Mulheres Descolonizando A Amazônia Pelos Caminhos de Vida

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 385

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS­GRADUAÇÃO
PÓS GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA E ANTROPOLOGIA

BRENDA THAINÁ CARDOSO DE CASTRO

MULHERES DESCOLONIZANDO A AMAZÔNIA PELOS CAMINHOS DE VIDA:


PRODUÇÃO
ÇÃO DE SUBJETIVIDADES ATRAVESSADAS
ATRAVESSADAS PELO PROJETO DE NAÇÃO
DESENVOLVIMENTISTA

Belém ­ Pará
2020
BRENDA THAINÁ CARDOSO DE CASTRO

MULHERES DESCOLONIZANDO A AMAZÔNIA PELOS CAMINHOS DE VIDA:


PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES ATRAVESSADAS PELO PROJETO DE NAÇÃO
DESENVOLVIMENTISTA

Tese apresentada à Banca de Qualificação do Programa


de Pós­Graduação em Ciências Sociais, do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas/UFPA sob a orientação da
Profa. Dra. Violeta Refkalefsky Loureiro.

Banca Examinadora:

_________________________________________
Orientadora: Profa Dra. Violeta Refkalefsky Loureiro
PPGSA/UFPA

_________________________________________
Examinadora interna: Profa. Dra. Mônica Conrado
PPGSA/UFPA

_________________________________________
Examinadora interna: Profa Dra. Edila Arnaud Ferreira Moura
PPGSA/UFPA

_________________________________________
Examinadora externa: Profa. Dra. Rosa Acevedo Marín
NAEA/UFPA

_________________________________________
Examinadora externa: Profa. Dra. Marcela Vecchione Gonçalves
NAEA/UFPA

Apresentado em: 10/07/2020

Belém ­ Pará
2020
À vó Maria (In memorian),
Às alunas e aos alunos que dividiram esta jornada
comigo nos últimos anos
AGRADECIMENTOS

Parece injusto que só o meu nome conste na página principal deste trabalho, pois
posso tê­lo escrito em diversos momentos de solidão, mas com certeza, ele é resultado do
esforço e apoio de muitas pessoas. Agradeço às minhas avós, Assunção Maria de Castro,
falecida em janeiro de 2019, e minha avó Raimunda Cardoso, por tudo que me ensinaram,
tanto na fala quanto no silêncio, na proximidade ou na distância. É uma honra todas as vezes
que alguém me compara a elas, mesmo que seja por ser “rebarbada” como a vó Maria ou
muito autocrítica e exigente como a vó Raimunda. Eu sei que este trabalho não vai mudar o
que vocês passaram, mas eu realmente pretendo me dedicar a tentar pensar formas de
entender e mudar a realidade para que outras mulheres não precisem passar pelo que vocês
passaram.
Da mesma forma, sou grata à minha mãe, Ana Lúcia, que desde quando eu estava na
sua barriga lutou da forma que pôde para garantir uma vida melhor para nós e desde o útero
estivemos em uma parceria de dedicação, ela estudando para o concurso enquanto a barriga
crescia e eu agora tentando continuar o seu trabalho e fazer jus a todos os seus esforços. A
educação foi para ela um caminho que possibilitou um pouco de liberdade numa sociedade
ainda muito injusta e patriarcal; criou a mim e ao meu irmão com muita dedicação; crescemos
nós três juntos, longe da família, em outra cidade. A senhora fez o seu melhor. Este trabalho
foi desenvolvido enquanto eu pensava que nem a senhora, nem as minhas avós, deveriam ter
sido submetidas a tantas injustiças e cobranças, além das violências no decorrer da vida.
Uma conversa específica com a vó Raimunda foi uma fagulha crucial para esta
pesquisa. Enquanto ela me contava sobre a sua vida antes do casamento e dos filhos e
compartilhou comigo quantas vezes pensou como tudo poderia ter sido diferente e se talvez,
num outro cenário, ela poderia ter terminado seus estudos, ainda que pelo seu “sacrifício”
tenha garantido que seus sete filhos pudessem estudar e isso possibilitou à família sair de uma
situação de pobreza. E hoje estou aqui.
Às mulheres da minha família que, sem querer, fizeram­me acreditar durante a minha
infância que a sociedade era matriarcal, por tanta onipresença feminina em frente a tudo, de
tanta predominância e dedicação em todas as esferas da vida. Lembro de ainda criança eu
achar que o ciclo da vida era casar, ter filhos e se separar, cuidando de seus filhos sozinhos,
como conta a história das Ycamiaba1.

1
Referência às mulheres Ycamiaba, do rio Nhamundá, cujos relatos que as relacionavam com a mitologia grega
das mulheres guerreiras amazonas (que viviam em uma sociedade matriarcal) inspirou o nome do rio Amazonas
e que agora também se usa para referir a toda uma região, a Amazônia.
Infelizmente, percebi adulta que o que eu via com tanta admiração era fruto de muito
sofrimento também, mas nesse caminho nos amamos e continuamos juntas. Isto é o que
importa.
Ao meu companheiro de cotidiano, conversas cosmológicas e banais, Dino, por ter
sido meu apoio, meu incentivador, quem garantiu que eu continuasse hidratada e alimentada
em tantos dias, tentando conciliar o trabalho como professora e a tese, quando eu esquecia até
de comer e beber água. Obrigada, eu teria chegado a esse momento mesmo sem ele, mas ter
chegado aqui e estar com ele é muito melhor. Obrigada por respeitar meu espaço, meu
isolamento e também por me acolher quando eu precisava de afeto e encorajamento, ou
apenas ficar falando sem parar sobre coisas que às vezes nem eu entendia.
Às minhas companhias felinas, por ficarem comigo o dia todo, principalmente
enquanto escrevia, às vezes sentando no teclado e me atrapalhando, mas na maioria das vezes
só me fazendo companhia, com um silêncio cúmplice cheio de amor. Jonfen, meu bebê, eu
sempre achei que ainda estaria aqui quando esse dia chegasse. Ele me acompanhou desde
2008, quando eu ainda estudava para o vestibular; durante a graduação, o TCC, a dissertação
e por muito pouco não está deitado agora aqui na minha mesa, mas estará sempre comigo. Val
e Bowie, minhas anjas que me dão amor e são minhas conexões com a natureza para aliviar a
vida em meio a tanto cimento, agradeço pela companhia.
Ao G7, meus amigos de tempos de UNAMA, a gente não sabia para onde a vida nos
levaria, mas mesmo que a maioria hoje em dia esteja longe de mim, 10 anos depois ainda
estamos rindo das mesmas besteiras, compartilhando indignação sobre os mesmos assuntos.
Obrigada por fazerem eu me sentir sempre em casa quando estamos juntos.
Dos novos amigos que fiz nessa trajetória muitos são alunas e alunos que os cinco
anos de docência me presentearam, por terem sido essenciais no incentivo para que eu
tentasse o doutorado, por torcerem pela minha tese e me ouvirem falando sobre minhas crises
existenciais e acadêmicas, por verem em mim coisas que eu mesma nunca vi e continuo
tentando ver, a eles, obrigada por tudo. Em especial, alguns merecem menção honrosa pelo
companheirismo: Thayse, Angelina, Mayara, Brenda, Nick, Geórgia, Carla, Jerry, Karine,
Karol, Luan, Mathaus, Victor, Catarina, Tássia, Matheus, Rachel, Mariane, Ju, Amanda,
Douglas, Demethrius, Ana Paula, Andressa, Ariane, Joici, Thainá, Nielle, Breno, Lais, Lucas,
Tinica, e tantas e tantos outros (por favor, não fiquem chateados por não ter enunciado todos).
Eu dedico esta tese a vocês por terem sido a força­motriz nesses anos, em que ao
mesmo tempo em que receberam até mais da minha atenção e meu tempo do que este estudo,
vocês que muitas vezes me entenderam quando ninguém mais entendia, que me encorajaram
nos últimos cinco anos. Vocês são o motivo de eu querer dar o meu melhor todos os dias e
foram também minha inspiração ao ver vocês superarem tantas coisas, tornarem­se pessoas
tão incríveis de quem tenho tanto orgulho. Espero que o mundo seja bom com vocês.
A todas as pessoas incríveis que já passaram pelo GENERI, o grupo de estudos que
coordeno desde 2017, que se dispõem a passar algumas horas por semana rindo, indignando­
se e pensando formas de mudar o mundo, muito obrigada. Em tempos tão difíceis vocês tem
sido minha fonte de esperança e força, obrigada por carregarem comigo esse propósito. Por
terem tantas vezes me escutado sobre a tese, inclusive, tendo propiciado o espaço para tantas
leituras que figuram aqui neste estudo. Obrigada também por reacenderem em mim a
esperança de que é possível ensinar a transgredir e transformar a sociedade, por ser uma luz
no fim do túnel de um modelo de educação cada vez mais cooptado pela lógica de mercado
neoliberal.
Às professoras e professores do Programa de Pós­Graduação em Sociologia e
Antropologia da UFPA, muito obrigada. Eu nunca tinha tido tantas aulas com mulheres e cada
uma delas fez eu me sentir capaz de ocupar um espaço na academia. Mesmo que
constantemente eu me sinta muito aquém dessas, acredito que estou no caminho e isso é
graças a vocês. Destaco aqui algumas professoras que marcaram muito essa trajetória e me
ensinaram muito sobre pesquisa, mas também sobre a docência.
Profa. Tânia Ribeiro, Profa. Edila Moura, Profa. Kátia Mendonça, Profa. Voyner
Cañete, Profa. Maria José Aquino­Teisserenc: obrigada pela paciência ao lidar com alguém
que no doutorado foi ler pela primeira vez muitas das referências clássicas da sociologia.
Vocês foram magistrais, mesmo quando eu sentia que nunca ia entender, sabia que confiar em
vocês era o caminho para chegar lá.
Profa. Edna Castro e Profa. Violeta Loureiro: não consigo nem estimar o valor de
vocês para a sociologia na Amazônia e para a minha vida, obrigada por existirem, por tudo
que vocês fizeram, pela trajetória inspiradora. Se algum dia meus estudos alcançarem metade
da excelência do que vocês têm construído, estarei satisfeita. Vocês são a minha inspiração
para estudar a Amazônia. E, à Profa. Violeta, especialmente, obrigada por aceitar ser minha
orientadora, foi uma honra para mim, obrigada pelo apoio, pela confiança, por todas as
leituras atentas e sugestões, eu não poderia ter tido profissional melhor me acompanhando
nessa etapa.
Profa. Mônica Conrado, eu só posso agradecer por todas as desestabilizações que me
foram presenteadas. Mesmo que para mim fosse confuso inicialmente e eu até mesmo tendo
chorado muitas vezes, não por não gostar dos questionamentos que você me trazia, mas por
me sentir incapaz de entender o que você queria dizer ou esperava de mim, mas, ainda bem,
acho que com o passar do tempo e muitas leituras, eu comecei a entender melhor o que você
queria dizer e também a lidar melhor com a frustração de não entender tudo. Obrigada por
todas as vezes que você se propôs a compartilhar comigo algum incômodo, alguma leitura,
alguma incoerência e me estimular a nunca me dar por satisfeita com nenhuma resposta
provisória. Por fim, obrigada pelas suas contribuições na minha qualificação e também pelos
apontamentos tão profundos sobre o trabalho final.
Profa. Marcela Vecchione, agradeço por ter visto antes de mim o rumo que a tese
tomaria, incentivando que eu adotasse uma estruturação diferente de um formato mais
convencional e dialogasse mais com a minha experiência. Foi um longo caminho para que eu
chegasse a esse resultado, mas você e a Profa. Mônica Conrado foram, com certeza, parte
essencial no encorajamento de algumas rupturas em mim mesma. Agradeço também pela
leitura atenta e cuidadosa deste trabalho, dos caminhos possíveis apontados e da identificação
de argumentos que me tinham escapado.
Profa. Rosa Acevedo Marín, apesar do contexto da pandemia ter nos limitado a um
encontro presencial e até mesmo nos impossibilitado de um rito de defesa convencional foi
uma honra que a senhora tenha lido meu trabalho e se identificando com uma proposta tão
valiosa para mim como a forma que escolhi fazer isso, além de apontar contribuições.
E, Profa. Edila Moura, realmente jamais terei palavras para agradecer pelo cuidado na
revisão e comentários feitos. Costumo dizer aos meus alunos que não se sintam mal quando
receberem correções e anotações nos seus trabalhos, pois, para mim, é uma forma de estima
muito grande quando alguém reconhece nosso trabalho a ponto de contribuir tão
detalhadamente com possíveis ajustes e melhorias. Obrigada mesmo pela atenção, pelo seu
tempo, pelas suas palavras e encorajamento.
A vocês, professoras, que possibilitaram a finalização dessa etapa meu profundo e
sincero agradecimento: guardarei com carinho as palavras, apontamentos de incoerências e
sugestões de caminhos. É com uma sensação agridoce que finalizo essa versão, pois as suas
contribuições abriram tantos outros caminhos, mas esse agora precisa acabar, para que eu siga
outros.
A todos os professores e professoras que contribuíram para a minha formação
acadêmica e humana, muito obrigada. E ao professor Mário Amin, meu mestre na graduação,
avaliador na defesa do mestrado e recentemente colega de trabalho, muito obrigada. Obrigada
por ser essa inspiração de que uma academia e uma docência que não vê hierarquias de
títulos, que todas as ideias e projetos merecem entusiasmo, de que é possível passar décadas
em meio a esse ambiente sem se render ao cinismo. Há poucos meses o senhor partiu e não
pude compartilhar a finalização dessa caminhada, mas espero que o senhor tenha sabido em
vida que eu não estaria aqui sem suas palavras, conversas no corredor sobre o futuro, sobre o
tudo isso que “ninguém fala”. Por me guiar nesse caminho a pensar a Amazônia no mundo,
obrigada. Sinto­me agora um pouco mais só sabendo que tantas questões complexas que
estamos vivendo perderam uma grande mente capaz de absorver tudo isso e estar a frente de
todos nós.
Um agradecimento especial a todas as pessoas que conheci e compartilharam comigo
tanto desta tese. Para mim, este estudo é resultado de todas as leituras, debates e nossas
conversas. Cris foi para mim, minha co­orientadora nesse trabalho. Não sei nem como
agradecer, por mais que eu viva tentando, com livros e polpas de bacuri, tudo que ela fez, o
caminho que me ajudou a traçar, eu jamais traçaria sem ela. Cris, tu és uma amiga querida e
uma irmã, é a minha família em Alter; desejo a ti as melhores coisas possíveis. Por sempre me
receber, por todos os cafés, as conversas, os tambaquis, os vinhos e os banhos de rio:
obrigada, obrigada, obrigada!
Fê, que surreal foi nosso encontro, também intermediado pela Cris, onde nos
encontramos em crises tão parecidas e também diferentes. Tu és também uma parte dessa
família que eu tenho nesse lugar tão lindo, obrigada por tudo, flor. A cada encontro parece
que a gente está ficando mais forte. Eles passarão...
Sttefany, mi hermana del alma, auque esteas lejos, nunca olvidaré todo lo que aprendí
contigo. Eres una luz que continua a brillar mismo cuando ya está lejos, como uma estrella.
Eres gran parte de este trabajo, que tanto hablamos y piensamos juntas, y cambiamos
experiencias. Que seas feliz y que el mundo todo siga siendo tu morada.
Agradeço a Lalah por nossa breve conversa, mas que contribuiu muito para minha
percepção sobre o contexto do Tapajós e da luta dos povos indígenas atualmente. Lalah, teu
trabalho me inspira e me faz acreditar que continuar na luta e desenvolver estratégias e
práticas é indispensável para a Amazônia e para o povo amazônida.
À Nice, minha amiga, eu agradeço por tudo, por todas as conversas, por todas as
histórias, pelo acolhimento, pela preocupação, por todas as experiências incríveis que tive na
tua companhia. Principalmente, obrigada pela construção desse laço nos últimos anos, és uma
mulher incrível, o mundo seria um lugar muito melhor se te ouvisse. E agradeço também a
toda à família linda e tão cheia de projetos, idéias e visões de mundo muito além da
superfície: Priscila, Aline, Rosivaldo, Jaqueline, Renan, Nério, todos, muito obrigada por
fazerem eu me sentir em casa.
A toda a comunidade da Coroca, esse lugar que me trouxe tantas experiências intensas
e também tranqüilas, obrigada por sempre me receberem de braços abertos e perguntarem
quando eu vou voltar. A vontade de rever vocês, conversar embaixo da mangueira e tomar
banho de rio é maior que o meu medo de fazer a travessia do Tapajós para o Arapiuns; então
eu vou continuar voltando, sim. Enilde e Gildson, obrigada por sempre me receberem e
fazerem eu me sentir tão bem­vinda e em casa, pela alegria constante e pelo amor a todo esse
lugar. Dona Silvana, Sula, Gabi, Thainá, obrigada pelas conversas, por me ensinarem tanto
sobre respeitar as orientações da mãe velha, pelas brincadeiras, por todos os conselhos no pós­
arraia e pela empatia e cuidado. Desculpem por todo o trabalho que eu possa ter dado a vocês.
Luza, obrigada por ter me dado a honra de conhecer um pouco da tua história e da tua
luta, és uma referência pra mim em tantos sentidos, enquanto artesã, articuladora, liderança,
uma ternura ao falar da vida sempre acompanhada de muita consciência e noção do cenário
que nos cerca. Ouvir você falar sobre a vida é sempre uma aula da vida em si.
Seu Colau, Dona Elzinha, Nicole, Diana, Adriele, desculpa pelo episódio de terror
noturno em que assustei vocês. Obrigada pelo carinho, que não fez a vergonha desse episódio
ser algo pior e podermos logo rir. O importante é que ficou aí uma história para contar, né,
Seu Colau? Desejo a vocês tudo aquilo que vocês já têm nesse pedacinho do paraíso e tudo
mais que vocês desejem.
Dona Elza, obrigada por compartilhar sua sabedoria comigo e fazer com que minha
visão mudasse sobre tantas coisas, por me fazer repensar tanto o que eu achava que sabia.
Desejo muita saúde à senhora, que tenha ainda muitos anos para continuar ensinando ao
mundo como ele pode ser. Obrigada por toda sua contribuição. Obrigada também Ivana e
Eliane, que mesmo não me conhecendo tão bem aceitaram conversar comigo e compartilhar
seus sonhos e anseios de forma tão aberta.
A todos os demais que encontrei nessa jornada e me inspiraram de formas tão
diferentes, muito obrigada. Fábio, meu agora grande amigo, que compartilha tanto comigo e
me inspirou em ver a tese de uma forma diferente e libertou um desejo literário reprimido
mostrando­se tua própria construção da tese. Obrigada pelas conversas e principalmente por
ser mais uma pessoa que compartilha dessa luta de forma tão sincera.
Leida, mana, obrigada por ser esse pedaço de Belém em Alter e por tantas
brincadeiras, mesmo eu sendo de Castanhal, mas me considerando cidadã honorária de
Belém. Toda a felicidade do mundo pra ti.
Não menos importante, agradeço às artistas e aos artistas vivos e já eternizados por
terem sido o ponto de equilíbrio e alívio durante esta jornada com seus livros, músicas, filmes
e séries. Pela companhia e inspiração agradeço principalmente a algumas que marcaram o
desenvolvimento da pesquisa e do meu olhar: Octavia Butler, Ursula K. Le Guin, Buchi
Emecheta, Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Lhasa de Sela, Linn da Quebrada e
tantas outras e outros.
Por fim, agradeço a todas as pessoas que não conheço, mas que vieram antes de mim e
tornaram possível o acesso ao ensino superior gratuito, que por lutas garantiram que eu e
tantas outras pessoas pudéssemos ter esta oportunidade. A formação acadêmica é só um tipo
de formação, não significando que somos melhores que ninguém, mas, para viver na
sociedade em que vivemos, esse tipo de educação ainda pauta as relações de poder e para se
rever essa educação que tanto machuca, é preciso que incontáveis pessoas também tenham
acesso a ela, para poder, por revoluções moleculares, transformá­la.
Queria acordar e não ter que pensar que vivemos
numa sociedade machista e racista. Queria não ter
que me preocupar com isto. Eu acordo pensando em
tomar banho de rio e não quero pensar em nada,
mas está atravessada em cada célula do meu corpo
a resistência. (Cristiane Freitas)
RESUMO

As subjetividades desafiam constantemente o projeto de nação ao confrontarem políticas


desenvolvimentistas que adotam como premissas valores e modos de vida diferentes dos seus.
Diante disso, alguns contextos, como o caso da Amazônia, possibilitam que percebamos
como a produção de subjetividades se dá em dinâmica com o capitalismo e o Estado,
especificamente nos anos de crise política vividos no Brasil desde meados de 2014 e 2015,
passando pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff até a ascensão do governo de
extrema­direita de Jair Bolsonaro. O presente estudo desenha­se, então, neste cenário, para
pensar a partir dos caminhos de vida de mulheres que vivem no Tapajós, de que forma se
relacionam com o projeto de nação sob o signo desenvolvimentista que historicamente projeta
na Amazônia o futuro da nação por meio de uma lógica de expropriação e exploração. O
estudo se deu por meio de uma pesquisa de campo desenvolvida ao longo de recorrentes
viagens de 2017 a 2019, conectando­as a desdobramentos macropolíticos no período e a
realidade em três localidades diferentes: a Vila de Alter­do­Chão, Santarém; a comunidade de
Jamaraquá, na Floresta Nacional do Tapajós; e a comunidade de Coroca, no rio Arapiuns,
parte do Projeto de Assentamento Agroextrativista Lago Grande. Além da vivência e de
conversas cotidianas durante as visitas, foram realizadas 11 entrevistas com mulheres que
vivem nas três localidades em torno de eixos sobre suas perspectivas de vida. A discussão foi
apoiada principalmente na abordagem da modernidade/colonialidade e decolonialidade, assim
como da esquizoanálise, para se identificar os efeitos da colonialidade nas estruturas e
relações contemporâneas, tanto sobre sujeitas e sujeitos, mas também sobre instituições e
regiões, como a Amazônia, construída no imaginário social como lugar generificado e
racializado, o que historicamente coaduna com uma visão de projeto desenvolvimentista para
o Brasil. Para mulheres, tal processo envolverá peculiaridades a partir da colonialidade de
gênero, que também atravessa relações de raça, de classe e de lugar origem/pertencimento.
Percebeu­se que as subjetividades podem tanto ser compatíveis com os valores que servem
aos interesses capitalistas e estatais, como também podem ser incompatíveis, levando a uma
ruptura e a singularização destas subjetividades. Igualmente, também foi percebido que existe
uma possibilidade de atravessamento, em que se busca uma ruptura, mas pelas próprias
limitações estruturais e sistemáticas, o deslocamento é uma ferramenta encontrada para
atender às próprias necessidades, coexistir dentro de uma sociedade capitalista e ainda assim
produzir desejos próprios mesmo que envolvidos na lógica moderna/colonial.

Palavras-chave: Subjetividade. Amazônia. Modernidade/Colonialidade. Desenvolvimento.


Mulheres.
ABSTRACT

Subjectivities constantly challenge the nation project when confronting developmental


policies that adopt values and ways of life that are different from their own. In view of this,
some contexts, such as the case of the Amazon, allow us to perceive how the production of
subjectivities occurs in dynamics with capitalism and the State, specifically in the years of
political crisis experienced in Brazil since mid­2014 and 2015, going through impeachment
from President Dilma Rousseff until the rise of the far­right government of Jair Bolsonaro.
The present study is then designed in this scenario to think from the life paths of women
living in Tapajós, how they relate to the nation project under the developmental sign that
historically projects the future of the nation in the Amazon through logic of expropriation and
exploitation. The study was carried out through field research developed over recurring trips
from 2017 to 2019, connecting them to macro­political developments in the period and the
reality in three different locations: the village of Alter­do­Chão, Santarém; the Jamaraquá
community, in the Tapajós National Forest; and the community of Coroca, on the Arapiuns
River, part of the Lago Grande Agroextractive Settlement Project. In addition to the
experience and daily conversations during the visits, 11 interviews were conducted with
women who live in the three locations, of different ages, to think about the process of
producing subjectivities. In this context, we started with references from post­colonial and
decolonial studies, as well as schizoanalysis, to identify the effects of coloniality on
contemporary structures and relationships, both on subjects and subjects, but also on
institutions and regions, such as the Amazon. , built in the social imaginary as a gendered and
racialized place, which historically is in line with a vision of a developmental project for
Brazil. And that, for women, this process will involve peculiarities based on the coloniality of
gender, which also crosses relations of race, class and place of origin / belonging. It was
realized that subjectivities can both be compatible with the values that serve capitalist and
state interests, but they can also be incompatible, leading to a rupture and the singularization
of these subjectivities. Equally, it was also noticed that there is a possibility of crossing, in
which a rupture is sought, but due to the structural and systematic limitations, displacement is
a tool found to meet one's needs, coexist within a capitalist society and still produce desires
even if involved in modern / colonial logic.

Key words: Subjectivity. Amazonia. Modernity/Coloniality. Development. Women.


RESUMEN

Las subjetividades desafían constantemente el proyecto de la nación cuando confrontan


políticas de desarrollo que adoptan valores y formas de vida que son diferentes de las suyas.
En vista de esto, algunos contextos, como el caso de la Amazonía, nos permiten percibir cómo
se produce la producción de subjetividades en dinámica con el capitalismo y el Estado,
específicamente en los años de crisis política experimentados en Brasil desde mediados de
2014 y 2015, pasando por un juicio político desde la presidenta Dilma Rousseff hasta el
surgimiento del gobierno de extrema derecha de Jair Bolsonaro. Luego, el presente estudio
está diseñado en este escenario para pensar desde los caminos de vida de las mujeres que
viven en Tapajós, cómo se relacionan con el proyecto de la nación bajo el signo de desarrollo
que históricamente proyecta el futuro de la nación en la Amazonía a través de un lógica de
expropiación y explotación. El estudio se llevó a cabo a través de una investigación de campo
desarrollada durante viajes recurrentes de 2017 a 2019, conectándolos con desarrollos
macropolíticos en el período y la realidad en tres lugares diferentes: el pueblo de Alter­do­
Chão, Santarém; la comunidad Jamaraquá, en el Bosque Nacional Tapajós; y la comunidad de
Coroca, en el río Arapiuns, parte del Proyecto de Asentamiento Agroextractivo de Lago
Grande. Además de la experiencia y las conversaciones diarias durante las visitas, se
realizaron 11 entrevistas con mujeres que viven en los tres lugares, de diferentes edades, para
pensar sobre el proceso de producción de subjetividades. En este contexto, comenzamos con
referencias de estudios poscoloniales y descoloniales, así como del esquizoanálisis, para
identificar los efectos de la colonialidad en las estructuras y relaciones contemporáneas, tanto
en sujetos como sujetos, pero también en instituciones y regiones, como la Amazonía. ,
construido en el imaginario social como un lugar de género y racializado, que históricamente
está en línea con la visión de un proyecto de desarrollo para Brasil. Y eso, para las mujeres,
este proceso implicará peculiaridades basadas en la colonialidad del género, que también
cruza las relaciones de raza, clase y lugar de origen / pertenencia. Se dio cuenta de que las
subjetividades pueden ser compatibles con los valores que sirven a los intereses capitalistas y
estatales, pero también pueden ser incompatibles, lo que lleva a una ruptura y la
singularización de estas subjetividades. Igualmente, también se notó que existe la posibilidad
de cruzar, en el que se busca una ruptura, pero debido a las limitaciones estructurales y
sistemáticas, el desplazamiento es una herramienta que se encuentra para satisfacer las
necesidades de uno, coexistir dentro de una sociedad capitalista y aún producir deseos aunque
si está involucrado en la lógica moderna/colonial.

Palabras-clave: Subjetividad. Amazonía. Modernidad/Colonilidad. Desarrollo. Mujeres.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Banho no rio Tapajós com Cris, no Lago Verde 49

Figura 2 – Sttefany 50

Figura 3 – Trilha de Jamaraquá na Flona Tapajós 52

Figura 4 – Estrada de acesso à Flona Tapajós 69


Figura 5 – Artesanato de látex e sementes naturais 71
Figura 6 – Redário da casa de Nice, em Jamaraquá 71

Figura 7 – Nice 72

Figura 8 – Aline 74

Figura 9 ­ Rosivaldo durante passeio pelo igapó de Jamaraquá 76

Figura 10 – Voltando para Alter­do­Chão com Nice 78

Figura 11 – Eixos de colonialidade e a relação com o Estado e o projeto de nação 85

Figura 12 – Fernanda e Cris 104

Figura 13 ­ Vista da casa de Dona Elzanira e Seu Colau para o rio Arapiuns 105

Figura 14 – Casa de Dona Elzanira e Seu Colau na Comunidade da Coroca, Arapiuns 106
Figura 15 – Mapa de ecoturismo Santarém e Belterra com loci da pesquisa em destaque:Vila
de Alter­do­Chão, Comunidade de Jamaraquá (Flona Tapajós) e Comunidade da Coroca (Rio
Arapiuns) 117
Figura 16 – Resultados comparativos do IPS Amazônia 2018 121

Figura 17 – Mapa IPS Amazônia 2018 122

Figura 18 – Localização do empreendimento do AHE São Luiz do Tapajós 130

Figura 19 – Nice (à esquerda) e Ana Lúcia, minha mãe (à direita) 148

Figura 20 – Priscila 150

Figura 21 – Priscila jogando bola com sua sobrinha e seu filho em um fim de tarde em
Jamaraquá 154

Figura 22 – Luza abrindo a lojinha da ATA 158

Figura 23 – Comunidade da Coroca 161

Figura 24 – Lalah em atividade de guia na comunidade de Urucureá 165


Figura 25 – Piracaia em Jamaraquá 183

Figura 26 – Festa de Ano Novo dos moradores da Coroca na Ponta Grande 184
Figura 27 – Anotações pessoais no dia 6 de julho de 2019 201
Figura 28 – Rede e janela para o Arapiuns 203
Figura 29 – Conversa com Dona Elza (à direita), Ivana (ao centro), Eliane (à esquerda) e eu
(de costas) 216

Figura 30 – Luza 218


Figura 31 – Água turva 221
Figura 32 – Produção de subjetividade capitalística 236
Figura 33 – Dinâmica de produção de subjetividades entre projeto de nação e caminhos de
vida 319
Figura 34 – Fernanda em banho no fim da tarde no Lago Verde 328
Figura 35 – Nice em passeio de canoa no igarapé Água Preta 331
Figura 36 – Cris andando pelas ruas de Alter­do­Chão 335
Figura 37 – Árvore no Rio Arapiuns, que passa metade do ano na água do rio e outra na seca
340
LISTA DE SIGLAS

ABIN Agência Brasileira de Inteligência Nacional


AID Área de Influência Direta
AII Área de Influência Indireta
AMORJA Associação de Moradores e Produtores Rurais e Extrativistas de Jamaraquá
AMTB Associação de Missões Transculturais Brasileiras
ANM Agência Nacional de Mineração
Associação da Organização das Mulheres Trabalhadoras do Baixo
AOMT­BAM Amazonas
APA Área de Proteção Ambiental
APIB Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
ATA Associação Trançados do Arapiuns
CEAPAC Centro de Apoio Aos Protetores de Ação Comunitária
CF/88 Constituição Federal de 1988
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CITA Conselho Indígena dos Rios Tapajós e Arapiuns
CNS Conselho Nacional das Populações Extrativistas
CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente
CPT Comissão Pastoral da Terra
EIA/RIMA Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental
FAMCOS Federação das Associações de Moradores de Santarém
FASE Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
FDA Frente em Defesa da Amazônia
FEAGLE Federação de Associações do Lago Grande
FLONA Floresta Nacional
FUNAI Fundação Nacional do Índio
GCI Grupo de Consciência Indígena
GDA Grupo de Defesa da Amazônia
GLO Garantia de Lei e Ordem
GSI Gabinete de Segurança Institucional
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis
ICMBio Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
IDH Índice de Desenvolvimento Humano
IDHM Índice de Desenvolvimento Humano Municipal
IMAZON Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
INPE Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
IPS Índice de Progresso Social
ISA Instituto Socioambiental
ISEB Instituto Superior de Estudos Brasileiros
MAB Movimento dos Atingidos por Barragens
MEB Movimento de Educação de Base
MMA Ministério do Meio Ambiente
MP Medida Provisória
MPF Ministério Público Federal
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
MTV Movimento Tapajós Vivo
OIT Organização Internacional do Trabalho
ONG Organização Não Governamental
ONU Organização das Nações Unidas
PAC Programa de Aceleração do Crescimento
PAE Projeto de Assentamento Agroextrativista
PDA Plano de Desenvolvimento da Amazônia
PEC Proposta de Emenda à Constituição
PGC Programa Grande Carajás
PL Projeto de Lei
PNUD Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
POLAMAZÔNIA Programa de Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia
PSA Projeto Saúde e Alegria
PSL Partido Social Liberal
PT Partido dos Trabalhadores
RENCA Reserva Nacional de Cobre e Associados
RESEX Reserva Extrativista
SESAI Secretaria Especial de Saúde Indígena
SNUC Sistema Nacional de Unidades de Conservação
STF Supremo Tribunal Federal
STTR Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém
SUDAM Superintendência Desenvolvimento Amazônia
TI Terras Indígenas
UC Unidade de Conservação
UFOPA Universidade Federal do Oeste do Pará
UHE Usina Hidrelétrica
USAID Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

1 NÃO ADIANTA MENTIR, PORQUE A TERRA MOSTRA TUDO 18

2 UM BANHO DE RIO NUMA SEGUNDA-FEIRA 27

3 POR QUE TU PENSAS TANTO NO FUTURO? 52

4 COLONIALIDADES NA AMAZÔNIA HOJE E ONTEM 79

5 A CABANAGEM COMEÇOU AQUI 103

6 PARA O CAPITAL O RIO É APENAS UM CAMINHO POR ONDE AS BALSAS


CARGUEIRAS VÃO PASSAR 125

7 O QUE UMA MULHER VAI FAZER SE APARECER UMA ONÇA? 141

8 O TERRITÓRIO É CHAVE PRA CONTER TUDO ISSO OU GERAR UMA


GUERRA DE VEZ 164

9 À DISPOSIÇÃO PARA ASSINAR ACORDOS DE EXPLORAÇÃO RACIAL 185

10 É PRECISO O RIO EM PAZ PARA SE VER O FUNDO 201

11 INTERMEDIAR-SE ENTRE AS LINHAS DE FUGA 223

12 A AMAZÔNIA SEM FUTURO OU UM FUTURO SEM A AMAZÔNIA 253

13 TRAVESSIAS ENTRE O PROJETO DE NAÇÃO E OS PROJETOS DE VIDA 284

14 E EM MEIO A ISSO TUDO… A VIDA: PROJETA-SE OU CAMINHA-SE? 309

15 IMAGINANDO FINS E CAMINHOS 341

REFERÊNCIAS 352
ANEXO A - MAPAS DA FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO 371
ANEXO B - MAPAS DA PAN-AMAZÔNIA E AMAZÔNIA BRASILEIRA 372
ANEXO C - DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NO TERRITÓRIO
BRASILEIRO A PARTIR DO CENSO DE 2010 373
ANEXO D - HISTÓRICO DA COMUNIDADE DE JAMARAQUÁ 374
ANEXO E - MAPA COM NÚMERO DE COMUNIDADES REMANESCENTES DE
QUILOMBOS POR ESTADO 375
ANEXO F - MOVIMENTOS SOCIAIS PROTESTAM CONTRA PROJETO DE
HIDRELÉTRICAS NO TAPAJÓS 376
ANEXO G - MAPAS QUE DEMONSTRAM O DESMATAMENTO NA REGIÃO 377
ANEXO H - MAPA DA PRODUÇÃO DE SOJA NO PAÍS 378
ANEXO I - MATRIZ DE NECESSIDADES E FATORES DE SATISFAÇÃO 379
ANEXO J - DISTRIBUIÇÃO DE VOTOS NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 2018
380
ANEXO K - RELAÇÃO ENTRE O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA E OS
FOCOS DE INCÊNDIO EM 2019 381
18

1 NÃO ADIANTA MENTIR PORQUE A TERRA MOSTRA TUDO

Minhas avós, Assunção Maria e Raimunda, sempre diziam algo que a minha
mãe até hoje diz pra mim: “minha filha, a melhor desculpa é sempre a verdade”. E é
assim que introduzo este trabalho. Se em uma estrutura metodológica cabe à
Introdução apresentar o contexto, os métodos adotados, a forma de organização do
trabalho e seus objetivos, penso que isto deva ser feito da forma mais sincera possível.
A minha formação acadêmica completa agora dez anos ininterruptos (da
graduação ao doutorado). Posso dizer que, enquanto eu aprendi teorias e metodologias
durante essa década, também desaprendi muitas coisas. O processo de crise e bloqueio
nos últimos meses da tese, assim como a tese em si e outras experiências me fizeram
perceber que havia desaprendido algo que ainda criança eu fazia com muito prazer e
liberdade: contar histórias.
A minha relação com a escrita sempre foi de liberdade, uma forma de
comunicação, de processar sentimentos e pensamentos, de ser e existir. Apesar de um
sonho ainda jovem de ser uma escritora de ficção, foi na academia que mais exercitei e
dei vazão ao meu desejo e necessidade de escrever, por ter sido um caminho possível
de “sobreviver” escrevendo.
Enquanto me encaixei nos moldes, aprendi regras e estruturas do texto
científico consegui expressar ideias e pesquisas como da minha graduação e do
mestrado, sem problemas. Entretanto, quando passei a me debruçar sobre uma temática
e uma abordagem que propõe um giro decolonial, em determinado ponto percebi que o
que eu precisava dizer não cabia nessa estrutura.
Foram meses de uma sensação de tortura de como explicar, apresentar,
argumentar, embasar tudo que estava vivendo, pensando, tentando entender e
compartilhar. As piores crises vieram quando me deparei com o dilema do rigor
científico­acadêmico de uma tese e apresentação dos “dados” e as relações tecidas
durante os anos com todas as pessoas com quem troquei ideias, angústias, sonhos,
histórias e banhos de rio.
Como retratar algo tão pessoal e profundo por meio de uma estrutura de teoria­
descrição­análise? Como eu poderia escrever todo um capítulo teórico para que quem
lesse tivesse a impressão de uma condensação de teorias­conceitos­categorias como se
eu tivesse pensado neles desta forma, de uma só vez, sem situar os contextos e as
contribuições de tantas pessoas?
19

Eu me sentia com as mãos atadas – e o cérebro também. Sentia medo,


ansiedade, tristeza, muita insegurança, incapacidade e até, por vezes, a sensação de que
eu era uma grande farsa; alguém inexperiente e incapaz, que havia por algum acaso
chegado a um espaço que não era meu, e que tinha em suas mãos um tema muito
importante, mas que talvez, devesse ser realizado por outra pessoa.
Até que, a partir de vários momentos e trocas foi como se algo, enfim, tivesse
desbloqueado dentro de mim. Mais especificamente a partir de uma fala de Valdelice
Veron em um evento em São Paulo em 2019, sobre sua relação com o papel, a
academia e a luta do povo Guarani­Kaiowá, assim como após conversas com Julieta
Paredes no mesmo evento, durante a viagem de volta a Belém.
Valdelice falou sobre seus pais sempre insistindo para que ela “fizesse o papel
falar”, a importância da educação formal nos moldes da escolarização ocidental, como
também mais um espaço de luta pelo seu povo. E, por mais difícil que tenha sido e seja
angustiante aprender e se expressar nessas caixas tão diferentes da sua cultura, ela
aceitou que o papel era mais um instrumento de guerra, como um arco e flecha.
Pensar a academia não como um espaço de tortura, de obrigação para alcançar
valores e expectativas sociais e pessoais, mas como um possível espaço de luta do que
acredito e penso fez com que a culpa de estar neste lugar sem me sentir capaz ou válida
se transformasse. A sensação de impotência sobre escrever e pesquisar sobre este tema
e que tanto têm dialogado com o momento vivido no Brasil, fez com que eu visse este
trabalho como perda de tempo, uma ilusão, algo descartável, por mais que eu acredite
em tudo que aqui eu argumento.
Um dia, quando eu quase desistia e aos prantos via mais de 200 laudas como
lixo, minha mãe me disse: “Escreve, minha filha. Eles vão passar, esse trabalho pode
ficar, é a história de todo mundo que compartilhou algo contigo, é a tua história
também, é a tua pesquisa. Tu não sabes ainda o que vai ser dela e tudo bem, pode ser
que alguém leia um dia e ajude a mudar alguma coisa, ajudar a entender tudo isso, mas
não vale a pena tentar?”
Então, decidi tentar aqui. Não pretendo que esse relato pessoal pareça algum
tipo de vitimismo, algo que costuma ser argumentado principalmente sobre críticas
feitas por mulheres e pessoas de outras minorias políticas. Ao contrário, acredito que é
o momento de pesquisadoras e pesquisadores começarem a compartilhar seus
processos. Aqui também considero válido este relato em primeira pessoa e íntimo,
justamente pelo fato de que abordagens epistemológicas das quais vou partir, como a
20

de Frantz Fanon, perpassam âmbitos da colonialidade da mente, da nossa forma de


pensar, de nos ver no mundo e em nossas relações com as instituições
modernas/coloniais. E a academia é um bom exemplo disso.
Como isso opera, como nos faz operar e como a produção tem sido
predominantemente sobre aprender a se desumanizar em prol de uma pesquisa dita
neutra, enquanto absolutamente nada é neutro: de intenções, de valores, de idéias; às
vezes apenas dissimulam que a ciência ocidental tem emulado uma neutralidade, como
forma de validação e reprodução de alguns valores e formas de pensar em detrimento
da desvalorização de outras.
Então, é difícil determinar exatamente quando esta pesquisa começa, talvez
com meu próprio nascimento, com a colonização, como toda a história antes de mim,
mas a sua materialização de forma consciente se dá a partir de 2015, quando defendi
minha dissertação e muitas questões tomaram conta de mim.
Depois, tomando forma num projeto de tese para a seleção do doutorado e, logo
em seguida, em janeiro de 2016, durante uma viagem de férias em Alter­do­Chão,
Santarém, no estado do Pará. Destaco então que os principais acontecimentos,
argumentos, fatos e histórias aqui apresentados se concentram praticamente entre 2017
e início de 2020, período em que as idas ao Tapajós tinham como mote a pesquisa em
si, mas foram muito mais que isso.
O locus da pesquisa é também uma delimitação complicada, ainda que eu tenha
me comprometido a pensar o tema a partir de mulheres que vivem na Vila de Alter­do­
Chão, na Comunidade de Jamaraquá na Floresta Nacional do Tapajós e na
Comunidade de Coroca, no rio Arapiuns, no Projeto de Assentamento Agroextrativista
Lago Grande.
Sendo assim, um enfoque a partir da realidade vivida no Tapajós, na Amazônia
paraense, o lugar em si se deu, também, em processos e contrastes com minha vida em
Belém, na capital do Estado. Outras viagens não ligadas diretamente à pesquisa, a
acontecimentos e a fatos de caráter internacional e também nacional, como a crise
política desencadeada no país desde meados de 2014 e 2015 igualmente contribuíram.
Assim, considero relevante situar que a minha vivência no Tapajós de 2015 a
2019 esteve profundamente conectada com um momento político e social turbulento no
Brasil e que suas dinâmicas e efeitos dialogam constantemente comigo, com a pesquisa
e com a região em questão, o que se mostrará explícito ao longo do trabalho.
21

O objetivo da pesquisa e a sua questão básica podem ser explicados na ideia de


que durante os últimos quase cinco anos eu tenha buscado entender, primeiro, de que
forma o discurso desenvolvimentista tem como premissa uma lógica excludente, que
não representa ou dialoga necessariamente com o que as pessoas querem para si ou
para suas comunidades.
Em segundo, passei a pensar e a observar como as nossas formas de querer
viver e ser se dão; como passamos a desejar viver de uma forma diferente da que nos é
imposta socialmente ao mesmo tempo em que também desejamos viver e reproduzir a
forma de viver que nos é socializada. Nesses dois questionamentos estavam sempre
presentes elementos sobre desenvolvimento, visões de futuro, projetos de vida e
projeto de nação.
Propus pensar tais questões a partir das experiências e vivências de mulheres,
fosse pela curiosidade de pensar como a produção de subjetividade é atravessada por
relações de gênero de forma específica com mulheres, mas também por ter tido
conversas iniciais na primeira viagem de campo que muito fortemente destacaram
essas diferenças. O fato de eu ser também mulher pode ter possibilitado o
compartilhamento de histórias e a aproximação mais de mulheres do que de homens,
assim como minha forma de me relacionar talvez mais à vontade com mulheres nas
comunidades.
Isto posto, friso aqui que as contribuições deste trabalho não se restringem a
experiências de mulheres em contextos similares; são formas de abordar a produção de
subjetividades em sociedades que passaram pelo processo de colonização. Tampouco
as compreensões tratadas são impossíveis de serem pensadas a partir de perspectivas e
experiências de homens. Contudo, obviamente existem dinâmicas que serão específicas
da combinação de fatores aqui descritos.
Para abordar estes questionamentos fiz viagens, sempre que possível, para a
região do Tapajós, principalmente durante o período de julho por conta das minhas
férias, no regime de férias coletivas de professores. Ainda que eu tenha realizado
algumas outras incursões em outras oportunidades, visando perceber diferentes
períodos a dinâmica social. De 2017 a 2019 foram seis viagens de Belém ao Tapajós:
julho de 2017, Páscoa e julho de 2018, Natal, Ano Novo e virada de 2018 para 2019,
julho e novembro de 2019.
Em duas destas viagens foram feitas entrevistas formais com uso de gravação e
seguindo um roteiro semiestruturado. No total, foram realizadas sete entrevistas
22

presenciais. Cinco individuais e duas coletivas. Falarei aqui sobre minhas conversas e
experiências com Cris, Nice, Aline, Fernanda, Priscila, Luza, Dona Elza, Ivana e
Eliane. Também parto das minhas trocas com outras mulheres, meninas, meninos e
homens, bem como tomo como referência fontes documentais como as Cartas das
Mulheres do Tapajós e das Mulheres Mundurukus do Tapajós, das Mulheres Atingidas
por Barragens e produções audiovisuais sobre a realidade e a luta das mulheres na
região.
Nas entrevistas formais abordei quatro eixos durante a conversa, que eram
adaptadas conforme a necessidade ou o fluxo do diálogo:
1) Como é viver aqui pra ti?
2) O que tu gostarias para tua vida? O que achas importante?
3) O que tu achas de tudo que está acontecendo aqui ultimamente?
4) O que é o futuro para ti? Como tu achas que as coisas vão ser no futuro?
A partir destes quatro eixos, mas, principalmente, adotando uma escuta
atenciosa às demandas e posicionamentos que as mulheres manifestaram
espontaneamente durante as conversas, busquei pensar como os projetos de vida são
ferramentas para melhor compreender a relação entre a micropolítica e a
macropolítica, como tais dinâmicas se dão na realidade, podendo contribuir para
repensar políticas desenvolvimentistas e macroestruturas das sociedades
contemporâneas.
No decurso do desenvolvimento da pesquisa, esta foi constantemente
reformulada. As referências epistemológicas e teóricas foram agregadas
paulatinamente com o passar dos anos e com o amadurecimento da percepção do tema,
da vivência e das leituras. Inicialmente, eu pretendia já adotar uma abordagem crítica
sobre as noções de desenvolvimento e as visões de sujeitas e sujeitos (localizados
inicialmente em grupos sociais), mas, a premissa inicial foi sendo alterada para a
discussão do Complexo Hidrelétrico do Tapajós e as visões de grupos sociais; em
seguida, decidi abordar a perspectiva de mulheres enquanto sujeitas nestas relações.
Durante este caminho inseri a discussão da esquizoanálise e da produção de
subjetividades, reflexões sobre a relação de tempo e espaço, com foco na
desestabilização da noção de futuro e sua relação com a lógica do desenvolvimento e
do sistema de gênero moderno/colonial. Esses novos rumos foram adensados pela
escuta de palestras como as já citadas de Valdelice Veron, Julieta Paredes, mas
também de Daniel Munduruku, do Mestre Nego Bispo, das professoras Mônica
23

Conrado e Violeta Loureiro, conversas com amigas e amigos, familiares, alunas e


alunos, e, praticamente, qualquer pessoa que nos últimos anos tenha se disposto a ouvir
sobre minha pesquisa e falar o que pensou sobre a mesma.
Já no último mês da execução da pesquisa me ocorreu fazer algumas alterações,
tanto no termo “projeto de vida” que passou a “caminho de vida”, como também aos
eixos das conversas, que reformulei e consegui, mesmo em Belém, que Fernanda, Cris
e Nice enviassem respostas. Assim, as ponderações iniciais foram reformuladas para:
1) O que tu tens pensado sobre a vida ultimamente?;
2) Sobre tudo o que tem acontecido, para onde achas que isso vai?;
3) Como tu querias que a vida fosse?;
4) O que tu esperas da vida hoje?;
5) Quais teus planos atualmente? Eles mudaram em comparação a dois anos,
por exemplo? (Se quiseres podes comentar quais fatores contribuíram para essas
mudanças).
A organização da apresentação de toda essa experiência/pesquisa está disposta
então da forma que ela foi vivida, não começando do resultado final dos debates
amadurecidos, mas abordando o processo em si de amadurecimento, por compreender
que se me proponho a discutir a produção de subjetividades sob a lógica
moderna/colonial não posso desconsiderar o meu próprio processo vivido nestes anos,
como parte também da pesquisa. Considero relevante apontar a trajetória das primeiras
inquietações e as próprias motivações inconscientes delas e suas transformações ao
longo da pesquisa.
Logo, escrever esta pesquisa de forma “tradicional”, ou pelo menos da forma
que fui ensinada durante anos, em certo ponto mostrou­se uma mentira e provocou
profundo desconforto. Também inserida numa proposta de giro decolonial, decidi
contar e explicar o que vivi e aprendi da forma que sempre soube, contando a história e
tudo o que aconteceu, da forma que vivi. A forma de ver a situação e abordá­la, meus
posicionamentos e minhas próprias decisões sobre minha vida estão por si só inseridas
neste contexto que me propus a discutir e mudaram constantemente.
Além da escrita e dos relatos, outras formas de comunicação e expressão
estiveram presentes na minha experiência, como fotos e até mesmo poemas que de
forma espontânea escrevi pela primeira vez na vida. Resolvi também aqui compartilhar
estas produções.
24

Infelizmente, não tenho mais como ouvir os conselhos da minha vó Maria sobre
a vida e passar madrugadas acordada ouvindo suas histórias e sabedorias infinitas.
Mas, felizmente, eu pude ouvir muito nos anos que compartilhamos e, de seus muitos
ensinamentos, ela também dizia que não adiantava mentir porque a terra mostrava
tudo.
Como em tantas outras situações, resolvi ouvir a voz das minhas avós e minha
mãe e tudo se mostrou muito simples: preciso contar a história dessa pesquisa, desta
tese, como ela aconteceu, sem falsear a ordem das coisas e sem omitir os momentos
mais enriquecedores que não estiveram necessariamente ou apenas na leitura de artigos
e livros, mas sim nas conversas e nos laços criados nos últimos anos.
Isto posto, adotei uma estrutura de capítulos­ensaios, de forma que eles são
entremeados, na maioria das vezes, por referências teóricas, contextualizações e relatos
das visitas ao Tapajós, na ordem cronológica. Os dois primeiros abarcam a primeira
viagem, em julho de 2017, e as primeiras conversas que tive com a Cris, com a Nice,
com o Rosivaldo e a Aline, apresentando um pouco das primeiras impressões sobre
Alter­do­Chão e a Flona Tapajós, assim como, localizando o discurso de
desenvolvimento e a relação com a formação do Brasil e a localização de regiões mais
desenvolvidas que outras, assim como, o lugar pensado sobre o Norte e a Amazônia no
contexto de colonialismo interno regionalizado.
No segundo capítulo especificamente, eu aprofundo a relação entre a lógica
moderna/colonial e a relação temporal linear com o futuro e de que forma minha
própria subjetividade reproduz e dialoga com estas categorias, o que levou a repensar
essa referência. Já no terceiro capítulo, proponho uma organização teórico­conceitual
sobre modernidade/colonialidade a partir do contexto histórico numa perspectiva
amazônica, destacando o processo de colonização e projetos desenvolvimentistas do
século XX para a mesma.
A primeira ida ao Arapiuns é retratada no quinto capítulo entre a história de
Fernanda e minha primeira experiência na Coroca, em meados do primeiro semestre de
2018. A partir da viagem, conduzo um aprofundamento sobre a história do Tapajós e
no sexto capítulo aprofundo sobre os movimentos sociais, as dinâmicas econômicas
que tensionam a região e as resistências articuladas.
A viagem de julho de 2018 é o pano­de­fundo para os capítulos sete e oito,
contando além das vivências, as entrevistas formais realizadas com Nice e Priscila, em
Jamaraquá, com Luza, na Coroca, e com Lalah, em Alter­do­Chão. Nesses capítulos
25

proponho uma aproximação das entrevistas por referências que desestabilizam algumas
noções desenvolvimentistas como o desenvolvimento à escala humana por Manfred
Max­Neef, Antonio Elizalde e Martin Hopenhayn, assim como, a abordagem do
feminismocomunitario a partir de Julieta Paredes.
O oitavo capítulo é também contextualizado com o cenário político brasileiro
das eleições presidenciais de 2018, retomando um pouco do contexto macropolítico
desde 2014, com foco no pós­impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016,
seguido pelo Governo Temer, onde aponto algumas mudanças políticas e demandas
identificadas por movimentos locais, finalizando o capítulo com as impressões do
clima político no Tapajós na virada de ano de 2018 para 2019.
À continuação, no nono capítulo faço um balanço do primeiro semestre do
governo de Jair Bolsonaro em relação à Amazônia, identificando alguns discursos e
políticas para a região e o diálogo com a ideia de lógica moderna/colonial, assim como
o colonialismo interno, colonialidade de gênero e as reverberações iniciais em
movimentos e articulações, principalmente de mulheres indígenas. Já o décimo
capítulo traz apontamentos sobre a viagem de julho de 2019 e mais algumas
entrevistas, realizadas com Dona Elza e suas filhas, Ivana e Eliane, na Coroca, situando
o clima na comunidade após o primeiro semestre de mudança na presidência e a
intensificação da pressão da entrada de capital no Arapiuns e no PAE Lago Grande.
O décimo primeiro capítulo foca na produção de subjetividades, retomando
entrevistas e conversas, vivências e contextos históricos abordados anteriormente. A
discussão é elucidada a partir das contribuições de Frantz Fanon, Gilles Deleuze e
Félix Guattari, em diálogo também com María Lugones e outras referências adotadas
ao longo do estudo. Aproveito, também para uma apresentação do quadro­geral do
clima em Alter­do­Chão após as eleições de 2018, ensaiando­se o decorrer do ano de
2019, de aumento das tensões e polarizações políticas.
As reverberações internacionais, locais e na mídia por conta dos
acontecimentos do segundo semestre de 2019 na Amazônia são pontos de destaque do
décimo segundo capítulo, onde questiono o entrelaçamento na ideia de futuro do Brasil
e da humanidade à Amazônia, assim como os discursos racializados e generificados
sobre a região e como tais análises se relacionam profundamente com a dinâmica da
produção de subjetividades.
Já o décimo terceiro capítulo propõe contrastar o projeto de nação às noções de
projetos de vida, retomando pontos centrais abordados em seções anteriores, rumando
26

assim para o capítulo seguinte, onde redefino projeto de vida por caminhos de vida e
discorre­se sobre as falas de Fernanda, Nice e Cris no início de janeiro de 2020, onde
destaco como a produção de subjetividade tem possíveis dinâmicas que podem ser
atravessadas, compatíveis com o capitalismo ou incompatíveis, onde ocorre uma
ruptura. O capítulo foca em subjetividades atravessadas, que recorrem a uma
intermediação como forma de construir caminhos de vida.
Por fim, a conclusão, ou capítulo décimo quinto, destaca questões centrais
apresentadas durante o estudo e lança novas possibilidades para a abordagem
construída aqui, finalizando, com as minhas próprias respostas às ponderações de
caminhos de vida.
Esta pesquisa é também parte da minha história, da minha mãe e das minhas
avós. Vó Raimunda não estudou além do ensino fundamental e seu sonho sempre foi
estudar, por isso, incentivou sempre toda a família a levar a educação a sério, o que em
muito contribuiu para minhas escolhas profissionais e a relação com os estudos e a
academia. Vó Maria não sabia ler nem escrever, só assinar o próprio nome, mas
desconfio que não tenha existido uma vez sequer, em que ela tenha falado algo que não
tenha sido uma grande aula sobre a vida e o mundo.
Minha mãe me criou a partir dos ensinamentos das duas, da sua mãe e sua então
sogra. As três tiveram seus sonhos adiados e, no caso das minhas avós, atropelados,
principalmente pelas relações de gênero e o que se espera(va) de mulheres na
sociedade como esposas e mães. Elas foram minhas primeiras orientadoras e
continuam a me orientar. Espero aqui compartilhar o conhecimento delas e de tantas
outras mulheres e homens que contribuíram para a minha formação enquanto pessoa e
na minha relação com o mundo.
Se a produção de conhecimento que aqui ofereço será considerada válida dentro
dessa estrutura realmente não depende de mim, mas de quem a lerá. E o que for preciso
repensar, revisitar, assim será feito. Provavelmente, nos próximos encontros e
experiências que terei na vida muito disso pode ser aprofundado ou descartado. Mas,
por ora, eu preciso contar esta história e, decidi não mentir, já que não adianta mesmo,
pois um dia a terra mostra tudo.
27

2 UM BANHO DE RIO NUMA SEGUNDA-FEIRA

Na jusante
levo-me.
Elevo-me ao mar
e
no entanto
Mar
sou Rio.
Assim me sei,
ciente do que sou
no que não-sou
consciente...
(...) E sou aquilo que me deixo
em várzeas verdes.
Conhecimento de que meu caminho
não é o meu caminho
e que correr é como sei de mim.
Esta forma de ir, que é meu destino,
conhece-me infeliz,
pois que não sou em mim
e amo as águas destas águas noutras águas...
(Cântico XI, João de Jesus de Paes Loureiro)

Eu estou andando pelas ruas de Alter­do­Chão com Cris em direção ao Lago


Verde, acompanhando­a em um de seus banhos diários no rio Tapajós. Ela vai parando
constantemente durante a nossa caminhada para coletar frutas e plantas que, em
meados de 2016, eram apenas mato para mim, mas ela vai me explicando suas
propriedades, possibilidades de uso em infusões, saladas e seus nomes.
Enquanto ela me fala sobre os benefícios para a saúde e seus usos medicinais eu
penso comigo como Cris se adaptou tão rapidamente à Amazônia a tal ponto que
ninguém desconfiaria à primeira vista de que ela havia chegado lá apenas alguns
meses. Ela se mudou da cidade do Rio de Janeiro para a vila que fica próxima a
Santarém, no estado do Pará. Duas partes e realidades do Brasil bem diferentes.
Antes da sua mudança para Alter­do­Chão, ela tinha conseguido um emprego
estável na prefeitura do Rio de Janeiro, consideravelmente bem remunerado para
trabalhar na sua área de formação como psicóloga, numa das cidades brasileiras mais
conhecidas no mundo e o sonho de futuro que muitos brasileiros almejam alcançar.
A cidade do Rio de Janeiro é conhecida internacionalmente como um destino
turístico, vista como síntese da identidade brasileira para muitos: belezas naturais com
desenvolvimento econômico, referência do carnaval e da diversidade. E que também
representa a desigualdade econômica, social e racial no país, mesmo enquanto
28

concentra boa parte da população, do capital e investimentos, mas ainda possui em si


elementos de violência no cotidiano da cidade.
A imagem que se tem do Rio de Janeiro como um dos “centros” do Brasil e do
desenvolvimento em relação a regiões ditas “periféricas” (seja no sentido urbano­rural
ou também em relação a outras macrorregiões do país) foi construída historicamente e
internalizada desde a colonização portuguesa do território que veio a ser chamado de
Brasil, com ênfase para o início do século XIX com a chegada da coroa e da corte
portuguesa na cidade. Ainda hoje as narrativas de novelas e produções
cinematográficas nacionais reforçam essas noções.
Assim, para muitos causou e ainda causa estranhamento o fato de Cris ter
decidido, em 2015, ir embora do Rio, saindo do emprego estável e bem­remunerado,
sem ter perspectiva equivalente no Pará. Como muitos brasileiros e brasileiras, Cris
nasceu e cresceu numa pequena cidade, Paty do Alferes, no estado do Rio de Janeiro.
Ela viu durante muito tempo a cidade grande como único caminho viável para se
desenvolver e a educação formal como sua principal ferramenta. Entretanto, mesmo
com dificuldades, muitas delas por conta de racismo e discriminações de gênero, ela
logrou seu objetivo e autonomia financeira no Rio, sendo a primeira da família a ter
uma formação de ensino superior, em Psicologia.
O trajeto feito por Cris, de Paty ao Rio, apesar de ter sido uma mudança dentro
do mesmo estado, representa a migração que é comum no Brasil e em outros lugares do
mundo, do rural ao urbano ou de cidades menores a maiores, de regiões mais
“periféricas” a outras mais “prósperas”, com mais oportunidades de acesso a serviços e
emprego. Como exemplo, temos várias migrações internas que rumaram ao Sudeste,
principalmente durante o século XX, com ênfase a partir dos anos 1930 em virtude do
processo de industrialização concentrando em São Paulo migrações advindas do
Nordeste, do Centro­Oeste e também do Sul e, nas décadas seguintes, também do
Norte (Martine, 1984 apud Vale, Lima e Bonfim, 2004).
Ainda que não seja o objetivo o aprofundamento sobre o fenômeno da migração
é preciso pontuar a relação direta que há entre os deslocamentos de sujeitos e sujeitas
em sociedades capitalistas, de modo que a desigualdade inerente ao sistema se
materializa não apenas na concentração do capital em classe, mas também em regiões,
tendo como resultado a centralização política e econômica, de serviços e políticas
públicas.
29

O movimento de êxodo rural observado na Revolução Industrial na Europa foi


observado de forma similar no Brasil no século XX, pois como destaca o geógrafo
Milton Santos “é entre 1940 e 1980 que se dá a verdadeira inversão quanto ao lugar de
residência da população brasileira. Há meio século (1940), a taxa de urbanização era de
26,35%, em 1980 alcança 68,86%. Nesses quarenta anos, triplica a população do
Brasil, ao passo que a população urbana se multiplica por sete vezes e meia” (Santos,
1993, p. 29). A mudança não é um efeito espontâneo, mas produzido pelas dinâmicas
do capital, outras migrações e deslocamentos também marcam nossa história como a
própria colonização e os ciclos econômicos.
É neste sentido que se faz necessário observar a construção da noção da região
Sudeste do Brasil como uma referência do desenvolvimento e da riqueza no país, ou
como “centro”. Tal noção, entretanto, sempre se mostrou incompleta por induzir a
invisibilização das desigualdades internas a esses territórios que viriam a ser inclusive
aprofundadas pelo processo de urbanização.
A discussão sobre desenvolvimento e as correntes contemporâneas sobre esse
tema, cuja abordagem durante o século XX basicamente restringiu­se a aspectos
economicistas e, em alguns casos, com visões historicizadas, demonstra a importância
de se analisar também a formação do imaginário sobre as regiões e/ou, como será
abordado adiante, a produção de subjetividades.
Diante disso, é importante analisar como a história de Cris e sua mudança de
vida dialoga com o processo histórico de colonização e formação do Brasil. Os seus
desejos e seus caminhos foram avaliados corretos enquanto seguiram o caminho
considerado de desenvolvimento, rumo ao centro do poder e capital, na cidade do Rio
de Janeiro. Todavia, quando ela optou por afastar­se de símbolos identificados como de
modernização e melhoria de vida em sentido material causou espanto, por projetar
outro modo de vida em outro lugar, outra região, sendo esta historicamente associada
ao “atraso”.
E, para partir da história de Cris e analisar a relação entre os elementos que
serão considerados durante esta pesquisa, faz­se necessário considerar que tais
dinâmicas se fundem em noções iniciais de Estado, Nação e desenvolvimento. Noções
estas que autoras como Nira Yuval­Davis (1997) e Shirin M. Rai (2008), por exemplo,
argumentam que devem considerar as questões de gênero, raça e classe como
elementos fundantes de conceitos ora vistos como “neutros”.
30

Elas e outras pensadoras discorrem sobre a importância de pensar a formação


das estruturas e instituições sociais e políticas contemporâneas; como estas se dão com
as formas de opressão, violência e desigualdades inerentes às relações de poder, assim
como perceber valores fundantes e que são reproduzidos por meio de narrativas
naturalizadas de Estado, nação e desenvolvimento.
Significa dizer então que a trajetória de Cris e os deslocamentos produzidos
internamente no Brasil citados anteriormente não têm apenas um caráter econômico,
em sentido restrito, mas que perpassam essas experiências também as concepções
enraizadas de gênero, raça e classe localizadas numa estrutura estatal, em torno de um
discurso de nação e desenvolvimento. Neste sentido, o que impulsiona os
deslocamentos em sentido geral, tem implicações diferenciadas a partir das
experiências de sujeitas e sujeitos em torno de suas especificidades e posicionalidades
na sociedade.
É preciso analisar que em casos como o do Brasil e outras sociedades que
passaram pelo processo da colonização europeia, por séculos de intervenções
colonialistas e imperialistas – cada uma com suas particularidades –, tais processos
contribuíram para a formação dos Estados a partir da relação inicial de colonização,
com a imposição de um modelo de organização social e política exógena e que, mesmo
após o fim da dominação colonial formal, suas estruturas mantiveram­se por outros
laços, como as relações das oligarquias e elites nacionais e locais já consolidadas e
herdeiras da dinâmica anterior.
O panorama das desigualdades sociais mostra como homens brancos ricos
heteronormativos e cristãos, em sentido geral, fazen parte do grupo social mais
predominante no acesso ao poder político e econômico, o que mostra como as
estruturas sociais não são neutras, mas são inclusive instrumentalizadas para a
manutenção dos valores que reforçam certa “autoridade natural” a esses indivíduos.
Será abordado ao longo destas páginas como se chega a esse ponto e como têm sido
apontados diferentes caminhos para tal análise.
Podemos começar a partir da implicação de como o amadurecimento do
modelo de Estado­Nação moderno se dá justamente entre os séculos XVII­XIX, como
uma estrutura enraizada por ideais de civilização, progresso, futuro e desenvolvimento
(Bresser­Pereira, 2008), noções essas que são ponto de partida para se pensar a
organização social e política com o objetivo master de garantir a sua perenidade,
recorrentemente pela violência (Escobar, 1995).
31

Para Dussel (1992) tal processo incubiu pela autodefinição da própria cultura –
eurocêntrica – como superior, localizando a outra cultura como inferior, sendo o sujeito
“outro” culpado de sua “imaturidade”, “de maneira que a dominação (guerra,
violência) que é exercida sobre o Outro é, na realidade, emancipação, ‘utilidade’,
‘bem’, do bárbaro que se ciliviza” (Dussel, 1993, p. 75).
A ideia de modernidade em si é desenrolada como indissociável da estrutura
estatal, sendo esta considerada como uma fórmula evoluída da organização política que
possibilita o aprimoramento das sociedades, afastando­a de um estado de natureza,
selvageria ou anarquia (Walker, 1993). No caso do Brasil, o objetivo do Estado em
desenvolver o país significa em termos reais um processo não apenas econômico e
material, mas que dialoga também como idéias racializadas e generificadas.
Pensadores latino­americanos do Grupo Modernidade/Colonialidade (Quijano,
2000; Dussel, 2005; Lander, 2005; Mignolo, 2017) apontam para o fato de que a dita
modernidade não se restringia a um fenômeno apenas ligado a noções de progresso e
desenvolvimento que possibilitaram o florescimento de sociedades “desenvolvidas” na
Europa, pautada em valores tecnocientíficos, racionais, iluministas, liberais e
progressistas, mas sim que a modernidade se deu graças e, intrinsecamente conectada,
à sua outra face: a colonialidade.
Desta forma, o que há tempos é reproduzido, pela cultura eurocentrada e
colonialista como um curso natural ou desejado para todas as sociedades humanas – a
civilização e o progresso – que, não por coincidência, têm como referência a
experiência europeia, não foi espontaneamente moldada. O curso que tem sido frisado
como o melhor caminho é, entretanto, fruto de um processo de construção social desta
referência, que não tem como base apenas os valores do século XVIII e XIX, mas sim
que é uma nova forma de colonização, uma nova roupagem de dominação, agora com
adaptações às novas relações de poder e que tem como antecedentes vários momentos
e valores que influenciaram a formação do pensamento europeu, remontando à Grécia
Antiga e ao Cristianismo, por exemplo, como aponta Rist (2008).
Enquanto a colonização genocida e etnocida a partir do século XV teve como
fundamento a justificativa teológica cristã da missão civilizatória pautada na “salvação
de almas” por meio do trabalho na ideia do pecado original e o trabalho como forma de
castigo e caminho para tal salvação (Santos, 2015); a modernidade, influenciada pelas
revoluções liberais nos Estados Unidos, na França e pela industrialização, reformulou e
32

“civilizou” também seu discurso, adotando uma justificativa não mais tão teológica de
valores judaico­cristãos, mas, dita de uma noção “racional”: o progresso.
Em meados do século XIX, a opressão explícita de povos começou a parecer
incoerente com a emergência da noção de direitos naturais e as independências, lutas
de várias colônias contra as antigas metrópoles mostraram­se irreversíveis. Assim,
adaptaram­se os instrumentos de colonização, de modo que seus efeitos enraizassem as
sociedades que se formavam nos territórios que conquistavam suas independências
formais das colônias.
As elites europeias não lograram a expansão e concretização de seus modos de
vida e instituições sociais, políticas e econômicas por serem formas comprovadamente
melhores e mais evoluídas de se viver em sociedade. A consolidação dessa
modernidade enquanto modelo está diretamente ligada aos processos de colonização
iniciados séculos atrás e institucionalizado pelas estruturas coloniais.
A revolução industrial, a expansão do capitalismo, os valores liberais e a
acumulação e a produção de conhecimento técnico­científico foram possíveis não por
europeus serem mais “civilizados”, mas sim pela assimétrica relação de exploração
com outros povos, de suas riquezas, terras e saberes. Ao mesmo tempo em que a
apropriação se deu, outros modos de vida foram constantemente retratados como
indesejáveis, incompatíveis com o progresso e o desenvolvimento.
E é neste âmbito que se pode extrair que “desenvolver­se” passa a ter um
sentido de predestinação, não à toa remetendo a um discurso de origem teológica,
justificando a pobreza e incentivando uma perspectiva de meritocracia, enquanto se
fortalece pelo adensamento das desigualdades e a negação da humanidade de povos e
culturas subalternizados, sendo, em suma, a base do sistema moderno/colonial.
A palavra desenvolvimento carrega em si a compreensão de qualidades inatas e
potenciais, como um processo de etapas a serem superadas, de uma fase inferior a uma
superior. A ideia de desenvolvimento se metamorfoseou em diversos momentos da
história da humanidade e esta visão passou a ser compreendida como um avanço linear,
de etapas que levam a um fim, como um desdobramento de capacidades inerentes,
como na Idade Antiga, na Idade Média e, principalmente, durante a Idade Moderna
(Rist, 2008).
Gilbert Rist localiza, por exemplo, raízes dessa visão de mundo na própria
teologia cristã. E ao analisar o contexto religioso da catequização no Brasil, Ronald
Raminelli (1997) aponta que a concepção religiosa buscava justificativa para o
33

processo de “salvação” dos nativos, inserida na própria lógica temporal que dialogava
com o projeto de modernidade/desenvolvimento:
A concepção de tempo exposta pelos religiosos constitui uma
filosofia da história, caracterizada pela Teoria do Declínio e pela
Restauração Futura. Os eventos descritos seguem uma lógica fundada
na queda progressiva e na ascensão final. A humanidade viveu o seu
período glorioso no início dos tempos; desde então a vida dos
homens foi marcada pela decadência. O futuro promoveria o
acirramento desse estado de coisas até o momento em que um agente
externo interferisse no processo. O cristianismo, nessa perspectiva,
pretendia reverter o quadro de progressiva degradação da
humanidade e implantar o reino dos céus. O futuro seria um retorno à
primavera dos tempos, uma volta ao mundo antes do pecado original.
(Raminelli, 1997, p. 33)

Assim, o futuro é questão central para as decisões no então presente, adotando


uma premissa linear e progressiva, logo, percebe­se que discutir desenvolvimento vai
além de um modelo econômico, mas isso perpassa bases epistemológicas e ontológicas
que atravessam a política, a economia e também os corpos e as mentes, nas suas
relações com o tempo e o espaço.
A naturalização dessa forma de pensar como um modelo universal
desconsidera, por exemplo, outras epistemologias e cosmovisões sobre o tempo, o
espaço, assim como a visão binária de separação cultura­natureza. Enquanto muitos
povos ameríndios, ou de Abya Yala, e outros possuem percepções circulares do tempo
e não lineares, como para os Aymara e os Quechua, por exemplo, pensa­se o passado
estando à frente já que é o que se pode ver enquanto o futuro está atrás (Paredes e
Guzmán, 2014).
Portanto, estruturas e instituições consolidadas na contemporaneidade não são
neutras e espontâneas de um processo dito evolutivo, mas fruto da colonização e
imposição etnocêntrica que permeia todas as esferas da vida social (a educação, a
economia, a política, relações étnico­raciais e de gênero), moldando comportamentos,
expectativas e políticas, enquanto reforça a exclusão e violência de negação de formas
outras de viver.
Nesta lógica, atividades econômico­produtivas não voltadas para uma lógica de
acúmulo (futuro) e diferentes dinâmicas na relação tempo­trabalho, demonstram a
essência da colonialidade, citada anteriormente como a outra face da modernidade. E
isso se dá a ponto de ter­se a formação do imaginário atrelando o trabalho e grandes
34

contribuições para a sociedade aos colonizadores, enquanto aos povos subalternizados


aplica­se a noção de preguiçosos, indolentes e improdutivos.
Essas noções, entretanto, serão aplicadas socialmente de forma diferenciada
sobre pessoas percebidas como mulheres e homens, negros, indígenas e brancos. Às
mulheres e homens negros e indígenas, assim como pobres em geral, por exemplo,
haverá uma percepção social de que são não tão “esforçados” e que, por isso, a
situação de pobreza na qual grande parte viverá será sua própria culpa e não do sistema
de desigualdade racista em que a sociedade brasileira é moldada. Esta ênfase é
importante para avaliar como o racismo, o classismo e o sexismo impactam nas
subjetividades dentro de uma sociedade moderna/colonial.
Antônio Bispo dos Santos (2015), também conhecido como Mestre Nêgo
Bispo, questiona pertinentemente, sobre este pensamento comum à sociedade, sobre
quem realmente produziu riquezas no Brasil, considerando a realidade do trabalho e
não a hierarquia imposta: quem era realmente improdutivo, já que toda a produção era
executada e garantida por esses povos e não pelos colonizadores?
Podemos identificar esse processo na obra de Caio Prado Júnior (1978),
História e Desenvolvimento, na qual ele analisa a história da formação do Brasil – a
partir da colonização, ou seja, da chegada dos portugueses/europeus –, destacando a
“função” primária atribuída ao território em questão, diferente de outras formas de
colonização, como dos Estados Unidos. O Brasil já tem na sua origem uma inserção
como fonte de matéria­prima para atender a uma demanda externa.
Isto significa dizer que a história do país já tem como origem da sua formação
social, política e econômica uma dinâmica de atender à demanda do comércio
internacional, ao contrário da visão defendida por expoentes da lógica
moderna/colonial que seria o processo “natural” de formação dos Estados, que
passariam pela formação de uma identidade nacional, ou seja, a consolidação de um
contexto cultural, territorial e populacional “espontâneo”.
E tal formação levaria a uma forma de organização política em torno desses
valores compartilhados e que dariam base para o Estado, seus objetivos e estruturas
estando voltadas para a sua sociedade fundante. O Brasil é “descoberto” apenas quando
o sentido da sua existência atrela­se ao processo civilizatório europeu.
No Brasil, isto se dará de forma difusa: todas as estruturas (políticas,
econômicas, etc.) são criadas e pensadas de e para a necessidade da metrópole:
35

Não é a colonização que empreendeu e desenvolveu o


aproveitamento da exploração canavieira, e sim o contrário: é essa
exploração que deu origem à colonização e ao Brasil. [...] Não é a
economia do açúcar que se conforma e adapta às necessidades de
uma sociedade preexistente que nela procura a base econômica de
sua subsistência. E sim, é esta sociedade que se origina, dispõe e
organiza em função da finalidade precípua de produzir açúcar, e
assim realizar um negócio. Negócio que tem, não como objetivo
(pois o objetivo próprio de todo negócio é tão­somente o lucro
mercantil), mas como o objeto o atendimento de necessidades e de
um consumo estranhos ao país e à coletividade nele instalada (Prado
Júnior, 1978, p. 37).

O exemplo dado sobre a cana­de­açúcar já havia sido também precedido pelo


caso da exploração do pau­brasil, e, no âmbito da cana­de­açúcar2. E, a mão­de­obra
predominante dessa produção não era de europeus/brancos, mas dos povos nativos e
também de africanos, logo, as riquezas produzidas por meio da escravidão é resultado
da superexploração de alguns sobre outros e que Santos (2015) questiona como até
mesmo as riquezas produzidas nesse sistema, não é resultado do “trabalho branco”, que
seriam os verdadeiros improdutivos, ao passo que recaiu sobre populações negras e
indígenas uma naturalização da expectativa de ter sua mão­de­obra explorada.
Apesar de Prado Júnior (1987) não abordar essa questão, ele contribui com a
visão de que apesar das mudanças políticas ocorridas durante os séculos XIX e XX (de
Colônia ao Império e de Império à República), a lógica da ideia de desenvolvimento no
país continua servindo ao interesse do capital externo: nos outros ciclos econômicos
que seguem após a cana­de­açúcar e o processo da Revolução Industrial na Europa,
assim como os processos de modernização e construção de ferrovias e portos para a
exportação da produção brasileira. Assim, o modelo econômico e político reforçam
uma estrutura estatal ideologicamente eurocentrada, na qual a cosmovisão europeia é a
única aceitável.
Mesmo com a independência formal de Portugal a partir de 1822, percebe­se a
continuação da concentração de poder e capital nas elites latifundiárias e escravocratas,
2
A situação descrita por Prado Júnior é crítica no sentido também de uma transformação na cultura
alimentar imposta pelas dinâmicas do mercado externo. Enquanto a mandioca, base da alimentação em
toda a extensão territorial, começa a perder espaço, no momento em que todos os recursos de terra e
produção são voltados para a cana (além dos impactos ambientais da prática da monocultura). Pode­se
remeter a esse contexto a desigualdade pela questão da fome e da insegurança alimentar para a
população nativa, assim como a prática da exploração forçada de mão­de­obra, indígena e também
africana negra, o que reforça o argumento de padrão de uma estrutura e formação da sociedade brasileira
voltada tão somente para o mercado externo e a partir das necessidades e prioridades dos colonizadores,
indiferente às demandas locais e sociais ­ o que aqui se dá de forma explícita em relação à ideia de
modernidade/colonialidade, ou seja, a colonização como a outra face da modernização que impulsionava
as sociedades europeias.
36

dando seguimento na condição de desigualdade e dissonância de interesses elitistas da


população em geral; população esta desde o início marginalizada e desconsiderada na
participação política do Estado.
Isto se explica pelo fato das formas impostas de organização social (como o
Estado) serem assumidas por uma elite local diretamente ligada aos valores e interesses
da Coroa, seus descendentes, os proprietários de terras e donos dos meios de produção,
os escravocratas, as elites políticas e intelectuais, ou seja, a elite branca.
Acerca das elites políticas e econômicas em países subdesenvolvidos, Pablo
Gonzáles Casanova (1922­), sociólogo e crítico mexicano, popularizou a partir de sua
obra de 1969, Sociedad de la explotación, o conceito de colonialismo interno, o qual é
crucial para a discussão que aqui se pretende realizar.
Pablo González Casanova (2006) faz uma reflexão da exploração interna,
dentro dos Estados. Esta relação de domínio que se daria entre grupos heterogêneos
(proprietários e trabalhadores; cidade e campo; etc), assim como discutido também por
Frantz Fanon (2008). Dessa forma, as elites políticas reproduzem a opressão
internamente e buscam uma maneira de alcançar um modelo “superior”, que se supõe
ser melhor. Para González Casanova (2006), a democracia se mostra como uma
utopia, já que esse processo de representação não é definido pelo povo, mas sim por
uma parte da sociedade.
De modo similar, Fanon (1968) também tratou dessa preocupação ao sinalizar o
risco da reprodução de práticas coloniais por meio de um neocolonialismo analisando
os movimentos e lutas de independência na África, quando chamou a atenção para que
o fato de que tais processos que não conseguissem “reposicionar os rumos da economia
para atender as necessidades internas de seu povo abriria as portas para a instalação do
neocolonialismo” (Faustino, 2015b, p. 161).
E ainda sobre as contradições das relações em sociedades derivadas do processo
colonial, Fanon aborda como as lutas de classes nesses contextos se deu sob condições
diferentes de uma análise apenas de classes. Ao analisar as obras de Fanon, Deivision
Mendes Faustino (2015b, p. 162), especialmente o livro Os Condenados da Terra,
destaca como “fica nítido em vários momentos o quanto o trabalhador europeu assumia
nas colônias a função de agente do colonialismo. Mais do que isso, esse trabalhador,
embora explorado, vivenciava vantagens diversas de ordem real e simbólica pelo fato
de pertencer ao grupo invasor”.
37

Tal apontamento nos direciona para o cuidado de não essencializar e


homogeneizar leituras sobre sociedades a partir do sistema moderno/colonial, de
países, territórios ou regiões, em uma reprodução nebulosa de apagamentos das
diferenças e contradições oriundas dessas dinâmicas, seja recaindo sob ufanismo ou até
mesmo de tentar “vitimizar” grandes contingentes populacionais sob a égide de uma
noção homogênea de vivência, como “Brasil” ou “Amazônia”.
Pode­se analisar, por exemplo, como propõe Júlio Vellozo e Silvio Almeida
(2019) a relutância em se abolir a escravidão no país durante o século XIX, por conta
de uma espécie de “pacto de todos contra os escravos”, que se deu por uma
“democratização” da propriedade escravos que conseguiu expandir para grande parte
da sociedade a possibilidade de ser parte desse pacto. Ou seja, mesmo pessoas
relativamente pobres podiam ter pelo menos um escravo.
Assim também, as pessoas escravizadas não estavam tendo seu trabalho
explorado apenas nos grandes latifúndios, mas de certa forma em todas as esferas da
vida produtiva econômica da sociedade. Dessa forma, com a maior parte da população
se beneficiando da exploração, ainda que em graus diferentes, havia pouco interesse
para a abolição, pois “ter um escravo” simbolizava crédito, capacidade de empreender,
status social, garantia de liberdade (para libertos) e a possibilidade de participar da vida
política (Vellozo e Almeida, 2019).
Considero a análise desses autores relevante para contextualizar como o
colonialismo interno e também o neocolonialismo, citado por Fanon, pode ser
observado de forma difusa, não ficando restrito apenas à alta elite, mas mostrando
como é uma idéia que permeia a sociedade nas diferentes classes, contribuindo pelo
menos para uma mentalidade de desejar um status social que é identificado como o
poder de explorar outrem de modo que também perpassa por relações racializadas.
Aqui, apesar de ressalvas e particularidades, pode­se traçar um paralelo com as
relações entre as regiões do Brasil (Norte, Nordeste, Centro­Oeste, Sul e Sudeste), mas
também se podem pensar as dinâmicas internas nas regiões e, também, em cada
território, de forma que elites nacionais, regionais e locais até hoje colhem os frutos
dessas explorações anteriores e as reproduzem, em torno de valores pautados numa
lógica de projeto de nação.
Observamos então como as diferentes formas do colonialismo interno podem
operar no Brasil e não se limitando apenas a uma lógica reducionista de elite contra os
outros, mas que mesmo que seja encabeçada por estes, mantém­se graças à reprodução
38

feita por grande parte, mesmo por quem se beneficie menos, mas que ainda vê na
possibilidade de se beneficiar como incentivo para aceitar a exploração mais ampla.
Como a presente digressão se localiza a partir de uma região específica,
precisamos abordar como esse processo mais amplo se materializou aqui e como as
diferentes formas do colonialismo interno estão presentes no âmbito local e também
em relação com o Brasil e outras regiões. Frisando mais uma vez que ao se pensar essa
região não se pretende afirmar qualquer homogeneidade sobre a vivência das pessoas
que nela vivam, mas considerar como as formas de pensar sobre tais lugares se
relacionam com expectativas e práticas sobre os diferentes modos de vida.
Nesse sentido, a Amazônia passou por um processo peculiar de colonização em
comparação ao restante do território nacional: aqui, a ocupação teve início apenas a
partir do século XVII e, ainda assim, deu­se de forma mais gradual em comparação ao
litoral, contribuindo assim para um isolamento da região no âmbito nacional e também
levando a outras consequências como a baixa densidade demográfica relativa, baixos
índices de desenvolvimento humano e de integração à economia nacional.
O afastamento da região do centro político do resto do território tem origem
ainda no início da colonização engendrada pela Coroa Portuguesa. A definição inicial
do Tratado de Tordesilhas em 1494 não abarcava praticamente nada da região
amazônica como domínio português, mas era considerada parte do território espanhol,
o que mudaria oficialmente apenas em 1750 com a assinatura do Tratado de Madrid
(ver Anexo A).
Por conta da divisão do tratado, os primeiros colonizadores a chegarem ao
território que agora se reconhece como Amazônia foram os espanhóis, com a
expedição de Francisco de Orellana em 1542. Atualmente, o que se reconhece como
bioma amazônico engloba nove países, que formam a Pan­Amazônia ou a Amazônia
Internacional, correspondendo a 40% de todo território da América do Sul (ver Anexo
B).
A dificuldade da colonização portuguesa de um território tão extenso já era
percebida desde o século XVI e por isso foi criada a divisão do Governo do Norte
(tendo sede em Salvador) e Governo do Sul (com sede no Rio de Janeiro). Seria apenas
em 1616 que seria criada a Capitania do Grão­Pará, com o desmembramento da
Capitania do Maranhão, e, como resultado da expansão do domínio colonial para além
do litoral e do Tratado de Tordesilhas, indo em direção ao centro do continente. E é
39

com a fundação do Forte do Presépio, na Baía do Guajará, que se inicia a conquista do


território amazônico, com a fundação da cidade de Belém do Pará (Souza, 2009).
Já em 1621, é feita uma nova divisão administrativa entre norte e sul em duas
unidades autônomas por Filipe III, então rei de Espanha e Portugal. O Estado do
Maranhão, com capital em São Luís, abarcava as capitanias do Grão­Pará, Maranhão e
Ceará; enquanto o Estado do Brasil, com sede em Salvador, abrangia as demais
capitanias. Em 1654, o Estado do Maranhão se torna Estado do Maranhão e do Grão­
Pará e, em 1751, a ordem do nome é invertida, assim como as capitais, passando a ser:
Estado do Grão­Pará e do Maranhão com a sede em Belém.
Até 1774 o território que então compreendia a região amazônica era separada
do Estado do Brasil e possuía certa autonomia, o que aqui nos serve para compreensão
da dinâmica de isolamento político da Amazônia a compreender a relutância na adesão
à independência do Brasil em 1822 e, mais à frente, a previamente citada revolta
popular da Cabanagem que irá tomar o poder na Amazônia entre 1835 e 1840. Os dois
momentos, contudo, foram protagonizados por grupos sociais diferentes e com
objetivos também díspares. Enquanto o primeiro foi encabeçado principalmente pela
elite local, o segundo emergiu das camadas populares contra a escravidão e a
colonização.
Discorrendo brevemente sobre o contexto da administração colonial do
território amazônico é possível notar um ponto de origem na relação de afastamento
que se dá do resto do país para com a região e seus habitantes. Assim como, da relação
de certa autonomia e autogestão de amazônidas que ainda hoje tensiona com os
grandes projetos e políticas a serem implantadas no território.
Além do viés político e administrativo com o qual a Amazônia foi tratada pela
colonização, o imaginário dos conquistadores, que ainda povoa a visão de muitos
brasileiros sobre a mesma, sempre esteve envolto nas construções do modo de ver a
região: do Eldorado amazônico, do Inferno Verde, das mulheres amazonas guerreiras
(as Ycamiaba) e todas as demais histórias relatadas muitas vezes de modo fantástico e
desumanizador sobre as populações que aqui viviam e ainda vivem.
Neide Gondim (2019) identifica em relatos de viajantes, de colonizadores,
cientistas e cronistas referências dessa construção do imaginário que oscilam entre um
edenismo (de riquezas) e o infernismo (de medos e desconhecido). Não à toa, mais
uma vez percebemos traços das interpretações a partir da teologia cristã, entre o paraíso
e o inferno recaindo sobre a imagem percebida da região.
40

Destarte, a Amazônia muitas vezes não se localizou em um lugar físico, mas


imaginado, como um espaço de projeção dos desejos, ambições e também medos, do
desconhecido, da impenetrável floresta amazônica e de seus “selvagens” moradores. A
noção contemporânea de Amazônia foi constituída ao longo dos séculos, mas só veio a
se consolidar no início do século XIX3, com referências ao lugar que homogeneizava
enquanto natureza.
O fato do processo de ocupação ter se dado de forma mais gradual e a própria
dificuldade de acesso dos colonizadores à região amazônica somados a não priorização
econômica inicial, acabaram fazendo com que a maior parte desses povos que existem
até hoje estejam principalmente concentrados nos estados da região Norte (ver Anexo
C). O que, com o passar do tempo, também acabou recaindo sobre a região a falácia de
que as populações indígenas existiriam apenas aqui, mimetizando a questão indígena
com a Amazônia, enquanto também se apaga a existência de uma grande população
negra na região, o que será abordado posteriormente.
A questão é complicada também por produzir uma invisibilização da situação
dos povos indígenas nas demais regiões do país, por reforçar a colonialidade tanto da
Amazônia quanto das populações indígenas de representarem o “primitivo” ou “atraso”
em comparação aos demais. Nota­se um entrelaçamento no imaginário nacional e que
reverbera nas políticas de desenvolvimento que têm historicamente como objetivo o
apagamento de elementos que são relacionados aos povos nativos do território antes da
colonização e seus modos de se relacionar com a natureza.
Faz­se imprescindível frisar o quanto esse próprio contexto é algo que se repete
nas regiões amazônicas dos outros países da Pan­Amazônia: a baixa densidade
demográfica, os baixos índices de desenvolvimento humano e os intensos conflitos na
disputa por terra e também serem vistas como fronteira de expansão do
desenvolvimento nacional.
Maria Fernanda Espinosa (1998) ao analisar o cenário em que a Amazônia
equatoriana se encontra, defende a ideia de que a região amazônica no Equador se trata

3
Esse momento foi marcado pela idéia de hiléia para o naturalista prussiano Alexander Von Humboldt e
a popularização da expressão “País das Amazonas” por Ignacio Accioli Cerqueira e Silva em 1833 e o
barão Frederico José de Santa Anna Nery (1848­1901) que já em 1885 retomou a expressão de Silva em
uma publicação e marcou a popularização do termo para se referir ao território abrangia os antigos
estados do Grão­Pará e o Maranhão na administração colonial (Figueiredo, Chambouleyron e Alonso,
2017). Sendo, assim, inventada a ideia de Amazônia enquanto um bioma homogêneo e basicamente
abarcando o território “outro” da colonização.
41

de uma colônia interna. Acredito que, dadas as devidas proporções, o mesmo ocorra
no caso da Amazônia brasileira.
Isto, contudo, não implica que a dinâmica de colonialismo seja exercida apenas
nacionalmente e internamente. Ainda assim, há um complexo contexto de tensões
colonizadoras por meio do capital mundial integrado. Logo, ao se afirmar o contexto
de colonialismo interno/neocolonialismo, infere­se basicamente que:
a) a região é subjugada politicamente e pelas imagens sobre a mesma no
imaginário nacional e nos discursos de projeto de nação; e,
b) o colonialismo interno também é exercido localmente, pelas elites locais,
muitas das quais oriundas de outras regiões em aliança com outras locais e também
com multinacionais e empresários também de outros países.
Soma­se ainda a idéia de que existem mecanismos de privilégios que se
atravessam nessa realidade não apenas se restringindo a tais elites e o “restante”, mas
que se subdivide em diversas formas de relação com o lugar e outros modos de vida
que coexistem, de forma que parte da população se identifica com o projeto de nação e
também pode reproduzir práticas de opressão como o racismo. Como isso se produz é
um dos pontos centrais que a tese busca trazer e será aprofundada em seções ulteriores.
Será adicionado e aprofundado a essas inferências, posteriormente, como o
caráter de um imaginário sobre a região se pauta em símbolos generificados e
racializados, como já citado até aqui superficialmente. Por enquanto, chegamos à
compreensão geral de um contexto político e econômico da colonização no Brasil que
produziu diferentes subjetividades sobre as regiões, atribuindo a algumas a idéia de
modernidade, enquanto a outras era imputada uma representação de “atraso”.
É a partir deste contexto que decisões como a de Cris causam estranhamento
ainda hoje: como alguém “larga tudo para trás” morando no Rio de Janeiro, uma
cidade grande e cheia de oportunidades, e vai morar no meio da Amazônia, uma região
pobre e atrasada, onde só tem “índio”? O que ela relata já ter ouvido várias vezes de
familiares e amigos do sudeste, questionando se havia energia, asfalto e outros
símbolos atrelados à ideia de modernidade e progresso. Enquanto o fluxo de desejo
geral costuma ser o de estar cada vez mais próximo ao desenvolvimento e ao
progresso, causa estranhamento e até mesmo deboche ou risadas alguém desejar viver
no contrafluxo.
Apesar disso, na vila de Alter­do­Chão são muitas as histórias parecidas com as
de Cris. A vila é conhecida internacionalmente pelas águas cristalinas do Rio Tapajós e
42

é ponto turístico de parada para viajantes de outros estados brasileiros e diferentes


nacionalidades. O acesso pode ser feito pelo Aeroporto Maestro Wilson Fonseca, de
onde saem táxis para Alter pelo valor de R$ 100 a 120 reais e o trajeto leva entre 45
minutos a 1 hora pela rodovia PA­457 que liga Santarém à Vila.
Outro meio de acesso se dá por, após chegar a Santarém pelo porto
(embarcações chegam principalmente de Belém e Manaus) seguir pela rodovia PA­
457; ou chegando pela rodovia Transamazônica (PA­230) e depois seguindo pela PA­
163 até Santarém. A viagem de barco saindo de Belém em média demora dois dias e
meio, enquanto saindo de Manaus leva 30 horas, em virtude do fato de que no primeiro
caso a embarcação trafega no sentido contrário à correnteza do rio Amazonas.
Eu e Cris nos conhecemos por conta de uma viagem anterior feita a Alter­do­
Chão em janeiro de 2016. E o presente trabalho se inicia com a experiência dela
justamente por ter sido em muitas de nossas conversas que abordamos questões que
aqui busquei aprofundar. Quando nos conhecemos ela morava há quatro meses na vila
e eu havia acabado de ser aprovada no doutorado.
Eu nunca havia visitado o Tapajós, mesmo tendo nascido no mesmo Estado –
Pará – e tendo crescido e vivido até hoje no contexto amazônico, e, a partir dessa
viagem percebi uma forte ligação e interesse pela região, não apenas por conta de seus
atrativos turísticos e naturais – o que normalmente leva milhares de pessoas todos os
anos a conhecerem o lugar – mas principalmente pela relação que percebi de uma vida
política muito forte e presente, pelas experiências que vivi na região4.
Não à toa após a viagem havia um novo elemento possível no meu projeto de
vida: um dia morar e pesquisar na região do Tapajós. A relação com o rio, com certeza,
também foi um fator predominante. Dizem que depois que se bebe a água do rio
sempre se volta a ele, e, desde então, tenho voltado.
Ao iniciar o doutorado, pretendia abordar em minha pesquisa diferentes visões
de desenvolvimento de grupos sociais na Amazônia, envolvendo diferentes setores da
sociedade. Contudo, a necessidade de uma delimitação acabou por levar à escolha de

4
Essa percepção pode ser explicada por eu ter crescido em Belém, em uma situação em que nunca havia
me envolvido ou vivenciado um contexto de movimentos e lutas sociais, como na vila, onde todos os
dias questões envolvendo decisões políticas, articulações e debates eram cotidianos, o que também
vivenciaria de forma ainda mais presente nas comunidades de Jamaraquá e Coroca. Ali, senti uma vida
política que me marcou, assim como o fato de não ter família em Belém, não tive uma socialização
pautada no lugar­Belém, uma vivência de pertencimento ao lugar, mas à região amazônica de forma
ampla. Logo, em Alter, tanto nas conversas, quanto nas diferentes perspectivas de vida e valores das
tantas pessoas que conheci, pude repensar os rumos da minha pesquisa, atuação profissional e vida
pessoal.
43

um lugar específico que despertasse interesse, foi imediato que o Tapajós me veio à
mente.
Desde julho de 2017, tenho feito viagens recorrentes, principalmente durante o
período de férias escolares, mas também em outros momentos. O mês de julho, apesar
de ser o único com mais disponibilidade de deslocamento é também um mês em que o
rio ainda está cheio, mas normalmente já iniciou a “descida” da água e algumas poucas
praias começam a aparecer. As águas do Tapajós passam por variações de enchente,
cheia, vazante e seca que alteram principalmente o fluxo do turismo. Julho, por
exemplo, costuma ser um mês de vazante, enquanto os meses seguintes são de seca;
apesar de mudanças a cada ano, geralmente, em novembro e dezembro observa­se o
início da enchente, chegando ao período de cheia entre fevereiro, março, abril e maio.
Assim, há certo fluxo de turistas e viajantes iniciando a alta temporada no mês
de julho, que dura até praticamente janeiro­fevereiro. As praias não são permanentes,
pois aparecem ciclicamente de acordo com as chuvas, influenciando nas temporadas de
turismo. Quando as faixas de areia começam a ficar cada vez mais escassas pela cheia
do rio a partir de feveirero, indo normalmente até maio e depois iniciando novamente a
vazente, leva também à saída de muitos moradores temporários (que costumam
retornar no início da alta temporada), na baixa atividade econômica e em períodos de
austeridade para a população que vive e depende diretamente do turismo.
Em julho, as águas do rio Tapajós ainda não fazem jus ao apelido de “Caribe
amazônico”, e as pequenas faixas de areia movimentam o fluxo de visitantes sem
deixar a região superlotada, como o que se dá principalmente nos meses de setembro
(por conta do festival regional do Çairé) e em dezembro e janeiro (por causa do fim de
ano). Apesar de não ser a paisagem pela qual a região ficou conhecida
internacionalmente – das águas cristalinas esverdeadas­azuladas e extensas faixas de
areia branca – o período de cheia e início da vazante é também de grande beleza, em
que o rio e seus afluentes possuem tons escuros e profundos esverdeados e azulados;
mas a região não é abundante em água apenas em sua superfície, visto que o sistema
aquífero de Alter­do­Chão tem sido reconhecido como um dos maiores do mundo e
com grande potencialidade para abastecimento da população de toda a região
amazônica (ANA, 2019).
Assim, o rio e as vidas das pessoas que moram na região passam por diversas
fases durante o ano. As rotinas mudam e a fonte de renda e as atividades produtivas
44

também, as prioridades e os planos de cada momento acompanham o fluxo do rio e


também das atividades econômicas mais intensas.
Como saí de Belém5 e havia poucos dias para a realização da viagem, optei pela
viagem de avião, que dura aproximadamente 1 hora. A ida foi diretamente a Alter, sem
passagem por Santarém. Alter­do­Chão faz parte do município de Santarém, ainda que
o estilo de vida seja contrastante. Além dos seus moradores e os turistas de fora do
Estado e do país, aos fins de semanas é comum as famílias que moram em Santarém e
nas proximidades passarem o dia no balneário mais conhecido da região, modificando
bruscamente o ritmo do vilarejo, com grande fluxo de carros, som automotivo, jet­skis
e lanchas, o que costuma voltar ao normal já na segunda­feira.
É muito comum na vila – principalmente no centro da praça principal – a
presença de imigrantes de outras regiões e países e seus empreendimentos,
normalmente restaurantes. São visíveis também hoteis e pousadas administradas por
paulistas e pessoas de outras regiões do país que decidiram se mudar para a vila. Este
movimento inclusive levou a uma valorização imobiliária que impactou os moradores
da vila, que acabaram sendo “afastados” para bairros mais distantes do centro e
também com menos saneamento e asfalto, como o Bairro Novo. A dinâmica também é
um dos efeitos comuns associados à chegada do “progresso”.
Algumas dessas pessoas “de fora” são chamadas por santarenos e moradores da
vila de “hippies”, mas o termo se aplica tanto a viajantes que vendem artesanato nas
praças, no sentido mais literal da ideia de hippie, como a pessoas que também possuam
uma forma de vida mais “alternativa”, com tatuagens, em busca de “conexão com a
natureza” e questões ambientais, trabalhando em ONGs ou projetos e movimentos
sociais, alguns professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), sendo
um termo indefinido, mas que, ao mesmo tempo, diferencia essas pessoas de outros
como as ligadas ao agronegócio – que costumam também ser “de fora” –, por exemplo,
e aos moradores nativos.
Assim, para alguns visitantes pode­se ter uma impressão de que residem tantas
pessoas “de fora” em Alter, às vezes até mais do que os próprios nativos, o que na
verdade é uma falsa percepção por conta do pouco contato com as outras realidades da

5
Durante 10 dias corridos do mês de julho de 2017 foi realizada uma breve viagem de pesquisa de
campo exploratória com destino a Santarém, no Oeste do Pará, adotando como base a vila de Alter­do­
Chão onde me hospedei na casa de Cris, que já neste momento morava havia dois anos na vila e a quem
eu conhecia desde 2016.
45

vila para além das praias e do centro. Alter­do­Chão é, inclusive, conhecida como uma
região em que habitava o povo Borari, do qual atualmente algumas pessoas têm
buscado a valorização da autodeterminação étnica e as heranças culturais por
movimentos sociais e culturais, o que tem sido estimulado principalmente pelo
aumento da presença do capital e dos interesses sobre o território (Peixoto e Peixoto,
2019), havendo, assim, a necessidade de se defender os direitos contra tais
empreendimentos.
Por acaso, Cris foi uma das primeiras pessoas que conheci na vila e sua
trajetória e ideias influenciaram a minha própria forma de conhecer e pensar o lugar.
Sua mudança se deu em um contexto de crise pessoal de perspectiva de futuro no Rio
de Janeiro. A insatisfação com dinâmicas intrínsecas ao contexto em que vivia a fez
decidir mudar seu projeto de vida após uma experiência de vivência com os Kayapó no
Xingu.
Quando eu e Cris conversamos pelas primeiras vezes, ainda em 2016, toda vez
que ela falou sobre a cidade do Rio de Janeiro ou sobre Paty do Alferes é importante
ressaltar que não parece que não haja identificação ou sentimento de pertencimento
com o local de origem, pois em sua fala sempre há uma nostalgia e exaltação de suas
memórias, de infância principalmente. Mas, a sua fala estava sempre acompanhada de
uma confirmação de que o lugar que vê em seu futuro é o Tapajós, onde tem suprida
sua busca por uma felicidade mais existencial, próxima à natureza, em outro ritmo de
tempo e diferentes necessidades daquelas vividas em grandes metrópoles. Suas
prioridades são outras daquelas mais geralmente atreladas à noção de desenvolvimento.
Ela citou que entre seus objetivos na mudança para Alter­do­Chão estava não
ter mais no trabalho formal uma prioridade da sua vida, que seria apenas o meio de
manter o modo de vida que ela considerava de qualidade, resguardando, por exemplo,
até hoje a sua segunda­feira para um tradicional banho de rio.
Cris relatou que por ser negra vivenciou diferentes situações de racismo e
preconceito na região, onde comenta que muitas pessoas da região eram surpreendidas
quando descobrem que ela possui escolaridade de nível superior. Esta recepção, com
raras exceções, dificultou o seu estabelecimento na região para que alcançasse uma
estabilidade financeira, trabalhando em diversas outras áreas até conseguir espaço e
reconhecimento para atuar como psicóloga. Cris estabeleceu muitos vínculos sociais
tanto na Vila de Alter­do­Chão quanto em outras comunidades do Rio Tapajós e do
Rio Arapiuns.
46

Outro fator que ela costuma apontar que marcou o início da mudança para a
região e que se tornava mais nítido quando ia visitar as comunidades era o fato de estar
na faixa dos 30 anos e ser solteira, sendo sempre interpelada: “cadê seu marido?”
Quando informava que não é casada as reações variavam entre curiosidade,
preocupação ou desaprovação, sendo também seguida por tentativas de arranjar um
casamento para ela.
No caso de Cris percebem­se como questões ligadas às expectativas que muitas
pessoas da região assumem seja sobre o fato de ser negra, de sua origem, ser mulher e
seu estado civil, sua idade ou sua ocupação, características que dificultaram um
processo inicial de integração, mas que não interferiu em sua relação com o território,
principalmente pela sua conexão com o rio Tapajós.
Ela também comenta que apesar de ter vivido e ainda viver situações de
racismo explícito e também velado, ainda que conheça menos pessoas de pele retinta
como a dela na região, o que chama atenção de muitos moradores, ela fala que as
situações de discriminação racial que já viveu foram mais intensas e recorrentes
quando vivia no Rio de Janeiro.
Devido a sua trajetória de vivência e envolvimento, ainda no Rio de Janeiro,
com questões sociais como nas favelas e do movimento negro, manifestações e
ativismo político, Cris, apesar de cética quanto a movimentos e a outras instituições de
agenciamento (ONGs, Igrejas e outras), busca sempre contribuir de alguma maneira
como cidadã ativa para a realidade local, com ideias para projetos locais voltados para
crianças, comunidades ribeirinhas, extrativistas e indígenas, principalmente
relacionado à psicologia comunitária.
Apesar de ser crítica e de se demonstrar preocupada com a situação local,
principalmente com os projetos de hidrelétricas, mas também com a propagação da
expansão de uma nova Igreja na região, que também adquire terras (muitas vezes de
unidades de conservação) e que tem alterado radicalmente o contexto das populações
locais, Cris mantém­se ativa e não indiferente ao contexto amazônico. Adotando uma
postura de um futuro que pode ser trágico para a região, mas, ao atuar em diferentes
frentes pelo que acredita, percebe­se que ela também acredita que é possível que essa
realidade futura seja transformada e evitada.
É comum pessoas que vivem em regiões não­centrais no Brasil (como no Norte
e no Nordeste, além dos interiores das outras regiões) terem uma visão de que o futuro
e, por consequência, o progresso, seja mais provável e alcançável em cidades como Rio
47

de Janeiro e São Paulo, como citado no início desta seção, atrelando a cada uma das
regiões subjetividades nessa lógica, incompreensões e preconceitos (Cavalcanti, 1993).
Como já se apontou, essa concepção tem sido historicamente um argumento
catalisador de migrações massivas em direção ao Sudeste brasileiro e grandes capitais,
em busca de melhores condições de vida, mais oportunidades de acesso a serviços
públicos de saúde, educação, emprego e moradia de qualidade. Alguns dos que migram
são bem­sucedidos em seus objetivos, mas não a maioria, pelas dinâmicas inerentes ao
capitalismo. Por outro lado, é importante destacar que ainda que essa visão seja
atrelada a algumas regiões e metrópoles, em geral, é observada uma mudança no
padrão das migrações para cidades de porte médio do Sul, Sudeste e Centro­Oeste
(Matos, 2012), o que inclusive pode ser ressaltado como uma demonstração do
esgotamento do modelo “desenvolvimentista” nas grandes cidades.
Esse contexto é o caso de como os locais vistos como desenvolvidos estão
relacionados à modernização, urbanização, acumulação de capital, indústrias,
tecnologia e infraestrutura como o ideal e como sinais da “civilização” não se
restringem apenas à situação brasileira. Também em outros lugares pessoas estão
migrando para os países vistos como aqueles que preenchem essas condições, muitos
incentivados pela expectativa de buscar o acesso à qualidade de vida retratada em
filmes, séries e em tantas propagandas e comerciais, o que Stuart Hall indica como uma
espécie de migração “não­planejada”; quando o “movimento para fora (de
mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e de identidades consumistas) tem uma
correspondência num enorme movimento de pessoas das periferias para o centro”
(Hall, 2015, p. 48).
Tal deslocamento, contudo, dá­se num aspecto estrutural/material, já que tais
locais concentram recursos, mas também num sentido existencial e ontológico, da
subjetividade. O status de estar em certos lugares associados ao desenvolvimento, por
exemplo, já seria em si parte de um processo de “evolução”, mesmo que não se
desfrute deles ou se tenha acesso aos serviços e bens ali existentes.
A partir de Fanon (2008) podemos sugerir que essa relação de desejo que se
materializa em deslocamentos é consequência da formação de uma visão de
inferiorização por parte dos colonizados e dos que se vêem nesse legado, enquanto os
herdeiros da colonização (brancos), frente aos que representam a civilidade, o que se
deve desejar ser e parecer. Neste sentido, afirmo que a percepção social do imaginário
sobre as macrorregiões no Brasil se construirá também de forma racializada, ou seja,
48

associa­se a lugares desenvolvidos a presença ou predominância de pessoas brancas, o


que acaba por ser introjetado em toda a sociedade e que os desejos de estar e ser viriam
a operar dentro dessas referências. Fanon afirma que:
Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu
um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua
originalidade cultural — toma posição diante da linguagem da nação
civilizadora, isto é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar
os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapará da sua
selva. (Fanon, 2008, p. 34)

Apesar de Fanon analisar na obra originalmente publicada em 1952, Peles


Negras, Máscaras Brancas, a condição das Antilhas e a relação da população negra
com a colonização francesa, a análise do colonialismo epistemológico, pode também
ser percebida em outras sociedades que passaram por contexto similar de colonização,
nas quais ele identifica um duplo processo de complexo de inferioridade: econômico e
de interiorização/epidermização da inferioridade.
Sabe­se que nem todos terão acesso a todos os benefícios do desenvolvimento
nos países desenvolvidos, porque, mesmo nesses locais, existem desigualdades e
discriminações e que “viver o sonho” é reservado apenas para poucos. Ainda assim, é
predominante nas sociedades modernas/coloniais um desejo de aproximar­se e ser/estar
mais próximo possível dessas referências.
Ainda que à época da primeira viagem de campo eu estivesse apenas iniciando
minhas leituras das discussões pós­coloniais e decoloniais, o contexto e as dinâmicas já
eram perceptíveis. Tornavam­se pontos centrais de interesse da investigação da
pesquisa: como e por que desejávamos ser “desenvolvidos” e por que às vezes o
desenvolvimento tinha significados diferentes para as pessoas? Por que estar próximo e
usufruindo de alguns aspectos do desenvolvimento pode não ser o suficiente para ser
feliz e algo que nem todos desejam?
Isto reforça a relevância de olhar mais de perto o contrafluxo desses
deslocamentos incentivados a serem desejados. Pessoas com experiência como a de
Cris, que apesar de supostamente estarem "vivendo o sonho" ou apenas vivendo em
lugares mais desenvolvidos que outros em determinado contexto, redesenharam
projetos de vida em outras direções.
O que ela queria para si mesma não era encontrado naquela cidade e naquelas
condições de trabalho e vida, juntamente com a administração do tempo, o medo e a
violência, a falta de oportunidades para apreciar as coisas que para ela eram
importantes. Decidiu então caminhar contra o fluxo da modernidade e buscar uma vida
49

melhor em seus próprios termos: mais próxima da natureza, mas também com tempo
disponível para apreciá­la
la e sentir­se
sentir conectada a ela.
Em meados de 2017 – na minha segunda ida ao Tapajós e primeira já voltada
para a pesquisa – Cris compartilhou comigo que o seu projeto de vida era poder
comprar um pequeno terreno, talvez com um igarapé para construir uma casinha e
quem sabe, quando chegasse aos 40 anos,
anos adotar
otar crianças, não necessariamente estando
em seus planos casar.
Figura 1 - Banho no rio Tapajós com Cris, no Lago Verde

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)


Enquanto isso, ela costuma receber viajantes em sua casa alugando quartos ou
ivos de hospedagem gratuita, como o CouchSurf. Assim, na mesma época
por aplicativos
em que eu estava em sua casa, conheci pessoas que passavam por Alter, como
Sttefany, uma viajante mochileira peruana que ­ na época ­ viajava há 1 ano e meio de
carona.
Sttefany é um pouco
pouco mais nova que eu, uns 3 ou 4 anos, aproximadamente. E
os diferentes
es modos e projetos de vida que ela, Cris e eu tínhamos fizeram da
experiência dessa vivência um terreno fértil para futuras leituras sobre estudos pós
pós­
coloniais e decoloniais. Estava o modo
modo de vida de Cris entre o meu (trabalho com
carteira assinada, estudante de pós­graduação,
pós graduação, morando em Belém) e o de Sttefany
(viajando de carona, sem destino muito definido, trabalhando com o que aparecia).
50

Figura 2 - Sttefany

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)


Em muitas de nossas conversas Sttefany falava sobre como as pessoas tinham
dificuldade de aceitar ou entender seu modo de vida, enquanto muitas outras
romantizam e idealizam suas escolhas. Nas suas viagens ela percebeu e relatou que as
reações costumam ser de deslegitimar, ao dizer, por exemplo, que ela fugia da
realidade, ou de admiração misturada a um pouco de frustração com a rotina da sua
própria vida.
Sttefany costuma dizer que sua forma de viver não é pior nem melhor e ela não
é mais ou menos “evoluída espiritualmente” por viver nômade e sem uma renda fixa
fixa; é
apenas como ela consegue se ver vivendo e que, quem sabe, talvez um dia ela não
queira mais viver assim, mas por enquanto é o que faz sentido para ela. Dessas muitas
conversas,
s, nós três compartilhamos indagações e crises existenciais sobre o que nos fez
querer viver como vivemos ou desejar viver de outra forma (Sttefany viajar
constantemente, Cris sair do Rio de Janeiro e eu em busca de um título de doutorado e
sonhando com um dia me mudar para Alter).
E também que definiam as nossas prioridades e como projetamos esses desejos
em lugares, as dificuldades e limitações de realizarmos o que queríamos e como o
capitalismo e as dinâmicas políticas, sociais, raciais e de gênero atravessam
atravessam tudo isso.
Um elemento predominante nas três histórias era, apesar das diferenças de cada uma, o
51

fato de sermos três mulheres, constantemente questionadas quanto à capacidade de


alcançarmos o que queríamos.
O quanto soava e soa disruptivo para muitas pessoas Cris ter saído do Rio de
Janeiro para Alter­do­Chão, Sttefany não querer uma vida com um trabalho ou rotinas
estáveis e eu não desejar, como internacionalista de formação e pós­graduanda,
“ganhar o mundo”, procurar oportunidades em universidades mais renomadas, mas
continuar na Amazônia e ir mais para dentro do que se chama “interior”.
Quando cheguei em julho de 2017 a Alter­do­Chão, tinha como propósito
conhecer um pouco mais da região e suas dinâmicas para poder delimitar minha
pesquisa. Queria, basicamente, saber o que as pessoas pensam sobre o discurso
desenvolvimentista e as políticas voltadas para a Amazônia nessa narrativa. Mas
deparei­me com desestabilizações sobre como chegamos a formar nossas opiniões e
desejos sobre essa relação, sobre como as nossas vidas são moldadas e como geram
muitas vezes formas de romper com essas narrativas.
A viagem estava ainda na sua primeira parte. Em seguida, fui para a Floresta
Nacional do Tapajós, a Flona, para a Comunidade de Jamaraquá.
52

3 POR QUE TU PENSAS


NSAS TANTO NO FUTURO?
Às vezes, tenho vislumbres (...) e vivencio passado
e futuro ao mesmo tempo; minha consciência se
transforma em uma brasa de meio século de
duração queimando fora do tempo. Eu percebo,
durante esses vislumbres, toda essa época como
umaa simultaneidade. É um período que abrange o
resto de minha vida, e a totalidade da sua
sua.
(A História de Sua Vida, de Ted Chiang)

Estou ofegante, mostrando minha notável falta de condicionamento físico


durante a trilha que faço na companhia de Rosivaldo. A densidade da floresta
amazônica e até mesmo a majestosa samaumeira
amaumeira não são experiências totalmente
novas para mim, por ter também crescido em contato com a floresta nativa amazônica,
mas uma trilha de 5 horas de duração com uma subida íngreme é algo novo para quem
cresceu em uma região praticamente plana e sem ter no seu cotidiano atividades que
necessitem tanto esforço físico.
físico Assim, ao contrário de outrass pessoas que não são da
região, não fico igualmente surpresa com a beleza e a magnitude amazônica, ma
mas,
diferentemente de muitos turistas que estão acostumados a trilhas, fico ofegante.

