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Cultura e Pedagogia: lições da

espacialidade revolucionária
de Frank Gehry
Marisa Vorraber Costa I
I
Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), Canoas/RS – Brasil

RESUMO – Cultura e Pedagogia: lições da espacialidade revolucionária de


Frank Gehry1. O artigo, resultante de pesquisas que investigam as conexões
entre cultura e pedagogia, apresenta uma discussão sobre possibilidades
oferecidas pela arquitetura para se pensar as movimentações intelectuais
inspiradas no pensamento pós-estruturalista. O foco é o documentário
Esboços de Frank Gehry, de Sydney Pollack. Discute-se a textualidade pre-
dominantemente visual de formas contemporâneas de ocupação do espa-
ço urbano, a linguagem e as operações criativas da arquitetura de Gehry.
Entende-se que vasculhando os limites da linguagem, artistas, assim como
pesquisadores, remexem os limites do nosso mundo e nos ensinam a revo-
lucionar a vida a cada dia.
Palavras-chave: Pesquisa Pós-Estruturalista. Arquitetura e Pedagogia.
Cultura e Pedagogia. Cinema e Educação. Frank Gehry.

ABSTRACT – Culture and Pedagogy: lessons from the revolutionary spa-


tiality of Frank Gehry. The article, emerging from researches that inves-
tigate the connections between culture and pedagogy, introduces a dis-
cussion about possibilities offered by architecture to reflect on intellectual
movements inspired by post-structuralist thought. The analysis focus is
Sidney Pollack’s documentary Sketches of Frank Gehry. The prevalent vi-
sual textuality of contemporary ways of using urban space, Frank Gehry’s
language and his creative architectural operations are discussed. It is un-
derstood that while searching for the limits of language, artists, as well as
researchers, rummage the limits of our world and teach us to revolutionize
life on a daily basis.
Keywords: Post-Structuralist Research. Architecture and Pedagogy. Cul-
ture and Pedagogy. Cinema and Education. Frank Gehry.

Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 39, n. 1, p. 163-180, jan./mar. 2014. 163
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Cultura e Pedagogia

Gehry invites his guests to use this environment to become


their own hosts. He invites his guests to shape their own ex-
periences of this building in ways that allow them to both
find and create their own learnings (Ellsworth, 2009, p. 72,
sobre o Stata Center, obra de Frank Gehry para o MIT).

Introdução
Este artigo discute possibilidades oferecidas pela arquitetura con-
temporânea para se pensar as movimentações intelectuais inspiradas
no pensamento pós-estruturalista 2. Seu foco principal é a obra de Frank
Gehry, especialmente na aproximação oportunizada pelo documentá-
rio Esboços de Frank Gehry 3, de Sydney Pollack (2005), produção que nos
coloca face a face com uma tentativa de esmiuçar a inventividade, de
compreender o processo de criação. O estudo tomou corpo em etapa re-
cente de um programa de pesquisa que venho desenvolvendo há alguns
anos sobre as conexões entre cultura e pedagogia. Nele se entendem as
pedagogias contemporâneas como um traço, como marca de um contí-
nuo investimento, de uma incessante operação sobre todos os aspectos
e âmbitos da vida dos sujeitos, o que faz de cada um de nós agentes em
incessante atuação com os saberes. Tal programa de pesquisa filia-se a
uma matriz de inteligibilidade que permite ver e compreender o mundo
e a experiência contemporâneos como profundamente marcados por
condições peculiares, imbricadas e implicadas no que tem sido desig-
nado por analistas da cultura como “condição pós-moderna”, expressão
utilizada, dentre outros, por Lyotard (1988) e Harvey (1993). Diz respeito
a mudanças substantivas e profundas nas formas de vida verificadas ao
longo do século XX. Uma plêiade de alterações que definem os contor-
nos de experiências existenciais diversas e desencaixadas do horizonte
construído sob a égide do mundo moderno da ordem, da segurança, da
estabilidade, do “sonho da pureza”, como a ele se refere Bauman (1998).
Nesse novo panorama em que se constituem as subjetividades de
hoje e no qual se encaixam tensamente homens e mulheres moldados
por outra ordem, chama atenção a proeminência do visual, a centrali-
dade e o poder das imagens (Mirzoeff, 1998; 1999; Rose, 2001). Isso se
destaca especialmente nas emergentes e variadas possibilidades de vi-
sibilidade e na ampla circulação de imagens oportunizadas pelas no-
vas tecnologias de comunicação e informação, mas não exclusivamente
por elas. Esboça-se também nas formas revolucionárias de ocupação
do espaço urbano, e não é por acaso que as primeiras teorias do pós-
moderno4 vão surgir na arquitetura nos meados da segunda metade
do século XX, um campo em que arte e sofisticados recursos técnicos
e tecnológicos convergem em edificações que fazem da arquitetura um
espetáculo visual. Assim como aparecem edifícios que contam histó-
rias − alguns hotéis da Disney e de Las Vegas, por exemplo −, há outros,
como o Museu Guggenheim de Bilbao, projetado pelo conhecido arqui-
teto contemporâneo Frank Gehry 5, em que o próprio prédio – uma edi-

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ficação espetacular revestida de titânio − é a obra de arte. A par de ser


