n o Prelado de Santo António, e uma pessoa eleita pela
administrativo, agrícola, colonial e religioso, que os Padres de Lisboa, Camara. E ond~ o Senhor Bispo não estiver, o seu Vigário,
ordenaram em 20 pontos, correspondentes a outros tantos despachos .e que para a dita repartição se saberá o número dos Índios
ou cartas régias, pelas listas que dêles derem os Párocos.
7° - Que as missões ao sertão as façam só os Religiosos da Com-
panhia de Jesus .
•Lista dos despachos e ordens que vão de Sua Alteza -1680:
8° - Que as Aldeias de Índios já cristãos sejam governadas somente
pelos seus Párocos e pelos Principais das suas nações sem se
10- Lei geral de que não haja escravos nem resgates dêles daqui
lhes .poder pôr outro capitão ou administrador de qualquer
por diante. Não se entende esta Lei dos que até agora se fi-
qualidade que seja,
zeram; mas exclue todos os casos, ainda os de guerra justa,
9° - Que os Religiosos da Companhia tenham à sua conta tôdas
que nas leis antigas se permitiam,
as Al,deias dos Índios já cristãos, exceptas somente algumas
20 _ Que todos os anos se metam no Estado do Maranhão qui-
. que tivessem outros Religiosos, antes de ir àquele Estado o Se-
nhentos ou seiscentos negros, para suprirem os escravos que
nhor Bispo.
se faziam no sertão; os quais negros se venderão aos mora-
lO° - Que no caso em que o dito Senhor Bispo haja alterado al-
dores por preços muito moderados e a largo tempo, E Sua Al-
teza os pagará aqui aos mercadores, com quem se fêz êste con- guma coisa acêrca das Aldeias que tenham à sua conta os
Padres
. , da Com pan h'Ia, toôd as diítas A ldeias
. e suas igrejas sejam
trato, para o qual lhes tem já consignado os efeitos de que se
restituidas aos mesmos Padres.
hão-de embolsar. 11°_ Qu e toôd as as outras Aldeias do Gurupá e Rio das Almazonas
30 _ Que se tirem todos os estanques e só se ponham nos gêneros
dêles um direito moderado, e out:as quaisquer que não têm próprios Párocos se entreguem
40 _ Que o Cacau, baunilhas, anis e tôdas as outras drogas novas também aos Religiosos da Companhia
12°_ . '
cultivadas, não paguem direito algum nem lá nem cá, por Que assim mesmo sejam êles os Párocos de todos os Índios
espaço de seis anos e nos quatro seguintes só meios direitos. que descerem do sertão e das Aldeias e igrejas que se formarem
de novo.
1. Bíbl, de Évora, cód. CXV/2-18, f. 35v; Melo Morais, Corograjia, IV, 495-
13°_ Q
Í u~ as, Aldeielas, que de presente há, se reconduzam todos os
496; Porto Seguro, HG" II I, 339-341; Collecção dos Breves Pontijicios e Leys regias, hn~lOs, ~ue ~ndarem divertidos por outras partes, para que
nO. I I. aja maior numero nas sobreditas repartições e que o Gover-
nador os faça reconduzir sem apelação nem agravo,
66 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 11 - § 4 67


14° - Que nenhum índio vá servir (o que se fará com a alternativa
de dois meses somente) sem se depositar primeiro o pagamento,
tem já consignado S. A. uma suficiente ordinária no Contrato
e que havendo alguma dívida nesta matéria o Ouvidor a jul-
das Baleias da Baía e Rio de Janeiro, que começará a correr
gue sumariamente, e sem dependência de qualquer outra ju-
desde o princípio dêste ano de 1680» 1.
risdição. .
15° - Que uma das primeiras Missões, que se fizerem, seja aos Ín-
A lei e os decretos têm a data de 1 de Abril de 1680. No dia se-
dios do Cabo do Norte, mais vizinhos à nova Conquista dos
guinte António Vieira, envia ao Superior da Missão do Maranhão
Holandeses, e que os Missionários, além de sua conversão, os
e Grão-Pará, esta lista de despachos de Sua Alteza, conta o que se
procurem conservar na ducação [sic] dos Portugueses e obe-
passou nas J untas preparatórias, em que teve papel preponderante
diência de Sua Alteza e mandar particular informação da dita
o seu amigo Duque de Cadaval e dá instruções sôbre a missão 2.
vizinhança que com os Holandeses têm, e suas terras, rios,
Feito isto, o grande lutador (<< lutador construtivo» - lhe chama
portos, etc.
Hernani Cidade) 3, sentindo-se doente, e recusando o remanso de Roma,
16° - Que aos Índios mais remotos do Rio das Amazonas e quaisquer
donde lhe acenavam, apesar da sua idade mais que septuagenária,
outros que se não puderem ou não quiserem descer, se façam
com o ofício de confessor da Rainha Cristina da Suécia, prefere voltar
também Missões e os Padres os doutrinem e residam com êles
à sua Província do Brasil, para concluir os dias no mesmo Colégio,
em sua próprias terras, e que nelas os industriem a cultivar
onde 58 anos antes começara a vida religiosa 4. Mas a sua robustez
?S fruitos naturais e outros de que forem capazes e os mesmos de ânimo parece que até ao corpo comunicava fôrça e vitalidade
Indios os naveguem e tragam a vender aos Portugueses, co-
física.
mutando-os com géneros necessários ao culto civil de suas
A 27 de Janeiro de 1681 partiu para a Baía. E ainda viveu no
famílias e ao sagrado de suas igrejas.
Brasil 16 anos e o tornaremos a encontrar, pregando novos sermões
17° - Que os Governadores nem por si, nem por outra pessoa, pos-
~am ter comércio ou negociação alguma, nem ocupar nisso os
Indios.
18° - Que havendo alguma pessoa que pública ou secretamente
1. Bras. 9, 315-316. Tôdas ou a maior parte destas Ordens régias, encontram-se
vá ou mande fazer escravos Índios seja logo prêsa sem lhe
na Bibl. de Évora, cód. CXV/2-12, 38v, 88,94; cód. CXV/2-18, 35v, 79v, 80v, etc.
valer homenagem, nem outro algum privilégio e remetida no Chegaram a 21 de Maio de 1680: "Em 21 de Maio do ano passado chegou a êste
pr!meiro navio a êste Reino para ser castigada com a de- Maranhão o navio de Lisboa e nêle novas leis e provisões muito favoráveis aos índios
monstração que convém. e ainda aos Portugueses dês te Estado, do que suponho tem o P. Ant6nio Vieira
19° - Que de tudo o que se intentasse em contrário das sobreditas dado parte a Vossa Paternidade", Carta do P. Pero de Pedrosa, de 31 de Março,
de 1681, Bras. 3 (2), 136.
ordens e de tudo o que fôr necessário à continuação e aumento
2. Cartas de Vieira, III, 428-429.
das Missões e do fruto que nelas se faz dêem particular conta 3. Hernani Cidade, Padre António Vieira, III, 454.
a S. A. os Superiores dos Missionários; aos quais e ao Senhor 4. Cartas de Vieira, III, 442. A rainha Cristina afeiçoara-se ao P. Vieira,
Bispo se recomenda estritamente a recíproca correspondência. quando êle estêve em Roma a segunda vez. E foi a convite da Rainha que Vicira
20° - Que para provimento subsitivo [sic: subsecivo ? substitu- pronunciou o famoso Discurso das Cinco pedras de David. "O assombro provocado
pelo nosso genial patrício, diz o P. José de Castro, levou a Rainha da Suécia a
tivo?] de sujeitos aptos, práticos na língua e feitos ao clima,
promover uma sessão solene com dois discursos: um do grande Padre Cattaneo,
haja no Colégio do Maranhão um Seminário de noviços, com que fêz o papel de Dem6crito, e o outro do Padre Ant6nio Vieira, que desempenhou
todos os estudos de Latinidade, Filosofia e Teologia especula- o papel de Heráclito. Escusado dizer que esta assembleia, constituída pelo que
tiva, e Moral, em que possam continuar ou acabar seus estudos havia de maior e melhor em Roma, endoideceu de entusiasmo, a ponto cie Cle-
os que os não tiveram acabado, para cujo subsídio e sustento mente X declarar: - Muitas graças a Deus por fazer êste homem católico: porque
se o não f?ra, daria muitos cuidados à Igreja", José de Castro, Portugal em Roma,
I (Lisboa ~1939) 233.
68 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

e limando, os antigos numa actividade prodigiosa da pena e até no


mais alto cargo da Província-que é o de Visitador Geral. E será ainda
êle quem nos vai dar a narrativa mais serena do novo motim que em
breve ia estalar no Maranhão em 1684.

CAPíTULO I I I

Do Perdão de 1662 ao Motim de 1684

J - Perdão geral de 1662 e suas consequências; 2 - O «Estanco» e uiolências de


1684 contra o mesmo Estanco, o Governador e os Padres da Companhia; 3--
Restabelecimento da ordem pública por Gomes Freire de Andrade.