Figura 3 - Trilha de Jamaraquá na Flona Tapajós

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)


53

Minhas experiências na mata nativa nunca foram nessas proporções, mas em


pequenas áreas que já sofreram tanto impactos e intervenção que muitos animais são
impossíveis de serem encontrados lá, como onças; ainda que as alturas das árvores e os
insetos não sejam novos para mim, não sei o nome de quase nenhum. É uma paisagem
familiar, mas não é menos importante ou cotidiana, é um passeio agradável, sinto­me
bem, em casa. Lembro da minha infância na casa da minha avó em Castanhal.
Enquanto Rosivaldo me conta sobre o incêndio florestal acidental que durou
um mês e devastou parte da mata nativa nos anos 1990, e me mostra a diferença entre a
floresta secundária (que nasceu depois do incêndio) e a floresta primária (onde o fogo
não alcançou), sendo notável o tamanho das árvores, o solo arenoso em uma e mais
úmido na que existe ainda mata originária, pergunto sobre o que ele acha de como será
o futuro ali. Ele hesita e se vira para mim com um tom de interesse genuíno: “Por que
tu pensas tanto no futuro? Por mim, eu tô bem do jeito que as coisas estão não precisa
muito mais, não”.
Nessa hora eu também hesito e tento processar a pergunta dele, algo que eu
nunca havia me questionado. De onde eu venho, minha trajetória em pensar o
desenvolvimento durante todos os anos da minha formação acadêmica que agora dava
lugar à palavra futuro como outra forma de pensar tal dinâmica, despertou­me para o
fato de que eu não me dava conta que pensar a categoria de futuro em si já era mais
uma forma de reprodução da lógica moderna/colonial.
Naquele momento percebi o quanto a minha própria busca por uma questão de
pesquisa e vida se encontrava com a própria lógica da sociedade à qual pertenço e fui
socializada. Ali iniciei um processo de redirecionar o que aquele futuro significava
para mim. A minha compreensão do futuro passou por essa e outras situações de
desestabilização, demorei ainda alguns anos a chegar a camadas mais profundas desses
significados.
Notei posteriormente que a minha problemática partia de uma premissa
localizada na lógica da modernidade/colonialidade, sendo, eu própria, uma
representante desse modelo social. Percebi que pensar o futuro como algo a ser
construído, como uma possibilidade de melhora, era, em si, algo que vinha do lugar
que social. Algo incutido muito cedo e que me levou até mesmo às escolhas
profissionais e de educação formal como símbolo de “sucesso” na sociedade: estudar e
trabalhar para ter um futuro (melhor).
54

Assim, é importante tomar o futuro não só como um tempo de sonho ou de


melhoria de vida (como eu via até então); em algumas conversas percebi que o futuro
não era visto como moldável para todos, mas símbolo de uma realidade predestinada e
incontrolável e, às vezes, até mesmo como algo indiferente, no qual não se pensa.
Ter optado pelo debate do futuro deveu­se ao fato do mesmo ser um elemento
comum na ideia de Estado, nação e desenvolvimento, assim como em projetos de vida.
E, ao considerarmos esse debate no contexto da Amazônia, a preocupação
predominante parece ser sempre pensar o futuro da Amazônia e como ela pode servir
ao futuro do Brasil ou da humanidade, dificilmente aparece o seu futuro como algo
próprio, mas constantemente a serviço de algo.
As narrativas dominantes costumam, desde o processo de colonização da região
há mais de quatro séculos, desconsiderar a agência das populações locais e
visibilizando a natureza da Amazônia muitas vezes de forma utilitarista – o que
aparece em discursos desenvolvimentistas, mas também nos de cunho
ambientalista/conservacionista/preservacionista.
Não está apenas nas políticas dos governos, mas também nas falas de ONGs
internacionais e de outros organismos que apoiam projetos de cooperação internacional
para o desenvolvimento. Enquanto o discurso desenvolvimentista localiza a Amazônia
como fonte de recursos naturais e defende a necessidade de sua exploração, a
ambientalista a vê como um patrimônio da humanidade a ser preservado: em comum,
os dois reproduzem a lógica moderna/colonial de assujeitamento de pessoas e seus
modos de vida.
Do aprofundamento dessas questões e de conversas como as de Rosivaldo, Cris
e Sttefany, começaram a nascer questionamentos que me pareciam merecedores de
atenção: esse desenvolvimento é para quem? Definido por quem? Quando começou?
De que modo não apenas as instituições, mas também a sociedade e os sujeitos
reproduzem essa lógica? Mesmo quando tal lógica pode ser prejudicial à vida, por que
muitas vezes a desejamos e reproduzimos? Quando as políticas desenvolvimentistas
são elaboradas, quando esse horizonte de futuro é pintado, qual a referência adotada?
Quais sujeitos estão incluídos nesta visão? Como mulheres e homens a partir de
diferentes posicionalidades são vistos nessas políticas e quais os lugares guardados
para eles nesta visão?
Parto, assim, de uma compreensão de que a lógica implementada pelas elites e
pelo Estado brasileiro na Amazônia tem sido desde o início de que: é uma
55

natureza/lugar incompatível com o projeto de nação desenvolvida que se almeja para o


país, ao mesmo tempo em que suas riquezas naturais são alvo de ganância e situadas
como garantias de um futuro nacional próspero. Ademais, seus habitantes são ora
invisibilizados, ora vistos como obstáculos ao desenvolvimento; reproduzindo uma
visão ainda racializada do espaço e que encontra rastro desde a colonização também no
sistema moderno/colonial.
Neste sistema, o lugar da Amazônia no Brasil, mesmo após o fim do pacto
colonial, é de uma colônia interna, marginalizada em todos os parâmetros estabelecidos
pelos códigos e símbolos da modernidade: epistemológicos, culturais, econômicos,
espaciais, raciais e de gênero. O que, não implica dizer que outras regiões não estejam
localizadas na mesma condição.
E refiro­me aqui como colônia interna não no sentido de passar de uma
exploração para outra simplesmente – já que a região continua sofrendo a dinâmica da
colonialidade também por atores externos – mas pela noção do deslocamento da
narrativa de colonização para o projeto de nação, tendo como pano­de­fundo ainda um
sistema de capital internacional que reforça o viés de fonte de recursos naturais e
matéria­prima como forma de inserção no comércio internacional, haja vista que a base
produtiva do Brasil não se alterou significativamente em todos esses séculos.
As políticas são pensadas na lógica moderna/colonial adotando uma noção de
temporalidade linear e evolutiva, o passado sendo visto como o tradicional e o atrasado
e o desenvolvimento sendo o processo material de distanciamento desse passado e de
formas indesejáveis e se viver. O nosso modo de pensar segundo uma linearidade
temporal entre passado, presente e futuro, assim como a compreensão de que o futuro
está à nossa frente e que ele deveria ser uma melhor versão do presente, também tem
raízes numa epistemologia eurocentrada da modernidade, como já apontado
anteriormente.
Ao observarmos a estrutura política da maioria dos países na atualidade e ao
olharmos para grandes organizações internacionais, como a Organização das Nações
Unidas (ONU), nós podemos perceber na agenda internacional e nacional uma
constante: a preocupação com o futuro, mas não apenas isso, imbui­se nesta forma de
se preocupar uma percepção específica do que é o futuro e como pensá­lo,
principalmente ligado ao desenvolvimento e aos Estados.
A cientista política indiana Shirin M. Rai (2008) comenta que o
desenvolvimento tem sido historicamente um projeto nacionalista. Ou seja, a sua lógica
56

se alimenta de uma compreensão de um povo que compartilharia elementos idealizados


e imaginados de uma cultura pressupostamente homogênea, vivendo em um
determinado território, que compartilham o mesmo futuro e, por isso, esse futuro
deveria ser pensado para esse grupo e em uma relação equilibrada entre tradição e
modernidade.
Logo, é comum que discursos nacionalistas busquem reforçar ligações a um
passado na ideia de uma origem única e um futuro que possui a realização plena de um
povo e de valores compartilhados, centrando no Estado como a estrutura capaz de
viabilizar tal propósito, que muitas vezes se mescla com valores religiosos e proféticos.
Nira Yuval­Davis (1997) não considera, contudo, que os Estados tenham
formas únicas, mas que são diferentes em cada contexto histórico próprio. Ela adota o
conceito amplo de que o Estado pode ser definido como um corpo de instituições que
são organizadas de modo centralizado em torno de uma intenção de controle, contando
com um aparelho de execução jurídico e repressivo, com o exercício de governar sobre
certa população, normalmente definida territorialmente e nacionalmente (Yuval­Davis
e Anthias, 1989).
Por outro lado, a nação relaciona­se com a ideia de destino comum, identidade,
ligação (id.) e que pode ser construída/percebida enquanto ideologia, movimento, pela
etnicidade/coletividade, dependendo da abordagem que se adota. Mas o que ela
compreende é que se busca construir uma narrativa de nação de modo que seja
colocada como uma espécie de família, de forma naturalizada, não como uma escolha.
Neste contexto, costuma­se adotar o termo Estado­Nação para se referir a essa
forma de Estado moderno que ganha força a partir do século XIX, difundindo­se com o
nacionalismo. Ocorre, entretanto, que os processos de formação dos Estados ­
principalmente a partir do colonialismo e do imperialismo ­ foram processos violentos
e impostos; de uma cultura dita homogeneizada, mas que, na prática, violentou e por
vezes criminalizou a diferença e a diversidade existente.
Dessa forma, quem fala sobre o futuro e tem mais poder para consolidar visões
de como ele deveria ser depende de quem tem acesso aos recursos de poder dentro do
aparato estatal. Sobre este ponto, Yuval­Davis (1997) destaca que apesar de homens
normalmente terem mais acesso a poder e haver mais possibilidade dos seus interesses
serem representados pelo projeto de nação, não se pode ignorar que nem todos os
homens têm os mesmos acessos e que a relação entre gênero e nação também impacta
a homens e passa por relações raciais e de classe.
57

O reducionismo da visão de que homens no poder oprimem e exploram


mulheres pode induzir a perder a referência de que mulheres também podem ser
beneficiadas até certo ponto por esse projeto e reproduzirem as relações de opressão
contra mulheres e também homens.
Retomando o artigo de Vellozo e Almeida (2019), podemos destacar que os
autores apontam sobre como mesmo mulheres brancas pobres que guiavam lares
monoparentais, tinham muitas vezes um escravo ou uma escrava no Brasil Imperial,
mesmo não tendo o direito a voto ou participação política. Isto exemplifica como as
formas de opressão e violência não são fixas em torno de posições sociais, mas que se
entrelaçam e se alternam em muitos contextos. Ou seja, ainda que haja no germe da
formação do Brasil uma opressão também contra mulheres, essa opressão de gênero
não impediu que muitas destas oprimissem e se beneficiassem de outras opressões
como o racismo e também do sexismo, sobre o trabalho de mulheres e homens
racializados.
Contudo, apesar da ressalva feita por Yuval­Davis ela não deixa de reconhecer
que o Estado é recorrentemente visto como um sujeito masculinizado em suas
capacidades e necessidades. Assim como o poder de gênero lido e legitimado possui
uma face masculinizada. Tais abordagens ainda não eram uma referência para mim à
época da viagem que aqui descrevo, mas tais elementos e dinâmicas já eram visíveis, o
que, acabou por influenciar na delimitação da pesquisa para pensar as experiências e
projetos de vida numa perspectiva generificada dentro da noção de projetos de nação.
Sobre os projetos políticos adotados pelos Estados, Yuval­Davis (id.) aponta
que o que varia de um para o outro, e entre as esferas que o compõem, é o nível de
tolerância a diferentes projetos políticos em conflito com aqueles predominantes e
hegemônicos no âmbito dos governos:
These questions of correspondence, in political projects, of the
different components and levels of the state, involve also the
questions of what are the mechanisms by which these projects are
being reproduced and/or changed; of how state control can be
delegated from one level to another; and, probably most importantly,
of how sections and groupings from the domains of civil society and
the family gain access to the state’s coercive and controlling powers.
(Yuval­Davis, 1997, p. 26)

O que Yuval­Davis denota, já era para mim um ponto central de


questionamento, indicando que merece atenção não apenas definir e conceituar Estado
e suas esferas, mas compreender os mecanismos utilizados para a reprodução de
58

projetos políticos e também de que forma grupos de outras esferas obtêm acesso ao
poder de controle e coerção do Estado.
Na modernidade/colonialidade os grupos que terão esse acesso, como já
abordado anteriormente, serão os colonizadores, aristocratas, latifundiários,
principalmente homens brancos e cristãos, que assim tornaram possível a elaboração de
um projeto político alinhado aos interesses e valores desses próprios grupos. E, a partir
dessa condição, estruturam instituições que visassem a reprodução, validação e
implementação de tais referências.
No âmbito da colonialidade e da desumanização de sujeitos e sujeitas, há uma
negação de seus direitos à existência nos seus modos. Há uma coerção para que
assimilem os valores e comportamentos (morais e culturais) que são reconhecidos
como os “legítimos”.
Assim, a “nação” não passa, na verdade, de uma invenção e imposição –
especialmente nas dinâmicas coloniais – tendo como objetivo estruturar, reafirmar e
reproduzir os aspectos do grupo dominante com acesso a esse poder. E, assim, é
preciso também compreender como nessa relação entre nações e Estados e entre as
formas de grupos étnicos e o Estado, as mulheres são afetadas e afetam esses processos
(Yuval­Davis, 1997). E esta relação, de como Estados são atravessados por noções de
gênero, raça e classe, será retomada e aprofundada posteriormente, por enquanto, o
enfoque se dá sobre a questão tempo­futuro presente nos discursos e instituições.
Considero que pensar o futuro é um exercício de imaginação que perpassa todas
as posicionalidades sociais e as realidades locais de sujeitas e sujeitos. O que significa
que minha subjetividade, enquanto uma mulher jovem, branca, de classe média e
professora universitária, também se dá dentro de posicionalidades, de onde minha
própria subjetividade se relaciona com todas essas questões e que, essa relação em si, é
um processo.
Não deixo aqui implícita a ideia de que seria apenas uma questão de classe ou
acesso a recursos que influencia pensar o futuro de certa forma, mas também uma
relação de participação, compreensão, subjetividade e poder na sociedade. Considero
relevante o apontamento dessa questão para a construção do caminho teórico­
conceitual e metodológico aqui utilizado e da minha própria relação com o tema.
O conceito de posicionalidade até aqui citado algumas vezes é embasado na
proposição de Linda Alcoff (2006), no qual a mesma considera que para pensar gênero,
não se pode buscar essencializar em características ou tomar como algo fixo, universal
59

e binário, mas que serve para, em primeiro lugar, reconhecer, por exemplo, que o
conceito de “mulher” é relacional e varia em cada contexto, quando e como uma
sujeita se percebe como tal, não havendo uma “essência” que todas as mulheres
compartilham e aqui adiciono também homens e outras possíveis identidades de
gênero.
Em segundo lugar, que essa percepção de posicionalidade pode ser usada para
pensar como um local para a construção de significado, de onde se age politicamente,
relacionando­se com outras referências. E, partindo dessa noção de posicionalidade
para Alcoff, reconheço que as falas nas quais eu me situo e também as mulheres com
quem estabeleci trocas recorrentes, mas também homens, que se vêem e se posicionam,
relacionam­se na produção de subjetividades também com outras identidades sociais e
de agência, como raça, lugar de origem/pertencimento e classe, sem que haja uma
hierarquização prévia entre elas. Logo, a posicionialidade demarca uma experiência
relacionada a um contexto que não é universal e se dá de formas variadas, como, no
caso, com a relação de tempo­futuro e as noções de Estado, nação e desenvolvimento.
São fatores importantes a serem considerados, também, não apenas as
socializações, mas elementos de cada indivíduo como personalidade, comportamento,
estímulos e incentivos sociais, assim como desestímulos para algum tipo de
pensamento ou comportamento mais otimista ou pessimista sobre o futuro. Ao
compartilhar tais inquietações com Cris, em certo momento ela comentou que minha
forma de pensar se aproximava das ideias de Félix Guattari e Gilles Deleuze, da
esquizoanálise, o que me chamou a atenção. Entretanto, só fui realizar as leituras
posteriormente e tomar como mais uma referência para pensar o tema.
Acredito então que seja necessário identificar que a própria discussão que aqui
proponho está sendo feita a partir da minha posicionalidade, a qual se deu com
diferentes experências que tive e tenho com as identidades sociais que a compõem. A
minha própria vivência enquanto amazônida sempre foi a de me sentir em um lugar de
afastamento em relação à ideia de nação brasileira, seja por falas proferidas sobre a
região ou até mesmo por não ver a Amazônia pensada como parte da nação em seus
próprios termos, mas sempre como um lugar a ser explorado e transformado para
atender às demandas nacionais.
Uma noção que faz parte do imaginário nacional sobre a região e que legitima
essa lógica é a do “vazio demográfico”, o que de certa forma fez desenvolver em mim
uma postura reativa a políticas e pensamentos neste sentido que fossem direcionados
60

sobre a Amazônia. Tal ideia é uma abstração que tem como referência as baixas taxas
de ocupação humana em relação à proporção territorial, mas tal concepção de vazio se
dá a partir de parâmetros pensados desde uma visão de critérios de urbanização,
influenciada pelos padrões europeus a partir da Revolução Industrial. E mesmo que
atualmente sejam perceptíveis mudanças significativas nessa imagem, a introjeção
desta ainda se faz presente na construção das relações e políticas para o lugar.
A ideia de que a baixa densidade demográfica amazônica seria algo negativo ou
que deve ser mudado passa por uma concepção de civilização, de diminuir a natureza
frente à transformação da paisagem pela modernização, ao utilizar e melhorar as
técnicas para tal. Assim, o vazio é relativo. É relativo se considerarmos somente as
pessoas como parte da vida; e mais, se não pensarmos as diferentes dinâmicas e
relações com o meio, as compreensões de espaço e utilização do território.
Por exemplo, são recorrentes os discursos que condenam a extensão territorial
de uma unidade de conservação ou de uma Terra Indígena (TI), mas, por outro lado,
consideram justificável e aceitável, a partir de uma concepção de sociedade mais
igualitária em que, contraditoriamente, existam latifúndios da mesma proporção e
pertencentes a uma ou a poucas pessoas: a ideia de que a função destes últimos seria
melhor, superior ou mais necessária do que a primeira, um raciocínio cujo fundamento
é puramente inserido nos eixos de colonialidade e que estariam alinhados à idéia de
desenvolvimento econômico nacional e a um interesse que se diz coletivo (ainda que
sejam empreendimentos privados).
Logo, a falácia do vazio demográfico se divide em duas esferas principais: da
floresta e dos amazônidas. A primeira esfera se prende aos primeiros relatos
fantasiosos da região enquanto Eldorado e reproduz a ideia que dá base para a Floresta
Amazônica como a possuidora das soluções – riquezas – de todos os problemas. A
mesma ideia está presente nos ideais conservacionistas da agenda internacional do
século XX que, da mesma forma que os próprios colonizadores, apagava a existência
dos seus habitantes.
A segunda esfera, a humana, é racializada tanto pela ideia do vazio enquanto
negação das existências de sua população, mas também na hierarquização dos modos
de vida e na constante reprodução da ideia de selvageria, atraso e barbárie atribuída à
região. A visão é comum entre brasileiros de outras regiões em relação à região Norte,
e, de uma maneira similar se estende também, à região Nordeste do país e a uma parte
do Centro­Oeste; mas também na visão e dinâmica endógenas da região entre as elites
61

locais e dos centros urbanos. Logo, o vazio só se vê como “preenchido” quando o


espaço é ocupado por pessoas brancas e/ou reprodutoras da lógica moderna/colonial.
Todavia, o ponto do vazio demográfico é muito mais profundo. Em primeiro
lugar, que é um exemplo das condições de vida dos povos originários (já que o próprio
modo de subsistência tinha como elemento as distâncias entre os agrupamentos, pela
necessidade de deslocamento e da grande área utilizada por cada um), mas também se
relaciona com o isolamento político­administrativo implantado pelos colonizadores
portugueses e espanhóis.
Violeta Loureiro (2014, p. 17) discute como, até o final dos anos 1950, grandes
extensões de terras rurais ainda eram relativamente “livres”, no sentido de serem
livremente trabalhadas, sem disputas, por pequenos posseiros e naturais da região. A
relação dos naturais da região com a terra nessa configuração era de “parte
indissociável de suas existências” (id.), onde se praticava o extrativismo animal e o
extrativismo vegetal, ambos de baixo impacto6.
Uma das principais atividades na região era a prática do roçado e como
apontam D’Incao e Júnior (2001, p. 435) “este sistema, apesar de ser bem adaptado à
realidade amazônica, depende de uma baixa densidade populacional”. Com o aumento
da densidade populacional o roçado começou a ser impactado em algumas regiões, não
sendo possível respeitar o pousio (descanso da terra) pelo tempo adequado ou não
tendo hectares suficientes para a prática, reduzindo em diversas localidades o cultivo
apenas à mandioca e à macaxeira.
Pode­se extrair deste fato um retorno à reflexão do conceito de “vazio
demográfico”: seria vazio no sentido de qual sistema produtivo? Assim, as políticas
que se seguiram na região não buscavam apenas “levar o desenvolvimento”, mas
transformar a cultura local e adequá­la aos interesses de elites nacionais, locais e aos
interesses do capital internacional, como se pode notar no discurso do rio Amazonas do
então presidente Getúlio Vargas em 1940:
O nomadismo do seringueiro e a instabilidade econômica dos
povoadores ribeirinhos devem dar lugar a núcleos de cultura agrária,

6
Loureiro (2014) aponta que 98.14% dos estabelecimentos rurais no Estado do Pará em 1950 eram de
terra pública, o que significa dizer que grande parte das terras “não estava titulada sob a condição de
propriedade privada” (ibid., p. 19) e nessas terras a alteração da natureza pela intervenção humana era
ainda insignificante em consequência das atividades produtivas da época. Finaliza argumentando que
“até aquele estágio do desenvolvimento da região, as relações do homem amazônico com a natureza
estavam estabelecidas, fundamentalmente, no sentido de garantir a sobrevivência e a perenidade dos
grupos sociais” (ibid., p. 19­20).
62

onde o colono nacional, recebendo gratuitamente a terra, desbravada,


saneada e loteada, se fixe e estabeleça a família com saúde e
conforto. (...) Porque sois a terra do futuro, o vale da promissão na
vida do Brasil de amanhã. (Vargas, 1942, p. 260)

Na fala é possível perceber de forma nítida a lógica moderna/colonial em que


se desvalorizam referências a formas de vida da região, enquanto se reforça a ideia da
Amazônia servindo ao propósito de desenvolvimento e o trunfo do futuro nacional.
Edna Castro destaca como a ideia de Eldorado que impulsionou a própria colonização
de forma muito peculiar se projetou na Amazônia e como isso “embala os sonhos de
riqueza, de apropriação de novos recursos da floresta e das águas, por conter uma
promessa de riqueza monetária ainda não explorada" (Castro, 2010, p. 106) de modo
que "a imagem da Amazônia como fonte inesgotável de recursos atualiza o mito do
eldorado, mobiliza os interesses de acumulação e de cobiça, e se ancora numa
percepção neocolonial” (ibid., p. 115).
Castro (2010) afirma que as elites nacionais também se alinhavam a uma ideia
de projeto nacional “associando o conceito de integração ao desenvolvimento, e
formularam projetos para a Amazônia” (Castro, 2010, p. 111), reeditando a saga
bandeira defendendo uma “pseudointegração de mundos muito diferentes, o moderno,
civilizador, e o não moderno” (ibid., p. 110).
É importante destacar que em meados dos anos 1950 houve grandes frentes
migratórias especialmente compostas por nordestinos que, apesar de já terem ocorrido
no Ciclo da Borracha (1879/1912) com maior intensidade, tomam uma nova
configuração nesse período. Por todo o século XX são adotadas políticas – algumas
adotando inclusive slogans – nos países amazônicos7 que buscavam “corrigir” esse
isolamento. Não por acaso, pode­se afirmar que está nesse século o encontro desses
governos – cada um com suas peculiaridades – com o desafio da consolidação de um
projeto de Estado­Nação, a ruptura das ataduras coloniais, a inserção no comércio
internacional e o fortalecimento político das ainda jovens repúblicas.
No Brasil, por exemplo, o movimento de integração da distante Amazônia
brasileira começa de modo mais sistemático no final do século XIX (com o ciclo da

7
No Brasil, durante a ditadura os slogans eram “terras sem homens, para homens sem terra”, “integrar
para não entregar”, na Bolívia, na mesma época ocorria la marcha hacia el oriente; na Venezuela foi
criada a Cooperação de Desenvolvimento do Sul (CODESUR) sob o slogan “conquista del sur”; e nos
demais países também ocorrem políticas visando a integração e ocupação dos territórios amazônicos
praticamente ao mesmo tempo, a partir dos anos 1960.
63

borracha), mas é nos anos 1930 com o Presidente Getúlio Vargas que o nacional­
desenvolvimentismo é formalizado.
O contexto brasileiro não estará também incólume à dinâmica internacional do
início da Guerra Fria e da chamada “era do desenvolvimento”, inaugurada pelo
discurso do então presidente dos EUA, Harry Truman, em 1949, que difundiu os
termos “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos” na política internacional e apresentou
como solução para a pobreza dos países a entrada de mais capital (Escobar, 2007)
Com o fim do governo de Vargas em 1954, inicia­se um período no Brasil em
que a predominância do discurso político é mais uma vez pautado no desenvolvimento
e na modernização. Contudo, com políticas mais ambiciosas que as anteriores. É
também o momento do início da Guerra Fria e da pressão estadunidense por um
retorno de alinhamento automático na política externa brasileira, levando a pressionar
governos como o de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart.
As tentativas de posicionamentos autônomos e independentes despertam a
desconfiança no governo dos EUA e, em 1961, o presidente Kennedy lança a “Aliança
para o Progresso”, uma iniciativa de cooperação internacional que tinha como objetivo
desenvolver a América Latina e afastar a influência comunista da região.
É interessante identificar como a lógica do desenvolvimento e do progresso
estão explícitas e localizadas dentro da dinâmica política bipolar, o que acabará
influenciando os acontecimentos que levam ao golpe de Estado de 1964, em que os
militares e as elites tentam legitimar justamente pela defesa do “desenvolvimento” e do
nacionalismo contra a “ameaça comunista”. Elementos como a Marcha para Deus e a
Família dão o tom do que Yuval­Davis (1997) analisa na constituição das dinâmicas do
Estado­nação nos atravessamentos de classe, gênero e raça, por exemplo.
O período mais determinante nesse século é justamente durante a ditadura civil­
militar que se dá entre 1964 e 1985. É nesse ínterim que o caráter de ocupação e defesa
contra uma possível internacionalização da Amazônia leva a políticas como a de
“integrar para não entregar” e a de “terra sem homens para homens sem terra”, as
quais tiveram como consequência o período mais intenso de ocupação – e também de
destruição do bioma –, assim como a intensificação dos conflitos rurais entre colonos,
indígenas, latifundiários e as outras populações que viviam na terra. Tais medidas
também foram colocadas como uma solução para a questão fundiária no Sul e no
Nordeste (Castro, 2010).
64

Edna Castro destaca ainda como tal cenário se referencia a um “mito da terra
proemetida” (Ianni, 1979 apud Castro, 2010) no imaginário social, no qual a “migração
para áreas­limite tem ainda um sentido na realização de sonhos, na superaão de
adversidades, no desafio de busca de um lugar mítico” (ibid., p. 111), de modo que a
ideia de paraíso e modernidade também é carregada nesses deslocamentos, onde se
infere uma justificativa de destruir a floresta e explorar os recursos naturais por esse
ideário. Ela aponta que no período da ditadura civil­militar as mesmas bandeiras de
sempre são reeditadas, assim “a matriz conceitual – civilização, integração e progresso
– recupera a mesma base civilizatória presente nas políticas de governos anteriores”
(ibid., p. 112).
São planejados e implantados também megaprojetos para a região por meio de
políticas que mudaram a base econômica produtiva, que até hoje é marcada pela
pecuária extensiva, a mineração e a extração de madeira em nível industrial (diferente
da que se faz com menor impacto). Todos esses processos foram decisivos e
responsáveis pelos altos índices de desmatamento na região nas últimas décadas, além
das diversas formas de violações de direitos e repressões violentas pautadas na
justificativa de desenvolver a Amazônia.
Loureiro (2014) discorre sobre o desenvolvimento tanto da ocupação quanto
das bases produtivas na região, identificando, por exemplo, como uma ocupação
tradicionalmente ribeirinha começou a ganhar novos contornos com a abertura de
estradas e rodovias ­ a rodovia Belém­Brasília em 19598, a chamada rodovia da
integração, a Cuiabá­Santarém inaugurada em 1976 e a catastrófica Rodovia
Transamazônica de 1972 – até hoje inacabada – que facilitaram tanto a ocupação dos
novos colonos quanto a entrada do capital à região.
Para a autora, as políticas adotadas na época eram embasadas numa lógica de
projeto de desenvolvimento nacional que o Estado apresenta “como elemento
mobilizador e ético de suas ações para o “bem­estar comum”, o “progresso”, “a
modernização” da região. (...) Sob o rótulo de um propalado “interesse nacional”
(Loureiro, 2014, p. 85)9. Mesmo com o fim da ditadura e a redemocratização no país,

8
Apesar do ano 1959 ter marcado a finalização das obras, o encontro das duas partes da estrada, ela só
começa a ser trafegada em 1960.
9
Presente, por exemplo na criação da Zona Franca de Manaus (ZFM) pela Lei Nº 3.173 de 1957, a
Operação Amazônia de 1966 a 1967, no Programa de Integração Nacional (PIN) de 1970, nos Planos de
Desenvolvimento da Amazônia (I PDA de 1972, II PDA de 1975­1979 e o III PDA de 1980­1985).
65

os signos das políticas para a região vão manter a tendência das políticas citadas, ainda
que com algumas mudanças significativas.
Vaz Filho (2010) contextualiza a emergência étnica na região nos anos 1980
junto também com a propagação do movimento Pan­Indigenista na América Latina e
outros países, tendo também a Constituição Federal de 1988 (CF/88) contribuído para a
ideia de garantia de direitos à educação e à saúde e, principalmente, o direito às terras
tradicionais, sua demarcação e proteção pelo Estado. O antropólogo comenta ainda que
a CF/88 tem “como impacto positivo sobre os povos indígenas, (...) a remoção da tutela
do Estado sobre os indígenas (até então tidos como incapazes e da superação da visão
integracionista” (Vaz Filho, 2010, p. 120), contribuindo para a diminuição de uma
visão infatilizadora dos indígenas e motivando a reorganização étnica.
Nesse contexto há grande mobilização entre os anos 1996 e 1998 pela criação
da RESEX Tapajós­Arapiuns e também com a autoidentificação pública de moradores
de algumas comunidades como indígenas, a exemplo dos moradores de Takuara, o que
se dá com a presença e influência tanto de membros da Igreja Católica quanto do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém10.
A articulação começa a ocorrer também pela crescente tensão com madeireiros,
fazendeiros e outras movimentações pelas terras que começam a despertar ainda mais o
senso de pertencimento e autodefinição identitária, assim como os movimentos nos
anos 1990, que levam à criação de muitas unidades de conservação, processo que era
também impulsionado por pressões internacionais.
Já no caso da Flona do Tapajós, a mesma é criada ainda na ditadura civil­
militar, em 1974. Entretanto, a categoria de Floresta Nacional, influenciada pelo
modelo de conservação dos Estados Unidos, não considerava a existência de
comunidades dentro da mesma, o que, na verdade, acabou levando a conflitos, pela luta
das comunidades de se manterem no território, direito que acabou sendo conquistado
apenas nos anos 1980:
Em 1980, os moradores, junto com o STR de Santarém, fizeram um
pico na mata de 10km de fundo (o “Pico das Comunidades”), a partir
das margens do rio para o centro da floresta, estabelecendo os limites
do que eles pensavam ser a sua terra dentro da FLONA. Segundo
Allogio (2004, p. 582), essa ação “foi o sinal de que a disposição de
lutar poderia vir a garantir a permanência das comunidades
tradicionais no seu próprio lugar” (Vaz Filho, 2010, p. 123)

10
Atualmente Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR).
66

Assim, em 1988, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos


Naturais Renováveis (IBAMA) substituiu o IBDF e pôs fim ao conflito, mas continuou
o sentimento para os moradores de que “o governo os mantinha oprimidos, cerceando a
sua antiga liberdade no uso dos recursos da floresta” (id.) e a situação acabou se
resolvendo definitivamente em 2000, com a aprovação do Sistema Nacional de
Unidades de Conservação (SNUC), que permitiu a permanência dos moradores de
forma legal enquanto “populações tradicionais”. Mas a situação não foi bem aceita por
todas as comunidades, e três delas decidiram identificarem­se publicamente como
indígenas (Ioris, 2005 apud Vaz Filho, 2010). Sobre as condições em que a situação se
resolveu, Vaz Filho destaca ainda a peculiaridade que envolveu as comunidades em
questão:
É interessante registrar que tanto os 10 km na FLONA Tapajós como
os 13,4 km à margem esquerda do rio foram defendidos e
posteriormente protegidos como uma terra coletiva e não subdividida
em lotes individuais. Foi a tradição dos próprios moradores que se
impôs. (Vaz, 2010, p. 124).

A regularização da situação teve como consequência para as 23 comunidades e


3 aldeias indígenas da etnia Munduruku, situadas nos mais de 520 mil hectares,
mudanças no modo de vida e de subsistência como as limitações da categoria da Flona
para a prática do roçado. Nos anos 2000 foram elaborados diversos projetos para
capacitar e adaptar as atividades econômicas das comunidades com o caráter da
unidade de conservação como o turismo de base comunitária e a extração de madeira
sob a fiscalização do ICMBio.
Em conversas com Nice e outros moradores da Flona, após essas mudanças
muitas pessoas que tinham deixado suas comunidades em busca de oportunidades em
outras cidades como Belterra, Santarém, retornaram e tiveram como retomar suas vidas
na Flona de um modo compatível com seus valores e com as limitações da
conservação.
Enquanto Nice me contava a história da comunidade, ela me apresentou um
documento que elaborou por iniciativa própria, ainda quando estava à frente da
presidência da associação de moradores da comunidade, ao conversar com moradores
mais antigos para registrar a história de Jamaraquá (ver Anexo D).
O documento remonta ao início de sua formação a 1880, no nascimento de
Marcelino Monteiro da Fonseca; na época, a localidade chamava­se São Benedito. Em
1901, Marcelino casa­se com Sebastiana Adelaide dos Santos e os seus filhos foram
67

casando­se com pessoas de comunidades próximas, enquanto viviam no mesmo lugar,


que foi crescendo (Fonseca, 2010).
Contudo, São Benedito ainda era considerado parte da comunidade de Maguari.
Com o passar do tempo e o crescimento populacional foram surgindo iniciativas
próprias que abriram espaço para um estabelecimento de uma comunidade
independente de Maguari, tais como a fundação do Progresso Futebol Clube em 1981.
Assim, em 1985, São Benedito já apresentava uma diretoria e que com seis famílias
decidiram dar um nome definitivo ao lugar e se desligar de Maguari, passando a se
chamar Jamaraquá, “nome de uma planta medicinal muito usada por indígenas para
fazer xarope e curar picada de insetos” (Fonseca, 2010, s/p).
Já em 1987 foi fundada a Escola Radiofônica e com o apoio do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais foi implantada uma granja comunitária, que não alcançou o
resultado desejado. Logo os comunitários começaram a buscar parcerias com outras
entidades (id.). Nos anos 1990 são construídos dois poços semi­artesianos e a partir de
1995, o transporte que até então era apenas de barcos e canoas, passa a contar com a 1ª
linha de ônibus.
Ainda na década, o Projeto Saúde e Alegria (PSA)11 propõe uma parceria para
que a comunidade seja a sede do Encontro Geral e a Copa de Futebol dos Três Rios,
que leva à construção de mais infraestrutura, como um barracão comunitário e o campo
de futebol (Fonseca, 2010). Em 1999 é fundada a Associação de Moradores e
Produtores Rurais e Extrativistas de Jamaraquá (AMORJA), contando inicialmente
com 37 sócios.
Em 2001 começaram as atividades de ecoturismo inicialmente com três guias.
Tendo um retorno positivo incentivaram cinco mulheres a criarem o grupo de produção
de artesanato natural, no mesmo ano em que a comunidade tem a construção da Escola
João Paulo II. A água encanada chega à comunidade por uma parceria com Maguari e
também é ampliada a estrada que liga as comunidades a Belterra. Todos estes fatos
contribuem para o aumento do fluxo de turistas e melhores condições para a atividade
do turismo, tendo como um momento definitivo a chegada da luz elétrica na

11
O PSA é uma iniciativa civil sem fins lucrativos cuja atuação na região data de 1987 “com o objetivo
de promover e apoiar processos participativos de desenvolvimento comunitário integrado e sustentável
que contribuam de maneira demonstrativa no aprimoramento das políticas públicas, na qualidade de vida
e no exercício da cidadania das populações atendidas” (Projeto Saúde & Alegria, 2020, s/n). O projeto
aparece em diversos contextos durante o desenrolar do estudo.
68

comunidade, com o Programa Luz para Todos em 2008, do governo federal, que era
muito esperado pelos comunitários.
Para mim, a experiência na Flona foi de resgate da memória da minha própria
família12, com os relatos da infância de minha mãe e minha avó. Vi um cotidiano muito
similar (com as devidas ressalvas) na arquitetura das casas, na distância entre uma e
outra, na alimentação, no trabalho, no lazer.
Ali estava eu, uma mulher de 25 anos que vinha de Belém, professora
universitária e estudante do doutorado, o que sempre causava estranhamento e
descrédito – que acredito que se dava por conta da minha idade –, mas também
interesse, perguntando sobre o que as pessoas pensavam sobre o futuro e as políticas e
sendo interpelada de volta, sobre mim mesma, sobre o objetivo das minhas perguntas e
os motivos. Minhas indagações, como eu via e eram vistas, todas essas dinâmicas que
atravessam e são atravessadas pelo contexto aqui discorrido.
E, para chegar ali, acordei cedo para pegar o ônibus de Alter­do­Chão para
Santarém, uma breve de viagem de 45 minutos em média. Precisava estar lá por
precaução até às 10:00 horas da manhã para me situar e esperar o ônibus que saía com
destino à Flona, a Floresta Nacional do Tapajós. Aproximadamente, às 11:00 horas
subi no ônibus e estimei chegar à comunidade de Jamaraquá passando um pouco das
12:00 horas, já que é uma distância de apenas 65 km.
Saindo de Santarém passamos pelo município de Belterra, onde é possível ver
traços da história do lugar pela arquitetura que remete às casas dos Estados Unidos.
São algumas as construções da época em que a sede do município (então apenas uma
localidade) foi construída pelo milionário Henry Ford a partir do ano de 193413.
O ônibus é de linha e a passagem do ônibus custa R$ 12,00 reais, não tem como
objetivo atender a turistas ou visitantes, mas sim aos moradores da Flona que precisam

12
Isto se dá pelo fato da minha família materna ser de Castanhal e arredores, e meus avós terem
trabalhado ainda no roçado durante grande parte de suas vidas em condições pauperizadas. Por ter
nascido ali, já quando a família desfrutava de uma pequena ascensão de mobilidade social, e depois ter
crescido em uma das maiores capitais da região, Belém, um deslocamento justificado para ter acesso a
diversos serviços de saúde e educação, melhores condições de vida, que pouco refletem o acesso real da
maior parte da população, tive construída uma visão de futuro de modo otimista, como moldável e,
pautando­se pela referência dos símbolos da modernidade enquanto melhoria de vida (até então). A
própria mobilidade social alcançada pela minha família por meio do estudo, de acesso a empregos
estáveis, sempre foram símbolos de reforço dessa ideia e seus símbolos. Minha avó, que estudou apenas
até o ensino fundamental, sempre frisou que deveríamos perseguir­los para garantir uma vida melhor.
13
Por conta da produção da borracha, mas que nos anos seguintes o projeto foi abandonado pelo
desenvolvimento de outras tecnologias na produção da borracha sintética e o baixo custo em outros
lugares, como na Ásia.
69

se deslocar entre a Flona, Belterra e Santarém para resolver pendências, comprar


suprimentos e acessar alguns serviços públicos como os de saúde.
Apesar da pouca distância, não apenas as paradas influenciam na duração do
deslocamento, mas também as condições da estrada, principalmente ao chegarmos na
estrada principal que leva à entrada da Flona (vide Figura 4).
Figura 4 - Estrada de acesso à Flona Tapajós.

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)


Outra forma de chegar às comunidades da Flona é por via fluvial, mas que não
possui embarcações de linha, sendo feito o trajeto apenas por embarcações privadas.
De Alter­do­Chão saem barcos de passeio diariamente, que levam às comunidades e
voltam ao fim da tarde, onde costumam cobrar até R$ 300,00 por grupo, tendo a
duração de até 1 hora e 20 minutos cada trecho.
Já passava da hora do almoço e ainda estava em Belterra por conta das várias
paradas feita, nas quais as pessoas sobem com caixas de mantimentos, de bebidas e
outros itens. Para além do consumo familiar, muitas das compras são visando a
demanda de turistas e viajantes que vão à Flona.
A paisagem vai mudando aos poucos durante o percurso. Ainda na BR­163 a
floresta vai ficando mais distante no horizonte enquanto a beira da estrada é tomada
por plantações de arroz ou milho que abrem caminho para a soja. E ao dobrarmos na
estrada que leva à Flona, um choque: dos dois lados grandes áreas sem floresta, salvo
uma única castanheira carbonizada em meio a um grande vazio.
70

É uma cena de impacto que mesmo me causando incômodo já em 2017 eu


ainda não entendia tudo o que aquela imagem dizia. É uma paisagem recorrente na
Amazônia, onde unidades de conservação são cercadas e pressionadas pela devastação
e o agronegócio, restando muitas vezes como “símbolo” do desmatamento solitárias
castanheiras que acabam sendo alvo de raios ou são muitas vezes envenanadas.14
Rapidamente a paisagem é retomada pela floresta nativa; chegamos à Flona.
Mais 30 minutos adentro, passando pelas primeiras comunidades: São Domingos e
Maguari, com o rio Tapajós ao lado direito e a floresta profunda à esquerda. Jamaraquá
é a terceira comunidade e o meu destino. Foram quase 4 horas de viagem.
As três comunidades são as que mais têm desenvolvido o turismo comunitário,
principalmente Maguari e Jamaraquá. Os atrativos da região são a possibilidade de
dormir na floresta, fazer trilha pela floresta amazônica e os passeios pelas praias
formadas pelo rio Tapajós, além do igapó (floresta alagada), possível de conhecer na
época da cheia apenas.
Por conta da nova dinâmica do turismo de base comunitária, os moradores
começaram a abrir suas próprias casas para a hospedagem, fazendo redários15 e
cabanas para receber os visitantes. O turismo de base comunitária é uma atividade que
conforme relatado tem sido implantado recentemente pelo ICMBio com as
comunidades interessadas, sendo este “um modelo de gestão da visitação
protagonizado pela comunidade, gerando benefícios coletivos, promovendo a vivência
intercultural, a qualidade de vida, a valorização da história e da cultura dessas
populações, bem como a utilização sustentável para fins recreativos e educativos, dos
recursos da Unidade de Conservação” (ICMBio, 2018, p. 10).
Assim, a Flona Tapajós tem atraído nos últimos anos um número cada vez
maior tanto de pessoas interessadas em conhecer o bioma amazônico e também as que
já conhecedoras, visto que é uma experiência instigante, seja pela possibilidade de

14
O corte e a derrubada de castanheiras (Bertholletia excelsa) são vedados (Decreto 5.975/2006 e Lei
12.651/2012) sob a justificativa da sua importância para a ecologia e a socioeconomia da região, o que
se torna ainda mais grave pelo risco de extinção que levou à espécie a ser incluída na Lista Nacional
Oficial de Espécies da Flora Ameaçadas de Extinção (Portaria 443/2014 do Ministério do Meio
Ambiente). Assim, ouvi relatos recorrentes enquanto estava na região de várias estratégias utilizadas por
latifundiários e grileiros para evitar multas quando castanheiras em terras de interesse eram consideradas
um obstáculo. Uma delas é o envenenamento por meio de uma perfuração discreta no tronco da árvore,
de modo que seja difícil identificar a causa de sua morte e a mais comum é também o desmatamento de
toda a flora ao redor, restando apenas ela em pé, sendo alvo de raios, de modo que mais cedo ou mais
tarde seja carbonizada.
15
Alojamentos para atar redes para dormir (vide Figura 6).
71

conhecer o cotidiano das comunidades, seja pela proximidade com a floresta


onipresente (e seus barulhos indecifráveis para os que desconhecem).
Outra atividade econômica fundamental nas comunidades que oferecem os
passeios é o artesanato feito de sementes (principalmente de morototó) e também do
látex produzido na região, que aqui é transformado em bolsas, cadernos, colares e
outros adereços. Na Figura 5 é possível visualizar algumas peças produzidas por Nice e
sua família: chaveiros de pássaros feitos com látex, palha e sementes; cordões,
pulseiras e brincos com sementes de açaí, morototó e também de látex.

Figura 5 – Artesanato de látex e sementes naturais

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)

Figura 6 - Redário da casa de Nice, em Jamaraquá

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)


72

A figura 6 apresenta o redário no quintal da casa de Nice: com as laterais


abertas, cobertos de palhas; sendo as acomodações para visitantes que pretendem
passar a noite na comunidade. No redário dorme­se
dorme apenas em redes.
Por recomendação
ndação de Cris, fui recebida na casa de Nice, que nasceu e cre
cresceu
na Comunidade de Jamaraquá. Apesar
Apesar de já ter passado períodos morando fora não tem
mais interesse em sair da comunidade, onde ressalta
ressalta as vantagens de viver
viver,
principalmente após o estabelecimento
estabelec e o crescimento do turismo de base comunitária
na Flona nos últimos anos. Na Figura 7 (vide a seguir), Nice anda pelo rio tapajós em
um passeio que fazemos com sua família.

Figura 7 – Nice

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)

Aos 39 anos, casada e com cinco filhos (duas filhas jovens adultas e com filhos,
uma adolescente de 15 anos, um adolescente de 13 anos e um mais novo de 9 anos),
Nice tem uma percepção muito positiva do futuro da família, da comunidade e da
Flona, principalmente ao fazer
fazer comparações com a situação anterior que viviam antes
da criação da Flona e do turismo comunitário, quando a principal atividade econômica
era a agricultura e a criação de pequenos animais, o que era muito extenuante
extenuante e pouco
compensatório. Ela relata, por exemplo, trabalhar fazendo a roça embora grávida de 9
meses.
73

A visão otimista de Nice, porém, não é compartilhada por todos que moram na
Flona. Ela conta que quando o ICMBio começou o processo de capacitação para o
turismo comunitário, processo que dependia da iniciativa voluntária das comunidades –
apenas 3 pessoas quiseram realizar sistematicamente a atividade. Muitas não apoiavam
a mudança e houve tensão entre os que tinham interesse em mudar para uma atividade
econômica que tivesse maior retorno econômico e menos desgaste físico e aqueles que
temiam que a entrada de turistas na Flona fosse modificar suas formas de vida e que o
ganho econômico não compensasse a perda da privacidade e, possivelmente, suas
culturas.
Por conta dessa situação Nice promoveu repetidas vezes reuniões e debates
para que todos os moradores expusessem seus posicionamentos, buscando formalizar
diversas formas de associação para facilitar as discussões, como a Associação da
Comunidade de Jamaraquá e a Cooperativa de Mulheres de Jamaraquá, que tratam
sobre as produções de artesanato das mulheres da comunidade.
Nice demonstra­se muito atenta às dinâmicas com turistas, funcionários do
ICMBio, outros moradores da comunidade e das demais, muito comunicativa e
articuladora. Está sempre elaborando novos planos de explorar mais o potencial
turístico da Flona e, ao mesmo tempo, manter a autonomia dos moradores em relação
ao governo, pois apesar de considerar positiva a mudança da atividade econômica, ela
é muito crítica quanto ao posicionamento adotado por funcionários do governo que no,
caso da Flona, adotam um regulamento com rígidas proibições e multas para manter o
equilíbrio ecológico da floresta. Nice muitas vezes discorda dessas limitações seja pela
proporcionalidade adotada ou o próprio tipo de abordagem que adotam “como se
fossem donos do lugar”.
Por conta das dificuldades da minha adaptação à dormida no redário, dos
barulhos da floresta (que posteriormente fui informada que eram macacos andando em
cima do redário e porcos­do­mato andando pelas folhas do chão, de modo que aos
incautos como eu pareciam muito com pessoas andando) e ao medo de dormir sozinha,
uma das filhas de Nice, Aline, de 19 anos, foi me fazer companhia no redário.
74

Figura 8. Aline

Foto: Brenda Cardoso de Castro


stro (Julho 2017)

Durante o dia eu mesma havia feito algumas brincadeiras sobre o fato de ser um
clichê da “moça da cidade”,
cidade” com medo dos bichos, mas quando fomos dormir Aline
comentou que não achava besteira o meu medo, já que ela também tinha medo de
dormir na cidade, onde havia outros barulhos com os quais ela não estava acostumada
– e eu sim, como as sirenes de carros de polícia e ambulância durante a madrugada, os
barulhos de carros em alta velocidade, entre outros.
Nessa conversa, Aline – que é casada e tem uma filha de 4 anos – comentou
que também não tem interesse em morar fora da Flona.
Flona Falou várias vezes que ali é
onde se tem liberdade, diferentemente
diferente das cidades nas quais ela já morou ou visitou
(Santarém e Macapá). Ela chamou atenção à diferença do clima (muito mais quente nas
cidades) e que ali na Flona ela tem tudo de que precisa, apesar de ter tido uma
experiência traumática no parto de sua filha por conta da dificuldade e do custo de
deslocamento para o município de Belterra e Santarém para realizar
realizar tanto o pré
pré­natal
quanto o próprio parto, quando teve complicações.
Tanto Aline quanto Nice destacam que é precisoo melhorar o acesso dos
moradores aos seviços de saúde, já que cada deslocamento (de moto) custa pelo menos
R$ 50,00 reais. Noo caso de mulheres são recomendadas consultas frequentes,
75

especialmente durante a gravidez, o que impõe um custo elevado para uma renda que é
variável, posto que depende das temporadas de turistas na região.
Aline comenta que quando engravidou aos 15 anos ficou triste, pois queria
terminar os estudos (na comunidade tem­se acesso à educação básica), o que se
agravou com a complicação da gravidez e do parto de sua filha. Por conta dessa
experiência ela diz não pretender ter mais filhos.
Entretanto, Aline não adota uma visão pessimista da situação. Depois que
começou a trabalhar mais com o artesanato e a ajudar a mãe nas atividades de turismo,
passou a viver uma mudança interessante em sua vida. Ela contou como a recorrência
de mulheres viajantes que passaram a chegar à comunidade por vezes solicitavam guias
mulheres. Anteriormente, os homens costumavam exercer o trabalho de guias,
enquanto as mulheres faziam o artesanato e preparavam as refeições, com algumas
exceções como a de Nice, que sempre foi guia junto às outras atividades16.
Foi quando por questão de demanda, Aline começou a se capacitar para ser guia
em diversos passeios, onde acompanhava e aprendia inicialmente com o seu pai e sua
mãe. Ela relata que começou a se identificar muito mais com a atividade de guia do
que de artesanato, que considera “chato”. Ela comenta que muitos moradores
demonstraram reprovação por ela estar em uma posição de ser guia, às vezes, só para
homens, implicando principalmente questões morais sobre o seu casamento. Ela
responde que, apesar dos comentários, seu marido a apóia.
Ao falar mais sobre o trabalho como guia ela se anima com os outros níveis de
passeios mais difíceis para os quais gostaria de ser capacitada, como passar a noite na
floresta. Reclama ao ver que apenas homens colocam seus nomes para prestarem o
treinamento. Nessas ocasiões ela recua, por não querer provocar insegurança nas
esposas dos guias homens que também estariam lá e que passariam noites dormindo na
floresta, caso ela também fosse.
Em conversa com Rosivaldo, o pai de Aline e esposo de Nice, sobre
perspectivas de futuro para a região, ele se demonstrou tranqüilo e confiante, por

16
As relações de trabalho na comunidade são abordadas no capítulo 7, a partir das entrevistas com Nice
e sua filha mais velha, Priscila, onde são discutidas as relações de gênero nestas questões. Optei por não
introduzir aqui a discussão pela escolha de seguir uma linha cronológica mais próxima possível às
experiências e leituras. À época mesmo o fato me chamando atenção eu ainda não havia elaborado bem
sobre as dinâmicas e tampouco havia conhecido melhor sobre as relações de trabalho nas perspectivas
delas, visto que em 2017 foi a minha primeira visita e apenas em 2018 realizei entrevistas com
direcionamento específico e abordei também em nossas conversas do cotidiano minhas dúvidas sobre o
tema.
76

acreditar que a Flona e a presença do ICMBio garantem


garante certa segurança de que as
terras dali não serão compradas por madeireiros ou atingidas
atingidas por projetos próximos.
Assim como Nice, ele relembra
relembra os tempos mais difíceis quando dependia
apenas da produção da roça.
roça Lembra as dificuldades de acesso a serviços básicos como
a energia, que só chegou à comunidade em 2004. Fala
Fala que também prefere traba
trabalhar
com turismo comunitário, pois a renda é maior que a da roça, ainda que por outro lado
isso também tenha aumentado a dependência de comprar produtos que
que, muitas vezes,
antes eram produzidos por eles próprios.

Figura 9 – Rosivaldo durante passeio pelo igapó de Jamaraquá

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)

Mas ele também enfatiza,


enfatiza, como Nice, o fator físico do trabalho que a roça
exigia do corpo e que se estendia normalmente desde antes do sol nascer até o
anoitecer. Ele sugere que se tivessem autorização para criar um pouco mais de
pequenos animais como porcos (além das galinhas) e a ter mais espaço para a roça de
mandioca, por exemplo, seria ideal.
Enquanto faz uma trilha pela Floresta de Jamaraquá, Rosivaldo comenta o
quanto é feliz e grato por
or poder fazer um trabalho respeitando a natureza, que não seja
o seu trabalho destruir, mas preservar e valorizar a natureza como ela é, em suas
palavras: perfeita.
77

Um dos filhos de Nice e Rosivaldo faz esculturas de animais em madeira e


desenha, demonstrando muito interesse pela arte, o que os pais incentivam e elogiam
muito, não esperando ou cobrando que ele desempenhe a função de guia, deixando
muito perceptível o fato de apoiarem as escolhas dos filhos (assim como Aline).
É possível discorrer sobre o contexto narrado por Nice, Rosivaldo e Aline como
inserido na lógica do projeto de nação fundada em um viés desenvolvimentista. Não se
pode desconsiderar que as criações das unidades de conservação surgem numa
dinâmica internacional de pressão de países do Norte Global, cujos interesses na região
se manifestam de forma interventiva por meio de multinacionais, projetos de
cooperação e outras formas de pressionar e influenciar nas decisões políticas,
principalmente em alinhamento com elites nacionais e locais – esse contexto é situado
por Moura (2007).
Igualmente, a configuração do Sistema de Unidades de Conservação (SNUC)
em 2000 forma­se entre as contestações e pressões de populações que habitam as terras
das áreas em questão. Aqui, pode­se inferir a análise feita por Escobar (2005a) a partir
de experiências que, mesmo localizadas dentro de um sistema dominante capitalista,
sempre buscaram caminhos próprios a partir da relação com o lugar e com base no
conhecimento local.
Também chama atenção como principalmente para Nice e Aline a questão de
serem mulheres é ponto recorrente de suas falas, seja pela questão da saúde (e da
gravidez) ou questões de julgamento moral por posicionamentos ou atitudes não
esperadas a serem adotadas por mulheres, enquanto Rosivaldo adota uma fala que
pouco – pelo menos durante a conversa, o que não significa dizer que esteja ausente
dessas pressões – toca na sua identidade enquanto homem naquele contexto, ainda que
o “papel de provedor” que costuma ser atribuído a homens também seja uma
preocupação nas falas de Nice e Aline.
No momento da pesquisa exploratória de campo a intenção era ainda realizar
um levantamento macro que envolvesse tanto homens quanto mulheres de diversos
grupos, mas após a convivência e diversas conversas, fez aflorar a questão do ser
mulher na Amazônia no contexto de um projeto nacional de desenvolvimento e como
seus projetos de vida eram influenciados. Isto se destacou como elemento muito
relevante.
Assim, ainda que à época não estivesse familiarizada com referências dos
estudos de gênero e de raça, as conversas que muitas vezes tive se deram pela
78

posicionalidade de ser mulher, muito provavelmente por ser um elemento em comum


que eu compartilhava com quem conversei e que, ao perceber a diferença como na fala
de Rosivaldo, tornou­se
se nítido.
Rai (2008) demarca que o nacionalismo em si sempre foi uma ideologia
generificada, ou seja, o lugar da mulher e do homem na ideia da nação é diferenciado.
O homem é colocado como a referência de sujeito da sociedade, enquanto a mulher é
vista em dois sentidos: reprodutora dos genes desse grupo e/ou parte importante para a
produtividade econômica. Não se afirma, entretanto, que exista qualquer tipo de papel
ou função biológica e social predefinida em torno de gênero e muito menos que esta
categoria seja apenas binária ou cisheteronormativa, mas apontam
apontam­se como
historicamente os Estados têm se organizado e reproduzido discursos nesse sentido.
Este ponto é importante de ser destacado a partir das contribuições da socióloga
israelense Nira Yuval­Davis
Davis (1997), que analisa como o sistema de gênero e sexo se
relaciona com as ideias de nação. É possível perceber nas falas de Nice e Aline
elementos que atravessam essas noções ligadas à reprodução biológica e social e as
condições para tanto.
to. Em entrevistas posteriores e em outras visitas que fiz, tais fatores
se mostraram ainda mais relevantes, assim como, outros pontos se mostraram
divergentes do que esperado, como na relação de trabalho e produção familiar e
comunitária.
Minha primeira ida à Flona terminou com um retorno a Alter
Alter­do­Chão com
Nice e sua família que iam falar com donos de pousadas em busca de parcerias de
turismo.. Ao contrário da ida demorada por terra, o caminho de volta foi pelo rio em
uma rápida viagem de 1 hora e 30 minutos,
min no fim da tarde, contemplando a imensi
imensidão
e a calmaria do rio Tapajós e contou com a companhia ilustre de botos ao pôr
pôr­do­sol.
Figura 10 – Voltando para Alter-do-Chão
Alter com Nice

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho 2017)


79

4 COLONIALIDADES NA AMAZÔNIA HOJE E ONTEM

É um modo do colonizador, de outra maneira, nos


colonizar. Com a ilusão do consumismo, com a
ilusão de que vamos ter uma vida melhor. Mas
que vida melhor é essa? Pra quem bem observar
o nosso bairro, a nossa cidade ela tem se
desenvolvido e sem essas empresas e sem esses
portos. E nós vamos permitir que essas empresas
venham e se instalem e nos expulsem da nossa
terra? Da terra que nosso povo, minha mãe, meus
antepassados tanto lutaram pela conservação.
Não foi uma semente jogada agora, recentemente,
já vem de muitos anos, de muita luta.
(Lídia Roberta de Matos, Coletivo de Mulheres
na Raça e na Cor, Quilombo Pérola do Maicá –
Santarém)

Após a incursão de julho de 2017 retornei a Belém com mais questionamentos


e possibilidades de direcionamento para a pesquisa. A dimensão das relações e
elementos com os quais me deparei denotaram a necessidade de buscar novas
referências teóricas e conceituais, assim como de aprofundar e retomar leituras que já
havia realizado.
Ainda que alguns fatores estivessem explícitos, muito do que eu lia em
abordagens decoloniais, por exemplo, ainda não parecia dialogar tão diretamente com
o contexto que eu havia experienciado ou não compreendia como eu poderia conectar
essa relação. Provavelmente, tratava­se já de um embate que se abria entre a mudança
de abordagem necessária da minha formação acadêmica até então de formato mais
tradicional e epistemologicamente eurocentrado, assimo como indicava as próprias
limitações da abordagem decolonial.
Nas seções anteriores tentei retratar minha percepção na época, contudo,
acredito ser necessário um enfoque no processo que eu mesma passei entre essa
viagem e as seguintes, de releituras e organização de ideias, assim como de
aprofundamento do contexto político e histórico da região. Até então frisei pontos
gerais que já moldavam a minha percepção: o contexto geral da colonização e o
processo na Amazônia, assim como a construção do imaginário sobre a região, minha
relação com ela, com a discussão sobre desenvolvimento, Estado e nação no cerne
dessa dinâmica e, por fim, questionamentos sobre como as pessoas individualmente se
relacionavam de forma diferente com o cenário com o qual eu também me deparava, a
partir de nossas posicionalidades.
80

Como abordado nas seções anteriores, a colonização levou a cabo a


reorganização territorial e social de sociedades que já viviam nos locais agora
colonizados ou recolonizados. As instituições que advieram desse processo são produto
e reprodutoras da lógica moderna/colonial, o que se dá pelos eixos da colonialidade.
Enquanto esta é, em sentido geral, a outra face da modernidade, da qual se faz
importante discorrermos sobre como suas práticas adotam diversas estratégias.
Assim como Fanon (2008), Quijano (2000) compreende que o processo de
colonização não se deu apenas em uma esfera econômica e política, mas também
mental, do imaginário. A colonialidade do poder produziu discriminações sociais a
partir do momento da criação da categoria “raça” como a­histórica, universal,
“objetiva” e “científica”.
Logo, a criação de uma inferiorização a partir da produção do conhecimento,
combinada a uma colonização estrutural de repressão cultural e da violência dos
extermínios empregados contra as populações indígenas e africanas configura a origem
de um sistema de poder global que serviu como base para o sistema no qual vivemos
ainda atualmente.
Quijano (1992) argumenta que enquanto o primeiro momento desse
colonialismo se deu pela repressão da cultura, dos símbolos, das ideias, dos modos de
saber e produzir conhecimento, o segundo se dá pela sedução da cultura europeia como
caminho único de acesso ao poder. Desta forma, a colonização gerou inicialmente uma
destruição cultural e nos modos de expressão de um povo, para, em seguida, introjetar
o seu próprio padrão como referência universal, ou seja, um colonialismo do
imaginário.
Neste ponto, podemos traçar um paralelo entre alguns pontos destacados por
Fanon, como a linguagem e o comportamento incentivado e idealizado nessas
sociedades, que é o europeu. A ideia de civilizar é a reprodução de uma lógica de
progresso e de modernidade, que localiza os povos e suas culturas em níveis e estágios,
hierarquizando e separando­os entre primitivos, selvagens, bárbaros e civilizados.
É o que se percebe, desde o início do processo de colonização por meio da
imposição de vestimentas, o ordenamento social, a língua, a religião cristã, a estrutura
familiar cisheteronormativa com referência europeia burguesa17 e, como se usou como

17
Não se infere aqui que este tipo composição familiar seja restrito à cultura européia, mas que a forma
como essa concepção de família será difundida e reproduzida nas instituições adota como referência o
81

ferramentas para tal, políticas de tentativa de dominação – que, atualmente, observa­se


não terem sido totalmente bem­sucedidas, visto os processos inerentes de resistência e
práticas anticoloniais envolvendo diversas estratégias.
Um momento da história da Amazônia que ilustra tal dinâmica é o da repressão
cultural durante a chamada Belle Époque, no I Ciclo da Borracha (1879­1912). É nesse
período que a região passa a receber mais atenção no âmbito nacional, por motivos
econômicos. Enquanto de um lado tinha­se o processo de produção de látex nos
seringais pelo sistema de aviamento, em condições precárias e desumanas a que muitos
seringueiros eram expostos, muitos destes, imigrantes nordestinos; do outro lado, a
acumulação de riquezas se materializa na Belle Époque um projeto de modernização e
europeização cultural das grandes capitais da Borracha, como Manaus e Belém.
Junto com o capital veio a possibilidade da elite local cada vez mais, enfim,
“parecer” com os europeus. No caso de Belém, por exemplo, em 1880, o intendente
Antônio Lemos aprovou um Código de Posturas que proibia algumas manifestações
culturais e comportamentos considerados desviantes, de modo a adequar a população a
novos padrões culturais e morais, tais como:
proferir palavras obscenas, nas ruas e lugares públicos, praticar atos
ou gestos reputados ofensivos à moral e à decência; tomar banho nas
praças e fontes públicas (...); fazer algazarras, dar gritos sem
necessidade, apitar, organizar batuques e sambas; tocar tambor;
carimbó; bem com a reunião de escravos; fâmulos ou criados nas
lojas; tabernas; açougues; ruas e praças (...); danças de cordões de
pastores fora do carnaval (Sarges, 2002, p.145146).

Diversas proibições acima são diretamente relacionadas às culturas indígenas e


africanas, o que demonstra o caráter predominante de uma cultura eurocêntrica para o
julgamento do que seria moralmente aceito. Maria de Nazaré Sarges (2002) destaca as
mudanças do período tanto no comportamento da sociedade belenense quanto na
própria arquitetura da cidade, o que teve como consequência a gentrificação do centro
e deslocamento da população pobre para bairros periféricos. O período também
garantiu a Belém algumas alcunhas como “Veneza paraense” em referência aos canais
e igarapés que existiam e também, “Paris N’America”.
A Belle Époque continua sendo uma referência da identidade local como
símbolo de autoestima e de passado glorioso, o que se relaciona exatamente ao

contexto burguês na Europa, o que carrega consigo valores religiosos e noções de gênero, sexualidade,
raça, produção e divisão do trabalho muito específicas.
82

parâmetro de comparação europeu em questão, localizando­se a própria lógica da


colonialidade do poder presente.
É preciso destacar que o processo de colonização adotava políticas que, apesar
de muitas vezes mascararem­se por trás de uma justificativa de civilização, de
humanização ou da própria salvação desses povos, visavam, na verdade, a dominação
e exploração de corpos, mentes e territórios.
Tem­se, então, na Amazônia também um duplo processo, como descrito
Quijano e Fanon: de âmbito econômico e cultural. De um lado, a invasão colonial por
meio da força e a exploração do trabalho indígena e africano, por outro lado, a
catequização a partir da ação dos jesuítas como ponto central para a repressão cultural,
das religiosidades/espiritualidades indígenas e africanas.
Estes dois processos que marcaram a empreitada portuguesa no território foram
os passos iniciais do que depois viria a ser, com a criação do Brasil enquanto Estado, a
oficialização da língua portuguesa, da cultura europeia/portuguesa como base de
organização social e econômica, assim como a religião cristã católica como base
fundante da moral e do comportamento social.
Assim, a partir da repressão cultural, injeta­se a ideia de uma identidade
europeia e o que ela abarca passa a ser objeto de sedução e desejo para os sujeitos,
como uma forma de ter acesso ao poder. Ou seja, passa primariamente pela negação da
sua própria pele e história, tendo como objetivo final um projeto de nação que não é a
sua origem, mas um futuro forjado nos moldes europeus.
Partindo da compreensão que a colonialidade do poder refere­se à inter­relação
entre formas modernas de exploração e dominação como tratadas por Quijano,
enquanto a colonialidade do saber, por Walter Mignolo (2017), trata do papel da
epistemologia e das dinâmicas de produção do conhecimento na reprodução de regimes
de pensamento coloniais eurocentrados, Nelson Maldonado­Torres (2007) trabalha o
conceito de colonialidade do ser como a experiência vivida da colonização e seu
impacto na linguagem.
María Lugones (2014) baseia­se também no conceito de colonialidade do ser a
partir de Maldonado­Torres para marcar como elemento crucial do sistema
moderno/colonial de gênero a “desumanização constitutiva da colonialidade do ser”. E,
essa desumanização estaria localizada tanto na ideia de raça, quanto de gênero, classe e
outras categorias, criadas a partir de uma relação assimétrica de poder, na produção da
negação da subjetividade.
83

Catherine Walsh (2008) traz como contribuição pensar a partir de um novo eixo
além da colonialidade do ser, do poder e do saber: a colonialidade da “mãe natureza”.
Tal eixo se refere à visão binária natureza/sociedade adotada durante a colonização, a
qual ignorou e reprimiu os conhecimentos e as relações mágico­espirituais­sociais, a
relação entre mundos biofísicos humanos espirituais, incluindo a dos ancestrais, que dá
sustentação aos sistemas integrados de vida e a humanidade como um todo (id.).
Contudo, apesar da negação dessas bases de vida dos povos indígenas e
africanos e seus descendentes, ela aponta que atualmente se tentam resgatar “prácticas
y políticas, entre otras, del desarrollo, etnoturismo (con su folklorización y
exotización) y «ongización», en que prevalecen el individuo y su bienestar individual-
neoliberal” (Walsh, 2008, p. 139). Tal argumento dialoga, por exemplo, com as
atividades de turismo de base comunitária no caso abordado da Flona Tapajós que são,
importante frisar, fruto de ações de interferência do Estado nacional por meio do
Ministério do Meio Ambiente e o ICMBio.
Ela também reforça que os eixos de colonialidade formaram/formam as bases
estruturais, institucionais e ontológicas das compreensões de Estado e Nação. Enquanto
as colonialidades do poder, do ser e do saber fundam uma concepção de quem é o
sujeito ou “indivíduo racional e civilizado” dessa estrutura, que formas de
conhecimento, ciência e epistemologias são válidas, de que maneira o projeto de
nação vai ser pensado, por quem, inserido em e reproduzindo por qual lógica, que ao
mesmo tempo hierarquiza, inferioriza e desumaniza outras existências, corpos e
epistemologias, aprofundando a dimensão do que é proposto em linhas gerais por
Yuval­Davis (1997).
A construção de projeto de nação se dá, basicamente, pautada numa lógica
eurocêntrica na qual o Estado­Nação se constrói enquanto uninacional e monocultural,
que propõe um caráter “capitalista, moderno, colonial e cristão para a vida em
sociedade nacional” (Walsh, 2008, p. 139), afirmando sua universalidade como
justificativa para a legitimação da dominação social, exploração do trabalho e negação
das populações que não estão inseridas ou não são reconhecidos dentro desses moldes.
Ainda na lógica dos eixos da colonialidade, tem­se assim, na América do Sul –
contexto analisado por Walsh – a adoção de políticas de mestiçagem, que visam
argumentar e negar a existência de racismo e de qualquer injustiça racial, entendendo o
Estado enquanto neutro historicamente nesse processo e que o hibridismo produzido
não permitiria a ocorrência de racismo nessas sociedades.
84

O que é reforçado também pela definição de Silvia Rivera Cusicanqui (1993,


apud Walsh, 2008) como “matriz ou horizonte colonial de mestiçagem”. No caso
brasileiro especificamente, o mito da democracia racial no Brasil já foi amplamente
discutido por sociólogos como Florestan Fernandes (2008) e Adbias do Nascimento
(2016). Percebe­se um alinhamento entre esse apontamento e o debatido por diversos
pensadores e pensadores da decolonialidade no sentido de atribuir um caráter que
atravessa as relações de raça e classe na constituição do Estado­Nação e na sua ligação
ao capitalismo, enquanto produto e efeito do mesmo.
E, não se paut somente em um contexto de exploração material, mas também
em um viés de adoção de políticas que têm como objetivo a própria legitimação de
uma estrutura desigual, injusta e violenta, ao mesmo tempo em que nega que exista
qualquer tipo de caráter discriminatório; e busca naturalizar as desigualdades e
arbitrariedades destinadas aos grupos que não correspondem às características do assim
entendido “cidadão comum”.
Neste ponto, enquanto a abordagem das relações de gênero já era um elemento
definido na pesquisa, percebi o que já havia se mostrado explícito desde o início: que
não seria possível a discussão do tema sem que as relações raciais no Brasil e na
Amazônia fossem aprofundadas.
Mas, na época, como a discussão de gênero me chamava a atenção, busquei ler
mais sobre as contribuições da filósofa argentina María Lugones (2014), que considera
que a colonialidade a partir dos quatro apresentados ainda não abarca todas as
dimensões que se considera que influenciaram o contexto analisado. Ela apresenta o
conceito de colonialidade de gênero, partindo de algumas premissas adotadas por
Quijano, mas revisitando­as e expandindo­as. A sua compreensão básica é de que além
de uma colonialidade pautada na ideia de “raça”, o “gênero” (também em aspas para
indicar o seu caráter de construção social) foi parte basilar da lógica de
modernidade/colonialidade.
Compreende­se, dessa forma, que os eixos de colonialidade dispõem sobre
formas de dominação por meio de instituições, estratégias, práticas e narrativas de
hierarquização das sociedades coloniais, criando modelos legitimados e rejeitando
formas de vida não reconhecidas pelos parâmetros predominantes, que têm como
referência a cultura europeia das elites.
85

Figura 11 – Eixos de colonialidade e a relação com o Estado e projeto de nação

Fonte: Elaboração própria.

Buscou­se ilustrar na Figura 11 os cinco eixos abordados de colonialidades até


então, sua relação com o processo de modernidade/colonialidade e a construção do
Estado­Nação.
Parte­se então da premissa de que os eixos de colonialidade no caso da
Amazônia, assim como proposto por Coelho e Pinto (2009), contribuem para que
historicamente até os dias atuais a região permaneça sendo vista a partir dos projetos
nacionais como uma sub­região ou, retomando as palavras de Espinosa (1998): uma
colônia interna.
A ideia de que a “Amazônia é nossa” em um contexto nacional carrega muitas
vezes uma invisibilização da população amazônida e suas demandas; normalmente
invocada quando a região é pensada pelos recursos, pela floresta, pela ameaça de
“internacionalização”, mas pouco ou quase nunca de forma humanizada. Fatos
posteriores do cenário político brasileiro que serão abordados em outras seções
possibilitam o evidenciamento dessas perspectivas.
Logo, como já afirmado algumas vezes, apesar de uma visão dominante sobre e
para a região, o processo de projeções do futuro da região não é uno, mas se dá, na
realidade, de forma múltipla, a partir de diferentes culturas e realidades coexistentes
nesse cenário, que resistem e lutam independentes das pressões hegemônicas de
determinação de seus futuros.
Os eixos de colonialidade serão recorrentemente resgatados durante os
próximos capítulos. É importante explicitar que, apesar de Walsh e Lugones
86

contribuírem com mais duas colonialidades (de gênero e da “mãe natureza”), que serão
consideradas abordagens mais atuais para a questão trazida na presente pesquisa, todas
as demais serão também retomadas oportunamente quando necessário.
A fim de ilustrar tais eixos no panorama amazônico destaco como não se
costuma estudar nas escolas sobre as origens do mundo a partir das histórias dos povos
indígenas e, muito menos a história do Brasil, que não costuma ser contada a partir dos
primeiros humanos que ocuparam este território, mas sim a partir do “descobrimento”.
O território já era ocupado por sociedades organizadas de diferentes formas há
pelo menos 8 mil anos A.C. (Souza, 2015). Provas materiais indicam sociedades que
produziam cerâmicas, sobreviviam com a caça e a coleta e, por volta dos 3 mil anos
A.C. transitaram para uma sociedade de horticultores:
Os primeiros amazônidas experimentaram um grande
desenvolvimento por volta de 2000 a.C., transformando­se em
sociedades hierarquizadas, densamente povoadas, que se estendiam
por quilômetros ao longo das margens do rio Amazonas. Essas
imensas populações, que contavam com milhares de habitantes,
deixaram marcas arqueológicas conhecidas como locais de “terra
preta indígena”. O mais conhecido deles encontra­se nos arredores da
cidade de Santarém, Pará, exatamente um dos centros de uma
poderosa sociedade de tuxauas, guerreiros que dominaram o rio
Tapajós até o final do século XVII, já no período de dominação
europeia. (Souza, 2015, p. 25)

A história pré­colonial da região, contudo, é pouco conhecida e difundida,


adotando­se costumeiramente o ponto de partida da história do país como o ano de
1500, o início do que viria a ser o Brasil, a “descoberta” feita pelos conquistadores
portugueses. A história vivida até então pelos milhões de nativos do extenso território
não apenas foi apagada, mas também inviabilizada pelo etnocídio da língua e da
espiritualidade das tantas culturas que aqui existiam e de algumas que ainda existem.
Culturas que tinham como base central da comunicação a oralidade tiveram
gerações futuras privadas da sua própria origem e versão dos fatos, como decorrência
da colonialidade do saber, que determina a origem da História como a origem da
escrita, deslegitimando a oralidade e hierarquizando formas de saber, separando noções
de conhecimento como científico (certo e neutro) e os demais como conhecimentos
inferiores.
A relação que se iniciou com os colonizadores, ainda hoje é reproduzida na
relação com pesquisadores brasileiros e de outros países, assim como com políticos,
com a elite local e nacional. Assim, a história da Amazônia parece ter sido
87

constantemente contada por uma visão exógena, como um observador que vem a
descobri­la, a revelá­la, como se sua existência só obtivesse sentido após o seu relato e
o seu reconhecimento. Como se essa narrativa e suas primeiras impressões da região
fossem definitivas para o sentido do lugar, seus povos e seu futuro.
Com a colonização chegou também um projeto de homogeneização cultural,
como parte da lógica moderna/colonial. Nessa sociedade que se buscava homogênea e
que viria a ser o Brasil, não caberia esse passado em sua história. Mas, esse
apagamento não se deu apenas contra as culturas dos povos autóctones, ocorreu
também com os africanos deslocados à força e com os aqui já nascidos, sob essas
condições.
Márcio Souza (2015) aponta que no momento da chegada dos europeus, a
região era habitada por sociedades hierarquizadas, as quais possuíam: sistema de
produção de ferramentas, cerâmicas, agricultura diversificada, assim como práticas
culturais de rituais e ideologias que serviam como base para a organização das
sociedades de forma estratificada.
Ele critica também a ideia construída de preconceito de que os povos
amazônidas, chamados de Cultura de Selva Tropical, seriam primitivos e estariam
abaixo do desenvolvimento cultural do Padrão Caribenho ou dos Povos Andinos, o que
recai ainda hoje sobre certas visões racializadas sobre a região e seus habitantes.
Lugones (2014) destaca que a colonialidade se dá exatamente ao passo que a
“modernidade tenta controlar, ao negar a existência, o desafio da existência de outros
mundos com diferentes pressuposições ontológicas. A modernidade nega essa
existência ao roubar­lhes a validez e a coexistência no tempo. Esta negação é a
colonialidade” (ibid., p. 943, tradução própria). Os elementos presentes na lógica da
modernidade geram então nos corpos e territórios valores de hierarquização, de
violência e opressão pela colonialidade do ser, do poder, do saber, de gênero e da mãe
natureza.
Para Lugones, a referência central da modernidade/colonialidade é o homem
europeu burguês, o qual seria considerado o ser principal e apto a participar na vida
pública e no governo, heterossexual, cristão e racional que tomará ele próprio como
sujeito dessa narrativa. É ele quem se tem legitimado nessas estruturas sociais como
referência, o que, ainda se faz extremamente presente na atualidade.
E, seguindo essa lógica, a mulher europeia burguesa é colocada como
“reprodutora” da raça que representa esse sujeito e também o capital, enquanto as
88

pessoas que viviam/vivem nos territórios que passaram pelo processo de colonização
são defrontadas com um sistema de gênero moderno/colonial em que não têm sua
humanidade reconhecida, ou seja, na lógica dicotômica hierárquica da modernidade
colonial são tidos como “não­humanos, bestiais e sexuais” (Lugones, 2014, p. 936). O
lugar dado à mulher europeia burguesa aqui também retoma o proposto por Shirin M.
Rai (2008) e Yuval­Davis (1997) e como as mulheres são vistas na ideia de nação.
Isso se percebe nos processos de genocídio e etnocídio praticados na região
amazônica – e no restante do território brasileiro – e nos argumentos adotados não
apenas na época da colonização de fato, mas persistem ainda hoje, para justificar tais
práticas nas quais as populações indígenas eram/são comparadas a animais e a seres
sem almas, levando a políticas tanto de dizimação, como de exploração e também de
catequização/evangelização.
Assim, é preciso destacar o papel da religião cristã, especificamente pela Igreja
Católica, pela atuação dos jesuítas na região e suas consequências. Tanto o genocídio
quanto o etnocídio se deram de forma articulada e embasada nesses valores de
modernidade/colonialidade e de personificação do sujeito moderno ideal supracitado.
Investidas de catequização foram desenvolvidas para adequar a cultura e suas práticas
ao cristianismo, com a violência de gênero recorrentemente infligida às mulheres
indígenas pelos conquistadores europeus; mas também contra as mulheres africanas e
negras em situação de escravidão.
No âmbito do sistema de gênero moderno/colonial, Lugones (2016) enfatiza as
diferenças racializadas de gênero entre mulheres brancas europeias e as “não­brancas”,
as mulheres “colonizadas”. Essas mulheres não recebiam quaisquer privilégios ou
direitos nas sociedades, como se não fossem vistas como dignas de respeito e até
mesmo como não portadoras de humanidade, enquanto as primeiras ainda que
subjugadas a dinâmicas sexistas de cunho patriarcal, possuíam certo poder de exercer
opressão sobre as demais.
A leitura que os europeus fizeram dos povos ameríndios se deram no âmbito da
transposição das referências da própria sociedade europeia, reproduzindo, inclusive, as
relações de sexo e gênero dispostos naquela cultura. Lugones (2016) discorre que a
heteronormatividade e a visão binária de gênero modificou compreensões de culturas
pré­coloniais, partindo das ideias da socióloga nigeriana Oyèrónkẹ Oyěwùmí e também
da antropóloga e ativista nativo­americana Laguna, Paula Gunn Allen.
89

É a partir das questões levantadas por elas e outras autoras, que Lugones
constrói um argumento que visa romper o sistema de gênero moderno/colonial na
compreensão de “gênero” no âmbito do dimorfismo biológico, trazendo contribuições
sobre as culturas pré­colonização e diferentes percepções das relações entre gênero e
sexualidade, como a intersexualidade e a homossexualidade.
Os exemplos trazidos pelas autoras em que Lugones se baseia apontam
organizações sociais que tinham fortes características de participação política das
mulheres, o que vai ser mudado a partir da colonização, na imposição de padrões
binários que buscam se justificar pelo dimorfismo biológico, alterando a organização
social e as relações entre homens e em situação de colonização. Enquanto em outros
casos, nem sequer existiam termos ou formas de separação social pautadas em “sexo”
ou “gênero”.
Com base nos estudos de Oyěwùmí, Lugones (2016, p. 22) reforça que a
associação colonial entre anatomia e gênero faz parte da oposição binária e hierárquica,
central para a dominação das anafemales introduzidas pela colônia. As mulheres são
definidas em relação aos homens, a norma. As mulheres são aquelas que não têm
pênis; elas não têm poder; eles não podem participar da arena pública.
Paula Gunn Allen (apud, Lugones, 2016) traz os casos de mudanças em
sociedades que adotavam o feminino como fonte criadora que substituirão pela figura
de criadores masculinos, como na própria referência da teologia cristã, o que nos
remete ao exemplo da origem do mundo para os Dessâna, apresentado anteriormente.18
Diante desse contexto, mostra­se oportuno exemplificar o tratamento dado
pelos portugueses durante a colonização na região a situações que não se encaixavam
nas suas referências de normatividade em relação ao comportamento baseado no
gênero, como exposto por Ronald Raminelli (1997, p. 21):
As perversões sexuais marcaram as representações do índio. Os
tupinambás eram afeiçoados ao pecado nefando, e sua prática era
considerada uma conduta normal. Os “índios­fêmeas” montavam
tendas públicas para servirem como prostitutas. Algumas índias

18
São citados casos também que indicam um reconhecimento da diversidade sexual e também da
interssexualidade nessas sociedades, contrariando inclusive a lógica da ciência ocidental que adotava à
época (e predominantemente ainda hoje) a visão de um corpo humano biologicamente heterossexual e
baseado em dois sexos opostos a partir da anatomia. Trazendo para o Brasil, a tese de doutorado de
Estevão Fernandes (2015) discorreu sobre o tema dos enquadramentos coloniais e homossexualidade
indígena. Ele observou a partir de relatos de viajantes que chegaram ao Brasil nos tempos do início da
colonização diversas passagens sobre práticas sexuais consideradas “imorais” e que pelas próprias
populações eram culturalmente normatizados. Ele aponta que o próprio fenômeno da LGBTfobia foi um
elemento introduzido pela própria colonização em muitas sociedades indígenas.
90

cometiam desvios contra a ordem natural e furtavam­se de contatos


carnais com os homens, vivendo um estrito voto de castidade.
Deixavam, por conseguinte, as funções femininas e passavam a
imitar os homens, exercendo os mesmos ofícios dos guerreiros:
“Trazem os cabelos cortados da mesma maneira que os machos, e
vão à guerra com seus arcos e flechas”. Cada fêmea guerreira possuía
uma mulher para servi­la, “com que diz que é casada, e assim se
comunicam e conversam como marido e mulher”.

A passagem reforça a questão das compreensões sobre a sexualidade como


elemento importante no contexto de colonização e como as relações sociais e também
econômicas se desenrolaram a partir de premissas assumidas como universais sobre o
comportamento sexual e a própria definição de sexo e gênero.
Nota­se uma leitura das sociedades pelas lentes epistemológicas da sociedade
europeia, o que Lugones (2016) considera mostrar um lado oculto do sistema
moderno/colonial de gênero, em que há uma imposição de ordem do dimorfismo
biológico, da heterossexualidade e do patriarcado, a qual serviu de ferramenta de
imposição e mudanças na forma de organização social desses povos, pautadas na
construção dicotômica de gênero numa perspectiva eurocentrada.
A negação do reconhecimento de seus direitos, suas formas de ser e existir e
suas “almas” foi a base da construção dos projetos nacionais de países colonizados
como o Brasil, e que moldaram desde o início o que se pretendia como “projeto de
nação”. O que aqui se propõe pensar não é reduzir todas as relações e noções de gênero
à colonização, ou desconsiderar que as culturas autóctones poderiam até mesmo ter
abordagens similares, o que se trata é que, indiscutivelmente, a colonização modificou
e alterou todas as formas de relações sociais.
Mesmo em localidades em que hoje se tem formas de resistência cultural a
dinâmicas capitalistas, por exemplo, é notável a influência na regulação das relações
sociais pautadas no gênero pela presença do cristianismo tanto católico quanto de
cunho protestante. A própria relação com a formação de vilas, municípios, atreladas ao
direito a terras e até mesmo de garantia de participação política sempre foram
mediadas por influência da Igreja e ainda hoje nota­se essa predominância.
Considero que pensar a partir dos eixos da colonialidade não implica a
consideração homogênea dos efeitos – atribuir tudo ou nada aos europeus –, mas que
se torna até mesmo difícil, em alguns casos, separar ou perceber o que foi introjetado
de forma consolidada nestas relações e o que já poderia ou não existir antes. As
práticas citadas remontam à lógica da modernidade/colonialidade, ou seja, a negação
91

da existência de outras ontologias. O que perpassa também as dinâmicas que


circunscrevem as subjetividades, inseridas dentro e a partir do sistema de gênero
moderno/colonial. Os efeitos, as continuidades e as rupturas nas marcas das
subjetividades de sujeitas e sujeitos influenciam não apenas a forma como a região é
vista pelos demais, mas também como os e as amazônidas se vêem.
Um exemplo disso, e já citado, é a falácia que permeia o imaginário nacional de
que apenas a região amazônica tem presença e influência da cultura indígena; outro
caso que merece destaque é como o contexto de caboclização e todas as outras lógicas
inseridas no sistema de gênero moderno/colonial visaram apagar as identidades negras
na região.
Mônica Conrado, Marilu Campelo e Alan Ribeiro (2015) discorrem sobre este
processo, identificando a presença marcante da identidade de “morenidade” na
Amazônia, que se insere também na construção da ideia de caboclo, como um símbolo
do reforço do dito “mito indígena” e também desse apagamento da realidade identitária
local, ao passo que aproximadamente 73% da população do estado do Pará é
autodeclarada preta ou parda.
Esta visão, presente no imaginário nacional e local sobre a região, ignora
também o intenso fluxo de africanas e africanos desde o século XVII (da ocupação
portuguesa na Amazônia). Conrado, Campelo e Ribeiro (2015) destacam a forte
presença de negros e negros na construção das cidades da região por conta da
exploração da mão­de­obra escravizada, o que contribuiu para a possibilidade da
formação de uma economia viável na região e a própria expansão do projeto colonial.
A influência é nítida, sendo pulsante na cultura amazônica nos âmbitos
religiosos e culturais como na música, nas artes e também na culinária. O próprio
contexto da Cabanagem, como já citado, envolvia grande parte da população negra na
região e tinha como uma de suas pautas principais o fim da escravidão.
Há também grande concentração de comunidades remanescentes no estado do
Pará e Maranhão, no caso da região amazônica (ver Anexo E). Destaca­se esse
elemento fundante para a argumentação central sobre o lugar que tem sido atribuído à
Amazônia no Brasil, assim como as reverberações nas vidas dos sujeitos e sujeitas
amazônidas dentro desse projeto nacional que vai se construir durante os séculos.
A questão abordada sobre os povos indígenas e também a população negra na
região é importante também para compreender como na Amazônia adotou­se uma
política de mestiçagem que resultou em uma desindianização ou de caboclização em
92

conjunto com as políticas de catequização/evangelização e como as mulheres foram


tidas como figuras principais nesse processo. Da mesma forma o contexto da
“morenidade” buscou apagar ambas as identidades étnico­raciais, ao passo que uma ­ a
negra ­ foi/é ignorada na região enquanto a outra ­ a indígena ­ foi congelada em um
passado distante enquanto mito e símbolo de atraso.
Kércia Peixoto (2017) descreve esse processo em sua tese quando aborda a
transformação de índio a tapuio e de tapuio a caboclo. Ela cita o antropólogo Carlos
Moreira Neto (1988, apud Peixoto, id.) ao defender que as missões jesuítas foram
centrais para o processo de “destribalização e de homogeneização deculturativa” (id.),
sendo o tapuio o índio destribalizado, o produto final dessas políticas e
“impossibilitado de entender sua origem étnica, de resgatar seu caminho de
ancestralidade” (Peixoto, 2017, p. 77).
Do processo de tapuio a caboclo, Peixoto (id.) destaca a criação do Diretório
dos Índios em 1757, cujo objetivo era “civilizar”, ao transformar aldeamentos
indígenas em vilas e aldeias, assegurando a “liberdade” do índio, mas impondo normas
que contribuíram para o processo de desindianização ainda mais, como escolas com
uso exclusivo da língua portuguesa e proibindo qualquer outro idioma, tendo como
punição até a morte, assim como proibição da nudez e habitações coletivas e também a
obrigatoriedade de adotar sobrenomes portugueses.
Estudos realizados sobre a região Tapajós­Arapiuns apontam o território como
tradicionalmente indígena (Vaz Filho, 2010; Beltrão e Lopes, 2016; Nheengatu
Tapajowara, 2016), o que é ainda muito perceptível na região, apesar do apagamento
histórico e material das culturas, mas que ainda pulsa em diversos hábitos e que, nas
últimas décadas, passou por um processo de resgate e fortalecimento dessas
identidades, chamado por alguns estudiosos de etnogênese (Vaz Filho, 2010).
Florêncio Vaz Filho (2010) aborda esse tema na concepção de vários processos
que envolvem os grupos étnicos, especificamente no contexto dos “processos de
emergência social e política dos grupos tradicionalmente submetidos a relações de
dominação”, que seriam vistos como “definitivamente aculturados”, “miscigenados”
ou “extintos” (Bartolomé, 2006, apud, Vaz Filho, 2010).
Ele próprio, indígena nascido na comunidade de Pinhél, no rio Arapiuns, conta
que demorou a tomar consciência de sua identidade, que se considerava caboclo, mas
que principalmente a partir de suas vivências em outras regiões do país, onde era
muitas vezes “lido” como “índio”, pelo seu fenótipo, e de seus estudos nas Ciências
93

Sociais e na Antropologia, ele começou a se dar conta de que compartilhava tanto da


ascendência, como de costumes e outras formas de práticas sociais e culturais.
Esse resgate tem tido como fio condutor a relação com o tempo dos avós, na
ideia do “tempo que foi”. O processo de apagamento das identidades desses povos se
deu por uma política de “caboclização”, ou seja, uma política de mestiçagem que ao
seu fim apagava a origem étnica dos povos, dando novos nomes e rechaçando tanto a
cultura quanto a história do povo.
Tais práticas também remontam à própria utilização do termo “índio” como
forma de apagar as identidades étnicas dos povos originários durante a colonização, o
que Antônio Bispo dos Santos considera parte fundamental da empreitada colonial; o
ato de (re)nomear exerce uma função adestradora, “pois sempre que se quer adestrar
um animal a primeira coisa que se muda é o seu nome” (Santos, 2015, p. 27), o que ele
considera ser uma forma de tentar “quebrar as suas identidades com o intuito de os
coisificar/desumanizar” (id.).
O termo “caboclo” tem como referência a construção histórica e social das
populações ribeirinhas, mas tanto comporta localmente um uso pejorativo de
inferiorização cultural e intelectual, como também remete à mestiçagem de indígenas
catequizados com os colonizadores, ao passo que acabou também sendo uma forma de
se referir à população negra na região, cabendo também na construção da identidade
morena. No caso do IBGE, apaga ambas as identidades sob o termo “pardo”. Notando­
se a operacionalidade da colonialidade “pardo” também tem raiz histórica de
associação aos povos indígenas desde a carta de Pero Vaz de Caminha. De modo que a
leitura apenas de negritude a pessoas que se declaram pardas no censo pode acabar
implicando uma validação de discursos como de que indígenas foram todos dizimados
e de que o processo de colonização no Brasil foi homogêneo. Anahata chama atenção
para o fato de que pessoas com “fenótipos indígenas”19 em diferentes contextos podem
ter vergonha de se declararem indígenas e que o uso do termo ribeirinho e caboclo é
muitas vezes um recurso, inclusive que já foi oficial em censos.
Já na idéia de morenidade, Conrado, Marilu e Ribeiro (2015, p.220­221)
inferem que “a ideia de moreno(a) ameniza os confrontos, atenua o sentimento de

19
A importância de pontuar o debate em torno da idéia de pardo se faz justamente para situar a
colonialidade, suas ferramentas e efeitos ainda hoje desses processos na sociedade. Contudo, é preciso
frisar que no que diz respeito a identidades indígenas não é um elemento central o “fenótipo”, ainda que
este seja reproduzido no imaginário e nos meios de comunicação e conhecimento, mas que a relação
passa por processos de reconhecimento e pertencimento que cada povo possui seus próprios critérios,
não sendo necessariamente os mesmos.
94

exclusão e faz com que as pessoas se sintam integradas…”, assim, concluem que na
região, especificamente no estado do Pará, o termo moreno(a) vai ser aplicado como
uma forma de unir o povo como descendentes de negros e indígenas e também como
uma eufemismo para não utilizar a palavra negro.
Assim, os termos “caboclo” e “moreno” carregam cargas históricas e políticas
que criam novas identidades enquanto apagam outras ou condenam à exclusão os que
as declaram e abraçam. A renomeação das identidades será fundamental para a
concepção de um projeto nacional e de direitos, de divisão socioterritorial e,
consequentemente, de projetos de vida. De quê sociedade fazemos parte e qual nosso
“papel” nela? Onde estou e quem eu sou dentro deste contexto e que lugar cabe a mim?
São alguns questionamentos que podemos levantar e internalizar a partir dessa
discussão.
Vaz Filho (2010) propõe não atribuir aos processos de criação e
“assimilação”/reprodução dessas identidades uma visão de vitimização dos indígenas
(mas que também podemos aplicar à população negra), como passivos a esse processo
histórico, mas a compreensão como uma “estratégia de silêncio, superposição cultural
e recriação ou invenção, para conservar, durante séculos, parte considerável das suas
culturas indígenas e uma leve lembrança de suas origens tribais” (Vaz Filho, 2010, p.
108).
No caso das mulheres indígenas a dinâmica se deu de forma específica, onde
Gambini (2000, p. 141) aponta que eram vistas por um duplo aspecto pelos
colonizadores: como “ameaça maligna” e “novidade fascinante”. Gambini (2000)
argumenta que “ao lado do diabo e dos pajés, os jesuítas também reservaram um lugar
para as mulheres no reino das trevas” e que os primeiros homens que cruzaram o
oceano “encontraram (...) mulheres a seus olhos amorais, sedutoras e acima de tudo
disponíveis e nuas, com quem podiam pôr em prática suas fantasias sexuais sem
maiores restrições” (ibid., p. 132).
Ronald Raminelli (1997) reforça que a visão dos povos nativos como seres
degenerados tenha recaído mais sobre as mulheres e, principalmente, as mais velhas.
Ele aponta que a própria teologia cristã dá bases para essa compreensão feita na época
tanto nos valores misóginos difundidos, como na própria construção da ideia de Eva, a
mulher que corrompe, a que seduz e que é uma ameaça.
Nesse sentido, percebe­se a hiperssexualização das mulheres indígenas e um
posicionamento de suas existências também abaixo das mulheres europeias, onde elas
95

eram reconhecidas como “submissas”, “devotas” e “contidas”, mas também uma


prática de negação das suas humanidades.
A atuação dos jesuítas era ainda mais forte com as mulheres, principalmente as
que se tornassem mães, muitas vezes em decorrência de estupros e casamentos
forçados, já que “as mulheres batizadas perderam vínculo tribal e não puderam cumprir
sua missão de transmissores da língua, da religião, das narrativas míticas, do modo de
ser indígenas” (Costa, 2011). Tal afirmação reforça mais uma vez a percepção
generificada de nação que Rai (2008) e Yuval­Davis (1997) analisam.
Gambini (2000) destaca também como o duplo aspecto com que as mulheres
indígenas foram vistas ganhou espaço no imaginário dos conquistadores na imagem
das mulheres Amazonas (Ycamiaba), as guerreiras que viam como mulheres a serem
“dominadas”, mas também como ameaças a eles próprios.
Mais tarde, as mulheres europeias seriam trazidas da Europa para a formação
de famílias reconhecidas como decentes, mas os estupros e outras violações
continuariam contra mulheres indígenas e também as mulheres africanas escravizadas.
Como a escravidão de homens e mulheres africanas foi um processo que se deu
em muitos países em situação de colonização, é relevante o que aponta Angela Davis
sobre a situação da mulher negra escravizada:

Como mulheres, as escravas eram inerentemente vulneráveis a todas


as formas de coerção sexual. Enquanto as punições mais violentas
impostas aos homens consistiam em açoitamentos e mutilações, as
mulheres eram açoitadas, mutiladas e também estupradas. O estupro,
na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do
proprietário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na
condição de trabalhadoras. Os abusos especialmente infligidos a elas
facilitavam a cruel exploração econômica de seu trabalho. As
exigências dessa exploração levavam os proprietários da mão de
obra escrava a deixar de lado suas atitudes sexistas ortodoxas,
exceto quando seu objetivo era a repressão. (Davis, 2016, p.20).

