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Abordagens e problemáticas em
torno do conceito de literatura
Teoria da literatura e práticas pedagógicas
Profa. Cassiana Grigoletto Terry Eagleton Teoria da literatura: uma introdução
“Se a teoria literária existe, parece óbvio que
haja alguma coisa chamada literatura, sobre a qual se teoriza. Podemos começar, então, por levantar a questão: o que é literatura?” Muitas têm sido as tentativas de se definir literatura. É possível defini-la como a escrita “imaginativa”, no sentido de ficção – escrita esta que não é literalmente verídica. A distinção entre “fato” e “ficção”, portanto, não parece nos ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a própria distinção é muitas vezes questionável. Verdade “histórica” e verdade “artística” = as sagas, por exemplo. No inglês em fins do séc. XVI e princípios do séc. XVII, a palavra “novel” foi usada tanto para os acontecimentos reais quanto para os fictícios – os romances e as notícias não eram claramente fatuais, nem claramente fictícios. Se a “literatura” inclui muito da escrita “fatual”, também exclui uma boa margem de ficção. As histórias em quadrinhos do Super-Homem são ficção, mas isso não faz com que sejam geralmente considerados como literatura, e muito menos como Literatura. O fato de a literatura ser a escrita “criativa” ou “imaginativa” implicaria serem a história, a filosofia e as ciências naturais não criativas e destituídas de imaginação?
Poética de Aristóteles Livro IX:
Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta narrar o que aconteceu; é sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade. Com efeito, não diferem o historiador e o poeta, por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa), - diferem sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal e esta o particular. (1966, p.78). Talvez seja necessária uma abordagem diferente. Talvez a literatura seja definível não pelo fato de ser ficcional ou “imaginativa”, mas porque emprega a linguagem de forma peculiar. Segundo essa teoria, a literatura é a escrita que, nas palavras do crítico russo Roman Jakobson, representa uma “violência organizada contra a fala comum”. Essa foi a definição de “literário” apresentada pelos formalistas russos (escola de crítica literária que existiu na Rússsia de 1910 a 1930): Vítor Sklovski; Roman Jakobson; Osip Brik; Yury Tynianov; Boris Eichenbaum e Boris Tomashevski. As ideias dos formalistas russos ➢ Rejeitaram as doutrinas simbolistas quase místicas que haviam influenciado a crítica literária até então e, imbuídos de um espírito prático e científico, transferiram a atenção para a realidade material do texto literário em si. ➢ A literatura não era uma pseudo-religião, ou psicologia, ou sociologia, mas uma organização particular da linguagem. ➢ A literatura não era um veículo de ideias, nem uma reflexão sobre a realidade social, nem a encarnação de uma verdade transcendental: era um fato material, cujo funcionamento podia ser analisado. ➢ Os formalistas passaram ao largo da análise do “conteúdo” literário e dedicaram-se ao estudo da forma literária – o conteúdo era apenas a “motivação” da forma, uma ocasião ou pretexto para um tipo específico de exercício formal. ➢ “O Dom Quixote não é uma obra ‘sobre’ o personagem do mesmo nome: o personagem é apenas um artifício para se reunirem diferentes tipos de técnicas narrativas.” (EAGLETON, 2006, p. 4-5) ➢ Começaram por considerar a obra literária como uma reunião mais ou menos arbitrária de “artifícios”, só mais tarde passaram a ver esses “artifícios” como elementos relacionados entre si. ➢ Os “artifícios” incluíam som, imagens, ritmo, sintaxe, métrica, rima, técnicas narrativas; incluíam todo o estoque de elementos literários formais. ➢ O que todos esses elementos tinham em comum era o seu efeito de “estranhamento” ou de “desfamiliarização”. O discurso literário torna estranha, aliena a fala comum; ao fazê-lo, paradoxalmente nos leva a vivenciar a experiência de maneira mais íntima, mais intensa. Os formalistas consideravam a linguagem literária como um conjunto de desvios da norma, uma espécie de violência linguística: a literatura é uma forma “especial” de linguagem, diferente da linguagem “comum”. Mas para se identificar um desvio é necessário que se possa identificar a norma da qual ele se afasta. A “estranheza” de um texto não é garantia de que ele sempre foi, em toda parte, “estranho”: era-o apenas em contraposição a um certo pano de fundo linguístico normativo. Eles não queriam definir a “literatura”, mas a “literaturidade” – os usos especiais da linguagem. Os formalistas achavam que a essência do literário era o “tornar estranho”. O contexto pode mostrar que um determinado texto é literário, mas nem sempre a linguagem em si tem propriedade ou qualidade que a distinga de outros tipos de discurso. Poderíamos dizer que a literatura é um discurso “não pragmático”; ela não tem nenhuma prática imediata. A literatura seria, então, uma espécie de linguagem autorreferencial, uma linguagem que fala de si mesma. A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém resolve ler, e não da natureza daquilo que é lido. Alguns textos nascem literários, outros atingem a condição de literários, e a outros tal condição é imposta. O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Os julgamentos de valor parecem ter muita relação com o que se considera literatura, e o que não se considera – não necessariamente o estilo tem de ser “belo” para ser literário, mas sim de que tem de ser do tipo considerado belo. A expressão “bela escrita”, ou belles lettres, é ambígua, pois denota uma espécie de escrita em geral muito respeitada, embora não nos leve necessariamente à opinião de que um determinado exemplo dela é “belo”. Assim... Alguns tipos de ficção são literatura, outros não; parte da literatura é ficcional, e parte não é; a literatura pode se preocupar consigo mesma no que tange ao aspecto verbal, mas muita retórica elaborada não é literatura. “Valor” é um termo transitivo: significa tudo aquilo que é considerado como valioso por certas pessoas em situações específicas, de acordo com critérios específicos e à luz de determinados objetivos. A estrutura de valores, em grande parte oculta, que informa e enfatiza nossas afirmações fatuais, é parte do que entendemos por “ideologia”. Se não é possível ver a literatura com uma categoria “objetiva”, descritiva, também não é possível dizer que a literatura é apenas aquilo que, caprichosamente, queremos chamar de literatura. O que descobrimos até agora: ✓ não apenas que a literatura não existe da mesma maneira que os insetos, e que os juízos de valor que a constituem são historicamente variáveis; ✓ mas que esses juízos têm uma estreita relação com as ideologias sociais; ✓ eles se referem não apenas ao gosto particular, mas aos pressupostos pelos quais certos grupos sociais exercem e mantêm o poder sobre outros.