uma profunda mudança cultural, uma condição existencial ímpar, um
novo horizonte filosófico, artístico, sociológico e econômico, o pós-mo-
derno, afirma Featherstone (1995), transformou-se em uma influente e
poderosa “imagem cultural” e, como ressalta Manguel, “[...] as imagens,
assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos” (2001, p. 21).
Já há algum tempo percebi, instigada em grande parte pelas aná-
lises de Jameson (1996), que a arquitetura pós-moderna pode ser uma
porta de entrada para se pensar sobre o que Williams (1965) denominou
“nova estrutura de sentimento”. Jencks (1991) foi um dos primeiros a
afirmar que os arquitetos pós-modernos eram os “precursores de uma
nova sensibilidade”. O conceito de pós-moderno invade a cena cultural
da segunda metade do século passado com uma enorme capacidade de
expressar os novos sentimentos que emergem nas várias dimensões da
vida cotidiana em meio às novidades da sociedade das mídias, com res-
sonâncias para além da arte, da estética, da filosofia e da economia. O
pós-moderno já carrega consigo, segundo Jameson, uma ideia de cultu-
ra em que a fusão desta com a economia está de antemão contemplada,
assim como se expressa em uma nova textualidade predominantemen-
te visual. Isso talvez explique o “apetite pela arquitetura” que irrom-
pe, inicialmente nos Estados Unidos, mas em seguida em numerosas
metrópoles do mundo, o que, segundo Jameson (1996, p. 121), sugere
“um apetite pela fotografia” já que “[...] muitos edifícios pós-modernos
parecem ter sido projetados para serem fotografados, pois só em fotos
ostentam sua existência brilhante e sua realidade [...]”.
No intento que aqui realizo de pensar o trabalho intelectual pós-
estruturalista contemporâneo voltando-me à linguagem e às operações
criativas da arquitetura, tomo como foco a obra de Frank Gehry 6, e para
isso recorro, particularmente, mas não exclusivamente, ao instigan-
te documentário de Sydney Pollack (2005), Esboços de Frank Gehry, a
meu ver, uma produção sob medida para se refletir sobre pedagogia e
processos de pesquisa. À semelhança do processo criativo do artista,
a pesquisa pós-estruturalista é do tipo que produz mudanças na inte-
rioridade, que desinstala certa racionalidade e suas formas de pensar e
falar sobre as coisas. A escrita do pesquisador pós-estruturalista, assim
como a revolucionária linguagem do arquiteto, exercitam tentativas de
ressignificação, “de tornar dizível o indizível”7.
Um diálogo íntimo entre dois amigos artistas compõe o eixo nar-
rativo do documentário. Um deles (Pollack) está fascinado pela visua-
lidade criada pela lente e pela moldura da câmera, o outro (Gehry),
apaixonado pela arte de inventar e transformar rabiscos sobre papel em
edifícios monumentais. Seu percurso contempla incursões pela vida
pessoal, assim como pelas obras do arquiteto, em uma aproximação
não só pelo exterior, mas que perscruta seu avesso, alinhavos e tramas
que costuram, na criação, visões de mundo, sentimentos, modos de
operação e tecnologias ultra-avançadas. Rabiscos sobre papel conver-

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tidos em modelos tridimensionais tangíveis construídos com cartolina,


papelão, fita adesiva, tesoura e cola eclodem, no final do século XX e
neste início de século XXI, numa arquitetura revolucionária sem pre-
cedentes, considerada quase unanimemente por analistas especiali-
zados como a primeira a produzir nessa área uma experiência estética
assentada sobre assombrosa desarmonia. Não está em questão aqui se
este tipo de arquitetura corresponde àquilo que o cânone (ou o consen-
so) arquitetônico entende como belo, habitável, ajustável à paisagem,
com custo-benefício adequado etc., mas, antes, a produtividade de tais
obras, o efeito que elas têm sobre nós e sobre este nosso tempo. É aí
que talvez se possa dizer que entra em cena o sentimento de disrupção/
desconexão/desencaixe provocado pela pós-modernidade, e é nesta di-
reção − não avaliativa da obra de Gehry, mas daquilo que ela pode nos
provocar − que proponho que se pense a articulação entre cultura e pe-
dagogia, especialmente no que tange a fazer pesquisa numa perspecti-
va pós-estruturalista.

Uma Aproximação à Espacialidade Revolucionária de


Frank Gehry
Minha curiosidade pelo trabalho de Frank Gehry surgiu nos me-
ados dos anos 1990, quando tomei contato pela primeira vez com as
análises de Jameson (1996) sobre o pós-modernismo, apresentadas na
conhecida obra Pós-Modernismo − a lógica cultural do capitalismo tar-
dio, traduzida e publicada no Brasil em 1996. Nela há uma passagem em
que Jameson reproduz uma entrevista com Gehry, realizada por Dia-
monstein8 e publicada inicialmente em 1980, a respeito da casa9 do ar-
quiteto em Los Angeles – a mesma que é objeto de comentários no início
do documentário de Pollack.
Naquela altura, eu já havia percebido que quem se interessasse
pelo pós-moderno, pelo pós-modernismo e pelos debates sobre a pós-
modernidade encontraria farto repertório informativo, problematiza-
dor, analítico e crítico nas discussões desenvolvidas no campo da ar-
quitetura. Conforme mencionei no início deste texto, a materialidade
de muito daquilo que consideramos indícios de transformações signi-
ficativas na cultura, expressando “a profunda mudança na estrutura do
sentimento” sobre a qual escreveu Williams (1965) nos anos 1960, aju-
dando a compor o que se convencionou denominar virada cultural, tem
a ver com os embates que se travaram na arquitetura, enraizados numa
contundente crítica aos equívocos do redesenvolvimento urbano do
pós-guerra. De acordo com Portoghesi10 (1999), o declínio da ortodoxia
modernista na arquitetura expressa recusa aos sistemas de composi-
ção da cultura intelectual da ciência urbana moderna, sustentada por
axiomas jamais confrontados com as necessidades impostas pela ma-
terialidade da vida de pessoas de carne e osso. A ponto de Jencks (1996)
ter datado como marco simbólico da morte do modernismo e passagem

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para o pós-modernismo − 15 de julho de 1972, às 15h32min − a ocasião