Logo, em relação às mulheres negras, ocorre também uma colonização do


imaginário pautado na hiperssexualização, ao mesmo passo em que se dá uma visão
animalesca e bestializada, por conta das diferenças da colonização no continente
africano. A questão religiosa e cultural, por exemplo, levará a políticas diferenciadas
em relação aos povos indígenas na colônia em comparação aos povos africanos.
Os estereótipos e a narrativa racista sobre as mulheres negras envolve além das
violências e a perspectiva de superioridade branca a casamentos forçados, ao trabalho
forçado não apenas na produção da cana­de­açúcar, algodão e outros, mas também no
96

trabalho doméstico, na esfera dos cuidados. Lélia Gonzalez (1984) analisa como o
imaginário no Brasil será atravessado por essas imagens das mulheres negras enquanto
mulata, doméstica e “mãe preta”.
Vieira (2018) – mas também outros trabalhos antes deste, com destaque para a
obra de Lélia Gonzalez – critica as abordagens e interpretações sexistas e racistas
apresentadas por Gilberto Freyre, como no momento que este indica que a relação
entre senhores brancos e negras escravizadas teria um “impulso sexual” de forma
desejada, de sadismo pelo lado dos homens brancos e de masoquismo pelas mulheres
negras. Contudo, a visão de Freyre é relevante no sentido de trazer à tona a própria
forma de pensamento da sociedade brasileira.
Em sua dissertação de mestrado sobre mulheres negras no Brasil, Bianca Vieira
(2018) apresenta a visão de que o apagamento da subjetividade de mulheres negras
escravizadas também se dava até mesmo por “intelectuais” que defendiam a abolição
da escravidão ao passo que Joaquim Nabuco, por exemplo, aponta que o “ventre
gerador” seria justamente a parte mais produtiva da propriedade escrava.
Outras referências que ela aborda discorrem sobre as dinâmicas coloristas de
valorização de algumas mulheres que pertenciam a etnias com traços mais próximos
aos brancos ou de tom de pele mais claro como preferenciais para o casamento com
colonizadores. Contudo, ela aponta que ainda assim na dinâmica das relações
predominava a da exploração da mão de obra destas.
Ela cita que para Freyre (1994, apud Vieira, 2018) as mulheres escravizadas
que tinham seu trabalho deslocado para a casa grande eram vistas como “promovidas”,
pois significaria que teriam se destacado das demais e estariam mais aptas a conviver e
trabalhar diretamente com os senhores e as senhoras brancas. Por outro lado, ela cita
que Sueli Carneiro e Thereza Santos (1985, apud Vieira, 2018) não consideram que
esse tipo de trabalho diminuísse de qualquer forma a exploração das mulheres negras,
ao contrário, apenas ampliava os níveis de exploração em comparação aos homens
negros.
Como herança dessas dinâmicas superficialmente aqui citadas, o trabalho
doméstico e serviços gerais de limpeza são ainda predominantemente executados por
mulheres negras e pobres, e que, ainda por cima, são ocupações com frequentes
violações de direitos trabalhistas, baixa remuneração e que, ainda hoje, mantém traços
do passado colonial não tão distante nas relações trabalhistas em diversos âmbitos, seja
pela segregação, pela exploração ou pela baixa remuneração que é tão comum ao setor.
97

Para Paredes (2010), o colonialismo interno gerou um imaginário estético


racista especialmente sobre os corpos de mulheres indígenas ou de origem indígena ­ e
adiciono aqui também as negras. É nesse imaginário que as mulheres indígenas e
negras serão vistas como essenciais para a reestruturação neoliberal, como mão­de­
obra barata, onde se destacam trabalhos mal remunerados, precarizados e repletos de
relações de violência de gênero e raciais.
No caso da Amazônia, pode­se destacar uma dinâmica ainda presente na cultura
local que são as “crias de família”, uma prática comum ­ mas cada vez menos ­ de
meninas e adolescentes que moram em cidades menores, ou do “interior”, serem
enviadas para casas de famílias em centros urbanos para “terem mais oportunidade” ou
acesso à educação. Ao passo que “trocariam” a moradia prestando serviços como babás
e realizando tarefas domésticas.
A relação é ainda geralmente entendida como uma “ajuda” a famílias mais
pobres, ao passo que, na verdade, envolve não apenas trabalho infantil como também
existem recorrentes relatos de violências, abuso sexual e exploração. As meninas
costumam ser, em sua grande maioria, negras, mas também são registradas como
“morenas”, “pardas” e indígenas (CEDECA EMAÚS, 2001). Tal contexto revela muito
das relações de gênero, raça e classe presentes na sociedade brasileira e, no caso,
amazônica. A exploração ser justificada muitas vezes por um discurso de “favor” por
quem se beneficia dela é também uma face da colonialidade.
O que se pode depreender dessas colocações é justamente o quanto a
modernidade/colonialidade provocou transformações profundas nas sociedades
coloniais, impondo a lógica dicotômica hierárquica que separa os “humanos dos não­
humanos”, onde as mulheres indígenas e negras escravizadas são duplamente
subalternizadas em tal narrativa; deixando marcas dessa lógica nas mentes em relação à
percepção dos outros e de si até a atualidade.
Contudo, o processo de colonização não se deu de maneira passiva nem
pacífica e os processos de resistência datam desde o seu início. Houve revoluções e
lutas de libertação contra o poder bélico discrepante, mas foram decisivas para a
diminuição da população as epidemias de doenças trazidas por europeus. Com o passar
dos séculos o número de nativos diminuiu e o de estrangeiros, assim como os
deslocamentos involuntários, aumentaram progressivamente; nasciam também cada
vez mais pessoas de relações (em grande parte dos casos de violência sexual) entre
europeus (brancos) e indígenas, europeus e africanos, e outros.
98

Enquanto o acesso aos recursos de poder é discrepante às elites de origem


européia e também aos brancos de outras classes, é possível notar ao longo da história
e na atualidade diversas formas de anticolonialismo, de resistência e continuidades em
práticas culturais e modos de vida. Neste sentido, pensadoras e pensadores que
defendem uma abordagem decolonial20, propõem um giro decolonial como fundando
em um “grito de espanto del colonizado ante la transformación de la guerra y la
muerte en elementos ordinarios de su mundo de vida, que viene a transformarse, en
parte, en mundo de la muerte” (Maldonado­Torres, 2007, p. 159)
Para Walsh (2008, p. 135) o giro decolonial é o esforço de repensar, refundar o
Estado, a sociedade, os sentidos culturais, sociais, epistêmicos, existenciais,
reconhecendo também que esta não é uma abordagem nova, tem sido traçada desde o
início dos processos de colonização e escravização pelos povos sujeitados a estas
violências. Para ela, a decolonialidade é tanto prática, como um eixo de luta, quanto
uma perspectiva teórico­analítica.
Pode­se fazer aqui uma correlação com a Cabanagem na Amazônia, ocorrida
entre 1835 e 1840 (período em que o governo cabano funcionou). A revolta popular,
uma das mais bem sucedidas no Brasil, teve como estopim o período de certo vazio e
caos político durante a Regência. A partir dos grupos mais marginalizados pelo poder
na região norte, indígenas, caboclos, quilombolas e pobres, os revoltosos se uniram
contra a presença imperial e as representações do projeto colonial. Reis (1965) destaca
como a língua foi uma importante ferramenta de resistência:
Era o triunfo da língua geral sobre o português, dos caboclos sobre os
brancos, dos brasileiros sobre os reinóis, das massas pobres sobre os
proprietários ricos. A língua geral foi usada durante a Cabanagem
como o instrumento de comunicação entre os revoltosos, oriundos,
em geral, das classes pobres, para que não fossem compreendidos
pelas tropas enviadas de outras partes do Brasil pelo governo
regencial. (Reis, 1965, p. 2)

20
A decolonialidade configura­se em uma abordagem que busca combater a colonização epistemológica
e ontológica, surge no contexto dos estudos pós­coloniais ao criticar que apenas a identificação das
heranças e continuidades das práticas coloniais não é o suficiente para romper com essas dinâmicas.
Assim, a decolonialidade assume que sempre houve embate e que a partir de uma descolonização pode­
se repensar as estruturas sociais e, de certa forma, transformá­las de dentro para fora, de baixo para
cima, a partir das experiências dos povos subalternizados. Já quem parte da premissa que os povos
jamais foram colonizados, como argumentam representantes de muitos povos indígenas, como Daiara
Tukano, falam sobre contracolonialismo ou anticolonialismo de modo que decolonizar seria para quem
foi de fato colonizado e não para quem desde o início enfrenta e resiste à colonização. Optei por manter
o debate a partir da decolonialidade por conta do contexto que analisei, da minha própria experiência e
das pessoas com quem convivi, considerando que a decolonialidade de certa forma se adequa melhor.
99

O período marcou também outros símbolos de resistência como uma moeda


própria e tinha como elementos centrais a revolta contra as elites locais e as
representações do poder imperial. Após anos de uma sangrenta guerra, os cabanos
foram derrotados e metade da população amazônica foi dizimada; estima­se que o
conflito levou a 40 mil mortos.
A violência repressora do Império teve como resultado também uma
interiorização maior, por conta das fugas em busca de sobrevivência, assim como a
mudança de muitos nomes e a adoção da língua portuguesa. A revolta de caráter
popular e de cunho anticolonial denota as dinâmicas de modernidade/colonialidade
também como um fenômeno de via dupla, ou seja, não apenas de dominação, mas
também de resistência.
Ainda que a política do Diretório dos Índios e outras tenham contribuído para
um processo de desindianização ou caboclização, além do extermínio de milhões de
pessoas, e que as diversas violências culturais sobre a cultura e a língua tenham sido
adotadas, é no lócus fraturado que a subjetividade ativa das sujeitas e dos sujeitos
resiste. A filósofa argentina chama a possibilidade de superar essa colonialidade de
gênero de feminismo decolonial.
E é assim que Lugones compreende as dinâmicas no contexto da colonialidade,
e a partir das demais referências de colonialidade ela constrói a ideia de colonialidade
de gênero como a “opressão de gênero racializada capitalista” (Lugones, 2014, p. 941)
e traz ideias que possibilitam analisar os processos históricos citados anteriormente de
outra forma.
Mas ainda que as políticas tivessem como objetivo uma “colonização da
memória e, consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva,
da sua relação com o mundo espiritual, com a terra, com o próprio tecido de sua
concepção de realidade, identidade e organização social, ecológica e cosmológica”
(Lugones, 2014, p. 938), é perceptível no caso da região Tapajós­Arapiuns, na
Amazônia brasileira, a continuidade de diversas formas de relação de origem nas
populações que habitavam o local, “no tempo que já foi”.
Vaz Filho (2016) cita, por exemplo, o âmbito do sistema cultural de saúde e
espiritualidade ainda muito forte com elementos tradicionais das culturas indígenas nas
comunidades da região como os pajés, benzedores, puxadores e parteiras; assim como
as relações práticas comunitárias ecológicas, as práticas e saberes de cultivo, entre
outras.
100

Em suma, não é o objetivo aqui desta seção e muito menos desse estudo
aprofundar todo o histórico e as políticas já adotadas na história da Amazônia brasileira
no sentido da lógica de modernidade/colonialidade. Porém, os casos aqui citados
corroboram a relação com os conceitos centrais discutidos e apresentam como o
processo de colonização se deu em linhas gerais e como os parâmetros de referência
cultural idealizada em torno da identidade europeia se tornaran referências que ainda
hoje se manifestam como um sonho das elites locais e buscando realizá­lo empreendem
políticas visando um desenvolvimento que destrói a própria região.
Tal processo, contudo, encontra assim como na própria história local,
iniciativas de resistência e, apesar dos esforços de colonização dos corpos, das mentes
e das subjetividades, depois de cinco séculos ainda são visíveis e pulsantes. Esses casos
serão abordados na apresentação do contexto específico da região do Tapajós, onde
serão retomados conceitos aqui previamente apresentados.
A colonialidade de gênero na Amazônia foi eixo central no processo de
colonização no momento que redefiniu as formas de relação e organização social dos
povos autóctones ao passo que também exterminou tanto vidas como também culturas.
Podemos pensar, por exemplo, no contexto descrito sobre o trabalho infantil doméstico
principalmente de meninas não­brancas, assim como a recorrente prática de seqüestro,
conhecida pela expressão de que alguma mulher foi “pega no laço”, para se referir
principalmente a mulheres indígenas.
Mirna Anaquiri (2018), que é do povo Kambeba Omágua­Yetê, analisa como a
expressão refere­se à forma de violência sistemática pela que muitas mulheres
passaram e como além do seqüestro em si, a prática envolvia também outras formas de
se “dominar”, apagar a identidade étnica e práticas culturais. Ela ressalta como “essa
fala traz mais um exemplo de violência étnica, violência simbólica, violência de gênero
contra a mulher indígena, cujos corpos são objetivados e suas identidades anuladas. É
necessário problematizar essa frase do repertório popular, sobretudo porque as
violências perduram geração após geração” (Anaquiri, 2018, p. 759).
Podemos então analisar como o “lugar das mulheres” pensado no projeto de
construção de uma nação passou pela adequação aos valores eurocentrados e morais da
religião católica, como uma forma de dominação dos corpos das mulheres indígenas,
tanto pela capacidade de passarem a língua e a religião adiante, mas também como
potenciais “embranquecedoras” da população por meio dos estupros e casamentos
forçados com brancos europeus; o que relembra a discussão feita por Nira Yuval­Davis
101

(1997) no tocante aos processos étnicos e nacionais e à relação do sistema de gênero


envolvido, onde as mulheres são vistas como reprodutoras biológicas e culturais,
assim como extensão das fronteiras dos territórios.
Em outro sentido, como analisado por Gambini (2000) essas mulheres que eram
também vistas como corpos passíveis de violência e “satisfação dos desejos dos
homens”, já que não eram reconhecidas pelos valores atribuídos às mulheres brancas
europeias, por exemplo, assim, legitimando a violência contra estas. Assim, idéias
como a de que mulheres devem ser protegidas, que se pautava para mulheres brancas
não era aplicado da mesma forma para mulheres negras e indígenas, por exemplo.
Vieira (2018) aponta que mesmo quando as primeiras figuras públicas
defenderam o fim da escravidão como pré­requisito para o desenvolvimento nacional,
principalmente José Bonifácio e Joaquim Nabuco, havia em seus discursos um tom que
direcionava a questão não à escravidão em si e suas consequências, mas como uma
forma de “conciliar”, “harmonizar” as relações raciais no país, o que também seria
futuramente defendido por Gilberto Freyre.
Não à toa, as políticas no século XIX foram marcadamente de branqueamento,
como uma estratégia de diluir a tensão racial no Brasil, que durante o período da
Regência e ao longo de todo o restante do século eclodiram em diversas revoltas,
revoluções e lutas de resistências em quilombos e contra os próprios escravocratas em
diversos cantos do país.
O que durante muito tempo se deu como uma política de miscigenação em
grande parte violenta sofreu mudanças a partir do século XIX, visando um
branqueamento da sociedade brasileira não apenas pela miscigenação, mas por:
Políticas de incentivo a imigração de alemães, italianos e espanhóis
foram intensas no decorrer do século XIX e XX. Com o
branqueamento da nação pretendia­se atingir uma higienização moral
e cultural da sociedade brasileira. Clarear a população para progredir
o país passou a ser um projeto de nação defendido no século XIX,
mas que avançou pelo século XX. Projeto que envolvia eugenização
e a higienização social enquanto políticas públicas. (Petean, 2012, p.
37)

Antônio Carlos Lopes Petean (2012) analisa sobre o período que teorias do
chamado racismo científico, como propagado pelo Conde de Gobineau, influenciaram
as políticas eugenistas que visavam um branqueamento da população e ele estabelece
uma relação direta entre um projeto de nação brasileira, a ideia de desenvolvimento e
progresso, atrelado à questão racial e, adiciono também, de gênero, já que muitas das
102

políticas eugenistas e de embranquecimento têm como fundo além da questão racial


também a própria relação de reprodução sexual.
Logo, percebem­se os eixos da colonialidade no Brasil e na Amazônia desde a
colonização, o processo de catequização e as políticas de “branqueamento” como
elementos predominantes da lógica de colonialidade também na definição de projeto
nacional em que a região será inserida e incentivada pela colonialidade do saber e do
ser a perseguir o ideal europeu de modernização.
Significa dizer que as políticas de desenvolvimento e como as regiões do país
são situadas nesse processo, assim como suas populações, não são dinâmicas
estritamente econômicas. Elas também carregam construções sociais dos lugares e
comportamentos que encaixam os sujeitos e as sujeitas, de modo a serem lidos
socialmente como compatíveis ou não com esse projeto.
E o que se trata aqui é que nesse projeto de nação, historicamente, homens e
mulheres foram subalternizados e marginalizados nessa lógica como partes
incompatíveis desse projeto seja por questões de gênero, raciais e de classe, ao passo
que a sociedade apresentava como caminhos possíveis para a “inclusão” nela a
assimilação dos valores ou o extermínio de sua existência, como exemplificado pelas
políticas de branqueamento e eugenia do século XIX e XX citadas acima e também as
do início da colonização no século XVI em diante.
Acredito que pensar o futuro a partir dos projetos de vida de mulheres na região
pode desenhar uma linha de encontro para pensar as macropolíticas e a infrapolítica
(Lugones, 2014) a política a partir de dentro enquanto resistência, para se perceber
como a colonialidade opera em nossas vidas e como nossas subjetividades, a partir de
nossas posicionalidades, se produzem.
Ao vislumbrar o próprio futuro, o que se compreende como uma boa vida, os
valores importantes, o que é desejado e o que não é, e quando; ao se sonhar e pensar no
tempo que ainda vem como será possível chegar lá.
103

5 A CABANAGEM COMEÇOU AQUI

O Amazonas e todo o caminho por água


desde Cametá até entrar neste Rio precisa ser
limpo, e tem que custar algumas vidas.
(General Soares d’Andrea, 1835)
Após o retorno a Belém e alguns meses de reelaboração da questão da pesquisa,
agora se voltando para as mulheres e seus projetos de vida no Baixo Tapajós em
relação ao contexto desenvolvimentista do Complexo Hidrelétrico do Tapajós, uma
segunda visita foi preparada, agora com destino ao rio Arapiuns, afluente do Tapajós.
A viagem ocorreu entre os dias 29 de março e 3 de abril de 2018.
O interesse em conhecer a região se deu pela fala de Cris, que já havia ido à
Comunidade da Coroca e outras, para atendimento na sua atuação como psicóloga
comunitária. Nesse período, também havia acabado de chegar a Alter­do­Chão uma
amiga de Cris, também psicóloga e do Rio de Janeiro, Fernanda.
Na passagem por Belém, antes de chegar ao seu destino final, Fernanda ficou
hospedada em minha casa, o que levou a diversas conversas sobre as perspectivas de
futuro que a mesma tinha sobre a mudança para Alter­do­Chão. A situação que levou à
decisão era similar à de Cris: um trabalho importante e bem remunerado, mas que não
compensava mais um estilo de vida numa cidade que apesar de gostar, apresenta um
quadro de violência e insegurança crescente.
Já havia alguns anos que ela cogitava sair do seu emprego e mudar para um
lugar mais calmo e por viajar muito já havia conhecido vários lugares que cogitou
como possíveis novas moradas. Alter­do­Chão acabou sendo escolhido por ela pelo
fato de conseguir ter os elementos de vida tranquila e em contato com a natureza, mas
também pelo fáci, devido à proximidade com Santarém e com o aeroporto, assim como
a disponibilidade de Internet e sinal de celular, o que facilitaria o seu contato constante
com familiares e amigos.
O processo de adaptação e transição de Fernanda apresentou empecilhos
diferentes e se deu de modo mais lento que o de Cris, entre sentir a falta da estrutura
das cidades e a própria proximidade da natureza e seus bichos. Após a chegada, que
havia sido planejada financeiramente, começaram a aparecer incertezas de conseguir
um emprego na sua área de formação, o que não demorou a tardar, já que ambas foram
selecionadas para serem as psicólogas de uma pesquisa a ser desenvolvida em diversas
104

cidades da região. Entretanto, Cris demorou muitos anos para conseguir voltar a atuar
na sua área, trabalhando de outras formas para conseguir manter sua sobrevivência.
Foi interessante perceber que tendo as duas a mesma formação, a mesma faixa
etária, sendo ambas solteiras e sem filhos e oriundas da mesma cidade, a adaptação foi
sentida de modo diferente. Os casos de racismo relatados por Cris e por outras pessoas
que a conhecem demonstraram um caráter específico na percepção das pessoas de a
reconhecerem pelas suas capacidades e formação profissional.
O processo de mudança de Cris se deu visando realmente começar uma nova
vida do zero. O trabalho não era sua prioridade, por isso, não houve também relutância
em exercer outros ofícios, enquanto Fernanda tinha a preocupação constante e crítica
em relação a sua sobrevivência financeira, buscando contatos na região antes mesmo
da mudança. Ainda assim, para ajudar nas despesas ela se aproximou de outras
mulheres de Alter que fazem uma feira de venda de produtos naturais onde começou a
vender pães orgânicos.
Figura 12. Fernanda e Cris

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Abril de 2018)

Nós três fomos então conhecer o rio Arapiuns, a Comunidade da Coroca e a de


São Miguel (parte da Resex Tapajós­Arapiuns). O trajeto foi feito a partir do porto de
105

Santarém, de onde saímos às 12:00 horas e chegamos por volta das 14:00 horas. Nesse
dia a viagem foi rápida por conseguirmos ir de lancha e o tempo estar bom.
Por estarmos com Cris, fomos recebidas na casa de Dona Elzanira, que mora
com o seu marido, Seu Nicolau (Colau), com seus filhos (três meninas adolescentes e
um menino) e sua neta de 9 anos. A chegada ao Arapiuns e à Coroca foi marcada pela
onipresença do rio na paisagem, que no período estava ainda na cheia.
Figura 13 – A vista da casa de Dona Elzanira e Seu Colau para o Rio Arapiuns

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Março de 2018)

Todas as casas à beira do rio e a sensação de amplitude do Arapiuns e do céu


marcam a característica do lugar, com os típicos tons azulados e prateados do Tapajós
e seus afluentes em contraste com o verde da floresta e o branco da areia. A casa de
Dona Elzanira é uma das últimas da comunidade, um pouco distante do centro do
vilarejo. A recepção é calorosa, principalmente pelo retorno de Cris.
A Comunidade da Coroca é bem pequena, tendo aproximadamente 80
moradores. A relação com as outras comunidades próximas ­ principalmente Vila
Brasil, Vila Gorete e São Miguel – é feita por barcos. Apesar de haver uma estrada que
possibilite a chegada a outras comunidades, o principal meio de transporte são as
bajaras, canoas e rabetas, movidas à diesel, crucial para as crianças irem à escola
(normalmente na Vila Brasil ou em São Miguel), para a pesca e o transporte por outras
necessidades (inclusive para viagens mais longas como as idas a Santarém, em
embarcações que podem levar até 4 horas, dependendo do vento). Até poucos meses
106

antes da visita, o diesel também era essencial para a geração de energia; a energia
elétrica chegou havia pouco tempo.
Figura 14 – Casa de Dona Elzanira e Seu Colau na Comunidade da Coroca, Arapiuns

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Março de 2018)

A comunidade possui dois barcos próprios para o transporte escolar e a pesca,


construídos e mantidos pela própria associação de comunitários. Recentemente, a
comunidade passou a desenvolver o turismo, fluxo atraído pela popularização dos
trançados do Arapiuns. Os trançados típicos da região são feitos de palha de tucumã e
normalmente são tingidos com corantes naturais (jenipapo, urucum, crajiru e outros).
São feitos diversos produtos a partir da técnica, mas principalmente cestaria, mandalas
e descanso de panela, mas atualmente também fazem bolsas e outras variações. Muitas
comunidades do rio Arapiuns produzem os trançados que são importantes
economicamente junto com o turismo.
Os trançados de palha são identificados também como parte das culturas dos
povos indígenas do Arapiuns, sendo hoje produzidos por comunidades que se declaram
indígenas, mas também pelas que não se consideram indígenas. Os padrões e as cores
utilizadas têm características específicas em cada comunidade, assim como dependem
da artesã ou do artesão, em que podemos identificar a identidade de cada um.
Geralmente, nas comunidades que visitei, as mulheres são as principais artesãs,
mas os homens também sabem fazer e alguns fazem também para a venda, de toda
forma, o processo produtivo envolve toda a comunidade. A popularidade dos trançados
tem alcançado os mercados nacionais e internacionais também, e combinado aos
107

atrativos naturais do rio e da região, principalmente na época da seca, tem levado


grupos de turistas de São Paulo à região.
As filhas adolescentes de Dona Elzanira estavam mudando para a escola da
comunidade de São Miguel que fica na outra margem do rio, na mesma direção da
Coroca, pois a escola da Coroca só abarca a formação do primeiro ciclo do ensino
fundamental.
Uma das suas filhas mais velhas se mudou para Manaus, mas por conta da
dificuldade da adaptação da neta de Dona Elzanira à cidade, a menina voltou a morar
com os avós. Na fala dela, a cidade era ruim, quente, não tinha o rio e a sua liberdade
de andar pelo mato, vendo os bichos e tomando banho todos os dias, além da falta do
restante da família, especialmente da avó. Parece inegociável com ela voltar a morar
em Manaus com a mãe.
Quando durante um banho perguntei a ela sobre o seu futuro na Coroca ela
apontou que, por ela ficaria ali pra sempre, mas que provavelmente quando sua avó
vier a falecer ela teria que ir morar com a mãe e que sentia muito por isso.
A pouca idade dela é inversamente proporcional ao seu conhecimento. Foram
aulas e aulas que tive sobre o rio, pesca, mas principalmente sobre o seu tema preferido
que são as frutas e os animais. A cada canto de pássaro, prontamente éramos
informadas de quem cantava e por cada árvore passada as funcionalidades eram
listadas.
Já as adolescentes estavam preparando atividades para a aula de inglês de um
professor visitante, que tinha como objetivo capacitar os moradores para o turismo
estrangeiro, muito comum na região.
Dona Elzanira tem irmãs que moram em Santarém e também na Vila Brasil,
outra comunidade do Arapiuns, o que faz com que constantemente ela esteja passando
alguns dias ou semanas nos locais (sempre acompanhada da neta). As visitas a
Santarém são principalmente para questões de saúde: consultas, acompanhamentos,
tratamentos e exames.
Ao conhecer o restante da comunidade tendo como guia uma jovem recém­
casada e grávida que havia se mudado para a comunidade por conta do marido, a
mesma cita que as condições de vida ali eram melhores para a família. O turismo ainda
em expansão na comunidade tem como atrativo o lago em que se criam tracajás e
tartarugas, a apresentação da criação de abelhas que além do mel produz também
sabonetes e outros itens para venda.
108

O ponto alto costuma ser conhecer a loja da Associação Trançados do Arapiuns


(ATA), ofício feito majoritariamente por mulheres. A presidência da associação é
localizada na Coroca e recebe os trançados de todas as comunidades do Arapiuns,
responsável também pela distribuição do artesanato para lojas em Santarém e
exportação para outras cidades (como Belém e São Paulo).
O projeto de organização e resgate da cestaria dos trançados de palhas de
tucumã foi articulado pelos próprios moradores em parceria com a ONG Projeto Saúde
& Alegria e com financiamento internacional. Atualmente, todas as dimensões são
coordenadas pela própria associação. Na loja da ATA é possível prontamente perceber
a identidade artística de cada artesã: as cores, os padrões de desenho e os formatos. Os
trançados normalmente são identificados pelo nome de quem os fez.
Apesar da abordagem inicial da pesquisa ter sido de propor a reflexão a partir
da possibilidade real da construção de barragens no rio Tapajós às proximidades de
Itaituba, a pesquisa exploratória no rio Arapiuns despertou (num contexto diferente) a
reflexão sobre a dificuldade da apreciação da discussão de futuro e projetos de vida
buscando inserir o fator das hidrelétricas.
Já no Arapiuns e, na Coroca especificamente, foi possível notar outras tensões
não tão perceptíveis ou até mesmo ausentes da dinâmica territorial em Alter­do­Chão e
na Flona, em Jamaraquá. Pela sua condição de projeto de assentamento
agroextrativista, a presença de madeireiros na proximidade, a compra de terras na
própria comunidade por paulistas e a construção de pousadas sem dialogar com a
comunidade, contextualizam a Coroca para muito além das hidrelétricas, mas trazem à
superfície outros elementos inerentes ao debate desenvolvimentista como as dinâmicas
do capitalismo e da modernidade em si.
Assim, mais uma vez, uma nova redefinição do tema se fez a partir da vivência,
mostrando­se necessário também um aprofundamento sobre o contexto histórico
específico da região do Tapajós além do panorama geral amazônico. A Cabanagem,
por exemplo, que costuma ser referenciada como um movimento baseado nas
populações urbanas da Amazônia é muito contada por moradores da região,
principalmente do rio Arapiuns.
Diversas comunidades na região foram referências de resistência e articulação
da revolta popular, com destaque para algumas situadas no Tapajós­Arapiuns: Vila
Franca, Cuipiranga, Alter­do­Chão e Pinhel. Na obra Nheengatu Tapajowara (2016, p.
109

18) coloca­se que “a Cabanagem começou aqui. A luta começou no interior e se


espalhou até chegar a Belém. Várias lutas se juntaram”:
As batalhas que aconteceram nesses lugares deixaram muitos mortos
e muito sangue foi derramado. Pinhel, Vila Franca e Cuipiranga e
outros lugares ainda têm as marcas daquele tempo. Os ossos daqueles
mortos se misturaram com os restos de cerâmica na terra preta. A
areia de Cuipiranga ficou avermelhada após a Cabanagem. Nossos
avós disseram que veio do sangue dos que morreram ali.
Essas histórias foram passadas de geração por geração por quase 200
anos. Nossos avós precisaram falar escondido, ou ficar calados. Mas,
hoje eles falam mais, para guardar a memória dos que lutaram. Por
causa deles, nós ainda hoje vivemos na nossa terra. Porque ainda hoje
nós, indígenas do rio Tapajós e Arapiuns, lutamos pela demarcação
dos nossos territórios. (id.)

A Cabanagem também é referida localmente como a Guerra do Quebra­quebra,


e, para Vaz Filho (2010), os cabanos não foram derrotados, já que, apesar de ao fim
terem perdido o controle político, lograram defender e manter seus modos de vida, que
iam de encontro à imposição portuguesa. No contexto, representada pela presença das
elites no Império durante a Regência, que reproduziam, apesar da independência, os
mesmos padrões de relações colonialistas.
A Cabanagem tem como consequência a morte de grande parte da população
local, estima­se que pelo menos 40 mil foram as mortes durante o período, o que
também teve como consequência um processo de difusão da população para o interior
e a formação de novas comunidades (Vaz Filho, 2010).
É nesse século que se registra um grande desaparecimento de etnias, “as mais
de uma centena de etnias registradas nos séculos XVI, XVII e XVIII, chave da
compreensão etnográfica do território, “desaparecem” no século XIX” (Beltrão e
Lopes, 2016, p. 25). Tal processo, na verdade, não significa um desaparecimento real,
já que uma forma de resistência adotada é o abandono de nomes e práticas culturais
associadas à cabanagem, no contexto já analisado de caboclização.
Apesar disso, mantêm­se vivas tanto partes das culturas e seus hábitos, como
também as narrativas das insurgências e lutas locais e a referência ao “tempo dos
avós”, ao “tempo que foi”, cujas histórias “hoje, orientam o enfrentamento das
adversidades resultantes das violências sofridas, e os narradores revelam histórias,
atualizam algumas e a ação das lideranças fortalecem as lutas e dão sentido à realidade
vivida” (id.).
O primeiro ciclo da Borracha (1879­1912) e, mais tarde, o segundo ciclo (1942­
1945), impulsionaram a chegada de muitos imigrantes principalmente vindos do
110

nordeste. Novas formas de ocupação, de relação com a terra e a floresta se encontram


com o modo de vida dos habitantes locais e que, futuramente, formariam um novo
grupo social ligado à extração do látex, como os seringueiros.
No século XX, as políticas voltadas para a ideia de “integração nacional” da
região incutiram ainda mais profundamente as raízes de um dito projeto nacional,
idealizado pelas elites nacionais e reproduzido pelas elites locais, em que a ideia de
“melhoria” pautava­se pelos parâmetros de parecer cada vez mais com os parâmetros
“civilizados”, onde uma sociedade desejada seria cada vez mais embranquecida,
catequizada e europeizada pelos seus parâmetros morais, como demarca o período da
“Belle Époque” (1870­1913).
Menéndez (1992) aponta que o processo recente de ocupação só se completou
entre 1950 e 1970, a qual havia começado no século XVII com os aldeamentos
jesuíticos entre 1680 e 1775. Durante esses séculos a presença da igreja continuou, mas
ficou menos intensa entre a expulsão dos jesuítas até o início do século XX, quando
franciscanos estadunidenses começam a chegar à região, o que será intensificado no
ano 1945.
Nesse período, percebe­se o declínio da pajelança, um dos elementos que Vaz
Filho (2010) destaca como centrais para a reorganização étnica no Tapajós­Arapiuns, a
qual se manteve forte durante todos esses séculos na região. Entretanto, em meados do
século passado passou por um enfraquecimento devido às ações de religiosos na
propagação da visão de que seria tais práticas seriam “coisa do Diabo” (id.).
Vaz Filho (2010) comenta que junto à maior presença da Igreja na região houve
também a chegada de agentes de saúde, os quais costumam compartilhar do desprezo
pelos sistemas culturais de saúde como a pajelança. Contudo, apesar de sua
diminuição, várias práticas ainda estão presentes nas comunidades.
E é entre os anos de 1960 e 1980, durante a ditadura civil­militar no país, que
os estudos de Vaz Filho (2010) e do padre Edilberto Sena (2014) destacam a atuação
da formação de sindicatos e da Igreja Católica, principalmente pela vertente dos
adeptos da Teologia da Libertação, na formação de lideranças comunitárias e de
educação como o Movimento de Educação de Base (MEB).
Especificamente nos anos 1970, Sena (2014) destaca em sua obra, “Uma
revolução que ainda não aconteceu”, diversos movimentos sociais que ganharam força
durante as últimas décadas do século XX que, por inúmeros fatores acabaram
enfraquecidos atualmente, tais como o Grupo de Defesa da Amazônia (GDA), criado
111

em 1979 a partir dos estudos realizados por grupos ligados à Igreja e à Teologia da
Libertação; o Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém (STTR),
iniciado em 1974 e que muito contribuiu para impulsionar a mobilização política local
e a encabeçar situações críticas durante o período.
Outros movimentos que tiveram influência no contexto das últimas décadas do
século XX na região foram o Grupo de Consciência Indígena (GCI), que surgiu em
1997 em Santarém, a partir de um grupo de estudos religiosos e indígenas que reuniam
religiosos e leigos católicos que se identificavam como indígenas, assim como o
Conselho Indígena dos Rios Tapajós e Arapiuns (CITA).
Sena (2014) destaca como uma característica forte da região a trajetória de
resistência em diversos contextos e frentes, mas principalmente entre os anos 1970 e
1990, o que, como já comentado anteriormente, teria sido enfraquecido nos anos 2000
a partir da chegada do PT ao governo do país.
Entre outros casos de movimentos bem­sucedidos, ele destaca a Associação da
Organização das Mulheres Trabalhadoras do Baixo Amazonas (AOMT­BAM) em
1990, que surgiu a partir de 12 grupos de mulheres de 12 municípios da região, cuja
mobilização também teve origem nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja
Católica e no âmbito da Teologia da Libertação formada por “mulheres trabalhadoras
rurais, domésticas, professoras, trabalhadoras na saúde de base, comerciárias,
empregadas domésticas, e outras; são mulheres empobrecidas e de diversas faixas
etárias, inclusive crianças, adolescentes e jovens” (Sena, 2014, p. 129).
O movimento das mulheres causou muito impacto na região, principalmente no
combate à violência doméstica, no incentivo à escolarização (que aumentou
consideravelmente a participação de mulheres no ensino superior); também houve
importância da associação para o respeito às profissionais do sexo e também o trabalho
de prevenção de IST/AIDS; ademais, a organização começou a compor diversos
conselhos municipais, fóruns e conferências (id.).
Atualmente, pode­se destacar o Movimento Tapajós Vivo, criado em 2009,
como uma das iniciativas que têm tentado encabeçar e mobilizar outros movimentos,
associações, organizações e a população contra os novos projetos que ameaçam a
realidade local, principalmente o Complexo Hidrelétrico do Tapajós.
O movimento surge no contexto de comoção nacional diante da situação de
Belo Monte, cenário que também impulsiona a articulação de movimentos de
mulheres, principalmente indígenas, de maneira mais formal na região.
112

E é particularmente no cenário de início da crise política no país que se percebe


uma articulação mais pujante, entre 2013 e 2015, o que se dá no panorama tanto pós­
Belo Monte e a aproximação com a possibilidade de hidrelétricas no Tapajós, como
também se localizam no cenário de agravamento após a reeleição de Dilma Rousseff,
que levaria em 2016 ao seu impeachment e o início do governo Temer.
A questão também terá como pano­de­fundo a demanda de muitas mulheres em
movimentos sociais nacionais por mais representatividade nas lideranças políticas e
pautando também questões específicas da situação feminina no debate sobre os
impactos de grandes obras. Destaca­se, por exemplo, a questão da violência de gênero
e a exploração sexual, dinâmicas presentes em canteiros de obras e decorrentes do
grande fluxo migratório (de predominância masculina) para as localidades dos
empreendimentos e proximidades.
Ainda em 2013 o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) publica em
seu site oficial uma crítica à política energética do Brasil, onde indaga para quê e para
quem seria a energia que o discurso desenvolvimentista tanto defende e impulsiona a
implementação (MAB, 2013). O texto discorre também como as mulheres são as que
mais têm seus direitos violados e são atingidas de forma mais intensa pelos
empreendimentos.
O MAB (2013) argumenta que isto se dá por inúmeros fatores como por conta
do não reconhecimento do trabalho das mulheres no mesmo patamar dos homens que
leva a indenizações menores e menor remuneração para trabalhos normalmente
precarizados; o conceito de atingido utilizado pelas empresas também é criticado já que
costuma considerar atingido apenas quem é proprietário de uma terra, ou seja, usa­se
um critério territorial­patrimonialista, o que é desvantajoso já que mulheres ainda são
absurda minoria dos titulares de propriedades e terras no Brasil.
São discutidas também as contradições do modelo energético que tem como
consequência a própria precarização do cotidiano das tarefas diárias pela falta de água
e também energia para mulheres, apontando também a ausência das mulheres nos
espaços deliberativos por não serem muitas vezes reconhecidas como capazes para
representar os interesses dos grupos e sendo preteridas para tal.
O texto do MAB (2013) analisa o caso de Belo Monte e destaca que as
mulheres são muito impactadas pelos deslocamentos, já que por serem normalmente as
responsabilizadas pelos cuidados de crianças e outros familiares, os remanejamentos
rompem laços comunitários e de solidariedade e atinge também grande maioria
113

populações ribeirinhas e indígenas, normalmente com altos índices de analfabetismo,


sendo as mulheres grande parte. Isto também inviabiliza e dificulta tanto a negociação
honesta com as empresas como também uma possível realocação no mercado de
trabalho ou o desenvolvimento de outros modos de sobrevivência quando a pesca, a
plantação e a caça não são mais possíveis.
Em 8 de março de 2016 foi publicada a Carta das Mulheres do Tapajós, onde
mulheres de diferentes grupos sociais urgem por políticas que levem em consideração
as exigências das mulheres nas áreas: a) de segurança pública (abrigos e profissionais
para abrigos e profissionais para atendimentos de mulheres vítimas de violência e
aplicação de leis como a do feminicídio, Maria da Penha e o funcionamento da
delegacia da mulher); b) saúde (Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), campanhas
voltadas para a saúde da mulher (câncer de mama e colo uterino, zika) e convênios); c)
social: um Plano Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres do Campo e da
Cidade, reativação do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres, cumprimento da
Convenção 169 da OIT e consulta prévia para a população que será atingida pelo
Complexo Hidrelétrico do Tapajós.
Os pontos citados acima demonstram que as mulheres têm se organizado e
buscado pautar a demanda por políticas que são percebidas e notadas no cotidiano e
que muitos outros movimentos sociais não pareciam mais suficientes para a exposição
e atenção das questões. Outros âmbitos também podem ser incluídos como o direito à
terra, a exploração sexual no entorno de grandes obras e as condições precárias de
trabalho generalizadas, dos impactos causados à natureza e atingindo diretamente o
modo de vida e a sobrevivência das comunidades.
Sobre a exploração sexual, o texto do MAB de 2013 relata que “nos espaços de
construção das hidrelétricas, as mulheres são mais uma mercadoria de entretenimento
para distração dos operários” (MAB, 2013), o que, mais uma vez, a forma da opressão
da colonialidade pautado em gênero, raça e classe, numa sociedade capitalista.
Em um documentário produzido entre 2015 e 2016 pelo MAB com a Christian
Aid e apoio da União Europeia intitulado “Direitos das Mulheres Atingidas por
Barragens”21 no Tapajós, diversos depoimentos de mulheres e suas visões das políticas
para a região seguem essa mesma linha.

21
MAB. Direitos das mulheres atingidas por barragens. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=C5u0KxMxP74.
114

A liderança Alessandra Munduruku declara que “mexer com o rio é o mesmo


que mexer com um filho”, enquanto outras mulheres como Lorena apontam a ilusão do
discurso do desenvolvimento que, na verdade, “só traz desgraça”; transforma os
lugares que antes as pessoas chegavam otimistas em busca de uma vida tranquila e um
“bom lugar para criar os filhos” (MAB, 2016). O rio também é referenciado como a
base da vida de todas as comunidades como fonte de sobrevivência, alimento, higiene e
também lazer.
Em janeiro de 2018 ocorreu o Encontro de Mulheres Indígenas do Baixo
Tapajós, promovido pelo CITA com o objetivo de fortalecer a luta e o
compartilhamento de experiências e demandas das mulheres indígenas. O texto escrito
por Camila Behrens, Giuliana Henriques e Luana Kumaruara (2018) para o blog
Combate Racismo Ambiental sintetizou elementos percebidos no encontro:
Dentre os diversos descontentamentos apontados, as constantes
tentativas de deslegitimação da influência política feminina, a falta
de uma rede de apoio dentro de casa e o medo de que as futuras
gerações não consigam sustentar a força da tradição e dos
movimentos são os mais frequentes. No entanto, hoje é crescente a
presença dessas mulheres dentro da universidade fazendo diferentes
cursos e ocupando mais esse espaço, que outrora não tinham acesso.
Além de ampliarem sua formação, são ponte de informação entre a
cidade e a aldeia, levando notícias, acontecimentos, explicando os
direitos das mulheres e dos povos indígenas e os resultados de suas
pesquisas. (id.)

Os pontos abordados revelam como a luta das mulheres possui idiossincracias,


as quais estão enraizadas em uma cultura patriarcal, mas, apesar disso, o fato
demonstra também mudanças e conquistas têm sido feitas em busca de legitimação do
espaço de direito a elas. Entretanto, o fortalecimento recente dessas articulações ganha
novos contornos, visto que acabam se intensificado a partir das crises políticas durante
os governos do Partido dos Trabalhadores (2003­2016) e as próprias críticas feitas
sobre as políticas voltadas para a região, que mantiveram a mesma linha
desenvolvimentista.
Sena (2014) aponta que o enfraquecimento das históricas iniciativas e
movimentos acaba se dando pela cooptação e alinhamento direto com o emergente
Partido dos Trabalhadores (PT) que com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva no
início dos anos 2000, acaba por contribuir decisivamente para o afastamento das
lideranças – ao cooptá­las para cargos no executivo e lançá­las ao legislativo ­ e
115

também levando a certo comodismo, depositado na esperança de que o então governo


enfim pautaria questões de interesses de suas bases:
(...) Essas lideranças que faziam bom trabalho nos sindicatos e
movimentos sociais, provavelmente por falta de uma consciência
madura do trabalho revolucionário da libertação e de sua categoria e
a defesa de soberania e dignidade dos povos da Amazônia. Tanto é
que hoje a Amazônia é considerada a coroa de ouro do
crescimento econômico do país, à custa da destruição dos povos e
do ambiente da região, sem que nenhum dos antigos lutadores da
Corrente Sindical Lavradores Unidos se levante contra tal
perversidade promovida pelo governo Dilma Rousseff. Vários deles
ocupam cargos federais bem remunerados e ainda defendem as obras
do PAC que destroem a Amazônia. (Sena, 2014, p. 53, Grifo nosso)

Ele discorre criticamente que os governos de Lula e Dilma Rousseff darão


continuidade às políticas de cunho desenvolvimentista para a região, com destaque
para o Programa de Aceleramento do Crescimento (PAC I e II) e, com muita
notoriedade, o caso da Hidrelétrica de Belo Monte e também os planejamentos de
execução do Complexo Hidrelétrico do Tapajós. Inclusive, tendo antigas lideranças
apoiado e defendido as políticas que continuam reproduzindo a lógica
desenvolvimentista e de um projeto nacional acima dos povos amazônidas.
Este ponto se faz importante por dois motivos: o primeiro, é que apesar da
mudança ideológica/de espectro político possível no governo federal, em linhas gerais,
a visão sobre a Amazônia possui certo continuum, de ser a matriz do desenvolvimento
do resto do país, atendendo às necessidades de outras regiões tidas como referências do
paradigma da modernidade; e, o segundo, é a noção de que mesmo inserido na lógica
de exploração e marginalização, o agenciamento dos interesses pode levar a sujeitos
envolvidos na defesa de seus direitos a serem cooptados e passarem a ser, eles
próprios, apoiadores de políticas que vão de encontro muitas vezes contra a própria
manutenção do seu modo de vida.
É comum na região a pressão, tanto do governo quanto de multinacionais, por
meio da recompensa financeira para conseguir o apoio político para entrada nos
territórios. Contudo, alguns grupos permanecem denunciando as práticas, enquanto
outros acreditam que a entrada do capital é sinal de melhoria de vida:
Nem o GDA reage, nem o STR enfrenta mais essas desgraças. E
mais, com a entrada do Programa de Aceleração do Crescimento
econômico, o PAC, poucos reagem e aqui, justiça se faça, as
remanescentes do GDA, que ainda subsiste precariamente, tomam
posição de resistência, participando de um novo Movimento Tapajós
Vivo. Mas a nova geração do STR não dá sinais de preocupação com
116

as hidroelétricas planejadas e em andamento na região. (Sena, 2014,


p.93)

As dissensões citadas também remetem à dinâmica citada anteriormente sobre o


processo de reorganização étnica no Tapajós­Arapiuns, entre os que vão resgatar e se
declarar como indígenas e aqueles que não se identificam assim, mas com outras
identidades territorializadas como ribeirinhos, extrativistas, quilombolas, entre outros;
sendo importante frisar que tal processo não ocorre exclusivamente na região do
Tapajós, mas também em outros lugares da Amazônia e do Brasil. Este contexto é
crucial para compreender a criação de algumas formas de organização socioterritorial
na região como a RESEX Tapajós­Arapiuns.
A emergência étnica nos anos 1980 e o contexto na qual se dá, já anteriormente
citada, assim como sua relação com a Constituição Federal de 1988 modifica as
dinâmicas em relação aos direitos dos povos da região, que passam a instrumentalizar e
articular movimentos para garantir seus acessos.
Enquanto a segunda metade do século XX é marcada pela expansão predatória
de atividades econômicas como a mineração, a pecuária e a indústria madeireira, mais
as populações articulam­se em movimentos sociais e associações, principalmente com
apoio do Sindicato dos Trabalhadores Rurais e de grupos da Igreja e outras ONGs.
Assim, ameaças nítidas as suas formas de vida começam a despertar ainda mais
o senso de pertencimento e autodefinição identitária, assim como os movimentos nos
anos 1990 que resultam na criação de muitas unidades de conservação – a partir da
atuação também de outros agentes, como a comunidade epistêmica da biologia da
conservação (Moura, 2007). Sobre a mobilização da criação da RESEX, Vaz Filho
comenta inclusive a sua atuação nesse contexto:
Eu ajudava na recuperação da consciência histórica dos moradores e
na revalorização dos seus costumes como algo que eles deveriam ter
orgulho. Minha mensagem era que eles eram os herdeiros dos
primeiros donos da floresta e, portanto, donos da terra, e poderiam se
tornar, novamente, sujeitos da sua história. Relembrava as primeiras
lutas da resistência indígena em defesa da terra, dando ênfase à
guerra da Cabanagem (1835­1840), que continuava viva na memória
dos mais velhos, valorizando o uso do chibé e do tarubá durante as
reuniões como símbolos dos costumes locais. Um dos resultados
desse processo de reuniões, estudos e audiência com autoridades foi
uma mudança na autoestima dessas pessoas. Elas passaram a se
orgulhar mais da sua história e dos seus costumes, além de se
sentirem reconhecidas como sujeitos de direitos. (Vaz Filho, 2010,
p.115)
117

A RESEX Tapajós­Arapiuns é criada em 1998, culminando em uma vitória


para a população local e a expulsão de empresas madeireiras e mineradoras,
consolidando as comunidades e famílias que já viviam na região. A negociação
coletiva também se deu no caso do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) do
Lago Grande e da Flona Tapajós (ver Figura 15).
Figura 15 – Mapa de ecoturismo Santarém e Belterra com loci da pesquisa em destaque:Vila de
Alter-do-Chão, Comunidade de Jamaraquá (Flona Tapajós) e Comunidade da Coroca (Rio
Arapiuns)

Fonte: SEMTUR Santarém. Disponível em:


https://amigosdoturismo.files.wordpress.com/2010/10/mapadoecoturismoemsantarc3a9mebelterra­
verso.jpg
A Coroca faz parte de outro tipo de organização socioterritorial: o PAE do
Lago Grande, que abarca 140 comunidades e aproximadamente 35 mil pessoas. Dentro
dessa grande extensão territorial, a Coroca é uma pequena comunidade de algumas
famílias de entre 80 e 100 pessoas (contando os filhos da comunidade, que apesar de
não mais residirem, costumam visitar e atuar na associação, participando ativamente de
decisões).
A comunidade é o ponto de encontro do artesanato de trançados de palha do
Arapiuns. A Associação de Trançados do Arapiuns (ATA), criada em 2006, tem a sua
sede na vila e, assim, concentra na mesma as produções de outras comunidades. Logo,
118

apesar de pequena em comparação com outras comunidades, a vila possui grande


relevância para a região.
O fato de a pesquisa ser executada em locais que apresentam diferentes
organizações políticas, sociais e culturais de territórios também poderá refletir a
influência nos projetos de vida dos habitantes. Em Alter­do­Chão, por exemplo, há um
número maior de moradores, além de um intenso fluxo de viajantes e turistas
brasileiros e estrangeiros, além da proximidade e maior facilidade de acesso à
Santarém, assim como alguns serviços de saúde e educação, ainda que, por outro lado,
a presença das tensões com o capital e a urbanização desta vila estejam em um nível
intenso nos anos em que a pesquisa se deu.
Alter­do­Chão é uma Área de Proteção Ambiental (APA), sendo uma categoria
de uso sustentável, segundo as categorias do SNUC (Brasil, 2011), com “ocupação
humana, com atributos bióticos, abióticos, estéticos ou culturais importantes para a
qualidade de vida e o bem­estar das populações humanas” (ICMBio, 2019, s/p). Os
assentamentos nessas áreas ainda são fortemente regulamentados, a fim de preservar o
bem­estar das populações tradicionais e proteger a diversidade natural sendo uma fonte
de conflito, especialmente considerando a forma como o turismo e o setor imobiliário
têm atuado na região, por exemplo, pela pressão pela verticalização.
As diferentes categorias do SNUC implicam nas formas de uso do território,
processos deliberativos e da legislação ambiental. No caso da APA, a
circulação/visitação de pessoas não é condicionada, como no caso das Florestas
Nacionais, que é permitida de acordo com as normas estabelecidas para o manejo da
unidade.
Em Jamaraquá, embora exista certa proximidade dos centros urbanos de
Belterra e Santarém (distantes no máximo 2 horas por terra), a comunidade conta com
dificuldade de acesso por terra dada a má qualidade da estrada dentro da Flona. Além
disso, registra­se a dependência do serviço de ônibus (administrado pelos próprios
moradores), que possui horário fixo, com pouca frequência de saídas e retornos. Tal
situação dificulta o acesso, principalmente, ao serviço de saúde (ainda não presente na
principal comunidade da Flona, Maguari) em casos de emergência.
A comunidade também costuma receber um grande fluxo de pessoas em busca
do turismo de base comunitária, que chegam à Flona seja por terra (ônibus ou carro) ou
pelo rio, normalmente saindo de Alter­do­Chão. Por outro lado, a categoria de Floresta
Nacional da UC passa para seus moradores certa segurança jurídica e territorial,
119

principalmente em relação a possíveis vendas de terra – posto que as terras são de


posse e domínio público nesta categoria –, assim como existe a fiscalização do ICMBio
na mesma, regulando inclusive a entrada de não­moradores, que devem fazer registro
da visita em um posto do instituto.
Já na Comunidade de Coroca, a configuração territorial do Projeto de
Assentamento Agroextrativista (PAE), apesar de garantir juridicamente a não­
aquisição de terras sem o aceite da representação dos comunitários. Contudo, não
existe um órgão gestor como no caso das UCs (que é o ICMBio), assim, a compra de
terras, a violação da extração de recursos naturais sem autorização ocorrem com
frequência, conforme relatado em conversas com moradores da comunidade. Além
disso, as denúncias muitas vezes tardam a serem apuradas, o que leva à população uma
sensação de insegurança territorial.
O PAE é, diferentemente da APA e da FLONA, uma modalidade criada pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que identifica as
características do PAE como formado por beneficiários geralmente de comunidades
extrativistas e que desempenham atividades ambientalmente diferenciadas. A obtenção
da terra ocorre por meio da criação de um projeto e seleção dos beneficiários, em que a
União é responsável por infraestrutura básica, a titulação de concessão de uso (INCRA,
2020).
Em relação aos serviços públicos, das três localidades, a Coroca é a que tem
menos acesso à saúde e à educação, principalmente, por contar com acesso logístico
mais caro e demorado até Santarém. Pelo rio, o deslocamentoo costuma durar 4 horas
até o Porto de Santarém. A passagem de ida e volta custa em torno de 50 reais, o que
inviabiliza muitas vezes consultas de rotina ou emergenciais para a população, que
defende a volta do barco hospital Abaré II, que fez sua última visita à comunidade no
ano de 2016.
No que concerne a serviços e garantias de direitos na região, dados reforçam o
argumento de desigualdade e assimetria da região Norte (que abarca quase todos os
Estados da Amazônia brasileira, com exceção do Mato Grosso e Maranhão) em
comparação ao restante do país. O Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil
(2016) aponta que o maior Índice de Desenvolvimento Humano por Município
(IDHM) foi o da região Sudeste com 0,766 – considerado alto – seguido das regiões
Centro­Oeste (0,757) e Sul (0,754), enquanto as regiões que tiveram pior desempenho
foram Norte (0,667) e Nordeste (0,663), que apresentaram índice médio.
120

No caso especifico de Santarém – que abarca a comunidade de Coroca e a vila


de Alter­do­Chão – o IDHM de 2010 é 0,691 (Atlas do Desenvolvimento Humano no
Brasil, 2020), considerado médio; o IDHM de Belterra – que compreende Jamaraquá –
é de 0,588 (id.), considerado baixo. São três as dimensões consideradas no índice em
questão: a longevidade, a educação e a renda. Por estas dimensões, espera­se ter
referência para orientações de políticas públicas e comparar as mudanças entre os
períodos investigados. A dimensão que tem pior desempenho em Belterra é da
educação, com 0,478 (muito baixo), enquanto a de Santarém é a renda com 0,632
(médio). Contudo, o índice da renda em Belterra é também menor que o de Santarém,
com 0,548 (baixo). A dimensão da longevidade – esperança de vida ao nascer – em
Santarém chega a 0,807 (muito alto) e em Belterra a 0,775 (alto).
Apesar das recorrentes atualizações e adaptações na metodologia do índice,
predomina ainda uma referência generalizada de avaliação do “desenvolvimento” a
partir de parâmetros de países desenvolvidos – o IDH surge no contexto das Nações
Unidas – ou com contextos históricos, sociais e culturais diferentes acaba por ser
também mais um elemento de reforço do paradigma da modernidade, fazendo de si a
régua para os demais países e sociedades.
Logo, o índice é aqui utilizado não de modo acrítico, mas como uma forma de
reforçar como o desenvolvimento dentro do paradigma ocidentecêntrico tem realmente
tido mais dificuldade de implementação na região e que estando todos inseridos nesse
sistema, acaba por reverberar­se em políticas diferenciadas para o local e para as
populações; além de apagar outros modos de vida que não necessariamente se adequam
aos padrões de mensuração. Podemos questionar, por exemplo, como a avaliação de
renda parte de uma premissa capitalcêntrica e, também, é possível repensar como o
índice de grandes municípios como o de Santarém apresenta uma média que não é
representativa da realidade de comunidades como a de Coroca. E, por fim, tais
parâmetros são os utilizados para a elaboração de políticas públicas.
Diferentemente do IDH, o IPS é centrado nas esferas de: a) necessidades
humanas básicas (nutrição e cuidados médicos básicos água e saneamento; moradia e
segurança pessoal); b) fundamentos para o bem­estar (acesso ao conhecimento básico,
acesso à informação e comunicação; saúde e bem­estar; qualidade do meio ambiente);
c) oportunidades (direitos individuais; liberdade individual e de escolha; tolerância e
inclusão; acesso à educação superior).
121

O IPS teria assim, aparentemente, uma abordagem mais diversificada do que o


IDH, ainda que possua diversos elementos que tendencionam a uma visão dentro da
lógica de modernidade/colonialidade, como a referência de modernização,
infraestrutura e conhecimento formal como prioridades e símbolo de “progresso”.
Ainda que outros itens apontem para a possibilidade de considerar a satisfação a partir
de parâmetros próprios dos indivíduos. De toda forma, o IPS Amazônia (Santos et al,
2018), assim como o IDHM, as disparidades entre a região e o restante do país (ver
figura 16).
Figura 16 – Resultados comparativos do IPS Amazônia 2018

Fonte: Santos et al, 2018, p. 15.

No panorama geral, é possível notar uma ligeira queda no IPS tanto na


Amazônia quanto no Brasil entre 2014 e 2018, período de intensa crise política, já
comentada anteriormente. A desigualdade, contudo, continua, sendo o IPS da
Amazônia (56,52) menor que a média do Brasil (67,21).
As dimensões em que é possível notar diferença maior são as dimensões de
necessidades humanas básicas (Brasil: 73,52; Amazônia: 59,21) e de oportunidades
(Brasil: 59,20; Amazônia: 47,75), com destaque para os piores desempenhos em
componentes para o acesso à educação superior (Brasil: 33,76; Amazônia: 19,10), e
para água e saneamento (Brasil: 74,87; Amazônia: 35,35) (Santos et al, 2018).
É possível notar novamente a concentração de índices baixos nas regiões do
bioma amazônico (demarcado pela linha azul, vide Figura 17) e é possível notar
também que os menores índices foram indicados em territórios referentes a terras
122

indígenas, algumas unidades de conservação e espaços de implementação de grandes


projetos de mineração e de aproveitamento hidroelétrico.
Entretanto, a região pesquisada do Tapajós/Baixo Amazonas, apresenta índice
relativamente alto em comparação às regiões em laranja e vermelho no mapa. O
município de Santarém (que abarca a Vila de Alter­do­Chão e a Comunidade de
Coroca, no PAE Lago Grande no rio Arapiuns) apresenta um índice superior à média
da Amazônia de 60,25, enquanto Belterra (onde está localizada a Flona do Tapajós e a
comunidade de Jamaraquá) tem um IPS de 62,12, enquanto a média geral da região é
de 56,52.
Figura 17 – Mapa IPS Amazônia 2018

Fonte: Santos et al, 2018.

Isto, contudo, não significa que o quadro geral da região seja melhor ou esteja
bom. A metodologia definida para avaliar cada município acaba recaindo no mesmo
problema que o IDHM, invisibiliza as assimetrias locais. O município de Santarém, por
exemplo, engloba no índice tanto do centro urbano quanto comunidades ao longo rio
Arapiuns que não têm acesso a saneamento básico e conta com serviços de saúde a 15
horas de distância de barco.
Em Belterra o índice destaca como pontos fracos e baixos a nutrição e os
cuidados básicos com a saúde, a mortalidade por doenças infecciosas e desnutrição, a
vulnerabilidade familiar e, o mais baixo, acesso à educação superior com IPS de 16,50,
enquanto a média da Amazônia é 19,10 e do Brasil é 33,76 (Santos et al, 2018).
No caso de Santarém os destaques negativos são a alta taxa de mortalidade por
doenças crônicas, o acesso à água e saneamento e a violência contra as mulheres e
123

pessoas indígenas, cujos últimos são componentes da dimensão de oportunidades,


respectivos ao item de tolerância e inclusão, cuja média nacional é 61,74, enquanto que
a da Amazônia é ligeiramente maior com 63,19, enquanto a de Santarém é de 34,51
(id.). Assim, é preciso entender que, ao mesmo tempo em que os índices citados são
fontes relevantes para uma visão do panorama geral nacional e global de comparação
principalmente dos parâmetros do paradigma de desenvolvimento, modernidade e
progresso, não se pode assimilar que eles revelem as idiossincrasias locais e complexas
que envolvem diferentes formas de organizações socioterritoriais e étnico­culturais.
Diante disso, é também relevante chamar atenção para outros relatórios sobre o
cenário social da região como os referentes aos conflitos por terra e assassinatos no
campo. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT, 2019) o Brasil passou por
um aumento vertiginoso nos casos de violência e assassinato no campo, cujo ranking é
liderado pelo estado do Pará.
O ano de 2016, que já tinha sido apontado como um dos anos com maior
crescimento da violência no campo, foi superado em 15% em 2017, chegando ao maior
número de casos desde 2003. Cresceu também o número de massacres e foram, apenas
em 2017, 70 assassinatos, dos quais 21 ocorreram no Pará (id.).
O relatório da CPT também aborda a violência contra as mulheres no campo e o
silenciamento historicamente predominante sobre o tema. A situação é analisada por
Raquel Baster (2019, p. 48):
O levantamento de dados da CPT, em 2018, demonstrou que 486
mulheres sofreram algum tipo de violência (tortura, agressão,
tentativa de assassinato, aborto, intimidação etc.) em conflitos no
campo. Desse total, duas mulheres sem­terra morreram em
decorrência da situação de conflito nos acampamentos em que
moravam, outras seis sofreram tentativas de assassinato, 37 sofreram
ameaças de morte e 16 foram presas injustamente. (id.)

Também nesse caso, o estado do Pará se destacou com o maior número de


casos de assassinatos, sendo 21 no total. Baster (2019) relaciona o alto índice com a
presença de megaempreendimentos e as tensões por terra predominantes no Estado. Ela
cita os casos de coerção, prisões e outras violências contra mulheres no campo, assim
como os efeitos diretos e indiretos dos empreendimentos no meio ambiente que afetam
o cotidiano e as condições de sobrevivência das mulheres, histórica e socialmente
situadas na dimensão da produção alimentar, por exemplo. Enquanto, mais uma vez,
relatam­se o aumento de riscos e casos de estupros, gravidez indesejada e o aumento de
problemas relacionados à saúde mental e emocional.
124

Os impactos na saúde mental e emocional também são um tipo de violência e


acabam sendo fruto da violência contra filhos, familiares, companheiros/as como
assassinatos, ameaças, perseguição e outras formas de deteriorar o estado mental e
emocional de mulheres que vivem em condições de tensão e violências.
Diante disso assume­se que, mesmo os índices sendo reprodutores de
parâmetros de modernidade, eles revelam justamente os empecilhos da região
amazônica de se inserir nesse contexto, enquanto os próprios índices possuem
limitações não apenas conceituais, mas também técnicas, possuindo dificuldade de
representar a complexidade e diversidade da realidade da região.
Contudo, apesar da diversidade social não ser devidamente retratada, o que é de
fato identificado diz muito: a desigualdade social e econômica em comparação a outras
regiões, taxas de violência e mortalidades no campo e contra mulheres no campo
também maiores; falta de acesso a saneamento, água e educação. Por fim, percebe­se
uma nítida relação entre os índices e as dinâmicas econômicas referentes aos grandes
setores como a mineração, a energia e o agronegócio.
Por fim, a estadia no Arapiuns permitiu que a minha compreensão sobre as
dinâmicas sociais, econômicas e políticas se tornasse mais densa, ficando óbvio para
mim que abordar apenas o projeto do Complexo Hidrelétrico do Tapajós era
insuficiente para dar conta do cenário e da discussão de projetos de vida. Por conta
também, da diferente configuração socioterritorial do PAE em comparação às
Unidades de Conservação como a Flona e a APA, a viagem permitiu observar, de
forma mais explícita, diversas tensões com outros grupos sociais e atividades
econômicas, assim como, comunidades politicamente mais articuladas e ativas,
principalmente pela presença da Igreja e do Sindicato de Trabalhadores Rurais.
E, a experiência no Arapiuns possibilitou perceber melhor como as identidades
étnicas são um ponto fulcral de qualquer análise sobre a Amazônia, como as políticas
perpassam noções racializadas e como a organização dos territórios é influenciada
também por esse processo, de modo indissociável das dinâmicas capitalistas.
No caminho de volta para Alter­do­Chão, peguei­me divagando sobre o quanto
teria que me aproximar mais das dinâmicas de resistência histórica do povo, dos
movimentos sociais e políticos no Tapajós e como apresentar de forma coerente as
tensões, principalmente de cunho econômico e político, existentes ali.
125

6 PARA O CAPITAL O RIO É APENAS UM CAMINHO POR ONDE AS


BALSAS CARGUEIRAS VÃO PASSAR

O rio é muito importante mesmo pra nós né,


porque é dele que a gente vive, é dele que a gente
tira o alimento, o peixe pra ser o alimento dos
moradores daqui, e o rio também é a água que a
gente toma banho, é a diversão também da
comunidade. Nós sabemos que tem esse projeto
pra cá e que se chegar a acontecer a gente vai ter
que sair daqui de Pimental, que o rio Tapajós a
parte de cima vai alagar, não vai mais existir a
comunidade.
(Luvia Heidy em documentário do MAB, 2016)

O contexto de políticas na metade do século XX que, de maneira intensiva,


buscaram a integração da Amazônia ao Brasil, teve como elemento forte os grandes
empreendimentos que se concentraram na mineração e na produção de energia. Como
já abordado, embasaram essas políticas a ideia de que “a exploração dos recursos
naturais da Amazônia, nos moldes como acontece hoje, é necessária e conduz ao
desenvolvimento” (Loureiro, 2014, p. 314). O relato de Luvia Heidy citado acima,
porém, contrapõe à lógica de que tais políticas seriam o melhor, já que com elas muitas
comunidades e modos de vida são ameaçados de deixarem de existir.
Assim, atividades como a mineração, a geração de energia hidrelétrica, a
extração madeireira e a agropecuária possuem dinâmicas e impactos próprios às
peculiaridades, mas partem, todas, de uma dinâmica moderna/colonial. São pensadas e
implementadas por representantes das multinacionais, elites nacionais e locais, grupos
reprodutores e beneficiários diretos destas que, pouco ou nada sofrem impactos no seu
próprio modo de vida por tais políticas – conforme apontado no Manifesto de
Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (2001, s/n), a injustiça ambiental
é “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais, do ponto de vista econômico e social,
destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento às populações de
baixa renda, aos grupos raciais discriminados, aos povos étnicos tradicionais, aos
bairros operários, às populações marginalizadas e vulneráveis”.
A dinâmica do capital na Amazônia também se alinha e mantém o papel
atribuído às regiões consideradas subdesenvolvidas à de produção de matéria­prima, de
exploração de recursos naturais por detentores do capital enquanto o retorno é pouco
ou nenhum para a população local, ocorrendo de forma unilateral, e servindo à
demanda internacional e não com o objetivo primordial de “desenvolver” a Amazônia
126

ou melhorar a qualidade de vida das populações. Como abordado no capítulo 2, a partir


da discussão de Padro Júnior (1978), tal dinâmica se desenha desde o processo de
colonização e apesar de se intensificar e passar por algumas adaptações, a lógica que o
embasa continua sendo a mesma.
Um caso interessante para esta apresentação do contexto é o Programa Grande
Carajás (PGC). Desenvolvido no início da década de 1980, durante uma grande crise
econômica no Brasil e visto como uma possibilidade de recuperação, por meio da
exportação de matéria­prima mineral, foram implementados projetos que impactaram a
Amazônia e causaram impactos sociais e também econômicos para a região e o país.
Em menor escala, mas não pequena, outras atividades econômicas que
modificaram a região foram a inserção da agropecuária extensiva, as grandes
madeireiras e, mais recentemente, a introdução da monocultura de soja. Nesta seção
serão apresentadas, brevemente, estas cinco atividades e seu histórico de chegada e
implantação na região, a fim de possibilitar a compreensão dos conflitos que se dão na
região do Tapajós por conta desses empreendimentos, assim como as articulações de
resistência a eles.
A mineração na Amazônia vai ter como raiz o contexto econômico e comercial
internacional, quando os países desenvolvidos começam a transferir para os
subdesenvolvidos as atividades altamente consumidoras de energia como o ferro, o
alumínio, a celulose, entre outras.
No mesmo ímpeto das outras políticas voltadas para a região na metade do
século passado, os incentivos à indústria mineral na região chegaram pelo Programa de
Polos Agropecuários e Agrominerais da Amazônia (Polamazônia) em 1974, instaurado
na ditadura militar. O programa criava três pólos de implementação: Amapá, Carajás e
Trombetas. No Polo Amapá começou a extração de caulim em 1977, enquanto o Pólo
Trombetas viabilizou a extração e comercialização de bauxita entre os anos 1962 e
1972 (Monteiro, 2005).
O Polo Carajás ganhou mais notoriedade com o Programa Grande Carajás
(PGC) instituído pelo Decreto­Lei Nº 1813 de 1980, que regulamentava
empreendimentos integrantes ao programa, ligados a serviços de infraestrutura como: a
Estrada de Ferro Carajás; os polos São Luís­MA e Barcarena­PA, usinas de alumínio e
alumina da Alcoa e Albrás; a mineração de bauxita em Paragominas­PA pela
RTZ/CVRD; a mineração em Carajás desenvolvido pela Companhia Vale do Rio Doce
(atualmente VALE) com projetos de exploração de ferro, cobre, níquel e produção de
127

ligas; em Marabá a metalurgia de ferro­gusa a carvão vegetal; a mineração de


cassiterita em São Félix do Xingu.
Na busca de incentivar a efetivação do PGC para que isso viesse a alavancar a
economia brasileira (o que não aconteceu) o governo destinou grande volume de
recursos e também contraiu dívidas para financiar os empreendimentos, além de
conceder incentivos tributários como a isenção de diversos impostos (Loureiro, 2014,
p. 336­337).
Para dar suporte aos megaprojetos foram construídas vilas para funcionários,
portos, aeroportos, estradas e distritos industriais. As transformações abruptas
deixaram heranças até os dias atuais com as cidades próximas aos empreendimentos
tendo um crescimento desordenado e a chegada de milhares de pessoas para trabalhar
nas obras (Fialho e Trevisan, 2019).
Recentemente, novas frentes de exploração mineral começaram a despertar
atenção na região. Em 2006, no município de Juruti, Baixo Amazonas/Oeste do Pará,
tiveram início as atividades da Alcoa em uma mina de bauxita e desde então a presença
da mineradora tem gerado um aumento considerável na renda do município, de
aproximadamente R$ 500 mil por mês (Pinto, 2015), assim como a construção de uma
ferrovia e outras obras de infraestrutura. Para a instalação da mina houve o
deslocamento de algumas comunidades próximas ao empreendimento e que,
atualmente, denunciam a falta de pagamento da mineradora pelas indenizações
acordadas.
Nos dias 12 e 13 de julho de 2018, o Ministério Público Federal (MPF) fez uma
visita a partir de pedidos da população vizinha ao município de Juruti, no Lago Grande
do Curuai (Baixo Tapajós):
O Lago Grande, em Santarém, no Pará, é um projeto de assentamento
agroextrativista com 250 mil hectares onde moram 35 mil pessoas
em 128 comunidades. A região é conhecida pela riqueza em recursos
pesqueiros e florestais e pela força das tradições comunitárias, mas
também é marcada historicamente por conflitos com madeireiros e
grileiros que invadem porções da terra para atividades ilegais. Um
novo conflito se instalou na região nos últimos anos com a presença
da mineradora Alcoa World Alumina Brasil, que explora uma mina
de bauxita no município vizinho ao assentamento, Juruti, mas
também tem interesses minerários no Lago Grande. (MPF, 2018)

A reunião atraiu também moradores das comunidades do Rio Arapiuns,


também próximo ao Lago Grande e que fazem parte do PAE Lago Grande, inclusive a
Coroca, onde este estudo também se desenrola. Segundo relatos, mais de mil pessoas
128

participaram da reunião assim como representantes de órgãos como o ICMBio. Os


comunitários relataram diversas ações de aproximação da mineradora:
(...) o Ministério Público Federal (MPF) recebeu mais de uma dezena
de denúncias contra a mineradora, por assediar as comunidades
distribuindo propagandas de suas ações sociais no município vizinho
e oferecendo, por meio de uma fundação, dinheiro para projetos nas
escolas. As ofertas são feitas sem respeito à organização política das
comunidades, para moradores que não fazem parte das associações
representativas locais. Para o MPF, as visitas e ofertas da empresa na
região são irregulares e violam normas ambientais, minerárias e a
Convenção 169 da OIT, que protege o direito de comunidades
tradicionais. (MPF, 2018)

A Alcoa neste caso estaria violando a convenção 169 da OIT por conta da
modalidade de assentamento coletivo do PAE Lago Grande, viso que a entrada da
multinacional na região só seria permitida com a anuência da Federação de
Associações do Lago Grande (Feagle) – o que não foi feito.
Em 2010, a Alcoa já havia tentado entrar na região sem negociar com a
federação, por meio de uma ação judicial que foi extinta em 2018 pela Justiça Federal
de Santarém por não apresentar as licenças necessárias e por não comprovar as
tentativas de negociação com a organização de moradores.
Os comunitários relataram também um clima de apreensão e tensão por conta
das ações atribuídas aos representantes da mineradora e principalmente por terem
ciência dos resultados da experiência em Juruti:
Um dos moradores ouvidos pelo MPF na investigação sobre a
atuação da Alcoa explicou: “a gente fica preocupado quando uma
empresa internacional está ameaçando nosso território, temos
conhecimento do que já aconteceu e o que está acontecendo onde ela
já está explorando, nós vemos o povo vivendo uma aflição, uma
angústia muito grande em Juruti”. “É uma agressão brusca, e nós do
Lago Grande estamos preocupados, mesmo eles não estando fazendo
lavra, mas já estão impactando socialmente aquelas lideranças com
mais influência, que são os polos, as escolas. Isso é para enfraquecer
nossas lutas”, disse à equipe do MPF. (MPF, 2018)

O Ministério Público lançou uma nota no dia 27 de julho de 2018,


recomendando a retirada da mineradora Alcoa do Lago Grande em Santarém, além de
pedir um posicionamento da Agência Nacional de Mineração (ANM). O quadro
descrito na região é de tensão e as organizações de moradores têm buscado denunciar
essas e outras práticas irregulares na região como meio de se proteger e demonstrando
que não acreditam no discurso de desenvolvimento, compensação e crescimento que
acompanham as grandes multinacionais na região.
129

No âmbito específico da geração de energia, o potencial hídrico da Bacia


Amazônica foi apontado como resposta óbvia à necessidade energética do país em
processo de desenvolvimento “graças às quantidades enormes de água que passam pela
região e às quedas topográficas significativas nos afluentes do Rio Amazonas”
(Fearnside, 2015, p. 12). Os afluentes com maior potencial hídrico concentram também
diversas populações de etnias indígenas, ribeirinhos, extrativistas e remanescentes de
territórios quilombolas, moradores principalmente dos rios Xingu, Tocantins,
Araguaia, Tapajós e outros.
Portanto, é imprescindível compreender o pano­de­fundo da justificativa
econômica, política e científica do desenvolvimento no século passado, quando se dá a
construção da relação entre hidrelétricas e o desenvolvimento. As primeiras usinas
hidrelétricas instaladas na Amazônia tiveram suas obras finalizadas nos anos de 1975 e
1977, no período do governo do Presidente General Ernesto Geisel. Em janeiro de
1976 é lançada oficialmente a UHE Coaracy Nunes, localizada na Vila do Paredão,
distrito do município de Ferreira Gomes a 140 km da capital do Amapá, Macapá
(Diário do Amapá, 2016)22.
Em seguida, tem­se o caso da UHE de Tucuruí no estado do Pará cujos estudos
começaram em 1957, tendo sua construção iniciada em 1976 e sua inauguração em
1984; e a UHE de Balbina no estado do Amazonas, conhecida pela sua baixa produção
de energia, muitas vezes reconhecida como um desastre ambiental e um erro, suas
obras tiveram início em 1985 e foi inaugurada em 1989.
Nos anos seguintes as UHEs se proliferaram na Amazônia: Samuel em
Rondônia (1988); Lajeado, em Tocantins (1999); Peixe Angical em Tocantins (2006);
Santo Antônio, em Rondônia (2011); Rondon II, em Rondônia (2011); Estreito, em
Tocantins e Maranhão (2012); Jirau, em Rondônia (2013) (Fearnside, 2015).
A seguir, um quadro com as principais UHEs em construção ou planejadas para
o Estado do Pará:
Quadro 1 – UHEs em construção ou planejadas no Estado do Pará
Nome Rio Situação Ano previsto de conclusão
Babaquara (Altamira) Xingu Sem informação Sem previsão

Belo Monte Xingu Em construção 2015

Cachoeira do Caí Jamanxim Planejado 2020

22
DIÁRIO DO AMAPÁ (2016). Hidrelétrica Coaracy Nunes completa 40 anos interligada ao SIN.
Disponível em: http://www.diariodoamapa.com.br/2016/01/12/hidreletrica­coaracy­nunes­completa­40­
anos­interligada­ao­sin/.
130

Cachoeira dos Patos Jamanxim Planejado Sem previsão

Chacorão Tapajós Sem informação Sem previsão

Jamanxim Jamanxim Planejado 2020

Jardim de Ouro Jamanxim Planejado Sem previsão

Jatobá Tapajós Planejado 2019

Marabá Tocantins Planejado 2021

Santa Isabel Araguaia Planejado Sem previsão

Santo Antônio do Jari Jari Licença preliminar 2014

São Luiz do Tapajós Tapajós Planejado 2018

Adaptado de: FEARNSIDE, 2015, p. 15­16.

Dentre as usinas citadas (vide Quadro 1), a UHE São Luiz do Tapajós era a
primeira com previsão para o início de suas obras em 2017, porém, em 2016 o
processo de licenciamento foi cancelado por decisão do IBAMA, que constatou falhas
no Estudo de Impacto Ambiental e no Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA)
(Greenpeace Brasil, 2016).
O EIA/RIMA da UHE São Luiz do Tapajós (Figura 18) avaliou o impacto nas
cidades de Itaituba e Trairão e nos seus distritos: Miritituba, São Luiz do Tapajós e
Vila Pimental. O meio socioeconômico identificado, que compreende a região, é
composto por 14 mil pessoas, entre população urbana, rural e povos indígenas (foram
identificadas seis terras e áreas indígenas a menos de 40 km do empreendimento,
predominantemente da etnia Munduruku) (ELETROBRAS, 2014).

Figura 18 - Localização do empreendimento do AHE São Luiz do Tapajós

Fonte: ELETROBRAS, 2014, p. 19


131

Apesar do relatório também ter definido uma Área de Influência Indireta (AII) e
uma Área de Influência Direta (AID), o município de Santarém e demais localidades
não foi considerado por conta da distância (368,6 km separam Santarém de Itaituba),
mas a prefeitura da cidade solicitou em 2016 por meio de uma ação civil que fosse
feito um novo estudo que considerasse os impactos para a localidade e seus arredores
(Belterra, Aveiro e Rurópolis) (Weldon, 2016).
Este fato demonstra, por exemplo, que a discussão sobre desenvolvimento e
futuro da região permeia os atores sociais em situações que a questão se vê em pauta,
até mesmo indiretamente. Já foram realizados, inclusive, articulações e debates
públicos sobre o tema em Santarém, demonstrando a ligação direta da visão desses
atores frente a essa forma de praticar uma política pública.
Outro fato relevante é que não existe nenhuma parte do estudo que aponte para
os impactos generificados, ou seja, que diferenciem as consequências do
empreendimento para homens e mulheres, que compreenda que questões como geração
de emprego, deslocamentos, renda e violência atingem homens e mulheres de formas
diferenciadas. Não são considerados também os impactos na saúde mental e emocional
da população local como depressão, angústia, ansiedade, sofrimento, alcoolismo e
outras já registradas em contextos similares.
Apesar de o relatório ter sido publicado em 2014, já em 2009 foi criado o
Movimento Tapajós Vivo (MTV) com articulação principal nas cidades de Santarém e
Itaituba, enquanto o enfoque nacional e ambientalista ainda tratava de Belo Monte. O
próprio nome é uma alusão ao Movimento Xingu Vivo que se tornou referência da
resistência em Altamira e região.
Ainda que os empreendimentos estejam previstos para serem implantados nas
proximidades de Itaituba, ao analisar as reuniões e eventos promovidos percebe­se uma
concentração do movimento na cidade de Santarém, o que, mais uma vez, remete à
importância de aproximar­se de uma região não abarcada pelos estudos, mas que se
articula e se sente atingida desde fases preliminares de planejamento das obras (ver
Anexo F para imagens de manifestações recentes no Tapajós).
Os movimentos sociais na região possuem uma tradição histórica, como Porto­
Gonçalves (2015) destaca nos casos dos atingidos por barragens, movimento que ganha
força a partir dos anos 1970 com a proliferação dos grandes projetos:
As populações se colocam aqui claramente como atingidas, ou seja,
exatamente como aqueles que não foram os destinatários da ação do
132

Estado, ao contrário, foram atingidos pela ação deste. No entanto, ao


se constituírem como movimento dos atingidos por barragens
colocam­se como sujeitos que, por sua própria ação, desejam ser
protagonistas de suas vidas. (Porto­Gonçalves, 2015, p. 159)

Assim, independente do cancelamento temporário da licença ambiental do


empreendimento, a discussão sobre essas obras continua fazendo parte do cotidiano da
população, que se vê em situação de se posicionar e vislumbrar, neste momento, um
futuro a partir de suas visões. No caso da UHE São Luiz do Tapajós, a Terra Indígena
dos Munduruku seria completamente inundada, inclusive lugares sagrados. Este povo
têm sido um dos grupos que mais têm lutado contra o complexo hidrelétrico, buscando
atualmente chamar a atenção da comunidade internacional para tentar retardar de
forma definitiva os empreendimentos (Fearnside, 2016; Zuker, 2017; Molina, 2017).
Outra face econômica que causa tensão na região é a proliferação da indústria
madeireira. A socióloga Violeta Loureiro (2014) apresenta o contexto na região
amazônica no âmbito das políticas desenvolvimentistas do século XX. Ela aponta que
apesar de ser interpretada como uma “vocação”, o modelo extrativista que o setor
madeireiro tem adotado na região contradiz a lógica da “vocação” e tem provocado um
dos maiores problemas ambientais nacionais: o desmatamento.
Ainda que o bioma amazônico possua árvores grandes e de alto valor no
mercado madeireiro das madeiras nobres, o solo amazônico não é muito rico em toda
sua extensão e varia de área para área. Os principais tipos de vegetação são a floresta
de terra firme, a floresta de várzea, os mangues, a vegetação montanhosa na periferia
da Amazônia, a campina baixa e a savana de várzea; sendo as florestas de terra firme o
de interesse para o setor madeireiro e que cobre 80% da Amazônia Clássica (Pires,
1973 apud Loureiro, 2014).
Loureiro (2014) relaciona a intensificação da exploração madeireira das
serrarias com a abertura de estradas e rodovias e obras de asfaltamento já nos anos
1980, o que facilitou a logística das serrarias no transporte das toras, mas também na
rápida mobilidade para a exploração em outras áreas.
É possível perceber como as regiões mais atingidas pelo desmatamento (não
apenas relacionado à extração de madeira) oferecem, também, maior possibilidade de
escoamento próximo (portos e rodovias). Outro ponto relevante é a concentração do
desflorestamento na região nordeste do Pará, próximo à Belém, e no sudeste, próximo
a Marabá, onde se desenvolveu o Programa Grande Carajás; assim como merecem
133

atenção, também, pontos de desmatamento próximos ao município portuário de


Santarém (ver Anexo G).
A extração da madeira não é uma prática recente na região, inclusive tendo
diversas comunidades e famílias naturais da região que fazem a extração da madeira. O
que ocorre a partir das políticas desenvolvimentistas é o aumento intensivo da extração
e de modo predatório, causando obviamente sérios impactos ambientais, e, também,
provocando diversos conflitos de terra com as populações locais.
Como citado previamente, a questão da regularização fundiária é um dos pontos
críticos da região, e muitas áreas que vão ter derrubada vão entrar nas disputas
fundiárias. Com a questão do desmatamento ganhando cada vez mais repercussão
internacional e pressão de movimentos sociais, o governo criou órgãos responsáveis
pela fiscalização como o IBAMA em 1989 (Lei Nº 7.735/1989) e o ICMBio em 2007
(Lei Nº 11.516/2007), mas a prática do desmatamento clandestino e irregular continua
presente.
Loureiro (2014, p. 324) aponta ainda outras características do desenvolvimento
de setor madeireiro na região como o “(...) desperdício, pouco desenvolvimento
tecnológico, baixo nível de beneficiamento, baixa geração de emprego”, e que ao
causar danosos impactos no bioma acaba por destruir “as possibilidades econômicas e
sociais futuras da região”.
No Oeste do Pará, o desmatamento não aparece tão intenso no mapa como no
sudeste e nordeste do Estado, mas isso não significa que a questão, principalmente da
extração ilegal de madeira, não provoque tensão na região. Como é possível observar
ainda no Anexo J, uma das características que até então tem, de certa forma, freado o
avanço do desmatamento são as terras indígenas, unidades de conservação e projetos
de assentamento agroextrativistas, ainda que tenham sido registrados frequentes casos
de extração ilegal de madeiras também nessas áreas. As áreas próximas às rodovias,
contudo, concentram os principais casos.
O fato da região oeste do Pará ainda possuir grande parte da sua cobertura
vegetal tem sido recentemente um atrativo para madeireiras. No rio Arapiuns, por
exemplo, afluente do rio Tapajós, enquanto à margem direita está a Resex
Tapajós/Arapiuns, à margem esquerda estão localizadas diversas comunidades que
configuram projeto de assentamento agroextrativista, mas que pelo seu caráter
possuem menor fiscalização dos órgãos responsáveis (INCRA).
134

Nos últimos anos, diversas comunidades da região realizaram denúncias sobre a


presença irregular de madeireiros na região e também de compras de grandes áreas
inclusive por estrangeiros e muitos alegam desconhecer os objetivos dos novos
proprietários. Em 2010 os representantes de 27 comunidades ribeirinhas, assentados e
povos indígenas do rio Arapiuns denunciaram a construção de três portos no rio, que
estariam ligados ao escoamento de madeira, além da extração, que também estaria
irregular e sem licença (Milanez, 2010).
Na reportagem de Felipe Milanez (2010) são relatados também impactos
ambientais e as condições da água da região já percebidas pela população: Se nós não
lutarmos, se não unirmos nossas forças para retirarmos os empresários que estão aqui
dentro, a natureza vai morrer, afirmou Pedro, da comunidade São José 1. Segundo ele,
o assoreamento do rio é visível em decorrência da atividade de extração madeireira, e a
água antes cristalina, está barrenta: Estamos bebendo e tomando banho em barro.
Dinael Cardoso (apud, Milanez, 2010), do povo Arapium e uma das lideranças
do Movimento em Defesa da Vida e da Cultura do Rio Arapiuns questionou: Sai tanta
madeira daqui, e não fica uma escola, um posto de saúde. Para onde vai essa riqueza?
Atribui­se também a relação com a chegada da Alcoa em Juruti e a construção
de estradas na região próxima ao Arapiuns, como um dos fatores que podem ter
contribuído para o aumento das práticas relatadas pela população local.
Mais recentemente, no primeiro semestre de 2018, entidades da Resex
Tapajós/Arapiuns denunciaram ao MPF a extração ilegal de madeira na reserva e
também pediram a suspensão do projeto Tapajós Sustentável, coordenado pela
Conservation International (CI), assim como quaisquer projetos e pesquisas de Plano
de Manejo Florestal e Crédito de Carbono (Movimento Tapajós Vivo, 2018).
Foi publicada em junho de 2018 uma carta de repúdio assinada pelo Sindicato
dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do município de
Santarém (STTR), o Conselho Nacional das Populações Extrativistas (CNS) e o
Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA) onde, além da denúncia, os
representantes argumentam sobre a plena capacidade de autogestão além dos valores
importantes para os locais:

Enfim, somos preocupados e comprometidos com a preservação,


valorização e bem­estar de todos e sempre soubemos cuidar do nosso
patrimônio cultural, ninguém precisou vir dizer como temos que
fazer. Por isso não aceitamos a forma como as coisas estão sendo
conduzidas, exigimos respeito para os povos da floresta do Tapajós e
135

Arapiuns, para a natureza. Será que ninguém pára pra pensar que
querem vender nossa Floresta? Temos uma relação muito forte com a
terra, com a floresta, com a água. Em nossa terra também estão
nossos ancestrais, nosso mundo espiritual e nossas ervas medicinais.
Só queremos uma terra para sobreviver. (STTR, CNS, CITA, 2018).
Os dois exemplos acima e os citados também no âmbito das hidrelétricas e da
mineração apontam como existe uma forte articulação local de movimentos,
associações e sindicatos, não apenas denunciando práticas ilegais e danosas à natureza,
mas também buscando os mecanismos políticos de manifestação do modo de vida da
região.
Assim como a madeira, a introdução da agropecuária extensiva na Amazônia
causou grandes transformações políticas, sociais e ambientais. Ao contrário da extração
vegetal, a inserção de um modelo econômico baseado principalmente na pecuária
modifica profundamente a região, no que Loureiro (2014) atribui aos seus planejadores
a descoberta de uma “vocação regional autofágica”.
É destacado pela autora que, apesar da criação de gado ter sido sempre presente
de certo modo na região, como é o caso da Ilha do Marajó, onde a pastagem natural é
presente, os planejadores decidiram incentivar a partir de 1976 nos dois Planos de
Desenvolvimento da Amazônia (PDAs) a pecuária na hileia amazônica, região de mata
densa, atribuindo, assim, como às demais atividades citadas, importante papel para a
dita integração da Amazônia.
Justificavam esta opção, segundo ela, “pelo fato de facilitar a penetração em
áreas pioneiras, a pecuária vem se tornando uma das atividades de maior expressão
econômica da região, promovendo a integração da Amazônia com as regiões mais
próximas” (FGV, 1976, p. 124 apud Loureiro, 2014, p.300).
Os estados amazônicos que mais concentram e desenvolveram a pecuária
extensiva são Rondônia e o Pará (neste último, principalmente nas regiões nordeste e
sudeste), reforçando as concentrações das áreas de maior desmatamento como visto
anteriormente.
Como já fora comentado, os índices alarmantes de desmatamento na região não
são ligados apenas à indústria madeireira. Estima­se, conforme dados do INPE e
SUDAM (apud Loureiro, 2014, p. 301), que os desmatamentos para a formação de
pastos foram responsáveis entre 60% e 70% da área total desmatada entre as décadas
de 1970 e 1990.
136

Também para esta atividade foram destinados incentivos fiscais e outros


autorizados pelo governo, provocando uma grande migração de pessoas
(principalmente homens) para a região, o aumento das tensões fundiárias e da
proliferação de latifúndios, levando também ao agravamento da desigualdade.
É importante retomar aqui o apontamento que Loureiro (id.) faz sobre a
situação fundiária até os anos 1950, onde era comum ­ por volta de 98% ­ as ocupações
não serem declaradas ou ainda regularizadas.
A introdução e o incentivo de práticas como a pecuária extensiva, a indústria
madeireira, a mineração, os grandes projetos hidrelétricos e a construção de rodovias
levaram a uma situação catastrófica a grande parte dessa população. Apesar de órgãos
como o INCRA trabalharem na regularização das novas situações surgidas, a
informalidade e a falta de documentos (ou a grilagem) gerou diversos conflitos na
disputa de terra, que contribuíram para que a região hoje tenha altos índices de conflito
no campo e de assassinato de lideranças de movimentos sociais e associações.
Estudos comprovam a forte presença da soja na Amazônia Legal
principalmente nos estados adicionados por meio desse conceito nas políticas para o
desenvolvimento da região: o Mato Grosso, o Maranhão e Tocantins (Ver Anexo H).
Dos estados originais da Amazônia clássica Roraima, Rondônia e o Pará têm
apresentado um grande avanço da fronteira da soja recentemente. O cultivo da soja,
assim como outras monoculturas e o desmatamento para criação de pastos para
pecuária modifica de modo profundo o bioma amazônico, levando à perda da
biodiversidade diretamente nas plantações e indiretamente impactam áreas próximas.
É possível notar que no Pará, o cultivo de soja se concentra no oeste e sudoeste
do Estado. No nordeste têm­se ainda efeitos das políticas do Programa Grande Carajás
e da pecuária, enraizada culturalmente hoje em dia, mas, gostaria de analisar o caso da
região oeste, facilitando a compreensão do problema no locus que aqui será trabalhado,
o Baixo Tapajós. É notável, também, a presença da soja no município de Altamira,
onde se localiza o empreendimento hidrelétrico de Belo Monte.
O trajeto da soja na região acompanha a rodovia Cuiabá­Santarém, ligando a
região ao estado que mais produz soja, o Mato Grosso. Essas plantações cercam terras
indígenas, unidades de conservação e assentamentos agroextrativistas, cuja
proximidade tem causado desconfiança e insegurança nas populações dessas áreas.
Já nos anos 2000, no contexto da expansão da fronteira agrícola da soja no
Brasil e dos incentivos do mercado internacional, por conta da ligação entre Cuiabá e
137

Santarém pela BR 163, assim como o fato da Amazônia ser ainda vista como fronteira
da expansão de terras e a possibilidade de escoamento pela construção de portos e
aproveitamento das vias fluviais da região, uma nova tensão se deu com a chegada da
multinacional Cargill já em 1999.
Quatro organizações se aproximaram para denunciar as ações da Cargill que
visava a construção de um porto em Santarém, eram elas: o Grupo de Defesa da
Amazônia (GDA), Centro de Apoio aos Projetos de Ação Comunitária (CEAPAC),
Federação das Associações de Moradores de Santarém (FAMCOS) e a coordenação de
pastoral da diocese de Santarém. Assim, surgiu a Frente em Defesa da Amazônia
(FDA) em 2003, sendo a junção de sindicatos, ONGs, movimentos populares e a Igreja
(Sena, 2014, p. 135).
Apesar das idas e vindas, o porto acabou sendo concluído, mas a experiência da
aproximação de forças contra uma ameaça comum ficou como fruto do momento mas,
apesar da demonstração de força em diversos momentos da disputa, acabou por perder
expressão na sociedade.
Em maio de 2018 foi realizado um seminário com o tema dos 20 anos da
introdução da soja na região de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos em 1997 (G1
Santarém, 2018). A reportagem do G1 destaca a fala do professor Dr. Márcio
Benassuly Barros, que faz um resumo do balanço dos 20 anos da soja na região:

Como pontos positivos podemos citar as criações de vagas de


trabalho nas propriedades, no entanto, o retorno maior é quanto aos
problemas como, a migração das pragas oriundas das plantações de
soja; o aumento da temperatura; a diminuição da caça; contaminação
de lençol freático, dentre outras situações relatadas pelos moradores
dessas localidades. (Idem)
O balanço repete um padrão notado nas políticas na região: mais danos que
benefícios, principalmente para modos de vida diferentes dos modelos assumidos como
ideais, além do caráter de violência simbólica, posto que não há o processo de
envolvimento e participação da população atingida para decidir o momento e se
deverão ocorrer tais mudanças – algo presente principalmente nas falas de Luza e Dona
Elza que são abordadas respectivamente nos capítulos 7 e 10.
A ActionAid e a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
(FASE) publicaram, em 2017, o relatório de um estudo intitulado “A geopolítica de
infraestrutura da China na América do Sul: um estudo a partir do caso do Tapajós na
Amazônia brasileira” de autoria da pesquisadora Diana Aguiar (Miliotti, 2017).
138

A pesquisa argumenta que o megacorredor de comércio adotado na região pelas


rodovias e tendo como ponto de escoamento o porto de Santarém atende a interesses
ruralistas e de grandes tradings envolvidas no comércio global de commodities
agrícolas, dado que existe cada vez mais uma grande demanda da China pela soja,
principalmente para uso em ração animal.
Diana Aguiar (Miliotti, 2017) comentou na mesa de lançamento do estudo,
alguns pontos da pesquisa: os conflitos territoriais provocados pela soja, os
desdobramentos sociais e ambientais e a especulação de terras. O processo de
resistência e denúncia da população local é destacada, o que também reforça os demais
quadros aqui apresentados.
Também presente na mesa de lançamento do estudo, Sara Pereira, que é
educadora do Programa FASE na Amazônia sintetiza bem as preocupações com o
cenário desenhado pelo relatório:
Para o capital, o rio é apenas um caminho por onde as balsas
cargueiras vão passar, mas para esses povos o rio é uma forma de
reproduzir, de tirar o sustento, de se relacionar. (...) Não tem como
ter vida naquela região sem o Tapajós preservado e livre das garras
do capital que vê os povos da região apenas como um amontoado de
recursos naturais. A defesa do território não é apenas a defesa de um
rio, é a defesa das mais diversas formas de vida. (Miliotti, 2017).

O quadro até então apresentado demonstra como as políticas


desenvolvimentistas inauguradas em meados do século passado perduram na região
sob a lógica da exploração predatória da natureza, da modernização de espaços e vidas
que não chegam a ser considerados como expressões válidas de existência.
Isto corrobora a compreensão de que, para além de políticas de governo (que
oscilaram entre as mais diferentes vertentes dos anos 1940 até 2018), ocorre na região
a execução um plano de Estado, um projeto nacional que é orquestrado não apenas por
uma sistema econômico capitalista, mas tem raízes epistemológicas na compreensão
una de desenvolvimento, progresso e modernização a qualquer custo como único
caminho válido a ser seguido pelo país.
Márcio Souza (2015, p. 175) sintetiza a visão que aqui se tem da relação do
desenvolvimento econômico com a região, quando afirma que “por muitos séculos o
colonialismo e o capitalismo trataram de subdesenvolver a Amazônia, despovoando­a
na busca de mão de obra, destruindo sua diversidade biológica e fazendo terra arrasada
de suas culturas milenares”.
139

O panorama até aqui delineado buscou apresentar a região em um contexto


histórico, político, econômico e social. Assim, localiza­se a Amazônia no imaginário
do projeto de nação como quintal, como vazio demográfico, lugar atrasado e primitivo;
obstáculo ao desenvolvimento e ao mesmo tempo caminho e solução para ele, a partir
da exploração desenfreada de suas riquezas naturais e que necessita de uma
transformação radical na cultura local para que saia do “atraso”.
Os rios, a floresta, a fauna e os amazônidas não estão no retrato do futuro da
nação. Desde a colonização, quando se visava a exploração do território para atender às
demandas do comércio internacional, o projeto de nação não pretendia a formação de
uma sociedade como base para o desenvolvimento, mas via nos fins de um
enriquecimento econômico de alguns, como símbolo de sucesso.
Assim, o Brasil se vê como um país cheio de ambiguidades, conseguindo
posições de destaque tanto como economia emergente, quanto como lugar de
desigualdade social, desemprego, conflitos por terra e violações de direitos humanos;
um país com uma constituição extremamente inclusiva em comparação a outros, mas
com uma democracia frágil e com desrespeito aos direitos básicos da população.
O Brasil que sonha em ser o “país do futuro”, muitas vezes se põe exatamente
como um sonhador, aquele que dorme e tem uma alucinação onde fatos ocorrem de
maneira inexplicável. E, esse sonho de desenvolvimento, de triunfo e reconhecimento,
tem reproduzido historicamente políticas que buscam aniquilar tudo aquilo que não se
insere nessa lógica. Como Escobar (1995), Dussel (2005) e Acosta (2016) situam: o
desenvolvimento é um sonho, uma promessa, mas também um fantasma que assombra
a América Latina.
É uma ideologia que afirma um padrão de vida como referência e sujeita o
reconhecimento e legitimação dos sujeitos à adequação a estes, assumindo que sejam
parâmetros alcançáveis por todos, “para que o pobre saia de sua pobreza, o rico
estabeleceu que, para ser como ele, o pobre deve agora pagar para imitá­lo: comprar
até seu conhecimento, marginalizando suas próprias sabedorias e práticas ancestrais”
(Acosta, 2016, p. 52).
Por isso, é visível que mesmo em diferentes governos e momentos históricos, a
referência de projeto de nação e a ideia de desenvolvimento continuam como
norteadoras das decisões políticas e pessoais. Mesmo quando as mudanças partidárias e
de espectro político apontam conquistas em alguns sentidos, a lógica da apropriação da
Amazônia e o seu lugar na nação continuam intactos, o que pode se analisar por
140

diferentes lentes, sendo uma delas o próprio sistema­mundo moderno e a aliança das
elites nacionais com o capital internacional (Wallerstein, 2004).
O processo de epidermização, como bem colocado por Fanon (2008) e as
diferentes expressões da modernidade/colonialidade (Lugones, 2014; Quijano, 2005;
Maldonado­Torres, 2007), apontam para uma reprodução interna desses parâmetros de
relações sociais.
Para os que, em menor ou maior escala, são beneficiados por esse projeto de
nação, aos que conseguem se inserir na lógica de uma sociedade moderna ocidental
pode parecer impossível outro futuro que não o desenvolvimento nesses moldes.
Entretanto, a realidade do dia­a­dia tem sido e continua sendo a maior
desestabilizadora dessas premissas. É na demanda das necessidades reais e subjetivas,
assim como na frustração com um sistema que se baseia na promessa de ascensão e
felicidade por meio da materialidade, mas que se mostra limitado quando as fissuras do
sistema se tornam mais visíveis.
Desta forma, a “fé global” de desenvolvimento se encontrará desafiada
enquanto houver quem não se identifique com esses parâmetros e muito menos tenha
um “sonho de modernização/desenvolvimento”, assim como para aqueles que até
chegam a sonhar, mas que a própria estrutura inviabiliza que o alcancem.
Não obstante, tem­se observado as subjetividades em torno da lógica
moderna/colonial serem produzidas de forma difusa, não apenas sendo divididas entre
pessoas que reproduzem e se identificam com esses valores e conseguem atendê­los e
os que completamente os rejeitam. O que se propõe aqui é pensar a partir dos projetos
de vidas de mulheres no Tapajós – como essas teias de pertencimento, de
subjetividade, de contraste com um projeto nacional se relacionam e tensionam suas
vidas. E, para tanto, considera­se imprescindível compreender o cenário social,
histórico e econômico local aqui descrito. Não significa dizer que as entrevistadas
estão diretamente inseridas em todos os movimentos ou dinâmicas discutidas, mas que
as relações no lugar se desenvolvem neste contexto macro.
Assim, conhecendo­se mais sobre a história do Tapajós, as faces do
desenvolvimentismo na região, suas conexões à modernidade/colonialidade pela ideia
de projeto de nação assim como o igualmente histórico processo de articulação e
resistência a estas forças, prepararam­me para retornar em julho de 2018, para um
período de 15 dias de viagem, onde já tinha como intenção realizar algumas entrevistas
semiestruturadas com quem havia conhecido nas idas anteriores.
141

7 O QUE UMA MULHER VAI FAZER SE APARECER UMA ONÇA?

Por mais de uma hora, minha mãe, Nice e eu conversamos no redário23 de sua
casa sobre suas perspectivas para o futuro e sua vida morando em Jamaraquá, no dia 11
de julho de 2018. Além das nossas vozes, um silêncio que não é silêncio vem da
floresta que nos rodeia, de diversos animais que desconheço e que Nice
ocasionalmente identifica e compartilha conosco. Já é a minha segunda vez dormindo
no redário e apesar da minha mãe ter crescido e passado sua infância dormindo em
condições similares, ela está mais assustada que eu. Nesse dia, Nice resolve nos fazer
companhia e realizamos a primeira entrevista oficialmente, que se junta a tantas outras
conversas cotidianas, mas que possibilita um pensar e refletir mais profundo.
No momento do retorno, eu já havia conhecido a maioria das pessoas que
entrevistaria e ainda no primeiro contato havia informado sobre a tese e o tema que eu
estava estudando, deixando em aberto o convite para quando eu retornasse, caso
alguém se interessasse, pudesse compartilhar seu ponto de vista.
Na preparação pré­campo, a partir das revisões bibliográficas e das anteriores
experiências em campo, eu defini quatro eixos que guiaram as conversas, seguindo
uma lógica entre a realidade presente, os valores em questão, os projetos de vida, os
impactos das políticas de desenvolvimento e, por fim, as expectativas entre o que a
entrevistada pensa sobre como será o futuro e o que deseja para o mesmo.
O retorno ao Jamaraquá e à casa de Nice foi de reencontro, com direito a
abraços apertados e mapará frito me esperando para o almoço. E um ano após nos
conhecermos algumas dinâmicas já haviam mudado na família. Nice agora estava
trabalhando menos como guia e na recepção dos turistas, atribuição assumida pelas
suas filhas Priscila e Aline. Nice começou a trabalhar na escola do Maguari, que em
julho estava de férias e por isso pôde nos receber.
A nova dinâmica fizera, inclusive, com que Aline mudasse a sua relação com o
artesanato, pois o lucro das vendas é mais individualizado; ela percebeu que o tempo
investido no mesmo dava mais retorno que os passeios, por exemplo. Por terem
alcançado certa estabilidade financeira e tendo suas filhas e filhos mais participativos
na renda da família, Nice começou a fazer novos planos para o seu futuro, como

23
Acomodação da casa de Nice reservada para os hóspedes que fica no seu quintal, com espaço para que
os visitantes armem suas redes para dormirem.
142

começar a graduação de História e Geografia (que uma faculdade privada oferece aos
domingos na comunidade).
Apesar de já ter conversado com Nice informalmente diversas vezes sobre sua
visão, sua vida e seus projetos de vida, o momento da entrevista trouxe elementos mais
profundos para a compreensão da sua realidade.
Sobre como é viver em Jamaraquá, na Flona: ela aponta que é bom, mas o mais
precário ainda é o acesso à saúde.
Assim, né. Pra mim viver aqui, eu acho bom, né… Agora assim, que
ainda tem a precariedade sobre o posto de saúde, que nós não temos
próximo, para chegar nele tem que andar quilômetros, aí vai pra
beira do rio, que é Aramamaí, depois do Aramamaí, que eles vão
encaminhar para a emergência do hospital. Não pode ir direto pro
hospital, se chegar primeiro no hospital, eles mandam de volta pro
posto. Então isso é uma situação, assim, que nós enfrenta
dificuldades, nós não tem mais acesso a transferência do hospital de
Belterra pra Santarém. (...) Antes tinha hoje não tem, se tiver de
morrer, vai morrer aí mesmo. Então isso é a dificuldades que nós
temos; então uma das coisas que é mais difícil ainda é a estrada, que
não oferece um bom acesso, né. Se a gente chegar de moto ou de
carro. Então... é difícil. Não dão ambulância pra vir buscar o
paciente também, todo o tempo não tem óleo diesel, não tem
gasolina, não tem quem venha. Ou outra vez a gente liga, eles dizem
que estão vindo, a gente espera, se for o dia é o dia, se for a noite é a
noite e essa ambulância não chega, não sei pra onde ela vai… (Nice,
entrevista realizada em Jamaraquá, 11/07/2018)

Apesar das precariedades no acesso à saúde e ao próprio deslocamento pela


estrada, ela diz que não cogita sair de lá, até porque ela já morou em Macapá por um
período; sobre morar fora e o que a fez voltar, ela comenta: “Não, sair daqui não. Eu já
saí, né, passei dois anos fora. Mas num… Assim, sair por passeio eu posso até sair,
mas pra morar não”. Por já ter sido uma situação que ela compartilhou comigo em
outros momentos, peço que ela comente um pouco sobre a parte boa, o que é mais
importante para ela e o que foi definitivo para que voltassem à Flona:
Assim… Foi a minha casa, que eu tinha aqui, as minhas plantas, até
eles pôrem abaixo, né, porque não tinha quem zelasse dela e tinha
muito muruci grande aqui, perdi tudo, graviola, pequi… Então pra
mim… Árvore de piquiá eu tinha, quando foi se acabou. E aí assim,
eu não pretendo né, sair daqui, porque é pra mim se tiver de passar
mal, eu passo mal aqui. Se for pra mim sofrer eu vou sofrer aqui.

Nice destaca sempre como sentia falta de suas plantas e a tristeza que sentiu ao
retornar e ver que muitas tinham morrido, também aponta como fator crucial para o
retorno a segurança de moradia, já que possuía uma casa que era sua. Além disso, a
pressão dos filhos contribuiu para a decisão na época, os mais velhos estavam na idade
143

da pré­adolescência e os mais novos eram crianças. Conversando outro dia com um dos
filhos mais novos durante uma trilha sobre o tempo que a família viveu no Amapá ele
reclamou que não podiam sair de casa, que era muito tédio e não tinham nada para
fazer e que, o pior de tudo foi, quando um dia eles estavam indo passear eufóricos para
tomar banho no rio, coisa de que sentiam muitas saudades, depararam­se com a água
“só lama!”, em referência a água barrenta típica do rio Amazonas.
Sobre a influência dos filhos para o retorno ela aponta:
E aqui já criei os meus filhos, já tão dando um jeito na vida deles e
os outros ainda não tão criados, até mesmo ainda tão na [...] deles,
mas assim, né, eu acho que eles não pretendem sair daqui, porque eu
levei eles e quem fez eu voltar foram eles mesmos, porque ele
chorava, essa daqui [Aline] chorava pra vir embora, o outro
também. E aí então, porque eu acho que aqui eles têm uma liberdade
muito maior pra eles estarem brincando, estarem se divertindo, né.
Trabalhando nas coisas deles… E aí uma das coisas é o turismo, que
hoje tá desenvolvendo o jovem, as famílias que não tinham uma
renda assim hoje todo mundo ganha um pouco.

