V. 32 N. 126 (2015) Estudos Bíblicos - Dossiê O Que É Novo e o Que Não É
V. 32 N. 126 (2015) Estudos Bíblicos - Dossiê O Que É Novo e o Que Não É
V. 32 N. 126 (2015) Estudos Bíblicos - Dossiê O Que É Novo e o Que Não É
Conselho editorial:
Luiz Alexandre Solano Rossi (PUCPR)
Valmor da Silva (PUCGO)
Tércio Machado Siqueira (UMESP)
Ludovico Garmus (Faculdade de Teologia – ITF, Petrópolis, RJ)
Júlio Paulo Zabatiero (Faculdade Unida, ES)
Maria Antônia Marques (Centro Bíblico Verbo, SP)
José Ademar Kaefer (Centro Bíblico Verbo, SP)
Shigeyuki Nakanose (Centro Bíblico Verbo, SP)
Printed in Brazil
EDITORIAL
perdão já havia sido alcançado pelo sacrifício eterno de Jesus. O novo jejum tinha
-
ca, social, ecológica, política, cultural e religiosa – da atual civilização ou para
medidas a serem assumidas pelos sujeitos sociais em alternativas comunitárias
focadas nos direitos humanos, o que parece muito difícil, senão impossível. Neste
contexto surge o retorno do apocaliptismo com marca em 2012. Em consequên-
cia, propõe-se no texto a Nova Jerusalém como horizonte alternativo a animar a
esperança dos cristãos em sua fé, em meio à crise e ao sofrimento.
Sem dúvida, vive-se uma crise sem precedentes que pode levar a humanida-
de à catástrofe ou a trilhar novos caminhos, planos, programas e projetos, o que
não parece muito fácil. Particularmente, as cidades tiveram seu nascimento, apo-
geu e declínio, mas foram sempre o centro das civilizações, impérios e Estados.
As exigências que hoje pesam sobre elas, particularmente sobre as megalópoles,
nunca foram tão imensas e amedrontadoras.
O Apocalipse nos revela que não há situação sem saída e fornece-nos esque-
mas de interpretação da história. Vive-se uma transição de época, sujeita a muitas
vítimas e enorme sofrimento. A Nova Jerusalém, em particular, traz esperança na
real novidade. A história deverá consumar-se numa ruptura que não permite fuga.
A Nova Jerusalém, símbolo do povo cristão, é dom de Deus, aponta à esperança,
porém, pede compromisso humano. Mas, como foi levantado, deve-se reconhe-
cer que sempre permanece algo de mistério indevassável, a absoluta incognos-
cibilidade do plano divino no Apocalipse. Não obstante isso, a Nova Jerusalém
suscita e alimenta uma fé esclarecida, na esperança inabalável e na solidariedade
inarredável. Por isso, ela é nova, ao contrário de todas as propostas que hoje se
veem disseminadas e multiplicadas.
Os próximos textos referem-se ao Antigo Testamento.
-
cia da economia de mercado e a sua condição de transitoriedade. Busca-se a todo
instante um produto novo, visto que o que se tem já não desperta mais interesse
e vínculos.
O texto de Qohélet chama a atenção do leitor pela constante repetição de
ideias. A mais famosa, sem dúvida, é aquela contida na fórmula que abre e en-
cerra o livro: “Vaidade das vaidades, diz Qohélet, vaidade das vaidades, tudo é
vaidade” (1,2; 12,8).
Diferente de hébel, porém, só há duas ocorrências do adjetivo
(novo) no livro de Qohélet, ambas no capítulo 1 (versículos 9 e 10). Todavia,
a expressão we –
sol – é o martelo batido única vez, cuja sentença correspondente, porém, vigora
em toda a obra. Por isso, é mais do que razoável considerá-la uma chave de lei-
tura. Nada de novo?
Ao longo do livro, essa impressão vai se tornando cada vez mais sólida.
Desde o século VI aC, os judeus eram trocados de mãos entre grandes impérios
que se sucediam: babilônico, persa e, agora, grego. Qohélet é um sábio, mas não
conformista.
Tudo parece uma mesmice, porém, lê-se “Eis o que vejo ( ) ser bom
( ): convém comer e beber, experimentar a felicidade (we – e ver feli-
) em todo o trabalho com que o homem se afadiga sob o sol, durante o nú-
mero dos dias de vida que Deus lhe concede; esta é a parte que lhe cabe” (5,17).
O que o Qohélet descobre? Em primeiro lugar, que o trabalho deve propor-
cionar tanto sustento como alegria. Em segundo lugar, que o sustento e a alegria
pelo trabalho são dádivas de Deus (9,7-9). Isso é o bom, é a felicidade para o ser
humano. Acrescenta-lhes, todavia, com o emprego do verbo , a experiência
da paixão e do amor. Qohélet estaria recomendando a homens e mulheres que
descobrissem juntos, através de uma relação de amor, aquilo que há de melhor na
vida. Com isso se pode começar a viver uma vida nova. Digamos que ele redes-
cobre novidade em coisas que não eram exatamente novas, mas cujo valor trans-
cende uma percepção árida da vida como mera repetição de processos naturais ou
sucessão de eventos indiscriminados, fadada a desaguar no vazio da morte.
Pedro Kramer propõe-se a abordar “O novo na liturgia do Deuteronômio”
e pergunta se uma liturgia centralizada pode ser libertadora. As causas da cen-
tralização remontam a Ezequias (725-667 aC). Todas as coisas foram centrali-
zadas em Jerusalém: economia, política e cultura, além do culto. Outra causa
que legitimou a centralização, especialmente, da liturgia no templo de Jerusalém,
aconteceu durante o governo do rei de Judá, Josias (640-609 aC). É o retorno à
política nacional israelita e, principalmente, a volta ao Deus Iavé. Ela iniciou com
131
divino na história.
Dentro dos “hinos”, o sintagma aparece também no Sl 144: “eu canto a ti um
cântico novo” (Sl 144,9). São as esperanças espelhadas na revolução macabaica.
O salmo que, por último, contém o sintagma “cântico novo” é o Sl 149.
Como o Sl 144, apesar de que o salmo possa ter seu pano de fundo na época de
Neemias onde se diz: “com uma das mãos cada qual fazia o seu trabalho, e com
a outra segurava uma arma” (Ne 4,11), pensa-se que a época mais certa para am-
O “cântico novo” sugere uma nova era. De fato o Sl 137 deixara transpa-
recer o quanto era odioso recitá-los fora de Jerusalém. A volta à pátria, após o
exílio, permitira novamente cantá-los agora como um “cântico novo”. A catás-
trofe do ano 586 aC comporta a cessação de cânticos (antigos) e que novamente
são cantados após o período de silêncio do exílio. Isso faz jus ao fato de que seja
um “cântico novo” e que ele celebre de modo especial a antecipação da vitoriosa
intervenção de Deus prevista para o futuro, não somente para Israel, mas para
todos os seres do universo.
Este número termina com o texto de Cássio Murilo Dias da Silva que se
Resumo
Palavras-chave:
Abstract
* Flávio Schmitt é doutor em Ciências da Religião pela UMESP, professor nas Faculdades EST em São Leo-
poldo, RS. E-mail: [email protected].
ISSN 1676-4951 Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 135-147, abr/jun 2015
136 Flavio Schmitt
-
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Keywords:
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A sociedade global necessita da novidade. No mundo das mercadorias e do
1. DEFININDO CONCEITOS
O com cinco
seu impacto. No que diz respeito ao objeto focal, ocorre quando há mudanças no
modelo de negócio, na forma como determinado produto ou serviço é oferecido
ao mercado. “Não implica necessariamente em mudanças no produto ou mesmo
no processo de produção, mas na forma como ele é levado ao mercado”7.
O grande segredo da inovação está relacionado com a vantagem que o
protagonista da inovação passa a desfrutar em relação aos concorrentes. As
“inovações são capazes de gerar vantagens competitivas a médio e longo prazo,
inovar torna-se essencial para a sustentabilidade das empresas e dos países no
futuro”8. Inovar é a palavra de ordem para enfrentar o cenário competitivo.
novo contem-
pla as seguintes possibilidades: “Que existe há pouco tempo; acabado de fazer.
Moço, de pouca idade. Que é dito, tratado, visto pela primeira vez”. Para o subs-
tantivo masculino
velho e o novo se confrontam”9.
Novo diz respeito a algo que não era conhecido até então. Algo é novo por
existir há pouco, por começar a ser. Novo também está relacionado com algo que
se vê ou ouve pela primeira vez.
2. O NOVO EM PAULO
10. O ser romano não era exclusivamente título de que nasceu na cidade de Roma, mas uma condição daqueles
que viviam sob o domínio, normas e cultura do império. Cf. DIAS, Agemir de Carvalho. :
Introdução às teorias Sociológicas sobre o Fenômeno Religioso. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 96.
(1Cor 11,25).
11. Champlin chama atenção para a passagem de Lucas 22,20. Na compreensão do autor, “No trecho de Lc
22,20 essa palavra aparece na maioria dos manuscritos e traduções; mas isso pode ter sido feito para obtenção
de harmonia com a presente passagem, podendo não ter feito parte original do evangelho de Lucas. (Ver as notas
textuais ali). É provável que a palavra ‘nova’ seja uma adição feita pelas igrejas, embora se trate de uma verdade
bíblica. E também é possível que tenha sido uma adição lucana à tradição sinóptica, e não uma adição escribal”
(CHAMPLIM, 1998a, p.182).
-
damente chamados de seus herdeiros (CHAMPLIM, 1998a, p. 182).
Quando fala de aliança, é provável que Paulo tenha em mente a nova alian-
ça a ser estabelecida em Israel pelo messias e anunciada pelos profetas, espe-
cialmente por Jeremias (31,31-34). Esta nova aliança deveria suplantar a antiga.
inteira. Ela será nova para Israel, mas também será nova para toda humanidade,
uma vez que nela está presente uma nova forma de salvação, mediante participa-
ção na natureza divina por meio de Jesus Cristo.
a. 2 Coríntios 5,17
-
(2Cor 5,17)
b. Gálatas 6,15
(Gl 6,15)
a. Efésios 2,15
A unidade de dois povos feita por Cristo cria uma nova humanidade. A nova
criação acontece com a obra regeneradora do Espírito Santo (Tt 3,5). Esta nova
criação, “novo homem”, é o povo de Deus reunido na Igreja. O “novo homem”
está amarrado com Cristo e com a comunidade. Existe numa “comunhão mística
com Cristo, possibilitando a unidade e conferindo vida a essa unidade, a saber, a
própria vida de Cristo” (CHAMPLIM, 1998a, p. 567).
O novo não é nem judeu nem grego, mas vale tanto para o indivíduo quanto
para a comunidade. Nas palavras de Efésios, aqui na terra é apenas um peregrino,
pois é cidadão dos céus (Fl 3,20). “O novo homem traz a imagem do ‘homem
celestial’, Cristo Jesus, e não mais a imagem do homem terreno, ‘Adão’. O novo
homem foi elevado acima de Adão, em cuja natureza impera a contenda e a divi-
são”. O novo homem é a comunidade dos crentes, a igreja, considerada como o
corpo de Cristo (CHAMPLIM, 1998a, p. 568).
(Ef 4,24).
novo, da nova conduta, do novo ser criado à imagem de Deus. Para que o novo
homem tenha lugar é preciso abandonar o velho homem (v. 22). Aqui o novo
“se aplica ao crente individual, referindo-se à ‘natureza regenerada’, ao ‘homem
remido’, ao ‘homem convertido’, ao ‘homem regenerado’, ‘à nova natureza’”
(CHAMPLIM, 1998a, p. 610).
Aqui há uma semelhança com 2Cor 5,17, pois aqueles que estão em Cristo
são nova criação. O novo é o ser humano regenerado, liberto da corrupção. É
novo por ter se tornado partícipe da vida e da natureza divina (2Pd 1,4; Cl 3,3).
Não se trata do velho renovado ou do velho reformado, mas do ser humano re-
generado. O novo homem é Cristo ‘formado’ no crente (Gl 2,20; 4,19; Cl 1,27).