em que foi dinamitado, por ser considerado um ambiente degradado e
inabitável, o edifício modernista Pruitt-Igoe (em St. Louis, EUA) – uma
versão premiada (concebida por Minoru Yamasaki)11 da “máquina para
a vida moderna” de Le Corbusier.
Jameson (1996), em sua análise no capítulo em que trata da ar-
quitetura, nos introduz na casa de Gehry por considerá-la “[...] um dos
poucos edifícios pós-modernos que parecem ter alguma pretensão a
uma espacialidade revolucionária” (p. 129). Jameson posiciona Gehry
em um patamar destacado da arquitetura pós-moderna, uma vez que
seu estilo teria pouco em comum com a frivolidade decorativa e com
o acento narrativo dos projetos de alguns arquitetos como Michael
Graves (hotéis da Disney, na Flórida), Charles Moore (Piazza d’Italia,
New Orleans) ou Robert Venturi (Freedom Plaza, Washington DC). De
acordo com Jameson (1996), o próprio Gehry teria afirmado estar pou-
co interessado em “contar histórias”. Ele diz-se mais disposto a colocar
mãos à obra e criar. Gehry fez da arquitetura uma arte da ocupação do
espaço alavancada para fora do tempo. O predomínio do espaço sobre o
tempo, o apagamento da duração e a fragmentação do tempo captura-
do em presentes eternos expressam-se em uma ocupação monumental
do espaço. Eis algumas das nuances marcantes desse novo horizonte
existencial ao qual venho me referindo. A partir desse ponto do livro de
Jameson (1996, p. 129), quem passa a conversar com Gehry sobre sua
casa de Los Angeles como uma obra de arte é Diamonstein.
Isso que Jameson (1996) chamou de “espacialidade revolucioná-
ria”, ao referir-se ao trabalho de Gehry, diz respeito a como o arquiteto
conseguiu fazer uma velha casa − “essa casinha engraçadinha [...] uma
coisinha bem bonitinha”12 situada em Santa Mônica − dialogar com a
nova edificação projetada para envolvê-la. Uma velha estética pas-
sando a fazer parte de um jogo novo, em que materiais transparentes
e outros arranjos embrulhavam, mas deixavam visível e praticamente
intacta, a casa antiga. A casa nova surge como se fosse uma camada,
que junto com as janelas institui uma estética totalmente diferente da
casa velha, alimentando uma constante tensão. Materiais baratos como
metal corrugado, compensado, vidro e gradeados em forma de elos de
correntes − esse o vocabulário do texto arquitetônico criado por Gehry
− compuseram o invólucro, a casa nova.
Gehry (apud Jameson, 1996, p. 130) comenta na entrevista a Dia-
monstein que a casa é um tanto confusa, que gera certa desorganização
no modo de viver nela. Ela sempre parece não estar concluída. A parte
envidraçada, que une a velha e a nova casa, deixa tudo muito claro e
visível, mas ao mesmo tempo confunde porque atenua as categorias de
dentro e fora. Alguns efeitos da estrutura de metal corrugado, colocada
em ângulos abruptos, inscrevem na casa signos de arte moderna. A cla-
raboia da cozinha, um enorme cubo de vidro, de dia parece um espaço
vazio e à noite um sólido que se projeta como um farol. “São os fantas-

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mas do cubismo”, declara Gehry no documentário. Tudo isso, somado a


outros tantos artifícios da edificação, resulta, conforme Jameson (1996,
p. 135), em “ambiguidades perturbadoras”. Não há destinações fixas e
imutáveis para os espaços, não há acordos definitivos com funções esta-
belecidas. Jameson (1996) comenta as análises de Macrae-Gibson sobre
a casa de Gehry, que estão no livro Secret Life of Buildings, em que esse
autor afirma: “O olho humano ainda tem importância crítica no mundo
de Gehry, mas o sentido de centro não tem mais seu valor simbólico tra-
dicional” (Macrae-Gibson, 1985, apud Jameson, 1996, p. 136). Uma casa
é para morar, mas se pode inventar formas de habitá-la que escapem ao
convencionalmente estabelecido. Gehry relata na entrevista que muitos
fotógrafos visitam a casa, e cada um, ao entrar, tem uma ideia diferente
sobre como o lugar deveria aparecer, sobre como ele deve ser ocupado,
sobre como se vive nele. E eles vão mudando o posicionamento da mo-
bília e dos artefatos na casa, que Gehry sempre precisa rearranjar para
si mesmo ao término das sessões de fotos. Ele conta também que sua
mulher igualmente se declarava um pouco atrapalhada com tantas no-
vas possibilidades que essa revolução espacial havia criado.
Um dos principais representantes do desconstrutivismo, que sur-
ge nos anos 1970 como movimento de recusa aos princípios construti-
vos vigentes, Gehry tanto subverte como combina surpreendentemente
diferentes elementos da construção, diluindo fronteiras, misturando
formas e materiais, rompendo com concepções cristalizadas de fun-
ções, usos e hierarquias. De acordo com Stungo (2000, p. 10), o escultor
Richard Serra considera que a obra de Gehry “representa ruptura com
toda a arquitetura contemporânea”, sendo a primeira “a romper com a
ortodoxia do ângulo reto”. No documentário, Gehry relata ter crescido
como um modernista, e um dos depoentes refere-se a ele como um “es-
cultor cubista moderno”, que usa na construção figuras e formas como
ninguém fez antes. Seu gesto criativo conversa com legados culturais,
num exercício intertextual que puxa fios de outros autores e tradições
para com eles prosseguir em uma viagem ao desconhecido.
Diante do mantra moderno “decoração é um pecado”, Gehry per-
gunta: “mas como se humaniza um edifício, sem usar decoração? Como
torná-lo expressivo? Materiais precisam ser expressivos”. E ele começa
a criar com lixo, seja como inspiração, seja usando sucata. Uma alusão
a isso é ressaltada no documentário quando, em resposta à pergunta
sobre onde busca inspiração, Gehry refere-se a “espaços e texturas de
uma cesta de lixo”, e a câmera de Pollack nos conduz a enquadramentos
dos meandros arquitetônicos intrincados e monumentais de alguns de
seus prédios.
Gehry não só cria magistralmente, ele tensiona o estabelecido até
o impensável. Como afirma um dos comentaristas no documentário de
Pollack (2005): “Ele não só mudou o visual de uma época, ele remexeu
as próprias leis da física”. Em sua maneira de pensar sobre o lugar da
arquitetura na cultura do novo milênio ele, afinal, acaba por entender e

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empregar a tecnologia avançada para criar uma arquitetura que é uma


vibrante expressão do nosso tempo.
De certa forma, a vida no presente não se tornou apenas comple-
xa; ela oferece, junto com isso, um amplo leque de possibilidades de
fruição. A experiência estética passa a integrar de forma mais contun-
dente, mais disseminada, mais efetiva e acessível o tecido urbano e as
demais instâncias da existência contemporânea. A heterogeneidade de
linguagens disponíveis hoje ajuda na composição de novas fontes de
prazer e diversão. As cidades, os espaços públicos, cada vez mais com-
partilham essa dominante cultural (Jameson, 1996). Jencks (1984 apud
Harvey, 1993, p. 271) faz uma afirmação instigante: “parece desejável
que os arquitetos aprendam a usar essa heterogeneidade inevitável de
linguagens. [...] [isso] é bastante divertido”; e completa: “O ecletismo é
a evolução natural de uma cultura com escolha”. Tal frase ressoa como
um desafio e uma provocação no seio de sociedades em que certos gru-
pos e instâncias, pelos poderes que detêm, pelos privilégios que con-
centram e pelas posições que ocupam, consideram-se legítimos defini-
dores do cânone, daquilo que seria bom, mau ou ambíguo para todos.
Gehry projetou edifícios que vão além da ocupação do espaço,
e o documentário evidencia as idiossincrasias desse artista subversor
do traço linear que majoritariamente tem caracterizado a arquitetura.
Conforme comenta Stungo (2000), há poucos edifícios que fazem as pes-
soas atravessarem o mundo para conhecê-los e admirá-los. O Taj Mahal
e o Parthenon são dois deles; o Museu Guggenheim de Bilbao, projetado
por Gehry, já faz parte desta seleta lista. Apenas nos dois primeiros anos
após sua inauguração, mais de dois milhões de pessoas foram a esta
pequena cidade às margens do rio Nervió, no norte da Espanha, para
admirá-lo.
O arquiteto-artista questionador, dinâmico e empreendedor con-
vive com o ser humano que fala de suas inseguranças e seus medos,
de seus sonhos e seus projetos, de suas dúvidas e seus embates. Assim
como no documentário, em inúmeras entrevistas Gehry procura des-
crever sua peculiar relação com a arte de edificar.
Eu não procuro a coisa suave, a coisa bonitinha. Isso me
irrita porque parece irreal. [...] um salão bonitinho, com
belas cores, para mim é como um sundae de chocolate.
Bonito demais. Sem relação com a realidade. A realidade,
para mim, é bem mais rude; as pessoas se mordem (Stun-
go, 2000, p. 15).