Assim, não apenas fatores que eles sentiam falta da vida na Flona, mas também
ela destaca as oportunidades que se mostraram mais frutíferas na comunidade, como o
turismo, do que na cidade onde estavam à procura de emprego para melhorar a vida da
família, mas que além dos pontos negativos já destacados por ela, ainda era mais
custoso e instável.
O que Nice traz para a nossa conversa me faz pensar muito sobre os parâmetros
de mensuração e avaliação de desenvolvimento, como índices que citei em uma seção
anterior, o IDH e o IPS. Assim, pude perceber um interessante diálogo com a obra do
economista Manfred Max­Neef, o sociólogo Antonio Elizalde e o filósofo Martín
Hopenhayn (2010) a qual busca ir além da crítica ao desenvolvimento, mas retrabalhá­
lo, invertendo a visão do Estado para os sujeitos, colocando as pessoas como o centro
do debate, a partir das suas necessidades.
O mote da obra é justamente que “el desarrollo se refiere a las personas y no a
los objetos” (Max­Neef, Elizalde, Hopenhayn, 2010, p. 16), assim, os autores buscam
propor parâmetros de reflexão prática para um debate mais humano do
desenvolvimento (uma abordagem para além do viés estatocêntrico e economicista), da
qualidade de vida e do bem­estar das pessoas não pelo que se idealiza para elas, mas do
que elas próprias almejam para si, inseridas em determinado contexto sociocultural.
Eles propõem que as necessidades são de ordem existencial, ser, ter, fazer e
estar, e axiológicas como a subsistência, proteção/segurança, afeto, compreensão,
144

participação, lazer/ócio, criatividade, identidade e liberdade (para melhor descrição ver


Anexo I).
Essas necessidades são combinadas de diversas formas e não necessariamente
obedecem a uma hierarquia de importância; as prioridades podem ser constantemente
reformuladas de acordo com um contexto cultural como, por exemplo, por um
elemento cultural uma pessoa pode voluntariamente selecionar ou suspender parte de
sua alimentação, seja para atender a um padrão estético ­ e assim atender à necessidade
de afeto ­ ou por um motivo ideológico, religioso ou político ­ relacionado à
necessidade de participação ou identidade, por exemplo.
Eles defendem ainda que não haja possibilidade científica para afirmar que as
nove necessidades tenham caráter permanente, ainda que algumas (como proteção,
afeto, compreensão, participação, lazer e criatividade) tenham sido encontradas desde a
origem do Homo habilis e até a aparição do Homo Sapiens; assim como algumas
provavelmente apareceram em estágio evolutivo posterior (como a identidade e, mais
tarde, a liberdade). Apesar disso, elas acabam por contemplar e se adaptar a grande
parte das dinâmicas sociais humanas já investigadas por áreas como a Antropologia.
Eles argumentam ainda que o não atendimento a elas possa gerar “patologias” na
sociedade, oriundas da frustração, tais como: o desemprego, o medo, a violência e a
marginalização, por exemplo.
Com base na matriz de necessidades e seus fatores de satisfação, chamam
atenção a algumas conexões possíveis com a fala de Nice até então. Quando ela fala da
importância das plantas e suas árvores como um dos primeiros exemplos do motivo do
retorno à Jamaraquá, pode­se pensar a necessidade do afeto, com ênfase na ordem
existencial do ter onde os autores citam além de amizades, companhia, família e
animais domésticos, também plantas e jardins, denotando que na ordem existencial do
fazer, permite­se cultivar e apreciar, por exemplo.
No ser, o afeto e a relação de Nice com as plantas e árvores também pode ser
analisada como importante para a autoestima, o humor, a paixão e a vontade, enquanto
na ordem de estar destacam­se a intimidade e o lar. Assim também, a importância das
necessidades afetivas dos filhos é ponto crucial para ela e sua decisão.
A segurança de uma casa que já era sua dialoga diretamente com a necessidade
de subsistência que na ordem do ter possibilitam a saúde física e mental, o equilíbrio, a
solidariedade, o humor e a adaptabilidade, significando para tal ter alimentação, abrigo
e trabalho. Tais elementos são necessários para que se possam ter condições de se
145

alimentar, procriar, descansar e trabalhar, formando um ambiente tanto social quanto


vital.
Assim, a nova dinâmica econômica em algumas comunidades na Flona que
começaram a implementar o turismo de base comunitária e o crescente fluxo de turistas
e demanda por artesanato fizeram de Jamaraquá um ambiente mais provável para uma
qualidade de vida do que uma cidade no Amapá e não apenas para Nice e seu marido
Rosivaldo, mas também para toda sua família.
Pergunto então o que ela considera importante para viver bem ali e ela aponta
que: Eu penso assim… Porque eu vejo o meu lado e vejo o lado dos outros, porque tem
famílias aqui que não tem uma canoa pra pescar, não tem uma malhadeira, não tem
nada. Então o que seria legal é que cada um tivesse o que é seu.
Logo, para Nice o importante para viver bem em Jamaraquá não passa apenas
por atender às suas necessidades, mas que todos possam ter condições também, não
pensa somente nela, mas na comunidade toda e a importância de todos terem alguns
itens básicos para poderem viver bem e sobreviver como uma canoa e que todos
tivessem as condições mínimas para ter como pescar, oferecer o serviço de guias, etc.
As condições que fosse assim… Quase, por mais que não fosse igual,
mas que chegasse pelo menos em um nível. Porque tem pessoas aqui
que quando ele vê que já tem uma coisinha, ainda quer ter mais
ainda, e não tá nem aí pra ninguém, só quer saber dele. E às vezes
eu fico pensando assim, legal é se todo mundo tivesse as coisas. O
preciso, principalmente assim, uma… uma geladeira pra guardar
comida, muitos ainda não tem nem energia na casa aqui. Então, tem
pessoa aqui que diz ah, eu tenho também, aí às vezes eu fico
pensando nessa situação, né, porque o certo era que todo mundo
tivesse. Não sei se é porque a gente se planeja também…

Ela comenta que a associação dos moradores dispõe de oito canoas, que são
compartilhadas para os passeios, mas que pela alta demanda já não é o suficiente,
demonstrando a necessidade também de cada família ter as suas próprias ferramentas
de trabalho, já que acontecem casos de perderem um passeio por não ter canoa
disponível.
Na questão de infraestrutura ela cita que apesar da energia elétrica ter chegado
em 2008, o serviço ainda é precário: um preço muito elevado, para um baixo consumo,
além da instabilidade do fornecimento, passando até quatro dias sem energia, que seria
muito importante para ela que isso melhorasse.
Quando comentamos sobre a dificuldade logística e a dependência de ter que ir
a Belterra ou Santarém para resolver problemas burocráticos e outros, ela comenta que
146

um melhor sinal de Internet poderia ajudar muito, economizando o transporte para ir às


cidades, assim como sendo um canal mais direto com possíveis turistas, não
dependendo tanto dos grupos de excursão de Alter­do­Chão que, ao levar os visitantes,
acabam superfaturando em cima dos serviços que eles próprios exercerão.
Além disso, retomamos na conversa as diferenças entre viver em Jamaraquá e a
vida quando estavam fora, no Amapá, além da sensação de segurança, da garantia da
moradia e da liberdade, o contato com as plantas, ela complementa com outro fator
decisivo:
É porque assim... Eu sempre gostei de ter o meu dinheiro mesmo,
independente de marido, de outras coisas, eu sempre quis trabalhar
e ter… o meu, pra mim não tá pedindo “me dá aqui, que eu quero
comprar isso”, eu nunca gostei de ele querer saber o que eu queria,
nem pra quê que eu queria e nunca gostei que ele comprasse uma
roupa pra me dar, eu mesma queria escolher, porque eu queria
comprar pra saber que eu ia usar, né. E então eu… Sempre fui
assim, de não querer só depender do marido pra isso, isso e pra
isso…

Tal motivo dialogava assim com o fato de que quando moravam no Amapá ela
não trabalhava, não possuindo a autonomia financeira anterior à qual já estava
habituada; assim, em Jamaraquá ela diz que: trabalhava fazendo meu artesanato, fazia
tudo o que vendia… E tinha meu dinheiro.
A venda do artesanato começou em 1999. Segundo Nice o turismo ainda
demorou um tempo para começar, mas também na época eles faziam o roçado como
forma de complementar e garantir a subsistência. O artesanato, ela comenta, que
começa nas comunidades após oficinas de capacitação feitas por ONGs que vieram da
Europa e em que as mulheres ensinaram para outras mulheres da comunidade como
aproveitar as sementes naturais e a fazer artesanato de bijuterias e acessórios.
Assim, o artesanato já começa com um processo de incentivo e lida como uma
habilidade/trabalho tipicamente feminina, ainda que, atualmente, homens também
façam artesanato e participem de diversas etapas desse processo. Ela não recorda o
nome das instituições que fizeram a capacitação, mas na entrada de Jamaraquá existe
uma placa que identifica a comunidade e conta a lista de parceiros como o USAID e o
US Forest Service. Outras capacitações foram feitas também no SEBRAE em Belém
depois de um tempo.
Como começamos a tratar de atividades que são mais exercidas pelas mulheres,
levando até mesmo à formação de uma associação das mulheres artesãs, pergunto um
147

pouco mais sobre as especificidades da vivência de Nice enquanto mulher ali na


comunidade.
Ela comenta o fato de ter sempre sido interessada nos assuntos de decisão sobre
a comunidade e que suas muitas ideias, inicialmente, não foram bem aceitas por
algumas lideranças masculinas. Ela destaca um homem em específico, que costumava
se opor mais diretamente sobre a participação dela e de outras mulheres.
O questionamento era de que as mulheres já tinham uma atividade que garantia
renda, o artesanato, e não precisavam desempenhar a atividade de guia, que deveria ser
uma atividade exclusiva dos homens.
Ela conta que ele teria dito em certa situação que as mulheres não deveriam ser
capacitadas para serem guias porque “elas correriam, por exemplo, se vissem uma onça
na trilha, não saberiam como agir”, ao que ela respondeu: “e tu farias o quê se visse
uma onça, por acaso?” Ao passo que ele respondeu que com certeza correria também e
desde então não houve mais resistência aberta à participação das mulheres no grupo
dos condutores.
Nice comenta que apesar de apenas mulheres participarem da associação de
artesanato, os homens contribuem em diversos momentos da produção: catando as
sementes, na produção do látex. Que há uma parceria e que todas as famílias se
envolvem, não sendo uma atividade só das mulheres, mas sim que conta com a
colaboração masculina e familiar no geral.
Outros pontos em que ela identifica como a questão de ser mulher determinou
alguns momentos da sua vida, foi quando engravidou ainda adolescente e foi expulsa
de casa pelos pais, tendo que começar uma vida com Rosivaldo sem condições básicas
e de apoio. Ela volta também à sua infância, quando, por ser mulher e filha mais velha,
recebia a atribuição de cuidar dos outros irmãos, de limpar a casa, etc.
Ainda criança ela também foi morar por um período em Santarém, na casa de
uma professora; ela recorda como uma época muito ruim, pelo trabalho a que ela era
submetida e por não ter sido desde o início sua vontade, mas uma imposição dos pais.
Nice diz que, por ter tido que lidar sem apoio familiar com a dificuldade de
engravidar adolescente, ela sempre se preocupou em ter seu próprio dinheiro e manter
sua independência, para que não precisasse pedir nada a ninguém (como ela relembra
de ter precisado e ter sido negada ajuda em uma fase difícil da vida).
Seus planos são de conseguir fazer um projeto de manejo e uma roça de
mandioca e também iniciar o ensino superior numa graduação de História e Geografia,
148

que ela considera importante para manter a história da comunidade viva e, também,
melhorar a sua capacitação para os serviços de guia.
Quando comentamos sobre algumas políticas de crescimento e
desenvolvimento voltadas para a região como as estradas, hidrelétricas e outras
presentes no PAC, pergunto se ela sente que seu modo de vida é representado por esses
projetos e ela diz que não, porque o fluxo de chegada de muitas pessoas impacta
profundamente no modo de vida das comunidades, principalmente pela entrada de
drogas, o novo hábito de festas e bebidas, causando impacto inclusive ambiental; logo,
são políticas que projetam sobre eles mais impactos do que benefícios.
Ela aponta que, apesar da articulação da comunidade sobre suas demandas para
os políticos, há pouco retorno, já que seus habitantes só são lembrados em época de
eleição. E, por conta disso, os projetos que eles necessitam com mais urgência acabam
sendo resolvidos por eles próprios em aproximação às vezes com as outras
comunidades da Flona. Sobre o futuro, ela espera que melhore a qualidade de vida para
todos os moradores, que o trabalho possa trazer frutos e mais conforto.
Figura 19 – Nice (à esquerda) e Ana Lúcia, minha mãe (à direita).

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2018)

Nice demonstra uma visão otimista do futuro, apesar de reconhecer as


dificuldades e limitações do cotidiano da região, o fato de ter sido sempre ativa nas
149

decisões políticas e debates dos interesses da comunidade e estar atenta às dinâmicas


da região, assim como a relação que ela faz com as mudanças da sua vida no passado
para hoje em dia; enquanto sua filha Priscila em uma breve conversa de 16 minutos
demonstrou mais preocupação que a mãe com o futuro.
Priscila tem 22 anos, é casada e tem um filho de 1 ano. Ela tem assumido as
principais funções da mãe após o trabalho conseguido pela mesma na escola, tanto de
receber os turistas como a preparação das refeições, além de ser artesã.
Ela diz que gosta de viver em Jamaraquá, que se sente mais à vontade em
relação à vida nas cidades, onde não teria tanto lazer, a segurança de poder deixar a
casa aberta, a confiança na relação com os vizinhos, o apoio familiar na criação do seu
filho, a possibilidade de trabalhar na sua própria casa e poder aproveitar o tempo com
seu filho.
Apesar de agora não pensar em sair da comunidade para morar em outro lugar,
ela diz que quando recém­casada tinha essa vontade e foi tentar morar em Belterra,
mas não conseguiu se adaptar, principalmente pela sensação de solidão, insegurança e
a falta de liberdade, sentimentos que podemos retomar a discussão das necessidades à
escala humana (Max­Neef, Elizalde, Hopenhayn, 2010).
Priscila diz que considera importante para viver bem as relações com as outras
pessoas, a relação de confiança e o compartilhamento. Ela comenta sobre as diferenças
na criação do seu filho em uma cidade e ali na comunidade, como poder se sentir
segura, confiar nas outras pessoas e saber que o filho está seguro, que não é preciso
trancar as portas, como o cuidado das crianças e todas as outras atividades são
compartilhadas, ficando mais fácil a vida.
Apesar disso, ela demonstra preocupação com a segurança futura no trabalho
atual e diz que apesar de gostar do que faz, constantemente pensa que talvez no futuro
as condições possam mudar e ela não gerar o suficiente para garantir a sobrevivência
da família; por isso ela acha importante ter outras opções e estar capacitada para elas.
Uma vida perfeita para ela seria ter condições de poder investir nos seus estudos,
começar o ensino superior, para poder garantir um futuro melhor para seu filho. Sobre
pensar no futuro, ela diz:
Eu penso… Até eu tava conversando com as meninas [irmãs]: será se
um dia vai cair da moda o artesanato? Será que a gente vai ter outro
ganho sem ser artesanato? A gente pensa nisso né… Se um dia virar
cidade aqui. Será se ainda vai vir gente visitar a floresta se virar
150

cidade? Claro que não, né? Eles vão ficar na cidade deles mesmo…
(Priscila, entrevista realizada em 12 de julho de 2018 em Jamaraquá).

Como até então eu conversava muito mais com Nice, o questionamento de


Priscila me faz repensar a visão que eu própria estava formando, mostrando como o
fator geracional pode influenciar na formação das perspectivas de futuro e das
preocupações. Enquanto Nice apresenta otimismo, provavelmente por ter como
referência tudo o que construiu e como considera a sua vida atual melhor, Priscila já se
pergunta até quando as condições para a sobrevivência pelo turismo e o artesanato vão
se manter.
Ela indica o risco dessas atividades, pois elas dependem de demanda e
interesse, já que por enquanto está “na moda” o turismo de base comunitária, enquanto
a forma deles viverem e a natureza ali são diferentes do que as pessoas que moram nas
cidades, logo, é um atrativo para elas assim como o artesanato, que apesar de ser muito
bem vendido e chamar a atenção de turistas, as próprias artesãs e mulheres da
comunidade não usam no seu dia­a­dia, mas sim bijuterias sem serem artesanais. Desta
forma, ela ressalta que vê com insegurança a estabilidade das atividades econômicas
que atualmente são a principal fonte de renda na comunidade.

Figura 20 – Priscila

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2018)

Ela reforça os seus planos de se formar em pedagogia, para ter a opção (caso o
cenário mude) e ela possa ter outra fonte de renda, dando aula em escola na própria
151

Flona. Quando pergunto se já houve algum sonho que ela não conseguiu realizar e o
porquê, ela conta que já quis muito ser engenheira florestal, mas que não há condições
no contexto em que ela vive, tanto por falta da disponibilidade de cursos na
proximidade, pelo custo e também a concorrência e preparo para fazer uma faculdade:
Eu me sentia assim: será se eu sou capaz? Já que ninguém aqui foi capaz de ir até lá.
Aí, será se eu sou capaz? Aí eu fiquei nessa dúvida…
Priscila fala de quando via os engenheiros que trabalham para o ICMBio
fazendo um trabalho que era muito próximo do conhecimento que ela adquiriu com a
mãe e com o pai sobre a floresta, como eles eram sempre homens altos e muito
brancos, que nem mesmo eram da região, costumavam vir de São Paulo ou outros
lugares. Ela disse que vendo o trabalho deles percebeu como era possível viver de
conhecer a floresta, mas como era uma realidade distante da sua poder estar naquele
lugar um dia.
O relato de Priscila me fez pensar muito sobre como aquilo que desejamos e
somos incentivados a desejar na sociedade moderna ocidental carrega consigo
condições limitantes e frustrantes, como até mesmo aquilo que desejamos ou
decidimos alcançar é antes de se materializar interpelado por diversos fatores que
possam indicar ser um sonho possível ou não. O quanto alguns sonhos podem ser
sentidos quase como uma vergonha, como uma ousadia utópica a própria possibilidade
de imaginá­los.
Pensei muito também sobre a colonialidade do saber nesse contexto, o quanto o
serviço feito ali por engenheiros e outros profissionais que passaram por um processo
de educação formal e atravessaram etapas burocráticas de seleção, no fim, só é possível
de ser realizado quando aliados aos conhecimentos locais, o quanto os próprios
moradores das comunidades auxiliam e possibilitam o trabalho do ICMBio ao
compartilharem o conhecimento acumulado por gerações na vida vivida ali, ao mesmo
tempo que a colonialidade do saber inferioriza tal forma de conhecimento a ponto de
poder produzir uma sensação de incapacidade intelectual quando não regularizada e
validada pela educação formal.
Não digo aqui que a educação formal é dispensável ou não importante, mas
como as estruturas sociais operam nesse processo e os impactos para autoestima, assim
como os modos de vida de povos que possuem conhecimentos e saberes legítimos e
indispensáveis, mas que gradativamente vão sendo perdidos e desvalorizados. Ainda
que em algumas situações descritas por Nice, como pesquisadores, professores e
152

estudantes que vão para a Flona realizar pesquisas, mas que basicamente apropriam­se
dos conhecimentos que os moradores compartilham sem nenhum tipo de retorno ou
reconhecimento.
Retomando a fala de Nice, é por isso que ela se interessa em estudar História e
Geografia, para que ela própria possa contribuir com o que já sabe, legitimando e
ampliando sua compreensão do contexto da região em que vive.
Sobre como vai ser o futuro, Priscila se pergunta se ainda vai ser seguro deixar
a casa aberta com tantas pessoas chegando para morar na Flona. Ainda que para
pessoas de fora morarem lá apenas com o casamento de alguém que tenha nascido na
Flona, mas ainda assim tem­se notado um aumento dos casamentos e pessoas de fora
indo para lá em busca de uma renda e oportunidade de sobrevivência, com a chegada
do turismo.
Quando comento sobre as políticas de crescimento e desenvolvimento voltadas
para a região, Priscila diz que são mais frequentes em promessas políticas que não se
cumprem, mas o seu impacto se percebe, por exemplo, logo na entrada da Flona; ela
analisa:
Os visitantes chegam lá na entrada e veem logo um desmatamento
grande. Qual é o olhar que ele vai ter? Poxa, logo aqui… Entrada da
Flona e um desmatamento grande. Como não é mais pra dentro se a
entrada é assim, imagine lá pra dentro?

Assim, ao falar de desenvolvimento ela faz uma correlação direta com os


impactos de destruição nos arredores da Flona. Sua fala também me faz lembrar uma
das primeiras impressões quando eu chegava pela estrada e o cultivo de soja causava
um choque na paisagem que eu esperava.
As incoerências das políticas e do projeto de nação em relação às outras
dinâmicas aqui se mostram nítidas. Independente da criação de Unidades de
Conservação (UCs) para tentar alcançar um desenvolvimento sustentável, é
interessante pensar que mesmo criando tais áreas, os impactos ultrapassam esses
limites imaginados, ao passo que a Floresta não obedece a demarcações, mas que a
vida transita e é dinâmica.
Tal apontamento é similar ao feito por Ailton Krenak (2019, p. 8) ao citar
“quando a gente quis criar uma reserva da biosfera em uma região do Brasil, foi
preciso justificar para a UNESCO por que era importante que o planeta não fosse
devorado pela mineração. Para essa instituição, é como se bastasse manter apenas
153

alguns lugares como amostra grátis da Terra”. O argumento de Krenak reforça como as
políticas que até mesmo usam de uma narrativa de “proteção” não respeitam e pouco
entendem sobre como a vida na Terra funciona, como se fosse possível isolar os efeitos
de uma prática ou atividade a um determinado território ou até mesmo como se a
criação de uma pequena área que representasse uma “amostra grátis” compensasse a
destruição de outras vidas.
Neste sentido, podemos frisar também a necessidade da participação (Max­
Neef, Elizalde, Hopenhayn, 2010) que significa fazer parte das decisões que moldam a
própria vida, enquanto a liberdade também envolve controlar o próprio destino, sendo
duas necessidades diretamente relacionadas à organização social e política em torno do
modelo de Estado­Nação moderno, pensando a partir de tais parâmetros, a democracia
e o sistema político aparentam ainda mais distantes de serem ferramentas eficientes
atualmente.
Priscila diz que não pensa também em ter mais filhos, porque considera que
para ter filho é preciso conseguir garantir um futuro para eles e que já se preocupa com
o do seu bebê, o que percebemos atravessar diversas necessidades (subsistência,
segurança, participação, liberdade) e a sensação de falta de controle e poder sobre elas.
Sobre como futuro vai ser, ela acha que algumas coisas devem melhorar e
outras devem piorar. E algo que ela pensa muito é sobre a água, se haverá ainda água
para seus netos e bisnetos. Priscila cita conversas com seu marido sobre o assunto, de
como, por diversas formas a água pode não estar mais lá no futuro, seja se tornando
imprópria para beber ou tomar banho ou, até mesmo, o rio secando por conta da
destruição.
No quesito do que deve melhorar com o tempo, ela imagina que isto pode
ocorrer com as oportunidades de trabalho. Mas o principal, ela reforça no final, que
para ela é o mais importante é que: Eu sou feliz aqui, não me imagino em outro lugar.
Aqui meu filho tem espaço e lugar pra brincar, se fosse na cidade era só dentro de
casa, não ia ter oportunidade de correr, de se sujar.
A fala de Priscila remonta a preocupações referentes principalmente a
dinâmicas do presente, sobre como ela vive atualmente e se será possível continuar
esse tipo de vida, que ela considera boa, se será preciso se adaptar ou não, se a natureza
continuará a mesma ou se os efeitos das políticas para a região irão acabar com a
floresta e o rio.
154

Figura 21 – Priscila jogando bola com sua sobrinha e seu filho em um fim de tarde em Jamaraquá

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2018)

Após passar alguns dias na casa de Nice, conhecendo mais sobre a comunidade
e a natureza na Flona, como o lago do Caranã, onde não se pode pescar por proibição
da Mãe D’Água, conhecer o igapó de canoa à noite com o céu estrelado e muita
adrenalina, assim como muitas conversas, cafés e tapiocas, compartilhando histórias,
semelhanças e diferenças, seguimos para Santarém ao pegarmos o ônibus da
comunidade que passa às 5 horas da manhã.
Chegamos cedo ainda em Santarém, por volta das 8 horas e antes de seguir para
o porto, aproveitei para pagar algumas contas que Nice havia me pedido, para evitar
que ela tivesse que se deslocar até Belterra para fazer o pagamento.
Antes de embarcar tento contato com Dona Elzanira e Seu Colau, mas não
consigo por conta da instabilidade do sinal de celular na comunidade, assim, só sendo
possível confirmar um lugar para dormir em uma das pousadas dos donos “paulistas”.
É a primeira vez que volto para a Coroca e na companhia de minha mãe sigo as
instruções que Cris me deu, que eu me lembrava da primeira viagem. O barco demorou
a sair por conta de uma chuva; só conseguimos sair por volta do meio­dia. Quando nos
distanciamos de Santarém, Seu Viviano, um senhor de 80 anos que mora na
comunidade do Mentai, no Arapiuns, comenta para mim e para minha mãe que vamos
pegar maresia e que o comandante não deveria ter saído àquela hora.
155

Quando chegamos à parte do trajeto que é o encontro do rio Tapajós com o


Arapiuns a viagem que já não estava tão tranquila fica ainda mais instável, com muita
ventania e a instabilidade da embarcação. Em vários momentos o barco inclinou­se em
direção à água fazendo mesas e bagagens se chocarem com força, nesse momento, a
preocupação é nítida em todos da embarcação. O que, para mim, era uma maresia
comum com a qual todos da comunidade deveriam estar acostumados, logo mostra­se
algo realmente de risco.
Além de mim, minha mãe e Seu Viviano estavam também toda uma família da
qual imediatamente as pessoas começaram a colocar os coletes enquanto as crianças
choravam e as mulheres iniciavam uma oração. Apesar da difícil travessia,
conseguimos chegar ao nosso destino após 6 horas de viagem, das quais 2 horas se
deram nos empecilhos da maresia.
Foram várias as vezes em que a embarcação quase virou, chegando a termos a
certeza de que iríamos naufragar, além do impacto que esse momento trouxe para a
pesquisa e para a minha relação com as pessoas da Coroca, conheci uma outra face do
rio Tapajós, o qual sempre vi como um rio tranquilo, espelhado e de águas cristalinas.
Eu apenas já tinha ouvido falar de como o rio fica quando “virado”, ouvia sobre a
força, a imprevisibilidade da formação de ondas e do perigo. Percebi que tinha
projetado uma idealização idílica e poética do rio, mas que havia agora o conhecido
mais a fundo. E o respeitava ainda mais.
A demora além do previsto levou a um desencontro com a família que nos
receberia na pousada paulista na Coroca. Dessa vez a sensação de chegar foi diferente,
pela distância que a pousada tem da comunidade, não havia ninguém a nos esperar na
chegada. Faz­se importante a descrição desse dado, principalmente, pelos fatos que
ocorreram nos dias seguintes em decorrência dessa situação, modificando a dinâmica
da relação com a própria comunidade.
Após a noite solitária e ainda um pouco desnorteada pelos acontecimentos
anteriores, no dia seguinte encontramos as primeiras pessoas (a responsável pela
pousada e sua filha, Mel). Aos poucos os vizinhos mais próximos à pousada – a família
de Dona Silvana – acabam sabendo do temporal e as dificuldades da viagem por minha
mãe, que saiu mais cedo para conhecer a comunidade, e eles se preocupam em nos
receber e saber mais detalhes do ocorrido.
Relataram então que a embarcação em questão realmente era de risco, por não
possuir estabilidade, sendo a menos recomendada para esse tipo de viagens. Depois de
156

algumas explicações nos oferecem a volta para o porto de Santarém na embarcação


própria da associação de pescadores da Coroca, já que no outro dia algumas pessoas
fariam esse trajeto.
O acolhimento no segundo dia também veio com críticas dos moradores ao
dono da pousada, pela sua ausência na recepção e assistência; apontaram que esse tipo
de comportamento “mancha a imagem da comunidade”, além de relatarem que a
relação com o proprietário não é muito próxima, dizendo que vários visitantes saem
com uma impressão errada da Coroca pela falta de receptividade. Aqui considero
importante apontar como essa experiência toda possibilitou a percepção dos efeitos da
chegada de novas pessoas nas comunidades, principalmente de outras regiões, em que
a relação com o lugar é muitas vezes de lucro e não de relação comunitária e lógica
coletiva. Alguns moradores comentaram que, por outro lado, enquanto os turistas
costumam ir para lá buscando conhecer a comunidade, muitos preferem o que a
pousada oferece, isolamento, sem contato com os moradores.
No dia da minha chegada, 13 de julho de 2018, houve um encontro das
comunidades do PAE Lago Grande – em que moradores da Coroca participaram,
inclusive o dono da pousada onde me hospedei ­ moradores de todas as comunidades
estavam denunciando ao Ministério Público a presença ilegal da mineradora Alcoa,
multinacional com sede nos Estados Unidos, nas proximidades da comunidade, em
Juruti.
A reunião era o assunto entre todos: a aproximação da Alcoa, a necessidade de
se reorganizar e aprimorar o turismo para que as pousadas dos paulistas e a diferente
dinâmica que os mesmos levaram à comunidade afetam, novos terrenos com o risco de
serem vendidos, a ilegalidade da venda de terrenos sem a aprovação da associação, as
compras em outras comunidades de terras por noruegueses – corre o boato que seria a
criação de uma vila inteiramente de estrangeiros –, os casos de extração ilegal de
madeira, visíveis todos os dias nas barcas que levam toras de madeira pelo rio
Arapiuns.
Em conversas com a família de Dona Silvana, uma das mais antigas moradoras,
sou informada que, recentemente, havia sido feita uma nova eleição para a presidência
da associação dos moradores, sendo Gildson o novo presidente – que reside em
Santarém – e o seu vice morando na Coroca. A estratégia visa facilitar a representação
e organização das atividades da comunidade.
157

Alguns filhos de Dona Silvana moram em Santarém, sua cunhada mais nova,
Enilde, é professora e passa as férias na comunidade e um filho seu também mora na
cidade; era a primeira vez que a sua filha pequena conhecia sua comunidade de origem.
Após me apresentar e tocar no assunto da pesquisa recomendam­me entrevistar
a presidente da Associação de Trançados do Arapiuns: Luzinete (Luza). Com muita
disposição da parte de Luza, conversamos sobre os mesmos temas abordados nas
entrevistas com Nice e Priscila.
Luza não nasceu na Coroca, mas se mudou ainda jovem ao se casar com um
filho da comunidade e a sua relação com o lugar é de profundo pertencimento. Agora,
com 45 anos, tem 8 filhos, é casada, artesã e presidente da ATA. Ela cresceu em
Santarém, e por essa experiência ela relata não sentir saudades e diz que não pensa em
voltar:
Gosto muito [de viver na Coroca]. Não nasci aqui, como te falei, né,
nasci do outro lado, lá é banhado pelo rio Amazonas, não é dessa
cor aqui [do Arapiuns]. Nem gostaria de falar em ir pra cidade. fui
criada em Santarém, morei muito tempo lá, mas não tenho saudade
pra voltar. O barulho, o calor por causa do asfalto, correria,
preocupação, risco de assalto. Em todo lugar a gente corre um risco,
na cidade facilita alguma coisa e aqui já não facilita, né. Educação,
saúde, é muito melhor lá. Se eu morasse lá, meus filhos teriam
muitas oportunidades, né. Mas por outro lado, tem o lado bom que
os filhos da gente podem ir pro lado do bem, mas tem também o lado
das drogas, o lado das bebidas. Mas eu tenho filho que mora em
Santarém, minha filha também foi morar lá e voltou, porque não
conseguiu passar numa faculdade e agora meu outro filho tá fazendo
o terceiro ano também. (Luza, entrevista realizada em 14 de julho de
2018 na Coroca, Arapiuns).

É possível destacar na fala de Luza a relação afetiva e a conexão com a Coroca


e o seu modo de vida. Mesmo tendo já tido experiências morando em Santarém, ela
pesa os pontos positivos e negativos, principalmente no tocante ao acesso a serviços
básicos, mas considera que prefere a Coroca por ter melhor condição de viver, pois
apesar das dificuldades na comunidade ela aponta como o contexto na cidade pode ser
mais difícil de serem contornados:
Então, assim, eu prefiro morar aqui na Coroca. E pra morar lá [em
Santarém] eu teria que ter tipo assim um estudo, um emprego pra
mim trabalhar, porque assim sem um salário fixo pra morar em
qualquer cidade a gente não consegue sobreviver por muito tempo
ou não tem uma vida adequada. Então, aqui não, dá pra gente viver
sem ter esse salário, né, a gente pode plantar, colher, criar, pescar,
tem um outro jeito de sobrevivência. Aqui eu vivo sem nenhum
centavo, tem dia que eu não tenho nem um real no meu bolso, mas lá
na cidade se eu não tiver esse real eu vou passar necessidade. Não
158

vai ter como pescar, não vai ter como pegar uma fruta, nem como
emprestar, porque nas cidades você não tem um…, você tem um
vizinho porque você mora perto de alguém, mas você não convive ali
né. E dentro da comunidade
comunidade tem tudo isso, se eu não tenho alguma
coisa, mas meu vizinho tem, eu posso emprestar ou ele pode me dar,
então tem todas essas diferenças. Por isso gosto muito da Coroca,
defendo a Coroca e tô defendendo a Coroca! (risos)

Figura 22
2 – Luza abrindo a lojinha da ATA.

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2018)

Percebe­se
se o contraste na fala de Luza, justamente sobre o que ela aponta como
prioridade para viver bem: ter outros meios de sobrevivência que não necessariamente
ligados ao dinheiro, terr relações
relações de comunidade e confiança, segurança e tranquilidade,
clima mais agradável.
Assim como nas falas de Nice, Luza traz referências ao que se aborda pelas
necessidades à escala humana, o que percebemos também que dialoga com o proposto
pelo Bem Viver, ou seja, “essencialmente, um processo proveniente da matriz
comunitária de povos que vivem em harmonia com a natureza” (Acosta, 2016).
Tem­se,
se, assim, uma ponte entre o que é apontado pela noção de
desenvolvimento à escala humana e a discussão do bem viver
iver em torno de seus valores
e experiências e práticas demonstram a capacidade para se enfrentar a modernidade
colonial (id.), ou seja, como apesar da lógica dominante e que deslegit
deslegitimou outras
epistemologias e formas de relações, estas não desapareceram, mas existem em outros
formatos.
159

Como Luza aponta, mas também nota­se na fala de Priscila, os laços


comunitários são um fator muito importante para viver bem, seja pela segurança, a
confiança, mas também da afetividade, proximidade e senso de coletividade, o que não
encontraram na vida nas cidades. A fala de Luza traz, por exemplo, como pela
solidariedade e comunidade é possível uma sobrevivência mesmo sem o dinheiro,
numa dinâmica capitalista, um trabalho nos moldes moderno, a sobrevivência e a vida
são compartilhadas e não individualizadas, não se está só quanto à criação das crianças,
à produção, à organização da sociedade, o que está alinhado com o que Acosta (2016)
analisa como um modelo que visa o bem conviver em comunidade e na natureza
respeitando direitos humanos e direitos da natureza inspirado na reciprocidade
solidariedade, mostrando que é possível dentro do capitalismo modos de vida assim,
apesar dele – tal relação é retomada e aprofundada nos capítulos 10, 11 e 14.
Importante destacar que a abordagem de Acosta (2016) tem como referência o
contexto cultural do mundo indígena equatoriano, boliviano, andino e amazônico e,
apesar das duas comunidades em questão não serem indígenas, o próprio contexto
regional que já foi apresentado previamente e as próprias características dos modos de
vida demonstram uma similaridade de cosmovisão compartilhada com as do Bem
Viver.
No caso de Jamaraquá na Flona, por exemplo, na trilha existe um pequeno sítio
arqueológico pelo qual passamos e onde estão diversos itens identificados como
evidência da ocupação Munduruku ali, havendo até mesmo aldeias autodeclaradas na
Flona. O assunto chega a ser até mesmo um pouco polêmico já que para algumas
pessoas a autodeclaração teria sido uma mentira, que ninguém ali seria indígena,
enquanto outros apontam que mesmo não se declarando, as comunidades todas da
Flona são resultado da ocupação Munduruku, mesmo que com o tempo tenha­se
perdido a língua e muito da cultura, mas que são notáveis as heranças culturais de
ancestrais na forma de roçado, nos conhecimentos e saberes da floresta, dos remédios e
outras práticas do sistema cultural de saúde como puxadores de corpo e benzedeiras.
Assim, o movimento de etnogênese no Tapajós, já citado anteriormente,
defronta­se com identidades em conflito, entre a autodeterminação e o rechaço, um
passado distante e independente e as heranças atuais e presentes no dia­a­dia, na
cultura e na pele. Não é um ponto central, nem o objetivo deste estudo, porém, são
dinâmicas nítidas e recorrentes que não podem ser ignoradas, já que dialogam
160

profundamente com o debate sobre modernidade/colonialidade, influenciando também


nas subjetividades e nas referências de modo de vida que se almeja.
Acosta (2016) afirma que pensar o bem viver é questionar o conceito
eurocêntrico de bem­estar e enfrentar a colonialidade do poder, enquanto a noção de
desenvolvimento carrega em si o problema que é a impossibilidade de todos
desfrutarem dos mesmos padrões de vida almejados e indicados como ideais, seja pela
estrutura e dinâmicas próprias da desigualdade e exclusão inerentes ao capitalismo,
seja pela insuficiência de capacidade da natureza de atender a essas demandas sem que
um colapso ambiental seja uma consequência.
Sobre este ponto, quando converso com Luza sobre as políticas de
desenvolvimento, ela própria logo completa a frase com o termo e seu sinônimo ­
progresso ­ e afirma que é contra. Pois quando traz algum benefício, é muito pouco e
“para as comunidades eles não deixam nada, só a destruição”.
Ela cita a situação das grandes madeireiras no rio Arapiuns, que continuam
causando muitos impactos na região, apesar da luta das comunidades para tentar tirá­
los da região junto ao poder público. Ela relata que já são percebidas mudanças no
clima que mudou bruscamente, que já notam o aumento da temperatura, no ciclo das
chuvas e que as atividades das madeireiras também poluem o rio e o ar.
As ações dos madeireiros também levam a uma desestabilização das relações
comunitárias, que Luza destaco como muitas vezes “compram as pessoas que são
fracas e por serem comunidades muito afastadas, as políticas públicas não chegam,
então essas comunidades eram muito carentes”. Luza comenta que a situação precária
deixa algumas comunidades mais vulneráveis às propostas de trocar as terras por um
motor de luz ou a abertura de ramais para facilitar o acesso a estradas, a construção de
escolas, mas que apesar das promessas, hoje em dia, essas populações não têm mais
meio de sobrevivência por terem vendido suas terras e a sua principal fonte de renda
que era a construção de embarcações está comprometida justamente pela presença das
madeireiras.
Para Luza, pensar no futuro é preocupante por conta da presença das
multinacionais e das madeireiras. Ela descreve ter uma sensação de medo de que no
futuro a situação piore. Relata que quando ela chegou ao Arapiuns nunca imaginou que
um dia a região viveria essa disputa de compras de terras e a ação desses grupos
entrando, mas apesar do medo ela reforça:
161

Às vezes é até difícil dizer que a gente não espera um futuro muito
bom, mas eu espero que a gente vença, que a gente consiga derrubar
todas essas, por exemplo, tipo a Alcoa; estamos numa grande luta
para que ela não possa entrar dentro do PAE Lago Grande; então,
se ela não entrar, vai ser muito bom pra gente, pro futuro porque a
gente não vai ter a consequência de ter rio contaminado, né, de ter
as famílias sendo deslocadas de suas comunidades, de ter que deixar
sua tradição pra viver uma outra vida; então o que a gente quer é
que continue e melhore, mas que melhore assim, a gente lutando, que
melhore até as florestas, que as famílias possam exercer esse papel
de não desmatar, reflorestar cada vez mais, preservar o que ainda
tem.

Ela acrescenta também que a vida agora é melhor do que era antes,
principalmente porque quando ela chegou à comunidade havia muito trabalho de roça
que deixou muitas sequelas na sua saúde, que apesar de ser um trabalho bom, por ser
muito desvalorizado ela não considera que compense. Hoje em dia ela precisa evitar o
sol por ter muitas dores de cabeça, sua coluna, as mãos e a vista também foram muito
prejudicadas, o que dificulta até mesmo que ela continue fazendo os trançados de
palha, que ela gosta muito de fazer.
Ela ponta o turismo comunitário como outro fator de melhoria, contanto que se
mantenha ainda sob controle da comunidade, mas que a valorização da natureza local e
dos artesanatos contribuem muito para a melhoria da comunidade. Outro elemento que
ela destaca que melhorou foi o acesso ao poder público por meio de audiências, que já
ocorrem nas próprias comunidades e não só em Santarém.
Figura 23 – Comunidade de Coroca

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2018)


162

Um elemento interessante percebido nas três entrevistas até então foi que na
primeira questão, sobre como é viver no lugar, tanto Nice quanto Priscila e Luza logo
após afirmarem que é bom, traçaram argumentações sempre em oposição à experiência
da vida nas cidades. As três também tiveram experiências de saída e retorno, adotando
uma postura de não considerar ou desejar sair novamente no futuro.
É comum também nas falas a associação da cidade e o acesso a serviços básicos
(principalmente saúde), mas os pontos a favor da vida no local são a própria qualidade
de vida e o bem viver, como liberdade, solidariedade, segurança e o pertencimento às
comunidades.
No caso da fala de Luza, no contexto da Coroca, percebem­se outras tensões
diferentes das vividas em Jamaraquá por Priscila e Nice. Pode­se identificar que a
categoria de unidade de conservação da Flona favorece uma maior segurança em
relação à questão territorial, ainda que Priscila tenha demonstrado uma preocupação
com a chegada de novas pessoas de fora (pelo casamento com moradores das
comunidades), ela projeta para um futuro mais distante esse impacto, enquanto Luza
apresenta um quadro imediato de tensão já em andamento e que esbarra em
dificuldades políticas.
Mesmo havendo a restrição da aquisição de terras no caso do projeto de
assentamento agroextrativista e a aproximação da Alcoa sem autorização, os dois
fenômenos continuam a ocorrer e tensionar os projetos de vida da população local. Em
seções anteriores, citei o desfecho da reunião com o Ministério Público do Estado do
Pará, que lançou uma nota condenando as investidas da Alcoa, em 27 de julho de 2018.
Outra observação possível foi sobre a importância dos laços comunitários não
apenas nas conversas formais com Nice, Priscila e Luza, mas também como entre as
duas comunidades havia um processo diferente de interrelação. Enquanto em
Jamaraquá alguns anos após o início das atividades de turismo de base comunitária
Nice destaca o surgimento de diferenças nítidas entre as famílias, os que têm mais
dinheiro, mais ferramentas de trabalho e os que tinham menos, ainda que o formato da
associação garanta que todas as famílias sejam igualmente recompensadas pelos
trabalhos de guia, a diferença e a desigualdade são fatores novos.
Nice comenta como a partir dos momentos que alguns passam a ter mais coisas
que os demais, o que ela atribui a uma atitude de planejamento e investimento, a
desconfiança entre as famílias começou a existir, enfraquecendo os laços comunitários.
163

Contudo, não existem de forma muito explícita pelo menos ameaças diretas à
comunidade, o que poderia ser um fator que contribui para esse fortalecimento.
Enquanto isso, nesse momento, na Coroca, a atividade do turismo por estar
ainda com menor fluxo e por estar localizada em um território com menos segurança
jurídica em comparação à Flona e com mais e diversas ameaças diretas, percebe­se
ainda um alto grau de solidariedade e proximidade comunitária. Estes e outros
elementos tiveram desenrolamentos posteriores em outras visitas.
Enfim, no dia 15 de julho retornamos ao porto de Santarém no barco da
associação da Coroca, com laços estabelecidos com a comunidade e muitas amizades
feitas, retornaria no final do ano tanto à Jamaraquá quanto à Coroca, em poucos meses,
acontecimentos do cenário nacional impactaram profundamente as dinâmicas na
região.
164

8 O TERRITÓRIO É CHAVE PARA CONTER TUDO ISSO OU GERAR UMA


GUERRA DE VEZ

Desde o passado até os dias atuais, o território e


a cultura indígenas têm sido as linhas mestras de
determinação para a sustentação de um povo.
Quando dizemos “território”, não estamos
simplificando o termo para algo simples e final;
estamos expandindo o termo para algo mais
digno no que se refere aos direitos dos povos
indígenas. Um território não é apenas um pedaço
ou uma vastidão de terras. Um território traz
marcas de séculos, de culturas, de tradições. É
um espaço verdadeiramente ético, não é apenas
um espaço físico como muitos políticos querem
impor. Território é quase sinônimo de ética e
dignidade. Território é vida, é biodiversidade, é
um conjunto de elementos que compõem e
legitimam a existência indígena. Território é
cosmologia que passa inclusive pela
ancestralidade.
(Eliane Potiguara em Metade Cara, Metade
Máscara)

Após o retorno para Alter­do­Chão foi possível marcar uma conversa com
Layse (Lalah), de 31 anos, indígena Borari, que também tem ascendência africana,
sendo parte de sua família originária de um quilombo. Ela nasceu em Alter e nos
últimos anos têm sido referência na articulação de movimentos sociais na região do
Tapajós, como o Movimento Tapajós Vivo.
Ela atua muito na defesa das questões indígenas e além de trabalhar como guia,
a partir de suas visitas a diversas comunidades indígenas, tem um ponto de vendas de
artesanatos e outros produtos. Ela reforça que toda vez que traz os itens feitos pelas
comunidades é comum que eles digam para ela que não querem que as pessoas
comprem o artesanato apenas por acharem bonito ou estético, mas que a Lalah sempre
fale deles, que eles existem, que por meio das suas artes as pessoas conheçam a sua
história e sua luta. É um pedaço de suas culturas.
Enquanto andamos pelas ruas de Alter acompanho Lalah que vai ao encontro de
um amigo Wai­Wai para repassar um dinheiro de vendas feitas na lojinha; no percurso,
ela comenta comigo sobre como considera tardio o seu processo de tomada de
consciência de viver na Amazônia além de sua identidade indígena e de origem
africana, por terem sido elementos que ela relata que se tenta muito apagar na região.
Então, é... [pausa] Pra mim, eu tava até falando com esse grupo que
passou por aqui, tava conversando com eles totalmente sobre isso,
165

sobre como eu via a Amazônia e como eu vejo, né, hoje em dia,


porque antigamente, quando eu era mais nova, eu via a Amazônia
através do olhar da televisão, da Globo, do globo repórter, sempre
tinha a sexta-feira que falava da floresta e noutro dia era um
assunto, que não tinha nada a ver. Eu ficava esperando; e eu olhava
aquilo fascinada, "onde será que é isso?", não sabia... Porque
mesmo na escola, na universidade, a gente não teve esse olhar assim
pra floresta como um ambiente... com pessoas, populações inteiras
morando aqui... Sempre foi muito comercial essa ideia que eles
davam pra gente sobre como utilizar esses recursos da melhor forma
e quando eu abro o mapa já trabalhando com turismo, já começo a
olhar a minha região, "pô, tô no meio dela, tô praticamente no
coração da Amazônia" e não me sentia amazônida, apesar de estar
aqui… (Lalah, entrevista realizada em 17 de julho de 2018 em Alter­
do­Chão).

Figura 24 - Lalah em atividade de guia na comunidade de Urucureá

Foto: Facebook, Página Lalah Amazônia (Junho de 2018).

O que é relatado por Lalah é um processo comum vivido por muitas pessoas na
Amazônia, pelo qual eu também passei. Mesmo viver na Amazônia enquanto território
definido não necessariamente constrói uma relação de pertencimento. O próprio nome
remete muitas vezes a um lugar­espaço definido de fora, que abarca muitos povos e
culturas, os quais podem ter relações de pertencimento com diferentes ideias de
Amazônia, muitas vezes sendo a identidade com uma localidade específica ou um rio.
Porto­Gonçalves (2015) sintetiza que as imagens construídas sobre a Amazônia
durante a sua história envolvem: a invenção enquanto espaço homogêneo
166

culturalmente e geograficamente; a ideia de natureza imaginária localizada como o


outro lado da modernidade, o tradicional; como região periférica marginalizada em
relação às demais regiões do Brasil; como questão nacional, um espaço da
materialização a serviço dos interesses nacionais; como o já citado vazio demográfico;
uma reserva de recursos (das florestas, das águas, da biodiversidade e dos solos); uma
fonte de energia e mineração; uma terra de conflitos; reserva ecológica do planeta;
como região atrasada que fixa e cria um estigma sobre a região e não a vê como
“resultado das vicissitudes históricas do processo de modernização (ibid., p. 65); e, por
fim, relacionada à questão indígena e integridade do território nacional, onde as
populações indígenas são vistas como “ameaça” à soberania pelo princípio da
autodeterminação dos povos.
Tais imagens ou visões sobre a Amazônia já foram difusamente abordadas nas
seções anteriores e Lalah traz também em sua fala críticas a muitas dessas imagens.
Quando ela refere­se principalmente à demora da tomada de ciência de viver na
Amazônia por não se identificar com o que a televisão reproduz e apresenta algo muito
distante da sua realidade, como um lugar no qual ela não sabia onde estava e muito
menos vivia com ele uma relação de pertencimento.
Não tinha aquela coisa do ser amazônida, [pausa], trabalhar com as
comunidades, assim, me despertou muito essa questão de olhar a
floresta como... Como mulher também. Sempre falo "a Amazônia, ela
é mãe, ela cuida de todos nós, e o que a gente tem feito como filhos?,
né?", então isso me preocupou nesse ponto, aqui é a hora de fazer
alguma coisa pra tentar compreender isso o mais rápido possível,
porque eu não posso propor mudar nada sem antes eu conhecer...
Então como eu não tive conhecimento nem no ensino fundamental
nem no ensino médio, não sabia o que tinha acontecido aqui, quem
colonizou aqui, quantos povos passaram por aqui e o que me
incomodava assim é que muito dos turistas que vinham, estrangeiros,
eles sabiam muito mais sobre a floresta do que eu aqui, então eu
comecei a olhar os sites internacionais sobre a Amazônia, eles
acabavam sendo os financiadores de vários projetos aqui dentro,
levavam todo o conhecimento daqui e comecei a ler muito sobre
colonização, navegação, população tradicional...

Ela aponta como o próprio sistema educacional foi um fator que dificultou esse
conhecimento sobre si e o lugar onde vivia, já que o conteúdo não dialogava com a
realidade local, mas intensificava outras referências, enquanto ela começou a conversar
com pessoas e perceber que pesquisadores de outros países sabiam às vezes até mais do
que ela e outras pessoas daqui sobre a região.
167

A sua atenção começou a ser chamada para entender e conhecer mais sobre a
Amazônia, sobre o que se fala e se produz sobre a região e mesmo encontrando muitas
referências de pessoas da Europa e outros países, ela buscou também referências dos
povos no contexto pré­colonial. Tal dinâmica demonstra mais uma vez como opera a
colonialidade em relação ao saber, ao poder e ao ser, de forma que as subjetividades
são produzidas.
E o que me incomodava era isso de ter nascido aqui e não ter
conhecido, não saber muita coisa que as pessoas perguntavam, foi aí
que eu comecei a estudar, principalmente a questão da população,
porque me incomodava muito a fala das pessoas que vinham pra cá,
pra dizer que isso aqui era só mato, me incomodava não que fosse só
mato, sim, porque o mato... [pausa] Incomodava dizerem que aqui
tava protegido e não tava, tinha uma população, tem várias
populações sofrendo muito, e essa invisibilidade me incomoda
muito... [pausa] Comecei a olhar um pouco das rotas que os antigos
faziam, entre Peru, costa brasileira, entrando aqui na Amazônia e eu
vi que vazio demográfico isso aqui nunca foi e eu sempre aprendi
que foi, tanto é que a floresta em si ela toda é fruto de manejo desses
povos, eu acredito muito nisso e tem pesquisas já provando... Pra
mim foi um choque.

Em sua fala, Lalah destaca o incômodo que ela sentiu quando começou a se
aprofundar mais sobre a região em falas que reproduziam falácias como o vazio
demográfico e desconsideravam as diversas etnias, tomando­as de forma homogênea,
ignorando os próprios conflitos que existiam antes da colonização:
Como era muita gente, existia sempre confrontos entre si, até por
questões territoriais mesmo, que é a visão que as mulheres tão tendo
agora, por exemplo antigamente se confrontavam povos entre si por
questões territoriais, defender o que é seu e hoje em dia as mulheres
tem essa sacada de que a luta é pelo território, porque não tem mais
sentido tu sentar pra falar de educação, saúde, projeto, senão tem
um lugar, então tem que se tratar do território primeiro, se o
território tá seguro, tá bem marcado... Aí sim dá pra discutir outras
coisas com mais clareza, mas hoje em dia, nós mulheres, a gente
discute muito território, tendo esse território em pauta, a gente
consegue ter uma certeza que a nossa continuidade, né, os filhos, vão
ter um lugar pra morar, aí é pra eles...

A relação com o território é ponto central, destacado por ela para pensar
qualquer outro tema na luta dos povos indígenas na contemporaneidade, por ser o
básico e ainda inseguro para muitos, constantemente ameaçado; só se faz possível
pensar em um futuro e outros temas tendo­se um lugar como referência, como
segurança e garantia para a continuidade da existência de um povo.
Por enquanto, ela não pensa em se mudar de Alter­do­Chão ­ uma possibilidade
para ela talvez seja para fazer mestrado em Brasília ­, por estar envolvida com o
168

ativismo da região, morar em Alter­do­Chão possibilita para ela um lugar estratégico


para as viagens para as comunidades ­ que ela faz com frequência.
Quando pergunto o que ela considera importante para viver bem, ela diz que
mais do que o que é pra ela, como eu coloco em minha fala, mas que para ela é algo
que se pensa a partir do coletivo. Logo, ela diz que não consegue pensar algo apenas
para si, mas que o que lhe vem à mente é o incômodo de pensar nas mulheres que estão
inseguras, logo, para ela é importante:
Esperar de uma população que precise de um ambiente seguro, de
um ecossistema limpo, a gente não tá brigando só pela aldeia, a
gente tá brigando por um sistema global né... [Pausa] Pra mim
quando as pessoas começarem a entender que não tem seu ar
próprio, que elas tem que dividir com todo mundo o mesmo ar [...]

Em diversos momentos, antes mesmo que eu mencionasse diretamente a


questão das políticas de desenvolvimento, Lalah fez várias críticas a essa ideia,
processo que ela própria passou a questionar quando fez faculdade de gestão ambiental
e percebia uma fala incoerente com aquilo que ela via na realidade, ao mesmo passo
que percebia que o conhecimento produzido ali não era neutro, mas reproduzia valores
e interesses, que a própria ideia de desenvolvimento sustentável não é possível e muito
menos garante direitos aos povos tradicionais, isto se dando principalmente pelo fato
que:
Tudo o que é pensado pra cá é pensado fora daqui, né, você vê,
desde o ciclo da borracha, se eles tivessem dado atenção que o solo
daqui não é fértil, que o sistema de monocultura, que as seringueiras
iam ter problemas estando umas juntinhas da outra, eles não...
[pausa] acharam como relevante essas questões das pessoas mais
antigas de lá, eles atropelaram todo esse conhecimento, arriscaram
fazer isso, tiveram muito problemas com doenças, ao mesmo tempo,
logo depois, pensaram em vários projetos, também que deram errado
por conta de não se fazer um projeto junto, criar algo junto, pra
desenvolver de baixo pra cima... Os projetos já caem aqui, de
paraquedas e a gente tem que aceitar, porque na França já tem, ali
já tem e ali já tem e a gente tem que ter... [pausa] Não gosto muito
dessa forma não, nunca dá certo.

Mas ela também indica algumas complexidades em discutir o tema em relação


ao desejo das pessoas e aquilo que elas almejam:
Essa fala do desenvolvimento sustentável, ela traz muito essa visão
de que a gente tá muito atrasado aqui e que precisa desenvolver, né,
porque imagino que, como eu falei, o território é muito grande, e o
que é que a gente tem como referência de desenvolvimento? É uma
cidade, com muitos prédios, com muito dinheiro, com muita gente
trabalhando, dinheiro circulando e não é a nossa realidade, então eu
fico imaginando essa galera dos ribeirinhos assistindo novela,
169

assistindo... vendo aquelas cenas acontecerem e hoje imaginando


assim "hoje a gente ainda vive numa casa assim, legal é morar num
apartamento, morar um em cima do outro", e... essa visão, por
exemplo, uma vez lá no Xingu eu fui elogiar o céu que tava bonito e o
cara indígena lá falou "bonito mesmo é shopping center!"... [pausa]
Aí eu disse "é bonito, mas os ambientes são diferentes, não há como
comparar um com o outro" e aqui há muito essa coisa da
comparação, a gente tem como desenvolvimento é tu quebrar tua
casa de palha e fazer uma de alvenaria, com cerca elétrica, com tudo
o que as casas da capital tem e essa mudança no dia a dia, no
comportamento, ela é crucial pra uma coisa que eu tenho muito
medo que aconteça aqui, que as pessoas voltem a não se sentir
amazônidas, não se sentir conectados com a floresta nesse sentido
de... [pausa] Do conhecimento se perder, porque daqui a pouco vai
ter uma geração de crianças que não sabem que a palha tal, o cipó
tal, dá pra construir uma casa, que não vai precisar de... de aterro,
que não precisa ter... E ao mesmo tempo eu penso assim: "Até que
ponto essas pessoas tem que ser privadas de ter uma casa assim..?"

A reflexão que Lalah faz possibilita que pensemos como essa relação complexa
do imaginário de desenvolvimento construído e desejado pelas pessoas como forma de
realização é pensada de fora, para uma demanda sempre de fora e nunca de dentro,
sendo projetos importados de outras realidades, outros países e de cima para baixo,
nunca começando pelas necessidades reais ou pelo diálogo com as populações locais.
Ao mesmo tempo pode ser complexo impor ou tentar impedir que as pessoas sejam
livres para almejar tais visões, mesmo que se discorde disso ou que venha de um
processo de reprodução de colonialidades.
Sobre o tema é possível destacar também o que já havia citado brevemente em
seções anteriores – o fato de muitas pessoas apoiarem políticas que, na prática, podem
atingi­las e limitar seu modo de vida. Lalah comenta, por exemplo, como é preciso
cautela para tratar de temas que envolvem um povo, uma comunidade, já que os
posicionamentos não são homogêneos, que uma pessoa apenas não representa um povo
todo, mas às vezes está em busca apenas dos seus interesses individuais.
Lá na comunidade São Luís do Tapajós, que tava previsto a maior
[hidrelétrica] que Belo Monte, isso foi no médio Tapajós, nós fomos
pra lá, nós, povos de Santarém, várias pessoas reunidas fomos de
caravana pra lá e a comunidade toda tava a favor da barragem…
Porque tinham primo, tio, irmã que tavam trabalhando pras
pesquisas e ganhando uma grana, porque tavam levando os
pesquisadores pra dentro da reserva, pra dentro da terra indígena,
fazendo o levantamento do EIA-RIMA e essas pesquisas, como ela foi
feita na base do cronograma muito acelerado, eles pegaram a
comunidade lá pra trabalhar, então eles entendiam que aquilo ali
era uma fonte de renda pra eles.
170

O que Lalah argumenta é um ponto que ainda inicialmente nos meus estudos,
em 2016, despertava­me interesse, entender de que forma as visões podem variar sobre
um determinado assunto ou política, ainda que por vezes pudesse ir de encontro com
valores mais básicos, mesmo que isso não fosse perceptível a curto prazo.
No caso que ela discute, as diferentes formas de se relacionar com o caso em
questão e o atrelamento a uma renda, um trabalho, uma “oportunidade” costumam
fazer com que as pessoas se sintam mais próximas dos interesses daqueles que
propõem a política do que aqueles que a tentam impedir. Isso também:
Porque ao mesmo tempo a relação que um grupo tem com a terra é
diferente da outra, os Munduruku viam a terra deles como cemitério
dos ancestrais deles, não querem tá longe dali, porque se eles saírem
de lá, muita coisa desequilibra do lado espiritual deles e outro povo
tá livre pra dizer "ah, quanto tu quer pelo meu terreno? É tanto? É
tanto, então eu tenho parente na cidade, vamo morar pra lá...", a
relação é outra, tem gente que consegue ser... brasileiro, num
terreno de 10x30, mas o indígena não, tá ligado? A terra tá num
outro nível, é preciso de um território... a história do povo tá ali...

Assim, enquanto algumas pessoas em um determinado contexto cultural podem


ver a terra como uma propriedade em sentido privado, como fornecedora de recursos,
para outros e principalmente para os povos indígenas existe uma relação de
pertencimento, de história, como elemento fundamental da identidade e da cultura.
Por exemplo, tem muitos que falam assim, muitos povos perderam a
língua, não porque acharam o português era mais legal, foi...
impuseram isso, deixaram seus adereços de cultura tradicional pra
usar roupa, deixaram de seguir seus deuses pra seguir uma religião
e eles tão aí até hoje, mas quando mexeu no território deles, aí a
revolta foi grande, entendeu? Eles resistiram tudo isso, tiveram que
se negar muito tempo, inclusive aqui nessa parte da Amazônia,
Tapajós e baixo do Amazonas, mas não fala de território, porque
isso aí é querer matar realmente, matar a nossa forma, tirar tudo o
que eles têm. O território é chave pra conter tudo isso ou gerar uma
guerra de vez.

É possível notar como a luta e a resistência a políticas desenvolvimentistas têm


como ponto fulcral a relação com o território, a ponto da a lógica moderna/colonial
possuir uma cosmovisão sobre terra como recurso natural, que se deve explorar,
dominar; mas, há também um sentido individualista, capitalista que projeta no
território as expectativas por meio de políticas, logo, se diferentes referências e formas
de se relacionar com o território existem num Estado ou numa nação, o conflito existirá
sobre qual modelo irá prevalecer, como já abordado por Yuval­Davis (1997).
171

Contudo, o que define de forma mais incisiva é o acesso aos recursos de poder
do aparato estatal, o qual, já analisamos, serve desde o início da colonização aos
interesses e ideologias eurocêntricas e capitalcentristas não apenas do capital
internacional, mas também reproduzido e que beneficia elites nacionais e locais.
Formando­se assim um ciclo vicioso, em que o Estado, moldado por estruturas e
instituições modernas/coloniais, por meio de grupos sociais dominantes que
instrumentalizam estas para a propagação dos seus valores e da consolidação da sua
referência de projeto de nação, de forma que a educação, a família, a religião e outras
esferas da vida sejam direcionadas a manterem­se reproduzindo tais valores.
Durante nossa conversa Lalah comenta também sobre as especificidades da luta
para as mulheres indígenas, como o território é central para pensar e garantir o básico
para si, para seu povo e seus filhos. Ela aponta que as políticas de desenvolvimento
impactam muito as mulheres em diversas formas e que, apesar de por muito tempo os
homens protagonizarem as lutas e as mulheres ficarem nas aldeias para que os
deslocamentos fossem possíveis, muitas mulheres que ficavam sofriam diretamente as
intervenções e ameaças, violências do governo e também de invasores. Assim,
começou a ganhar cada vez mais visibilidade a articulação das mulheres, participando
mais das caravanas. Não significa dizer que antes as mulheres não participavam dos
processos decisórios, embora em muitos povos a deliberação seja coletiva, envolvendo
inclusive as crianças e adolescentes.
Ademais, Lalah destaca como as políticas fomentam um fluxo muito grande de
trabalhadores, principalmente homens, e tem registrado em Altamira, por exemplo, um
crescimento considerável no número de assassinatos em geral e que as mulheres que
sofrem ainda mais com esses impactos e violências são as que se levantam contra, as
que resistem e são perseguidas e ameaçadas.
Quando falamos sobre o futuro, Lalah responde que apesar de não ter filhos,
tem sobrinhos e é neles que ela pensa e que para que ele possa ser construído e que
haja uma melhoria é preciso trabalhar com as crianças. Ela aponta que ao estar junto
com as mulheres indígenas percebe um discurso muito diferente do feminismo da
universidade, da cidade, da favela, que a própria relação de parentesco talvez
influencie, de modo que ela as vê lutando pelos filhos e compra a luta delas também, já
que todo mundo é parente, é preciso pensar coletivamente.
Notei pela fala de Lalah uma possibilidade de aproximação de abordagem à
proposta que Julieta Paredes, poeta Aymara boliviana, cantora e compositora, escritora,
172

grafiteira e ativista feminista decolonial e anarquista, traz em seu livro de 2010,


“Hilando Fino: desde el feminismo comunitario”. Ela propõe focar nas lutas e práticas
das mulheres, principalmente indígenas e de áreas rurais, com seus conhecimentos e
estratégias, pautando­se muito nas experiências e heranças de suas avós que “no sólo
resistieron, sino también propusieron e hicieron de sus vidas y sus cuerpos autonomías
peligrosas para los incas y mallkusl patriarcales” e que, ainda que elas “no escribieron
libros, pero escribieron en la vida cotidiana que hoy podemos intuir, sobre lo que
queda después de tantas invasiones coloniales” (Paredes, 2010, p. 38).
Enquanto o feminismo liberal/ocidental/hegemônico enfoca em questões de
empoderamento e uma realização máxima da mulher, reproduz­se uma lógica da visão
do sujeito racionalizado e individualizado, que é a própria base da lógica
moderna/colonial, ou seja, não se mudam as estruturas, não se questionam outras
opressões. O objetivo desse contexto é basicamente a melhoria da vida de mulheres
individualmente, o que se reflete para algumas mulheres, normalmente as mais
privilegiadas, brancas, de classe alta e média. Por outro lado, o feminismo comunitário
é sobre “pensarnos mujeres y hombres en relación a la comunidad” (Paredes, 2010, p.
79).
Assim, tanto a fala de Lalah como as conversas que tive com Nice e Priscila
dialogam com uma visão de comunidade e relações generificados em outra perspectiva
que não segregatória, de homens versus mulheres, mas de relações coletivas e
comunitárias, já que ambos são parte da comunidade (Paredes, 2014). É importante
destacar como as noções trazidas pelo feminismocomunitario decolonizam os campos
de ação e luta como o corpo, o espaço, o tempo, o movimento e a memória. Logo,
pensar “futuro”, “projeto de vida” e “desenvolvimento”, assim como “projeto de
nação” pode ser reformulado a partir de bases apresentadas por Julieta Paredes, as
quais dialogam com características presentes em todas as conversas aqui
compartilhadas.
Como Lalah coloca, é preciso pensar o território para que outras questões sejam
abordadas. Assim, Paredes (2014) destaca o espaço como um campo de ação e luta.
Sendo o espaço vital onde o corpo se desenvolve, sendo ele tanto a terra e o território,
mas também a casa, a rua, os recursos naturais, o espaço político e de produção, a
justiça, o conhecimento, as autonomias, as migrações, espaço para o lazer e para os
poderes. Pensar o espaço nos permite olhar para o território não apenas numa lógica
ocidental moderna e capitalista, como propriedade, mas como espaço vital que se
173

entremeia para além do visível/material, mas para as potencialidades de relação com os


corpos.
Paredes sugere que descolonizar é recuperar nossa vida, nosso tempo, e que se
o tempo percebido é esse no qual nosso corpo se desenvolve, onde notamos o
envelhecimento, recuperar o tempo é também compartilhar o trabalho doméstico,
monetizar e valorizar economicamente esse trabalho, ter tempo para a participação
política, para estudar, para a saúde, para a maternidade (caso se queira) e para
descansar. Ela considera que nas sociedades ocidentais o tempo é pensado num
contexto patriarcal: em um tempo que é importante (o dos homens) e um tempo que
não é importante ou valorizado (o das mulheres) e que pode ser mais explorado.
Logo, se pretendemos lançar discussões sobre perspectivas de futuro é preciso
pensar também sobre como se dá a relação do tempo, como se organiza e para quê.
Lalah destaca que para o futuro, ela almeja
Eu espero do futuro que... [pausa] a gente... Eu sempre falo assim
que o planeta ele sempre passou por essas transformações muito
brutais assim né e ele sempre se renova, quem precisa de ajuda
urgente somos nós. Eu espero que as pessoas comecem a não esperar
do governo, mas comecem a fazer dentro dos seus núcleos também,
pra que a gente tenha um futuro melhor a gente tem que investir
muito em educação, e eu vou ficar de braços cruzados porque o
governo não me dá educação de qualidade? Eu tendo a oportunidade
de conversar com tantos sábios e de reconhecer que apesar do
fulano não ter doutorado, ele tem conhecimento e com respeito esse
conhecimento, a gente constrói um futuro muito bom. Eu espero que
no futuro a gente tenha bem claro essa questão da educação como
principal plataforma pra qualquer candidatura, pra qualquer coisa
dar certo no país...

E como os campos de ação e luta são interdependentes, o tempo, o corpo, o


território, o movimento e a memória se atravessam, enquanto que o movimento é a
formação de organizações e propostas políticas, que nos dá a sensação de estar viva e
cuidando e protegendo a vida; os campos de ação e luta são, assim, o lugar de
reapropriação dos sonhos (Paredes, 2014).
Apesar de ela apresentar uma visão de que o futuro pode ser melhor, as
preocupações imediatas dela são sobre as ameaças constantes às populações indígenas,
pelo discurso de ódio, a ignorância, a falta da garantia do direito ao território, as
perseguições, ameaças e assassinatos, a violência recorrente contra ativistas e
lideranças indígenas. A dimensão territorial também é uma preocupação, a ponto de
pensar sobre o processo de políticas públicas:
174

...Bate um desespero, principalmente quando esses discursos de ódio


chegam assim pra gente diretamente e também pensando assim em
questão territorial, a Amazônia é gigante, imagina que políticas
públicas não chegam na cidade, imagine numa comunidade do
tamanho da Grécia, são comunidades grandes, são territórios
grandes...

Sobre Alter­do­Chão especificamente, ela comenta como a mudança das


últimas décadas modificou a vida e a cultura das pessoas, a diminuição das roças e a
substituição de uma economia por outra mais dependente do turismo, o que no período
da baixa temporada impacta muito a vida das pessoas. Ela também aponta como a
entrada do capital levou à marginalização de parte da população, para dar espaço a
empreendimentos nas regiões centrais da vila.
Pro empresariado que tá chegando ali pra investir, já que chega com
muita grana né, então muitas pessoas entendem que o dinheiro... não
lidam com dinheiro dessa forma, porque imagina que é muito
dinheiro e a partir de um mundo tu sai de um lugar privilegiado, que
é na beira de rio, tu tem tua roça ali, tua família toda ali perto e vai
pra um outro contexto... Toda a cultura vai se modificando, começa
a ficar cada vez mais dependendo do dinheiro, isso aconteceu aqui
em Alter.

Neste contexto, falamos um pouco mais sobre dinâmicas contemporâneas na


formação da opinião das pessoas como o acesso à Internet que para ela, por um lado,
ajuda no processo de divulgação e registro de denúncias, de articulação da luta, de
poder ter mais visibilidade para que os povos possam falar por si, mas, por outro lado,
também intensifica a propagação de fake news e discursos de ódio que reforçam
mentiras ou até mesmo são instrumentalizadas para generalização da forma de se
pensar sobre os povos.
Porque não basta só eu compartilhar lá e não fazer uma reflexão
com as pessoas, mesmo que sejam só 3 curtidas, são 3 pessoas que se
interessaram em ler pelo menos... E... Também as pessoas tem uma
capacidade muito grande de viralizar notícias muito falsas, então
elas pegam um lado da moeda só e acham que aquilo ali é verdade
absoluta e isso compromete muito a luta de quem tá ali já de fato
querendo fazer a diferença, querendo fazer certinho e tem muita
gente oportunista ali no meio, as pessoas tem muito essa mania de
querer romantizar as lutas indígenas, sendo que dentro tem também
muita gente que tá a favor das barragens, que tá negociando com
garimpeiro, mas eu não posso chegar e dizer "ah o povo tal tá
fazendo isso", porque ele não representa o povo tal, ele representa o
interesse dele, às vezes de um punhado de gente ali, então essa fala
de que índio é tudo igual, tão vendendo madeira, tão vendendo isso,
tão vendendo aquilo, dentro da internet assim, isso me deixa
preocupada, porque as pessoas pegam isso e tipo, "ah, eu sabia que
era assim!", sendo que nunca foi numa aldeia, nunca teve um
contato, nunca falou nada sobre isso, mas criou dentro dela de que é
175

isso o que acontece e quando vê uma notícia de que tá na internet é


verdade…

Parte de sua fala demonstra aflição também sobre os empecilhos que ela têm
encontrado pelo seu ativismo, o quanto para algumas pessoas é fácil conversar e
chamar a atenção para alguns assuntos mas que para a maioria é difícil, até mesmo com
familiares, pois nem sempre há abertura para conversar, saber o que outros povos e
comunidades já têm passado para tentar antecipar e resistir, ou até mesmo por não
acreditar ser algo relevante.
As perspectivas de Lalah destoam consideravelmente das demais, não apenas
pela noção de que o lugar não é restrito ao local de vivência, mas a todo o bioma
amazônico, assim como além dele, e pelo seu processo de constante aprendizagem com
diversas etnias, estende­se à conexão com o viver bem de todas as comunidades, agora
ameaçadas e em constante luta.
Entretanto, um atravessamento possível entre as quatro falas é demarcado pela
preocupação e relação do futuro com os filhos, as crianças, as próximas gerações e o
lugar, a natureza. Os projetos de vida parecem muito desenhados numa relação de
responsabilidade e construção não só das suas vidas, mas também das suas
comunidades. O que se pode salientar como a forma que as vidas não se dão apenas em
sentido de potencialização de suas vidas individuais enquanto mulheres, mas que a
todo passo reconhecem a sua existência em diálogo com as comunidades.
Outro ponto que está presente nas falas de Nice, Priscila, Luza e Lalah são as
dinâmicas políticas em sentido tanto nacional quanto local, seja em relação às políticas
e ao discurso desenvolvimentista ou sobre as políticas públicas como saúde e
educação, que atravessam os campos de ação e luta abordados por Paredes (2010), que
relacionam o corpo, o espaço, o tempo, o movimento e a memória.
O fim da minha visita à região em julho termina, mas, dessa vez, seja pelos
laços mais fortalecidos e também pelo cenário político do segundo semestre de 2018,
minha interação se intensifica mesmo quando estou em Belém, trocando mensagens
constantes com Cris e Nice, principalmente.
Nice me manda principalmente notícias sobre a família, pergunta quando
voltarei e se vou com meu namorado, a quem ela gostaria de conhecer, se minha mãe
também iria; fazemos planos para uma piracaia, já que me planejo para passar 10 dias
entre o Natal e o início de janeiro, ela também me conta que Aline está grávida e que
esperam por mim no final do ano.
176

Cris e eu trocamos muitas mensagens conversando sobre o contexto político,


principalmente relacionado às eleições presidenciais e aos desdobramentos que estou
vivendo em Belém e ela em Santarém e Alter­do­Chão. Fala de como em sua atuação
como psicóloga tem percebido as pessoas muito impactadas.
Como abordado em passagens anteriores, muitas situações relatadas na região
são situadas no início da crise política brasileira de 2014 a 2015, como o fim do barco­
hospital Abaré II no rio Arapiuns e a falta de recursos públicos citada por Nice. Ainda
que a pesquisa tenha se iniciado em 2017, quando já se havia passado pelo processo de
golpe político­parlamentar que levou ao impeachment da então presidente Dilma
Rousseff, já era crescente a incerteza sobre o desenrolar político dos próximos anos na
região. Em diversas conversas me era repassado como os próximos momentos seriam
decisivos sobre questões como a mineração, a soja, o projeto das hidrelétricas e outras
fontes de tensões.
Ainda durante o governo de Michel Temer, que assume a presidência em
agosto de 2016, nota­se um adensamento em questões que dizem respeito ao contexto
do Tapajós. Fato grave relativo à questão é o enfraquecimento de políticas ambientais
como no caso do decreto nº 9.142 que extingue a Reserva Nacional de Cobre e
Associados (Renca), criada em 1984, permitindo a exploração privada de minérios. A
mesma se localiza entre os estados do Amapá e do Pará, abarcando também parte da
Terra Indígena Waiãpi.
O decreto recebe crítica de especialistas, parte da população e representantes de
movimentos sociais, levando à revogação ainda em setembro de 2017 pelo presidente.
Enquanto outra decisão catastrófica da qual não houve recuo foi a extinção do
Programa Bolsa Verde, que desde 2011 constava de um auxílio de R$ 300,00 reais a
cada três meses por família que vivesse em situação de extrema pobreza em
assentamentos, reservas extrativistas e área ribeirinha, como forma de compensar e
incentivar o compromisso das famílias com a proteção da natureza e garantir um modo
de vida nas condições locais.
E é a partir desse período intensificado de crise política que comecei a perceber
movimentos sociais e articulações de resistência na região com mais visibilidade e
repercussão, principalmente nas redes sociais, com destaque para as mulheres no
Tapajós, abaixo um trecho da Carta do I Encontro de Mulheres Munduruku do Alto e
Médio Tapajós, de novembro de 2016:
177

Hoje, são as mulheres que estão se manifestando. A preocupação


também é de todas as mulheres indígenas no Brasil. Sabemos que a
ameaça é muito grande e provoca a matança dos nossos filhos.
Queremos deixar bem claro para o governo, que nós, mulheres
indígenas, somos do mesmo sangue e por isso nossa reivindicação é
única: defender o nosso território, nosso rio e nossa floresta, que é
nossa mãe. Por causa do Governo, ela está derramando lágrimas.
Lágrimas que caem como o leite de nosso peito. O que mata o nosso
direito, o nosso modo de viver, a gente sente em nosso estômago.
Isso porque seus projetos de lei, emendas constitucionais, decretos e
portarias servem somente para alimentar o capitalismo e a
colonização com a qual sofremos há mais de 500 anos. Transformam
tudo que nos mantém vivos em mercadoria, mandam tudo para fora e
quem sofre somos nós, povos indígenas, populações tradicionais e
minorias. Falam em tecnologia avançada, mas ela não está servindo
para nós e para a floresta. O que chamam de “energia limpa” é para
barrar o rio, destruir vidas humanas, peixes, animais, toda a floresta.
Então estamos falando também junto com esses que não têm como se
defender (id.).

O trecho reforça a própria discussão sobre colonialidade, as divergências entre


o projeto de nação e suas políticas e os muitos modos de vida de parte da população.
Elas apontam que as políticas não visam à melhoria das condições de vida, mas sim a
morte de suas culturas, reforçando também o caráter permanente de mais de 500 anos
de um Estado de opressão contra os povos indígenas, independente de governo
específico, indicam um agravamento após o rompimento democrático provocado pelo
impeachment. Sobre o então governo Temer afirmam:
Sabemos das armadilhas e manobras do governo. Querem acabar
com a FUNAI, SESAI, instituições destinadas a garantir e defender,
junto com a gente, os direitos dos povos indígenas. Estão diminuindo
recursos, nomeando pessoas que não tem envolvimento com a causa
indígena. Sabemos que nada que conquistamos foi dado pelo
governo, foi sempre uma briga para isso. Muitas lideranças indígenas
derramaram e continuam derramando o sangue para ter essa
conquista. (...) Queremos dizer para o governo que nós mulheres
indígenas somos capazes de ensinar. Se quiser, a gente pode ensinar
como se cuida do território. Não vamos abrir mão dos nossos
territórios tradicionais e nem da Amazônia. Não queremos mais ouvir
o “Odaxijom! Odaxijom! Odaxijom!”, o pedido de socorro de nossa
Mãe Terra, e nem o choro das nossas crianças.

E, além de denunciarem as manobras do governo, demandam a aceleração da


demarcação das Terras Indígenas, TI Daje Kapap (Sawre Muybu), TI Sawre Jaybu, TI
Sawre Apompu, TI Katxuyana­Tunayana, TI Maró, Cobra Grande e TI Alter do Chão,
as quais estão localizadas ao longo do Tapajós e enfrentam constantes ameaças e
invasões de grileiros, madeireiros e outros pela expectativa dos empreendimentos na
região.
178

O documento frisa também o repúdio às tentativas de dificultar e mudar os


processos administrativos para Terras Indígenas como a PEC 215, a Portaria 303 da
AGU, o projeto de lei de mineração em Terras Indígenas (PL 1610), assim como a
crescente tendência à criminalização de lideranças indígenas e de povos e comunidades
tradicionais que lutam pela garantia do bem viver e exigem, por fim, a extinção dos
“projetos de morte para a nossa Amazônia, como portos, hidrovia, mineração,
hidrelétricas, concessão florestal e outros” (Carta do I Encontro das Mulheres
Munduruku do Alto e Médio Tapajós, 2016, s/p).
Em maio de 2017, durante o II Encontro das Mulheres Munduruku do Alto
Tapajós é formulado um segundo documento no qual avaliam o cenário político:

Um governo doente caiu, o governo do PT que sempre que veio até a


Mundurukania veio armado. Destruiu a aldeia Teles Pires, quis forçar
audiências na cidade com a gente e protegeu pesquisadores no
território de Daje Kapap Eipi, mas com tudo isso ele caiu e nós
estamos aqui.
Um governo podre assumiu, governo do PMDB, do PSDB, do PSC
todos podres todos com as mãos cheias de doenças pra querer tomar
a Amazônia, vão cair na mesma sujeira que o outro governo deixou.
(...) Sabemos que todos os anos do governo do PT foi preparando
grandes obras pra plantar soja, mas quando plantam querem levar pra
vender lá fora e por isso construíram um porto em Itaituba e agora
querem uma ferrovia e continuam querendo barragem e depois vão
querem mineração, mineração pra matar o rio, como aconteceu com o
rio Watu dos nossos parentes Krenak. As florestas que são a casa dos
animais estão ameaçadas por que um ministro que planta soja e seus
amigos, querem derrubar a mata pra plantar mais soja, fazer mais
estradas e ficar rico. Estão inventando leis pra poder nos derrotar.

A crítica das mulheres Munduruku é mais uma vez é contundente ao governo


de Temer e ao arranjo político que propiciou o impeachment, mas sempre lendo este
como o outro lado da moeda dos governos do PT que, como já citado, tais governos
promoveram alianças com grupos interessados na continuação e aprofundamento da
exploração da região, utilizando tanto slogans desenvolvimentistas como também do
aparato de repressão violenta durante anos.
Durante julho de 2018, mesmo mês em que realizei as entrevistas das quais
abordei anteriormente, ocorreu o III Encontro das Mulheres Munduruku na aldeia
Patauazal na TI Munduruku para discutir sobre “as ameaças e discriminações que
estamos sofrendo e os projetos que o governo pariwat [não­Munduruku] tenta impor
para nosso território como as barragens, hidrovia, ferrovia, portos, mineração,
concessão florestal (Flona Itaituba I e II e Flona Crepori”, assim como a “invasão de
179

madeireiros e garimpos, que impactam a vida das mulheres, dos homens, dos jovens e
das crianças Munduruku” (Carta do III Encontro das Mulheres Munduruku, 2018, s/n).
O documento reafirma que apesar de todos os ataques, continuarão resistindo e
construindo o plano de vida com autonomia, sobre educação própria e bem viver e que
o povo Munduruku não está só na luta, pois conta com outros povos e comunidades
ribeirinhas que sabem seguir o seu próprio caminho.
Com o início das campanhas eleitorais de 2018 e as instabilidades políticas e
econômicas vai ganhando apoio a candidatura de Jair Bolsonaro (PSL), que até então
fora deputado por quase 30 anos no congresso e com histórico de declarações
polêmicas, racistas, homofóbicas e atribuídas a ideias de extrema­direita. O capitão da
reserva também demonstrou, em diversos momentos, ser apoiador da ditadura militar
no país e da prática de tortura, assim como acenou positivamente para a intensificação
da exploração da Amazônia.
Ainda em maio de 2018, como pré­candidato, Bolsonaro chegou a declarar que
“a “Amazônia não é nossa”, e defendeu a abertura da região para exploração. “Aquilo é
vital para o mundo”, disse. "A Amazônia não é nossa e é com muita tristeza que eu
digo isso, mas é uma realidade e temos como explorar em parcerias essa região”
(Rossi, 2018). Meses depois, ele adapta o discurso para um tom nacionalista de
segurança quando fala de ONGs e povos indígenas, mas da possibilidade de “abrir” a
região para a exploração por empresários dos Estados Unidos.
Outras declarações – enquanto pré­candidato – deram o tom para a região e de
políticas intrínsecas à mesma ao dizer que “não expropriará terras, nem fará
demarcação de terras indígenas; ele quer o Brasil fora do Acordo de Paris e extinguir o
Ministério do Meio Ambiente” (Fuhrmann, 2018).
As muitas manifestações e passeatas que tomaram as ruas durante o período
reuniam, de um lado, apoiadores do candidato e suas propostas como um caminho para
a retomada do crescimento econômico, o combate a debates considerados progressistas
e nocivos a instituições tradicionais como a família a religião, sob o slogan “Brasil
acima de tudo, Deus acima de todos” e, do outro lado, opositores que, por fim, sob
gritos de “Ele não!”, inicialmente dividiram os votos entre os demais candidatos como
Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT), Marina Silva (REDE) e outros.
O pleito trouxe à tona diversos conflitos em escalas macro e micropolíticas, o
que apesar de ser um fator comum a períodos como esse, considera­se que o momento
foi de polarização e radicalização, marcando a sociedade brasileira profundamente
180

entre os que o apoiaram e os que na campanha rechaçaram a candidatura do então


vencedor das eleições, Jair Bolsonaro. A disputa foi também marcada como
historicamente influenciada por aplicativos de mensagens e a propagação de fake news
que difundiram um clima de terrorismo político e ideológico, reforçando muitas vezes
falácias sobre povos e o contexto de luta de movimentos sociais, como Lalah já temia.
Por ter vivido e estar vivendo o período, ainda imersa em seus desdobramentos
recentes e distantes do futuro, minha percepção certamente está influenciada pelo meu
lugar de vivência e da própria pesquisa que se viu atravessada por tais dinâmicas e
mudanças. Entretanto, para o debate acerca da produção de subjetividades, as quais se
dão constantemente e não são fixas, faz­se imprescindível a observação do cenário
político, que já é considerado como uma ruptura em alguns sentidos de governos
anteriores enquanto um processo de intensificação de decisões políticas pautadas na
lógica moderna/colonial, tendo como fatores adicionais a influência direta do
teologismo cristão e a crescente influência política de Igrejas neopentecostais e a
exaltação do patriotismo e o nacionalismo, tal como valores ditos tradicionais.
Cris e eu participamos em manifestações contra o governo em Santarém e
Belém, respectivamente, ainda que nós duas tenhamos notado uma grande adesão da
população, principalmente da elite à pauta do candidato do PSL. Mesmo em Alter­do­
Chão Cris relatou que a vila aparentava estar bastante dividida. Em visitas posteriores
percebi que nas comunidades o rechaço a Bolsonaro era mais predominante.
A vitória de Bolsonaro, alcançada no 2º turno no dia 28 de outubro de 2018,
mostrou também como a distribuição de votos atravessava perfis socioeconômicos e
regionais. A vitória do candidato da extrema­direita encontrou mais tranquilidade em
municípios mais ricos e com maior parte da população branca, enquanto o seu
oponente do 2º turno, Fernando Haddad, saiu vitorioso em municípios com menor
renda e com menor porcentagem de pessoas brancas (Llaneras, 2018).
O recorte de gênero também foi parte de um perfil específico, ao passo que os
eleitores de Bolsonaro eram em grande maioria homens, brancos e com ensino
superior, enquanto que com Haddad o apoio das mulheres era mais equilibrado
(Fagundes, 2018). Ainda assim, o candidato do PSL foi o que mais recebeu votos entre
mulheres e pessoas negras.
No âmbito regional faz­se indispensável para nossa análise considerar também
os municípios e regiões com o resultado das eleições (ver Anexo J). O estado do Pará
foi o único da região Norte no qual Bolsonaro não recebeu a maioria dos votos (apenas
181

45,19% dos votos válidos), entretanto, olhando­se para os municípios é possível notar
uma concentração de votos favoráveis ao agora presidente principalmente no sul e
sudeste do estado, onde há grande presença de atividades ligadas à agropecuária, soja,
mineração e outras, onde as políticas adotadas desde o século XX modificaram mais
profundamente o contexto cultural e econômico, com muitos imigrantes principalmente
das regiões sul e centro­oeste, onde Bolsonaro obteve maciço apoio.
Já ao norte do Pará, onde predominaram os votos para o candidato do PT, são
regiões em que este processo se deu de forma menos intensa, como já abordado aqui,
mas que atualmente tem passado por tensões. Entretanto, a vitória de Haddad nessa
parte do estado pode ser também atribuída às populações das cidades menores e em
contexto rural, já que nos maiores municípios o candidato do PSL saiu vitorioso:
Belém (54,93%), Santarém (56,37%), Itaituba (55,70%), Altamira (63,28%), Marabá
(55,91%) (TER­PA, 2018).
Em outras cidades menores e próximas ao contexto do estudo aqui
desenvolvido o resultado foi diferente, ficando assim os votos favoráveis ao candidato
eleito nacionalmente: Aveiro (32,50%), Belterra (45,90%), Juruti (39,71%), Rurópolis
(50,24%), Prainha (36,52%) e Curuá (20,84%), para citar alguns (id.).
Assim, quando retorno ao fim do ano o clima é entre muitas pessoas ligadas
aos movimentos sociais de pesar e incerteza sobre o futuro da região no novo governo.
Quando chego já sou informada sobre uma das primeiras reverberações atribuídas ao
novo cenário, que foi uma alteração feita no texto do Plano Diretor de Santarém em
pleno encerramento das atividades legislativas em 14 de dezembro de 2018, o qual
tornava o Lago Maicá uma área portuária, proposta que havia sido rejeitada em 2017
durante a Conferência Municipal para a revisão do Plano Diretor, que contou com
maciça participação popular. A estratégia utilizada pelos vereadores de Santarém foi
criticada por desrespeitar uma decisão popular e a forma como foi feita buscou
impossibilitar a manifestação e participação (Borges, 2018).
Apesar das eleições terem findado em outubro, nas ruas de Santarém é
constante encontrarmos adesivos, bandeiras e muitos carros decorados em apoio ao
candidato do PSL eleito presidente, Bolsonaro. Em Alter­do­Chão, é menos visível o
apoio, ainda que em algumas conversas com vendedores e comerciantes se torne
explícito o apoio, como um vendedor de peixe que me diz com um sorriso que “agora
sim nada segura o desenvolvimento chegar até aqui”. Assim como, em uma das
182

principais pousadas da Vila cujos proprietários são do Mato Grosso os funcionários


utilizam camisas nas cores da bandeira do Brasil com dizeres patrióticos.
Entretanto, além das pessoas mais próximas, o clima de fim de ano na região
abafa a tensão política com o grande fluxo de turistas, principalmente paulistas. A vila
fica praticamente irreconhecível com o volume de pessoas, a mudança nos horários de
atendimento ao público ­ que se adequam ao perfil dos turistas paulistas nos horários e
também nas opções de sabores dos restaurantes.
Refaço então um trajeto já comum para mim, de Alter para Jamaraquá, de
Jamaraquá para a Coroca e da Coroca para Alter. A alta temporada faz com que eu
opte por não realizar nenhuma entrevista já que todas as comunidades estão muito
envolvidas e com sobrecarga de trabalho para dar conta da demanda, sendo um período
muito importante também, uma vez que apesar do alto fluxo, em alguns meses a baixa
temporada chega e é preciso garantir uma boa margem de dinheiro para que não se
passe por dificuldades.
Ainda assim, sou recebida com muito carinho por Nice, que enquanto deixo
meus pertences no redário que sempre fico grita “Brenda! Vem almoçar, menina!” e
me sinto em casa. Quando termina de servir o almoço a algumas pessoas que tinham
acabado de fazer a trilha, atualizamos as notícias enquanto lavamos a louça e tomamos
um café. Ela conhece meu companheiro e me pergunta sobre a minha mãe; Aline já
está com 6 meses da gestação e combinamos passeios para os dois dias que ficaria ali.
É a primeira vez que visito a Flona em período da seca. Até então só havia ido
quando o igapó ainda estava cheio. A paisagem muda, mas continua linda, com um
grande igarapé. Fazemos a prometida piracaia24, uma tradição cultural das famílias da
região que passam a noite na praia no período da seca, pescam e assam o peixe,
dormindo lá mesmo.
Os dias que passo em Jamaraquá são, como sempre, de muita aventura e sono
embalado pelo canto da guariba25 na madrugada e os demais sons da floresta, o pouco
tempo e o ritmo de trabalho de Nice e sua família com a constante chegada de novos

24
A piracaia é um costume muito forte na região do Tapajós, na qual as famílias costumam ir para as
praias passar a noite, pescar e assar peixes, contar histórias e dormir na praia. Normalmente as piracaias
são feitas no período da seca e apesar de ser uma tradição que as famílias costumam fazer entre si ou até
mesmo várias famílias de uma comunidade, atualmente algumas piracaias são feitas como passeios para
turistas e visitantes.
25
Macaco encontrado na região amazônica, na Mata Atlântica e também no litoral do Nordeste
brasileiro. Conhecido pela sua vocalização que ecoa pelas florestas onde habitam em horários
específicos, normalmente ao fim da tarde e no meio da madrugada.
183

turistas não permite que possamos conversar mais profundamente, mas é uma boa
estada. Eles estão felizes pelo fato do fluxo que estão tendo de turistas ser grande, de
forma que o próximo período de baixa temporada provavelmente não será tão sentido.
Figura 25 – Piracaia em Jamaraquá

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Dezembro de 2018)


Assim, nos deslocamos novamente para Alter­do­Chão, para no dia seguinte
seguirmos para a Coroca, onde somos esperados para passar três dias, inclusive o Ano
Novo. Agora já com os contatos de quase todos da comunidade, conseguimos
confirmar um espaço para atarmos nossa rede com Gildson, o presidente da Associação
de Moradores de Coroca, e Enilde, sua companheira, filha da comunidade, que se
mudou para Santarém e lá trabalhou como professora, mas agora está aposentada.
Diferentemente do clima na Flona, apesar do mesmo ritmo de trabalho da alta
temporada, onde a Coroca tem se consolidado como parada para almoço para os
turistas entre os passeios pelas pontas de praias do Arapiuns que saem e voltam no
mesmo dia de Alter­do­Chão. Durante banhos de rio com Gildson, Enilde, outros
comunitários e eu conversamos, sem citar nomes, sobre as incertezas dos novos
tempos, as ameaças intensificadas a lideranças, a diminuição de recursos para
associações e sindicatos, assim como a extinção de espaços de participação
deliberativa, que já são encabeçadas por adetos do governo Bolsonaro durante a
transição. Em alguns momentos as pessoas me falam com tom de desaprovação e até
mesmo incredulidade sobre o momento político que vivemos.
Para a “virada de ano”, Cris, meu companheiro e eu somos convidados a
comemorar com a tradicional piracaia de Ano Novo da comunidade na Ponta Grande.
184

Saímos às 22:00 no barco da associação com membros da comunidade, pois depois de


dias inteiros de muito trabalho, enfim, querem aproveitar e se divertir. Os últimos
turistas vão embora ao fim da tarde, atrasando os preparativos e quando alguns acham
que não vamos mais, Gildson diz: “Mas se o povo vem até da Bélgica pra passar o
ano novo na Ponta Grande, a gente que é daqui não vai? Ora se não!”
Figura 26 – Festa de Ano Novo dos moradores da Coroca na Ponta Grande

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Dezembro de 2018)


A travessia é rápida e também é veloz. A preparação da iluminação do espaço
na praia, do gerador para o som, da música e começar a assar o porco. Todos comem a
tempo de comemorar o fim do ano de 2018 e o início de 2019. Dormimos no barco,
para voltarmos para a comunidade de manhã cedo.
O dia amanhece nublado, com uma leve chuva, já dando sinais da chegada do
inverno amazônico talvez, ainda que o tempo ultimamente esteja bem imprevisível.
Vamos embora agradecendo a hospitalidade e já me perguntam se retorno em julho e
oferecem que eu fique na mesma casa como convidada, o que é uma honra.
Antes de voltar para Belém me despeço de Nice e sua família mais uma vez,
por mensagem. Ela também pergunta quando é minha próxima visita e confirmo que
em julho estarei lá novamente. Chegando em Belém, deparo­mo já com notícias da
posse do novo presidente do Brasil, a qual não acompanhava há muitos dias por conta
da falta de sinal no celular nas comunidades.
185

9 À DISPOSIÇÃO PARA ASSINAR ACORDOS DE EXPLORAÇÃO RACIAL


O que fazem os brancos com todo esse ouro?
Por acaso, eles o comem?
(Davi Kopenawa, Tribunal permanente dos povos
sobre a Amazônia brasileira, Paris, 13 out. 1990)

Pode­se considerar no mínimo intrigante que o período desse estudo tenha


acabado por situar­se em um dos momentos mais intensos de crise política e social no
Brasil no século XXI. Como comentei anteriormente, estar vivendo nesse período e
desenvolvendo uma pesquisa que em muito se relaciona diretamente com o cenário
atual pode ser interpretado tanto como uma possibilidade privilegiada de analisar seus
efeitos imediatos para o tema em discursão ou, olhando­se por outro lado, quando
estamos tão próximos de uma situação a olhamos tão de perto que não conseguimos
vê­la mais nitidamente.
Provavelmente envolve um pouco dos dois, adicionando ainda o panorama de
comoção social, de radicalização e, ao mesmo tempo, de naturalização de discursos. O
ano de 2019 sobre o qual agora escrevo e já terminou, foi de intensa turbulência, de
modificações estruturais no aparato do Estado brasileiro e de abruptas transformações
sob o argumento da necessidade de desmontar tudo que havia sido construído nos
últimos governos, justificando o agora presidente de terem sido trnsformações feitas
por socialistas e, portanto, atribuindo um caráter ideológico ainda mais explícito ao
cenário político.
A guinada nas políticas públicas do governo Bolsonaro causou impacto na
imagem do Brasil na comunidade internacional, mas também as tramas políticas
internas foram impactadas por escândalos de corrupção envolvendo ele, sua família e
seu partido. A dinâmica internacional também pode ser destacada como fator adverso
enfrentado no primeiro ano de governo, principalmente, no que concerne às temáticas
sobre a Amazônia, questões climáticas e ambientais, no alinhamento da política
externa brasileira ao governo de Donald Trump, nos Estados Unidos, e também o apoio
a Benjamin Netanyahu, o primeiro­ministro do Estado de Israel.
Como o presidente Jair Bolsonaro afirmou em diversas situações, desde a
campanha eleitoral, sua intenção era a de fazer um governo “sem ideologia”, uma das
primeiras consequências de seus posicionamentos foi o fim da parceria com o governo
cubano no Programa Mais Médicos, ainda em 2018, logo após a sua eleição.
O programa tinha como objetivo principal assegurar o acesso à saúde a
populações onde as políticas públicas têm mais dificuldade de alcance, assim como a
186

falta de interesse de profissionais da área de interiorizarem­se nas pequenas cidades e


zonas rurais. No caso do Tapajós, poucas semanas após a retirada dos médicos
cubanos, recebo mensagens de Cris que me informa sobre como a situação já foi
imediatamente sentida pela população.
Cris costumava receber e hospedar temporariamente em sua casa médicos e
estudantes de medicina que faziam estágio ou residência no hospital de Santarém e no
Posto de Saúde de Alter­do­Chão por meio de uma parceria com a USP. Após os cortes
de recursos anunciados não apenas no setor da saúde, mas também na educação, que
vinham desde o governo Temer, o movimento praticamente veio a cessar de forma
definitiva. Desta forma, uma das principais demandas apontadas nas entrevistas e em
conversas em 2017 e 2018, o difícil acesso à saúde, passa por uma etapa ainda mais
profunda de precarização.
Ademais, ainda como candidato, o presidente Bolsonaro deu o tom de quais
seriam as principais frentes de combate no seu mandato ao declarar sua intenção de
“fundir os ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente. Não pode ter ambientalismo
xiita no Brasil. Vamos acabar com a indústria de demarcação de terras indígenas”
(Seto, 2018), fazendo referência a organizações e políticas que priorizam a
conservação e a preservação da natureza, assim como as relacionando ao que chama de
“indústria”, o direito ao processo de demarcação de Terras Indígenas.
Ele continuou, afirmando que “índio não quer ser latifundiário. Índio quer
poder arrendar a terra, quer poder fazer negócio, quer energia elétrica, quer dentista
para arrancar toco da boca. O índio é ser humano como a gente. Não quer ser usado
para políticas” (Dantas, 2018). Mais uma vez percebe­se uma forma de agenciamento
no seu discurso sobre os povos indígenas, ao falar o que desejam e como querem viver,
ao passo que utiliza de um discurso que acusa pessoas ligadas a políticas ambientais de
não verem indígenas como seres humanos.
As falas, além de conterem reproduções explícitas de colonialidade, precisam
ser destacadas, pois a região do Tapajós, e da Amazônia em sentido macro, são muito
interligadas por políticas que envolvem a questão ambiental e também territorial, com
a existência de muitas Unidades de Conservação, Terras Indígenas demarcadas e em
processo de demarcação, Comunidades Remanescentes de Quilombos e PAEs, como
abordado em seções anteriores.
Logo, algumas propostas políticas do governo Bolsonaro ainda em janeiro
tornaram possível vislumbrar como o governo atuaria na Amazônia, sendo algumas
187

delas a de fundir o Ministério do Meio Ambiente ao Ministério da Agricultura – o que,


após muitos protestos, não ocorreu; a transferência da FUNAI, antes no Ministério da
Justiça (este sob o comando de Sérgio Moro), para o Ministério de Direitos Humanos
que passou a ser o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, chefiado
pela advogada e pastora evangélica Damares Alves, recebeu críticas e reações
imediatas da população, de entidades de defesa dos direitos humanos e movimentos
sociais.
Como apresentado, a movimentação de mulheres da região têm sido pulsante e
com poucos dias da posse de Bolsonaro, entre os dias 9 e 13 de janeiro de 2019 foi
promovido um Encontro de Mulheres Indígenas do Baixo Tapajós na aldeia Novo
Gurupá, no Rio Arapiuns, no município de Santarém, com a presença de mais de 200
mulheres de 14 etnias26.
No dia 12 foi publicada a Carta das Mulheres Indígenas do Baixo Tapajós
(2019), com denúncias em nível municipal, estadual e federal sobre políticas e ações
que ameaçam os povos da região, reafirmando também seus modos de vida e suas
culturas:
Ao longo desses dias, fizemos rituais e produzimos artesanatos,
remédios caseiros, produtos de limpeza, fizemos pinturas corporais
com jenipapo e urucum e cuidamos da nossa beleza. Fazer juntas,
para nós, é um modo de existir e resistir. De exercer nossos
princípios de coletividade e de repasse de conhecimentos entre
gerações. É desse modo que milenarmente defendemos nossos
territórios, nossos costumes e tradições. Que mantemos nossa relação
com a floresta e os rios. Nós dependemos da natureza para continuar
existindo física e espiritualmente. Os seres encantados que nos
protegem e que dão continuidade à vida dependem da floresta e dos
rios. Se matam os rios e a floresta eles morrem e nossos povos
morrem junto. (Carta das Mulheres Indígenas do Baixo Tapajós,
2019)

A introdução da carta traz o reforço aos valores e às culturas que as mulheres


compartilham ao atrelarem a importância do território para suas práticas, suas
existências e espiritualidade, apontando que políticas que destruam o lugar possuem
relação direta com a destruição de todas as formas de vida. Elas continuam, assim,
denunciando decisões e declarações do presidente:
Por isso, estamos preocupadas com o acelerado desmonte da política
indigenista coordenado pelo recém empossado Presidente da
República Jair Messias Bolsonaro. Não queremos desmatamento!
Não queremos exploração dos nossos recursos naturais! Não

26
Dos povos Arapium, Apiaká, Arara Vermelha, Borari, Jaraqui, Kumaruara, Maytapu, Munduruku,
Munduruku Cara Preta, Tapajó, Tapuia, Tupayú e Tupinambá.
188

queremos plantio de soja e pecuária extensiva nas nossas terras! Não


queremos construção de hidrelétricas e portos nos nossos Rios!
(Carta das Mulheres Indígenas do Baixo Tapajós, 2019)

As denúncias feitas sinalizam o avanço de ações alinhadas ao plano de governo


do atual presidente, como no questionamento da autodeterminação dos povos sob a
alegação de que algumas comunidades seriam de “falsos índios”, o que, por exemplo,
resultou na aprovação do Plano Diretor Municipal com a autorização da construção de
um porto no Lago Maicá, onde vivem indígenas, ribeirinhos e quilombolas.
Foi questionada também a atuação do governo estadual por não garantir a
Educação Escolar Indígena, mas as principais críticas recaíram sobre o novo governo
federal, que elas entendem como um desmonte da política indigenista, do esvaziamento
da FUNAI e a sua subordinação ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos sob comando da pastora Damares Alves (já citada aqui anteriormente), a
nomeação de Tereza Cristina para o Ministério da Agricultura e outras políticas e
declarações que reafirmaram um projeto de governo totalmente conflitante com os seus
modos de vida:
No primeiro dia do mandato foi publicada a Medida Provisória n°
870 que entre outras coisas transfere para o Ministério do
Agronegócio, sob gestão da Tereza Cristina, mais conhecida com a
Musa do Veneno, a atribuição de identificar, delimitar, demarcar e
registrar as terras indígenas e a responsabilidade de fazer
licenciamento ambiental de empreendimentos que impactam as terras
indígenas. Esse ato coloca em alto risco nossas terras. Por isso,
pedimos apoio de toda comunidade internacional para boicotar
produtos do agronegócio brasileiro! (id.)

Sobre a nomeação da Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,


também se pronunciam ao dizerem que:
A FUNAI além de esvaziada – por perder essas atribuições
fundamentais para garantia dos nossos direitos – foi transferida para
o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos
comandado por Damares Alves. Ela é pastora evangélica, defensora
da Escola sem Partido e do combate a ideologia de gênero. Um perfil
completamente oposto ao que imaginamos de uma profissional para
trabalhar com pautas de direitos humanos, minorias étnicas, raciais e
de gênero. O discurso de Bolsonaro e sua equipe sobre os povos
indígenas é retrógrado e desrespeitoso conosco, com nossa história,
ancestralidade e atuação política e cidadã junto ao Estado brasileiro
(id.).

Apesar dessas dinâmicas não serem novas na região, as mulheres indígenas do


Baixo Tapajós sinalizam preocupação com o agravamento dessas tensões e a
intensificação dos conflitos principalmente com o agronegócio e, assim, elas pedem na
189

carta que a comunidade internacional boicote os produtos do agronegócio brasileiro. E


o fim da carta delas merece aqui destaque:
O Presidente nos comparou a animais no zoológico presos em jaula
ao se referir a nossa vida dentro dos nossos territórios tradicionais.
Ele faz afirmações absurdas sobre nosso modo de vida e sobre nossos
desejos enquanto cidadãs brasileiras. Sim, somos brasileiras! Somos
indígenas! Sabemos o que queremos e exigimos o direito de sermos
consultadas pelo Estado para elaboração e implementação de
políticas públicas! Queremos a promoção da saúde da mulher
indígena! Queremos educação pública, específica e diferenciada de
qualidade sendo ofertada dentro das nossas aldeias! Queremos ter
autonomia para fazer a gestão ambiental e territorial das nossas
terras! Queremos respeito a nossa cultura, tradição e espiritualidade!
Queremos nossos territórios demarcados! Nossa terra não é
mercadoria! Resistiremos! SURARA! SAWÊ! (id.)