O novo homem é imagem do Criador. “... Portanto, o ‘novo homem’ é ‘vestido’,
mas não por sobre o ‘velho homem’, pois este é ‘despido’”. Por compartilhar a
imagem e natureza de Cristo, é nova criação. O novo está revestido da justiça e
santidade (CHAMPLIM, 1998a, p. 610).
b. Colossenses 3,10
por meio da qual a Imagem de Cristo é implantada no ser humano. O ‘novo ho-
mem’ é Cristo que se vai formando no crente, a ‘nova criação’” (CHAMPLIM,
1998b, p. 140).
c. Hebreus 9,15
-
(Hb 9,15).
d. Hebreus 10,20
(Hb 10,20).
nos para achegar-se a Deus; e assim aprendeu muitas lições acerca da natureza do
andar santo, da transformação espiritual.
O caminho é novo por ter sido recentemente aberto, do ponto de vista dos
leitores originais. Também é ‘novo’ em contraste com o ‘antigo’ caminho
do sacerdócio levítico; e é igualmente ‘novo’ em contraste com a ideia de
‘nenhum caminho’, pois somente o caminho neotestamentário realmente é
caminho para Deus (CHAMPLIM, 1998b, p. 603).
Hebreus deixa claro que não há escolha entre o caminho antigo e o novo
caminho. Não é assim que ambos conduzam para o mesmo lugar. Pelo contrário,
o caminho antigo conduz numa direção, o caminho novo conduz a Cristo. Não
se trata de uma questão de método, mas de opção. O novo eliminou o antigo. O
verdadeiro caminho é novo e nunca perderá seu prazo de validade. Será eterna-
mente novo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ares. Nele tudo se renova. Agora não é mais possível ver as coisas como sempre
foram vistas e percebidas. Jesus inaugura um novo tempo, uma nova maneira de
ver a vida e as coisas. O novo impõe uma releitura de tudo que até então havia
sido anunciado em termos de relação de Deus com seu povo.
Em segundo lugar, o novo exige renovação. A lei, a aliança, o mandamento
e o ser humano não podem continuar desempenhando o papel que desempenha-
ram antes de Cristo. Cristo é o divisor de águas entre o novo e o antigo. Agora é
o novo quem dita as regras do jogo da vida.
Da análise das passagens das cartas autênticas onde Paulo emprega o termo
novo pode-se concluir que Paulo confere grande destaque ao ser nova cria-
tura, nova criação. Nisso reside a essência do novo: na capacidade de renovar,
regenerar o ser humano.
determinar as relações.
na medida em que desempenha a função de ser sempre de novo o novo que brota
do Cristo.
GIAVINI, Giovanni. : liberdade e lei na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1987 (Peque-
no comentário bíblico).
MESTERS, Carlos. Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o Evangelho. São Paulo:
Paulinas, 1991, 143 p. (Por trás das palavras).
Novidade. Aurélio, dicionário online de Português. Disponível em:
<http://www.dicionariodoaurelio.com/novidade>. Acesso em: 10.10.2014.
Novo. Dicionário online de Português. Disponível em:
<http://www.dicio.com.br/novo/>. Acesso em: 10.10.2014.
POHL, Adolf. . Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999 (Co-
mentário esperança).
PRIETO, Christine. : a pregação do Evangelho no mundo gre-
co-romano. São Paulo: Paulus, 2007 (Bíblia e sociologia (Paulus).
Resumo
.
Palavras-chave:
Abstract
Keywords:
Introdução
Em geral, os autores quando comentam sobre esse texto bíblico, dão ên-
-
zer que Jesus é Cristo? Qual é a impressão que fazemos dos outros? Em muitas
ocasiões descrevemos quem são os outros, mas na maioria das vezes essas im-
pressões não correspondem à realidade. Por esse motivo, criamos preconceitos,
Grupo de Pesquisa sobre Intolerância Religiosa, Educação e Direitos Humanos. Professor do Programa de
Pós-graduação do Centro Universitário Metodista – IPA de Porto Alegre.
** Mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia em São Leopoldo, RS.
Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
E vós, quem dizeis que eu sou? 149
Crítica Literária
Marcos 8,27-302 Mateus 16,13-20 Lucas 9,18-21
27. Jesus saiu com seus dis- 13. Chegando, então, às re- 18. E aconteceu que, enquan-
cípulos para as aldeias de giões de Cesareia de Filipe, to Jesus estava rezando sozi-
Cesareia de Filipe. No ca- Jesus perguntou ao seus nho, seus discípulos estavam
minho, perguntou aos seus discípulos, dizendo: Quem com ele, e ele lhes perguntou,
discípulos, dizendo-lhes: os homens dizem que o Fi- dizendo: Quem as multidões
“Quem os homens dizem lho do Homem é? dizem que eu sou?
que eu sou?”
1. Estamos utilizando a tradução realizada por: SILVA, Cássio Murilo Dias; RABUSKE, Irineu J.
. Novíssima tradução dos originais. São Paulo: Loyola, 2011.
2. Tradução realizada por: SILVA, Cássio Murilo Dias; RABUSKE, Irineu J. ,
2011.
O núcleo comum da história mostra que Jesus faz uma pergunta para os seus
discípulos procurando descobrir o que as pessoas dizem acerca dele (Quem dizem
que eu sou?). A resposta a esta pergunta se apresenta de forma semelhante nos três
evangelhos: “João Batista, Elias ou um dos profetas”. Em seguida Jesus faz outra
pergunta querendo saber o que os discípulos pensam a respeito dele. A pergunta
aparece de forma igual nos três evangelhos: “E vós, quem dizeis que eu sou? O
-
cionado, esse é o núcleo comum nos três evangelhos. A partir daí temos também as
variações ou informações comuns a dois evangelhos ou a apenas um deles.
Vejamos então quais são essas variações e diferenças. Somente Mateus traz
a resposta de Jesus a Pedro, fazendo uma longa consideração sobre ele. Diz que a
chaves do Reino e poder para ligar e desligar o que quiser aqui na terra, uma vez
que teria a aprovação dos poderes celestiais.
que estavam chegando em Cesareia de Filipe e Lucas apenas diz que Jesus estava
rezando ou orando com seus discípulos. Em relação à primeira pergunta também
existem algumas divergências. Mateus e Marcos querem saber o que “os ho-
mens” dizem, enquanto Lucas quer saber a resposta da “multidão”. Mas há ainda
uma outra questão. Enquanto Marcos e Lucas querem saber o que os homens ou
a multidão pensam acerca de Jesus, Mateus introduz em sua pergunta um título,
ou seja, o que os homens dizem acerca do “Filho do Homem”. A resposta a esta
pergunta tem um núcleo comum, porém Mateus acrescenta o profeta Jeremias.
É provável que a expressão “o que os homens dizem que eu sou” esteja se
referindo às autoridades políticas e religiosas de Jerusalém. Os escribas e fariseus
haviam descido de Jerusalém (Mc 7,1) para ver de perto quem era Jesus e o que
também aos ouvidos de Herodes as histórias a respeito de Jesus (Mc 6,14), uma
vez que seu nome se tornava notório e alguns já diziam que ele era João Batista,
Elias ou um dos profetas. Parece-nos que Marcos está mais preocupado com a
opinião das autoridades. Ele deixa muito claro qual era a intenção dos fariseus e
herodianos. Após Jesus ter curado um em uma sinagoga, o evangelista informa
Jesus repreendeu, recomendou e ordenou que não dissessem nada a seu respeito,
ou, como diz o evangelista Mateus, que ele não era o Cristo.
É estranha essa ênfase para que não se contasse nada a respeito de Jesus.
Desde o primeiro capítulo, Marcos mostra que a atividade de Jesus na Galileia
envolvia multidões, inclusive sua fama já havia se espalhado por toda a vizi-
nhança (Mc 1,28). Mas é verdade também que ainda no primeiro capítulo, após
curar um leproso, Jesus o adverte com severidade: “Não digas nada a ninguém”
(Mc 1,44). No capítulo cinco acontece o contrário. Após livrar um homem de um
espírito impuro, Jesus recomenda: “vai para tua casa, para junto dos teus, e conta
a eles o que o Senhor te fez e como teve misericórdia de ti” (Mc 5,19). Nesse
Cremos que o Evangelho de João, embora não fazendo parte dos sinóticos,
poderá nos ajudar nesta questão. Se levarmos em consideração a localização geo-
-
Deus” (Jo 6,69). Porém, o evangelista informa que havia uma divisão entre o
povo, os discípulos e as autoridades acerca do verdadeiro objetivo do movi-
mento de Jesus. “Uns diziam: ele é bom! Mas outros diziam: Não! Ao contrário,
ele engana a multidão” (Jo 7,12). Diante disso, e da provável perseguição que
já estava acontecendo, ninguém queria mais falar em público a seu respeito, por
medo dos judeus (Jo 7,13). Cremos, portanto, que isso explica o pedido para se
manter em silêncio.
Contexto Maior
O Evangelho de Marcos deve ter sido escrito, segundo Myers2, antes do ano
70 na Galileia. Ainda segundo este autor, há dois indícios que nos levam a pen-
sar nesta direção: Primeiro a forte crítica que Marcos faz ao templo indica que o
templo ainda estava de pé. Segundo que os escritos de Marcos demonstram que
os grupos revolucionários populares ainda estavam atuando. Kümmel sustenta
No entanto, sabemos que era uma região conhecida e até mesmo denomi-
nada de Galileia dos gentios (Is 9,1). Ao que nos parece esse nome revela a com-
posição do povo que habitava essa região. Eram pessoas de diferentes etnias,
viviam nas montanhas e estavam fora da estrutura das cidades que dominavam
a área. A Galileia era uma terra de povos miscigenados, com culturas diferentes.
Os Judeus denominavam a Galileia de “terra dos gentios”. Assim sendo, não po-
demos dizer que Jerusalém, Samaria e Galileia compartilhassem de uma cultura
judaica comum5.
-
xa Galileia. Sua economia estava baseada na agricultura. Os camponeses não
tinham grandes propriedades e, além do mais, suas terras muito mal davam para
a subsistência, devido às taxas. Portanto, a comunidade de Marcos habita esse
contexto. Provavelmente era composta de trabalhadores do campo, pescadores
e artesãos. Pessoas simples. Marginalizadas devido a sua origem, sotaque e
prática religiosa6.
Contexto Menor
De acordo com Myers7, a segunda parte do Evangelho de Marcos vai de
8,22 a 16,8. Nesse bloco Jesus ainda se encontra na Galileia, mas a partir do ca-
pítulo 10 se desloca para Jerusalém. Muitos autores sugerem que nesse bloco a
Deus. Ao delimitar ainda mais esse bloco Myers situa o texto de Marcos 8,27-30
no conjunto que compreende um grupo de textos que vai de 8,22–9,308.
Ainda de acordo com Myers a primeira parte do evangelho corresponde a
6,1–8,21. Nesse bloco Myers constata que a pregação de Jesus já havia criado
chama atenção da comunidade para ter cuidado com o fermento dos fariseus e o
fermento dos Herodes (8,15)9. Suas pregações acerca do Reino de Deus e do ar-
rependimento já haviam gerado três ações de rejeição: “Pela sua cidade natal, os
apóstolos missionários pelas famílias que não quiseram hospedá-los e, sobretudo,
o “fermento de Herodes”, cujo desfecho é o assassínio de João Batista10.
Segundo Balancin11,“o Evangelho de Marcos foi escrito para responder a
seguinte pergunta: Quem é Jesus? Nesse sentido, esse Evangelho teria uma fun-
ção instrutiva e formativa”. Não é por acaso que este autor coloca o texto 8,27-30
dentro de um contexto que ele denominou de “formação dos discípulos”, que
segundo ele vai de 8,22 até o versículo 38.
Assim sendo, de acordo com esta visão, a intenção do evangelho era mani-
festar a mensagem de Jesus e sua verdadeira identidade a uma comunidade bas-
tante perturbada. “Ninguém tinha uma ideia clara quanto ao mistério da identidade
de Jesus, exceto os leitores a quem foi dito no prólogo que Jesus é o Messias”12.