1. - A 8 de Fevereiro de 1662 embarcou para o Estado do


Maranhão o novo Governador Rui Vaz de Siqueira, encarregado de
restabelecer a ordem, reparar as injustiças, restituir os Padres e
oferecer um perdão geral ao povo, que não era o mesmo que a im-
punidade. Para êste perdão geral concorreu Vieira. Lúcio de Azevedo
achou «incrível» a cena da Rainha Regente, perdoando ao Maranhão
por amor de Vieira 1, mas já no seu livro posterior, diz que Vieira,
acabado o sermão da Epifania « tinha ganho o ânimo do público
para a sua causa como já antes o ânimo da Rainha» 2. Se tinha
ganho o público e a rainha, basta reparar nas datas: o sermão foi
a 6 de Janeiro, o embarque do Governador a 8 de Fevereiro, o
valimento de Vieira conservou-se até à revolução palaciana de Junho.
<Incrível» seria que o perdão geral ao povo que o Governador levava,
concedido pela Rainha Regente, protectora confessa das Missões do
Maranhão e afeiçoada a Vieira, fôsse contra a sua opinião, e o
próprio Azevedo reconhece a intervenção directa do missionário,
escrevendo que o Governador fôra para o, Maranhão « instruído
por Vieira » 3. Lúcio de Azevedo ainda é, às vezes, 'sobrevivência re-
tardada dos que uniam Jesuítas e Inquisição num mesmo conceito,
êrro em que não cai hoje nenhum espírito esclarecido, em cujo

--- I. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas


2, Id., Hist. de A. V., 353.
no Grão-Pará, 106.

3. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, 123.


70 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO III - § 1 71

número incluímos o mesmo autor que noutros passos da sua His- gunda-feira de Pentecostes. Neste dia o Governador Rui Vaz de
tória faz bem a distinção. Realmente a crueldade ou a violência Síqueíra «fêz oração na igreja do Colégio, que havia um ano
do sangue é de todo alheia à tradição da Companhia. A sua fôrça estava fechada, e no dia seguinte se disse nela missa cantada, a
está nas armas do espírito, nos argumentos, ou se quisermos na dia- que assistiu o Governador acompanhado de tudo o que havia no
lécica, por palavra e por escrito, de que Vieira é precisamente entre Maranhão » 1.
nós, e nêste próprio caso, o mais alto exemplo. Mas o espírito de Não se pode duvidar das disposições iniciais do novo Gover-
tolerância com as pessoas, não quer dizer que se suprimam as nador. Quando porém vieram notícias da revolução palaciana, e do
sanções contra as ilegalidades ou crimes; e o próprio Vieira, diante exílio de Vieira e do processo da Inquísição, Rui Vaz mostrou muito
do novo atentado e expulsão de 1684, recordará depois que a com- menos amor à catequese do que aos seus interesses pessoais. São
pleta impunidade de 1661 alentou a repetição da façanha 1. muitos os documentos que o provam; não entremos porém em tais
. O perdão geral, levado por Vaz de Siqueira, foi publicado a minudências, intoleráveis pela repetição, semelhantes a quási tôdas
2 de Junho de 1662 e diz o Governador: «pela informação que as mais nesta matéria de Índios. Relegando-as ao merecido silêncio,
tirei por ordem expressa de S. Majestade sôbre a dita expulsão, vamos direitos aos factos que marquem rumos novos.
me não consta de particular delinqüente, e sendo a culpa comum Antes de mais nada, deve ser assinalado um, o deslocamento
de todos, costumam os Reis usar de sua clemência e benignidade, da preponderância política administrativa e económica de S. Luiz
sendo o arrependimento o mais equivalente castigo» 2. para Belém. A pouco e pouco a primeira capital deixou de ser a
Rui Vaz começou pois o govêrno com boas disposições, pro- residência oficial do Estado. O Governador passara a viver em
curando contemporizar com as Câmaras, sustentando ao mesmo Belém, cidade que fôra prevalecendo pela sua posição geográfica
tempo os Jesuítas. Quando um dos dois navios, em que iam expulsos mais central, perto da grande fonte de riqueza humana que era
os do Pará, arribou outra vez, o Governador desautorizou os res- o Amazonas, emulação vinda de longe, mas que se ia equilibrando.
ponsáveis nêsse embarque, e manteve com firmeza os Padres. Facto importante, porque se até então, ainda às vezes se fazia a
Quanto à reentrada dos Padres no Maranhão, Bettendorff nota concordância entre ambas as cidades e respectivas Câmaras, como
as seguintes efemêrides e dupla coincidência: sucedeu em 1661, daqui em diante, quando uma propunha alguma
Motim principal: dia do Espírito Santo de 1661.
o
inovação ou recusava algum quesito das leis, a outra tomava ge-
Saída do P. Vieira e outros do Maranhão: 8 de Setembro de 1661; ralmente a posição contrária. Nestas circunstâncias, e é êste outro
Resolve-se no Maranhão a volta dos Jesuítas: dia do Espírito facto a assinalar, entrou em S. Luiz no dia 11 de Julho de 1679, o
Santo de 1662. primeiro Bispo do Estado, D. Fr. Gregório dos Anjos, que pouco
Chegada dos Padres Vale e Gorzoni: 8de Setembro de 16623. depois passou ao Pará. E a êle, com mais dois membros, como vimos,
Parece que a J unta no Maranhão, para a volta dos Padres, foi um F ranciscano e um Camarista, se encarregou a repartição dos
exactamente na «primeira oitava do Espírito Santo, isto é, na se- Índios das Aldeias ou dos novamente descidos. Entretanto, a lei
determinava que tanto a administração das Aldeias como os des-
1. Cortas de Vieira, I II, 490.
cimentos se fizessem por Padres da Companhia; a repartição, de que
2. Meio Morais, Corograjia, 111, 167. Êste perdão foi confirmado por EI-Rei, os Jesuítas se não quiseram ocupar, é que ficou a cargo daquele
no dia 12 de Setembro de 1663, para fazer mercê aos seus vassalos e que se não triunvirato ou junta repartidora. As leis determinavam em concreto
trate mais dessas culpas, arquivando-se o processo, Id., lho, 175-176. Mas alguns o modo da repartição, salário e o número que se havia de repartir,
dos mais culpados tiveram má sorte. A Relação dos Sucessos do Maranhõo, em e os que haviam de ficar nas Aldeias, que era a terceira parte, mo-
S. L., Novas Cartas, 313-314, atribue êsses castigos ao «rigor da Divina Justiça>.
Ci tam-se nomes.
o

3. O caso celebrou-se com repiques e no ano seguinte na Festa do Espírito


Santo com salvas de artilharia, Bett., Crônica, 196, 202. L S. L., Novas Cartas, 314-315
7
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO I II - § 2 73
n HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

por êstes Padres e outros, que as enviaram por escrito, redigiu-se


tivo perene de queixas para os moradores, para quem os Índios uma informação que anda publicada sem nome de Autor, Informação
todos juntos ainda eram poucos 1. a Sua Majestade sôbre o sucedido no Maranhão em Fevereiro de 16841•
Mas, pelo estilo é de Vieira. Depois de examinar os documentos,
2. - Para obstar de algum modo a êste descontentamento e escritos alguns com extrêma vivacidade e paixão, verificamos que
para aumentar a mão de obra, criou-se uma Companhia de Comércio êste contém o essencial com serena elevação, em poucas páginas.
que em 20 anos introduzisse 10.000 negros de África no Estado e Com uma ou outra nota adequada, segundo referência de outras tes-
ao mesmo tempo assegurasse à Corôa o pagamento e riscos dos temunhas dos factos, completaremos, concretizando-as, as alusões
transportes. Para maior eficácia, recorreu-se ao que fazem com fre- impessoais de Vieira:
qúência todos os Govêrnos do mundo, ontem como hoje. Organizou-se «O P. João Filipe Bettendorff, um dos missionários da Com-
um monopólio ou Estanco, encarregado da venda de certos géneros panhia, agora de novo expulsa do Maranhão, depois de ser ouvido
de consumo, a preços fixos. O Estanco principiou a vigorar em 1682, na Consulta Provincial dos Religiosos da mesma Companhia e Pro-
não sem oposição dos moradores, dominada logo pelo novo Gover- víncia do Brasil, onde veio fazer presente êste sucesso, por parecer
nador Francisco de Sá e Meneses, chegado nesse mesmo ano e dos mesmos Padres consultores, vai informar a Sua Majestade de
com o encargo expresso de o implantar 2. todo o facto e incidentes dêle mais necessários, levando para lem-
O Governador porém não conseguiu dominar o descontentamento brança do que deve dizer, êste Memorial, que contém sumariamente
numa terra em que parecia endémico. Em 1684 estalou outro motim, o caso todo.
que principiou por ser contra o Estanco e logo se manifestou contra É o motivo e origem da perturbação, que inquieta aos ditos
o Governador e os Padres da Companhia de Jesus. O cabecilha do missionários, a observância das novas leis de Sua Majestade, a que
levante foi um português (de Lisboa), Manuel Bequimão, descen- repugnam alguns habitadores daquela conquista, por ordenar nelas
dente de estrangeiros (Beckmann), e nêle se envolveram logo outras Sua Majestade o que em repetidos Conselhos e J untas pareceu mais
pessoas, começando Bequimão, para captar as simpatias, por de- ajustado, afim de se defender a liberdade dos Índios, e aumentar
clarar, que depois de abolido o Estanco, arranjaria para o povo sua conversão, dirigindo-se em parte o serviço dos ditos Índios pelos
muitos escravos. «Motim de Aldeia ;;', sem importância, de que se mesmos missionários, quando os moradores daquele Estado os pe-
não deve ocupar a história, observa Lúcio de Azevedo 3. Da papelada dissem para benefício seu e da república.
que originou, copiosa como sempre, sobrenada um escrito, feito na E porque êstes se não satisfaziam com o uso do trabalho dos
Baía, aonde depois de expulsos do Maranhão passaram dois Padres, Índios, assim modificado pelas leis de Sua Majestade, como até
Bettendorff e Pero de Pedrosa 4. Reunida a Consulta na Baía, de- agora fizeram representar pelas repetidas queixas mandadas a esta
terminou-se que o primeiro dêstes fôsse a Lisboa informar directamente côrte, aproveitando-se da fúria concebida contra o novo contrato,
a Côrte e organizar a volta ao Maranhão. Com as notícias dadas pelas razões que nos não tocam referir, desobedeceram com o mesmo
ímpeto, às leis de Sua Majestade, expulsando do Maranhão aos
I. «Provisão de I de Abril de 1680 que regula o modo de fazer a repartição
principais observadores delas, o que se executou na forma seguinte:
dos Índios e encarrega a conversão daquela gentilidade aos Religiosos da Companhia Em vinte e cinco de Fevereiro do presente ano, dia do Apóstolo
de Jesus> e « Carta Régia de 17 de Novembro de 1681 ao Governador Inácio São Matias, estando no Pará o governador do Estado, Francisco
Coelho da Silva sôbre a Repartição dos Índios, Évora, Cód. CXV/2-18, f. 83v. de Sá de Meneses, e o bispo D. Gregório dos Anjos, e havendo con-
2. Lúcio de Azevedo, Os Jesuítas no Grão-Pará, 141-142..
corrido o povo à cidade de São Luiz, para assistir à procissão dos
3. Os Jesuítas no Grão-Pará, 144. Ao contrário de Lúcio de Azevedo, outros
como João Francisco Lisboa e Varnhagem fazem do colono estrangcirado um he-
roi e consagram inúmeras páginas a esta desordem local. Bertino de Miranda na
Introdução aos Anais de Berredo, p. X, escreve, como demos no texto, Bechmann. 1. Meio Morais, Corografia, IV, 199-241.
4. Bett., Crónica. 380.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO "I - § 2 75
74 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

