Considerações Sobre o Estudo Da Família Sob o Paradigma Sistêmico

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FORMAÇÃO EM TERAPIA FAMILIAR

SISTÊMICA

ESPAÇO VIVER: FORTALEZA, 2016

Considerações
sobre o estudo da
família sob o
paradigma
sistêmico

CHRISTINA SUTTER
1

Considerações sobre o estudo da família


sob o paradigma sistêmico
Christina Sutter

Sumário

1- Os sistemas estão em toda parte?......................................................... p.2

1.1– Fundamentos da ideia de sistema

1.2 - A vida como um sistema e a noção de complexidade

1.3 - As propriedades dos sistemas vivos

2. - A família como um sistema social antropomórfico............................ p.9

2.1 - Sistema governado por regras

2.2 – Lealdades familiares

2.3 -Padrões de comunicação

2.4 - O meio humano

2.5 - Transmissão familiar

2.6 - Família E complexidade

3 – É o sistema uma metáfora adequada para pensar a família?........ p.15


2

1. Os sistemas estão em toda parte?

1.1 - Fundamentos da ideia de sistema

O termo sistema refere-se a um conjunto de elementos, objetos ou


fatores que compõem uma totalidade. A ideia de totalidade é crucial para
a compreensão do que seja um sistema, posto que pressupõe que total não
diz respeito apenas à reunião ou soma dos elementos que compõem um
sistema, mas ao modo com estes se relacionam. O sistema é então essa
totalidade que comporta suas partes e a relação entre elas. Por outro lado,
a relação entre as partes não se dá de forma linear ou sequencial, mas sim
circular e retroativa, o que confere maior complexidade ao estudo do
sistema.

Como todas as partes se inter-relacionam e estão em


interdependência, não se pode pretender o estudo de uma parte isolada
sem correr o risco de cair numa ingênua simplificação. Todo sistema
vivo, fazendo parte de um sistema mais amplo, pode ser considerado um
subsistema, que contém em si subsistemas menores, e assim por diante.
Cada subsistema sendo em si mesmo uma totalidade ou um Holon, se
caracterizará por ter, simultaneamente, as propriedades do todo e as
propriedades das partes, numa tensão constante entre forças integrativas
e forças auto afirmativas.

Os avanços da cibernética, da física quântica e da termodinâmica


foram fundamentais para uma nova descrição do mundo, desde os
fenômenos físicos aos biológicos. A cibernética como ciência do controle
organizacional, baseada na comunicação entre o sistema e o meio e
dentro do sistema, desenvolveu-se não sobre a descrição da matéria, mas
dos padrões e dos comportamentos (Keeney, 1997) passando a ser
aplicada a esferas distintas, das máquinas aos sistemas vivos. A partir do
conceito de homeostase1 de Cannon, Norbert Wiener generalizou os
conceitos de informação e de retroação do campo da tecnologia para as
esferas biológicas e sociais (Bertalanffy, 1977).


Este subtítulo é uma referência ao título que von Bertalanffy dá à introdução de seu livro “Teoria Geral dos
Sistemas”.
1
A homeostase é o estado constante ou de equilíbrio de um sistema, mantido através da retroalimentação
negativa.
3

Por sua vez, o antropólogo Gregory Bateson elevou a cibernética


ao status de epistemologia ao conceber que a unidade de análise para a
explicação do comportamento deveria ser o organismo-mais-ambiente
(Vasconcelos, 1995) o que significa que qualquer descrição de um ser
vivo comporta necessariamente a descrição das relações2 que constituem
esse ser vivo. Nesse sentido, Bateson fala em “ecologia da mente” onde a
mente passa a ser compreendida como um sistema cibernético que inclui
as relações com os elementos exteriores, de modo que todo sistema seria
dotado de mente3. Nos termos de Bateson (1991),

A regra básica da teoria dos sistemas é que, se você quiser entender algum
fenômeno ou evento, você deve considerar este fenômeno dentro do
contexto completo de todos os circuitos que são relevantes para sua
compreensão. A ênfase está no conceito de circuito comunicacional
completo, estando implícito na teoria a expectativa de que todas as
unidades contendo circuitos completos mostrará características mentais. A
mente, em outras palavras, é imanente ao circuito.4 (p. 260)

Deve-se ainda a Gregory Bateson e a Margaret Mead a introdução


do conceito de cibernética no campo das ciências sociais a partir dos
estudos etnográficos sobre o contato cultural, nos processos de interação
denominados por simétricos e complementares (Bateson, 1977). A ênfase
no estudo das relações e da comunicação foi de suma importância para o
desenvolvimento da terapia familiar e o começo de uma mudança
paradigmática na saúde mental.

A teoria quântica, resultado do trabalho de diversos cientistas,


correspondeu a uma revolução no conhecimento da natureza da matéria e
dos processos subatômicos: descobriu-se que a matéria e a luz possuem
uma natureza dual onde as unidades subatômicas apresentam-se ora como
partículas, ora como ondas, dependendo do modo como são observadas.
Para resolver esse paradoxo Bohr introduziu o conceito de
complementaridade, em que a imagem da partícula e a imagem da onda
são descrições complementares da mesma realidade, cada uma delas só
parcialmente correta (Capra, 1990). Ou seja, no nível subatômico da

