Mulheres Descolonizando A Amazônia Pelos Caminhos de Vida
Mulheres Descolonizando A Amazônia Pelos Caminhos de Vida
Mulheres Descolonizando A Amazônia Pelos Caminhos de Vida
Belém Pará
2020
BRENDA THAINÁ CARDOSO DE CASTRO
Banca Examinadora:
_________________________________________
Orientadora: Profa Dra. Violeta Refkalefsky Loureiro
PPGSA/UFPA
_________________________________________
Examinadora interna: Profa. Dra. Mônica Conrado
PPGSA/UFPA
_________________________________________
Examinadora interna: Profa Dra. Edila Arnaud Ferreira Moura
PPGSA/UFPA
_________________________________________
Examinadora externa: Profa. Dra. Rosa Acevedo Marín
NAEA/UFPA
_________________________________________
Examinadora externa: Profa. Dra. Marcela Vecchione Gonçalves
NAEA/UFPA
Belém Pará
2020
À vó Maria (In memorian),
Às alunas e aos alunos que dividiram esta jornada
comigo nos últimos anos
AGRADECIMENTOS
Parece injusto que só o meu nome conste na página principal deste trabalho, pois
posso têlo escrito em diversos momentos de solidão, mas com certeza, ele é resultado do
esforço e apoio de muitas pessoas. Agradeço às minhas avós, Assunção Maria de Castro,
falecida em janeiro de 2019, e minha avó Raimunda Cardoso, por tudo que me ensinaram,
tanto na fala quanto no silêncio, na proximidade ou na distância. É uma honra todas as vezes
que alguém me compara a elas, mesmo que seja por ser “rebarbada” como a vó Maria ou
muito autocrítica e exigente como a vó Raimunda. Eu sei que este trabalho não vai mudar o
que vocês passaram, mas eu realmente pretendo me dedicar a tentar pensar formas de
entender e mudar a realidade para que outras mulheres não precisem passar pelo que vocês
passaram.
Da mesma forma, sou grata à minha mãe, Ana Lúcia, que desde quando eu estava na
sua barriga lutou da forma que pôde para garantir uma vida melhor para nós e desde o útero
estivemos em uma parceria de dedicação, ela estudando para o concurso enquanto a barriga
crescia e eu agora tentando continuar o seu trabalho e fazer jus a todos os seus esforços. A
educação foi para ela um caminho que possibilitou um pouco de liberdade numa sociedade
ainda muito injusta e patriarcal; criou a mim e ao meu irmão com muita dedicação; crescemos
nós três juntos, longe da família, em outra cidade. A senhora fez o seu melhor. Este trabalho
foi desenvolvido enquanto eu pensava que nem a senhora, nem as minhas avós, deveriam ter
sido submetidas a tantas injustiças e cobranças, além das violências no decorrer da vida.
Uma conversa específica com a vó Raimunda foi uma fagulha crucial para esta
pesquisa. Enquanto ela me contava sobre a sua vida antes do casamento e dos filhos e
compartilhou comigo quantas vezes pensou como tudo poderia ter sido diferente e se talvez,
num outro cenário, ela poderia ter terminado seus estudos, ainda que pelo seu “sacrifício”
tenha garantido que seus sete filhos pudessem estudar e isso possibilitou à família sair de uma
situação de pobreza. E hoje estou aqui.
Às mulheres da minha família que, sem querer, fizeramme acreditar durante a minha
infância que a sociedade era matriarcal, por tanta onipresença feminina em frente a tudo, de
tanta predominância e dedicação em todas as esferas da vida. Lembro de ainda criança eu
achar que o ciclo da vida era casar, ter filhos e se separar, cuidando de seus filhos sozinhos,
como conta a história das Ycamiaba1.
1
Referência às mulheres Ycamiaba, do rio Nhamundá, cujos relatos que as relacionavam com a mitologia grega
das mulheres guerreiras amazonas (que viviam em uma sociedade matriarcal) inspirou o nome do rio Amazonas
e que agora também se usa para referir a toda uma região, a Amazônia.
Infelizmente, percebi adulta que o que eu via com tanta admiração era fruto de muito
sofrimento também, mas nesse caminho nos amamos e continuamos juntas. Isto é o que
importa.
Ao meu companheiro de cotidiano, conversas cosmológicas e banais, Dino, por ter
sido meu apoio, meu incentivador, quem garantiu que eu continuasse hidratada e alimentada
em tantos dias, tentando conciliar o trabalho como professora e a tese, quando eu esquecia até
de comer e beber água. Obrigada, eu teria chegado a esse momento mesmo sem ele, mas ter
chegado aqui e estar com ele é muito melhor. Obrigada por respeitar meu espaço, meu
isolamento e também por me acolher quando eu precisava de afeto e encorajamento, ou
apenas ficar falando sem parar sobre coisas que às vezes nem eu entendia.
Às minhas companhias felinas, por ficarem comigo o dia todo, principalmente
enquanto escrevia, às vezes sentando no teclado e me atrapalhando, mas na maioria das vezes
só me fazendo companhia, com um silêncio cúmplice cheio de amor. Jonfen, meu bebê, eu
sempre achei que ainda estaria aqui quando esse dia chegasse. Ele me acompanhou desde
2008, quando eu ainda estudava para o vestibular; durante a graduação, o TCC, a dissertação
e por muito pouco não está deitado agora aqui na minha mesa, mas estará sempre comigo. Val
e Bowie, minhas anjas que me dão amor e são minhas conexões com a natureza para aliviar a
vida em meio a tanto cimento, agradeço pela companhia.
Ao G7, meus amigos de tempos de UNAMA, a gente não sabia para onde a vida nos
levaria, mas mesmo que a maioria hoje em dia esteja longe de mim, 10 anos depois ainda
estamos rindo das mesmas besteiras, compartilhando indignação sobre os mesmos assuntos.
Obrigada por fazerem eu me sentir sempre em casa quando estamos juntos.
Dos novos amigos que fiz nessa trajetória muitos são alunas e alunos que os cinco
anos de docência me presentearam, por terem sido essenciais no incentivo para que eu
tentasse o doutorado, por torcerem pela minha tese e me ouvirem falando sobre minhas crises
existenciais e acadêmicas, por verem em mim coisas que eu mesma nunca vi e continuo
tentando ver, a eles, obrigada por tudo. Em especial, alguns merecem menção honrosa pelo
companheirismo: Thayse, Angelina, Mayara, Brenda, Nick, Geórgia, Carla, Jerry, Karine,
Karol, Luan, Mathaus, Victor, Catarina, Tássia, Matheus, Rachel, Mariane, Ju, Amanda,
Douglas, Demethrius, Ana Paula, Andressa, Ariane, Joici, Thainá, Nielle, Breno, Lais, Lucas,
Tinica, e tantas e tantos outros (por favor, não fiquem chateados por não ter enunciado todos).
Eu dedico esta tese a vocês por terem sido a forçamotriz nesses anos, em que ao
mesmo tempo em que receberam até mais da minha atenção e meu tempo do que este estudo,
vocês que muitas vezes me entenderam quando ninguém mais entendia, que me encorajaram
nos últimos cinco anos. Vocês são o motivo de eu querer dar o meu melhor todos os dias e
foram também minha inspiração ao ver vocês superarem tantas coisas, tornaremse pessoas
tão incríveis de quem tenho tanto orgulho. Espero que o mundo seja bom com vocês.
A todas as pessoas incríveis que já passaram pelo GENERI, o grupo de estudos que
coordeno desde 2017, que se dispõem a passar algumas horas por semana rindo, indignando
se e pensando formas de mudar o mundo, muito obrigada. Em tempos tão difíceis vocês tem
sido minha fonte de esperança e força, obrigada por carregarem comigo esse propósito. Por
terem tantas vezes me escutado sobre a tese, inclusive, tendo propiciado o espaço para tantas
leituras que figuram aqui neste estudo. Obrigada também por reacenderem em mim a
esperança de que é possível ensinar a transgredir e transformar a sociedade, por ser uma luz
no fim do túnel de um modelo de educação cada vez mais cooptado pela lógica de mercado
neoliberal.
Às professoras e professores do Programa de PósGraduação em Sociologia e
Antropologia da UFPA, muito obrigada. Eu nunca tinha tido tantas aulas com mulheres e cada
uma delas fez eu me sentir capaz de ocupar um espaço na academia. Mesmo que
constantemente eu me sinta muito aquém dessas, acredito que estou no caminho e isso é
graças a vocês. Destaco aqui algumas professoras que marcaram muito essa trajetória e me
ensinaram muito sobre pesquisa, mas também sobre a docência.
Profa. Tânia Ribeiro, Profa. Edila Moura, Profa. Kátia Mendonça, Profa. Voyner
Cañete, Profa. Maria José AquinoTeisserenc: obrigada pela paciência ao lidar com alguém
que no doutorado foi ler pela primeira vez muitas das referências clássicas da sociologia.
Vocês foram magistrais, mesmo quando eu sentia que nunca ia entender, sabia que confiar em
vocês era o caminho para chegar lá.
Profa. Edna Castro e Profa. Violeta Loureiro: não consigo nem estimar o valor de
vocês para a sociologia na Amazônia e para a minha vida, obrigada por existirem, por tudo
que vocês fizeram, pela trajetória inspiradora. Se algum dia meus estudos alcançarem metade
da excelência do que vocês têm construído, estarei satisfeita. Vocês são a minha inspiração
para estudar a Amazônia. E, à Profa. Violeta, especialmente, obrigada por aceitar ser minha
orientadora, foi uma honra para mim, obrigada pelo apoio, pela confiança, por todas as
leituras atentas e sugestões, eu não poderia ter tido profissional melhor me acompanhando
nessa etapa.
Profa. Mônica Conrado, eu só posso agradecer por todas as desestabilizações que me
foram presenteadas. Mesmo que para mim fosse confuso inicialmente e eu até mesmo tendo
chorado muitas vezes, não por não gostar dos questionamentos que você me trazia, mas por
me sentir incapaz de entender o que você queria dizer ou esperava de mim, mas, ainda bem,
acho que com o passar do tempo e muitas leituras, eu comecei a entender melhor o que você
queria dizer e também a lidar melhor com a frustração de não entender tudo. Obrigada por
todas as vezes que você se propôs a compartilhar comigo algum incômodo, alguma leitura,
alguma incoerência e me estimular a nunca me dar por satisfeita com nenhuma resposta
provisória. Por fim, obrigada pelas suas contribuições na minha qualificação e também pelos
apontamentos tão profundos sobre o trabalho final.
Profa. Marcela Vecchione, agradeço por ter visto antes de mim o rumo que a tese
tomaria, incentivando que eu adotasse uma estruturação diferente de um formato mais
convencional e dialogasse mais com a minha experiência. Foi um longo caminho para que eu
chegasse a esse resultado, mas você e a Profa. Mônica Conrado foram, com certeza, parte
essencial no encorajamento de algumas rupturas em mim mesma. Agradeço também pela
leitura atenta e cuidadosa deste trabalho, dos caminhos possíveis apontados e da identificação
de argumentos que me tinham escapado.
Profa. Rosa Acevedo Marín, apesar do contexto da pandemia ter nos limitado a um
encontro presencial e até mesmo nos impossibilitado de um rito de defesa convencional foi
uma honra que a senhora tenha lido meu trabalho e se identificando com uma proposta tão
valiosa para mim como a forma que escolhi fazer isso, além de apontar contribuições.
E, Profa. Edila Moura, realmente jamais terei palavras para agradecer pelo cuidado na
revisão e comentários feitos. Costumo dizer aos meus alunos que não se sintam mal quando
receberem correções e anotações nos seus trabalhos, pois, para mim, é uma forma de estima
muito grande quando alguém reconhece nosso trabalho a ponto de contribuir tão
detalhadamente com possíveis ajustes e melhorias. Obrigada mesmo pela atenção, pelo seu
tempo, pelas suas palavras e encorajamento.
A vocês, professoras, que possibilitaram a finalização dessa etapa meu profundo e
sincero agradecimento: guardarei com carinho as palavras, apontamentos de incoerências e
sugestões de caminhos. É com uma sensação agridoce que finalizo essa versão, pois as suas
contribuições abriram tantos outros caminhos, mas esse agora precisa acabar, para que eu siga
outros.
A todos os professores e professoras que contribuíram para a minha formação
acadêmica e humana, muito obrigada. E ao professor Mário Amin, meu mestre na graduação,
avaliador na defesa do mestrado e recentemente colega de trabalho, muito obrigada. Obrigada
por ser essa inspiração de que uma academia e uma docência que não vê hierarquias de
títulos, que todas as ideias e projetos merecem entusiasmo, de que é possível passar décadas
em meio a esse ambiente sem se render ao cinismo. Há poucos meses o senhor partiu e não
pude compartilhar a finalização dessa caminhada, mas espero que o senhor tenha sabido em
vida que eu não estaria aqui sem suas palavras, conversas no corredor sobre o futuro, sobre o
tudo isso que “ninguém fala”. Por me guiar nesse caminho a pensar a Amazônia no mundo,
obrigada. Sintome agora um pouco mais só sabendo que tantas questões complexas que
estamos vivendo perderam uma grande mente capaz de absorver tudo isso e estar a frente de
todos nós.
Um agradecimento especial a todas as pessoas que conheci e compartilharam comigo
tanto desta tese. Para mim, este estudo é resultado de todas as leituras, debates e nossas
conversas. Cris foi para mim, minha coorientadora nesse trabalho. Não sei nem como
agradecer, por mais que eu viva tentando, com livros e polpas de bacuri, tudo que ela fez, o
caminho que me ajudou a traçar, eu jamais traçaria sem ela. Cris, tu és uma amiga querida e
uma irmã, é a minha família em Alter; desejo a ti as melhores coisas possíveis. Por sempre me
receber, por todos os cafés, as conversas, os tambaquis, os vinhos e os banhos de rio:
obrigada, obrigada, obrigada!
Fê, que surreal foi nosso encontro, também intermediado pela Cris, onde nos
encontramos em crises tão parecidas e também diferentes. Tu és também uma parte dessa
família que eu tenho nesse lugar tão lindo, obrigada por tudo, flor. A cada encontro parece
que a gente está ficando mais forte. Eles passarão...
Sttefany, mi hermana del alma, auque esteas lejos, nunca olvidaré todo lo que aprendí
contigo. Eres una luz que continua a brillar mismo cuando ya está lejos, como uma estrella.
Eres gran parte de este trabajo, que tanto hablamos y piensamos juntas, y cambiamos
experiencias. Que seas feliz y que el mundo todo siga siendo tu morada.
Agradeço a Lalah por nossa breve conversa, mas que contribuiu muito para minha
percepção sobre o contexto do Tapajós e da luta dos povos indígenas atualmente. Lalah, teu
trabalho me inspira e me faz acreditar que continuar na luta e desenvolver estratégias e
práticas é indispensável para a Amazônia e para o povo amazônida.
À Nice, minha amiga, eu agradeço por tudo, por todas as conversas, por todas as
histórias, pelo acolhimento, pela preocupação, por todas as experiências incríveis que tive na
tua companhia. Principalmente, obrigada pela construção desse laço nos últimos anos, és uma
mulher incrível, o mundo seria um lugar muito melhor se te ouvisse. E agradeço também a
toda à família linda e tão cheia de projetos, idéias e visões de mundo muito além da
superfície: Priscila, Aline, Rosivaldo, Jaqueline, Renan, Nério, todos, muito obrigada por
fazerem eu me sentir em casa.
A toda a comunidade da Coroca, esse lugar que me trouxe tantas experiências intensas
e também tranqüilas, obrigada por sempre me receberem de braços abertos e perguntarem
quando eu vou voltar. A vontade de rever vocês, conversar embaixo da mangueira e tomar
banho de rio é maior que o meu medo de fazer a travessia do Tapajós para o Arapiuns; então
eu vou continuar voltando, sim. Enilde e Gildson, obrigada por sempre me receberem e
fazerem eu me sentir tão bemvinda e em casa, pela alegria constante e pelo amor a todo esse
lugar. Dona Silvana, Sula, Gabi, Thainá, obrigada pelas conversas, por me ensinarem tanto
sobre respeitar as orientações da mãe velha, pelas brincadeiras, por todos os conselhos no pós
arraia e pela empatia e cuidado. Desculpem por todo o trabalho que eu possa ter dado a vocês.
Luza, obrigada por ter me dado a honra de conhecer um pouco da tua história e da tua
luta, és uma referência pra mim em tantos sentidos, enquanto artesã, articuladora, liderança,
uma ternura ao falar da vida sempre acompanhada de muita consciência e noção do cenário
que nos cerca. Ouvir você falar sobre a vida é sempre uma aula da vida em si.
Seu Colau, Dona Elzinha, Nicole, Diana, Adriele, desculpa pelo episódio de terror
noturno em que assustei vocês. Obrigada pelo carinho, que não fez a vergonha desse episódio
ser algo pior e podermos logo rir. O importante é que ficou aí uma história para contar, né,
Seu Colau? Desejo a vocês tudo aquilo que vocês já têm nesse pedacinho do paraíso e tudo
mais que vocês desejem.
Dona Elza, obrigada por compartilhar sua sabedoria comigo e fazer com que minha
visão mudasse sobre tantas coisas, por me fazer repensar tanto o que eu achava que sabia.
Desejo muita saúde à senhora, que tenha ainda muitos anos para continuar ensinando ao
mundo como ele pode ser. Obrigada por toda sua contribuição. Obrigada também Ivana e
Eliane, que mesmo não me conhecendo tão bem aceitaram conversar comigo e compartilhar
seus sonhos e anseios de forma tão aberta.
A todos os demais que encontrei nessa jornada e me inspiraram de formas tão
diferentes, muito obrigada. Fábio, meu agora grande amigo, que compartilha tanto comigo e
me inspirou em ver a tese de uma forma diferente e libertou um desejo literário reprimido
mostrandose tua própria construção da tese. Obrigada pelas conversas e principalmente por
ser mais uma pessoa que compartilha dessa luta de forma tão sincera.
Leida, mana, obrigada por ser esse pedaço de Belém em Alter e por tantas
brincadeiras, mesmo eu sendo de Castanhal, mas me considerando cidadã honorária de
Belém. Toda a felicidade do mundo pra ti.
Não menos importante, agradeço às artistas e aos artistas vivos e já eternizados por
terem sido o ponto de equilíbrio e alívio durante esta jornada com seus livros, músicas, filmes
e séries. Pela companhia e inspiração agradeço principalmente a algumas que marcaram o
desenvolvimento da pesquisa e do meu olhar: Octavia Butler, Ursula K. Le Guin, Buchi
Emecheta, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Lhasa de Sela, Linn da Quebrada e
tantas outras e outros.
Por fim, agradeço a todas as pessoas que não conheço, mas que vieram antes de mim e
tornaram possível o acesso ao ensino superior gratuito, que por lutas garantiram que eu e
tantas outras pessoas pudéssemos ter esta oportunidade. A formação acadêmica é só um tipo
de formação, não significando que somos melhores que ninguém, mas, para viver na
sociedade em que vivemos, esse tipo de educação ainda pauta as relações de poder e para se
rever essa educação que tanto machuca, é preciso que incontáveis pessoas também tenham
acesso a ela, para poder, por revoluções moleculares, transformála.
Queria acordar e não ter que pensar que vivemos
numa sociedade machista e racista. Queria não ter
que me preocupar com isto. Eu acordo pensando em
tomar banho de rio e não quero pensar em nada,
mas está atravessada em cada célula do meu corpo
a resistência. (Cristiane Freitas)
RESUMO
Figura 2 – Sttefany 50
Figura 7 – Nice 72
Figura 8 – Aline 74
Figura 13 Vista da casa de Dona Elzanira e Seu Colau para o rio Arapiuns 105
Figura 14 – Casa de Dona Elzanira e Seu Colau na Comunidade da Coroca, Arapiuns 106
Figura 15 – Mapa de ecoturismo Santarém e Belterra com loci da pesquisa em destaque:Vila
de AlterdoChão, Comunidade de Jamaraquá (Flona Tapajós) e Comunidade da Coroca (Rio
Arapiuns) 117
Figura 16 – Resultados comparativos do IPS Amazônia 2018 121
Figura 21 – Priscila jogando bola com sua sobrinha e seu filho em um fim de tarde em
Jamaraquá 154
Figura 26 – Festa de Ano Novo dos moradores da Coroca na Ponta Grande 184
Figura 27 – Anotações pessoais no dia 6 de julho de 2019 201
Figura 28 – Rede e janela para o Arapiuns 203
Figura 29 – Conversa com Dona Elza (à direita), Ivana (ao centro), Eliane (à esquerda) e eu
(de costas) 216
REFERÊNCIAS 352
ANEXO A - MAPAS DA FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO 371
ANEXO B - MAPAS DA PAN-AMAZÔNIA E AMAZÔNIA BRASILEIRA 372
ANEXO C - DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NO TERRITÓRIO
BRASILEIRO A PARTIR DO CENSO DE 2010 373
ANEXO D - HISTÓRICO DA COMUNIDADE DE JAMARAQUÁ 374
ANEXO E - MAPA COM NÚMERO DE COMUNIDADES REMANESCENTES DE
QUILOMBOS POR ESTADO 375
ANEXO F - MOVIMENTOS SOCIAIS PROTESTAM CONTRA PROJETO DE
HIDRELÉTRICAS NO TAPAJÓS 376
ANEXO G - MAPAS QUE DEMONSTRAM O DESMATAMENTO NA REGIÃO 377
ANEXO H - MAPA DA PRODUÇÃO DE SOJA NO PAÍS 378
ANEXO I - MATRIZ DE NECESSIDADES E FATORES DE SATISFAÇÃO 379
ANEXO J - DISTRIBUIÇÃO DE VOTOS NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 2018
380
ANEXO K - RELAÇÃO ENTRE O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA E OS
FOCOS DE INCÊNDIO EM 2019 381
18
Minhas avós, Assunção Maria e Raimunda, sempre diziam algo que a minha
mãe até hoje diz pra mim: “minha filha, a melhor desculpa é sempre a verdade”. E é
assim que introduzo este trabalho. Se em uma estrutura metodológica cabe à
Introdução apresentar o contexto, os métodos adotados, a forma de organização do
trabalho e seus objetivos, penso que isto deva ser feito da forma mais sincera possível.
A minha formação acadêmica completa agora dez anos ininterruptos (da
graduação ao doutorado). Posso dizer que, enquanto eu aprendi teorias e metodologias
durante essa década, também desaprendi muitas coisas. O processo de crise e bloqueio
nos últimos meses da tese, assim como a tese em si e outras experiências me fizeram
perceber que havia desaprendido algo que ainda criança eu fazia com muito prazer e
liberdade: contar histórias.
A minha relação com a escrita sempre foi de liberdade, uma forma de
comunicação, de processar sentimentos e pensamentos, de ser e existir. Apesar de um
sonho ainda jovem de ser uma escritora de ficção, foi na academia que mais exercitei e
dei vazão ao meu desejo e necessidade de escrever, por ter sido um caminho possível
de “sobreviver” escrevendo.
Enquanto me encaixei nos moldes, aprendi regras e estruturas do texto
científico consegui expressar ideias e pesquisas como da minha graduação e do
mestrado, sem problemas. Entretanto, quando passei a me debruçar sobre uma temática
e uma abordagem que propõe um giro decolonial, em determinado ponto percebi que o
que eu precisava dizer não cabia nessa estrutura.
Foram meses de uma sensação de tortura de como explicar, apresentar,
argumentar, embasar tudo que estava vivendo, pensando, tentando entender e
compartilhar. As piores crises vieram quando me deparei com o dilema do rigor
científicoacadêmico de uma tese e apresentação dos “dados” e as relações tecidas
durante os anos com todas as pessoas com quem troquei ideias, angústias, sonhos,
histórias e banhos de rio.
Como retratar algo tão pessoal e profundo por meio de uma estrutura de teoria
descriçãoanálise? Como eu poderia escrever todo um capítulo teórico para que quem
lesse tivesse a impressão de uma condensação de teoriasconceitoscategorias como se
eu tivesse pensado neles desta forma, de uma só vez, sem situar os contextos e as
contribuições de tantas pessoas?
19
presenciais. Cinco individuais e duas coletivas. Falarei aqui sobre minhas conversas e
experiências com Cris, Nice, Aline, Fernanda, Priscila, Luza, Dona Elza, Ivana e
Eliane. Também parto das minhas trocas com outras mulheres, meninas, meninos e
homens, bem como tomo como referência fontes documentais como as Cartas das
Mulheres do Tapajós e das Mulheres Mundurukus do Tapajós, das Mulheres Atingidas
por Barragens e produções audiovisuais sobre a realidade e a luta das mulheres na
região.
Nas entrevistas formais abordei quatro eixos durante a conversa, que eram
adaptadas conforme a necessidade ou o fluxo do diálogo:
1) Como é viver aqui pra ti?
2) O que tu gostarias para tua vida? O que achas importante?
3) O que tu achas de tudo que está acontecendo aqui ultimamente?
4) O que é o futuro para ti? Como tu achas que as coisas vão ser no futuro?
A partir destes quatro eixos, mas, principalmente, adotando uma escuta
atenciosa às demandas e posicionamentos que as mulheres manifestaram
espontaneamente durante as conversas, busquei pensar como os projetos de vida são
ferramentas para melhor compreender a relação entre a micropolítica e a
macropolítica, como tais dinâmicas se dão na realidade, podendo contribuir para
repensar políticas desenvolvimentistas e macroestruturas das sociedades
contemporâneas.
No decurso do desenvolvimento da pesquisa, esta foi constantemente
reformulada. As referências epistemológicas e teóricas foram agregadas
paulatinamente com o passar dos anos e com o amadurecimento da percepção do tema,
da vivência e das leituras. Inicialmente, eu pretendia já adotar uma abordagem crítica
sobre as noções de desenvolvimento e as visões de sujeitas e sujeitos (localizados
inicialmente em grupos sociais), mas, a premissa inicial foi sendo alterada para a
discussão do Complexo Hidrelétrico do Tapajós e as visões de grupos sociais; em
seguida, decidi abordar a perspectiva de mulheres enquanto sujeitas nestas relações.
Durante este caminho inseri a discussão da esquizoanálise e da produção de
subjetividades, reflexões sobre a relação de tempo e espaço, com foco na
desestabilização da noção de futuro e sua relação com a lógica do desenvolvimento e
do sistema de gênero moderno/colonial. Esses novos rumos foram adensados pela
escuta de palestras como as já citadas de Valdelice Veron, Julieta Paredes, mas
também de Daniel Munduruku, do Mestre Nego Bispo, das professoras Mônica
23
Infelizmente, não tenho mais como ouvir os conselhos da minha vó Maria sobre
a vida e passar madrugadas acordada ouvindo suas histórias e sabedorias infinitas.
Mas, felizmente, eu pude ouvir muito nos anos que compartilhamos e, de seus muitos
ensinamentos, ela também dizia que não adiantava mentir porque a terra mostrava
tudo.
Como em tantas outras situações, resolvi ouvir a voz das minhas avós e minha
mãe e tudo se mostrou muito simples: preciso contar a história dessa pesquisa, desta
tese, como ela aconteceu, sem falsear a ordem das coisas e sem omitir os momentos
mais enriquecedores que não estiveram necessariamente ou apenas na leitura de artigos
e livros, mas sim nas conversas e nos laços criados nos últimos anos.
Isto posto, adotei uma estrutura de capítulosensaios, de forma que eles são
entremeados, na maioria das vezes, por referências teóricas, contextualizações e relatos
das visitas ao Tapajós, na ordem cronológica. Os dois primeiros abarcam a primeira
viagem, em julho de 2017, e as primeiras conversas que tive com a Cris, com a Nice,
com o Rosivaldo e a Aline, apresentando um pouco das primeiras impressões sobre
AlterdoChão e a Flona Tapajós, assim como, localizando o discurso de
desenvolvimento e a relação com a formação do Brasil e a localização de regiões mais
desenvolvidas que outras, assim como, o lugar pensado sobre o Norte e a Amazônia no
contexto de colonialismo interno regionalizado.
No segundo capítulo especificamente, eu aprofundo a relação entre a lógica
moderna/colonial e a relação temporal linear com o futuro e de que forma minha
própria subjetividade reproduz e dialoga com estas categorias, o que levou a repensar
essa referência. Já no terceiro capítulo, proponho uma organização teóricoconceitual
sobre modernidade/colonialidade a partir do contexto histórico numa perspectiva
amazônica, destacando o processo de colonização e projetos desenvolvimentistas do
século XX para a mesma.
A primeira ida ao Arapiuns é retratada no quinto capítulo entre a história de
Fernanda e minha primeira experiência na Coroca, em meados do primeiro semestre de
2018. A partir da viagem, conduzo um aprofundamento sobre a história do Tapajós e
no sexto capítulo aprofundo sobre os movimentos sociais, as dinâmicas econômicas
que tensionam a região e as resistências articuladas.
A viagem de julho de 2018 é o panodefundo para os capítulos sete e oito,
contando além das vivências, as entrevistas formais realizadas com Nice e Priscila, em
Jamaraquá, com Luza, na Coroca, e com Lalah, em AlterdoChão. Nesses capítulos
25
proponho uma aproximação das entrevistas por referências que desestabilizam algumas
noções desenvolvimentistas como o desenvolvimento à escala humana por Manfred
MaxNeef, Antonio Elizalde e Martin Hopenhayn, assim como, a abordagem do
feminismocomunitario a partir de Julieta Paredes.
O oitavo capítulo é também contextualizado com o cenário político brasileiro
das eleições presidenciais de 2018, retomando um pouco do contexto macropolítico
desde 2014, com foco no pósimpeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016,
seguido pelo Governo Temer, onde aponto algumas mudanças políticas e demandas
identificadas por movimentos locais, finalizando o capítulo com as impressões do
clima político no Tapajós na virada de ano de 2018 para 2019.
À continuação, no nono capítulo faço um balanço do primeiro semestre do
governo de Jair Bolsonaro em relação à Amazônia, identificando alguns discursos e
políticas para a região e o diálogo com a ideia de lógica moderna/colonial, assim como
o colonialismo interno, colonialidade de gênero e as reverberações iniciais em
movimentos e articulações, principalmente de mulheres indígenas. Já o décimo
capítulo traz apontamentos sobre a viagem de julho de 2019 e mais algumas
entrevistas, realizadas com Dona Elza e suas filhas, Ivana e Eliane, na Coroca, situando
o clima na comunidade após o primeiro semestre de mudança na presidência e a
intensificação da pressão da entrada de capital no Arapiuns e no PAE Lago Grande.
O décimo primeiro capítulo foca na produção de subjetividades, retomando
entrevistas e conversas, vivências e contextos históricos abordados anteriormente. A
discussão é elucidada a partir das contribuições de Frantz Fanon, Gilles Deleuze e
Félix Guattari, em diálogo também com María Lugones e outras referências adotadas
ao longo do estudo. Aproveito, também para uma apresentação do quadrogeral do
clima em AlterdoChão após as eleições de 2018, ensaiandose o decorrer do ano de
2019, de aumento das tensões e polarizações políticas.
As reverberações internacionais, locais e na mídia por conta dos
acontecimentos do segundo semestre de 2019 na Amazônia são pontos de destaque do
décimo segundo capítulo, onde questiono o entrelaçamento na ideia de futuro do Brasil
e da humanidade à Amazônia, assim como os discursos racializados e generificados
sobre a região e como tais análises se relacionam profundamente com a dinâmica da
produção de subjetividades.
Já o décimo terceiro capítulo propõe contrastar o projeto de nação às noções de
projetos de vida, retomando pontos centrais abordados em seções anteriores, rumando
26
assim para o capítulo seguinte, onde redefino projeto de vida por caminhos de vida e
discorrese sobre as falas de Fernanda, Nice e Cris no início de janeiro de 2020, onde
destaco como a produção de subjetividade tem possíveis dinâmicas que podem ser
atravessadas, compatíveis com o capitalismo ou incompatíveis, onde ocorre uma
ruptura. O capítulo foca em subjetividades atravessadas, que recorrem a uma
intermediação como forma de construir caminhos de vida.
Por fim, a conclusão, ou capítulo décimo quinto, destaca questões centrais
apresentadas durante o estudo e lança novas possibilidades para a abordagem
construída aqui, finalizando, com as minhas próprias respostas às ponderações de
caminhos de vida.
Esta pesquisa é também parte da minha história, da minha mãe e das minhas
avós. Vó Raimunda não estudou além do ensino fundamental e seu sonho sempre foi
estudar, por isso, incentivou sempre toda a família a levar a educação a sério, o que em
muito contribuiu para minhas escolhas profissionais e a relação com os estudos e a
academia. Vó Maria não sabia ler nem escrever, só assinar o próprio nome, mas
desconfio que não tenha existido uma vez sequer, em que ela tenha falado algo que não
tenha sido uma grande aula sobre a vida e o mundo.
Minha mãe me criou a partir dos ensinamentos das duas, da sua mãe e sua então
sogra. As três tiveram seus sonhos adiados e, no caso das minhas avós, atropelados,
principalmente pelas relações de gênero e o que se espera(va) de mulheres na
sociedade como esposas e mães. Elas foram minhas primeiras orientadoras e
continuam a me orientar. Espero aqui compartilhar o conhecimento delas e de tantas
outras mulheres e homens que contribuíram para a minha formação enquanto pessoa e
na minha relação com o mundo.
Se a produção de conhecimento que aqui ofereço será considerada válida dentro
dessa estrutura realmente não depende de mim, mas de quem a lerá. E o que for preciso
repensar, revisitar, assim será feito. Provavelmente, nos próximos encontros e
experiências que terei na vida muito disso pode ser aprofundado ou descartado. Mas,
por ora, eu preciso contar esta história e, decidi não mentir, já que não adianta mesmo,
pois um dia a terra mostra tudo.
27
Na jusante
levo-me.
Elevo-me ao mar
e
no entanto
Mar
sou Rio.
Assim me sei,
ciente do que sou
no que não-sou
consciente...
(...) E sou aquilo que me deixo
em várzeas verdes.
Conhecimento de que meu caminho
não é o meu caminho
e que correr é como sei de mim.
Esta forma de ir, que é meu destino,
conhece-me infeliz,
pois que não sou em mim
e amo as águas destas águas noutras águas...
(Cântico XI, João de Jesus de Paes Loureiro)
Para Dussel (1992) tal processo incubiu pela autodefinição da própria cultura –
eurocêntrica – como superior, localizando a outra cultura como inferior, sendo o sujeito
“outro” culpado de sua “imaturidade”, “de maneira que a dominação (guerra,
violência) que é exercida sobre o Outro é, na realidade, emancipação, ‘utilidade’,
‘bem’, do bárbaro que se ciliviza” (Dussel, 1993, p. 75).
A ideia de modernidade em si é desenrolada como indissociável da estrutura
estatal, sendo esta considerada como uma fórmula evoluída da organização política que
possibilita o aprimoramento das sociedades, afastandoa de um estado de natureza,
selvageria ou anarquia (Walker, 1993). No caso do Brasil, o objetivo do Estado em
desenvolver o país significa em termos reais um processo não apenas econômico e
material, mas que dialoga também como idéias racializadas e generificadas.
Pensadores latinoamericanos do Grupo Modernidade/Colonialidade (Quijano,
2000; Dussel, 2005; Lander, 2005; Mignolo, 2017) apontam para o fato de que a dita
modernidade não se restringia a um fenômeno apenas ligado a noções de progresso e
desenvolvimento que possibilitaram o florescimento de sociedades “desenvolvidas” na
Europa, pautada em valores tecnocientíficos, racionais, iluministas, liberais e
progressistas, mas sim que a modernidade se deu graças e, intrinsecamente conectada,
à sua outra face: a colonialidade.
Desta forma, o que há tempos é reproduzido, pela cultura eurocentrada e
colonialista como um curso natural ou desejado para todas as sociedades humanas – a
civilização e o progresso – que, não por coincidência, têm como referência a
experiência europeia, não foi espontaneamente moldada. O curso que tem sido frisado
como o melhor caminho é, entretanto, fruto de um processo de construção social desta
referência, que não tem como base apenas os valores do século XVIII e XIX, mas sim
que é uma nova forma de colonização, uma nova roupagem de dominação, agora com
adaptações às novas relações de poder e que tem como antecedentes vários momentos
e valores que influenciaram a formação do pensamento europeu, remontando à Grécia
Antiga e ao Cristianismo, por exemplo, como aponta Rist (2008).
Enquanto a colonização genocida e etnocida a partir do século XV teve como
fundamento a justificativa teológica cristã da missão civilizatória pautada na “salvação
de almas” por meio do trabalho na ideia do pecado original e o trabalho como forma de
castigo e caminho para tal salvação (Santos, 2015); a modernidade, influenciada pelas
revoluções liberais nos Estados Unidos, na França e pela industrialização, reformulou e
32
“civilizou” também seu discurso, adotando uma justificativa não mais tão teológica de
valores judaicocristãos, mas, dita de uma noção “racional”: o progresso.
Em meados do século XIX, a opressão explícita de povos começou a parecer
incoerente com a emergência da noção de direitos naturais e as independências, lutas
de várias colônias contra as antigas metrópoles mostraramse irreversíveis. Assim,
adaptaramse os instrumentos de colonização, de modo que seus efeitos enraizassem as
sociedades que se formavam nos territórios que conquistavam suas independências
formais das colônias.
As elites europeias não lograram a expansão e concretização de seus modos de
vida e instituições sociais, políticas e econômicas por serem formas comprovadamente
melhores e mais evoluídas de se viver em sociedade. A consolidação dessa
modernidade enquanto modelo está diretamente ligada aos processos de colonização
iniciados séculos atrás e institucionalizado pelas estruturas coloniais.
A revolução industrial, a expansão do capitalismo, os valores liberais e a
acumulação e a produção de conhecimento técnicocientífico foram possíveis não por
europeus serem mais “civilizados”, mas sim pela assimétrica relação de exploração
com outros povos, de suas riquezas, terras e saberes. Ao mesmo tempo em que a
apropriação se deu, outros modos de vida foram constantemente retratados como
indesejáveis, incompatíveis com o progresso e o desenvolvimento.
E é neste âmbito que se pode extrair que “desenvolverse” passa a ter um
sentido de predestinação, não à toa remetendo a um discurso de origem teológica,
justificando a pobreza e incentivando uma perspectiva de meritocracia, enquanto se
fortalece pelo adensamento das desigualdades e a negação da humanidade de povos e
culturas subalternizados, sendo, em suma, a base do sistema moderno/colonial.
A palavra desenvolvimento carrega em si a compreensão de qualidades inatas e
potenciais, como um processo de etapas a serem superadas, de uma fase inferior a uma
superior. A ideia de desenvolvimento se metamorfoseou em diversos momentos da
história da humanidade e esta visão passou a ser compreendida como um avanço linear,
de etapas que levam a um fim, como um desdobramento de capacidades inerentes,
como na Idade Antiga, na Idade Média e, principalmente, durante a Idade Moderna
(Rist, 2008).
Gilbert Rist localiza, por exemplo, raízes dessa visão de mundo na própria
teologia cristã. E ao analisar o contexto religioso da catequização no Brasil, Ronald
Raminelli (1997) aponta que a concepção religiosa buscava justificativa para o
33
processo de “salvação” dos nativos, inserida na própria lógica temporal que dialogava
com o projeto de modernidade/desenvolvimento:
A concepção de tempo exposta pelos religiosos constitui uma
filosofia da história, caracterizada pela Teoria do Declínio e pela
Restauração Futura. Os eventos descritos seguem uma lógica fundada
na queda progressiva e na ascensão final. A humanidade viveu o seu
período glorioso no início dos tempos; desde então a vida dos
homens foi marcada pela decadência. O futuro promoveria o
acirramento desse estado de coisas até o momento em que um agente
externo interferisse no processo. O cristianismo, nessa perspectiva,
pretendia reverter o quadro de progressiva degradação da
humanidade e implantar o reino dos céus. O futuro seria um retorno à
primavera dos tempos, uma volta ao mundo antes do pecado original.
(Raminelli, 1997, p. 33)
feita por grande parte, mesmo por quem se beneficie menos, mas que ainda vê na
possibilidade de se beneficiar como incentivo para aceitar a exploração mais ampla.
Como a presente digressão se localiza a partir de uma região específica,
precisamos abordar como esse processo mais amplo se materializou aqui e como as
diferentes formas do colonialismo interno estão presentes no âmbito local e também
em relação com o Brasil e outras regiões. Frisando mais uma vez que ao se pensar essa
região não se pretende afirmar qualquer homogeneidade sobre a vivência das pessoas
que nela vivam, mas considerar como as formas de pensar sobre tais lugares se
relacionam com expectativas e práticas sobre os diferentes modos de vida.
Nesse sentido, a Amazônia passou por um processo peculiar de colonização em
comparação ao restante do território nacional: aqui, a ocupação teve início apenas a
partir do século XVII e, ainda assim, deuse de forma mais gradual em comparação ao
litoral, contribuindo assim para um isolamento da região no âmbito nacional e também
levando a outras consequências como a baixa densidade demográfica relativa, baixos
índices de desenvolvimento humano e de integração à economia nacional.
O afastamento da região do centro político do resto do território tem origem
ainda no início da colonização engendrada pela Coroa Portuguesa. A definição inicial
do Tratado de Tordesilhas em 1494 não abarcava praticamente nada da região
amazônica como domínio português, mas era considerada parte do território espanhol,
o que mudaria oficialmente apenas em 1750 com a assinatura do Tratado de Madrid
(ver Anexo A).