assim composto, não deixaram de seguir com o conselho e aprovação,


Passos, se ajuntou na noite antecedente quantidade de conjurados e talvez com a diligência, alguns eclesiásticos e regulares, cujo es-
em um convento de religiosos, para conferirem a execução do que tado e autoridade faziam reforçar mais os ânimos de todos, ser-
já muitos dias antes tinham resolvido. E para que o caso parecesse vindo-lhes juntamente êste bom zelo de exemplo e de desculpa'.
efeito comum de todo o povo, o que na verdade não era, porque Desta junta da Câmara saiu ordem a Melchior Rodrigues, por
só o faziam alguns interessados e inquietos, correram os mais ze- cujo cuidado estavam as fazendas do «Estanque» e novo contrato,
lososdaquela facção as ruas da cidade, trazendo com violência e para que não vendesse mais alguma das que ainda houvesse, e só
ameaços os que recolhidos em suas casas ou não sabiam do intento, a pólvora repartiram entre os soldados, por ser provimento neces-
ou o desprezavam, introduzindo-os na sobredita junta e casa de sário para a ocasião. E para segurança de suas resoluções, puseram
religiosos 1. E aos que vieram mais tarde e mais repugnantes, como o govêrno da cidade em três homens, que julgaram dignos do cargo,
foram alguns naturais de Viana, se admitiram de caminho à cem- os quais mandaram passar mostra, e crearam novos oficiais de mi-
panhia dos conjurados, ficando todos compreendidos, ou por vontade lícia, que fôssem de seu humor, removendo dela aquêles, de que se
ou sem ela, debaixo da aclamação do povo. podia temer alguma oposição 2.
Formado desta sorte o motim, o primeiro que sofreu sua vio- Um dos procuradores eleitos para as maiores acções, entre os
lência foi Baltasar Fernandes, pessoa de satisfação e merecimentos, tumultos e estrondos do motim, levantou a voz, e disse, insinuando
que servia o cargo de Capitão-mor do Maranhão, ao qual prenderam sua vontade, que também se expulsariam os Padres da Companhia,
sem lhe admitirem razão alguma, dizendo que nem a êle, nem a se assim fôsse necessário 3.
Francisco de Sá de Meneses, o reconheciam mais que pelas pessoas E suposto que esta resolução, nas primeiras entradas de sua

e nomes, e não pelos postos que ocupavam. Com êstes e semelhantes proposta, se deu a temer pela deformidade que tinha nos ânimos
têrmos molestavam aquêles que lhes queriam estranhar o caso, como de n;uitos, como estava radicada na contínua queixa que pdt causa
o experimentou o juiz dos órfãos Manuel Campelo de Andrade, a dos Indios tinham contra os Padres, não foi necessária grande dilação
quem quebraram a vara, quiseram gravemente ferir, e ultimamente para os desejarem fora. E assim sendo, representado o intento aos
prenderam, obrando-se tudo isto debaixo do estrondo das furiosas
vozes, que se resumiam tôdas em bradar pelo povo, e ameaçar com
I. Fr. Inácio da Assunção -O Ventoso», Fr. António e Fr. Paulo, todos três
a morte a traidores.
~:melitas~ Ináci~ da Fon.seca Silva, vigário da Matriz, e mais dois clérigos Manuel
Tocaram logo o sino da câmara, e juntos seus oficiais elegeram mes Gra e J oao Rodrigues Calhau, que andaram «com barretinas de soldados
procuradores particulares para os expedientes e execuções de maior escudos, espadas e mosquetes, arregimentando gente', Frei Estêvão e Fr. Luiz
importância 2. Pestana , ambos me rcenarros.
,. O s que mais. se assina
. Iaram na expulsao- dos Padres

Fizeram também dois misteres, escolhidos entre os que formavam da .Companhia foram Fr. Inácio Ventoso, conselheiro-mor dos levantados, e Fr.
L~I~ :estana. Todos aparecem incitando os amotinados, no púlpito ou fora dêle. O
o corpo do motim, e que serviu para se cuidar que as acções de todos
VIga no da Matriz, ainda que alguns factos o culpavam, protestou depois que só
eram dirigidas pelo govêrno do povo: e a êste corpo de amotinados Votara
. contra o Esta nea, e nao- pc Ia expu Isao
- e que so,. agira por medo
. (Bett., Cr6-
n/ea ' 362' , M emana
,. d o P . B ama bêe S oares, 172-173). Falando sôbre a expulsão
dosPadres da Companhia, diz o Superior da Missão: "Franciscani Carmelitae
1. Convento de Santo Antônio, Bett., Cr6nica, 360; Mem6ria do P. Bar- M erce .. CI ' ,
nabê Soares (Bras. 3(2), 172). <Os sediciosos se juntaram pela meia noite na cêrca , naru et erici earn a populo extorquerunt » (Bras. 26, 98). A pedido dos
do convento de Santo António (então ainda fora da cidade), entrando nela por rnCes~os Padres da Companhia, EI-Rei perdoou «aos clérigos culpados. (Betr.
r6ntea, 409). '
uma brecha, que o tempo havia feito no seu muro, diz Fr. Francisco de Na. Sa. dos
Prazeres, Poranduba Maranhense, na Rev. da Inst. Bras., LIV, 86. Be ~. Ss três pseudo-governadores foram Tomás Be~uimão, irmão de Manuel
2. Manuel Bequimão, que ofereceu o outro cargo de Procurador do Povo qUlmao, João de Sousa e Manuel Coutinho Memória 172
3 ' ,.
a Eugênio Ribeiro que se escusou por não saber discursar. Nomeou então a Jorge . . Manuel Bequimão, que é o aludido sempre que aqui se fala apenas em
procurador ou um dos procuradores.
de Sampaio ficando Eugênio Ribeiro, como vogal do Conselho, com Francisco
Dias Deir6 e Melchior Gonçalves, Mem6riado P. Barnabé Soares, 172.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO III - § 2 77
76 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