Para criar condição propícia a uma aproximação com Gehry − o


homem, o artista, o arquiteto −, foi também ele próprio quem recusou
as inúmeras propostas anteriores para um documentário sobre seu tra-
balho e sua trajetória, e elegeu Pollack, outro artista, seu amigo, diretor
polêmico assim como ele, que não conhecia nada de arquitetura, para
levar a cabo este projeto.

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O documentário, produzido como um movimento de mútua inva-


são − Pollack adentra o universo arquitetônico de Gehry, e este, por sua
vez, aventura-se um tanto tímido pelas sendas da visibilidade mediada
pela câmera do cineasta −, nos surpreende pela simplicidade da narra-
tiva clássica adotada por dois controvertidos gênios das artes: apresen-
tação das obras, dados biográficos distribuídos ao longo do texto e um
bate-papo reflexivo entre dois amigos mesclado com depoimentos de
clientes, admiradores, projetistas da equipe de trabalho, auxiliares, te-
rapeuta e críticos. O vídeo investiga, disseca, revira, celebra o processo
de criação. De mirabolante, apenas o fascinante espetáculo arquitetô-
nico inventado por Gehry e suas obras.
Poderíamos prosseguir falando longamente aqui acerca do ge-
nial e controvertido Frank Gehry. Suas obras, assim como o artista, são
polêmicas e ambivalentes. Apesar do brilho, do sucesso, do espetáculo
que proporcionam, nunca foram unanimidade. As críticas mais fre-
quentes incidem sobre o elevado custo dos projetos e da manutenção e
limpeza das edificações. Sublinham, também, o caráter experimental
das inovações e os riscos. Outras referem que as obras não atendem ao
requisito de conforto e durabilidade, e que alguns materiais de revesti-
mento emanam muito calor. Algumas vozes denunciam que os museus
projetados pelo arquiteto, mais atraentes e espetaculares do que as pró-
prias obras de arte que expõem e abrigam, são edificados na contramão
de suas funções. No documentário, uma das críticas diz respeito ao ex-
cesso: “Ele oferece demais aos seus clientes. Eles lhes pedem algo e ele
logo lhes dá tudo”. Como se vê, uma obra de impetuosa exuberância,
que revolucionou a arquitetura levando as leis da física a limites impen-
sáveis, que rompeu ortodoxias e revirou a estética de uma era, persiste
controvertida e é alvo de contestações.
Aqui, então, impõem-se perguntas sobre o que pode interessar a
nós, estudiosos da educação e da pedagogia, na arquitetura de Gehry.
O que uma obra como a dele pode ter em comum com nossas preocu-
pações como pesquisadores? O que aprendemos ao conviver com seu
gesto de criação? Em que sentido pode ser interessante para nossos
estudos essa aproximação com o processo criativo e com as obras de
Frank Gehry? É claro que as possibilidades, aqui, são muitas e variadas.

Pensar a Pesquisa com Frank Gehry


Esboços de Frank Gehry é, sem dúvida, um artefato cultural bom
para pensar. Ao nos permitir desfrutar o espetáculo visual proporciona-
do pelas obras de um artista tão magistral quanto polêmico, mas tam-
bém para além da pura fruição, o documentário nos oferece incontáveis
e variadas possibilidades de reflexão. Pollack com sua câmera nos con-
duz em um passeio com o arquiteto por suas obras, por seus modos de
criar, compor, trabalhar, relacionar-se, produzir; por suas inseguran-
ças, tensões e incertezas. Ao fazer isso, sob vários aspectos, a película

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apresenta elementos instigantes para refletir e discutir perspectivas,


concepções, desafios da criação − e a pesquisa também não é isso? An-
tes de tudo, uma peculiar criação, que não se dá no vazio, mas é gestada
em um universo de processos, práticas estabelecidas, discursos e lutas
por sentido e significado. Criar é, entre infinitas possibilidades, inven-
ção de combinações antes impensadas, outros modos de ver e compor,
rearranjos que desintegram ordens e instauram novos espaços e pata-
mares.
É assim que o documentário também nos permite refletir sobre
impasses que se apresentam a quem se aventura por caminhos inves-
tigativos no que temos chamado de vertente pós-estruturalista. Certo
modo de conceber pesquisa à revelia das ortodoxias, sem desconsi-
derar a possibilidade de, com humildade e coragem, inscrever-se nas
margens, marcando outros lugares e formas de conceber, tensionando
paradigmas. Quando Gehry fala sobre seus edifícios, ele os visualiza em
meio aos demais que o circundam. A forma como um prédio inscreve-
se em um território, como altera a composição e o significado de uma
região urbana causa-lhe perturbação, mas também fascínio. São, por
exemplo, três impressionantes blocos de edifícios cambaleantes, reves-
tidos de diferentes materiais (um de ladrilhos vermelhos, outro de aço
inoxidável polido como espelho e outro de gesso branco) que revitaliza-
ram uma exaurida área portuária às margens do Reno em Düsseldorf.
“É preciso ser um bom vizinho”, diz Gehry, manifestação cuja mate-
rialidade pode ser observada em inúmeros projetos, entre outros, o da
Dancing House − edifício da embaixada da Holanda, às margens do rio
Moldava, na parte histórica de Praga (1992-1994) − que parece bailar,
seja pela fluidez da fachada principal do bloco voltado para o rio (que se
contorce para permitir que os prédios antigos situados na outra esquina
não percam suas vistas para o Moldava), seja pelo movimento das pa-
redes e janelas, todas como se estivessem em balanço. Pela linguagem
corporal que se estabelece entre as duas torres, recebeu também o ape-
lido de Fred y Ginger13.
O documentário é também um modo de olhar o avesso dos pro-
cessos de criação do artista-arquiteto, operando com isso já uma des-
construção que permite compreender aspectos centrais do pensamen-
to pós-estruturalista. Como tal obra se tornou possível? Que prazeres,
poderes, saberes, expertises se articularam em sua concepção? Para
além da noção naturalizada da arte como genialidade individual, que
indícios nos apontam para o trabalho de criação como bricolagem, de-
glutição do outro, mistura, hibridismo, contingência, provisoriedade?
A obra de Gehry é seu idioma pessoal, produzido nos interstícios de
outras escrituras, apropriando-se de elementos expressivos recolhidos
aqui e ali, de imagens conceituais, de fragmentos, numa espécie de ca-
nibalismo como condição de possibilidade. Pensar e escrever, por sua
vez, operações próprias do pesquisador, igualmente ocorrem nos entre-
meios do que outros pensaram e escreveram. Os textos são produzidos