Pode­se perceber que as declarações dos movimentos de mulheres na região


contestam diretamente as políticas de âmbito nacional (reverberadas também em nível
estadual e municipal). Elas questionam o lugar e a lógica que interpela suas vidas,
demonstrando que há um descompasso entre os seus direitos e a forma como o Estado
tem lidado com outros modos de vida coexistentes no território.
A declaração do presidente eleito Jair Bolsonaro destacada na carta, junta­se a
outras do vice­presidente General Hamilton Mourão, em que indígenas e também
quilombolas são comparados a animais27, quando referiu­se aos indígenas em Terras
Indígenas como “animais em zoológicos”, no dia 30 de novembro de 2018, ainda que
ele tenha tentado justificar a sua própria lógica ao dizer que “o índio é um ser humano
igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o índio, que ainda
está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras.” (G1,
2018).
Na fala do presidente é explícita a presença de lógica da colonialidade, mesmo
quando ele diz que o índio é um ser humano igualzinho a nós / quer o que nós
queremos, ele busca uma legitimação da humanidade dos povos indígenas no Brasil
apenas por meio da assimilação da sua própria existência, se o índio é um ser humano
ele deve querer o mesmo que ele quer, um homem cisgênero branco heterossexual em
um cargo político e inserido em um sistema capitalista. Quando diz que não se pode
usar o índio, que ainda está em situação inferior a nós, novamente reforça uma ideia

27
Neste caso, a declaração foi feita ao referir­se a quilombolas na medida de peso de gado, “o
afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas” e que os quilombolas “não fazem nada, eu acho que
nem pra procriador servem mais”. A fala, realizada no dia 3 de abril de 2017, antes de ser candidato à
presidência. Já o vice­presidente, General Mourão, no dia 6 de agosto de 2018, já participando das
eleições declarou que o Brasil teria herdado “a indolência do índio e a malandragem do negro”.
190

de inferiorização dos povos indígenas e de homogeneização, sendo a própria


colonialidade do ser tantas vezes aqui abordada.
Krenak (2019) aponta que a relação entre o Estado brasileiro e as sociedades
indígenas em relação aos territórios é extremamente problemática. Enquanto o Estado
passa a atribuir de forma muito reduzida o termo terras indígenas, ao mesmo tempo
em que a “máquina estatal atua para desfazer as formas de organização das nossas
sociedades, buscando uma integração entre essas populações e o conjunto da sociedade
brasileira” (ibid., p. 39), pois, estão ainda presentes “(...) forças coloniais, que
sobrevivem na mentalidade cotidiana de muitos brasileiros a ideia de que os índios
deveriam estar contribuindo para um processo de exaustão da natureza” (ibid., p. 41).
E, tal processo de exaustão da natureza, aqui, identifico como basicamente o projeto de
nação que tem guiado as políticas no Brasil.
Mais uma vez o presidente reproduziu a ideia de que a demarcação das Terras
Indígenas não seria um direito dos povos originários, mas sim uma forma de se
reforçar uma pressuposta inferioridade, desconsiderando os séculos de lutas indígenas
assim como as mobilizações atuais, ao passo que busca deslegitimar as declarações de
lideranças, atribuindo suas falas a terem sido aliciados por ONGs com interesses
privados e que enganariam os povos indígenas. Tais discursos são emblemáticos ao
serem constantemente declarados pelo líder máximo do poder executivo, pois
apoiadores e simpatizantes passam a reproduzir tais argumentos continuamente.
Como discutido por González Casanova (2006) é num processo de aliança com
as elites locais que a dinâmica do colonialismo interno irá se desenvolver, mas inserida
em um plano muito mais amplo, no qual ela faz sentido, objetivando a “aceitação”
dessas elites na mesa dos grandes desenvolvidos.
A dinâmica descrita está presente também na fala de Jair Bolsonaro, no
momento em que este afirmou em uma entrevista em 8 de abril de 2019 que gostaria
que a Amazônia fosse explorada pelos Estados Unidos: “quando estive agora com
Trump, conversei com ele que quero abrir para ele explorar a região amazônica em
parceria. Como está, nós vamos perder a Amazônia, aquela área é vital para o
mundo” (Deutsche Welle, 2019). Ele acrescentou que o risco de perder a região seria
para os povos indígenas que poderiam declarar as Terras Indígenas como países
independentes, ao passo que se refere que a área é “vital para o mundo”, mas diz que
pode ser perdida, enquanto ainda destaca o risco de sua internacionalização, sendo
impossível não nos fazer parar para pensar a que mundo o presidente se refere.
191

Perder a Amazônia para os povos originários significaria perder o acesso à


potencialidade de exploração econômica? E, a área é vital para o mundo em sentido
econômico ou é possível pensar que seja também vital para os modos de vida dos
povos que moram na região de maneira não orientada ao capitalismo?
Ainda no início de 2019 foi realizado em Paris, na França, o Congresso Mundial
de Hidrelétricas, onde uma coalizão de ONGs e lideranças sociais protestaram e onde o
povo Munduruku lançou uma carta:
Agora, o novo governo não é diferente. É o mesmo pariwat (branco)
inimigo dos povos indígenas. Estamos aqui mandando o recado: não
trocamos e nem negociamos a vida do nosso povo! A cada dia, a
cada minuto, o governo Bolsonaro quer acabar com o nosso direito,
com nosso território, não queremos que as empresas junto com o
governo brasileiro destrua o nosso rio como vocês fizeram com a
Usina Hidrelétrica Belo Monte, Teles Pires, São Manoel e tantas
outras barragens. Nós caciques, mulheres, pajés, guerreiros e crianças
ouvimos os pássaros cantar mais baixo, os rios estão doentes e vocês
das empresas estão invadindo e acabando com a Amazônia. (Carta
Munduruku, 2019)

As críticas feitas apontam que o risco das obras serem retomadas e mais
facilmente aprovadas é maior que nos governos anteriores, que também adotaram
políticas favoráveis a empreendimentos hidrelétricos na Amazônia. O que diferencia o
novo governo seria justamente um desmonte dos órgãos responsáveis pela fiscalização
e pelas licenças ambientais como o Ministério do Meio Ambiente, o IBAMA e o
ICMBio, que, como consequência da discordância do governo com políticas de
fiscalização, extinguiu secretarias ligadas a políticas sobre mudanças climáticas e
propôs a extinção do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), o que foi
embargado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) meses depois.
Como já citado, a FUNAI seria inicialmente retirada do Ministério da Justiça, e
assim a função de demarcação de Terras Indígenas tentou­se atribuir ao Ministério do
da Agricultura, mudança que também foi barrada pelo STF, sendo considerada
inconstitucional. A política de desmonte também tentou atingir o reconhecimento de
Comunidades Quilombolas, retirando a atribuição do INCRA, o que não se
concretizou.
Ainda que as duas mudanças tenham sido embargadas, o desmonte ocorreu pelo
esvaziamento da atuação, já que durante o ano de 2019 não foi demarcada nenhuma
Terra Indígena ou Quilombola, atingindo assim, uma promessa de campanha do
candidato do PSL, que em 2017 prometeu “se eu chegar lá [presidência] não vai ter
192

dinheiro pra ONG. Se depender de mim, todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro
de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para
quilombola” (Veja, 2017).
No segundo mês do mandato foi anunciado o pacote de obras que seriam
voltadas para a região, onde são retomados os planos de hidrelétricas para o Rio
Trombetas, para atender às necessidades da Zona Franca de Manaus e também a
extensão da BR­163 até o Suriname, tornando­a a principal via de escoamento de
produção da região (Agência Brasil, 2019).
E, ainda no processo de alterações adotadas no funcionamento de órgãos
ligados a questões territoriais e socioambientais, iniciou­se um processo de
militarização dos mesmos pelas nomeações de novos presidentes e outros cargos que
passaram a ser ocupados por militares. Como, por exemplo, foi nomeado para
presidente da FUNAI o general do Exército Franklimberg Ribeiro de Freitas, como
presidente do INCRA o general do Exército Jesus Corrêa e como Superintendente da
Zona Franca de Manaus, o coronel do Exército Alfredo Menezes, para citar alguns.
A partir de março de 2019 com reações negativas aos cortes financeiros e
mudanças anunciadas para o setor da educação assim como críticas feitas às
instituições de ensino, a Amazônia começou a aparecer ainda mais frequentemente nos
discursos do presidente e outros representantes do governo, com declarações que
sinalizaram o estudo à liberação da mineração em Terras Indígenas (Congresso em
Foco, 2019).
Declarou também entre ameaças e recuos uma possível saída do Brasil do
Acordo de Paris, enquanto foi assinada uma carta de intenção entre o Ministério do
Meio Ambiente, chefiado por Ricardo Salles, com a Agência dos Estados Unidos para
o Desenvolvimento Internacional (USAID), articulando a criação de um fundo de US$
100 milhões de dólares para o desenvolvimento econômico da região, voltado para
fornecer empréstimos para empresas privadas que atuem na região (MMA, 2019). O
Ministro Ricardo Salles foi também o responsável por executar uma “limpa”, nas
palavras do presidente, no ministério, referindo­se à exoneração de cargos
comissionados de funcionários públicos identificados como “ideológicos”.
No mesmo mês, ganhou força a proposta de municipalização da saúde indígena,
a qual foi recebida com muitas críticas por associações e representantes dos povos
indígenas (Spezia, 2019). É nesse período também que o presidente em uma série de
viagens internacionais utiliza em seu discurso um tom convidativo para a exploração
193

da Amazônia, ao mesmo passo que, contraditoriamente, chama a atenção para o risco


da internacionalização da mesma.
Em uma de suas falas, no Chile, o presidente disse estar preocupado com a
situação da Amazônia e que o Brasil estava à disposição para uma “exploração racial”
desta, cometendo um ato falho e em seguida corrigindo para “exploração racional”
(Fórum, 2019). O que, pela abordagem da análise da lógica moderna/colonial, não
aparenta um ato falho, mas sim dois termos coerentes para as políticas adotadas e
pensadas para a Amazônia, já que, como argumenta Julieta Paredes (2010), o
“colonialismo histórico y el interno han servido de base racial para las políticas de
ajuste neoliberal” (ibid., p. 52).
O discurso de abertura da Amazônia para as parcerias econômicas com
governos aproximados ideologicamente, como o de Trump, Piñera e Netanyahu,
utilizou frequentemente a expressão “à disposição”, o que foi interpretado por muitos
analistas como uma postura entreguista do governo e não de defesa ou soberania, como
o mesmo costuma justificar­se.
Já sem outros atos falhos, a expressão “exploração racional” também passa a
ser repetida constantemente, indicando a disponibilidade para aquilo que se pode
atrelar à lógica de desenvolvimento, progresso e modernização, numa potencialização
da exploração dos recursos, ao mesmo passo que, identificando a mineração,
hidrelétricas, agropecuária e soja como formas de exploração racional,
automaticamente confinando todas as outras formas de vida na Amazônia à
“exploração irracional”, como modos de vida que estariam desperdiçando o potencial
da região, ou, como já citados em outras situações, estariam sendo cooptados por
estrangeiros ou fazendo exploração própria. O que, mais uma vez, nos faz pensar o que
de fato é o problema nas acusações, se o não explorar a região ou quem e como se faz.
Os posicionamentos do presidente começam a repercutir na sua imagem
internacional, após o prefeito de Nova Iorque declarar que não gostaria que houvesse
um evento de homenagem ao presidente brasileiro do Museu Americano de História
Natural (Vitorio, 2019), inclusive por conta do posicionamento que o mesmo tem tido
sobre a região amazônica, assim como, o líder de Estado foi recebido em Israel com
protestos da ONG Greenpeace com dizeres que pediam que Bolsonaro parasse com a
destruição da Amazônia (Greenpeace Brasil, 2019).
Já no Brasil, em um evento em Macapá, o presidente retomou uma proposta do
governo Temer, o fim da RENCA, justificando que explorar a região teria a ver com
194

“usar as riquezas que Deus nos deu” (Onofre, 2019). Sobre outras propostas alinhadas
ao “desenvolvimento” o presidente passou a atacar mais ONGs que atuam na região do
que os povos indígenas, reproduzindo a fala de infantilização dos mesmos, indagando a
algumas pessoas de diferentes etnias indígenas que foram levados a participar numa
live pelo Facebook do presidente pelo ruralista Luiz Nabhan Garcia: “vão querer
continuar pobres? Escravizados por ONGs, escravizados por partido político, (...) que
usam de vocês para querer se dar bem. Nós queremos a liberdade de vocês”.
(Fernandes, 2019).
Mais uma vez percebe­se que o discurso do presidente ao mesmo tempo em que
conclama ter genuíno interesse em respeitar a vontade dos povos indígenas, ao
contrário de ONGs e outras entidades, apenas afirma tal quando o cenário refere­se a
políticas de assimilação cultural, afirmando que os povos teriam interesse em se
“integrar à sociedade” e estariam sendo instrumentalizados.
O mesmo argumento é utilizado para justificar a proposta do linhão de Tucuruí,
que ligaria Roraima ao sistema nacional de energia, mas que para tanto precisaria da
autorização do povo Waimiri Atroari por passar por dentro da Terra Indígena. Neste
caso, quem estaria atrapalhando a proposta seriam ONGs (id.)
Como no caso da live em questão, Bolsonaro passou a apresentar pessoas de
diferentes etnias, normalmente sem reconhecimento de representação por associações
de suas etnias para exemplificar qual a “verdadeira vontade do índio”, enquanto
deslegitima representantes de liderança consolidada e reconhecida, quando estes
discursos iam de encontro com seus propósitos, como o caso dos ataques ao Cacique
Raoni.
Enquanto este iniciou uma série de viagens, assim como outros representantes e
lideranças indígenas, pela Europa e outros países denunciando as políticas do governo
e também em busca de apoio político para exercer pressão e evitar mais retrocessos e
econômico para que os povos possam ter autonomia na fiscalização de suas terras. O
Cacique Raoni chegou a se reunir com o presidente da França, Emmanuel Macron,
com o Papa Francisco, no Vaticano (Deustche Welle, 2019).
Em outubro de 2019, Bolsonaro chegou a afirmar que Raoni havia sido
“cooptado por estrangeiros” que “abusaram da boa fé do cacique” (Vargas, 2019) e
sobre o trabalho iniciado pelo mesmo em busca da construção de solidariedade
internacional às pautas indígenas, o presidente disse que a liderança “vive tomando
champagne em outros países por aí” (Fellet, 2018).
195

Ademais, ainda em abril, é publicada uma edição da revista Science com um


manifesto assinado por 602 cientistas que endereçado às instituições europeias e à
União Europeia pedem que os acordos comerciais com o Brasil sejam mantidos apenas
com a condição do atendimento a compromissos ambientais, o que, parece já ser uma
reação da articulação e das redes de ativismo tanto indígenas como também
ambientalistas.
E é com a declaração que o Fundo Amazônia seria utilizado agora para pagar
indenização a expropriações de terras que a cooperação internacional reage mais
fortemente, por parte dos líderes de Estado, que questionam a arbitrariedade da decisão
e o desvio da função do fundo, ao passo que o Ministro do Meio Ambiente e também o
presidente passam a falar abertamente sobre a intenção de também extinguir o fundo,
visando a defesa da soberania nacional. Em decorrência da crise, governos da
Alemanha e da Noruega congelaram repasses de milhões ao fundo em agosto (Negrão,
2019).
É enquanto o Fundo Amazônia é ameaçado de desmonte que começam a
ganhar notoriedade os índices que indicam um aumento histórico no desmatamento
(Costa, 2019):
Em maio de 2019, o SAD detectou 797 quilômetros quadrados de
desmatamento na Amazônia Legal, um aumento de 26% em relação a
maio de 2018, quando o desmatamento somou 634 quilômetros
quadrados. Em maio de 2019, o desmatamento ocorreu no Pará
(40%), Amazonas (20%), Mato Grosso (19%), Rondônia (17%),
Acre (3%) e Roraima (1%). As florestas degradadas na Amazônia
Legal somaram 76 quilômetros quadrados em maio de 2019,
enquanto que em maio de 2018 a degradação florestal detectada
totalizou 130 quilômetros quadrados. Em maio de 2019 a degradação
foi detectada no Amazonas (48%), Mato Grosso (36%), Rondônia
(12%) e Pará (4%). (Costa, 2019)

Os números alarmantes logo geraram reação nacional e internacional,


ampliadas pela participação do presidente em encontro do G20 onde o mesmo reage e
diz que o governo brasileiro não estava no evento para ser advertido e em uma resposta
direta à Primeira­Ministra da Alemanha, Angela Merkel, diz que o país europeu teria
muito a aprender com o Brasil (Passarinho, 2019).
O evento realizado no Japão foi aproveitado pelo presidente como mais uma
oportunidade de instrumentalizar o potencial de exploração da Amazônia no
fortalecimento de laços diplomáticos e econômicos, ao declarar em uma live pelo seu
perfil do Facebook, antes da viagem, que falaria com o Primeiro­Ministro japonês,
196

Shinzo Abe, sobre a possibilidade de um acordo para explorar a região e apontou que
ao sobrevoar uma área florestal entre São Paulo e o Vale do Ribeira a extensão era tão
grande que lembrava a Amazônia, indicando que:
Uma imensidão aí a floresta, parece até a Amazônia. Então isso é
conversa pra boi dormir essa conversa de que o Brasil está
acabando com a Amazônia, é só uma propaganda contra nós. O que
eles querem, o pessoal lá de fora, e alguns traidores aqui dentro, eles
querem é fazer com que a Amazônia seja internacionalizada.
Enquanto eu for presidente pode ter certeza que não será.
(Fernandes, 2019)
Outras reverberações dos primeiros meses do governo Bolsonaro são referentes
a um elemento já apontado tanto na história do Brasil e da região, como também uma
característica central da campanha do presidente, a catequização/evangelização. Ainda
que, nesse cenário, tal fenômeno se dê de forma diferente, ocorre agora um conflito no
campo religioso entre a Igreja Católica e igrejas que costuma­se atribuir uma
denominação generalizante evangélica, de cunho protestante.
Em fevereiro de 2019, ainda segundo mês do mandato de Bolsonaro, a Igreja
Católica despontou como potencial crítica ao governo, por declarações do Papa
Francisco que condenaram políticos e discursos nacionalistas e xenofóbicos, mas,
principalmente, pela organização do Sínodo na Amazônia que viria a ser realizado em
outubro na região.
Relatos apontaram que a Agência Brasileira de Inteligência Nacional (ABIN)
estaria monitorando, ainda que o ministro­chefe do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI), Augusto Heleno tenha negado este fato, o mesmo confirmou que
há preocupação no governo sobre o evento que se propunha a “falar de terra indígena,
quer falar de exploração, de plantação, quer falar de distribuição de terra. Isso são
assuntos do Brasil. O Brasil não dá palpite no deserto do Saara, na floresta das
Ardenas, no Alasca"(...) "Quem cuida da Amazônia brasileira é o Brasil.” (Folha,
2019).
A declaração de tensão política demonstra um processo de afastamento do
governo em relação à Igreja Católica enquanto os posicionamentos da mesma são
identificados, nas falas do Papa Francisco, como “socialistas”, havendo uma
articulação com a teologia protestante emergente desde os anos 1990 no país e que se
consolida recentemente em relação ao número de fiéis e poder político no país, como
no caso da “Bancada da Bíblia” no Congresso Nacional, que mais que dobrou desde
2006 (Exame, 2018).
197

Desta forma, a disputa pelo campo religioso no Brasil e na Amazônia tem­se


mostrado muito ativo e tem ocorrido de forma a registrar um avanço crescente de
igrejas evangélicas na região. No caso da Amazônia, apresentou­se em seções antiores
como a atuação da Igreja Católica está historicamente envolvida na região, desde a
catequização havendo também relação no processo de formação de movimentos sociais
e lutas pela terra no período da difusão da Teologia da Libertação na época da ditadura.
A pesquisadora Véronique Boyer (2008) investigou o fenômeno da expansão
evangélica na Amazônia brasileira e destacou que o sucesso tem se dado devido a uma
utilização das estratégias e experiências católicas, mas que facilitam sua expansão por
meio de uma diferenciada e mais flexível hierarquia de poder do que na Igreja
Católica, entre outros fatores. Tem­se notado que o fenômeno de expansão de
denominações evangélicas em nível nacional também tem se dado na Amazônia, onde
adquire também um caráter indissociável da lógica moderna/colonial, associando­se
muitas vezes também a interesses capitalistas.
Fellet (2018) aponta em uma reportagem sobre o contexto atual religioso em
relação às comunidades indígenas que:
Segundo a Associação de Missões Transculturais Brasileiras
(AMTB), entidade que reúne 78 organizações missionárias, há no
mundo "dois mil povos sem o Evangelho, entre os quais 89 estão no
Brasil". A associação tem um Departamento de Assuntos Indígenas,
cuja missão é "atender demandas sociopolíticas oriundas das
agências filiadas junto aos órgãos governamentais", como obter
autorizações para atuar em terras indígenas e influenciar
congressistas em debates sobre o trabalho missionário em aldeias.

As abordagens adotadas costumam também envolver a entrada por meio do


oferecimento de serviços básicos de saúde e depois se inicia o processo de
evangelização. Fellet (id.) também cita o financiamento e a intensa capacitação para as
ações, tais como cursos de piloto de avião, de antropologia, linguística e peças de
teatro.
As perspectivas para a situação são de agravamento para os representantes dos
povos indígenas e especialistas. O jornalista cita a declaração de Dinaman Tuxá,
coordenador­executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) que
considera que "com a indicação da ministra Damares, o novo governo sinaliza que está
claramente articulado com missionários evangélicos numa estratégia declarada de
integrar o indígena à sociedade ­ a mesma estratégia da ditadura militar." (Tuxá, apud,
Fellet, 2018).
198

Enquanto a questão da transferência da FUNAI continuava indefinida, a


Ministra Damares Alves em diversos momentos utilizou expressões que reproduzem
visões racistas sobre povos indígenas ao adotar tom paternalista e infantilizador, ao
comentar que a FUNAI deveria ficar com a “mamãe Damares e não com o papai
Moro” (Uribe, 2019) e, quando da decisão definitiva pelo STF, reagiu dizendo que “a
Funai voltou para o papai Moro, mas a gente fez um acordo de guarda
compartilhada” (Desideri, 2019).
Além do enfoque dado aqui, onde busquei sintetizar o cenário político nacional
e internacional no que se refere à Amazônia e seu lugar nos primeiros meses do
governo Bolsonaro, não aprofundei temas complementares como os cortes de recursos
na educação e as diversas manifestações feitas contra as medidas por ele tomadas,
assim como outras. Logo, a presente seção não se coloca como um balanço geral do
governo de Jair Bolsonaro, mas atende ao básico para que possa perceber nas falas,
discursos, propostas e políticas adotadas pelo governo sua relação com a ideia de
projeto de nação e com a modernidade/colonialidade.
Percebe­se assim, uma intensificação da instabilidade política e da vida dos
povos na Amazônia e, também, no Tapajós, que reagem constantemente contra não
apenas o histórico Estado brasileiro e todos os governos que reproduziram políticas de
colonialidade, mas, enfaticamente, contra o atual governo e as mudanças, decisões e
alterações na estrutura política do país, pautado principalmente em valores que
explicitamente e de forma radicalizada dialogam com uma ideia de projeto de nação
embasado numa sociedade ocidentecentrada reprodutora de valores da lógica
moderna/colonial no que toca às colonialidades do poder, do ser, do saber, de gênero e
da mãe natureza.
Durante o decorrer dos primeiros meses do governo, o desmonte das políticas
defendidas pelos movimentos para a região, o apoio ao agronegócio e a exploração
predatória entre outras declarações tornariam ainda mais explícita a ideia de como a
Amazônia é vista no atual projeto de nação, assim como a intensificação de
manifestações e resistências.
Destaco aqui, também, algumas situações que contextualizaram o mês em que
eu estava no Tapajós, julho de 2019, como: a declaração sobre a proposta de
legalização de garimpos no Pará (Castro, 2019); críticas à FUNAI em suas redes
199

sociais afirmando que a instituição cuidaria de tudo, “menos do índio”


(https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1148217392973123584?).
Assim como a reação do presidente ao ser questionado sobre a pressão de
líderes internacionais sobre o desmatamento da Amazônia ao dizer que o Brasil,
referindo­se à Amazônia “é como uma virgem que todo tarado de fora quer” (G1,
2019).
Tais afirmações explicitamente possibilitam pensar sobre as colonialidades
operantes nas relações sociais no Brasil. Um detalhe na linguagem empregada, por
exemplo, normalmente ao se referir aos povos indígenas além de usar o termo “índio”,
o presidente o usa no singular, em sentido de homogeneidade. Enquanto, na declaração
sobre como a Amazônia representa para o Brasil uma riqueza digna de comparação à
castidade e valor objetificado e fetichista como a virgindade.
Por fim, houve aceno, também, para a possibilidade de rever todas as Unidades
de Conservação, pois não teriam sido elaboradas com base em critérios técnicos, ao
passo que o presidente declarou em uma live de Facebook na qual reclamou por não
conseguir extinguir parques por decreto, de vez que “o Brasil todo com essas reservas
enormes, terras indígenas, quilombolas, área de proteção ambiental, parques
nacionais, parques estaduais. É um absurdo isso aí” (Bragança, 2019).
As dinâmicas até aqui descritas e vividas foram ampliadas e aprofundadas até o
meu retorno em julho de 2019, reforçando como a fala de Lalah é pertinente e o quanto
o território pode ser a chave para conter tudo isso ou gerar a guerra de vez, enquanto
nos é imposto do outro lado um caminho de exploração racial/racional.
Nas palavras das mulheres Munduruku sobre a I Assembleia das Mulheres
Munduruku, junto a mais políticas e posicionamentos críticos na região “pensamos em
projetos para construirmos cada vez mais autonomia para nossa luta. Trabalhamos
juntos na construção do nosso plano de vida, com grupos de trocas para garantir o
futuro das nossas gerações, fortalecendo o nosso artesanato, a agroecologia (...)”.
O objetivo é a autonomia reforçando a autonomia e a luta pelo modo de vida e
pelo poder de criar suas próprias comunidades. Comentam sobre políticas para a região
do Tapajós recentes que, mais uma vez, ameaçam a destruição de seu território e de
lugares sagrados, como já ocorrera pela construção da UHE Teles Pires, que dinamitou
os locais sagrados de Karobixexe e Dekoka’a, estando agora também ameaçado Daje
kapap Eipi, motivo de continuar a luta pela demarcação das terras:
200

Os nossos direitos que estão na Constituição são resultado de muita


luta dos que vieram antes de nós. Vamos continuar lutando por eles,
pelos nossos filhos e netos. Estamos construindo caminhos de vida, e
não vamos parar, mesmo com esse governo que nos odeia e quer a
nossa morte. Nós vamos continuar lutando pelo nosso território, pelas
nossas florestas, pelo nosso rio que é como o sangue que corre no
nosso corpo, que dá força para o nosso povo resistir. (Carta da I
Assembleia das Mulheres Munduruku, 2019)

A relação com o território, como base para existir e poder pensar um futuro,
como destacado por Lalah, em cartas das mulheres Munduruku e por outras mulheres
indígenas, pode parecer uma questão restrita apenas aos povos originários, mas não
acredito ser assim. Ainda que culturalmente tenhamos diferentes formas de nos
relacionar e pensar o território, a luta dos povos indígenas se dá em um cenário
histórico de guerra e luta pelo direito a existir, enquanto o território tem sido
propriedade do Estado brasileiro, o qual tem nas estruturas a fundamentação do seu
significado e do seu uso.
Todos lutam por território, mas alguns grupos sociais são reconhecidos como
detentores mais legítimos, por explorarem e gerarem “riquezas” – privadas –, enquanto
os riscos são compartilhados e maximizados por muitos que nem mesmo se beneficiam
e participam de tal processo. Entre povos e modos de vida subalternizados e elites a
diferentes níveis (internacional, nacional e local), temos a maior parte da população
que vive em diferentes condições socioeconômicas em contexto rural e urbano,
atravessados por ou na fronteira da modernidade/colonialidade.
A ascensão do bolsonarismo e seus valores no ano de 2018 e o seu primeiro ano
de mandato em 2019 apontaram para uma guinada de intensificação de processos de
disputa e violência no cenário político. Ailton Krenak (2019) comenta que quando lhe
perguntaram ainda em 2018 sobre tal situação e como os povos indígenas iriam fazer
diante disso tudo, ele respondeu: “Tem quinhentos anos que os índios estão resistindo,
eu estou preocupado é com os brancos, como que vão fazer pra escapar dessa”
(Krenak, 2019, p. 31).
201

10 É PRECISO O RIO EM PAZ PARA SE VER O FUNDO

Figura 27 – Anotações pessoais no dia 6 de julho de 2019

Fonte: Elaboração própria, arquivo pessoal.

Ainda era o mês de maio quando comecei a receber mensagens de Cris, Nice e
Gildson sobre minha próxima visita. O movimento que venho fazendo nos últimos já
virou uma rotina e, quanto mais se aproxima de julho já começo a me deslocar
imaterialmente para o Tapajós não apenas pelas amizades – com as quais as trocas de
mensagens vão ficando mais recorrentes –, mas também em sonhos, que sempre
persistem mesmo depois de mais de um mês que retorno a Belém.
Julho de 2018 é diferente por muitos motivos, era o que eu imaginava ser a
“última viagem”, pelo menos por conta da tese, porque envolveria o período mais
longo da minha estada até então – o mês inteiro. Estava animada com a possibilidade
de poder passar pelo menos uma semana em cada comunidade e o restante dos dias em
Alter­do­Chão para me dedicar à escrita. Muita expectativa e também curiosidade para
saber como estavam todos, se os últimos meses haviam impactado as pessoas como a
mim, se estava tudo bem, como estava o rio.
202

Preparei as habituais encomendas: polpa de bacuri para Cris e Fernanda, muitos


livros para Cris, sementes de açaí para Nice que pede por ser mais fácil e barato achar a
semente já pronta para o artesanato em Belém e um presente para a recém­nascida bebê
de Aline, assim como para sua filhinha mais velha, agora com 6 anos, minha parceira
de excursões fotográficas e banhos de rio e igarapé. A mochila, que sempre volta mais
leve do que foi, já está arrumada.
Dessa vez, planejo fazer um trajeto diferente, já que a estada será mais longa.
Ao invés de ir direto para Alter­do­Chão e ficar na casa de Cris, fico em Santarém,
hospedada pelo meu irmão mais novo que se mudou de Marabá para a cidade, assim, a
logística fica mais fácil de ir para a Coroca e para a Flona. Passando alguns dias em
Santarém percebi que não é mais tão fácil encontrar carros e bandeiras do período das
eleições com apoio ao agora presidente Jair Bolsonaro, as conversas paralelas também
não estão mais tão afloradas sobre o assunto.
Decido ir primeiramente para o rio Arapiuns, passar uma semana na Coroca,
rever os amigos e as amigas, entrevistar mais pessoas, já que até então apenas havia
conversado oficialmente e seguindo os eixos da entrevista com Luza. Agora eu já
conhecia melhor a Coroca e os laços estavam já mais fortalecidos. Por sorte, Gildson e
Enilde me avisam que no dia 5 de julho o barco da associação estaria saindo do porto
de Santarém e já sabendo da minha experiência anterior perguntaram se eu não preferia
ir junto, já que a embarcação era bem mais segura, o que aceito na hora.
A viagem é muito tranquila, o tempo está bom, muitos moradores e filhos da
comunidade estão voltando para a Coroca com mantimentos e outros que moram em
outras cidades estão a caminho de passar as férias na comunidade, também muito
material de construção para quem pretende aproveitar o período para fazer ajustes na
casa.
Como já comentei em outras seções, o período de julho apesar de ser de cheia
do rio, é o início da alta temporada por conta das férias escolares, o que acaba
proporcionando um bom movimento de frequentadores, mas não tanto quanto o fim do
ano, já que as praias ainda não estão com suas areias aparecendo, dado à cheia do rio.
Dessa vez encontro um rio ainda muito cheio, o mais cheio de todos os julhos que fui,
a ponto de lugares onde eu tomava banho e existiam faixas de areia não estarem
aparentes. O rio não desceu tão rápido nesse ano.
Fico hospedada na casa que era da mãe de Enilde, que fica desocupada durante
a maior parte do ano, mas que é onde ela e Gildson ficam, assim como seus irmãos e
203

ocasionalmente outras pessoas que estão viajando. A casa tem um lugar privilegiado
para armar a rede, com a janela para o rio.
Figura 28 - Rede e janela para o Arapiuns

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2019)

No segundo dia já estou dormindo às 21:00 e acordando às 06:00, algo


improvável em minha rotina em Belém, mas da qual espantosamente me adapto rápido.
Enilde e eu conversamos muito durante os dias sobre a sua infância na
comunidade, como a Coroca era, ainda apenas com sua família morando ali, a
necessidade de mudar com o movimento do rio para o outro lado (Amazonas) quando
lá não tinha peixe ou o que comer, como ela sentia falta das águas do rio Arapiuns,
assim como era recorrente a escassez de comida, mas que sendo criança tem mais
lembranças divertidas da época do que tristes.
Ela comenta que quando tinha 15 anos, em meados dos anos 1980, a Coroca foi
oficialmente considerada uma comunidade, já que vários filhos de seus pais e outros
parentes agora já haviam se casado com pessoas de outras comunidades, assim como a
chegada do padre alemão José Gross que modificou a região ao levar muitas mudas de
árvores frutíferas, que não havia ali, melhorando a segurança alimentar. Foi o padre
também que incentivou a criação do lago de tartarugas e tracajás, que inicialmente
204

tinha como objetivo servir de alimento local, mas como se reproduziram rapidamente o
lago acabou virando uma das atrações turísticas da comunidade.
Enilde comenta como a partir disso a comunidade começou a prosperar, já que
os moradores tinham mais atividades ligadas ao roçado, poucos eram pescadores, dessa
forma, diversificando a produção das famílias. E, eram nas festas de santo em outras
comunidades que os filhos e filhas da Coroca conheciam pretendentes, namoravam e
formavam família. Com as mudanças, a Coroca começou a ser um destino escolhido
pelas novas famílias, chegando atualmente a aproximadamente 80 moradores fixos,
entre adultos e crianças, e totalizam mais de 100 filhos e filhas da comunidade, o
restante sendo pessoas que moram em outro lugar e visitam a comunidade
ocasionalmente.
O fato de todos serem da mesma família e com uma história de ocupação
recente faz com que a comunidade seja muito unida. Enilde comenta comigo sobre
como a comunidade tem mudado rapidamente nos últimos anos, com a chegada da
energia, do sinal de Internet, que funciona em alguns pontos estratégicos e caso a
pessoa tenha o smartphone específico com o chip da operadora o sinal é disponível.
À noite, principalmente, as pessoas conversam menos, assistem mais à TV,
ficam mais em casa e no celular também. Já as crianças, por outro lado, passam o dia
andando pela comunidade inventando brincadeiras, tomando banho de rio, oferecendo
ajuda aos adultos nos afazeres que querem aprender, como o dia em que vão todos
ajudar a fazer farinha.
O fluxo do turismo também mudou o cotidiano da Coroca. Além de visitantes
ocasionais – como Cris e eu, e os turistas que ficam nas pousadas dos donos “paulistas”
– não há muitas pessoas de fora se hospedando na comunidade. O redário, que
disponibilizam para visitantes, é também o restaurante onde preparam as refeições,
sendo assim, uma acomodação que apesar de ter uma bela vista para o rio, não possui
muita privacidade. O restaurante tem grande demanda como já citei, por conta dos
passeios de turistas que saem todos os dias de Alter­do­Chão e almoçam na
comunidade, sendo o espaço mais utilizado como para esse fim que para hospedagem.
Gildson, que é presidente da associação, comenta sobre os planos de abrirem
uma trilha que leva até um mirante para o lago e também sobre a construção de alguns
quartos que possam oferecer mais privacidade para turistas que queiram passar alguns
dias na comunidade. O artesanato dos trançados de palha de tucumã continua sendo o
ponto alto dos atrativos da comunidade. Os objetos são feitos principalmente por
205

mulheres e meninas, mas, cada vez mais, por meninos também, sendo parte importante
da renda das famílias, além da produção de mel e seus produtos, que em janeiro são
celebrados no festival do mel.
Com o restaurante da comunidade a renda de muitas famílias, principalmente
mulheres, recebeu um aumento. Ainda que o ideal da associação seja que pelo menos
uma pessoa de cada família trabalhe no restaurante, para que todos possam ter o
mesmo retorno financeiro, nem todas as mulheres e jovens decidiram participar.
Enquanto fico na comunidade, assim como das outras vezes, as pessoas vão a
pelo menos duas festas em outras comunidades. Quando comentei da frequência me
dizem que se a pessoa quiser, todo dia tem festa para ir, mas que algumas visitas são
mais estratégicas, pois quando alguém de uma comunidade vai até a sua para fazer o
convite, caso você vá, a cortesia será retribuída futuramente quando houver uma festa
na sua comunidade.
As festas, entre festas de santos e festividades como a do mel e outros produtos,
têm um papel muito importante para a economia comunitária, como atividades de
bingo, venda de comidas e bebidas e outros, de produtos que a comunidade produz
(farinha, etc), além do lazer. Mas é nas festas também que os jovens de diferentes
comunidades se encontram e, como em muitas comunidades muitos são parentes, é
indo para as festas que muitos relacionamentos começam, tendo também a função de
expandir as comunidades.
No domingo é dia de missa e Luza, que eu havia entrevistado, faz a liturgia,
conduzindo uma missa em poucos minutos. Após a participação de algumas jovens que
fazem parte da Pastoral da Juventude a cerimônia termina. Os temas de interesse dos
moradores, da associação e outros assuntos também são discutidos ao final, por ser um
ponto de encontro da maioria da comunidade. Comento sobre a intenção de conversar
com as jovens e demais mulheres que tenham interesse sobre suas perspectivas de
futuro e algumas combinam de falarem comigo ao fim do dia, antes do jogo da seleção
brasileira de futebol.
Contudo, à tarde sou convidada para ver como fica a Ponta Grande quando o
rio está na cheia, antes da roda de conversa que faria na comunidade. Vou com Enilde
e Gildson e encontramos um casal que vêm da comunidade São Pedro, conhecida por
ser do povo Apiacá. Eles estão em uma bajara28 com bijuterias de sementes naturais e

28
Pequena embarcação típica na região.
206

trançados de palha de tucumã para venda, para barcos e lanchas de turistas que passam
pela região.
Passamos a tarde conversando à beira do rio e quando me oferecem um
snorkel29 para mergulhar e ver os peixes, em um breve momento, quando sem querer
engulo água, apoio o pé no chão e sinto uma fisgada. Uma fisgada que muda o rumo da
viagem destinada à pesquisa; pelos rostos e reações quando comento a sensação, é de
que o céu caiu, a ponto de eu tentar manter a calma das pessoas, pois “estou bem, não
foi nada demais”. Mas foi uma arraia.
Quando começo a andar para a beira para ver o meu pé, todos gritam para que
eu não saia da água. O senhor da comunidade de São Pedro se aproxima e me orienta e
explica o que acontece após uma ferrada de arraia. Eu já havia escutado relatos de que
a ferroada de arraia provoca uma dor insuportável, mas eu não estava realmente
sentindo nada demais, até então. Primeiro, me explicam para me preparar para uma dor
absurda e que não há muito a fazer, mas que tirar o pé da água pioraria a situação.
Começo a sentir o pé latejando e ficando pesado, a sensação de uma leve dor subindo o
pé. O senhor que se apresenta como Índio, como costumam chamá­lo, cava um buraco
na areia dentro d’água e pede que eu coloque o pé, enquanto ele cobre com areia. De
repente encontram um balde vazio e lembro de um lago próximo que estava com uma
água bem quente, que é o ideal para o procedimento e para amenizar a dor.
Agora se tratava de esperar a bajara que viria nos buscar para, ao invés de
retornarmos à Coroca, irmos para a comunidade de São Miguel, do outro lado, na
Resex Tapajós­Arapiuns, onde fica o posto de saúde mais próximo, para que seja feito
o procedimento de limpeza do veneno. Aguardamos por meia hora aproximadamente e
agora a dor já é consideravelmente intensa, mas a preocupação de todos é tanta e me
sinto tão mal por estar naquela situação, que evito demonstrar.
O que vai ser da pesquisa? O que vai ser do meu pé? Porque agora a dor já está
chegando a níveis insuportáveis, ainda que a profecia de chorar e gritar que tenham me
avisado não tenha se concretizado. A bajara chega e fazemos um procedimento de
passar o pé da água do rio para a água de balde com água morna até chegar ao posto,
após enrolar o pé num pano para evitar o choque térmico. Mesmo com todos os
cuidados, ainda assim sinto a intensificação da dor.

29
Dispositivo utilizado para mergulho que facilita a respiração, com viseira, normalmente para
mergulhos feitos próximos à superfície.
207

Mais trinta minutos na bajara e quando mais uma vez a culpa toma conta de
mim e a preocupação com a roda de conversa para a tese, a dor vem lancinante e aí eu
choro, mas ainda assim parece ser mais emocional que apenas o veneno. O olhar de
todo mundo parece uma sentença de morte e tento tranqulizá­los perguntando se é só a
dor ou se o veneno teria outros efeitos colaterais, respondem que é só a dor; eu rio e
digo “então vai passar”, mas eles se entreolham com muito mais experiência e dizem
“mas é muita dor”. Bom, não tem jeito, vamos lá.
O posto de saúde na comunidade de São Miguel é bem pequeno e apesar de não
ter médicos ou enfermeiros, a agente de saúde é uma das moradoras, que é chamada
em sua casa para fazer o procedimento da limpeza. A agente de saúde aplica uma
anestesia que ela própria avisa que não mudaria em nada a dor, para realizar o
procedimento de limpeza, que tem como objetivo evitar que o tecido necrose
posteriormente. Agora descubro que em nada mudará a duração da dor já que a toxina
já foi absorvida pelo corpo.
De qualquer forma, após a limpeza e algumas muitas orientações iniciamos o
retorno para a comunidade – mais meia hora. Não colocar o pé para cima (rede), não
colocar o pé para baixo, ficar em posição horizontal, não pisar no frio, não pisar na
areia quente, evitar a todo custo chegar perto de fezes de galinha, entre outras tantas.
Tudo bem. Agora a dor que já parecia impossível de ficar pior chega a outro nível, já
passou pouco mais de 1 hora da ferrada e quando pergunto se o efeito tardará a passar
sou informada que a duração costuma ser de até 4 horas.
Por algum motivo eu imaginava que o procedimento no posto de saúde seria o
fim da dor, talvez pelo costume de ir a hospitais e ver naqueles lugares como o fim do
sofrimento, mas não nesse caso, ainda que o procedimento tenha sido crucial para
evitar que as próximas semanas fossem ainda piores. Voltamos para a comunidade e
quando saio da bajara apoiada em Gildson e Enilde muitos já vêm correndo e vendo o
pé inchado, já deduzem: Ih, foi arraia? – Foi.
A empatia coletiva de quem já passou pelo mesmo sofrimento é de tentar me
preparar e ao mesmo tempo consolar. Dona Silvana, por exemplo, me disse preferir
passar por mais dez partos normais do que ter outra ferrada; ela orienta que me deixem
sozinha, pois a pessoa ferrada não quer conversar com ninguém, que preciso
privacidade.
As crianças ficam assustadas e perguntam como estou. Até então, estou sob
controle apesar da dor. Mas quando deito na cama que me emprestam, parece que a
208

adrenalina, que talvez tivesse até então amenizado a dor, desaparece e me dou conta
das horas que ainda faltam para a dor passar e que nada, nem morfina, nas palavras da
agente de saúde, poderia amenizar, eu me entrego e passo mais três horas de agonia,
ainda que não chegue a gritar, mas é impossível não chorar e ficar me contorcendo.
Como Dona Silvana me avisara, pouco antes de completarem as 4 horas de dor
um sono toma conta de mim e adormeço, acordando já sem nenhuma dor, apenas com
o pé inchado. É quase como se nada tivesse acontecido; pequenos furinhos, além do
inchaço que durante os dias seguintes, enquanto ando pela comunidade frequentemente
alguém me cumprimenta falando “ô pé fofinho”. Mas, apesar de me sentir mal pelo
trabalho, pela preocupação que estou dando aos outros, sinto que estou bem. Dona
Silvana e os demais estão conversando embaixo da mangueira e me sento com eles, aí,
vou ser informada que o pior ainda não passou. Ou pelo menos não passou tudo.
Considero relevante o relato extenso do incidente, por incrível que pareça,
porque acabou redefinindo minha relação com todos na comunidade, além do impacto
óbvio no andamento da pesquisa, o que, acabou mudando todo o planejamento, mas
também me propiciando outras experiências.
No dia seguinte acordo já me sentindo melhor, em perfeito estado, mas
mantenho­me atenta às recomendações. Nada me impede de me banhar no rio, mas
Enilde recomenda que eu não fique muito tempo, por conta do frio, o que poderia fazer
retomar à noite a mesma dor sentida no momento da ferrada. Mas, me sinto tão bem
que acabo esquecendo o que faz Enilde parecer preocupada me chamando em seguida
para sair do rio.
Todo dia eu acho que vou acordar e estar melhor no outro, mas, aprendi, que no
caso de uma ferrada que inflama, o processo é o contrário de qualquer ferimento que eu
tivesse tido até então: vai piorar muito antes de melhorar. A cura se dá de dentro para
fora, por onde o veneno passou e o tecido ficou morto, começando a ficar roxo,
dolorido, os buracos começam a abrir e eu começo a ficar com medo. Apesar de tudo,
os mais experientes e quem já passou pela ferrada, me dizem que a ferida até está
muito “bonita”, e que normalmente costuma ficar muito pior.
Até então eu havia achado que o procedimento que fizeram comigo de ir até o
posto para que a agente de saúde fizesse a limpeza era algo cotidiano, mas me falam
que não, que só me levaram até lá por eu ser de fora, que quando alguém da
comunidade é ferrado por arraia, normalmente fica lá mesmo e espera. São usados
vários métodos para tentar amenizar e retirar o veneno, mas em todos os casos houve
209

necrose posteriormente, sendo necessário ir a Santarém para fazer a debridação. Fiquei


pensando sobre isso, sobre como eu havia sido cuidada e sobre como faziam quando
um fato como esse acontecia com as pessoas da própria comunidade.
Nos dias seguintes começo a perceber que é preciso mesmo ter repouso e
cautela, só mesmo as crianças continuam muito próximas e fazem um pacto de não
tomarem banho do rio até eu poder voltar com elas “se a senhora não vai a gente não
vai, vamos ficar aqui”, mudando a nossa rotina até então que era de tomar banho e
brincar todas as manhãs no rio. Aí, fazemos outras aventuras, exercitamos a escrita e a
leitura. Enquanto escrevo algumas informações sobre mim e eles sobre eles, escrevo e
eles copiam, depois lemos juntos.
Como eles gostavam muito de brincar com minhas câmeras, principalmente a
câmera GoPro, acabamos produzindo um pequeno vídeo, todo roteirizado por eles,
com a história do ingá encantado, que não queria ser comido. Alguns dias se passam e
a aflição começa a tomar conta de mim por não conseguir realizar a roda de conversa,
o que, na época, fez eu me sentir mal. Era, na verdade, preocupação e cuidado, já que o
ideal para a minha situação era realmente repouso e evitar situações que pudessem
agravar a inflamação.
Ainda assim, decidi visitar uma senhora que conheci no barco na ida para a
comunidade, Dona Elza, que mora muito longe para eu ir andando na areia quente e
naquelas condições. Ela é irmã de seu Colau, marido de Dona Elzanira, Elzinha, onde
fiquei hospedada pela primeira vez na comunidade. Os meninos se oferecem para me
levarem de rabeta e apesar de algumas aventuras por problemas no motor da rabeta
durante o trajeto, chegamos até lá.
Consigo conversar com as filhas adolescentes de dona Elzinha e seu Colau, que
haviam pedido que eu passasse por lá, seguindo então para a casa de Dona Elza. Lá, ela
e suas duas filhas, Ivana e Eliane, contam suas próprias histórias de arraia ­ é o novo
assunto preferido tanto meu quanto de todos para começar qualquer conversa ­ e então
começamos a roda de conversa com a gravação consentida.
Elas pedem que eu explique melhor o que estou fazendo e começo comentando
um pouco sobre o objetivo da minha pesquisa e as minhas motivações, desde as
primeiras viagens ao Tapajós, as pessoas que conheci e como fui me interessando em
abordar a forma como os contextos em que vivemos influenciam nossas decisões e
prioridades para vida, assim como, de que forma às vezes desejamos coisas diferentes
das que vivenciamos.
210

Quando começamos a falar sobre a vida na Coroca, em geral, todas as mulheres


mais jovens com quem eu falei, que não tinham mais de 23 anos, afirmaram gostar
muito da comunidade, da beleza do lugar, mas que sentiam a necessidade de fazer
faculdade, terminar os estudos, para conseguirem um emprego e trabalharem.
Enquanto umas eram mais hesitantes sobre a vontade de ir para Santarém
estudar, o que apontavam mais como a única opção do que como preferência, outras
apontavam que só viam realmente um futuro dentro do que queriam para si saindo da
comunidade, mas nunca por não gostar da Coroca e sim pelo fato de não terem
oportunidades de trabalho ou emprego ali.
Apesar de citarem o artesanato, o turismo e o restaurante, que têm sido a base
da fonte de renda das famílias, nenhuma das jovens com quem falei se identificava
completamente com qualquer um dos ofícios, citando outras áreas nas quais gostariam
de atuar como finanças, fisioterapia, pedagogia, agronomia, biologia e outras.
Entretanto, não viam uma forma de trabalhar nessas áreas na comunidade.
Todas elas já foram a Santarém ou Manaus passar um período e uma delas,
Ivana, mencionou e o comentário de amigos de Santarém que quando ela voltava para
a comunidade indagavam o que ela tanto fazia ali, afirmando que na comunidade “não
tem futuro”. Quando os amigos eram de outras comunidades próximas e estavam
morando na cidade, justificavam a saída de lá por não terem futuro onde viviam e que
apenas em Santarém seria possível algum futuro. Mas Ivana não pensa da mesma
forma.
Tô naquele grupo de turismo da Coroca que não é um trabalho, aí eu
tava falando pra ela que esse ano eu quero fazer uma faculdade à
distância. Eu acho assim, pra sair daqui pra estudar em Santarém
vou ter que arrumar um trabalho, porque ninguém dá nada pra
ninguém, aqui é diferente, não compro nada, o que eu ganho lá [no
restaurante da comunidade] é só pra mim, a gente cria galinha, não
precisa pagar aluguel, a gente paga água e luz mas não é tão caro
quanto Santarém, e tem o peixe, ele não vai se jogar na rede, mas
tem a opção de pescar, tem criações de galinha caipira, a gente
compra carne… Assim aí eu tava falando se Deus quiser vou fazer
faculdade à distância porque também não quero ficar (...), depois
sim aí que tá… Penso em agronomia, mas não é certeza, como diz
minha mãe é só conversa. Todo mundo faz pedagogia, mas assim não
sei, vamos ver… (Ivana, entrevista realizada em 9 de julho de 2019,
Coroca).

Ivana destaca o mesmo que Luza abordou – apesar da cidade concentrar


algumas oportunidades, é preciso também um salário fixo, um trabalho para garantir as
necessidades de moradia, alimentação e outras, e por sua vez, a vida na comunidade
211

permite outras formas de se sobreviver como a criação, a pesca, o turismo, a troca entre
comunitários e outras. Chamou a minha atenção também como as atividades
desenvolvidas no artesanato, como guia turístico ou preparando e servindo as refeições
no restaurante, apesar de garantirem uma renda, não estão na fala das jovens com quem
conversei, atreladas à ideia de trabalho ou emprego. Assim, tanto aquelas que
desempenham alguma dessas funções como as que não se identificam, ao falarem de
oportunidades de trabalho e emprego não parecem considerar estas como opções.
Esse posicionamento, contudo, talvez seja influenciado pelo fato de que com
quem eu acabei conseguindo realizar a conversa, há um envolvimento não muito forte
com as atividades da comunidade. Infelizmente, não consegui conversar com as mais
engajadas, como algumas filhas de Luza, justamente pela disponibilidade delas por
conta da demanda do trabalho. Assim, pontuo que, por conversas informais, o
posicionamento não é consensual, embor tenha sido predominante com as pessoas com
quem conversei, principalmente entre as mulheres mais jovens.
Já Eliane, de 21 anos, ao contrário da irmã, demonstra estar mais interessada
em encontrar uma forma de permanecer na Coroca e conciliar a vida na comunidade
com a continuidade dos estudos. Ela aponta que:
Ela [refere-se à irmã] é turismo porque ela se encaixou ali, aí eu já
saí fora, não conheço muito bem essas coisas, aí eu já sou
Fisioterapia, que é o quero fazer, mas aí ela já é mais avançada, tem
que ter mais conhecimento, mais recurso… Aqui em Santarém o
estudo é muito escasso, oportunidades de bolsa pra estudar, igual tu
falou sobre ProUni… Eu tava vendo um vídeo no youtube aí
apareceu a fisioterapia e achei interessante, aí quando eu tava vindo
pra cá um rapaz perguntou o que eu fazia, eu disse que eu não fazia
nada, só tava viajando com a minha mãe, aí ele me disse que eu
tinha cara de fisioterapeuta, não falei nada, fiquei só sorrindo né foi
tipo daí, desse vídeo aí fui pesquisar mais e achei interessante.
(Eliane, entrevista realizada em 9 de julho de 2019, Coroca)

Eliane comenta ter mais vontade de sair da comunidade e talvez voltar para lá
quando se aposentar; entretanto, como quer ser fisioterapeuta, não vê outra
possibilidade ficando ali, ao contrário da irmã. O seu curso tem uma parte prática, que
precisa ser presencial. Apesar dos diferentes projetos de vida das duas irmãs, elas
comentam que nos últimos anos a Coroca mudou muito, para melhor. Que antes do
turismo as famílias dependiam muito mais do roçado e também do artesanato, no
entanto, com o turismo diminuiu o roçado, outras atividades menos pesadas surgiram e
que elas proporcionam retorno mais rápido. Elas esperam que no futuro continue
melhorando.
212

Durante a nossa conversa proponho que a gente imagine que a Coroca tem tudo
aquilo que apareceu nas suas falas ­ universidade, emprego, saúde ­ se elas ainda assim
gostariam de sair de lá e elas rapidamente responderam que, com certeza, iriam ficar lá
nesse cenário.
A gente sempre comenta aqui em casa que se aqui na Coroca tivesse
trabalho pra todo mundo, ia ser tão bom, se tivesse estudo pra todo
mundo, trabalho, acho que ninguém precisava sair daqui, porque
todo mundo que morou aqui e saiu quer morar aqui de novo, “eu
queria tá aqui, mas aqui não tem emprego”, eles sempre falam. Tem
a roça né… Mas eu acho que hoje em dia as pessoas não querem
mais trabalhar na roça, no pesado, aí procura uma forma melhor de
viver. (Ivana)

Eu comento com elas sobre as atividades ligadas ao turismo, ao artesanato e à


apicultura, o que elas pensam sobre. Respondem que há poucas opções com as quais
muitos não se identificam, daí a necessidade de sair em algum momento em busca de
outro caminho, dado que que ali não vêem possibilidade de realização pessoal.
Proponho outro cenário, em que elas são presidentes, e elas riem bastante, mas
dizem que se fossem, com certeza a Coroca ia mudar totalmente. Pergunto o que
mudaria e quais seriam as prioridades e Ivana responde que “ia pensar nas próximas
gerações né, a minha já ia tá garantida, porque pra eu ter virado presidente…” e
rimos de novo. Assim, elas demonstram preocupação com as crianças e meninas mais
novas, para evitar gravidez precoce, além da necessidade de escola, saúde e emprego.
E, se tudo isso se realizasse, a Coroca continuaria a mesma? Em relação aos
pontos positivos que elas haviam destacado anteriormente como a tranquilidade e a
natureza, elas dizem que com certeza não, já que muitas pessoas iriam se mudar para lá
em busca de oportunidades, mudando totalmente as características do lugar.
Dona Elza, a mãe delas e a quem conheci na viagem de ida no barco, pede para
participar da roda e começa a comentar seu ponto de vista:
Como na minha infância não teve nenhum desenvolvimento, essa
comunidade era muito atrasada, não tinha estudo, não tinha nada, a
prioridade pra mim é que aqui tivesse trabalho, assim uma pessoa
que desenvolvesse um bom trabalho mais criativo, por exemplo,
muitas jovens aqui não sabem fazer nada a não ser estudar e
cozinhar um pouco, precisam saber o tipo de artesanato que ganha
dinheiro, não só da palha, mas de pano, de papelão. Até outro dia eu
tava falando assim, eu queria assim que a Coroca fosse mais
desenvolvida, se tivesse mais condição empregava mais jovem aqui,
a gente tem a casa do mel, tem o laboratório pra criar alevinos, mas
tudo parou, tem tudo pra dar certo, tem que ter uma pessoa que
venha com recurso incentivar isso, porque o jovem gosta de
213

trabalhar e aí tem que sair daqui. (Dona Elza, entrevista realizada


em 9 de julho de 2019, Coroca).

A visão de Dona Elza traça uma abordagem diferente ao pensar no futuro da


comunidade de forma mais coletiva e também na possibilidade de conciliar a demanda
dos mais jovens por trabalho e nas potencialidades locais, para evitar a constante saída.
A palavra desenvolvimento é citada inicialmente por ela, mas, em um sentido diferente
daquele ligado ao desenvolvimentismo; ela continua:
O desenvolvimento não necessariamente pra ficar igual uma cidade,
mas potencializar o que a Coroca tem pra oferecer. É melhorar a
vida. Se eu tivesse um estudo ou mais um conhecimento, o que me
atrapalha é essa doença, a minha idade não me prende, tenho 62
anos... Eu vejo assim que a nossa comunidade tem tudo pra dar
certo, formar de novo apicultura, pra produzir o mel, pra dar renda
pro produto, peixe… Tartaruga não parece que dá muito certo pra
nós aqui, o mel tanto dá dinheiro, a cera... Quando começou esse
projeto de apicultura, o Jorge era técnico ele ensinou como fazer a
cera, tudo ele sabe, mas acabou a verba acabou tudo, todo mundo
parou, quem levou mais a sério foi a Neida, ela levou uma fonte de
renda melhor, mas aí a comunidade parou. O peixe dá muito certo
pra gente, vamos criar o peixe, vamos tirar e dar a renda pra
comunidade. Aqui na Coroca eu quero que tenha um
desenvolvimento dentro da comunidade, mantendo a Coroca. (Dona
Elza)

Ela se preocupa principalmente com o que a comunidade tem feito para


estimular os jovens a se manterem lá e continuarem o trabalho realizado, dando o
exemplo da possibilidade das faculdades à distância. Quando comentamos sobre os
obstáculos de acesso à Internet, por exemplo, ela responde que “tem aquelas
faculdades à distância, porque não estudam aqui e vão lá só pra fazer a prova? Mas,
Brenda, se as pessoas se unissem com uma força de vontade, puxava pra cá
[Internet]”.
Sua vontade é também de poder compartilhar com os mais jovens suas
habilidades com o artesanato, dado que atualmente a mesma não pode mais
desenvolver por conta de uma incapacitação física. Ela destaca que além do artesanato
de palha é possível expandir a técnica para outros materiais e sobre como fazer
produtos diferentes pode aumentar a renda, para quando os turistas chegaram na
comunidade terem mais opções para comprar.
Sobre o artesanato típico da região, ela comenta que “pra nós aqui é feio, mas
pra quem nunca viu é bonito”, sobre essa impressão, as filhas comentam que acham
mesmo que alguns feios, ainda que outros sejam bonitos; ficam rindo sobre as reações
dos turistas que chegam e elogiam o artesanato. Dona Elza continua contando um
214

comentário feito por um comunitário sobre os trançados vendidos aos turistas: “Turista
é muito besta, onde que eu venho lá dos Estados Unidos, da França, pra comprar uma
buzeira dessa? Mas quando… eu digo, meu filho…”.
Esse tipo de percepção sobre a beleza estética e o valor do artesanato local tanto
na Coroca quanto em Jamaraquá, sempre me chamaram a atenção, justamente pelos
conceitos diferentes de quem faz o artesanato e quem compra por apreciar o valor
estético. Eu uso, por exemplo, uma pulseira de sementes de morototó; é uma estética
dita de gringo, hippie, turista – um comentário que recebi uma vez numa brincadeira
com uma das crianças que ela pediu para experimentar a pulseira e depois rindo pediu
para tirar “isso é coisa de gringo, eu não!”
Antes do trançado de palha do Arapiuns passar por uma dinâmica de produção
para o mercado, Luza comentou comigo que bem antigamente as pessoas realmente
faziam o trançado para utensílios diários. Agora, entretanto, o único objetivo é vender
para os turistas, que ficam impressionados com as técnicas e os padrões de cores dos
produtos. Não entrei em todas as casas, mas nenhuma vez vi os trançados utilizados
pelos moradores locais, exceto quando adornavam o altar da igreja.
As filhas de Dona Elza e eu brincamos novamente sobre como aquilo que nós
queremos e valorizamos é mais o que o outro tem, como quem é de fora valoriza o
artesanato e como quem vive do artesanato quer produtos industrializados, como no
exemplo de bijuterias que não são feitas de produtos naturais. Rimos bastante dessa
“inversão” de visões dos acessórios que usamos e dos valores que temos: eu usando um
colar e duas pulseiras de morototó, que a família de Nice fez, e elas usando bijuterias
que lembram ouro, prata e com pedras.
Dona Elza diz que nunca pensou em sair da Coroca, e que se não fosse pela
doença e o tratamento que exige há anos um acompanhamento em Manaus, não sairia
de lá por nada. Por conta das viagens frequentes até mesmo o pastor da sua igreja já
brinca dizendo que ela não seria mais arapiunzense, ao que ela responde “Eu sou sim
daqui, mas por causa da saúde eu vou pra lá, mas eu vou voltar sim, aqui é a minha
raiz, aqui eu me sinto bem, aqui é meu paraíso. Se tivesse aqui [acesso ao tratamento]
eu ficava aqui mesmo”.
Ela retoma então para a importância de pensar um futuro para a comunidade e
para as outras gerações, pois para ela “se a pessoa ganha bem aqui na Coroca, ela tem
um futuro bom, de ganhar, de ser uma artesã, com uma cultura daqui, ela não precisa
ir pra Santarém se empregar, porque aqui ela ganha, vai só com o bolso cheio de
215

dinheiro gastar”. Ela continua, ao avaliar as mudanças recentes na comunidade, mas


observa que as melhorias têm que se estender a todos e de como a comunidade deve
continuar pensando novos projetos para o futuro:
Tem melhorado muito, mas tem que melhorar pra todo mundo, todas
as famílias.(...) Tem que ter um cabeça ali pra centralizar, reunindo
os jovens, fazendo isso, nós vamos escrever um projeto pra vir tal tal
e tal coisa pra cá, vou trabalhar com os jovens aqui pra gente
começar a especializar esses jovens aqui, pra não ficar pra cá pra
lá, só aqui no celular ou na televisão, tem que dar o que fazer,
senão…

Nas falas de Dona Elza, suas filhas e outras jovens com quem conversei, o
problema não parecia ser o dinheiro em si no sentido de acumular, de ter uma ascensão
de classe social necessariamente, e sim da possibilidade de equilibrar uma vida com
acesso a serviços, recursos, manutenção e valorização da cultura e do lugar. Assim,
Dona Elza continua comentando suas impressões sobre as dinâmicas econômicas na
região, destacando principalmente a extração ilegal de madeira que ocorre à vista de
todos: “Olha, mana, não sei como tá pra cá, mas o pessoal que é produtor rural que
trabalha na reserva e no PAE Lago Grande, não sei foi o governo que vendeu que
nunca mais que param de tirar madeira”.
Além da madeira, ela comenta sobre o risco da mineração com seus possíveis
impactos caso se implante em comunidades próximas à Coroca: “Agora tem a Alcoa aí.
Olha Juruti, a gente vai pra Manaus e vê, não é muito perto daqui não... Mas se
deixar, mana... Eles estão nesse centro de mata de Lago Grande, se vara pra cá pro
Lago Grande eles tão acabando com nós aqui… A gente tá cercado aqui, mana…”.
Quando pergunto se para ela há relação entre o desenvolvimento e essas
atividades, ela comenta que:
Isso que eles chamam de desenvolvimento também, o que aconteceu
nas outras comunidades: essas políticas assim… É, Brenda, é assim,
aqui no interior tem muita gente que sabe o que tu tá falando, mas
tem muitas que não se desenvolvem porque não sabem nem do que tá
falando, tem muita gente que não sabe nem o que tu tá falando.
Quando eu participava de muitas reuniões e encontros, essas
políticas que eles fazem e falam, é só pra atrapalhar, eles vêm pra cá
[políticos] e fazem uma coisa muito bonita, quando chega lá
[Santarém] parece que o projeto é igual quando tu colocas o
currículo e abafa lá dentro da caixa. E as pessoas ficam esperando
chamar pra trabalhar e esquece. O tempo passa e parece que
esquece.

A fala de Dona Elza lembra bastante o que Nice comentou sobre a relação de
políticos na época de eleição e as dinâmicas para angariar votos na região. Interessante
216

também perceber como a dinâmica em busca de legitimação do processo eleitoral e da


democracia, nessas duas conversas, aparece por um movimento de apresentação de um
projeto que costuma ser atrelado à ideia de desenvolvimento e progresso ­ tanto que
costumam ser citados quando pergunto sobre tais políticas – os quais são seguidos de
um processo de esquecimento da população após o apoio conseguido.
Ela comenta também sobre como nos últimos anos a própria população e
organizações não souberam se articular para impedir de forma eficiente a entrada da
mineração e da soja, referindo­se ao porto da Cargill, em Santarém:
Foi isso que vocês quiseram fazer? “Não, mas vamos fazer uma
grande reunião pra enxotar”... Brenda, não consegue mais enxotar,
porque tá lá em Santarém, bem em Santarém, a Cargill. Depois da
Cargill ter pintado em Santarém, agora, vambora fazer uma
manifestação pra tirar, e porque deixaram entrar, né? não tem mais
jeito.

Pergunto então o que ela pensa sobre os retornos para a população local e ela
diz que “Não fica nada, mana, de início ainda empregava umas pessoas de Santarém,
agora é só pessoal de fora, e os de Santarém? Vão se ferrar pra lá, vão fazer casa, vai
fazer alguma coisa praí...”.
Figura 29 – Conversa com Dona Elza (à direita), Ivana (ao centro), Eliane (à esquerda) e eu (de
costas).

Foto: Uma das crianças da comunidade que durante a entrevista tirava fotos com minha câmera, julho de
2019.
Após uma hora de conversa, pergunto novamente para Dona Elza o que ela
espera do futuro, mas ela fala, já em com um tom cansado: “Vou te dizer, mana, que
parei aí… parei no hoje, tá difícil pensar nisso”. O sentimento é bem diferente daquele
217

cheio de planos e possibilidades de alguns minutos antes, ao destacar dinâmicas e


tensões na região. Tanto ela e suas filhas quanto eu, já sentimos certo cansaço.
Ivana e Eliane, contudo, após um silêncio coletivo e olhares de cumplicidade,
comentam: “A gente espera que seja melhor, mas na verdade a gente não sabe, porque
a cada dia a gente vive uma coisa diferente...” fala Ivana, e Eliane complementa: “e eu
também espero que seja melhor, porque pra pior né, não dá, já basta (risos)”.
Ainda que as visões que temos para nossos futuros sejam interligadas às
dinâmicas políticas e econômicas dos lugares com os quais nos relacionamos, as
conversas demonstram que a contextualização e o enfoque podem influenciar na
percepção de poder que temos sobre o futuro. Quando pensamos em nossas escolhas e
desejos, parece mais possível pensar e almejar um futuro de acordo com o que
acreditamos, sem tomar como referência as dinâmicas macropolíticas que atravessam
nossas vidas, sob os auspícios do signo do progresso e do desenvolvimento.
Não sinalizo que quando falamos de futuro em sentido mais pessoal e
localizado na comunidade o contexto político esteja ausente, já que o mesmo perpassa
todas as falas de faltas e necessidades (saúde, educação…). Ao exercitar o imaginário a
partir de si, parece mais fácil identificar problemas e caminhos possíveis caminhos
quando não estão tão nítidos outros atores sociais que possuem mais acesso a recursos
econômicos e de poder, podendo nos fazer sentir impotentes. Pensar a partir de nós e
do lugar potencializa mais nossas ações e desejos. Pensar a partir das dinâmicas que
predominam parece provocar um sentimento de limitação e restrição.
Nesta estada na Coroca em que fui sem outras companhias, passei mais tempo e
conversei mais com as pessoas. Isto me permitiu pensar sobre a forte relação de
movimentos e deslocamentos, que possibilitam uma intermediação dos modos de vida
entre o que se deseja, o que é necessário, os meios, como nas anotações que fiz em meu
caderno que estão no início desta seção. Viver na Coroca, por exemplo, não significa
apenas estar lá, mas viver na comunidade envolve movimentos constantes de
deslocamentos que possibilitam essa vida, sejam as relações sociais, comunitárias e
econômicas, como as festas, as idas a Santarém e outras comunidades, para o acesso à
educação, saúde e também trabalho/emprego.
Os filhos e filhas da comunidade que se mudaram para outras comunidades ou
cidades (Santarém, Manaus e Belém) possuem também um movimento que auxilia a
manutenção da comunidade e cuja vida nas cidades também é mantida pelos trabalhos
realizados lá. Quase todas as famílias têm algum parente que mora em cidades e
218

praticamente todos os adultos com quem conversei em algum momento moraram em


outras localidades, fossem comunidades ou cidades.
Os movimentos entre os lugares, próximos ou os mais distantes, semanais,
mensais ou anuais, mostraram­se parte do cotidiano e da cultura local. Enilde dá como
exemplo as mudanças da família na sua infância, ao passar meses morando para o lado
do rio Amazonas, por conta do melhor acesso à comida. O deslocamento é uma
dinâmica de intermediação da vida em si. A relação com o lugar, contudo, não
desaparece. Continuam voltando para passear, rever a família, projetando um retorno
na aposentadoria ou em outras ocasiões.
No caminho de volta, após as rodas de conversa, encontro Luza, que está na
lojinha da ATA. Por ser presidente da ATA e também participante ativa na associação
de moradores da Coroca, ela compartilha comigo um panorama mais profundo das
dinâmicas políticas nos últimos meses, dizendo que mesmo com as políticas de
desmonte do atual governo, o Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de
Santarém (STTR), com muita pressão havia conseguido conquistar uma mudança na
proposta da reforma da previdência, que a estava preocupando e a muitas pessoas da
região, já que os afetaria diretamente.
Figura 30 – Luza

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2019)


A proposta inicial do governo, na PEC 6/2019 era a de aumentar a idade para as
mulheres se aposentarem, igualar para ambos os sexos, além de um requisito mínimo
de 20 anos de contribuição, pontos que, já na primeira votação da Comissão Especial
219

foram retirados. Luza comenta que nos últimos meses todos os problemas que cercam
as comunidades se intensificaram, com forte pressão pela compra de terras. Comenta
como o atual presidente se alinha a esses interesses e o quanto é despreparado para o
cargo que ocupa. Ao mesmo tempo em que ela demonstra insatisfação, aponta também
que continuarão fazendo o mesmo de sempre, pressionando e se articulando pelos seus
direitos, agora talvez mais do que antes.
Além do tom de preocupação de Luza, percebo também outras situações que
parecem ser recentes e que também ganharam força nos últimos meses, como o projeto
de tornar o PAE Lago Grande em município. Os relatos que chegam a compartilhar
comigo são de que pessoas de algumas comunidades e também de Santarém, próximas
a políticos e representantes de empresas interessadas na aquisição de terras na região,
estariam disseminando e incentivando os moradores a considerarem o fim da categoria
“projeto de assentamento” para se tornarem independentes de Santarém, como
município.
O argumento dos políticos apóia­se em que seria um caminho melhor para o
desenvolvimento da região, que é grande e conta com descaso político. Na condição de
município argumentam que haveria mais geração de emprego e estabilidade, na própria
prefeitura, mais recursos para educação e saúde, um ponto central destacado por todos
com quem converso.
Contudo, alguns moradores que conversaram comigo destacaram como a
proposta que parece muito boa é, na verdade, um “presente de grego”. Já que, na
prática, sabe­se como são outros municípios menores na região, como os cargos são
atrelados às elites locais, além da corrupção, nada garantindo que melhore a qualidade
de vida da população. Vêem um interesse subterrâneo dos que defendem a ideia de
município: seria enfraquecer o dispositivo de segurança territorial e jurídica que se tem
enquanto PAE, isto porque, tornando­se município a entrada do capital de
multinacionais como a Alcoa, da exploração dos recursos naturais e de outras práticas
seriam facilitadas pelo município, reduzindo a resistência dos comunitários ao
centralizar as decisões na prefeitura as decisões.
Os relatos e também o clima que pude perceber, é de que há certa desconfiança
e desalinhamento entre os interesses dos comunitários: há os que apoiam e os que vêem
na proposta o mesmo que aceitar o fim e a destruição da comunidade e da região.
Enilde comenta comigo que tem sentido certo afastamento entre os comunitários e que
em alguns dias ela ia propor um puxirum, mutirão de limpeza, que era algo muito
220

comum tempos atrás e que nunca mais se havia feito. Assim, mais uma vez, como
observado nas falas de Nice e Priscila sobre a Flona, e também de Lalah, a presença
dos interesses econômicos do capital na região têm com resistência maior os laços
comunitários de solidariedade, confiança e coletivismo.
E, como pude observar, o enfraquecimento dos laços ocorre de duas formas
principais: pelo aliciamento direto de um ou mais moradores para que vendam seus
terrenos, que gera uma ruptura nas relações, o que costuma ter efeito mais rápido, ou,
por meio de um processo mais gradual, porém nitidamente perceptível que se dá pela
entrada de mais dinheiro no cotidiano por atividades econômicas como o turismo e a
venda do artesanato, que se tornam a principal fonte de renda, não sendo mais o
roçado, que estimulava a economia comunitária.
Quem vende mais ou investe mais seu dinheiro começa a ter uma casa e outros
bens diferentes, sendo assim uma constante preocupação para Nice e Dona Elza, por
exemplo, que o futuro não seja apenas que uma pessoa esteja bem, mas que todos da
comunidade tenham um pouco, o básico e o necessário, para que até mesmo
sentimentos de competitividade, desconfiança, não tenham muito terreno para
proliferar.
Uma mudança recente que também compartilham comigo é a questão religiosa,
pois como apresentado na seção anterior, tem ocorrido uma notável a expansão de
igrejas evangélicas numa região que historicamente era predominantemente católica,
ainda que com práticas coexistentes como as de benzedeiras, mães do corpo,
puxadores, etc. Comentam comigo sobre uma senhora que é uma grande benzedeira na
região e que após entrar para igreja evangélica teve que adaptar­se nas rezas, já que a
prática é condenada pela sua igreja.
Outro fator que decorre desse contexto seria o enfraquecimento das festas de
santos e outras festividades; muitas comunidades têm passado por uma segregação
entre católicos e evangélicos, uns não participando da festividade da vertente cristã do
outro. O que, de acordo com o apresentado anteriormente, impacta além dos laços
comunitários e das práticas culturais, as relações sociais e econômicas.
Rascunhei em meu caderno ainda no dia 6 de julho – as anotações que
iniciaram esta seção – sobre tais dinâmicas as quais eu ainda não tinha vivenciado. Elas
tornaram mais cristalinas ainda nos dias seguintes. Enquanto tomava um banho de rio
com as crianças, elas queriam tirar fotos embaixo d’água com a GoPro, o que sempre
221

fazemos quando vou lá, mas dessa vez, estava muito ruim a visibilidade, a água estava
muito turva.
Figura 31. Água turva

Foto: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2019)

Fiquei pensando como o capital parece essa água turva, seja pelo vento ou pelas
embarcações que passam, ou a gente mesmo que remexe a água, dificultando ver as
pedras no fundo ou quem está ao nosso lado, à frente, atrás, em como nem adianta abrir
os olhos embaixo d’água para ver para onde estamos indo. Como tudo parece ficar
confuso, de repente.
Da mesma fora parece ser o que a entrada do grande capital, de um jeito de
outro, age nas comunidades em questão, deixando as relações cada vez mais turvas,
dificultando a continuidade de laços de solidariedade, de comunidade e coletividade.
Individualizando problemas e questões, rompendo alianças e enfraquecendo formas de
articulação e resistência à lógica moderna/colonial.
Assim, o primeiro terço da minha “última viagem” é intenso em vários
sentidos. A tranquilidade das águas e a beleza infinita que a comunidade da Coroca
tem, o sono tranquilo de portas e janelas abertas, a sensação de segurança, a liberdade
de andar, brincar, tomar banho no rio e tudo mais que ali existe contrasta com ventos
que reviram o rio tranquilo de uma hora para a outra, ou com os ventos do capital que
pressionam as vidas na comunidade.
Toda a experiência vivida na Coroca em julho de 2019, assim como todas as
demais vivências nas passagens anteriores por lá, por Alter­do­Chão e por Jamaraquá,
222

fizeram com que o meu questionamento fosse adensado, inundado por diversas novas
camadas e caminhos. Antes da viagem de julho, havia finalizado minha leitura e a
escrita do tópico que apresentava a discussão da esquizoanálise, assim como as bases
da mesma nas obras de Frantz Fanon, buscando construir uma ponte entre o debate
decolonial e o difundido pelos filósofos franceses, Gilles Deleuze e Félix Guattari, e a
brasileira Suely Rolnik.
As leituras prévias com certeza influenciaram minha percepção de muitos
temas; parecia que havia chegado, enfim, o momento de mergulhar na discussão sobre
a produção de subjetividades. E graças à ferrada da arraia eu teria um bom tempo de
repouso para analisar o tema.
223

11 INTERMEDIAR-SE ENTRE AS LINHAS DE FUGA

E esse aspecto do mundo pelo qual ele é


responsável, que ele me mandou sonhar, é disso
que me sinto alienado, é contra isso que me sinto
impotente...
(A Curva do Sonho, Ursula K. Le Guin)

Até agora um termo muito utilizado e ainda não discutido foi a “subjetividade”.
De que forma este termo tem ligação com a discussão aqui proposta e o quê significa a
escolha da discussão que se iniciará nesta seção?
Iniciar a indagação sobre os projetos de vida no contexto de políticas de
desenvolvimento parecia uma tarefa simples: tratava­se apenas de pensar e perguntar
sobre a percepção do futuro das entrevistadas e as decisões tomadas pelas mulheres
com quem eu fosse conversar. Contudo, o estudo começou a se aprofundar com
questões que se originaram desse tema central: como são construídas ou definidas as
subjetividades? O que significa subjetividade? É algo fixo, inato ou mutável? É
possível compreender a influência do individual e do coletivo sobre as subjetividades?
Como descrevi inicialmente, tais questionamentos vieram à tona a partir de
questões pessoais como o meu próprio questionamento sobre escolhas na vida e
possíveis futuros. As pessoas que conheci e seus planos de vida eram considerados
dissidentes da norma. De modo que, passei a ponderar como, em sentido mais coletivo,
modos de vida de populações inteiras, tanto na Amazônia como em outros contextos
que passaram por colonização, costumam ser taxados como incompatíveis para se
alcançar o objetivo do projeto de nação.
Da consciência de modos de vida, e da diferença entre estes e os valores que
fundam o projeto de nação no Brasil, ocorre a adoção de políticas nas esferas
econômicas e sociais para que haja um adequamento por meio da reprodução de
práticas que retroalimentem o projeto nacional (embebido pelo capitalismo), que faça
com que os indivíduos almejem parecer­se com a cultura representante desses valores,
enquanto, ao mesmo tempo, há uma tentativa de dizimar modos de vida que ameacem
ou destoem daquilo tido como desejável.
Buscou­se, então, um diálogo com abordagens trabalhadas também pela
Psicologia e a Filosofia, no sentido de assumir que há uma relação intrínseca nos
sujeitos e sujeitas em questão com as dinâmicas políticas, numa espécie de
micropolítica. O objetivo central desta tese reside numa discussão destas questões.
Portanto, será feita inicialmente uma apresentação das contribuições de Frantz Fanon
224

para, em seguida, apresentar alguns conceitos construídos por Deleuze, Guattari e


também Rolnik que serão considerados para a compreensão da produção de
subjetividades e a sua relação com o Estado e, principalmente, com o capitalismo.
Como já apresentado em seções anteriores, Frantz Fanon foi um psiquiatra e
militante martinicano com obras que marcaram o debate sobre colonialismo e racismo.
Uma das suas obras mais célebres é o livro Peles negras, máscaras brancas, de 1952,
onde se identificam as principais bases da compreensão do que hoje se entende por
esquizoanálise30.
Esta é, pode­se dizer, uma das formas de leitura dos escritos de Fanon. Faustino
(2015a) analisa em sua tese de doutorado as formas que o pensamento fanoniano
repercurtiu em diferentes debates e abordagens no Brasil, que ele chama de disputas
em torno de Fanon. Faustino identifica por temas e vertentes: do pós­colonial/diáspora;
da negritude e o ativismo negro; pelo pensamento decolonial e o lócus
latinoamericano; pelas análises marxistas e do existencialismo; do Ethos Nacional;
sobre a Branquitude; pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB); e pela
Psicologia.
Isto demonstra como o pensamento fanoniano é profundo em contribuições e
debates e que, como traz Faustino (2015a), diferentes movimentos intelectuais e sociais
se aproximaram de suas ideias de formas variadas, por vezes exaltando alguns aspectos
e minimizando ou ignorando outros de acordo com suas próprias convicções e
enfoques.
Correndo aqui o risco de ser injusta com toda a complexidade e as múltiplas
camadas que Fanon nos trouxe com seus escritos, esta tese se localiza entre o debate
decolonial por autores latinoamericanos – com o qual tive o primeiro contato com a
obra de Fanon – e também pela ênfase na sua abordagem da “luta política como
estratégia para superar as alienações psíquicas provocadas pelo colonialismo”
(Faustino, 2015b, p. 159).
Guillaume Sibertin­Blanc (2016) é uma das referências que identificam em
Fanon uma gênese do que viria a ser conhecido ulteriormente como esquizoanálise.

30
O termo cunhado como “esquizoanálise” faz referências aos escritos de Felix Guattari e Gilles
Deleuze em que propuseram uma prática micropolítica enquanto clínica e também como prática
militante e política de indivíduos. A abordagem parte da subversão de algumas premissas da Psicanálise,
como o Complexo de Édipo e inverte a noção de falta para o desejo. Tais elementos, quando necessários
ao debate aqui proposto, serão abordados posteriormente.
Apesar de o termo ter sido difundido a partir de Deleuze e Guattari, encontram­se referências fundantes
do pensamento nas obras e pensamentos de Fanon.
225

Para o autor desde a primeira obra em 1952, Peles negras..., até a última, Os
Condenados da Terra, de 1961, podem­se extrair ricas contribuições do pensamento
fanoniano sobre a relação entre os aspectos psicológicos e políticos dos contextos de
colonialismo sobre os indivíduos. Ele destaca especificamente como é nesta última
obra que se percebe “a hora de uma urgência prática, na qual a conjuntura política
confronta a clínica com o real do sintoma como tal” (Sibertin­Blanc, 2016), ou seja,
como a guerra na Argélia e a sua atuação no hospital de Blida­Joinville e a Escola de
Alger se deflagraram como algo que necessitava muito mais que uma mera
interpretação, mas sim de “querer desalienar indivíduos em um país onde o autóctone é
um ‘alienado permanente em seu país [e] vive em um estado de despersonalização’, de
querer tornar o indivíduo menos estrangeiro a seu mundo em um mundo que organiza
uma desumanização sistemática” (Sibertin­Blanc, 2016, s/p).
A questão da relação entre colonialismo e alienação dos indivíduos já havia
sido inicialmente tratada em Peles negras, máscaras brancas. A visão do colonialismo
epistemológico, ou seja, desde a esfera do conhecimento e, de certo modo, da
produção das subjetividades dos sujeitos a partir de contextos políticos e sociais. Por
exemplo, ao defender que os negros são construídos como negros, dentro de uma
sociedade racista e colonialista, leva à noção de que o sujeito ideal daquele tipo de
sociedade é o homem branco, o que passa a ser almejado como referência de ser, falar,
vestir-se, pensar, etc.
Fanon (2008) também discorre, ao criticar a obra de O. Mannoni, na qual este
afirma que só foi colonizado quem já desejava isso ou sentia a necessidade, reforçando
a ideia de um destino bíblico dos colonizadores, como entes superiores; ao ponto que
ele contesta que “a inferiorização é o correlato nativo da superiorização européia.
Precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado” (Fanon, 2008,
p. 90), de modo que isto se dá de diversas formas, seja pela infantilização, pela
humilhação, pela diminuição e desumanização.
Um exemplo trazido por Fanon (2008) é a comum reação quando uma pessoa
negra lê e fala sobre Marx em que os brancos se sentem “traídos”: “Nós vos educamos
e agora vocês se voltam contra seus benfeitores. Ingratos! Decididamente, não se pode
esperar nada de vocês”. E depois há ainda este argumento­porrete do empresário
agrícola europeu na África: “Nosso inimigo é o professor” (ibid., p. 48).
Apesar do contexto discutido por ele se referir à relação de colonialismo
francês em Martinica é possível identificar paralelos na dinâmica nacional da política
226

brasileira sobre a Amazônia e amazônidas, em que se busca fazer uma deslegitimação


das pautas dos movimentos, acusando­os de serem “manipulados” por ONGs de fora e
outros grupos, ora adotando inclusive o mesmo tom de ingratidão por parte dos
indivíduos que manifestam suas vontades; como se não fossem capazes de
compreender suas próprias intenções e vontades.
Tal comportamento já foi ilustrado em seções anteriores em falas do atual
presidente, Jair Bolsonaro. Elas não são únicas, é possível identificar diversos
discursos análogos durante a história brasileira em que o tom paternalista em relação a
sujeitas e sujeitos que são subalternizados no contexto nacional – por posicionalidades
de raça, de gênero e de classe – em que quem fala adota uma postura de “cuidado”,
mas nega a humanidade de indivíduos, tratando­os como incapazes e intelectualmente
inferiores até mesmo para tomar decisões sobre suas vidas ou saber o que querem,
sendo, de tal forma, vitimizados sob um discurso de manipulação, de massa vulnerável.
Faustino (2015a, p. 59) comenta como para Fanon “é essa a raiz da figuração
do colonizado como um ser enclausurado em seu corpo, tido quase sempre como bruto,
rústico e emocionalmente instável, em contraposição ao europeu, apresentado sempre
como expressão universal das qualidades úteis ao controle do mundo”, retomando que
a premissa de Fanon faz referência a dois aspectos da dominação colonial, como já
citado anteriormente aqui: o econômico e o epistemológico.
Faustino identifica tais aspectos como processos de racialização: sendo o
primeiro a “epidermização dos lugares e posições sociais” (ibid., p. 58) por meio da
infraestrutura econômica; e o segundo aspecto dessa racialização estaria na
“interiorização subjetiva por parte do colonizador e por parte do colonizado dessa
epidermização” (id.).
A característica é importante para entender a produção de subjetividades no
contexto brasileiro e também frisar que esta relação não se restringe a ser reproduzida
apenas por um grupo social de determinada orientação político­ideológica. Como
apontado anteriormente e que será posteriormente retomado, tanto representantes do
espectro político de direita e esquerda, em uma relação de poder, costumam fazer uso
dos mesmos tons de alienação e desumanização, ao tentar deslegitimar falas, discursos
e vontades.
Pode­se, por exemplo, adotar como referência as duas últimas eleições para o
executivo no Brasil, em 2018 e 2014. Quando, em 2014, a presidenta Dilma Roussef
do PT alcançou a reeleição, discursos enraizados em neocolonialismo racista e classista
227

“culpavam” a “ignorância de pobres e nordestinos” que teriam sido manipulados ou


que teriam votado por interesses pessoais e de menor valor, como a garantia da
continuadade de programas de assistência e redistribuição como o programa Bolsa
Família.
Já em 2018, apoiadores da campanha de partidos de esquerda ou apenas
opositores à chapa de Bolsonaro­Mourão, reutilizaram o mesmo discurso ao condenar a
ignorância de pessoas que seriam mais “vulneráveis” a fake news, que estariam sendo
manipuladas a votarem em Bolsonaro, como pessoas mais pobres, sem escolaridade,
havendo diversas críticas ironizadas e debochadas sobre “pobres de direita”, assim
como, o ataque a pessoas negras, indígenas, LGBTQIs ou de outras minorias políticas
que se manifestaram a favor do candidato de extrema­direita.
Cabe aqui um importante ponto de inflexão. Não significa dizer que o
alinhamento político­ideológico não possua uma relação com a colonialidade e muito
menos que busquemos um processo de legitimação de nossas existências dentro da
sociedade ao buscarmos nos aproximar material e imaterialmente de símbolos
legitimantes da subjetividade, mas sim que, a prática “condescendente” de
desumanizar, inferiorizar com base nas posicionalidades sociais não se restringe a um
único alinhamento político.
O que se pretende aqui, contudo, é uma aproximação da proposta da
esquizoanálise que, em linhas gerais, tem como preocupação os sujeitos e as suas
relações com o mundo, objetivando tanto a crítica a qualquer forma de opressão e
hierarquização, como também visando a produção de dispositivos, novas maneiras de
viver e pensar, rompendo as subjetividades produzidas previamente nesse contexto
opressor (Deleuze e Guattari, 1995a).
Algo que Fanon já defendia, de modo que constatava que o problema do
colonialismo não se restringia à discriminação ou ao preconceito, mas que tal
racialização implica “a impossibilidade, para os povos racializados, de viver
plenamente os conflitos existenciais que nos fazem humanos” (Faustino, 2015a, p. 60).
Faz­se relevante apontar a definição para identificar de que maneira Fanon
propõe uma abordagem do seu objetivo ao lidar com um paciente nesta situação:
1. Meu paciente sofre de um complexo de inferioridade. Sua
estrutura psíquica corre o risco de se desmantelar. É preciso protege­
lo e, pouco a pouco, libertá­lo desse desejo inconsciente.
2. Se ele se encontra a tal ponto submerso pelo desejo de ser branco,
é que vive em uma sociedade que torna possível seu complexo de
inferioridade, em uma sociedade cuja consistência depende da
228

manutenção desse complexo, em uma sociedade que afirma a


superioridade de uma raça; é na medida exata em que esta sociedade
lhe causa dificuldades que ele é colocado em uma situação neurótica.
(Fanon, 2008, p. 95)

Ele destaca que o seu dever é ajudar a conscientizar o inconsciente, a afastar a


ideia da necessidade de um embranquecimento, para assim agir na mudança das
estruturas sociais, ou seja, deve ser construída uma nova forma de existir, para além da
única forma imposta como viável e desejável previamente.
Portanto, friso novamente que abordo tal discussão com cautela, pois mesmo
com esta premissa, ainda assim vivemos em uma sociedade pautada na lógica da
modernidade/colonialidade, que reproduz violências e opressões pautadas em noções
construídas de gênero, de raça e de classe, e muitos de nós, uns mais que outros,
possuímos mais acessos a recursos de poder e nos beneficiamos em parte desse
modelo, podendo recair nas armadilhas de privilégios de raça, de classe e de gênero em
um processo até mesmo de “desconstrução”.
Tais questionamentos começaram a fazer parte de uma preocupação minha a
partir de leituras, conversas, palestras e experiências que me fizeram pensar a minha
própria posicionalidade social em um espaço acadêmico e também na minha relação de
branquitude. Se todos os sujeitos e sujeitas passarão por um processo de produção de
subjetividades, que aprofundaremos mais à frente, numa sociedade permeada das
formas de opressão já contextualizadas, ninguém está imune, muito menos acadêmicos,
intelectuais e pesquisadores, de reproduzirem tais práticas e estratégicas de
colonialidade. O que não é uma constatação nova, obviamente, mas precisa ser frisada.
Logo, é destacado por Fanon (2008) também que, neste sentido, para um negro
que trabalha e é explorado, por exemplo, em uma plantação de cana, a única solução
para ele é a luta, mas uma luta que não se dará por conta de uma “análise marxista ou
idealista”, ou seja, intelectual, mas simplesmente porque sua existência só poderá se
dar em um combate contra a exploração, a miséria e a fome.
Ele critica, assim, o pensamento comum em ambientes acadêmicos de que
mudanças sociais devem surgir a partir da intelectualização. Fanon chama tal
fenômeno de alienação intelectual da sociedade burguesa, a qual é “uma sociedade
fechada, onde não é bom viver, onde o ar é pútrido, as idéias e as pessoas em
putrefação. E creio que um homem que toma posição contra esta morte, é, em certo
sentido, um revolucionário” (Fanon, 2008, p. 186).
229

Em discursos reproduzidos, embora de forma não generalizada, é recorrente a


noção de uma esquerda que reproduz em muitos de seus adeptos e representantes,
historicamente com mais protagonismo de homens e brancos, a ideia do herói salvador,
nos mesmos parâmetros de uma lógica do fardo do homem branco colonizador.
Aqui, mais uma vez, percebemos uma conexão com o que décadas depois será
desenvolvido por Deleuze e Guattari sobre as potencialidades de invenção e produção
de novas subjetividades. As obras escritas a quatro mãos31 por eles trazem uma
proposta que se afasta da psicanálise e busca uma teoria/prática que possibilite o desejo
ser libertado da subjetividade neurótica do capitalismo. Para eles, todos somos
máquinas desejantes; e o desejo não é a falta de algo (como na perspectiva da
psicanálise), mas fluxo, intensidade (Deleuze e Guattari, 1995a).
Em diversas partes da obra, mais especificamente no Volume 5 (ibid., 1997)
eles fazem a crítica ao capitalismo e sua relação com o Estado. Eles propõem que o
Estado moderno, baseado no que se entende por Estado­Nação, é onde ocorrem os
processos de subjetividade, internos a ele, e que por ele são mediados para servir ao
capitalismo.
Eles chegam a essa compreensão analisando as sociedades sem Estados e as
sociedades com Estados. A partir do momento que entram em contato, o Estado
imperial arcaico impõe aos considerados “primitivos” o modelo de trabalho espaço­
tempo, onde antes não existia o que se entende hoje por trabalho, mas sim uma ação
livre. Essa imposição leva a uma sobrecodificação dos indivíduos, ou seja, uma
imposição às suas subjetividades. Assim, o Estado se apropria da força do “primitivo”
para produzir estoques e excedentes e muda a relação de tempo e espaço que o mesmo
tinha; o que antes era uma relação de espaço­liso e tempo­liso (campo de intensidade e
potencialidades), agora se dá num tempo controlado; os corpos são fixados nesse
modelo de trabalho imposto; ocorre então a sobrecodificação do sujeito pelo Estado
(Deleuze e Guattari, 1997, p. 109) e a transformação do tempo e do espaço­lisos em
estriados.
O espaço liso e o espaço estriado – o espaço nômade e o espaço
sedentário – o espaço onde se desenvolve a máquina de guerra e o
espaço instituído pelo aparelho de Estado – não são da mesma

31
Deleuze e Guattari escrevem juntos O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia em 1972,
influenciados pelos movimentos de maio de 1968 na França e, em 1980, escrevem Mil-Platôs, que no
Brasil foi publicado em cinco volumes. Além destes, publicam também Kafka, por uma literatura menor
(1975) e O que a é filosofia? (1991). Contudo, os dois primeiros citados serão a base para a discussão
aqui desenvolvida.
230

natureza. Por vezes podemos marcar uma oposição simples entre os


dois tipos de espaço. Outras vezes devemos indicar uma diferença
muito mais complexa, que faz com que os termos sucessivos das
oposições consideradas não coincidam inteiramente. Outras vezes
ainda devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças
às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido,
transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente
revertido, devolvido a um espaço liso. (ibid., p. 147­148).

Tais apontamentos eu tinha em mente durante o mês de julho. Assim, pareceu­


me que a entrada do capital de forma mais presente e intensa no PAE Lago Grande
como um todo envolveu um processo de produção de “subjetividade capitalística”, o
qual se dá pelas estratégias de axiomatização, na possibilidade de cooptação de
demandas e desejos por propostas como a municipalização, mas também por outras
práticas que têm como cerne enfraquecer as subjetividades singularizadas, atuando
principalmente na transformação de espaço­liso e tempo­liso em espaço­estriado e
tempo­estriado, ou seja, de campo intensidade e potencialidade, a tempos e espaços
absorvidos pelo aparato estatal.
Assim como, a percepção sobre trabalho e emprego em algumas falas, sobre a
ausência de trabalho na comunidade, um ponto que parecia ser legítimo ou reconhecido
apenas quando um trabalho se dava nos moldes da referência capitalista moderna, na
relação assalariada, que, para adequar­se a essa, seria necessário o deslocamento para
outro espaço em que fosse mais possível alcançá­lo.
Contudo, mesmo nessa relação de opressão – e aqui é algo que nos interessa –,
eles apontam que escapam fluxos decodificados, ou seja, fluxos que escapam do
código do poder. Por exemplo, a criação das moedas, os bancos, o trabalho autônomo,
o comércio; o que vai possibilitar xo surgimento do capitalismo (que se fundirá ao
Estado). Logo, ainda que os autores indiquem a dinâmica no processo de formação do
Estado e do capitalismo, a partir principalmente de uma experiência eurocentrada,
destaco que a dinâmica continua se refazendo e se reproduzindo, ainda sendo
perceptível em locais em que o capitalismo e o Estado vêem ainda como fronteiras de
espaço e tempo liso a serem estriados.
Não implico aqui que signifique que nessas relações de tempo­espaço liso o
Estado e o capitalismo estejam ausentes, como é uma recorrente expressão usada sobre
a região amazônica e outras localidades, mas sim que as subjetividades, por todos os
fatores históricos apresentados previamente, dão­se em um contexto de resistência
mais explícita à subjetividade capitalística, em que, apesar das limitações e pressões
231

constantes, ainda existem e durante séculos têm existido modos de vida que escapam à
lógica capitalística e até mesmo se opõem a ela.
E sobre isto os autores apontam que, mesmo no capitalismo, os fluxos
continuam escapando, sendo qualquer tipo de maneira de trabalho que não se localize
na lógica imposta, como formas de se vestir, comer, pensar, falar, produzir e assim por
diante. Eles destacam que tudo que é descodificado ameaça o capitalismo (e,
automaticamente, o Estado), logo, precisa ser transformado a serviço da produção do
mercado capitalista, o que eles denominam: axiomatização dos fluxos decodificados.
Este processo de axiomatização é a principal utilidade do Estado para o
capitalismo. É por meio dele que o capitalismo vai axiomatizar todos os fluxos de
desejo, sendo sua atuação basicamente voltada para garantir a sobrevivência do
capitalismo. Logo, quando uma manifestação ocorre demandando direitos ou
denunciando uma situação ­ que ameace o capitalismo ­ o Estado atua axiomatizando,
ou seja, incorporando essas demandas (nos seus termos) a fim de desfazer esses fluxos,
cooptando­os. Desta forma, podemos situar o giro decolonial como dinâmica sempre
presente, desde a colonização, fluxos que podemos ver nas diversas formas de vida
aqui relatadas e também citadas por documentos e articulações que contestam e
defendem sua autonomia.
A resposta de axiomatizar, ou seja, neutralizar as ameaças ao Estado e ao
capitalismo por meio da absorção de demandas, contudo, não é a única possibilidade
de resposta do Estado. Ele pode negar ou retirar axiomas e atuar com repressão.
Deleuze e Guattari (1997) apontam que essa atuação difere de acordo com as formas de
Estado, mas eles defendem que todos estão a serviço do capitalismo, mesmo os ditos
socialistas ou totalitários, por ser o sistema econômico dominante de nossa sociedade.
De todo modo, a diferença será basicamente como se lida com os fluxos
decodificados, sendo considerado que o Estado totalitário tende a retirar axiomas e
fazer mais uso da violência enquanto o Estado social­democrático tende a multiplicar
os axiomas. Essas ações dependem, na visão deles do tipo de mercado que é
privilegiado: no caso do totalitário, os axiomas são negados para atender ao mercado
externo, enquanto em uma social­democracia visam fortalecer o mercado interno.
Aqui, novamente, encontram­se as discussões já desenvolvidas anteriormente, a
compreensão de que existe um capitalismo mundial integrado e que os países
“desenvolvidos”, do Norte global, têm como base para sua riqueza e desenvolvimento
a exploração de países “subdesenvolvidos” do Sul global. Logo, a tendência é que, no
232

centro do capital, tenham­se mais axiomas, enquanto na periferia do capital a tendência


é a retirada de axiomas. As duas tendências, contudo, visando o mesmo objetivo: a
sobrevivência do capitalismo.
Outro ponto da teoria/prática de Deleuze e Guattari ainda no Volume 5 de Mil
Platôs na análise da relação entre o Estado, o capitalismo e a produção de
subjetividades trata de que é da dinâmica do capitalismo que se retirem axiomas, ou
seja, sempre que ele está ameaçado, os axiomas serão retirados para garantir a
retomada do lucro.
Isto pode ser exemplificado no caso brasileiro pelo cenário político que se
arrasta desde 2015 com sucessivas propostas de reformas trabalhistas, da previdência e
a agora administrativa, acompanhadas de um crescimento contínuo do desemprego,
perda de poder de compra, precarização do trabalho e, consequentemente, grandes
empresas alcançando no mesmo compasso recorde de lucros, tais como os bancos.
Enquanto a crise econômica no país tem se agravado, a empresa Economática,
especializada no fornecimento de dados financeiros, apontou, em 2019, um lucro
recorde dos quatro principais bancos do país ­ Banco do Brasil, Santander, Itaú
Unibanco e Santander ­ que apresentaram um lucro conjunto de R$ 69 bilhões, o maior
da história (Takar, 2019).
Os axiomas poderiam ser entendidos, então, como as demandas que os sujeitos,
sujeitas e movimentos sociais fazem em denúncia à opressão, que são sobrecodificados
pelo Estado, ou seja, atendidos de certa forma. A demarcação de terras indígenas, a
promulgação de leis contra a violência contra mulheres, direitos trabalhistas, políticas
contra o racismo e outras formas de opressão.
A análise de Deleuze e Guattari encontra aqui um ponto interessante de
interface com o atual cenário brasileiro. Pois, eles apontam que, no momento em que o
capitalismo se vê ameaçado, os axiomas são retirados para garantir a sobrevivência
dele, o que, normalmente provoca reação dos sujeitos. Entretanto, num Estado
totalitário eles costumam ser reprimidos de diversas formas, sempre visando priorizar
nestes casos o mercado externo.
Desde 2017, de forma mais sistemática, tem­se notado a adoção da retirada de
axiomas principalmente em relação às minorias políticas como mulheres, a população
LGBQTI+, a população negra, indígenas, trabalhadoras e trabalhadores rurais e todos
aqueles que, em geral, produzem fluxos decodificados a partir de subjetividades
233

singularizadas; assim como direitos ligados ao meio ambiente e à educação, áreas


vistas como possíveis produtoras de novas subjetividades.
É importante destacar que Deleuze e Guattari consideram que as subjetividades
estão sempre em processo de produção, sendo produzidas por linhas e que a
subjetividade não é apenas sobre indivíduos/sujeitos, mas também se referem a
acontecimentos, configurações sociais e até mesmo ao próprio Estado.
E, para garantir a sobrevivência e a continuidade do capitalismo, Guattari e
Rolnik (1996) defendem que a principal produção do capitalismo é a produção de
subjetividade capitalística. Justamente por ser a engrenagem principal para garantir
que ele continue funcionando existem menos fluxos decodificados a serem
axiomatizados. Apontam que o capitalista também é produzido. Retomo então, mais
uma vez, as falas e conversas que tive com mulheres vivendo no Tapajós e como
desejos e planos são atravessados por tais dinâmicas.
Em diversos momentos, e me incluo aqui – as subjetividades enquanto formas
de existência apresentam elementos de prioridade em relação ao bem viver, ainda que o
próprio planejamento para se alcançar tais formas, que podem ser até mesmo
dissidentes ou com fluxos decodificados, continuamente sobrecodifiquem as vidas para
uma subjetividade capitalística, mostrando a dinâmica e o dilema com o qual nos
deparamos.
Deleuze e Guattari (1997) indicam que os movimentos sociais podem lutar
contra a retirada de axiomas (em Estados totalitários) ou pela conquista de axiomas
(em Estados social­democratas), mas existe um risco neste último caso que é o da
burocratização dos movimentos, transformando­os em reacionários ou também os
esvaziando.
Outro ponto a retomar aqui se referindo ao contexto em questão pode ser o
exposto por Sena (2014) quando analisa que a partir da eleição de Lula à presidência,
acaba ocorrendo a cooptação das lideranças e movimentos e esvaziamento da
mobilização, o que enfraqueceu as próprias articulações e também não garantiu o
avanço de muitas pautas, já que o próprio Partido dos Trabalhadores (PT) também
passou por esse processo de reacionarismo ao se inserir no governo.
Mesmo que possamos citar diversas mudanças e políticas voltadas para
demandas de movimentos sociais e das camadas mais pauperizadas da população,
muitas dessas – mas apenas para tanto seria necessário outro estudo específico – terão
como estratégia medidas paliativas e não mudanças estruturais. Além da continuidade
234

da atitude e da utilização de poder repressivo contra manifestações, da violência


policial e também do encarceramento em massa, principalmente da população
masculina, jovem, negra e periférica, e atingindo crescentemente também mulheres, na
grande maioria, negras (Zackseski, Machado, Azevedo, 2017).
Aqui serve uma discussão trazida por esses autores de que não existiram de fato
“governos de esquerda”, apenas governos mais sensíveis aos axiomas, havendo sim
partidos de esquerda e políticas assim alinhadas que passam, ao se tornarem parte do
governo, pela limitação de não haver margem de manobra frente à influência do
capitalismo, assim como, a própria estrutura estatal já reproduzia comportamentos
repressivos de forma enraizada em sua própria razão de ser.
Isto ocorreria necessariamente pelo fato de que todas as formas de Estado estão
a serviço do capitalismo, ponto este que tem sido também um elemento identificado a
partir da perspectiva decolonial, no momento em que se compreende que a constituição
do Estado brasileiro, em seu início, tem como bases fundantes a lógica de
modernidade/colonialidade que se localizam no espectro do capitalismo mundial e nele
se justificam, assim como, a própria colonização pelos portugueses sempre voltada ao
mercado externo, o que continua como padrão até os dias atuais (independentemente
de partido).
Contudo, o caso do Brasil nos últimos anos realmente se relaciona ao entendido
por Deleuze e Guattari: o que foi notado é uma maior sensibilização em relação a
alguns axiomas, ao mesmo tempo em que houve políticas de priorização do mercado
externo, destruição do meio ambiente e manutenção do paradigma desenvolvimentista.
Deleuze e Guattari indagam então, como seria possível resistir a essa
axiomatização geral dos fluxos pelo Estado a serviço do capital e como resistir à
produção de subjetividade que ocorre no interior dos Estados, que é necessária para
que o capitalismo exista.
A resposta estaria no nomadismo: a produção de outros modos de expressão,
de sentir, de pensar pela movimentação constante, em oposição ao sedentarismo,
aquele que se acomoda à subjetividade capitalística, que é homogênea e mundial
(estudar, trabalhar, comprar, morrer). Pode­se traçar um paralelo com a proposta do
giro decolonial, mas também pelas práticas e existências alinhadas ao contracolonial.
Eles destacam que os desejos produzidos pela subjetividade capitalística nos
fazem querer e desejar aquilo que interessa ao capitalismo, aquilo que mantém a sua
vida, o que ocorre por meio do agenciamento (família, mídia, escola, entre outros),
235

como também apontado por Yuval­Davis (1997). Logo, o desejo só existe maquinado,
agenciado, ele é aquilo que o agenciamento determina que ele seja.
Assim, conclui­se que o Estado-Nação é um modelo da realização da
axiomática-capitalística, onde ocorre a produção das subjetividades nacionais e uma
sujeição social entre capitalistas e trabalhadores. Pode­se considerar aqui que um
desejo dessa subjetividade é justamente o desejo de ser desenvolvido nos moldes
eurocentrados. Tanto aquilo sobre o que discorre Fanon (2008) como Guattari e Rolnik
(1996) chama a atenção para a produção do desejo pela própria repressão, ou seja, o
desejo de que a vida do indivíduo seja organizada de fora. Neste sentido, eles destacam
que existem três funções da subjetividade capitalística, sendo:
● A Culpabilização: que é a necessidade da autorização para enunciar um
pensamento dentro dessa lógica, que pode se dar pela busca de títulos, educação
escolar formal; sem essa autorização o indivíduo se sente culpado e
desautorizado a se manifestar, o que faz a gente se indagar "afinal das contas
quem sou eu? Será que sou uma merda?" (Guattari e Rolnik, 1996, p. 41);
● A Segregação: que é o resultado da separação entre quem está autorizado a
enunciar e faz, automaticamente, parte de uma elite e os outros que são
marginalizados; aquilo que é padrão das elites é valorizado e aquilo que os
demais devem se situar;
● A Infantilização: que é a tutela do Estado, “pensam por nós, organizam por
nós a produção e a vida social” (id.), e que coisas normais como (envelhecer,
adoecer, falar, sentir), “não deve perturbar nossa harmonia no local de trabalho
e nos postos de controle social” (id.); as ditas minorias, ou os que possuem
comportamento dissidente, em geral costumam ser ainda mais infantilizadas e
que tudo que se faz, se pensa ou se venha a produzir deve passar pelo Estado.
Estas funções que a subjetividade capitalística tenta alcançar também se
alinham ao que Fanon (2008) analisa no tratamento dado aos negros pelos
colonizadores tanto no deslocamento e desvalorização dos conhecimentos quanto na
criação do sentimento de culpa por não estar/ser apto a se pronunciar dentro da lógica
estabelecida. Analisa como a segregação e a infantilização se instituíram como formas
de desumanização, de colonialidade do ser (Maldonado­Torres, 2007), o que também
identificamos anteriormente no Brasil na relação com os povos indígenas na
atualidade.
236

Na figura a seguir (ver Figura 32) busquei apresentar uma possível visualização
para as dinâmicas da produção de subjetividade a partir das referências abordadas:
Figura 32 – Produção de subjetividade capitalística

Fonte: Elaboração própria.