o capitão-mor Henrique Lopes, e o senado da dita Capitania, res-


. três governadores, e inteirados êstes de que o povo congregado os ponderam uniformes, que nem haviam de negar obediência ao go-
havia de seguir, ainda que muitos o fizessem violentados, saiu re- vernador do Estado, nem ter parte na expulsão dos Padres da Com-
soluta a expulsão dos Padres, que além de contentar aos que a panhia, prometendo sõmente consentir com os do Maranhão na
pediam, agradou aos eclesiásticos, que a desejavam. repulsa do estanque.
Com o alvorôço dêste execrando decreto, foi um dos procuradores No entretanto desta. ausência dos procuradores do povo se ia
destinado ao Colégio de Nossa Senhora da Luz, levando consigo Ja êle moderando, na determinação de expulsarem os Padres, porque
o povo amotinado; e em nome de todos disse ao Padre Reitor do enfraquecida a primeira fúria, se dava muito a ver a razão que os
dito Colégio, e a alguns religiosos mais, ali presentes, que como pro- arguia. Mas depois de chegados os procuradores, tornou a tomar
curador daquele povo os notificava para sairem do Maranhão, por fôrças a mesma teima contra os Padres, porque estranharam êstes
serem prejudiciais à terra, no govêrno temporal dos Índios forros ao povo, as mostras de seu arrependimento, e o tornaram a repôr
das aldeias, e não por defeito algum de religiosos, ou missionários, na repulsa começada, servindo-se para isso de terríveis ameaças com
concluindo a sua notificação com Ihes intimar a saída para a pri- que os intimidavam. E receando os procuradores do povo, que a
meira ocasião; e proibindo-lhes entretanto a comunicação com tôda detença da saída dos Padres pudesse causar alguma variedade nos
a pessoa de fora. Em tudo isto consentiram os Padres com modesto conjurados, foram repetir ao Colégio a ordem da expulsão, apres-
sentimento, sem se valerem das razões que os defendiam, cedendo sando as disposições necessárias para se efectuar.
o sofrimento religioso à fúria popular. O que visto pelo povo, e seu Nesta ocasião tendo para si os Padres, que já o tempo teria
procurador, vieram dar parte aos três governadores, deixando guardas modificado a fereza daqueles ânimos, disseram aos procuradores do
ao Colégio, para que ninguém saísse dêle, nem tratasse com os Padres povo: que, visto não ser ou~ra a queixa que dêles tinham, mais que
sem licença sua. o ~Uldado d~ temporal dos Indios, êles cediam dessa administração,
Vendo pois êste zeloso procurador do povo, que já pelo con- deixando-a a ordem do govêrno e câmara assim como desejavam.
trato se não podia temer resistência, porque o governador estava Não foi admitido êste concêrto, oferecido pelos Padres para os não
no Pará, o capitão-mor prêso, a milícia com cabos de facção, proibida ~nquietarem, porque um dos procuradores, persistindo no primeiro
a venda dos géneros que ainda teria o Estanque, repartida a pólvora Intento, respondeu por si e pelo povo, a quem representou a seu modo
para sua defensa, e o povo atemorizado, e que a êste bom sucesso a co~dição do sossêgo, que se oferecia por parte dos Padres, que não
se tinha. seguido ainda com mais sossêgo a determinação de lançarem conv~nha deixar o que estava principiado e êles pleiteavam: por-
da terra aos Padres da Companhia, porque nem com uma leve razão que ISSO seria grande desdoiro de sua resolução, ainda tão fresca
a haviam contrariado, julgou o dito procurador do povo, que era e idarí ,
se CUl aria, que a repentina mudança do que já estava assen-
precisa obrigação agradecer a Deus, a fortuna daquele dia, o que se tado, nascia de alguma indecente variedade do juízo.
Iêz com um Te-Deum Laudamus, e missa de acção de graças, que . Intentaram segunda vez a jornada do Pará, porque lhes con-
celebrou o vigário da matriz, com repiques de sinos, aplaudindo VInh~ muito o alevantamento daquela Capitania, para não ficar
entre si com recíprocos parabens os autores de tão heróicas acções, parCial a do Maranhão: e a esta emprêsa foi um eclesiástico que
os bons sucessos delas. escolheram de . .. '
. comum consentimento, o qual, depois de se dizer uma
Determinaram logo alterar com os mesmos pretextos as Ca- ss a
lhl . ao Bom Jesus, pedindo-lhe auxílio para aquêle seu grande
pitanias vizinhas, como são a de Santo António de Alcântara, onde serviÇo p t· . .
, ar lU muito animado a o fazer, e na despedida recomendou
foram os dois procuradores do povo, e a do Grão-Pará, para onde
partiu outra pessoa de semelhante zêlo. E arribando êste ao Ma-
ranhão, por lhe fugirem os remeiros, os dois procuradores chegaram
a Tapuitapera, e intimaram aos da Capitania de Santo António de
---
COm muitas razões de persistência a continuação do começado'.

e a ~; Fr. Luiz Pestana (Mem~ria, 173). O emissário procurou mover o' Prelado
amara a secundarem o motim do Maranhão. O Prelado mostrou-se tíbio, re-
Alcântara os seus intentos, mas sem o fruto que esperavam; porque
78 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO III - § 2 79

Teve disto notícia o capitão-mor de T apuitapera, e fêz aviso ali, ficasse em notícias autênticas, para testemunho de seu acertado
ao Pará, da embaixada que lhe mandavam do Maranhão, para se procedimento. Para isso grudaram algumas fôlhas de papel, em que
prevenir o governador do Estado com as cautelas convenientes a lançaram um círculo grande, no meio do qual se escreveram seus
tão estranha novidade; e porque os conjurados souberam dês te decretos, e cláusulas da conjuração, e motivos dela, com severas de-
aviso do capitão-mor Henrique Lopes, corria voz, que o mandavam precações e penas contra os que obrassem ou dissessem o contrário
vir prêso, e se não sabia até àquele tempo se o haviam feito, ou do que ali estava escrito; e para não ficar lugar de se poderem co-
se êle com alguma notícia desta resolução, se havia ausentado. nhecer os cabeças e autores destas perturbações, assinaram todos
Tornaram ao Colégio os procuradores do povo, argüindo aos em roda do dito círculo, satisfeitos de que não sendo conhecidos
prelados de haverem mandado o Padre Pedro de Pedrosa ao Pará, pela ordem das firmas naquele papel, o não poderiam ser pelo que
com aviso do que haviam feito, e de que tinham quantidade de tão publicamente obravam nas ruas e praças da cidade.
cravo em casa de um confidente seu, e de não terem dado umas Depois de juramentados nesta forma, quiseram que assim mesmo
índias de leite para criarem os filhos de uns moradores; constou se pusesse em outra escritura a expulsão dos Padres, para constar
logo ali ser tudo falso, porque o Padre Pedro de Pedrosa apareceu diante a todo o tempo da causa porque a empreenderam. E a êsse fim Ihes
dêles, e o Padre reitor Ihes ofereceu de graça todo o cravo, que mandaram intimar um protesto, com cerimonias judiciais, cuja su-
achassem na casa sobredita; e finalmente se averiguou que era tes- bstância brevemente resumida é a seguinte: que o povo do Maranhão
temunho, o que se dizia das índias de leite, pedidas e não dadas aos os lançava fora, não por escândalo algum em seu procedimento e
moradores. Vendo-se assim convencidos em sua temeridade, êstes vida religiosa, nem menos por faltarem ao cuidado da salvação das
conjurados concluiram suas razões com inculcarem canoas para os almas 1. Que a razão, motivo e principal fundamento desta resolução,
Padres sairem, aos 20 de Março, no que êles não vieram, por serem era por que os Padres tinham a administração temporal dos Índios,
aquelas embarcações incapazes de levarem vinte e sete religiosos no que experimentava aquêle povo intoleráveis apertos. Que Ihes
por uma costa brava e com navegação de tantos dias. Deferiram os pediam e intimavam juntamente não pretendessem jamais voltar
procuradores do povo a esta réplica muito violentados; e destinaram para a terra, que de nenhum modo os queria, e de que já haviam
dois barcos velhos, em que fôssem os Padres para o Brasil, que era sido lançados duas vezes e intentados lançar outra 2.
o termo de seu destêrro. Que de fazerem os Padres o contrário, soubessem causariam
Chegaram nesta ocasião duas canoas do Pará, uma com cartas muitos danos no Maranhão com sua vinda, dos quais, e das mortes
do governador do Estado para o Capitão-mor Baltasar Fernandes, que se seguissem, teriam a culpa tôda. Que nenhuma razão das que
e outra com o Padre J ódoco Peres, da Companhia, Superior das
missões, e mais dois religiosos. Puseram os três governadores em
arrecadação os índios, canoas e cartas, que nelas vinham, e da ja- I. A notificação começa assim: «O povo desta cidade de S. Lulz do Maranhão
nela da Câmara leram os procuradores do povo as do Governador tem já expulsado a Vossas Paternidades dela três vezes com esta; não porque Vossas
Paternidades lhe tenham dado escândalo algum no espiritual mais que no temporal,
do Estado em voz alta, com os comentos e glossa, que Ihes ditava
os quaís declararão e farão presentes ao Príncipe Nosso Senhor, que Deus guarde,
sua paixão. Quiseram também que tudo quanto tinham obrado até porque no exemplo com que Vossas Paternidades obram no espiritual e bem das
almas não têm que dizer> ... Bras. 26, 123; Bibl. de Évora, C6d. CXV/2-11, 87-88;
Melo Morais, Corografia, IV, 186.
pelindo a sugestão só quando viu que o Pará a repelia. O Governador, que antes 2. Uma em 1661, outra talvez se refira ao tempo dos Padres Manuel Gemes
do motim tergiversava na questão dos Indios (Bras. 9,322), quando soube que os e Diogo Nunes, de que não há documentos; a tentativa foi à chegada do P. António
amotinados o tinham deposto, segurou bem as rédeas. E a Câmara, quando Frei Víelra em 1653. Quanto aos índios, que os amotinados queriam, tinharn-lhes res-
Luiz lhe apresentou a mensagem e relatório dos acontecimentos do Maranhão, Pondido os Jesuítas que reparassem em que êles os administravam, mas outros os
pegou nos originais e levou-os ao Governador, hipotecando-lhe a sua adesão e fide- repartiam. A repartição competia, como se disse, ao Bispo, ao Prelado de Santo
lidade à autoridade legítima (Baena, Compêndio das Eras, 153-154). António e a um camarista eleito pela Câmara (Bett., Crónica, 359ss).
80 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO 1II - § 2 81