Malloney divide a segunda parte do evangelho a partir de 8,27 a 10,52. Nes-
-
pulos e profere quatro discursos sobre o Reino de Deus. Parece que o evangelista
quer deixar claro o que é ser discípulo de Jesus”13. Collins e Tolbert14
esse bloco apresenta o tema da morte e sofrimento, enquanto 8,27 a 9,1 anuncia
que Jesus é o Messias15.
com que o seu pensamento possa se espalhar de forma muito rápida. A ideologia
do poder faz com que a realidade apareça bela e atrativa. Mas também tem o po-
a cura de um cego e a ordem para que não entrasse no povoado. Essa ordem pode
em que Jesus é apresentado como um dos profetas (Elias, João Batista). No texto
posterior (8,31–9,1) predomina o tema da perseguição, sofrimento e da decisão
fazia. Não é sem razão que Jesus usa um cognome para falar de si mesmo: Filho
do Homem.
As lideranças que representam o poder e a hegemonia sempre estão interes-
sadas pela legalidade da ação ou do grupo. Para estes não basta ter reconhecimen-
to popular, é necessário ter a autorização da lei ou do Estado. Sumo sacerdote,
escribas e anciãos perguntam para Jesus: “Com que autoridade fazes isso, ou
quem te deu tal autoridade para fazeres isso?” (Mc 11,28). Nesse caso, o outro
hegemônico ou pelo poder político. Acontece que muitas vezes a descrição que se
faz do outro nem sempre corresponde ao que de fato ele é. Principalmente quando
se tem a intenção de demonizá-lo.
Por muito tempo, estivemos preocupados em descrever o outro. No entanto,
nossa descrição nem sempre resulta numa descrição real. Muitas vezes a preocu-
assim tenta a construção do projeto do reino de Deus, que a seu modo permite a
aproximação e a comunhão. Ele faz declarações sobre pessoas, sobre que opinião
tem delas, mas procura as inserir na realidade que anuncia e oferece a todos.
Para conhecer é necessário ouvir o que o outro diz sobre si mesmo. Conhe-
cer algo mediado pela descrição dos outros em geral não leva ao conhecimento.
Às vezes criam-se visões distorcidas da realidade. Na história da América Latina
os povos ameríndios, os negros, as mulheres, os ateus, os pobres e outros grupos
tiveram sua imagem descrita por outros. Na maioria das vezes a imagem retratada
preocupação de Herodes não era que Jesus se assemelhasse aos profetas do Anti-
go Testamento. Provavelmente Herodes estava preocupado com os movimentos
proféticos que surgiram nesse período, descritos pelo historiador Flávio Josefo
de maneira muito pejorativa. Segundo Josefo, esses movimentos “trabalhavam
no sentido de provocar destruição e levante, procurando arrastar o povo ao fana-
tismo religioso [...] através de sinais milagrosos”16. Além do mais, as autoridades
judaicas não acreditavam que da Galileia pudesse sair algum profeta (Jo 7,41-42;
1,46). Ao mesmo tempo, havia a crença de que “o profeta Elias, que exerceu suas
atividades no Reino do Norte de Israel, seria o precursor do messias [...]. Acre-
ditava-se que havia dois libertadores: Elias da Tribo de Levi e o messias da Casa
de Davi”17.
Como já foi mencionado, Marcos está constantemente querendo responder
à pergunta: Quem é Jesus? Ou Quem é este? De acordo com Myers “é uma per-
gunta que é feita constantemente pelo evangelista Marcos. Essa posição do texto
pode querer indicar a relação com Moisés, o libertador do povo Hebreu e que fez
a pergunta semelhante sobre Javé”18.
Vale salientar que a pergunta é: Quem eu sou e não o que eu sou? A inda-
função. Ou será que Cristo é algo que faz parte da essência dele? Parece-nos que
nesse caso Cristo é uma função. Da mesma forma que profeta, sacerdote e outros.
sentido se existir um futuro pelo qual vale a pena lutar. É necessário haver uma
que Jesus transcende o próprio eu em direção a outras coisas diversas dele próprio.
Na atualidade, muitos grupos religiosos constroem suas imagens sobre a
exaltação do eu e do(a) líder carismático(a), no qual concentra todo o poder. Je-
sus, ao contrário, “A ele não interessa dizer coisas esotéricas e incompreensíveis,
nem a todo custo novas. [...] Ele traz à luz aquilo que os homens sempre sabiam
ou deveriam saber e que, por causa de sua alienação, não chegaram a ver, com-
preender e formular”19.
imagem deturpada.
Resumo
Palavras-chave:
Abstract
Keywords:
Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 162-171, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
O impacto do novo sobre a ordem arcaica... 163
Introdução
O cumprimento da lei
O contexto de Mc 2,18-22 envolve diversas interlocuções provocativas
tentando colocar Jesus diante da lei e dos costumes do seu tempo. A tendência
conservadora dos segmentos políticos e sociais, liderada por escribas e fariseus,
empurrava as novidades na direção de suas próprias contradições. A altercação
se referia à prática do jejum, que os opositores reparavam não ser observado pelo
grupo de Jesus. O jejum era, juntamente com a oração e a esmola, uma das obri-
gações de todo o judeu na época. Tratava-se do jejum de supererrogação semanal
praticado pelos fariseus (Lc 18,12) como forma geral de piedade.
Com uma liderança como a de Jesus não seria diferente, visto que ele des-
siões que apareciam para reforçar sua disposição de cumprir a Lei (Mt 5,17), po-
rém não na forma como os escribas e fariseus a interpretavam. Livre de sua letra
plena do amor que constrói o humano do ser humano, numa sociedade rastreada
parentes e amigos que celebravam, com eles, por uma semana inteira de festas e
pois eram celebrados como se fossem reis e rainhas. Não era admissível, durante
uma festa tão efusiva, alguém jejuar. Era a essas bodas que Jesus se referia, a um
enlace íntimo entre Deus e o ser humano celebrado na pessoa dele. Essa proxi-
midade radical, íntima, se aplicava à presença dele no meio o povo, visto que,
assim como no casamento, não havia distância entre ele e as pessoas. Tratava-se
de uma aproximação da mais profunda intimidade e do maior comprometimento
-
vadores, visto que aparecia no Antigo Testamento (Am 3,2; Is 49,18-21; Jr 2,2;
Ez 16,1-14; Os 1,2). Mas irritava os judeus enquanto referida à presença de Jesus
como possibilidade de uma relação direta com a transcendência.
Assim, Jesus provocava sacerdotes, escribas e fariseus com bastante inten-
sidade ao falar-lhes através de parábolas como a do banquete nupcial, na qual se
O novo no velho
fez uma ligação com a alegoria anterior, a do noivo, que põe vestes novas ao
se preparar para as bodas. O cenário é o de uma casa nova, onde as vestes são
novas e o vinho novo marca a celebração do novo que está chegando. Apontava,
também, para a intimidade da casa onde estão o tecelão e o vinhateiro, símbolos
da produção artesanal de Israel à época (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).
O contexto dessa altercação remete à vida da comunidade nascente, con-
frontada com as antigas práticas rituais. Ainda que não se adequassem ao contexto
do jejum, as oposições pano velho(palaión)-pano novo (kainón), odres ve-
lhos-odres novos parecem ter sido alocadas aqui propositalmente. A alterca-
ção entre jejum e festa apontava para a presença dos pecadores, aqueles a quem
Jesus se dirigia e que ocupavam os lugares da mesa do novo banquete. É a co-
munhão dos pecadores, que não encontraram mais possibilidades de reintegração
na comunidade religiosa judaica, percebiam, na comunidade cristã nascente, o
caminho do perdão e da paz (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).
A comunidade que se seguiu à ressurreição de Jesus adotou a prática do
um ato de penitência, porque agora o perdão já havia sido alcançado pelo sa-
vavam pela simples repetição das antigas fórmulas litúrgicas, até mesmo porque
o seu cumprimento visava à aparência de tristeza, muito distante da sinceridade
de coração.
-
mento da letra fria da Lei mosaica; tratava-se de um novo paradigma de relações
que não se enquadravam mais às antigas estruturas legalistas (Hb 8,13). Está
clara a ameaça que a nova ordem representava para o velho sistema judaico. É
como se fossem remendos novos em tecidos desgastados, ou como vinho em fer-
mentação em vasilhas rotas. Não cabem mais, não se amoldam nem se coadunam
mais e se rompem (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).
se lançava contra o novo e o tentava destruir, levando Jesus à morte pela cruci-
uma mudança individual, mas do Novo1 que mudaria a terra e os céus, visto
que nesse Novo a reconciliação se efetivaria em sua plenitude com Deus, unin-
do todos os seres.
A prática do jejum se destinava ao luto e à tristeza, provocadas pelo pecado.
à graça nele contida. Acabou o caminho da busca do perdão pelos rituais e sacri-
terceiro Isaías quando falava da noiva que se aprontava para as bodas e do noivo
que se preparava para a festa (vinho). A terra, a vegetação, o jardim, tudo brotava
com a chegada do tempo messiânico, pois com a emergência do Novo uma nova
criação iria se instalar (Is 61,10-11). Um novo paradigma havia se instalado na
humanidade e colocado por terra todos os paradigmas anteriores.
Essa nova criação se estabeleceria pela restauração da paz vinculada ao
sangue vertido na cruz. Agora já se aproximava a hora de beber do cálice para
ter uma experiência de alegria, já que o novo tempo havia sido inaugurado. Era
como viver os dias das novas bodas.
O Novo não vinha como uma proposta de salvação individual para judeus
e gentios, mas como a libertação que se efetivaria, sobretudo, pela submissão
perfeita diante de Deus. O velho era representado pelo sistema judaico, cuja lei e
costumes impunham restrições ritualísticas à vida, como a observância do jejum
e a prática da festa de núpcias que se estendia por uma semana.
Também aparece o antigo sistema romano simbolizado nos odres velhos
que guardavam os melhores vinhos para os seus bacanais pós-conquistas milita-
res, práticas arcaicas de antivida. Os discípulos de João e os fariseus não conse-
guiam discernir o tempo no qual estavam inseridos: tratava-se do tempo do Novo.
O tempo da lei já havia acabado. Os sinais já estavam aparentes, mas eles não
conseguiam fazer a leitura desses novos sinais.
Apesar da distância cronológica do evento fundante, o Novo continua a ser
novo porque representa o espaço atemporal, o espaço do kairós. Ele é o Novo
diante da contemporaneidade consumista, de novidades ultrapassadas.
1. Quando aparece o termo Novo grafado com inicial maiúscula, refere-se a Cristo.
Resumo
Palavras-chave: -
Abstract
-
* Doutor em Teologia Bíblica na Pontifícia Università Gregoriana, Roma. Mestre em Saúde e Comportamento
na Universidade Católica de Pelotas. Professor no Instituto de Teologia Paulo VI, Arquidiocese de Pelotas, e no
Curso de Medicina da UCPel. Diretor do Instituto Superior de Cultura Religiosa da UCPel.
** Mestrando em Teologia em Faculdades EST (São Leopoldo), bolsista da CAPES – entidade governamental
Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 173
Keywords:
INTRODUÇÃO
Considerando as manifestações de massa e inúmeros planos e programas
recentes, pode-se esperar algo de novo na cidade? Os movimentos convulsivos
que ganharam as ruas no mundo e no Brasil em 2013 mostraram o esgotamento
tanto das políticas urbanas quanto da democracia representativa. Desenha-se algo
de novo na cidade considerando a atual conjuntura econômica, política, social e
cultural? O que se pode esperar olhando mais longe na história da cidade e a crise
Nova Jerusalém? Estas são as questões às quais este texto procura responder.
mudanças que tomaram as ruas do Brasil. Como na Turquia, foram às ruas mais
de um milhão de pessoas, após uma década de crescimento excepcional do país.
No epicentro do terremoto foram apontadas várias razões, tais como a questão da
efetivação e ampliação dos direitos sociais, o direito à cidadania. Entrava em jogo
a questão urbana, particularmente a reforma urbana2. Há uma lógica entre legis-
1. ROLNIK, Raquel et al. : passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São
Paulo: Boitempo, 2013.
2. MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido! In ROLNIK, 2013, p. 19-26.
3. Cf. WAISELFISZ, Júlio Jacobo. “A cor dos homicídios no Brasil”. . Disponível em <http://
maparadaviolencia.org.br”>. Acessado em 27 dez. 2014. Os dados foram atualizados em 4 nov. 2014.
-
forto e descontentamento; sem dúvida um processo complexo que afeta diversos
países de maneiras variadas. No Brasil, além do mais, a reforma urbana liga-se
2. A CIDADE NA HISTÓRIA
A questão da cidade não é de hoje nem vem restrita a uma região. A história
o demonstra5. A experiência urbana é universal e milenar. Jericó data de 7500-
6800 aC. A maior criação da humanidade foi a cidade. Sua história é apaixonante,
deslumbrante e cruel. A cidade hoje representa o mundo.