Considero que a perspectiva se dá sobremaneira em países que passaram pela
colonização e com sujeitas e sujeitos subalternizados nesses contextos. Na Amazônia,
como já se abordou anteriormente, a produção de subjetividades que visam produzir os
desejos de não ser primitivo, atrasado, indígena, tudo aquilo que é concebido sobre a
região é o que acelera o processo de difusão do capitalismo. E, como aqui exposto, as
subjetividades não são produzidas apenas sobre sujeitos, mas também sobre
fenômenos, estruturas e, aqui, abordo a produção da subjetividade da Amazônia neste
âmbito.
Sigo também Guattari e Rolnik (1997) no sentido de considerar que a produção
de subjetividades capitalísticas é a principal produção do capitalismo, pois torna todas
as demais possíveis. O que se observa no processo de ocupação da região amazônica e
na reprodução do imaginário sobre a mesma e seus habitantes, ocupação que deslocou,
negou e violou identidades e outras subjetividades, ou seja, fluxos decodificados que
ainda escapavam. Isto levou à adoção e defesa de políticas que são contrárias à própria
sobrevivência do espaço e de muitas formas de viver na região.
Entretanto, considero e reforço – por isso a adoção da abordagem da
esquizoanálise – posto que, ao olhar os projetos de vida de mulheres no Tapajós, no
contexto amazônico, é possível perceber a produção de subjetividades outras; o que se
237

dá, obviamente, não apenas com elas, mas está muito presente no contexto em questão
e que, ao contrariar a ordem capitalística na lógica da modernidade/colonialidade rotula
indivíduos como irracionais, loucos, esquizofrênicos, ou seja, fora da realidade e
marginalizados, infantilizados, deslegitimados.
É o caso do exemplo citado em capítulos anteriores. Em que políticos
posicionam­se sobre como os povos indígenas devem se organizar, viver, postulando a
idéia de que contrariar a lógica de se modernizar, desenvolver seria considerado
irracional. E o grito na Carta das Mulheres Indígenas do Tapajós, assim como muitas
conversas relatadas e projetos de vida que foram compartilhados, alinham­se ao que
Maldonado­Torres (2007) define como giro decolonial. Tais abordagens possibilitam
adensar o campo de análise do cenário político nacional já descrito, mas que, ainda no
restante do mês de julho e nos meses seguintes, o cenário em questão recebeu novos
contornos e desdobramentos que merecem aqui destaque e contextualização.
Assim, saí da Coroca com destino à Santarém, com meu pé fofinho, sem saber
muito bem ainda como seria o restante do mês, mas otimista por manter meu
planejamento. Pensei em passar alguns dias em Santarém, ir ao hospital para ver se a
recuperação seguia um curso normal com a ferrada da arraia, já que apesar do
estranhamento, todos que eram experientes no assunto diziam que a aparência estava
até boa em comparação com casos que já tinham visto.
Agora em Santarém e com acesso à Internet pude informar à Cris e à Nice o
que havia acontecido. Nice já esperava que eu chegasse à Flona nos dias seguintes.
Hesitei em ir para a Flona, pois estava insegura com o estado do pé e achei mais
prudente inverter meu itinerário. No dia em que cheguei a Santarém depois da Coroca,
decidi ir para Alter­do­Chão, onde passaria alguns dias até o ferimento melhorar e, só
então iria para a Flona.
Cris me recebe, como sempre, de braços abertos e com um canto especial para
armar minha rede. O plano era passar mais uma semana lá, aproveitar para ir ao posto
de saúde e ver se era preciso alguma outra medicação. A ferrada estava bem roxa,
dolorida e a cada dia a aparência piorava. Nice pede fotos e passa por Whatsapp
algumas recomendações: evitar passar óleo de andiroba32, já que por ter um efeito de

32
Óleo natural muito utilizado na Amazônia com diversas propriedades, tais como: repelente natural,
antiinflamatório, como hidratante para pele e cabelo, entre outras. A medicina popular sobre o óleo
indica o uso do mesmo em variadas situações.
238

aumentar a temperatura da região isso reativaria a toxina; usar óleo de piquiá33 com
folha grossa quente em cima do ferimento para que se retirasse alguma toxina ainda
existente e impedir a inflamação. O remédio é indígena, segundo Nice; ela recomenda,
também, um chá da casca da árvore do caju­branco para lavar o pé e amenizar a
inflamação. Sigo rigorosamente as orientações e o alívio é imediato nos dois casos.
Contudo, pela foto, Nice avisa que acha que irá inflamar de qualquer jeito,
restava agora evitar que piorasse ou viesse a necrosar o tecido. Enquanto estou em
Alter­do­Chão, Gildson e Enilde pedem atualizações constantes sobre o estado de
saúde; eles pedem que eu mande fotos do pé, o que acabou virando uma rotina durante
o restante do mês; quase todos os dias eu envio fotos do pé para eles e também para
Nice. Em suma, o desenrolar do ferimento acabou por me incapacitar o restante do mês
de julho em relação à Flona. A partir de 10 dias, a ferida começou a abrir, dentro do
processo normal, mas que aumenta muito o risco de uma infecção e sou recomendada a
esperar que ela feche para ir para Jamaraquá. No total, foram dois meses até o
ferimento fechar, o que só veio a acontecer quando eu já estava de volta à Belém.
Tal condição, embora na época eu não tenha recebido muito bem, acabou por
me propiciar passar muito tempo em Alter­do­Chão. Sem o meu habitual fluxo e ritmo
de passagem entre as comunidades, como costumava fazer, algo que Cris também
observou e pontuou como minhas viagens eram sempre corridas entre as três
localidades. Assim, mesmo que pudesse andar, a sensação de não estar aproveitando o
período para continuar a pesquisa, é algo que me desestabilizava consideravelmente.
Aproveitava os dias para organizar as leituras, rever o que já tinha escrito e
também conversar bastante, estar em Alter, andar, ver o pôr­do­sol. Logo nos
primeiros dias sinto a vila muito diferente. As pessoas não respondem aos
cumprimentos pelas ruas de bom dia, boa tarde, boa noite. A paisagem da vila está
diferente também: muito mais carros que das outras vezes em que estive lá em julho.
E o público que percebemos estar passando férias também mudou – mais
famílias com homens mais velhos e mulheres mais jovens, predominantemente
brancos; percebo serem as pessoas que cumprimento e que não me respondem. Nas
praias: mais música alta, muitos drones, mais jetskis que o normal. Talvez não tivesse

33
Óleo extraído do fruto do piquiazeiro, diferente do pequi da região do cerrado. O óleo costuma ser
utilizando na culinária, mas também tem propriedades antiinflamatórias e de profunda hidratação, sendo
recomendado também para a pele e os cabelos. Acredito que o óleo deva possuir outras muitas
propriedades, mas estas são as quais conheço. Apesar de algumas buscas por outras referências em
mecanismos de buscas há pouca informação sobre o óleo disponível na Internet.
239

mais carros, fosse apenas uma impressão já que agora a maioria dos carros era do tipo
picape, assim, por serem grandes, provavelmente davam essa sensação de ruas mais
apertadas e de lotação.
Após dois dias dessa observação converso com Cris; ela diz que também notou
essa mudança e que tem acontecido na vila um aumento no fluxo de pessoas que vêm
do estado do Mato Grosso, principalmente de Cuiabá, área de grande ligação com o
agronegócio. E, realmente: torno a prestar atenção às placas de carros e vejo serem de
lá, mas também de outras cidades do mesmo Estado. Ela comenta que, nos últimos
meses, muitos mato­grossenses têm comprado propriedades, como casas, terrenos e,
principalmente empreendimentos como pousadas e restaurantes.
Em conversa com moradores da vila, como Leida, que é de Belém e mora com
a Cris, sou informada que muitas pessoas de Cuiabá têm visto Alter­do­Chão como um
destino já consolidado de férias e balneário para a família, que teria se popularizado
ultimamente, principalmente, por conta do fluxo de sojeiros que têm se mudado para a
região.
Considero que essa movimentação nova não tem sido motivada por férias ou
passeio, mas para a compra de terras e propriedades, que tem sido influenciada também
pela entrada da “China” no estado do Mato Grosso, por meio da compra de terras, o
que tem contribuído para empurrar sojeiros para regiões ainda com perspectiva de
crescimento do cultivo. Além disso, como abordado em seções anteriores, o contexto
político na região já dava muitos sinais de que o baixo Tapajós seria a fronteira
agrícola da vez.
Quando estava chegando ao porto de Santarém, saindo da Coroca, um amigo da
comunidade que viajava no mesmo barco que eu, apontou para mim as embarcações
que levam soja, mostrando uma com os containers vazios e uma já cheia. A diferença
do nível que ficava para fora indicava as toneladas do carregamento. Só em 2018,
saíram do porto da Cargill 4,6 milhões de toneladas (Antaq, 2018).
Como ainda não viajei para a Flona, não pude perceber o aumento das
plantações de soja, mas Cris e outros conhecidos me relatam que a devastação da
floresta para a o cultivo de soja tem se alastrado rapidamente. Apesar disso, já pude
notar uma diferença na estrada que vai de Santarém à Alter­do­Chão, a mudança de
muitas casas em construção e mais anúncios de terrenos à venda.
O fluxo que, para mim já era mais familiar, de viajantes e mochileiros, parece
ter diminuído ou estar menos perceptível. Começo a perceber a vila e as suas mudanças
240

que têm se dado agudamente, já que eu tinha estado lá ainda no início do ano. A
especulação imobiliária também está mais intensa, e ainda continua o debate entre a
proteção da área e a pressão para verticalização visando “desenvolver” mais a região.
Converso com Cris sobre os efeitos da época das eleições e suas polarizações.
Ela indica que houve um processo de mudança nas relações das pessoas, um
afastamento mais explícito por conta de divergências políticas. Não posso aqui
generalizar os posicionamentos políticos da população sem ter feito um levantamento
direcionado para tal, mas posso compartilhar minhas impressões a partir de alguns
fatos posteriores.
Um dos principais exemplos ocorreu na última semana em que eu estava em
Alter­do­Chão, no dia 22 de julho de 2019. O Ministro da Educação do governo
brasileiro, Abraham Weintraub, passava férias com a família na vila e, durante a noite
de segunda, enquanto jantava na praça da vila, foi surpreendido com um protesto de
estudantes da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) que se manifestavam
contra os cortes de recursos para a educação. O ministro se manifestou sobre o
ocorrido em sua rede social no Twitter34, que estava com sua família quando
“advinhem (sic)... os mesmos que se dizem defender os direitos humanos nos
cercaram... as crianças ainda estão chorando!”.
Em determinado momento começa a ocorrer uma discussão, que é registrada
em vídeo (Youtube, 2019)35. Entre palmas, ovações em apoio, vaias e gritos de
“fascista” e “palhaço” das pessoas que assistem à situação, a discussão se desenrola
quando um dos estudantes, que é indígena, fala “eu estou aqui na minha terra, essa
terra é nossa, essa terra foi defendida com muito sangue”, ao passo que o ministro
responde “essa terra é minha!”, o que gera reação na aglomeração que se formou na
praça; o estudante replica que o ministro deve respeitar a terra e o povo, após o
estudante denunciar não ter sido recebido pelo ministro em Brasília, Weintraub
responde:“Não é porque você está com um cocar que você pensa que é mais brasileiro
que eu, seu safado”. O ministro continua ao dizer que todos são brasileiros, pretos,
brancos e índios, que são todos iguais. A situação, além da repercussão local, na
mesma noite alcança noticiários e reportagens (Lellis, 2019).

34
https://twitter.com/abrahamweint/status/1153477099887431680?lang=pt
35
Ministro da Educação Abraham Weintraub discute com a população do Pará. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=bd4eQCDL­Zg. Acesso em: 10/01/2020.
241

No dia seguinte, o reitor da UFOPA, Hugo Diniz, criticou o ocorrido em seu


perfil do Facebook, ao dizer que “Não vale tudo para obter os fins nobres que
almejamos. Como Professor, e neste momento como Reitor, considero inaceitável a
hostilização sofrida, na noite de ontem, pelo Ministro da Educação Abraham
Weintraub, fora do exercício do seu cargo, na presença de sua esposa e filhos”.
(Carneiro, 2019)
Também o prefeito de Santarém, Nélio Aguiar, do partido DEM, manifestou­se
em nota da prefeitura, na qual condenou os atos de violência, intolerância política ou
de censura; dizendo solidarizar­se com o ministro que estava em Alter­do­Chão como
turista e foi hostilizado durante seu momento de descanso. Finalizando, afirmou que a
cidade de Santarém é hospitaleira e que atos isolados não representam a conduta do seu
povo acolhedor (Carneiro, 2019).
A noite do dia 22 de julho foi, coincidentemente, a única em que eu resolvi não
ir à praça, mas, mesmo sem ter estado presente, instantaneamente ao ocorrido
recebemos mensagens de outros conhecidos. No dia seguinte, um grupo de umas doze
pessoas, com um carro­som, fez uma passeata pela praça em apoio ao ministro e ao
governo.
Nos dias seguintes não havia outro assunto nas conversas paralelas pela vila.
Todos comentavam a situação e sua repercussão. Postagens foram feitas por moradores
de Santarém expondo nomes de professoras e professores que estariam “doutrinando
alunos” e incentivando­os a se manifestarem contra o governo, assim como, houve
relatos da Política Militar ter visitado a casa de alguns desses professores e também de
pessoas identificadas na postagem como “comunistas” e ligadas a interesses na região,
como membros de ONGs, a exemplo do Projeto Saúde e Alegria (PSA).
O clima era pesado e de insegurança na vila face às possíveis retaliações,
principalmente pelos conteúdos acusatórios que circulavam nos grupos de whatsapp
sobre diversas pessoas que moravam em Alter­do­Chão ou Santarém, identificadas
como opositoras ao governo. Para os meus conhecidos e pessoas mais próximas, o
clima é de tensão e medo. Converso com uma amiga que é professora na UFOPA e a
mesma comenta sobre a situação de incerteza do que vem pela frente, assim como, da
expectativa de que a repressão esteja aumentando.
Posteriormente, compartilharam comigo sobre o caso de uma professora da
UFOPA que, após a polícia ter ido à sua casa algumas vezes sem mandado, sentiu­se
242

intimidada e decidiu ir embora; o mesmo ocorreu com outras pessoas também. Era o
início de um movimento que se intensificaria nos meses seguintes.
Retomando a discussão sobre a produção de subjetividade, percebe­se como os
atravessamentos macropolíticos contribuem para decisões ligadas a projetos pessoais e
sociais de vida. Podemos pensar sobre os deslocamentos de idas e vindas justamente
nesse sentido, como desejos produzidos e projetados em alguns lugares – como Alter­
do­Chão – também são atravessados pela produção de subjetividade. O ir, chegar, ficar
e sair perpassa diversos fatores macropolíticos, como observamos no exemplo anterior.
Logo, Guattari e Rolnik (1996) definem que a produção de subjetividade não
deve ser encarada como uma coisa em si, imutável, mas sim “existe esta ou aquela
subjetividade, dependendo de um agenciamento de enunciação produzi­la ou não.
Atrás da aparência da subjetividade individuada, convém procurar situar o que são os
reais processos de subjetivação” (ibid., p. 322). Eles citam, como exemplo, o
capitalismo moderno que produz em grande escala um novo tipo de subjetividade
através da mídia e dos equipamentos coletivos.
Savazzoni (2012, p.68) destaca que essa produção precisa ser compreendida
pela relação de atravessamentos de diferentes dispositivos e agenciamentos que nos
influenciam, de modo que a subjetividade não é apenas algo que se “internaliza”, mas é
algo dinâmico e que está constantemente sendo atravessada.
A produção de subjetividade se dá a partir de algumas linhas: as linhas
duras/molares, que são as determinações mais formais dessa subjetividade e com uma
identidade pautada em binarismos (sexo, gênero, estado civil, entre outros) e são
aquelas que classificam, interpretam, codificam a parte do “sujeito”; é onde ele se
reconhece e organiza a vida cotidiana, são utilitárias; e essas linhas duras são
influenciadas pela hegemonia, pelo que é dominante.
As linhas duras/molares são normalmente ligadas ao Estado e geram processos
de subjetivação e estratificação, retomando a noção previamente abordada de
sobrecodificação das singularidades das linhas e fluxos que escapam, de modo que “o
aparelho de Estado cria, necessariamente, suas linhas duras e por elas faz passar suas
normas, entretanto, ele necessita também de linhas “flexíveis” e circulares para poder
atingir “todos” os segmentos do socius, do nível “molar” ao “molecular”” (Savazzoni,
2012, p. 72).
Já as linhas flexíveis/moleculares são as que possibilitam o afetamento da
subjetividade, são zonas de intermediação, a face sensível, enquanto as linhas molares
243

são a face formal, é o entre, é aquilo que pode ser modificado, afetado. As linhas de
fuga são para onde convergem os processos que vão levar ao novo, onde temos nossas
sensibilidades, possibilidades de invenção e potencialidades, que são os
microprocessos revolucionários.
As linhas de fuga, contudo, podem ter duas direções: construtivas/inventivas,
quando liberam a produção de desejos, ou abolicionistas, que podem levar à
desintegração absoluta e ao próprio aniquilamento (id.). Neste sentido eles comentam
sobre os perigos das linhas:

Portanto, somos feitos de três linhas, mas cada espécie de linha tem
seus perigos. Não só as linhas de segmentos que nos cortam, e nos
impõem as estrias de um espaço homogêneo; também as linhas
moleculares, que já carreiam seus micro­buracos negros; por último,
as próprias linhas de fuga, que sempre ameaçam abandonar suas
potencialidades criadoras para transformar­se em linha de morte, em
linha de destruição pura e simples (fascismo). (Deleuze e Guattari,
1997, p. 195)

Assim, é nas potencialidades da micropolítica e na produção das subjetividades


que reside a resistência, de modo que se identifica a relação que se dá entre os projetos
de vida enquanto produto da produção de subjetividades sempre constantes e dos
atravessamentos das linhas de segmentaridades.
Os processos de singularização são o modo de resistência à subjetividade
capitalística e a relação do capitalismo está na tentativa de fixar e suprimir tal
singularização no âmbito da micropolítica. É importante destacar que essa produção
dentro do capitalismo não se dá de maneira homogênea, dependerá do nível e grau de
inserção e integração dos indivíduos com os agenciamentos do mesmo (linguagem,
mídia, escola, economia).
As subjetividades produzidas são então formas de produzir percepções e
relações com o mundo, com os outros e consigo, por meio da produção de desejos, mas
que na subjetividade capitalística adotam uma escala industrial e direcionada a atender
à lógica do capital e a ser naturalizada como única forma possível de se viver.
Outro elemento relevante da análise feita, por Deleuze e Guattari e também
Rolnik, é a visão de que os sujeitos e as subjetividades não são processos isolados ou
únicos, mas sempre em relação com a sociedade, com a coletividade. Além de que não
apenas os sujeitos/indivíduos possuem subjetividades, mas os sujeitos sociais também
(Estado e os demais), e, aqui, é um momento oportuno para pensarmos sobre a
produção da subjetividade da Amazônia.
244

Ao falar a palavra “Amazônia” é possível que o cérebro de quem a ouça


imediatamente dispare diversas imagens, sentimentos e percepções prévias. Fascínio,
contemplação, medo, desconhecimento. A palavra, atualmente difundida e utilizada
para se referir a um bioma e a uma região, foi estabelecida por colonizadores a partir
de uma mistura de relato real e mito fundacional sobre mulheres que viveriam em uma
sociedade matriarcal, eram guerreiras e teriam apenas um seio – características que
apontam para diversas possibilidades da origem etimológica da palavra no grego e
também na língua jônica.
O relato do século XVI feito pelo espanhol frei Gaspar de Carvajal (Carvajal,
Rojas e Acuña, 1941), as definia como mulheres altas e de pele alva, que viviam no rio
Nhamundá e, em referência à mitologia grega das Amazonas, nomeou­se o maior rio
do mundo em extensão e volume “río de las Amazonas”, nome que viria a ser cunhado
posteriormente para se referir ao rio e também à definição do bioma predominante ao
longo da bacia amazônica.
As mulheres guerreiras também são referidas como Ycamiaba apesar de alguns
relatos que datam até os anos 1960, nenhum contato direto foi registrado, mas as
histórias delas são retratadas em livros e em muitas cerimônias de diversas etnias.
Chama atenção, contudo, o fato de relatos dos europeus descreverem essas mulheres
como brancas, altas e com apenas um seio – uma coincidência, para dizer o mínimo,
com o fenótipo europeu e a referência à mitologia grega das Amazonas – assim como,
em um relato datado de 1641 por Padre Cristóbal de Acuña, diz­se que elas seriam
parentas dos homens barbados (europeus) (Carvajal, Rojas e Acuña, 1941).
Independentemente, é comum a recorrência a uma visão simbólica sobre a
região e às mulheres amazônidas com a história das Ycamiaba/Amazonas. Assim
também, percebe­se uma visão generificada sobre a região, a partir do momento em
que as representações de mulheres guerreiras, temidas e ao mesmo tempo desejadas e
hipersexualizadas, perpassam muitas falas sobre as políticas passadas e
contemporâneas sobre a Amazônia.
Em julho de 2019 o presidente Jair Bolsonaro, ao ser questionado sobre a
demarcação de terras indígenas e o desmatamento na Amazônia, respondeu: “O Brasil
é uma virgem que todo tarado de fora quer. Qual país do mundo tem o que nós
temos?”
A fala está inserida no contexto de denúncias sobre políticas que estariam
atingindo o bioma e as populações da região, enquanto ele alega que as críticas
245

estariam sob a égide de uma intenção de tomar a Amazônia do Brasil, violando a


soberania sobre a mesma. A linguagem repleta de conotações sexuais no âmbito
político, dizem muito sobre a forma como as relações de gênero e poder se dão na
sociedade e reverberam em forma de políticas, conforme explorado por Carol Cohn
(1987).
Neste ponto, eu identifico que além da colonialidade sobre sujeitas e sujeitos, a
colonialidade de gênero se deu também sobre a Amazônia enquanto região construída
socialmente de forma generificada e racializada. Os próprios relatos de colonizadores
sobre as mulheres “Amazonas”, tomando como referências para suas descrições e
hábitos a mitologia europeia, inundam a linguagem sobre a mesma, reproduzindo
noções de feminilização da natureza.
A natureza representada na ideia de feminilidade reproduz padrões de gênero
como fertilidade, cuidado, passividade, a qual deve ser explorada, domesticada,
dominada (Runyan, 1992). Tal discurso se metamorfoseou diversas vezes de acordo
com os interesses de seus porta­vozes, mas, por séculos contribuiu para a expansão de
sistemas políticos e econômicos inteiros pautados na exploração e opressão
racializadas, generificadas e de classe.
Como podemos destacar na fala citada anteriormente pelo presidente da
República, mas também em um discurso de Getúlio Vargas (1942) onde o mesmo diz
que é preciso “conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta”, uma
declaração que carrega em si uma lógica institucionalizada desde o contexto da
colonização ibérica no continente, de dominação e exploração como horizonte e
objetivo final do Estado, da política e do Homem.
Já na declaração do Padre Cristóbal de Acuña (1641), percebe­se uma
correlação com as duas últimas falas, quando este aponta que “o tempo descobrirá a
verdade, e se estas são as famosas Amazonas dos historiadores, que guardam em sua
comarca tesouros que dão para enriquecer o mundo todo” (Carvajal, Rojas e Acuña,
1941, p. 268). Ainda permeiam o imaginário social sobre a região ideias de uma leitura
da natureza que deve ser subjugada e dominada, selvagem, mas, que guarda riquezas
que poderiam enriquecer o mundo todo – consonante com a análise feita por Edna
Castro (2010) e que pontua como:
Riqueza e poder, no afã de dominação – nacional, global – determinam em
última análise uma nova fase para a Amazônia. O processo civilizatório
continua seu curso rumo às últimas fronteiras do planeta a explorar. A
floresta permanece um desafio, um lugar para ser domesticado, vencido pela
246

civilização. Está aí a base da ideia de um "vazio demográfico" a preencher,


necessariamente, imperativamente. (Castro, 2010, p. 108)

Não considero como um acaso o fato de que os discursos sobre a soberania


brasileira, também aqueles feitos por líderes como o presidente francês Emmanuel
Macron e outros, utilizem­se da ideia de que “A Amazônia é nossa”, é “bem comum”
ou “deve ser protegida” com uma subjetividade produzida sobre a região pautada nas
origens históricas do seu nome e das ideias que a envolvem. É possível traçar
elementos implícitos, como os anteriores, e explícitos, como na fala do presidente
Bolsonaro, sobre a Amazônia ser uma mulher virgem, passando também pela de seu
filho, Eduardo Bolsonaro, que disse: "A Amazônia, essa mulher tão bonita, o outro
cara vai lá, pisca para ela, quer pagar um drinque para ela, não posso achar que esse
drinque está sendo pago de graça, ok?" (Lemos, 2019).
Ele ainda continuou, ao acrescentar na sua analogia, que "a gente vai aceitar
fundo da Amazônia e continuar se prostituindo? Aqui é Brasil, aqui quem manda
somos nós. Se quiserem continuar depositando, continuem. Senão, abraço" (id.).
Objetificação, sexualização, virgindade, relação de posse, dominação, moralidade,
prostituição: são todas noções presentes nas formas de se explicar a situação
amazônica, o que não significa dizer, por exemplo, que outros povos e culturas não
produzam também subjetividades sobre a Amazônia e a natureza com referência ao
feminino.
Podemos observar, por exemplo, a própria diferença nas cartas citadas de
mulheres Mundurukus do Tapajós como ao citarem a Amazônia de forma a associá­la
a uma noção de feminilidade, maternidade, o fazem a partir de uma concepção
completamente diferente. Assim, o que aqui nos interessa é o que significa ser mulher
a partir da colonialidade de gênero no Brasil e, como o termo se apresenta nas falas e
políticas. Não pretendo apontar de forma superficial como se “generifica” a Amazônia,
mas como essa linguaguem e os significados que ela carrega em um contexto
específico influencia a percepção sobre a região.
Os discursos reproduzem uma ideia de hierarquização e, ao mesmo tempo em
que antropomorfizam a região, conseguem fazê­lo de forma desumanizada,
ridicularizada e objetificada: despossuída de autonomia ou vontade própria, a qual não
possui agência sobre si e deve ser dominada, sujeitada, explorada ou protegida.
Por outro lado, a Amazônia costuma estar presente em muitos discursos
políticos quase indissociavelmente ligada às questões indígenas, como apontado
247

anteriormente. Considero, desta forma que, além de uma generificação da


subjetividade da região, ocorre uma racialização da mesma. Neste caso, atrelando
elementos atribuídos aos povos originários no âmbito da colonialidade do poder como
“atraso, primitivo” à região, o que, já comentei anteriormente tem um duplo efeito
problemático.
O efeito é o de se criar uma imagem da Amazônia como região
homogeneamente étnica e indígena, ignorando a diversidade cultural da região e do
próprio Brasil. Tal racialização da subjetividade da Amazônia também envolve a
tentativa de invisibilização da situação de povos indígenas em outras regiões do país.
Atrelando­se uma naturalização da associação de indígenas à Amazônia e não às outras
regiões do Brasil, que não são “pensadas” desta forma, influeciam­se políticas e
discursos sobre as mesmas, sobre suas demandas e necessidades.
Podemos pensar no contexto vivido pelos povos indígenas no Sul, no Sudeste,
no Nordeste e no Centro­Oeste, como costumam não ser associados a tais regiões, de
modo que se apagam suas existências, acabando por dificultar ainda mais lutas sobre o
direito ao território e outras demandas. A não­associação de povos indígenas a outras
subjetividades regionais também reforça uma falaciosa noção de que o Brasil em si não
seria indígena, apenas a Amazônia, como se restante do território brasileiro tivesse sido
em um passado distante, mas que não mais existissem etnias em regiões
“desenvolvidas”.
Quando se chama a atenção para as queimadas, o desmatamento na Amazônia e
grandes projetos como hidrelétricas é comum que se atente para a situação dos povos
indígenas da região, mas, quando práticas semelhantes se dão em outras regiões, como
as conseqüências da tragédia do rompimento das barragens em Mariana­Minas Gerais,
em 2015, para o povo Krenak, não é um tipo de associação que costuma ocorrer
naturalmente no imaginário nacional, já que a existência de povos indígenas é
construída como algo relativo à “distante” e “exótica” Amazônia.
A linguagem, a forma de se falar e o que se fala é importante. Além de
comunicar, pode excluir pessoas do diálogo, reproduzir violências e valores implícitos
à sociedade como forma de justificar ações políticas, como outra fala citada do
presidente Bolsonaro, que recorre a Deus para argumentar a necessidade de explorar a
Amazônia. E a linguagem também produz subjetividades de sujeitas e sujeitos
individuais, como é o foco do presente estudo. Assim, reforçam­se valores atribuídos a
248

comportamentos esperados de mulheres e homens, pessoas brancas, negras e indígenas,


influenciando também na percepção das próprias subjetividades.
Destarte, a subjetividade é sempre produzida por agenciamento de enunciação,
nunca de forma isolada, e, por isso, Guattari e Rolnik (1996) destacam a relevância dos
movimentos sociais no processo de singularização das subjetividades, ou seja, de
rompimento com a subjetividade capitalística:
O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre
dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o
indivíduo se submete a subjetividade tal como a recebe, ou uma
relação de expressão de criação, na qual o indivíduo se reapropria
dos componentes da subjetividade, produzida no processo que eu
chamaria de singularização. (Guattari e Rolnik, 1996, p. 33)

A singularização, neste sentido, seria uma oposição ao processo de


individualização, elemento presente na subjetividade capitalística, que busca isolar os
indivíduos e compreender os desejos e necessidades de modo desconectado do
social/coletivo.
Rolnik (ibid., p. 38) observa que Guattari “considera que uma das principais
características dessa produção nas sociedades ‘capitalísticas’ seria, precisamente, a
tendência a bloquear processos de singularização e instaurar processos de
insensibilização”, ou seja, nos auxilia a discutir a relação entre a produção de
subjetividades no contexto do capitalismo e suas dissidências.
O cenário em que se dá a análise do tema aqui em questão (desenvolvimento,
posicionalidades sociais e Amazônia) é fruto de um processo – já descrito – de
contradições e de violentas imposições de um sistema capitalista sobre a região e sua
população. Observo que sempre houve resistências e discordâncias, principalmente
pelo fato dos projetos e interesses para a Amazônia, em forma de políticas,
normalmente estarem voltadas para atender às demandas do capital e não da sociedade
local; sendo assim desde basicamente os primórdios da colonização portuguesa.
Percebe­se, então, um alinhamento ao exposto até aqui, no sentido em que se
buscam produzir subjetividades na região de forma a facilitar a entrada do capital: de
que forma? Principalmente, pelo incentivo à migração de pessoas já integradas e mais
inseridas no processo e que, ao chegarem à região trouxeram novas formas de ver a
natureza, o espaço, novas economias e novos modos de vida, mas também, pela
estratégia de deslocamento involuntário das pessoas que já habitam a região, na
produção do desejo de sair, até mesmo como única opção.
249

Por outro lado, as políticas de etnocídio, genocídio e de eugenia contra as


populações indígenas e negras, a caboclização e a morenidade como ferramenta de
apagamento cultural, aproximam­se do processo de insensibilização apontado por
Guattari (id). Assim, é possível identificar na discussão feita por Valter do Carmo Cruz
(2007) o movimento nos anos 1980 e 1990 de insurgência de lutas sociais na região
associadas às identidades culturais, étnicas e territoriais como um processo de
singularização.
Como já citado, todas as referências abordadas consideram o caráter coletivo
desses processos de resistência, ainda que possam se materializar individualmente nos
sujeitos, mas envolvem um processo de identificação e solidarização que é social,
coletiva.
A subjetividade capitalística aponta como único viável e desejável caminho o
trabalho assalariado, o consumismo como realização pessoal e – automaticamente – os
sacrifícios sociais e ambientais que envolvem o próprio sistema como algo inerente e
inevitável. Segundo Guattari e Rolnik (1996) ela naturaliza as opressões e produz
medos e inseguranças a partir das suas funções (culpabilização, infantilização e
segregação), de modo que o sujeito não se sinta capaz ou seguro de romper ou existir
fora dessa própria lógica; por isso, eles consideram impossível esse rompimento
sozinho. Neste sentido, podemos conectar com a fala de Priscila sobre o seu sonho de
cursar engenharia florestal e as suas dúvidas sobre sua própria capacidade.
Este processo de ruptura é denominado por Guattari como revolução
molecular ou microrrevoluções; o autor compreende que para que seja possível
qualquer revolução em nível macropolítico é preciso atentar também para o âmbito
micropolítico, para as produções de subjetividades – já que são elas as principais
responsáveis pela sustentação do capitalismo e de qualquer outro sistema e estrutura.
Deleuze e Guattari não apenas consideram que os movimentos sociais tenham
um mero papel de demandar novos axiomas do Estado, porém, mais do que críticas e
denúncias, os movimentos contemporâneos também mobilizam a construção e
produção de novas subjetividades, reclamam outras maneiras de percepção e
sensibilidade, como podemos perceber no caso da I Marcha das Mulheres Indígenas,
realizada em agosto de 2019, “Território: nosso corpo, nosso espírito”, que contou com
a participação de mais de 2 mil mulheres de 113 povos, em Brasília, no dia 13 de
agosto. A marcha começou com um processo de articulação desde 2015, ano aqui já
250

destacado como chave para o processo de intensificação de diversos movimentos de


resistência.
As pautas da marcha tratavam da demarcação das Terras Indígenas e contra o
machismo, identificado como mais uma epidemia trazida pelos europeus, mas também
contra diversas medidas do atual governo:
Assim, tudo o que tem sido defendido e realizado pelo atual governo
contraria frontalmente essa forma de proteção e cuidado com a Mãe
Terra, aniquilando os direitos que, com muita luta, nós conquistamos.
A não demarcação de terras indígenas, o incentivo à liberação da
mineração e do arrendamento, a tentativa de flexibilização do
licenciamento ambiental, o financiamento do armamento no campo,
os desmontes das políticas indigenista e ambiental, demonstram isso.
(Documento final da Marcha das Mulheres Indígenas: “Território:
Nosso Corpo, Nosso Espírito”, 2019)

Neste sentido, elas identificam como pontos centrais: a urgência da demarcação


das Terras Indígenas; o direito à posse plena dos territórios e, por conseguinte, a
proibição da exploração de minérios, o arrendamento e invasões do agronegócio; a
manutenção e a qualificação do Subsistema e da Secretaria Especial Saúde Indígena
(SESAI); que o STF reafirme a tese do direito originário à terra, contra a tese do Marco
Temporal, como critério de demarcação; que sejam respeitados os tratados
internacionais como a Convenção 169 da OIT; a promoção da representatividade de
mulheres indígenas e o combate à discriminação contra mulheres indígenas e a abertura
para espaços de decisão; denunciam serem vítimas de racismo e também de machismo;
querem defender o direito de todos a uma alimentação saudável, sem agrotóxicos e
nutridas pelo espírito da Mãe Terra, assim como assegurar o direito à educação
diferenciada entre outros.
É neste sentido que a micropolítica é possível, na autonomização/processo de
singularização, ou seja, na construção de seus próprios tipos de referências práticas e
teóricas, saindo da “posição constante de dependência em relação ao poder global, em
nível econômico, em nível do saber, em nível técnico, em nível das segregações, dois
tipos de prestígio que são difundidos” (Guattari e Rolnik, 1996, p. 46). É
imprescindível destacar que essa revolução molecular cria mutações da subjetividade
consciente e inconsciente dos indivíduos e grupos sociais; e, produz “as condições não
só de uma vida coletiva, mas também da encarnação da vida para si próprio tanto no
campo material quanto no campo subjetivo” (id.).
Guattari e Rolnik (1996) identificam que as revoluções moleculares espraiam­
se em todos os níveis: infrapessoais (no sonho, na criação); pessoais (relações de
251

autodominação ou Superego); e interpessoais (invenção de novas formas de


sociabilidade em todas as áreas da vida [doméstica, amoroso­afetiva, de vizinhança,
escolar, no trabalho, etc]). Ou seja, provocam transformações nas formas de se
perceber a vida, a si próprio, seus objetivos, sonhos, formas de se organizar econômica,
social e politicamente.
A abordagem aqui descrita a partir das influências de Fanon, Deleuze, Guattari
e Rolnik com enfoque na ideia de colonialismo mental e seus efeitos psicológicos nos
sujeitos, assim como a compreensão da micropolítica, da produção de subjetividade e a
relação com o Estado e o capitalismo nos dá ferramentas para nos aproximarmos das
subjetividades e pensar como são produzidas, como se relacionam com o contexto
social, político, econômico, individual, cultural e também espaço­temporal.
É possível abstrair da discussão sobre a produção de subjetividade a relação
entre a forma de percepção do mundo e de si sendo influenciada constantemente pelo
Estado, pelo sistema econômico capitalista e de que forma o que desejamos e queremos
é, dependendo do nível de integração ao sistema, uma reprodução da lógica capitalista.
Assim, pela indústria cultural, pela educação, pela mídia, pela família, pela religião,
existe um agenciamento desses desejos que são direcionados para a manutenção do
capitalismo, fazendo dos desejos dos sujeitos compatíveis com o que se precisa deles:
desejar um trabalho em certas condições, desejar uma aquisição de bens materiais
como símbolo de sucesso pessoal e profissional.
A compreensão da relação tempo­espaço também é produzida nessa lógica, a
relação que se tem com o lugar, a importância dele é cada vez mais incentivada a ser
distanciada, em contraposição a uma ideia de global superior ao local, como discutido
por Escobar (1995). E o tempo é pensado e organizado a partir das demandas e metas
pensadas numa lógica de vida na modernidade: estudar, trabalhar, consumir,
reproduzir, morrer.
Contudo, nem todas as mulheres e homens estão alinhados com a subjetividade
capitalística e também nem sempre totalmente. Existem linhas de fuga, rupturas, fluxos
decodificados que escapam ao que se espera que as pessoas se encaixem. São outras
formas de viver, existir e produzir desejos, que contrastam com a subjetividade
predominante.
É preciso compreender que, inserido em todo esse debate, existe um ponto de
referência que está presente no projeto de modernidade/colonialidade: o Estado­Nação.
Enquanto uma estrutura que se interpreta geralmente como neutra ao mesmo tempo em
252

que coerente com as demandas populares, o que, obviamente, já recebeu diversas


críticas e apontamentos de problemas e rachaduras nesta estrutura.
Para além da discussão feita por Benedict Anderson (2008) das “comunidades
imaginadas” ou as críticas à crise do Estado­Nação, propõe­se aqui rever o assunto a
partir da abordagem interseccional de Nira Yuval­Davis (1997) e também pela reflexão
de Shirin M. Rai (2008) sobre o atravessamento entre gênero e desenvolvimento. As
duas autoras já foram citadas no início do trabalho, mas se mostra oportuna uma
retomada e aprofundamento das suas abordagens a fim de construir uma referência de
projeto de vida e projeto de nação mais robusta.
As duas têm em comum o reconhecimento de que pensar Estado, Nação e
Desenvolvimento não pode ser feito sem considerar os aspectos de gênero dentro dessa
estrutura e de sua lógica. Não se tratam de instituições neutras em nenhum sentido e
muito menos espontâneas, mas sim construídas e moldadas por interesses e pautadas
em contextos de violência e de opressão.
253

12 A AMAZÔNIA SEM FUTURO OU UM FUTURO SEM A AMAZÔNIA

Todo problema humano exige ser considerado a


partir do tempo.
Sendo ideal que o presente sempre sirva para
construir o futuro.
E esse futuro não é cósmico, é o do meu século,
do meu país, da minha existência.
De modo algum pretendo preparar o mundo que
me sucederá.
Pertenço irredutivelmente a minha época.
E é para ela que devo viver. O futuro deve ser
uma construção sustentável do homem existente.
Esta edificação se liga ao presente, na medida em
que coloco-o como algo a ser superado.
(Frantz Fanon)

Retornei a Belém e, já em agosto, a Amazônia tomou as manchetes nacionais e


internacionais. Grandes incêndios florestais relatados em Rondônia e no Acre, no
início do período de seca, chamaram a atenção de especialistas pela proporção e
incidência maior que em outros anos. A disputa narrativa se deu entre o governo
Bolsonaro e ativistas e especialistas, chegando ao momento em que o presidente do
INPE, responsável pelo monitoramento, foi exonerado, quando o governo questionou a
veracidade dos dados (EXAME, 2019).
Mais uma vez, redes sociais e aplicativos de mensagem foram espaços dessa
disputa de narrativas, com imagens, dados e outras informações corretas ou não sobre a
situação. Contudo, a duração das queimadas chamou a atenção de líderes de Estados,
que passaram a condenar as políticas de desmonte ambiental do governo e a ineficácia
na proteção da Amazônia.
Houve desestabilização especial entre o governo da França e do Brasil,
enquanto a reunião do G7 em Biarritz e o discurso do presidente francês, Emmanuel
Macron, deram destaque para a importância da região amazônica pela sua
biodiversidade e na manutenção do clima, assim como o fato da Guiana Francesa
também estar localizada na Amazônia. Macron apontou na sua fala que a “Amazônia é
nosso bem comum”, o que foi interpretado como um desrespeito à soberania brasileira
pelo governo de Bolsonaro junto a uma proposta francesa feita durante a reunião sobre
a possibilidade de atribuir um estatuto internacional à região caso “um Estado
soberano adotasse medidas concretas claramente contrárias ao interesse de todo o
planeta” (AFP, 2019).
254

E, mesmo com a liberação de 20 milhões de dólares pelos países do G7 para a


situação emergencial na Amazônia, o governo brasileiro declarou que a ajuda só seria
aceita com a condição de que aquele presidente pedisse desculpas por ofender o
brasileiro (AFP, 2019). A crise diplomática entre os presidentes ainda teve como
episódio declarações sexistas de Jair Bolsonaro sobre a esposa de Emmanuel Macron,
ao compará­la a sua própria esposa, Michelle Bolsonaro.
Ainda no mês de agosto, a intensidade das queimadas foi associada ao que
ficou conhecido como “Dia do Fogo”, registrado com o dia 10 de agosto 2019, no qual
produtores rurais teriam orquestrado a ação para chamar a atenção das autoridades em
busca de apoio e, no Pará, os municípios de Altamira, Novo Progresso e São Félix do
Xingu foram os que mais se destacaram nos focos de incêndio, localizados ao longo da
BR­163 que liga Cuiabá a Santarém (Machado, 2019).
Esses municípios também são notoriamente conhecidos pela produção pecuária
e de soja (ver Anexo K). E enquanto as investigações da Polícia Federal e do
Ministério Público apontavam para muitos incêndios terem sido criminosamente
provocados por pessoas ligadas a tais atividades, o presidente Jair Bolsonaro, ao ser
indagado sobre a situação, acusou ONGs de estarem provocando os incêndios
intencionalmente (Mazui, 2019), para enfraquecer seu governo.
Também houve espaço na marcha para a preocupação com a situação da
Amazônia e as políticas e decisões que impactam diretamente os povos da região e a
própria natureza. Como abordado em seções anteriores, mudanças nas diretrizes do
governo principalmente sobre as políticas ambientais, como o corte de orçamento,
fechamento de secretarias e esvaziamento de pastas que eram dedicadas à fiscalização
e ao combate a emergências como essas, teriam contribuído para a magnitude das
queimadas, que não tiveram fundos para respostas imediatas, alastrando­se por
semanas até setembro de forma assustadora e destruidora. Contudo, especialistas
apontaram para o protagonismo do desmatamento na contribuição direta e indireta para
o quadro de incêndios (AFP, 2019), contrariando narrativas de que o fenômeno seria
algo natural e típico do bioma.
E, ao fim do conturbado mês de agosto, servidores do ICMBio enviaram uma
carta com mais de 500 assinaturas ao presidente do órgão, o Coronel Homero de
Giorge Cerqueira, pedindo o fim da política de assédio e intimidação do governo,
principalmente por parte do alto escalão Ademais, os servidores demonstram
preocupação com os rumos da política ambiental na atual gestão, pedindo que as
255

nomeações e as decisões obedeçam a critérios técnicos e científicos, assim como, que


seja feito fortalecimento dos órgãos de controle, a não­interferência nas ações de
fiscalização, o melhoramento do aparato tecnológico de monitoramento e melhorias
nas condições de trabalho (Leitão, 2019).
Em novembro, quando pude retornar ao Tapajós e visitar Nice e sua família na
Flona, ao conversarmos sobre a relação com o órgão, que ela havia criticado ainda em
2017, ela relatou que naquela época não entendia muito bem o trabalho deles, mas que
a relação havia melhorado, que os servidores estavam trabalhando de forma correta e
prestativa, talvez com medo de um fechamento do órgão por conta do esvaziamento
que o governo tem feito com as políticas ambientais.
No mesmo período, marcado pela crise ambiental e na Amazônia, com a
marcha das mulheres indígenas, pressões internacionais e internas como dos servidores
do ICMBio, o presidente Jair Bolsonaro declarou que iria iniciar uma revisão das
Terras Indígenas já demarcadas, pois considerava que havia, a seu ver, “muita terra
para pouco índio” e que haveria algum interesse por trás dessa situação (Fórum, 2019).
A fala do presidente mais uma vez denota a noção de “vazio demográfico”
associado a uma relação eurocêntrica de parâmetro de ocupação humana pautada, por
um lado, na urbanização e, por outro, na lógica de mercado e do uso do território,
enquanto, na realidade, 22% das terras no Brasil são de latifúndio, enquanto 13% são
Terras Indígenas (Sparovek et al, 2019).
Apesar de agosto ter marcado o mês da crise sobre as queimadas na Amazônia,
em setembro, um novo episódio chamou também a atenção. No dia 14 de setembro, um
grande incêndio na APA Alter­do­Chão ganhou as manchetes. O fogo, que se deu em
uma área atrás do Lago Verde, de difícil acesso, modificou a paisagem típica da orla da
vila, sendo facilmente visível e, à noite, acendendo um grande clarão vermelho na
floresta banhada pelo rio Tapajós.
Ainda quando as primeiras imagens começaram a ser compartilhadas em redes
sociais, conhecidos e amigos meus que moram na vila me informaram do ocorrido e do
estado de preocupação e tristeza de muitos moradores. Além do batalhão dos
bombeiros da região, a Brigada de Alter teve forte atuação no combate ao fogo,
chegando a controlar os focos três dias depois de muito trabalho.
A região, conhecida como Capadócia, é localmente identificada como área de
especulação imobiliária e logo foram levantados indícios de possível participação de
milícias no incêndio criminoso, que teria como objetivo auxiliar no processo de venda
256

das terras posteriormente. As investigações realizadas pela polícia, contudo,


deflagraram em novembro de 2019, a prisão de brigadistas, apontando que eles teriam
provocado intencionalmente a queimada.
Em reportagem de Fábio Zuker, Kátia Brasil e Jackeline Lima (2019) para o
jornal Amazônia Real, o juiz Alexandre Rizzi decidiu manter a prisão dos brigadistas
mesmo que não houvesse juridicamente justificativa para tal, ao passo que o
magistrado declarou “não aceito pressão; se forem inocentes, eu inocento, se forem
condenados, eu os condeno”. O relatório da polícia embasava­se em vídeos e
mensagens de aplicativos que indicariam a premeditação do crime, mas logo o
Ministério Público do Pará declarou que nenhuma das linhas de investigação levava
aos brigadistas, mas sim ao envolvimento de policiais.
A situação rapidamente ganhou repercussão, com teses levantadas no mês
anterior pelo presidente Bolsonaro sendo reforçada pela prisão dos brigadistas,
apontando também ligações com a ONG Projeto Saúde e Alegria, que há décadas
desenvolve ações de acesso à saúde e a outros direitos básicos na região.
O ocorrido se deu alguns dias seguintes ao meu retorno à Belém, após 10 dias
que passei na região no mês de novembro. Como imaginei e confirmei depois
conversando com amigos, principalmente Cris, o clima na vila era de tensão, de
desconfiança com pessoas “de fora”; algumas semanas antes já havia ocorrido um
“bota fora hippie” em que pessoas da vila reclamaram da presença de hippies na praça
e que, com apoio da polícia, muitos saíram de Alter­do­Chão.
O novo episódio envolvendo os brigadistas contribuiu para o clima de paranóia
em torno de pessoas que chegam de outras regiões e atuam em projetos sociais, ONGs
e institutos ligados a questões ambientais. Por outro lado, mais de 200 entidades
manifestaram apoio ao Projeto Saúde e Alegria (2019) enquanto muitos outros também
defenderam a inocência dos brigadistas e pediram um processo justo e transparente em
relação às prisões.
Depois de alguns dias os brigadistas foram liberados para responder em
liberdade. Recebi relatos sobre o clima de medo e insegurança de muitas pessoas na
vila, o que contribuiu para muitas se mudarem, por medo de abordagens policiais que
vinham ocorrendo arbitrariamente, com intuito de intimidação. Em dezembro, os
brigadistas foram indiciados, mesmo depois da revelação de um áudio de setembro em
que o prefeito de Santarém apontava para o governador do Pará, Helder Barbalho, que
o que se tinha sobre a situação era do envolvimento de um policial na área do incêndio.
257

Apesar do ocorrido e de detalhes do inquérito e do trâmite, que não cabem aqui


ao nosso objetivo, a situação intensificou um clima de hostilidade na vila, aumentando
e surgindo rumores de desconfiança sobre a presença de pesquisadores e pessoas que
atuam em projetos como o Saúde e Alegria e outros.
Entre o incêndio e a prisão dos brigadistas, em outubro, ocorreu outro evento
que impactou as dinâmicas da região: o Sínodo da Amazônia. O evento da Igreja
Católica que desde o início do ano causava apreensão no governo brasileiro, foi
realizado em outubro de 2019, no Vaticano. O encontro de bispos teve como objetivo
pensar a Amazônia e o papel da Igreja. O evento já vinha sendo organizado desde
2017, com o tema central a situação ambiental e social na região.
Como abordado em diversas seções do estudo, a presença da Igreja Católica
tem sido historicamente central para a região, desde o processo da colonização,
passando pelo contexto de formação de movimentos sociais e lutas, como no âmbito da
Teologia da Libertação. O atual papa, Papa Francisco, já fez outras declarações
preocupado com a situação ecológica do planeta e o futuro da humanidade, e, sobre a
Amazônia. Sua fala perpassou essa preocupação, ao apontar a situação dos povos
amazônidas. O Sínodo ocorreu no contexto de avanço de igrejas evangélicas na
Amazônia.
O documento final que foi aprovado propõe uma conversão com diferentes
significados: integral, pastoral, cultural, ecológica e sinodal. Assim como, a Igreja com
rosto indígena, migrante, jovem, um chamado à conversão integral, um diálogo
ecumênico, a importância dos valores culturais dos povos amazônicos, a dimensão
socioambiental da evangelização, uma Igreja ministerial e novos ministérios, além da
presença e vez da mulher e outras.
O Documento dedica amplo espaço à presença e à hora das mulheres.
Como sugere a sabedoria dos povos ancestrais, a mãe terra tem um
rosto feminino e no mundo indígena as mulheres são “uma presença
viva e responsável na promoção humana”. O Sínodo pede que a voz
das mulheres seja ouvida, que sejam consultadas, participem de
modo mais incisivo na tomada de decisões, contribuam para a
sinodalidade eclesial, assumam com maior força sua liderança dentro
da Igreja, nos conselhos pastorais ou “também nas instâncias de
governo” (Gonzaga, 2019)

As diretrizes sobre a situação das mulheres se localizam no cenário tanto de


fortalecimento de movimentos sociais de mulheres na região, como a própria expansão
de igrejas evangélicas que já reconhecem de maneira mais formal a participação de
mulheres na hierarquia. Além disso, como citado no caso da missa/liturgia de que
258

participei na Coroca, é muito comum que nas comunidades as mulheres, como Luza,
desempenhem papel central, o que foi reconhecido pela necessidade de se pensar o
diaconato permanente para as mulheres.
Outros pontos presentes no documento e que se formaram a partir de demandas
locais foram adaptações da liturgia às culturas amazônicas e visões de mundo, a
criação de um fundo para financiar o “custo da Amazônia” para missionários, assim
como uma Universidade Católica Amazônica para incentivar pesquisas sobre
enculturação e diálogo intercultural com a Sagrada Escritura (Gonzaga, 2019).
Foi também elencada a necessidade da renovação da juventude nos
movimentos. No mês seguinte já foi possível notar seu efeito na região, pela
organização da I Romaria do Bem Viver no PAE Lago Grande, realizada nos dias 16 e
17 de novembro de 2019, com o tema “Defender a Mãe Terra e Com Nosso Modo de
Vida Resistir”.
Apesar de estar na região na época, por intempéries relacionadas à travessia do
rio, não consegui me deslocar para participar da romaria. Mas, fui convidada por
Gildson, que estava envolvido na organização, iniciativa da Pastoral da Juventude
Diocesana da região 8 (Arapixuna, Arapiuns e Lago Grande) em parceria com a
FASE, a Federação das Associações de Moradores e Comunidades do Assentamento
Agroextrativista Gleba do Lago Grande (FEAGLE), o Sindicato dos Trabalhadores
Rurais e Agricultores Familiares de Santarém (STTR) Grupo Mãe Terra.
Um dos pontos centrais da romaria é a discussão dos problemas que tangem o
território como a mineração e incentivar o protagonismo juvenil e a agroecologia,
assim como a organização da luta em defesa do território. Para tanto, o primeiro dia da
programação visou promover palestras e o debate da situação da mineração na região,
enquanto durante a noite foi feita a romaria saindo da Comunidade de Cuipiranga,
referência da resistência cabana36, passando pelas comunidades até chegar à
Comunidade de Murui, no outro dia, onde foi realizada uma feira de produção da
FEAGLE. A caminhada feita foi de 30 km.
Uma das filhas de Luza, Sandrielem, é uma das jovens à frente da iniciativa e
deu uma entrevista sobre a importância da romaria:
[Sandrielem] Espera que surjam muitos frutos desta construção,
especialmente a integração dos jovens à militância. Ela deseja ainda

36
Como citado anteriormente, a história da Cabanagem tem uma forte marca nas comunidades do rio
Arapiuns, onde Cuipiranga inclusive tem seu nome como alusão à areia vermelha que teria assim ficado
após o massacre ocorrido pelas tropas da Regência e do exército britânico como repressão aos cabanos.
259

que as pessoas entendam a importância da resistência contra os males


da mineração, por exemplo. Segundo a jovem, “a população da
região que está lutando e resistindo às mineradoras, às madeireiras
e aos compradores de terras do agronegócio que ameaçam o nosso
bem viver, a nossa cultura e desrespeitam as nossas diversidades
enquanto população tradicional”. (Garcia, 2019)

Ainda em Alter­do­Chão e impedida de ir por condições logísticas e da


incapacidade de uma travessia segura pelo Tapajós, Gildson me atualizou por
mensagem com diversas fotos e um relato emocionado sobre o sucesso da romaria e o
engajamento das comunidades. O panorama que vivenciei em julho, com os relatos de
desconfiança e enfraquecimento de laços comunitários, tinham agora uma resposta
para reorganizar a luta em defesa do território; com certeza, haverá ainda muitos frutos
nos próximos tempos e em outros desafios.
No ínterim do Sínodo e da romaria no PAE Lago Grande, o presidente
Bolsonaro continuou dando declarações sobre suas intenções acerca da Amazônia que
tiveram grande repercussão, ao reafirmar, durante visita ao Japão que, a região "tem
que ser explorada, não abro mão disso" (Correio Braziliense, 2019), reforçando que a
exploração será de forma racional.
Igualmente, em fala direcionada a garimpeiros afirmou que “o interesse na
Amazônia não é no índio e nem na porra da árvore”, mas que as críticas às políticas
do governo teriam interesse, na verdade, na exploração do minério, indicando também
que não realizaria as demarcações pois a Amazônia não deveria se tornar um “parque
ecológico para o mundo” (Uribe, 2019), afirmando que poderia recorrer à militarização
da região para garantir a mineração.
As recorrentes declarações mantiveram o mesmo conteúdo e lógica dos últimos
meses, seguidas também de uma subida na agressividade do tom. Em novembro e
dezembro continuaram; assim, quando o líder do poder executivo publicou uma série
de tweets sobre o interesse de autorizar a mineração em Terras Indígenas, afirmando
que “as riquezas minerais não estão onde queremos, mas onde a natureza as colocou:
no norte do Brasil, onde ‘curiosamente’ governos anteriores demarcaram enormes
áreas indígenas” (Bolsonaro, 2019).
Contudo, creio que certamente o presidente deliberadamente esquece,
desconhece ou ignora o contexto de colonização do país; de modo que seu
comportamento se coaduna claramente com ações do neoliberalismo com
manifestações explícitas contra uma forma de governo mais participativa. A deliberada
ignorância demonstrada pelo presidente obscurece o fato de a concentração tanto de
260

recursos minerais atualmente e também de TIs demarcadas na região Norte e na


Amazônia estar diretamente ligado ao processo desordenado e tardio de ocupação em
relação a outras regiões do país, onde o desenvolvimentismo já exauriu muitas jazidas
ou já se instalou em todas as áreas de interesse. Da mesma forma que como se deu tal
colonização, da forma que já foi defendido aqui anteriormente, buscou invisibilizar a
existência de povos indígenas nas demais regiões brasileiras.
Além do discurso na ONU em setembro, o mesmo criticou os discursos que
mencionavam a Amazônia como patrimônio da humanidade, defendendo a soberania
brasileira. Em dezembro, após a adolescente sueca e ativista Greta Thunberg ter feito
declarações denunciando a situação ambiental no Brasil e os últimos assassinatos de
indígenas envolvidos na proteção da floresta, como Raimundo e Firmino Guajajara, no
Maranhão, o presidente reagiu à jovem chamando­a de “pirralha” e irritando­se com o
fato de haver espaço para sua fala na mídia.
A polêmica envolvendo o presidente de 64 anos e a ativista de 16 anos, chamou
atenção para o aumento da violência no campo nos últimos dois anos no Brasil.
Enquanto em 2018 houve um aumento de 20% nos assassinatos de indígenas (CIMI,
2018), em 2019, a Comissão Pastoral da Terra (Passos, 2019) apontou que foi o ano
que teve mais casos de homicídios contra a população, em comparação a pelo menos
aos últimos 11 anos.
Considerando o balanço do ano de 2019 e o protagonismo da Amazônia no
primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro é possível extrair os apontamentos feitos
nas seções anteriores sobre as diversas formas como a colonialidade opera no
imaginário social, nos corpos e nos territórios, pelas políticas e pelas noções de projeto
de nação que carrega. Não à toa, o ano foi marcado por análises catastróficas e
pessimistas sobre a região.
Um dos ímpetos do início do meu estudo, a ideia de futuro, foi um ponto
central em muitas destas análises. O cenário pareceu propício a exercitar uma
imaginação sobre os possíveis desdobramentos da mudança brusca nas políticas para a
Amazônia. Sendo uma das primeiras análises que se uniu às polêmicas e cenário de
crise, a do professor de Relações Internacionais da Universidade de Harvard, o
estadunidense Stephen M. Walt (2019) na renomada revista da área, Foreign Affairs.
O artigo assinado pelo professor, intitulado Who Will Save The Amazon (and
How)? publicado em 5 de agosto de 2019, no início da crise sobre desmatamento e
queimadas, afirmava em tom profético que seria apenas uma questão de tempo que
261

grandes potências tentassem impedir as mudanças climáticas por qualquer meio


necessário, inclusive por uma possível intervenção da comunidade internacional, quem
sabe até mesmo com uso da força. Apesar do texto apenas levantar conjecturas sobre o
tema, afirmando que, apesar de ser um assunto que merecia um acompanhamento e
análises mais específicas, ele considera que não seria o caso de descartar a
possibilidade, pois
In a world of sovereign states, each is going to do what it must to
protect its interests. If the actions of some states are imperiling the
future of all the rest, the possibility of serious confrontations and
possibly serious conflict is going to increase. That doesn’t make the
use of force inevitable, but more sustained, energetic, and
imaginative efforts will be needed to prevent it. (Walt, 2019)

A análise do professor, contudo, foi recebida por muitos brasileiros e


principalmente pelo governo como uma ameaça declarada, o que, em sentido
imaginário, reforçou o temor pela internacionalização da Amazônia, sendo utilizado
como uma prova cabal das intenções e ameaças estrangeiras. Podemos insinuar a partir
deste caso e também sobre declarações do presidente sobre o uso das Forças Armadas
na região e também de outros militares sobre o assunto, que no último ano a região
passou por um processo de “securitização”37.
A jornalista brasileira Eliane Brum abordou em sua análise, no mês de agosto
também, facetas das dinâmicas atuais e, por que o cenário contemporâneo seria um
agravamento em relação a governos anteriores, também danosos, ao destacar a própria
atuação do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e como suas decisões têm
contribuído diretamente para o enfraquecimento da fiscalização ambiental (Brum,
2019).
O balanço feito por Brum mostra como a Amazônia é o centro do mundo e suas
dinâmicas, assim como, no atual governo o poder de influência de alguns setores
interessados na região alcançaram outro nível de profundidade com a atuação de
Ricardo Salles, sendo ele “o office-boy do agronegócio predatório, este que é
responsável pela maioria das mortes no campo e na floresta e é também a maior força
de destruição do Brasil”, ela aponta que “não é que hoje os ruralistas estão no Governo.

37
O conceito é referente ao cunhado pela Escola de Copenhagen, dos Estudos de Segurança
Internacional. Quando um tema é politizado, ou seja, por uma decisão do Estado, há o estabelecimento
de alguma política em prol do enfrentamento de determinada problemática, enquanto que um tema
securitizado é aquele que, invariavelmente, possui uma ameaça existencial, requer medidas e ações além
do procedimento usual (Buzan, Waever, De Wilde, 1998, p. 23). Deste modo, a securitização pode ser
interpretada como uma versão mais extrema de politização.
262

No governo eles estiveram desde sempre, formalmente ou não. Hoje eles são o
Governo” (Brum, 2019).
Ela analisa também como, apesar de o governo ter pontos de disputa entre
aliados e membros do seu governo em algumas esferas, o projeto político que se volta
para a Amazônia parece ser consenso: a abertura das terras até então com alguma
restrição de forma deliberada para a entrada da mineração, da pecuária e da soja.
E, enquanto se tem um projeto que marcha rapidamente e predatoriamente
sobre a região, Eliane Brum conclama a pensarmos sobre formas de se relacionar com
a floresta e com a Amazônia no imaginário nacional e estas raízes com o processo de
colonização:
O fato de a Amazônia ainda ser vista como um longe e também — ou
principalmente — como uma periferia dá a dimensão da estupidez da
cultura ocidental branca, de matriz primeiro europeia e depois norte­
americana, essa estupidez que molda e dá forma às elites políticas e
econômicas do mundo e também do Brasil. E, em parte, também às
elites intelectuais do Brasil e do planeta. Acreditar que a Amazônia é
longe e que a Amazônia é periferia, quando qualquer possibilidade de
controle do aquecimento global só é possível com a floresta viva, é
uma ignorância de proporções continentais. A floresta é o perto mais
perto que todos nós aqui temos. E o fato de muitos de nós nos
sentirmos longe quando aqui estamos só mostra o quanto o nosso
olhar está contaminado, formatado e distorcido. Colonizado. (id.)

E, a forma que se olha e pensa a região é enraizada a ponto de afetar


estruturalmente e enfraquecendo ou, melhor, nunca tendo base suficiente, para a
garantia de direitos humanos básicos, como o acesso à justiça, à saúde, à educação e
outros. Para servidores públicos, por exemplo, é uma região vista como um castigo,
Brum destaca como o trabalho crucial para a região que é desempenhado por
procuradores e defensores públicos é afetada por essa dinâmica

A Amazônia é o epicentro dos conflitos, mas, para fiscalizar o Estado


e defender os direitos dos mais desamparados, as instituições
mandam os sem nenhuma experiência. Alguns deles — não todos —
interpretam que estão sendo enviados a uma região amazônica como
um teste ou mesmo um castigo, um calvário que precisam passar
antes de ter um posto “decente”. Parte deles — não todos — não vê a
hora de ter o que é chamado de “remoção” e deixar essa bad trip para
trás. E não é culpa deles, ou não é só culpa deles, porque essa é a
lógica das instituições, este é o olhar para a Amazônia. (id.)

O que a jornalista aponta reforça uma das imagens da Amazônia como inferno
verde, lugar para onde não se quer ou deseja ir. E, no atual governo, as nomeações têm
sido ainda mais pautadas em táticas de securitização, relacionando a atuação histórica
263

das Forças Armadas na Amazônia como uma justificativa para tal. Por outro lado, a já
chamada falsa noção de “ausência do Estado” não é uma consequência dessa visão,
talvez, possamos afirmar que haja uma produção de subcidadania dos amazônidas em
geral, mas o Estado está presente, muitas vezes justamente na violação de direitos.
Eu recordo algumas conversas que tive com Luza, ainda em 2017, e como ela
comentou comigo que gostaria que o acesso à saúde fosse melhor para as comunidades
ali, mas que percebia que muitas pessoas de fora achavam que o povo quer que o
Estado faça tudo por eles. Mas não, o que se quer do Estado é apenas o direito a fazer
as coisas por si só, sem que seja necessária a autorização ou intervenção do Estado em
assuntos que há gestão comunitária.
Essa fala me fez pensar muito sobre um recorrente pensamento de classes
médias e classes altas no país em relação às políticas públicas, que tende a tratar a
população que reclama seus direitos como “acomodados” ou que querem um “Estado­
pai­provedor”, reproduzindo uma lógica moderna/colonial que tem também na
ideologia liberal grande parte de seus argumentos atualizados pelo neoliberalismo.
A análise de Eliane Brum (2019) é profunda e vai além da ideia de a
“Amazônia é nossa” ou que devemos “protegê­la”, tom recorrente e simplista em
situações que viralizam sobre a região. Ela aponta como as próprias dinâmicas sociais e
políticas que muitos de nós, em espaços ditos de intelectualidade e produção de
conhecimento, majoritariamente brancos, reproduzimos dinâmicas de colonização, o
que aqui também já foi apontado anteriormente. O dilema com o qual se depara e se
pergunta: quais os interesses que nos fazem ter interesse em tal região e seus povos?
Ela inverte a relação de se pensar o que se pode fazer ali para ajudar um povo,
um típico pensamento presente na branquitude enquanto “herói salvador”, que mais
uma vez dialoga com o que Lalah (2019) apontou em sua entrevista comigo, sobre
pessoas que chegam às aldeias e já trazem inúmeras propostas de como melhorar,
ajudar, salvar aquele povo, sem nem sequer reconhecer e entender que aquele povo e
tantos outros se salvam e resistem há séculos.
Aqui, parto da concepção de Bento (2002), que entende a branquitude como um
“lugar de privilégio, racial, econômico e político”, de modo que a idéia de branquitude
refere­se a uma posicionalidade social em torno da identidade racial branca, a qual é
tida como “invisível”, pois se toma como referência do universal. De forma que
pessoas brancas não costumam se identificarem como pessoas racializadas, mas Bento
e outras referências (Cardoso, 2010; Piza, 2002, entre outros) têm apontado que essa
264

“invisibilidade” é uma de se esconder, já que há total consciência em atitudes e


comportamentos de que a identidade racial branca possui privilégios em diversos
aspectos.
Como citado em alguns momentos oportunos previamente, a produção das
subjetividades se dá por todas as pessoas independentemente da “posição social”, logo,
brancos também, obviamente, epidermizam tais sentidos, para usar o termo de Fanon.
A diferença é que ser branco em sociedades como o Brasil envolve posicionalidades de
superioridade e de reprodução, por exemplo, do “complexo do salvador branco” ou o
“fardo do homem branco”. Formas de silenciamento e agenciamento, que priorizam o
próprio protagonismo a partir de uma autoestima cultivada pelo racismo, o que Bento
(2002) chama a atenção para como atuam como pactos narcísicos visando a
manutenção do privilégio racial branco.
Percebo que o imaginário sobre a Amazônia envolve também aspectos de
racialização da subjetividade amazônida enquanto “não­branca”, sendo
majoritariamente identificada como um lugar indígena, ou “étnico”, mas que, de todo
modo, perpassa uma forma de pensar racializada enquanto “inferior” a outras regiões.
Acredito que é possível traçar uma relação entre as formas de posicionamento muitas
vezes paternalistas e condescendentes de indivíduos a partir desses lugares de
privilégios não apenas sobre a Amazônia e sua população, mas, que também está
presente: na relação com comunidades urbanas como favelas e bairros periféricos; na
idéia de urbano­rural ou “interior”; mostrando também uma posicionalidade de classe
atrelada a lugares como cidades, bairros e regiões inteiras. Outro exemplo de
posicionamento similar foi apresentado no âmbito da culpabilização da população
nordestina na relação com o voto em eleições presidenciais também.
Brum (2019) destaca que quem precisa de paciência são os povos amazônidas
que têm ainda que ensinar tanto a quem chega de fora e pouco conhece da realidade do
lugar. Assim como, na Amazônia, diferente de outros lugares, pois “aqui, no centro do
mundo, a relação com a morte da floresta e dos povos da floresta, assim como com a
morte dos agricultores familiares, é direta. É inescapável. E só podemos viver
carregando — conscientemente — tanto nossas contradições quanto nossas ruínas”
(id.).
Retomando do Professor Walt citado anteriormente, para além da reação ao
artigo em si, é importante frisar como os seus apontamentos se localizam a partir de
uma disciplina – as Relações Internacionais – fundada sob projetos coloniais e
265

imperalistas com noções ocidente­centradas. Anna M. Agathangelou e Heather M.


Turcotte (2010) situam na discussão sobre a segregação geopolítica como basilar da
área. De modo que as relações internacionais se imaginam, produzem­se e
reproduzem­se em práticas, categorias e conhecimentos sob a égide de tal lógica, de
modo a moldarem visões de mundo, tomando a idéia de “Amazônia”, Norte e Sul,
Europa, América, África, como espaçso naturais e dados, assim como o lugar ocupado
por tais lugares na política global.
Por trás da análise política reside, assim, ideias como soberania, poder,
sobrevivência o Estado, hegemonia que atuam de forma a ser um embasamento de
projeto neo­imperial e colonial, de agenciamento, silenciamento e violência (id.). O
presente capítulo propõe, assim, abordar como as reações ao atual momento sobre o
governo Bolsonaro e a própria atuação do governo em si em prol de um projeto de
nação estão embebidos por tais dinâmicas.
Ao tratarem da idéia de segregação geopolítica Agathangelou e Ling (2009)
possibilitam que pensemos como a produção de subjetividades de espaços está
atravessada pela modernidade/colonialidade. E, apesar da tentativa de fixação de
valores e concepções sobre os espaços e as subjetividades, a mobilidade de corpos,
pessoas e conhecimento perturba essa imobilidade geográfica percebida (Agathangelou
e Turcotte, 2010), quando pensamos, por exemplo, na diversidade de etnias pelo Brasil
para além da Amazônia que continuam resistindo e combatendo o projeto neocolonial
de nação. Apesar dos conceitos e categorias pretenderem uma fixação de corpos, a
realidade continuamente desafia as linhas imaginárias.
Faço aqui uma ponte com o argumento de Chandra Mohanty (2003) que
defende que começar uma análise de um ponto de vista de uma sociedade privilegiada
limita a percepção das relações de poder e, para tanto, começar a partir das vidas e
interesses das comunidades de mulheres mais marginalizadas é possível obter um
ponto de vista mais inclusivo do sistema de poder. Considero que este tem sido meu
intento nos últimos anos e que, a partir da minha vivência, ao compartilhar e ouvir
tantas percepções sobre as dinâmicas de poder na Amazônia. Por mais que muitas
dessas dinâmicas sempre estivessem nítidas para mim, outras tantas não eram
percebidas em decorrência espaços e contextos de privilégio que usufrui em minha
vida, assim como toda a subjetividade atrelada à branquitude da qual me localizo38.

38
Não busco aqui me justificar, mas sim identificar a origem de posicionamentos e perspectivas minhas.
Muito menos pretendo um conformismo e acomodamento a tal condição e considerar como algo inerente
266

E, Mohanty (2003) argumenta ainda que mulheres e meninas de todas as raças


(all colors, no original) que vivem em nações neocoloniais e que são pobres têm em
suas vidas a incidência das dinâmicas do capitalismo de modo que atentar­se à vida
dessas sujeitas por meio de um materialismo histórico e uma abordagem generificada e
racializada permite adotar um paradigma mais inclusivo, que dessa visão
particularizada possa­se chegar a uma compreensão mais expansiva de justiça social.
Para ela é nos corpos e vidas das mulheres do chamado “Terceiro Mundo” ou
“Sul Global” que o capitalismo global escreve seu roteiro e, a partir dessas
experiências se torna possível desmistificar o capitalismo como um sistema sexista e
racista que é debilitante, ao visualizar as resistências anticapitalistas que estão
presentes nessas lutas. Não significa dizer que não existam efeitos a pessoas
identificadas como homens, mas, ao partirmos da colonialidade de gênero como uma
premissa do processo de colonização e estruturação de sociedades, como é o caso do
Brasil, pensar um projeto de nação e desenvolvimento no cenário atual a partir das
experiências e subjetividades de mulheres, permite uma perspectiva mais completa
sobre as relações de poder.
Não à toa que as maiores manifestações contra a candidatura de Bolsonaro
foram incentivadas por páginas e movimentos de “Mulheres contra Bolsonaro”, assim
como, tenho demonstrado durante as últimas seções, que o protagonismo de articulação
de resistência e demandas têm sido de mulheres, principalmente indígenas, nos últimos
anos frente ao cenário atual. Do mesmo modo, articulações críticas também foram
promovidas por movimentos negros em denúncias feitas à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH) (Veloso, 2019; Freire, 2020) e em associação a outros
grupos como de defensores de direitos humanos (SDDH, 2020). Tais exemplos
sugerem como grupos que são diretamente afetados por estas políticas identificam a
origem da problemática no racismo, no patriarcado e no capitalismo que se
materializam por meio da violência na sociedade e seletivamente contra alguns.
Em setembro de 2019, o renomado jornalista e sociólogo santareno Lúcio
Flávio Pinto, forneceu uma entrevista para Cristina Serra (2019), do Amazônia Real,
apresentando sua visão sobre os últimos acontecimentos para a região amazônica, à
qual dedicou grande parte da sua vida em reportagens e pesquisas. A chamada da

e imutável. Busco ter em mente e demarcar sempre tais contextos para evidenciar de que forma
privilégios afetam minha própria percepção do tema e do andamento da pesquisa e como me relaciono
com tudo isso.
267

entrevista já traz em si o tom que marcou a percepção de muitos especialistas sobre a


região: “Não há futuro para a Amazônia”.
Apesar de ele afirmar categoricamente que, com referência às decisões do atual
governo e as tendências de desmatamento chegando de forma intensa no Amazonas,
principalmente, ele considera uma última utopia a possibilidade de tentar um projeto de
que alie o conhecimento científico aos conhecimentos tradicionais sobre a floresta de
forma a tentar tirar da frente da expansão na região o posseiro, o madeireiro, o
fazendeiro e o minerador, colocando os cientistas (id.). Que haja um reconhecimento e
valorização da floresta e dos povos que vivem na região pelos seus conhecimentos e
sabedorias, quem sabe, como uma forma de conciliação, ainda assim, creio que a
realidade manteria a lógica moderna/colonial.
Neste sentido, ele aponta como há uma concentração de verba para ciência e
tecnologia em outras regiões e como estes e outros elementos dessas desigualdades
regionais têm como origem a história da colonização no Brasil, já que “A democracia
não chegou na Amazônia. É a região brasileira tardia, a última que se incorporou ao
país, e vista de fora para dentro“, afirma o sociólogo e jornalista em entrevista (Pinto,
2019). Lúcio Flávio Pinto aborda a relação que traçamos em seções anteriores sobre a
colonialidade e o próprio colonialismo interno.
Ele indica como aqui já abordado, o projeto de políticas de cunho
desenvolvimentista na região arrasta­se desde muito tempo, adotando ainda como base,
principalmente, as políticas do período da ditadura civil­militar:
Não vejo transformação, porque tudo que o governo federal faz se
baseia no maior projeto feito sobre a Amazônia, o Plano Quinquenal
(1975­79) do João Paulo dos Reis Veloso, no governo Geisel. O
plano diz que o Brasil se divide em três: o eixo dominante Sul­
Sudeste; a área de expansão, o Nordeste e o Centro Oeste; e a área de
fronteira, que tem a missão de gerar dólares. Cobri o encontro do
então ministro Delfim Neto com o ministro Saburo Okita, um dos
responsáveis pelo “Milagre Japonês” [recuperação econômica do
Japão depois da Segunda Guerra Mundial]. Okita perguntou a taxa de
poupança do Brasil e, depois de muita insistência, o Delfim disse que
era um décimo da dos japoneses. “Mas nós temos a Amazônia”,
completou. Para isso que é a Amazônia: suprir a baixa poupança. Os
grandes projetos foram concebidos para gerar dólares e executados
com muita competência. Se devastou a Amazônia, se criou problema
com os índios, esse é o custo. (Pinto, 2019)

A ideia da Amazônia como uma poupança, uma garantia futura reforça o que se
tem argumentado sobre a região ser tratada historicamente como receptáculo das
expectativas de desenvolvimento do “Brasil­país­do­futuro”. Pinto (2019) discorre
268

também sobre como mesmo ao fim da ditadura, os projetos pensados para a região
mantiveram a lógica de desenvolvimentismo predatório e securitização, mesmo na
redemocratização:
Depois, vieram Figueiredo, Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula (que
elogiou o planejamento do Geisel) e Dilma. Ninguém mudou e o
símbolo dessa continuidade foi o primeiro ato do Sarney, o projeto
Calha Norte, a renovação da doutrina de segurança nacional na
Amazônia, que orienta tudo que acontece na região. A democracia
não chegou na Amazônia. Meu grande esforço é tentar pôr na agenda
do cidadão da Amazônia os fatos que estão acontecendo e fazer com
que o acontecimento seja percebido na hora que acontece e não daqui
a 20, 50 anos. Esse descompasso de tempo entre a percepção do fato
e a ocorrência do fato é a razão de uma região e um país tão ricos
serem colonizados. (id.)

Por fim, ele ressalta o que buscou fazer com o seu trabalho no Jornal Pessoal
nas últimas décadas e como o acesso à informação e aos fatos e de forma rápida é uma
ferramenta indispensável para que se possa romper o ciclo nocivo de desmandos e
destruição sobre a região. Quem sabe, assim, possibilitando condições para a superação
do estado de subcidadania relegada à maioria dos amazônidas. O que, pode ser
especialmente desafiador na atualidade, como presenciamos nas últimas eleições é a
disseminação de práticas como fake news enquanto estratégia política que não é nova,
mas que com aplicativos de mensagem instantâneos e redes sociais, têm tido alcance e
poucas ferramentas de limitações, como mostrou um inoperante e lento TRE nas
últimas eleições.
Além disso, Lúcio Flávio Pinto dá ênfase ao que abordamos anteriormente com
as abordagens decoloniais e da esquizoanálise, ao pensarmos como espectros políticos
em relação direta à Amazônia e noções de projeto de nação, mostraram­se produto do
mesmo sistema moderno/colonial, já que
A esquerda é tão nociva quanto a direita, como se vê no caso Belo
Monte projeto original é da época da ditadura, igualzinho ao de
Tucuruí. A esquerda combateu o projeto original, com alguns
argumentos corretos, mas sem responsabilidade prática. “Sou contra,
mas não tenho alternativa”. A esquerda não pensa alternativas porque
não conhece a Amazônia. Seja a favor ou contra o que está
acontecendo, as pessoas não conhecem. Para conhecer a Amazônia é
preciso muito tempo e muita dedicação. Muito “Meninos, eu vi”.

Os eixos de colonialidade são notáveis no que se desenha no Brasil, tanto a


falta de conhecimento sobre a região, mas também a dinâmica de produção de
conhecimento sobre a mesma, publicações feitas na região têm menos circulação e
impacto, por exemplo, de estudos publicados no centro político econômico e
269

acadêmico do país, como Brasília e sudeste. Ainda que haja grande desconhecimento, a
própria hierarquização do conhecimento, parece legitimar mais homens, brancos, ricos
e com alta escolaridade de outras regiões a tecer análises e realizar diagnósticos sobre a
região que a própria população local ou pessoas que vivem o dia­a­dia aqui.
Recordo um evento de que participei em São Paulo de Feminismo e Relações
Internacionais em que fui informada sobre um grupo de professoras que estava
organizando um dossiê sobre gênero na Amazônia. Nenhuma delas era da região ou já
tinha vindo até aqui, assim como, suas pesquisas também não eram de longa data
voltadas para o tema. Em outra situação, após a minha apresentação e de outras pessoas
que viajaram comigo, recebi reações de “surpresa ao saber que havia gente assim
produzindo conhecimento de qualidade lá”, a jovem estudante de São Paulo,
genuinamente me falou, sem imaginar que haveria qualquer tipo de ofensa, ao
complementar que costuma esquecer que tem gente na região produzindo pesquisas.
O cenário, claro, é aqui contextualizado a partir de algumas experiências
isoladas e pessoais, em um espaço ainda de muito restrito acesso e pouca
democratização, mas acho serem simbólicas para o que tratamos em relação à
produção de subjetividades no Brasil, em diálogo com a interseccionalidade e a
decolonialidade.
Como, principalmente, a visão produzida sobre a região produz subjetividades
de um lado, de forma a inferiorizar a intelectualidade, infantilizar, culpabilizar, de
forma que seja necessária uma adaptação ao modelo predominante como validação da
própria existência e forma de pensar da pessoa. Enquanto, em outros espaços e com
outros marcadores sociais, tende­se a ter mais acesso à validação da forma de ser,
vestir, pensar. Não significa dizer e simplificar que regionalmente as subjetividades
sejam homogeneamente assim produzidas, mas, dependendo de cada contexto pessoal
diversas formas de opressão e deslegitimação podem se atravessar.
O colonialismo interno e a reprodução de valores da lógica moderno/colonial
está enraizada estruturalmente nas instituições, ao passo que, o processo de produção
de subjetividades visa a adequação de corpos e vidas a tais objetivos, sendo possível
reproduzirmos falas, discursos e termos em nossas decisões diversos destes elementos.
Esta análise que compartilho é oriunda da abordagem feita num evento39 de que
participei em São Paulo e contou com uma mesa com lideranças indígenas que

39
A Conferência Internacional da IFJP, revista feminista de política internacional, foi realizada em São
Paulo no mês de outubro entre os dias 17 e 19.
270

contaram das suas experiências no âmbito acadêmico e o contexto de violência e luta


contemporâneo na América Latina. A mesa foi composta por: Linda Terena (Lindomar
Lili Sebastião), do povo Terena, no Mato Grosso do Sul, que é professora, doutoranda
e mestra pela PUC­SP; Valdelice Verón, do povo Kaiowá, que é liderança e também
mestra em sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais pela UNB; e Julieta
Paredes, já citada anteriormente, a ativista, poeta, escritora Aymara boliviana.
As três comentaram sobre suas experiências pessoais no ambiente acadêmico e
como as instituições de ensino não estão preparadas para a diversidade de
conhecimentos dos povos tradicionais, como o funcionamento e a organização são
processos violentos que tentam apagar as próprias subjetividades das pessoas e como,
para elas, ficou muito nítido o quanto o processo é ainda mais violento e difícil.
Linda Terena (2019)40 deu ênfase à luta emergencial dos povos indígenas e da
definição da pauta geral pelo território, por ser ele onde se dá a “vivência, a vida, a
sobrevivência, o alimento espiritual e físico de um povo” (id.). Para ela, o processo de
entrada na universidade se deu basicamente para tentar encontrar um caminho para
dialogar com o homem branco, na luta pelos direitos, sendo, desta forma, a educação
nos moldes formais das instituições uma forma de ensinar a transitar no meio dos
purutuie (o homem não­indígena, não­Terena, branco). Enquanto os povos originários
continuam vivendo em um Estado segregador na sua origem, a educação tem se
mostrado uma ferramenta para conhecer os caminhos e direitos, como forma de luta,
dentro da própria lógica dos que criaram esse Estado.
Valdelice Veron (2019)41 compartilha conosco a história do seu povo e de sua
família, entre lembranças de brincadeiras da infância, mas também de violências e
mortes na retomada do território em embates com posseiros, fazendeiros e outros que
se deflagraram e ainda se dão em diversas Terras Indígenas. Ela comenta que o seu
sonho era “minha casa, meu forro, minha roça, minha rede, esperar meu marido voltar
da caça” (Veron, 2019), que ela não queria estudar, que todas as vezes que havia visto
o papel algo ruim acontecia, às vezes eram ordens de despejo.
Ela diz que, contudo, seu pai, Marcos Veron, liderança que acabou sendo
assassinado em 2003, sempre disse que ela precisava estudar, que o povo precisava que

40
Fala de Linda Terena, na Conferência Internacional da IFJP, PUC­SP, São Paulo 18 de outubro de
2019.
41
Fala de Valdelice Veron, na Conferência Internacional da IFJP, PUC­SP, São Paulo 18 de outubro de
2019.
271

ela estudasse e aprendesse a falar a língua dos purutuie, já que eles só consideram
válido o que está no papel. Ela diz que a morte do seu pai impactou muito sua vida, que
ali mataram todo o medo que ela e os outros tinham, o pior já tinha acontecido.
Assim, o papel é para ela também instrumento de guerra, “eles têm arma, têm
caneta e papel para matar a gente”, “mata a gente pela arma, papel, veneno”, então a
academia é mais uma linha de frente da luta (Veron, 2019). Ela compartilha o que sua
mãe sempre falou, que ela deveria fazer o papel falar também, assim como os purutuie
fazem, mas que o papel falasse pelo povo, para garantir a terra, a justiça e a
demarcação.
Mesmo assumindo a missão como mais uma forma de luta, Valdelice reforça o
quanto é uma educação que machuca, e que apesar de todas as violências é possível
ainda nesses e outros espaços encontrar pessoas que possam dançar o puxiré juntos,
que é como se pode contribuir para as lutas dos povos originários, dançando juntos,
não roubando o protagonismo ou praticando o extrativismo intelectual.
A fala de Valdelice me fez pensar sobre a minha própria relação com a
academia e também com a minha pesquisa. Nos últimos meses, vinha passando por um
processo de crise e questionamentos tanto sobre minha incapacidade intelectual de
apresentar e finalizar o estudo, como também o meu lugar na pesquisa e o quanto as
próprias referências de estudos pós­coloniais e decoloniais, assim como discussões
sobre interseções de opressão entre gênero, raça e classe, dos meus próprios privilégios
e da minha insignificância por um lado, na academia, e por outro, no Tapajós e nas
comunidades com quem me relacionava.
Até então havia sido ensinada que, na academia, o pesquisador não deve deixar
transparecer seus valores, deve ser neutro e objetivo, do que muitos pensadores,
obviamente, discordaram em diversos tempos dessa possibilidade. Ainda assim,
mesmo com vertentes mais críticas ao processo de produção de conhecimento, a
estrutura linguística e formal da organização do pensamento continua tendo uma forma
específica na qual o produto final de uma pesquisa deve se encaixar.
Assim, parecia­me que o que eu já tinha escrito até então soava como uma
farsa, quando eu pensava no processo real, das ideias que descartei e percebi que
estavam erradas, o quanto eu própria não entendia inicialmente e como apenas
recentemente consegui ver diversos elementos na minha fala, pensamento e decisões
acerca da pesquisa alinhados ao meu lugar na sociedade. Por fim, a forma como a tese
vinha sendo escrita me fez pensar sobre o que Valdelice apontou sobre extrativismo
272

intelectual, quando daquilo que eu pretendia apresentar de certa forma poderia se dar
nesse sentido e as próprias dificuldades de como fazer isso sendo justa a todas as
contribuições e trocas que não vieram apenas de mim. Ainda me questiono se a
produção de conhecimento na academia possa de fato se desvencilhar desse tipo de
prática; se realmente é possível, nos moldes que produzimos, não ser apenas uma
forma desejada e legitimada de extrativismo intelectual.
Considero, então, que a forma como eu estava me posicionando dentro do
estudo e como o escrevia estava levando a um processo de incompatibilidade com a
minha experiência, reduzindo a importância das pessoas que a compartilharam comigo
e aumentando o papel de autores e autoras que não necessariamente escreveram sobre
o contexto, mas que constantemente fiz esforços para tentar encontrar paralelos, em
busca da legitimação do que vivi e daquilo que foi partilhado comigo.
Não pretendo, em momento algum, equiparar a experiência que Linda Terena e
Valdelice Veron tiveram no contexto acadêmico, espaço este obviamente muito mais
pensado para ser ocupado por pessoas como eu. Ainda assim, a produção de
conhecimento na educação a partir de uma referência ocidental envolve práticas de
violência que atingem de outras formas todos que por ela passam. Sentir­se sempre
uma farsa por estar ocupando um espaço seja pela origem, por ser mulher ou por ser
jovem, também são formas de operação da subjetividade capitalística, dentro do
analisado anteriormente.
Em uma conversa pessoal com Julieta Paredes durante o evento,
compartilhamos sobre os processos de resistência nesse cenário e em determinado
ponto ela ao me ouvir falar de meus privilégios questionou se o que eu estava me
referindo eram realmente privilégios ou apenas meus direitos, se, na verdade, em sua
opinião, esses espaços não foram feitos também para pessoas como eu ocuparem e que
ao chegarmos lá, fazem com que nos sintamos culpadas como uma estratégia de
manutenção do próprio poder e privilégios dos que estão “muito mais acima”.
Apesar disso, acredito que a conformação que em certo ponto pode parecer uma
imposição de caminho a seguir, ao nos cooptar também nos torna de certa forma
“cúmplices”. Logo, não penso que apontar isso seja uma forma de se “vitimizar”, mas
uma constatação de como as subjetividades e experiências são atravessada de
diferentes formas dentro dessa lógica, visando fazer com os sujeitos se esforcem para
se adequar e assim reforcem e produzam o sistema como se apresenta, validando­o. E,
como a partir de diferentes posicionalidades sociais, as relações serão variadas.
273

Pensei muito sobre os eixos da colonialidade do poder, do ser, do saber, de


gênero, da mãe natureza… Como atravessam nossas vidas, como tentamos encontrar
caminhos dentro desses cenários, intermediando nossas subjetividades entre os desejos
e aquilo produzido pela subjetividade capitalística. Pensei sobre as conversas que tive
com muitas mulheres, meninas e meninos, homens, no Tapajós, nas comunidades, em
Belém, em outros lugares em que estive sobre como é difícil separar onde começamos,
onde somos o que somos e onde reproduzimos aquilo que prejudica alguém, de forma
consciente ou inconsciente, ao mesmo tempo em que pensei sobre as estratégias de luta
e resistências possíveis diante disso.
Enquanto a academia pode ser vista como espaço de reprodução de
colonialidade, ela é ao mesmo tempo uma frente de luta, que pode ser transformada,
apropriada e reformulada, ou talvez até mesmo, destruída. Em meio a isso, estão as
subjetividades, que, como Ailton Krenak (2019) discorre, em tempos como os que
vivemos é preciso suspender o céu, ou seja, “enriquecer as nossas subjetividades, que
é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. Se existe uma ânsia por
consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades - as nossas
subjetividades”.
E nesse consumo de subjetividades, que é a própria relação da produção da
subjetividade capitalística, é possível perceber o que Krenak (2019) argumenta, o
quanto o fim do mundo é pregado, “como uma possibilidade de fazer a gente desistir
dos nossos próprios sonhos”, e então ele propõe adiar o fim do mundo, ao se contar
mais uma história. Neste sentido, ele discorre sobre a relação com o fim do mundo
enquanto se conhece, ou qual a referência do que é o mundo, se refere­se ao todo que
existe no planeta ou a uma referência etnocêntrica específica.
Assim, “o fim do mundo talvez seja uma breve interrupção de um estado de
prazer extasiante que a gente não quer perder. (...) Porque tanto medo assim de uma
queda se a gente não fez nada nas outras eras senão cair?” (Krenak, 2019, p. 60­62),
logo, é possível que pensemos também sobre o constante aviso de fim de mundo, ou
ausência de futuro nos nossos tempos e como a Amazônia tem sido projetada a partir
disso.
A relação com o tempo é importante aqui, tanto na fala de Lúcio Flávio Pinto
sobre não haver um futuro para a região. Outra análise feita no ano de 2019 e publicada
na Revista Piauí, por João Moreira Salles e Bernardo Esteves (2019), faz referência a
um Mundo sem a Amazônia. A reportagem traz o resultado de simulações do impacto
274

das políticas atuais feita pelos pesquisadores Stephen Pacala, professor de ecologia na
Universidade de Princeton, Adalberto Veríssimo, ecólogo, Tasso Azevedo, engenheiro
florestal, e João Biehl, antropólogo.
Os pesquisadores partiram de um cenário catastrófico para uma simulação dos
impactos que uma transformação da floresta amazônica em pasto significaria para o
clima, chegando a cenários de diminuição de 25% das chuvas no Brasil, aumento da
temperatura e um prejuízo catastrófico para a agricultura e produção de energia. Não
necessariamente entrando nas especificidades da metodologia e dos cenários, destaco
dois pontos interessantes para nossa discussão: a quantificação do impacto futuro a
partir de práticas e de acordo com o projeto de nação brasileiro para a região e a
própria insustentabilidade do modelo econômico.
O exercício imaginativo pode também ser pensado junto com todas as outras
análises apontadas e também referências utilizadas no percurso desse estudo às
subjetividades dos próprios pesquisadores e analistas citados, como as projeções de
futuro e suas preocupações, são indissociáveis de suas subjetividades: enquanto um
renomado professor de Harvard exercita sua imaginação na perspectiva
intervencionista de grandes potências, uma jornalista do sul do país questionando a si e
semelhantes sobre formas de pensar e se relacionar com a Amazônia e povos
amazônidas, como o sociólogo e jornalista santareno se vê pessimista aos 70 anos após
décadas de trabalho analisando a região com o agravamento de uma política de Estado
que se remonta ao século passado.
A relação com o pensar o tempo e o futuro para Agathangelou e Killian (2016)
no tocante às políticas também remonta às bases da sociedade moderna industrializada
eurocentrada. Eles focam em como, no caso das políticas globais, o tempo é um fator
invisível, mas que é tido como natural, permeando as análises políticas sem reconhecer
como se toma o tempo como universal, unilinear, o qual deve ser controlado e
dominado ou, melhor, dizendo, colonizado. Assim, podemos perceber como
abordamos em diversas passagens, o projeto de nação em si e a
modernidade/colonialidade pela lógica do desenvolvimento e do progresso perpassam
por referências temporais e as políticas adotadas a partir desse pensamento nada mais
são do que formas de tentar controlar tal tempo, projetando em algum tipo de “futuro”
a realização de satisfações e desejos.
Agathangelou e Killian (2016) chamam a atenção para como a temporalidade
que marca as produções de conhecimento das relações de poder e na política envolvem
275

a violência como uma ferramenta para controlar o tempo, seja o tempo da perenidade
almejada para o Estado, desse modo:
Death works in secular modern politics in a way that perpetuates and
stabilizes this secular time. For (secular) liberals, violence is
acceptable when it makes possible an imaginary of the project of
modernity. Death is acceptable where it is the property of the state,
triggering the question why some violence (outside history) is
considered a threat while other violence (within secular history) is
not. (Agathangelou e Killian, 2016, p. 12)

Daí a relação que eles fazem também com Frantz Fanon que indica como o
tempo vai ser também um mecanismo de colonização. Abordado anteriormente, é
imprescindível para pensar qualquer relação de política como a concepção e relação
que se tem com o tempo se dão nas subjetividades. Tanto em sentido pessoal e
individual, mas também social e coletivo. Para Agathangelou e Killian (2016, p. 14) a
ficção do tempo é como uma força que coproduz subjetividade e que é empregada
como um dispositivo de poder regulatório (colonial, neocolonial, imperial ou outro).
Assim também, observo que o momento político tem trazido à tona muito
dessas relações em torno de estratégias e práticas de produção de subjetividades.
quando pensamos na marcha das mulheres indígenas, na romaria do bem viver no PAE
Lago Grande, na organização de lideranças e representantes indígenas em viagens pelo
mundo denunciando a situação no Brasil, como o Cacique Raoni.
Enquanto indivíduos cuja subjetividade capitalística pode ter passado por
desestabilizações recentemente, muitas linhas de fuga têm sido em direção
abolicionista/destrutiva, marcado por pessimismo, sentimento de impotência como
fortes predominantes. Enquanto os povos, que sempre se organizaram e resistiram
continuam fazendo, lembrando mais uma vez a frase de Ailton Krenak (2019) sobre
preocupar­se mais como os brancos conseguirão sobreviver aos tempos de ascensão da
extrema­direita do que com os povos indígenas, que têm resistido há 500 anos.
As resistências/dissidências/microrrevoluções se dão por diversos fatores, mas
ocorrem com mais intensidade em grupos que não possuem uma cultura totalmente
interligada ao capitalismo e que suas relações e cosmovisões são independentes e
autônomas a este sistema, produzindo, assim, subjetividades que tensionam e
questionam a narrativa dominante.
Deleuze e Guattari (1997) propõem que a resistência é possível pelo
nomadismo, pela movimentação das linhas de segmentaridade, da produção de novas
subjetividades em um tempo­espaço que não seja definido e limitado pelo Estado
276

(espaço e tempo­estriado), mas se dê no espaço e tempo­liso, em campos de


intensidade, onde as potencialidades são existentes e se dão as relações afetivas (sons,
odores, cores) no caso do espaço; e da duração da experiência da mudança qualitativa,
no caso do tempo.
O ano de 2019 não foi então apenas um ano de muitas ameaças e de destruição
na Amazônia, mas também de muita reorganização e articulação para a resistência.
Entre os dias 17 e 19 de novembro, em Altamira, foi realizado o Encontro Amazônia
Centro do Mundo, com a participação de povos ribeirinhos e indígenas da região,
jovens ativistas, ONGs, cientistas e sindicatos e outras instituições. O objetivo do
evento era a troca de experiências e estratégias para tecer alianças e redes de ativismo e
solidariedade para a região e questões ligadas ao clima.
Contudo, o evento chegou a ser tumultuado pela presença de ruralistas e outras
pessoas opositoras à proposta, como o antropólogo ruralista Edward Luz, conhecido na
região por atuar na elaboração de relatórios que negam o direito a povos indígenas,
questionando autodeclarações, alinhado ao governo Bolsonaro e reproduzindo algumas
de suas abordagens como a de acusar ONGs pelos incêndios na região (Fórum, 2019).
Edward Luz, inclusive, chegou nos últimos anos ao Tapajós também. A presença do
mesmo na região despertou preocupação e se mostrou mais um sintoma do aumento da
pressão do capitalismo na Amazônia.
Apesar do tumulto e das críticas ao evento por apoiadores do governo, o evento
alcançou o objetivo de mobilizar diferentes grupos sociais, pessoas de diferentes
idades, origens, profissões, etnias, povos, nacionalidades em torno de um objetivo
comum, tentar construir juntos o bem viver, uma forma de singularização das
subjetividades, de nomadismo. De reforçar outras possibilidades e caminhos possíveis.
E, em Itaituba, entre os dias 9 a 11 de dezembro de 2019, o seminário Povos do
Tapajós, construindo resistência em defesa da Amazônia reuniu mais de 100
lideranças, integrantes de movimentos sociais e de entidades da sociedade civil e
representantes de povos do Tapajós:
Nós, organizações de base, movimentos sociais, pastorais do campo,
agricultores e agricultoras, ribeirinhos e ribeirinhas, pescadores e
pescadoras, indígenas, extrativistas, movimentos de mulheres do
campo e cidade, quilombolas, assentados e assentadas das diversas
comunidades e aldeias dos municípios de Rurópolis, Trairão, Novo
Progresso, Itaituba e Santarém (...) discutimos questões emblemáticas
dos grandes projetos de infraestrutura para o Tapajós, como Portos,
Hidrelétricas e a Ferrogrão, as violações de direitos humanos e os
impactos socioambientais que as populações dessa região já vem
277

sofrendo com esses projetos do capital em parceria com governo


federal. (Carta pública do seminário 'Povos do Tapajós, construindo
resistência em defesa da Amazônia', 2019)

A carta do Encontro também fez críticas diretas ao governo Bolsonaro e suas


políticas, além dos discursos do presidente sobre a região, que já têm sido sentidas no
cotidiano da população, principalmente por pessoas envolvidas na luta por direitos:
Denunciamos a forma como governo Bolsonaro tem se posicionado
com relação à Amazônia, sobretudo com suas falas pela legalização
de garimpo em terras indígenas, sua intenção manifestada pelas redes
sociais em reduzir as unidades de conservação e do incentivo à
criminalidade no campo com apoio do Ministro da Justiça, Sérgio
Moro. Apontamos ainda como consequência das políticas de
Bolsonaro, o aumento do feminicídio que também afeta as mulheres
amazônicas.
Denunciamos, ademais, as tentativas de criminalização e campanhas
de difamação contra Organizações Não Governamentais (ONGs)
comprometidas com a luta social e movimentos sociais no Tapajós.
Essa perseguição parte também do poder público com apoio do
Presidente Bolsonaro. (id.)

As denúncias sobre os casos de violência no campo e discursos de estímulo à


impunidade, como em falas sobre a defesa da propriedade privada e a flexibilização da
posse de armas, o aumento do feminicídio e os discursos de difamação contra os
movimentos sociais da região, além das políticas de ameaça de legalização de
mineração em terras indígenas são pontos centrais do documento feito ao fim do
primeiro ano do governo.
Além do poder público, do governo e do próprio presidente, são denunciadas as
atuações de empresas públicas e privadas, nacionais e de capital transnacional ligadas a
projetos de infraestrutura logística pela violação do Direito à consulta prévia, livre e
informada e pelo assédio a comunidades impactadas, citando o caso da Ferrogrão42. As
críticas constantes à violação do direito à consulta se juntam também às demandas de
demarcações das terras indígenas no Tapajós, ao passo que reforçam também a
urgência da aprovação de uma Política Estadual de Atingidos por Barragens,
atualmente tramitando na Assembleia Legislativa do Pará. O documento finaliza

42
“O projeto visa consolidar o novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte. A
ferrovia conta com uma extensão de 933 km, conectando a região produtora de grãos do Centro­Oeste ao
Estado do Pará, desembocando no Porto de Miritituba. Estão previstos, também, o ramal de
Santarenzinho, entre Itaituba e Santarenzinho, no município de Rurópolis/PA, com 32 km, e o ramal de
Itapacurá, com 11 km. (...)O projeto faz frente à expansão da fronteira agrícola brasileira e à demanda
por uma infraestrutura integrada de transportes de carga.” (Programa de Parcerias de Investimento,
2020). Disponível em: <https://www.ppi.gov.br/ef­170­mt­pa­ferrograo>. Acesso em: 01/05/2020.
278

urgindo respeito e garantia aos direitos humanos de lideranças no estado e o combate à


violência no campo em todas suas formas.
O documento enfatiza que “Defendemos a Amazônia porque somos
Amazônia!”. Em comparação a outras falas sobre a região, percebe­se uma abordagem
diferente, que não despersonifica o lugar, não pensa a floresta separadamente pela sua
função econômica ou climática para a humanidade, mas o lugar e as pessoas como
partes de um só.
Observando tantos exemplos citados aqui, desde minha trajetória na pesquisa,
as vidas de Cris, Fernanda, Lalah, Nice, Priscila, Aline, Luza, Dona Elza, Eliane, Ivana
e tantas outras, podemos observar o momento como analisado pela produção de
subjetividades. Enquanto não ocorre a cooptação, a sobrecodificação das máquinas de
guerra pelo Estado, elas continuam permitindo a fuga dos fluxos de desejo e
conectando­os para permitir que surjam novos modos de expressão, outros modos de
existir.
Os movimentos sociais no caso da Amazônia e as próprias formas diversas de
vida e organizações sociais na região podem ser considerados “máquinas de guerra”
(Deleuze e Guattari, 1996), no momento em que questionam e derrubam concepções
do Estado sobre as relações com o tempo­espaço, como uma máquina que “opera por
descodificação e desterritorialização” (ibid., p. 96).
Um novo capítulo do governo com a região começou em fevereiro de 2020,
com a criação do Conselho da Amazônia sob a chefia do vice­presidente, General
Hamilton Mourão. A iniciativa veio como uma resposta ao desgaste do Ministro do
Meio Ambiente Ricardo Salles e, ao mesmo tempo, mais um exemplo de militarização
do governo (Pinto, 2020).
O Conselho da Amazônia foi apresentado como uma demonstração da
preocupação do governo com a região, mas, de fato, representa uma ação de
centralização no tocante às ações de combate ao desmatamento, queimadas e grilagem.
O Conselho encontra­se acima da hierarquia do Ministério do Meio Ambiente e demais
órgãos como ICMBio e IBAMA e não agregou à estrutura os governos estaduais da
região.
Em maio de 2020, foi anunciado o uso da garantia de lei e ordem (GLO) por
meio do Decreto Nº 10.341 que autoriza o emprego das Forças Armadas nas terras
indígenas, nas unidades federais de conservação ambiental e em outras áreas dos
Estados da Amazônia Legal. O anúncio veio junto à publicação de dados de institutos
279

de pesquisa como o IMAZON e o INPE sobre o aumento de 171% do desmatamento


na região em comparação ao mês de abril de 2019, apontando um agravamento da
situação (Menegassi, 2020).
O aumento relatado ocorre apesar das restrições de deslocamento em
decorrência da pandemia de COVID­1943. A situação de pandemia global, oficializada
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em março de 2020, teve efeito contrário do
que poderia ser imaginado, já que a situação impôs o isolamento social como principal
medida de conter o avanço do contágio. Ao contrário, tem­se sugerido que o cenário
tenha sido facilitado pela situação para a ação de grilagem e práticas ligadas ao
desmatamento ilegal (Niranjan, 2020; IPAM, 2020). Tais ações têm sido apontadas,
inclusive, como responsáveis por parte da disseminação do novo coronavírus na
Amazônia e, especialmente, dentre a população indígena na região (Fellows et al,
2020), havendo contribuído para o cenário também a presença de militares
(Maisonnave, 2020).
Por conta da precariedade no acesso a serviços de saúde, a região tem sofrido
com grande impacto no panorama geral. De acordo com dados da APIB os Estados
brasileiros que têm registrado o maior número de indígenas mortos em decorrência de
COVID­19 estão localizados na Amazônia: Amazonas com 182; Pará com 86; Mato
Grosso com 77; Roraima com 57 e Maranhão com 56 (Comitê Nacional de Vida e
Memória Indígena, 2020).
Em comparação com o quadro geral, os números sobre a situação dos povos
indígenas também são reveladores: a taxa de infecção mostra­se 84% mais alta do que
a taxa do Brasil, enquanto a taxa de mortalidade é 150% mais alta que a média, sendo
de 6,8% a letalidade entre os indígenas na Amazônia, enquanto a média no Brasil é de
5% e na região Norte é de 4,5% (Felllows et al, 2020).
Contudo, o número menor na taxa de letalidade na região Norte não significa
que a pandemia tenha sido menos impactante que as outras regiões. Dados atualizados
de agosto de 2020 fornecidos pelo Ministério da Saúde (2020) indicam que a
mortalidade a cada 100 mil habitantes é maior no Norte (67,2) em comparação às
43
A finalização e revisão da presente tese se deram entre janeiro e maio de 2020 atravessando, de certa
forma, a pandemia. Apesar de janeiro ainda não ter sido um período em que a mesma já havia tomado as
dimensões dos meses seguintes. Em maio, momento em que tem sido de fato revisada e finalizada o
cenário já é bem diferente. Pela extensão que a tese já apresenta optei por não adentrar os pormenores da
pandemia, apesar dos impactos para a região, os movimentos de autogestão que tem surgido a partir da
situação e também do agravamento de tensão na região no tocante à grilagem e aos povos indígenas
sobremaneira. Diante disso, onde considerei necessário foram adicionadas no texto e notas de rodapé
relações a este período e seus desdobramentos.
280

outras regiões (Sul 21,2; Centro­Oeste 39,5; Nordeste 54,2; e, Sudeste 51,6), sendo a
média nacional de 48,4.
O cenário é crítico. E após o país passar de 100 mil pessoas mortas por
COVID­19 – de acordo com dados oficiais, visto que se sugere haver subnotificação –
em combinação com a flexibilização das medidas de isolamento, como a reabertura de
comércio – espera­se que os efeitos da pandemia continuem por um tempo na região.
Apesar disso, mesmo no contexto da pandemia global de COVID­19, em que a
população da região tem sido uma das mais atingidas, tramita no congresso a Medida
Provisória nº 910/2019 que propõe uma ampla regularização fundiária que movimentos
sociais e analistas apontam como de alto risco para legalização da grilagem. A pressão
popular na Internet e por redes sociais, por conta do isolamento social, tem conseguido
por duas vezes retirar da pauta a votação da medida.
Ademais, o vídeo de uma reunião ministerial que foi publicizada por decisão
judicial pelo ministro do STF Celso de Mello, em 22 de maio de 202044, trouxe à tona
diversas falas problemáticas proferidas pelo presidente e seus ministros, em especial
sobre os povos indígenas e políticas ambientais que afetam diretamente a Amazônia.
Algumas destas reafirmam indicações feitas previamente neste estudo sobre o teor do
projeto de nação de forma cristalizada sobre suas fundações.
O Ministro da Educação, Abraham Weintraub, manifestou seu incômodo com
termos utilizados para se referir aos povos indígenas e sinalou que isto seria uma forma
de questionar a ideia de povo brasileiro, ao dizer que “Esse país não é... odeio o termo
"povos indígenas", odeio esse termo. Odeio. O "povo cigano". Só tem um povo nesse
país. Quer, quer. Não quer, sai de ré. É povo brasileiro, só tem um povo. Pode ser
preto, pode ser branco, pode ser japonês, pode ser descendente de índio, mas tem que
ser brasileiro, pô! Acabar com esse negócio de povos e privilégios” (STF, 2020, p. 54).
A negação da pluralidade cultural e da reafirmação de uma ideia homogênea de povo
presente na fala do ministro demonstra como a linguagem é um lugar de
desestabilização de ideais e, segundo ele, precisa ser controlado para evitar a ideia de
que há a existência ou anuência com outros modos de vida e culturas, aproximando­se
do que se entende pelo discurso falacioso da democracia racial.