2
Para compreender os padrões de relação do mundo vivo, Bateson fazia amplo uso da metáfora, como por
exemplo no seguinte silogismo, inspirado no silogismo de Sócrates: “Os homens morrem. Sócrates é homem.
Sócrates morrerá”. “Os homens morrem. O capim morre. Os homens são capim” (in Capra, 1994), onde no
segundo silogismo, a classificação se dá mediante a identificação de predicados.
3
A mente individual seria apenas um aspecto ou um subsistema de uma Mente mais ampla, onde todos os
aspectos existenciais resultam interconectados e se transformam em apenas um (Keeney, 1997).
4
Livre tradução.
4

matéria os conceitos da física clássica – partícula, onda, posição,


velocidade – não encontravam a mesma aplicabilidade. Heisenberg, por
sua vez, chamou de “princípio da incerteza” a impossibilidade de
determinar simultaneamente a posição e a velocidade da partícula
subatômica, ao constatar que quanto mais um aspecto é enfatizado mais o
outro se torna incerto. Assim, o princípio da incerteza, ou
indeterminação, mede o grau em que o cientista influencia as
propriedades dos objetos observado pelo próprio processo de observação.

A consequência de tais constatações é que no nível subatômico só é


possível falar de interconexões5 “numa inseparável teia cósmica que
inclui o observador e sua consciência” (Capra, 1990, p. 86). A teoria da
relatividade geral de Albert Einstein já havia revolucionado a noção de
espaço e tempo, ao descrever o universo como um todo dinâmico onde
espaço e tempo são relativos e inseparavelmente ligados. O ser da
matéria (espaço) não pode ser separado de sua atividade (tempo) levando
à consideração de que as propriedades da matéria só podem ser
entendidas num contexto dinâmico de movimento e interação.

O segundo princípio da termodinâmica6 introduz a ideia de


degradação de energia - chamada por Clausius de entropia - que
corresponde a uma diminuição irreversível da aptidão da energia calórica
de se transformar e de efetuar um trabalho. É porque a energia calórica
comporta a desordem molecular nos seus movimentos – já que todo
aumento de calor corresponde ao aumento de agitação das moléculas -
que há uma degradação inevitável da aptidão ao trabalho, de modo que
todo crescimento da entropia corresponde ao crescimento da desordem
interna. A consequência é que um estado de entropia máxima, num
sistema fechado, vai corresponder a uma desordem molecular total que se
manifesta ao nível global pela homogeneização e pelo equilíbrio. O
segundo princípio da termodinâmica leva a considerar a produção da
ordem a partir da desordem, da organização a partir da desorganização no
que poderia se chamar de desordem organizadora (Morin, 1977).

5
Na abordagem desenvolvida por Geoffrey Chew, conhecida como bootstrap o universo é visto como uma
teia dinâmica de eventos inter-relacionados onde as propriedades de qualquer parte dessa teia decorrem das
propriedades das outras partes do todo e a coerência total de suas inter-relações determina a estrutura da teia
(Capra, 1990).
6
O primeiro princípio da termodinâmica reconhece na energia uma entidade indestrutível, dotada de um
poder polimórfico de transformações (energia mecânica, elétrica, química, etc.) o que garante ao universo
físico uma auto-suficiência e eternidade para todos os seus trabalhos.
5

Posteriormente, Prigogine vem demonstrar que a relação entre os


fenômenos desordenados e os fenômenos organizadores são
complementares. A termodinâmica do não equilíbrio demonstra que para
os sistemas longe do equilíbrio, que constituem a regra na vida orgânica,
os sistemas mostram-se instáveis a ponto de precipitar a amplificação de
algumas flutuações e provocar com isso a evolução do sistema para um
novo regime de funcionamento, para uma nova estrutura,
qualitativamente diferente dos estados anteriores de equilíbrio, de modo
que é a própria instabilidade que mobiliza os processos auto-
organizacionais do sistema. A conclusão é que não existe lei universal
válida que possa ser aplicada a um sistema longe do equilíbrio, já que a
possibilidade da amplificação de um mínimo desvio, ou a “escolha”
realizada pelo sistema num ponto de bifurcação, sugere uma evolução
totalmente singular. A ampliação dos desvios a partir de pontos de
bifurcação e ordem a partir da instabilidade levou à compreensão que
tanto o mundo físico (sub-orgânico) quanto o mundo biológico (orgânico)
e o social (supra-orgânico) possuem muito mais pontos em comum do
que se poderia outrora imaginar (Vasconcelos, 1995).

1.2 – A teoria geral dos sistemas

A física, a partir das leis do acaso e das probabilidades, e da


segunda lei da termodinâmica, criou uma teoria da complexidade
desorganizada. A partir da constatação da necessidade de se encontrar
uma teoria que pudesse dar conta da complexidade organizada que supõe
conceitos como organização, totalidade, direção, teleologia e
diferenciação, estranhos à física clássica, o biólogo Ludwig von
Bertalanffy (1977) propôs uma nova disciplina científica que ele
denominou a teoria geral dos sistemas.