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acumulando-se fragmentos de autores que nos ajudam a compor algo


de outra forma, por outros ângulos. Pesquisadores inspirados no pen-
samento pós-estruturalista também recolhem fragmentos de textos ou
imagens em suas obras e também recorrem à bricolagem, ao pastiche,
não aprisionam a ambivalência e admitem a contingência e a proviso-
riedade de sua condição e de seus escritos.

É Difícil Começar − medos e incertezas


− Começar é difícil? Pergunta Pollack.
− Sim, responde o arquiteto, você sabe que é. É muito difícil, meio apavo-
rante. Aí, limpo minha escrivaninha, faço anotações idiotas de forma a
parecerem importantes. Vem então a rejeição, atrasos, negação. Sempre
tenho medo de não saber o que fazer. É um momento terrível. Quando
consigo começar, enfim, aí fico maravilhado! E penso: não é tão difícil!

Os sentimentos descritos por Gehry ressaltam a experiência de


que o desafio de qualquer empreendimento criativo reside em conse-
guir enxergar/compor algo, desvencilhando-se de enquadramentos
anteriores, procurando escapar das amarras do estabelecido e consa-
grado. Estranhar o que já se conhece ou jogar-se no desconhecido, pen-
sar o que não se pensa. É um olhar indagador e aventureiro que está
na origem da problematização que conseguimos compor e que vale a
pena. Como a arte, a pesquisa não é um processo de mera constatação
ou demonstração, mas de invenção. O mundo não está simplesmente
aí para ser pesquisado. São indagações sensíveis, fecundadas por teo-
rizações de igual teor, que conseguem, como um artista, construir um
objeto para ser investigado. É também o olhar que o pesquisador deita
sobre o mundo que faz emergirem perguntas instigantes, que ultrapas-
sam concepções simplificadoras e, como tal, exauridas. Os prazos cor-
rendo, imenso acúmulo de leituras realizadas, incontáveis idas a cam-
po, torturantes incertezas e uma aparentemente inexplicável paralisia
são indícios dessa experiência que, a qualquer momento, pode eclodir
em um jorro de possibilidades, em um manancial para o pensamento
que inaugura outras concepções, outros encaixes, novamente expos-
tos a crivos e especulações de todo tipo. Talvez justamente por isso, a
maior satisfação de artistas como Gehry não seja a obra pronta, mas a
renovada possibilidade de criar esboços. Da mesma forma, a pesquisa
pós-estruturalista não pretende, afinal, desvendar definitivamente os
mistérios do mundo e da vida, mas mostrar que conseguimos com nos-
so trabalho apenas hipóteses parciais e provisórias que nos oferecem
uma segurança frágil e temporária.
Em outra passagem do filme Esboços de Frank Gehry, o arquiteto
revela que às vezes indaga a si mesmo como pode lhe ter surgido uma
ideia tão louca para certo projeto e, ainda mais, como pode ter tido a
coragem de colocá-la em execução. Ele perde então o sono, imaginando
o que poderá acontecer quando a obra começar a tomar corpo e, depois,
quando mostrá-la ao mundo. Assim como Gehry, enquanto pesquisa-

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dores pós-estruturalistas nunca estaremos livres dos riscos e da incer-


teza implicados no cruzamento das fronteiras entre o que era conside-
rado possível, pensável, e o impensado, imprevisível.

Coragem, Aventura, Ambivalência – saltar fora da ordem


Gehry se incomoda com as regras − algo central, particularmen-
te, na arquitetura − e se empenha em duvidar delas, problematizá-las,
dobrá-las, subvertê-las. E como um artista, arrisca-se. Mas não sem me-
dos, conforme já comentei. Essa é mais uma aproximação entre as pe-
culiaridades do trabalho intelectual dos investigadores da vertente pós-
estruturalista, e algo que decidi chamar aqui de movimentações criativas
(sentimentos, embates, irritação, controvérsias, instabilidades, riscos)
presentes nas atividades de criação artístico-arquitetônica narradas
pelo arquiteto. Não é simples saltar fora da ordem, exige disposição, de-
terminação, coragem, mas também outras ferramentas e métodos. Ele
consegue misturar a liberdade da arte com algo concreto e intransponí-
vel − as leis da Física: afinal, “um edifício precisa ficar de pé!”. Ele tam-
bém comenta que em seu trabalho há momentos (e houve muitos) em
que precisou como que “saltar de um precipício” (intelectual, criativo),
e aquilo acabou deixando-o muito feliz. Depois das comuns, frequentes
e intermináveis incertezas, inseguranças, dúvidas, medos, nasce, como
um filho, um edifício, que é um espetáculo e que funciona! Abdicar das
certezas e arriscar-se parece ser a alternativa para se pensar para além
de molduras prontas, que acabam se transformando em viseiras e nos
permitem enxergar uma ínfima parte da conturbada, complexa e plu-
rifacetada experiência humana. Nunca enxergaremos o todo, pois ele
só existe em nossa imaginação, fruto da ilusão moderna de totalidade.
Contudo é preciso explorar os limites, borrar as fronteiras, mudar os fo-
cos, trocar as lentes, movimentar a câmera, como faz Pollack no passeio
em que nos conduz.
A certa altura, Gehry admitiu que a geometria descritiva não dava
mais conta das exigências de seus projetos: uma mistura de técnica,
ciência e arte, de desafios da física, de emoção estética; de movimentos
leves, suaves, com amplitude e magnitude antes impensáveis. Confor-
me comentam no documentário, ele “[...] procura expressar sentimen-
tos com objetos tridimensionais imensos”.
Mitchell (2001, p. 354) salienta que a tendência dos arquitetos é
“desenhar o que podem construir e construir o que podem desenhar”.
Gehry é um insurgente. Ele não dispensa os modelos físicos, tateáveis,
o desenho, os esboços; ele reluta um pouco, mas rende-se e incorpora
os computadores que simplificaram a modelagem digital das superfí-
cies curvas, os cálculos de áreas e volumes, permitiram a visualização
precisa de sombreados e sombras, assim como a realização de análises
estruturais, térmicas e acústicas. A exploração exaustiva de sistemas e
tecnologias computadorizadas levou-o também a novos usos de ma-