pudessem dar em sua defensa diante de quaisquer pessoas, seria
admitida sem primeiro aquêle povo ser ouvido, nem teriam vigor Foram muitas as lágrimas da maior parte dos que ali estavam;
algum, as ordens que alcançassem em seu favor como havidas sub- e o mesmo afecto se veria nos ausentes, porque é certo, que os mais
repticiamente. E que até aos 24 de Março estivessem prontos para dos moradores do Maranhão sentiam muito a saída dos Padres, e
saírem, como se tinha decretado, sem a isso pôr contradição alguma, só a estimavam uns poucos amotinados que bastaram para violentar
etc. Lido êste protesto aos Padres, em que vinham assinados os pro- o consentimento dos outros, temerosos de ameaças e arrebatadas
curadores do povo, responderam, que nem leve pensamento tinham resoluções.
de tornarem ao Maranhão; e que se o aprêsto da sua viagem pudesse
Desta sorte se embarcaram os ditos religiosos, em dois barcos,
estar expedito ainda antes do tempo apontado o estimariam muito.
arriscadíssimos a qualquer desgraça do mar, e para maior confirmação
E dada esta resposta, assinariam os Padres, e com êles os tabeliães,
do ódio, que isto obrava, os obrigaram à paga dos fretes de sua pas-
que Ihes foram intimar êste protesto, em 18 de Março do ano de
sagem, sem lhes deixarem levar consigo o que pudesse ajudar esta
16841•
despesa. Assim embarcados, deixaram o Maranhão seus Missionários,
Finalmente chegou o dia da saída dos Padres, e precedendo um
alguns de vinte e mais anos de assistência nêle, com a satisfação con-
bando que os três governadores mandaram correr pela cidade, acudiu
fessada pelos mesmos que os desterraram. Haviam saído quási todos
ao pôr to, onde se haviam de embarcar, a gente tôda, a que o bando
de diversas Províncias da Companhia, onde geralmente amados
obrigava a assistir com suas armas, ou sem .elas. E ao som do sino
viviam no conhecido sossêgo dela, deixando as ocupações e lugares
da Sé, que se tocou como a fogo, sairam do Colégio vinte e sete
de seus merecimentos por virtudes e letras, e perdendo para sempre
religiosos, despedindo-se primeiro de Nossa Senhora da Luz, em dia
a comunicação daqueles, a que a natureza e o sangue, fazia grave-
de Ramos, com palmas nas mãos de dois em dois; e a um dêles,
mente custosa a sua ausência. E tudo isto por ir viver entre bárbaros,
que por muita idade não podia andar, fizeram levar em uma rêde,
aprendendo línguas estranhas, sem mais outro interesse, que o da
admirando a todos o sossêgo de ânimo, que no rosto de cada um
salvação de suas almas, as quais ficavam entregues agora à mesma
se deixava ver 2.
crueldade dos que lhes tiravam os seus Padres, em que tinham o
único amparo para viverem, e doutrina para se salvarem, o que sem
1. Assinam-no: Manuel e Bequíman>, Belchior Gonçalves, Francisco Dias
< Deirão>, Jorge de Sampaio e Carvalho, Eugénio Ribeiro Maranhão, procuradores
êles já não poderão ter, como a experiência o mostrará.
e misteres do povo, dois tabeliães e os Padres J 6doco Peres Superior do Missão, Fizeram-se à vela os dois barcos, a que mandaram seguir com
Estêvão Gandolfi reitor do Colégio, Pedro de Pedrosa, João Filipe (Bettendorff) uma canoa os do govêrno, para verem se com os Padres iam alguns
Aloísio Conrado (Pfeil) Gonçalo de Véras, Manuel Nunes (júnior) e Antão Gon- índios fugidos, e sabendo os Missionários, que os que vinham na
çalves, Bras, 26, 123; Meio Morais, Corografia, IV, -194-197. Não assinou Bar-
dita canoa estavam ainda por desobrigar, e que assim ficariam,
nabé Soares recentemente chegado do Brasil com o cargo de Visitador, por estar
adoentado. Êste é o têrmo da notificação pseudo-oflclal; no outro têrmo, em cír-
porque a quaresma era acabada, e no Maranhão não haveria quem
culo, assinaram muitos mais, incluindo clérigos e frades (Bras. 26, 120v). Ihes zelasse esta obrigação de cristãos, desembarcando nas praias do
2. Era o velhinho Ir. João Fernandes, Bett., Crônica, 370. Foi da mesma forma Pereá, disseram missa, e confessaram aos ditos índios, para que ainda
o P. Visitado r, Barnabé Soares. Os Padres saíram com seu traje completo: roupeta, no caminho de seu degrêdo, pudessem dar o sustento espiritual aos
barrete, viat6rio e bastão, e, pendente do pescoço, «à moda dos Portugueses' o
filhos da sua doutrina. Prosseguiram depois a viagem, e um dos
crucifixo de bronze. Era Quaresma (Domingo de Ramos) e Nossa Senhora da Luz,
Padroeira do Colégio, estava coberta com o veu roxo que manda a liturgia nesse
barcos, que trazia quinze religiosos, chegou a Pernambuco, aos 18 de
tempo. Abriram o veu para ver mais uma vez o rosto e os olhos da Senhora e des- Maio, e o outro, onde vinham doze, ficou arribado pelo Ceará, com o
pediram-se: Vale ó valde Decora et pro nobis Christum exorai, Carta em latim do mastro rendido
P. Aloísio Conrado Pfeil aos Padres e Irmãos da Alemanha Superior, escrita em Não se pode crer a benevolência e amor com que o governador
Mortigura (Pará), a 22 de Dezembro de 1684, Bras. 9, 322-339, reconstituição,
de Pernambuco, D. João de Sousa, e seu irmão o Marquês das Minas,
em latim literário, pessoal, e minuciosa, destas cenas dramáticas.
gOvernador da Baía, receberam aos Missionários desterrados; nem
o sentimento que tiveram sabendo o que fica referido. Desejavam
82 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO III - § ;; 83


ver vingados tantos e tão graves crimes juntos: a desobediência ao
governador do Estado do Maranhão; a falta de respeito às leis e
rou-se para ir também a Lisboa, 'informar EI-Rei e levar os Irmãos
ordens reais; a expulsão dos missionários, e o desafôro de um tão
estudantes para a Universidade de Coimbra, antes que passasse a
horrível motim, em uma possessão de Portugal. Chegou o Marquês,
idade dos estudos.
Governador da Baía, a intentar pessoalmente a jornada do Maranhão,
para empregar seu zêlo na composição de tantos desconsertos; mas
3. - Quando o govêrno central de Lisboa, soube do desacato
pareceu melhor dar primeiro conta a Sua Majestade, e que o fôsse
do Maranhão, tomou as providências que exigia o prestígio da au-
também fazer o Padre João Filipe Bettendorff, que apresentará esta
toridade, Tomás Bequímão, enviado à côrte, não foi reconhecido como
lastimosa relação a Sua Majestade »,
representante da autoridade legitima. Prêso, reexpediu-se para o
No barco grande tinham ido cinco Padres, Barnabé Soares,
Maranhão. Conseguiu-se depois que o seu julgamento ficasse depen-
Pedro de Pedrosa, Diogo da Costa, Antão Gonçalves, e Bettendorff;
dente da Côrte para onde tornou a ser remetido desta vez com
3 Irmãos Estudantes, Francisco Soares, Francisco de Pedrosa e
Eugénio Ribeiro, outro dos procuradores do povo, que se valeu dos
Marcelino; e 7 Irmãos coadjutores, Marcos Vieira, João Fernandes,
bons ofícios do P. Manuel Borba, seu cunhado, então a estudar
Manuel Rodrigues, Manuel da Silva, Domingos da Costa, Domingos
na Univérsidade de Évora. A ambos valeram efectivamente os
Coelho e António Ribeiro. Padres, diante dos Ministros, «até os pôrem fora do perigo de
No barco menor, 5 Padres, J ódoco Peres, Estêvão Gandolfi, morte» 1.
Gonçalo de Véras Man~el Nunes (J únior), Aloísio Conrado Pfei!; No Maranhão, o povo começou a compreender a aventura a que
Irmãos Estudantes, Manuel da Costa, Agostinho da Cunha, Manuel tinha sido induzido, e não tardou que a tropa se não separasse dos
Antunes, António Gomes, Francisco da Mota, e mais dois que não sublevados. E assim, quando o novo Governador Gomes Freire de
menciona Bettendorff. Mas o Cronista narra a odisseia da arribada Andrade chegou, a 15 de Março de 1685, já o veio cumprimentar a
ao Ceará, que ainda não constava na Baía, ao redigir-se a Informação. Câmara, e as tropas de terra uniram-se às que levava, e êle entrou
Com a arribada ao Ceará, pois já estavam em terra firme e amiga, desatourizando os amotinados 2.
alguns não quiseram seguir viagem. Reembarcaram só quatro, os Determinara a Côrte que se não castigasse o povo, mas sim os
Padres Peres e Pfeil e os Irmãos António Gomes e Manuel da Costa.
responsáveis. Não se tratava, como em 1661, de questão limitada à
Cativos de um barco de piratas internacionais (3 ingleses, 3 holan-
liberdade dos Índios. Desta vez tinha-se atingido directamente a
deses, 3 alemães) espoliados de tudo, submetidos a crueis tormentos,
autoridade legal, com a deposição do governador, e constituição
de que receberam graves feridas, foram deixados numa ilha deserta
.dum govêrno local sem mandato, acompanhado de violências e
do Pereá, com um batel remendado em que conseguiram comuni-
Prisão das autoridades, e arresto dos armazens de Estado. Aberta a
car-se com a Ilha do Maranhão e recolher-se à fazenda de Anindiba.
devassa judicial acharam-se seis responsáveis directos que o Governa-
Reconduzidos pelos Procuradores do Povo ao Maranhão, impedi-
dor Gomes F reire de Andrade, segundo as leis, condenou à morte.
ram-nos de morar no seu próprio Colégio 1. Enquanto se curavam
Os Padres, já então restituídos ao Maranhão intercederam por êles
das feridas, convidou-os com todo o afecto António de Albuquerque
Coelho de Carvalho a que passassem à sua Capitania de Alcãntara.
Seguindo depois para o Pará, agasalhou-os bem o Governador e
quási todo o Povo com palavras de condenação pela violência de que I. Deviam ser desterrados para Angola ou quando menos para o Rio de J a-
eram vítimas. E J ódoco Peres, como Superior da Missão, prepa- neiro. Alcançou-se que o fôssem para Pernambuco. E Eugênio Ribeiro, veio depois
a homisiar-se na A'ldeia de Gurupatuba, com o seu cunhado, P. Borba, enquanto
não alcançava perdão definitivo de El-Rei (Bett., Cr6nica, 485). Também Tomás
Bequimão, depois de vã rios atares da fortuna, voltou ao Maranhão, cf. Pôrto
I. Bett., Crônica. 386-387.
Seguro, HG, II I, 311.
2. Barata, Ejemêrides,' 24-25, 85.
84 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO III § 3 85