Cidades foram criadas e grandes cidades caíram – como Ur, Nínive, Babilô-
nia, Atenas, Siracusa e Roma, a primeira e arquetípica megalópole – em estreita
relação com o aspecto sagrado do lugar, a capacidade de proporcionar segurança
6
. O rápido crescimento
do cristianismo não poderia ter acontecido sem a vasta infraestrutura urbana do
Império Romano. O Apocalipse de João, porém, traz o contexto e as marcas da
4. ELY, Lara. A fórmula das cidades. Entrevista: Geoffrey West. Zero Hora, Porto Alegre. 27. jun 2014, p. 6-7.
5. KOTKIN, Joel. : uma história global. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
6. Ibidem, p. 19-20.68.
vez maiores em meio a uma persistente estagnação econômica bem como uma
disfunção social e política. É o caso do México e de São Paulo, cidades de
muros entre as classes. Em 2015 haverá 23 colossos com mais de 10 milhões
de habitantes7.
As análises revelam uma crise das megalópoles. O tamanho é mais fardo
que vantagem. A vantagem do tamanho vem superada pelo crescimento das no-
vas tecnologias. As tendências descentralizadoras observam-se em Nova York,
ainda a mais importante das megalópoles do mundo. Além disso, as grandes ci-
dades estão cada vez mais propensas a tornarem-se cidades duplas: uma elite
cosmopolita e uma grande classe de pessoas que, por baixos salários, basica-
mente, atende suas necessidades8. Fato é que hoje se enfrenta o capitalismo de
mercado irrestrito ao lado da corrupção. De outro lado, ninguém está seguro na
cidade, seja pela violência cotidiana seja pelo terrorismo. A cidade moderna vive
do medo, na sensação de fragilidade e vulnerabilidade, com a desregulamentação
e suas consequências individualistas9. As novas classes, constituídas de gente em
. 10
renda: seja nos bairros pobres, com a formação de uma elite global móvel e
-
7. Ibidem, p. 176-181.
8. BAUMAN, Zygmunt. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 187-202.
9. Ibidem, p. 18-19.
10. BAUMAN, 2009, p. 23-25.
11. Ibidem, p. 62-63.
12. KOTKIN, 2012, p. 210-211.
turões periféricos. A questão é: Será possível fugir desse destino? Será possível,
na situação atual, percorrer outro caminho13?
4. QUESTÕES APOCALÍPTICAS
O retorno da consciência apocalíptica no início do século XXI revela uma
desorientação, tematizada, sobretudo, como medo e angústia na atualidade ou
civis, da pobreza extrema, das catástrofes climáticas? Ou será que representa uma
fuga da atualidade, que do contrário poderia parecer insuportável26? São questões
apocalípticas.
O alerta vem de Ernst Conradie27. Para que seja um discurso apocalíptico
responsável,
Em primeiro lugar, essa apocalíptica deve partir daqueles que são vítimas da
atual constelação de poder. Em segundo lugar, deve tomar conhecimento de
que exortações de instituições estatais muitas vezes são ignoradas conscien-
crise. João vai além da teologia profética do telos, pois ilumina a história a partir
10). Este novo vem apresentado numa cidade; a Nova Jerusalém, histórica, mas
-
calipse se pode tirar luz para enfrentar a crise atual e, ao mesmo tempo, manter
viva a esperança de que outro mundo é possível30. A adoção de uma postura pro-
priamente apocalíptica é – hoje mais do que nunca – a única maneira de manter
a cabeça fria e resistir31.
28. EBACH, Jürgen. As coisas não permanecerão sempre como estão. Observações e intuições sobre a apoca-
líptica bíblica. v. 356, n. 3, p. 24n, 2014.
29. BACHMANN, Verônica. Seguindo os rastros de uma ordem sustentável rumo aos inícios dos escritos apo-
calípticos do judaísmo antigo. v. 356, n. 3, p. 24, 2014.
30. SANTAMARIA, Xavier Alegre. O Apocalipse de João, modelo de releitura crente da vida em tempos de
crise. v. 356, n. 3, p. 45, 2014.
31. ZIZEK, Slavoj. : Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism. Londres: Verso,
2012, p. 983. DICKINSON, Colby. Só os verdadeiros ateus são teólogos? Sobre o pensamento continental
contemporâneo e o seu tom eternamente apocalíptico. v. 356, n. 3, p. 50, 2014.
com seus tsunamis, furacões e estiagens. A crise atual desacreditou o código te-
telos) mediante um progresso linear, ininterrupto,
ascendente e irreversível (logos) que leva a uma etapa superior da consciência, da
vida e da sociedade. O futuro é representado por uma ameaça, não uma promessa
(profética). Sintomaticamente,
32. ROCA, Joaquim García. Apocalíptica e crise global. v. 356, n. 3, p. 80, 2014.
33. Ibidem, p. 82-84.
34. ROCA, 2014, p. 87.
35. DOGLIO, Cláudio. Inroduzione all’Apocalissi di Giovanni. In: GHIBERT, Giuseppe et al. -
Torino: Elledici, 2003 (Logos. Corso di Studi Biblici, 7), p. 177.
5. A NOVA JERUSALÉM
A Nova Jerusalém (Ap 21,1-8.9-27) está além de tudo o que vemos, sentimos
36. METZ, Johann Baptist. New York: Seabury Press, 1980, p. 171. PI-
a primeira: uma tenda (Ex 25,10-16; 33,7; 40,34-38), imagem que indica família,
clã, comunidade, lar, proteção, acolhida, aconchego, presença. Deus “habitará
Os 2,25; Rm 9,26).
Realiza-se agora o mundo em sua totalidade: céu-terra, onde “tudo é bom”,
entrevisto idealmente em Gn 1,1–2,3, numa surpreendente correspondência entre
Gn e Ap, aqui uma “nova criação”. O “Novo céu e nova terra” compreendem-se,
comparando com o mundo de antes (“primeiro céu e primeira terra”: os de agora).
Não se fala em destruição do mundo atual, mas este vai desaparecer, sair
de cena, numa superação radical ( ), no sentido de uma renovação cristo-
lógica (kainos: novo no Ap está sempre referido a contextos que têm a ver com
Cristo, particularmente evidente em Ap 5,9: anciãos e videntes entoam um “canto
novo”). Esta ação contínua de renovação de Deus é atribuída a Cristo42.
A Nova Jerusalém é uma cidade universal. Ao contrário da prostituta (Ap
17,1-18) que vivia oprimindo os outros e sugando o sangue dos outros, a nova
cidade é lugar de plenitude (21,24), foco de cura da humanidade (22,2). Nela
procuram luz e encontram alegria. Esta imagem da cidade aberta (não fecha suas
portas jamais) é o ponto culminante do Apocalipse. Esta é a nossa cidade; a ela
devemos tender a partir deste mundo43.
41. Cf. AUNE, David E. Revelation 17-22. [s.l.]: Thomas Nelson, 1998. (World Biblical Commetary, 52c),
p. 1146: Ap 21,9–22,9 foi conscientemente estruturada em imitação a 17,1–9,10 após Ap 21,5–22,2 ter sido
inserida entre 2,13-3 e 22,3-5.
42. VANNI, op. cit., p. 283.
43. PIKAZA IBARRONDO, Xabier. . Roma: Borla, 2001, p. 277-278.
que têm medo, mas os que renegam Jesus no momento de serem provados e assim
traem os irmãos. Mais do que medo, têm falsidade (cf. Sir 2,12), mentira e duplo
jogo45
linha dos nicolaítas e dos jezabelitas de Ap 2–3).
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Sem dúvida, vive-se uma crise sem precedentes que pode levar a humanida-
de à catástrofe ou a trilhar novos caminhos, planos, programas e projetos, o que
parece muito difícil ou quase impossível. Particularmente, as cidades tiveram
seu nascimento, apogeu e declínio, mas foram sempre o centro das civilizações,
impérios e Estados. As exigências que hoje pesam sobre elas, particularmente as
megalópoles, nunca foram tão imensas e amedrontadoras.
O Apocalipse nos revela que não há situação sem saída e fornece-nos esque-
mas de interpretação da história. Vive-se uma transição de época, sujeita a muitas
vítimas e enorme sofrimento. A Nova Jerusalém, em particular, traz esperança
na real novidade. A história deverá consumar-se numa ruptura que não permi-
te fuga. A Nova Jerusalém, símbolo do povo cristão, é dom de Deus, aponta
para a esperança, mas pede compromisso humano. Mas, como foi levantado,
deve-se reconhecer que sempre permanece algo de mistério indevassável, a
absoluta incognoscibilidade do plano divino no Apocalipse. Não obstante isso,
a Nova Jerusalém suscita e alimenta uma fé esclarecida, na esperança inabalável
e na solidariedade inarredável.
Resumo
-
Palavras-chave:
Abstract
ISSN 1676-4951 Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015
186 Ruben Marcelino Bento da Silva
Keywords:
INTRODUÇÃO
O tema do novo na Bíblia certamente pode assumir feições variadas tantos
quantos forem os textos bíblicos abordados nessa direção. Contudo, quaisquer
-
çar-se sobre três questões: De que maneira o novo
1. O NOVO E A CONTEMPORANEIDADE
é uma palavra muito marcante na atualidade. Pode-se dizer que esse
adjetivo extrapolou seu papel de determinante de substantivos dentro da gramá-
tica para tornar-se um indicador da veemência com que se experimenta, sob a
ocidentais. Busca-se a todo instante um produto novo, visto que o que se tem já
res (programas), mais atualizados. Não se pode permanecer sem renovar o guar-
da-roupa para acompanhar as tendências da moda. A todo instante surgem novos
sabores para degustar, novas imagens para ver, enredos novos para acompanhar,
ideias novas para apreciar. Simplesmente não se consegue dar conta de tanta no-
pipocando aqui e ali, tampouco se deseja que elas parem de estourar.
Por maior que seja o fascínio provocado pelo novo, a insatisfação que o
acompanha não é menos intensa. O apelo do desejo é quase irresistível, porém a
sensação experimentada quando se obtém aquilo que se tinha em vista dura muito
pouco. A imensa variedade de itens disponíveis à escolha do indivíduo – dos pro-
dutos alimentícios aos serviços estéticos; das modalidades de entretenimento aos
religiosas – lança-o num estado de angústia, visto que, embora consciente de sua
autonomia, percebe-a incapaz tanto de levá-lo a provar de tudo como também de
assegurar a permanência dos efeitos daquilo a que conseguiu ter acesso.
Então, a que leva essa incessante procura contemporânea pelo novo? Se o
cessam de aparecer e, pela mesma razão, aquilo que se conseguirá obter adiante
não contentará o desejo por muito tempo, o saldo não será mais do que o vazio
1. A palavra hebraica ( é seu equivalente grego) aparece, ao todo, 7 vezes no livro: 1,1.2.12;
7,27; 12,8.9.10. Embora se trate de um particípio feminino, usa-se exclusivamente com formas verbais masculi-
nas, o que sugere ter sido o autor um homem. A partir da explicação de Whybray, entende-se que, tendo em vista
alguns exemplos semelhantes encontrados em Esd 2,55 e Ne 7,57, , a princípio, designaria um ofício
caso seja levada em consideração a leitura proposta pelo aparato crítico da , cuja
. Isso indica-
ria que, nessa obra, provavelmente é um título ou apelido. WHYBRAY, Roger Norman. .
Grand Rapids: Eerdmans; London: Marshall; Morgan & Scott, 1989, p. 2. Conforme Ceresko,
“aquele que reúne” (tanto alunos ou ouvintes como escritos de sabedoria); cf. 12,9. CERESKO, Anthony R. A
. São Paulo: Paulus, 2004, p. 100-101.
2. HARRIS, R. Laird et al. . São Paulo: Vida Nova,
1998, p. 345.
3. A transliteração dos termos hebraicos para o alfabeto latino foi feita com base em HARRIS, -
, p. xiv-xvii.
4. As citações bíblicas foram extraídas de A BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995.
Em 12,8, a fórmula é mais curta: “Vaidade das vaidades, diz Qohélet, tudo é vaidade”.