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teriais e técnicas de construção, mas não sem riscos (Mitchell, 2001).


Aqui, mais uma lição de Frank Gehry arquiteto: aprende-se a não negli-
genciar o desconhecido, mas procurar encontrar nele um manancial de
novas possibilidades.
Com a tecnologia, foi possível dar formas esculturais aos prédios,
desenvolver uma arte de construir edifícios cujo processo criativo está
sempre no limite, não sem tensões e eivado de ambivalências − sim-
plicidade, fragilidade, grandiosidade, vaidade, medo, coragem. Arqui-
tetura? Escultura? E por que não pintura, quadros? Gehry já trabalhou
com cerâmica, mas revela nunca ter tido coragem de enfrentar uma
tela e uma paleta de cores. Pollack, entretanto, compôs uma sequên-
cia visual dos prédios, apresentando-os como se fossem imensas telas,
admiráveis imagens pictóricas que se esboçam sobre as superfícies dos
edifícios em jogos de cores, luz, sombras e reflexos. Tratar-se-ia de ou-
tra forma de pintura? Instável, contingente, efêmera e constantemen-
te renovada? Gehry mistura cores e formas exatamente como faria um
pintor. Todavia, suas telas são as faces cambiantes das edificações sub-
metidas a efeitos de luz e sombras, a ângulos, reflexos, sinuosidades,
enfim, uma arte pictórica de resultados sempre inesperados e estetica-
mente emocionantes.
Em outra passagem do documentário, um projetista declara ter
sido crítico, difícil, levar a tecnologia para o processo criativo de Frank,
à qual o arquiteto acabou por render-se. Ele reconheceu que o que pen-
sava e inventava era mais arrojado e complexo do que ferramentas e
técnicas disponíveis até aquele momento eram capazes de projetar e
executar. Ao revolucionar o universo de possibilidades da arquitetura,
tornou-se imperativo praticar uma revolução consigo mesmo. E ele não
temeu mais esse enfrentamento. “Há um aspecto ameaçador em dar o
salto, mas depois que você experimenta, que diz: − certo, tenho o di-
reito! Bem, aí não dá mais para parar”. Nesse caso é bom lembrarmos
que, quando Foucault (1994; 2006) fala sobre os motivos que o impulsio-
naram em seus trabalhos, alude frequentemente a esse mergulho nos
projetos em decorrência de uma curiosidade que produz uma transfor-
mação. “Quando escrevemos livros, desejamos que eles modifiquem
inteiramente tudo aquilo que pensávamos e que, no final, nos perce-
bamos diferentes do que éramos no ponto de partida” (Foucault, 2006,
p. 289).
É o próprio Gehry quem nos conta sobre sua predileção pelos cír-
culos de artistas, desde quando ainda era apenas um jovem arquiteto,
em que tinha alguns amigos. Particularmente os admirava por não
serem tão apegados à tradição e à história. Poucos arquitetos se mis-
turavam com artistas, afirma, mas ele apreciava essa convivência com
pessoas mais soltas e irreverentes.
Há muita inspiração em Frank Gehry para pesquisadores que se
movimentam no terreno do pensamento pós-estruturalista − entregar-

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se à busca do conhecimento como a uma aventura, soltar o pensamen-


to, perder-se, ouvir e deixar-se embalar. Ir ao limite da tensão entre
medo, risco e diversão. Inventar, reinventando-se.

Um Edifício não Precisa ser um Contêiner parecido com uma Caixa


Gehry brincou com o cubismo em algumas de suas obras, resquí-
cios de alguma convivência com manifestações artísticas que remon-
tam ao início do século XX. Ele sempre repudiou o terror à mistura que
caracterizou e ainda caracteriza a arquitetura até hoje (e não apenas
ela). Fugindo dessa tendência, fez um pacto entre arte e arquitetura e
se descreve como um obcecado pela conexão, por juntar ideias e criar
uma nova linguagem. Declara ter se mantido sempre interessado em
conexões, em juntar peças, e é ele próprio quem afirma ser essa talvez a
única ideia que atravessou sua vida (Stungo, 2000). Parece que quando
se experimenta a mistura, diz ele, já não se pode parar. Tal concepção
é uma das que têm subsidiado novas perspectivas para problematizar e
analisar a existência contemporânea sob a condição pós-moderna. Não
há pensamento puro, todo o pensamento é híbrido, mas foram neces-
sários aproximadamente 400 anos para que isso se tornasse dizível. Os
estudos culturais são hoje um dos campos de pesquisa que se benefi-
ciam do cruzamento e da ultrapassagem de fronteiras possibilitados
pela desarticulação do sonho moderno da pureza.
Gehry é descrito no documentário por um de seus colaboradores
como um misto de escritor e diretor, que concebe algo em uma folha em
branco e o transforma em imagem visual tridimensional. Foi dessa for-
ma que ele conseguiu mudar o visual de uma área como a arquitetura,
extremamente conservadora. Philip Johnson14, um dos mais conheci-
dos e famosos arquitetos modernistas do século XX, considera Gehry
o principal arquiteto do mundo de hoje. Conforme declarou a Pollack
no filme, “[...] é impossível captá-lo em apenas duas dimensões”, cha-
mando assim a atenção para as limitações enfrentadas pelo cineasta ao
realizar um documentário sobre uma obra tão revolucionária, plurifa-
cetada e polimórfica.
O fascínio do arquiteto pela articulação entre espaços, prédios e
pessoas leva-o a decompor os projetos em partes, interligando blocos
de formas completamente diferentes, raramente projetando uma edifi-
cação monolítica. Ele diz não a uma velha ordem e subverte categorias
fixas como dentro e fora, instalando-as na ambivalência. A escadaria do
Museu de Design Vitra (Alemanha) foi a primeira obra em que usou a
tecnologia para conseguir projetar algo impensável na geometria des-
critiva − “Algo estranho, bagunçado, forças liberadas que encontram
uma nova ordem”. E o Vitra está lá, belo, funcional, um híbrido emocio-
nante. Uma experiência estética na desarmonia. Eis uma demonstração
de que sempre é ainda possível ir além e pensar (e executar) o até então
impensável.