Por conta da divisão do tratado, os primeiros colonizadores a chegarem ao
território que agora se reconhece como Amazônia foram os espanhóis, com a
expedição de Francisco de Orellana em 1542. Atualmente, o que se reconhece como
bioma amazônico engloba nove países, que formam a PanAmazônia ou a Amazônia
Internacional, correspondendo a 40% de todo território da América do Sul (ver Anexo
B).
A dificuldade da colonização portuguesa de um território tão extenso já era
percebida desde o século XVI e por isso foi criada a divisão do Governo do Norte
(tendo sede em Salvador) e Governo do Sul (com sede no Rio de Janeiro). Seria apenas
em 1616 que seria criada a Capitania do GrãoPará, com o desmembramento da
Capitania do Maranhão, e, como resultado da expansão do domínio colonial para além
do litoral e do Tratado de Tordesilhas, indo em direção ao centro do continente. E é
39
3
Esse momento foi marcado pela idéia de hiléia para o naturalista prussiano Alexander Von Humboldt e
a popularização da expressão “País das Amazonas” por Ignacio Accioli Cerqueira e Silva em 1833 e o
barão Frederico José de Santa Anna Nery (18481901) que já em 1885 retomou a expressão de Silva em
uma publicação e marcou a popularização do termo para se referir ao território abrangia os antigos
estados do GrãoPará e o Maranhão na administração colonial (Figueiredo, Chambouleyron e Alonso,
2017). Sendo, assim, inventada a ideia de Amazônia enquanto um bioma homogêneo e basicamente
abarcando o território “outro” da colonização.
41
de uma colônia interna. Acredito que, dadas as devidas proporções, o mesmo ocorra
no caso da Amazônia brasileira.
Isto, contudo, não implica que a dinâmica de colonialismo seja exercida apenas
nacionalmente e internamente. Ainda assim, há um complexo contexto de tensões
colonizadoras por meio do capital mundial integrado. Logo, ao se afirmar o contexto
de colonialismo interno/neocolonialismo, inferese basicamente que:
a) a região é subjugada politicamente e pelas imagens sobre a mesma no
imaginário nacional e nos discursos de projeto de nação; e,
b) o colonialismo interno também é exercido localmente, pelas elites locais,
muitas das quais oriundas de outras regiões em aliança com outras locais e também
com multinacionais e empresários também de outros países.
Somase ainda a idéia de que existem mecanismos de privilégios que se
atravessam nessa realidade não apenas se restringindo a tais elites e o “restante”, mas
que se subdivide em diversas formas de relação com o lugar e outros modos de vida
que coexistem, de forma que parte da população se identifica com o projeto de nação e
também pode reproduzir práticas de opressão como o racismo. Como isso se produz é
um dos pontos centrais que a tese busca trazer e será aprofundada em seções ulteriores.
Será adicionado e aprofundado a essas inferências, posteriormente, como o
caráter de um imaginário sobre a região se pauta em símbolos generificados e
racializados, como já citado até aqui superficialmente. Por enquanto, chegamos à
compreensão geral de um contexto político e econômico da colonização no Brasil que
produziu diferentes subjetividades sobre as regiões, atribuindo a algumas a idéia de
modernidade, enquanto a outras era imputada uma representação de “atraso”.
É a partir deste contexto que decisões como a de Cris causam estranhamento
ainda hoje: como alguém “larga tudo para trás” morando no Rio de Janeiro, uma
cidade grande e cheia de oportunidades, e vai morar no meio da Amazônia, uma região
pobre e atrasada, onde só tem “índio”? O que ela relata já ter ouvido várias vezes de
familiares e amigos do sudeste, questionando se havia energia, asfalto e outros
símbolos atrelados à ideia de modernidade e progresso. Enquanto o fluxo de desejo
geral costuma ser o de estar cada vez mais próximo ao desenvolvimento e ao
progresso, causa estranhamento e até mesmo deboche ou risadas alguém desejar viver
no contrafluxo.
Apesar disso, na vila de AlterdoChão são muitas as histórias parecidas com as
de Cris. A vila é conhecida internacionalmente pelas águas cristalinas do Rio Tapajós e
42
4
Essa percepção pode ser explicada por eu ter crescido em Belém, em uma situação em que nunca havia
me envolvido ou vivenciado um contexto de movimentos e lutas sociais, como na vila, onde todos os
dias questões envolvendo decisões políticas, articulações e debates eram cotidianos, o que também
vivenciaria de forma ainda mais presente nas comunidades de Jamaraquá e Coroca. Ali, senti uma vida
política que me marcou, assim como o fato de não ter família em Belém, não tive uma socialização
pautada no lugarBelém, uma vivência de pertencimento ao lugar, mas à região amazônica de forma
ampla. Logo, em Alter, tanto nas conversas, quanto nas diferentes perspectivas de vida e valores das
tantas pessoas que conheci, pude repensar os rumos da minha pesquisa, atuação profissional e vida
pessoal.
43
um lugar específico que despertasse interesse, foi imediato que o Tapajós me veio à
mente.
Desde julho de 2017, tenho feito viagens recorrentes, principalmente durante o
período de férias escolares, mas também em outros momentos. O mês de julho, apesar
de ser o único com mais disponibilidade de deslocamento é também um mês em que o
rio ainda está cheio, mas normalmente já iniciou a “descida” da água e algumas poucas
praias começam a aparecer. As águas do Tapajós passam por variações de enchente,
cheia, vazante e seca que alteram principalmente o fluxo do turismo. Julho, por
exemplo, costuma ser um mês de vazante, enquanto os meses seguintes são de seca;
apesar de mudanças a cada ano, geralmente, em novembro e dezembro observase o
início da enchente, chegando ao período de cheia entre fevereiro, março, abril e maio.
Assim, há certo fluxo de turistas e viajantes iniciando a alta temporada no mês
de julho, que dura até praticamente janeirofevereiro. As praias não são permanentes,
pois aparecem ciclicamente de acordo com as chuvas, influenciando nas temporadas de
turismo. Quando as faixas de areia começam a ficar cada vez mais escassas pela cheia
do rio a partir de feveirero, indo normalmente até maio e depois iniciando novamente a
vazente, leva também à saída de muitos moradores temporários (que costumam
retornar no início da alta temporada), na baixa atividade econômica e em períodos de
austeridade para a população que vive e depende diretamente do turismo.
Em julho, as águas do rio Tapajós ainda não fazem jus ao apelido de “Caribe
amazônico”, e as pequenas faixas de areia movimentam o fluxo de visitantes sem
deixar a região superlotada, como o que se dá principalmente nos meses de setembro
(por conta do festival regional do Çairé) e em dezembro e janeiro (por causa do fim de
ano). Apesar de não ser a paisagem pela qual a região ficou conhecida
internacionalmente – das águas cristalinas esverdeadasazuladas e extensas faixas de
areia branca – o período de cheia e início da vazante é também de grande beleza, em
que o rio e seus afluentes possuem tons escuros e profundos esverdeados e azulados;
mas a região não é abundante em água apenas em sua superfície, visto que o sistema
aquífero de AlterdoChão tem sido reconhecido como um dos maiores do mundo e
com grande potencialidade para abastecimento da população de toda a região
amazônica (ANA, 2019).
Assim, o rio e as vidas das pessoas que moram na região passam por diversas
fases durante o ano. As rotinas mudam e a fonte de renda e as atividades produtivas
44
5
Durante 10 dias corridos do mês de julho de 2017 foi realizada uma breve viagem de pesquisa de
campo exploratória com destino a Santarém, no Oeste do Pará, adotando como base a vila de Alterdo
Chão onde me hospedei na casa de Cris, que já neste momento morava havia dois anos na vila e a quem
eu conhecia desde 2016.
45
vila para além das praias e do centro. AlterdoChão é, inclusive, conhecida como uma
região em que habitava o povo Borari, do qual atualmente algumas pessoas têm
buscado a valorização da autodeterminação étnica e as heranças culturais por
movimentos sociais e culturais, o que tem sido estimulado principalmente pelo
aumento da presença do capital e dos interesses sobre o território (Peixoto e Peixoto,
2019), havendo, assim, a necessidade de se defender os direitos contra tais
empreendimentos.
Por acaso, Cris foi uma das primeiras pessoas que conheci na vila e sua
trajetória e ideias influenciaram a minha própria forma de conhecer e pensar o lugar.
Sua mudança se deu em um contexto de crise pessoal de perspectiva de futuro no Rio
de Janeiro. A insatisfação com dinâmicas intrínsecas ao contexto em que vivia a fez
decidir mudar seu projeto de vida após uma experiência de vivência com os Kayapó no
Xingu.
Quando eu e Cris conversamos pelas primeiras vezes, ainda em 2016, toda vez
que ela falou sobre a cidade do Rio de Janeiro ou sobre Paty do Alferes é importante
ressaltar que não parece que não haja identificação ou sentimento de pertencimento
com o local de origem, pois em sua fala sempre há uma nostalgia e exaltação de suas
memórias, de infância principalmente. Mas, a sua fala estava sempre acompanhada de
uma confirmação de que o lugar que vê em seu futuro é o Tapajós, onde tem suprida
sua busca por uma felicidade mais existencial, próxima à natureza, em outro ritmo de
tempo e diferentes necessidades daquelas vividas em grandes metrópoles. Suas
prioridades são outras daquelas mais geralmente atreladas à noção de desenvolvimento.
Ela citou que entre seus objetivos na mudança para AlterdoChão estava não
ter mais no trabalho formal uma prioridade da sua vida, que seria apenas o meio de
manter o modo de vida que ela considerava de qualidade, resguardando, por exemplo,
até hoje a sua segundafeira para um tradicional banho de rio.
Cris relatou que por ser negra vivenciou diferentes situações de racismo e
preconceito na região, onde comenta que muitas pessoas da região eram surpreendidas
quando descobrem que ela possui escolaridade de nível superior. Esta recepção, com
raras exceções, dificultou o seu estabelecimento na região para que alcançasse uma
estabilidade financeira, trabalhando em diversas outras áreas até conseguir espaço e
reconhecimento para atuar como psicóloga. Cris estabeleceu muitos vínculos sociais
tanto na Vila de AlterdoChão quanto em outras comunidades do Rio Tapajós e do
Rio Arapiuns.
46
Outro fator que ela costuma apontar que marcou o início da mudança para a
região e que se tornava mais nítido quando ia visitar as comunidades era o fato de estar
na faixa dos 30 anos e ser solteira, sendo sempre interpelada: “cadê seu marido?”
Quando informava que não é casada as reações variavam entre curiosidade,
preocupação ou desaprovação, sendo também seguida por tentativas de arranjar um
casamento para ela.
No caso de Cris percebemse como questões ligadas às expectativas que muitas
pessoas da região assumem seja sobre o fato de ser negra, de sua origem, ser mulher e
seu estado civil, sua idade ou sua ocupação, características que dificultaram um
processo inicial de integração, mas que não interferiu em sua relação com o território,
principalmente pela sua conexão com o rio Tapajós.
Ela também comenta que apesar de ter vivido e ainda viver situações de
racismo explícito e também velado, ainda que conheça menos pessoas de pele retinta
como a dela na região, o que chama atenção de muitos moradores, ela fala que as
situações de discriminação racial que já viveu foram mais intensas e recorrentes
quando vivia no Rio de Janeiro.
Devido a sua trajetória de vivência e envolvimento, ainda no Rio de Janeiro,
com questões sociais como nas favelas e do movimento negro, manifestações e
ativismo político, Cris, apesar de cética quanto a movimentos e a outras instituições de
agenciamento (ONGs, Igrejas e outras), busca sempre contribuir de alguma maneira
como cidadã ativa para a realidade local, com ideias para projetos locais voltados para
crianças, comunidades ribeirinhas, extrativistas e indígenas, principalmente
relacionado à psicologia comunitária.
Apesar de ser crítica e de se demonstrar preocupada com a situação local,
principalmente com os projetos de hidrelétricas, mas também com a propagação da
expansão de uma nova Igreja na região, que também adquire terras (muitas vezes de
unidades de conservação) e que tem alterado radicalmente o contexto das populações
locais, Cris mantémse ativa e não indiferente ao contexto amazônico. Adotando uma
postura de um futuro que pode ser trágico para a região, mas, ao atuar em diferentes
frentes pelo que acredita, percebese que ela também acredita que é possível que essa
realidade futura seja transformada e evitada.
É comum pessoas que vivem em regiões nãocentrais no Brasil (como no Norte
e no Nordeste, além dos interiores das outras regiões) terem uma visão de que o futuro
e, por consequência, o progresso, seja mais provável e alcançável em cidades como Rio
47
de Janeiro e São Paulo, como citado no início desta seção, atrelando a cada uma das
regiões subjetividades nessa lógica, incompreensões e preconceitos (Cavalcanti, 1993).
Como já se apontou, essa concepção tem sido historicamente um argumento
catalisador de migrações massivas em direção ao Sudeste brasileiro e grandes capitais,
em busca de melhores condições de vida, mais oportunidades de acesso a serviços
públicos de saúde, educação, emprego e moradia de qualidade. Alguns dos que migram
são bemsucedidos em seus objetivos, mas não a maioria, pelas dinâmicas inerentes ao
capitalismo. Por outro lado, é importante destacar que ainda que essa visão seja
atrelada a algumas regiões e metrópoles, em geral, é observada uma mudança no
padrão das migrações para cidades de porte médio do Sul, Sudeste e CentroOeste
(Matos, 2012), o que inclusive pode ser ressaltado como uma demonstração do
esgotamento do modelo “desenvolvimentista” nas grandes cidades.
Esse contexto é o caso de como os locais vistos como desenvolvidos estão
relacionados à modernização, urbanização, acumulação de capital, indústrias,
tecnologia e infraestrutura como o ideal e como sinais da “civilização” não se
restringem apenas à situação brasileira. Também em outros lugares pessoas estão
migrando para os países vistos como aqueles que preenchem essas condições, muitos
incentivados pela expectativa de buscar o acesso à qualidade de vida retratada em
filmes, séries e em tantas propagandas e comerciais, o que Stuart Hall indica como uma
espécie de migração “nãoplanejada”; quando o “movimento para fora (de
mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma
correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro”
(Hall, 2015, p. 48).
Tal deslocamento, contudo, dáse num aspecto estrutural/material, já que tais
locais concentram recursos, mas também num sentido existencial e ontológico, da
subjetividade. O status de estar em certos lugares associados ao desenvolvimento, por
exemplo, já seria em si parte de um processo de “evolução”, mesmo que não se
desfrute deles ou se tenha acesso aos serviços e bens ali existentes.
A partir de Fanon (2008) podemos sugerir que essa relação de desejo que se
materializa em deslocamentos é consequência da formação de uma visão de
inferiorização por parte dos colonizados e dos que se vêem nesse legado, enquanto os
herdeiros da colonização (brancos), frente aos que representam a civilidade, o que se
deve desejar ser e parecer. Neste sentido, afirmo que a percepção social do imaginário
sobre as macrorregiões no Brasil se construirá também de forma racializada, ou seja,
48
melhor em seus próprios termos: mais próxima da natureza, mas também com tempo
disponível para apreciála
la e sentirse
sentir conectada a ela.
Em meados de 2017 – na minha segunda ida ao Tapajós e primeira já voltada
para a pesquisa – Cris compartilhou comigo que o seu projeto de vida era poder
comprar um pequeno terreno, talvez com um igarapé para construir uma casinha e
quem sabe, quando chegasse aos 40 anos,
anos adotar
otar crianças, não necessariamente estando
em seus planos casar.
Figura 1 - Banho no rio Tapajós com Cris, no Lago Verde
Figura 2 - Sttefany
projetos políticos e também de que forma grupos de outras esferas obtêm acesso ao
poder de controle e coerção do Estado.
Na modernidade/colonialidade os grupos que terão esse acesso, como já
abordado anteriormente, serão os colonizadores, aristocratas, latifundiários,
principalmente homens brancos e cristãos, que assim tornaram possível a elaboração de
um projeto político alinhado aos interesses e valores desses próprios grupos. E, a partir
dessa condição, estruturam instituições que visassem a reprodução, validação e
implementação de tais referências.
No âmbito da colonialidade e da desumanização de sujeitos e sujeitas, há uma
negação de seus direitos à existência nos seus modos. Há uma coerção para que
assimilem os valores e comportamentos (morais e culturais) que são reconhecidos
como os “legítimos”.
Assim, a “nação” não passa, na verdade, de uma invenção e imposição –
especialmente nas dinâmicas coloniais – tendo como objetivo estruturar, reafirmar e
reproduzir os aspectos do grupo dominante com acesso a esse poder. E, assim, é
preciso também compreender como nessa relação entre nações e Estados e entre as
formas de grupos étnicos e o Estado, as mulheres são afetadas e afetam esses processos
(YuvalDavis, 1997). E esta relação, de como Estados são atravessados por noções de
gênero, raça e classe, será retomada e aprofundada posteriormente, por enquanto, o
enfoque se dá sobre a questão tempofuturo presente nos discursos e instituições.
Considero que pensar o futuro é um exercício de imaginação que perpassa todas
as posicionalidades sociais e as realidades locais de sujeitas e sujeitos. O que significa
que minha subjetividade, enquanto uma mulher jovem, branca, de classe média e
professora universitária, também se dá dentro de posicionalidades, de onde minha
própria subjetividade se relaciona com todas essas questões e que, essa relação em si, é
um processo.
Não deixo aqui implícita a ideia de que seria apenas uma questão de classe ou
acesso a recursos que influencia pensar o futuro de certa forma, mas também uma
relação de participação, compreensão, subjetividade e poder na sociedade. Considero
relevante o apontamento dessa questão para a construção do caminho teórico
conceitual e metodológico aqui utilizado e da minha própria relação com o tema.
O conceito de posicionalidade até aqui citado algumas vezes é embasado na
proposição de Linda Alcoff (2006), no qual a mesma considera que para pensar gênero,
não se pode buscar essencializar em características ou tomar como algo fixo, universal
59
e binário, mas que serve para, em primeiro lugar, reconhecer, por exemplo, que o
conceito de “mulher” é relacional e varia em cada contexto, quando e como uma
sujeita se percebe como tal, não havendo uma “essência” que todas as mulheres
compartilham e aqui adiciono também homens e outras possíveis identidades de
gênero.
Em segundo lugar, que essa percepção de posicionalidade pode ser usada para
pensar como um local para a construção de significado, de onde se age politicamente,
relacionandose com outras referências. E, partindo dessa noção de posicionalidade
para Alcoff, reconheço que as falas nas quais eu me situo e também as mulheres com
quem estabeleci trocas recorrentes, mas também homens, que se vêem e se posicionam,
relacionamse na produção de subjetividades também com outras identidades sociais e
de agência, como raça, lugar de origem/pertencimento e classe, sem que haja uma
hierarquização prévia entre elas. Logo, a posicionialidade demarca uma experiência
relacionada a um contexto que não é universal e se dá de formas variadas, como, no
caso, com a relação de tempofuturo e as noções de Estado, nação e desenvolvimento.
São fatores importantes a serem considerados, também, não apenas as
socializações, mas elementos de cada indivíduo como personalidade, comportamento,
estímulos e incentivos sociais, assim como desestímulos para algum tipo de
pensamento ou comportamento mais otimista ou pessimista sobre o futuro. Ao
compartilhar tais inquietações com Cris, em certo momento ela comentou que minha
forma de pensar se aproximava das ideias de Félix Guattari e Gilles Deleuze, da
esquizoanálise, o que me chamou a atenção. Entretanto, só fui realizar as leituras
posteriormente e tomar como mais uma referência para pensar o tema.
Acredito então que seja necessário identificar que a própria discussão que aqui
proponho está sendo feita a partir da minha posicionalidade, a qual se deu com
diferentes experências que tive e tenho com as identidades sociais que a compõem. A
minha própria vivência enquanto amazônida sempre foi a de me sentir em um lugar de
afastamento em relação à ideia de nação brasileira, seja por falas proferidas sobre a
região ou até mesmo por não ver a Amazônia pensada como parte da nação em seus
próprios termos, mas sempre como um lugar a ser explorado e transformado para
atender às demandas nacionais.
Uma noção que faz parte do imaginário nacional sobre a região e que legitima
essa lógica é a do “vazio demográfico”, o que de certa forma fez desenvolver em mim
uma postura reativa a políticas e pensamentos neste sentido que fossem direcionados
60
sobre a Amazônia. Tal ideia é uma abstração que tem como referência as baixas taxas
de ocupação humana em relação à proporção territorial, mas tal concepção de vazio se
dá a partir de parâmetros pensados desde uma visão de critérios de urbanização,
influenciada pelos padrões europeus a partir da Revolução Industrial. E mesmo que
atualmente sejam perceptíveis mudanças significativas nessa imagem, a introjeção
desta ainda se faz presente na construção das relações e políticas para o lugar.
A ideia de que a baixa densidade demográfica amazônica seria algo negativo ou
que deve ser mudado passa por uma concepção de civilização, de diminuir a natureza
frente à transformação da paisagem pela modernização, ao utilizar e melhorar as
técnicas para tal. Assim, o vazio é relativo. É relativo se considerarmos somente as
pessoas como parte da vida; e mais, se não pensarmos as diferentes dinâmicas e
relações com o meio, as compreensões de espaço e utilização do território.
Por exemplo, são recorrentes os discursos que condenam a extensão territorial
de uma unidade de conservação ou de uma Terra Indígena (TI), mas, por outro lado,
consideram justificável e aceitável, a partir de uma concepção de sociedade mais
igualitária em que, contraditoriamente, existam latifúndios da mesma proporção e
pertencentes a uma ou a poucas pessoas: a ideia de que a função destes últimos seria
melhor, superior ou mais necessária do que a primeira, um raciocínio cujo fundamento
é puramente inserido nos eixos de colonialidade e que estariam alinhados à idéia de
desenvolvimento econômico nacional e a um interesse que se diz coletivo (ainda que
sejam empreendimentos privados).
Logo, a falácia do vazio demográfico se divide em duas esferas principais: da
floresta e dos amazônidas. A primeira esfera se prende aos primeiros relatos
fantasiosos da região enquanto Eldorado e reproduz a ideia que dá base para a Floresta
Amazônica como a possuidora das soluções – riquezas – de todos os problemas. A
mesma ideia está presente nos ideais conservacionistas da agenda internacional do
século XX que, da mesma forma que os próprios colonizadores, apagava a existência
dos seus habitantes.
A segunda esfera, a humana, é racializada tanto pela ideia do vazio enquanto
negação das existências de sua população, mas também na hierarquização dos modos
de vida e na constante reprodução da ideia de selvageria, atraso e barbárie atribuída à
região. A visão é comum entre brasileiros de outras regiões em relação à região Norte,
e, de uma maneira similar se estende também, à região Nordeste do país e a uma parte
do CentroOeste; mas também na visão e dinâmica endógenas da região entre as elites
61
6
Loureiro (2014) aponta que 98.14% dos estabelecimentos rurais no Estado do Pará em 1950 eram de
terra pública, o que significa dizer que grande parte das terras “não estava titulada sob a condição de
propriedade privada” (ibid., p. 19) e nessas terras a alteração da natureza pela intervenção humana era
ainda insignificante em consequência das atividades produtivas da época. Finaliza argumentando que
“até aquele estágio do desenvolvimento da região, as relações do homem amazônico com a natureza
estavam estabelecidas, fundamentalmente, no sentido de garantir a sobrevivência e a perenidade dos
grupos sociais” (ibid., p. 1920).
62
7
No Brasil, durante a ditadura os slogans eram “terras sem homens, para homens sem terra”, “integrar
para não entregar”, na Bolívia, na mesma época ocorria la marcha hacia el oriente; na Venezuela foi
criada a Cooperação de Desenvolvimento do Sul (CODESUR) sob o slogan “conquista del sur”; e nos
demais países também ocorrem políticas visando a integração e ocupação dos territórios amazônicos
praticamente ao mesmo tempo, a partir dos anos 1960.
63
borracha), mas é nos anos 1930 com o Presidente Getúlio Vargas que o nacional
desenvolvimentismo é formalizado.
O contexto brasileiro não estará também incólume à dinâmica internacional do
início da Guerra Fria e da chamada “era do desenvolvimento”, inaugurada pelo
discurso do então presidente dos EUA, Harry Truman, em 1949, que difundiu os
termos “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos” na política internacional e apresentou
como solução para a pobreza dos países a entrada de mais capital (Escobar, 2007)
Com o fim do governo de Vargas em 1954, iniciase um período no Brasil em
que a predominância do discurso político é mais uma vez pautado no desenvolvimento
e na modernização. Contudo, com políticas mais ambiciosas que as anteriores. É
também o momento do início da Guerra Fria e da pressão estadunidense por um
retorno de alinhamento automático na política externa brasileira, levando a pressionar
governos como o de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart.
As tentativas de posicionamentos autônomos e independentes despertam a
desconfiança no governo dos EUA e, em 1961, o presidente Kennedy lança a “Aliança
para o Progresso”, uma iniciativa de cooperação internacional que tinha como objetivo
desenvolver a América Latina e afastar a influência comunista da região.
É interessante identificar como a lógica do desenvolvimento e do progresso
estão explícitas e localizadas dentro da dinâmica política bipolar, o que acabará
influenciando os acontecimentos que levam ao golpe de Estado de 1964, em que os
militares e as elites tentam legitimar justamente pela defesa do “desenvolvimento” e do
nacionalismo contra a “ameaça comunista”. Elementos como a Marcha para Deus e a
Família dão o tom do que YuvalDavis (1997) analisa na constituição das dinâmicas do
Estadonação nos atravessamentos de classe, gênero e raça, por exemplo.
O período mais determinante nesse século é justamente durante a ditadura civil
militar que se dá entre 1964 e 1985. É nesse ínterim que o caráter de ocupação e defesa
contra uma possível internacionalização da Amazônia leva a políticas como a de
“integrar para não entregar” e a de “terra sem homens para homens sem terra”, as
quais tiveram como consequência o período mais intenso de ocupação – e também de
destruição do bioma –, assim como a intensificação dos conflitos rurais entre colonos,
indígenas, latifundiários e as outras populações que viviam na terra. Tais medidas
também foram colocadas como uma solução para a questão fundiária no Sul e no
Nordeste (Castro, 2010).
64
Edna Castro destaca ainda como tal cenário se referencia a um “mito da terra
proemetida” (Ianni, 1979 apud Castro, 2010) no imaginário social, no qual a “migração
para áreaslimite tem ainda um sentido na realização de sonhos, na superaão de
adversidades, no desafio de busca de um lugar mítico” (ibid., p. 111), de modo que a
ideia de paraíso e modernidade também é carregada nesses deslocamentos, onde se
infere uma justificativa de destruir a floresta e explorar os recursos naturais por esse
ideário. Ela aponta que no período da ditadura civilmilitar as mesmas bandeiras de
sempre são reeditadas, assim “a matriz conceitual – civilização, integração e progresso
– recupera a mesma base civilizatória presente nas políticas de governos anteriores”
(ibid., p. 112).
São planejados e implantados também megaprojetos para a região por meio de
políticas que mudaram a base econômica produtiva, que até hoje é marcada pela
pecuária extensiva, a mineração e a extração de madeira em nível industrial (diferente
da que se faz com menor impacto). Todos esses processos foram decisivos e
responsáveis pelos altos índices de desmatamento na região nas últimas décadas, além
das diversas formas de violações de direitos e repressões violentas pautadas na
justificativa de desenvolver a Amazônia.
Loureiro (2014) discorre sobre o desenvolvimento tanto da ocupação quanto
das bases produtivas na região, identificando, por exemplo, como uma ocupação
tradicionalmente ribeirinha começou a ganhar novos contornos com a abertura de
estradas e rodovias a rodovia BelémBrasília em 19598, a chamada rodovia da
integração, a CuiabáSantarém inaugurada em 1976 e a catastrófica Rodovia
Transamazônica de 1972 – até hoje inacabada – que facilitaram tanto a ocupação dos
novos colonos quanto a entrada do capital à região.
Para a autora, as políticas adotadas na época eram embasadas numa lógica de
projeto de desenvolvimento nacional que o Estado apresenta “como elemento
mobilizador e ético de suas ações para o “bemestar comum”, o “progresso”, “a
modernização” da região. (...) Sob o rótulo de um propalado “interesse nacional”
(Loureiro, 2014, p. 85)9. Mesmo com o fim da ditadura e a redemocratização no país,
8
Apesar do ano 1959 ter marcado a finalização das obras, o encontro das duas partes da estrada, ela só
começa a ser trafegada em 1960.
9
Presente, por exemplo na criação da Zona Franca de Manaus (ZFM) pela Lei Nº 3.173 de 1957, a
Operação Amazônia de 1966 a 1967, no Programa de Integração Nacional (PIN) de 1970, nos Planos de
Desenvolvimento da Amazônia (I PDA de 1972, II PDA de 19751979 e o III PDA de 19801985).
65
os signos das políticas para a região vão manter a tendência das políticas citadas, ainda
que com algumas mudanças significativas.
Vaz Filho (2010) contextualiza a emergência étnica na região nos anos 1980
junto também com a propagação do movimento PanIndigenista na América Latina e
outros países, tendo também a Constituição Federal de 1988 (CF/88) contribuído para a
ideia de garantia de direitos à educação e à saúde e, principalmente, o direito às terras
tradicionais, sua demarcação e proteção pelo Estado. O antropólogo comenta ainda que
a CF/88 tem “como impacto positivo sobre os povos indígenas, (...) a remoção da tutela
do Estado sobre os indígenas (até então tidos como incapazes e da superação da visão
integracionista” (Vaz Filho, 2010, p. 120), contribuindo para a diminuição de uma
visão infatilizadora dos indígenas e motivando a reorganização étnica.
Nesse contexto há grande mobilização entre os anos 1996 e 1998 pela criação
da RESEX TapajósArapiuns e também com a autoidentificação pública de moradores
de algumas comunidades como indígenas, a exemplo dos moradores de Takuara, o que
se dá com a presença e influência tanto de membros da Igreja Católica quanto do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém10.
A articulação começa a ocorrer também pela crescente tensão com madeireiros,
fazendeiros e outras movimentações pelas terras que começam a despertar ainda mais o
senso de pertencimento e autodefinição identitária, assim como os movimentos nos
anos 1990, que levam à criação de muitas unidades de conservação, processo que era
também impulsionado por pressões internacionais.
Já no caso da Flona do Tapajós, a mesma é criada ainda na ditadura civil
militar, em 1974. Entretanto, a categoria de Floresta Nacional, influenciada pelo
modelo de conservação dos Estados Unidos, não considerava a existência de
comunidades dentro da mesma, o que, na verdade, acabou levando a conflitos, pela luta
das comunidades de se manterem no território, direito que acabou sendo conquistado
apenas nos anos 1980:
Em 1980, os moradores, junto com o STR de Santarém, fizeram um
pico na mata de 10km de fundo (o “Pico das Comunidades”), a partir
das margens do rio para o centro da floresta, estabelecendo os limites
do que eles pensavam ser a sua terra dentro da FLONA. Segundo
Allogio (2004, p. 582), essa ação “foi o sinal de que a disposição de
lutar poderia vir a garantir a permanência das comunidades
tradicionais no seu próprio lugar” (Vaz Filho, 2010, p. 123)
10
Atualmente Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR).
66
11
O PSA é uma iniciativa civil sem fins lucrativos cuja atuação na região data de 1987 “com o objetivo
de promover e apoiar processos participativos de desenvolvimento comunitário integrado e sustentável
que contribuam de maneira demonstrativa no aprimoramento das políticas públicas, na qualidade de vida
e no exercício da cidadania das populações atendidas” (Projeto Saúde & Alegria, 2020, s/n). O projeto
aparece em diversos contextos durante o desenrolar do estudo.
68
comunidade, com o Programa Luz para Todos em 2008, do governo federal, que era
muito esperado pelos comunitários.
Para mim, a experiência na Flona foi de resgate da memória da minha própria
família12, com os relatos da infância de minha mãe e minha avó. Vi um cotidiano muito
similar (com as devidas ressalvas) na arquitetura das casas, na distância entre uma e
outra, na alimentação, no trabalho, no lazer.
Ali estava eu, uma mulher de 25 anos que vinha de Belém, professora
universitária e estudante do doutorado, o que sempre causava estranhamento e
descrédito – que acredito que se dava por conta da minha idade –, mas também
interesse, perguntando sobre o que as pessoas pensavam sobre o futuro e as políticas e
sendo interpelada de volta, sobre mim mesma, sobre o objetivo das minhas perguntas e
os motivos. Minhas indagações, como eu via e eram vistas, todas essas dinâmicas que
atravessam e são atravessadas pelo contexto aqui discorrido.
E, para chegar ali, acordei cedo para pegar o ônibus de AlterdoChão para
Santarém, uma breve de viagem de 45 minutos em média. Precisava estar lá por
precaução até às 10:00 horas da manhã para me situar e esperar o ônibus que saía com
destino à Flona, a Floresta Nacional do Tapajós. Aproximadamente, às 11:00 horas
subi no ônibus e estimei chegar à comunidade de Jamaraquá passando um pouco das
12:00 horas, já que é uma distância de apenas 65 km.
Saindo de Santarém passamos pelo município de Belterra, onde é possível ver
traços da história do lugar pela arquitetura que remete às casas dos Estados Unidos.
São algumas as construções da época em que a sede do município (então apenas uma
localidade) foi construída pelo milionário Henry Ford a partir do ano de 193413.
O ônibus é de linha e a passagem do ônibus custa R$ 12,00 reais, não tem como
objetivo atender a turistas ou visitantes, mas sim aos moradores da Flona que precisam
12
Isto se dá pelo fato da minha família materna ser de Castanhal e arredores, e meus avós terem
trabalhado ainda no roçado durante grande parte de suas vidas em condições pauperizadas. Por ter
nascido ali, já quando a família desfrutava de uma pequena ascensão de mobilidade social, e depois ter
crescido em uma das maiores capitais da região, Belém, um deslocamento justificado para ter acesso a
diversos serviços de saúde e educação, melhores condições de vida, que pouco refletem o acesso real da
maior parte da população, tive construída uma visão de futuro de modo otimista, como moldável e,
pautandose pela referência dos símbolos da modernidade enquanto melhoria de vida (até então). A
própria mobilidade social alcançada pela minha família por meio do estudo, de acesso a empregos
estáveis, sempre foram símbolos de reforço dessa ideia e seus símbolos. Minha avó, que estudou apenas
até o ensino fundamental, sempre frisou que deveríamos perseguirlos para garantir uma vida melhor.
13
Por conta da produção da borracha, mas que nos anos seguintes o projeto foi abandonado pelo
desenvolvimento de outras tecnologias na produção da borracha sintética e o baixo custo em outros
lugares, como na Ásia.
69
14
O corte e a derrubada de castanheiras (Bertholletia excelsa) são vedados (Decreto 5.975/2006 e Lei
12.651/2012) sob a justificativa da sua importância para a ecologia e a socioeconomia da região, o que
se torna ainda mais grave pelo risco de extinção que levou à espécie a ser incluída na Lista Nacional
Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção (Portaria 443/2014 do Ministério do Meio
Ambiente). Assim, ouvi relatos recorrentes enquanto estava na região de várias estratégias utilizadas por
latifundiários e grileiros para evitar multas quando castanheiras em terras de interesse eram consideradas
um obstáculo. Uma delas é o envenenamento por meio de uma perfuração discreta no tronco da árvore,
de modo que seja difícil identificar a causa de sua morte e a mais comum é também o desmatamento de
toda a flora ao redor, restando apenas ela em pé, sendo alvo de raios, de modo que mais cedo ou mais
tarde seja carbonizada.
15
Alojamentos para atar redes para dormir (vide Figura 6).
71
Figura 7 – Nice
Aos 39 anos, casada e com cinco filhos (duas filhas jovens adultas e com filhos,
uma adolescente de 15 anos, um adolescente de 13 anos e um mais novo de 9 anos),
Nice tem uma percepção muito positiva do futuro da família, da comunidade e da
Flona, principalmente ao fazer
fazer comparações com a situação anterior que viviam antes
da criação da Flona e do turismo comunitário, quando a principal atividade econômica
era a agricultura e a criação de pequenos animais, o que era muito extenuante
extenuante e pouco
compensatório. Ela relata, por exemplo, trabalhar fazendo a roça embora grávida de 9
meses.
73
A visão otimista de Nice, porém, não é compartilhada por todos que moram na
Flona. Ela conta que quando o ICMBio começou o processo de capacitação para o
turismo comunitário, processo que dependia da iniciativa voluntária das comunidades –
apenas 3 pessoas quiseram realizar sistematicamente a atividade. Muitas não apoiavam
a mudança e houve tensão entre os que tinham interesse em mudar para uma atividade
econômica que tivesse maior retorno econômico e menos desgaste físico e aqueles que
temiam que a entrada de turistas na Flona fosse modificar suas formas de vida e que o
ganho econômico não compensasse a perda da privacidade e, possivelmente, suas
culturas.
Por conta dessa situação Nice promoveu repetidas vezes reuniões e debates
para que todos os moradores expusessem seus posicionamentos, buscando formalizar
diversas formas de associação para facilitar as discussões, como a Associação da
Comunidade de Jamaraquá e a Cooperativa de Mulheres de Jamaraquá, que tratam
sobre as produções de artesanato das mulheres da comunidade.
Nice demonstrase muito atenta às dinâmicas com turistas, funcionários do
ICMBio, outros moradores da comunidade e das demais, muito comunicativa e
articuladora. Está sempre elaborando novos planos de explorar mais o potencial
turístico da Flona e, ao mesmo tempo, manter a autonomia dos moradores em relação
ao governo, pois apesar de considerar positiva a mudança da atividade econômica, ela
é muito crítica quanto ao posicionamento adotado por funcionários do governo que no,
caso da Flona, adotam um regulamento com rígidas proibições e multas para manter o
equilíbrio ecológico da floresta. Nice muitas vezes discorda dessas limitações seja pela
proporcionalidade adotada ou o próprio tipo de abordagem que adotam “como se
fossem donos do lugar”.
Por conta das dificuldades da minha adaptação à dormida no redário, dos
barulhos da floresta (que posteriormente fui informada que eram macacos andando em
cima do redário e porcosdomato andando pelas folhas do chão, de modo que aos
incautos como eu pareciam muito com pessoas andando) e ao medo de dormir sozinha,
uma das filhas de Nice, Aline, de 19 anos, foi me fazer companhia no redário.
74
Figura 8. Aline
Durante o dia eu mesma havia feito algumas brincadeiras sobre o fato de ser um
clichê da “moça da cidade”,
cidade” com medo dos bichos, mas quando fomos dormir Aline
comentou que não achava besteira o meu medo, já que ela também tinha medo de
dormir na cidade, onde havia outros barulhos com os quais ela não estava acostumada
– e eu sim, como as sirenes de carros de polícia e ambulância durante a madrugada, os
barulhos de carros em alta velocidade, entre outros.
Nessa conversa, Aline – que é casada e tem uma filha de 4 anos – comentou
que também não tem interesse em morar fora da Flona.
Flona Falou várias vezes que ali é
onde se tem liberdade, diferentemente
diferente das cidades nas quais ela já morou ou visitou
(Santarém e Macapá). Ela chamou atenção à diferença do clima (muito mais quente nas
cidades) e que ali na Flona ela tem tudo de que precisa, apesar de ter tido uma
experiência traumática no parto de sua filha por conta da dificuldade e do custo de
deslocamento para o município de Belterra e Santarém para realizar
realizar tanto o pré
prénatal
quanto o próprio parto, quando teve complicações.
Tanto Aline quanto Nice destacam que é precisoo melhorar o acesso dos
moradores aos seviços de saúde, já que cada deslocamento (de moto) custa pelo menos
R$ 50,00 reais. Noo caso de mulheres são recomendadas consultas frequentes,
75
especialmente durante a gravidez, o que impõe um custo elevado para uma renda que é
variável, posto que depende das temporadas de turistas na região.
Aline comenta que quando engravidou aos 15 anos ficou triste, pois queria
terminar os estudos (na comunidade temse acesso à educação básica), o que se
agravou com a complicação da gravidez e do parto de sua filha. Por conta dessa
experiência ela diz não pretender ter mais filhos.
Entretanto, Aline não adota uma visão pessimista da situação. Depois que
começou a trabalhar mais com o artesanato e a ajudar a mãe nas atividades de turismo,
passou a viver uma mudança interessante em sua vida. Ela contou como a recorrência
de mulheres viajantes que passaram a chegar à comunidade por vezes solicitavam guias
mulheres. Anteriormente, os homens costumavam exercer o trabalho de guias,
enquanto as mulheres faziam o artesanato e preparavam as refeições, com algumas
exceções como a de Nice, que sempre foi guia junto às outras atividades16.
Foi quando por questão de demanda, Aline começou a se capacitar para ser guia
em diversos passeios, onde acompanhava e aprendia inicialmente com o seu pai e sua
mãe. Ela relata que começou a se identificar muito mais com a atividade de guia do
que de artesanato, que considera “chato”. Ela comenta que muitos moradores
demonstraram reprovação por ela estar em uma posição de ser guia, às vezes, só para
homens, implicando principalmente questões morais sobre o seu casamento. Ela
responde que, apesar dos comentários, seu marido a apóia.
Ao falar mais sobre o trabalho como guia ela se anima com os outros níveis de
passeios mais difíceis para os quais gostaria de ser capacitada, como passar a noite na
floresta. Reclama ao ver que apenas homens colocam seus nomes para prestarem o
treinamento. Nessas ocasiões ela recua, por não querer provocar insegurança nas
esposas dos guias homens que também estariam lá e que passariam noites dormindo na
floresta, caso ela também fosse.