5. LÍNDEZ, José Vílchez. . São Paulo: Paulus, 1999, p. 133, 433.
Se algo
-
7. Líndez esclarece que o termo (a terra) designa tudo que o autor conseguia contemplar com seus
olhos, isto é, o céu e a terra, o conjunto físico da criação divina. LÍNDEZ, 1999, p. 143.
9. Para informações mais aprofundadas sobre a situação política e econômica da Palestina durante o domínio
dos Ptolomeus, cf. LÍNDEZ, 1999, p. 466-477; STORNIOLO, Ivo. . São Paulo: Paulus,
2002, p. 10-24.
10. LÍNDEZ, 1999, p. 15-16.
Deus faz durará para sempre; não há nada a lhe acrescentar, nada a lhe retirar, e
Deus age de modo que haja temor diante de sua face” (3,14). À mercê do Criador,
portanto, a criatura humana, incapaz de assenhorear-se do destino para deter sua
imprevisibilidade, só pode seguir o caminho inevitável de todo ser vivo (3,18-21):
tanto em sua maneira de apresentar a realidade de seu tempo. Digamos que ele
redescobre novidade em coisas que não eram exatamente novas, mas cujo va-
lor transcende uma percepção árida da vida como mera repetição de processos
naturais ou sucessão de eventos indiscriminados, fadada a desaguar no vazio
da morte.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O novo é uma marca de nossa época. No entanto, parece trazer mais angús-
tia que contentamento. Corre-se freneticamente atrás do novo porque ele rapida-
mente se torna velho, defasado. São variedades de roupas, tecnologias, cardápios,
-
capaz de esgotar. Escolhe-se demais, obtém-se felicidade de menos. De maneira
paradoxal, a novidade mergulhou as pessoas na mesmice: troca-se continuamente
o velho pelo novo, porém nunca se experimenta satisfação. Não há nada novo em
escolher o novo sempre de novo!
No século III aC, Qohélet constatara igualmente que, assim como ocorria
com os ciclos naturais, os acontecimentos históricos e a teologia nada mostra-
vam de novo. Os judeus voltaram a ser subjugados política e economicamente
por uma potência estrangeira. A autoridade sacerdotal do Templo de Jerusalém,
mancomunada com os Ptolomeus, garantia-lhes o envio dos tributos. A sabedoria
tradicional insistia que Deus condicionava suas ações de acordo com os méritos
colhidos ou desperdiçados pela conduta individual. Para Qohélet revoltar-se con-
tra os soberanos de Alexandria seria um erro, do mesmo modo que a sabedoria
tradicional soava-lhe redondamente equivocada.
Em sua atividade investigativa de sábio, porém, Qohélet descobre o que
há de mais essencial no privilégio de existir: a alegria dos prazeres mais ele-
mentares – comer, beber, conviver, partilhar, amar. Como tudo na natureza, o ser
humano também acaba e, com ele, as tristezas vividas e toda e qualquer chance
de alegria que teria sido possível desfrutar. Perceber isso a tempo e fruir o que é
bom enquanto há oportunidade é uma dádiva de Deus. Nisso não há nada novo,
mas, insiste Qohélet, com isso se pode começar a viver uma vida nova. Por que
não aplicar a descoberta do antigo sábio de Jerusalém e renovar o cultivo de valo-
res de pertencimento e afeto nestes nossos dias em que o que surge de mais novo
Resumo
-
-
Palavras-chave:
Abstract
* Doutor em Teologia, na área do Antigo Testamento, com a tese doutoral: “Origem e legislação do Deuteronô-
mio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos”, no Instituto Ecumênico de Pós-graduação,
São Leopoldo, RS. Professor de Antigo Testamento e História de Israel na Fapas - Faculdade Palotina, Santa
Maria, RS.
Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 199
Keywords:
INTRODUÇÃO
O estudo do tema do novo na liturgia no livro do Deuteronômio vai ser
antecipado pela abordagem sintética de algumas questões introdutórias a respeito
deste livro. O nome ‘Deuteronômio’ é formado por duas palavras gregas: -
‘posterior, segundo’ e ‘lei’. O substantivo ‘Deuteronômio’, portanto,
(725-696 aC). Ele foi ampliado durante o reinado de Josias (640- 609 aC) e serviu
de Constituição do povo de Israel durante mais de um decênio. Ele recebeu vários
acréscimos, na época posterior ao exílio dos israelitas na Babilônia, até receber a
forma atual nas nossas Bíblias1.
Este estudo visa destacar os elementos novos da liturgia no livro do Deu-
teronômio. Estes se originaram por causa da centralização do culto israelita no
templo de Javé em Jerusalém. Em vista disso, a primeira parte apresenta as cau-
sas que levaram os liturgistas deuteronômicos a centralizar toda a liturgia, isto
é, a oferenda dos sacrifícios, as festas e comemorações no santuário central em
Jerusalém. A segunda parte destaca os elementos novos, criados pelos liturgistas
deuteronômicos, por causa da centralização de todo o calendário litúrgico no tem-
plo de Javé em Jerusalém.
1. KRAMER, Pedro. “Céu como bronze e terra como ferro” (Dt 28,23). Ecologia no Livro do Deuteronômio”.
, n. 118, Abr./Jun., 2013, p. 183-194, especialmente p. 184-188. BRAULIK, Georg. “Das Buch
Deuteronomium”. Em: Erich Zenger et al. (Orgs.). . 8. ed. Stuttgart: Verlag W.
Kohlhammer, 2012, p. 163-188.
centrada num único lugar, tem chance de sobreviver? Não estaria tal tipo de culto
condenado à esterilidade, à pura repetição de ritos, a um folclore cultural vazio
de conteúdo religioso? Mas, por outro lado, será que toda e qualquer liturgia cen-
tralizada é sempre negativa? Será que não pode haver uma liturgia centralizada
que valoriza, acolhe e defende as experiências vivas e as tradições variadas de
um povo ou de uma nação inteira? A estas ponderações e a estes questionamentos
quer-se dar uma resposta através da compreensão do culto presente no livro do
Deuteronômio.
a) A centralização de todo o culto a Deus no livro do Deuteronômio tem
várias razões. Uma delas remonta à época do rei Ezequias de Judá (725-697 aC)2.
Um enfoque de sua política era o fato de que, mais cedo ou mais tarde, o exér-
cito assírio faria uma excursão militar para o oeste do antigo Oriente Médio a
Este texto, como já foi dito acima, se encontra também nos Anais do rei assírio
Senaquerib. Nestes há, além disso, outra informação interessante. Esta relata que
Senaquerib, além de conquistar quarenta e seis cidades de Judá, deixou Ezequias
em Jerusalém como um ‘pássaro na gaiola’. Isto quer dizer que o único espaço de
autonomia e de liberdade do rei Ezequias era a Cidade-Estado de Jerusalém. O rei
assírio achava inicialmente que seria fácil apoderar-se também da capital. Mas,
como nos informa 2Rs 19,35-37, ele teve que levantar o acampamento e retornar
para Nínive, sem ocupar a capital israelita. O motivo dessa retirada inesperada
foi talvez o medo que surgisse um rei rival e que ele lhe usurpasse seu poder. Isto
aconteceu no ano de 701 aC.
O profeta Isaías, que criticou várias vezes a política ambivalente desse rei
dos Pães Ázimos foi centralizada no templo de Jerusalém, mas todas as coisas,
isto é, a economia, a política, o culto e a cultura. Somente aí se podia transitar
com relativa liberdade.
Esta é a hora da origem e do surgimento do Deuteronômio. No momento em
que as leis do assim chamado “decálogo cultual” em Ex 34,10-26 e do Código da
Aliança em Ex 21–23 bem como a lei do altar em Ex 20,22-24 foram centraliza-
das única e exclusivamente no templo de Jerusalém, pode-se falar, pela primeira
vez, da existência do Deuteronômio. Como, para os israelitas, sobrou apenas a
Cidade-Estado de Jerusalém como espaço de autonomia e de liberdade, é óbvio
que agora tudo converge para esta capital e dela decorrem todas as orientações
para a vida dos israelitas na região interiorana dos Reinos do Norte e do Sul.
Esta é igualmente a hora do nascimento da “fórmula de centralização”:
Ela
se encontra repetida em quatorze leis no livro do Deuteronômio. Estas centrali-
zam seu conteúdo em Jerusalém: Dt 12,4-7.8-12.13-19.20-28; 14,22-27; 15,19-
23; 16,1-8.9-12.13-15.16-17; 17,8-13; 18,1-8; 26,1-11; 31,10-13. Estas leis
de centralização, espalhadas por todo o livro do Deuteronômio, ou seja, 2x7
leis, – o número sete é número de plenitude e de totalidade, assim há duas pleni-
uma vezes, isto é, 3x7, novamente várias plenitudes, a assim chamada ‘fórmula
de centralização’ com mais ou menos o mesmo teor3. Nem todas as perícopes que
contêm a ‘fórmula de centralização’ têm a mesma origem histórica. Há, no entan-
to, algumas, como Dt 12,13-19, que foram redigidas no século VIII aC.
A tese, portanto, que data a origem do Deuteronômio durante o reinado de
Ezequias, é interessante e muito provável devido ao pano de fundo histórico que
a situação da Assíria e a política nacional do rei Ezequias fornecem. A situação
bênçãos e maldições em Dt 28. Apesar do seu tamanho reduzido, ele era a Torá,
isto é, a base da vida dos israelitas e a orientação fundamental do governo do rei
Ezequias.
b) Esse Deuteronômio original, no entanto, caiu no esquecimento e foi dei-
xado de lado durante o governo dos reis de Judá, Manassés (696-642 aC) e do seu
no Segundo livro dos Reis, sintetizam muito bem sua política de submissão aos
assírios em todos os sentidos e, por conseguinte, de rompimento com Javé. O
Deuteronômio original sumiu dentro do templo de Jerusalém:
[...]. -
(2Rs 21,5-6.16).
O rei Manassés participou, com mais de vinte reis vassalos, da solene ce-
lebração no santuário central de Nínive, na qual eles prometeram ao rei assírio
-
nhado de juramento. O exegeta G. Braulik ainda acrescenta que o rei Manassés,
e do amor exclusivo ao rei assírio o seguinte formulário: “Se vós não amardes
Asaradon, vosso senhor, como a vossa própria vida, com todo o coração, com
toda a alma e com toda a força”. Este texto do tratado de vassalagem tinha ainda
apenas com os lábios e não com todo o vosso coração”4. Não há necessidade de
muita fantasia para imaginar que o redator de Dt 6,4 copiou literalmente o texto
dos reis vassalos ao grão-rei assírio, substituindo apenas o nome do rei assírio
Asaradon pelo de Javé.
Nestas celebrações solenes de juramento do texto de tratado entre os reis
vassalos e o rei assírio entregava-se também o tributo imposto pelo rei assírio. É
desconhecida a quantia de tributos que o rei Manassés devia pagar ao rei assírio.
O rei Ezequias, no entanto, devia pagar ao rei Senaquerib a ‘bagatela’ de trezen-
(2Rs 18,14). Destes dados pode-se ter uma
ideia a respeito de quanto, mais ou menos, o rei Manassés pagava de tributo aos
assírios. Levando-se em conta que um talento equivale aproximadamente a 34kg,
então, disto resulta como tributo a ser pago: 10.200kg de prata e 1.020kg de ouro.
O texto original no cilindro de Taylor, col. III, 34ss., no entanto, contém outros
números referentes ao tributo que Ezequias devia pagar: “30 talentos de ouro, 800
talentos de prata e muitas preciosidades”5.
c) Outra causa que legitimou a centralização, especialmente, da liturgia no
templo de Jerusalém, aconteceu durante o governo do rei de Judá, Josias (640-609
aC)6
uma conspiração palaciana. Os assassinos do rei foram mortos por um grupo de
agricultores do Reino do Sul, chamado de ‘povo da terra’. Estes entronizaram
Josias, com apenas oito anos de idade (2Rs 21,19-26). É evidente que esse grupo
de agricultores queria governar por conta própria, durante os anos de minoridade
de Josias, assessorado por peritos em política, em religião e em leis. É o retorno
à política nacional israelita e, principalmente, a conversão ao Deus Javé. Esta
4. BRAULIK, Georg. “Die Liebe zwischen Gott und Israel. Zur theologischen Mitte des Buches Deuterono-
mium”. 41, 2012, p. 549-564, p. 551.