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Sobre o método, diz Gehry: “Começo sempre com os esboços e


a partir deles montamos as maquetes. [...] feita a maquete, aí ficamos
olhando para ela, até que nos irrite. Finalmente, tem uma aparência
tão estúpida, que ficou ótima!”. Essa atitude despretensiosa, irreverente
e lúdica frente ao movimento intelectual criativo serve de inspiração
para pesquisadores e desinstala a pesquisa do território da sisudez em
que se tem entrincheirado. Há muitas formas de se produzir conheci-
mento e nada há que desqualifique a fruição como parte delas.
“E quando consideras que um projeto não está bem?”, pergunta
Pollack. Gehry responde que isso acontece quando tudo parece mui-
to fácil para a equipe ou quando suspeitam que estejam entrando em
um clichê. Nesses casos, diz, é preciso sofrer, agonizar um pouco. Hoje
a equipe é uma marca de seus projetos, sem a qual já não conseguiria
mais projetar. “Gosto de brincar nos projetos junto com a equipe. [...]
Nossa comunicação é quase não verbal e é o senso de equipe que ajuda a
ir até o fim”. No caso das pesquisas em educação que se abrem para no-
vas perspectivas analíticas, a movimentação parece seguir na mesma
direção. Grupos de pesquisa constituem-se hoje em núcleos que inven-
tam esboços cooperativamente, submetem as ideias a múltiplos crivos,
cruzam hipóteses, puxam muitos e variados fios, criando redes de sa-
beres. Mas não se trata aqui de coesão, de uníssono, e sim de coletivos
onde há dissonâncias produtivas, que ajudam a ouvir e ver, a matizar e
a fazer falar mais e mais diferenças.
Para Gehry, o importante é o processo de incubação. Um assisten-
te relata que ele está sempre em volta das maquetes, sempre mexendo
nelas. É como trabalhar com argila, que se vai moldando até encontrar
algo em que nunca se pensou. Pode-se dizer que corresponde a uma ati-
vidade de pesquisa cujo movimento é exatamente este: a concepção do
projeto com seu desenho, problema, objetivos e metodologia acontece
num vaivém entre o campo de pesquisa e as ferramentas teóricas. Esse
trânsito corresponde à incubação, na qual a modelagem acontece, em
que o objeto de investigação (a obra de arte do pesquisador) é construí-
do, tomando corpo com todas as suas nuances e especificidades.

Não há Nada lá... está tudo aqui


Gehry declara ter uma relação difícil com os prédios prontos.
Como demoram muito para ser construídos, quando chega a um edi-
fício acabado não lhe agrada perceber as coisas que não devia ter feito,
assim como outras que parecem faltar. Percebe que há algo diferente
neles e que não se via nas maquetes. Os reflexos da luz, que surgem
quando eles estão prontos, a forma como ela bate no material, mostram
como estão vivos e já não se pode mexer. Não há como voltar atrás.
As manifestações acerca do Guggenheim de Bilbao deixam cla-
ro seu prestígio como um dos edifícios mais impressionantes do nosso
tempo. “Ele é a catedral mais importante do século XX”, afirma um dos

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comentaristas no documentário. Outro diz que “[...] ele reúne muitas


reminiscências, você entra e se sente em Luxor... Ele tem a escala do
Egito”. O diretor do museu lembra um jornalista que teria se referido ao
Guggenheim como um objeto do espaço sideral que teria pousado em
Bilbao há cem anos, algo alienígena, nada a ver com a cidade; porém, se
o retirassem, não se poderia mais entender Bilbao sem ele. Pollack pede
a Gehry que explique, diante do fenômeno Guggenheim, como pode di-
zer que tudo já foi feito, inventado, pensado em arquitetura: “Nunca vi
um edifício igual a esse. Ele é sensual, musical, de onde vem tudo isso?”.
O arquiteto responde tê-lo desenvolvido quando procurava uma forma
de expressar sentimentos em objetos tridimensionais: “Vamos colocar
algo aqui que leve a esse estado transcendental que se sente quando
se faz arte”. E é Phillip Johnson quem se refere ao museu como “uma
visão do paraíso”. A luz atinge outra forma, diz ele: “Minha nossa! De
luz Gehry entende”.
O cineasta pergunta se ele fica deprimido quando acaba uma
obra. E Gehry responde que sim, que só relaxa um ano depois, após o
teste do tempo, quando não houve vazamentos e as pessoas gostaram.
Aí ele se distancia um pouco e consegue olhar para a obra. “Um prédio é
como um filho, e eu os amo”. “E você para para pensar que parte de você
fez isso?”, pergunta Pollack. Ao que Gehry responde:
Sim, penso nisso o tempo todo. Mas é como mágica, surge. E quando fico
imaginando o que as pessoas vão pensar, quero me esconder sob as co-
bertas. Isso aconteceu com o Guggenheim de Bilbao. Eu nunca imaginei
que ele seria o sucesso que é. De fato, antes de sua inauguração eu estava
até um pouco constrangido e cheguei a pensar: “Meu Deus, como fui in-
ventar isso?”.

Até hoje, para Gehry, as obras em construção são suas preferidas,


e justifica: “O edifício acabado tem segurança e é previsível. [...] Gosto
de brincar à beira do perigo” (Stungo, 2000, p. 16).