Considerando que certas leis matemáticas podiam ser aplicadas a


campos essencialmente distintos – tal como a lei exponencial de
crescimento que se aplica a populações de bactérias, de animais e de seres
humanos - e que tal aplicação só era possível porque tais campos podiam
ser interpretados como “sistemas”, Bertalanffy desenvolveu uma teoria
geral que descrevesse as propriedades similares de diferentes sistemas,
sendo, portanto, uma ciência geral da “totalidade”. Essas propriedades
gerais se aplicam aos sistemas abertos, ou os sistemas que trocam matéria
com o meio ambiente. As propriedades gerais dos sistemas são as
seguintes:
6

a) Globalidade: qualquer mudança numa parte do sistema provocará uma


mudança em todas as partes e no sistema total. Assim, o sistema é mais
do que a simples soma dos elementos que o compõem já que o que conta
são as relações específicas, constitutivas, que estes possuem entre si. Uma
característica fundamental da globalidade é a qualidade emergente, ou a
qualidade que emerge a partir dessas relações, e que não poderia ser
explicada pela qualidade dos elementos considerados separadamente.
b) Retroalimentação: as relações entre os elementos de um sistema se dão a
partir de uma causalidade circular, retroativa, por meio da qual o sistema
se autorregula, seja para manter um estado de equilíbrio (homeostase),
seja para alcançar novos estados evolutivos.
c) Equifinalidade: nos sistemas biológicos o mesmo estado “final”, ou a
mesma meta, pode ser alcançado partindo de diferentes condições iniciais
e por diferentes trajetos, posto que o que conta é a natureza da
organização do sistema.

1.3 – As propriedades dos sistemas vivos.

A característica essencial dos organismos vivos é a auto-


organização, no sentido de que a organização de um organismo é
determinada por ele mesmo: nos processos de adaptação e mudança o que
conta é a referência interna. Os sistemas dotados de auto-organização são
capazes de auto renovação – a capacidade de renovar e reciclar
continuamente seus componentes, e auto transcendência – a capacidade
de se expandir criativamente para além dos próprios limites físicos ou
mentais através da aprendizagem e da evolução.

Maturana e Varela (1995) chamaram de autopoiese a capacidade


que os organismos têm de gerarem continuamente a si mesmos, de modo
que o que caracteriza os seres vivos é sua organização autopoiética.
Nestes termos, a ontogenia é a história das mudanças estruturais de um
ser vivo sem que este perca a sua organização7. As mudanças estruturais
tanto podem ser desencadeadas pela interação com o meio quanto por sua
dinâmica interna. Um aspecto essencial dos sistemas vivos é que são
sistemas abertos no sentido que mantém sua estrutura e organização
através de contínuas trocas com o meio. Desse modo, no que diz respeito
à sua autopoiese os organismos são sistemas fechados, mas na sua inter-
7
A organização refere-se às relações que devem se dar entre os componentes de um sistema para que este seja
reconhecido como membro de uma classe específica. A estrutura compreende os componentes e as relações
que concretamente constituem uma unidade e realizam a sua organização (Maturana e Varela, 1995, p. 87)
7

relação com o meio os organismos são sistemas abertos, realizando trocas


contínuas e operando longe do equilíbrio. Assim, a estabilidade de um
sistema vivo é uma estabilidade dinâmica ou, visto por outro ângulo, o
sistema é uma estrutura que se estabelece em permanente processo
(Neuser, 1994).

Outra característica importante dos sistemas vivos é que os


organismos diferem quanto ao tipo de acoplamento estrutural de que são
capazes de realizar (Maturana e Varela, 1995). Os acoplamentos de
primeira ordem são os acoplamentos estruturais entre as partes de uma
célula; acoplamentos de segunda ordem correspondem aos acoplamentos
estruturais que compõem os metacelulares; e os acoplamentos de terceira
ordem referem-se aos acoplamentos estruturais entre indivíduos,
conhecidos como fenômenos sociais, sejam estes formigas, antílopes ou
humanos. Nestas unidades de terceira ordem, os organismos individuais
satisfazem sua ontogenia na medida em que participam da rede de
interações mútuas que constituem os fenômenos sociais. Além disso, os
acoplamentos de terceira ordem se dão, necessariamente, através de
condutas comunicativas. No caso dos sistemas sociais humanos, os
acoplamentos estruturais se dão nos domínios linguísticos e semânticos
onde os indivíduos podem operar com a linguagem e serem observadores
(1995).

1.4 – A vida como um sistema e a noção de complexidade

Inspirado em Bateson, Fritjoff Capra desenvolveu a ideia da “ visão


sistêmica da vida” correspondendo a uma nova visão da realidade que
“baseia-se na consciência do estado de inter-relação e interdependência
essencial de todos os fenômenos – físicos, biológicos, psicológicos,
sociais e culturais” (1990, p. 259). Nesse sentido, os processos da vida
adquirem uma dimensão notável que, se por um lado, torna qualquer
visão parcial uma mera simplificação reducionista, por outro, remete a
uma complexidade sem fronteiras.

Uma das características dos sistemas vivos, é que o todo tem uma
quantidade de propriedades e qualidades que as partes não possuem
quando esse todo é fragmentado ou desmembrado (Morin, 1995). Da
interação entre as partes há uma emergência que retroage sobre o
comportamento das partes, numa mão dupla em que o sistema é produto
da interação entre as partes ao mesmo tempo em que as partes são o
produto do sistema. Por exemplo, a sociedade é uma emergência que
8

retroage sobre os indivíduos através da linguagem, educação e cultura. Do


mesmo modo, uma colônia de formigas é uma emergência que retroage
sobre os indivíduos determinando papéis na organização social das
formigas. Como diz Johnson (2003), sistema vivos são sistemas botton
up, isto é, há um movimento das regras de nível mais baixo para a
sofisticação do nível mais alto e mais complexo, resultando naquilo que é
chamado de “emergência”.