5. DONNER, Herbert. . V. 2. Petrópolis: Vozes ; São Leopoldo: Sinodal,
1997, p. 373, nota 42.
6. KRAMER, 2006, p. 20-32.
aos assírios e aos seus deuses bem como a opção única e exclusiva por Javé.
Esta mudança de atitude dos israelitas em relação à Assíria, no entanto, só
foi possível porque a política do rei Assurbanipal (669-630 aC) já dava sinais cla-
ros de decadência. Este vácuo de poder internacional proporcionou ao rei Josias,
no ano de 626 aC, a realização de uma profunda reforma e a renovação de todos
os setores da vida dos israelitas em Jerusalém e no Reino de Judá. Ele iniciou
tolerada ou talvez até incentivada pelos reis Manassés e Amon, durante o longo
período de dominação assíria.
Os trabalhos de reforma no templo, no entanto, trouxeram à tona o “Livro
da Lei”. O sumo sacerdote Helcias comunicou ao secretário do rei Josias, Safã,
apenas o seguinte: (2Rs 22,8). Este
livro foi lido por Safã que, depois, o leu também para o rei Josias. Seu conteúdo
devia tê-lo impressionado profundamente: -
(2Rs 22,11). E não só isso. Ele imediatamente
ordenou aos seus melhores e mais diretos servidores para que fossem levar o “Li-
ao rei assírio e aos deuses do panteão assírio, é agora utilizado pelos israelitas e
pelo rei Josias para renovar a aliança única, exclusiva e incondicional com Javé:
(2Rs 23,3).
Esta renovação da aliança, baseada no texto do Deuteronômio original, é a
mais nítida declaração da independência dos israelitas da Assíria, em nível eco-
nômico, social, político, religioso e cultural. É o grito de liberdade da dominação
e exploração dos assírios durante mais de cem anos. Esta declaração da indepen-
dência foi explicitada através da celebração da Páscoa israelita. Esta celebração
sempre recorda a libertação original dos hebreus da escravidão egípcia. A sua
comemoração agora festeja a libertação dos israelitas da escravidão dos assírios.
Essa declaração da independência da Assíria com a celebração da páscoa liberta-
dora em Jerusalém tem uma data bem precisa:
-
(2Rs 23,23). Esta data corresponde ao ano de 622 aC do reinado de Josias.
À renovação da aliança e à celebração da páscoa libertadora segue uma
verdadeira reforma religiosa, acabando com os ritos, os templos e os agentes
idolátricos no Reino de Judá (2Rs 23,4-20.24). Esta reforma do rei Josias está
muito bem testemunhada e sintetizada em 2Rs 23,25:
de centralização”, com pequenas variações. Nesta série de leis, ele descobre uma
espécie de esquema que ele passa a chamar de “esquema de romaria”8. Este es-
quema tem, para ele, quatro passos. Estes não aparecem, com a mesma intensida-
de, em todas as leis de centralização. Mas, há nelas verbos ou frases verbais que
descrevem uma série repetitiva de ações subjacentes a elas.
a)
preparação da peregrinação em casa, no local da moradia dos romeiros. Este ele-
mento aparece bem destacado na lei de centralização das primícias em Dt 26,1-
11. O agricultor israelita recolhe as primícias da terra e as coloca num cesto. E
assim elas são levadas para o templo de Jerusalém. Este elemento, além disso,
também se encontra enfatizado na lei das causas difíceis que, segundo Dt 17,8-
13, devem ser julgadas pelos sacerdotes levitas nas cidades do interior do Reino
de Judá. Como estas, no entanto, ultrapassam a competência deles, devem ser
apresentadas aos sacerdotes levitas e ao juiz que estiverem atuando no templo de
Jerusalém nesses dias.
b) O segundo passo do esquema de romaria é a viagem de casa rumo ao san-
tuário central. Dependendo da respectiva lei de centralização, o casal agricultor
deve estar atento às pessoas que ele deve convidar, no seu povoado ou na cidade,
-
rações. Elas podem ser escravos, levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas. O motivo
desse passo não ser tão enfatizado nas leis de centralização pode-se talvez atribuir
ao fato do cansaço e do sofrimento que a viagem para Jerusalém podia acarretar.
E, além disso, não se pode descartar oposição, aberta ou velada, à lei da centrali-
zação. Ninguém duvida que seria muito mais fácil e simples realizar celebrações,
festas, comemorações e sacrifícios nos santuários locais ou regionais, tão antigos
e tão queridos.
c) O terceiro passo do esquema de romaria é a ação propriamente dita no
templo de Javé. Dependendo das leis de centralização, algumas vão destacar mais
certas ações e outras, procedimentos diversos. Basta apenas pensar nas diferentes
celebrações e nos vários tipos de sacrifícios. Quanta variedade de ação cultual no
templo! Mas, apesar de tanta diversidade litúrgica, por causa dos seus conteúdos
comunitária e/ou com o convite à alegria pelos mais variados grupos de partici-
pantes. A alegria é, sem dúvida, o ponto alto da liturgia realizada no templo de
Jerusalém, na presença de Javé. Que compreensão criativa e libertadora de culto
dos liturgistas deuteronômicos!
d) O quarto passo do esquema de romaria é o retorno para casa, isto é, onde
os presidentes e os participantes do culto residem. Ele, nas leis de centralização,
não é muito enfatizado. No entanto, deve ser sempre suposto, onde há exortações
e parêneses, pois estas apontam para a vida em casa em família, após a liturgia
vivida no santuário central, como por exemplo em Dt 12,28; 15,21-23; 16,12.15;
17,13; 31,12-13.
de pão sem fermento durante sete dias, nas localidades onde se vive.
A presidência e os participantes da celebração da Páscoa e dos Pães Ázimos
o texto atribui ao “tu”. E esse “tu” alude a todo o povo de Israel que, de uma ou
de outra forma, preside à celebração da Páscoa e dos Pães Ázimos e dela partici-
pa. Certamente, ao pai e à mãe de família cabia uma responsabilidade especial.
Jerusalém. Após sua imolação, a carne dos animais era cozinhada. E assim se pre-
parava a ceia pascal comunitária e se tomava parte dela. Ao amanhecer, volta-se
para casa, onde todos, homens e mulheres, grandes e pequenos, passam sete dias,
comendo pão sem fermento. Que bela experiência de fraternidade/irmandade es-
sas duas comemorações promovem! Que consciência crítica elas criam e que
espiritualidade profética e mística libertadora elas alimentam nas pessoas! Será
que a celebração da Páscoa cristã cria, nos seus presidentes e seus participantes,
a resistência a todo e qualquer tipo de opressão e alimenta a luta pela libertação
das pessoas por mais vida?
Os outros textos na Bíblia que falam da Páscoa e dos Pães Ázimos descre-
vem-nas como celebrações com conteúdos diferentes. Elas são comemoradas em
dias distintos e em locais espalhados pelo território israelita, cujos participantes
A festa das Semanas e das Tendas (Dt 16,9-15)9 celebram o resultado das
colheitas do agricultor israelita, durante o ano. Através delas, ele proclama o
Deus Javé, como a fonte da bênção e da libertação, porque ele é a causa última da
fecundidade das pessoas e dos animais e da fertilidade da terra. Na festa das Se-
manas, ele rende graças a Deus pela colheita dos cereais, no verão; na das Tendas,
ele agradece pelos produtos vindos da eira e do lagar, no outono. Elas prescrevem
-
-
das no templo de Jerusalém durante o tempo da colheita, em forma de rodízio.
A festa das Semanas é celebrada durante um dia, no quinquagésimo dia,
após as sete semanas seguintes ao início da colheita das espigas (Dt 16,9). A festa
das Tendas, por outro lado, é comemorada durante sete dias, após o recolhimento
do produto da eira e do lagar (Dt 16,13). As duas festas não contêm um rito espe-
das duas festas é a alegria diante de Javé durante as refeições comunitárias (Dt
16,11.14-15).
A novidade na comemoração destas duas festas consiste no fato de que, em
qual Israel é constituído povo de Javé (Dt 29,9-14). Além disso, em Dt 31,10-13,
as mulheres são explicitamente mencionadas quando o povo de Israel, na sua
igualdade original, reúne-se para celebrar a festa das Tendas do sétimo ano, na
qual se rememoriza a Torá deuteronômica que, durante os sete dias de festa, é
solene e publicamente proclamada. A ordem em Dt 31,12 é muito clara:
Dt 12,27:
Dt 14,22:
Dt 15,19:
Dt 16,10:
Dt 16,15:
Dt 26,5.13:
Dt 26,10:
e o pai de família têm os mesmos direitos para presidir todo o culto no templo de
Jerusalém10. Que originalidade e criatividade dos liturgistas deuteronômicos! Nas
leis litúrgicas e ético-sociais no Deuteronômio não há marginalização e discrimi-
nação e empobrecidos e excluídos na sociedade israelita.
CONCLUSÃO
O estudo do tema sobre a novidade da liturgia deuteronômica possibilita
-
tâncias históricas bem precisas levaram as autoridades israelitas a centralizar todo
o calendário litúrgico no templo de Jerusalém. Ao realizar isto, os liturgistas deu-
teronômicos foram muito criativos. Porque a oferenda de sacrifícios, a celebração
de festas e de comemorações no templo de Jerusalém só teria sentido, para eles,
se todo o culto promovesse e favorecesse a fraternidade/irmandade do povo de
Israel no santuário de Javé em Jerusalém. Eles a criaram, de modo magistral, atra-
vés das refeições comunitárias de todos os israelitas diante de Javé no templo de
Jerusalém. Em vista disso, prescreveram que o consumo da carne e dos produtos
colhidos do solo e levados para o templo de Jerusalém deveria ser um meio para
acabar com a realidade de empobrecidos e excluídos e um instrumento que pro-
movesse a solidariedade e a partilha, especialmente para com as classes sociais
legalmente dependentes e economicamente fracas, como o levita, o estrangeiro,
o órfão e a viúva. Neste contexto deve ser dito que, ao lado dessas leis litúrgicas,
os legisladores deuteronômicos criaram também um conjunto de leis socioeco-
nômicas que igualmente visavam erradicar da sociedade israelita a exclusão e a
marginalização, tornando-a uma sociedade nova, alternativa e igualitária. Esse
estudo também já foi feito e publicado11.
BIBLIOGRAFIA
BRAULIK, Georg. “Das Buch Deuteronomium”. Em: Erich Zenger et al.
. 8. ed. Stuttgart: Verlag W. Kohlhammer. 2012, p. 163-188.
BRAULIK, Georg. “Die Liebe zwischen Gott und Israel. Zur theologischen Mitte des
Buches Deuteronomium”. 41, 2012, p. 549-564.
BRAULIK, Georg. . Wuerzburg: Echter Verlag. 1986.
BRAULIK, Georg. II, 16,18-34,12. Wuerzburg: Echter Verlag. 1992.
10. KRAMER, Pedro. “A presidência da liturgia é responsabilidade dos sacerdotes ou dos leigos? Pode a mulher
também exercê-la?”. Em: .
Pinto; Sandra Maira Pires (Orgs.). Porto Alegre: ESTEF, 2008, p. 80-91.
11. KRAMER, Pedro. “Estrangeiro, órfão e viúva na legislação deuteronômica. Programa de uma sociedade
igualitária de solidariedade e de partilha. 35, Jul./Dez. 2010, p. 247-264.
Resumo
Palavras-chave:
Abstract
(syntagma)
-
-
Keywords:
* Professor na PUCRS em Humanismo e Cultura Religiosa. Mestre em Ciências Bíblicas no Instituto Bíblico
de Roma; Doutor em Teologia, com área de concentração: Bíblia na EST de São Leopoldo; Pós-doutorado no
Instituto Bíblico de Roma.
Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
Cantai a Iahweh um cântico novo! 217
religioso e sacro, mesmo quando é cantado por mulheres (Sl 68,26, apesar de que
no coro litúrgico existiam, ainda depois do exílio, apenas homens)6.
O vocábulo (novo -
car basicamente “ser novo, tornar novo” e também “renovar, rejuvenescer”. Nos
textos extrabíblicos seu largo uso está presente nas festas mensais à deusa lua que
a cada mês se renova7.
2. ed. São
Paulo: Paulinas, 1985, p. 522.