Revolucionar a Vida a cada Dia


Pensar com a arquitetura de Gehry é uma experiência que pro-
duz também em nós uma revolução. Gehry não está apenas lá, em suas
obras, ele está aqui, em cada um dos movimentos que fazemos como
protagonistas da “longa revolução” que transformou a “estrutura do
sentimento” − tal como descreveu Williams (1965) no final dos anos
1960 −, constituindo os seres desta nova era em que vivemos. É nesse
sentido que suas obras e as movimentações que as tornaram possíveis
podem ser pensadas como uma pedagogia, como aquele traço da cultu-
ra que engendra sujeitos. Bauman (1999, p. 287) afirma que “[...] a mo-
dernidade ainda está conosco. Ela vive como pressão de esperanças e
interesses não satisfeitos sedimentados em instituições que se autor-
reproduzem [...]”; a universidade é uma delas. Apesar disso, o fato de
hoje nos referirmos à modernidade como um projeto inacabado pode

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ser considerado uma expressão contundente de mudanças em nós mes-


mos. Parece que já saltamos fora e conseguimos olhá-la em suas múl-
tiplas manifestações e efeitos sem nos confundirmos com ela. Nossa
existência na condição pós-moderna submeteu nossa sensibilidade a
razoabilidades discrepantes e incompatíveis com o monolítico mundo
moderno da pureza e da ordem, sufocado de entulhos. Viver “no ras-
tro”, como expressa Bauman (1999), pode significar turbulência, mas
também panoramas mais amplos e nova compreensão. Armar outras
perspectivas para ver e refletir pode nos ajudar, quem sabe, a “respon-
der a uma urgência”, a articular nossas pequenas lutas diárias. Como
nos sugere Foucault (1995, p. 256) em uma de suas entrevistas: “[...] nem
tudo é ruim, mas tudo é perigoso. [...] a escolha ético-política que deve-
mos fazer a cada dia é determinar qual é o principal perigo”.
Frank Gehry e os tensionamentos produzidos por suas obras con-
tribuem de alguma forma para que nos libertemos, abdicando de certas
pretensões, tornando mais leve e promissora, embora sempre incerta
e eivada de inseguranças, a tarefa investigativa como criação. Vascu-
lhando e remexendo os limites da linguagem, artistas, assim como pes-
quisadores, remexem os limites do nosso mundo.
O estilhaçamento da ideia de totalidade é um passo marcante em
direção a ricas possibilidades para adentrar curiosamente pelas múlti-
plas faces da existência contemporânea, crivando verdades e certezas.
Nem pessoas, nem coisas têm o seu lugar, mas podem habitar qualquer
lugar, trocar de lugar; está liberta a ambivalência. Dentro e fora são ca-
tegorias que geram ambiguidades perturbadoras, é melhor livrar-se de-
las, desprezar o horror à mistura e o sonho da pureza, permanecer em
construção, ser obra inacabada, esquecer as generalizações e revolucio-
nar a vida a cada dia.
Afinal, como conjectura Gehry no final do documentário, “Quan-
do se é um jovem arquiteto, busca-se um tipo de perfeição impossível.
Imagina-se algo que seria o ápice da carreira. Quando amadurece, você
percebe que não há ‘lá’, que você não vai chegar ‘lá’”.

Recebido em 07 de março de 2012


Aprovado em 01 de outubro de 2012

Notas
1 Agradeço a generosidade dos colegas e amigos Luis Henrique Sacchi dos Santos
e Celso Vitelli, que se dispuseram a ler as versões finais deste texto e me aju-
daram a livrá-lo de muitos problemas. Obviamente, a responsabilidade pelas
ideias expostas é minha.
2 A expressão pensamento pós-estruturalista é empregada com referência a aportes
intelectuais trazidos por considerável conjunto de pensadores contemporâneos
que criticam o racionalismo ao mesmo tempo em que mantêm compromisso
com a racionalidade, agora totalmente subordinada à história.

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3 Título original: Sketches of Frank Gehry. Direção de Sydney Pollack. Sony Pictures
Classics. EUA. 2005. 1 DVD (83 min.).
4 Obras expressivas são Learning From Las Vegas (1996, primeira edição em 1972),
de Robert Venturi, Denise Scott Brown e Steven Izenour, e The Language of
Post-Modern Architecture (1991, primeira edição em 1977), de Charles Jencks.
Ambas são apontadas por Anderson (2005) como trabalhos iconoclastas, que
contestam o modernismo na arquitetura, sendo Jencks quem teria tornado
famoso no mundo da arte o termo pós-moderno.
5 Frank Gehry nasceu em Toronto, em 1929, e mudou-se para Los Angeles em
1947. Muitos de seus projetos são marcos da arquitetura contemporânea, entre
eles o Walt Disney Concert Hall, em Los Angeles, o Vitra Design Museum, na
Alemanha, e o Museu Guggenheim de Bilbao, na Espanha.
6 Considerado um dos fundadores do desconstrutivismo na arquitetura, em 1989,
ganhou o Pritzker Prize (Hyatt Foundation), prêmio máximo da arquitetura
mundial. Uma bibliografia alentada do e sobre o arquiteto pode ser encontrada
em Friedman e Ragheb (2001).
7 Foram fonte de inspiração para este trabalho as anotações de aula do curso
Escritas do Contemporâneo, ministrado em novembro de 2008, no Programa
de Pós-Graduação em Educação da Ulbra, pelo professor Dr. Jorge Ramos do
Ó, do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa.
8 Entrevista constante da obra de Diamonstein, American Architecture Now, New
York, 1980, p. 43-46 (cf. referenciado por Jameson).
9 Adquirida em 1978 e reformada em seguida, a casa vem passando por várias
remodelações desde então.
10 Arquiteto, professor de História da Arquitetura na Escola Politécnica de Milão
e diretor da seção de Arquitetura da Bienal de Veneza.
11 Arquiteto nipo-estadunidense, foi responsável, entre outros, pelos projetos
das Torres Gêmeas, em Nova Iorque, e da Torre Picasso, em Madri.
12 Frase de Frank Gehry citada em Jameson (1996, p. 129).
13 Uma alusão à dupla de conhecidos bailarinos americanos Fred Astaire e
Ginger Rogers.
14 Arquiteto norte-americano (1906-2005) considerado um dos pais da arquitetura
moderna e um dos responsáveis pelos termos international style e arquitetura
desconstrutivista. Philip Johnson recebeu, em 1979, o primeiro Prêmio Pritzker
– considerada a mais importante láurea da arquitetura mundial.

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Marisa Vorraber Costa é licenciada em Filosofia e Doutora em Educação


com estágios de pós-doutorado em universidades de Portugal, Espanha e
Alemanha. Professora Titular em Ensino e Currículo da UFRGS (aposenta-
da), é docente convidada do PPGEdu/UFRGS e também atua no PPGEdu/
Ulbra. Foi pesquisadora do CNPq durante 15 anos e tem investigado as co-
nexões entre cultura e pedagogia.
E-mail: [email protected]

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