Por outro lado, Morin (1977) lembra que um acento excessivo


numa visão holística pode, também, inadvertidamente, cair no
reducionismo. Se as partes devem ser concebidas em função da totalidade
estas também devem ser consideradas isoladamente, posto que uma parte
tem sua própria irredutibilidade em relação ao sistema. Assim, Morin
propõe que os elementos sejam definidos nas suas características
originais, dentro das inter-relações às quais eles participam, dentro da
perspectiva da organização à qual se agenciam e dentro da perspectiva do
todo onde se integram, onde o sistema estaria no circuito que une cada um
destes aspectos:
Elementos  inter-relações  organização  todo
__________ _____________ ___________

Além disso, a ideia de totalidade pode ser, inclusive, insuficiente, já


que a verdadeira totalidade é sempre fissurada, incompleta, comportando
pontos cegos e rupturas. Por outro lado, a totalidade é também incerta,
com limites muitas vezes indefiníveis, sobretudo para os sistemas de alta
complexidade biológica, como, por exemplo, é o caso do homo sapiens,
constituído pela inter-relação entre espécie, indivíduo e sociedade (Morin,
1977).

A complexidade não estaria apenas na consideração das


interdependências e inter-relações entre as partes que compõem um
sistema, ou da consideração dos múltiplos níveis sistêmicos que
compõem a vida enquanto tal, mas também daquilo que não pode ser
apreendido, que escapa ao olhar, daquilo que é singular ou daquilo que
advém enquanto acaso e desordem.

Cabe aqui ressaltar a importância da desordem nos processos


organizadores. Todo sistema trabalha continuamente para regenerar sua
organização, trabalha contra a anti-organização. Mas a desordem não é
9

eliminada pela organização: ela permanece virtual e pode se atualizar, de


modo que a ordem “necessita” da desordem em uma contínua relação de
mútua produção, onde ordem e desordem “às vezes se confundem, se
atraem, se necessitam, se combatem, se contradizem” (1977, p.80). A
desordem não é somente anterior, enquanto interações ao acaso, e
posterior, enquanto produto da desintegração, à organização: ela está
presente de forma potencial e/ou ativa. Daí porque a ordem
organizacional ser uma ordem relativa, frágil, perecível, mas também
evolutiva e construtiva.

Enquanto que, na ciência clássica, a ordem se desprendia de uma


concepção determinista e mecânica do mundo, onde a desordem era
apenas “fruto de uma ignorância provisória” (Morin, 2000, p.199), no
pensamento complexo a ordem adquire um novo sentido na medida em
que a desordem ganha um lugar fundamental em seu processo, como nos
ensina a termodinâmica, e que pode ser expressada na seguinte tetralogia:

Desordem  (reencontros)  interações  Ordem


 
----------------------------------------------- Organização

2 - A Família como um sistema antropomórfico

A família, enquanto grupo social humano, no qual um


determinado número de indivíduos se relacionam de um modo particular,
pode ser considerada como um sistema antropomórfico. Como a relação
entre os seus membros não se dá de uma forma aleatória e nem efêmera e
sim motivada por um propósito compartilhado e estável no tempo, essas
relações geram e são geradas por padrões que tendem a se repetir como
um roteiro coletivo onde cada um se insere de modo mais ou menos
previsível. A família é um grupo vital com história (Watzlawick, Beavin
e Jackson, 1982) e esses padrões relacionais são, inclusive, transmitidos
transgeracionalmente. O padrão que emerge a partir de determinadas
interações é o que se poderia chamar de qualidade emergente da família:
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há algo que emerge que é mais do que a “soma” das qualidades


individuais de seus membros.

Padrões relacionais compreendem o modo como as pessoas


interatuam – o que é mais ou menos visível a um observador que poderá
perceber as conexões entre os comportamentos e como estes se
retroalimentam –, e são moldados pelas regras da relação. Por sua vez, as
regras da relação subentendem crenças compartilhadas, ou um código
ético (Dessoy, 1999) mais ou menos consciente, que dá sentido aos
relacionamentos. A metáfora cibernética se aplicaria justamente a essa
trama que implica as diversas conexões que ocorrem entre os membros de
uma família.

Do ponto de vista da estabilidade, a manutenção da organização


familiar depende de processos autocorretivos que minimizam formas
desviantes de interação e que trazem a família ao seu equilíbrio anterior.
Mas a família, como qualquer sistema vivo, evolui estando sujeita a
mudanças que correspondem a processos adaptativos de uma ordem
superior.

2.1- A família como um sistema governado por regras.

Como os demais sistemas, a família é dotada de auto-organização


e no caso de uma interação humana como a família, o que organiza as
interações são as regras da relação. Por isso pode-se dizer que a família
é um sistema governado por regras (Watzlawick et al, 1982). Por sua
vez, as regras da relação são construídas a partir da interação das várias
dimensões externas e internas à família, tendo uma base cultural,
histórica, imaginária e assim por diante.

As regras da relação compõem o que se chama de “código de


comportamento familiar” (Gulotta,1985) e representam a definição
explícita e implícita que os membros dão da relação, levando a uma
circunscrição dos comportamentos possíveis e a uma configuração
redundante das interações. Algumas regras são mais importantes do que
outras: são as regras básicas que não podem ser nunca violadas sem
colocar em perigo o equilíbrio da família. Outras já são passíveis de
negociação: são as regras secundárias, que podem ser quebradas de
tempos em tempos sem que isso ameace o sistema. Entretanto, a violação
das regras implica geralmente em sanções, e a punição é um importante
elemento de controle dos sistemas humanos.
11

2.2. – A rede invisível da lealdade familiar

As famílias têm suas próprias leis, na forma de implícitas


expectativas compartilhadas e regras claramente definidas (Boszormenyi-
Nagy e Spark, 1983). Cada membro familiar é constantemente sujeito a
vários padrões de expectativas aos quais ele obedece ou não. Na família,
como nos outros grupos, o compromisso de lealdade consiste na
manutenção do grupo em si: por isso, frequentemente, a ética da lealdade
conflitua com a ética da autonomia. O não cumprimento das expectativas
grupais leva à culpa, que constitui outro importante sistema regulador de
forças.