2. Cf. MANDELKERN, Solomon. Schocken. 2.
Auff. Tel Aviv: [s.n.], 1978.
3. GLAT IX, p. 195. (GLAT = Aos cuidados de BOTTERWECK, G. Johannes; RINNGREN, Helmer.
Brescia: Paideia, 1988 [Original: -
, Stuttgart: Verlag W. Kohlhammer, 1973-].
4. GLAT IX, p. 195.
5. GLAT IX, p. 196-197.
6. BRUNERT, G.; KLEER, M.; STEINS, G. In GLAT IX, p. 201.
7. NORTH, R. In GLAT II, p. 805.
O Sl 96,1
é um hino à realeza do Senhor. Canta o seu sereno e seguro reino, sem
nenhuma evocação aos momentos de tensão que antecederam à sua vitória
-
dencia ainda mais pela repetição por sete vezes do termo kol ‘tudo’. Todos
devem participar, exceto os deuses porque são apenas ídolos11.
Zenger dizendo:
O entoar de um canto novo é a resposta do indivíduo nos salmos de ação
de graças depois da salvação acontecida assim como o acontece no Sl 40,4.
[...], Is 42,10(-13) é essa exigência pelo louvor e é uma reação frente à nova
intervenção de Iahweh em favor de Israel. Dentro da criação isso se refere
à experiência de uma estabilidade e uma continuidade e, por isso, motiva
para o louvor. No ambiente da história se sucedem novos acontecimentos e
esses conduzem a novos cânticos12.
Kraus já anteriormente falara que esses “cânticos novos”, tanto esse hino
como também o Sl 98,1, são a prova da esperança de Israel que se orienta em
direção à soberania visível e palpável de Iahweh onde se manifesta a implantação
de seu poder sobre todo o mundo e visa uma radical libertação e transformação do
momento presente com a participação de todos os povos nessa salvação.
16. , nota d.
17. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2008, p. 285.
18. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. . São Paulo: Paulus, 1998, p. 1224.
19
.
Este salmo, neste versículo, acrescenta que se toque com arte na hora da
“ovação”. O cântico novo, como diz Hossfeld/Zenger, deve ser cantado com jú-
bilo (te ). A existência desse “cântico novo”, também em conexão com o
Dêutero-Isaías não pode ter sido anterior ao exílio. Além disso, “o tema central
do ‘novo’ cântico baseia-se na ‘esperança da manifestação do poder da realeza
Por isso o “cântico novo”, não quer simplesmente ser a renovação da cele-
bração do ciclo anual da vida natural regulada pelas estações31. Mowinckel modi-
demais preso às estações do ano. O próprio culto, com suas palavras e ritos (o
drama cultual), pode ser também apenas uma repetição do passado que estaria
perdendo sua força. O serviço divino, feito com esse pensamento, não capta o
núcleo do pensamento cultual de Israel, onde “Iahweh é o único que age, cria e
está presente. correspondem à ação , se inserem
no seu governo e situam os participantes do culto neste acontecimento (cf. Ex
12,11-14)”33. Poder-se-ia falar de “memória” ( ), onde o passado é um
acontecimento sempre presente.
Como o sintagma “cântico novo” fora dos salmos é encontrado apenas em
Is 42,10, e como não se sabe quem primeiro o usou, Isaías ou o autor dos salmos
supramencionados, não se pode falar propriamente de um novo tipo de salmo.
O “cântico novo” sugere uma nova era. De fato o Sl 137 deixa transparecer o
quanto era odioso recitá-los fora de Jerusalém. A volta à pátria, após o exílio per-
mitira novamente cantá-los agora como um “cântico novo”. No período macabai-
BIBLIOGRAFIA
ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. . São Paulo: Paulus, 1998.
HOSSFELD, Frank-Lothar; ZENGER, Erich. . 4. ed. Freiburg: Herder,
2000.
______ . . Würzburg: Echter Verlag, 2008.
______ . . Würzburg: Echter Verlag, 1993.
KRAUS, Hans-Joachim. . Salamanca: Sigueme, 1985.
______ . . 5. ed. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1978.
______ . . 5. ed. Neukirchen-Vluyn: Neukirchener Verlag, 1978.
LORENZIN, Tiziano. . 4. ed. Milano: Paoline, 2009.
MANDELKERN, Solomon.
11. ed. Schocken: Tel Aviv, 1978.
RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. . Bilbao: Desclée de Brouwer, 2005.
STORNIOLO, Ivo. 2. ed. São Paulo: Pau-
linas, 1985.
Resumo
Palavras-chave: -
Abstract
Keywords:
* Doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor na Faculdade de Teologia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
ISSN 1676-4951 Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 225-244, abr/jun 2015
226 Cássio Murilo Dias da Silva
INTRODUÇÃO
Negro ou preto? Óleo ou azeite? Diabo ou demônio? Circunferência ou
círculo? Sociopata ou psicopata? Em toda e qualquer língua e idioma, a lista e o
elenco de termos e das palavras sinônimas e equivalentes é longa e extensa! No
opção que não foi tomada após a avaliar os prós, os contras e os desdobramentos
dessa mudança e, o que é mais importante, o que está por trás da proposta da nova
nomenclatura!
Este artigo visa apresentar os vários dados do problema, mas não de modo
exaustivo e sistemático (o que seria impossível em um breve artigo), e sim de
modo provocativo e fragmentado. Provocativo, porque quer “cutucar” os con-
ceitos exegético-teológicos que talvez estejam adormecidos no/a leitor/a. Frag-
mentado, porque, como um mosaico, tocará somente os pontos relevantes para
que servirá de base para o leitor fazer (ou rever) a sua opção.
1. Resumo de ZENGER, Erich. A Sagrada Escritura de judeus e cristãos. In: ZENGER, Erich et al.
. São Paulo: Loyola, 2003. p. 20-21.
Absolutamente nada!
Portanto, estamos diante de um problema: Se estas questões teológicas e de
moral não foram contempladas por Jesus nem pelos autores neotestamentários...
como então Jesus é a “plenitude da revelação”?
-
gia, possa ser aplicada àqueles problemas. Por exemplo, “o fruto da árvore que
está no meio do jardim não comerás nem tocarás nela” (parafraseando Gn 2,16 e
3,3) é interpretado como referente à fertilização in vitro e, portanto, usado como
argumento para considerar pecado as experiências genéticas! Este tipo de teolo-
gia, no entanto, além de ser marcado pelo moralismo exacerbado, baseia-se em
um conceito inadequado de revelação – o depósito de verdades – e, por conse-
guinte, de “plenitude da revelação”.
Quando se fala de “plenitude” há de se perguntar se se trata de uma plenitu-
de “quantitativa” ou “qualitativa”. Por plenitude “quantitativa” compreende-se o
acúmulo de “verdades reveladas” (o depósito), que atingiu a carga máxima com
Jesus e os apóstolos, depois do qual não haverá nenhuma novidade sobre Deus,
sobre a fé e sobre a moral. Diferente é o caso da plenitude “qualitativa” que não
se restringe à superioridade da mensagem do Novo Testamento em relação à do
Antigo, mas que atinge o próprio conceito de revelação.
E com isso, compreende-se a diferença entre revelação como um “depósito
não é ensinar verdades divinas que de outro modo nunca saberíamos, e sim levar
com Deus. E se o objetivo da revelação é levar o homem
2. A concepção de que a revelação se encerrou com a morte do último apóstolo, está diretamente ligada ao
conceito de revelação como “depósito de verdades”.
a palavra escrita nos livros do Novo Testamento, mas somente com o próprio
Jesus. Acontece que, como por duas vezes alerta o autor do Quarto Evangelho,
de tudo o que Jesus foi, fez e falou, está escrita somente uma mínima parte (cf.
Jo 20,30-31 e 21,25). Ou seja... é a plenitude da revelação; o Novo Testa-
mento, não!
Talvez o/a leitor/a esteja perguntando: O que isso tem a ver com o objetivo
deste artigo?
Devemos recordar que uma das motivações para mudar a nomenclatura
é a carga pejorativa carregada pelo termo “antigo”, enquanto o binômio “pri-
meiro-segundo” exprimiria melhor o vínculo entre as duas partes da Bíblia. E
isso tem a ver com uma das questões latentes à mudança: o conceito de inspi-
ração e como este conceito pode ser aplicado aos dois Testamentos.
4. INSPIRADOS? COMO?
Jesus é a plenitude da revelação. Jesus... não a Bíblia! Nem os dois Testa-
mentos juntos e muito menos cada um isoladamente!
3. Estes e outros modelos encontram-se em ZENGER, et al. 2003, p. 21-24, com uma avaliação crítica.
Deus, de sua vontade para o ser humano, de seu projeto de salvação. Tudo isso
precisa ser completado sempre mais e de novo. Ou seja, “a revelação ainda não
acabou”!
Ora, se os dois Testamentos – tanto conjuntamente e muito menos isola-
damente – não contêm a imagem perfeita e total de Deus4, por conseguinte, é
inadmissível dizer que a imagem de Deus no Novo Testamento é melhor, ou mais
adequada, do que a imagem de Deus no Antigo. E menos admissível ainda é a
ideia de que o Deus do Antigo Testamento é diferente do Deus do Novo, uma vez
que o Deus do Antigo Testamento é vingativo, enquanto o Deus do Novo é mise-
ricordioso. Este modo de pensar é errôneo e, no mínimo, atesta desconhecimento
de que o Deus do Antigo Testamento (Ex 34,6;
Dt 4,31; Sl 103,8 e muitos outros textos), ao passo que o Deus do Novo
é furioso e vingativo (a vingança de Deus é abundante no livro do Apocalipse de
João). O próprio Jesus sente ira (Mc 11,15-18 e paralelos; Mc 1,41, conforme
alguns manuscritos), por vezes é intolerante (Mc 8,33 e paralelos) e impreca a
destruição de quem não o aceita (Mt 11,20-24 e paralelos; Mc 14,21) ou de quem
não se encaixa em seu projeto (Lc 6,24-26).
não somente o mesmo Deus, mas também o mesmo povo: Jesus era judeu e nun-
ca deixou de ser; seus discípulos eram judeus; os autores do Novo Testamento
(se não todos, a sua grande maioria) eram judeus; o principal evento do Novo
Testamento (vida-morte-ressurreição de Cristo) aconteceu entre judeus; a Igreja
começou com os judeus.
O que nos arremete para outra questão: O Novo Testamento substitui
o Antigo?
4. Caso isso acontecesse, Deus já não seria Deus, seria um ídolo, reduzido ao que nossa limitada capacidade de
entendimento consegue imaginar a respeito dele. Por conseguinte, ele deixaria de ser um , para se tornar
uma divindade “compreendida”, isto é, enquadrada, domesticada, diminuída.
É importante ter ideias claras e distintas sobre tudo isso, pois será de capital
importância para a discussão da terminologia “segundo”/”novo”. Infelizmente,
a exiguidade de páginas deste artigo não permite estabelecer as distinções. Não
judeu-cristianismo!
Por outro lado, há de se perguntar se um Testamento depende do outro para
que ambos sejam Palavra de Deus e documentos da revelação. Ou seja: o Novo
Testamento depende do Antigo para ser Palavra de Deus? O Antigo depende do
Novo para ser inspirado?
O conceito de revelação como “depósito de verdades” fez com que a discus-
são acerca da inspiração se restringisse quase exclusivamente à questão sobre a
autoria da Sagrada Escritura. À pergunta “Quem é o autor (a causa)?”, a resposta
-
ciente do escrito. Deste modo, tentava-se garantir que a autoria divina não impe-
disse nem rebaixasse a autoria humana.
relações entre Antigo e Novo Testamento, a ponto de vários teólogos (ou não) e
cientistas da religião (ou não) confundirem a ordem da percepção com a ordem
Palavra de Deus) somente por causa do Novo e graças a ele. Na prática, isso
não era, e que passa a ser quando constituído daquele modo). Voltarei a este
ponto mais adiante. Por ora, quero chamar a atenção para o fato que o Antigo
Testamento tem seu próprio sentido, independente do Novo. Ainda que não a
“plenitude”, mas é perfeitamente possível compreender o Antigo Testamento in-
dependente do Novo. O contrário, porém, não acontece: é absolutamente impos-
Então... qual depende de qual? É o Antigo que depende do Novo, ou o Novo que
depende do Antigo?