<cum lacrimis », diz o Superior, P. Sebastião Pires 1. Conseguiram
livrar alguns, não todos, ínfelizrnente.ê Gomes Freire de Andrade voltou ao Reino coberto de bênçãos
Gomes Freire de Andrade levava ordens apertadas da Côrte gerais. E as Câmaras pediram ficasse nelas o seu retrato 1.
para deixar tudo como dantes, Estanco, Padres, Governador, e por-
tanto também restituir os Padres. Assim se fêz em presença do
mesmo General, pelo P. Sebastião Pires, vindo do Pará para isso, e
com as cláusulas da lei, no dia 23 de Setembro de 16853•

"
1. Bras. 26, 114.
2. Foram enforcados dois: Manuel Bequimão e Jorge de Sampaio; Fran-
cisco Oeir6 (em estátua), Melchior Gonçalves açoitado e proscrito; remetidos
para Lisboa, Tomás Bequimão e Eugênio Ribeiro que se pensava em libertar pela
intercessão dos «Nossos>, Carta de Bettendorff, de 12 de Março de 1686, Bras. 26,
133; Crônica, 409. O Jesuíta acrescenta: «Francisco Deíró andou escondido, pelas
matas e sua roça até que anos depois alcançou perdão, tendo também eu escrito
por êle, por me mandar várias vezes pedir essa caridade, quando ouviu que por
meu respeito, tinha EI-Rei perdoado aos clérigos culpados>.
3. De Lisboa tinha-se indicado ao novo Superior do Maranhão, a f6rmula,
protesto e reservas que as circunstâncias requeriam: <Côpia do termo que fez o Padre
Sebastião Pires no Maranhão tornando para lá os Padres. - Chegando a porta da
Igreja de Nossa Senhora da Lus fis protesto, e se me deu certidam na forma se-
guinte. Obedecendo a ordem de S. Mg.dc que Oeos g.de dada ao Sr. Governador e
Cap.üm G.ül deste Estado Gomes Freire de Andrada p.a restituir os Religiosos da
Comp.s de JESV ao seu Colls de N. Senhora da Lus desta Cidade de S. Luis do
Maranhão, e suas missocns e residencias de que foram com injusta e manifesta vio-
lencia expulsados, em nome do P. Ant6nio Pereira vice Superior destas missões
e dos mais Missionarios, Eu o P", Sebastiam Pires religioso professo da mesma Com-
panhia de JESV tomo posse de tudo na forma em que dantes estava, requerendo e
protestando que a dita posse ha de ser dependente da vontade e determinação de
N. M. Rdo P." Geral o P". Carlos de Noíelle, ou. quem em seu lugar estiver p-, a
aprovação, ou recusão como julgar ser mais conveniente e conforme ao nosso Ins-
tituto: e com a mesma condição declaro, que não podemos, nem devemos demitir
com a dita posse o direito que temos p". cobrar as perdas e danos que se nos tem
causado com a tal expulsão. E p •. que a todo o tempo conste deste meu reque-
rimento e protesto, peço que se faça hum termo em modo que faça fee, aos 23 de
Setembro de 1685. Sebastlam Pires. > to
gado a tomar posse do d. Coll=. pelo dito Padre foi lido o conteudo do papel assima
em alta voz em presença de mi tabaliam, e pello dito Snr. General me foi dito desse
TERMO fee de como o d to P? I d to I .
.. ,era o .. pape conteudo assima do que tudo fis este termo
am
eBeuManuel Correa t. do Publico Judicial e notas nesta cidade que o fiz e escrevi :
«Aos vinte e tres dias do mes de Septembro do anno de mil e seiscentoS e ( raso 26, 122).
oitenta e sinco nesta cidade de S. Luis do Maranhão a porta do Collv. de N. Senhora
II 1. CL Rodolfo Garcia, que anota e corrige a Varnhagem e a Berredo, HG,
da Lus estando presente o senhor Gomes Freire de Andrada Governador e Cap.am
I, 312. O retrato de Gomes Freire, da Câmara do Pará, uma lámina de cobre
Geral deste Estado pelo P", Sebastião Pires da Campo. de JESV, que tinha che-
c~m a data de 1688, vimo-Io em 1941, numa sala do Instituto Hist6rico da mesma
CIdade do Pará.
CAPÍTULO IV

o Reg imen to das Missões

- Pensam os Jesuítas em deixar as Missões do Maranhão e Grão-Pará; 2-


Ficam mediante a garantia régia do "Regimento das Missões" e leis subsi-
diárias; 3 - A liberdade no ambiente amazônico,

1. - Chegamos ao ponto crítico da Missão do Maranhão e Grão-


Pará. Dadas as constantes perturbações dêsse Estado, os Padres,
depois do Motim de 1684, sentiram-se diante dêste grave dilema:
ou desfazer a missão e retirarem-se dela; ou adaptarem-se ao meio
ambiente, cedendo da rigidez primitiva. O primeiro estaria mais de
acôrdo com a letra do Instituto da Companhia; o segundo mais com
o espírito dela, que é de adaptação e de caridade, ainda à custa do
seu próprio prestígio.
Nesta emergência manifestaram-se nitidamente duas correntes,
representadas cada qual pelas duas maiores autoridades da Missão:
o P. J ódoco Peres, Superior, e o P. Bettendorff, Procurador enviado
à côrte pela Província do Brasil.
J ódoco Peres, antes de embarcar no Pará, reuniu os Padres e
assentou-se que êle faria um requerimento a El-Rei, pedindo a dis-
solução da Missão:
Depois de expôr o estado da questão, dizia assim:
AUTÓGRAFO DE JOÃO FILIPE BETTENDORFF
«Vendo os Missionários que, para não encontrar as leis de Sua
/ . I M' são E além da sua con
Missionário do Maranhão e da Amazônia. Ocu~ou. a tos cargos n~ . I~ '.' .,. Majestade se expunhamcontinuamente a grandes vexações, moléstias
e Crónica », deixou vasta correspondência em latim, quast toda ainda ínédita.
e perigos de suas vidas, e que, em tal perturbação das coisas, não
somente não podiam satisfazer à consciência de Vossa Majestade,
nem à sua própria, nem ainda poderiam viver em paz e quietação
religiosa, em razão das contínuas vexações com que os perturbavam
ministros e vassalos de Vossa Majestade, obrigando-os a gastar mal
o tempo, que tinham para se ocupar em funções dignas de Missio-
8
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO IV - § 1
88 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