O sistema de lealdade pode estar baseado tanto numa latente e


implícita colaboração entre os membros quanto em “mitos” familiares.
Sem a reivindicação para um profundo compromisso de lealdade nenhum
grupo pode exercer suficiente pressão nos seus membros e garantir assim
sua coesão. Por outro lado, a lealdade à família pode ser reforçada pela
gratidão ou culpa pela atenção ou dedicação dada pelos mais velhos: a
gratidão e o reconhecimento tende a levar à internalização das obrigações.

2.3 – A pragmática da comunicação

O estudo da comunicação humana e do seu efeito pragmático,


iniciado por Gregory Bateson, é de crucial importância para o estudo da
família. Em um sistema estável como a família, as sequências
comunicacionais tendem a se repetir, nas quais as propriedades e as
patologias da comunicação são manifestadas com um efeito pragmático
bastante definido (Watzlawick et al., 1982). Sob o ponto de vista
comunicacional, os sistemas interacionais humanos podem ser descritos
como pessoas-comunicando-com-outras-pessoas, onde os
comportamentos se co-influenciam mutuamente. Considerando que todo
comportamento tem valor de mensagem e que, portanto, é impossível não
se comunicar, a comunicação passa a ser vista sob seu efeito pragmático,
na medida em que cada conduta comportamental/comunicacional gera
sobre os outros um efeito específico. Toda comunicação traz em si uma
definição da relação, de como o emissor se vê e de como ele vê seu
interlocutor, de modo que as interações humanas se dão nesse jogo sutil
de mútuas definições. O efeito pragmático estaria justamente no ponto
em que o outro é levado, seja na definição que é feita dele, seja na
possibilidade ou não de se posicionar e responder adequadamente.
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A partir dessa concepção toda comunicação subentende um


aspecto de conteúdo – a mensagem propriamente dita - e um aspecto
relacional – o contexto ou como a comunicação deve ser entendida. Isso
remete às duas formas possíveis de se comunicar: a comunicação
analógica – não verbal, posturas, gestos, inflexão de voz, ritmo e
cadência nas palavras – e a comunicação digital – os signos linguísticos.
O conteúdo da comunicação é geralmente transmitido de uma forma
digital e o aspecto relacional de uma forma analógica. A não congruência
entre o digital e o analógico numa interação é fator de patologia, já que o
receptor da mensagem se vê impossibilitado de decodificá-la e de
responder apropriadamente. Esse tipo de comunicação paradoxal, base
das interações chamadas de duplo vínculo, corresponde a um padrão
muito frequente nas famílias com membros psicóticos.

Ainda, sob a perspectiva interacional de dois sujeitos que se


comunicam, toda permuta comunicacional ou se dá de uma forma
simétrica ou de uma forma complementar, segundo ocorram em relações
marcadas pela igualdade – em que cada um reflete o comportamento do
outro, ou pela diferença – em que comportamentos diferentes se
complementam. Nas interações saudáveis oscila-se entre modos
complementares e simétricos. A preponderância de uma das duas
possibilidades leva à rigidez complementar, onde o membro “submetido”
é necessariamente desconfirmado, ou à escalada simétrica, marcada
continuamente pela disputa.

As interações comunicacionais são vividas de forma diferentes


pelas pessoas: cada um percebe a interação, em termos de causa e efeito,
sob o seu próprio ponto de vista. A discordância na pontuação da
sequência dos eventos está na base de muitas disputas e impasses
relacionais, onde o outro pode ser acusado de “distorcer a realidade”, de
loucura ou maldade.

2. 4 – O meio humano

A correlação entre a interação e a pragmática da comunicação com


a cultura é feita através do conceito de meio humano (Dessoy, 1999). O
meio institucional é um processo organizado por três dimensões: a
ambiência, a ética e as crenças. A cada dimensão corresponde uma forma
específica de comunicação.
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a) A ambiência
No domínio da ambiência, o meio é facilmente apreendido, mas não
explicado. A ambiência é semelhante ao humor: ambos são a primeira
maneira de existir com o mundo e a primeira forma de comunicar. A
comunidade vive, assim, numa única ambiência, que é experenciada na
qualidade do contato entre as pessoas. Sob a interação analógica ou
digital, ou sob o discurso, existe uma comunicação de base, que é o
contato. O contato é, assim, o nível primário da existência, onde mais do
que nunca se pode afirmar que é impossível não comunicar.

A ambiência de um meio dinâmico não cessa de se movimentar,


modificando ao mesmo tempo a maneira de estabelecer contato: o ciclo
perpétuo que a ambiência gera o espaço vivido da comunidade, onde as
pessoas ora se aproximam, ora se afastam.

b) A ética
A ética se define pelo seu código normativo e por sua moral que
ordena o meio e a qual seus membros se submetem. Esse é o lugar por
excelência da encenação: tudo é negociado, falado, mostrado, observado,
objetivado, teatralizado, ao contrário da ambiência onde tudo é
experimentado e sentido. Aqui entra a interação analógica e digital.

c) As crenças
O terceiro domínio organizador do meio humano implica as crenças,
os mitos, as ideologias e a forma como a comunidade se percebe: trata-se
de um sistema de representação da comunidade. O modo de comunicação
próprio é o discurso. O discurso chama as pessoas para o que devem
acreditar ou não, conhecer ou não, a respeito da comunidade. Ao mesmo
tempo em que as crenças exprimem um modo como a comunidade se
percebe no aqui e agora, elas reenviam à história da comunidade,
articulando o meio atual com a dimensão histórica intergeracional.