Em conversa com Rosivaldo, o pai de Aline e esposo de Nice, sobre
perspectivas de futuro para a região, ele se demonstrou tranqüilo e confiante, por
16
As relações de trabalho na comunidade são abordadas no capítulo 7, a partir das entrevistas com Nice
e sua filha mais velha, Priscila, onde são discutidas as relações de gênero nestas questões. Optei por não
introduzir aqui a discussão pela escolha de seguir uma linha cronológica mais próxima possível às
experiências e leituras. À época mesmo o fato me chamando atenção eu ainda não havia elaborado bem
sobre as dinâmicas e tampouco havia conhecido melhor sobre as relações de trabalho nas perspectivas
delas, visto que em 2017 foi a minha primeira visita e apenas em 2018 realizei entrevistas com
direcionamento específico e abordei também em nossas conversas do cotidiano minhas dúvidas sobre o
tema.
76
17
Não se infere aqui que este tipo composição familiar seja restrito à cultura européia, mas que a forma
como essa concepção de família será difundida e reproduzida nas instituições adota como referência o
81
contexto burguês na Europa, o que carrega consigo valores religiosos e noções de gênero, sexualidade,
raça, produção e divisão do trabalho muito específicas.
82
Catherine Walsh (2008) traz como contribuição pensar a partir de um novo eixo
além da colonialidade do ser, do poder e do saber: a colonialidade da “mãe natureza”.
Tal eixo se refere à visão binária natureza/sociedade adotada durante a colonização, a
qual ignorou e reprimiu os conhecimentos e as relações mágicoespirituaissociais, a
relação entre mundos biofísicos humanos espirituais, incluindo a dos ancestrais, que dá
sustentação aos sistemas integrados de vida e a humanidade como um todo (id.).
Contudo, apesar da negação dessas bases de vida dos povos indígenas e
africanos e seus descendentes, ela aponta que atualmente se tentam resgatar “prácticas
y políticas, entre otras, del desarrollo, etnoturismo (con su folklorización y
exotización) y «ongización», en que prevalecen el individuo y su bienestar individual-
neoliberal” (Walsh, 2008, p. 139). Tal argumento dialoga, por exemplo, com as
atividades de turismo de base comunitária no caso abordado da Flona Tapajós que são,
importante frisar, fruto de ações de interferência do Estado nacional por meio do
Ministério do Meio Ambiente e o ICMBio.
Ela também reforça que os eixos de colonialidade formaram/formam as bases
estruturais, institucionais e ontológicas das compreensões de Estado e Nação. Enquanto
as colonialidades do poder, do ser e do saber fundam uma concepção de quem é o
sujeito ou “indivíduo racional e civilizado” dessa estrutura, que formas de
conhecimento, ciência e epistemologias são válidas, de que maneira o projeto de
nação vai ser pensado, por quem, inserido em e reproduzindo por qual lógica, que ao
mesmo tempo hierarquiza, inferioriza e desumaniza outras existências, corpos e
epistemologias, aprofundando a dimensão do que é proposto em linhas gerais por
YuvalDavis (1997).
A construção de projeto de nação se dá, basicamente, pautada numa lógica
eurocêntrica na qual o EstadoNação se constrói enquanto uninacional e monocultural,
que propõe um caráter “capitalista, moderno, colonial e cristão para a vida em
sociedade nacional” (Walsh, 2008, p. 139), afirmando sua universalidade como
justificativa para a legitimação da dominação social, exploração do trabalho e negação
das populações que não estão inseridas ou não são reconhecidos dentro desses moldes.
Ainda na lógica dos eixos da colonialidade, temse assim, na América do Sul –
contexto analisado por Walsh – a adoção de políticas de mestiçagem, que visam
argumentar e negar a existência de racismo e de qualquer injustiça racial, entendendo o
Estado enquanto neutro historicamente nesse processo e que o hibridismo produzido
não permitiria a ocorrência de racismo nessas sociedades.
84
contribuírem com mais duas colonialidades (de gênero e da “mãe natureza”), que serão
consideradas abordagens mais atuais para a questão trazida na presente pesquisa, todas
as demais serão também retomadas oportunamente quando necessário.
A fim de ilustrar tais eixos no panorama amazônico destaco como não se
costuma estudar nas escolas sobre as origens do mundo a partir das histórias dos povos
indígenas e, muito menos a história do Brasil, que não costuma ser contada a partir dos
primeiros humanos que ocuparam este território, mas sim a partir do “descobrimento”.
O território já era ocupado por sociedades organizadas de diferentes formas há
pelo menos 8 mil anos A.C. (Souza, 2015). Provas materiais indicam sociedades que
produziam cerâmicas, sobreviviam com a caça e a coleta e, por volta dos 3 mil anos
A.C. transitaram para uma sociedade de horticultores:
Os primeiros amazônidas experimentaram um grande
desenvolvimento por volta de 2000 a.C., transformandose em
sociedades hierarquizadas, densamente povoadas, que se estendiam
por quilômetros ao longo das margens do rio Amazonas. Essas
imensas populações, que contavam com milhares de habitantes,
deixaram marcas arqueológicas conhecidas como locais de “terra
preta indígena”. O mais conhecido deles encontrase nos arredores da
cidade de Santarém, Pará, exatamente um dos centros de uma
poderosa sociedade de tuxauas, guerreiros que dominaram o rio
Tapajós até o final do século XVII, já no período de dominação
europeia. (Souza, 2015, p. 25)
constantemente contada por uma visão exógena, como um observador que vem a
descobrila, a revelála, como se sua existência só obtivesse sentido após o seu relato e
o seu reconhecimento. Como se essa narrativa e suas primeiras impressões da região
fossem definitivas para o sentido do lugar, seus povos e seu futuro.
Com a colonização chegou também um projeto de homogeneização cultural,
como parte da lógica moderna/colonial. Nessa sociedade que se buscava homogênea e
que viria a ser o Brasil, não caberia esse passado em sua história. Mas, esse
apagamento não se deu apenas contra as culturas dos povos autóctones, ocorreu
também com os africanos deslocados à força e com os aqui já nascidos, sob essas
condições.
Márcio Souza (2015) aponta que no momento da chegada dos europeus, a
região era habitada por sociedades hierarquizadas, as quais possuíam: sistema de
produção de ferramentas, cerâmicas, agricultura diversificada, assim como práticas
culturais de rituais e ideologias que serviam como base para a organização das
sociedades de forma estratificada.
Ele critica também a ideia construída de preconceito de que os povos
amazônidas, chamados de Cultura de Selva Tropical, seriam primitivos e estariam
abaixo do desenvolvimento cultural do Padrão Caribenho ou dos Povos Andinos, o que
recai ainda hoje sobre certas visões racializadas sobre a região e seus habitantes.
Lugones (2014) destaca que a colonialidade se dá exatamente ao passo que a
“modernidade tenta controlar, ao negar a existência, o desafio da existência de outros
mundos com diferentes pressuposições ontológicas. A modernidade nega essa
existência ao roubarlhes a validez e a coexistência no tempo. Esta negação é a
colonialidade” (ibid., p. 943, tradução própria). Os elementos presentes na lógica da
modernidade geram então nos corpos e territórios valores de hierarquização, de
violência e opressão pela colonialidade do ser, do poder, do saber, de gênero e da mãe
natureza.
Para Lugones, a referência central da modernidade/colonialidade é o homem
europeu burguês, o qual seria considerado o ser principal e apto a participar na vida
pública e no governo, heterossexual, cristão e racional que tomará ele próprio como
sujeito dessa narrativa. É ele quem se tem legitimado nessas estruturas sociais como
referência, o que, ainda se faz extremamente presente na atualidade.
E, seguindo essa lógica, a mulher europeia burguesa é colocada como
“reprodutora” da raça que representa esse sujeito e também o capital, enquanto as
88
pessoas que viviam/vivem nos territórios que passaram pelo processo de colonização
são defrontadas com um sistema de gênero moderno/colonial em que não têm sua
humanidade reconhecida, ou seja, na lógica dicotômica hierárquica da modernidade
colonial são tidos como “nãohumanos, bestiais e sexuais” (Lugones, 2014, p. 936). O
lugar dado à mulher europeia burguesa aqui também retoma o proposto por Shirin M.
Rai (2008) e YuvalDavis (1997) e como as mulheres são vistas na ideia de nação.
Isso se percebe nos processos de genocídio e etnocídio praticados na região
amazônica – e no restante do território brasileiro – e nos argumentos adotados não
apenas na época da colonização de fato, mas persistem ainda hoje, para justificar tais
práticas nas quais as populações indígenas eram/são comparadas a animais e a seres
sem almas, levando a políticas tanto de dizimação, como de exploração e também de
catequização/evangelização.
Assim, é preciso destacar o papel da religião cristã, especificamente pela Igreja
Católica, pela atuação dos jesuítas na região e suas consequências. Tanto o genocídio
quanto o etnocídio se deram de forma articulada e embasada nesses valores de
modernidade/colonialidade e de personificação do sujeito moderno ideal supracitado.
Investidas de catequização foram desenvolvidas para adequar a cultura e suas práticas
ao cristianismo, com a violência de gênero recorrentemente infligida às mulheres
indígenas pelos conquistadores europeus; mas também contra as mulheres africanas e
negras em situação de escravidão.
No âmbito do sistema de gênero moderno/colonial, Lugones (2016) enfatiza as
diferenças racializadas de gênero entre mulheres brancas europeias e as “nãobrancas”,
as mulheres “colonizadas”. Essas mulheres não recebiam quaisquer privilégios ou
direitos nas sociedades, como se não fossem vistas como dignas de respeito e até
mesmo como não portadoras de humanidade, enquanto as primeiras ainda que
subjugadas a dinâmicas sexistas de cunho patriarcal, possuíam certo poder de exercer
opressão sobre as demais.
A leitura que os europeus fizeram dos povos ameríndios se deram no âmbito da
transposição das referências da própria sociedade europeia, reproduzindo, inclusive, as
relações de sexo e gênero dispostos naquela cultura. Lugones (2016) discorre que a
heteronormatividade e a visão binária de gênero modificou compreensões de culturas
précoloniais, partindo das ideias da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí e também
da antropóloga e ativista nativoamericana Laguna, Paula Gunn Allen.
89
É a partir das questões levantadas por elas e outras autoras, que Lugones
constrói um argumento que visa romper o sistema de gênero moderno/colonial na
compreensão de “gênero” no âmbito do dimorfismo biológico, trazendo contribuições
sobre as culturas précolonização e diferentes percepções das relações entre gênero e
sexualidade, como a intersexualidade e a homossexualidade.
Os exemplos trazidos pelas autoras em que Lugones se baseia apontam
organizações sociais que tinham fortes características de participação política das
mulheres, o que vai ser mudado a partir da colonização, na imposição de padrões
binários que buscam se justificar pelo dimorfismo biológico, alterando a organização
social e as relações entre homens e em situação de colonização. Enquanto em outros
casos, nem sequer existiam termos ou formas de separação social pautadas em “sexo”
ou “gênero”.
Com base nos estudos de Oyěwùmí, Lugones (2016, p. 22) reforça que a
associação colonial entre anatomia e gênero faz parte da oposição binária e hierárquica,
central para a dominação das anafemales introduzidas pela colônia. As mulheres são
definidas em relação aos homens, a norma. As mulheres são aquelas que não têm
pênis; elas não têm poder; eles não podem participar da arena pública.
Paula Gunn Allen (apud, Lugones, 2016) traz os casos de mudanças em
sociedades que adotavam o feminino como fonte criadora que substituirão pela figura
de criadores masculinos, como na própria referência da teologia cristã, o que nos
remete ao exemplo da origem do mundo para os Dessâna, apresentado anteriormente.18
Diante desse contexto, mostrase oportuno exemplificar o tratamento dado
pelos portugueses durante a colonização na região a situações que não se encaixavam
nas suas referências de normatividade em relação ao comportamento baseado no
gênero, como exposto por Ronald Raminelli (1997, p. 21):
As perversões sexuais marcaram as representações do índio. Os
tupinambás eram afeiçoados ao pecado nefando, e sua prática era
considerada uma conduta normal. Os “índiosfêmeas” montavam
tendas públicas para servirem como prostitutas. Algumas índias
18
São citados casos também que indicam um reconhecimento da diversidade sexual e também da
interssexualidade nessas sociedades, contrariando inclusive a lógica da ciência ocidental que adotava à
época (e predominantemente ainda hoje) a visão de um corpo humano biologicamente heterossexual e
baseado em dois sexos opostos a partir da anatomia. Trazendo para o Brasil, a tese de doutorado de
Estevão Fernandes (2015) discorreu sobre o tema dos enquadramentos coloniais e homossexualidade
indígena. Ele observou a partir de relatos de viajantes que chegaram ao Brasil nos tempos do início da
colonização diversas passagens sobre práticas sexuais consideradas “imorais” e que pelas próprias
populações eram culturalmente normatizados. Ele aponta que o próprio fenômeno da LGBTfobia foi um
elemento introduzido pela própria colonização em muitas sociedades indígenas.
90
19
A importância de pontuar o debate em torno da idéia de pardo se faz justamente para situar a
colonialidade, suas ferramentas e efeitos ainda hoje desses processos na sociedade. Contudo, é preciso
frisar que no que diz respeito a identidades indígenas não é um elemento central o “fenótipo”, ainda que
este seja reproduzido no imaginário e nos meios de comunicação e conhecimento, mas que a relação
passa por processos de reconhecimento e pertencimento que cada povo possui seus próprios critérios,
não sendo necessariamente os mesmos.
94
exclusão e faz com que as pessoas se sintam integradas…”, assim, concluem que na
região, especificamente no estado do Pará, o termo moreno(a) vai ser aplicado como
uma forma de unir o povo como descendentes de negros e indígenas e também como
uma eufemismo para não utilizar a palavra negro.
Assim, os termos “caboclo” e “moreno” carregam cargas históricas e políticas
que criam novas identidades enquanto apagam outras ou condenam à exclusão os que
as declaram e abraçam. A renomeação das identidades será fundamental para a
concepção de um projeto nacional e de direitos, de divisão socioterritorial e,
consequentemente, de projetos de vida. De quê sociedade fazemos parte e qual nosso
“papel” nela? Onde estou e quem eu sou dentro deste contexto e que lugar cabe a mim?
São alguns questionamentos que podemos levantar e internalizar a partir dessa
discussão.
Vaz Filho (2010) propõe não atribuir aos processos de criação e
“assimilação”/reprodução dessas identidades uma visão de vitimização dos indígenas
(mas que também podemos aplicar à população negra), como passivos a esse processo
histórico, mas a compreensão como uma “estratégia de silêncio, superposição cultural
e recriação ou invenção, para conservar, durante séculos, parte considerável das suas
culturas indígenas e uma leve lembrança de suas origens tribais” (Vaz Filho, 2010, p.
108).
No caso das mulheres indígenas a dinâmica se deu de forma específica, onde
Gambini (2000, p. 141) aponta que eram vistas por um duplo aspecto pelos
colonizadores: como “ameaça maligna” e “novidade fascinante”. Gambini (2000)
argumenta que “ao lado do diabo e dos pajés, os jesuítas também reservaram um lugar
para as mulheres no reino das trevas” e que os primeiros homens que cruzaram o
oceano “encontraram (...) mulheres a seus olhos amorais, sedutoras e acima de tudo
disponíveis e nuas, com quem podiam pôr em prática suas fantasias sexuais sem
maiores restrições” (ibid., p. 132).
Ronald Raminelli (1997) reforça que a visão dos povos nativos como seres
degenerados tenha recaído mais sobre as mulheres e, principalmente, as mais velhas.
Ele aponta que a própria teologia cristã dá bases para essa compreensão feita na época
tanto nos valores misóginos difundidos, como na própria construção da ideia de Eva, a
mulher que corrompe, a que seduz e que é uma ameaça.
Nesse sentido, percebese a hiperssexualização das mulheres indígenas e um
posicionamento de suas existências também abaixo das mulheres europeias, onde elas
95
trabalho doméstico, na esfera dos cuidados. Lélia Gonzalez (1984) analisa como o
imaginário no Brasil será atravessado por essas imagens das mulheres negras enquanto
mulata, doméstica e “mãe preta”.
Vieira (2018) – mas também outros trabalhos antes deste, com destaque para a
obra de Lélia Gonzalez – critica as abordagens e interpretações sexistas e racistas
apresentadas por Gilberto Freyre, como no momento que este indica que a relação
entre senhores brancos e negras escravizadas teria um “impulso sexual” de forma
desejada, de sadismo pelo lado dos homens brancos e de masoquismo pelas mulheres
negras. Contudo, a visão de Freyre é relevante no sentido de trazer à tona a própria
forma de pensamento da sociedade brasileira.
Em sua dissertação de mestrado sobre mulheres negras no Brasil, Bianca Vieira
(2018) apresenta a visão de que o apagamento da subjetividade de mulheres negras
escravizadas também se dava até mesmo por “intelectuais” que defendiam a abolição
da escravidão ao passo que Joaquim Nabuco, por exemplo, aponta que o “ventre
gerador” seria justamente a parte mais produtiva da propriedade escrava.
Outras referências que ela aborda discorrem sobre as dinâmicas coloristas de
valorização de algumas mulheres que pertenciam a etnias com traços mais próximos
aos brancos ou de tom de pele mais claro como preferenciais para o casamento com
colonizadores. Contudo, ela aponta que ainda assim na dinâmica das relações
predominava a da exploração da mão de obra destas.
Ela cita que para Freyre (1994, apud Vieira, 2018) as mulheres escravizadas
que tinham seu trabalho deslocado para a casa grande eram vistas como “promovidas”,
pois significaria que teriam se destacado das demais e estariam mais aptas a conviver e
trabalhar diretamente com os senhores e as senhoras brancas. Por outro lado, ela cita
que Sueli Carneiro e Thereza Santos (1985, apud Vieira, 2018) não consideram que
esse tipo de trabalho diminuísse de qualquer forma a exploração das mulheres negras,
ao contrário, apenas ampliava os níveis de exploração em comparação aos homens
negros.
Como herança dessas dinâmicas superficialmente aqui citadas, o trabalho
doméstico e serviços gerais de limpeza são ainda predominantemente executados por
mulheres negras e pobres, e que, ainda por cima, são ocupações com frequentes
violações de direitos trabalhistas, baixa remuneração e que, ainda hoje, mantém traços
do passado colonial não tão distante nas relações trabalhistas em diversos âmbitos, seja
pela segregação, pela exploração ou pela baixa remuneração que é tão comum ao setor.
97
20
A decolonialidade configurase em uma abordagem que busca combater a colonização epistemológica
e ontológica, surge no contexto dos estudos póscoloniais ao criticar que apenas a identificação das
heranças e continuidades das práticas coloniais não é o suficiente para romper com essas dinâmicas.
Assim, a decolonialidade assume que sempre houve embate e que a partir de uma descolonização pode
se repensar as estruturas sociais e, de certa forma, transformálas de dentro para fora, de baixo para
cima, a partir das experiências dos povos subalternizados. Já quem parte da premissa que os povos
jamais foram colonizados, como argumentam representantes de muitos povos indígenas, como Daiara
Tukano, falam sobre contracolonialismo ou anticolonialismo de modo que decolonizar seria para quem
foi de fato colonizado e não para quem desde o início enfrenta e resiste à colonização. Optei por manter
o debate a partir da decolonialidade por conta do contexto que analisei, da minha própria experiência e
das pessoas com quem convivi, considerando que a decolonialidade de certa forma se adequa melhor.
99
Em suma, não é o objetivo aqui desta seção e muito menos desse estudo
aprofundar todo o histórico e as políticas já adotadas na história da Amazônia brasileira
no sentido da lógica de modernidade/colonialidade. Porém, os casos aqui citados
corroboram a relação com os conceitos centrais discutidos e apresentam como o
processo de colonização se deu em linhas gerais e como os parâmetros de referência
cultural idealizada em torno da identidade europeia se tornaran referências que ainda
hoje se manifestam como um sonho das elites locais e buscando realizálo empreendem
políticas visando um desenvolvimento que destrói a própria região.
Tal processo, contudo, encontra assim como na própria história local,
iniciativas de resistência e, apesar dos esforços de colonização dos corpos, das mentes
e das subjetividades, depois de cinco séculos ainda são visíveis e pulsantes. Esses casos
serão abordados na apresentação do contexto específico da região do Tapajós, onde
serão retomados conceitos aqui previamente apresentados.
A colonialidade de gênero na Amazônia foi eixo central no processo de
colonização no momento que redefiniu as formas de relação e organização social dos
povos autóctones ao passo que também exterminou tanto vidas como também culturas.
Podemos pensar, por exemplo, no contexto descrito sobre o trabalho infantil doméstico
principalmente de meninas nãobrancas, assim como a recorrente prática de seqüestro,
conhecida pela expressão de que alguma mulher foi “pega no laço”, para se referir
principalmente a mulheres indígenas.
Mirna Anaquiri (2018), que é do povo Kambeba OmáguaYetê, analisa como a
expressão referese à forma de violência sistemática pela que muitas mulheres
passaram e como além do seqüestro em si, a prática envolvia também outras formas de
se “dominar”, apagar a identidade étnica e práticas culturais. Ela ressalta como “essa
fala traz mais um exemplo de violência étnica, violência simbólica, violência de gênero
contra a mulher indígena, cujos corpos são objetivados e suas identidades anuladas. É
necessário problematizar essa frase do repertório popular, sobretudo porque as
violências perduram geração após geração” (Anaquiri, 2018, p. 759).
Podemos então analisar como o “lugar das mulheres” pensado no projeto de
construção de uma nação passou pela adequação aos valores eurocentrados e morais da
religião católica, como uma forma de dominação dos corpos das mulheres indígenas,
tanto pela capacidade de passarem a língua e a religião adiante, mas também como
potenciais “embranquecedoras” da população por meio dos estupros e casamentos
forçados com brancos europeus; o que relembra a discussão feita por Nira YuvalDavis
101
Antônio Carlos Lopes Petean (2012) analisa sobre o período que teorias do
chamado racismo científico, como propagado pelo Conde de Gobineau, influenciaram
as políticas eugenistas que visavam um branqueamento da população e ele estabelece
uma relação direta entre um projeto de nação brasileira, a ideia de desenvolvimento e
progresso, atrelado à questão racial e, adiciono também, de gênero, já que muitas das
102
cidades da região. Entretanto, Cris demorou muitos anos para conseguir voltar a atuar
na sua área, trabalhando de outras formas para conseguir manter sua sobrevivência.
Foi interessante perceber que tendo as duas a mesma formação, a mesma faixa
etária, sendo ambas solteiras e sem filhos e oriundas da mesma cidade, a adaptação foi
sentida de modo diferente. Os casos de racismo relatados por Cris e por outras pessoas
que a conhecem demonstraram um caráter específico na percepção das pessoas de a
reconhecerem pelas suas capacidades e formação profissional.
O processo de mudança de Cris se deu visando realmente começar uma nova
vida do zero. O trabalho não era sua prioridade, por isso, não houve também relutância
em exercer outros ofícios, enquanto Fernanda tinha a preocupação constante e crítica
em relação a sua sobrevivência financeira, buscando contatos na região antes mesmo
da mudança. Ainda assim, para ajudar nas despesas ela se aproximou de outras
mulheres de Alter que fazem uma feira de venda de produtos naturais onde começou a
vender pães orgânicos.
Figura 12. Fernanda e Cris
Santarém, de onde saímos às 12:00 horas e chegamos por volta das 14:00 horas. Nesse
dia a viagem foi rápida por conseguirmos ir de lancha e o tempo estar bom.
Por estarmos com Cris, fomos recebidas na casa de Dona Elzanira, que mora
com o seu marido, Seu Nicolau (Colau), com seus filhos (três meninas adolescentes e
um menino) e sua neta de 9 anos. A chegada ao Arapiuns e à Coroca foi marcada pela
onipresença do rio na paisagem, que no período estava ainda na cheia.
Figura 13 – A vista da casa de Dona Elzanira e Seu Colau para o Rio Arapiuns
antes da visita, o diesel também era essencial para a geração de energia; a energia
elétrica chegou havia pouco tempo.
Figura 14 – Casa de Dona Elzanira e Seu Colau na Comunidade da Coroca, Arapiuns
em 1979 a partir dos estudos realizados por grupos ligados à Igreja e à Teologia da
Libertação; o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR),
iniciado em 1974 e que muito contribuiu para impulsionar a mobilização política local
e a encabeçar situações críticas durante o período.
Outros movimentos que tiveram influência no contexto das últimas décadas do
século XX na região foram o Grupo de Consciência Indígena (GCI), que surgiu em
1997 em Santarém, a partir de um grupo de estudos religiosos e indígenas que reuniam
religiosos e leigos católicos que se identificavam como indígenas, assim como o
Conselho Indígena dos Rios Tapajós e Arapiuns (CITA).
Sena (2014) destaca como uma característica forte da região a trajetória de
resistência em diversos contextos e frentes, mas principalmente entre os anos 1970 e
1990, o que, como já comentado anteriormente, teria sido enfraquecido nos anos 2000
a partir da chegada do PT ao governo do país.
Entre outros casos de movimentos bemsucedidos, ele destaca a Associação da
Organização das Mulheres Trabalhadoras do Baixo Amazonas (AOMTBAM) em
1990, que surgiu a partir de 12 grupos de mulheres de 12 municípios da região, cuja
mobilização também teve origem nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja
Católica e no âmbito da Teologia da Libertação formada por “mulheres trabalhadoras
rurais, domésticas, professoras, trabalhadoras na saúde de base, comerciárias,
empregadas domésticas, e outras; são mulheres empobrecidas e de diversas faixas
etárias, inclusive crianças, adolescentes e jovens” (Sena, 2014, p. 129).
O movimento das mulheres causou muito impacto na região, principalmente no
combate à violência doméstica, no incentivo à escolarização (que aumentou
consideravelmente a participação de mulheres no ensino superior); também houve
importância da associação para o respeito às profissionais do sexo e também o trabalho
de prevenção de IST/AIDS; ademais, a organização começou a compor diversos
conselhos municipais, fóruns e conferências (id.).
Atualmente, podese destacar o Movimento Tapajós Vivo, criado em 2009,
como uma das iniciativas que têm tentado encabeçar e mobilizar outros movimentos,
associações, organizações e a população contra os novos projetos que ameaçam a
realidade local, principalmente o Complexo Hidrelétrico do Tapajós.
O movimento surge no contexto de comoção nacional diante da situação de
Belo Monte, cenário que também impulsiona a articulação de movimentos de
mulheres, principalmente indígenas, de maneira mais formal na região.
112
21
MAB. Direitos das mulheres atingidas por barragens. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=C5u0KxMxP74.
114
Isto, contudo, não significa que o quadro geral da região seja melhor ou esteja
bom. A metodologia definida para avaliar cada município acaba recaindo no mesmo
problema que o IDHM, invisibiliza as assimetrias locais. O município de Santarém, por
exemplo, engloba no índice tanto do centro urbano quanto comunidades ao longo rio
Arapiuns que não têm acesso a saneamento básico e conta com serviços de saúde a 15
horas de distância de barco.
Em Belterra o índice destaca como pontos fracos e baixos a nutrição e os
cuidados básicos com a saúde, a mortalidade por doenças infecciosas e desnutrição, a
vulnerabilidade familiar e, o mais baixo, acesso à educação superior com IPS de 16,50,
enquanto a média da Amazônia é 19,10 e do Brasil é 33,76 (Santos et al, 2018).
No caso de Santarém os destaques negativos são a alta taxa de mortalidade por
doenças crônicas, o acesso à água e saneamento e a violência contra as mulheres e
123
A Alcoa neste caso estaria violando a convenção 169 da OIT por conta da
modalidade de assentamento coletivo do PAE Lago Grande, viso que a entrada da
multinacional na região só seria permitida com a anuência da Federação de
Associações do Lago Grande (Feagle) – o que não foi feito.
Em 2010, a Alcoa já havia tentado entrar na região sem negociar com a
federação, por meio de uma ação judicial que foi extinta em 2018 pela Justiça Federal
de Santarém por não apresentar as licenças necessárias e por não comprovar as
tentativas de negociação com a organização de moradores.
Os comunitários relataram também um clima de apreensão e tensão por conta
das ações atribuídas aos representantes da mineradora e principalmente por terem
ciência dos resultados da experiência em Juruti:
Um dos moradores ouvidos pelo MPF na investigação sobre a
atuação da Alcoa explicou: “a gente fica preocupado quando uma
empresa internacional está ameaçando nosso território, temos
conhecimento do que já aconteceu e o que está acontecendo onde ela
já está explorando, nós vemos o povo vivendo uma aflição, uma
angústia muito grande em Juruti”. “É uma agressão brusca, e nós do
Lago Grande estamos preocupados, mesmo eles não estando fazendo
lavra, mas já estão impactando socialmente aquelas lideranças com
mais influência, que são os polos, as escolas. Isso é para enfraquecer
nossas lutas”, disse à equipe do MPF. (MPF, 2018)
22
DIÁRIO DO AMAPÁ (2016). Hidrelétrica Coaracy Nunes completa 40 anos interligada ao SIN.
Disponível em: http://www.diariodoamapa.com.br/2016/01/12/hidreletricacoaracynunescompleta40
anosinterligadaaosin/.
130
Dentre as usinas citadas (vide Quadro 1), a UHE São Luiz do Tapajós era a
primeira com previsão para o início de suas obras em 2017, porém, em 2016 o
processo de licenciamento foi cancelado por decisão do IBAMA, que constatou falhas
no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)
(Greenpeace Brasil, 2016).
O EIA/RIMA da UHE São Luiz do Tapajós (Figura 18) avaliou o impacto nas
cidades de Itaituba e Trairão e nos seus distritos: Miritituba, São Luiz do Tapajós e
Vila Pimental. O meio socioeconômico identificado, que compreende a região, é
composto por 14 mil pessoas, entre população urbana, rural e povos indígenas (foram
identificadas seis terras e áreas indígenas a menos de 40 km do empreendimento,
predominantemente da etnia Munduruku) (ELETROBRAS, 2014).
Apesar do relatório também ter definido uma Área de Influência Indireta (AII) e
uma Área de Influência Direta (AID), o município de Santarém e demais localidades
não foi considerado por conta da distância (368,6 km separam Santarém de Itaituba),
mas a prefeitura da cidade solicitou em 2016 por meio de uma ação civil que fosse
feito um novo estudo que considerasse os impactos para a localidade e seus arredores
(Belterra, Aveiro e Rurópolis) (Weldon, 2016).
Este fato demonstra, por exemplo, que a discussão sobre desenvolvimento e
futuro da região permeia os atores sociais em situações que a questão se vê em pauta,
até mesmo indiretamente. Já foram realizados, inclusive, articulações e debates
públicos sobre o tema em Santarém, demonstrando a ligação direta da visão desses
atores frente a essa forma de praticar uma política pública.
Outro fato relevante é que não existe nenhuma parte do estudo que aponte para
os impactos generificados, ou seja, que diferenciem as consequências do
empreendimento para homens e mulheres, que compreenda que questões como geração
de emprego, deslocamentos, renda e violência atingem homens e mulheres de formas
diferenciadas. Não são considerados também os impactos na saúde mental e emocional
da população local como depressão, angústia, ansiedade, sofrimento, alcoolismo e
outras já registradas em contextos similares.
Apesar de o relatório ter sido publicado em 2014, já em 2009 foi criado o
Movimento Tapajós Vivo (MTV) com articulação principal nas cidades de Santarém e
Itaituba, enquanto o enfoque nacional e ambientalista ainda tratava de Belo Monte. O
próprio nome é uma alusão ao Movimento Xingu Vivo que se tornou referência da
resistência em Altamira e região.
Ainda que os empreendimentos estejam previstos para serem implantados nas
proximidades de Itaituba, ao analisar as reuniões e eventos promovidos percebese uma
concentração do movimento na cidade de Santarém, o que, mais uma vez, remete à
importância de aproximarse de uma região não abarcada pelos estudos, mas que se
articula e se sente atingida desde fases preliminares de planejamento das obras (ver
Anexo F para imagens de manifestações recentes no Tapajós).
Os movimentos sociais na região possuem uma tradição histórica, como Porto
Gonçalves (2015) destaca nos casos dos atingidos por barragens, movimento que ganha
força a partir dos anos 1970 com a proliferação dos grandes projetos:
As populações se colocam aqui claramente como atingidas, ou seja,
exatamente como aqueles que não foram os destinatários da ação do
132
Arapiuns, para a natureza. Será que ninguém pára pra pensar que
querem vender nossa Floresta? Temos uma relação muito forte com a
terra, com a floresta, com a água. Em nossa terra também estão
nossos ancestrais, nosso mundo espiritual e nossas ervas medicinais.
Só queremos uma terra para sobreviver. (STTR, CNS, CITA, 2018).
Os dois exemplos acima e os citados também no âmbito das hidrelétricas e da
mineração apontam como existe uma forte articulação local de movimentos,
associações e sindicatos, não apenas denunciando práticas ilegais e danosas à natureza,
mas também buscando os mecanismos políticos de manifestação do modo de vida da
região.
Assim como a madeira, a introdução da agropecuária extensiva na Amazônia
causou grandes transformações políticas, sociais e ambientais. Ao contrário da extração
vegetal, a inserção de um modelo econômico baseado principalmente na pecuária
modifica profundamente a região, no que Loureiro (2014) atribui aos seus planejadores
a descoberta de uma “vocação regional autofágica”.
É destacado pela autora que, apesar da criação de gado ter sido sempre presente
de certo modo na região, como é o caso da Ilha do Marajó, onde a pastagem natural é
presente, os planejadores decidiram incentivar a partir de 1976 nos dois Planos de
Desenvolvimento da Amazônia (PDAs) a pecuária na hileia amazônica, região de mata
densa, atribuindo, assim, como às demais atividades citadas, importante papel para a
dita integração da Amazônia.
Justificavam esta opção, segundo ela, “pelo fato de facilitar a penetração em
áreas pioneiras, a pecuária vem se tornando uma das atividades de maior expressão
econômica da região, promovendo a integração da Amazônia com as regiões mais
próximas” (FGV, 1976, p. 124 apud Loureiro, 2014, p.300).
Os estados amazônicos que mais concentram e desenvolveram a pecuária
extensiva são Rondônia e o Pará (neste último, principalmente nas regiões nordeste e
sudeste), reforçando as concentrações das áreas de maior desmatamento como visto
anteriormente.
Como já fora comentado, os índices alarmantes de desmatamento na região não
são ligados apenas à indústria madeireira. Estimase, conforme dados do INPE e
SUDAM (apud Loureiro, 2014, p. 301), que os desmatamentos para a formação de
pastos foram responsáveis entre 60% e 70% da área total desmatada entre as décadas
de 1970 e 1990.
136
Santarém pela BR 163, assim como o fato da Amazônia ser ainda vista como fronteira
da expansão de terras e a possibilidade de escoamento pela construção de portos e
aproveitamento das vias fluviais da região, uma nova tensão se deu com a chegada da
multinacional Cargill já em 1999.
Quatro organizações se aproximaram para denunciar as ações da Cargill que
visava a construção de um porto em Santarém, eram elas: o Grupo de Defesa da
Amazônia (GDA), Centro de Apoio aos Projetos de Ação Comunitária (CEAPAC),
Federação das Associações de Moradores de Santarém (FAMCOS) e a coordenação de
pastoral da diocese de Santarém. Assim, surgiu a Frente em Defesa da Amazônia
(FDA) em 2003, sendo a junção de sindicatos, ONGs, movimentos populares e a Igreja
(Sena, 2014, p. 135).
Apesar das idas e vindas, o porto acabou sendo concluído, mas a experiência da
aproximação de forças contra uma ameaça comum ficou como fruto do momento mas,
apesar da demonstração de força em diversos momentos da disputa, acabou por perder
expressão na sociedade.
Em maio de 2018 foi realizado um seminário com o tema dos 20 anos da
introdução da soja na região de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos em 1997 (G1
Santarém, 2018). A reportagem do G1 destaca a fala do professor Dr. Márcio
Benassuly Barros, que faz um resumo do balanço dos 20 anos da soja na região:
diferentes lentes, sendo uma delas o próprio sistemamundo moderno e a aliança das
elites nacionais com o capital internacional (Wallerstein, 2004).
O processo de epidermização, como bem colocado por Fanon (2008) e as
diferentes expressões da modernidade/colonialidade (Lugones, 2014; Quijano, 2005;
MaldonadoTorres, 2007), apontam para uma reprodução interna desses parâmetros de
relações sociais.
Para os que, em menor ou maior escala, são beneficiados por esse projeto de
nação, aos que conseguem se inserir na lógica de uma sociedade moderna ocidental
pode parecer impossível outro futuro que não o desenvolvimento nesses moldes.
Entretanto, a realidade do diaadia tem sido e continua sendo a maior
desestabilizadora dessas premissas. É na demanda das necessidades reais e subjetivas,
assim como na frustração com um sistema que se baseia na promessa de ascensão e
felicidade por meio da materialidade, mas que se mostra limitado quando as fissuras do
sistema se tornam mais visíveis.
Desta forma, a “fé global” de desenvolvimento se encontrará desafiada
enquanto houver quem não se identifique com esses parâmetros e muito menos tenha
um “sonho de modernização/desenvolvimento”, assim como para aqueles que até
chegam a sonhar, mas que a própria estrutura inviabiliza que o alcancem.
Não obstante, temse observado as subjetividades em torno da lógica
moderna/colonial serem produzidas de forma difusa, não apenas sendo divididas entre
pessoas que reproduzem e se identificam com esses valores e conseguem atendêlos e
os que completamente os rejeitam. O que se propõe aqui é pensar a partir dos projetos
de vidas de mulheres no Tapajós – como essas teias de pertencimento, de
subjetividade, de contraste com um projeto nacional se relacionam e tensionam suas
vidas. E, para tanto, considerase imprescindível compreender o cenário social,
histórico e econômico local aqui descrito. Não significa dizer que as entrevistadas
estão diretamente inseridas em todos os movimentos ou dinâmicas discutidas, mas que
as relações no lugar se desenvolvem neste contexto macro.
Assim, conhecendose mais sobre a história do Tapajós, as faces do
desenvolvimentismo na região, suas conexões à modernidade/colonialidade pela ideia
de projeto de nação assim como o igualmente histórico processo de articulação e
resistência a estas forças, prepararamme para retornar em julho de 2018, para um
período de 15 dias de viagem, onde já tinha como intenção realizar algumas entrevistas
semiestruturadas com quem havia conhecido nas idas anteriores.
141
Por mais de uma hora, minha mãe, Nice e eu conversamos no redário23 de sua
casa sobre suas perspectivas para o futuro e sua vida morando em Jamaraquá, no dia 11
de julho de 2018. Além das nossas vozes, um silêncio que não é silêncio vem da
floresta que nos rodeia, de diversos animais que desconheço e que Nice
ocasionalmente identifica e compartilha conosco. Já é a minha segunda vez dormindo
no redário e apesar da minha mãe ter crescido e passado sua infância dormindo em
condições similares, ela está mais assustada que eu. Nesse dia, Nice resolve nos fazer
companhia e realizamos a primeira entrevista oficialmente, que se junta a tantas outras
conversas cotidianas, mas que possibilita um pensar e refletir mais profundo.
No momento do retorno, eu já havia conhecido a maioria das pessoas que
entrevistaria e ainda no primeiro contato havia informado sobre a tese e o tema que eu
estava estudando, deixando em aberto o convite para quando eu retornasse, caso
alguém se interessasse, pudesse compartilhar seu ponto de vista.
Na preparação précampo, a partir das revisões bibliográficas e das anteriores
experiências em campo, eu defini quatro eixos que guiaram as conversas, seguindo
uma lógica entre a realidade presente, os valores em questão, os projetos de vida, os
impactos das políticas de desenvolvimento e, por fim, as expectativas entre o que a
entrevistada pensa sobre como será o futuro e o que deseja para o mesmo.
O retorno ao Jamaraquá e à casa de Nice foi de reencontro, com direito a
abraços apertados e mapará frito me esperando para o almoço. E um ano após nos
conhecermos algumas dinâmicas já haviam mudado na família. Nice agora estava
trabalhando menos como guia e na recepção dos turistas, atribuição assumida pelas
suas filhas Priscila e Aline. Nice começou a trabalhar na escola do Maguari, que em
julho estava de férias e por isso pôde nos receber.
A nova dinâmica fizera, inclusive, com que Aline mudasse a sua relação com o
artesanato, pois o lucro das vendas é mais individualizado; ela percebeu que o tempo
investido no mesmo dava mais retorno que os passeios, por exemplo. Por terem
alcançado certa estabilidade financeira e tendo suas filhas e filhos mais participativos
na renda da família, Nice começou a fazer novos planos para o seu futuro, como
23
Acomodação da casa de Nice reservada para os hóspedes que fica no seu quintal, com espaço para que
os visitantes armem suas redes para dormirem.
142
começar a graduação de História e Geografia (que uma faculdade privada oferece aos
domingos na comunidade).
Apesar de já ter conversado com Nice informalmente diversas vezes sobre sua
visão, sua vida e seus projetos de vida, o momento da entrevista trouxe elementos mais
profundos para a compreensão da sua realidade.
Sobre como é viver em Jamaraquá, na Flona: ela aponta que é bom, mas o mais
precário ainda é o acesso à saúde.