44
O vídeo citado veio à tona em meio a mais uma crise política do governo Bolsonaro envolvendo
acusações do agora ex­ministro da Justiça Sérgio Moro sobre tentativas de intervenção do presidente na
Polícia Federal. A reunião ministerial em questão ocorreu no dia 22 de abril de 2020, pouco antes da
saída de Sérgio Moro do governo. Os vídeos e o laudo estão disponíveis em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=443959>.
281

Enquanto o ministro Weintraub aponta que o reconhecimento da diversidade


dos povos no Brasil seria um “privilégio”, por trás, esconde­se uma tentativa de
reafirmar uma supremacia branca e os seus próprios privilégios.
Já o presidente Jair Bolsonaro reafirmou os valores que identifica como centrais
para o seu governo e o país: “Quem não aceitar a minha, as minhas bandeiras,
Damares: família, Deus, Brasil, armamento, liberdade de expressão, livre mercado.
Quem não aceitar isso, está no governo errado” (STF, 2020, p. 58). As bandeiras
identificadas corroboram com os elementos fundantes do sistema moderno/colonial a
partir de uma perspectiva heterocisnormativa, cristã, nacionalista e tendo como o
liberalismo uma referência para os seus pares, colocando o armamento como forma de
imposição destes.
A ministra Damares Alves, responsável pelo Ministério da Mulher, da Família
e dos Direitos Humanos, também proferiu falas alinhadas ao teor nacionalista,
conservador, cristão e racista ao citar a centralidade dos “valores” inerentes ao
governo e fazer menção aos “nossos quilombos estão crescendo e os... e os meninos
estão nascendo nos quilombos e seus valores estão lá. Então, tudo vai ter que ver a
questão dos valores” (STF, 2020, p. 45), o que remete à ideia de que os valores
socializados em comunidades remanescentes de quilombos não seriam compatíveis
com os defendidos pelo governo.
Na continuação de sua fala, a ministra citou ainda a pauta do aborto como
prioritária a ser combatida, pois a mesma acredita que como houve debate sobre o
aborto em casos de confirmação do zika vírus, o mesmo poderia ocorrer em relação ao
coronavírus, a ministra aponta para o então ministro da Saúde, Nelson Teich: “O seu
ministério [da Saúde], ministro, tá lotado de feminista que tem uma pauta única que é
a liberação de aborto. Quero te lembrar ministro, que tá chegando agora, este
governo é um governo pró-vida, um governo pró-família” (STF, 2020, p. 46).
Mais uma fala que se liga ao que tem sido apresentado ao longo deste estudo é
a do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A lógica em seu discurso é, contudo,
complementar aos dos demais, enquanto os primeiros aqui citados apontaram para uma
referência generificada, racializada de “povo” e “nação” como base do governo, Salles
faz menção à pandemia que assola o país como uma “oportunidade que nós temos, que
a imprensa não tá... tá nos dando um pouco de alívio nos outros temas, é passar as
reformas infralegais de desregulamentação, simplificação, todas as reformas que o
mundo inteiro nessas viagens que se referiu o Onyx...” (STF, 2020, p. 19).
282

O ministro Salles continua a fazer referência à pandemia como um momento de


“tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de COVID e ir
passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas. De IPHAN,
de ministério da Agricultura, de ministério de Meio Ambiente, de ministério disso, de
ministério daquilo” (STF, 2020, p. 20), a sua fala reforça o teor de desmonte das
políticas voltadas para diversos âmbitos, como o do meio ambiente e que atingem a
Amazônia de modo direto, como o mesmo chega a destacar ao mencionar a atuação do
vice­presidente General Mourão frente ao Conselho da Amazônia. A própria MP
910/2019 citada anteriormente demonstra como a estratégia já estava sendo adotada.
A atuação do governo de Bolsonaro tem sido, desta forma, de um agravamento
de políticas que sempre estiveram presentes no projeto de nação, mas que, sob seu
comando, tem se radicalizado e militarizado, desmontando políticas que até então eram
alguma garantia ou caminho para se alcançar ou debater propostas. Percebe­se pelas
manifestações contrárias ao governo um protagonismo dos povos indígenas, que, como
apontam, sempre lutaram, em todos os governos. E que, tem­se percebido também com
relevância a articulação de mulheres indígenas, de povos amazônidas, por meio de
movimentos como o MAB, o STTR e outros citados por este trabalho.
Não por acaso que recorrentemente são os grupos normalmente atacados nas
políticas e falas dos representantes do governo, que identificam neles ponto de
resistência e incompatibilidade com os valores e projetos adotados e entendidos como
legítimos do projeto de nação. De modo a serem até mesmo excluídos da visão de povo
reproduzida pelo governo em que aponta a assimilação cultural e o apagamento da
diversidade como o único caminho possível.
O questionamento das políticas de cunho desenvolvimentista e a mobilização
por autonomia, território e suas próprias formas de organização são feitas a partir da
produção de subjetividades singularizadas, que desafiam a lógica dominante. Não
significa, contudo, que não haja influência na produção de desejos ligada ao
agenciamento capitalista, já que estamos produzindo subjetividades constantemente e
que estas dialogam inclusive com o que abordamos nas matrizes de necessidades
(Max­neef, Elizalde, Hopenhayn, 2016). Por exemplo, é possível que haja uma rejeição
a uma política desenvolvimentista do Estado brasileiro ao mesmo tempo em que se
deseja a chegada de energia, acesso à tecnologia, saúde, etc. Isto se dá pelo fato de que
esses elementos não são, de fato, elementos intrínsecos ao Estado ou ao capitalismo,
283

mas apenas mediados/agenciados por este. Logo, é ele a quem se recorre para a atenção
a essas necessidades.
E, é nesta dinâmica que se dá a constante axiomatização dos fluxos e de
cooptação de muitos movimentos. Ainda assim, as subjetividades singularizadas
continuam sendo produzidas e construindo novos agenciamentos coletivos de
enunciação e “máquinas de guerra” seguem criando espaços­liso e tempos­liso.
Apesar de Deleuze e Guattari analisarem com muita ênfase a potencialidade
dos movimentos sociais (inclusive feministas), a abordagem a que se propõe
desenvolver aqui foca mulheres individuais, mas reconhecendo a produção de
subjetividade em sentido social/coletivo/agenciado. Também, no contexto do Tapajós,
estas mulheres relacionam­se com movimentos e comunidades que propiciam a
produção de subjetividades nômades.
Isto se justifica pelo fato que, enquanto a própria questão de “gênero” e “sexo”
são partes das linhas duras/molares da subjetividade, ou seja, são fixas, estáveis e
definidas por binarismos, elas produzem subjetividades diferenciadas para quem será
identificado como homem ou mulher, assim como a noção de “raça” também atravessa
a produção de subjetividades em sociedades moldadas na lógica moderna/colonial.
Logo, pensar o futuro e subjetividades neste contexto necessita um
reconhecimento dessa diferenciação, como sujeitas e sujeitos serão socializados ou,
terão suas subjetividades produzidas, de formas diferentes e como isso influenciará nas
percepções tidas sobre o mundo, sobre si e seus desejos.
284

13 TRAVESSIAS ENTRE O PROJETO DE NAÇÃO E OS PROJETOS DE


VIDA
A gente luta pra isso. Pra que esse projeto de
vida, alguém escute. Nós queremos um
desenvolvimento diferente, de liberdade, de poder
falar, de poder ouvir, de poder viver. Nós temos
propostas de um desenvolvimento diferenciado,
de saúde, de educação, um desenvolvimento
limpo.
(Rosa Maria Pessoa, Coordenadora do Conselho
Tutelar de Altamira, para o documentário
Encantadas – Mulheres e suas lutas na
Amazônia)

O que alguém quer para a sua vida? É uma pergunta que poderia ser respondida
de mais de sete bilhões de maneiras por mais de sete bilhões de pessoas. E, se essas
pessoas fizessem essa mesma pergunta novamente um dia, um mês ou um ano depois,
talvez todas essas respostas sejam um pouco diferentes. Portanto, embora não seja
exatamente dessa maneira, alguém poderia argumentar que as instituições econômicas,
políticas e sociais do mundo hoje em dia buscam basicamente alcançar, ou pelo menos
tentar fornecer meios de garantir objetivos democráticos e de justiça ao maior número
possível de pessoas.
Portanto, a maior parte do mundo é organizada principalmente em Estados­
Nação, tanto socialmente como politicamente, a fim de promover o que sua população
precisa e deseja, geralmente baseada em sua complexa noção de passado, presente e
futuro comum em relação às pessoas dentro de suas fronteiras geográficas. Geralmente,
acredita­se que a melhor maneira de garantir isso é fortalecendo a participação política
e democrática das pessoas, a escolha de seus representantes e promovendo a elas um
acesso justo à formulação de políticas.
Seguindo a lógica de que os Estados­Nação estão localizados em um sistema
mundial dominado por um sistema econômico como o capitalismo, que organiza a
produção, o mercado e as relações sociais para suas necessidades, fica claro que estes
devem se inserir nesse sistema para garantir adequadamente os interesses nacionais de
seu povo, o que significa que eles têm o poder de mediar os interesses das pessoas.
Em um sentido mais amplo, a sociedade internacional, movimentos sociais,
organizações intergovernamentais e Estados vêm se esforçando para definir um terreno
comum, incluindo parâmetros, valores e formas de responder a essa grande questão.
Muitos desses esforços foram gradualmente consolidados desde o século XX, com a
285

fundação das Nações Unidas em 1945 e outras organizações intergovernamentais, a


criação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e as muitas
conferências internacionais ao redor do mundo que se seguiram àqueles esforços,
principalmente para discutir questões globais, como meio ambiente e desenvolvimento,
para citar alguns.
Em linhas superficiais o que queremos na vida, como sujeitos, passa pelos
filtros dessas instituições mesmo que tenhamos necessidades e um pensamento
autônomo, é a cultura e a sociedade que nos dão o caminho a seguir. De que outra
forma poderia ser?
Agora, vamos começar de novo. O que queremos para a vida? Embora possa
haver mais de 7 bilhões de respostas, a maioria delas está localizada em uma lógica
predominante. Algumas mais que outras, decerto. Quando pensamos no Estado­Nação
com seus deveres de proteger e promover os interesses nacionais, outras questões
podem ocorrer: afinal, os interesses nacionais são representativos de toda a população
que vive num território? O que chamamos de interesse nacional foi decidido por meio
de qual processo? Quem o define e valida? Pautado em quê?
A principal discussão sobre direitos humanos e desenvolvimento baseia­se em
quais culturas? O que acontece quando se criam índices e parâmetros que classificam
os países que avaliam seu suposto sucesso em um sistema hegemônico desenvolvido e
apoiado por quem o avalia, definindo assim os objetivos finais? Ainda mais, o que
acontece quando se negligencia a historicidade que está por trás dessas instituições e
parâmetros tradicionais, que tornou possível alcançarem o status que agora celebram?
Todas essas questões já têm sido profundamente discutidas nas últimas décadas
e foram apresentadas esparsamente durante este estudo. No entanto, o que merece um
olhar mais atento é: o que acontece quando se diz às pessoas em todo o mundo o que
elas devem querer na vida e isso é disseminado pelo sistema econômico e pelas
entidades políticas que todos podem alcançar tais elementos atribuídos a um sucesso?
Embora esses objetivos sejam logicamente incoerentes, impossíveis, inviáveis,
ambientalmente insustentáveis e economicamente impraticáveis, dentro da estrutura
em que se localizam.
Podemos ir ainda mais fundo: como essas expectativas afetam mulheres,
homens, meninas e meninos em diferentes condições? O que significa não ser capaz de
viver uma vida dentro dos padrões anunciados? Mais do que isso, e se alguém não
quiser viver uma vida como definido por esses parâmetros dominantes? E se as
286

políticas baseadas em um suposto interesse nacional forem contra o que as pessoas


realmente querem para suas vidas?
Supondo que as subjetividades sejam continuamente produzidas e que as
instituições sociais, econômicas e políticas sejam partes importantes desse processo; e
considerando que a configuração do sistema mundial em todo o mundo é
predominantemente formada pelos Estados­Nação, com sistemas econômicos
capitalistas, baseados em ideais de liberalismo e democracia; pode­se supor que a
produção de subjetividades esteja localizada nessa lógica.
Todas as instituições citadas acima são, no entanto, instituições muito
desiguais, que funcionam mais como máquinas de opressão. Além disso, todas elas são
baseadas nos processos de exploração e subjugação que priorizam alguns sobre outros.
Assim, a submissão de grupos étnicos por outros, mulheres por homens, crianças por
adultos, pobres pelos ricos, países em desenvolvimento pelos desenvolvidos e assim
por diante. Diz­se que o Estado Nacional, o capitalismo e o desenvolvimento estão
fundados nessas dinâmicas, enquanto, historicamente, observa­se que esses sistemas
reservam um “lugar” e “papeis” àqueles que não têm o mesmo acesso ao poder e aos
recursos econômicos.
Para Avtar Brah (2005; 2006) as formas de opressão são interseccionadas a
partir de diferentes marcadores sociais (de gênero, de raça e de classe) que geram
identidades sociais e que se relacionam de diversas formas, dependendo do contexto
em questão e os sistemas de opressão presentes nestes, as diferentes formas de
opressão se relacionam, assim, com a subjetividade das vivências. Ela indaga de que
modo as várias práticas ideológicas e institucionais marcam nossas vidas e que ser
mulher invoca diferentes e múltiplas experiências, as quais precisamos reconhecer em
sua heterogeneidade.
Destarte, ela interpreta a interpelação45 “como um processo de significação pelo
qual chegamos a ‘viver’ (embora inconscientemente em grande parte) nosso
relacionamento simbólico e psíquico com o social” (Brah, 2000, p. 275). Tal reflexão
nos possibilita identificar a importância da relação sujeito/indivíduo­sociedade/coletivo
e dos aspectos psíquicos e sociais que formam esta dinâmica, um lembrete que para
além de superestruturas e projetos de ideias existe grau considerável de autonomia do

45
Apesar de utilizar o conceito de interpelação para reflexão, ela critica outros pontos do pensamento
althusseriano como a redução da análise à questão do determinismo econômico e outros pontos, mas
reforça que o conceito em si é relevante para a compreensão.
287

pensamento, da mediação entre os desejos (e como eles são formulados e também


reformulados), tal como discutido anteriormente pela ótica de Deleuze, Guattari e
Fanon.
Portanto, Brah nos leva a reconhecer como as heterogêneas subjetividades são
complexas no sentido de suas produções e que é na intersecção, cujos sentidos mudam
dependendo do contexto, que elas também serão alteradas. Para o proposto na
pesquisa, compreende­se que a reflexão nos leva a considerar tanto a heterogeneidade
das subjetividades de homens e mulheres no Tapajós, mas também a considerar que os
atravessamentos de identidades sociais influenciam nessas produções de desejos.
Na Amazônia, observa­se como a região tem sido historicamente localizada
enquanto um espaço tido como atrasado, subdesenvolvido e primitivo, ao mesmo
tempo em que rico e receptáculo do projeto de nação de crescimento econômico;
enquanto a leitura do lugar como “atrasado” normalmente se funde a uma visão
racializada de vazio demográfico, por ser, ocupado predominantemente por grupos
inferiorizados e cujos modos de vida e existência, conhecimentos e organizações não
são legitimados, além de uma subjetividade produzida dentro de uma perspectiva
capitalística e generificada, presente ainda na linguagem sobre a região.
O efeito é duplo: de um lado, é uma reprodução de colonialismo interno a
serviço do capital mundial integrado, e, por outro, nega e invisibiliza a diversidade de
culturas e cosmovisões em outras regiões do país. O apagamento das trajetórias e
demandas de milhões de pessoas que não necessariamente são alocadas no projeto de
nação têm sido o modus operandi das políticas desenvolvimentistas.
Contudo, como já abordado, a questão de gênero também atravessa
diferentemente homens e mulheres. Ao pautar­se o contexto de desenvolvimento e suas
políticas, os objetivos e as estratégias são vistos como neutros em relação a gênero,
ainda que já tenha sido comprovado aqui que não o são, a partir do momento que
impactam as vidas das pessoas de modos particulares dependendo do gênero.
Como aqui se propõe a reflexão de subjetividades e sua relação com
desenvolvimento e o projeto de nação, é importante identificar que gênero, classe, raça,
geracionalidade e lugar de origem, entre outros, modificam as posicionalidades e
experiências neste fenômeno. Logo, para mulheres e homens a relação espaço­temporal
no contexto de socialização e as expectativas se dão de formas heterogêneas, o que se
revela tanto nas pautas e demandas dos movimentos de mulheres citados em capítulos
anteriores como a questão da violência, da saúde materna, da exploração sexual e
288

outras, enquanto em outros atravessamentos se aproximam, como a relação com a


demanda de território, liberdade, segurança, trabalho.
Logo, considera­se que o caso de abordar vidas de mulheres e seus projetos se
justifica pela importância de partir de um projeto feminista anticapitalista e de lutas
antiglobalização, como defendido por Chandra Mohanty (2003), ou seja, olhar para as
vidas de mulheres e meninas nas comunidades onde incidem todas essas dinâmicas de
poder até aqui retratadas: de gênero, de raça, de classe, de origem, entre outras. Ela traz
também à tona a crítica ao histórico de abordagens subalternizantes das, assim
identificadas, “mulheres do Terceiro Mundo”. Mohanty também aponta como o
discurso feminista ocidental hegemônico reproduz falas e narrativas de silenciamento
das mulheres de Terceiro Mundo, além de homogeneizar suas vidas e reduzir suas
experiências.
Para ela, o problema da homogeneização dá­se ao ver as mulheres de Terceiro
Mundo enquanto grupo indiferenciado, o que tem como risco reduzir a opressão dentro
da lógica dicotômica de superioridade, uma forma de colonização discursiva. Ela
coloca também ao centro as próprias pesquisadoras e feministas enquanto possíveis
reprodutoras de relações de poder e silenciamento e de agenciamento, sugerindo, como
caminho, novas metodologias feministas e premissas que rompam essa dinâmica.
O que, como citado no capítulo anterior, mostra­se ainda como um desafio
próprio do caminho da pesquisa, enquanto a minha posicionalidade de uma
pesquisadora, mulher cisgênero branca, de classe média e amazônida. Assim, busca­se
tentar não recair sobre essa visão, mas apenas identificando de que forma as revoluções
moleculares são uma constante e não uma exceção, onde as chamadas “resistências”
não são espasmos de luta, mas um dia­a­dia produzido entre todas as tensões aqui já
citadas: o capitalismo, a modernidade/colonialidade, gênero, classe, raça, o Estado­
Nação, as subjetividades e os desejos.
Assim, focar nas vivências das mulheres do “Terceiro Mundo” e perceber as
produções das subjetividades permite o descortinamento de visões universalizantes; a
partir das particularidades se torna possível romper o apagamento de heterogeneidade,
com o projeto colonizador humanista, com as produções científicas feministas
“paternalistas” e uma posicionalidade de exclusividade de conhecimento válido para
determinados grupos privilegiados (Mohanty, 2003).
Chega­se a um ponto de conexão com a proposta desta investigação: abordar os
projetos de vida das mulheres possibilita uma visão da ideia de diferença e também de
289

interpelação, já que suas subjetividades (exemplificadas nos projetos de vida e visões)


podem ser percebidas em relação com outras dinâmicas da coletividade que incidem
sobre suas vidas: os marcadores de gênero, de raça, de classe, geracional, de origem, de
escolaridade, estado civil; as suas relações de compreensão da relação tanto temporal
quanto espacial (de lugar e de território); e como estas se atravessam em forma última
da busca por atender às suas necessidades.
A interrelação aqui indicada não pressupõe uma predominância de qualquer
fonte de efeito que seja, nem mesmo a dos grandes paradigmas há séculos
hegemônicos e dominantes nas estruturas materiais e imateriais da sociedade brasileira
e, mais especificamente, amazônica. Isto é considerado a partir do histórico de
resistências e transformações produzidas pelas próprias pessoas que vivem nesse
contexto, apesar das inúmeras formas de violência contidas na implantação de um
projeto desenvolvimentista.
Falar de projetos de vida de homens também é relevante, e ainda que se tenha
escolhido enfocar as experiências de mulheres, ficou explícita uma constante
recorrência a perspectivas de homens, haja vista que abordar gênero diz respeito
exatamente a uma percepção binária no constructo social moderno. Não foram
ignorados os contextos e muito menos suas visões, uma vez que é a partir dessas
diferenças iniciais que ocorre um redirecionamento da pesquisa. Busco, entretanto,
aprofundar o contexto vivido por mulheres.
Aponto que pensar projeto de vida e futuro de mulheres na Amazônia, no caso
do Tapajós, traz à tona diversas dinâmicas de poder e como essas mulheres constroem
suas vidas e decisões, como se mobilizam e como suas necessidades são percebidas,
reorganizadas, como suas prioridades são elencadas e de que forma são compatíveis ou
contrastantes em relação ao discurso de projeto de nação; se suas reivindicações e
desejos são contemplados ou inviabilizados e de que forma são afetados.
Para tanto, faz­se oportuno retomar alguns conceitos abordados por María
Lugones (2014; 2016) como de subjetividade ativa, a infrapolítica e o lócus fraturado.
Para a filósofa argentina, os sujeitos que resistem à modernidade estão sempre em
fronteira, ou seja, entre a resistência e a assimilação do mundo e valores do contexto
colonizador. Assim como a abordagem trazida por Deleuze e Guattari (1996), Lugones
acredita que o processo de colonização não é onipotente no seu objetivo de subjugar os
sujeitos, e nos termos adotados pelos pensadores franceses os fluxos decodificados
290

escapam; Lugones atribui essa noção à subjetividade ativa dos/as colonizados/as que
fraturam o lócus da subjugação.
Lugones propõe não ignorar o efeito das dicotomias impostas pela
colonialidade de gênero (humano/não humano, homem/mulher, etc), já que são
elementos presentes na socialização, mas identificar e reconhecer que essas
subjetividades não são apenas produzidas pela dinâmica do capitalismo na produção de
subjetividades capitalísticas. Na mesma linha, Lugones, Deleuze e Guattari,
consideram a importância de uma relação de coalizão para o avanço da lógica da
diferença, nos termos adotados por ela, o que pode equivaler ao agenciamento coletivo
de enunciação para eles; é o que entende Maldonado­Torres (2007) por giro decolonial.
A hegemonia da modernidade/colonialidade por mais intensa e forte que se
coloque nas estruturas, nas instituições, nos valores e nas agências por meio da mídia,
da educação, entre outras, nunca logrou e dificilmente logrará uma subjetivação total
dos sujeitos. É o que assumo aqui como premissa, ainda que as forças e o
agenciamento dessas subjetividades de individuação sejam predominantes e
estruturantes do contexto social, político e econômico.
Considera­se que ao buscar falar de desenvolvimento e de projetos de vida é no
futuro que todos esses elementos se encontram. Ou, melhor dizendo, é numa percepção
temporal que isso se dá: é a disputa pela narrativa do passado, do presente e do futuro;
baseando­se e projetando­se valores, objetivos, metas em um lugar, um espaço. Ainda
que, como aponta Paredes (2010) e também muitas outras pessoas representantes de
perspectivas anticoloniais, o tempo em si é colonizado nessa lógica.
Para ela, a concepção linear de tempo onde se coloca uma “história da
humanidade” não tem espaço para os povos indígenas, já que os mesmos são fixados
num passado, onde o paradigma da modernidade, a partir de uma visão colonial, define
o que é o moderno e o primitivo e coloca o primeiro como superação do segundo.
Assim, para ela, mesmo que a sociedade diga “trabalhe, se desenvolva…” e tudo siga a
cartilha da modernidade, os povos subalternizados em sentido racial continuam
localizados em um passado (Paredes, 201946), nunca conseguem transpassar essa
fronteira.

46
Fala de Julieta Paredes, na Conferência Internacional da IFJP, PUC­SP, São Paulo 18 de outubro de
2019.
291

Logo, ela afirma que descolonizar significa recuperar nosso tempo, nossa vida.
E, como já abordado anteriormente a partir de Deleuze e Guattari, a apropriação do
tempo e do espaço, de lisos a estriados, se dá de forma alinhada ao surgimento do
Estado­Nação. O que, Yuval­Davis (1997) aborda de forma generificada, ou seja, que
pessoas percebidas a partir das noções de “homem” e “mulher” serão pensadas nesta
estrutura como tendo “papéis” diferenciados, assim como, diferentes grupos sociais e
étnicos todos objetivando fortalecer a nação.
Lapa (2018) sugere que um fatalismo metafísico (produto de um fatalismo
religioso e outro científico) atua na forma de naturalizar a opressão de alguns grupos
como algo inevitável, com o qual se deve conformar, recorrendo ao recurso da
culpabilização do sujeito pela situação que se encontra ao mesmo tempo em que retira
sua agência ao naturalizar seu “destino”, posto que
O capitalismo seria essa marcha de inevitabilidades, de uma ordem
necessária que atribui responsabilidade aos humanos por algo acerca
do qual não podem mudar. Se a culpa no cristianismo é atribuída a
um momento singular anterior vinculado ao Éden – i.e., de um
passado inescapável – no movimento colonial a culpa pela sua
posição social é também única e exclusivamente sua por um passado
que não se pôde ter acesso. (Lapa, 2018, p. 152)
Logo, as ideias naturalizadas de sexo/gênero, família, moralidade, trabalho,
sacrifício, culpa, redenção devem agir todas em torno de um destino inevitável: o
desenvolvimento. Como a ideia de nação perpassa uma relação de “destino comum” e
também de origem, a construção das nações é orientada para o futuro, ainda que tenha
e exalte suas raízes no passado, mas seus objetivos são pautados e justificam­se pela
continuidade da existência e sobrevivência do grupo, como da reprodução de uma
cultura e valores específicos, onde as mulheres desempenham um papel, dever, central,
que, no caso do Brasil e outros países frutos da colonização europeia, fundam­se na
regulação por parte da Igreja de todas as esferas da vida. Desta forma, o futuro também
depende da regulação dos corpos, no sentido de suas capacidades reprodutivas tanto
biológicas quanto culturais.
A história do Brasil é contada majoritariamente pelos colonizadores e seus
herdeiros­descendentes, de um ponto de vista da “salvação” de uma terra povoada com
culturas “atrasadas” e “primitivas”. Mesmo em algumas revisões críticas dessas
narrativas, como as que condenam o genocídio e etnocídio, assim como a escravidão
contra indígenas e de negros, ou o tráfico e o deslocamento forçado, pouco ou nada se
contesta em relação ao presente desse Estado. Assim, ao longo da história do país
292

houve recurso a uma romantização do chamado processo de miscigenação, enquanto,


na verdade, fala­se sobre diferentes formas de violência sobre corpos de mulheres
subalternizadas por estruturas e colonizadores europeus brancos.
Já foi apontado anteriormente como o mito da democracia racial foi utilizado,
difundido e exaltado como uma nação que teria “superado” o passado de violência e
discriminação por uma pretensa conciliação entre as “três raças”, chegando a se tornar
um país pacífico, mestiço, quase como uma anistia às violências cometidas. A
colonialidade do poder, neste sentido, hierarquiza e ao mesmo tempo apaga os fatos;
por outro lado, incute um desejo de ser o sujeito considerado melhor, superior,
desenvolvido, bem sucedido. Mas, para tanto, é preciso apagar­se.
Esse discurso que, apesar de diversas contestações tanto historiográficas,
sociológicas, antropológicas e de movimentos sociais, continua predominante na fala
dos representantes políticos e dos que têm acesso ao poder, atua como uma ideologia
que fomenta o status quo, negando as origens, a história e as heranças e continuidades
das formas de opressão e violência do passado, que continuam presentes. Como pôde
ser percebido em diversas falas pronunciadas pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro,
a negação das diferenças racialmente percebidas no país, reproduz ao mesmo tempo
uma fala que reafirma tais hierarquias e referências dominantes na cultura brasileira.
Assim, ao questionar ou atacar essa visão hegemônica, a interpretação feita por
grupos nacionalistas é de que se estaria “traindo a pátria” e ao entoar a definição de
“povo brasileiro” mais do que se referir à totalidade de habitantes, refere­se aos grupos
que compactuam com a concepção de nação brasileira enquanto formada por famílias
“tradicionais” e cristãs, assim como brancas. Parte considerável do discurso de
campanha e governo do presidente Bolsonaro refere­se à maioria do povo brasileiro,
que seria conservadora e cristã, para quem se deve governar e não à minoria, que
estaria destruindo a real identidade nacional.
Ou que, pelo menos, reproduzam outros parâmetros considerados de bons
cidadãos como: o trabalho (legal e valorizado), uma família (nuclear heterossexual),
ser adepto de uma religião predominante (cristã) e outros elementos mais amplos como
“pagar as contas”, “ser um cidadão de bem”, “pagar os impostos”, “produzir e
consumir”, “ser útil à sociedade”. Todos esses elementos atrelam o sentido de
cidadania a símbolos estatocêntricos e capitalocêntricos, de modo que ser “alguém”
dependa das atividades e comportamentais e não da própria existência em si.
293

Para ser reconhecido e legitimado, é preciso ser ou aparentar, reproduzir os


parâmetros de definição de povo e da dita nação brasileira. É assim que se justifica
“pela nação” a invasão de Terras Indígenas, a execução de grandes obras e projetos de
aproveitamento hidrelétrico, de mineração, de agropecuária, para gerar riqueza à nação,
ao mesmo tempo em que se mata, desloca e ameaça os modos de vida também de
quem é cidadão, mas que assim não é reconhecido.
E, essa visão de justificativa de sacrifício pela nação é algo apontado por
Benedict Anderson (2008) a ponto de que a nação, como a família, pode exigir por
sacrifícios, incluindo o de matar e morrer. É comum a naturalização do extermínio e
ataque aos modos de vida, das terras e das famílias em regiões como a Amazônia
historicamente em prol de um “desenvolvimento da nação”, enquanto são sempre as
mesmas pessoas as que devem se sacrificar47. Desde 1500.
A ideia de nação é entendida como uma concepção de agregação e também de
segregação: a agregação dos semelhantes e a separação dos diferentes. Enquanto a
nação não necessariamente envolve um território definido e politicamente reconhecido
e aparelhado com governo e com o monopólio do uso da força, o Estado­Nação se
coloca como uma estrutura que se põe como produto de um contexto único e
homogêneo (ainda que não seja), reproduzindo os valores dos grupos dominantes como
os válidos.
Assim, nessa compreensão, percebe­se no contexto do Brasil – mas que pode se
aplicar a outros – que a compreensão de um destino comum e compartilhado se desloca
a partir dos interesses dos que têm acesso ao poder do Estado e seus mecanismos e
instrumentos de coerção, possuindo barreiras e fronteiras também internamente, ainda
que muitas vezes não reconhecidas e tantas outras invisibilizadas propositalmente.
O “papel” atribuído a determinadas classes e grupos étnicos e raciais difere,
onde se naturaliza e difunde por meio de mecanismos de reprodução ideológica do
Estado e fora dele (mídia, família, religião, escolas), produzindo assim subjetividades
que sirvam aos interesses do Estado, o qual é composto e organizado por quem a ele
tem acesso e que, como trabalhado por Deleuze e Guattari, atua como mediador e a
serviço do capitalismo, sempre.

47
Utilizei essa expressão por ter ouvido em diferentes ocasiões em conversas e discussões sobre projetos
de desenvolvimento que infelizmente alguém deve se sacrificar, pelo bem coletivo, de todos. O que, no
momento, fez com que eu pensasse sobre a quem é pedido/imposto tal sacrifício recorrentemente
durante a história do Brasil, à custa de quem e para quem tal dinâmica se justifica.
294

Assim também, como o Estado e a nação são construídos e pensados orientados


ao futuro (à sobrevivência de uma estrutura e à continuidade de um grupo), as
mulheres são vistas como elementos cruciais para o dito projeto político, que Yuval­
Davis também chama de processos políticos ou étnicos e raciais, de modo mais
genérico.
Ela propõe uma análise a partir de nationed gender and gendered nations, ou
seja, de compreender a construção de nação de forma generificada tanto em si quanto
em relação à ideia de gênero. Primeiramente, ela define que gênero e sexo devem ser
entendidos como modos de discursos e não como algo “dado”, “real”, mas construções
sociais que são utilizadas de modo discursivo. Logo, Yuval­Davis (1997) reforça o que
Denise Riley aponta ao considerar que “mulheres”, na verdade diz respeito a uma
categoria histórica e discursivamente construída, sempre em relação a outras categorias
que também passam por transformações.
Como já comentado, Yuval­Davis (id.) considera que a concepção de nação
(mas também de processos étnicos e raciais) localiza as mulheres como reprodutoras
biológicas e culturais, assim como personificadas na ideia simbólica de nação em si.
Enquanto os Estados são construídos como estruturas masculinizadas (em relação ao
meio de ação e de suas necessidades), as nações são simbolizadas de forma
feminilizada, ou seja, na figura de uma mulher que deve ser amada e protegida, assim
como uma mãe que perde seus filhos numa guerra (id.). Isto é facilmente perceptível
nas pinturas e representações de independências e guerras de países, onde uma mulher
(branca) normalmente é a personificação da nação. Não sendo, então, de se espantar
tantas mulheres serem reprodutoras e identificarem­se com discursos que reproduzem
violências e opressões, de forma que a produção da subjetividade de mulheres na
lógica capitalista e estatal tem como bônus o reconhecimento e legitimação de ser uma
mulher de bem, “respeitada”.
Desta forma, mulheres brancas cisgênero costumam ser socializadas e lidas
socialmente como as responsáveis pela reprodução biológica de um grupo (que
costuma assumir a premissa de ser superior aos demais e que por isso deveria se
“reproduzir”), o que se materializa no âmbito do Estado em políticas de incentivo ou
de desincentivo à reprodução de algumas mulheres, permeando a política pública sobre
questões como o aborto e educação sexual, onde pouco ou nada se consegue
desassociar dos valores cristãos, no caso do Brasil, da laicidade do Estado.
295

Como recentemente, quando a Ministra Damares Alves encabeça uma proposta


de política de Estado pautada na abstinência sexual como forma de tentar diminuir
gravidez na adolescência e ISTs (Amorim, 2019), de modo que, volta­se para a
individualização e controle dos corpos e comportamento, principalmente feminino, ao
invés de se pensar as relações sociais generificadas onde ocorre frequentemente a falta
de acesso à informação, educação sexual e sobre direitos reprodutivos, além das
violências de gênero das quais principalmente meninas e adolescentes são vitimadas,
em relações assimétricas, pautadas na ideia da família como detentora das crianças,
ainda que a violência ocorra principalmente nos lares e por conhecidos.
Políticas e discursos que incentivam a natalidade de crianças de alguns grupos
sociais, étnicos e raciais em detrimento da falta de atenção, serviços e até mesmo
condenação de mulheres de outros grupos é uma maneira de perceber de que forma se
corporifica essa visão das mulheres – e que atravessa classe e raça também. Quando,
em muitas das conversas que tive com mulheres no Tapajós, apareceu tanto a questão
da saúde como ponto central de suas preocupações, mas também as condições para
criar filhos e, atrelado a isso, o desejo de tê­los ou não.
São formas de se impactar as vidas e as liberdades, o poder de decidir o próprio
destino, ou de sentir­se confiante sobre ele, no que pauta, especificamente a
maternidade. É importante destacar, também, como tais políticas têm como premissa
uma referência cisnormativa e heteronormativa. Ou seja, como as políticas públicas
tocantes à saúde, em especial, adotam como objetivo atender a demandas naturalizadas
na concepção do Estado­Nação para atender a mulheres cisgênero e heterossexuais,
reforçando a noção de que o objetivo não é estar ligado às demandas sociais, mas
assegurar uma forma de relação sexual e generificada em questão.
Logo, esta concepção além de ser baseada em uma visão generificada que vê a
mulher como reprodutora em sentido passivo e também de objetificação de um dever
social/nacional, reforça um aspecto heterossexista de sociedade e de família, ignorando
outras configurações de famílias e orientações sexuais. Como amplamente
argumentado por V. Spike Peterson (1999), a identidade política dentro do nacionalista
é essencialmente heterossexista ao ponto que políticas serão todas identitárias neste
sentido, ainda que sejam normalizadas e naturalizadas como referência.
Pois, para ela, “o estudo do nacionalismo, as dicotomias positivistas que
favorecem a razão instrumental e as atividades da esfera pública alimentam uma
negligência da emoção, desejo, sexualidade, cultura e ­ daí ­ identidade e processos de
296

identificação” (Peterson, 1999, p. 57). Assim, o nacionalismo mobiliza formas de


compreensão e visão de mundo que ao se representar subjetivamente também exerce
grande influência na subjetivação de atores, estaria implicado, desta forma, nas
identidades políticas e de identificação.
O que é um nítido contexto do sistema moderno/colonial de gênero como
abordado por Lugones (2008), onde se adotou uma imposição de referências
generificadas sobre os corpos, do dismorfismo biológico na dicotomia homem/mulher
como forma de se organizar a sociedade, sendo, assim, negadas outras concepções
sobre corpos e relações sobre famílias, reprodução e sexualidade.
Aqui, pode­se retomar o caráter da atuação de jesuítas na colonização no Brasil
em relação às mulheres indígenas, onde a catequização e a imposição de novos nomes
e o aprendizado de novas línguas era considerado estratégico visando o potencial de
difusão que se teria uma vez que elas poderiam educar seus filhos já nesses novos
parâmetros.
Da mesma forma, pode­se identificar também o contexto da escravidão como às
mulheres negras escravizadas eram atribuídos trabalhos de cuidados de forma
naturalizada, fosse pelas recorrentes violências sexuais, fosse pelo significado da Lei
do Ventre Livre de 1871 e a lógica pela dinâmica anterior a ela.
Neste ponto, a questão da violência de gênero é ponto central na visão que se
tem do “lugar” ou “papel” de mulheres nesses processos políticos de nação, de modo
que a violência, o casamento forçado e outras tantas práticas não se dão apenas como
ações espontâneas, mas têm como base um fundamento tanto de relação de
desumanização de mulheres, como também um projeto de embranquecimento da
sociedade e nação que se buscava formar.
A violência de gênero foi utilizada desde o início da colonização no Brasil
como um instrumento de colonialidade de gênero, de apagamento e negação, mas
também visando um contexto de mestiçagem que viria a negar essas dicotomias
hierárquicas futuramente, ainda que continuassem sendo a base da formação da
sociedade brasileira.
Nesse sentido, percebem­se ainda hoje essas referências de como as políticas
são pensadas e inseridas nessas lógicas: quando se busca criminalizar e punir mulheres
que abortam (sendo majoritariamente mulheres pobres e negras, enquanto brancas e
ricas abortam com suporte médico seguro); quando ao mesmo tempo, a alta taxa de
fecundidade de mulheres negras, indígenas e pobres (IGBE, 2010) é, muitas vezes,
297

interpretada como uma consequência indesejada de programas de redistribuição de


renda e a baixa taxa de mulheres brancas e com alta escolaridade é visto como um risco
ao futuro da sociedade (em sentido produtivo econômico).
Nota­se, então, que quando críticas a políticas que salvaguardam o direito
reprodutivo são em torno do fator de envelhecimento da população, significando perda
de parte da população ativa, tem­se, enfim, uma questão econômica e produtiva e não
moral em sentido necessariamente religioso.
O que se pode inferir sobre esse cenário é como o próprio discurso de
maternidade enquanto uma realização pessoal da mulher se contradiz ao passo que as
políticas e os discursos giram muito mais em torno de uma “necessidade” da nação ou
do grupo, do que de fato uma realização da mulher, de modo que algumas mulheres
terão o direito à maternidade tanto impedido ou dificultado por questões raciais e de
classe, como também são vitimadas por um julgamento moral a respeito do
comportamento sexual. E, aqui, não se trata apenas sobre o direito reprodutivo em
torno da descriminalização do aborto, mas como as próprias condições sociais afetam o
direito à maternidade (à escolha e à sua realização).
Muitas pautas presentes nos movimentos de mulheres que foram destacados em
seções anteriores tocam no ponto central do futuro das crianças, dos filhos e como as
políticas de Estado têm ameaçado suas sobrevivências, assim como, elas apontam as
relações entre a necessidade de respeitar a natureza como mãe. São pontos que,
dialogados com a colonialidade de gênero e de mãe natureza, tornam explícitas as
incoerências premeditadas dentro do projeto de nação para algumas mulheres e mães.
Esta aparente digressão aqui feita não é infrutífera para o que se tem como
objetivo. É importante no sentido de levantar questões sobre as políticas de acesso à
saúde materna, por exemplo, à educação sexual, à formulação de políticas públicas e
também como muitas mulheres se vêem em questão frente a seus projetos de vida e à
relação com a maternidade e também aos trabalhos de cuidado; como o tempo será
visto e dividido dentro desse contexto.
Como também já citado, Yuval­Davis e Anthias (1989) reforçam que essas
formas de se perceber as mulheres na ideia de nação e em grupos étnicos e raciais não
significam que elas se dêem de forma passiva, que não haja participação das mulheres,
reprodução ou contestação, mas nos servem no sentido de nos levar a compreender a
qual o lugar é atribuído às mulheres na construção do projeto de nação, da mesma
298

forma que potencializam a percepção das subjetividades ativas das mulheres em


detrimento do que se espera sobre elas.
Não significa dizer que mulheres não possam reproduzir relações de dominação
e opressão nestes contextos, principalmente em relação a homens e a mulheres de
outras classes e grupos étnicos e raciais. Como já abordado por diversas autoras aqui,
como a própria Yuval­Davis e também María Lugones, as opressões se sobrepõem em
diferentes dinâmicas, e principalmente no colonialismo onde se estrutura a partir,
basicamente, da exploração e subjugação a partir de um argumento racializado sobre os
grupos que serão subalternizados.
Como inicialmente apontado, Shirin M. Rai (2008) vê que o desenvolvimento e
o nacionalismo são elementos comuns, que se justificam um pelo outro, sendo aliados
historicamente ao imperialismo e ao colonialismo, que se reconhecem como elementos
da missão civilizadora de um povo a expansão do seu domínio territorial e sua cultura.
Rai (2008) considera, assim como Lugones (2014), que o homem político e
econômico é visto como o cidadão, e é a partir dos valores e interesses desse grupo que
as pautas e políticas serão pensadas e apresentadas de forma universalista e
hegemônica, enquanto mulheres e homens “subalternos” acabam sendo cooptados pelo
programa das elites nacionais. Ela concorda com o fato já aqui exposto de que muitas
mulheres (principalmente da elite e brancas) participaram ativamente da construção
desses programas e do imaginário nacional, ainda que, não tenham acesso aos mesmos
recursos de poder e econômicos que os homens das elites.
Rai (2008) reforça que a partir de um “papel” atribuído a mulheres como
reprodutoras biológicas, culturais e ideológicas de um grupo, as ideologias de gênero
do nacionalismo moldaram as formas em que o trabalho das mulheres foi configurado,
contado, avaliado e recompensado. A cientista política indiana destaca que a
construção de projetos nacionais e da agenda de desenvolvimento só foi possível e tem
como base o posicionamento das mulheres dentro das famílias e das sociedades; sendo
basicamente localizadas como reprodutoras da raça ou como parte da contribuição
econômica e produtiva (não necessariamente remuneradas).
Indo além, Shirin M. Rai (2008) discorre sobre como esses dois projetos
tornaram possível uma aliança entre as elites masculinas coloniais e nacionalistas.
Contudo, no caso do Brasil, o contexto de projeto de nação e até mesmo de
movimentos nacionais/nacionalistas se deu de forma diferenciada, fragmentada, tardia
299

e inconclusa, em comparação com outros processos de lutas por independência na


região.
Diferentemente da Índia, caso analisado por ela, o contexto de independência
política da Colônia não se deu com rompimento das estruturas ou modificação dos
interesses a partir de um movimento de cunho nacionalista, muitos menos de
consolidação de uma identidade nacional, mas pela continuidade dos mesmos grupos
de elites locais e portuguesas. Tanto que, durante praticamente todo o século XIX,
enquanto Império, pouco havia mudado o contexto social e das relações de opressão,
autoritarismo e de exploração de mulheres e homens negros, indígenas e de classes
mais baixas.
Ainda que Shirin M. Rai (2008) faça menção interessante à proliferação do
republicanismo na América Latina e como se buscou durante o século XIX uma
validação e legitimação na imagem dos “índios”, como é presente, por exemplo, na
literatura brasileira no movimento conhecido como Indianismo, onde se dá uma
exaltação, idealização, mas carregada também de exotismo, assujeitamento e
infantilização dos povos, assim como fortalecendo um imaginário de “congelamento”
de suas culturas no tempo.
E a tônica continua mesmo após a proclamação da República, apesar da
abolição da escravidão – menos como iniciativa da família real e muito mais pela
mobilização social que já ocorria nos quilombos e do movimento abolicionista – as
políticas racistas não mudaram estruturalmente a opressão e a exploração do trabalho,
assim como a inferiorização continuam sendo a política, adicionando­se políticas
eugenistas e de embranquecimento da população que se seguiram, como já citado
previamente.
Sobre as mulheres e os homens as ideologias coloniais e as construções de
gênero se deram de formas diferentes, dependendo principalmente dos grupos étnicos e
raciais envolvidos. Para homens africanos negros, por exemplo, o imaginário colonial
os categorizou como bárbaros, selvagens, enquanto os homens asiáticos foram
“feminilizados”, tratados como eugenicamente fracos, o que encontrava à época
embasamentos no chamado racismo “científico”.
Nesta ótica, as mulheres “colonizadas” eram vistas como sujeitas
desumanizadas e em oposição às mulheres brancas burguesas e de elite (que deveriam
ser protegidas), como mulheres que tinham mais força para trabalhos dos quais as
mulheres brancas eram proibidas de exercer; ao mesmo tempo em que a “pureza” e a
300

“castidade” de mulheres brancas era bem vista e idealizada, as demais mulheres eram
hipersexualizadas e tinham seus corpos ainda mais objetificados.
Por outro lado, eram também muitas vezes vistas como “mulheres a serem
salvas” de homens selvagens ou fracos, como se essas mulheres devessem ser
“resgatadas” e “civilizadas” e como se a tarefa fizesse também parte de certa missão do
homem branco. Shirin M. Rai (2008) identifica a questão como um processo que está
aliado ao projeto político e legitimado pelo poder de uso da força do Estado e pelo
discurso de modernização.
Ela cita o já comentado cenário que se dá na colonização na América Latina e
as violências contra as mulheres indígenas, o que muitas vezes levava também à
abdução destas e ao trabalho forçado em serviços domésticos e de cuidado que
normalmente eram a base da expansão do projeto colonial, tornando­a possível. O
mesmo pode ser analisado no âmbito das mulheres africanas forçadamente deslocadas
e com seu trabalho explorado no Brasil, assim como as nascidas aqui.
Quando as políticas econômicas passam a adotar um viés de inserção no
mercado internacional é também o trabalho das mulheres que é a base da economia
(entre as que viviam em situação de exploração e escravidão, mas também as mulheres
que exerciam trabalhos mal ou não remunerados). O que se dá também pela exclusão
do acesso de mulheres a terras, educação e a outros direitos. Paredes (2010) destaca
como, já citado, a partir de 1985 a América Latina passou por um ajuste estrutural ao
neoliberalismo e como sob o pretexto de solucionar as economias destes países houve
um processo de intensificação do cenário de exploração da força de trabalho e da
precarização, principalmente atingindo mulheres trabalhadoras rurais e urbanas
proletárias, negras e indígenas.
Assim como, ela aponta como ao mesmo tempo mulheres de classe média e alta
se beneficiaram do período neoliberal, onde ganharam proeminência também ONGs
capitaneadas por mulheres orientadas ao feminismo liberal e burguês (Paredes, 2010),
predominantemente branco. Enquanto o trabalho manual e doméstico, executado por
outras mulheres, continuou sendo base dessas atuações, pautas e avanços conquistados
se restringiram basicamente aos interesses de uma classe específica, sem que houvesse
impacto estrutural no capitalismo e no Estado­Nação, mantendo, assim, certo status
quo.
O que, mais uma vez, remonta ao processo de axiomatização de fluxos
decodificados, como uma estratégia de se esvaziar movimentos sociais. Paredes (2010)
301

aponta ainda como o feminismo aceito e difundido atualmente em diversas instituições


é apenas o que compactua com a manutenção da exploração do trabalho e do tempo de
mulheres de classes mais pobres, negras e indígenas, de modo que não representa, de
fato, uma proposta de ruptura com o patriarcalismo racista, mas se alia a ele. Análise
similar é conduzida também por bell hooks (2018).
Esse apontamento pode servir como ponte para a análise das relações de gênero
e trabalho citadas em entrevistas e percebidas na convivência. Como, por exemplo, o
artesanato ainda que visto como um trabalho de mulheres é produto, na verdade, de um
trabalho familiar e comunitário. Abordando a divisão sexual do trabalho (Federici,
2012) poderia­se concluir que a relação artesanato­mulheres e turismo­homens seria
simplesmente explicado nessas linhas.
No entanto, pelas muitas conversas que tive com Nice e suas filhas ao longo
dos anos, fica claro que essa dinâmica é muito mais complexa dentro da comunidade.
Não afirmo aqui que não haja uma carga de trabalho doméstico que recaia mais sobre
as mulheres, mas que como a dinâmica é percebida e relatada, no caso do artesanato
nos permite outras reflexões, principalmente sendo possível desestabilizar uma
referência feminista individualizada típica à de tradição ocidental.
Quando Priscila me relatou como muitas das etapas do processo de confecção
manual eram compartilhadas com seu marido – era ele quem colhia as sementes na
floresta, fazia o processo de fervura, tingimento e preparação delas. Em sua concepção,
se o trabalho exigia a colaboração de toda a família, a renda auferida também era fruto
do esforço coletivo.
As mulheres se tornaram “a cara do artesanato” na comunidade, como relatado
por Nice, após a promoção de oficinas voltadas para a capacitação e empoderamento
das mulheres da região. Tais oficinas pretendiam dar às mulheres ferramentas para o
aumento de renda, estimulando sua independência financeira. No entanto, é importante
examinar criticamente esse tipo de iniciativa. León (1996) identifica que, na América
Latina, o princípio da neutralidade de gênero é mantido no nível macro das políticas,
perspectiva que identifica as mulheres como um “recurso desperdiçado” que precisa
ser devidamente integrado, o que muitas vezes resulta em políticas públicas que gerar
mais desigualdade, somando­se à reprodução dos “papéis” socialmente atribuídos às
mulheres.
A reprodução desses padrões é facilmente observada analisando o tipo de
investimentos financeiros feitos para as mulheres no “Terceiro Mundo” e como esses
302

projetos são muitas vezes concebidos para fazer cumprir as expectativas estrangeiras,
falhando em compreender a vida das mulheres para as quais se destinam, como bem
como seu papel dentro de suas comunidades. Ao vitimizar mulheres em países do
“Terceiro Mundo”, negando sua agência dentro do contexto social em que estão
inseridas, essas iniciativas frequentemente se enredam em sua própria forma de
colonialidade de gênero.
Mulheres e homens têm, assim, seus projetos de vida atravessados por essas
linhas. Mas, como já discutido em momentos anteriores, essa dinâmica não é
totalmente assimilada ou tampouco passivamente recebida. Os modos de vida e as
formas de organizações sociais, assim como as subjetividades, resistem há séculos
enquanto fluxos que escapam a uma lógica que se mostra predominante, mas não
totalmente dominante.
Assim, apesar de se voltar para o cotidiano das vidas de mulheres e,
principalmente, suas construções diárias sobre como viver e defender seus modos de
viver, busca­se relacionar essas construções com um contexto macropolítico que
envolve a ideia de desenvolvimento e como esta se insere no projeto de nação. Logo,
buscou­se partir do “projeto de vida” enquanto categoria de análise, que não possui
necessariamente um método, uma fórmula específica de definição, mas que se entende
e assume que este se relaciona com:
1. A produção de subjetividade em relação ao desejo, com o Estado e o
capitalismo;
2. A lógica da modernidade/colonialidade e os eixos de colonialidades;
3. A percepção espaço­temporal de cada sujeito/a e em seus contextos;
4. As políticas adotadas no esteio de um projeto de nação.
Pensei que, ao abordar os projetos de vida de indivíduos seria possível ter um
vislumbre privilegiado das relações e dinâmicas de poder numa sociedade e da forma
como a macropolítica e a micropolítica os atravessam. Analisar os projetos de vida
possibilita pensar o futuro­presente­passado, a relação consigo, com o lugar, com a
comunidade/sociedade e os seus relacionamentos, com o contexto social e político,
com os sonhos e desejos, as limitações e as condições reais da vida. Assim como,
permite pensar as diferentes formas de processar contextos similares e a possível
influência de marcadores de gênero, de classe e de raça.
Enquanto inserida numa abordagem decolonial e também aproximada à
esquizoanálise, não se adota uma referência de fixar uma categoria de análise muito
303

específica, apenas de utilizá­las como referência de organização cognitiva e discursiva


sobre determinado contexto, visando perceber como a discussão se desdobra quando
são direcionadas não para o lugar como um todo e também não para a sociedade
brasileira ou em relação às políticas no geral, mas para as percepções e experiências
individuais.
A partir da compreensão de como nós construímos nossos projetos de vida,
pensei em utilizar como um meio para pensar com as sujeitas e os sujeitos como essa
macropolítica interfere em nossas vidas e como os planos e metas são definidos,
almejados, reconfigurados, descartados e articulados. Ponderei sobre como repensar as
dinâmicas aqui expostas a partir dessas experiências e, inclusive, discorrer sobre a
relevância e viabilidade das escolhas teórico­metodológicas feitas na presente pesquisa.
O ímpeto de tentar construir projeto de vida enquanto uma categoria de análise
se deu na intenção de tentar aproximar e tornar possível pensar todas as dinâmicas
involucradas em aspecto macro e micropolítico sem perder de vista a questão das
subjetividades, da construção dos caminhos e como as vidas são impactadas e vividas
nesses cenários. Mostrar a diversidade, pluralidade, ao mesmo tempo em que existem
fatores comuns.
Identificou­se também, em diversas etapas da pesquisa, as próprias
contradições entre projetos de vida e o projeto de nação, mas também dentro de
contextos de contestação da lógica moderna/colonial e como, ao mesmo tempo,
reproduziam­se parâmetros de desenvolvimento e outras formas de pensar e se
organizam socialmente, inserindo­se no capitalismo como fatores de sucesso social.
Tudo isto ocorrendo ao mesmo tempo e alternando­se constantemente.
A premissa assumida na presente tese foi a de que os projetos de vida e de
nação são contrastantes – mas assentando­se em tentar acompanhar como sujeitas se
relacionam com essas dinâmicas e a produção de subjetividades. Não em sentido
generalizado, como se fossem totalmente opostos, já que ainda em diferentes
momentos foram percebidas as reverberações de alguns elementos em comum entre o
que se defende para a “nação” e como para si. Da mesma forma, os projetos de nação
muitas vezes são compatíveis com os projetos de vida de alguns indivíduos da
sociedade; mas a premissa assume que uma proposta política para a nação contrasta
com os projetos de vida de indivíduos com modos de vida específicos da região
definem para si.
304

Contudo, assinala­se que a definição do projeto de nação – não apenas da


brasileira – se dá a partir de grupos dominantes e da imposição e institucionalização de
seus interesses, valores compactuados em um projeto dito para toda a população, de
interesse comum. A falsa universalidade, representatividade e a presunção de uma
homogeneidade de interesses que ignora contextos diferenciados de gênero, de classe e
de raça, apontam as vulnerabilidades do projeto – que se coloca como – da nação.
Em seções anteriores, buscou­se remontar as discussões sobre a relação da ideia
de nação, gênero e desenvolvimento, onde se abre uma reflexão sobre a produção de
subjetividades em contextos de iniciativas de produzir subjetividades homogêneas, que
desejem o mesmo, mas que, ao mesmo tempo, o projeto de nação cria mecanismos
discursivos e institucionais generificados, racializados e com base em classes.
Ou seja, enquanto o projeto de nação se apresenta como um destino comum a
toda uma população, diferentes “papeis”, “funções” e até mesmo “explicações” buscam
construir formas de direcionar sujeitos e sujeitas pertencentes a alguns grupos sociais a
se localizarem na nação em determinados espaços restritos de forma a entenderem que
a sua contribuição para a nação estaria em ora abrir mão de direitos, não questionar as
instituições, o governo e o Estado; ora reproduzir na sua própria vida e decisões os
argumentos de que o seu papel de subalternização seria necessário e indispensável para
o futuro da nação.
Paradoxalmente, o trunfo discursivo recorrentemente utilizado para justificar
políticas que são mal recebidas por populações na Amazônia, como as iniciativas de
mineração, o avanço da soja e da construção de barragens para usinas hidrelétricas,
pauta­se na soberania dos interesses nacionais sobre os interesses privados ou de
alguns grupos específicos; sobrepondo­se às necessidades e modos de vida da
população, a nação exigiria um desenvolvimento energético e extrativista, voltado para
o paradigma de modernidade/colonialidade.
Nessa lógica, caberia aos povos indígenas, da floresta, quilombolas e
ribeirinhos o sacrifício de suas vidas e culturas pelo bem da nação. Como analisado
por Yuval­Davis (1997) a difusão dos valores legitimados pelos grupos que têm acesso
ao poder se dá por diversos meios, usando do aparato do Estado, pela educação, mas
também pela mídia, pela religião e outras fontes de agenciamento coletivo.
A infantilização, a culpabilização e a segregação enquanto funções da produção
da subjetividade capitalística descrita por Guattari e Rolink (1996) coadunam com essa
lógica, tanto segregando os indivíduos e os marginalizando aos parâmetros legitimados
305

e desejados na sociedade, quanto reforçando um caráter de tutela submissa ao Estado e


de culpabilização pela não adequação aos padrões sociais impostos.
A narrativa utilizada para mobilizar e cooptar homens e mulheres que serão
subalternizados nessa dinâmica se dá pelo que já foi abordado aqui em diversos
momentos – a produção de subjetividades ou o colonialismo mental, a epidermização
dessa colonização, nos termos de Fanon, em que se vê o projeto como uma promessa
de “humanização” a partir do momento que a pessoa se adequa aos padrões
legitimados, ainda que inalcançáveis por ela.
O vestir­se como, pensar como, falar como, trabalhar como, será visto como
maneira de “civilizar­se” e unir­se à “nação”. Idealizada na figura da família branca,
burguesa, cristã, heterossexual, em que cada indivíduo se sacrifica (dentro dos padrões
esperados de cada gênero, classe e raça) pelo futuro da nação e seu projeto nacional.
E é por essa narrativa estratégica que se exclui e ao mesmo tempo se coopta
muitas vezes mulheres e homens, garantindo a reprodução e a consolidação da
promessa de acesso a uma cidadania total. Para isso, seria preciso despir­se de qualquer
remanescência de cultura, pensamento, comportamento ou desejo que se remeta ao que
é entendido como primitivo, atrasado, selvagem.
O desenvolvimento (e tudo que ele envolve) se mostra, assim, como uma
estrada de tijolos amarelos cintilantes, um caminho certo e definido a se seguir, para
enfim se alcançar um lugar social de reconhecimento e direitos. O caminho do
desenvolvimento é apontado em todas as esferas da vida social, pela família, pela
igreja, pela mídia, pela educação.
A ciência é instrumentalizada de modo a permitir o desenvolvimento (em
sentido pessoal e também econômico e nacional) a partir da negação e do
distanciamento das subjetividades e das diferenças, onde sujeitos e sujeitas devem
abolir aquilo que são em prol de uma visão pretensamente neutra e objetiva, mas que,
na verdade, apenas significa a epidermização de valores sociais e culturais de
determinados grupos interessados.
Outras epistemologias são diminuídas, desvalorizadas e inviabilizadas de
circularem e moldarem as políticas, menos ainda de participarem de forma ativa da
discussão de um projeto de nação. Mesmo em uma democracia representativa, os
corpos que são lidos como os mais “preparados” para tal missão continuam sendo
predominantemente os que, não coincidentemente, também foram os principais
definidores e reprodutores desses modelos dominantes.
306

Assim, já existe uma pré­vantagem social, racial, de classe e de gênero no


caminho para poder participar do processo de formulação e definição de políticas, o
que, não necessariamente se dá por meritocracia. Um exemplo material do exposto é o
resultado de uma pesquisa realizada pelo Instituto Real Time Big Data, em 2018, onde
os entrevistados responderam sobre as características ideais para o futuro presidente do
Brasil, chegando ao seguinte perfil: 65% o definem como um homem; 73% que deve
ser branco; 89% que deve acreditar em Deus; 77% que tenha formação universitária;
80% que tenha experiência política; 85% que não seja investigado por corrupção e
72% que tenha apoio de partidos políticos (Saringer e Moraes, 2018).
A imagem do representante da nação brasileira, tanto em sentido de cargo
político, mas também no imaginário acaba por ser um homem branco, heterossexual e
cristão, que é o perfil majoritário dos políticos e representantes, assim como é o perfil
que representa o dos colonizadores do Brasil e, sendo lidos, automaticamente, como
herdeiros legítimos desse poder.
Podemos traçar aqui uma relação com a concepção de rostidade/rosto para
Deleuze e Guattari (1996) em que a máquina de rostidade não é universal, mas tem
como referência o próprio homem branco europeu, como o Cristo e, assim, outros
“rostos” são considerados desviantes, como homens negros, árabes, amarelos, etc. E
como essa rostidade se relaciona com o racismo também, onde as pessoas de foram não
existem, apenas existem aqueles que “devem ser como nós”. A rostidade se dá entre
binarismos, partindo de um “sim” e o “outro” sendo sempre o “não”, a negação (o
pobre, a mulher, o negro). É pelo rosto que as subjetividades vão ser relacionadas.
Entretanto, apesar da dinâmica dominante de produção de subjetividades tanto
em relação ao capitalismo e sua ligação com um argumento de interesse nacional,
sempre houve dissidências. Questionamentos desses projetos, revoluções, revoltas e
lutas contra essas estruturas, ainda que tenham sido historicamente reprimidas por
políticas genocidas e etnocidas, ainda assim, resistem.
Compreende­se que se pode perceber melhor a dinâmica de fluxos
decodificados não apenas por meio dos movimentos sociais, como a maioria das
abordagens sugere, apesar de serem muito importantes para a produção de
subjetividades e revoluções moleculares, mas que se torna relevante também entender
projetos de vida individuais, que não necessariamente de forma individualista, como
todas essas dinâmicas são processadas.
307

Pensar a partir dessa categoria traz a possibilidade de compreender os


parâmetros próprios do que seria desenvolvimento, inclusive em outros termos, as suas
prioridades e de que forma as políticas deveriam atender a suas necessidades de
maneira eficiente.
Como a presente tese propõe pensar esses projetos com mulheres e que vivem
no contexto da Amazônia, percebe­se também a relação com o pensar o futuro
enquanto futuras esposas e mães como um elemento recorrente. Ainda que se dê pela
negação seja da união estável ou do desejo por filhos, mas que de qualquer modo
aparece como algo a se posicionar sobre e como a referência de futuro para sempre
provocar o pensamento sobre a vida de filhos, de netos, da comunidade, não
necessariamente adotando um sentido individualista de futuro.
A noção do tempo enquanto uma instituição e construção social (Elias, 1998)
também pode ser considerada e possivelmente tensionada com a visão predominante da
modernidade/colonialidade, na qual o futuro é visto e tratado como um avanço
evolucionário, linear e constante de aprimoramento. Logo, pretende­se possibilitar a
retomada a essa compreensão de tempo e futuro a partir das visões das mulheres e o
que esse tempo significa.
Pensar projetos de vida também visa permitir compreender melhor a relação
que se tem com o lugar onde se projeta esse futuro, se há ou não um atrelamento dos
futuros a um lugar específico; assim como, de que forma essas perspectivas e metas
levam ao deslocamento em busca de melhores condições de vida. Outro ponto é abrir
para o debate sobre desenvolvimento enquanto um parâmetro de qualidade de vida e
quais seriam esses critérios, entendendo que não necessariamente tudo referente seja
descartado, mas de que modo os projetos de vida vão se mesclar a partir de outros
modos de vida e também com alguns elementos da própria modernidade.
Ademais, pensar qualidade de vida e bem­estar mostra­se limitado nesses
debates, direcionando e abrindo caminho para tentar compreender essas referências de
viver e necessidades humanas a partir de outras perspectivas como a do Bem Viver
(Acosta, 2016) e também do desenvolvimento à escala humana (Max­Neef, Elizalde e
Hopenhayn, 2010).
Considera­se também que pensar esses projetos pode contribuir para as
discussões teóricas­práticas tanto da decolonialidade, do feminismo decolonial e da
esquizoanálise, indo além dos direcionamentos e reconhecimentos de possibilidades e
potencialidades de resistência. Possibilita uma discussão mais profunda de como todos
308

os elementos contraditórios mesmo de quem pratica uma subjetividade ativa se dá no


meio de estruturas estatais e capitalistas.
Não se propõe uma visão romantizada de resistência enquanto pessoas que
lutam contra um sistema em prol de uma revolução, mas de pessoas que lutam, sim, de
diferentes formas e a partir das ferramentas à disposição e outras construídas buscando
garantir suas sobrevivências físicas e também culturais, de seus modos de vida e de
suas comunidades, em que cada dia é, em si, uma vitória.
Os projetos de vida e projeto de nação não possuem uma ordem de origem, mas
o segundo possui um histórico estável de reprodução de certos valores, alinhados à
modernidade/colonialidade; enquanto os projetos de vida possuem um dinamismo mais
visível e frequente, ainda que se relacione, tensione e conteste o próprio projeto de
nação. Apesar de haver uma hierarquia entre esses projetos na estrutura política
analisada, onde a nação se sobrepõe aos indivíduos e desumaniza os que nela não são
identificados como membros legítimos; na análise aqui adotada não se presume que o
projeto de nação predomine nos projetos de vida individuais de mulheres e homens no
contexto amazônico. É algo que se coloca em aberto, para análise e reflexão futura.
Entretanto, ainda que este seja o contexto e o recorte de análise para a categoria
de projetos de vida, propõe­se que esta relação seja possível de ser verificada em
qualquer cenário e contexto político e cultural. Apesar do termo projeto já envolver em
si uma noção centrada na lógica da modernidade, acabei por adotá­lo até então de
forma temporária e provisória enquanto não logrei uma definição melhor para esta
categoria.
Mesmo que em diversos momentos da minha vivência tenha percebido que a
palavra não era a mais apropriada, ainda assim, a minha própria limitação, inundada
em uma subjetividade capitalística, fazia parecer impossível encontrar outro termo. A
palavra em si está embrenhada, a meu ver, em uma lógica moderna/colonial de
projeção e obsessão pelo tempo­futuro, como objetivo de domínio, como forma de
pensar uma organização da vida em torno de projetos.
As passagens anteriores poderiam ter sido escritas já com outra nomenclatura,
mas, acreditei ser necessário apresentar o processo em que se deram as últimas
elucubrações sobre o presente estudo, até chegar a novos caminhos.
309

14 E EM MEIO A ISSO TUDO… A VIDA: PROJETA-SE OU CAMINHA-SE?


Porque eu, uma mestiza,
continuamente saio de uma cultura
para outra,
porque eu estou em todas as culturas ao mesmo
tempo,
alma entre dos mundos, tres, cuatro,
me zumba la cabeza con lo contradictorio.
Estoy norteada por todas las voces que me hablan
simultáneamente.
(Gloria Anzaldúa)

O poema de Gloria Anzaldúa, assim como suas contribuições teóricas, nos


permite pensar sobre as produções de subjetividades em conflito, entre fronteiras,
entremeadas por diferentes referências de vida e cultura, condições e restrições às
escolhas (Anzaldúa, 2005). Como discutido até então, as subjetividades produzidas no
âmbito do capitalismo e em uma estrutura estatal tendem a produzir desejos alinhados
ao projeto de nação, permeado por elementos e símbolos da
modernidade/colonialidade, de hierarquização de parâmetros a partir do atribuído ao
que é desenvolvido, europeu, ocidental.
A sobrevivência do capitalismo e do Estado­nação depende diretamente da
produção de subjetividades que produzam o desejo sobre suas continuidades, ainda
que, em muitas vezes resulte em processos de adoecimento de sujeitos individuais e da
sociedade também. O surgimento dos dois aqui referidos pauta­se no princípio de
segregação, ainda que o capitalismo, por um lado, utilize de um discurso falacioso de
meritocracia, onde as desigualdades são culpabilizadas nos indivíduos e não na
estrutura ou no sistema, enquanto o Estado nacional impõe uma referência homogênea
cultural sobre as pessoas, atrelando­as em sentido jurídico e legal aos seus direitos, de
forma que para se viver e ter acesso a direitos e à participação política, presume­se uma
aceitação da estrutura que organiza a vida social e política, como exaustivamente
abordado por contratualistas.
Existe uma narrativa que naturaliza tanto o capitalismo quanto o Estado­Nação,
a ponto de muitas pessoas nem sequer conseguirem imaginar outra forma de viver sem
ser nesses parâmetros, mesmo sendo dois fenômenos extremamente recentes na
história da humanidade, e apesar de amplamente implantados e enraizados no
cotidiano, apresentam constantemente crises e necessidades de reformulação para
garantir uma continuidade.
310

Assim, ao longo deste estudo – entre leituras e vivências – pude chegar ao


ponto de inferir que tais estruturas, apesar de possuírem mais acesso a poder político e
econômico, não são fenômenos que se dão de forma onipotente, mas sim que têm sido
constantemente reformulados a partir das pressões de continuidades de modos de vida
que não se alinham aos seus propósitos, dentro de um sistema que é em si capitalista e
estatocêntrico. Têm coexistido simultaneamente apesar de toda a assimétrica relação,
assim como o recorrente uso da força e da violência e de diversas formas de opressão
como estratégias e práticas adotadas para neutralizar e destruir modos de vida que
ameacem a estabilidade e a supremacia desses modelos.
A colonização tem como contexto central a emergência dessas formas de
organização política e econômica que serão consolidadas nos séculos seguintes ao XVI
e nota­se quanto o colonialismo incutiu o desejo de ser ou estar próximo ao único tipo
de sujeito que tinha sua humanidade reconhecida e legitimada: o si, o “eu” deles,
europeu, branco, homem, cisgênero, heterossexual, burguês, cristão.
E, tal desejo, não se deu apenas pelo fato de quem não se encaixava em tal
humanidade ter seus direitos negados e ser subalternizado, como uma forma de
recalque, mas sim pelo fato de terem sido criadas instituições que forneceram
ferramentas para que tal horizonte não fosse apenas desejado, mas o único visto como
possível para se alcançar uma vida digna. Logo, sistemas econômicos e políticos estão,
todos, embebidos em noções generificadas e racializadas, ainda que possam parecer
elementos invisíveis, de tão naturalizados que são seus símbolos.
Assim, mesmo com o fim formal da colonização europeia sobre tantos
territórios colonizados, já se haviam solidificado bases para a manutenção do projeto
de uma nação embranquecida e catequizada, em que cada sujeito e sujeita teria certos
papeis a serem desempenhados: quem deveria pensar essa sociedade, quem deveria
reproduzi­la, quem deveria protegê­la, quem deveria construí­la por suas próprias
mãos.
Aos homens e mulheres cujas humanidades sempre foram negadas neste
contexto restava então uma redenção, para alcançarem o sonho prometido de serem
cidadãos. Parecer­se com, assimilar os elementos de reconhecimento social de
prestígio, como se isso fosse uma forma de expurgar pecados cometidos por terem
nascido em determinado contexto tido como “inferior”.
311

Contudo, apesar de estruturas extremamente bem sucedidas nestas


socializações de colonialismo epistemológico, como trabalhado por Frantz Fanon
(2008), a realidade é sempre mais complexa. Pode­se ter chegado a uma naturalização
e legitimação de um discurso de como um cidadão de bem é e deve se comportar, para
que saia de sua condição subalternizada, seja de mulher, de ser negro ou indígena, de
ser pobre ou outro. Analiso que estamos constantemente andando aqui sobre as
diversas linhas esquizoanálise, onde intermediamos a narrativa hegemônica com outras
referências e dinâmicas que produzem nossas subjetividades.
No caso da Amazônia, por exemplo, analisamos anteriormente como o processo
de ocupação/colonização diferenciado pode ter contribuído para uma subjetividade da
região que é lida sempre de fora, por discursos construídos de forma generificada e
racializada, que, também acabou por possibilitar processos de resistência – como
muitos outros pelo Brasil – de rejeição a uma identidade nacional brasileira, de um
pertencimento forjado.
O exemplo da Cabanagem, que ainda permeia a memória recente dos
amazônidas e no imaginário de um não­pertencimento, ao mesmo tempo de um
isolamento e esquecimento imposto sobre a região por outras regiões, acaba por
possibilitar o que se pode pensar como uma forma de agenciamento coletivo de
enunciação, de produção de subjetividades que rompem ou tensionam a subjetividade
capitalística.
Ainda que a identidade amazônida acabe sendo uma reaçãoa uma imposição
identitária nacional forjada, acredito ser importante destacar como a própria ideia de
Amazônia em si também é forjada. Tanto na percepção de uma floresta homogênea
como todo o imaginário que a envolve. Mesmo os povos amazônidas possuem
diferentes relações com o lugar na região e o “perceber­se” amazônida acaba sendo um
processo que depende do contato e contraste com as narrativas exógenas.
Rememoro aqui a fala de Lalah sobre como ela sempre ouvia “falar da
Amazônia” e via programas na televisão, mas não sabia onde esse lugar ficava e muito
menos que vivia nela. Logo, é uma identidade também complexa ao passo que, em
tese, envolveria qualquer pessoa com pertencimento à região que é, em si, uma
invenção também.
312

Nas várias regiões da Amazônia existem diferentes culturas e relações com os


rios, a floresta, os saberes, apesar de, atualmente, por conta do processo de colonização
e a estruturação das regiões no país, tenha­se uma sensação de compartilhar um mesmo
lugar na idéia de Brasil. Contudo, internamente, existem pessoas de diversas culturas,
origens, classes e identidades étnicorraciais.
Ainda assim, a imagem da Amazônia hoje tomou proporções maiores que um
simples discurso e narrativa colonial, ainda reproduz­se internamente a mentalidade
colonial ou o neocolonialismo apontado por Fanon, mas não deixa de ser uma
referência de unidade de luta para povos da floresta, ribeirinhos, indígenas,
quilombolas e outras populações que partem da identidade como uma forma de
disrupção e resistência a um projeto nacional.
O fato de viverem na Amazônia brasileira uma das maiores concentrações de
povos indígenas, comunidades remanescentes de quilombos, povos ribeirinhos e outros
modos de vida que são ativamente anti­hegemônicos e anticoloniais, possibilita pensar
como a produção de subjetividades se dá dentro de estruturas que são hegemônicas,
mas não são homogêneas, onipotentes e onipresentes nos indivíduos.
Não afirmo aqui que apenas na região tal processo ocorra, pois não se podem
ignorar os processos de organização e movimentos em contextos também urbanos,
rurais e de outras formas em todas as regiões do país. Contudo, como parte da minha
subjetividade foi sempre atravessada por uma identidade amazônida, o que acredito ser
algo similar vivido em sentido de construção de identidade como o que ocorreu no
Nordeste, há um elemento que é preciso ser lido e analisado nas dinâmicas históricas e
políticas. Assim, destaco que para além de identidades ligadas a pertencimentos
regionais produzidos no âmbito da colonização, existem movimentos que desafiam até
mesmo essas divisões e perpassam todo o território nacional, como, por exemplo, o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Logo, é importante frisar que apesar da ênfase sobre como a região amazônica é
situada no projeto nacional, tais políticas e lógicas afetam todo o território e se
encontram com diversos movimentos de cunho anti­hegemônico e anticolonial, como o
citado. Posto que o projeto de nação tenha como uma das premissas a luta pelo
território, que é uma das principais bases de contestação de todos os movimentos aqui
citados, não em sentido de “propriedade” per se, mas enquanto disputa de modos de
vida e futuros para os territórios.
313

Destaquei nas seções anteriores como desde 2015 e, mais fortemente, 2016, as
principais formas de articulação e enfrentamento a políticas desenvolvimentistas que
têm sido impulsionadas e protagonizadas por mulheres indígenas e, com destaque, para
articulações de mulheres na região do Tapajós, aqui mais profundamente analisada. O
que, de certa forma, corrobora com o apontamento de Chandra Mohanty (2003) sobre
como que os sintomas e os sinais das dinâmicas de poder serão mais perceptíveis nos
corpos e nas vidas de mulheres e meninas que estão mais “à margem” de tal sistema.
Assim, olhar para as vidas das pessoas não é distanciar­se de fatores macro,
mas aproximar­se deles. Isto permite até mesmo uma percepção mais imediata de seus
efeitos, quando as pessoas reagem a tais processos. A crise política deflagrada desde
2014, que tem desde então apenas se agravado, tem sido acompanhada pelo
fortalecimento e mais articulação de resistência, principalmente de povos indígenas,
cujas formas de vida são diretamente incompatíveis com o projeto de nação, como
exposto aqui em cartas e declarações.
Da mesma forma, tem ficado explícito no contexto político, como nas eleições
de 2018, as mulheres foram um grupo majoritário e protagonista no impulso de
rejeição ao então candidato e hoje presidente, Jair Bolsonaro; assim como os povos
indígenas, movimentos negros e LGBTQI+. São sinais de como as subjetividades e as
linhas de segmentaridade, que nos atravessam, possibilitam que momentos políticos
sejam sentidos e percebidos de formas diferentes pelas pessoas.
Não pretendo afirmar aqui que tais processos tenham sido consensuais, mas
como as organizações recentes têm se articulado em torno das subjetividades, pela
aproximação de similaridades de modos de viver do que se deseja para si e para a
coletividade, são formas de se organizar. Contudo, apesar de não ter podido ignorar o
cenário político que acompanhou a formulação deste estudo, de 2017 a 2019,
finalizando­se no início de 2020, o foco não era necessariamente partir de um contexto
macropolítico para perceber o micropolítico, mas o contrário.
Não foi a intenção focar em movimentos sociais, que seria uma opção
extremamente relevante para perceber a época em que vivemos. Busquei observar
vivências de mulheres no Tapajós, na Amazônia; como suas vidas e suas formas de
processar os acontecimentos, as políticas, suas próprias necessidades e desejos, as
relações com o lugar, com a coletividade, como tudo isso poderia contribuir com
ferramentas para entender como nós nos relacionamos com o meio em que vivemos,
sendo este, atualmente, predominado pelas dinâmicas capitalistas e estatocêntricas.
314

Da aproximação que me propus fazer nos últimos anos sobre tal premissa,
alguns pontos emergiram. Enquanto eu parti de uma noção prévia de que ora tínhamos
projetos de vida/subjetividades alinhados e identificados como compatíveis com o
projeto de nação, ora tínhamos também outros projetos de vida/subjetividades que se
mostravam incompatíveis e, abertamente, propunham rupturas com tal estrutura e seus
parâmetros; o que acabei por perceber foram as subjetividades atravessadas por essas
ambiguidades.
Acho importante rememorar as entrevistas realizadas, as conversas ocorridas,
as pessoas que conheci, que não foram necessariamente ao acaso; não houve uma
manifestação também consciente de quem eu buscava para falar sobre projetos de vida.
Como a pesquisa se desenrolou como uma viagem, pessoas que conheci pelo caminho,
primeiramente em um processo de aproximação, pessoas que me foram apresentadas
por outras que eu já conhecia e, elas próprias, que identificaram o que eu devia
conhecer.
Assim, não houve um critério rígido, uma seleção, quem se aproximou e eu me
aproximei, quem se sentiu à vontade para compartilhar comigo e com quem eu também
troquei muito de mim, foram mulheres que estavam, como Cris e Fernanda, saindo de
suas vidas no Rio de Janeiro, em uma crise com o modelo de modernidade, em busca
de outra forma de viver, em Alter­do­Chão, na Amazônia, como eu também estava –
ainda que a possibilidade de comunicação pela Internet e ligações com amigos e
familiares das cidades de origem tenham sido importantes para a manutenção dos
vínculos.
Lalah, uma referência que Cris me apresentou como alguém da região que eu
precisava conhecer para entender muito sobre o contexto ali vivido e a pujança dos
povos indígenas no Tapajós. Outras pessoas, como Nice e seu marido Rosivaldo, suas
filhas Aline e Priscila, amigos de Cris, com quem estabeleci uma relação muito
profunda imediatamente, que sobrevive hoje além deste estudo, por mensagens de
ajuda com urgências, com notícias de nascimentos, acontecimentos corriqueiros
também, até mesmo sendo nomeada como “assessora” nas postagens do perfil do
Instagram da Maloca da Nice, como uma estratégia para melhorar a divulgação – que
foi uma demanda a partir de um curso ofertado pelo ICMBio recentemente.
315

Pessoas como Luza, Gildson, Enilde, Seu Colau, Dona Elzinha, Dona Elza,
suas filhas, todas as crianças da Coroca, que me acolheram, tomaram banho de rio
comigo, conversaram comigo sobre suas vivências comigo e eu com as minhas, sobre
nossas semelhanças e diferenças, sobre os seus e os meus projetos de vida, sobre o que
nos assustava e o que queríamos.
Assim, conheci muitas pessoas enquanto a tese caminhava. A maioria das
pessoas que conheci foram mulheres, o que acabou sendo um elemento de certo
direcionamento, pois percebi uma proximidade e facilidade maior nessa troca,
provavelmente por eu também ser mulher. Com todas eu tenho identificações e
diferenciações. Como o fato de ser amazônida, como a maioria, mas também por ter
crises em relação ao meu contexto de vida num cenário urbano, acadêmico,
assalariado, de classe média, como outras. Estou numa faixa etária próxima a de muitas
delas, ao mesmo tempo em que também não tenho filhos e não pretendo tê­los, como
algumas outras.
Acredito haver certo risco de o estudo parecer um processo demasiadamente
egocêntrico, sendo analisado dentro dos parâmetros consolidados da ciência
eurocentrada em torno de princípios, alguns às vezes falaciosos como a neutralidade e
a objetividade, contudo, se o tema fosse outro, talvez fosse até possível simular maior
afastamento, mas, falar de produção de subjetividades, adotando referências de
questionamento descolonial e da esquizoanálise já torna isso em si impossível e
incoerente.
Toda a vivência aqui descrita, assim como as leituras e análises, pesquisas
documentais, atravessaram minhas próprias linhas de segmentaridade, reformulando
minha noção de como viver, apontando outras formas, outros objetivos, outros
parâmetros. E, nesse caso, é impossível adotar um exercício falso como quando
desconsideramos a resistência do ar na Física. Há resistência no ar e nas linhas e as
vivências influenciaram diretamente no resultado aqui alcançado.
Por fim, as pessoas que entrevistei diretamente acabaram sendo mulheres que
estavam/estão todas, assim como eu, atravessadas por tais processos e em relações
diferentes de fronteira. Mesmo Lalah, que possui uma identidade indígena demarcada,
apontou como foi lento e demorado, na sua percepção, a sua tomada de consciência da
sua identidade e seu pertencimento à Amazônia.
316

Apesar de o território onde está delimitada a Flona do Tapajós já ter sido


identificada como um território ancestralmente de presença Munduruku e que ainda
hoje percebemos muitas continuidades e heranças culturais, não há uma identidade
consensual em torno disso, posto que enquanto alguns se autodeterminam Munduruku
e buscam resgatar a memória e a história do grupo, outros rechaçam e afirmam ser um
passado distante.
Já o contexto que envolve a Coroca, apesar de também estar localizada em
meio a muitos territórios identificados com o processo de resistência de muitos povos
indígenas, possui um processo de ocupação ainda recente, originados todos de uma
mesma família. Ainda assim, existe uma memória forte coletiva que perpassa as
comunidades do Arapiuns que é a referência da Cabanagem.
O caso da Flona do Tapajós e suas comunidades e da Coroca, retratam algo
familiar a praticamente toda a população brasileira. A memória e a origem mais antiga
são difíceis de serem alcançadas nesses contextos, dadas as políticas de
embranquecimento, de eugenismo, de caboclização e morenidade, de apagamento
deliberativo de identidades.
Ainda assim, nestes lugares, apesar das constantes e intensas pressões do
capital, tanto em Alter­do­Chão, na Flona e no Arapiuns, resistem modos de vida que
dialogam entre fronteiras, em busca de um bem viver, apesar de tudo. O turismo de
base comunitária tem sido uma das principais pontes de intermediação entre continuar
no lugar e precisar necessariamente sair. Entretanto, como observado, com o turismo
tem chegado mais capital o que também provoca transformações nas próprias bases das
relações comunitárias, urgindo processos de reorganização dos filhos e filhas das
comunidades para lidar com as novas tensões, para manter aquilo que é prioritário para
quem preza uma vida ali, com solidariedade, segurança, afetos, liberdade, o lugar em si
– enquanto comunidade e natureza.
Por outro lado, o cenário da pandemia possibilitou que a relação de
dependência do capitalismo e do turismo leva também a um contexto de
vulnerabilidade, de modo que a renda está associada ao fluxo de turistas, fazendo o
tempo ser voltado para atender a essas atividades impacta no tempo possível para o
roçado e outras que pudessem visar a subsistência.
317

Também na Flona e na Coroca, pôde­se perceber como mesmo com as


contradições advindas da mudança nas relações produtivas e atividades econômicas nas
comunidades, o que tem sido ponto central de demanda e posicionamento é da
manutenção do direito à autonomia da forma de organização dos territórios. Na Coroca
está presente nos engajamentos com as demais comunidades do PAE Lago Grande
contra a entrada da mineração pela ALCOA e também no debate sobre o projeto de
municipalização do território, assim como nos entraves com a compra de terrenos por
pessoas de fora da comunidade. Já na Flona, em Jamaraquá especificamente, pode­se
notar a relação com o ICMBio e suas ambiguidades entre a proteção do território de
grileiros e madeireiros, mas também das limitações dos modos de vida para a
continuidade da unidade enquanto uma Floresta Nacional.
Em Alter­do­Chão já se percebe uma vila já em outro contexto de relação dos
moradores, diferente das duas comunidades citadas, com maior fluxo e sem contar com
tantas limitações à entrada do grande capital. Por conta disso, os entraves são muitos e
recorrentes e dividem muitas vezes a opinião dos próprios moradores sobre qual
caminho melhor para a vila, entre a especulação imobiliária de verticalização e da
compra de terrenos e os projetos de proteção e manutenção da Área de Proteção
Ambiental, com o turismo sendo uma atividade importante econômica, mas que precisa
respeitar as limitações.
Tudo isto, portanto, deu­se a partir do diálogo e percepção das relações que as
mulheres com quem conversei percebem e projetam suas vidas. Como apresentei
anteriormente, nas primeiras entrevistas as conversas foram guiadas por quatro eixos:
1) Como é viver aqui pra ti?; 2) O que tu gostarias para tua vida? O que tu achas
importante?; 3) O que tu achas dessas políticas aqui pra região (hidrelétricas, etc)? O
que achas de tudo que está acontecendo ultimamente?; 4) O que é o futuro para ti?
Como tu achas que as coisas vão ser no futuro?
Como apontei no final da seção anterior, por limitação de encontrar uma
palavra melhor, adotei durante quase todo o estudo o termo “projeto de vida” como
categoria para contrapor ao “projeto de nação”, mesmo percebendo o quanto era um
termo que não permitia o giro decolonial, pois operava dentro da mesma lógica
moderna/colonial. Segui, pensando que seria um ponto a reconhecer e talvez deixar em
aberto para estudos posteriores.
318

Esses eixos, contudo, estavam formulados em uma lógica e adotando noções de


relação espaço­temporal, de parâmetros ainda muito imbuídos na lógica
moderna/colonial, como a própria, já apontada por Rosivaldo em 2017, obsessão minha
pela ideia de futuro. Mas, um futuro que se coloca num tempo linear, à frente, é algo
que comecei a perceber não ser necessariamente vivido e pensado da mesma forma por
muitas pessoas com quem conversei.
Com as frustrações vividas durante o mês de julho, com o incidente com a
arraia, quando vi projetos meus desestabilizados, como o planejamento que eu tinha
para a pesquisa, assim como a transformação tão abrupta de Alter­do­Chão por conta
da especulação imobiliária cada vez mais intensa e a presença de sojeiros na região; eu
questionei meus planos futuros de uma vida projetada ali no lugar, que eu até então
tinha idealizado dentro de parâmetros importantes para mim; foi quando comecei a
entender que, na verdade, eu não estava falando de projetos de vida, até porque,
projetos são apenas projetos. São projeções que, sim, são exercícios imaginativos
interessantes, mas que desconsideram muitas vezes a tal resistência do ar.
O que eu estava, de fato, pontuando eram os caminhos de vida, pois são os que
materializamos, entre expectativas e as condições que possuímos no momento, que não
dependem apenas de nós, mas envolvem as ferramentas que temos à disposição para
continuarmos em direção ao que almejamos; são pelos caminhos de vida que muitas
vezes pegamos um atalho ou até mesmo um desvio temporário por necessidade ou
precaução, além daqueles que acabamos seguindo de forma automática, ou até mesmo
por ser o único possível.
Enquanto “projeto” refere­se à idéia de planejamento, de algo que se lança à
frente, algo que será um dia, atrelado a uma ideia temporal de tempo linear; “caminho”
tem na etimologia da palavra a ideia de deslocar­se, andar.
Podemos identificar as referências e estruturas que sustentam o projeto de
nação contemporâneo, não visando fixar tal referência, que pode ser reformulada, mas
identificando os elementos presentes nas análises ao decorrer do estudo: como tal
narrativa se imiscui na lógica e no sistema moderno/colonial de gênero, que infere
pelas colonialidades do ser, do saber, do poder, de gênero, da “mãe natureza”,
subjetividades que sejam compatíveis às noções de progresso e desenvolvimento,
significando uma necessidade de assimilação de valores senão pela adesão no campo
epistemológico, pelas obstruções estruturais e sociais impostas sobre as vidas.
319

Disto tudo, propus uma espécie de visualização que tenta sintetizar as


dinâmicas aqui apontadas (ver Figura 34).
Figura 33 – Dinâmica de produção de subjetividades entre projeto de nação e caminhos de vida

Fonte: Elaboração própria.


São estruturas que fazem os indivíduos desejarem ou almejarem algo não
apenas por concordarem com aquilo e o quererem, mas por se mostrar como único
caminho possível, como na questão do trabalho apontado por Ivana e Eliane, como a
percepção do que é trabalho e da importância dele para uma vida digna, muitas vezes
impõe um deslocamento em que se abdica de outras prioridades que a própria pessoa
considera importante.
Mas, como o sistema capitalista é um elemento predominante, que tensiona as
vidas pela intensificação das desigualdades, fazendo surgir desejos individuais acima
dos interesses coletivos, também pressiona pelas fronteiras do impedimento da
continuidade de modos de vida ao corroê­los internamente, pela exploração de recursos
naturais, assim como pela própria atribuição de valor econômico e produtivo a todo o
espaço e aos indivíduos.
320

As funções da subjetividade capitalística (culpabilização, infantilização e


segregação) empurram as subjetividades a caminhos que estejam a serviço dos
interesses do Estado­Nação e do capitalismo e quando eles destoam ou representam
uma ameaça, utiliza­se do monopólio legítimo da força e da lei para redirecionar as
pessoas pelos caminhos desejados. O que, nos últimos anos, tem­se mostrado cada vez
mais forte e repressivo, pela retirada de axiomas, direitos e estruturas que previam
participações mais democráticas e inclusivas.
A escalada de políticas e discursos recentes tem proposto uma naturalização de
ideais recentemente desconsiderados como compatíveis com noções de democracia,
justiça e igualdade, como na Constituição Federal de 1988. Contudo, mesmo que
alguns poderes e atores sociais tenham se manifestado e impedido algumas dessas
mudanças (citei em alguns momentos intervenções do Supremo Tribunal Federal),
ainda assim, tais violências e opressões, como partes indissociáveis do próprio aparato
estatal, continuam presentes e sendo aprimoradas.
O discurso voltado para uma população específica, a considerada legítima na
representação da nação brasileira, como “conservadora e cristã”, nos termos do
presidente Jair Bolsonaro, evidencia as bases fundantes do Estado brasileiro e a quem o
projeto de nação serve. Assim como, enquanto em uma das crises do governo, quando
o secretário de cultura adotou uma estética e discurso inspirado no Ministro da
Propaganda nazista, Joseph Goebbels, o mercado respondeu de modo “indiferente”,
onde analistas indicaram que apesar de condenável a atitude, a economia seguia muito
bem, apresentando até mesmo um resultado positivo, mas sem se pronunciar contra tais
acontecimentos (Moura, 2020)48.
Entretanto, as referências aqui abordadas apontam outra explicação; não que
sejam agendas separadas, pelo contrário, são agendas complementares. É que governos
com atitudes totalitárias tendem a favorecer o mercado, justamente por conter as
demandas sociais e populares, podendo facilitar um processo de exploração econômica
de forma mais intensa e com menos resistência, enquanto se naturalizam repressões49.

48
Já no contexto da pandemia, que se agravou no Brasil em março e levou ao isolamento social de parte
da população, mais uma vez houve declarações de representantes dos interesses do mercado sem
qualquer constragimento às políticas inadequadas do governo. Sócios da XP Investimentos relativizaram
a crise, já que para eles no início do mês de maio “o pico da doença já passou quando a gente analisa a
classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela,
o que acaba dificultando o processo todo” (Benchimol, apud, Moura, 2020).
49
Enquanto a Organização Mundial da Saúde (OMS) orienta o isolamento como o método mais efetivo
de mitigar o impacto da pandemia, no Brasil, o presidente tem questionado a relevância da medida e se
321

Tudo, claro, justifica­se no projeto de nação, para desenvolver­se, o que, em


tempos de crise, aponta a necessidade de sacrifícios extras, principalmente por parte da
população pobre e, em contrapartida de garantias e direitos para que o capitalismo
possa se fortalecer. Somos ensinados a desejar o capitalismo bem sucedido, como se
contrapor­se a isso significasse automaticamente aceitar para si um rótulo de
vagabundo, marginalizado, quase como perder a própria cidadania.
Aos que continuam se opondo, os rótulos são empregados de forma cada vez
mais segregadora, imputando mais punições, afastamento das instituições e das
estruturas, de modo que a presença de pessoas consideradas “perigosas” e até mesmo
ameaça à segurança nacional seja, por fim, identificada como um problema nacional,
em que inimigos da nação precisam ser contidos, reprimidos. Enquanto o discurso e
algumas ações já têm sido registrados, e nunca pararam de ocorrer nesse sentido, ainda
que de forma diferente ao longo da história e às vezes menos intensa, as articulações e
organizações têm também se intensificado, atualmente tentando recorrer também à
solidariedade internacional, ou pelo menos esperando que os interesses internacionais
em jogo sejam suficientes para agir como contrapeso.
As análises principalmente expostas por Deleuze e Guattari, apontam que o que
pode ser mais bem sucedido nesse processo de resistência está nas revoluções
moleculares, individuais. Relembrando que se o principal produto do capitalismo é a
subjetividade capitalística é apenas enquanto este fizer sentido e for desejado pelas
pessoas que ele terá condições de sobreviver.
Chega­se mesmo a um cenário de impasse em que o fim do Estado e do
capitalismo parece ser a única opção para por fim nas formas de opressão. Embora isto
possa ser visto como uma utopia ou distopia, aqui me interessa ver como pessoas que
rompem a subjetividade capitalística, ao perceberem que tal forma de viver não atende
a suas necessidades assim como suas prioridades, estão cada vez mais caminhando
para lugares em que outro modo de viver almejado pareça mais viável de ser
alcançado.

mostrado contrário ao movimento, pois acredita que isso agravaria a crise econômica, questão que não
pode deixar de ser a prioridade. Em março de 2020, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo
Maia (DEM), afirmou que a pressão para que o comércio seja aberto é feita por investidores que
perderam dinheiro na Bolsa (Jubé e Gregorio, 2020).
322

Não à toa, muitas das pessoas que conheci que estavam de mudança ou
passagem pela Amazônia e especificamente por Alter­do­Chão, tenham várias vezes
implicado certa “ausência” do capitalismo e do Estado aqui, tanto a partir de uma
construção imaginária sobre o lugar, mas também por perceberem outras formas de
viver. Contudo, não significa que o Estado e o capital não estejam presentes na
Amazônia, talvez seja ainda uma região em que a produção de subjetividades seja mais
singularizada, por todos os fatores até então apontados.
Muitos, e aqui me incluo, que saem do contexto de uma vida completamente
desenhada pelas necessidades do Estado­Nação capitalista, percebem uma forma de se
relacionar com o tempo e espaço diferente, conseguindo projetar mais facilmente outra
vida, algo talvez nunca cogitado em outras condições. São nessas linhas molares e
nesses momentos que essas microrrevoluções ocorrem, nunca de forma individual,
sempre em relação com a coletividade, só sendo possível em movimento.
Assim, os caminhos de vida são os percursos que dialogam, sim, de forma mais
implícita com certo projeto de vida. Mas, o caminho não incute necessariamente uma
relação de projeção ou de tempo linear, já que o caminho ressalta ao mesmo tempo a
noção de passado, presente e futuro, ao mesmo tempo. O caminho também é algo que
seguimos, mas que também mudamos, representando assim as interferências e os
atravessamentos das vivências e das subjetividades pela nossa relação conosco e com o
que está fora de nós. Em um projeto lançamos uma possibilidade imaginada, enquanto
no caminho, muitas vezes nos perdemos, paramos, voltamos, e a terminologia implica
diferentes movimento de projeto nesse âmbito.
E, foi com certa feliz surpresa que, ao retomar o contato com algumas das
pessoas com quem eu conversei principalmente em 2017 e 2018, que em uma das
respostas às reformuladas questões que lancei, a expressão “caminhos” estava presente
na fala de Fernanda, por exemplo.
323

Como retomei anteriormente os quatro eixos que adotei, assim como a mudança
de projetos para caminhos e suas motivações, percebi também a necessidade de
repensar alguns questionamentos que haviam me guiado nas entrevistas. Assim, entrei
em contato com quem pude, principalmente via Whatsapp, com quem eu tenho mais
proximidade, para perguntar se havia interesse em responder a novas perguntas para
minha pesquisa, que se encaminhava para sua finalização, para que eu pudesse dialogar
com as novas respostas e aquelas que eu fizera anteriormente. Para quem se
disponibilizou a responder dei as opções de eu ligar e gravar a ligação como conversa
mesmo, a pessoa responder em formato de áudios e, por fim, a resposta ser feita por
escrito. Neste sentido, as novas ponderações propostas foram:
1) O que tu tens pensado sobre a vida ultimamente?;
2) Sobre tudo o que tem acontecido, para onde achas que isso vai?;
3) Como tu querias que a vida fosse?;
4) O que tu esperas da vida hoje?;
5) Quais são teus planos atualmente? Eles mudaram em comparação a dois anos
atrás, por exemplo? (Se quiseres podes comentar qual fator contribuiu para essas
mudanças).
Em relação à primeira pergunta já, pensei que a amplitude em que ela foi
reformulada possibilita que o que tiver mais à tona naquele momento para a pessoa
provavelmente aparecerá como ponto central50; não que seja o elemento principal da
sua vida, mas algo sobre o qual a pessoa tem pensado, talvez se preocupado, ou
planejado, provavelmente tomado muito dos seus pensamentos.
A primeira a responder foi Fernanda, que optou por uma resposta por escrito.
Ela enviou o arquivo para mim no dia 14 de janeiro de 2020. Sobre o que ela tem
pensado sobre a vida ultimamente, ela compartilhou:
Outro dia estava conversando com uma amiga sobre ser uma pessoa
“de fora” vivendo em uma comunidade que é ao mesmo tempo muito
rica em recursos, mas muito pobre em circulação de dinheiro. Sobre
a dificuldade que é entender esse lugar que a gente ocupa quando
deixa para trás um modelo de vida que a gente não acredita mais e
chega em um outro lugar que ainda não é assim, mas que quer ser,
porque acredita que este modelo (que pra gente está falido) é o ideal
a ser atingido (Fernanda, por escrito, em 14 de janeiro de 2020, de
Alter­do­Chão).

50
Inicialmente na pesquisa, a primeira pergunta/eixo era: Como é viver aqui pra ti?
324

Ela apontou questionamentos sobre ser alguém “de fora” em Alter­do­Chão, o


que tem dialogado com os últimos acontecimentos na vila, como apresentei em seções
anteriores, como foco para as acusações contra os brigadistas e o clima que tem se
intensificado na vila contra pessoas “de fora”, que estão envolvidas em atividades
ligadas a projetos sociais, ONGs e outras instituições como pesquisa, que defendem
modelos não­exploratórios da natureza.
A colocação de Fernanda me faz pensar sobre como existe também uma
dinâmica de ruptura na subjetividade capitalística por parte de quem a vivencia e vê o
modelo capitalista avançado como fracassado, enquanto outras pessoas, que podem já
viver de modo não tão dependente, apresentam o desejo de alcançar aquele modo de
vida. Ela questiona como suas experiências, sua posicionalidade, sua trajetória própria
se debate entre aquilo que ela acredita e seus privilégios estruturalmente validados no
contexto brasileiro, até que ponto seus posicionamentos não se apoiam nestes:

Nossa conclusão foi mais ou menos assim: a gente vem pro Pará
sabendo que é o estado que mais desmata e que mais persegue
aqueles que se opõem ao “crescimento” que eles almejam. Mas
quando chegamos aqui e nos deparamos com a beleza e a
exuberância da natureza, a gente se esquece disso e muitas vezes
acaba capturado pelo fetichismo de uma conexão quase esotérica
com o lugar. Daí, como a gente vem do sudeste e de um modelo de
produtividade, a gente se acha muito agilizado e conhecedor dos
caminhos para se viabilizar projetos (como editais, ONGs e outras
instituições já enquadrados no modus operandi que a gente
justamente estava fugindo), e começa a propor ações que a gente
acha corretas e que podem “ajudar”, podem “melhorar” a vida
dessas pessoas. Resquício ainda da nossa síndrome do branco
colonizador. Nem sempre a gente se dá ao trabalho de saber se é
isso mesmo que os daqui querem, ou até se eles querem que a gente
faça isso por eles. Então, a gente vem propor conservação ambiental
e eles estão loucos para vender suas terrinhas por míseros reais, mas
que pra eles parece muito. A gente está pautando uma vida menos
conectada na internet (que a gente mesmo não consegue fazer) e eles
estão loucos pra ter Netflix e Instagram.
A verdade é que eles estão há muito tempo esperando uma
oportunidade de viver como nós. E enquanto eles estão cada vez
mais próximos desse objetivo de vida, a gente chega e diz que não
pode ser assim, que vai poluir, que vai acabar. Então eles estão
cansados da gente chegar aqui e dizer como tem que ser.
325

Os questionamentos que a Fernanda indaga a si própria atravessaram a minha


experiência e muitas conversas. Não é possível afirmar que exista um consenso entre
pessoas vivendo em qualquer lugar, que queiram uma coisa ou outra, como a Lalah
também apontou em 2017, existe o direito de dizer para alguém ou alertar que o que
ela defende ou deseja está errado? Mesmo que você possua uma trajetória em que
tenha percebido as consequências de algo, não seria outra forma de violência tentar
impedir isso, outra forma de se apoiar muitas vezes em alguns marcadores sociais lidos
socialmente como melhores que os demais?
E, esta dinâmica atravessa, como apontei em diversos momentos, não apenas
relações de gênero, de classe, de raça, mas também marcadores de idade, de
lugar/origem. E, como as subjetividades, não apenas de sujeitas e sujeitos individuais,
mas também de instituições e, como analisei, de regiões/lugares como a Amazônia e as
outras regiões do Brasil também atravessam nossas percepções próprias de
subjetividade, de centralidade ou marginalização dentro de um projeto de nação, por
exemplo. De mais ou menos legitimidade, de inferiorização. Na fala de Fernanda, por
exemplo, ela identifica como o fato de ser branca e ter vindo do Sudeste influenciam na
forma que ela vê o lugar, como se vê nele e em sua relação com as pessoas.
Fernanda comenta em relação a tudo o que tem acontecido ultimamente51. A
reformulação desse questionamento ficou de certa forma sem direcionamento
específico sobre o que tem acontecido, deixando que a percepção de cada pessoa
indique o que ela identifica como mais importante a ser mencionado. Sobre este ponto
ela responde que:

Essa é uma pergunta difícil. Porque ao mesmo tempo em que tem


uma grande população que ainda tem tão pouco acesso a coisas tão
básicas, como água encanada e luz elétrica, e que estão chegando
nesse novo patamar que de fato melhora tanto a vida deles, por outro
lado eu vejo cada vez mais as tecnologias de comunicação pautarem
a forma como a gente tem que viver e pensar, então eu não consigo
imaginar qual o limite disso. Até porque essa ideia do acesso à
tecnologia está muito atrelado ao suposto “desenvolvimento” da
região, que vem sempre colado na chegada das grandes empresas,
que no caso aqui do Tapajós são as mineradoras, a soja e as
hidrelétricas.

51
Nos eixos anteriores adotados na pesquisa a segunda pergunta tratava sobre o que a pessoa almejava, o
que ela considerava importante. A terceira se referia a acontecimentos macropolíticos, assim, houve uma
inversão dessa lógica e reformulação.
326

Como nós duas conversamos muito e sempre estamos nos atualizando sobre
alguns acontecimentos, penso que o destaque para a questão da tecnologia apontado
por ela possa ter relação com alguns projetos de que ela participou recentemente, onde
conheceu comunidades, principalmente do estado do Amazonas, que, diferente das que
até então ela tinha conhecido no Tapajós, já vivem em situações mais precarizadas em
relação à alimentação, saneamento e outros serviços básicos, como água potável,
conversando e percebendo bastante o interesse na aquisição e adaptação a outras
dinâmicas também que normalmente são atreladas ao desenvolvimento como a
Internet, o celular.
Para ela, há um elemento que mostra as limitações e meios de atuação do
capitalismo, ao passo que aquilo desejado acaba sendo possível apenas quando atrelado
ao capital que explora o espaço e a natureza, numa espécie de contrapartida necessária
para se possa usufruir de algumas tecnologias, de bens de consumo e até mesmo de
serviços básicos.
Interessante perceber como a narrativa das políticas desenvolvimentistas,
principalmente aquelas que fazem um comparativo com regiões antes e depois da
entrada de grandes multinacionais ou megaprojetos na região é a associação entre o
capital e as melhorias que podem ter sido decorrentes dessa dinâmica, ainda que, tais
políticas nunca ocorram como um benefício para atender à população ou até mesmo
como um retorno pelos males causados, mas por serem as condições mínimas exigidas
para a instalação de tais projetos, como podemos destacar em dois casos no estado Pará
– Barcarena (Maia, 2017) e Tucuruí (Nogueira, 2010). Nesses municípios foram
criadas verdadeiras novas cidades ou vilas para atender ao deslocamento de
funcionários, sem que necessariamente haja uma mudança estrutural ao redor do
empreendimento, havendo uma marginalização dos locais já previamente ocupados,
reproduzindo assimetrias e desigualdades.
Assim, a pergunta seguinte, como querias que a vida fosse, foi respondida por
Fernanda em torno do papel e da importância do dinheiro na sociedade, de modo que
ela “queria que o dinheiro fosse um meio de conseguir coisas importantes para a vida
das pessoas, e não a finalidade, o objetivo final”. Ela questiona a necessidade da
acumulação de riquezas como propósito e não apenas como um meio, ao ponto que ela
tem “um ideal, que seria cada um dar conta de si e dos seus, cuidar pra sua casa e sua
comunidade serem espaços de trocas e construções coletivas, seja materiais ou
afetivas”.
327

O que ela queria para a vida conecta­se profundamente com as concepções de


desenvolvimento à escala humana, onde as necessidades humanas básicas são pensadas
sempre a partir dos indivíduos em relação ao meio e aos outros, não partindo de uma
centralização na quantificação e mensuração, mas nas condições básicas para o
florescimento de autonomia e apropriação do próprio destino, na ideia de liberdade e
participação, por exemplo.
Ela continua dizendo que “já faz algum tempo que eu venho pensando que a
gente complicou demais a vida. Que deve ter um jeito mais simples de viver. Não que
seja um jeito mais fácil, dificuldade sempre teve e sempre vai ter, na prática ou na
complexidade subjetiva. Mas uma forma menos caótica, menos adoecedora”. Suas
palavras me fizeram lembrar toda a vivência e como vários acontecimentos
desencadearam, por motivos diferentes, adoecimentos mentais e físicos em muitas
pessoas que conheci, inclusive em mim.
Lembrei de descrições recorrentes na Coroca por várias pessoas que usaram a
palavra “angústia” ao se referirem às dinâmicas de tensão com a implantação da
mineração no PAE Lago Grande. O mesmo ao falarem da sensação de verem
constantemente balsas e balsas passando com toras de madeira extraídas ilegalmente,
assim como sentimentos muitas vezes de cansaço e impotência. Ainda que, na prática,
haja muita articulação e resistência como parte do cotidiano também.
Fernanda diz que espera da vida hoje (a quarta pergunta), se “sentir parte de
um lugar, me sentir segura e respeitada. Poder ajudar e receber ajuda. Trabalhar,
descansar e cuidar da minha casa na mesma medida”. O que ela aponta fez­me
retomar a descrição feita por Nice, Priscila e Luza sobre viver nas cidades em
comparação a viver nas suas comunidades – o quanto os motivos principais para os
retornos foram em busca de segurança, liberdade e ter com quem contar, algo
impossível para elas em cidades.
Por fim, a Fernanda conclui que seus planos atuais, o último ponto, são de ter
uma casa própria, poder trabalhar em “algo que contribua para o desenvolvimento
local e viver mais tranquila”. Em relação aos últimos dois anos, contudo, seus planos
não mudaram muito já que foi justamente quando ela começou a sua mudança para
Alter­do­Chão, então, está ainda nesse processo “faz dois anos que vim pra cá em
busca dessa tal tranquilidade (risos). Acho que ainda não tenho meus objetivos muito
definidos. Mas acredito que esse ano será muito importante na definição do que estou
buscando, se ficarei aqui mesmo ou se buscarei outros caminhos”.
328

Figura 34 – Fernanda em banho no fim da tarde no Lago Verde

Fotografia: Brenda Cardoso de Castro (Abril de 2018)


Apesar de ter encontrado muito daquilo
daquilo que buscava na sua mudança – mais
tranqüilidade, um ritmo mais lento de viver
viver a vida, também foi um período muito
turbulento de adaptação, de instabilidade de renda, de mudanças no cenário político e
na própria vila.
Assim, entre a completa ruptura ou incompatibilidade com a subjetividade
capitalística,
italística, existe um entremeio que, como já falei, seria uma subjetividade
atravessada,, onde ocorre uma intermediação. Ainda
A que se rompa com muitos
elementos fundantes do projeto de nação, a própria posicionalidade dentro de um
sistema capitalista limita uma ruptura total, enquanto alguns símbolos
símbolos atrelados ao
desenvolvimento e ao capitalismo também são filtrados enquanto alguns continuam
sendo desejados.
Acredito ser o caso de todas as pessoas com quem conversei e entrevistei, não
conheci alguém que se colocasse como completamente compatível
compatível e reproduzindo a
subjetividade capitalística alinhada ao projeto de nação, nem quem rompesse
completamente com a lógica
lógic e o sistema; todas, a seu modo, intermediam a construção
de um bem viver. Alguns posicionamentos foram mais ou menos críticos, mas tod
todos
foram críticos às políticas para a região, do mesmo modo sobre o atual cenário político
político.
Apenas
penas quando estive em Jamaraquá, na Flona,
Flona não ocorreu nenhuma conversa direta
ou explícita sobre o atual cenário político ou sobre o presidente Jair Bolsonaro.
329

Nice foi a segunda a responder às perguntas reformuladas, apesar do sinal da


Internet estar ruim, chegamos a combinar uma ligação, mas ela acabou conseguindo
enviar os áudios ao ir até a comunidade do Maguari, onde tem wi-fi disponível. Sobre o
que ela tem pensado sobre a vida ultimamente, Nice respondeu que pensa “em dias
melhores para o futuro dos nossos jovens”52.
É uma resposta muito diferente da de Fernanda, e, como não estou lá em
Jamaraquá, apesar de termos conversado brevemente sobre como estão as coisas, não
tenho como saber exatamente o que pode estar referido diretamente, mas ela comentou
sobre o pouco movimento de hospedagem de turistas, apenas o fluxo de ida e volta dos
passeios que saem de Alter­do­Chão. Aproxima­se o período da baixa temporada, o
que sempre é um momento complicado e de preocupação para quem trabalha
diretamente com o turismo como fonte de renda.
No dia 19 de março de 2020 Nice compartilhou comigo uma mensagem sobre a
orientação do ICMBio da suspensão de entrada de visitantes na Flona do Tapajós, por
conta da pandemia de COVID­19. A mesma medida foi adotada na comunidade de
Coroca, como fui informada por Gildson. Março apresentava já diminuição do fluxo de
turistas, mas a pandemia acelerou o contexto de baixa temporada. Inicialmente, a
preocupação não foi tanta por ser um cenário já esperado, para o qual muitos estavam
preparados. Entretanto, dois meses após o início das medidas já foram registrados
casos e 1 óbito confirmado em uma comunidade da Flona. Nice tem relatado a situação
preocupante de Belterra por falta de condições de serviços de saúde: não existe UTI,
respiradores e outros insumos básicos necessários para os atendimentos.
A necessidade de se deslocar para Belterra em busca de alguns mantimentos
básicos ainda tem exposto alguns moradores, apesar dos cuidados que têm sido
tomados. Ademais, não há previsão para a retomada das atividades de circulação de
pessoas e do turismo, o que viria a recomeçar já em junho, sendo a principal renda das
famílias. Neste sentido, o futuro da renda familiar mantém­se incerto. Neste ínterim,
moradores das comunidades de Jamaraquá e de Maguari, principalmente, iniciaram
uma arrecadação para auxiliar 61 famílias53 e apesar da meta não ter sido alcançada,
com o valor foram compradas e distribuídas cestas básicas.