Ribeiro: as leis .de EI-Rei quanto mais protegem os Índios, mais os


nârios apostólicos, respondendo às contínuas calúnias e falsos tes- moradores o levam a mal contra nós 1.
temunhos e aleives, com que sempre estão perseguidos, o que contudo Bettendorff, espírito conciliador e de quem se notava que con-
não podem fazer sem provar que os autores dêles são dignos de grande descendia com «os defeitos» dos Portugueses, interpôs contra Jódoco
castigo, e obrar assim contra a brandura que estão professando: Peres a sua autoridade e achou que o melhor era continuar na missão,
E como, além disso, estavam vendo ser coisa intolerável morar procurando novo amparo na lei, ainda que sempre tão mal cumprida.
em um Estado em que são expulsados com tanta facilidade, e que Entretanto, da Missão, como aquela de Francisco Ribeiro, che-
com tanta ofensa da imunidade eclesiástica e perda de seus bens, gavam a Lisboa e a Roma cartas sôbre cartas em que se referia que
o que nem se lhes faz onde moram entre hereges,' dos quais são tra- a indisposição contra os Padres continuava. E num dado momento,
tados menos mal que dos cristãos dêste Estado, e não podem alegar o próprio Bettendorff, conforme carta sua de 1 de Janeiro de 1686,
outra causa de todos êstes males, que defenderem os Índios injus- ao Geral, encarou também a hipótese da dissolução: Sem admi-
tamente oprimidos, e apertarem com a observância das reais leis nistração temporal dos Índios, a missão não tem razão de ser nem
de Vossa Majestade: pode subsistir. Portanto, ou se alcance essa administração ou se
Vendo, digo, os Missionários tôdas estas coisas, resolveram, com .abandsne 2.
comum sentimento de todos, que, alcançando primeiro o beneplácito A verdade é que o abandono nem era desejado pelo zêlo apos-
e consentimento de Vossa Majestade, pudessem eficazmente e com tólico dos Padres, nem a Côrte o queria como contrário ao interesse
grande instância de seu .Prepósito Geral, desfeita esta missão, serem público. E começou a preponderar na Côrte a idéia da continuação
mandados os seus missionários para onde vos parecesse melhor, sem das Missões. O ministro Roque Monteiro Paim toma decididamente
embargo de verem em quão miserável estado havia de ficar desam- o partido da restituição. J ódoco Peres é mandado para fora da Côrte,
parado o novo rebanho de neófitos, pela razão da ausência de seus com o objectivo aliás verdadeiro de ir recrutar missionários nas Uni-
Párocos, porque também os Apóstolos desampararam a J udéia pela versidade de Coimbra e Évora para a misão renovada, cujo estatuto
razão semelhante, conforme o aviso de Cristo que diz assim: se vos se organizaria entretanto, intervindo nêle directamente, além de
perseguirem em uma cidade, fugí para outra, e deixai tudo à dispo-- Bettendorff, os Padres Manuel Fernandes, célebre autor do livro
sição da Divina Providência: e esta foi também a causa por que os clássico «Alma Instruída», então presidente do Tribunal das Missões
missionários, de comum consentimento, decretaram que o mesmo e confessor de EI-Rei, e o P. João Madeira, confessor de Roque Mon-
Superior da Missão se fôsse à Côrte, e, botando-se humildemente teiro. Interveio ainda, da Baía, mais uma vez, o P. António Vieira.
aos reais pés de Vossa Majestade, lhe pedisse pelas Chagas de Cristo, Período de debates, consultas, memoriais e propostas 3.
por petição oferecida, quisesse pôr os olhos sôbre os seus humildes A primeira proposta que se apresentou foi a da segurança, sem
missionários, que, sem fruto e sem esperança dêle, estão padecendo a qual não poderiam voltar os missionários. Vieira mostrou-se em
tantas e tão graves moléstias que humanamente não têm remédio, desacôrdo com Bettendorff em alguns pontos e entendia que dada a
e dar-lhes licença para solicitar de seu Prepósito Geral a dissolução
da Missão do Maranhão, em o que conheceriam ter recebido de Vossa I. Carta de 6 de Dezembro de 1685, Bras. 26, 126.
Majestade uma singular mercê» 1. 2. Bras. 26, 129-130.
3. Dêstes memoriais um é de Bettendorff, e que êle inclue na sua Crônica
A opinião de J ódoco Peres era abertamente pelo abandono puro
(398-400), outro é o Memorial de Doze Propostas que está em Évora, c6d. CXV/2-11,
e simples da Missão, mesmo se se oferecesse aos Padres a admi- publicado sem nome do Autor em Meio Morais, Corografia, IV, 186-201. Mas
nistração dos índios, visto que as leis não se cumpriam e era perpétua a 20 de Julho de 1686 o P. Alexandre de Gusmão envia ao P. Geral e para EI-Rei
a luta, segundo aquilo que do Pará mandava dizer o Reitor, Francisco uma grande Informação do P. Ant6nio Vieira. (Carta do P. Alexandre de Gusmão,
de 20 de Julho de 1686, Bras. 26, f. 135~135v). Supomos ser êste Memorial que,
Pelo assunto e pelo estilo, é de Vieira. .

1. Bett., Cr6nica, 405-406.


90 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO IV - § 2 91

segurança necessana, e dotação congruente (não mero fingimento mesmos Índios pelo Governador, sob proposta dos Padres da Com-
dela) os Padres não deveriam aceitar nada dos Índios. Manifestou-se panhia; a repartição dos Índios pelos moradores; os que deviam ficar
contra alguns pedidos' de Bettendorff, que, segundo êle, pedia sem para o serviço dos Missionários; o salário respectivo; a defesa interna
saber o que pedia: as Aldeias para os Colégios; a repartição dos Índios das Aldeias contra possíveis intrusões e perturbações dos moradores;
livres, fonte perpétua de distúrbios; os resgates dos Índios, no sertão, a defesa do matrimónio cristão, e que se algum índio ou índia das
pelos da Companhia; e que a Companhia aceitando tais resgates Aldeias induzido pelos seus senhores, casasse com escrava ou escravo
perderia a autoridade. No Maranhão, pela experiência que êle tinha, em vez do livre ficar cativo, ficava o cativo livre, disposições estas
os Padres da Companhia não deviam buscar mais que canseiras e e outras, que se repartem por 24 parágrafos 1.
trabalhos com os Índios e os lucros da sua liberdade. Senão, seria O § 17 concedia para serviço dos missionários, 25 Índios; como
a ruina 1. Em todo o caso Vieira, para garantir essa mesma liberdade era expressão ambígua e a poderiam sofismar, como de-facto sofis-
dos Índios, era partidário da administração temporal, da qual era maram os desafectos dos Padres, negando-lhes o direito a te rem Índios
tão dependente a espiritual, que sem aquela não poderia haver esta. casados, não tardou a declarar-se autenticamente que eram 25 casais2•
Nisto o acôrdo era completo. Mas explica, para obstara más inter- EI-Rei assinou o famoso Regimento das Missões a 21 de Dezembro
pretações de inimigos, que a administração era apenas o que se de 1686. Dez dias depois escreve êle próprio ao Geral da Companhia,
dirá ao tratar dos Aldeamentos, uma «prudente e zelosa direcção para evitar que opusesse dúvidas à restituição dos Padres ao Ma-
com que os missionários encaminham a vida dos índios, para que ranhão e Pará, e para afirmar, com um acto pessoal, a garantia régia
ao serviço dos nossos Portugueses não periguem suas liberdades ». da segurança oferecida:
«Padre Geral da Companhia de Jesus: Eu EI-Rei vos envio muito
2. - Bettendorff, em contacto directo com El-Rei, que o recebia saudar. Com a primeira notícia do levantamento do Estado do Ma-
muitas vezes 2, atendia mais à segurança económica da missão e ranhão e expulsão dos Religiosos vossos súbditos, mandei àquêle Es-
manifestou-se partidário da descentralização da catequese de ma- tado averiguar e castigar os cúmplices e autores de tão grave crime.
neira que os encargos dela se repartissem por outros Religiosos. San- E por me constar que não só não deram causa à dita expulsão, mas
cionado assim o princípio da colaboração, e encerrados os debates, que os motivos dela fôra o zêlo do serviço de Deus e meu, com que
cujos pormenores são longos, seguiu-se uma série de diplomas legais se empregam na redução daquela vasta gentilidade, os mando resti-
de 1686 a 1693 que ficaram a reger a matéria da liberdade daí em
diante, ainda depois com múltiplas modificações como sempre, mas 1. Publicamo-Io na íntegra, porque apesar de ser tão importante o Regimento
permanecendo intacto o essencial dêles só é conhecido nos autores que tratam dêstes assuntos, por extractos ou in-
O primeiro grande diploma régio é de 21 de Dezembro de 1686, completos, ou tirados de fontes menos fidedignas. O exemplar, único que co-
nhecemos, conserva-se em Évora, C6:!. CXV/2-12, anotado pelos pr6prios Je-
o chamado Regimento das 'Missões do Estado do Maranhão e Grão-
suítas, a quem pertencia. São 82 páginas impressas por Ant6nio Manescal e
Pará. Com uma segunda parte manuscrita com diversas leis posteriores a 1724. Abre
O Regimento abre com um preâmbulo em que alude aos dis- com o Regimento e Ley sobre as Missões do Estado do Maranhão e Pará sobre a
túrbios do Maranhão dois anos antes; e depois regula a catequese, Liberdade dos Índios (Lisboa 1724) 1-16. CL Apêndice D.
a cargo da Companhia de Jesus e também dos Padres de Santo 2. Carta Régia de 23 de Março de 1688 ao Governador do Maranhão
avisando-o de que no Novo Regimento, que concedeu aos Padres da Companhia
António, nas Aldeias que tinham; o govêrno não só espiritual como
:;ra a~ Missões, I?es permitiu ter~m 2~ ca.sais de Índíos, Bibl. de Évora, Cód.
temporal e político; a manutenção e acrescentamento das Aldeias XV/2 18, 115. Neste mesmo côdice ha ainda outras Cartas Régias de 20 de
com os descimentos dos Índios; a nomeação de dois procuradores dos Março, 22 de Março, e 2 de Maio de 1688. A carta Régia de 23 de Março a
Artur de Sá e Meneses com a data de 25, está em Anais do Pará, I, 95: «que
1. Bras. 3 (2), 256-257v. se não falte nunca com os vinte e cinco casais de índios, a que têm direito os Mis-
2. Bras. 26, 134. Sionários da Companhia de Jesus>.
TÔMO IV - LIVRO I - CAPÍTULO IV ~ § 3 93
92 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