Assim, né. Pra mim viver aqui, eu acho bom, né… Agora assim, que
ainda tem a precariedade sobre o posto de saúde, que nós não temos
próximo, para chegar nele tem que andar quilômetros, aí vai pra
beira do rio, que é Aramamaí, depois do Aramamaí, que eles vão
encaminhar para a emergência do hospital. Não pode ir direto pro
hospital, se chegar primeiro no hospital, eles mandam de volta pro
posto. Então isso é uma situação, assim, que nós enfrenta
dificuldades, nós não tem mais acesso a transferência do hospital de
Belterra pra Santarém. (...) Antes tinha hoje não tem, se tiver de
morrer, vai morrer aí mesmo. Então isso é a dificuldades que nós
temos; então uma das coisas que é mais difícil ainda é a estrada, que
não oferece um bom acesso, né. Se a gente chegar de moto ou de
carro. Então... é difícil. Não dão ambulância pra vir buscar o
paciente também, todo o tempo não tem óleo diesel, não tem
gasolina, não tem quem venha. Ou outra vez a gente liga, eles dizem
que estão vindo, a gente espera, se for o dia é o dia, se for a noite é a
noite e essa ambulância não chega, não sei pra onde ela vai… (Nice,
entrevista realizada em Jamaraquá, 11/07/2018)
Nice destaca sempre como sentia falta de suas plantas e a tristeza que sentiu ao
retornar e ver que muitas tinham morrido, também aponta como fator crucial para o
retorno a segurança de moradia, já que possuía uma casa que era sua. Além disso, a
pressão dos filhos contribuiu para a decisão na época, os mais velhos estavam na idade
143
da préadolescência e os mais novos eram crianças. Conversando outro dia com um dos
filhos mais novos durante uma trilha sobre o tempo que a família viveu no Amapá ele
reclamou que não podiam sair de casa, que era muito tédio e não tinham nada para
fazer e que, o pior de tudo foi, quando um dia eles estavam indo passear eufóricos para
tomar banho no rio, coisa de que sentiam muitas saudades, depararamse com a água
“só lama!”, em referência a água barrenta típica do rio Amazonas.
Sobre a influência dos filhos para o retorno ela aponta:
E aqui já criei os meus filhos, já tão dando um jeito na vida deles e
os outros ainda não tão criados, até mesmo ainda tão na [...] deles,
mas assim, né, eu acho que eles não pretendem sair daqui, porque eu
levei eles e quem fez eu voltar foram eles mesmos, porque ele
chorava, essa daqui [Aline] chorava pra vir embora, o outro
também. E aí então, porque eu acho que aqui eles têm uma liberdade
muito maior pra eles estarem brincando, estarem se divertindo, né.
Trabalhando nas coisas deles… E aí uma das coisas é o turismo, que
hoje tá desenvolvendo o jovem, as famílias que não tinham uma
renda assim hoje todo mundo ganha um pouco.
Assim, não apenas fatores que eles sentiam falta da vida na Flona, mas também
ela destaca as oportunidades que se mostraram mais frutíferas na comunidade, como o
turismo, do que na cidade onde estavam à procura de emprego para melhorar a vida da
família, mas que além dos pontos negativos já destacados por ela, ainda era mais
custoso e instável.
O que Nice traz para a nossa conversa me faz pensar muito sobre os parâmetros
de mensuração e avaliação de desenvolvimento, como índices que citei em uma seção
anterior, o IDH e o IPS. Assim, pude perceber um interessante diálogo com a obra do
economista Manfred MaxNeef, o sociólogo Antonio Elizalde e o filósofo Martín
Hopenhayn (2010) a qual busca ir além da crítica ao desenvolvimento, mas retrabalhá
lo, invertendo a visão do Estado para os sujeitos, colocando as pessoas como o centro
do debate, a partir das suas necessidades.
O mote da obra é justamente que “el desarrollo se refiere a las personas y no a
los objetos” (MaxNeef, Elizalde, Hopenhayn, 2010, p. 16), assim, os autores buscam
propor parâmetros de reflexão prática para um debate mais humano do
desenvolvimento (uma abordagem para além do viés estatocêntrico e economicista), da
qualidade de vida e do bemestar das pessoas não pelo que se idealiza para elas, mas do
que elas próprias almejam para si, inseridas em determinado contexto sociocultural.
Eles propõem que as necessidades são de ordem existencial, ser, ter, fazer e
estar, e axiológicas como a subsistência, proteção/segurança, afeto, compreensão,
144
Ela comenta que a associação dos moradores dispõe de oito canoas, que são
compartilhadas para os passeios, mas que pela alta demanda já não é o suficiente,
demonstrando a necessidade também de cada família ter as suas próprias ferramentas
de trabalho, já que acontecem casos de perderem um passeio por não ter canoa
disponível.
Na questão de infraestrutura ela cita que apesar da energia elétrica ter chegado
em 2008, o serviço ainda é precário: um preço muito elevado, para um baixo consumo,
além da instabilidade do fornecimento, passando até quatro dias sem energia, que seria
muito importante para ela que isso melhorasse.
Quando comentamos sobre a dificuldade logística e a dependência de ter que ir
a Belterra ou Santarém para resolver problemas burocráticos e outros, ela comenta que
146
Tal motivo dialogava assim com o fato de que quando moravam no Amapá ela
não trabalhava, não possuindo a autonomia financeira anterior à qual já estava
habituada; assim, em Jamaraquá ela diz que: trabalhava fazendo meu artesanato, fazia
tudo o que vendia… E tinha meu dinheiro.
A venda do artesanato começou em 1999. Segundo Nice o turismo ainda
demorou um tempo para começar, mas também na época eles faziam o roçado como
forma de complementar e garantir a subsistência. O artesanato, ela comenta, que
começa nas comunidades após oficinas de capacitação feitas por ONGs que vieram da
Europa e em que as mulheres ensinaram para outras mulheres da comunidade como
aproveitar as sementes naturais e a fazer artesanato de bijuterias e acessórios.
Assim, o artesanato já começa com um processo de incentivo e lida como uma
habilidade/trabalho tipicamente feminina, ainda que, atualmente, homens também
façam artesanato e participem de diversas etapas desse processo. Ela não recorda o
nome das instituições que fizeram a capacitação, mas na entrada de Jamaraquá existe
uma placa que identifica a comunidade e conta a lista de parceiros como o USAID e o
US Forest Service. Outras capacitações foram feitas também no SEBRAE em Belém
depois de um tempo.
Como começamos a tratar de atividades que são mais exercidas pelas mulheres,
levando até mesmo à formação de uma associação das mulheres artesãs, pergunto um
147
que ela considera importante para manter a história da comunidade viva e, também,
melhorar a sua capacitação para os serviços de guia.
Quando comentamos sobre algumas políticas de crescimento e
desenvolvimento voltadas para a região como as estradas, hidrelétricas e outras
presentes no PAC, pergunto se ela sente que seu modo de vida é representado por esses
projetos e ela diz que não, porque o fluxo de chegada de muitas pessoas impacta
profundamente no modo de vida das comunidades, principalmente pela entrada de
drogas, o novo hábito de festas e bebidas, causando impacto inclusive ambiental; logo,
são políticas que projetam sobre eles mais impactos do que benefícios.
Ela aponta que, apesar da articulação da comunidade sobre suas demandas para
os políticos, há pouco retorno, já que seus habitantes só são lembrados em época de
eleição. E, por conta disso, os projetos que eles necessitam com mais urgência acabam
sendo resolvidos por eles próprios em aproximação às vezes com as outras
comunidades da Flona. Sobre o futuro, ela espera que melhore a qualidade de vida para
todos os moradores, que o trabalho possa trazer frutos e mais conforto.
Figura 19 – Nice (à esquerda) e Ana Lúcia, minha mãe (à direita).
cidade? Claro que não, né? Eles vão ficar na cidade deles mesmo…
(Priscila, entrevista realizada em 12 de julho de 2018 em Jamaraquá).
Figura 20 – Priscila
Ela reforça os seus planos de se formar em pedagogia, para ter a opção (caso o
cenário mude) e ela possa ter outra fonte de renda, dando aula em escola na própria
151
Flona. Quando pergunto se já houve algum sonho que ela não conseguiu realizar e o
porquê, ela conta que já quis muito ser engenheira florestal, mas que não há condições
no contexto em que ela vive, tanto por falta da disponibilidade de cursos na
proximidade, pelo custo e também a concorrência e preparo para fazer uma faculdade:
Eu me sentia assim: será se eu sou capaz? Já que ninguém aqui foi capaz de ir até lá.
Aí, será se eu sou capaz? Aí eu fiquei nessa dúvida…
Priscila fala de quando via os engenheiros que trabalham para o ICMBio
fazendo um trabalho que era muito próximo do conhecimento que ela adquiriu com a
mãe e com o pai sobre a floresta, como eles eram sempre homens altos e muito
brancos, que nem mesmo eram da região, costumavam vir de São Paulo ou outros
lugares. Ela disse que vendo o trabalho deles percebeu como era possível viver de
conhecer a floresta, mas como era uma realidade distante da sua poder estar naquele
lugar um dia.
O relato de Priscila me fez pensar muito sobre como aquilo que desejamos e
somos incentivados a desejar na sociedade moderna ocidental carrega consigo
condições limitantes e frustrantes, como até mesmo aquilo que desejamos ou
decidimos alcançar é antes de se materializar interpelado por diversos fatores que
possam indicar ser um sonho possível ou não. O quanto alguns sonhos podem ser
sentidos quase como uma vergonha, como uma ousadia utópica a própria possibilidade
de imaginálos.
Pensei muito também sobre a colonialidade do saber nesse contexto, o quanto o
serviço feito ali por engenheiros e outros profissionais que passaram por um processo
de educação formal e atravessaram etapas burocráticas de seleção, no fim, só é possível
de ser realizado quando aliados aos conhecimentos locais, o quanto os próprios
moradores das comunidades auxiliam e possibilitam o trabalho do ICMBio ao
compartilharem o conhecimento acumulado por gerações na vida vivida ali, ao mesmo
tempo que a colonialidade do saber inferioriza tal forma de conhecimento a ponto de
poder produzir uma sensação de incapacidade intelectual quando não regularizada e
validada pela educação formal.
Não digo aqui que a educação formal é dispensável ou não importante, mas
como as estruturas sociais operam nesse processo e os impactos para autoestima, assim
como os modos de vida de povos que possuem conhecimentos e saberes legítimos e
indispensáveis, mas que gradativamente vão sendo perdidos e desvalorizados. Ainda
que em algumas situações descritas por Nice, como pesquisadores, professores e
152
estudantes que vão para a Flona realizar pesquisas, mas que basicamente apropriamse
dos conhecimentos que os moradores compartilham sem nenhum tipo de retorno ou
reconhecimento.
Retomando a fala de Nice, é por isso que ela se interessa em estudar História e
Geografia, para que ela própria possa contribuir com o que já sabe, legitimando e
ampliando sua compreensão do contexto da região em que vive.
Sobre como vai ser o futuro, Priscila se pergunta se ainda vai ser seguro deixar
a casa aberta com tantas pessoas chegando para morar na Flona. Ainda que para
pessoas de fora morarem lá apenas com o casamento de alguém que tenha nascido na
Flona, mas ainda assim temse notado um aumento dos casamentos e pessoas de fora
indo para lá em busca de uma renda e oportunidade de sobrevivência, com a chegada
do turismo.
Quando comento sobre as políticas de crescimento e desenvolvimento voltadas
para a região, Priscila diz que são mais frequentes em promessas políticas que não se
cumprem, mas o seu impacto se percebe, por exemplo, logo na entrada da Flona; ela
analisa:
Os visitantes chegam lá na entrada e veem logo um desmatamento
grande. Qual é o olhar que ele vai ter? Poxa, logo aqui… Entrada da
Flona e um desmatamento grande. Como não é mais pra dentro se a
entrada é assim, imagine lá pra dentro?
alguns lugares como amostra grátis da Terra”. O argumento de Krenak reforça como as
políticas que até mesmo usam de uma narrativa de “proteção” não respeitam e pouco
entendem sobre como a vida na Terra funciona, como se fosse possível isolar os efeitos
de uma prática ou atividade a um determinado território ou até mesmo como se a
criação de uma pequena área que representasse uma “amostra grátis” compensasse a
destruição de outras vidas.
Neste sentido, podemos frisar também a necessidade da participação (Max
Neef, Elizalde, Hopenhayn, 2010) que significa fazer parte das decisões que moldam a
própria vida, enquanto a liberdade também envolve controlar o próprio destino, sendo
duas necessidades diretamente relacionadas à organização social e política em torno do
modelo de EstadoNação moderno, pensando a partir de tais parâmetros, a democracia
e o sistema político aparentam ainda mais distantes de serem ferramentas eficientes
atualmente.
Priscila diz que não pensa também em ter mais filhos, porque considera que
para ter filho é preciso conseguir garantir um futuro para eles e que já se preocupa com
o do seu bebê, o que percebemos atravessar diversas necessidades (subsistência,
segurança, participação, liberdade) e a sensação de falta de controle e poder sobre elas.
Sobre como futuro vai ser, ela acha que algumas coisas devem melhorar e
outras devem piorar. E algo que ela pensa muito é sobre a água, se haverá ainda água
para seus netos e bisnetos. Priscila cita conversas com seu marido sobre o assunto, de
como, por diversas formas a água pode não estar mais lá no futuro, seja se tornando
imprópria para beber ou tomar banho ou, até mesmo, o rio secando por conta da
destruição.
No quesito do que deve melhorar com o tempo, ela imagina que isto pode
ocorrer com as oportunidades de trabalho. Mas o principal, ela reforça no final, que
para ela é o mais importante é que: Eu sou feliz aqui, não me imagino em outro lugar.
Aqui meu filho tem espaço e lugar pra brincar, se fosse na cidade era só dentro de
casa, não ia ter oportunidade de correr, de se sujar.
A fala de Priscila remonta a preocupações referentes principalmente a
dinâmicas do presente, sobre como ela vive atualmente e se será possível continuar
esse tipo de vida, que ela considera boa, se será preciso se adaptar ou não, se a natureza
continuará a mesma ou se os efeitos das políticas para a região irão acabar com a
floresta e o rio.
154
Figura 21 – Priscila jogando bola com sua sobrinha e seu filho em um fim de tarde em Jamaraquá
Após passar alguns dias na casa de Nice, conhecendo mais sobre a comunidade
e a natureza na Flona, como o lago do Caranã, onde não se pode pescar por proibição
da Mãe D’Água, conhecer o igapó de canoa à noite com o céu estrelado e muita
adrenalina, assim como muitas conversas, cafés e tapiocas, compartilhando histórias,
semelhanças e diferenças, seguimos para Santarém ao pegarmos o ônibus da
comunidade que passa às 5 horas da manhã.
Chegamos cedo ainda em Santarém, por volta das 8 horas e antes de seguir para
o porto, aproveitei para pagar algumas contas que Nice havia me pedido, para evitar
que ela tivesse que se deslocar até Belterra para fazer o pagamento.
Antes de embarcar tento contato com Dona Elzanira e Seu Colau, mas não
consigo por conta da instabilidade do sinal de celular na comunidade, assim, só sendo
possível confirmar um lugar para dormir em uma das pousadas dos donos “paulistas”.
É a primeira vez que volto para a Coroca e na companhia de minha mãe sigo as
instruções que Cris me deu, que eu me lembrava da primeira viagem. O barco demorou
a sair por conta de uma chuva; só conseguimos sair por volta do meiodia. Quando nos
distanciamos de Santarém, Seu Viviano, um senhor de 80 anos que mora na
comunidade do Mentai, no Arapiuns, comenta para mim e para minha mãe que vamos
pegar maresia e que o comandante não deveria ter saído àquela hora.
155
Alguns filhos de Dona Silvana moram em Santarém, sua cunhada mais nova,
Enilde, é professora e passa as férias na comunidade e um filho seu também mora na
cidade; era a primeira vez que a sua filha pequena conhecia sua comunidade de origem.
Após me apresentar e tocar no assunto da pesquisa recomendamme entrevistar
a presidente da Associação de Trançados do Arapiuns: Luzinete (Luza). Com muita
disposição da parte de Luza, conversamos sobre os mesmos temas abordados nas
entrevistas com Nice e Priscila.
Luza não nasceu na Coroca, mas se mudou ainda jovem ao se casar com um
filho da comunidade e a sua relação com o lugar é de profundo pertencimento. Agora,
com 45 anos, tem 8 filhos, é casada, artesã e presidente da ATA. Ela cresceu em
Santarém, e por essa experiência ela relata não sentir saudades e diz que não pensa em
voltar:
Gosto muito [de viver na Coroca]. Não nasci aqui, como te falei, né,
nasci do outro lado, lá é banhado pelo rio Amazonas, não é dessa
cor aqui [do Arapiuns]. Nem gostaria de falar em ir pra cidade. fui
criada em Santarém, morei muito tempo lá, mas não tenho saudade
pra voltar. O barulho, o calor por causa do asfalto, correria,
preocupação, risco de assalto. Em todo lugar a gente corre um risco,
na cidade facilita alguma coisa e aqui já não facilita, né. Educação,
saúde, é muito melhor lá. Se eu morasse lá, meus filhos teriam
muitas oportunidades, né. Mas por outro lado, tem o lado bom que
os filhos da gente podem ir pro lado do bem, mas tem também o lado
das drogas, o lado das bebidas. Mas eu tenho filho que mora em
Santarém, minha filha também foi morar lá e voltou, porque não
conseguiu passar numa faculdade e agora meu outro filho tá fazendo
o terceiro ano também. (Luza, entrevista realizada em 14 de julho de
2018 na Coroca, Arapiuns).
vai ter como pescar, não vai ter como pegar uma fruta, nem como
emprestar, porque nas cidades você não tem um…, você tem um
vizinho porque você mora perto de alguém, mas você não convive ali
né. E dentro da comunidade
comunidade tem tudo isso, se eu não tenho alguma
coisa, mas meu vizinho tem, eu posso emprestar ou ele pode me dar,
então tem todas essas diferenças. Por isso gosto muito da Coroca,
defendo a Coroca e tô defendendo a Coroca! (risos)
Figura 22
2 – Luza abrindo a lojinha da ATA.
Percebese
se o contraste na fala de Luza, justamente sobre o que ela aponta como
prioridade para viver bem: ter outros meios de sobrevivência que não necessariamente
ligados ao dinheiro, terr relações
relações de comunidade e confiança, segurança e tranquilidade,
clima mais agradável.
Assim como nas falas de Nice, Luza traz referências ao que se aborda pelas
necessidades à escala humana, o que percebemos também que dialoga com o proposto
pelo Bem Viver, ou seja, “essencialmente, um processo proveniente da matriz
comunitária de povos que vivem em harmonia com a natureza” (Acosta, 2016).
Temse,
se, assim, uma ponte entre o que é apontado pela noção de
desenvolvimento à escala humana e a discussão do bem viver
iver em torno de seus valores
e experiências e práticas demonstram a capacidade para se enfrentar a modernidade
colonial (id.), ou seja, como apesar da lógica dominante e que deslegit
deslegitimou outras
epistemologias e formas de relações, estas não desapareceram, mas existem em outros
formatos.
159
Às vezes é até difícil dizer que a gente não espera um futuro muito
bom, mas eu espero que a gente vença, que a gente consiga derrubar
todas essas, por exemplo, tipo a Alcoa; estamos numa grande luta
para que ela não possa entrar dentro do PAE Lago Grande; então,
se ela não entrar, vai ser muito bom pra gente, pro futuro porque a
gente não vai ter a consequência de ter rio contaminado, né, de ter
as famílias sendo deslocadas de suas comunidades, de ter que deixar
sua tradição pra viver uma outra vida; então o que a gente quer é
que continue e melhore, mas que melhore assim, a gente lutando, que
melhore até as florestas, que as famílias possam exercer esse papel
de não desmatar, reflorestar cada vez mais, preservar o que ainda
tem.
Ela acrescenta também que a vida agora é melhor do que era antes,
principalmente porque quando ela chegou à comunidade havia muito trabalho de roça
que deixou muitas sequelas na sua saúde, que apesar de ser um trabalho bom, por ser
muito desvalorizado ela não considera que compense. Hoje em dia ela precisa evitar o
sol por ter muitas dores de cabeça, sua coluna, as mãos e a vista também foram muito
prejudicadas, o que dificulta até mesmo que ela continue fazendo os trançados de
palha, que ela gosta muito de fazer.
Ela ponta o turismo comunitário como outro fator de melhoria, contanto que se
mantenha ainda sob controle da comunidade, mas que a valorização da natureza local e
dos artesanatos contribuem muito para a melhoria da comunidade. Outro elemento que
ela destaca que melhorou foi o acesso ao poder público por meio de audiências, que já
ocorrem nas próprias comunidades e não só em Santarém.
Figura 23 – Comunidade de Coroca
Um elemento interessante percebido nas três entrevistas até então foi que na
primeira questão, sobre como é viver no lugar, tanto Nice quanto Priscila e Luza logo
após afirmarem que é bom, traçaram argumentações sempre em oposição à experiência
da vida nas cidades. As três também tiveram experiências de saída e retorno, adotando
uma postura de não considerar ou desejar sair novamente no futuro.
É comum também nas falas a associação da cidade e o acesso a serviços básicos
(principalmente saúde), mas os pontos a favor da vida no local são a própria qualidade
de vida e o bem viver, como liberdade, solidariedade, segurança e o pertencimento às
comunidades.
No caso da fala de Luza, no contexto da Coroca, percebemse outras tensões
diferentes das vividas em Jamaraquá por Priscila e Nice. Podese identificar que a
categoria de unidade de conservação da Flona favorece uma maior segurança em
relação à questão territorial, ainda que Priscila tenha demonstrado uma preocupação
com a chegada de novas pessoas de fora (pelo casamento com moradores das
comunidades), ela projeta para um futuro mais distante esse impacto, enquanto Luza
apresenta um quadro imediato de tensão já em andamento e que esbarra em
dificuldades políticas.
Mesmo havendo a restrição da aquisição de terras no caso do projeto de
assentamento agroextrativista e a aproximação da Alcoa sem autorização, os dois
fenômenos continuam a ocorrer e tensionar os projetos de vida da população local. Em
seções anteriores, citei o desfecho da reunião com o Ministério Público do Estado do
Pará, que lançou uma nota condenando as investidas da Alcoa, em 27 de julho de 2018.
Outra observação possível foi sobre a importância dos laços comunitários não
apenas nas conversas formais com Nice, Priscila e Luza, mas também como entre as
duas comunidades havia um processo diferente de interrelação. Enquanto em
Jamaraquá alguns anos após o início das atividades de turismo de base comunitária
Nice destaca o surgimento de diferenças nítidas entre as famílias, os que têm mais
dinheiro, mais ferramentas de trabalho e os que tinham menos, ainda que o formato da
associação garanta que todas as famílias sejam igualmente recompensadas pelos
trabalhos de guia, a diferença e a desigualdade são fatores novos.
Nice comenta como a partir dos momentos que alguns passam a ter mais coisas
que os demais, o que ela atribui a uma atitude de planejamento e investimento, a
desconfiança entre as famílias começou a existir, enfraquecendo os laços comunitários.
163
Contudo, não existem de forma muito explícita pelo menos ameaças diretas à
comunidade, o que poderia ser um fator que contribui para esse fortalecimento.
Enquanto isso, nesse momento, na Coroca, a atividade do turismo por estar
ainda com menor fluxo e por estar localizada em um território com menos segurança
jurídica em comparação à Flona e com mais e diversas ameaças diretas, percebese
ainda um alto grau de solidariedade e proximidade comunitária. Estes e outros
elementos tiveram desenrolamentos posteriores em outras visitas.
Enfim, no dia 15 de julho retornamos ao porto de Santarém no barco da
associação da Coroca, com laços estabelecidos com a comunidade e muitas amizades
feitas, retornaria no final do ano tanto à Jamaraquá quanto à Coroca, em poucos meses,
acontecimentos do cenário nacional impactaram profundamente as dinâmicas na
região.
164
Após o retorno para AlterdoChão foi possível marcar uma conversa com
Layse (Lalah), de 31 anos, indígena Borari, que também tem ascendência africana,
sendo parte de sua família originária de um quilombo. Ela nasceu em Alter e nos
últimos anos têm sido referência na articulação de movimentos sociais na região do
Tapajós, como o Movimento Tapajós Vivo.
Ela atua muito na defesa das questões indígenas e além de trabalhar como guia,
a partir de suas visitas a diversas comunidades indígenas, tem um ponto de vendas de
artesanatos e outros produtos. Ela reforça que toda vez que traz os itens feitos pelas
comunidades é comum que eles digam para ela que não querem que as pessoas
comprem o artesanato apenas por acharem bonito ou estético, mas que a Lalah sempre
fale deles, que eles existem, que por meio das suas artes as pessoas conheçam a sua
história e sua luta. É um pedaço de suas culturas.
Enquanto andamos pelas ruas de Alter acompanho Lalah que vai ao encontro de
um amigo WaiWai para repassar um dinheiro de vendas feitas na lojinha; no percurso,
ela comenta comigo sobre como considera tardio o seu processo de tomada de
consciência de viver na Amazônia além de sua identidade indígena e de origem
africana, por terem sido elementos que ela relata que se tenta muito apagar na região.
Então, é... [pausa] Pra mim, eu tava até falando com esse grupo que
passou por aqui, tava conversando com eles totalmente sobre isso,
165
O que é relatado por Lalah é um processo comum vivido por muitas pessoas na
Amazônia, pelo qual eu também passei. Mesmo viver na Amazônia enquanto território
definido não necessariamente constrói uma relação de pertencimento. O próprio nome
remete muitas vezes a um lugarespaço definido de fora, que abarca muitos povos e
culturas, os quais podem ter relações de pertencimento com diferentes ideias de
Amazônia, muitas vezes sendo a identidade com uma localidade específica ou um rio.
PortoGonçalves (2015) sintetiza que as imagens construídas sobre a Amazônia
durante a sua história envolvem: a invenção enquanto espaço homogêneo
166
Ela aponta como o próprio sistema educacional foi um fator que dificultou esse
conhecimento sobre si e o lugar onde vivia, já que o conteúdo não dialogava com a
realidade local, mas intensificava outras referências, enquanto ela começou a conversar
com pessoas e perceber que pesquisadores de outros países sabiam às vezes até mais do
que ela e outras pessoas daqui sobre a região.
167
A sua atenção começou a ser chamada para entender e conhecer mais sobre a
Amazônia, sobre o que se fala e se produz sobre a região e mesmo encontrando muitas
referências de pessoas da Europa e outros países, ela buscou também referências dos
povos no contexto précolonial. Tal dinâmica demonstra mais uma vez como opera a
colonialidade em relação ao saber, ao poder e ao ser, de forma que as subjetividades
são produzidas.
E o que me incomodava era isso de ter nascido aqui e não ter
conhecido, não saber muita coisa que as pessoas perguntavam, foi aí
que eu comecei a estudar, principalmente a questão da população,
porque me incomodava muito a fala das pessoas que vinham pra cá,
pra dizer que isso aqui era só mato, me incomodava não que fosse só
mato, sim, porque o mato... [pausa] Incomodava dizerem que aqui
tava protegido e não tava, tinha uma população, tem várias
populações sofrendo muito, e essa invisibilidade me incomoda
muito... [pausa] Comecei a olhar um pouco das rotas que os antigos
faziam, entre Peru, costa brasileira, entrando aqui na Amazônia e eu
vi que vazio demográfico isso aqui nunca foi e eu sempre aprendi
que foi, tanto é que a floresta em si ela toda é fruto de manejo desses
povos, eu acredito muito nisso e tem pesquisas já provando... Pra
mim foi um choque.
Em sua fala, Lalah destaca o incômodo que ela sentiu quando começou a se
aprofundar mais sobre a região em falas que reproduziam falácias como o vazio
demográfico e desconsideravam as diversas etnias, tomandoas de forma homogênea,
ignorando os próprios conflitos que existiam antes da colonização:
Como era muita gente, existia sempre confrontos entre si, até por
questões territoriais mesmo, que é a visão que as mulheres tão tendo
agora, por exemplo antigamente se confrontavam povos entre si por
questões territoriais, defender o que é seu e hoje em dia as mulheres
tem essa sacada de que a luta é pelo território, porque não tem mais
sentido tu sentar pra falar de educação, saúde, projeto, senão tem
um lugar, então tem que se tratar do território primeiro, se o
território tá seguro, tá bem marcado... Aí sim dá pra discutir outras
coisas com mais clareza, mas hoje em dia, nós mulheres, a gente
discute muito território, tendo esse território em pauta, a gente
consegue ter uma certeza que a nossa continuidade, né, os filhos, vão
ter um lugar pra morar, aí é pra eles...
A relação com o território é ponto central, destacado por ela para pensar
qualquer outro tema na luta dos povos indígenas na contemporaneidade, por ser o
básico e ainda inseguro para muitos, constantemente ameaçado; só se faz possível
pensar em um futuro e outros temas tendose um lugar como referência, como
segurança e garantia para a continuidade da existência de um povo.
Por enquanto, ela não pensa em se mudar de AlterdoChão uma possibilidade
para ela talvez seja para fazer mestrado em Brasília , por estar envolvida com o
168
A reflexão que Lalah faz possibilita que pensemos como essa relação complexa
do imaginário de desenvolvimento construído e desejado pelas pessoas como forma de
realização é pensada de fora, para uma demanda sempre de fora e nunca de dentro,
sendo projetos importados de outras realidades, outros países e de cima para baixo,
nunca começando pelas necessidades reais ou pelo diálogo com as populações locais.
Ao mesmo tempo pode ser complexo impor ou tentar impedir que as pessoas sejam
livres para almejar tais visões, mesmo que se discorde disso ou que venha de um
processo de reprodução de colonialidades.
Sobre o tema é possível destacar também o que já havia citado brevemente em
seções anteriores – o fato de muitas pessoas apoiarem políticas que, na prática, podem
atingilas e limitar seu modo de vida. Lalah comenta, por exemplo, como é preciso
cautela para tratar de temas que envolvem um povo, uma comunidade, já que os
posicionamentos não são homogêneos, que uma pessoa apenas não representa um povo
todo, mas às vezes está em busca apenas dos seus interesses individuais.
Lá na comunidade São Luís do Tapajós, que tava previsto a maior
[hidrelétrica] que Belo Monte, isso foi no médio Tapajós, nós fomos
pra lá, nós, povos de Santarém, várias pessoas reunidas fomos de
caravana pra lá e a comunidade toda tava a favor da barragem…
Porque tinham primo, tio, irmã que tavam trabalhando pras
pesquisas e ganhando uma grana, porque tavam levando os
pesquisadores pra dentro da reserva, pra dentro da terra indígena,
fazendo o levantamento do EIA-RIMA e essas pesquisas, como ela foi
feita na base do cronograma muito acelerado, eles pegaram a
comunidade lá pra trabalhar, então eles entendiam que aquilo ali
era uma fonte de renda pra eles.
170
O que Lalah argumenta é um ponto que ainda inicialmente nos meus estudos,
em 2016, despertavame interesse, entender de que forma as visões podem variar sobre
um determinado assunto ou política, ainda que por vezes pudesse ir de encontro com
valores mais básicos, mesmo que isso não fosse perceptível a curto prazo.
No caso que ela discute, as diferentes formas de se relacionar com o caso em
questão e o atrelamento a uma renda, um trabalho, uma “oportunidade” costumam
fazer com que as pessoas se sintam mais próximas dos interesses daqueles que
propõem a política do que aqueles que a tentam impedir. Isso também:
Porque ao mesmo tempo a relação que um grupo tem com a terra é
diferente da outra, os Munduruku viam a terra deles como cemitério
dos ancestrais deles, não querem tá longe dali, porque se eles saírem
de lá, muita coisa desequilibra do lado espiritual deles e outro povo
tá livre pra dizer "ah, quanto tu quer pelo meu terreno? É tanto? É
tanto, então eu tenho parente na cidade, vamo morar pra lá...", a
relação é outra, tem gente que consegue ser... brasileiro, num
terreno de 10x30, mas o indígena não, tá ligado? A terra tá num
outro nível, é preciso de um território... a história do povo tá ali...
Contudo, o que define de forma mais incisiva é o acesso aos recursos de poder
do aparato estatal, o qual, já analisamos, serve desde o início da colonização aos
interesses e ideologias eurocêntricas e capitalcentristas não apenas do capital
internacional, mas também reproduzido e que beneficia elites nacionais e locais.
Formandose assim um ciclo vicioso, em que o Estado, moldado por estruturas e
instituições modernas/coloniais, por meio de grupos sociais dominantes que
instrumentalizam estas para a propagação dos seus valores e da consolidação da sua
referência de projeto de nação, de forma que a educação, a família, a religião e outras
esferas da vida sejam direcionadas a manteremse reproduzindo tais valores.
Durante nossa conversa Lalah comenta também sobre as especificidades da luta
para as mulheres indígenas, como o território é central para pensar e garantir o básico
para si, para seu povo e seus filhos. Ela aponta que as políticas de desenvolvimento
impactam muito as mulheres em diversas formas e que, apesar de por muito tempo os
homens protagonizarem as lutas e as mulheres ficarem nas aldeias para que os
deslocamentos fossem possíveis, muitas mulheres que ficavam sofriam diretamente as
intervenções e ameaças, violências do governo e também de invasores. Assim,
começou a ganhar cada vez mais visibilidade a articulação das mulheres, participando
mais das caravanas. Não significa dizer que antes as mulheres não participavam dos
processos decisórios, embora em muitos povos a deliberação seja coletiva, envolvendo
inclusive as crianças e adolescentes.
Ademais, Lalah destaca como as políticas fomentam um fluxo muito grande de
trabalhadores, principalmente homens, e tem registrado em Altamira, por exemplo, um
crescimento considerável no número de assassinatos em geral e que as mulheres que
sofrem ainda mais com esses impactos e violências são as que se levantam contra, as
que resistem e são perseguidas e ameaçadas.
Quando falamos sobre o futuro, Lalah responde que apesar de não ter filhos,
tem sobrinhos e é neles que ela pensa e que para que ele possa ser construído e que
haja uma melhoria é preciso trabalhar com as crianças. Ela aponta que ao estar junto
com as mulheres indígenas percebe um discurso muito diferente do feminismo da
universidade, da cidade, da favela, que a própria relação de parentesco talvez
influencie, de modo que ela as vê lutando pelos filhos e compra a luta delas também, já
que todo mundo é parente, é preciso pensar coletivamente.
Notei pela fala de Lalah uma possibilidade de aproximação de abordagem à
proposta que Julieta Paredes, poeta Aymara boliviana, cantora e compositora, escritora,
172
Parte de sua fala demonstra aflição também sobre os empecilhos que ela têm
encontrado pelo seu ativismo, o quanto para algumas pessoas é fácil conversar e
chamar a atenção para alguns assuntos mas que para a maioria é difícil, até mesmo com
familiares, pois nem sempre há abertura para conversar, saber o que outros povos e
comunidades já têm passado para tentar antecipar e resistir, ou até mesmo por não
acreditar ser algo relevante.
As perspectivas de Lalah destoam consideravelmente das demais, não apenas
pela noção de que o lugar não é restrito ao local de vivência, mas a todo o bioma
amazônico, assim como além dele, e pelo seu processo de constante aprendizagem com
diversas etnias, estendese à conexão com o viver bem de todas as comunidades, agora
ameaçadas e em constante luta.
Entretanto, um atravessamento possível entre as quatro falas é demarcado pela
preocupação e relação do futuro com os filhos, as crianças, as próximas gerações e o
lugar, a natureza. Os projetos de vida parecem muito desenhados numa relação de
responsabilidade e construção não só das suas vidas, mas também das suas
comunidades. O que se pode salientar como a forma que as vidas não se dão apenas em
sentido de potencialização de suas vidas individuais enquanto mulheres, mas que a
todo passo reconhecem a sua existência em diálogo com as comunidades.
Outro ponto que está presente nas falas de Nice, Priscila, Luza e Lalah são as
dinâmicas políticas em sentido tanto nacional quanto local, seja em relação às políticas
e ao discurso desenvolvimentista ou sobre as políticas públicas como saúde e
educação, que atravessam os campos de ação e luta abordados por Paredes (2010), que
relacionam o corpo, o espaço, o tempo, o movimento e a memória.
O fim da minha visita à região em julho termina, mas, dessa vez, seja pelos
laços mais fortalecidos e também pelo cenário político do segundo semestre de 2018,
minha interação se intensifica mesmo quando estou em Belém, trocando mensagens
constantes com Cris e Nice, principalmente.
Nice me manda principalmente notícias sobre a família, pergunta quando
voltarei e se vou com meu namorado, a quem ela gostaria de conhecer, se minha mãe
também iria; fazemos planos para uma piracaia, já que me planejo para passar 10 dias
entre o Natal e o início de janeiro, ela também me conta que Aline está grávida e que
esperam por mim no final do ano.
176
madeireiros e garimpos, que impactam a vida das mulheres, dos homens, dos jovens e
das crianças Munduruku” (Carta do III Encontro das Mulheres Munduruku, 2018, s/n).
O documento reafirma que apesar de todos os ataques, continuarão resistindo e
construindo o plano de vida com autonomia, sobre educação própria e bem viver e que
o povo Munduruku não está só na luta, pois conta com outros povos e comunidades
ribeirinhas que sabem seguir o seu próprio caminho.
Com o início das campanhas eleitorais de 2018 e as instabilidades políticas e
econômicas vai ganhando apoio a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL), que até então
fora deputado por quase 30 anos no congresso e com histórico de declarações
polêmicas, racistas, homofóbicas e atribuídas a ideias de extremadireita. O capitão da
reserva também demonstrou, em diversos momentos, ser apoiador da ditadura militar
no país e da prática de tortura, assim como acenou positivamente para a intensificação
da exploração da Amazônia.
Ainda em maio de 2018, como précandidato, Bolsonaro chegou a declarar que
“a “Amazônia não é nossa”, e defendeu a abertura da região para exploração. “Aquilo é
vital para o mundo”, disse. "A Amazônia não é nossa e é com muita tristeza que eu
digo isso, mas é uma realidade e temos como explorar em parcerias essa região”
(Rossi, 2018). Meses depois, ele adapta o discurso para um tom nacionalista de
segurança quando fala de ONGs e povos indígenas, mas da possibilidade de “abrir” a
região para a exploração por empresários dos Estados Unidos.
Outras declarações – enquanto précandidato – deram o tom para a região e de
políticas intrínsecas à mesma ao dizer que “não expropriará terras, nem fará
demarcação de terras indígenas; ele quer o Brasil fora do Acordo de Paris e extinguir o
Ministério do Meio Ambiente” (Fuhrmann, 2018).
As muitas manifestações e passeatas que tomaram as ruas durante o período
reuniam, de um lado, apoiadores do candidato e suas propostas como um caminho para
a retomada do crescimento econômico, o combate a debates considerados progressistas
e nocivos a instituições tradicionais como a família a religião, sob o slogan “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos” e, do outro lado, opositores que, por fim, sob
gritos de “Ele não!”, inicialmente dividiram os votos entre os demais candidatos como
Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (REDE) e outros.
O pleito trouxe à tona diversos conflitos em escalas macro e micropolíticas, o
que apesar de ser um fator comum a períodos como esse, considerase que o momento
foi de polarização e radicalização, marcando a sociedade brasileira profundamente
180
45,19% dos votos válidos), entretanto, olhandose para os municípios é possível notar
uma concentração de votos favoráveis ao agora presidente principalmente no sul e
sudeste do estado, onde há grande presença de atividades ligadas à agropecuária, soja,
mineração e outras, onde as políticas adotadas desde o século XX modificaram mais
profundamente o contexto cultural e econômico, com muitos imigrantes principalmente
das regiões sul e centrooeste, onde Bolsonaro obteve maciço apoio.
Já ao norte do Pará, onde predominaram os votos para o candidato do PT, são
regiões em que este processo se deu de forma menos intensa, como já abordado aqui,
mas que atualmente tem passado por tensões. Entretanto, a vitória de Haddad nessa
parte do estado pode ser também atribuída às populações das cidades menores e em
contexto rural, já que nos maiores municípios o candidato do PSL saiu vitorioso:
Belém (54,93%), Santarém (56,37%), Itaituba (55,70%), Altamira (63,28%), Marabá
(55,91%) (TERPA, 2018).
Em outras cidades menores e próximas ao contexto do estudo aqui
desenvolvido o resultado foi diferente, ficando assim os votos favoráveis ao candidato
eleito nacionalmente: Aveiro (32,50%), Belterra (45,90%), Juruti (39,71%), Rurópolis
(50,24%), Prainha (36,52%) e Curuá (20,84%), para citar alguns (id.).
Assim, quando retorno ao fim do ano o clima é entre muitas pessoas ligadas
aos movimentos sociais de pesar e incerteza sobre o futuro da região no novo governo.
Quando chego já sou informada sobre uma das primeiras reverberações atribuídas ao
novo cenário, que foi uma alteração feita no texto do Plano Diretor de Santarém em
pleno encerramento das atividades legislativas em 14 de dezembro de 2018, o qual
tornava o Lago Maicá uma área portuária, proposta que havia sido rejeitada em 2017
durante a Conferência Municipal para a revisão do Plano Diretor, que contou com
maciça participação popular. A estratégia utilizada pelos vereadores de Santarém foi
criticada por desrespeitar uma decisão popular e a forma como foi feita buscou
impossibilitar a manifestação e participação (Borges, 2018).