52
Nice, áudios pelo whatsapp, em 17 de janeiro de 2020, de Jamaraquá, na Floresta Nacional do
Tapajós.
53
Vakinha Ajuda para a FLONA do Tapajós: http://vaka.me/1113014
330

Com a chegada do período que seria de alta temporada, já a partir de junho, a


incerteza sobre a situação continua e evidencia os riscos das atividades econômicas
dependentes do turismo. Como tem baixado o nível do rio agora a pesca tem sido um
complemento para a alimentação, mas é importante ponderar sobre as vulnerabilidades
das mudanças das atividades nos últimos anos na Flona, na diminuição do roçado como
atividade complementar que, apesar da vontade de retomar – como Nice já
compartilhou comigo diversas vezes – tem se mostrado difícil a gestão do tempo entre
o turismo, o artesanato e uma retomada do roçado.
Apesar desse cenário, nos áudios enviados por Nice ainda em janeiro (antes dos
desdobramentos da pandemia), sobre o que tem acontecido e para onde ela achava que
isso tudo vai, Nice fala que “já aconteceram muitas dificuldades, mas hoje está bem
melhor, mas se a gente não preservar isso pode acabar, principalmente nossa
floresta”.
De modo que é possível perceber uma referência ao período antes das
atividades de turismo onde havia um modo de vida mais precarizado nas condições,
mas que é preciso também preocupação para a manutenção da floresta, que agora tem
mais uma função na sobrevivência das comunidades. E, a partir do contexto da
pandemia, acredito ser relevante retomar as preocupações compartilhadas por Priscila
(capítulo 7) sobre as incertezas da continuidade da fonte de renda baseando­se no
turismo e no artesanato.
Nice indica que espera da vida hoje “que nossos governantes olhem com mais
atenção e carinho na questão da saúde, da educação e do esporte, para que isso
contribua com a vida dos nossos filhos e jovens da comunidade”, destacando assim
novamente a preocupação com as gerações mais novas e o acesso a direitos, com o
ponto central no dever e importância do papel de políticos nesse processo.
Ao falar de como ela queria que a vida fosse, Nice também se refere à vida para
todos e não apenas para si, pois ela diz que queria que fosse “melhor, com mais
oportunidades, e de empregos para as pessoas que necessitam”, o que reforça o fato
de suas respostas serem sempre atravessadas pela relação de vida, perspectiva e futuro
pautada nas necessidades e condições de vida da comunidade.
331

Figura 35 – Nice em passeio de canoa no igarapé Água Preta.

Fotografia: Brenda Cardoso de Castro (Novembro de 2019).

Sobre os planos para o futuro ela diz que pretende dar uma melhor qualidade de
vida para a família e que em comparação a 2 anos atrás os planos mudaram com o
fluxo de turismo que gerou mais renda para as famílias, possibilitando novos planos. E
ela destaca que um fator principal que possibilitou essa mudança foram “as parcerias
das comunidades com órgãos federais (ICMBio) trazendo capacitação sobre o turismo
de base comunitária”.
Sobre os cursos e parceria com o ICMBio, quando em novembro de 2019
visitei Nice e sua família, em Jamaraquá, ela compartilhou comigo resultados de um
curso que tinha feito sobre a importância de utilizar as redes sociais para divulgação
dos empreendimentos. Ela pediu para eu ficar responsável por administrar o perfil do
Instagram dada a instabilidade do sinal de Internet na comunidade. Durante o curso
citado, enquanto ela apontou isso como uma fraqueza do lugar, os instrutores
levantaram a possibilidade da comunidade se organizar e fazer algo como ocorre em
Maguari, onde o wi-fi é disponibilizado na praça.
Um perfil divulgando o trabalho que Nice e os outros comunitários realizam em
Jamaraquá poderia ser um meio de romper o monopólio que muitos barqueiros que
fazem os passeios de Alter­do­Chão para a Flona têm, onde lucram a maior parte do
investimento dos turistas, direcionam as pousadas para refeição, o que acaba
interferindo na lógica da organização da comunidade que é de revezar a função
mobilizando uma pessoa de cada família por vez.
332

Por conta disso também, as pessoas não costumam ficar para dormir, o que
aumentaria a renda das comunidades. Isso se dá pelo fato de que os visitantes não
costumam ser informados pelos barqueiros da possibilidade de hospedagem, o que para
eles não seria lucrativo, já que perderiam o valor do retorno à Alter­do­Chão. Muitos
visitantes acreditam que os passeios de barco sejam o único meio de chegar à Flona e
acabam fazendo apenas visitas de ida e volta no mesmo dia, sob intermediação. Nice e
eu conversamos sobre a possibilidade de ser contactada de forma direta, como ela e as
outras pessoas da comunidade poderiam ter melhor controle e mais oportunidade em
relação ao turismo.
Assim, pode­se continuar uma análise com referência à Figura 34, em que, por
exemplo, enquanto a subjetividade capitalística envolve basicamente uma premissa de
sujeito­indivíduo, a singularização permite uma possibilidade de relação sujeito­
coletivo ou sujeito­comunidade. Suas falas permeiam sempre atravessamentos de
caminhos de vida que são indissociáveis do lugar e das outras pessoas com quem se
relaciona.
Penso que seria interessante observar pessoas que vivem em áreas urbanas, em
diferentes contextos sociais e econômicos, e perceber como essas relações se
manifestam na subjetividade em que o projeto de nação é sobreposto pelo projeto de
lugar, onde o pertencimento é primeiro pensado no pertencimento próximo, não
tomando como referência qualquer tipo de serviço ou papel ligado a uma ideia de
nação imaginada.
E, tais atravessamentos são processados por emoções e corporificados, o que
nos leva às respostas de Cris que, apesar de alguns pontos em comum, também
destacou pontos e os abordou de forma diferente de Nice e Fernanda. Sobre a vida
ultimamente ela diz que:
Tenho pensado que a vida anda muito estranha com o impacto da
política atual no meu dia-a-dia e até no meu humor. Quando acordo
leio as matérias de alguns jornais no meu celular e muitas vezes só
de ver os títulos no Google já altera meu humor e posso iniciar o dia
com raiva, triste ou feliz por perceber avanços por menor que seja.
Me vejo comemorando coisas que antes não era parte de meus
pensamentos cotidianos como o fato de nenhuma criança ter sido
baleada, nenhum direito ter sido retirado ou por ver algum texto ou
vídeo de alguém que teve coragem de enfrentar tudo isto. Acordo
sentindo saudades do tempo que acreditava que as pessoas boas
eram a maioria e de repente me vejo revendo todas as minhas
relações (Cris, por escrito via Whatsapp, em 20 de janeiro de 2020,
de Alter­do­Chão).
333

Cris menciona como seus pensamentos recentes têm sido ocupados pelo cenário
atual; os sentimentos parecem ser comuns para muitas pessoas de angústica e cansaço,
ao mesmo tempo em que a euforia e a felicidade afloram questões que até pouco tempo
eram vistas de forma naturalizada ou banalizada no cotidiano. Como ela destaca, o
atual contexto tem sido tão violento que cada vitória tem sido a não perda de mais
vidas ou direitos. E, sobre tudo o que tem acontecido e quais os caminhos ou
desdobramentos possíveis, ela responde que
Se me fizesse esta pergunta antes de 2018 diria que caminhávamos
para um futuro de igualdade, mas agora acredito que qualquer coisa
pode acontecer. Ainda sou otimista e acredito que precisávamos
passar por esta crise de caráter para rever nossas falhas e criar algo
novo de tudo que está aí, mas não sei se enquanto sociedade isto vai
demorar um ano ou uma década. Acredito em um momento em que
destruiremos o patriarcado. E que enquanto mulher e negra
pertencendo ao grupo mais vulnerável da sociedade, me sinta segura
para ir e vir.

O ano de 2018, com o cenário das eleições que levaram Bolsonaro à


presidência, aparece como ponto de inflexão para Cris. O fato impactou sua forma de
ver a sociedade em que, da percepção anterior de melhoria e avanços constante o
cenário mudou para crise, trazendo à tona problemas estruturais que para muitas
pessoas poderiam ter dado a impressão de terem sido superadas ou estarem sendo
transformadas. Na sua visão, o ano em questão deflagrou a crise de caráter social em
relação a isso, ainda que ela seja otimista, hoje em dia tem menos segurança de que o
futuro será melhor que o presente, identificando que qualquer caminho é possível de
ser seguido, dependendo das condições e do que ocorrerá nos próximos anos.
E, neste sentido, ela queria que a vida fosse “com igualdade. Queria acordar e
não ter que pensar que vivemos uma sociedade machista e racista. Queria não ter que
me preocupar com isto. Eu acordo pensando em tomar banho de rio e não quero
pensar em nada, mas está atravessado em cada célula do meu corpo a resistência”.
Ela demonstra o desejo de uma sociedade mais justa que, ao mesmo tempo, parece
distante, de modo que, mesmo tentando se afastar das preocupações sobre as formas de
violência e opressão atuais e apenas seguir seu caminho, ainda assim é tragada pela
necessidade de resistir e lutar. Ela fala, então, de um desejo de que “a vida seja leve.
Espero todos os dias acordar e não ter que ver tantas injustiças”.
Em reflexão aos últimos dois anos e aos seus planos ela diz que não houve
mudanças, mas talvez o aprofundamento de um propósito:
334

Meus planos não mudaram, mas acrescento um desejo de colocar


minha vida e profissão ainda mais a serviço dos direitos humanos e
ajudar que mais pessoas tenham acesso a informações que nos foram
negadas sobre nossa história enquanto povo negro e indígena. Esse
ano de 2020 se iniciou com muita esperança e acreditando que a luta
não foi perdida ainda. E que é preciso lutar com todas as armas que
temos. Sinto que preciso avaliar o quanto eu contribuí para que
chegássemos ao atual ponto político. Vejo muitos avanços para o
povo negro, mas ainda precisamos mais, muito mais. E sinto ainda
mais o desejo de me comprometer com a luta.

Ela rememora seus planos em relação à mudança do Rio para Alter, reavaliando
suas motivações e o que esperava para essa nova vida: “quando escolhi sair da cidade
do RJ e vir para Alter acreditava que estava protegida de alguma forma de tudo de
ruim que o machismo e o racismo diário pode nos trazer. Essa necessidade de luta,
resistência de todos os dias que cansa, adoece e consome”.
Contudo, os últimos acontecimentos acabaram por fazê­la perceber que muito
do que ela buscava ao se afastar, continua presente e latente em toda a sociedade:
O atual presidente e todo o lixo que veio com ele, me tirou da minha
falsa zona de conforto e me fez ver que não tem como se esconder e
ao contrário do que se espera, eu não adoeci, mas me sinto hoje mais
forte e pronta para tudo. É como se aqui dentro sentisse o impacto
direto de tudo que acontece. É como se eu sentisse na alma que
quando um corpo cai é comigo sim, quando uma injustiça acontece é
comigo sim e não dá para me esconder disto. Antes eu conseguia
separar como o meu e o do outro. Um sofrimento ou felicidade
individual e agora sinto como se só está bom se está bom para todos.

Assim como Fernanda e, principalmente Nice, a fala de Cris dialoga com uma
relação de coletividade, em que as experiências de subjetividade são inseparáveis das
pessoas ao redor, com quem se relaciona e com a sociedade como um todo. Ela
pondera também como o atual cenário político potencializa perceber problemas
estruturais na sociedade e também possibilidades de transformação:
E depois de muita análise de meu projeto de vida e da sociedade ao
meu redor. Percebo que se não tivesse um Bolsonaro para odiarmos,
não teríamos noção do quanto necessitamos avançar enquanto
coletivo, enquanto comunidade. Se Haddad tivesse ganhado. Talvez
estivéssemos tomando cerveja em um bar ou tomando banho de rio,
falando de uma sociedade que nos parecia inclusiva e era muito
excludente, pois todos que estavam de fora acharam que podiam
entrar com ele na sociedade. Seja pela violência sofrida pela falta de
políticas públicas, a falta de educação de qualidade, a da falta de
compreensão da nossa história e muitos outros fatores. Bolsonaro
veio tirar as vendas que cobriam os olhos da esquerda, e nos foi
tirado da pior maneira possível e nós o odiamos por isto. Agora é
hora de correr atrás do prejuízo. Olhar as falhas e avanços.
335

Figura 36 – Cris andando pelas ruas de Alter-do-Chão

Fotografia: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2019)

Analiso como a fala de Cris se faz no sentido de ressignificar o contexto


político para além da crise, de repensar as condições que tornaram possível que
houvesse uma ascensão de ideais de extrema­direita, o que se pode remontar às
análises das últimas duas décadas feitas por Sena (2014) e movimentos sociais,
principalmente indígena e negro, sobre os governos do PT, sobre a cooptação e
esvaziamento de muitos movimentos, que teria enfraquecido a resposta às políticas em
descompasso aos anseios locais. Do modo que a chegada ao poder e alguns avanços em
pautas sociais e econômicas criaram uma ilusão, para alguns, de superação de
violências estruturais.
Para muitos, os governos de esquerda não romperam a lógica moderna/colonial,
e sim que houve uma conciliação com o capital, até mesmo para que houvesse
governabilidade. Ao passo que, quando algumas políticas da então Presidente Dilma
Rousseff passaram a desagradar as elites nacionais, o seu governo foi impedido de
continuar. Apesar de também ter adotado políticas violentas e problemáticas como o
caso de Belo Monte e outros, como o retrocesso em relação à pauta ambiental.
336

A queda de Dilma Rousseff foi justificada no imaginário nacional, com reforço


da imprensa, por uma crise econômica iniciada ainda no século XXI, como se a história
do país não tivesse sido moldada desde 1500 e que a corrupção e todas as
problemáticas estruturais que geram pobreza, violência e o adoecimento não
estivessem na fundação do Estado brasileiro, na sua gênese, que são inclusive a força­
motriz do próprio desenvolvimentismo que tem sido o norte do projeto de nação.
O questionamento de Cris nos faz pensar sobre as limitações que as próprias
relações de poder implicam a possibilidade de superação de mecanismos estruturais
muito enraizados na sociedade. Ele também remete à dinâmica entre a axiomatização
de fluxos decodificados e a retirada de axiomas como movimentos presentes nas ações
estatais a serviço dos interesses do capitalismo. O que, como o contexto recente do
Brasil, tem mostrado que ocorre de forma mais perversa em países localizados à
periferia do sistema internacional em relação à concentração e acesso a recursos
políticos e econômicos que outros, os ditos desenvolvidos ou ricos.
Deleuze e Guattari (1996) apontam como ações totalitárias, de repressão e a
retirada de axiomas, costumam estar presentes em territórios que passaram pela
colonização, os chamados “subdesenvolvidos”, pois em sua origem está o próprio
objetivo de atender a uma demanda externa, em que as elites locais e nacionais
reproduzem o colonialismo interno para aproximarem­se de parâmetros de
“desenvolvimento” enquanto aprofundam o fosso da desigualdade.
Aqui, apesar de partir­se de todo o contexto histórico, de políticas e discursos
que pautaram esses caminhos, o real enfoque se dá em como tal dinâmica atravessa os
caminhos das vidas das pessoas, como esses projetos que servem a uma lógica
moderna/colonial contrastam com o que as pessoas querem para si, para os demais e
para o lugar onde vivem. E, apesar da produção de subjetividades que nos endereça um
desejo pelo capitalismo e toda a estrutura e formas de reprodução de exploração e
opressão, ficaram evidentes como a partir das vivências esse modelo será, por diversos
motivos e caminhos, questionado, desestabilizado.
Apesar de estruturas que moldam as vidas, ainda tem­se a própria vida como a
principal ferramenta e estratégia de sobrevivência, às vezes mesmo alcançando tais
desejos produzidos, praticamente todas as pessoas com quem falei apontaram
descrença no modelo apontado, elas não se sentiram contempladas.
337

Viram que a vida nas cidades (o que é um movimento de deslocamento


sugerido como necessário para uma vida melhor), também traz consigo a perda de
outros elementos importantes que, para muitas, acabaram se mostrando centrais na vida
que querem para si: liberdade, afeto, solidariedade, segurança, autonomia.
Nice queria uma vida melhor para sua família e percebeu que longe de
Jamaraquá isso não seria possível. Seus filhos não poderiam correr, ser livres, ela não
teria a mesma autonomia para trabalhar com aquilo para o que tinha habilidade, ela não
teria a possibilidade de ter seu próprio dinheiro e, mais, não teria suas plantas e árvores
para cuidar, preservar.
Luza ponderou que ainda que Santarém concentrasse mais acesso à educação, à
saúde e a outros serviços e direitos básicos, havia um preço a se pagar: aluguel,
comida, roupas, necessidades outras que na Coroca eram mais simples de serem
atendidas e não dependiam tanto do dinheiro, pois além da possibilidade de plantar,
pescar e produzir por si só, havia algo com o que poderia contar que na cidade não
existia – a comunidade, a solidariedade e a coletividade no processo de superar um dia
após o outro.
Priscila percebeu que queria para seu filho uma vida com liberdade e com a
possibilidade de se sujar, diferente da vida em Belterra, onde era preciso passar o dia
preso em casa, com as janelas fechadas e com medo, insegurança, sem ter com quem
contar e confiar. Contudo, mesmo que a vida em Jamaraquá atualmente forneça uma
renda com artesanato e turismo, teme a entrada do capital, a possível muança do perfil
do consumo de turistas e também da natureza ao redor da Flona.
Ivana e Eliane vislumbraram comigo uma Coroca com todas as estruturas
necessárias para que existisse possibilidade de cada pessoa se realizar, trabalhar com o
que quisesse; poder estudar até o ensino superior, enfim, um cenário em que todas as
necessidades fossem garantidas ali. Mas nos pegamos pensando se a comunidade
continuaria a mesma, ou pelo menos se manteria o que é mais precioso para seus filhos
e filhas se tudo isso mudasse.
Aline se viu pensando sobre como ser mulher tem levado sua vida por
caminhos que constantemente a levam a ver o que se espera dela, como suas atitudes
vão ser interpretadas, ao mesmo tempo em que pelas trilhas, quando possível, ela faz o
que gosta, intermediando suas necessidades com as opções disponíveis ali.
338

Lalah e Fernanda questionam como é complexo o que desejamos e sabemos


que mesmo às vezes sendo aquilo que é construído como ideal traz consigo
consequências indesejáveis que por vezes só serão entendidas futuramente. Pensam
sobre suas posicionalidades e contestam por alguém dizer o que se deve desejar ou não,
mesmo que seja algo que possa afastar uma pessoa e um povo de sua cultura, de seus
conhecimentos. Até que ponto pode haver outra forma de tentar sujeitar pessoas ou
grupos sociais e as subjetividades pautando­se em outras justificativas que seriam
consideradas mais “corretas”?
Dona Elza já pensa que é preciso despertar e se organizar, buscar um projeto
para comunidade, potencializar as oportunidades e, principalmente, dialogar com os
jovens, que são o futuro da comunidade. Tentar perceber os motivos deles não
conseguirem ver um futuro para si naquele lugar e tentar intermediar tudo isso por
meio de projetos pensados coletivamente, que envolvam toda a comunidade, que
possam definir por conta própria o seu desenvolvimento, não nos termos de
desenvolvimentismo, mas de garantir uma boa vida a todos, mantendo a comunidade,
garantindo sua continuidade.
Para todas, o lugar é ponto de partida e de chegada, é o caminho em si. O lugar
é território e vida, onde passa o rio, onde se banha e se pesca, por onde se desloca,
sendo o movimento a própria dinâmica de caminhar e intermediar necessidades e
desejos pela estrutura que se coloca na sociedade. O movimento, o deslocamento é o
que tem possibilitado a construção de um bem viver nesses contextos. Seja o
movimento para trocar experiências e conhecimentos, o deslocamento para usufruir de
um serviço que só existe em outro lugar, mas também para retornar ao lugar que só
existe ainda da forma que é por ainda não estar muito atravessado pelo capital.
Contudo, é preciso frisar que o deslocamento percebido nesta tese se dá
enquanto uma possibilidade, diferenciando­se de outros tipos de deslocamentos
associados ao desenvolvimento, de tipo compulsório, enquanto impossibilidade de
continuar no lugar e manter seu próprio modo de vida.
339

A partir das histórias aqui compartilhadas é possível observar que esses


movimentos e deslocamentos são perpassados por processos coletivos e históricos,
envolvendo lugar e território, contrastando significados atribuídos e construídos com
eles. Digo isso não apenas por conta das histórias de vida das mulheres em questão,
mas também a todos os processos de deslocamentos citados, incluindo também aqueles
ligados ao agronegócio. De modo que se projetam nos territórios disputas por futuros,
cada qual carregando suas narrativas.
Os deslocamentos de saída­retorno às comunidades sugerem de forma
subservisa como a cidade é retratada como lugar de mal estar e não de bem estar; sendo
uma forma de ir – quando necessário – até ela não por ir em direção ao “progresso”,
mas como modo de deslocar o formato que tenta se impor sobre o território, ou seja,
mantendo a relação com a comunidade. São exemplos que mostram que a terra não é
sem gente, tampouco apenas de relações fixas, mas, também de gente se que move para
criar futuros. É uma forma de contrapor com o mito da terra sem gente e da ideia do
global como o progresso, sendo a cidade cosmopolita um modelo e horizonte a ser
almejado.
Cris frisa como tem ainda buscado no banho de rio, não apenas nas segundas,
mas em todos os dias, forças. O banho de rio que pautou no seu imaginário e desejo à
mudança, agora não é apenas um símbolo de paz, segurança e tranquilidade, mas de
resistência, Cris diz que “todos os dias repito a frase de Marielle como um mantra
‘Não serei interrompida!’ e sim eu continuo tomando muito banho de rio para não
adoecer. Eu me relaciono ainda com a natureza como parte de mim e por isso
continuo lutando”.
Nos últimos anos eu aprendi muito sobre a vida e sobre modos de viver, de
como os caminhos podem ser tão parecidos e diferentes ao mesmo tempo. Aprendi
muito sobre o rio também. Eu me encantei pelo Tapajós, pela sua transparência, pela
sua tranquilidade, sem ondas, pelo abraço e acolhimento que eu senti quando ali
cheguei, pelo convite que senti para retornar. Como muitas pessoas, eu também
projetei uma vida ali, outra vida, uma vida tranquila, assim como o rio. Mas, quanto
mais eu conheci o rio Tapajós e as dinâmicas do capital e do vento, percebi que não
existe apenas calmaria e tranquilidade, existe muita luta, muita maresia, muito
temporal e que nem sempre a água é transparente e cristalina.
340

Aprendi a respeitar as águas do Tapajós, toda sua história e sua luta, a ter
paciência, a observar e saber quando ficar, não atravessar, mas também que às vezes é
preciso atravessar mesmo com medo, pois não há escolha. É preciso continuar em
movimento e o movimento é a forma de caminhar a vida.

Figura 37 – Árvore no Rio Arapiuns, que passa metade do ano na água do rio e outra na seca.

Fotografia: Brenda Cardoso de Castro (Julho de 2018)


341

15 IMAGINANDO FINS E CAMINHOS


Why can we imagine the ending of the world, yet
not the ending of colonialism?
We live the future of a past that is not our own.
It is a history of utopian fantasies and apocalyptic
idealization.
It is a pathogenic global social order of imagined
futures, built upon genocide, enslavement,
ecocide, and total ruination.
(Indigenous Action)

Pretendo retomar aqui o caminho que foi feito neste estudo e deixar outros em
aberto. Não acredito serem considerações finais. Busquei traçar até então as discussões
que permearam a elaboração do estudo tanto em sentido oficial, que se deu entre 2017
e janeiro de 2020, como também parte que o precedeu. Procurei apresentar o mais
próximo possível da sua construção como se deu e não o resultado final pronto, pois,
como se pôde perceber, as principais redefinições e contribuições vieram da própria
trajetória e das constantes visitas/viagens realizadas, das trocas, das conversas e das
vivências, tanto com as pessoas que conheci e estabeleci laços, mas também com o
lugar, as comunidades e a natureza, a floresta e o rio.
Intentei trazer a discussão com honestidade e próxima da forma que foi
vivenciada, de modo que não apenas o que depreendi em sentido analítico e teórico
seja uma forma da contribuição. Acredito que também o modo como foi apresentado
permita que outras pessoas possam, com o acesso dado a tantas peculiaridades dessa
experiência, perceber outras dinâmicas que tenham escapado à minha compreensão.
As referências teóricas nas quais me apoiei para a digressão desta tese não são
tidas por mim como inquestionáveis. Elas foram ferramentas que me auxiliaram na
organização das minhas próprias inquietações, forneceram caminhos e muitas
abordagens que talvez possuam até mesmo incongruências entre si; entretanto, elas me
possibilitaram encontros e complementaridades na análise decorrida.
Um dos pontos centrais que apareceu durante a tese, mas que não era algo que
eu própria antecipava é o questionamento de padrões e sensos comuns sobre fluxos de
migração e parâmetros de desenvolvimento. A migração para a região sempre foi
constante, sugerindo como a visão consolidada da necessidade de migração rural­
urbana como elemento da modernidade eclipsa o movimento constante de entrada tanto
do capital por meio de migrações incentivadas e como se embasa na ideia de “terra
prometida”.
342

Tais deslocamentos apontam para constantes desestabilizações de referências


fixas, assim como indicam o movimento como uma estratégia possível de mediação
dos desejos, mas também ocorrem, em outro espectro, de modo compulsivo e
autoritário no signo desenvolvimentista – pela ocupação e pela expulsão. Assim, é
possível perceber que a dinâmica deslocamento/movimento guarda um elemento
crucial para o debate do desenvolvimento e também sobre os caminhos de vida.
Essa percepção sugere também a centralidade da relação com o território.
Sendo o lugar em que as políticas ensebadas de lógica moderna/colonial se
materializam. A organização territorial e a apropriação da terra foi uma das bases
sedimentares do colonialismo, atualizando­se na formação do Estado nacional, pelas
leis e aparatos de repressão e garantia da posse sobre a terra a alguns grupos
privilegiados; situando em regiões como a Amazônia uma fronteira de expansão da sua
lógica, como lugar a ser recolonizado, “integrado” ao nacional por meio da
expropriação dos direitos dos povos originários.
Nesse sentido, é possível sugerir que a colonialidade se atualiza na Amazônia
de modo particularmente perverso, visto que a região foi construída no imaginário
social com imagens complexas e contraditórias, como: i) Inferno verde, região
responsável pelo “atraso”, “vazio demográfico” e obstáculo ao desenvolvimento
nacional; ii) Eldorado, com riquezas míticas inesgotáveis, terra prometida a ser
dominada e capaz de tornar o Brasil, enfim, o país do futuro; e, por fim, iii) sob o signo
de “patrimônio da humanidade” e bem comum, a qual deve ser “protegida”, “salva”,
em outras palavras, tutelada – em tom que muitas vezes remete ao “fardo do homem
branco”. Apesar de propostas diferentes, as lógicas que embasam tais imagens
possuem similaridades nos valores inerentes às estruturas sociais nas quais se
desenvolvem e no apagamento da agência de sujeitos e sujeitas.
Tais imagens inventadas sobre um lugar também inventado – a Amazônia – me
auxiliaram a ver como o projeto de nação no Brasil se formula pelos eixos da
colonialidade. Frisando a premissa da colonialidade enquanto prática de opressão e
hierarquização, identifico como pela colonialidade do poder (Quijano, 1992) se
estrutura uma sociedade por meio da estratificação, justificando­se numa definição de
“raça” a exploração do trabalho de outras “raças” – que não a branco­européia –,
levando a cabo o colonialismo e a reorganização de tais territórios em torno desses
objetivos. A dita “inferioridade” de outros grupos seria a legitimação da expropriação
do território, da imposição de valores e modos de vida, da repressão e opressão. O que,
343

sugiro, mantém­se no projeto de nação brasileiro justamente por meio das políticas que
desqualificam os modos de vida presentes não apenas na Amazônia, mas que dela
muito se utilizam discursivamente na reprodução das imagens citadas anteriormente.
Percebo que o processo de subalternização das subjetividades, da negação da
humanidade (colonialidade do ser para Maldonado­Torres [2007]), pelas práticas
inerentes à desvalorização de conhecimentos, epistemologias e saberes que não fossem
compatíveis com uma ciência eurocentrada (colonialidade do saber para Mignolo
[2017]), tornou possível: i) a invenção da Amazônia – por meio de relatos inicialmente
de viajantes, colonizadores e depois também cientistas principalmente europeus –
enquanto uma região homogeneizada, ignorando as referências territoriais e
compreensões prévias sobre o lugar a partir de um mito de origem europeia; ii) a
associação à região como indígena e, por consequência, localizada em um tempo
passado – não sendo problemático o reconhecimento da presença indígena na região,
mas, sendo­o por tal atribuição ter como objetivo a própria negação do caráter indígena
no restante do território nacional.
A produção da subjetividade da Amazônia se dá, assim, pautada na
colonialidade de cunho racista (com a relação indígena­primitivo­precisa­ser­
desenvolvido), atribuindo inversamente ao lugar tido como mais “desenvolvido” uma
branquidade, principalmente localizadas em regiões centrais como Sudeste, Sul e
Distrito Federal. Tais subjetividades regionais racializadas, contudo, não se preocupam
em reproduzir uma realidade da presença de pessoas brancas, negras ou indígenas, mas
é utilizada como um discurso que impacta nos movimentos e políticas citados. Induzo
que políticas como “terras sem homens para homens sem terra” para a integração da
Amazônia ao território nacional possuem uma camada submersa de justificativa
racializada. Ou seja, falam sobre a ocupação de um espaço por “homens” que são
considerados humanos enquanto reprodutores de valores e culturas “modernas”.
Tal empreitada é situada no eixo da colonialidade da “Mãe Natureza” (Walsh,
2007), de modo que deve se defende a dominação do lugar por meio da infiltração do
capitalismo em atividades como a agropecuária, mineração, construção de hidrelétricas
– enfim, a derrubada de tudo aquilo que representa atraso (floresta) e da transformação
do lugar a serviço dos interesses econômicos do projeto de nação. Esse eixo de
colonialidade refere­se à forma que a natureza será também inferiorizada na relação
com a colonização, separada da relação social/humana, de forma diferente que povos
originários atribuem à mesma, logo, a natureza é identificada na colonialidade como
344

representação de selvageria, atraso e deve ser transformada, explorada, dominada,


“civilizada” pelo capitalismo.
Nesse sentido, o movimento de ocupação/reorganização territorial não se
embasa apenas em referências raciais ou associadas ao trabalho/atividade econômica
capitalista, mas também em noções eurocêntricas sobre gênero; identificando
colonialidade de gênero (Lugones, 2014) nas diferentes percepções de corpos a partir
do dimorfismo biológicio binário de homens/mulheres, atravessadas também pelas
categorias raciais de branco, negro e indígena. Ainda que a perspectiva de gênero na
referência de nação seja situada sobre todas as mulheres um “papel de reprodução
social e biológica” (Yuval­Davis,1997), a ideia de nação também situa racialmente as
subjetividades, de modo que, no caso em questão, as subjetividades de mulheres
indígenas e negras será abordada por formas mais profundas de subalternização, no
tocante à violência de gênero, pela hiperssexualização e exploração sexual, mas
também pela exploração da força de trabalho; enquanto as mulheres brancas são
racializadas numa perspectiva de adequação dentro dessa sociedade, em subjetividades
femininas brancas que devem ser “protegidas”.
A concepção de gênero presente no projeto de nação situa bem “papeis” a
homens brancos e mulheres, homens negros e mulheres negras, homens indígenas e
mulheres indígenas – de modo o “progresso” e o “desenvolvimento” seja alcançado
pelo sacrifício de alguns – cada um a sua maneira – ainda que o sacrifício de alguns
seja mais naturalizado que os de outros. Todas essas relações da colonialidade foram
apresentadas nas políticas e falas durante o governo de Jair Bolsonaro de modo
particularmente intensificado, ainda que sejam elementos embutidos no projeto de
nação e tenham orientado políticas em todos os governos anteriores.
Logo, sugiro que a formação do projeto de nação brasileiro amarra­se a todas
essas dinâmicas e tem como principal elemento para sua sustentação a produção de
subjetividades visando o reforço e reprodução das noções aqui identificadas. Visando,
assim, que sejam produzidos desejos pelos elementos de uma nação cristã, patriarcal,
racista, cisnormativa, heterossexista e branca. O que Fanon (2008) nos auxilia a ver
como a colonialidade mental busca promover pela desvalorização e inferiorização do
que não é associado ao colonizador; uma referência de que é preciso parecer­se com
essa imagem, mesmo que a apropriação desses elementos não seja garantia de
compartilhar dos benefícios, de ser reconhecido como parte integral da sociedade.
345

Como colocado também por Deleuze e Guattari (1995, 1996, 1997) e Guattari e Rolnik
(1997) pela produção da subjetividade capitalística.
Enquanto a Amazônia, no singular e no substantivo feminino, é subjugada no
projeto de nação como obstáculo e ao mesmo tempo solução para o problema do
Brasil, a saber, o subdesenvolvimento, as vidas e culturas das populações amazônicas
continuam sendo atropeladas por políticas e megaprojetos desenvolvimentistas. E há
décadas, o projeto desenvolvimentista tem demonstrado que, para se ter acesso a
alguns direitos básicos é preciso abrir mão de outros, como a autonomia –
assemelhando­se ao que Isabelle Stengers (2015) denomina “alternativas infernais”.
O saneamento, a luz, a educação e a saúde são precarizados a ponto de se ter
que desejar o capitalismo para que haja uma esperança de garantia de direitos, como
uma espécie de venda­casada feita pela aliança entre o Estado e o capital, ainda que da
promessa pouco ou nada se cumpra em muitos casos. Ao mesmo tempo, essa
modernidade, associada aos parâmetros citados, caminha ao lado da colonialidade,
responsável pela inferiorização e desvalorização das respostas culturais que as
populações carregam consigo. Limitando a reprodução do conhecimento por meio da
língua, da educação escolarizada e de um currículo eurocêntrico, reproduzindo um
sentido de constrangimento em tudo aquilo tido como “tradicional”. Taxando como
atrasados os sistemas culturais de saúde dos povos da floresta, originários, em
comunidades remanescentes de quilombos e povos ribeirinhos, a ponto de cada vez
menos pessoas se assumirem como benzedeiras ou se interessarem em aprender ofícios
como as parteiras.
Assim, a destruição por forças estruturais de outros modos de vida acaba
mostrando como única opção restante a assimilação de uma vida em consonância com
o capitalismo. Da mesma forma, o trabalho na terra passa a ser desvalorizado e em
alguns casos criminalizado, que as terras são tomadas pela justificativa do progresso,
que populações inteiras são deslocadas como se não houvesse relação delas com o
lugar ou como se essa relação seja menos importante, para permitir a entrada do capital
e a exploração da natureza pelo interesse nacional, que nunca beneficia a todos, mas a
quem está nos critérios para ser considerado um representante legítimo da nação.
Tal processo se mostrou ainda mais intenso com os desdobramentos da
pandemia, posto que as três localidades têm como principal atividade econômica o
turismo. Sendo possível observar como as referidas benesses, aumento na renda,
diminuição da dependência de um trabalho com sequelas para o corpo – como o roçado
346

– também tem seus riscos, que Priscila já havia alertado, pois ao depender do fluxo de
turistas não se produz uma forma de sobrevivência autônoma. Ademais, a inserção
dessas atividades econômicas ligadas diretamente ao capitalismo incide em
transformações nas relações comunitárias – estimulando­se a desconfiança entre
comunitários, no incentivo ao surgimento de desigualdades, que rompam com a
articulação que permite muitas vezes resistir ao avanço do capitalismo.
A produção de subjetividades aqui abordada e sua relação com o Estado e o
capitalismo, assim como outras dinâmicas e estruturas correlacionadas, possibilitam
expandir para a análise da atuação de agenciamento feito por espaços como a escola, a
mídia, as igrejas, e outros que contribuem para a reprodução e a manutenção de
subjetividades alinhadas a um projeto de nação. Da mesma forma é possível perceber
como tais espaços podem ser – e são – fontes de ruptura, de singularização das
subjetividades. O que pode ser abordado em outros estudos.
Como Cris apontou, provavelmente, o atual cenário apesar de ser percebido por
parte da população como um período de inseguranças, medo e de aumento da
repressão, também nos permite atentar para processos que poderiam estar neutralizados
ou aparentemente melhorados, sem que mudanças estruturais fossem feitas, dando uma
falsa impressão de superação de problemas estruturais. Como ela discorre, é um
período importante para reavaliação das estratégias, ferramentas e práticas de
resistência e transformação social que têm sido utilizadas.
Falar e ouvir principalmente mulheres fez com que essa leitura do social se
apresentasse de forma mais holística ao pensar em si e sempre na sociedade em relação
com elas, como atravessamentos pautados em saúde, segurança, bem viver,
preocupação com as outras gerações. Esses pontos permearam falas, enquanto, em
meio a isso, as pessoas buscavam seus próprios caminhos e como suprir suas
necessidades, para muitas, de forma indissociável. Na fala de muitas a questão da
maternidade se apresentou como um ponto de referência para medir as condições de
vida, o desejo de ter ou não filhos, ou, quando já se tem, quais as necessidades e
prioridades. Todas com quem falei manifestaram em sentido geral experiências de
relações afetivas heterossexuais.
Assim, fiquei pensando como seria interessante, provavelmente em outra
oportunidade, abordar sobre como homens percebem tais processos. E também outras
identidades de gênero e orientações sexuais. Apesar do enfoque das entrevistas,
conheci e conversei com alguns homens. Havia, principalmente nas comunidades, uma
347

noção de coletividade no centro do que pensam, mas, por outro lado, a saúde não foi
um elemento que pude perceber tão forte nas falas como nas das mulheres.
Inquietação similar me fez pensar sobre o que teria encontrado se tivesse
desenvolvido tal ponderação com pessoas vivendo em contexto urbano ou também em
outras regiões do Brasil, como no Nordeste, por exemplo, que ocupa um lugar similar
ao da Amazônia no imaginário nacional, mas que possui outras peculiaridades no
processo de colonização e outros fatores importantes que podem contribuir para uma
visão complementar das produções de subjetividades regionais no Brasil.
A região Centro­Oeste também foi outra que me despertou interesse em tentar
perceber sua construção nesse processo, principalmente quando passei a pesquisar mais
sobre a situação da soja, que é mais forte naquela região e onde existem altas taxas de
suicídio entre povos indígenas, como no caso do estado do Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul. Verificar igualmente, como as subjetividades se produzem em regiões como o
Sudeste e o Sul, que recebem um constante fluxo de migrantes de outras regiões em
busca de mais oportunidades e melhor qualidade de vida.
Ainda no âmbito de contextos urbanos, acredito haver também diferenciações
entre as subjetividades entre bairros com maior concentração de renda e bairros
considerados periféricos, principalmente em cidades identificadas como referência de
riqueza e desenvolvimento nacional, como São Paulo.
Os deslocamentos/movimentos como um ponto central foi inclusive mais
tratado por mim em sentido espacial, contudo, principalmente nos últimos meses, notei
a potencialidade de enfocar também os caminhos de vida em relação ao deslocamento
temporal, geracional, isto é, como as respostas e preocupações foram permeadas
também pelas fases de vida de cada pessoa. Sobre este tema me lembro bem, do
contraste entre o otimismo de Nice, por ter como referência a vida anterior e aquilo que
nela melhorou, e a insegurança de Priscila, por ao mesmo tempo em que reconhece que
a vida está melhor (por ter ainda um filho pequeno e ser muito nova), questiona­se até
quando aquela dinâmica se sustentará e será possível de se manter.
Pensando ultimamente sobre a vida, reflito que os encontros são determinantes
para os nossos caminhos de vida, que são nas vivências que fortalecemos escolhas e
valores, mas também como eles podem ser desestabilizados, reformulados. O que, tem
sido, para mim, uma forma de encontrar um caminho para a resistência, em mim e por
meio de outras pessoas: conversar, trocar experiências, ouvir, estar junto. Tem sido
uma forma de buscar, quem sabe, um fortalecimento da singularização das
348

subjetividades, por perceber que é impossível uma só revolução, mas são necessárias
muitas revoluções moleculares para se chegar a uma revolução.
Assim como a Cris, acho que, diante de tudo que tem ocorrido, é possível que
qualquer coisa aconteça, que se vá para qualquer caminho, tanto de agravamento de
retirada de direitos e de precarização da vida, mas também de reorganização e
construção de plataformas, estratégias outras que permitam novas revoluções
moleculares e que, assim, o desejo pelo fascismo seja destruído. Contudo, acredito
estar atualmente mais pessimista, por ver que as ações políticas têm sido voltadas para
a destruição das pontes que permitiam uma articulação mais eficiente. Será necessário
construir outras pontes, contudo, não sei será possível realizar isso enquanto sociedade
a tempo de algo pior e irreversível se consolidar.
Gostaria que a vida fosse mais livre para as pessoas, que fosse mais possível
viver da forma como bem se entende, sem tantas limitações estruturais e imposições
sociais, ou, pelo menos, que o caminho de vida que nos é endereçado não fosse tão
adoecedor de tantas formas diferentes.
Espero hoje da vida condições para continuar em busca de respostas, pelas
diversas formas que aprendi durante os meus poucos anos de vida, ouvindo, falando,
escrevendo, lendo, sendo feliz, ter mais tempo, ou que o tempo seja reorganizado para
que eu possa ter uma caminhada fazendo aquilo que me faz bem, mesmo que não me
faça bem todos os dias. Espero poder continuar fazendo perguntas a mim mesma e a
quem se interessar, para chegarmos a alguns pontos de proximidade e reconhecimento
de diferenças, que possamos pensar alternativas, mas também rir quando percebemos
impasses que são apenas diferentes, mas não destrutivos.
Nos últimos dois anos meus planos mudaram muito. Eu imaginava que poderia
terminar a pesquisa e, com o doutorado, como um fim (ainda que temporário) de uma
caminhada acadêmica poderia encontrar uma vida mais livre e, quem sabe, conciliar o
que acredito com o ofício que aprendi – a docência. Os novos ventos no cenário
político, contudo, apontam para uma impossibilidade de mudança nos termos que eu
havia sonhado, de um concurso público na UFOPA, de estar no Tapajós, mais próxima
de tudo o que conheci e das pessoas com quem me relacionei, do lugar que me vi mais
feliz, onde eu posso andar, simplesmente andar.
Apesar das inseguranças, percebi que eu já estava vivendo no Tapajós; pensei
nas pessoas que conheci e que vivem em deslocamentos entre lá e outro lugar, para
tornar possível a vida e o retorno. E que viver em Belém e ir para o Tapajós não são,
349

como eu sempre brincava, duas vidas diferentes, mas partes de uma mesma vida em
deslocamento.
Não foi durante as muitas vezes enquanto me deslocava de barco, a pé, de
ônibus, de avião, que me deparei com a percepção de como as condições em que
vivemos podem moldar nossa relação com o tempo e a expectativa de futuro. Ponderei
sobre isso em momentos me vi imobilizada, fosse pelo acidente com a arraia, a entorse
que sofri posteriormente, na eleição de Bolsonaro, na pandemia e tantos outros eventos
que me fizeram parar e me sentir impotente e limitada a agir.
Foi nesses momentos que me deparei com a incapacidade de fazer planos e até
mesmo a perda de sentido sobre qualquer ideia de “futuro”. E quando o futuro pareceu
desaparecer enquanto uma categoria natural da minha vida outras categorias foram
desestabilizadas em seguida.
Como a citação que abre os apontamentos que encerram, por ora, este estudo,
publicado pelo movimento Indigenous Action, dos Estados Unidos, como uma
provocação a todas as profecias e medos sobre fins do mundo e apocalipses: por que é
mais fácil imaginar o fim do mundo, mas não o fim o do colonialismo?
Diante disso, durante o desenrolar da tese todos esses elementos foram se
conformando na minha análise, não apenas a partir das leituras em si, mas em diálogo
com as experiências e relações construídas com Cris, Nice, Fernanda, Lalah, Aline,
Priscila, Luza, Ivana, Eliane e Dona Elza, assim como todas as outras pessoas com
pude realizar trocas e aprender muito nos últimos anos. A partir de suas colocações
pude repensar muitas concepções minhas que eram insuficientes, como eu mesma
reproduzia/reproduzo uma lógica moderna/colonial na própria formulação da pesquisa
e como a ideia de desenvolvimento, mesmo criticando eu estava assumindo noções de
progresso acerca da temporalidade da mesma forma.
Inicialmente, eu pretendia abordar “visões de futuro” para a região,
reformulando em seguida para “projetos de vida”, mas por fim, chegando a “caminhos
de vida”. Considero que essas mudanças representam a própria transformação na
minha percepção do processo, da minha relocalização. De um afastamento de um lugar
de contemplação para uma vivência de fato, da ideia de que “visões” e “projetos” são
meramente idealizações, o que, não significa dizer que não são importantes ou não
sejam exercícios imaginativos realizados pelas pessoas, mas que, o que se contrapõe de
fato a um “projeto de nação” não seria apenas o mesmo ato de imaginar e projetar, mas
o que de fato se faz, as escolhas e o cotidiano das decisões, dos rumos, das
350

reformulações. É onde se vive e o caminho que se traça que guarda – nos casos aqui
abordados – uma decolonização, um giro decolonial nas mudanças, nas reafirmações,
nos movimentos como mediações dos desejos e prioridades.
O futuro pode ser visto como essa referência do que desejamos e que molda as
ações no presente, mas pode também ser pensado como um tempo que não existe e
nunca chegará – assim como o desenvolvimento nos termos da modernidade. A própria
modernidade é localizada em um passado. Os caminhos de vida não são uma referência
necessariamente temporalizada nessas referências, mas representam o campo de ação
situado em um lugar e que se direcionam por um desejo de viver bem, o que muitas
vezes chamamos de felicidade. Não enquanto um estágio final, uma utopia, mas sendo
em si uma forma de Bem Viver, continuar caminhando.
Enquanto a vida pulsa e se remodela todos os dias como forma de sobreviver e
se refazer, de lidar com os efeitos e as estruturas produzidas pela
modernidade/colonialidade, o projeto de nação fundado nessas bases continua em
movimento também. E, em certos momentos, tais estruturas já foram tão introjetadas
por nós que muitas vezes a única forma de exercício imaginativo do fim dessas
dinâmicas seja o próprio fim do mundo em si – quando nos deparamos com linhas de
fuga de destruição.
O que representa uma dificuldade, limitação até mesmo de imaginar outros
mundos. E quando os sonhos e a imaginação já estão nesse ponto, é quando a
colonização já se deu em níveis muito profundos da sociedade. A incapacidade de se
pensar outro mundo é um pouco o fim também, por isso a colonialidade também age na
colonização da capacidade de sonhar e imaginar. Como diz Ailton Krenak:
Vocês têm uma instituição que se chama universidade, escola, e têm
a instituição também que se chama educação. Todas estas
instituições: educação, escola, universidade, elas estão no sonho, na
casa do conhecimento. (...) E, quando nós sonhamos, nós estamos
entrando num outro plano de conhecimento, onde nós trocamos
impressões com os nossos ancestrais, não só no sentido de nossos
antigos, meus avós, bisavô, gerações anteriores, mas com os
fundadores do mundo. (...) Existem milhões de toneladas de livros,
arquivos, acervos, museus guardando uma chamada memória da
humanidade. E que humanidade é essa que precisa depositar sua
memória nos museus, nos caixotes? Ela não sabe sonhar mais. Então
ela precisa guardar depressa as anotações dessa memória. Como estas
duas memórias se juntam, ou não se juntam? É muito importante para
nossos povos tradicionais que ainda guardam esta memória, herdeiros
dessa tradição, cada vez mais restrita no planeta, ilhados em alguns
cantinhos do Pacífico, da Ásia, da África, aqui da América, num
mundo cada vez mais mudado pelo homem, onde o dia e a noite já
351

não têm mais fronteira, porque inventaram artifícios para ele rodar
direto — dia­noite­dia. Quando o homem rompe a separação entre o
dia e a noite, como ele vai sonhar? Quando os homens trabalham de
dia, de noite, de dia, de noite, qualquer hora, eles estão se parecendo
muito com a criação dos homens mesmo, que são as máquinas, mas
muito pouco parecido com o criador do homem que é o espírito.
(Krenak, 1992, s/p).

A incapacidade de lidar com outros mundos faz com que alguns – mais que
outros – só consigam imaginar um fim iminente, um colapso total, de si e dos outros,
recaindo por vezes até em um ecofascismo. Isso diz muito mais sobre a falta de
imaginação e a obsessão pela modernidade enquanto tentativa de controlar o tempo, a
natureza, os outros, do que sobre os problemas reais que enfrentamos, visto que a
resposta muitas vezes ofertada para os desafios se pauta na intensificação da origem
dos problemas – como o capitalismo e o colonialismo, mas nunca em um fim destes.
Mas, independente do medo do “moderno” de se perceber falível e falido,
muitas pessoas que conseguem experienciar outra forma de viver – escapando, mesmo
que temporariamente, da dinâmica imposta pelo Estado­nação capitalista – podem
desenvolver uma percepção diferente de tempo e espaço, conseguindo conceber
diferentes modos de viver com mais facilidade. É nessas linhas, e nesses momentos,
que as microrrevoluções ocorrem: nunca individualmente, sempre em coletividade, e
só são possíveis em movimento. Sempre em movimento.
352

REFERÊNCIAS

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos.
Trad. Tadeu Breda. São Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
AFP. Incêndios na Amazônia tumultuam relações entre Brasil e França. ISTOÉ
Dinheiro, 27 de agosto de 2019. Disponível em:
https://www.istoedinheiro.com.br/bolsonaro­so­aceita­ajuda­do­g7­a­amazonia­se­
macron­retirar­insultos/ . Acesso em: 12/01/2020.
AFP. Desmatamento é ‘principal causa’ de incêndios na Amazônia, afirma
pesquisador. ISTOÉ, em 22 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://istoe.com.br/desmatamento­e­principal­causa­de­incendios­na­amazonia­
afirma­paulo­moutinho/>. Acesso em: 04/01/2020.

AGATHANGELOU, Anna M. LING, L. H. M. Transforming World Politics: From


Empire to Multiple Worlds. New York; London: Routledge, 2009.
AGATHANGELOU, A. M. KILLIAN, K. D. Introduction: Of time and temporality in
world politics. In: AGATHANGELOU, A. M. KILLIAN, K. D. (org). Time,
Temporality and Violence in International Relations: (De)Fatalizing the Present,
Forging Radical Alternatives. London: Routledge, 2016, p. 1­22.

AGATHANGELOU, Anna M. TURCOTTE, Heather M. Postcolonial theories and


challenges to ‘First­Worldism’. IN: SHEPHERD, Laura J. (org.). Gender matters in
global politics. Oxford University Press: New York, 2010.
AGÊNCIA BRASIL. Governo Bolsonaro planeja pacote de obras na Amazônia. 12 de
fevereiro de 2019. Disponível em:
<https://epocanegocios.globo.com/Brasil/noticia/2019/02/governo­bolsonaro­planeja­
pacote­de­obras­na­amazonia.html>. Acesso em: 06/01/2020.
ALCOFF, Linda Martín. Visible identities: Race, Gender and the Self. New York:
Oxford University Press, 2006.
AMORIM, Paulo Henrique. Governo prepara campanha de abstinência sexual antes
do carnaval. Conversa Afiada, em 14 de janeiro de 2020. Disponível em:
<https://www.conversaafiada.com.br/brasil/governo­prepara­campanha­de­abstinencia­
sexual­antes­do­carnaval>. Acesso em: 1701/2020.
ANA. Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico. Estudo avalia aquífero de
Alter-do-Chão. Março de 2019. Disponível em: <https://www.ana.gov.br/noticias­
antigas/estudo­avalia­aquafero­de­alter­do­chapso.2019­03­15.3341746279>. Acesso
em: 05/02/2019.
ANAHATA. A complexidade do “pardo” e o não-lugar indígena. Medium, 3 de
setembro de 2019. Disponível em: <https://medium.com/@desabafos/a­complexidade­
do­pardo­e­o­n%C3%A3o­lugar­ind%C3%ADgena­a8a1e172e2b0>. Acesso em:
02/02/2020.
ANAQUIRI, Mirna P. Marinho da Silva. “Minha avó foi pega no laço”: a questão da
mulher indígena a partir de um olhar feminista. P. Anais do Seminário Internacional de
Pesquisa em Arte e Cultura Visual: Fabricações e Acidentes Visuais. Goiânia, GO:
2018. Disponível em:
353

https://seminarioculturavisual.fav.ufg.br/up/778/o/LC_MIRNA_ANAQUIRI_IISIPAC
V2018.pdf. Acesso em: 05/01/2020.

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a


difusão do nacionalismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
ANTAQ. Desempenho do setor aquaviário: estatístico 2018. Disponível em:
<http://portal.antaq.gov.br/wp­content/uploads/2019/02/Anu%C3%A1rio­2018­
Layout­4­3.pdf>. Acesso em: 10/01/2020.
ANZALDÚA, Gloria. La conciencia de la mestiza/Rumo a uma nova consciência.
Estudos Feministas, vol. 13, no. 3, p.704­719, Florianópolis, 2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/pdf/ref/v13n3/a15v13n3.pdf. Acesso em: 10/08/2020.
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Desenvolvimento
humano nas macrorregiões brasileiras: 2016. Brasília : PNUD : IPEA : FJP, 2016.
Disponível em:
http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/6217/1/Desenvolvimento%20humano%2
0nas%20macrorregi%C3%B5es%20brasileiras.pdf. Acesso em: 05/08/2020.
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Belterra, PA.
Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/belterra_pa. Acesso em:
10/08/2020.
ATLAS DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO BRASIL. Santarém, PA.
Disponível em:
http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/perfil_m/santarem_pa#caracterizacao. Acesso
em: 10/08/2020.
BASTER, Raquel. O silenciamento das mulheres camponesas em situação de conflitos
no campo e as sementes que anunciam suas resistências. p.83­88. In: CPT. Conflitos no
campo Brasil 2018. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2019.
BEHRENS, Camila. HENRIQUES, Giuliana. KUMARUARA, Luana. Encontro de
Mulheres Indígenas da região do baixo rio Tapajós: pelos direitos, pela cultura e
pelas tradições. Combate Racismo Ambiental, 10 de janeiro de 2018. Disponível em:
https://racismoambiental.net.br/2018/01/10/encontro­de­mulheres­indigenas­da­regiao­
do­baixo­rio­tapajos­pelos­direitos­pela­cultura­e­pelas­tradicoes/. Acesso em:
05/07/2018.
BELTRÃO, Jane Felipe. LOPES, Rhuan Carlos dos Santos. História(s) na Amazônia:
nos “termos” dos povos indígenas. Fronteiras: Revista de História, vol. 18, no. 32, p.
13­30, 2016.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder


nas organizações empresariais e no poder público. Tese (doutorado) ­ Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.

BOLSONARO, Jair M. Postagem no Twitter, em 31 de dezembro de 2019. Disponível


em: https://twitter.com/jairbolsonaro/status/1212096012908675072. Acesso em:
05/01/2020.
354

BORGES, Lizely. Na contramão de decisão popular, vereadores de Santarém


aprovam inclusão de Lago do Maicá como área portuária. Terra de Direitos, 17 de
dezembro de 2018. Disponivel em: HTTPS://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/na­
contramao­de­decisao­popular­vereadores­de­santarem­aprovam­inclusao­de­lago­do­
maica­como­area­portuaria/22997. Acesso em: 05/01/2020.

BOYER, Véronique. Expansion évangélique et migrations en Amazonie brésilienne -


La renaissance des perdants. Paris: IRD ­ Karthala, 2008.
BRAGANÇA, Daniele. Em live, Bolsonaro reclama que não consegue extinguir
parques por decreto. O Eco, 6 de junho de 2019. Disponível em:
https://www.oeco.org.br/blogs/salada­verde/em­live­bolsonaro­reclama­que­nao­
consegue­extinguir­parques­por­decreto/. Acesso em:10/05/2020.

BRAH, Avtar. Cartographies of diaspora: contesting identities. New York: Routledge,


2005.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, no. 26, janeiro­
junho de 2006. p. 329­376. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/cpa/n26/30396.pdf . Acesso em: 02/07/2018.
BRAH, Avtar. The scent of memory: strangers, our owns and others. In: BRAH, Avtar.
COOMBES, Annie E (org). Hybridity and its Discontents: politics, science, culture.
London/New York: Routledge, 2000.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. SNUC – Sistema Nacional de Unidades de
Conservação da Natureza: Lei nº 9.985, de 18 de julho de 2000; Decreto nº 4.340, de
22 de agosto de 2002; Decreto nº 5.746, de 5 de abril de 2006. Plano Estratégico
Nacional de Áreas Protegidas: Decreto nº 5.758, de 13 de abril de 2006. Brasília:
MMA, 2011.

BRESSER­PEREIRA, Luiz Carlos. Nação, Estado e Estado-Nação. Março de 2008.


Disponível em:
http://bresserpereira.org.br/papers/2008/08.21.Na%C3%A7%C3%A3o.Estado.Estado­
Na%C3%A7%C3%A3o­Mar%C3%A7o18.pdf. Acesso em: 01/08/2020.

BRUM, Eliane. A Amazônia é o centro do mundo. Coluna no Jornal El País, 2019.


https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/09/opinion/1565386635_311270.html
CARDOSO, Lourenço. Retrato do branco racista e anti-racista. Disponível em:
http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/viewFile/1279/1055, 2010.

CARNEIRO, Jeso. Reitor da Ufopa critica “hostilização” contra ministro em Alter-


do-Chão; Nélio também. Blog pessoal, 23 de julo de 2019. Disponível em:
<http://www.jesocarneiro.com.br/ufopa­2/reitor­da­ufopa­critica­hostilizacao­contra­
ministro­em­alter­do­chao­nelio­tambem.html>. Acesso em: 10/01/2020.
CARTA DA I ASSEMBLEIA DAS MULHERES MUNDURUKU. Aldeia Nova
Trairão, 7 de julho de 2019. Disponível em:
https://racismoambiental.net.br/2019/07/15/carta­da­i­assembleia­das­mulheres­
munduruku/. Acesso em: 02/01/2020.
CARTA DAS MULHERES INDÍGENAS DO BAIXO TAPAJÓS. Aldeia Novo
355

Gurupá, Rio Arapiuns, Santarém­Pará, 12 de janeiro de 2019. Disponível em:


https://cimi.org.br/2019/01/mulheres­indigenas­do­baixo­tapajos­divulgam­carta­
contra­o­acelerado­desmonte­da­politica­indigenista/
CARTA DO I ENCONTRO DE MULHERES MUNDURUKU DO MÉDIO E ALTO
TAPAJÓS­PA, 25 de novembro de 2016. Disponível em:
<https://cimi.org.br/pub/doc/2016­11_Carta_I­Encontro­de­Mulheres­
Munduruku.pdf>. Acesso: 10/05/2020.

CARTA MUNDURUKU. Paris, 14 de maio de 2019. Disponível em:


https://cimi.org.br/2019/05/nao­trocamos­vida­nossos­filhos­pelas­hidreletricas­
liderancas­munduruku­franca/. Acesso em: 10/06/2019.
CARTA PÚBLICA DO SEMINÁRIO ‘POVOS DO TAPAJÓS, CONSTRUINDO A
RESISTÊNCIA EM DEFESA DA AMAZÔNIA”. Itaituba­PA, 11 de dezembro de
2019. Disponível em: <https://terradedireitos.org.br/noticias/noticias/defendemos­a­
amazonia­porque­somos­amazonia­leia­a­carta­dos­povos­do­tapajos/23221>. Acesso
em: 05/01/2020.

CARVAJAL, Gaspar de. ROJAS, Alonso de. ACUÑA, Cristóbal de. Descobrimentos
do rio das Amazonas. São Paulo: Brasiliana, Editora Nacional, 1941.

CASTRO, Edna. Políticas de Estado e atores sociais na Amazônia contemporânea.


P.105­122. In: BOLLE, Willi. CASTRO, Edn.a VEJMELKA, Marcel (org). Amazônia:
região universal e teatro do mundo. São Paulo: Globo, 2010.

CASTRO, Rodrigo. Garimpeiros dizem que legalização sugerida por Bolsonaro criará
empregos. Revista Época, em 22 de julho de 2019. Disponível em:
<https://epoca.globo.com/brasil/garimpeiros­dizem­que­legalizacao­sugerida­por­
bolsonaro­criaria­empregos­23824992>. Acesso em: 03/01/2020.
CAVALCANTI, Clóvis. País e região: desigualdades e preconceitos regionais no
Brasil.Cadernos de Estudos Sociais, Recife, vol. 9, no. 1, p. 25­40, 1993. Disponível
em: https://periodicos.fundaj.gov.br/CAD/article/view/1126/846. Acesso em:
02/01/2020.
CEDECA EMAÚS. Pesquisa Trabalho Infantil Doméstico em Casa de Terceiros em
Belém do Pará- Brasil. Lima, Peru: OIT, 2001. Disponível em:
<http://white.lim.ilo.org/ipec/documentos/ras_brasil_belem.pdf>. Acesso em:
02/02/2020.

CIMI. Relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil – Dados de 2018.


Conselho Indigenista Missionário, 2018. Disponível em: <https://cimi.org.br/wp­
content/uploads/2019/09/relatorio­violencia­contra­os­povos­indigenas­brasil­2018.pdf
>. Acesso em: 05/01/2020.

COMITÊ NACIONAL DE VIDA E MEMÓRIA INDÍGENA. Emergência Indígena.


2020. Disponível em: http://emergenciaindigena.apib.info/dados_covid19/. Acesso em:
11/08/2020.

CONGRESSO EM FOCO. Governo planeja liberar mineração em terras indígenas,


diz ministro. 5 de março de 2019. Disponível em:
356

<https://congressoemfoco.uol.com.br/economia/governo­planeja­liberar­mineracao­
em­terras­indigenas­diz­ministro/>. Acesso em: 05/01/2020.

CONRADO, Mônica. CAMPELO, Marilu. RIBEIRO, Alan. Metáforas da cor:


morenidade e territórios da negritude nas construções de identidades negras na
Amazônia paraense. Afro-Ásia, no. 51, Salvador­Bahia, 2015, p. 213­246.
CORREIO BRAZILIENSE. No Japão, Bolsonaro defende a exploração da Amazônia:
''Não abro mão''. Correio Braziliense, em 21 de outubro de 2019. Disponível em:
<https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/10/21/interna_politic
a,799475/no­japao­bolsonaro­defende­a­exploracao­da­amazonia­nao­abro­
mao.shtml>. Acesso em: 04/01/2020.

COSTA, Mariana Baldolino da. A formação da alma e das identidades do homem


amazônico. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo: 2011.

COSTA, Stefania. Boletim do Desmatamento da Amazônia Legal (maio 2019) SAD.


IMAZON, 21 de junho de 2019. Disponível em:
<https://imazon.org.br/publicacoes/boletim­do­desmatamento­da­amazonia­legal­
maio­2019­sad/>. Acesso em: 02/01/2020.

CRUZ, Valter do Carmo. Territórios, identidades e lutas sociais na Amazônia. p. 93­


122. In: ARAÚJO, Frederico Guilherme Bandeira de. HAESBAERT, Rogério (org.).
Identidades e territórios: questões e olhares contemporâneos. Rio de Janeiro: Access,
2007.

CPT. Conflitos no campo Brasil 2018. Goiânia: Comissão Pastoral da Terra, 2019.

D’INCAO, Maria Angela. COTTA JÚNIOR, Humberto. Transformações e


permanências no espaço feminino na agricultura do Pará. P. 429­465. In: D’INCAO,
Maria Angela. ÁLVARES, Maria Luzia Miranda. SANTOS, Eunice Ferreira dos.
(Org). Mulher e modernidade na Amazônia, tomo II. Presidente Venceslau­SP/Belém:
Letras à Margem, GEPEM/IFCH/UFPA, 2001.

DANTAS, Dimitrius. Bolsonaro compara índios em reservas a animais em zoológicos.


O Globo, 30 de novembro de 2018. Disponível em:
https://oglobo.com/sociedade/bolsonaro­compara­indios­em­reservas­animais­em­
zoologicos­23272902.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Tradução Heci Regina Candini. 1a. Ed. São
Paulo: Boitempo, 2016.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol 1.


Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol 3.


Trad. Aurélio Guerra Neto et alli. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1996.

DELEUZE, Gilles. GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol 5.


Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo: Ed. 34, 1997.
357

DESIDERI, Leonardo. Funai terá guarda compartilhada com “papai Moro”, diz
Damares. Gazeta do Povo, em 22 de julho de 2019. Disponível em:
<https://www.msn.com/pt­br/noticias/brasil/funai­ter%C3%A1­guarda­compartilhada­
com­%E2%80%9Cpapai­moro%E2%80%9D­diz­damares/ar­AAEJdAG>. Acesso em:
01/01/2020.

DEUTSCHE WELLE. Bolsonaro quer explorar Amazônia com os Estados Unidos. 8


de abril de 2019. Disponível em: https://p.dw.com/p/3GU5K. Acesso em: 04/06/2019.

DEUTSCHE WELLE. Cacique Raoni viaja à Europa para denunciar ameaças à


Amazônia. Em 13 de maio de 2019. Disponível em: https://p.dw.com/p/3IOrn. Acesso
em: 01/01/2020.

DUSSEL, Enrique. 1492 - O encobrimento do outro: a origem do mito da


modernidade. Petrópolis: Vozes, 1993.

DUSSEL, Enrique. Europa, modernidade e eurocentrismo. p. 25­34. In: LANDER,


Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais –
perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.
DOCUMENTO FINAL DA MARCHA DAS MULHERES INDÍGENAS:
“TERRITÓRIO: NOSSO CORPO, NOSSO ESPÍRITO. Brasília (DF), 14 de agosto de
2019. Disponível em:
<https://cimi.org.br/2019/08/marcha­mulheres­indigenas­documento­final­lutar­pelos­
nossos­territorios­lutar­pelo­nosso­direito­vida/>. Acesso em: 05/01/2020.

ELETROBRAS. RIMA – Relatório de Impacto Ambiental AHE São Luiz do Tapajós.


CNEC WorleyParsons Engenharia S/A, 2014.

ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Ed. Michael Schröter. Trad. Vera Ribeiro. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

ESCOBAR, Arturo. Encoutering development: the making and unmaking of the third
world. New Jersey: Princeton University Press, 1995.

ESCOBAR, Arturo. Lugar da natureza e a natureza do lugar: globalização ou pós­


desenvolvimento? p. 69­ 86. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber:
eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Buenos Aires:
CLACSO, 2005a.

ESCOBAR, Arturo. La invención del Tercer Mundo: construcción y deconstrucción


del desarrollo. 1a. ed. Caracas: Fundación Editorial el perro y la rana, 2007.

ESPINOSA, María Fernanda. La Amazonia Ecuatoriana: colonia interna. Revista


Iconos, no. 05, 1998, pp. 28­34. Disponível em:
http://www.flacso.edu.ec/docs/i5_espinosa.pdf.
EXAME. “Bancada da Bíblia” mais que dobrou desde 2006, mostra levantamento.
Exame, em 12 de agosto de 2018. Disponível em:
https://exame.abril.com.br/brasil/bancada­da­biblia­mais­que­dobrou­desde­2006­
mostra­levantamento/. Acesso em: 02/01/2020.
358

EXAME. Presidente do INPE é exonerado após polêmica sobre dados de


desmatamento. Exame, 2 de agosto de 2019. Disponível em:
https://exame.abril.com.br/brasil/presidente­do­inpe­e­exonerado­apos­polemica­
sobre­dados­de­desmatamento/. Acesso em: 11/01/2020.
FAGUNDES, Murilo. Eles, Bolsonaro; elas, Haddad: eleições dividiram jovens por
gênero. Correio Braziliense, 3 de novembro de 2018. Disponível em:
https://correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/11/03/interna_politica,7172
41/eles­bolsonaro­elas­haddad­eleicoes­dividiram­jovens­por­genero.shtml. Acesso
em: 27/12/2019.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
FANON, Frantz. Peles negras, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador:
EDUFBA, 2008.
FAUSTINO, D. M. “Por que Fanon, por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos
no Brasil. Tese (Doutorado) – Programa de Pós­Graduação em Sociologia,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2015a.

FAUSTINO, Deivison Mendes. A práxis e a “consciência política e social” em Frantz


Fanon. Lutas Sociais, v. 19, n. 34, p. 158­173, 2015b.

FEARNSIDE, Philip M. Hidrelétricas na Amazônia: impactos ambientais e sociais na


tomada de decisões sobre grandes obras. Manaus: Editora do INPA, 2015. Disponível
em: http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/2015/Livro­Hidro­
V1/Livro%20Hidrel%C3%A9tricas%20V.1.pdf. Acesso em: 05/10/2018.

FEARNSIDE, Philip M. A Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós: 5 – O direito de


“consulta” dos povos indígenas. Amazônia Real, 15 de agosto de 2016. Disponível em:
https://amazoniareal.com.br/a­hidreletrica­de­sao­luiz­do­tapajos­5­o­direito­de­
consulta­dos­povos­indigenas/. Acesso em: 10/08/2020.

FEDERICI, Silvia. Revolution at Point Zero: Housework, Reproduction, and Feminist


Struggle. Oakland: PM Press, 2012.

FELLOWS, M.; PAYE, V.; ALENCAR, A.; NICÁCIO, M.; CASTRO, I.; COELHO,
M.E.; e MOUTINHO, P. Não são números, são vidas! A ameaça da covid-19 aos
povos indígenas da Amazônia brasileira. Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira e Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, 2020. Disponível
em https://ipam.org.br/bibliotecas/naosao­numeros­sao­vidas­a­ameaca­da­covid­19­
aos­povosindigenas­da­amazonia­brasileira/. Acesso em: 11/08/2020.

FERNANDES, Estevão R. Decolonizando sexualidades: enquadramentos coloniais e


homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos. Tese (Doutorado em
Estudos Comparados sobre as Américas) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade
de Brasília. Brasília, p. 383. 2015.

FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes: o legado da


“raça branca” - Volume I. São Paulo: Globo, Biblioteca Azul, 2008.
359

FERNANDES, Thalita. Em live, Bolsonaro ataca Ibama, ONGs e ameaça cortar


diretoria da Funai. Folha de São Paulo, em 17 de abril de 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/em­live­bolsonaro­ataca­ibama­ongs­e­
ameaca­cortar­diretoria­da­funai.shtml. Acesso em: 05/01/2020.

FERNANDES, Thalita. Bolsonaro diz que terá encontro com premiê japonês para
discutir exploração da Amazônia. Folha de São Paulo, em 20 de junho de 2019.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/06/bolsonaro­diz­que­
tera­encontro­com­premie­japones­para­discutir­exploracao­da­amazonia.shtml.
Acesso em: 02/01/2020.

FIALHO, Átila Rezende. TREVISAN, Ricardo. Ocupar, colonizar, urbanizar a


Amazônia Legal (1970­80): ações oficiais e privadas na criação de núcleos urbanos.
Anais XVIII ENANPUR, 2019. Disponível em: http://anpur.org.br/xviiienanpur/anais.
Acesso em: 10/08/2020.

FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. CHABOULEYRON, Rafael. ALONSO, José Luis


Ruiz­Peinado. Amazônia e história global ­ Apresentação. Tempo, vol.23, no.3, p.504­
505, 2017.

FOLHA. Heleno admite preocupação com sínodo sobre Amazônia, mas nega
monitoramento. Folha de São Paulo, em 12 de fevereiro de 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/02/heleno­admite­preocupacao­com­
sinodo­sobre­amazonia­mas­nega­monitoramento.shtml. Acesso em: 02/01/2020.

FONSECA, Iranice. Histórico da Comunidade de Jamaraquá. Jamaraquá, 2010.

FÓRUM. Ao se despedir do Chile, Bolsonaro comete nova gafe e agradece “ao povo
venezuelano”. 23 de março de 2019. Disponível em:
https://revistaforum.com.br/politica/ao­se­despedir­do­chile­bolsonaro­comete­nova­
gafe­e­agradece­ao­povo­venezuelano/. Acesso em: 05/01/2020.
FÓRUM. Bolsonaro vai rever terras indígenas: “É muita terra para pouco índio. Qual
o interesse por trás disso?” Em 30 de agosto de 2019. Disponível em:
https://revistaforum.com.br/politica/bolsonaro/bolsonaro­vai­rever­terras­indigenas­e­
muita­terra­para­pouco­indio­qual­o­interesse­por­tras­disso/. Acesso em: 05/01/2020.

FÓRUM. Antropólogo ruralista tenta tumultuar Encontro Amazônia-Centro do Mundo


e é rechaçado. Em 18 de novembro de 2019. Disponível em:
https://revistaforum.com.br/brasil/antropologo­ruralista­tenta­tumultuar­encontro­
amazonia­centro­do­mundo­e­e­rechacadoro­no­para/. Acesso em: 05/01/2020.
360

FREIRE, Simone. “Vamos denunciar ao mundo caráter racista, genocida e ditatorial do


governo Bolsonaro”. Alma Preta, em 25 de fevereiro de 2020. Disponível em:
https://almapreta.com/editorias/realidade/vamos­denunciar­ao­mundo­o­carater­
racista­genocida­e­ditatorial­do­governo­bolsonaro. Acesso em: 15/08/2020.

FUHRMANN, Leonardo. Bolsonaro quer exploração da Amazônia “em parceria com os


Estados Unidos”. Disponível em:
https://deolhonosruralistas.com.br/2018/10/04/bolsonaro­quer­exploracao­da­
amazonia­em­parceria­com­os­estados­unidos/. Acesso em: 02/01/2020.

G1. Índios em reservas são como animais em zoológicos, diz Bolsonaro. 30 de


novembro de 2018. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/vale­do­paraiba­
regiao/noticia/2018/11/30/indios­em­reservas­sao­como­animais­em­zoologicos­diz­
bolsonaro.ghtml. Acesso em: 05/01/2020.

G1. 'Brasil é uma virgem que todo tarado de fora quer', diz Bolsonaro ao falar sobre
Amazônia. Em 06 de julho de 2019. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/06/brasil­e­uma­virgem­que­todo­tarado­
de­fora­quer­diz­bolsonaro­ao­falar­sobre­amazonia.ghtml. Acesso em: 02/01/2020.
G1 SANTARÉM. Seminário debate 20 anos da expansão de soja em Santarém,
Belterra e Mojuí dos Campos. 21 de maio de 2018. Disponível em:
https://g1.globo.com/pa/santarem­regiao/noticia/seminario­debate­20­anos­da­
expansao­de­soja­em­santarem­belterra­e­mojui­dos­campos.ghtml. Acesso em:
30/07/2018.
GARCIA, Piê. I Romaria do Bem Viver: um estímulo à organização da luta em defesa
do território. FASE, em 24 de setembro de 2019. Disponível em:
<https://fase.org.br/pt/informe­se/noticias/i­romaria­do­bem­viver­um­estimulo­a­
organizacao­da­luta­em­defesa­do­territorio/>. Acesso em: 04/01/2020.

GAMBINI, Roberto. Espelho Índio: a formação da alma brasileira. São Paulo: Axis
Mundi, Terceiro Nome, 2000.

GONDIM, Neide. A invenção da Amazônia. 3rd ed. Manaus: Ed. Valer, 2019
GONZAGA, Polyana. Documento final do Sínodo da Amazônia é votado e aprovado.
A12, em 26 de outubro de 2019. Disponível em:
https://www.a12.com/redacaoa12/igreja/documento­final­do­sinodo­da­amazonia­e­
votado­e­aprovado. Acesso em: 04/01/2020.

GONZÁLEZ CASANOVA, Pablo. Sociología de la explotación. Buenos Aires:


CLACSO, 2006.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciências Sociais


Hoje, Anpocs, 1984, p.223­244.

GREENPEACE BRASIL. Em Israel, Greenpeace pede urgência na proteção da


Amazônia a Bolsonaro. 1º de abril de 2019. Disponível em:
https://www.greenpeace.org/brasil/press/em­israel­greenpeace­pede­urgencia­na­
protecao­da­amazonia­a­bolsonaro/. Acesso em: 16/01/2020.
361

GREENPEACE BRASIL. Hidrelétrica no Tapajós está cancelada. 4 de junho de


2016. Disponível em: http://www.greenpeace.org/brasil/pt/Noticias/Hidreletrica­no­
Tapajos­esta­cancelada/. Acesso em: 07/06/2017.

GUATTARI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. 4a ed.


Petrópolis: Vozes, 1996.

HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e


Guacira Lopes Louro. Rio de Janeiro: Lamparina , 2015.

hooks, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Trad. Ana Luiza
Libânio. 1a ed. Rio de Janeiro: Ed. Rosa dos Tempos, 2018.

ICMBIO. Turismo de Base Comunitária em Unidades de Conservação Federais:


princípios e diretrizes. MMA, 2018. Disponível em:
https://www.icmbio.gov.br/portal/images/stories/comunicacao/publicacoes/turismo_de
_base_comunitaria_em_uc_2017.pdf. Acesso em: 01/08/2020.

INCRA. Modalidades. Disponível em:


http://www.incra.gov.br/pt/?option=com_content&view=article&id=142. Acesso em:
20/01/2020.

INDIGENOUS ACTION. Rethinking the Apocalypse: An Indigenous Anti-Futu.rist


Manifesto. Março, 2020. Disponível em: http://www.indigenousaction.org/rethinking­
the­apocalypse­an­indigenous­anti­futurist­manifesto/. Acesso em: 01/05/2020.

IPAM. Desmatamento na Amazônia sobe 35% em um ano; risco de fogo é alto em


2020. 7 de agosto de 2020. Disponível em: https://ipam.org.br/desmatamento­na­
amazonia­cresce­35­em­um­ano­e/. Acesso em: 10/08/2020.

JUBÉ, Andrea. GREGORIO, Rafael. Maia diz a governadores que pressão para abrir
comércio é de investidores que perderam dinheiro na Bolsa. Valor Investe, em 25 de
março de 2020. Disponível em:
<https://valorinveste.globo.com/noticia/2020/03/25/maia­diz­a­governadores­que­
presso­para­abrir­comrcio­de­investidores­que­perderam­dinheiro­na­bolsa.ghtml>.
Acesso em: 21/05/2020.

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. p. 201­204. In: NOVAES, Adauto
(org.). Tempo e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.

LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER,


Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais –
perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

LAPA, Raphael Santos. O fatalismo como estratégia colonial. Epistemologias do Sul,


vol. 2, no. 2, p. 144­161, Foz do Iguaçú/PR, 2018. Disponível em:
https://revistas.unila.edu.br/epistemologiasdosul/article/view/1584. Acesso em:
08/03/2020.
362

LEITÃO, Matheus. Servidores do ICMBio assinam carta para pedir fim de 'assédio e
intimidação' por parte do governo. G1, em 30 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://g1.globo.com/politica/blog/matheus­leitao/post/2019/08/30/servidores­do­
icmbio­assinam­carta­para­pedir­fim­de­assedio­e­intimidacao­por­parte­do­
governo.ghtml>. Acesso: 04/01/2020.

LELLIS, Leonardo. De férias no Pará, Weintraub bate boca com manifestantes;


assista. VEJA, 23 de julho de 2019. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/politica/de­ferias­no­para­weintraub­bate­boca­com­
manifestantes­assista/ . Acesso em: 10/01/2020.

LEMOS, Nina. Eduardo Bolsonaro: se a Amazônia é uma “mulher”, o relacionamento


é abusivo. UOL, 2 de setembro de 2019. Disponível em:
https://ninalemos.blogosfera.uol.com.br/2019/09/02/eduardo­bolsonaro­se­a­amazonia­
e­uma­mulher­o­relacionamento­e­abusivo/. Acesso em: 10/01/2020.

LLANERAS, Kiko. Bolsonaro divide o Brasil: arrasa nas cidades mais brancas e ricas.
El País, 30 de outubro de 2018. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/29/actualidad/1540828734_083649.html.
Acesso em: 05/01/2020.

LOUREIRO, Violeta Refkalefsky. Amazônia: Estado, Homem, Natureza. 3a ed.


Belém, Pa: Cultural Brasil, 2014.

LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas,


Florianópolis, vol. 22, no. 3, setembro­dezembro, p. 935­952, 2014.

LUGONES, María. The Coloniality of Gender. p. 13-33. In: HARCOURT, Wendy


(ed). The Palgrave Handbook of Gender and Development. Londres/Nova York:
Palgrave Macmillan, 2016.

MAB. Direitos das mulheres atingidas por barragens. 11 minutos. 2016. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=C5u0KxMxP74. Acesso em: 15/02/2018.

MAB. O modelo energético brasileiro e a violação dos direitos das mulheres.


13/03/2013. Disponível em: https://www.mabnacional.org.br/artigo/mulheres­
atingidas. Acesso em: 14/02/2018.

MACHADO, Leandro. O que se sabe sobre o 'Dia do Fogo', momento­chave das


queimadas na Amazônia. BBC News Brasil, 27 de agosto de 2019. Disponível em:
<https://www.bbc.com/portuguese/brasil­49453037>. Acesso em: 10/01/2020.

MAIA, Rosane de Oliveira Martins. Territorialidades Específicas em Barcarena


confrontadas com projetos de desenvolvimento. Tese (Doutorado) – Universidade
Federal do Pará, Núcleo de Altos Estudos Amazônicos, Programa de Pós­Graduação
em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido. Belém: UFPA, 2017.

MAISONNAVE, Fabiano. Militares levam covid­19 a terra indígena remota da


Amazônia, afirmam lideranças. Folha de São Paulo, 6 de junho de 2020. Disponível
em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/06/militares­levam­covid­19­a­
terra­indigena­remota­da­amazonia­afirmam­liderancas.shtml. Acesso em: 10/08/2020.
363

MALDONADO­TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al


desarrollo de un concepto. p.127­167. In: CASTRO­GÓMEZ, Santiago;
GROSFOGUEL, Ramón. El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores;
Universidad Central; Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos y Pontificia
Universidad Javeriana; Instituto Pensar; 2007.

MANIFESTO DE LANÇAMENTO DA REDE BRASILEIRA DE JUSTIÇA


AMBIENTAL. 2001. Disponível em: https://www.mma.gov.br/destaques/item/8077­
manifesto­de­lan%C3%A7amento­da­rede­brasileira­de­justi%C3%A7a­ambiental.
Acesso em: 05/08/2020.
MATOS, Ralfo. Migração e urbanização no Brasil. Revista Geografias, Belo
Horizonte, vol. 08, no. 1, p. 07­23, janeiro­junho de 2012. Disponível em:
https://periodicos.ufmg.br/index.php/geografias/article/download/13326/10558/.
Acesso em: 01/08/2020.
MAZUI, Guilherme. Bolsonaro diz que ONGs podem estar por trás de queimadas na
Amazônia para 'chamar atenção' contra o governo. G1, em 21 de agosto de 2019.
Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/08/21/bolsonaro­diz­que­
ongs­podem­estar­por­tras­de­queimadas­na­amazonia­para­chamar­atencao­contra­o­
governo.ghtml>. Acesso em: 04/01/2020.

MENEGASSI, Duda. Número de queimadas na Amazônia cai enquanto desmatamento


dispara. O Eco, em 23 de abril de 2020. Disponível em:
https://www.oeco.org.br/reportagens/numero­de­queimadas­na­amazonia­cai­
enquanto­desmatamento­dispara/. Acesso em: 20/05/2020.

MENÉNDEZ, Miguel A. A área Madeira­Tapajós: situação de contato e relações entre


colonizador e indígenas. P. 251­296. In: CARNEIRO, Manuela (org). História dos
Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, Secretaria Municipal de Cultura,
FAPESP, 1992.

MIGNOLO, Walter D. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista


Brasileira de Ciências Sociais, 2017, vol.32, n.94. Disponível em:
<https://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v32n94/0102­6909­rbcsoc­3294022017.pdf>.
Acessado em: 10 de junho de 2019.

MILANEZ, Felipe. Comunidades Amazônicas se unem contra exploração de madeira.


Terra Magazine. 22 de novembro de 2010. Disponível em:
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4804628­EI16863,00­
Comunidades+amazonicas+se+unem+contra+exploracao+de+madeira.html. Acesso
em: 29/07/2018.
MILIOTTI, Rosilene. Nova rota da soja se expande para o Tapajós, alerta estudo.
FASE, 1º de setembro de 2017. Disponível em: https://fase.org.br/pt/informe­
se/noticias/estudo­alerta­para­investimento­chines­na­america­do­sul/. Acesso em:
04/05/2018.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. Painel Coronavírus. 2020. Disponível em:


https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 11/08/2020.
364

MMA. Brasil e EUA articulam criação de fundo de U$ 100 mi para Amazônia. 20 de


março de 2019. Disponível em: https://www.mma.gov.br/informma/item/15427­brasil­
e­eua­articulam­fundo­de­u$­100­mi­para­uso­sustent%C3%A1vel­na­
amaz%C3%B4nia.html. Acesso em: 02/01/2020.

MOHANTY, Chandra Talpade. Feminism Without Borders: decolonizing theory,


practicing solidarity. Durham & London: Duke University Press, 2003.

MOLINA, Luísa Pontes. Lutar e habitar a terra: um encontro entre autodemarcações e


retomadas. P. 15­35. Revista de @ntropologia da UFSCar, vol. 9, no. 1, jan./jun. 2017.
Disponível em: http://www.rau.ufscar.br/wp­
content/uploads/2017/10/1_Luisa_Molina.pdf. Acesso em: 11/08/2020.

MOURA, E. A. F. Práticas socioambientais na reserva de desenvolvimento


sustentável Mamirauá. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Sustentável do Trópico
Úmido) – Núcleo de Altos Estudos Amazônico. Belém: UFPA, 2007.

MOURA, Júlia. Citação nazista na cultura e agenda econômica não se misturam, dizem
analistas. Folha de São Paulo, em 17 de janeiro de 2020a. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/01/discurso­nazista­na­cultura­e­agenda­
economica­nao­se­misturam­dizem­analistas.shtml. Acesso em: 19/01/2020.
MOURA, Júlia. Pico de COVID­19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil
tem muita favela, diz presidente da XP. Folha de São Paulo, em 5 de maio de 2020b.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/brasil­esta­indo­bem­
no­controle­do­coronavirus­e­pico­nas­classes­altas­ja­passou­diz­presidente­da­
xp.shtml. Acesso em: 20/05/2020.

MOVIMENTO TAPAJÓS VIVO. Disponível em: https://tapajosvivo.blogspot.com.br/


Movimento Tapajós Vivo (Facebook). Disponível em:
https://www.facebook.com/MovimentoTapajosVivo/

MOVIMENTO TAPAJÓS VIVO. Carta de Repúdio à gestão da Resex Tapajós-


Arapiuns. 18 de junho de 2018. Disponível em:
https://tapajosvivo.blogspot.com/2018/06/carta­de­repudio­gestao­da­resex.html.
Acesso em: 29/07/2018.

MPF. MPF recomenda que a Alcoa se retire do assentamento Lago Grande, em


Santarém (PA). 27 de julho de 2018. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pa/sala­de­
imprensa/noticias­pa/mpf­pa­recomenda­que­a­alcoa­se­retire­do­assentamento­lago­
grande­em­santarem. Acesso em: 05/08/2018.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo


mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva SA, 2016.

NEGRÃO, Heloísa. Após Alemanha, Noruega também bloqueia repasses para


Amazônia. El País, 16 de agosto de 2019. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/15/politica/1565898219_277747.html. Acesso
em: 05/01/2020.
365

NHEENGATU TAPAJOWARA. Florêncio Almeida Vaz Filho e Antônio Fernandes


Góes Neto (Edit.). Santarém: SELO Gráfica Editora, 2016.

NIRANJAN, Ajit. Em meio à pandemia, Amazônia enfrenta ameaça tripla. Deutsche


Welle, 16 de junho de 2020. Disponível em: https://p.dw.com/p/3dqsu. Acesso em:
01/08/2020.

NOGUEIRA, Ida Clara Guimarães. Segregação socioespacial urbana no entorno de


hidrelétrica: produção do espaço em Tucuruí-PA. Dissertação (Mestrado) ­
Universidade da Amazônia, Curso de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente
Urbano. Belém: UNAMA, 2010.

ONOFRE, Renato. Bolsonaro defende mineração na Amazônia e exploração da Renca.


Terra, em 12 de abril de 2019. Disponível em:
https://www.terra.com.br/noticias/ciencia/sustentabilidade/bolsonaro­defende­
mineracao­na­amazonia­e­exploracao­da­
renca,fc03e73c02baa7c149cbb99936b28484nrvxm2y7.html. Acesso em: 06/01/2020.

PAREDES, Julieta. Hilando fino: desde el feminismo comunitario. La Paz­Bolivia:


Mujeres Creando Comunidad, 2010.

PAREDES, Julieta. GUZMÁN, Adriana. El tejido de la rebeldía ¿Qué es el feminismo


comunitario? Bases para la despatriarcalizacion. La Paz­Bolivia: Mujeres Creando
Comunidad, 2014.

PASSARINHO, Nathalia. Bolsonaro critica fala de Angela Merkel sobre pauta


ambiental do Brasil: 'Temos muito a ensinar à Alemanha'. BBC News Brasil, em 27 de
junho de 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil­48783709.
Acesso em: 02/01/2019.
PASSOS, Cristiane. Despejos, assassinatos e reforma agrária paralisada marcam
primeiro ano do governo Bolsonaro. CPT Nacional, em 20 de dezembro de 2019.
Disponível em: https://www.cptnacional.org.br/publicacoes­2/destaque/5037­despejos­
assassinatos­e­reforma­agraria­paralisada­marcam­primeiro­ano­do­governo­
bolsonaro. Acesso em: 04/01/2020.

PEIXOTO, Kércia Priscilla Figueiredo. “EU EXISTO”: afirmação indígena e


nomeação do racismo. Os Borari e os Arapium da Terra Maró, Amazônia. Tese
(Doutorado) – Universidade Federal do Pará, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Programa de Pós­Graduação em Sociologia e Antropologia. Belém, 2017.

PEIXOTO, Kércia Priscilla Figueiredo. PEIXOTO, Rodrigo Corrêa Diniz. Os Borari e


os Arapium: história do tempo presente. Revista Ciências da Sociedade (RCS), Vol. 3,
n. 5, p.140­168, Jan/Jun 2019. Disponível em:
http://www.ufopa.edu.br/portaldeperiodicos/index.php/revistacienciasdasociedade/artic
le/download/988/514. Acesso em: 02/04/2020.

PETEAN, Antônio Carlos Lopes. O racismo universalista no Brasil: eugenia e


higienização moral da sociedade. Revista Eletrônica Cadernos de História, ano 7, n.°
2, dezembro de 2012.
366

PETERSON, V. Spike. Political Identities/Nationalism as Heterosexism. International


Feminist Journal of Politics, no. 1, vol. 1, p. 34­65, 1999. Disponível em:
http://dx.doi.org/10.1080/146167499360031. Acesso em: 05/01/2019.

PINTO, Lúcio Flávio. “Não há futuro para a Amazônia”, diz Lúcio Flávio Pinto.
Entrevista por Cristina Serra. Amazônia Real, 23 de setembro de 2019. Disponível em:
https://amazoniareal.com.br/nao­ha­futuro­para­a­amazonia­diz­lucio­flavio­pinto/.
Acesso em: 05/01/2020.

PINTO, Lúcio Flávio. Brasília locuta, 2020. Disponível em:


https://amazoniareal.com.br/brasilia­locuta/. Acesso em: 20/05/2020.
PIZA, Edith. Porta de vidro: entrada para branquitude. In: CARONE, Iray e BENTO,
Maria Aparecida da Silva (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre
branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002.

PORTO­GONÇALVES, Carlos Walter. Amazônia, Amazônias. 3ª ed. São Paulo:


Contexto, 2015.
PRADO JÚNIOR, Caio. História e Desenvolvimento: a contribuição da historiografia
para a teoria e prática do desenvolvimento brasileiro. 2ª Ed. São Paulo: Brasiliense,
1978.

PROJETO SAÚDE E ALEGRIA. Mais de duzentas entidades manifestam apoio ao


PSA. Santarém, 26 de novembro de 2019. Disponível em:
https://saudeealegria.org.br/redemocoronga/mais­de­duzentas­entidades­manifestam­
apoio­ao­psa/. Acesso em: 04/01/2020.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do Poder, Eurocentrismo e América Latina. p. 117­


142. In: LANDER, Edgardo (org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências
sociais – perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y modernidad/racionalidade. Perú Indígena, Lima,


v.12, n.29, p.11­20, 1992.

QUIJANO, Aníbal. El Fantasma del Desarrollo en América Latina. Revista Venezolana


de Economía Y Ciencias Sociales, No. 2, p. 38­55. Caracas, 2000. Disponível em:
http://www.cesla.uw.edu.pl/cesla/images/stories/wydawnictwo/czasopisma/Revista/Re
vista_1_quijano.pdf. Acesso em:04/05/2019.

RAHGERBER, Eva. Mujer en el Desarrollo, Mujer y Desarrollo, Género y


Desarrollo: tendencias en la investigación y la práctica. Trad. Julia Elisa Alva y Rosa
Mendoza. The Journal of Developing Areas, 1990.

RAI, Shirin M. The Gender Politics of Development: essays in hope and despair. New
York/London: Zed Books, Zubaan, 2008.

RAMINELLI, Ronald. Eva Tupinambá. P. In: DEL PRIORE, Mary. (ed). História das
mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.

RIST, Gilbert. The history of development: from western origins to global faith. 3 ed.,
Londres: Zed books, 2008.
367

ROSSI, Amanda. Navios portugueses e brasileiros fizeram mais de 9 mil viagens com
africanos escravizados. BBC News Brasil, 7 de agosto de 2018. Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/brasil­45092235. Acesso em: 20/01/2019.

ROSSI, Marina. Bolsonaro diz que sua candidatura é “imbroxável” e que “a Amazônia
não é nossa”. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/18/politica/1526612140_988427.html. Acesso
em: 30/07/2018.

RUNYAN, Anne Sisson. The “State” of Nature: a Garden Unfit for Women and Other
Living Things. P. 123­140. In: PETERSON, V. Spike. Gendered States: feminist
(re)visions of International Relations Theory. Boulder/Londres: Lynne Rienner
Publishers, 1992.
SALLES, João Moreira. ESTEVES, Bernardo. O Mundo sem a Amazônia. Revista
Piauí, 17 de outubro de 2019. Disponível em: <https://piaui.folha.uol.com.br/o­mundo­
sem­amazonia/>. Acesso em: 20/01/2020.

SALLES, Vicente. O negro no Pará: sob o regime da escravidão. Rio de Janeiro:


Fundação Getúlio Vargas, Belém: UFPA, 1971. 336 p. (Coleção Amazônica. Série
José Veríssimo). Disponível em: <http://livroaberto.ufpa.br/jspui/handle/prefix/48>.
Acesso em: 04/06/2019.

SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, Quilombos, Modos e Significações.


Brasília: INCTI/UnB, 2015.
SANTOS, Daniel. MOSANER, Marcelo. CELENTANO, Danielle. MOURA, Renan.
VERÍSSIMO, Adalberto. Índice de Progresso Social na Amazônia brasileira - IPS
Amazônia 2018. Belém, PA: Imazon; Social Progress Imperative, 2018.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993.

SARGES, Maria de Nazaré. Belém: Riquezas Produzindo a Belle Époque (1870-1912).


2a .ed. Belém: PakaTatu, 2002.

SARINGER, Giuliana. MORAES, Juliana. Pesquisa exclusiva: conheça o perfil do


presidente que o brasileiro quer. R7, 14 de junho de 2018. Disponível em:
https://noticias.r7.com/brasil/pesquisa­exclusiva­conheca­o­perfil­do­presidente­que­o­
brasileiro­quer­1402018?amp. Acesso em: 07/01/2020.

SAVAZZONI, C. A. Subjetividade e devir à luz da filosofia de Deleuze e Guattari:


contribuições para uma psicologia. Dissertação (Mestrado). Ribeirão Preto: Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2012.

SDDH. Entidades entram com pedido de inquérito policial contra atos do presidente
Bolsonaro por crimes a saúde pública e a população brasileira. 24 de março de 2020.
Disponível em: http://sddh.org.br/noticias_mobile.php?page_id=125. Acesso em:
16/08/2020.

SETO, Guilherme. Bolsonaro diz que pretende acabar com 'ativismo ambiental xiita' se
368

for presidente. Folha de São Paulo, 9 de outubro de 2018. Disponível em:


https://acervo.socioambiental.org/acervo/noticias/bolsonaro­diz­que­pretende­acabar­
com­ativismo­ambiental­xiita­se­presidente. Acesso em: 06/01/2020.

SIBERTIN­BLANC, Guillaume. A virada descolonial da psicose: Frantz Fanon,


inventor da esquizoanálise. Revista CULT. Julho de 2016. Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/virada­descolonial­da­psicose­frantz­fanon­
inventor­da­esquizoanalise/. Acesso em: 04/08/2018.

SOUZA, Márcio. Amazônia indígena. 1a ed. Rio de Janeiro: Record, 2015.

SPAROVEK, Gerd. Et al. Who owns Brazilian lands? Land Use Policy 87, 2019,
Disponível em: ttps://www.oeco.org.br/wp­content/uploads/2019/07/Who­owns­
Brazilian­lands_Artigo_Land­Use­Policy.pdf . Acesso em: 02/05/2020.

SPEZIA, Adilvane. “A municipalização da saúde indígena significa a nossa sentença


de morte”. CIMI, 25 de março de 2019. Disponível em: https://cimi.org.br/2019/03/a­
municipalizacao­da­saude­indigena­significa­a­nossa­sentenca­de­morte/. Acesso em:
05/01/2020.

STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima.


Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo: Cosacnaify, 2015.

STF. LAUDO Nll 1242/2020 - INC/DITEC/PF. Disponível em:


https://videopublicado.s3­sa­east­
1.amazonaws.com/Degravacao/Laudo_Digitalizado.pdf . Acesso em: 23/05/2020.

STTR. CNS. CITA. Entidades denunciam ao MPF exploração madeireira na Resex e


pedem saída de Santamaria da direção regional do ICMBio. O Estado Net, 18 de junho
de 2018. Disponível em: https://www.oestadonet.com.br/noticia/13251/entidades­
denunciam­ao­mpf­exploracao­madeireira­na­resex­e­pedem­saida­de­santamaria­da­
direcao­regional­do­icmbio/. Acesso em: 09/01/2020.

TAKAR, Téo. Lucro dos 4 maiores bancos bate recorde, sobe 20% e vai a R$ 69
bilhões. UOL, 2019. Disponível em:
https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/02/14/lucro­dos­maiores­
bancos.htm. Acesso em: 11/06/2019.

TRE­PA. Eleições 2018. Disponível em: http://www.tre­pa.jus.br/eleicoes/eleicoes­


anteriores/eleicoes­2018/eleicoes­2018. Acesso em: 10/01/2020.

URIBE, Gustavo. “Funai tem de ficar com a mamãe Damares não com o Papai Moro”
diz ministra. Folha de São Paulo, em 8 de maio de 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/05/funai­tem­de­ficar­com­mamae­
damares­nao­com­papai­moro­diz­ministra.shtml. Acesso em: 03/01/2020.

URIBE, Gustavo. 'Interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore', diz
Bolsonaro. Folha de São Paulo, em 1º de outubro de 2019. Disponível em:
369

<https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2019/10/o­interesse­na­amazonia­nao­e­no­
indio­nem­na­porra­da­arvore­diz­bolsonaro.shtml>. Acesso em: 04/01/2020.
VALE, Ana Lia Farias. LIMA, Luís Cruz. BONFIM, Maria Geovaní. Século XX: 70
anos de migração interna no Brasil. Textos & Debates, No. 07, 2004. Pp. 22­43.
Disponível em: https://revista.ufrr.br/textosedebates/article/view/3506/1960. Acesso
em: 02/03/2020.

VARGAS, Getúlio. Discurso do Rio Amazonas. Revista Brasileira de Geografia, vol,


4, no. 2, Abril­Junho de 1942. Pp. 259­262. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/rbg_1942_v4_n2.pdf. Acesso
em: 10/07/2017.

VARGAS, Mateus. Bolsonaro diz que Cacique Raoni foi cooptado por chefes de
Estado. Estadão, em 26 de setembro de 2019. Disponível em:
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro­diz­que­cacique­raoni­foi­
cooptado­por­chefes­de­estado,70003026818. Acesso em: 03/01/2020.

VAZ FILHO, Florêncio Almeida. Povos indígenas e etnogêneses na Amazônia. P. 104­


159. In: LUCIANO, José dos Santos Gersem. OLIVEIRA, Jô Cardoso de.
HOFFMANN, Maria Barroso. Olhares indígenas contemporâneos. Brasília: CINEP,
2010.

VEJA. Bolsonaro é acusado de racismo por frase em palestra na Hebraica. 6 de abril


de 2017. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/brasil/bolsonaro­e­acusado­de­
racismo­por­frase­em­palestra­na­hebraica/>. Acesso em: 02/01/2020.

VELLOZO, Júlio César de Oliveira. ALMEIDA, Silvio Luiz de. O pacto de todos
contra os escravos no Brasil Imperial. Revista Direito e Praxis, vol. 10, no. 03, p.
2137­2160, 2019.

VELOSO, Lucas. Movimento negro faz denúncia internacional dos decretos de armas
de Bolsonaro. Alma Preta, em 12 de julho de 2019. Disponível em:
https://almapreta.com/editorias/realidade/movimento­negro­faz­denuncia­
internacional­dos­decretos­de­armas­de­bolsonaro. Acesso em: 10/08/2020.

VIEIRA, Bianca. Mulheres negras no Brasil: trabalho, família e lugares sociais.


Dissertação (Mestrado) ­ Programa de Pós­Graduação em Educação. Campinas:
Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, 2018.

VITORIO, Tamiris. Prefeito de Nova York agradece museu por não sediar homenagem
a Bolsonaro. EXAME, 17 de abril de 2019. Disponível em:
<https://exame.abril.com.br/mundo/prefeito­de­nova­york­agradece­museu­por­nao­
sediar­homenagem­a­bolsonaro/>. Acesso em: 02/01/2020.

WALKER, R. B. J. Inside/Outside: Relações Internacionais como teoria política. Rio


de Janeiro: Ed. PUC­Rio, 1993.
370

WALLERSTEIN, Immanuel. A descoberta da economia­mundo. P. 3­16. Revista


Crítica de Ciências Sociais, vol. 69, Outubro 2004. Disponível em:
https://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/69/RCCS69­003­016­IWallerstein.pdf.
Acesso em: 05/08/2020.

WALSH, Catherine. Interculturalidad, plurinacionalidad y decolonialidad: las


insurgencias político­epistémicas de refundar el Estado. Tabula Rasa. Bogotá ­
Colombia, No.9: 131­152, julio­diciembre, 2008.

WALT, Stephen M. Who Will Save The Amazon (and How)? Foreign Affairs, 5 de
agosto de 2019. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2019/08/05/who­will­
invade­brazil­to­save­the­amazon/. Acesso em: 10/08/2019.

WELDON, Luciano. Santarém entra com ação pedindo inclusão em estudo de


hidrelétrica. G1 Santarém, 13/7/2016. Disponível em:
http://g1.globo.com/pa/santarem­regiao/noticia/2016/07/santarem­entra­com­acao­
pedindo­inclusao­em­estudo­de­hidreletrica.html. Acesso em: 04/05/2018.

YUVAL­DAVIS, Nira. Gender and Nation. London: SAGE, 1997.

YUVAL­DAVIS, Nira. ANTHIAS, Floya. Woman, Nation, State. London: Macmillan


Zajovic, 1989.

ZACKSESKI, Cristina. MACHADO, Bruno Amaral. AZEVEDO, Gabriela. O


encarceramento em massa no Brasil: uma proposta metodológica de análise. Revista
Crítica Penal y Poder, No. 12, p. 269­289. Observatorio del Sistema Penal y los
Derechos Humanos, Universidad de Barcelona, Marzo de 2017. Disponível em:
<http://revistes.ub.edu/index.php/CriticaPenalPoder/article/download/18420/20969>.
Acesso em: 10/01/2020.

ZUKER, Fábio. Notícias do front tapajônico: um relato de viagem. Revista Ensaia, no.
3, junho de 2017. Disponível em: https://www.revistaensaia.com/noticias­do­front­
tapajonico. Acesso em: 10/08/2020.

ZUKER, Fábio. BRASIL, Kátia. LIMA, Jackeline. Juiz mantém prisões de brigadistas
de Alter do Chão e dispara: “não aceito pressão; se forem inocentes, eu inocento, se
forem condenados, eu os condeno”. Amazônia Real, em 27 de novembro de 2019.
Disponível em: <https://amazoniareal.com.br/juiz­mantem­prisoes­de­brigadistas­de­
alter­do­chao­e­dispara­nao­aceito­pressao­se­forem­inocentes­eu­inocento­se­forem­
condenados­eu­os­condeno/>. Acesso em: 05/01/2020.
371

ANEXO A - MAPAS DA FORMAÇÃO DO TERRITÓRIO BRASILEIRO


372

ANEXO B - MAPAS DA PAN-AMAZÔNIA E AMAZÔNIA BRASILEIRA


373

ANEXO C - DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO INDÍGENA NO TERRITÓRIO


BRASILEIRO A PARTIR DO CENSO DE 2010
374

ANEXO D - HISTÓRICO DA COMUNIDADE DE JAMARAQUÁ


375

ANEXO E - MAPA COM NÚMERO DE COMUNIDADES REMANESCENTES


DE QUILOMBOS POR ESTADO
ESTA
376

ANEXO F – MOVIMENTOS SOCIAIS PROTESTAM CONTRA PROJETO DE


HIDRELÉTRICAS NO TAPAJÓS

Pôster da II Caranava em defesa do Rio Tapajós em 2016

Manifestação em defesa do Rio Tapajós e seus povos (Santarém, 2015)

Fonte: Movimento Tapajós Vivo e Cândido Neto (2015)

Protesto em 2014 dos Munduruku e do Greenpeace contra o Complexo Hidrelétrico do Tapajós.

Fonte: Greenpeace (2014)


377

ANEXO G - MAPAS QUE DEMONSTRAM O DESMATAMENTO NA


REGIÃO

Áreas da Amazônia Legal atingidas pelo desmatamento até 2010

Fonte: IMAZON.

Exploração ilegal de madeira no Estado do Pará

Fonte: IMAZON, 2016.


378

ANEXO H - MAPA DA PRODUÇÃO DE SOJA NO PAÍS

Produção de soja (em grão) no País, com destaque para os dez principais municípios produtores

Fonte: IBGE, 2017.


379

ANEXO I - MATRIZ DE NECESSIDADES E FATORES DE SATISFAÇÃO

(*) (**) Ser Ter Fazer Estar

Subsistência Saúde física e mental, Alimentação, abrigo, Alimentar, Ambiente vital e


equilíbrio, solidariedade, trabalho procriar, descansar, ambiente social.
humor e adaptabilidade trabalhar

Segurança/ Cuidado, adaptabilidade, Sistemas de seguro, Cooperar, prevenir, Ambiente vital, ambiente
Proteção autonomia, equilíbrio, poupança, seguridade planificar, cuidar, social e moradia.
solidariedade social, sistemas de curar, defender
saúde, legislações,
direitos, família,
trabalho

Afeto Autoestima, Amizades, companhias, Fazer amor, Privacidade, intimidade,


solidariedade, respeito, família, animais acariciar, expressar lar, espaços de encontro
tolerância, generosidade, domésticos, plantas, emoções,
receptividade, paixão e jardins compartilhar,
vontade, sensualidade, cuidar, cultivar,
humor. apreciar

Compreensão Consciência crítica, Literatura,professores, Pesquisar, estudar, Âmbitos de interação de


receptividade, método, políticas experimentar, formação: escola, grupos,
curiosidade, assombro, educacionais e de educar, analisar, família, universidades,
disciplina, intuição, comunicação meditar, comunidades, família
racionalidade interpretar.

Participação Adaptabilidade, Direitos, Afiliar­se, Âmbitos de interação


receptividade, responsabilidades, cooperar, propor, participativa: partidos,
solidariedade, obrigações, atribuições compartilhar, associações, igrejas,
disposição, entrega, e trabalho. discordar, acatar, comunidades,
respeito, paixão, humor. dialogar, opinar. vizinhanças, famílias.

Lazer/Ócio Curiosidade, imaginação Jogos, espetáculos, Divagar,recordar Privacidade, intimidade,


receptividade, humor, festas, calmaria sentir saudade, espaços de encontro,
despreocupaçã sonhar, fantasiar, tempo livre, ambientes,
relaxar, brincar, paisagens
o, tranquilidade,
divertir­se
sensualidade

Criatividade Paixão, vontade, intuição Habilidades, destrezas Trabalhar,construir Âmbitos de produção:


imaginação, audácia, método, trabalho idealizar, inventar, oficinas, centros
racionalidade, autonomia compor, desenhar, culturais, espaços de
inventiva, curiosidade interpretar expressão

Identidade Pertencimento, coerência Símbolos, hábitos, Comprometer­se, Sócio ritmos, ambiente


diferença, autoestima linguagem, normas, integrar­se, crescer cotidiano,
assertividade costumes, grupos de definir­se, âmbitos de
referência, modelos, confrontar­se pertencimento, etapas de
valores, trabalho, conhecer­se, amadurecimento
sexualidade, reconhecer­se,
memória histórica atualizar­se

Liberdade Autonomia, autoestima, Igualdade de direitos Discordar, optar, Plasticidade espaço­


vontade, paixão, audácia diferenciar­se, temporal
tolerância, abertura, arriscar­se, meditar
determinação, rebeldia, conhecer­se,
assertividade assumir­se,
desobedecer

Fonte: Adaptado de Max­Neef, Elizalde e Hopenhayn (2010, p. 26)


380

ANEXO J - DISTRIBUIÇÃO DE VOTOS NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS


DE 2018
381

ANEXO K - RELAÇÃO ENTRE O DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA E OS


FOCOS DE INCÊNDIO EM 2019

Você também pode gostar