2. 5 – Transmissão familiar

Todo sistema humano é dotado de uma cultura particular que é


trasmitido de uma geração à outra a fim de preservar sua identidade. Uma
família atual é um elo numa cadeia transgeracional na qual sua história
presente se inscreve e onde ela encontra suas referências identitárias.
Entretanto, se a transmissão garante a continuidade ela é também um
vetor de transformações, de movimentos de ruptura que fazem parte da
história familiar (Bertaux-Wiame e Muxel, 1996).
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Como as transmissões se dão em níveis diferentes (transmissão


consciente, transmissão inconsciente, transmissão de inconsciente)
requerem modos de interpretação específicos. Por outro lado, o estudo da
transmissão familiar se vê limitado pelo alcance restrito de pouco mais de
quatro gerações (Laing, 1983). Como alguns fatos da história familiar,
por terem se tornado segredos, geram muitas vezes mitos que subvertem a
realidade, o que uma família transmite é frequentemente um misto de
ficção e realidade (Pincus e Dare, 1987).

A transmissão do inconsciente pode ter diversas configurações,


ocorrendo frequentemente via a indentificação da criança com o fantasma
dos pais ou de algum antepassado (Abraham e Torok, 1987). Daí a
importância dos traumatismos que afetaram a história de uma família, tal
como um luto não elaborado (Tisseron, 1996).

Os mitos familiares são também fortes veículos de transmissão de


conteúdos conscientes e inconscientes (Pallazoli, Prata, Boscolo e
Cecchin, 1982). Correspondem a crenças compartilhadas construídas
sobre elementos de realidade e fantasia que procuram dar sentido aos
acontecimentos ambíguos ou casuais (Andolfi, 1987). Os mitos
prescrevem como a realidade deve ser vista e sentida. Toda família tem a
sua própria construção mítica. Se o mito faz parte da auto-imagem interna
da família, um mito rigidamente mantido restringe as opções de todos os
membros quanto à concepção de uma realidade mais complexa, agindo
como uma “camisa de força” (Boscolo, Cecchin, Hoffman e Penn, 1993).

2. 6 - Família e complexidade

Se a família pode ser considerada uma unidade sistêmica ela


também pode ser compreendida como parte de ecossistemas maiores ou
mais abrangentes. A mesma complexidade que se aplica ao estudo do
homem se encontra no estudo da família, donde a necessidade de
concebê-la multidimensionalmente ou plurisistêmicamente. Podemos
pensar a família como um todo e os indivíduos que a compõem como
partes; a sociedade como um todo e a família como parte; ou a família
como um sistema central e a sociedade ou a espécie como seu
ecossistema. Mais ainda, sua existência está vinculada a um determinado
tempo e lugar.
15

Sob esse ponto de vista, a família, na sua estrutura e organização,


é a expressão da inter-relação de várias dimensões, que se influenciam
mutuamente, o que confere à família um caráter hipercomplexo, como,
por exemplo:
o A biológica (o pertencimento a uma linhagem neotênica na
biologia do amar)
o A antropológica (tradições, valores, hábitos da cultura local)
o A social (regulação das relações humanas, regras, leis)
o A histórica (momento histórico específico)
o A econômica (seus meios e possibilidades de sobrevivência/
conjuntura econômica social)
o A imaginária (o imaginário coletivo da sociedade e da
instituição familiar, seus mitos, ideologias, sistemas de
crença, etc.)
o A simbólica (os rituais, os objetos, os bens, o território, que
remetem à história e identidade da família).
o A inconsciente (a transmissão psíquica familiar).

Nenhuma dessas dimensões é suficiente para explicar a família e em


nenhuma delas a família, enquanto instituição, encontra a sua razão de
existir. Todas são necessárias na tentativa de compreender porque uma
família tem essa ou aquela forma de ser, embora discernir onde começa
a esfera de influência dessa ou daquela dimensão seja impossível.

3 – É o “sistema” uma metáfora adequada para


pensar a família?
What sort of mind is it that leads to paying too
much attention to symptoms ant too little to
system? Gregory Bateson
(Sacred Unity, p. 295)

Do ponto de vista da teoria geral dos sistemas a família, enquanto


totalidade, é um sistema antropomórfico e este é, sem dúvida, um
16

conceito heurístico que nos permite estudar os comportamentos ou as


patologias considerando sua inserção no todo, ou no contexto, como diria
Bateson. Do ponto de vista da teoria da auto-organização, a família é
também um sistema autopoiético, uma unidade de terceira ordem onde
cada um de seus membros pode realizar sua ontogenia individual. A
questão é: com que grau de liberdade podemos nos utilizar de conceitos
construídos sobre modelos matemáticos ou biológicos para descrever e
compreender o fenômeno social humano que é a família? Na perspectiva
da biologia a questão se resolve facilmente na medida em que os
processos sociais têm um fundamento biológico8. Mas no que diz respeito
aos modelos matemáticos e físicos, podemos unificar processos tão
diversos sob um mesmo olhar? Vale recordar a preocupação que
Bertalanffy tinha a esse respeito:

Mas a teoria geral dos sistemas não consiste na procura de vagas


e superficiais analogias. São de pouco valor as analogias, pois ao lado das
semelhanças entre fenômenos podem também ser sempre encontradas
dessemelhanças. O isomorfismo de que aqui se trata é muito mais do que
a mera analogia. É uma consequência do fato de, sob certos aspectos,
poderem ser aplicadas abstrações correspondentes e modelos conceituais a
fenômenos diferentes. As leis dos sistemas só se aplicam em vista desses
aspectos. Isto não difere do procedimento geral da ciência. É a mesma
situação que se verifica ao se constatar que a lei da gravitação se aplica à
maçã de Newton, ao sistema planetário e aos fenômenos das marés. Isto
significa que em vista de certos aspectos limitados um sistema teórico, o
da mecânica, é válido, mas não significa que exista uma particular
semelhança entre as maçãs, os planetas e os oceanos em um grande
número de outros aspectos. (1977, p. 59).