na lei de 1655, com novas cláusulas, e com a orientação suprema


tuir àquêle Estado para que conti uem com aquêle fervor ~ zêlo com dos resgates confiada à Companhia de Jesus 1.
que o fizeram sempre. Pareceu-me participar-vos esta minha reso- Bettendorff estava ainda em Lisboa. Foi certamente ouvido:
lução, encomendando-vos muito queirais concorrer p~ra _ ela com No modo dos resgates, defende-se, e não há direito de duvidar do
tôdas as ordens necessárias em ordem a que aquelas rrussoes se au- seu testemunho: «Uma só coisa se pôs (na lei) em que eu nunca
mentem e haja Religiosos que lhes assistam. E eu fico d~pondo todos vim, e foi o modo com que mandavam fazer êstes resgates da fazenda
os meios para que êles sejam conservados nela com toda a conve- real, e cobrar-se os pagamentos dêles pelo rateamento que na lei
niência, decência e segurança, que se requere para ~egócio tanto ~o se aponta e mais as contas que de tudo se mandava que desse o dito
serviço de Deus e meu, tendo por muito certo que a~sl~ o observarels. Superior, porque era isto coisa dificultosíssima e contra o que per-
Escrita em Lisboa, a 31 de Dezembro de 1686. Rei» . mitia nosso Instituto, além de muitas outras razões que aqui se não
Esta lei, em si justa e que mantinha a de 1680, inspi~ada por alegam» 2.
Vieira, em que se proibia tôda a sorte de cativeiros, foi pu~h~ada no Esta desaprovação, na própria fonte, explica o que depois su-
Pará ao som de caixas militares. E logo um frade mercenario fal?u cedeu: a dificuldade oposta pelos Padres em acompanhar as expe-
do púlpito contra ela e um tal José de Brito fêz pasquins. O primeiro dições de resgates que muitas vezes se fizeram sem êles e portanto
foi suspenso e o segundo prêso 2. contra as leis, ocasiões de infinitas devassas e cartas régias ..
Não tardaram porém as habituais versatilidades dos morador~, A lei era de 28 de Abril. Tendo ainda tocado na questão dos
pedindo primeiro o que tanto tinham combatido, Aldeias de ~d~l- Aldeamentos e repartições das Aldeias, de que ia originar-se a lei
nistração, que EI-Rei quis entregar aos Padres da Companhia , e de 1693, Bettendorff deixou Lisboa, pouco depois, a 17 de Maio de
logo mudando de parecer, os moradores preferiram entradas aos 1688, de volta para as Missões do Maranhão e Grão-Pará. Bettendorff
sertões, para escravos, que era destruir a lei de 1680. ~as o ~no de teve real influência na Côrte. Entrava no Paço com facilidade, com-
1687 era aquêle em que os Franceses desciam de Caiena e vinham punha versos latinos e acompanhava a côrte nas suas festas. Quando
dali fazer escravos no Cabo do Norte, onde os índios mataram aos em Agôsto de 1687 chegou a Lisboa a nova espôsa de D. Pedro I I,
Padres António Pereira e Bernardo Gomes; pelo Solimões apareciam D. Maria Isabel, acompanhada de dois filhos do Rei de Inglaterra,
os Espanhóis; e já pelo Rio Negro havia indícios de Holandeses. estava entre os que a receberam no Tejo: «fornos embarcar em um
Todos mais ou menos mergulhavam na Amazônia como fonte de bergantim dourado; Sua Majestade no que estava aparelhado para
escrav~s .. Os motivos, alegados pelos moradores, foram examinados sua real pessoa e para a Senhora Rainha; o Duque de Cadaval em
Côrte e em Roma 4. E o Alvará de 28 de Abril de 1688 veio san- outro; e o P. Reitor e eu em o terceiro ». Êste simples facto explica
na ·'d .,
cionar de novo os cativeiros em determinados casos, estatui os Ja o seu prestígio 3.

. 3. - Dotado de espírito conciliador e fidalgo, o Procurador das


Missões na Côrte, Iêz de certo o que no momento lhe pareceu mais
1. Bras. 26, 141. É o próprio original. útil ao bem geral da Missão do Maranhão e Grão-Pará, com a pro-
2. Carta do P. Francisco Ribeiro, de 20 ele Setembro de 1687, Bras. 26,
160; cf. Cartas Régias de 6 de Janeiro e 20 de Agôsto de 1688, Bibl, de Évora.
C6d. CXV/2-18, 108, 128.
1. Cf. Regimento das Missões, Évora, Cód. CXV{2-12, 20-26. Apêndice E.
3. Bett., Crónica, 414. . s
4. «Algumas opiniões práticas que por serviço de Deos e bem das alma 2. Bett., Crônica, 415.
devem ser calificadas pello Sancto offício, ou Sé Apost6Iica" Roma, Propaganda, 3. Bett., Crónica, 421. Sôbre Bettendorff, cf. J. B. Hafkemeyer, W'ie Pater
Iridla Orientali e Cina, 1685-1687, nei Congressi 4, f. 136a.- Tra~a-se da guerra Joltann Bettendorj] S. J. vor 300 l ahren nacli Brasilien kam und I ndianermis-
contra os lndios e do seu serviço nas terras do Brasil, Maranhao (2pp.). Tra- sioneir in Maranhão uiurde, publicado em Sonntagstimmen, de Porto-Alegre,
- . I' (3pp) Com uma nota advertindo que se consultem os conhecedores ns. 11-16 (Março-Abril de 1941).
d uçao Ita lana . .' ,., d
. d B '1 ra dada a decisão se não voltar atras como JU suce eu.
d as coisas o raSI, pa " .
94 HISTÓRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

mulgação do Regimento das Missões e mais legislação anexa, perpe-


tuamente refundida no futuro .a cada passo em seus pormenores.
Mas, pelas conseqúências, se pode ajuizar hoje e talvez duvidar se
com ela a Companhia voltou às missões mais autorizada, e se êsse
mesmo espírito de conciliação, quebrando a intransigência primitiva
de Vieira, não quebrou também e afrouxou a autoridade dos mesmos
Padres na repressão dos abusos contra as leis. Mas, se se pode du-
vidar, e mesmo aceitar, a história reconhece em concreto que entre
o abandonar o campo, perspectiva de 1684, e voltar a êle, ainda
que com êstes inconvenientes, a volta foi um bem. ~ste concreto
significa, na Amazónia, que a liberdade dos Índios era um bem pre-
cário que os Jesuítas defendiam, senão na sua integridade, ao menos
quanto podiam. E quando a lei de 1755, promulgada dois anos depois,
veio destruir o Regimento das Missões e repô r em vigor as leis de 1663
e 1680, logo foi preciso inventar outro Regimento apenas com nome
diferente, o Directório que praticamente a anulasse. E tão precária é
esta liberdade que ainda hoje, no século XX, existem no interior LIVRO SEGUNDO
da Amazónia estas quatro modalidades de vida, tal qual no tempo
dos Jesuítas: homens selvagens; homens forros ou livres; homens
tutelados; e homens escravos, duma escravidão quási legal, pra-
gmática, sancionada pelo uso, por outro «Regulamento» expresso
ALDEAMENTO E CATEQUESE DOS ÍNDIOS
ou tácito, como se exprime Euclides da Cunha, que conta com
côres vivas como se «vende um homem» 1.
Parece-nos que nêste emaranhado campo da liberdade, dadas as
condições económicas e antropogeográficas da terra amazónica, a
actividade da Companhia de Jesus (não excIuimos o concurso de
outros missionários) cor respondeu ao primeiro estágio da sua as-
censão à vida civilizada com uma quota parte de assistência, que
exceptuando alguns desfalecimentos, a verdade classifica de elevada
e generosa. Se não realizou o milagre completo, é porque ainda
hoje êsse milagre está à espera do seu taumaturgo, que se chama o
Tempo.

1. Euclides da Cunha, À Margem da Histôria (Pôrto 1913)29. Outro tes-


temuoho de Roquette-Pinto, cf. adiante, Livro III, Cap. 11.

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