Apesar das eleições terem findado em outubro, nas ruas de Santarém é
constante encontrarmos adesivos, bandeiras e muitos carros decorados em apoio ao
candidato do PSL eleito presidente, Bolsonaro. Em AlterdoChão, é menos visível o
apoio, ainda que em algumas conversas com vendedores e comerciantes se torne
explícito o apoio, como um vendedor de peixe que me diz com um sorriso que “agora
sim nada segura o desenvolvimento chegar até aqui”. Assim como, em uma das
182
24
A piracaia é um costume muito forte na região do Tapajós, na qual as famílias costumam ir para as
praias passar a noite, pescar e assar peixes, contar histórias e dormir na praia. Normalmente as piracaias
são feitas no período da seca e apesar de ser uma tradição que as famílias costumam fazer entre si ou até
mesmo várias famílias de uma comunidade, atualmente algumas piracaias são feitas como passeios para
turistas e visitantes.
25
Macaco encontrado na região amazônica, na Mata Atlântica e também no litoral do Nordeste
brasileiro. Conhecido pela sua vocalização que ecoa pelas florestas onde habitam em horários
específicos, normalmente ao fim da tarde e no meio da madrugada.
183
turistas não permite que possamos conversar mais profundamente, mas é uma boa
estada. Eles estão felizes pelo fato do fluxo que estão tendo de turistas ser grande, de
forma que o próximo período de baixa temporada provavelmente não será tão sentido.
Figura 25 – Piracaia em Jamaraquá
26
Dos povos Arapium, Apiaká, Arara Vermelha, Borari, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku,
Munduruku Cara Preta, Tapajó, Tapuia, Tupayú e Tupinambá.
188
27
Neste caso, a declaração foi feita ao referirse a quilombolas na medida de peso de gado, “o
afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas” e que os quilombolas “não fazem nada, eu acho que
nem pra procriador servem mais”. A fala, realizada no dia 3 de abril de 2017, antes de ser candidato à
presidência. Já o vicepresidente, General Mourão, no dia 6 de agosto de 2018, já participando das
eleições declarou que o Brasil teria herdado “a indolência do índio e a malandragem do negro”.
190
As críticas feitas apontam que o risco das obras serem retomadas e mais
facilmente aprovadas é maior que nos governos anteriores, que também adotaram
políticas favoráveis a empreendimentos hidrelétricos na Amazônia. O que diferencia o
novo governo seria justamente um desmonte dos órgãos responsáveis pela fiscalização
e pelas licenças ambientais como o Ministério do Meio Ambiente, o IBAMA e o
ICMBio, que, como consequência da discordância do governo com políticas de
fiscalização, extinguiu secretarias ligadas a políticas sobre mudanças climáticas e
propôs a extinção do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o que foi
embargado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) meses depois.
Como já citado, a FUNAI seria inicialmente retirada do Ministério da Justiça, e
assim a função de demarcação de Terras Indígenas tentouse atribuir ao Ministério do
da Agricultura, mudança que também foi barrada pelo STF, sendo considerada
inconstitucional. A política de desmonte também tentou atingir o reconhecimento de
Comunidades Quilombolas, retirando a atribuição do INCRA, o que não se
concretizou.
Ainda que as duas mudanças tenham sido embargadas, o desmonte ocorreu pelo
esvaziamento da atuação, já que durante o ano de 2019 não foi demarcada nenhuma
Terra Indígena ou Quilombola, atingindo assim, uma promessa de campanha do
candidato do PSL, que em 2017 prometeu “se eu chegar lá [presidência] não vai ter
192
dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro
de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para
quilombola” (Veja, 2017).
No segundo mês do mandato foi anunciado o pacote de obras que seriam
voltadas para a região, onde são retomados os planos de hidrelétricas para o Rio
Trombetas, para atender às necessidades da Zona Franca de Manaus e também a
extensão da BR163 até o Suriname, tornandoa a principal via de escoamento de
produção da região (Agência Brasil, 2019).
E, ainda no processo de alterações adotadas no funcionamento de órgãos
ligados a questões territoriais e socioambientais, iniciouse um processo de
militarização dos mesmos pelas nomeações de novos presidentes e outros cargos que
passaram a ser ocupados por militares. Como, por exemplo, foi nomeado para
presidente da FUNAI o general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, como
presidente do INCRA o general do Exército Jesus Corrêa e como Superintendente da
Zona Franca de Manaus, o coronel do Exército Alfredo Menezes, para citar alguns.
A partir de março de 2019 com reações negativas aos cortes financeiros e
mudanças anunciadas para o setor da educação assim como críticas feitas às
instituições de ensino, a Amazônia começou a aparecer ainda mais frequentemente nos
discursos do presidente e outros representantes do governo, com declarações que
sinalizaram o estudo à liberação da mineração em Terras Indígenas (Congresso em
Foco, 2019).
Declarou também entre ameaças e recuos uma possível saída do Brasil do
Acordo de Paris, enquanto foi assinada uma carta de intenção entre o Ministério do
Meio Ambiente, chefiado por Ricardo Salles, com a Agência dos Estados Unidos para
o Desenvolvimento Internacional (USAID), articulando a criação de um fundo de US$
100 milhões de dólares para o desenvolvimento econômico da região, voltado para
fornecer empréstimos para empresas privadas que atuem na região (MMA, 2019). O
Ministro Ricardo Salles foi também o responsável por executar uma “limpa”, nas
palavras do presidente, no ministério, referindose à exoneração de cargos
comissionados de funcionários públicos identificados como “ideológicos”.
No mesmo mês, ganhou força a proposta de municipalização da saúde indígena,
a qual foi recebida com muitas críticas por associações e representantes dos povos
indígenas (Spezia, 2019). É nesse período também que o presidente em uma série de
viagens internacionais utiliza em seu discurso um tom convidativo para a exploração
193
“usar as riquezas que Deus nos deu” (Onofre, 2019). Sobre outras propostas alinhadas
ao “desenvolvimento” o presidente passou a atacar mais ONGs que atuam na região do
que os povos indígenas, reproduzindo a fala de infantilização dos mesmos, indagando a
algumas pessoas de diferentes etnias indígenas que foram levados a participar numa
live pelo Facebook do presidente pelo ruralista Luiz Nabhan Garcia: “vão querer
continuar pobres? Escravizados por ONGs, escravizados por partido político, (...) que
usam de vocês para querer se dar bem. Nós queremos a liberdade de vocês”.
(Fernandes, 2019).
Mais uma vez percebese que o discurso do presidente ao mesmo tempo em que
conclama ter genuíno interesse em respeitar a vontade dos povos indígenas, ao
contrário de ONGs e outras entidades, apenas afirma tal quando o cenário referese a
políticas de assimilação cultural, afirmando que os povos teriam interesse em se
“integrar à sociedade” e estariam sendo instrumentalizados.
O mesmo argumento é utilizado para justificar a proposta do linhão de Tucuruí,
que ligaria Roraima ao sistema nacional de energia, mas que para tanto precisaria da
autorização do povo Waimiri Atroari por passar por dentro da Terra Indígena. Neste
caso, quem estaria atrapalhando a proposta seriam ONGs (id.)
Como no caso da live em questão, Bolsonaro passou a apresentar pessoas de
diferentes etnias, normalmente sem reconhecimento de representação por associações
de suas etnias para exemplificar qual a “verdadeira vontade do índio”, enquanto
deslegitima representantes de liderança consolidada e reconhecida, quando estes
discursos iam de encontro com seus propósitos, como o caso dos ataques ao Cacique
Raoni.
Enquanto este iniciou uma série de viagens, assim como outros representantes e
lideranças indígenas, pela Europa e outros países denunciando as políticas do governo
e também em busca de apoio político para exercer pressão e evitar mais retrocessos e
econômico para que os povos possam ter autonomia na fiscalização de suas terras. O
Cacique Raoni chegou a se reunir com o presidente da França, Emmanuel Macron,
com o Papa Francisco, no Vaticano (Deustche Welle, 2019).
Em outubro de 2019, Bolsonaro chegou a afirmar que Raoni havia sido
“cooptado por estrangeiros” que “abusaram da boa fé do cacique” (Vargas, 2019) e
sobre o trabalho iniciado pelo mesmo em busca da construção de solidariedade
internacional às pautas indígenas, o presidente disse que a liderança “vive tomando
champagne em outros países por aí” (Fellet, 2018).
195
Shinzo Abe, sobre a possibilidade de um acordo para explorar a região e apontou que
ao sobrevoar uma área florestal entre São Paulo e o Vale do Ribeira a extensão era tão
grande que lembrava a Amazônia, indicando que:
Uma imensidão aí a floresta, parece até a Amazônia. Então isso é
conversa pra boi dormir essa conversa de que o Brasil está
acabando com a Amazônia, é só uma propaganda contra nós. O que
eles querem, o pessoal lá de fora, e alguns traidores aqui dentro, eles
querem é fazer com que a Amazônia seja internacionalizada.
Enquanto eu for presidente pode ter certeza que não será.
(Fernandes, 2019)
Outras reverberações dos primeiros meses do governo Bolsonaro são referentes
a um elemento já apontado tanto na história do Brasil e da região, como também uma
característica central da campanha do presidente, a catequização/evangelização. Ainda
que, nesse cenário, tal fenômeno se dê de forma diferente, ocorre agora um conflito no
campo religioso entre a Igreja Católica e igrejas que costumase atribuir uma
denominação generalizante evangélica, de cunho protestante.
Em fevereiro de 2019, ainda segundo mês do mandato de Bolsonaro, a Igreja
Católica despontou como potencial crítica ao governo, por declarações do Papa
Francisco que condenaram políticos e discursos nacionalistas e xenofóbicos, mas,
principalmente, pela organização do Sínodo na Amazônia que viria a ser realizado em
outubro na região.
Relatos apontaram que a Agência Brasileira de Inteligência Nacional (ABIN)
estaria monitorando, ainda que o ministrochefe do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI), Augusto Heleno tenha negado este fato, o mesmo confirmou que
há preocupação no governo sobre o evento que se propunha a “falar de terra indígena,
quer falar de exploração, de plantação, quer falar de distribuição de terra. Isso são
assuntos do Brasil. O Brasil não dá palpite no deserto do Saara, na floresta das
Ardenas, no Alasca"(...) "Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil.” (Folha,
2019).
A declaração de tensão política demonstra um processo de afastamento do
governo em relação à Igreja Católica enquanto os posicionamentos da mesma são
identificados, nas falas do Papa Francisco, como “socialistas”, havendo uma
articulação com a teologia protestante emergente desde os anos 1990 no país e que se
consolida recentemente em relação ao número de fiéis e poder político no país, como
no caso da “Bancada da Bíblia” no Congresso Nacional, que mais que dobrou desde
2006 (Exame, 2018).
197
A relação com o território, como base para existir e poder pensar um futuro,
como destacado por Lalah, em cartas das mulheres Munduruku e por outras mulheres
indígenas, pode parecer uma questão restrita apenas aos povos originários, mas não
acredito ser assim. Ainda que culturalmente tenhamos diferentes formas de nos
relacionar e pensar o território, a luta dos povos indígenas se dá em um cenário
histórico de guerra e luta pelo direito a existir, enquanto o território tem sido
propriedade do Estado brasileiro, o qual tem nas estruturas a fundamentação do seu
significado e do seu uso.
Todos lutam por território, mas alguns grupos sociais são reconhecidos como
detentores mais legítimos, por explorarem e gerarem “riquezas” – privadas –, enquanto
os riscos são compartilhados e maximizados por muitos que nem mesmo se beneficiam
e participam de tal processo. Entre povos e modos de vida subalternizados e elites a
diferentes níveis (internacional, nacional e local), temos a maior parte da população
que vive em diferentes condições socioeconômicas em contexto rural e urbano,
atravessados por ou na fronteira da modernidade/colonialidade.
A ascensão do bolsonarismo e seus valores no ano de 2018 e o seu primeiro ano
de mandato em 2019 apontaram para uma guinada de intensificação de processos de
disputa e violência no cenário político. Ailton Krenak (2019) comenta que quando lhe
perguntaram ainda em 2018 sobre tal situação e como os povos indígenas iriam fazer
diante disso tudo, ele respondeu: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo,
eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer pra escapar dessa”
(Krenak, 2019, p. 31).
201
Ainda era o mês de maio quando comecei a receber mensagens de Cris, Nice e
Gildson sobre minha próxima visita. O movimento que venho fazendo nos últimos já
virou uma rotina e, quanto mais se aproxima de julho já começo a me deslocar
imaterialmente para o Tapajós não apenas pelas amizades – com as quais as trocas de
mensagens vão ficando mais recorrentes –, mas também em sonhos, que sempre
persistem mesmo depois de mais de um mês que retorno a Belém.
Julho de 2018 é diferente por muitos motivos, era o que eu imaginava ser a
“última viagem”, pelo menos por conta da tese, porque envolveria o período mais
longo da minha estada até então – o mês inteiro. Estava animada com a possibilidade
de poder passar pelo menos uma semana em cada comunidade e o restante dos dias em
AlterdoChão para me dedicar à escrita. Muita expectativa e também curiosidade para
saber como estavam todos, se os últimos meses haviam impactado as pessoas como a
mim, se estava tudo bem, como estava o rio.
202
ocasionalmente outras pessoas que estão viajando. A casa tem um lugar privilegiado
para armar a rede, com a janela para o rio.
Figura 28 - Rede e janela para o Arapiuns
tinha como objetivo servir de alimento local, mas como se reproduziram rapidamente o
lago acabou virando uma das atrações turísticas da comunidade.
Enilde comenta como a partir disso a comunidade começou a prosperar, já que
os moradores tinham mais atividades ligadas ao roçado, poucos eram pescadores, dessa
forma, diversificando a produção das famílias. E, eram nas festas de santo em outras
comunidades que os filhos e filhas da Coroca conheciam pretendentes, namoravam e
formavam família. Com as mudanças, a Coroca começou a ser um destino escolhido
pelas novas famílias, chegando atualmente a aproximadamente 80 moradores fixos,
entre adultos e crianças, e totalizam mais de 100 filhos e filhas da comunidade, o
restante sendo pessoas que moram em outro lugar e visitam a comunidade
ocasionalmente.
O fato de todos serem da mesma família e com uma história de ocupação
recente faz com que a comunidade seja muito unida. Enilde comenta comigo sobre
como a comunidade tem mudado rapidamente nos últimos anos, com a chegada da
energia, do sinal de Internet, que funciona em alguns pontos estratégicos e caso a
pessoa tenha o smartphone específico com o chip da operadora o sinal é disponível.
À noite, principalmente, as pessoas conversam menos, assistem mais à TV,
ficam mais em casa e no celular também. Já as crianças, por outro lado, passam o dia
andando pela comunidade inventando brincadeiras, tomando banho de rio, oferecendo
ajuda aos adultos nos afazeres que querem aprender, como o dia em que vão todos
ajudar a fazer farinha.
O fluxo do turismo também mudou o cotidiano da Coroca. Além de visitantes
ocasionais – como Cris e eu, e os turistas que ficam nas pousadas dos donos “paulistas”
– não há muitas pessoas de fora se hospedando na comunidade. O redário, que
disponibilizam para visitantes, é também o restaurante onde preparam as refeições,
sendo assim, uma acomodação que apesar de ter uma bela vista para o rio, não possui
muita privacidade. O restaurante tem grande demanda como já citei, por conta dos
passeios de turistas que saem todos os dias de AlterdoChão e almoçam na
comunidade, sendo o espaço mais utilizado como para esse fim que para hospedagem.
Gildson, que é presidente da associação, comenta sobre os planos de abrirem
uma trilha que leva até um mirante para o lago e também sobre a construção de alguns
quartos que possam oferecer mais privacidade para turistas que queiram passar alguns
dias na comunidade. O artesanato dos trançados de palha de tucumã continua sendo o
ponto alto dos atrativos da comunidade. Os objetos são feitos principalmente por
205
mulheres e meninas, mas, cada vez mais, por meninos também, sendo parte importante
da renda das famílias, além da produção de mel e seus produtos, que em janeiro são
celebrados no festival do mel.
Com o restaurante da comunidade a renda de muitas famílias, principalmente
mulheres, recebeu um aumento. Ainda que o ideal da associação seja que pelo menos
uma pessoa de cada família trabalhe no restaurante, para que todos possam ter o
mesmo retorno financeiro, nem todas as mulheres e jovens decidiram participar.
Enquanto fico na comunidade, assim como das outras vezes, as pessoas vão a
pelo menos duas festas em outras comunidades. Quando comentei da frequência me
dizem que se a pessoa quiser, todo dia tem festa para ir, mas que algumas visitas são
mais estratégicas, pois quando alguém de uma comunidade vai até a sua para fazer o
convite, caso você vá, a cortesia será retribuída futuramente quando houver uma festa
na sua comunidade.
As festas, entre festas de santos e festividades como a do mel e outros produtos,
têm um papel muito importante para a economia comunitária, como atividades de
bingo, venda de comidas e bebidas e outros, de produtos que a comunidade produz
(farinha, etc), além do lazer. Mas é nas festas também que os jovens de diferentes
comunidades se encontram e, como em muitas comunidades muitos são parentes, é
indo para as festas que muitos relacionamentos começam, tendo também a função de
expandir as comunidades.
No domingo é dia de missa e Luza, que eu havia entrevistado, faz a liturgia,
conduzindo uma missa em poucos minutos. Após a participação de algumas jovens que
fazem parte da Pastoral da Juventude a cerimônia termina. Os temas de interesse dos
moradores, da associação e outros assuntos também são discutidos ao final, por ser um
ponto de encontro da maioria da comunidade. Comento sobre a intenção de conversar
com as jovens e demais mulheres que tenham interesse sobre suas perspectivas de
futuro e algumas combinam de falarem comigo ao fim do dia, antes do jogo da seleção
brasileira de futebol.
Contudo, à tarde sou convidada para ver como fica a Ponta Grande quando o
rio está na cheia, antes da roda de conversa que faria na comunidade. Vou com Enilde
e Gildson e encontramos um casal que vêm da comunidade São Pedro, conhecida por
ser do povo Apiacá. Eles estão em uma bajara28 com bijuterias de sementes naturais e
28
Pequena embarcação típica na região.
206
trançados de palha de tucumã para venda, para barcos e lanchas de turistas que passam
pela região.
Passamos a tarde conversando à beira do rio e quando me oferecem um
snorkel29 para mergulhar e ver os peixes, em um breve momento, quando sem querer
engulo água, apoio o pé no chão e sinto uma fisgada. Uma fisgada que muda o rumo da
viagem destinada à pesquisa; pelos rostos e reações quando comento a sensação, é de
que o céu caiu, a ponto de eu tentar manter a calma das pessoas, pois “estou bem, não
foi nada demais”. Mas foi uma arraia.
Quando começo a andar para a beira para ver o meu pé, todos gritam para que
eu não saia da água. O senhor da comunidade de São Pedro se aproxima e me orienta e
explica o que acontece após uma ferrada de arraia. Eu já havia escutado relatos de que
a ferroada de arraia provoca uma dor insuportável, mas eu não estava realmente
sentindo nada demais, até então. Primeiro, me explicam para me preparar para uma dor
absurda e que não há muito a fazer, mas que tirar o pé da água pioraria a situação.
Começo a sentir o pé latejando e ficando pesado, a sensação de uma leve dor subindo o
pé. O senhor que se apresenta como Índio, como costumam chamálo, cava um buraco
na areia dentro d’água e pede que eu coloque o pé, enquanto ele cobre com areia. De
repente encontram um balde vazio e lembro de um lago próximo que estava com uma
água bem quente, que é o ideal para o procedimento e para amenizar a dor.
Agora se tratava de esperar a bajara que viria nos buscar para, ao invés de
retornarmos à Coroca, irmos para a comunidade de São Miguel, do outro lado, na
Resex TapajósArapiuns, onde fica o posto de saúde mais próximo, para que seja feito
o procedimento de limpeza do veneno. Aguardamos por meia hora aproximadamente e
agora a dor já é consideravelmente intensa, mas a preocupação de todos é tanta e me
sinto tão mal por estar naquela situação, que evito demonstrar.
O que vai ser da pesquisa? O que vai ser do meu pé? Porque agora a dor já está
chegando a níveis insuportáveis, ainda que a profecia de chorar e gritar que tenham me
avisado não tenha se concretizado. A bajara chega e fazemos um procedimento de
passar o pé da água do rio para a água de balde com água morna até chegar ao posto,
após enrolar o pé num pano para evitar o choque térmico. Mesmo com todos os
cuidados, ainda assim sinto a intensificação da dor.
29
Dispositivo utilizado para mergulho que facilita a respiração, com viseira, normalmente para
mergulhos feitos próximos à superfície.
207
Mais trinta minutos na bajara e quando mais uma vez a culpa toma conta de
mim e a preocupação com a roda de conversa para a tese, a dor vem lancinante e aí eu
choro, mas ainda assim parece ser mais emocional que apenas o veneno. O olhar de
todo mundo parece uma sentença de morte e tento tranqulizálos perguntando se é só a
dor ou se o veneno teria outros efeitos colaterais, respondem que é só a dor; eu rio e
digo “então vai passar”, mas eles se entreolham com muito mais experiência e dizem
“mas é muita dor”. Bom, não tem jeito, vamos lá.
O posto de saúde na comunidade de São Miguel é bem pequeno e apesar de não
ter médicos ou enfermeiros, a agente de saúde é uma das moradoras, que é chamada
em sua casa para fazer o procedimento da limpeza. A agente de saúde aplica uma
anestesia que ela própria avisa que não mudaria em nada a dor, para realizar o
procedimento de limpeza, que tem como objetivo evitar que o tecido necrose
posteriormente. Agora descubro que em nada mudará a duração da dor já que a toxina
já foi absorvida pelo corpo.
De qualquer forma, após a limpeza e algumas muitas orientações iniciamos o
retorno para a comunidade – mais meia hora. Não colocar o pé para cima (rede), não
colocar o pé para baixo, ficar em posição horizontal, não pisar no frio, não pisar na
areia quente, evitar a todo custo chegar perto de fezes de galinha, entre outras tantas.
Tudo bem. Agora a dor que já parecia impossível de ficar pior chega a outro nível, já
passou pouco mais de 1 hora da ferrada e quando pergunto se o efeito tardará a passar
sou informada que a duração costuma ser de até 4 horas.
Por algum motivo eu imaginava que o procedimento no posto de saúde seria o
fim da dor, talvez pelo costume de ir a hospitais e ver naqueles lugares como o fim do
sofrimento, mas não nesse caso, ainda que o procedimento tenha sido crucial para
evitar que as próximas semanas fossem ainda piores. Voltamos para a comunidade e
quando saio da bajara apoiada em Gildson e Enilde muitos já vêm correndo e vendo o
pé inchado, já deduzem: Ih, foi arraia? – Foi.
A empatia coletiva de quem já passou pelo mesmo sofrimento é de tentar me
preparar e ao mesmo tempo consolar. Dona Silvana, por exemplo, me disse preferir
passar por mais dez partos normais do que ter outra ferrada; ela orienta que me deixem
sozinha, pois a pessoa ferrada não quer conversar com ninguém, que preciso
privacidade.
As crianças ficam assustadas e perguntam como estou. Até então, estou sob
controle apesar da dor. Mas quando deito na cama que me emprestam, parece que a
208
adrenalina, que talvez tivesse até então amenizado a dor, desaparece e me dou conta
das horas que ainda faltam para a dor passar e que nada, nem morfina, nas palavras da
agente de saúde, poderia amenizar, eu me entrego e passo mais três horas de agonia,
ainda que não chegue a gritar, mas é impossível não chorar e ficar me contorcendo.
Como Dona Silvana me avisara, pouco antes de completarem as 4 horas de dor
um sono toma conta de mim e adormeço, acordando já sem nenhuma dor, apenas com
o pé inchado. É quase como se nada tivesse acontecido; pequenos furinhos, além do
inchaço que durante os dias seguintes, enquanto ando pela comunidade frequentemente
alguém me cumprimenta falando “ô pé fofinho”. Mas, apesar de me sentir mal pelo
trabalho, pela preocupação que estou dando aos outros, sinto que estou bem. Dona
Silvana e os demais estão conversando embaixo da mangueira e me sento com eles, aí,
vou ser informada que o pior ainda não passou. Ou pelo menos não passou tudo.
Considero relevante o relato extenso do incidente, por incrível que pareça,
porque acabou redefinindo minha relação com todos na comunidade, além do impacto
óbvio no andamento da pesquisa, o que, acabou mudando todo o planejamento, mas
também me propiciando outras experiências.
No dia seguinte acordo já me sentindo melhor, em perfeito estado, mas
mantenhome atenta às recomendações. Nada me impede de me banhar no rio, mas
Enilde recomenda que eu não fique muito tempo, por conta do frio, o que poderia fazer
retomar à noite a mesma dor sentida no momento da ferrada. Mas, me sinto tão bem
que acabo esquecendo o que faz Enilde parecer preocupada me chamando em seguida
para sair do rio.
Todo dia eu acho que vou acordar e estar melhor no outro, mas, aprendi, que no
caso de uma ferrada que inflama, o processo é o contrário de qualquer ferimento que eu
tivesse tido até então: vai piorar muito antes de melhorar. A cura se dá de dentro para
fora, por onde o veneno passou e o tecido ficou morto, começando a ficar roxo,
dolorido, os buracos começam a abrir e eu começo a ficar com medo. Apesar de tudo,
os mais experientes e quem já passou pela ferrada, me dizem que a ferida até está
muito “bonita”, e que normalmente costuma ficar muito pior.
Até então eu havia achado que o procedimento que fizeram comigo de ir até o
posto para que a agente de saúde fizesse a limpeza era algo cotidiano, mas me falam
que não, que só me levaram até lá por eu ser de fora, que quando alguém da
comunidade é ferrado por arraia, normalmente fica lá mesmo e espera. São usados
vários métodos para tentar amenizar e retirar o veneno, mas em todos os casos houve
209
permite outras formas de se sobreviver como a criação, a pesca, o turismo, a troca entre
comunitários e outras. Chamou a minha atenção também como as atividades
desenvolvidas no artesanato, como guia turístico ou preparando e servindo as refeições
no restaurante, apesar de garantirem uma renda, não estão na fala das jovens com quem
conversei, atreladas à ideia de trabalho ou emprego. Assim, tanto aquelas que
desempenham alguma dessas funções como as que não se identificam, ao falarem de
oportunidades de trabalho e emprego não parecem considerar estas como opções.
Esse posicionamento, contudo, talvez seja influenciado pelo fato de que com
quem eu acabei conseguindo realizar a conversa, há um envolvimento não muito forte
com as atividades da comunidade. Infelizmente, não consegui conversar com as mais
engajadas, como algumas filhas de Luza, justamente pela disponibilidade delas por
conta da demanda do trabalho. Assim, pontuo que, por conversas informais, o
posicionamento não é consensual, embor tenha sido predominante com as pessoas com
quem conversei, principalmente entre as mulheres mais jovens.
Já Eliane, de 21 anos, ao contrário da irmã, demonstra estar mais interessada
em encontrar uma forma de permanecer na Coroca e conciliar a vida na comunidade
com a continuidade dos estudos. Ela aponta que:
Ela [refere-se à irmã] é turismo porque ela se encaixou ali, aí eu já
saí fora, não conheço muito bem essas coisas, aí eu já sou
Fisioterapia, que é o quero fazer, mas aí ela já é mais avançada, tem
que ter mais conhecimento, mais recurso… Aqui em Santarém o
estudo é muito escasso, oportunidades de bolsa pra estudar, igual tu
falou sobre ProUni… Eu tava vendo um vídeo no youtube aí
apareceu a fisioterapia e achei interessante, aí quando eu tava vindo
pra cá um rapaz perguntou o que eu fazia, eu disse que eu não fazia
nada, só tava viajando com a minha mãe, aí ele me disse que eu
tinha cara de fisioterapeuta, não falei nada, fiquei só sorrindo né foi
tipo daí, desse vídeo aí fui pesquisar mais e achei interessante.
(Eliane, entrevista realizada em 9 de julho de 2019, Coroca)
Eliane comenta ter mais vontade de sair da comunidade e talvez voltar para lá
quando se aposentar; entretanto, como quer ser fisioterapeuta, não vê outra
possibilidade ficando ali, ao contrário da irmã. O seu curso tem uma parte prática, que
precisa ser presencial. Apesar dos diferentes projetos de vida das duas irmãs, elas
comentam que nos últimos anos a Coroca mudou muito, para melhor. Que antes do
turismo as famílias dependiam muito mais do roçado e também do artesanato, no
entanto, com o turismo diminuiu o roçado, outras atividades menos pesadas surgiram e
que elas proporcionam retorno mais rápido. Elas esperam que no futuro continue
melhorando.
212
Durante a nossa conversa proponho que a gente imagine que a Coroca tem tudo
aquilo que apareceu nas suas falas universidade, emprego, saúde se elas ainda assim
gostariam de sair de lá e elas rapidamente responderam que, com certeza, iriam ficar lá
nesse cenário.
A gente sempre comenta aqui em casa que se aqui na Coroca tivesse
trabalho pra todo mundo, ia ser tão bom, se tivesse estudo pra todo
mundo, trabalho, acho que ninguém precisava sair daqui, porque
todo mundo que morou aqui e saiu quer morar aqui de novo, “eu
queria tá aqui, mas aqui não tem emprego”, eles sempre falam. Tem
a roça né… Mas eu acho que hoje em dia as pessoas não querem
mais trabalhar na roça, no pesado, aí procura uma forma melhor de
viver. (Ivana)
comentário feito por um comunitário sobre os trançados vendidos aos turistas: “Turista
é muito besta, onde que eu venho lá dos Estados Unidos, da França, pra comprar uma
buzeira dessa? Mas quando… eu digo, meu filho…”.
Esse tipo de percepção sobre a beleza estética e o valor do artesanato local tanto
na Coroca quanto em Jamaraquá, sempre me chamaram a atenção, justamente pelos
conceitos diferentes de quem faz o artesanato e quem compra por apreciar o valor
estético. Eu uso, por exemplo, uma pulseira de sementes de morototó; é uma estética
dita de gringo, hippie, turista – um comentário que recebi uma vez numa brincadeira
com uma das crianças que ela pediu para experimentar a pulseira e depois rindo pediu
para tirar “isso é coisa de gringo, eu não!”
Antes do trançado de palha do Arapiuns passar por uma dinâmica de produção
para o mercado, Luza comentou comigo que bem antigamente as pessoas realmente
faziam o trançado para utensílios diários. Agora, entretanto, o único objetivo é vender
para os turistas, que ficam impressionados com as técnicas e os padrões de cores dos
produtos. Não entrei em todas as casas, mas nenhuma vez vi os trançados utilizados
pelos moradores locais, exceto quando adornavam o altar da igreja.
As filhas de Dona Elza e eu brincamos novamente sobre como aquilo que nós
queremos e valorizamos é mais o que o outro tem, como quem é de fora valoriza o
artesanato e como quem vive do artesanato quer produtos industrializados, como no
exemplo de bijuterias que não são feitas de produtos naturais. Rimos bastante dessa
“inversão” de visões dos acessórios que usamos e dos valores que temos: eu usando um
colar e duas pulseiras de morototó, que a família de Nice fez, e elas usando bijuterias
que lembram ouro, prata e com pedras.
Dona Elza diz que nunca pensou em sair da Coroca, e que se não fosse pela
doença e o tratamento que exige há anos um acompanhamento em Manaus, não sairia
de lá por nada. Por conta das viagens frequentes até mesmo o pastor da sua igreja já
brinca dizendo que ela não seria mais arapiunzense, ao que ela responde “Eu sou sim
daqui, mas por causa da saúde eu vou pra lá, mas eu vou voltar sim, aqui é a minha
raiz, aqui eu me sinto bem, aqui é meu paraíso. Se tivesse aqui [acesso ao tratamento]
eu ficava aqui mesmo”.
Ela retoma então para a importância de pensar um futuro para a comunidade e
para as outras gerações, pois para ela “se a pessoa ganha bem aqui na Coroca, ela tem
um futuro bom, de ganhar, de ser uma artesã, com uma cultura daqui, ela não precisa
ir pra Santarém se empregar, porque aqui ela ganha, vai só com o bolso cheio de
215
Nas falas de Dona Elza, suas filhas e outras jovens com quem conversei, o
problema não parecia ser o dinheiro em si no sentido de acumular, de ter uma ascensão
de classe social necessariamente, e sim da possibilidade de equilibrar uma vida com
acesso a serviços, recursos, manutenção e valorização da cultura e do lugar. Assim,
Dona Elza continua comentando suas impressões sobre as dinâmicas econômicas na
região, destacando principalmente a extração ilegal de madeira que ocorre à vista de
todos: “Olha, mana, não sei como tá pra cá, mas o pessoal que é produtor rural que
trabalha na reserva e no PAE Lago Grande, não sei foi o governo que vendeu que
nunca mais que param de tirar madeira”.
Além da madeira, ela comenta sobre o risco da mineração com seus possíveis
impactos caso se implante em comunidades próximas à Coroca: “Agora tem a Alcoa aí.
Olha Juruti, a gente vai pra Manaus e vê, não é muito perto daqui não... Mas se
deixar, mana... Eles estão nesse centro de mata de Lago Grande, se vara pra cá pro
Lago Grande eles tão acabando com nós aqui… A gente tá cercado aqui, mana…”.
Quando pergunto se para ela há relação entre o desenvolvimento e essas
atividades, ela comenta que:
Isso que eles chamam de desenvolvimento também, o que aconteceu
nas outras comunidades: essas políticas assim… É, Brenda, é assim,
aqui no interior tem muita gente que sabe o que tu tá falando, mas
tem muitas que não se desenvolvem porque não sabem nem do que tá
falando, tem muita gente que não sabe nem o que tu tá falando.
Quando eu participava de muitas reuniões e encontros, essas
políticas que eles fazem e falam, é só pra atrapalhar, eles vêm pra cá
[políticos] e fazem uma coisa muito bonita, quando chega lá
[Santarém] parece que o projeto é igual quando tu colocas o
currículo e abafa lá dentro da caixa. E as pessoas ficam esperando
chamar pra trabalhar e esquece. O tempo passa e parece que
esquece.
A fala de Dona Elza lembra bastante o que Nice comentou sobre a relação de
políticos na época de eleição e as dinâmicas para angariar votos na região. Interessante
216
Pergunto então o que ela pensa sobre os retornos para a população local e ela
diz que “Não fica nada, mana, de início ainda empregava umas pessoas de Santarém,
agora é só pessoal de fora, e os de Santarém? Vão se ferrar pra lá, vão fazer casa, vai
fazer alguma coisa praí...”.
Figura 29 – Conversa com Dona Elza (à direita), Ivana (ao centro), Eliane (à esquerda) e eu (de
costas).
Foto: Uma das crianças da comunidade que durante a entrevista tirava fotos com minha câmera, julho de
2019.
Após uma hora de conversa, pergunto novamente para Dona Elza o que ela
espera do futuro, mas ela fala, já em com um tom cansado: “Vou te dizer, mana, que
parei aí… parei no hoje, tá difícil pensar nisso”. O sentimento é bem diferente daquele
217
foram retirados. Luza comenta que nos últimos meses todos os problemas que cercam
as comunidades se intensificaram, com forte pressão pela compra de terras. Comenta
como o atual presidente se alinha a esses interesses e o quanto é despreparado para o
cargo que ocupa. Ao mesmo tempo em que ela demonstra insatisfação, aponta também
que continuarão fazendo o mesmo de sempre, pressionando e se articulando pelos seus
direitos, agora talvez mais do que antes.
Além do tom de preocupação de Luza, percebo também outras situações que
parecem ser recentes e que também ganharam força nos últimos meses, como o projeto
de tornar o PAE Lago Grande em município. Os relatos que chegam a compartilhar
comigo são de que pessoas de algumas comunidades e também de Santarém, próximas
a políticos e representantes de empresas interessadas na aquisição de terras na região,
estariam disseminando e incentivando os moradores a considerarem o fim da categoria
“projeto de assentamento” para se tornarem independentes de Santarém, como
município.
O argumento dos políticos apóiase em que seria um caminho melhor para o
desenvolvimento da região, que é grande e conta com descaso político. Na condição de
município argumentam que haveria mais geração de emprego e estabilidade, na própria
prefeitura, mais recursos para educação e saúde, um ponto central destacado por todos
com quem converso.
Contudo, alguns moradores que conversaram comigo destacaram como a
proposta que parece muito boa é, na verdade, um “presente de grego”. Já que, na
prática, sabese como são outros municípios menores na região, como os cargos são
atrelados às elites locais, além da corrupção, nada garantindo que melhore a qualidade
de vida da população. Vêem um interesse subterrâneo dos que defendem a ideia de
município: seria enfraquecer o dispositivo de segurança territorial e jurídica que se tem
enquanto PAE, isto porque, tornandose município a entrada do capital de
multinacionais como a Alcoa, da exploração dos recursos naturais e de outras práticas
seriam facilitadas pelo município, reduzindo a resistência dos comunitários ao
centralizar as decisões na prefeitura as decisões.
Os relatos e também o clima que pude perceber, é de que há certa desconfiança
e desalinhamento entre os interesses dos comunitários: há os que apoiam e os que vêem
na proposta o mesmo que aceitar o fim e a destruição da comunidade e da região.
Enilde comenta comigo que tem sentido certo afastamento entre os comunitários e que
em alguns dias ela ia propor um puxirum, mutirão de limpeza, que era algo muito
220
comum tempos atrás e que nunca mais se havia feito. Assim, mais uma vez, como
observado nas falas de Nice e Priscila sobre a Flona, e também de Lalah, a presença
dos interesses econômicos do capital na região têm com resistência maior os laços
comunitários de solidariedade, confiança e coletivismo.
E, como pude observar, o enfraquecimento dos laços ocorre de duas formas
principais: pelo aliciamento direto de um ou mais moradores para que vendam seus
terrenos, que gera uma ruptura nas relações, o que costuma ter efeito mais rápido, ou,
por meio de um processo mais gradual, porém nitidamente perceptível que se dá pela
entrada de mais dinheiro no cotidiano por atividades econômicas como o turismo e a
venda do artesanato, que se tornam a principal fonte de renda, não sendo mais o
roçado, que estimulava a economia comunitária.
Quem vende mais ou investe mais seu dinheiro começa a ter uma casa e outros
bens diferentes, sendo assim uma constante preocupação para Nice e Dona Elza, por
exemplo, que o futuro não seja apenas que uma pessoa esteja bem, mas que todos da
comunidade tenham um pouco, o básico e o necessário, para que até mesmo
sentimentos de competitividade, desconfiança, não tenham muito terreno para
proliferar.
Uma mudança recente que também compartilham comigo é a questão religiosa,
pois como apresentado na seção anterior, tem ocorrido uma notável a expansão de
igrejas evangélicas numa região que historicamente era predominantemente católica,
ainda que com práticas coexistentes como as de benzedeiras, mães do corpo,
puxadores, etc. Comentam comigo sobre uma senhora que é uma grande benzedeira na
região e que após entrar para igreja evangélica teve que adaptarse nas rezas, já que a
prática é condenada pela sua igreja.
Outro fator que decorre desse contexto seria o enfraquecimento das festas de
santos e outras festividades; muitas comunidades têm passado por uma segregação
entre católicos e evangélicos, uns não participando da festividade da vertente cristã do
outro. O que, de acordo com o apresentado anteriormente, impacta além dos laços
comunitários e das práticas culturais, as relações sociais e econômicas.
Rascunhei em meu caderno ainda no dia 6 de julho – as anotações que
iniciaram esta seção – sobre tais dinâmicas as quais eu ainda não tinha vivenciado. Elas
tornaram mais cristalinas ainda nos dias seguintes. Enquanto tomava um banho de rio
com as crianças, elas queriam tirar fotos embaixo d’água com a GoPro, o que sempre
221
fazemos quando vou lá, mas dessa vez, estava muito ruim a visibilidade, a água estava
muito turva.
Figura 31. Água turva
Fiquei pensando como o capital parece essa água turva, seja pelo vento ou pelas
embarcações que passam, ou a gente mesmo que remexe a água, dificultando ver as
pedras no fundo ou quem está ao nosso lado, à frente, atrás, em como nem adianta abrir
os olhos embaixo d’água para ver para onde estamos indo. Como tudo parece ficar
confuso, de repente.
Da mesma fora parece ser o que a entrada do grande capital, de um jeito de
outro, age nas comunidades em questão, deixando as relações cada vez mais turvas,
dificultando a continuidade de laços de solidariedade, de comunidade e coletividade.
Individualizando problemas e questões, rompendo alianças e enfraquecendo formas de
articulação e resistência à lógica moderna/colonial.
Assim, o primeiro terço da minha “última viagem” é intenso em vários
sentidos. A tranquilidade das águas e a beleza infinita que a comunidade da Coroca
tem, o sono tranquilo de portas e janelas abertas, a sensação de segurança, a liberdade
de andar, brincar, tomar banho no rio e tudo mais que ali existe contrasta com ventos
que reviram o rio tranquilo de uma hora para a outra, ou com os ventos do capital que
pressionam as vidas na comunidade.
Toda a experiência vivida na Coroca em julho de 2019, assim como todas as
demais vivências nas passagens anteriores por lá, por AlterdoChão e por Jamaraquá,
222
fizeram com que o meu questionamento fosse adensado, inundado por diversas novas
camadas e caminhos. Antes da viagem de julho, havia finalizado minha leitura e a
escrita do tópico que apresentava a discussão da esquizoanálise, assim como as bases
da mesma nas obras de Frantz Fanon, buscando construir uma ponte entre o debate
decolonial e o difundido pelos filósofos franceses, Gilles Deleuze e Félix Guattari, e a
brasileira Suely Rolnik.