Considerando que, como adverte Ceruti, “um problema e sua


solução nunca são desvinculados do universo discursivo dentro do qual
foram formulados” (1995, p.41), o que temos, no final das contas, são
construções de realidade sendo traduzidas por outras construções de
realidade. Quando, então, que uma teoria é suficientemente válida?
Quando ela se encaixa na realidade como uma chave que se encaixa numa

8
A esse respeito assinalamos também a teoria de Maturana sobre a origem do fenômeno social humano na
biologia do amar (Maturana & Verden-Zöeller, 1995).
17

fechadura, diria von Glaserfeld (1990), ou quando ela é viável para se


sobreviver em tal realidade (Simon, 1995).

Na medida em que todas as formas de construção da realidade


correspondem a processos de distinções, onde o observador determina
quais as distinções que lhe são importantes (Simon, 1995) a ideia de
sistema é uma distinção que permite pensar o mundo, a natureza, as
instituições, as relações entre pessoas como totalidades auto
organizadoras onde as pautas relacionais estão em evidência. A ideia de
sistema traz à tona a complexidade das interações que lhe são inerentes
como se numa única palavra pudéssemos contar uma história que contém
em si as múltiplas conexões de uma mesma realidade9. Como assinala
Simon,

O atrativo dos conceitos cibernéticos e sistêmicos está no seu alto grau de


abstração e consequente aplicabilidade genérica. Assim como a
matemática e a lógica, ela fornece um quadro formal que pode ser
preenchido com os mais diversos conteúdos. (1995, p. 135).

Podemos nos referir à família de diversas formas, dependendo do


olhar com o qual a observamos e do que desejamos enfatizar: como uma
instituição, como um aparelho ideológico do Estado, como um sistema
comunicacional, e até como um grupo natural para dar alguns exemplos.
A família não é, em si mesma, nenhuma dessas definições, mas pode ser
vista sob todos esses ângulos, dependendo do recorte que é feito. Dizer
que a família é um sistema é uma metáfora como adverte Sluzki (1984),
no sentido que uma família não é um sistema, mas pode ser pensada
enquanto tal e, segundo bem disse Bateson, a metáfora é a melhor forma
de se referir ao mundo biológico, porquanto a metáfora permite falar de
relações.

Ver a família como um sistema é ver a família como um grupo de


pessoas interagindo entre si e com as demais pessoas, passadas e
presentes, de uma forma tal que nós podemos descrever tais interações
com os critérios com os quais descreveríamos os demais sistemas vivos,
enquanto dotados de mente, como coloca Bateson. Quer dizer que ver a
família como um sistema é compreendê-la e construí-la dessa forma.

9
Como, por exemplo, na seguinte história oriental: Um discípulo perguntou ao mestre o que era o destino e o
mestre lhe disse: Veja este cortejo que está passando na rua. Vão enforcar este homem porque ele cometeu um
assassinato, ou porque alguém o viu cometer o crime, ou porque alguém lhe deu uma moeda com a qual
comprou o punhal? ”.
18

Certamente, essa é uma suposição anti empirista, na medida em que não


se deve perder de vista que nela os fatos são criados pela teoria, como
afirma Stengers (Guattari, Stengers e Castell, 1988), do mesmo modo que
tomamos consciência de muitos fatos depois que eles são descritos.

Tomando os conceitos de ordem e desordem, por exemplo, estes se


aplicam à família na medida em que esta, enquanto grupo vital com
história, mantém uma certa ordem através de suas regras, crenças,
sistemas de lealdade e mitos que garantem a permanência de sua
identidade. Mas a família está exposta ao acaso, à elementos
desorganizadores, quer sejam internos ou externos a ela e, assim, como
qualquer outro sistema vivo, está sujeita às transformações, aos impasses
e ao aprendizado. Mas nem a ideia de ordem, nem a de desordem ou de
acaso, podem ser tomadas como conceitos descritivos absolutos e sim
apenas enquanto metáforas da sensação tão bem conhecida por nós de que
algo está sendo preservado, de que as coisas estão no seu devido lugar, ou
de que estão fora de controle e a unidade familiar está sendo ameaçada.
Entretanto, a partir do momento em que começamos a pensar nesses
termos, através deles organizamos os nossos dados e impressões de tal
modo a configurar a realidade dessa forma.