Aplicada a Jesus, esta mesma pergunta se propõe assim: É Jesus quem legi-
tima/elucida o Antigo Testamento como Palavra de Deus, ou é que Antigo Testa-
mento que legitima/elucida Jesus como Messias-Cristo?
Pois, se o raciocínio segundo o qual o Antigo Testamento é Palavra de Deus
somente porque assim reconhecido pelo Novo, o mesmo pode ser usado inversa-
Mais ainda: “Jesus só é salvador porque ‘prenunciado’ pelo Antigo!” Isso impli-
caria dizer que, sem o Antigo, Jesus não seria Messias, nem Salvador, nem Filho
de Deus!
-
mento – Jesus é ou não é tudo isso?
No entanto, lembre-se o/a leitor/a: o Antigo Testamento
. São os cristãos que interpretam Jesus à luz dos escritos veterotestamen-
tários e veem nele o cumprimento e a plena realização do que lá está escrito, al-
gumas coisas de modo direto e absoluto, outras de modo alegórico e metafórico.
Basta perguntar: Jesus é o Messias? Ora, o título Messias no Antigo Testamento
tem uma carga conceitual bem diferente daquilo que Jesus foi: o Messias iria as-
sumir o status de rei do povo de Israel, restabelecer o império davídico e declarar
a independência política de Jerusalém. Jesus não fez nada disso! E, no entanto,
ele é reconhecido como Messias, agora com o título de “Cristo”. E isso implica
uma séria mudança conceitual e, por conseguinte, teológica.
Então, novamente a pergunta: para ter algum sentido – e para ser Palavra
de Deus – é o Antigo que depende do Novo, ou o Novo que depende do Antigo?
6. DEPENDÊNCIA?
Convém retomar aqui aquele conceito de que, como Palavra de Deus e para
ser interpretado como tal, o Antigo Testamento do Novo. Este modo de
pensar:
a) confunde o objeto com a percepção que se tem dele;
b) fundamenta-se em uma inadequada compreensão de “verdade”;
c) supõe que os dois Testamentos sejam rivais.
inspirada do Antigo Testamento (2Tm 3,15-16; 2Pd 1,19-21), entre outros textos
que podem ser lidos nesta perspectiva.
Mas, que algo é não equivale a -
çar a ser. Ou seja, o Antigo Testamento sempre foi inspirado, sempre foi Palavra
de Deus, mesmo antes de o Novo Testamento e o próprio Jesus reconhecê-lo
se tornou ins-
pirado e se tornou Palavra de Deus de Jesus e do Novo Testamento,
5. Nesta linha, o Papa Bento XVI assume como sua a proposição 52 do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de
Torá de YHWH (Sl 37,31; 119) e várias outras, de modo particular o prólogo do
tradutor de Sirácida, no qual se fala da Escritura já com uma divisão tripartite:
Lei, Profetas e Escritos.
Em outras palavras, o Antigo Testamento jamais se vê como uma muleta
para o Novo, assim como não é necessário recorrer às declarações do Novo Tes-
no que o fato representa. Por esta razão, enquanto o homem ocidental, ao ler a
Bíblia, interroga se os fatos aconteceram do jeito narrado, o homem
médio-oriental, ao ler a mesma Bíblia, interroga sobre qual sentido o autor quer
que o leitor dê aos episódios narrados, uma interpretação que já está embutida no
modo de narrar.
De fato, o homem ocidental se sente pouco à vontade com um texto repleto
de diferenças, contrastes e discordâncias acerca do mesmo assunto. Basta olhar,
por exemplo, os quatro retratos diferentes de Jesus nos evangelhos canônicos: o
Jesus de Lucas é muito diferente do Jesus de João, por exemplo. Ou ainda, a di-
ferença de opinião dos sábios do Antigo Testamento acerca da validade ou não da
Teologia da Retribuição: enquanto o Livro dos Provérbios defende que “aqui se
faz, aqui se paga”, Jó e Qohélet (Eclesiastes) têm opinião radicalmente contrária.
Tudo porque, para o homem ocidental, a verdade é algo objetivo, enquanto
para o homem médio-oriental a verdade é algo aberto à discussão.
Esse conceito de verdade é um dos elementos que faz a diferença entre a
leitura cristã e a leitura judaica das Escrituras. Pois a leitura cristã, marcada pela
mentalidade ocidental, pergunta qual “o” sentido das Escrituras, qual “a” inter-
pretação correta de um texto; diferentemente, a leitura judaica, eminentemente
médio-oriental, pergunta quais “os” sentidos e quais “as” interpretações de um
texto. Enquanto, para o ocidental e cristão, a verdade é a que está mais de acordo
com o dogma, para o judeu e médio-oriental, a verdade é a que faz o leitor ser
uma pessoa melhor!
Isso tem implicações graves na composição e na leitura do Novo Testamen-
to, uma vez que ele foi escrito por judeus, mas é lido por cristãos. Nem sempre
As seguintes concepções
– o Novo Testamento substitui o Antigo;
– plenitude da revelação equivale a totalidade da revelação;
– o Antigo Testamento não tem uma mensagem própria;
são falsas e têm como pano de fundo um equívoco ainda maior: uma errônea,
outras interpretação do que se poderia chamar de “rivalidade” entre os dois
Testamentos.
Sem dúvida, judaísmo e cristianismo são dois modos diferentes de crer, mas
não modos de crer.
O movimento de Jesus, caso tivesse sido aceito pelo judaísmo multifacetado
de sua época, seria mais um dos partidos político-religiosos do século I na Judeia
(como o foram fariseus, saduceus, zelotas e essênios).
Por uma série de razões, judaísmo e cristianismo se separaram, mas de modo
algum as Escrituras judaicas negam as Escrituras cristãs, e muito menos as Es-
crituras cristãs tornam obsoletas as Escrituras judaicas. Muito ao contrário – e
-
6. Sobre isso, ver ZENGER, et al. 2003, p. 26, que fala dessa rivalidade na perspectiva do “diálogo fecunda-
mente tenso entre as duas partes da Bíblia cristã una”.
porque não se tinha nenhuma cópia do original hebraico. Não obstante, foi muito estudado e comentado pelas
escolas rabínicas até a Idade Média!
o justo não prosperou na sociedade, Jerusalém não se tornou uma cidade de paz!
Nem no tempo de Jesus, nem no tempo da Igreja, desde seu início até hoje!
O Novo Testamento “cumpre” o Antigo somente no campo da cristologia, o
que equivale dizer, graças à releitura cristã. Mas o perigo é considerar o que não
é cristológico algo provisório, superado, não importante e, portanto, descartável!
-
lavra de Deus!
seja pelo respeito às religiões, seja porque é um erro de exegese e de teologia. Basta
lembrar que os próprios conceitos de “plenitude” e “cumprimento” para o Novo
Testamento não são tão livres de problemas, uma vez que também o Novo Testa-
mento contém promessas ainda não realizadas e, portanto, poderia não ser “plenitu-
Isso tudo tem a ver diretamente com o argumento extrínseco, isto é, que
o termo “antigo” induz ao desprezo das Escrituras judaicas como superadas e
totalmente substituídas pelas Escrituras cristãs e, por isso, deve ser evitado. Ora,
o que de fato obstaculiza o diálogo entre judeus e cristãos não é apenas e tão so-
mente a conotação pejorativa de um termo ambivalente, mas um modo de pensar
a inspiração e a Escritura, um modo que não é eliminado com a simples mudança
terminológica, embora, sem dúvida, esta possa ajudar.
Quanto aos argumentos intrínsecos, também eles demonstram-se proble-
máticos.
Primeiro, o caráter bíblico da frase “primeira aliança” ( ), ates-
tado em várias vezes em Hebreus (8,7.13; 9,1.15.18) e na versão grega do Levíti-
co (26,39-45). Trata-se de um fato inquestionável. Mas também é inquestionável
o fato de “nova aliança” ( ) ser igualmente uma frase bíblica: não
só no mesmo escrito aos Hebreus (8,8; 9,15), como também em Lc 22,20; 1Cor
11,25; 2Cor 3,6; e já antes em Jr 38,31. Portanto, é difícil admitir que “Primeiro
Testamento” seja (!) do que “Antigo Testamento”.
Caso você tenha lido com atenção o parágrafo anterior, terá notado a passa-
-
dades relativas ao segundo argumento intrínseco, isto é, que os ordinais “primei-
ro” e “segundo” correspondem melhor à continuidade histórica das Escrituras:
“primeiro” a Bíblia judaica, “segundo” a Bíblia cristã.
Sobre a inadequação dos termos “judaica” e “cristã” falarei mais abaixo.
Quero agora levantar uma questão de fundo (ou de fundamento): o “Segundo”
Testamento liga-se ao “Primeiro” somente pela continuidade, ou há também des-
continuidade e, portanto, ruptura e ? Mais ainda: a nova terminologia
não corre o risco de negar que o “segundo” seja de fato “novo”?
8. Sobre isso, ver VELTRI, Giuseppe. L’ispirazione della LXX tra leggenda e teologia. ,
v. 27, p. 1-71, 1976.; BUZZETTI, Carlo. Traduzione della Bibbia e ispirazione della ‘Settanta’.
Italiana, v. 20, p. 131-161,1972; CIMOSA, Mario. La traduzione greca dei LXX: Dibattito sull’ispirazione.
, v. 46, p. 3-14, 1984.
“deuterocanônicos”9 -
ma: se o texto grego é tão inspirado quanto o hebraico, então deveríamos ter dois
“Antigos” Testamentos, o hebraico e o grego!
Apenas dois exemplos para ilustrar: o Saltério hebraico é diferente do Sal-
tério grego (o que, aliás, obrigou Jerônimo a manter as duas versões lado a lado
em sua Vulgata); o Jeremias hebraico é bem diferente do Jeremias grego (a ordem
dos capítulos não é a mesma, e o Jeremias hebraico é cerca de 1/8 mais longo do
que o Jeremias grego).
Essa questão da Septuaginta é importante e retornarei a ela mais adiante.
Mas, antes, é necessário olhar com mais atenção o próprio termo “testamento”.
-
em latim. Nas línguas modernas, “testamento” designa o conjunto das reco-
mendações ou vontades últimas de alguém que sabe que vai morrer. Embora se
fale também de “testamento” quando essas derradeiras determinações são dei-
xadas oralmente, em geral o termo é aplicado a um documento escrito. O termo
latino foi usado para traduzir as palavras que em hebraico e em
e . Com isso, o acento
que se impôs a ponto de se falar dos dois Testamentos bíblicos muito mais como
livros (ou partes de um único livro) do que como duas alianças10.
Ora, a mudança de “antigo/novo” para “primeiro/segundo” provoca alte-
rações também na compreensão de “testamento”, de modo a obscurecer ainda
-
sivamente o conceito de “documento” e, portanto, texto. Com isso, reemergem
os questionamentos ligados à Septuaginta, a ponto de ser inevitável a pergunta:
Se “testamento” é “livro, documento escrito”, qual é o “segundo” testamento: as
escrituras cristãs ou a versão/ampliação grega das Escrituras hebraicas? Ou seja...
o “segundo” testamento não deveria ser a Septuaginta?
9. Trata-se dos livros presentes na Bíblia católica, mas não na protestante-evangélica. Sete livros inteiros: Baruc,
Eclesiástico (Sirácida), Sabedoria, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. E ainda as partes gregas de Daniel e de Ester.
lugar de “testament”.
sés, aliança com Davi! Sem falar que seria no mínimo absurdo colocar na boca
de Jesus a frase “Este cálice é a aliança no meu sangue” (cf. Lc 22,20)!
Estas várias implicações referentes ao segundo argumento intrínseco não
11. SCHWANTES, Milton. Vol. 1: Local e origens. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 16.
BREVE CONCLUSÃO
Após todo este percurso – por vezes sinuoso e talvez repetitivo – é neces-
sário reconhecer: a favor da mudança e,
portanto, a escolha da nova terminologia é algo subjetivo e do
12. Para uma breve história do cânon do Novo Testamento, ver KAESTLI, Jean-Daniel. História do cânon do
Novo Testamento. In: MARGUERAT, Daniel, org. . São Paulo:
Loyola, 2009, p. 571-603. Para uma apresentação mais aprofundada, ver MANNUCCI, Valerio.
. São Paulo: Paulus, 1986, p. 235-257.
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