As leituras prévias com certeza influenciaram minha percepção de muitos
temas; parecia que havia chegado, enfim, o momento de mergulhar na discussão sobre
a produção de subjetividades. E graças à ferrada da arraia eu teria um bom tempo de
repouso para analisar o tema.
223
Até agora um termo muito utilizado e ainda não discutido foi a “subjetividade”.
De que forma este termo tem ligação com a discussão aqui proposta e o quê significa a
escolha da discussão que se iniciará nesta seção?
Iniciar a indagação sobre os projetos de vida no contexto de políticas de
desenvolvimento parecia uma tarefa simples: tratavase apenas de pensar e perguntar
sobre a percepção do futuro das entrevistadas e as decisões tomadas pelas mulheres
com quem eu fosse conversar. Contudo, o estudo começou a se aprofundar com
questões que se originaram desse tema central: como são construídas ou definidas as
subjetividades? O que significa subjetividade? É algo fixo, inato ou mutável? É
possível compreender a influência do individual e do coletivo sobre as subjetividades?
Como descrevi inicialmente, tais questionamentos vieram à tona a partir de
questões pessoais como o meu próprio questionamento sobre escolhas na vida e
possíveis futuros. As pessoas que conheci e seus planos de vida eram considerados
dissidentes da norma. De modo que, passei a ponderar como, em sentido mais coletivo,
modos de vida de populações inteiras, tanto na Amazônia como em outros contextos
que passaram por colonização, costumam ser taxados como incompatíveis para se
alcançar o objetivo do projeto de nação.
Da consciência de modos de vida, e da diferença entre estes e os valores que
fundam o projeto de nação no Brasil, ocorre a adoção de políticas nas esferas
econômicas e sociais para que haja um adequamento por meio da reprodução de
práticas que retroalimentem o projeto nacional (embebido pelo capitalismo), que faça
com que os indivíduos almejem parecerse com a cultura representante desses valores,
enquanto, ao mesmo tempo, há uma tentativa de dizimar modos de vida que ameacem
ou destoem daquilo tido como desejável.
Buscouse, então, um diálogo com abordagens trabalhadas também pela
Psicologia e a Filosofia, no sentido de assumir que há uma relação intrínseca nos
sujeitos e sujeitas em questão com as dinâmicas políticas, numa espécie de
micropolítica. O objetivo central desta tese reside numa discussão destas questões.
Portanto, será feita inicialmente uma apresentação das contribuições de Frantz Fanon
224
30
O termo cunhado como “esquizoanálise” faz referências aos escritos de Felix Guattari e Gilles
Deleuze em que propuseram uma prática micropolítica enquanto clínica e também como prática
militante e política de indivíduos. A abordagem parte da subversão de algumas premissas da Psicanálise,
como o Complexo de Édipo e inverte a noção de falta para o desejo. Tais elementos, quando necessários
ao debate aqui proposto, serão abordados posteriormente.
Apesar de o termo ter sido difundido a partir de Deleuze e Guattari, encontramse referências fundantes
do pensamento nas obras e pensamentos de Fanon.
225
Para o autor desde a primeira obra em 1952, Peles negras..., até a última, Os
Condenados da Terra, de 1961, podemse extrair ricas contribuições do pensamento
fanoniano sobre a relação entre os aspectos psicológicos e políticos dos contextos de
colonialismo sobre os indivíduos. Ele destaca especificamente como é nesta última
obra que se percebe “a hora de uma urgência prática, na qual a conjuntura política
confronta a clínica com o real do sintoma como tal” (SibertinBlanc, 2016), ou seja,
como a guerra na Argélia e a sua atuação no hospital de BlidaJoinville e a Escola de
Alger se deflagraram como algo que necessitava muito mais que uma mera
interpretação, mas sim de “querer desalienar indivíduos em um país onde o autóctone é
um ‘alienado permanente em seu país [e] vive em um estado de despersonalização’, de
querer tornar o indivíduo menos estrangeiro a seu mundo em um mundo que organiza
uma desumanização sistemática” (SibertinBlanc, 2016, s/p).
A questão da relação entre colonialismo e alienação dos indivíduos já havia
sido inicialmente tratada em Peles negras, máscaras brancas. A visão do colonialismo
epistemológico, ou seja, desde a esfera do conhecimento e, de certo modo, da
produção das subjetividades dos sujeitos a partir de contextos políticos e sociais. Por
exemplo, ao defender que os negros são construídos como negros, dentro de uma
sociedade racista e colonialista, leva à noção de que o sujeito ideal daquele tipo de
sociedade é o homem branco, o que passa a ser almejado como referência de ser, falar,
vestir-se, pensar, etc.
Fanon (2008) também discorre, ao criticar a obra de O. Mannoni, na qual este
afirma que só foi colonizado quem já desejava isso ou sentia a necessidade, reforçando
a ideia de um destino bíblico dos colonizadores, como entes superiores; ao ponto que
ele contesta que “a inferiorização é o correlato nativo da superiorização européia.
Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (Fanon, 2008,
p. 90), de modo que isto se dá de diversas formas, seja pela infantilização, pela
humilhação, pela diminuição e desumanização.
Um exemplo trazido por Fanon (2008) é a comum reação quando uma pessoa
negra lê e fala sobre Marx em que os brancos se sentem “traídos”: “Nós vos educamos
e agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se pode
esperar nada de vocês”. E depois há ainda este argumentoporrete do empresário
agrícola europeu na África: “Nosso inimigo é o professor” (ibid., p. 48).
Apesar do contexto discutido por ele se referir à relação de colonialismo
francês em Martinica é possível identificar paralelos na dinâmica nacional da política
226
31
Deleuze e Guattari escrevem juntos O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia em 1972,
influenciados pelos movimentos de maio de 1968 na França e, em 1980, escrevem Mil-Platôs, que no
Brasil foi publicado em cinco volumes. Além destes, publicam também Kafka, por uma literatura menor
(1975) e O que a é filosofia? (1991). Contudo, os dois primeiros citados serão a base para a discussão
aqui desenvolvida.
230
constantes, ainda existem e durante séculos têm existido modos de vida que escapam à
lógica capitalística e até mesmo se opõem a ela.
E sobre isto os autores apontam que, mesmo no capitalismo, os fluxos
continuam escapando, sendo qualquer tipo de maneira de trabalho que não se localize
na lógica imposta, como formas de se vestir, comer, pensar, falar, produzir e assim por
diante. Eles destacam que tudo que é descodificado ameaça o capitalismo (e,
automaticamente, o Estado), logo, precisa ser transformado a serviço da produção do
mercado capitalista, o que eles denominam: axiomatização dos fluxos decodificados.
Este processo de axiomatização é a principal utilidade do Estado para o
capitalismo. É por meio dele que o capitalismo vai axiomatizar todos os fluxos de
desejo, sendo sua atuação basicamente voltada para garantir a sobrevivência do
capitalismo. Logo, quando uma manifestação ocorre demandando direitos ou
denunciando uma situação que ameace o capitalismo o Estado atua axiomatizando,
ou seja, incorporando essas demandas (nos seus termos) a fim de desfazer esses fluxos,
cooptandoos. Desta forma, podemos situar o giro decolonial como dinâmica sempre
presente, desde a colonização, fluxos que podemos ver nas diversas formas de vida
aqui relatadas e também citadas por documentos e articulações que contestam e
defendem sua autonomia.
A resposta de axiomatizar, ou seja, neutralizar as ameaças ao Estado e ao
capitalismo por meio da absorção de demandas, contudo, não é a única possibilidade
de resposta do Estado. Ele pode negar ou retirar axiomas e atuar com repressão.
Deleuze e Guattari (1997) apontam que essa atuação difere de acordo com as formas de
Estado, mas eles defendem que todos estão a serviço do capitalismo, mesmo os ditos
socialistas ou totalitários, por ser o sistema econômico dominante de nossa sociedade.
De todo modo, a diferença será basicamente como se lida com os fluxos
decodificados, sendo considerado que o Estado totalitário tende a retirar axiomas e
fazer mais uso da violência enquanto o Estado socialdemocrático tende a multiplicar
os axiomas. Essas ações dependem, na visão deles do tipo de mercado que é
privilegiado: no caso do totalitário, os axiomas são negados para atender ao mercado
externo, enquanto em uma socialdemocracia visam fortalecer o mercado interno.
Aqui, novamente, encontramse as discussões já desenvolvidas anteriormente, a
compreensão de que existe um capitalismo mundial integrado e que os países
“desenvolvidos”, do Norte global, têm como base para sua riqueza e desenvolvimento
a exploração de países “subdesenvolvidos” do Sul global. Logo, a tendência é que, no
232
como também apontado por YuvalDavis (1997). Logo, o desejo só existe maquinado,
agenciado, ele é aquilo que o agenciamento determina que ele seja.
Assim, concluise que o Estado-Nação é um modelo da realização da
axiomática-capitalística, onde ocorre a produção das subjetividades nacionais e uma
sujeição social entre capitalistas e trabalhadores. Podese considerar aqui que um
desejo dessa subjetividade é justamente o desejo de ser desenvolvido nos moldes
eurocentrados. Tanto aquilo sobre o que discorre Fanon (2008) como Guattari e Rolnik
(1996) chama a atenção para a produção do desejo pela própria repressão, ou seja, o
desejo de que a vida do indivíduo seja organizada de fora. Neste sentido, eles destacam
que existem três funções da subjetividade capitalística, sendo:
● A Culpabilização: que é a necessidade da autorização para enunciar um
pensamento dentro dessa lógica, que pode se dar pela busca de títulos, educação
escolar formal; sem essa autorização o indivíduo se sente culpado e
desautorizado a se manifestar, o que faz a gente se indagar "afinal das contas
quem sou eu? Será que sou uma merda?" (Guattari e Rolnik, 1996, p. 41);
● A Segregação: que é o resultado da separação entre quem está autorizado a
enunciar e faz, automaticamente, parte de uma elite e os outros que são
marginalizados; aquilo que é padrão das elites é valorizado e aquilo que os
demais devem se situar;
● A Infantilização: que é a tutela do Estado, “pensam por nós, organizam por
nós a produção e a vida social” (id.), e que coisas normais como (envelhecer,
adoecer, falar, sentir), “não deve perturbar nossa harmonia no local de trabalho
e nos postos de controle social” (id.); as ditas minorias, ou os que possuem
comportamento dissidente, em geral costumam ser ainda mais infantilizadas e
que tudo que se faz, se pensa ou se venha a produzir deve passar pelo Estado.
Estas funções que a subjetividade capitalística tenta alcançar também se
alinham ao que Fanon (2008) analisa no tratamento dado aos negros pelos
colonizadores tanto no deslocamento e desvalorização dos conhecimentos quanto na
criação do sentimento de culpa por não estar/ser apto a se pronunciar dentro da lógica
estabelecida. Analisa como a segregação e a infantilização se instituíram como formas
de desumanização, de colonialidade do ser (MaldonadoTorres, 2007), o que também
identificamos anteriormente no Brasil na relação com os povos indígenas na
atualidade.
236
Na figura a seguir (ver Figura 32) busquei apresentar uma possível visualização
para as dinâmicas da produção de subjetividade a partir das referências abordadas:
Figura 32 – Produção de subjetividade capitalística
dá, obviamente, não apenas com elas, mas está muito presente no contexto em questão
e que, ao contrariar a ordem capitalística na lógica da modernidade/colonialidade rotula
indivíduos como irracionais, loucos, esquizofrênicos, ou seja, fora da realidade e
marginalizados, infantilizados, deslegitimados.
É o caso do exemplo citado em capítulos anteriores. Em que políticos
posicionamse sobre como os povos indígenas devem se organizar, viver, postulando a
idéia de que contrariar a lógica de se modernizar, desenvolver seria considerado
irracional. E o grito na Carta das Mulheres Indígenas do Tapajós, assim como muitas
conversas relatadas e projetos de vida que foram compartilhados, alinhamse ao que
MaldonadoTorres (2007) define como giro decolonial. Tais abordagens possibilitam
adensar o campo de análise do cenário político nacional já descrito, mas que, ainda no
restante do mês de julho e nos meses seguintes, o cenário em questão recebeu novos
contornos e desdobramentos que merecem aqui destaque e contextualização.
Assim, saí da Coroca com destino à Santarém, com meu pé fofinho, sem saber
muito bem ainda como seria o restante do mês, mas otimista por manter meu
planejamento. Pensei em passar alguns dias em Santarém, ir ao hospital para ver se a
recuperação seguia um curso normal com a ferrada da arraia, já que apesar do
estranhamento, todos que eram experientes no assunto diziam que a aparência estava
até boa em comparação com casos que já tinham visto.
Agora em Santarém e com acesso à Internet pude informar à Cris e à Nice o
que havia acontecido. Nice já esperava que eu chegasse à Flona nos dias seguintes.
Hesitei em ir para a Flona, pois estava insegura com o estado do pé e achei mais
prudente inverter meu itinerário. No dia em que cheguei a Santarém depois da Coroca,
decidi ir para AlterdoChão, onde passaria alguns dias até o ferimento melhorar e, só
então iria para a Flona.
Cris me recebe, como sempre, de braços abertos e com um canto especial para
armar minha rede. O plano era passar mais uma semana lá, aproveitar para ir ao posto
de saúde e ver se era preciso alguma outra medicação. A ferrada estava bem roxa,
dolorida e a cada dia a aparência piorava. Nice pede fotos e passa por Whatsapp
algumas recomendações: evitar passar óleo de andiroba32, já que por ter um efeito de
32
Óleo natural muito utilizado na Amazônia com diversas propriedades, tais como: repelente natural,
antiinflamatório, como hidratante para pele e cabelo, entre outras. A medicina popular sobre o óleo
indica o uso do mesmo em variadas situações.
238
aumentar a temperatura da região isso reativaria a toxina; usar óleo de piquiá33 com
folha grossa quente em cima do ferimento para que se retirasse alguma toxina ainda
existente e impedir a inflamação. O remédio é indígena, segundo Nice; ela recomenda,
também, um chá da casca da árvore do cajubranco para lavar o pé e amenizar a
inflamação. Sigo rigorosamente as orientações e o alívio é imediato nos dois casos.
Contudo, pela foto, Nice avisa que acha que irá inflamar de qualquer jeito,
restava agora evitar que piorasse ou viesse a necrosar o tecido. Enquanto estou em
AlterdoChão, Gildson e Enilde pedem atualizações constantes sobre o estado de
saúde; eles pedem que eu mande fotos do pé, o que acabou virando uma rotina durante
o restante do mês; quase todos os dias eu envio fotos do pé para eles e também para
Nice. Em suma, o desenrolar do ferimento acabou por me incapacitar o restante do mês
de julho em relação à Flona. A partir de 10 dias, a ferida começou a abrir, dentro do
processo normal, mas que aumenta muito o risco de uma infecção e sou recomendada a
esperar que ela feche para ir para Jamaraquá. No total, foram dois meses até o
ferimento fechar, o que só veio a acontecer quando eu já estava de volta à Belém.
Tal condição, embora na época eu não tenha recebido muito bem, acabou por
me propiciar passar muito tempo em AlterdoChão. Sem o meu habitual fluxo e ritmo
de passagem entre as comunidades, como costumava fazer, algo que Cris também
observou e pontuou como minhas viagens eram sempre corridas entre as três
localidades. Assim, mesmo que pudesse andar, a sensação de não estar aproveitando o
período para continuar a pesquisa, é algo que me desestabilizava consideravelmente.
Aproveitava os dias para organizar as leituras, rever o que já tinha escrito e
também conversar bastante, estar em Alter, andar, ver o pôrdosol. Logo nos
primeiros dias sinto a vila muito diferente. As pessoas não respondem aos
cumprimentos pelas ruas de bom dia, boa tarde, boa noite. A paisagem da vila está
diferente também: muito mais carros que das outras vezes em que estive lá em julho.
E o público que percebemos estar passando férias também mudou – mais
famílias com homens mais velhos e mulheres mais jovens, predominantemente
brancos; percebo serem as pessoas que cumprimento e que não me respondem. Nas
praias: mais música alta, muitos drones, mais jetskis que o normal. Talvez não tivesse
33
Óleo extraído do fruto do piquiazeiro, diferente do pequi da região do cerrado. O óleo costuma ser
utilizando na culinária, mas também tem propriedades antiinflamatórias e de profunda hidratação, sendo
recomendado também para a pele e os cabelos. Acredito que o óleo deva possuir outras muitas
propriedades, mas estas são as quais conheço. Apesar de algumas buscas por outras referências em
mecanismos de buscas há pouca informação sobre o óleo disponível na Internet.
239
mais carros, fosse apenas uma impressão já que agora a maioria dos carros era do tipo
picape, assim, por serem grandes, provavelmente davam essa sensação de ruas mais
apertadas e de lotação.
Após dois dias dessa observação converso com Cris; ela diz que também notou
essa mudança e que tem acontecido na vila um aumento no fluxo de pessoas que vêm
do estado do Mato Grosso, principalmente de Cuiabá, área de grande ligação com o
agronegócio. E, realmente: torno a prestar atenção às placas de carros e vejo serem de
lá, mas também de outras cidades do mesmo Estado. Ela comenta que, nos últimos
meses, muitos matogrossenses têm comprado propriedades, como casas, terrenos e,
principalmente empreendimentos como pousadas e restaurantes.
Em conversa com moradores da vila, como Leida, que é de Belém e mora com
a Cris, sou informada que muitas pessoas de Cuiabá têm visto AlterdoChão como um
destino já consolidado de férias e balneário para a família, que teria se popularizado
ultimamente, principalmente, por conta do fluxo de sojeiros que têm se mudado para a
região.
Considero que essa movimentação nova não tem sido motivada por férias ou
passeio, mas para a compra de terras e propriedades, que tem sido influenciada também
pela entrada da “China” no estado do Mato Grosso, por meio da compra de terras, o
que tem contribuído para empurrar sojeiros para regiões ainda com perspectiva de
crescimento do cultivo. Além disso, como abordado em seções anteriores, o contexto
político na região já dava muitos sinais de que o baixo Tapajós seria a fronteira
agrícola da vez.
Quando estava chegando ao porto de Santarém, saindo da Coroca, um amigo da
comunidade que viajava no mesmo barco que eu, apontou para mim as embarcações
que levam soja, mostrando uma com os containers vazios e uma já cheia. A diferença
do nível que ficava para fora indicava as toneladas do carregamento. Só em 2018,
saíram do porto da Cargill 4,6 milhões de toneladas (Antaq, 2018).
Como ainda não viajei para a Flona, não pude perceber o aumento das
plantações de soja, mas Cris e outros conhecidos me relatam que a devastação da
floresta para a o cultivo de soja tem se alastrado rapidamente. Apesar disso, já pude
notar uma diferença na estrada que vai de Santarém à AlterdoChão, a mudança de
muitas casas em construção e mais anúncios de terrenos à venda.
O fluxo que, para mim já era mais familiar, de viajantes e mochileiros, parece
ter diminuído ou estar menos perceptível. Começo a perceber a vila e as suas mudanças
240
que têm se dado agudamente, já que eu tinha estado lá ainda no início do ano. A
especulação imobiliária também está mais intensa, e ainda continua o debate entre a
proteção da área e a pressão para verticalização visando “desenvolver” mais a região.
Converso com Cris sobre os efeitos da época das eleições e suas polarizações.
Ela indica que houve um processo de mudança nas relações das pessoas, um
afastamento mais explícito por conta de divergências políticas. Não posso aqui
generalizar os posicionamentos políticos da população sem ter feito um levantamento
direcionado para tal, mas posso compartilhar minhas impressões a partir de alguns
fatos posteriores.
Um dos principais exemplos ocorreu na última semana em que eu estava em
AlterdoChão, no dia 22 de julho de 2019. O Ministro da Educação do governo
brasileiro, Abraham Weintraub, passava férias com a família na vila e, durante a noite
de segunda, enquanto jantava na praça da vila, foi surpreendido com um protesto de
estudantes da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) que se manifestavam
contra os cortes de recursos para a educação. O ministro se manifestou sobre o
ocorrido em sua rede social no Twitter34, que estava com sua família quando
“advinhem (sic)... os mesmos que se dizem defender os direitos humanos nos
cercaram... as crianças ainda estão chorando!”.
Em determinado momento começa a ocorrer uma discussão, que é registrada
em vídeo (Youtube, 2019)35. Entre palmas, ovações em apoio, vaias e gritos de
“fascista” e “palhaço” das pessoas que assistem à situação, a discussão se desenrola
quando um dos estudantes, que é indígena, fala “eu estou aqui na minha terra, essa
terra é nossa, essa terra foi defendida com muito sangue”, ao passo que o ministro
responde “essa terra é minha!”, o que gera reação na aglomeração que se formou na
praça; o estudante replica que o ministro deve respeitar a terra e o povo, após o
estudante denunciar não ter sido recebido pelo ministro em Brasília, Weintraub
responde:“Não é porque você está com um cocar que você pensa que é mais brasileiro
que eu, seu safado”. O ministro continua ao dizer que todos são brasileiros, pretos,
brancos e índios, que são todos iguais. A situação, além da repercussão local, na
mesma noite alcança noticiários e reportagens (Lellis, 2019).
34
https://twitter.com/abrahamweint/status/1153477099887431680?lang=pt
35
Ministro da Educação Abraham Weintraub discute com a população do Pará. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=bd4eQCDLZg. Acesso em: 10/01/2020.
241
intimidada e decidiu ir embora; o mesmo ocorreu com outras pessoas também. Era o
início de um movimento que se intensificaria nos meses seguintes.
Retomando a discussão sobre a produção de subjetividade, percebese como os
atravessamentos macropolíticos contribuem para decisões ligadas a projetos pessoais e
sociais de vida. Podemos pensar sobre os deslocamentos de idas e vindas justamente
nesse sentido, como desejos produzidos e projetados em alguns lugares – como Alter
doChão – também são atravessados pela produção de subjetividade. O ir, chegar, ficar
e sair perpassa diversos fatores macropolíticos, como observamos no exemplo anterior.
Logo, Guattari e Rolnik (1996) definem que a produção de subjetividade não
deve ser encarada como uma coisa em si, imutável, mas sim “existe esta ou aquela
subjetividade, dependendo de um agenciamento de enunciação produzila ou não.
Atrás da aparência da subjetividade individuada, convém procurar situar o que são os
reais processos de subjetivação” (ibid., p. 322). Eles citam, como exemplo, o
capitalismo moderno que produz em grande escala um novo tipo de subjetividade
através da mídia e dos equipamentos coletivos.
Savazzoni (2012, p.68) destaca que essa produção precisa ser compreendida
pela relação de atravessamentos de diferentes dispositivos e agenciamentos que nos
influenciam, de modo que a subjetividade não é apenas algo que se “internaliza”, mas é
algo dinâmico e que está constantemente sendo atravessada.
A produção de subjetividade se dá a partir de algumas linhas: as linhas
duras/molares, que são as determinações mais formais dessa subjetividade e com uma
identidade pautada em binarismos (sexo, gênero, estado civil, entre outros) e são
aquelas que classificam, interpretam, codificam a parte do “sujeito”; é onde ele se
reconhece e organiza a vida cotidiana, são utilitárias; e essas linhas duras são
influenciadas pela hegemonia, pelo que é dominante.
As linhas duras/molares são normalmente ligadas ao Estado e geram processos
de subjetivação e estratificação, retomando a noção previamente abordada de
sobrecodificação das singularidades das linhas e fluxos que escapam, de modo que “o
aparelho de Estado cria, necessariamente, suas linhas duras e por elas faz passar suas
normas, entretanto, ele necessita também de linhas “flexíveis” e circulares para poder
atingir “todos” os segmentos do socius, do nível “molar” ao “molecular”” (Savazzoni,
2012, p. 72).
Já as linhas flexíveis/moleculares são as que possibilitam o afetamento da
subjetividade, são zonas de intermediação, a face sensível, enquanto as linhas molares
243
são a face formal, é o entre, é aquilo que pode ser modificado, afetado. As linhas de
fuga são para onde convergem os processos que vão levar ao novo, onde temos nossas
sensibilidades, possibilidades de invenção e potencialidades, que são os
microprocessos revolucionários.
As linhas de fuga, contudo, podem ter duas direções: construtivas/inventivas,
quando liberam a produção de desejos, ou abolicionistas, que podem levar à
desintegração absoluta e ao próprio aniquilamento (id.). Neste sentido eles comentam
sobre os perigos das linhas:
Portanto, somos feitos de três linhas, mas cada espécie de linha tem
seus perigos. Não só as linhas de segmentos que nos cortam, e nos
impõem as estrias de um espaço homogêneo; também as linhas
moleculares, que já carreiam seus microburacos negros; por último,
as próprias linhas de fuga, que sempre ameaçam abandonar suas
potencialidades criadoras para transformarse em linha de morte, em
linha de destruição pura e simples (fascismo). (Deleuze e Guattari,
1997, p. 195)
participei na Coroca, é muito comum que nas comunidades as mulheres, como Luza,
desempenhem papel central, o que foi reconhecido pela necessidade de se pensar o
diaconato permanente para as mulheres.
Outros pontos presentes no documento e que se formaram a partir de demandas
locais foram adaptações da liturgia às culturas amazônicas e visões de mundo, a
criação de um fundo para financiar o “custo da Amazônia” para missionários, assim
como uma Universidade Católica Amazônica para incentivar pesquisas sobre
enculturação e diálogo intercultural com a Sagrada Escritura (Gonzaga, 2019).
Foi também elencada a necessidade da renovação da juventude nos
movimentos. No mês seguinte já foi possível notar seu efeito na região, pela
organização da I Romaria do Bem Viver no PAE Lago Grande, realizada nos dias 16 e
17 de novembro de 2019, com o tema “Defender a Mãe Terra e Com Nosso Modo de
Vida Resistir”.
Apesar de estar na região na época, por intempéries relacionadas à travessia do
rio, não consegui me deslocar para participar da romaria. Mas, fui convidada por
Gildson, que estava envolvido na organização, iniciativa da Pastoral da Juventude
Diocesana da região 8 (Arapixuna, Arapiuns e Lago Grande) em parceria com a
FASE, a Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento
Agroextrativista Gleba do Lago Grande (FEAGLE), o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais e Agricultores Familiares de Santarém (STTR) Grupo Mãe Terra.
Um dos pontos centrais da romaria é a discussão dos problemas que tangem o
território como a mineração e incentivar o protagonismo juvenil e a agroecologia,
assim como a organização da luta em defesa do território. Para tanto, o primeiro dia da
programação visou promover palestras e o debate da situação da mineração na região,
enquanto durante a noite foi feita a romaria saindo da Comunidade de Cuipiranga,
referência da resistência cabana36, passando pelas comunidades até chegar à
Comunidade de Murui, no outro dia, onde foi realizada uma feira de produção da
FEAGLE. A caminhada feita foi de 30 km.
Uma das filhas de Luza, Sandrielem, é uma das jovens à frente da iniciativa e
deu uma entrevista sobre a importância da romaria:
[Sandrielem] Espera que surjam muitos frutos desta construção,
especialmente a integração dos jovens à militância. Ela deseja ainda
36
Como citado anteriormente, a história da Cabanagem tem uma forte marca nas comunidades do rio
Arapiuns, onde Cuipiranga inclusive tem seu nome como alusão à areia vermelha que teria assim ficado
após o massacre ocorrido pelas tropas da Regência e do exército britânico como repressão aos cabanos.
259
37
O conceito é referente ao cunhado pela Escola de Copenhagen, dos Estudos de Segurança
Internacional. Quando um tema é politizado, ou seja, por uma decisão do Estado, há o estabelecimento
de alguma política em prol do enfrentamento de determinada problemática, enquanto que um tema
securitizado é aquele que, invariavelmente, possui uma ameaça existencial, requer medidas e ações além
do procedimento usual (Buzan, Waever, De Wilde, 1998, p. 23). Deste modo, a securitização pode ser
interpretada como uma versão mais extrema de politização.
262
No governo eles estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles são o
Governo” (Brum, 2019).
Ela analisa também como, apesar de o governo ter pontos de disputa entre
aliados e membros do seu governo em algumas esferas, o projeto político que se volta
para a Amazônia parece ser consenso: a abertura das terras até então com alguma
restrição de forma deliberada para a entrada da mineração, da pecuária e da soja.
E, enquanto se tem um projeto que marcha rapidamente e predatoriamente
sobre a região, Eliane Brum conclama a pensarmos sobre formas de se relacionar com
a floresta e com a Amazônia no imaginário nacional e estas raízes com o processo de
colonização:
O fato de a Amazônia ainda ser vista como um longe e também — ou
principalmente — como uma periferia dá a dimensão da estupidez da
cultura ocidental branca, de matriz primeiro europeia e depois norte
americana, essa estupidez que molda e dá forma às elites políticas e
econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte, também às
elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia é
longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de
controle do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é
uma ignorância de proporções continentais. A floresta é o perto mais
perto que todos nós aqui temos. E o fato de muitos de nós nos
sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o quanto o nosso
olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado. (id.)
O que a jornalista aponta reforça uma das imagens da Amazônia como inferno
verde, lugar para onde não se quer ou deseja ir. E, no atual governo, as nomeações têm
sido ainda mais pautadas em táticas de securitização, relacionando a atuação histórica
263
das Forças Armadas na Amazônia como uma justificativa para tal. Por outro lado, a já
chamada falsa noção de “ausência do Estado” não é uma consequência dessa visão,
talvez, possamos afirmar que haja uma produção de subcidadania dos amazônidas em
geral, mas o Estado está presente, muitas vezes justamente na violação de direitos.
Eu recordo algumas conversas que tive com Luza, ainda em 2017, e como ela
comentou comigo que gostaria que o acesso à saúde fosse melhor para as comunidades
ali, mas que percebia que muitas pessoas de fora achavam que o povo quer que o
Estado faça tudo por eles. Mas não, o que se quer do Estado é apenas o direito a fazer
as coisas por si só, sem que seja necessária a autorização ou intervenção do Estado em
assuntos que há gestão comunitária.
Essa fala me fez pensar muito sobre um recorrente pensamento de classes
médias e classes altas no país em relação às políticas públicas, que tende a tratar a
população que reclama seus direitos como “acomodados” ou que querem um “Estado
paiprovedor”, reproduzindo uma lógica moderna/colonial que tem também na
ideologia liberal grande parte de seus argumentos atualizados pelo neoliberalismo.
A análise de Eliane Brum (2019) é profunda e vai além da ideia de a
“Amazônia é nossa” ou que devemos “protegêla”, tom recorrente e simplista em
situações que viralizam sobre a região. Ela aponta como as próprias dinâmicas sociais e
políticas que muitos de nós, em espaços ditos de intelectualidade e produção de
conhecimento, majoritariamente brancos, reproduzimos dinâmicas de colonização, o
que aqui também já foi apontado anteriormente. O dilema com o qual se depara e se
pergunta: quais os interesses que nos fazem ter interesse em tal região e seus povos?
Ela inverte a relação de se pensar o que se pode fazer ali para ajudar um povo,
um típico pensamento presente na branquitude enquanto “herói salvador”, que mais
uma vez dialoga com o que Lalah (2019) apontou em sua entrevista comigo, sobre
pessoas que chegam às aldeias e já trazem inúmeras propostas de como melhorar,
ajudar, salvar aquele povo, sem nem sequer reconhecer e entender que aquele povo e
tantos outros se salvam e resistem há séculos.
Aqui, parto da concepção de Bento (2002), que entende a branquitude como um
“lugar de privilégio, racial, econômico e político”, de modo que a idéia de branquitude
referese a uma posicionalidade social em torno da identidade racial branca, a qual é
tida como “invisível”, pois se toma como referência do universal. De forma que
pessoas brancas não costumam se identificarem como pessoas racializadas, mas Bento
e outras referências (Cardoso, 2010; Piza, 2002, entre outros) têm apontado que essa
264
38
Não busco aqui me justificar, mas sim identificar a origem de posicionamentos e perspectivas minhas.
Muito menos pretendo um conformismo e acomodamento a tal condição e considerar como algo inerente
266
e imutável. Busco ter em mente e demarcar sempre tais contextos para evidenciar de que forma
privilégios afetam minha própria percepção do tema e do andamento da pesquisa e como me relaciono
com tudo isso.
267
A ideia da Amazônia como uma poupança, uma garantia futura reforça o que se
tem argumentado sobre a região ser tratada historicamente como receptáculo das
expectativas de desenvolvimento do “Brasilpaísdofuturo”. Pinto (2019) discorre
268
também sobre como mesmo ao fim da ditadura, os projetos pensados para a região
mantiveram a lógica de desenvolvimentismo predatório e securitização, mesmo na
redemocratização:
Depois, vieram Figueiredo, Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula (que
elogiou o planejamento do Geisel) e Dilma. Ninguém mudou e o
símbolo dessa continuidade foi o primeiro ato do Sarney, o projeto
Calha Norte, a renovação da doutrina de segurança nacional na
Amazônia, que orienta tudo que acontece na região. A democracia
não chegou na Amazônia. Meu grande esforço é tentar pôr na agenda
do cidadão da Amazônia os fatos que estão acontecendo e fazer com
que o acontecimento seja percebido na hora que acontece e não daqui
a 20, 50 anos. Esse descompasso de tempo entre a percepção do fato
e a ocorrência do fato é a razão de uma região e um país tão ricos
serem colonizados. (id.)
Por fim, ele ressalta o que buscou fazer com o seu trabalho no Jornal Pessoal
nas últimas décadas e como o acesso à informação e aos fatos e de forma rápida é uma
ferramenta indispensável para que se possa romper o ciclo nocivo de desmandos e
destruição sobre a região. Quem sabe, assim, possibilitando condições para a superação
do estado de subcidadania relegada à maioria dos amazônidas. O que, pode ser
especialmente desafiador na atualidade, como presenciamos nas últimas eleições é a
disseminação de práticas como fake news enquanto estratégia política que não é nova,
mas que com aplicativos de mensagem instantâneos e redes sociais, têm tido alcance e
poucas ferramentas de limitações, como mostrou um inoperante e lento TRE nas
últimas eleições.
Além disso, Lúcio Flávio Pinto dá ênfase ao que abordamos anteriormente com
as abordagens decoloniais e da esquizoanálise, ao pensarmos como espectros políticos
em relação direta à Amazônia e noções de projeto de nação, mostraramse produto do
mesmo sistema moderno/colonial, já que
A esquerda é tão nociva quanto a direita, como se vê no caso Belo
Monte projeto original é da época da ditadura, igualzinho ao de
Tucuruí. A esquerda combateu o projeto original, com alguns
argumentos corretos, mas sem responsabilidade prática. “Sou contra,
mas não tenho alternativa”. A esquerda não pensa alternativas porque
não conhece a Amazônia. Seja a favor ou contra o que está
acontecendo, as pessoas não conhecem. Para conhecer a Amazônia é
preciso muito tempo e muita dedicação. Muito “Meninos, eu vi”.
acadêmico do país, como Brasília e sudeste. Ainda que haja grande desconhecimento, a
própria hierarquização do conhecimento, parece legitimar mais homens, brancos, ricos
e com alta escolaridade de outras regiões a tecer análises e realizar diagnósticos sobre a
região que a própria população local ou pessoas que vivem o diaadia aqui.
Recordo um evento de que participei em São Paulo de Feminismo e Relações
Internacionais em que fui informada sobre um grupo de professoras que estava
organizando um dossiê sobre gênero na Amazônia. Nenhuma delas era da região ou já
tinha vindo até aqui, assim como, suas pesquisas também não eram de longa data
voltadas para o tema. Em outra situação, após a minha apresentação e de outras pessoas
que viajaram comigo, recebi reações de “surpresa ao saber que havia gente assim
produzindo conhecimento de qualidade lá”, a jovem estudante de São Paulo,
genuinamente me falou, sem imaginar que haveria qualquer tipo de ofensa, ao
complementar que costuma esquecer que tem gente na região produzindo pesquisas.
O cenário, claro, é aqui contextualizado a partir de algumas experiências
isoladas e pessoais, em um espaço ainda de muito restrito acesso e pouca
democratização, mas acho serem simbólicas para o que tratamos em relação à
produção de subjetividades no Brasil, em diálogo com a interseccionalidade e a
decolonialidade.
Como, principalmente, a visão produzida sobre a região produz subjetividades
de um lado, de forma a inferiorizar a intelectualidade, infantilizar, culpabilizar, de
forma que seja necessária uma adaptação ao modelo predominante como validação da
própria existência e forma de pensar da pessoa. Enquanto, em outros espaços e com
outros marcadores sociais, tendese a ter mais acesso à validação da forma de ser,
vestir, pensar. Não significa dizer e simplificar que regionalmente as subjetividades
sejam homogeneamente assim produzidas, mas, dependendo de cada contexto pessoal
diversas formas de opressão e deslegitimação podem se atravessar.
O colonialismo interno e a reprodução de valores da lógica moderno/colonial
está enraizada estruturalmente nas instituições, ao passo que, o processo de produção
de subjetividades visa a adequação de corpos e vidas a tais objetivos, sendo possível
reproduzirmos falas, discursos e termos em nossas decisões diversos destes elementos.
Esta análise que compartilho é oriunda da abordagem feita num evento39 de que
participei em São Paulo e contou com uma mesa com lideranças indígenas que
39
A Conferência Internacional da IFJP, revista feminista de política internacional, foi realizada em São
Paulo no mês de outubro entre os dias 17 e 19.
270
40
Fala de Linda Terena, na Conferência Internacional da IFJP, PUCSP, São Paulo 18 de outubro de
2019.
41
Fala de Valdelice Veron, na Conferência Internacional da IFJP, PUCSP, São Paulo 18 de outubro de
2019.
271
ela estudasse e aprendesse a falar a língua dos purutuie, já que eles só consideram
válido o que está no papel. Ela diz que a morte do seu pai impactou muito sua vida, que
ali mataram todo o medo que ela e os outros tinham, o pior já tinha acontecido.
Assim, o papel é para ela também instrumento de guerra, “eles têm arma, têm
caneta e papel para matar a gente”, “mata a gente pela arma, papel, veneno”, então a
academia é mais uma linha de frente da luta (Veron, 2019). Ela compartilha o que sua
mãe sempre falou, que ela deveria fazer o papel falar também, assim como os purutuie
fazem, mas que o papel falasse pelo povo, para garantir a terra, a justiça e a
demarcação.
Mesmo assumindo a missão como mais uma forma de luta, Valdelice reforça o
quanto é uma educação que machuca, e que apesar de todas as violências é possível
ainda nesses e outros espaços encontrar pessoas que possam dançar o puxiré juntos,
que é como se pode contribuir para as lutas dos povos originários, dançando juntos,
não roubando o protagonismo ou praticando o extrativismo intelectual.
A fala de Valdelice me fez pensar sobre a minha própria relação com a
academia e também com a minha pesquisa. Nos últimos meses, vinha passando por um
processo de crise e questionamentos tanto sobre minha incapacidade intelectual de
apresentar e finalizar o estudo, como também o meu lugar na pesquisa e o quanto as
próprias referências de estudos póscoloniais e decoloniais, assim como discussões
sobre interseções de opressão entre gênero, raça e classe, dos meus próprios privilégios
e da minha insignificância por um lado, na academia, e por outro, no Tapajós e nas
comunidades com quem me relacionava.
Até então havia sido ensinada que, na academia, o pesquisador não deve deixar
transparecer seus valores, deve ser neutro e objetivo, do que muitos pensadores,
obviamente, discordaram em diversos tempos dessa possibilidade. Ainda assim,
mesmo com vertentes mais críticas ao processo de produção de conhecimento, a
estrutura linguística e formal da organização do pensamento continua tendo uma forma
específica na qual o produto final de uma pesquisa deve se encaixar.
Assim, pareciame que o que eu já tinha escrito até então soava como uma
farsa, quando eu pensava no processo real, das ideias que descartei e percebi que
estavam erradas, o quanto eu própria não entendia inicialmente e como apenas
recentemente consegui ver diversos elementos na minha fala, pensamento e decisões
acerca da pesquisa alinhados ao meu lugar na sociedade. Por fim, a forma como a tese
vinha sendo escrita me fez pensar sobre o que Valdelice apontou sobre extrativismo
272
intelectual, quando daquilo que eu pretendia apresentar de certa forma poderia se dar
nesse sentido e as próprias dificuldades de como fazer isso sendo justa a todas as
contribuições e trocas que não vieram apenas de mim. Ainda me questiono se a
produção de conhecimento na academia possa de fato se desvencilhar desse tipo de
prática; se realmente é possível, nos moldes que produzimos, não ser apenas uma
forma desejada e legitimada de extrativismo intelectual.
Considero, então, que a forma como eu estava me posicionando dentro do
estudo e como o escrevia estava levando a um processo de incompatibilidade com a
minha experiência, reduzindo a importância das pessoas que a compartilharam comigo
e aumentando o papel de autores e autoras que não necessariamente escreveram sobre
o contexto, mas que constantemente fiz esforços para tentar encontrar paralelos, em
busca da legitimação do que vivi e daquilo que foi partilhado comigo.
Não pretendo, em momento algum, equiparar a experiência que Linda Terena e
Valdelice Veron tiveram no contexto acadêmico, espaço este obviamente muito mais
pensado para ser ocupado por pessoas como eu. Ainda assim, a produção de
conhecimento na educação a partir de uma referência ocidental envolve práticas de
violência que atingem de outras formas todos que por ela passam. Sentirse sempre
uma farsa por estar ocupando um espaço seja pela origem, por ser mulher ou por ser
jovem, também são formas de operação da subjetividade capitalística, dentro do
analisado anteriormente.