Com a ideia de sistema, uma observação mais acurada de uma


família interagindo no tempo leva à percepção de padrões interacionais ou
de certos movimentos sincronizados entre seus membros, e de como
certos comportamentos, inclusive os mais indesejáveis, se encontram
circunscritos na lógica relacional familiar. Há uma totalidade que emerge
e a nítida compreensão de que os dramas individuais ganham outro
sentido quando contextualizados no drama familiar. Como coloca Keeney
(1997), ao se referir à família como um sistema autônomo:

E temos visto que pode se descrever as famílias por meio de várias


ordens de processo, incluindo fragmentos particulares de ação,
episódios de interação e sistemas coreográficos mais complexos. Nesta
hierarquia de processos recursivos, a coreografia mais avançada tem a
ver com a interconexão de todas as ordens inferiores de processo,
tendendo a manter o organismo como tal. (p.111)

É possível “ver” o sistema – ou essa coreografia mais avançada.


Se considerarmos, como Berenstein (1988), que a família é um sistema
19

com uma estrutura inconsciente10 então a ideia de totalidade toma uma


abrangência ainda maior que inclui o tempo e a história. A vantagem de
se pensar a família como um sistema complexo é que isto permite
observá-la nas suas múltiplas inter-relações, na sua
multidimensionalidade, na sua totalidade coercitiva, mas também no que
nela emerge de singular e de individual, no que nela há de ordem
organizadora, mas também no que nela há de ruptura. É saber que a
família é retroalimentada por circuitos visíveis e invisíveis, mas saber
também que apreendemos apenas fragmentos desses circuitos.

Entretanto, por mais completa que a ideia de sistema possa


significar, por mais “totalizadora” ainda assim é uma ideia “reducionista”,
parcial, ainda assim corresponde a um fragmento de uma realidade muito
mais viva, mais pulsante. A complexidade da ideia de sistema não pode
abarcar a complexidade das vidas e das subjetividades individuais
daqueles que a compõem. (Droeven e Najmanovich, 1997). Como adverte
Neubern (1999) uma parte pode ser mais ampla que seu todo na medida
em que integra simultaneamente diferentes todos, como outras esferas
sociais que não a família.

Por outro lado, os que trabalham com famílias fazem parte dos
meta-sistemas dos quais as famílias fazem parte: é preciso, pois,
considerar os diversos contextos que compõem as determinações sociais
não só da família, mas do terapeuta e da terapia como modalidade de
intervenção (Pannone, 1996). O fato de uma família procurar terapia, a
formação do terapeuta, e o setting terapêutico são “construções” histórica
e culturalmente localizadas, que em outros tempos e outros lugares não
fariam o menor sentido. Além disso, o “sistema” que o observador
observa não é “a família”, sobretudo se ela estiver num ambiente artificial
como um consultório terapêutico. O terapeuta não acessa a família como
ela é, mas a família como ela se apresenta a ele em um contexto particular
e a partir do seu olhar. Como bem assinala a Cibernética de Segunda
Ordem11, o observador passa a ser um participante do sistema na medida
em que o descreve a partir de sua auto referência.

10
Embora Berenstein se utilize do conceito de sistema segundo a teoria da comunicação, vale-se do conceito
de sistema segundo a linguística de Saussure na descrição da família como um sistema dotado de uma
estrutura inconsciente.
11
A Cibernética de Segunda Ordem refere-se à ampliação do conceito de circularidade, passando a incluir o
observador como participante que descreve o sistema, em contraposição à Cibernética de Primeira Ordem que
conservava a noção de objetividade na observação dos sistemas.
20

A imagem de que somos sistemas autopoiéticos interagindo com


outros sistemas autopoiéticos pode remeter a um estranho quadro
surrealista no qual, subitamente, nos damos conta da precariedade dos
“encontros” possíveis entre todos esses “sistemas” fechados na sua auto-
organização. Mas, por isso mesmo, a metáfora do sistema é cabível desde
que seja considerada enquanto metáfora da complexidade destes
processos. Conceitos como organização, retroalimentação, homeostase, se
tomados em isolado, isto é, como simples esquemas, podem significar o
esvaziamento de processos que a própria palavra vida não contém.

O fascinante na visão sistêmica é a possibilidade de entrelaçamento


de dimensões tão distintas da vida. Como assinala Vasconcellos, com o
novo paradigma da ciência, “parece anunciar-se a possibilidade de se
desenvolverem teorias que começam a ligar formas vivas e não vivas”,
concluindo desse modo que “toda ciência é uma ciência da natureza”
(2002, p. 126). Contudo, talvez seja apenas enquanto metáforas que se
pode aplicar as ciências duras à vida humana, na medida em que o que
existe de semelhante está, quem sabe, menos nos mecanismos – que,
afinal, o mundo físico, químico e biológico cada vez mais compartilham –
, e muito mais na nossa perplexidade diante da impossibilidade de se
pensar de forma linear, previsível e acabada.

Nesse sentido, o conceito de sistema é, de fato, um conceito


heurístico e enquanto tal pode ser aplicado à família e servir como quadro
de referência à terapia familiar. Talvez o conceito de sistema esteja para a
terapia familiar como o conceito de inconsciente está para o
desenvolvimento da psicanálise. Se o conceito de inconsciente
corresponde a tudo aquilo que não é da ordem do imediatamente tangível
e a dimensões mais complexas do humano, o conceito de sistema traz
consigo uma dimensão semelhante no plano das relações interpessoais.
Como Bateson elegantemente anunciou:

O desenvolvimento da terapia familiar nos últimos vinte anos denota mais


do que a introdução de um novo método e mais do que a mera mudança
no tamanho da unidade social com a qual o terapeuta sente que deve lidar.
Na verdade, a mudança no tamanho da unidade traz consigo uma nova
epistemologia e ontologia, isto é, uma nova forma de pensar sobre o que
seja a mente e um novo conceito do lugar do homem no mundo” (1991,
p.259).
21

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