Em uma conversa pessoal com Julieta Paredes durante o evento,
compartilhamos sobre os processos de resistência nesse cenário e em determinado
ponto ela ao me ouvir falar de meus privilégios questionou se o que eu estava me
referindo eram realmente privilégios ou apenas meus direitos, se, na verdade, em sua
opinião, esses espaços não foram feitos também para pessoas como eu ocuparem e que
ao chegarmos lá, fazem com que nos sintamos culpadas como uma estratégia de
manutenção do próprio poder e privilégios dos que estão “muito mais acima”.
Apesar disso, acredito que a conformação que em certo ponto pode parecer uma
imposição de caminho a seguir, ao nos cooptar também nos torna de certa forma
“cúmplices”. Logo, não penso que apontar isso seja uma forma de se “vitimizar”, mas
uma constatação de como as subjetividades e experiências são atravessada de
diferentes formas dentro dessa lógica, visando fazer com os sujeitos se esforcem para
se adequar e assim reforcem e produzam o sistema como se apresenta, validandoo. E,
como a partir de diferentes posicionalidades sociais, as relações serão variadas.
273
das políticas atuais feita pelos pesquisadores Stephen Pacala, professor de ecologia na
Universidade de Princeton, Adalberto Veríssimo, ecólogo, Tasso Azevedo, engenheiro
florestal, e João Biehl, antropólogo.
Os pesquisadores partiram de um cenário catastrófico para uma simulação dos
impactos que uma transformação da floresta amazônica em pasto significaria para o
clima, chegando a cenários de diminuição de 25% das chuvas no Brasil, aumento da
temperatura e um prejuízo catastrófico para a agricultura e produção de energia. Não
necessariamente entrando nas especificidades da metodologia e dos cenários, destaco
dois pontos interessantes para nossa discussão: a quantificação do impacto futuro a
partir de práticas e de acordo com o projeto de nação brasileiro para a região e a
própria insustentabilidade do modelo econômico.
O exercício imaginativo pode também ser pensado junto com todas as outras
análises apontadas e também referências utilizadas no percurso desse estudo às
subjetividades dos próprios pesquisadores e analistas citados, como as projeções de
futuro e suas preocupações, são indissociáveis de suas subjetividades: enquanto um
renomado professor de Harvard exercita sua imaginação na perspectiva
intervencionista de grandes potências, uma jornalista do sul do país questionando a si e
semelhantes sobre formas de pensar e se relacionar com a Amazônia e povos
amazônidas, como o sociólogo e jornalista santareno se vê pessimista aos 70 anos após
décadas de trabalho analisando a região com o agravamento de uma política de Estado
que se remonta ao século passado.
A relação com o pensar o tempo e o futuro para Agathangelou e Killian (2016)
no tocante às políticas também remonta às bases da sociedade moderna industrializada
eurocentrada. Eles focam em como, no caso das políticas globais, o tempo é um fator
invisível, mas que é tido como natural, permeando as análises políticas sem reconhecer
como se toma o tempo como universal, unilinear, o qual deve ser controlado e
dominado ou, melhor, dizendo, colonizado. Assim, podemos perceber como
abordamos em diversas passagens, o projeto de nação em si e a
modernidade/colonialidade pela lógica do desenvolvimento e do progresso perpassam
por referências temporais e as políticas adotadas a partir desse pensamento nada mais
são do que formas de tentar controlar tal tempo, projetando em algum tipo de “futuro”
a realização de satisfações e desejos.
Agathangelou e Killian (2016) chamam a atenção para como a temporalidade
que marca as produções de conhecimento das relações de poder e na política envolvem
275
a violência como uma ferramenta para controlar o tempo, seja o tempo da perenidade
almejada para o Estado, desse modo:
Death works in secular modern politics in a way that perpetuates and
stabilizes this secular time. For (secular) liberals, violence is
acceptable when it makes possible an imaginary of the project of
modernity. Death is acceptable where it is the property of the state,
triggering the question why some violence (outside history) is
considered a threat while other violence (within secular history) is
not. (Agathangelou e Killian, 2016, p. 12)
Daí a relação que eles fazem também com Frantz Fanon que indica como o
tempo vai ser também um mecanismo de colonização. Abordado anteriormente, é
imprescindível para pensar qualquer relação de política como a concepção e relação
que se tem com o tempo se dão nas subjetividades. Tanto em sentido pessoal e
individual, mas também social e coletivo. Para Agathangelou e Killian (2016, p. 14) a
ficção do tempo é como uma força que coproduz subjetividade e que é empregada
como um dispositivo de poder regulatório (colonial, neocolonial, imperial ou outro).
Assim também, observo que o momento político tem trazido à tona muito
dessas relações em torno de estratégias e práticas de produção de subjetividades.
quando pensamos na marcha das mulheres indígenas, na romaria do bem viver no PAE
Lago Grande, na organização de lideranças e representantes indígenas em viagens pelo
mundo denunciando a situação no Brasil, como o Cacique Raoni.
Enquanto indivíduos cuja subjetividade capitalística pode ter passado por
desestabilizações recentemente, muitas linhas de fuga têm sido em direção
abolicionista/destrutiva, marcado por pessimismo, sentimento de impotência como
fortes predominantes. Enquanto os povos, que sempre se organizaram e resistiram
continuam fazendo, lembrando mais uma vez a frase de Ailton Krenak (2019) sobre
preocuparse mais como os brancos conseguirão sobreviver aos tempos de ascensão da
extremadireita do que com os povos indígenas, que têm resistido há 500 anos.
As resistências/dissidências/microrrevoluções se dão por diversos fatores, mas
ocorrem com mais intensidade em grupos que não possuem uma cultura totalmente
interligada ao capitalismo e que suas relações e cosmovisões são independentes e
autônomas a este sistema, produzindo, assim, subjetividades que tensionam e
questionam a narrativa dominante.
Deleuze e Guattari (1997) propõem que a resistência é possível pelo
nomadismo, pela movimentação das linhas de segmentaridade, da produção de novas
subjetividades em um tempoespaço que não seja definido e limitado pelo Estado
276
42
“O projeto visa consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte. A
ferrovia conta com uma extensão de 933 km, conectando a região produtora de grãos do CentroOeste ao
Estado do Pará, desembocando no Porto de Miritituba. Estão previstos, também, o ramal de
Santarenzinho, entre Itaituba e Santarenzinho, no município de Rurópolis/PA, com 32 km, e o ramal de
Itapacurá, com 11 km. (...)O projeto faz frente à expansão da fronteira agrícola brasileira e à demanda
por uma infraestrutura integrada de transportes de carga.” (Programa de Parcerias de Investimento,
2020). Disponível em: <https://www.ppi.gov.br/ef170mtpaferrograo>. Acesso em: 01/05/2020.
278
outras regiões (Sul 21,2; CentroOeste 39,5; Nordeste 54,2; e, Sudeste 51,6), sendo a
média nacional de 48,4.
O cenário é crítico. E após o país passar de 100 mil pessoas mortas por
COVID19 – de acordo com dados oficiais, visto que se sugere haver subnotificação –
em combinação com a flexibilização das medidas de isolamento, como a reabertura de
comércio – esperase que os efeitos da pandemia continuem por um tempo na região.
Apesar disso, mesmo no contexto da pandemia global de COVID19, em que a
população da região tem sido uma das mais atingidas, tramita no congresso a Medida
Provisória nº 910/2019 que propõe uma ampla regularização fundiária que movimentos
sociais e analistas apontam como de alto risco para legalização da grilagem. A pressão
popular na Internet e por redes sociais, por conta do isolamento social, tem conseguido
por duas vezes retirar da pauta a votação da medida.
Ademais, o vídeo de uma reunião ministerial que foi publicizada por decisão
judicial pelo ministro do STF Celso de Mello, em 22 de maio de 202044, trouxe à tona
diversas falas problemáticas proferidas pelo presidente e seus ministros, em especial
sobre os povos indígenas e políticas ambientais que afetam diretamente a Amazônia.
Algumas destas reafirmam indicações feitas previamente neste estudo sobre o teor do
projeto de nação de forma cristalizada sobre suas fundações.
O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, manifestou seu incômodo com
termos utilizados para se referir aos povos indígenas e sinalou que isto seria uma forma
de questionar a ideia de povo brasileiro, ao dizer que “Esse país não é... odeio o termo
"povos indígenas", odeio esse termo. Odeio. O "povo cigano". Só tem um povo nesse
país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser
preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que
ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios” (STF, 2020, p. 54).
A negação da pluralidade cultural e da reafirmação de uma ideia homogênea de povo
presente na fala do ministro demonstra como a linguagem é um lugar de
desestabilização de ideais e, segundo ele, precisa ser controlado para evitar a ideia de
que há a existência ou anuência com outros modos de vida e culturas, aproximandose
do que se entende pelo discurso falacioso da democracia racial.
44
O vídeo citado veio à tona em meio a mais uma crise política do governo Bolsonaro envolvendo
acusações do agora exministro da Justiça Sérgio Moro sobre tentativas de intervenção do presidente na
Polícia Federal. A reunião ministerial em questão ocorreu no dia 22 de abril de 2020, pouco antes da
saída de Sérgio Moro do governo. Os vídeos e o laudo estão disponíveis em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443959>.
281
mas apenas mediados/agenciados por este. Logo, é ele a quem se recorre para a atenção
a essas necessidades.
E, é nesta dinâmica que se dá a constante axiomatização dos fluxos e de
cooptação de muitos movimentos. Ainda assim, as subjetividades singularizadas
continuam sendo produzidas e construindo novos agenciamentos coletivos de
enunciação e “máquinas de guerra” seguem criando espaçosliso e temposliso.
Apesar de Deleuze e Guattari analisarem com muita ênfase a potencialidade
dos movimentos sociais (inclusive feministas), a abordagem a que se propõe
desenvolver aqui foca mulheres individuais, mas reconhecendo a produção de
subjetividade em sentido social/coletivo/agenciado. Também, no contexto do Tapajós,
estas mulheres relacionamse com movimentos e comunidades que propiciam a
produção de subjetividades nômades.
Isto se justifica pelo fato que, enquanto a própria questão de “gênero” e “sexo”
são partes das linhas duras/molares da subjetividade, ou seja, são fixas, estáveis e
definidas por binarismos, elas produzem subjetividades diferenciadas para quem será
identificado como homem ou mulher, assim como a noção de “raça” também atravessa
a produção de subjetividades em sociedades moldadas na lógica moderna/colonial.
Logo, pensar o futuro e subjetividades neste contexto necessita um
reconhecimento dessa diferenciação, como sujeitas e sujeitos serão socializados ou,
terão suas subjetividades produzidas, de formas diferentes e como isso influenciará nas
percepções tidas sobre o mundo, sobre si e seus desejos.
284
O que alguém quer para a sua vida? É uma pergunta que poderia ser respondida
de mais de sete bilhões de maneiras por mais de sete bilhões de pessoas. E, se essas
pessoas fizessem essa mesma pergunta novamente um dia, um mês ou um ano depois,
talvez todas essas respostas sejam um pouco diferentes. Portanto, embora não seja
exatamente dessa maneira, alguém poderia argumentar que as instituições econômicas,
políticas e sociais do mundo hoje em dia buscam basicamente alcançar, ou pelo menos
tentar fornecer meios de garantir objetivos democráticos e de justiça ao maior número
possível de pessoas.
Portanto, a maior parte do mundo é organizada principalmente em Estados
Nação, tanto socialmente como politicamente, a fim de promover o que sua população
precisa e deseja, geralmente baseada em sua complexa noção de passado, presente e
futuro comum em relação às pessoas dentro de suas fronteiras geográficas. Geralmente,
acreditase que a melhor maneira de garantir isso é fortalecendo a participação política
e democrática das pessoas, a escolha de seus representantes e promovendo a elas um
acesso justo à formulação de políticas.
Seguindo a lógica de que os EstadosNação estão localizados em um sistema
mundial dominado por um sistema econômico como o capitalismo, que organiza a
produção, o mercado e as relações sociais para suas necessidades, fica claro que estes
devem se inserir nesse sistema para garantir adequadamente os interesses nacionais de
seu povo, o que significa que eles têm o poder de mediar os interesses das pessoas.
Em um sentido mais amplo, a sociedade internacional, movimentos sociais,
organizações intergovernamentais e Estados vêm se esforçando para definir um terreno
comum, incluindo parâmetros, valores e formas de responder a essa grande questão.
Muitos desses esforços foram gradualmente consolidados desde o século XX, com a
285
45
Apesar de utilizar o conceito de interpelação para reflexão, ela critica outros pontos do pensamento
althusseriano como a redução da análise à questão do determinismo econômico e outros pontos, mas
reforça que o conceito em si é relevante para a compreensão.
287
escapam; Lugones atribui essa noção à subjetividade ativa dos/as colonizados/as que
fraturam o lócus da subjugação.
Lugones propõe não ignorar o efeito das dicotomias impostas pela
colonialidade de gênero (humano/não humano, homem/mulher, etc), já que são
elementos presentes na socialização, mas identificar e reconhecer que essas
subjetividades não são apenas produzidas pela dinâmica do capitalismo na produção de
subjetividades capitalísticas. Na mesma linha, Lugones, Deleuze e Guattari,
consideram a importância de uma relação de coalizão para o avanço da lógica da
diferença, nos termos adotados por ela, o que pode equivaler ao agenciamento coletivo
de enunciação para eles; é o que entende MaldonadoTorres (2007) por giro decolonial.
A hegemonia da modernidade/colonialidade por mais intensa e forte que se
coloque nas estruturas, nas instituições, nos valores e nas agências por meio da mídia,
da educação, entre outras, nunca logrou e dificilmente logrará uma subjetivação total
dos sujeitos. É o que assumo aqui como premissa, ainda que as forças e o
agenciamento dessas subjetividades de individuação sejam predominantes e
estruturantes do contexto social, político e econômico.
Considerase que ao buscar falar de desenvolvimento e de projetos de vida é no
futuro que todos esses elementos se encontram. Ou, melhor dizendo, é numa percepção
temporal que isso se dá: é a disputa pela narrativa do passado, do presente e do futuro;
baseandose e projetandose valores, objetivos, metas em um lugar, um espaço. Ainda
que, como aponta Paredes (2010) e também muitas outras pessoas representantes de
perspectivas anticoloniais, o tempo em si é colonizado nessa lógica.
Para ela, a concepção linear de tempo onde se coloca uma “história da
humanidade” não tem espaço para os povos indígenas, já que os mesmos são fixados
num passado, onde o paradigma da modernidade, a partir de uma visão colonial, define
o que é o moderno e o primitivo e coloca o primeiro como superação do segundo.
Assim, para ela, mesmo que a sociedade diga “trabalhe, se desenvolva…” e tudo siga a
cartilha da modernidade, os povos subalternizados em sentido racial continuam
localizados em um passado (Paredes, 201946), nunca conseguem transpassar essa
fronteira.
46
Fala de Julieta Paredes, na Conferência Internacional da IFJP, PUCSP, São Paulo 18 de outubro de
2019.
291
Logo, ela afirma que descolonizar significa recuperar nosso tempo, nossa vida.
E, como já abordado anteriormente a partir de Deleuze e Guattari, a apropriação do
tempo e do espaço, de lisos a estriados, se dá de forma alinhada ao surgimento do
EstadoNação. O que, YuvalDavis (1997) aborda de forma generificada, ou seja, que
pessoas percebidas a partir das noções de “homem” e “mulher” serão pensadas nesta
estrutura como tendo “papéis” diferenciados, assim como, diferentes grupos sociais e
étnicos todos objetivando fortalecer a nação.
Lapa (2018) sugere que um fatalismo metafísico (produto de um fatalismo
religioso e outro científico) atua na forma de naturalizar a opressão de alguns grupos
como algo inevitável, com o qual se deve conformar, recorrendo ao recurso da
culpabilização do sujeito pela situação que se encontra ao mesmo tempo em que retira
sua agência ao naturalizar seu “destino”, posto que
O capitalismo seria essa marcha de inevitabilidades, de uma ordem
necessária que atribui responsabilidade aos humanos por algo acerca
do qual não podem mudar. Se a culpa no cristianismo é atribuída a
um momento singular anterior vinculado ao Éden – i.e., de um
passado inescapável – no movimento colonial a culpa pela sua
posição social é também única e exclusivamente sua por um passado
que não se pôde ter acesso. (Lapa, 2018, p. 152)
Logo, as ideias naturalizadas de sexo/gênero, família, moralidade, trabalho,
sacrifício, culpa, redenção devem agir todas em torno de um destino inevitável: o
desenvolvimento. Como a ideia de nação perpassa uma relação de “destino comum” e
também de origem, a construção das nações é orientada para o futuro, ainda que tenha
e exalte suas raízes no passado, mas seus objetivos são pautados e justificamse pela
continuidade da existência e sobrevivência do grupo, como da reprodução de uma
cultura e valores específicos, onde as mulheres desempenham um papel, dever, central,
que, no caso do Brasil e outros países frutos da colonização europeia, fundamse na
regulação por parte da Igreja de todas as esferas da vida. Desta forma, o futuro também
depende da regulação dos corpos, no sentido de suas capacidades reprodutivas tanto
biológicas quanto culturais.
A história do Brasil é contada majoritariamente pelos colonizadores e seus
herdeirosdescendentes, de um ponto de vista da “salvação” de uma terra povoada com
culturas “atrasadas” e “primitivas”. Mesmo em algumas revisões críticas dessas
narrativas, como as que condenam o genocídio e etnocídio, assim como a escravidão
contra indígenas e de negros, ou o tráfico e o deslocamento forçado, pouco ou nada se
contesta em relação ao presente desse Estado. Assim, ao longo da história do país
292
47
Utilizei essa expressão por ter ouvido em diferentes ocasiões em conversas e discussões sobre projetos
de desenvolvimento que infelizmente alguém deve se sacrificar, pelo bem coletivo, de todos. O que, no
momento, fez com que eu pensasse sobre a quem é pedido/imposto tal sacrifício recorrentemente
durante a história do Brasil, à custa de quem e para quem tal dinâmica se justifica.
294
“castidade” de mulheres brancas era bem vista e idealizada, as demais mulheres eram
hipersexualizadas e tinham seus corpos ainda mais objetificados.
Por outro lado, eram também muitas vezes vistas como “mulheres a serem
salvas” de homens selvagens ou fracos, como se essas mulheres devessem ser
“resgatadas” e “civilizadas” e como se a tarefa fizesse também parte de certa missão do
homem branco. Shirin M. Rai (2008) identifica a questão como um processo que está
aliado ao projeto político e legitimado pelo poder de uso da força do Estado e pelo
discurso de modernização.
Ela cita o já comentado cenário que se dá na colonização na América Latina e
as violências contra as mulheres indígenas, o que muitas vezes levava também à
abdução destas e ao trabalho forçado em serviços domésticos e de cuidado que
normalmente eram a base da expansão do projeto colonial, tornandoa possível. O
mesmo pode ser analisado no âmbito das mulheres africanas forçadamente deslocadas
e com seu trabalho explorado no Brasil, assim como as nascidas aqui.
Quando as políticas econômicas passam a adotar um viés de inserção no
mercado internacional é também o trabalho das mulheres que é a base da economia
(entre as que viviam em situação de exploração e escravidão, mas também as mulheres
que exerciam trabalhos mal ou não remunerados). O que se dá também pela exclusão
do acesso de mulheres a terras, educação e a outros direitos. Paredes (2010) destaca
como, já citado, a partir de 1985 a América Latina passou por um ajuste estrutural ao
neoliberalismo e como sob o pretexto de solucionar as economias destes países houve
um processo de intensificação do cenário de exploração da força de trabalho e da
precarização, principalmente atingindo mulheres trabalhadoras rurais e urbanas
proletárias, negras e indígenas.
Assim como, ela aponta como ao mesmo tempo mulheres de classe média e alta
se beneficiaram do período neoliberal, onde ganharam proeminência também ONGs
capitaneadas por mulheres orientadas ao feminismo liberal e burguês (Paredes, 2010),
predominantemente branco. Enquanto o trabalho manual e doméstico, executado por
outras mulheres, continuou sendo base dessas atuações, pautas e avanços conquistados
se restringiram basicamente aos interesses de uma classe específica, sem que houvesse
impacto estrutural no capitalismo e no EstadoNação, mantendo, assim, certo status
quo.
O que, mais uma vez, remonta ao processo de axiomatização de fluxos
decodificados, como uma estratégia de se esvaziar movimentos sociais. Paredes (2010)
301
projetos são muitas vezes concebidos para fazer cumprir as expectativas estrangeiras,
falhando em compreender a vida das mulheres para as quais se destinam, como bem
como seu papel dentro de suas comunidades. Ao vitimizar mulheres em países do
“Terceiro Mundo”, negando sua agência dentro do contexto social em que estão
inseridas, essas iniciativas frequentemente se enredam em sua própria forma de
colonialidade de gênero.
Mulheres e homens têm, assim, seus projetos de vida atravessados por essas
linhas. Mas, como já discutido em momentos anteriores, essa dinâmica não é
totalmente assimilada ou tampouco passivamente recebida. Os modos de vida e as
formas de organizações sociais, assim como as subjetividades, resistem há séculos
enquanto fluxos que escapam a uma lógica que se mostra predominante, mas não
totalmente dominante.
Assim, apesar de se voltar para o cotidiano das vidas de mulheres e,
principalmente, suas construções diárias sobre como viver e defender seus modos de
viver, buscase relacionar essas construções com um contexto macropolítico que
envolve a ideia de desenvolvimento e como esta se insere no projeto de nação. Logo,
buscouse partir do “projeto de vida” enquanto categoria de análise, que não possui
necessariamente um método, uma fórmula específica de definição, mas que se entende
e assume que este se relaciona com:
1. A produção de subjetividade em relação ao desejo, com o Estado e o
capitalismo;
2. A lógica da modernidade/colonialidade e os eixos de colonialidades;
3. A percepção espaçotemporal de cada sujeito/a e em seus contextos;
4. As políticas adotadas no esteio de um projeto de nação.
Pensei que, ao abordar os projetos de vida de indivíduos seria possível ter um
vislumbre privilegiado das relações e dinâmicas de poder numa sociedade e da forma
como a macropolítica e a micropolítica os atravessam. Analisar os projetos de vida
possibilita pensar o futuropresentepassado, a relação consigo, com o lugar, com a
comunidade/sociedade e os seus relacionamentos, com o contexto social e político,
com os sonhos e desejos, as limitações e as condições reais da vida. Assim como,
permite pensar as diferentes formas de processar contextos similares e a possível
influência de marcadores de gênero, de classe e de raça.
Enquanto inserida numa abordagem decolonial e também aproximada à
esquizoanálise, não se adota uma referência de fixar uma categoria de análise muito
303
Destaquei nas seções anteriores como desde 2015 e, mais fortemente, 2016, as
principais formas de articulação e enfrentamento a políticas desenvolvimentistas que
têm sido impulsionadas e protagonizadas por mulheres indígenas e, com destaque, para
articulações de mulheres na região do Tapajós, aqui mais profundamente analisada. O
que, de certa forma, corrobora com o apontamento de Chandra Mohanty (2003) sobre
como que os sintomas e os sinais das dinâmicas de poder serão mais perceptíveis nos
corpos e nas vidas de mulheres e meninas que estão mais “à margem” de tal sistema.
Assim, olhar para as vidas das pessoas não é distanciarse de fatores macro,
mas aproximarse deles. Isto permite até mesmo uma percepção mais imediata de seus
efeitos, quando as pessoas reagem a tais processos. A crise política deflagrada desde
2014, que tem desde então apenas se agravado, tem sido acompanhada pelo
fortalecimento e mais articulação de resistência, principalmente de povos indígenas,
cujas formas de vida são diretamente incompatíveis com o projeto de nação, como
exposto aqui em cartas e declarações.
Da mesma forma, tem ficado explícito no contexto político, como nas eleições
de 2018, as mulheres foram um grupo majoritário e protagonista no impulso de
rejeição ao então candidato e hoje presidente, Jair Bolsonaro; assim como os povos
indígenas, movimentos negros e LGBTQI+. São sinais de como as subjetividades e as
linhas de segmentaridade, que nos atravessam, possibilitam que momentos políticos
sejam sentidos e percebidos de formas diferentes pelas pessoas.
Não pretendo afirmar aqui que tais processos tenham sido consensuais, mas
como as organizações recentes têm se articulado em torno das subjetividades, pela
aproximação de similaridades de modos de viver do que se deseja para si e para a
coletividade, são formas de se organizar. Contudo, apesar de não ter podido ignorar o
cenário político que acompanhou a formulação deste estudo, de 2017 a 2019,
finalizandose no início de 2020, o foco não era necessariamente partir de um contexto
macropolítico para perceber o micropolítico, mas o contrário.
Não foi a intenção focar em movimentos sociais, que seria uma opção
extremamente relevante para perceber a época em que vivemos. Busquei observar
vivências de mulheres no Tapajós, na Amazônia; como suas vidas e suas formas de
processar os acontecimentos, as políticas, suas próprias necessidades e desejos, as
relações com o lugar, com a coletividade, como tudo isso poderia contribuir com
ferramentas para entender como nós nos relacionamos com o meio em que vivemos,
sendo este, atualmente, predominado pelas dinâmicas capitalistas e estatocêntricas.
314
Da aproximação que me propus fazer nos últimos anos sobre tal premissa,
alguns pontos emergiram. Enquanto eu parti de uma noção prévia de que ora tínhamos
projetos de vida/subjetividades alinhados e identificados como compatíveis com o
projeto de nação, ora tínhamos também outros projetos de vida/subjetividades que se
mostravam incompatíveis e, abertamente, propunham rupturas com tal estrutura e seus
parâmetros; o que acabei por perceber foram as subjetividades atravessadas por essas
ambiguidades.
Acho importante rememorar as entrevistas realizadas, as conversas ocorridas,
as pessoas que conheci, que não foram necessariamente ao acaso; não houve uma
manifestação também consciente de quem eu buscava para falar sobre projetos de vida.
Como a pesquisa se desenrolou como uma viagem, pessoas que conheci pelo caminho,
primeiramente em um processo de aproximação, pessoas que me foram apresentadas
por outras que eu já conhecia e, elas próprias, que identificaram o que eu devia
conhecer.
Assim, não houve um critério rígido, uma seleção, quem se aproximou e eu me
aproximei, quem se sentiu à vontade para compartilhar comigo e com quem eu também
troquei muito de mim, foram mulheres que estavam, como Cris e Fernanda, saindo de
suas vidas no Rio de Janeiro, em uma crise com o modelo de modernidade, em busca
de outra forma de viver, em AlterdoChão, na Amazônia, como eu também estava –
ainda que a possibilidade de comunicação pela Internet e ligações com amigos e
familiares das cidades de origem tenham sido importantes para a manutenção dos
vínculos.
Lalah, uma referência que Cris me apresentou como alguém da região que eu
precisava conhecer para entender muito sobre o contexto ali vivido e a pujança dos
povos indígenas no Tapajós. Outras pessoas, como Nice e seu marido Rosivaldo, suas
filhas Aline e Priscila, amigos de Cris, com quem estabeleci uma relação muito
profunda imediatamente, que sobrevive hoje além deste estudo, por mensagens de
ajuda com urgências, com notícias de nascimentos, acontecimentos corriqueiros
também, até mesmo sendo nomeada como “assessora” nas postagens do perfil do
Instagram da Maloca da Nice, como uma estratégia para melhorar a divulgação – que
foi uma demanda a partir de um curso ofertado pelo ICMBio recentemente.
315
Pessoas como Luza, Gildson, Enilde, Seu Colau, Dona Elzinha, Dona Elza,
suas filhas, todas as crianças da Coroca, que me acolheram, tomaram banho de rio
comigo, conversaram comigo sobre suas vivências comigo e eu com as minhas, sobre
nossas semelhanças e diferenças, sobre os seus e os meus projetos de vida, sobre o que
nos assustava e o que queríamos.
Assim, conheci muitas pessoas enquanto a tese caminhava. A maioria das
pessoas que conheci foram mulheres, o que acabou sendo um elemento de certo
direcionamento, pois percebi uma proximidade e facilidade maior nessa troca,
provavelmente por eu também ser mulher. Com todas eu tenho identificações e
diferenciações. Como o fato de ser amazônida, como a maioria, mas também por ter
crises em relação ao meu contexto de vida num cenário urbano, acadêmico,
assalariado, de classe média, como outras. Estou numa faixa etária próxima a de muitas
delas, ao mesmo tempo em que também não tenho filhos e não pretendo têlos, como
algumas outras.
Acredito haver certo risco de o estudo parecer um processo demasiadamente
egocêntrico, sendo analisado dentro dos parâmetros consolidados da ciência
eurocentrada em torno de princípios, alguns às vezes falaciosos como a neutralidade e
a objetividade, contudo, se o tema fosse outro, talvez fosse até possível simular maior
afastamento, mas, falar de produção de subjetividades, adotando referências de
questionamento descolonial e da esquizoanálise já torna isso em si impossível e
incoerente.
Toda a vivência aqui descrita, assim como as leituras e análises, pesquisas
documentais, atravessaram minhas próprias linhas de segmentaridade, reformulando
minha noção de como viver, apontando outras formas, outros objetivos, outros
parâmetros. E, nesse caso, é impossível adotar um exercício falso como quando
desconsideramos a resistência do ar na Física. Há resistência no ar e nas linhas e as
vivências influenciaram diretamente no resultado aqui alcançado.
Por fim, as pessoas que entrevistei diretamente acabaram sendo mulheres que
estavam/estão todas, assim como eu, atravessadas por tais processos e em relações
diferentes de fronteira. Mesmo Lalah, que possui uma identidade indígena demarcada,
apontou como foi lento e demorado, na sua percepção, a sua tomada de consciência da
sua identidade e seu pertencimento à Amazônia.
316
48
Já no contexto da pandemia, que se agravou no Brasil em março e levou ao isolamento social de parte
da população, mais uma vez houve declarações de representantes dos interesses do mercado sem
qualquer constragimento às políticas inadequadas do governo. Sócios da XP Investimentos relativizaram
a crise, já que para eles no início do mês de maio “o pico da doença já passou quando a gente analisa a
classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela,
o que acaba dificultando o processo todo” (Benchimol, apud, Moura, 2020).
49
Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta o isolamento como o método mais efetivo
de mitigar o impacto da pandemia, no Brasil, o presidente tem questionado a relevância da medida e se
321
mostrado contrário ao movimento, pois acredita que isso agravaria a crise econômica, questão que não
pode deixar de ser a prioridade. Em março de 2020, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia (DEM), afirmou que a pressão para que o comércio seja aberto é feita por investidores que
perderam dinheiro na Bolsa (Jubé e Gregorio, 2020).
322
Não à toa, muitas das pessoas que conheci que estavam de mudança ou
passagem pela Amazônia e especificamente por AlterdoChão, tenham várias vezes
implicado certa “ausência” do capitalismo e do Estado aqui, tanto a partir de uma
construção imaginária sobre o lugar, mas também por perceberem outras formas de
viver. Contudo, não significa que o Estado e o capital não estejam presentes na
Amazônia, talvez seja ainda uma região em que a produção de subjetividades seja mais
singularizada, por todos os fatores até então apontados.
Muitos, e aqui me incluo, que saem do contexto de uma vida completamente
desenhada pelas necessidades do EstadoNação capitalista, percebem uma forma de se
relacionar com o tempo e espaço diferente, conseguindo projetar mais facilmente outra
vida, algo talvez nunca cogitado em outras condições. São nessas linhas molares e
nesses momentos que essas microrrevoluções ocorrem, nunca de forma individual,
sempre em relação com a coletividade, só sendo possível em movimento.
Assim, os caminhos de vida são os percursos que dialogam, sim, de forma mais
implícita com certo projeto de vida. Mas, o caminho não incute necessariamente uma
relação de projeção ou de tempo linear, já que o caminho ressalta ao mesmo tempo a
noção de passado, presente e futuro, ao mesmo tempo. O caminho também é algo que
seguimos, mas que também mudamos, representando assim as interferências e os
atravessamentos das vivências e das subjetividades pela nossa relação conosco e com o
que está fora de nós. Em um projeto lançamos uma possibilidade imaginada, enquanto
no caminho, muitas vezes nos perdemos, paramos, voltamos, e a terminologia implica
diferentes movimento de projeto nesse âmbito.
E, foi com certa feliz surpresa que, ao retomar o contato com algumas das
pessoas com quem eu conversei principalmente em 2017 e 2018, que em uma das
respostas às reformuladas questões que lancei, a expressão “caminhos” estava presente
na fala de Fernanda, por exemplo.
323
Como retomei anteriormente os quatro eixos que adotei, assim como a mudança
de projetos para caminhos e suas motivações, percebi também a necessidade de
repensar alguns questionamentos que haviam me guiado nas entrevistas. Assim, entrei
em contato com quem pude, principalmente via Whatsapp, com quem eu tenho mais
proximidade, para perguntar se havia interesse em responder a novas perguntas para
minha pesquisa, que se encaminhava para sua finalização, para que eu pudesse dialogar
com as novas respostas e aquelas que eu fizera anteriormente. Para quem se
disponibilizou a responder dei as opções de eu ligar e gravar a ligação como conversa
mesmo, a pessoa responder em formato de áudios e, por fim, a resposta ser feita por
escrito. Neste sentido, as novas ponderações propostas foram:
1) O que tu tens pensado sobre a vida ultimamente?;
2) Sobre tudo o que tem acontecido, para onde achas que isso vai?;
3) Como tu querias que a vida fosse?;
4) O que tu esperas da vida hoje?;
5) Quais são teus planos atualmente? Eles mudaram em comparação a dois anos
atrás, por exemplo? (Se quiseres podes comentar qual fator contribuiu para essas
mudanças).
Em relação à primeira pergunta já, pensei que a amplitude em que ela foi
reformulada possibilita que o que tiver mais à tona naquele momento para a pessoa
provavelmente aparecerá como ponto central50; não que seja o elemento principal da
sua vida, mas algo sobre o qual a pessoa tem pensado, talvez se preocupado, ou
planejado, provavelmente tomado muito dos seus pensamentos.
A primeira a responder foi Fernanda, que optou por uma resposta por escrito.
Ela enviou o arquivo para mim no dia 14 de janeiro de 2020. Sobre o que ela tem
pensado sobre a vida ultimamente, ela compartilhou:
Outro dia estava conversando com uma amiga sobre ser uma pessoa
“de fora” vivendo em uma comunidade que é ao mesmo tempo muito
rica em recursos, mas muito pobre em circulação de dinheiro. Sobre
a dificuldade que é entender esse lugar que a gente ocupa quando
deixa para trás um modelo de vida que a gente não acredita mais e
chega em um outro lugar que ainda não é assim, mas que quer ser,
porque acredita que este modelo (que pra gente está falido) é o ideal
a ser atingido (Fernanda, por escrito, em 14 de janeiro de 2020, de
AlterdoChão).
50
Inicialmente na pesquisa, a primeira pergunta/eixo era: Como é viver aqui pra ti?
324
Nossa conclusão foi mais ou menos assim: a gente vem pro Pará
sabendo que é o estado que mais desmata e que mais persegue
aqueles que se opõem ao “crescimento” que eles almejam. Mas
quando chegamos aqui e nos deparamos com a beleza e a
exuberância da natureza, a gente se esquece disso e muitas vezes
acaba capturado pelo fetichismo de uma conexão quase esotérica
com o lugar. Daí, como a gente vem do sudeste e de um modelo de
produtividade, a gente se acha muito agilizado e conhecedor dos
caminhos para se viabilizar projetos (como editais, ONGs e outras
instituições já enquadrados no modus operandi que a gente
justamente estava fugindo), e começa a propor ações que a gente
acha corretas e que podem “ajudar”, podem “melhorar” a vida
dessas pessoas. Resquício ainda da nossa síndrome do branco
colonizador. Nem sempre a gente se dá ao trabalho de saber se é
isso mesmo que os daqui querem, ou até se eles querem que a gente
faça isso por eles. Então, a gente vem propor conservação ambiental
e eles estão loucos para vender suas terrinhas por míseros reais, mas
que pra eles parece muito. A gente está pautando uma vida menos
conectada na internet (que a gente mesmo não consegue fazer) e eles
estão loucos pra ter Netflix e Instagram.
A verdade é que eles estão há muito tempo esperando uma
oportunidade de viver como nós. E enquanto eles estão cada vez
mais próximos desse objetivo de vida, a gente chega e diz que não
pode ser assim, que vai poluir, que vai acabar. Então eles estão
cansados da gente chegar aqui e dizer como tem que ser.
325
51
Nos eixos anteriores adotados na pesquisa a segunda pergunta tratava sobre o que a pessoa almejava, o
que ela considerava importante. A terceira se referia a acontecimentos macropolíticos, assim, houve uma
inversão dessa lógica e reformulação.
326
Como nós duas conversamos muito e sempre estamos nos atualizando sobre
alguns acontecimentos, penso que o destaque para a questão da tecnologia apontado
por ela possa ter relação com alguns projetos de que ela participou recentemente, onde
conheceu comunidades, principalmente do estado do Amazonas, que, diferente das que
até então ela tinha conhecido no Tapajós, já vivem em situações mais precarizadas em
relação à alimentação, saneamento e outros serviços básicos, como água potável,
conversando e percebendo bastante o interesse na aquisição e adaptação a outras
dinâmicas também que normalmente são atreladas ao desenvolvimento como a
Internet, o celular.
Para ela, há um elemento que mostra as limitações e meios de atuação do
capitalismo, ao passo que aquilo desejado acaba sendo possível apenas quando atrelado
ao capital que explora o espaço e a natureza, numa espécie de contrapartida necessária
para se possa usufruir de algumas tecnologias, de bens de consumo e até mesmo de
serviços básicos.
Interessante perceber como a narrativa das políticas desenvolvimentistas,
principalmente aquelas que fazem um comparativo com regiões antes e depois da
entrada de grandes multinacionais ou megaprojetos na região é a associação entre o
capital e as melhorias que podem ter sido decorrentes dessa dinâmica, ainda que, tais
políticas nunca ocorram como um benefício para atender à população ou até mesmo
como um retorno pelos males causados, mas por serem as condições mínimas exigidas
para a instalação de tais projetos, como podemos destacar em dois casos no estado Pará
– Barcarena (Maia, 2017) e Tucuruí (Nogueira, 2010). Nesses municípios foram
criadas verdadeiras novas cidades ou vilas para atender ao deslocamento de
funcionários, sem que necessariamente haja uma mudança estrutural ao redor do
empreendimento, havendo uma marginalização dos locais já previamente ocupados,
reproduzindo assimetrias e desigualdades.
Assim, a pergunta seguinte, como querias que a vida fosse, foi respondida por
Fernanda em torno do papel e da importância do dinheiro na sociedade, de modo que
ela “queria que o dinheiro fosse um meio de conseguir coisas importantes para a vida
das pessoas, e não a finalidade, o objetivo final”. Ela questiona a necessidade da
acumulação de riquezas como propósito e não apenas como um meio, ao ponto que ela
tem “um ideal, que seria cada um dar conta de si e dos seus, cuidar pra sua casa e sua
comunidade serem espaços de trocas e construções coletivas, seja materiais ou
afetivas”.
327
52
Nice, áudios pelo whatsapp, em 17 de janeiro de 2020, de Jamaraquá, na Floresta Nacional do
Tapajós.
53
Vakinha Ajuda para a FLONA do Tapajós: http://vaka.me/1113014
330
Sobre os planos para o futuro ela diz que pretende dar uma melhor qualidade de
vida para a família e que em comparação a 2 anos atrás os planos mudaram com o
fluxo de turismo que gerou mais renda para as famílias, possibilitando novos planos. E
ela destaca que um fator principal que possibilitou essa mudança foram “as parcerias
das comunidades com órgãos federais (ICMBio) trazendo capacitação sobre o turismo
de base comunitária”.
Sobre os cursos e parceria com o ICMBio, quando em novembro de 2019
visitei Nice e sua família, em Jamaraquá, ela compartilhou comigo resultados de um
curso que tinha feito sobre a importância de utilizar as redes sociais para divulgação
dos empreendimentos. Ela pediu para eu ficar responsável por administrar o perfil do
Instagram dada a instabilidade do sinal de Internet na comunidade. Durante o curso
citado, enquanto ela apontou isso como uma fraqueza do lugar, os instrutores
levantaram a possibilidade da comunidade se organizar e fazer algo como ocorre em
Maguari, onde o wi-fi é disponibilizado na praça.
Um perfil divulgando o trabalho que Nice e os outros comunitários realizam em
Jamaraquá poderia ser um meio de romper o monopólio que muitos barqueiros que
fazem os passeios de AlterdoChão para a Flona têm, onde lucram a maior parte do
investimento dos turistas, direcionam as pousadas para refeição, o que acaba
interferindo na lógica da organização da comunidade que é de revezar a função
mobilizando uma pessoa de cada família por vez.
332
Por conta disso também, as pessoas não costumam ficar para dormir, o que
aumentaria a renda das comunidades. Isso se dá pelo fato de que os visitantes não
costumam ser informados pelos barqueiros da possibilidade de hospedagem, o que para
eles não seria lucrativo, já que perderiam o valor do retorno à AlterdoChão. Muitos
visitantes acreditam que os passeios de barco sejam o único meio de chegar à Flona e
acabam fazendo apenas visitas de ida e volta no mesmo dia, sob intermediação. Nice e
eu conversamos sobre a possibilidade de ser contactada de forma direta, como ela e as
outras pessoas da comunidade poderiam ter melhor controle e mais oportunidade em
relação ao turismo.
Assim, podese continuar uma análise com referência à Figura 34, em que, por
exemplo, enquanto a subjetividade capitalística envolve basicamente uma premissa de
sujeitoindivíduo, a singularização permite uma possibilidade de relação sujeito
coletivo ou sujeitocomunidade. Suas falas permeiam sempre atravessamentos de
caminhos de vida que são indissociáveis do lugar e das outras pessoas com quem se
relaciona.
Penso que seria interessante observar pessoas que vivem em áreas urbanas, em
diferentes contextos sociais e econômicos, e perceber como essas relações se
manifestam na subjetividade em que o projeto de nação é sobreposto pelo projeto de
lugar, onde o pertencimento é primeiro pensado no pertencimento próximo, não
tomando como referência qualquer tipo de serviço ou papel ligado a uma ideia de
nação imaginada.
E, tais atravessamentos são processados por emoções e corporificados, o que
nos leva às respostas de Cris que, apesar de alguns pontos em comum, também
destacou pontos e os abordou de forma diferente de Nice e Fernanda. Sobre a vida
ultimamente ela diz que:
Tenho pensado que a vida anda muito estranha com o impacto da
política atual no meu dia-a-dia e até no meu humor. Quando acordo
leio as matérias de alguns jornais no meu celular e muitas vezes só
de ver os títulos no Google já altera meu humor e posso iniciar o dia
com raiva, triste ou feliz por perceber avanços por menor que seja.
Me vejo comemorando coisas que antes não era parte de meus
pensamentos cotidianos como o fato de nenhuma criança ter sido
baleada, nenhum direito ter sido retirado ou por ver algum texto ou
vídeo de alguém que teve coragem de enfrentar tudo isto. Acordo
sentindo saudades do tempo que acreditava que as pessoas boas
eram a maioria e de repente me vejo revendo todas as minhas
relações (Cris, por escrito via Whatsapp, em 20 de janeiro de 2020,
de AlterdoChão).
333
Cris menciona como seus pensamentos recentes têm sido ocupados pelo cenário
atual; os sentimentos parecem ser comuns para muitas pessoas de angústica e cansaço,
ao mesmo tempo em que a euforia e a felicidade afloram questões que até pouco tempo
eram vistas de forma naturalizada ou banalizada no cotidiano. Como ela destaca, o
atual contexto tem sido tão violento que cada vitória tem sido a não perda de mais
vidas ou direitos. E, sobre tudo o que tem acontecido e quais os caminhos ou
desdobramentos possíveis, ela responde que
Se me fizesse esta pergunta antes de 2018 diria que caminhávamos
para um futuro de igualdade, mas agora acredito que qualquer coisa
pode acontecer. Ainda sou otimista e acredito que precisávamos
passar por esta crise de caráter para rever nossas falhas e criar algo
novo de tudo que está aí, mas não sei se enquanto sociedade isto vai
demorar um ano ou uma década. Acredito em um momento em que
destruiremos o patriarcado. E que enquanto mulher e negra
pertencendo ao grupo mais vulnerável da sociedade, me sinta segura
para ir e vir.
Ela rememora seus planos em relação à mudança do Rio para Alter, reavaliando
suas motivações e o que esperava para essa nova vida: “quando escolhi sair da cidade
do RJ e vir para Alter acreditava que estava protegida de alguma forma de tudo de
ruim que o machismo e o racismo diário pode nos trazer. Essa necessidade de luta,
resistência de todos os dias que cansa, adoece e consome”.
Contudo, os últimos acontecimentos acabaram por fazêla perceber que muito
do que ela buscava ao se afastar, continua presente e latente em toda a sociedade:
O atual presidente e todo o lixo que veio com ele, me tirou da minha
falsa zona de conforto e me fez ver que não tem como se esconder e
ao contrário do que se espera, eu não adoeci, mas me sinto hoje mais
forte e pronta para tudo. É como se aqui dentro sentisse o impacto
direto de tudo que acontece. É como se eu sentisse na alma que
quando um corpo cai é comigo sim, quando uma injustiça acontece é
comigo sim e não dá para me esconder disto. Antes eu conseguia
separar como o meu e o do outro. Um sofrimento ou felicidade
individual e agora sinto como se só está bom se está bom para todos.
Assim como Fernanda e, principalmente Nice, a fala de Cris dialoga com uma
relação de coletividade, em que as experiências de subjetividade são inseparáveis das
pessoas ao redor, com quem se relaciona e com a sociedade como um todo. Ela
pondera também como o atual cenário político potencializa perceber problemas
estruturais na sociedade e também possibilidades de transformação:
E depois de muita análise de meu projeto de vida e da sociedade ao
meu redor. Percebo que se não tivesse um Bolsonaro para odiarmos,
não teríamos noção do quanto necessitamos avançar enquanto
coletivo, enquanto comunidade. Se Haddad tivesse ganhado. Talvez
estivéssemos tomando cerveja em um bar ou tomando banho de rio,
falando de uma sociedade que nos parecia inclusiva e era muito
excludente, pois todos que estavam de fora acharam que podiam
entrar com ele na sociedade. Seja pela violência sofrida pela falta de
políticas públicas, a falta de educação de qualidade, a da falta de
compreensão da nossa história e muitos outros fatores. Bolsonaro
veio tirar as vendas que cobriam os olhos da esquerda, e nos foi
tirado da pior maneira possível e nós o odiamos por isto. Agora é
hora de correr atrás do prejuízo. Olhar as falhas e avanços.
335
Aprendi a respeitar as águas do Tapajós, toda sua história e sua luta, a ter
paciência, a observar e saber quando ficar, não atravessar, mas também que às vezes é
preciso atravessar mesmo com medo, pois não há escolha. É preciso continuar em
movimento e o movimento é a forma de caminhar a vida.
Figura 37 – Árvore no Rio Arapiuns, que passa metade do ano na água do rio e outra na seca.
Pretendo retomar aqui o caminho que foi feito neste estudo e deixar outros em
aberto. Não acredito serem considerações finais. Busquei traçar até então as discussões
que permearam a elaboração do estudo tanto em sentido oficial, que se deu entre 2017
e janeiro de 2020, como também parte que o precedeu. Procurei apresentar o mais
próximo possível da sua construção como se deu e não o resultado final pronto, pois,
como se pôde perceber, as principais redefinições e contribuições vieram da própria
trajetória e das constantes visitas/viagens realizadas, das trocas, das conversas e das
vivências, tanto com as pessoas que conheci e estabeleci laços, mas também com o
lugar, as comunidades e a natureza, a floresta e o rio.
Intentei trazer a discussão com honestidade e próxima da forma que foi
vivenciada, de modo que não apenas o que depreendi em sentido analítico e teórico
seja uma forma da contribuição. Acredito que também o modo como foi apresentado
permita que outras pessoas possam, com o acesso dado a tantas peculiaridades dessa
experiência, perceber outras dinâmicas que tenham escapado à minha compreensão.
As referências teóricas nas quais me apoiei para a digressão desta tese não são
tidas por mim como inquestionáveis. Elas foram ferramentas que me auxiliaram na
organização das minhas próprias inquietações, forneceram caminhos e muitas
abordagens que talvez possuam até mesmo incongruências entre si; entretanto, elas me
possibilitaram encontros e complementaridades na análise decorrida.
Um dos pontos centrais que apareceu durante a tese, mas que não era algo que
eu própria antecipava é o questionamento de padrões e sensos comuns sobre fluxos de
migração e parâmetros de desenvolvimento. A migração para a região sempre foi
constante, sugerindo como a visão consolidada da necessidade de migração rural
urbana como elemento da modernidade eclipsa o movimento constante de entrada tanto
do capital por meio de migrações incentivadas e como se embasa na ideia de “terra
prometida”.
342
sugiro, mantémse no projeto de nação brasileiro justamente por meio das políticas que
desqualificam os modos de vida presentes não apenas na Amazônia, mas que dela
muito se utilizam discursivamente na reprodução das imagens citadas anteriormente.
Percebo que o processo de subalternização das subjetividades, da negação da
humanidade (colonialidade do ser para MaldonadoTorres [2007]), pelas práticas
inerentes à desvalorização de conhecimentos, epistemologias e saberes que não fossem
compatíveis com uma ciência eurocentrada (colonialidade do saber para Mignolo
[2017]), tornou possível: i) a invenção da Amazônia – por meio de relatos inicialmente
de viajantes, colonizadores e depois também cientistas principalmente europeus –
enquanto uma região homogeneizada, ignorando as referências territoriais e
compreensões prévias sobre o lugar a partir de um mito de origem europeia; ii) a
associação à região como indígena e, por consequência, localizada em um tempo
passado – não sendo problemático o reconhecimento da presença indígena na região,
mas, sendoo por tal atribuição ter como objetivo a própria negação do caráter indígena
no restante do território nacional.
A produção da subjetividade da Amazônia se dá, assim, pautada na
colonialidade de cunho racista (com a relação indígenaprimitivoprecisaser
desenvolvido), atribuindo inversamente ao lugar tido como mais “desenvolvido” uma
branquidade, principalmente localizadas em regiões centrais como Sudeste, Sul e
Distrito Federal. Tais subjetividades regionais racializadas, contudo, não se preocupam
em reproduzir uma realidade da presença de pessoas brancas, negras ou indígenas, mas
é utilizada como um discurso que impacta nos movimentos e políticas citados. Induzo
que políticas como “terras sem homens para homens sem terra” para a integração da
Amazônia ao território nacional possuem uma camada submersa de justificativa
racializada. Ou seja, falam sobre a ocupação de um espaço por “homens” que são
considerados humanos enquanto reprodutores de valores e culturas “modernas”.
Tal empreitada é situada no eixo da colonialidade da “Mãe Natureza” (Walsh,
2007), de modo que deve se defende a dominação do lugar por meio da infiltração do
capitalismo em atividades como a agropecuária, mineração, construção de hidrelétricas
– enfim, a derrubada de tudo aquilo que representa atraso (floresta) e da transformação
do lugar a serviço dos interesses econômicos do projeto de nação. Esse eixo de
colonialidade referese à forma que a natureza será também inferiorizada na relação
com a colonização, separada da relação social/humana, de forma diferente que povos
originários atribuem à mesma, logo, a natureza é identificada na colonialidade como
344
Como colocado também por Deleuze e Guattari (1995, 1996, 1997) e Guattari e Rolnik
(1997) pela produção da subjetividade capitalística.
Enquanto a Amazônia, no singular e no substantivo feminino, é subjugada no
projeto de nação como obstáculo e ao mesmo tempo solução para o problema do
Brasil, a saber, o subdesenvolvimento, as vidas e culturas das populações amazônicas
continuam sendo atropeladas por políticas e megaprojetos desenvolvimentistas. E há
décadas, o projeto desenvolvimentista tem demonstrado que, para se ter acesso a
alguns direitos básicos é preciso abrir mão de outros, como a autonomia –
assemelhandose ao que Isabelle Stengers (2015) denomina “alternativas infernais”.
O saneamento, a luz, a educação e a saúde são precarizados a ponto de se ter
que desejar o capitalismo para que haja uma esperança de garantia de direitos, como
uma espécie de vendacasada feita pela aliança entre o Estado e o capital, ainda que da
promessa pouco ou nada se cumpra em muitos casos. Ao mesmo tempo, essa
modernidade, associada aos parâmetros citados, caminha ao lado da colonialidade,
responsável pela inferiorização e desvalorização das respostas culturais que as
populações carregam consigo. Limitando a reprodução do conhecimento por meio da
língua, da educação escolarizada e de um currículo eurocêntrico, reproduzindo um
sentido de constrangimento em tudo aquilo tido como “tradicional”. Taxando como
atrasados os sistemas culturais de saúde dos povos da floresta, originários, em
comunidades remanescentes de quilombos e povos ribeirinhos, a ponto de cada vez
menos pessoas se assumirem como benzedeiras ou se interessarem em aprender ofícios
como as parteiras.
Assim, a destruição por forças estruturais de outros modos de vida acaba
mostrando como única opção restante a assimilação de uma vida em consonância com
o capitalismo. Da mesma forma, o trabalho na terra passa a ser desvalorizado e em
alguns casos criminalizado, que as terras são tomadas pela justificativa do progresso,
que populações inteiras são deslocadas como se não houvesse relação delas com o
lugar ou como se essa relação seja menos importante, para permitir a entrada do capital
e a exploração da natureza pelo interesse nacional, que nunca beneficia a todos, mas a
quem está nos critérios para ser considerado um representante legítimo da nação.
Tal processo se mostrou ainda mais intenso com os desdobramentos da
pandemia, posto que as três localidades têm como principal atividade econômica o
turismo. Sendo possível observar como as referidas benesses, aumento na renda,
diminuição da dependência de um trabalho com sequelas para o corpo – como o roçado
346
– também tem seus riscos, que Priscila já havia alertado, pois ao depender do fluxo de
turistas não se produz uma forma de sobrevivência autônoma. Ademais, a inserção
dessas atividades econômicas ligadas diretamente ao capitalismo incide em
transformações nas relações comunitárias – estimulandose a desconfiança entre
comunitários, no incentivo ao surgimento de desigualdades, que rompam com a
articulação que permite muitas vezes resistir ao avanço do capitalismo.
A produção de subjetividades aqui abordada e sua relação com o Estado e o
capitalismo, assim como outras dinâmicas e estruturas correlacionadas, possibilitam
expandir para a análise da atuação de agenciamento feito por espaços como a escola, a
mídia, as igrejas, e outros que contribuem para a reprodução e a manutenção de
subjetividades alinhadas a um projeto de nação. Da mesma forma é possível perceber
como tais espaços podem ser – e são – fontes de ruptura, de singularização das
subjetividades. O que pode ser abordado em outros estudos.
Como Cris apontou, provavelmente, o atual cenário apesar de ser percebido por
parte da população como um período de inseguranças, medo e de aumento da
repressão, também nos permite atentar para processos que poderiam estar neutralizados
ou aparentemente melhorados, sem que mudanças estruturais fossem feitas, dando uma
falsa impressão de superação de problemas estruturais. Como ela discorre, é um
período importante para reavaliação das estratégias, ferramentas e práticas de
resistência e transformação social que têm sido utilizadas.
Falar e ouvir principalmente mulheres fez com que essa leitura do social se
apresentasse de forma mais holística ao pensar em si e sempre na sociedade em relação
com elas, como atravessamentos pautados em saúde, segurança, bem viver,
preocupação com as outras gerações. Esses pontos permearam falas, enquanto, em
meio a isso, as pessoas buscavam seus próprios caminhos e como suprir suas
necessidades, para muitas, de forma indissociável. Na fala de muitas a questão da
maternidade se apresentou como um ponto de referência para medir as condições de
vida, o desejo de ter ou não filhos, ou, quando já se tem, quais as necessidades e
prioridades. Todas com quem falei manifestaram em sentido geral experiências de
relações afetivas heterossexuais.
Assim, fiquei pensando como seria interessante, provavelmente em outra
oportunidade, abordar sobre como homens percebem tais processos. E também outras
identidades de gênero e orientações sexuais. Apesar do enfoque das entrevistas,
conheci e conversei com alguns homens. Havia, principalmente nas comunidades, uma
347
noção de coletividade no centro do que pensam, mas, por outro lado, a saúde não foi
um elemento que pude perceber tão forte nas falas como nas das mulheres.
Inquietação similar me fez pensar sobre o que teria encontrado se tivesse
desenvolvido tal ponderação com pessoas vivendo em contexto urbano ou também em
outras regiões do Brasil, como no Nordeste, por exemplo, que ocupa um lugar similar
ao da Amazônia no imaginário nacional, mas que possui outras peculiaridades no
processo de colonização e outros fatores importantes que podem contribuir para uma
visão complementar das produções de subjetividades regionais no Brasil.
A região CentroOeste também foi outra que me despertou interesse em tentar
perceber sua construção nesse processo, principalmente quando passei a pesquisar mais
sobre a situação da soja, que é mais forte naquela região e onde existem altas taxas de
suicídio entre povos indígenas, como no caso do estado do Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul. Verificar igualmente, como as subjetividades se produzem em regiões como o
Sudeste e o Sul, que recebem um constante fluxo de migrantes de outras regiões em
busca de mais oportunidades e melhor qualidade de vida.
Ainda no âmbito de contextos urbanos, acredito haver também diferenciações
entre as subjetividades entre bairros com maior concentração de renda e bairros
considerados periféricos, principalmente em cidades identificadas como referência de
riqueza e desenvolvimento nacional, como São Paulo.
Os deslocamentos/movimentos como um ponto central foi inclusive mais
tratado por mim em sentido espacial, contudo, principalmente nos últimos meses, notei
a potencialidade de enfocar também os caminhos de vida em relação ao deslocamento
temporal, geracional, isto é, como as respostas e preocupações foram permeadas
também pelas fases de vida de cada pessoa. Sobre este tema me lembro bem, do
contraste entre o otimismo de Nice, por ter como referência a vida anterior e aquilo que
nela melhorou, e a insegurança de Priscila, por ao mesmo tempo em que reconhece que
a vida está melhor (por ter ainda um filho pequeno e ser muito nova), questionase até
quando aquela dinâmica se sustentará e será possível de se manter.
Pensando ultimamente sobre a vida, reflito que os encontros são determinantes
para os nossos caminhos de vida, que são nas vivências que fortalecemos escolhas e
valores, mas também como eles podem ser desestabilizados, reformulados. O que, tem
sido, para mim, uma forma de encontrar um caminho para a resistência, em mim e por
meio de outras pessoas: conversar, trocar experiências, ouvir, estar junto. Tem sido
uma forma de buscar, quem sabe, um fortalecimento da singularização das
348
subjetividades, por perceber que é impossível uma só revolução, mas são necessárias
muitas revoluções moleculares para se chegar a uma revolução.
Assim como a Cris, acho que, diante de tudo que tem ocorrido, é possível que
qualquer coisa aconteça, que se vá para qualquer caminho, tanto de agravamento de
retirada de direitos e de precarização da vida, mas também de reorganização e
construção de plataformas, estratégias outras que permitam novas revoluções
moleculares e que, assim, o desejo pelo fascismo seja destruído. Contudo, acredito
estar atualmente mais pessimista, por ver que as ações políticas têm sido voltadas para
a destruição das pontes que permitiam uma articulação mais eficiente. Será necessário
construir outras pontes, contudo, não sei será possível realizar isso enquanto sociedade
a tempo de algo pior e irreversível se consolidar.
Gostaria que a vida fosse mais livre para as pessoas, que fosse mais possível
viver da forma como bem se entende, sem tantas limitações estruturais e imposições
sociais, ou, pelo menos, que o caminho de vida que nos é endereçado não fosse tão
adoecedor de tantas formas diferentes.
Espero hoje da vida condições para continuar em busca de respostas, pelas
diversas formas que aprendi durante os meus poucos anos de vida, ouvindo, falando,
escrevendo, lendo, sendo feliz, ter mais tempo, ou que o tempo seja reorganizado para
que eu possa ter uma caminhada fazendo aquilo que me faz bem, mesmo que não me
faça bem todos os dias. Espero poder continuar fazendo perguntas a mim mesma e a
quem se interessar, para chegarmos a alguns pontos de proximidade e reconhecimento
de diferenças, que possamos pensar alternativas, mas também rir quando percebemos
impasses que são apenas diferentes, mas não destrutivos.
Nos últimos dois anos meus planos mudaram muito. Eu imaginava que poderia
terminar a pesquisa e, com o doutorado, como um fim (ainda que temporário) de uma
caminhada acadêmica poderia encontrar uma vida mais livre e, quem sabe, conciliar o
que acredito com o ofício que aprendi – a docência. Os novos ventos no cenário
político, contudo, apontam para uma impossibilidade de mudança nos termos que eu
havia sonhado, de um concurso público na UFOPA, de estar no Tapajós, mais próxima
de tudo o que conheci e das pessoas com quem me relacionei, do lugar que me vi mais
feliz, onde eu posso andar, simplesmente andar.
Apesar das inseguranças, percebi que eu já estava vivendo no Tapajós; pensei
nas pessoas que conheci e que vivem em deslocamentos entre lá e outro lugar, para
tornar possível a vida e o retorno. E que viver em Belém e ir para o Tapajós não são,
349
como eu sempre brincava, duas vidas diferentes, mas partes de uma mesma vida em
deslocamento.
Não foi durante as muitas vezes enquanto me deslocava de barco, a pé, de
ônibus, de avião, que me deparei com a percepção de como as condições em que
vivemos podem moldar nossa relação com o tempo e a expectativa de futuro. Ponderei
sobre isso em momentos me vi imobilizada, fosse pelo acidente com a arraia, a entorse
que sofri posteriormente, na eleição de Bolsonaro, na pandemia e tantos outros eventos
que me fizeram parar e me sentir impotente e limitada a agir.
Foi nesses momentos que me deparei com a incapacidade de fazer planos e até
mesmo a perda de sentido sobre qualquer ideia de “futuro”. E quando o futuro pareceu
desaparecer enquanto uma categoria natural da minha vida outras categorias foram
desestabilizadas em seguida.
Como a citação que abre os apontamentos que encerram, por ora, este estudo,
publicado pelo movimento Indigenous Action, dos Estados Unidos, como uma
provocação a todas as profecias e medos sobre fins do mundo e apocalipses: por que é
mais fácil imaginar o fim do mundo, mas não o fim o do colonialismo?
Diante disso, durante o desenrolar da tese todos esses elementos foram se
conformando na minha análise, não apenas a partir das leituras em si, mas em diálogo
com as experiências e relações construídas com Cris, Nice, Fernanda, Lalah, Aline,
Priscila, Luza, Ivana, Eliane e Dona Elza, assim como todas as outras pessoas com
pude realizar trocas e aprender muito nos últimos anos. A partir de suas colocações
pude repensar muitas concepções minhas que eram insuficientes, como eu mesma
reproduzia/reproduzo uma lógica moderna/colonial na própria formulação da pesquisa
e como a ideia de desenvolvimento, mesmo criticando eu estava assumindo noções de
progresso acerca da temporalidade da mesma forma.
Inicialmente, eu pretendia abordar “visões de futuro” para a região,
reformulando em seguida para “projetos de vida”, mas por fim, chegando a “caminhos
de vida”. Considero que essas mudanças representam a própria transformação na
minha percepção do processo, da minha relocalização. De um afastamento de um lugar
de contemplação para uma vivência de fato, da ideia de que “visões” e “projetos” são
meramente idealizações, o que, não significa dizer que não são importantes ou não
sejam exercícios imaginativos realizados pelas pessoas, mas que, o que se contrapõe de
fato a um “projeto de nação” não seria apenas o mesmo ato de imaginar e projetar, mas
o que de fato se faz, as escolhas e o cotidiano das decisões, dos rumos, das
350
reformulações. É onde se vive e o caminho que se traça que guarda – nos casos aqui
abordados – uma decolonização, um giro decolonial nas mudanças, nas reafirmações,
nos movimentos como mediações dos desejos e prioridades.
O futuro pode ser visto como essa referência do que desejamos e que molda as
ações no presente, mas pode também ser pensado como um tempo que não existe e
nunca chegará – assim como o desenvolvimento nos termos da modernidade. A própria
modernidade é localizada em um passado. Os caminhos de vida não são uma referência
necessariamente temporalizada nessas referências, mas representam o campo de ação
situado em um lugar e que se direcionam por um desejo de viver bem, o que muitas
vezes chamamos de felicidade. Não enquanto um estágio final, uma utopia, mas sendo
em si uma forma de Bem Viver, continuar caminhando.
Enquanto a vida pulsa e se remodela todos os dias como forma de sobreviver e
se refazer, de lidar com os efeitos e as estruturas produzidas pela
modernidade/colonialidade, o projeto de nação fundado nessas bases continua em
movimento também. E, em certos momentos, tais estruturas já foram tão introjetadas
por nós que muitas vezes a única forma de exercício imaginativo do fim dessas
dinâmicas seja o próprio fim do mundo em si – quando nos deparamos com linhas de
fuga de destruição.
O que representa uma dificuldade, limitação até mesmo de imaginar outros
mundos. E quando os sonhos e a imaginação já estão nesse ponto, é quando a
colonização já se deu em níveis muito profundos da sociedade. A incapacidade de se
pensar outro mundo é um pouco o fim também, por isso a colonialidade também age na
colonização da capacidade de sonhar e imaginar. Como diz Ailton Krenak:
Vocês têm uma instituição que se chama universidade, escola, e têm
a instituição também que se chama educação. Todas estas
instituições: educação, escola, universidade, elas estão no sonho, na
casa do conhecimento. (...) E, quando nós sonhamos, nós estamos
entrando num outro plano de conhecimento, onde nós trocamos
impressões com os nossos ancestrais, não só no sentido de nossos
antigos, meus avós, bisavô, gerações anteriores, mas com os
fundadores do mundo. (...) Existem milhões de toneladas de livros,
arquivos, acervos, museus guardando uma chamada memória da
humanidade. E que humanidade é essa que precisa depositar sua
memória nos museus, nos caixotes? Ela não sabe sonhar mais. Então
ela precisa guardar depressa as anotações dessa memória. Como estas
duas memórias se juntam, ou não se juntam? É muito importante para
nossos povos tradicionais que ainda guardam esta memória, herdeiros
dessa tradição, cada vez mais restrita no planeta, ilhados em alguns
cantinhos do Pacífico, da Ásia, da África, aqui da América, num
mundo cada vez mais mudado pelo homem, onde o dia e a noite já
351
não têm mais fronteira, porque inventaram artifícios para ele rodar
direto — dianoitedia. Quando o homem rompe a separação entre o
dia e a noite, como ele vai sonhar? Quando os homens trabalham de
dia, de noite, de dia, de noite, qualquer hora, eles estão se parecendo
muito com a criação dos homens mesmo, que são as máquinas, mas
muito pouco parecido com o criador do homem que é o espírito.
(Krenak, 1992, s/p).
A incapacidade de lidar com outros mundos faz com que alguns – mais que
outros – só consigam imaginar um fim iminente, um colapso total, de si e dos outros,
recaindo por vezes até em um ecofascismo. Isso diz muito mais sobre a falta de
imaginação e a obsessão pela modernidade enquanto tentativa de controlar o tempo, a
natureza, os outros, do que sobre os problemas reais que enfrentamos, visto que a
resposta muitas vezes ofertada para os desafios se pauta na intensificação da origem
dos problemas – como o capitalismo e o colonialismo, mas nunca em um fim destes.
Mas, independente do medo do “moderno” de se perceber falível e falido,
muitas pessoas que conseguem experienciar outra forma de viver – escapando, mesmo
que temporariamente, da dinâmica imposta pelo Estadonação capitalista – podem
desenvolver uma percepção diferente de tempo e espaço, conseguindo conceber
diferentes modos de viver com mais facilidade. É nessas linhas, e nesses momentos,
que as microrrevoluções ocorrem: nunca individualmente, sempre em coletividade, e
só são possíveis em movimento. Sempre em movimento.
352
REFERÊNCIAS
ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
Trad. Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
AFP. Incêndios na Amazônia tumultuam relações entre Brasil e França. ISTOÉ
Dinheiro, 27 de agosto de 2019. Disponível em:
https://www.istoedinheiro.com.br/bolsonarosoaceitaajudadog7aamazoniase
macronretirarinsultos/ . Acesso em: 12/01/2020.
AFP. Desmatamento é ‘principal causa’ de incêndios na Amazônia, afirma
pesquisador. ISTOÉ, em 22 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://istoe.com.br/desmatamentoeprincipalcausadeincendiosnaamazonia
afirmapaulomoutinho/>. Acesso em: 04/01/2020.
https://seminarioculturavisual.fav.ufg.br/up/778/o/LC_MIRNA_ANAQUIRI_IISIPAC
V2018.pdf. Acesso em: 05/01/2020.
BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, no. 26, janeiro
junho de 2006. p. 329376. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf . Acesso em: 02/07/2018.
BRAH, Avtar. The scent of memory: strangers, our owns and others. In: BRAH, Avtar.
COOMBES, Annie E (org). Hybridity and its Discontents: politics, science, culture.
London/New York: Routledge, 2000.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza: Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000; Decreto nº 4.340, de
22 de agosto de 2002; Decreto nº 5.746, de 5 de abril de 2006. Plano Estratégico
Nacional de Áreas Protegidas: Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Brasília:
MMA, 2011.
CARVAJAL, Gaspar de. ROJAS, Alonso de. ACUÑA, Cristóbal de. Descobrimentos
do rio das Amazonas. São Paulo: Brasiliana, Editora Nacional, 1941.
CASTRO, Rodrigo. Garimpeiros dizem que legalização sugerida por Bolsonaro criará
empregos. Revista Época, em 22 de julho de 2019. Disponível em:
<https://epoca.globo.com/brasil/garimpeirosdizemquelegalizacaosugeridapor
bolsonarocriariaempregos23824992>. Acesso em: 03/01/2020.
CAVALCANTI, Clóvis. País e região: desigualdades e preconceitos regionais no
Brasil.Cadernos de Estudos Sociais, Recife, vol. 9, no. 1, p. 2540, 1993. Disponível
em: https://periodicos.fundaj.gov.br/CAD/article/view/1126/846. Acesso em:
02/01/2020.
CEDECA EMAÚS. Pesquisa Trabalho Infantil Doméstico em Casa de Terceiros em
Belém do Pará- Brasil. Lima, Peru: OIT, 2001. Disponível em:
<http://white.lim.ilo.org/ipec/documentos/ras_brasil_belem.pdf>. Acesso em:
02/02/2020.
<https://congressoemfoco.uol.com.br/economia/governoplanejaliberarmineracao
emterrasindigenasdizministro/>. Acesso em: 05/01/2020.
CPT. Conflitos no campo Brasil 2018. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2019.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candini. 1a. Ed. São
Paulo: Boitempo, 2016.
DESIDERI, Leonardo. Funai terá guarda compartilhada com “papai Moro”, diz
Damares. Gazeta do Povo, em 22 de julho de 2019. Disponível em:
<https://www.msn.com/ptbr/noticias/brasil/funaiter%C3%A1guardacompartilhada
com%E2%80%9Cpapaimoro%E2%80%9Ddizdamares/arAAEJdAG>. Acesso em:
01/01/2020.
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Ed. Michael Schröter. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
ESCOBAR, Arturo. Encoutering development: the making and unmaking of the third
world. New Jersey: Princeton University Press, 1995.
FELLOWS, M.; PAYE, V.; ALENCAR, A.; NICÁCIO, M.; CASTRO, I.; COELHO,
M.E.; e MOUTINHO, P. Não são números, são vidas! A ameaça da covid-19 aos
povos indígenas da Amazônia brasileira. Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, 2020. Disponível
em https://ipam.org.br/bibliotecas/naosaonumerossaovidasaameacadacovid19
aospovosindigenasdaamazoniabrasileira/. Acesso em: 11/08/2020.
FERNANDES, Thalita. Bolsonaro diz que terá encontro com premiê japonês para
discutir exploração da Amazônia. Folha de São Paulo, em 20 de junho de 2019.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/06/bolsonarodizque
teraencontrocompremiejaponesparadiscutirexploracaodaamazonia.shtml.
Acesso em: 02/01/2020.
FOLHA. Heleno admite preocupação com sínodo sobre Amazônia, mas nega
monitoramento. Folha de São Paulo, em 12 de fevereiro de 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/helenoadmitepreocupacaocom
sinodosobreamazoniamasnegamonitoramento.shtml. Acesso em: 02/01/2020.
FÓRUM. Ao se despedir do Chile, Bolsonaro comete nova gafe e agradece “ao povo
venezuelano”. 23 de março de 2019. Disponível em:
https://revistaforum.com.br/politica/aosedespedirdochilebolsonarocometenova
gafeeagradeceaopovovenezuelano/. Acesso em: 05/01/2020.
FÓRUM. Bolsonaro vai rever terras indígenas: “É muita terra para pouco índio. Qual
o interesse por trás disso?” Em 30 de agosto de 2019. Disponível em:
https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/bolsonarovaireverterrasindigenase
muitaterraparapoucoindioqualointeresseportrasdisso/. Acesso em: 05/01/2020.
G1. 'Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer', diz Bolsonaro ao falar sobre
Amazônia. Em 06 de julho de 2019. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/06/brasileumavirgemquetodotarado
deforaquerdizbolsonaroaofalarsobreamazonia.ghtml. Acesso em: 02/01/2020.
G1 SANTARÉM. Seminário debate 20 anos da expansão de soja em Santarém,
Belterra e Mojuí dos Campos. 21 de maio de 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/pa/santaremregiao/noticia/seminariodebate20anosda
expansaodesojaemsantarembelterraemojuidoscampos.ghtml. Acesso em:
30/07/2018.
GARCIA, Piê. I Romaria do Bem Viver: um estímulo à organização da luta em defesa
do território. FASE, em 24 de setembro de 2019. Disponível em:
<https://fase.org.br/pt/informese/noticias/iromariadobemviverumestimuloa
organizacaodalutaemdefesadoterritorio/>. Acesso em: 04/01/2020.
GAMBINI, Roberto. Espelho Índio: a formação da alma brasileira. São Paulo: Axis
Mundi, Terceiro Nome, 2000.
GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. 3rd ed. Manaus: Ed. Valer, 2019
GONZAGA, Polyana. Documento final do Sínodo da Amazônia é votado e aprovado.
A12, em 26 de outubro de 2019. Disponível em:
https://www.a12.com/redacaoa12/igreja/documentofinaldosinododaamazoniae
votadoeaprovado. Acesso em: 04/01/2020.
hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza
Libânio. 1a ed. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 2018.
JUBÉ, Andrea. GREGORIO, Rafael. Maia diz a governadores que pressão para abrir
comércio é de investidores que perderam dinheiro na Bolsa. Valor Investe, em 25 de
março de 2020. Disponível em:
<https://valorinveste.globo.com/noticia/2020/03/25/maiadizagovernadoresque
pressoparaabrircomrciodeinvestidoresqueperderamdinheironabolsa.ghtml>.
Acesso em: 21/05/2020.
KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. p. 201204. In: NOVAES, Adauto
(org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
LEITÃO, Matheus. Servidores do ICMBio assinam carta para pedir fim de 'assédio e
intimidação' por parte do governo. G1, em 30 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/politica/blog/matheusleitao/post/2019/08/30/servidoresdo
icmbioassinamcartaparapedirfimdeassedioeintimidacaoporpartedo
governo.ghtml>. Acesso: 04/01/2020.
LLANERAS, Kiko. Bolsonaro divide o Brasil: arrasa nas cidades mais brancas e ricas.
El País, 30 de outubro de 2018. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/29/actualidad/1540828734_083649.html.
Acesso em: 05/01/2020.
MAB. Direitos das mulheres atingidas por barragens. 11 minutos. 2016. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=C5u0KxMxP74. Acesso em: 15/02/2018.
MOURA, Júlia. Citação nazista na cultura e agenda econômica não se misturam, dizem
analistas. Folha de São Paulo, em 17 de janeiro de 2020a. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/01/discursonazistanaculturaeagenda
economicanaosemisturamdizemanalistas.shtml. Acesso em: 19/01/2020.
MOURA, Júlia. Pico de COVID19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil
tem muita favela, diz presidente da XP. Folha de São Paulo, em 5 de maio de 2020b.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/brasilestaindobem
nocontroledocoronavirusepiconasclassesaltasjapassoudizpresidenteda
xp.shtml. Acesso em: 20/05/2020.
PINTO, Lúcio Flávio. “Não há futuro para a Amazônia”, diz Lúcio Flávio Pinto.
Entrevista por Cristina Serra. Amazônia Real, 23 de setembro de 2019. Disponível em:
https://amazoniareal.com.br/naohafuturoparaaamazoniadizlucioflaviopinto/.
Acesso em: 05/01/2020.
RAI, Shirin M. The Gender Politics of Development: essays in hope and despair. New
York/London: Zed Books, Zubaan, 2008.
RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. P. In: DEL PRIORE, Mary. (ed). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
RIST, Gilbert. The history of development: from western origins to global faith. 3 ed.,
Londres: Zed books, 2008.
367
ROSSI, Amanda. Navios portugueses e brasileiros fizeram mais de 9 mil viagens com
africanos escravizados. BBC News Brasil, 7 de agosto de 2018. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil45092235. Acesso em: 20/01/2019.
ROSSI, Marina. Bolsonaro diz que sua candidatura é “imbroxável” e que “a Amazônia
não é nossa”. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/18/politica/1526612140_988427.html. Acesso
em: 30/07/2018.
RUNYAN, Anne Sisson. The “State” of Nature: a Garden Unfit for Women and Other
Living Things. P. 123140. In: PETERSON, V. Spike. Gendered States: feminist
(re)visions of International Relations Theory. Boulder/Londres: Lynne Rienner
Publishers, 1992.
SALLES, João Moreira. ESTEVES, Bernardo. O Mundo sem a Amazônia. Revista
Piauí, 17 de outubro de 2019. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/omundo
semamazonia/>. Acesso em: 20/01/2020.
SDDH. Entidades entram com pedido de inquérito policial contra atos do presidente
Bolsonaro por crimes a saúde pública e a população brasileira. 24 de março de 2020.
Disponível em: http://sddh.org.br/noticias_mobile.php?page_id=125. Acesso em:
16/08/2020.
SETO, Guilherme. Bolsonaro diz que pretende acabar com 'ativismo ambiental xiita' se
368
SPAROVEK, Gerd. Et al. Who owns Brazilian lands? Land Use Policy 87, 2019,
Disponível em: ttps://www.oeco.org.br/wpcontent/uploads/2019/07/Whoowns
Brazilianlands_Artigo_LandUsePolicy.pdf . Acesso em: 02/05/2020.
TAKAR, Téo. Lucro dos 4 maiores bancos bate recorde, sobe 20% e vai a R$ 69
bilhões. UOL, 2019. Disponível em:
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/14/lucrodosmaiores
bancos.htm. Acesso em: 11/06/2019.
URIBE, Gustavo. “Funai tem de ficar com a mamãe Damares não com o Papai Moro”
diz ministra. Folha de São Paulo, em 8 de maio de 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/funaitemdeficarcommamae
damaresnaocompapaimorodizministra.shtml. Acesso em: 03/01/2020.
URIBE, Gustavo. 'Interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore', diz
Bolsonaro. Folha de São Paulo, em 1º de outubro de 2019. Disponível em:
369
<https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/10/ointeressenaamazonianaoeno
indionemnaporradaarvoredizbolsonaro.shtml>. Acesso em: 04/01/2020.
VALE, Ana Lia Farias. LIMA, Luís Cruz. BONFIM, Maria Geovaní. Século XX: 70
anos de migração interna no Brasil. Textos & Debates, No. 07, 2004. Pp. 2243.
Disponível em: https://revista.ufrr.br/textosedebates/article/view/3506/1960. Acesso
em: 02/03/2020.
VARGAS, Mateus. Bolsonaro diz que Cacique Raoni foi cooptado por chefes de
Estado. Estadão, em 26 de setembro de 2019. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonarodizquecaciqueraonifoi
cooptadoporchefesdeestado,70003026818. Acesso em: 03/01/2020.
VELLOZO, Júlio César de Oliveira. ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos
contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Praxis, vol. 10, no. 03, p.
21372160, 2019.
VELOSO, Lucas. Movimento negro faz denúncia internacional dos decretos de armas
de Bolsonaro. Alma Preta, em 12 de julho de 2019. Disponível em:
https://almapreta.com/editorias/realidade/movimentonegrofazdenuncia
internacionaldosdecretosdearmasdebolsonaro. Acesso em: 10/08/2020.
VITORIO, Tamiris. Prefeito de Nova York agradece museu por não sediar homenagem
a Bolsonaro. EXAME, 17 de abril de 2019. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/mundo/prefeitodenovayorkagradecemuseupornao
sediarhomenagemabolsonaro/>. Acesso em: 02/01/2020.
WALT, Stephen M. Who Will Save The Amazon (and How)? Foreign Affairs, 5 de
agosto de 2019. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2019/08/05/whowill
invadebraziltosavetheamazon/. Acesso em: 10/08/2019.
ZUKER, Fábio. Notícias do front tapajônico: um relato de viagem. Revista Ensaia, no.
3, junho de 2017. Disponível em: https://www.revistaensaia.com/noticiasdofront
tapajonico. Acesso em: 10/08/2020.
ZUKER, Fábio. BRASIL, Kátia. LIMA, Jackeline. Juiz mantém prisões de brigadistas
de Alter do Chão e dispara: “não aceito pressão; se forem inocentes, eu inocento, se
forem condenados, eu os condeno”. Amazônia Real, em 27 de novembro de 2019.
Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/juizmantemprisoesdebrigadistasde
alterdochaoedisparanaoaceitopressaoseforeminocenteseuinocentoseforem
condenadoseuoscondeno/>. Acesso em: 05/01/2020.
371
Fonte: IMAZON.
Produção de soja (em grão) no País, com destaque para os dez principais municípios produtores
Segurança/ Cuidado, adaptabilidade, Sistemas de seguro, Cooperar, prevenir, Ambiente vital, ambiente
Proteção autonomia, equilíbrio, poupança, seguridade planificar, cuidar, social e moradia.
solidariedade social, sistemas de curar, defender
saúde, legislações,
direitos, família,
trabalho