V. 32 N. 126 (2015) Estudos Bíblicos - Dossiê O Que É Novo e o Que Não É

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Editor responsável:

Ludovico Garmus (E-mail: [email protected])

Conselho editorial:
Luiz Alexandre Solano Rossi (PUCPR)
Valmor da Silva (PUCGO)
Tércio Machado Siqueira (UMESP)
Ludovico Garmus (Faculdade de Teologia – ITF, Petrópolis, RJ)
Júlio Paulo Zabatiero (Faculdade Unida, ES)
Maria Antônia Marques (Centro Bíblico Verbo, SP)
José Ademar Kaefer (Centro Bíblico Verbo, SP)
Shigeyuki Nakanose (Centro Bíblico Verbo, SP)

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Flávio Martinez de Oliveira (Universidade Católica de Pelotas)
Ildo Bohn Gass (Secretaria – CEBI)
Isidoro Mazzarolo (PUCRJ)
Ivone Richter Reimer (PUCGO)
Erhard S. Gerstenberger (Universidade de Marburg, Alemanha)
Nestor Míguez

Coordenadores deste número: Flávio Martinez de Oliveira


Ildo Bohn Gass

Da redação: Os artigos publicados neste número foram recebidos no dia 15 de abril de


2015 e revisados por Shigeyuki Nakanose.

Assinatura anual: para o exterior: U$ 55,00


Para o Brasil: R$ 80,00
Para assinaturas dirija-se a: [email protected]
Tel.: (0xx24) 2333-9012

Printed in Brazil
EDITORIAL

“O que é novo e o que não é” é o título deste número de Estudos Bíblicos.


Começa-se pelo texto de Flávio Schmitt que abre toda a perspectiva do
número: “O novo em Paulo”, porque o novo tem fundamental relevância nos
escritos paulinos. Paulo fala em nova cultura e nova vida. Os escritos paulinos
são escritos da Nova Aliança. Já a irrupção da prática de Jesus tem no “novo” o
seu mais forte referencial. O paradigma do Reino é a “Boa-nova” na perspectiva
de um novo Êxodo. Nascer de novo, odre novo, vinho novo, tirar coisas novas do
baú, são algumas das expressões mais conhecidas.
Justamente ao contrário, novidade, inovação, novo, hoje se ligam à socie-
dade de consumo no marketing, são termos ligados ao comércio e ao lucro pelas
empresas. Em Paulo, a palavra “novo” aparece quatro vezes nas cartas conside-
radas autênticas de Paulo (1Cor 11,25; 2Cor 5,17[2x]; Gl 6,15), duas vezes nas
deuteropaulinas (Ef 2,15; 4,24; Cl 3,10; Hb 9,15 e 10,20). “Kainé” é um adjetivo
com funções substantivas. Ao falar em “nova criatura”, Paulo, portanto, refere-se
à verdadeira conversão efetuada por Jesus em seus seguidores, que experimen-
tam a força do ato criativo do Espírito Santo, um processo de intervenção divina.
Há, conclui-se, uma diferença abismal entre o evangelho do mercado e o
evangelho de Paulo. Em Paulo o novo é essencialmente cristocêntrico e exige
renovação. Cristo é o divisor das águas entre o novo e o antigo.
Norberto Garin em “O impacto do novo sobre a ordem arcaica: uma nova
espiritualidade em Mc 2,18-22” mostra que as antigas práticas rituais dos judeus

Agora todos os antigos excluídos do banquete vêm convidados a participar do


banquete fraterno com o Novo. Os antigos jejuns rituais praticados pelos judeus
perderam o sentido com a chegada do Novo tempo inaugurado por Cristo. As
vestes antigas se rasgaram pela força do Novo pano. Os odres velhos que guarda-
vam os vinhos para os envelhecidos se romperam pela força inovadora do novo
paradigma. Cristo é o Novo.
A presença de Jesus equivale à festa das bodas, onde reina a alegria e não a
tristeza que o jejum dos judeus queria expressar. A comunidade que se seguiu à
ressurreição de Jesus adotou a prática do jejum (At 13,2-3; 14,13), mas estabele-
orque agora o
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perdão já havia sido alcançado pelo sacrifício eterno de Jesus. O novo jejum tinha

para momentos importantes da vida comunitária. Agora todos os excluídos são


integrados, ao contrário do que se observava no Judaísmo e no mundo de hoje.
Apesar da distância cronológica do evento fundante, o Novo continua a ser
novo porque representa o espaço atemporal, o espaço do kairós. Ele é o Novo
diante da contemporaneidade consumista, de novidades ultrapassadas.
Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva em “E vós, quem
dizeis que eu sou?”, discutem duas ideias: 1) Se quisemos conhecer o outro preci-
samos saber o que ele diz de si mesmo. Quando descrevemos o outro a partir das
nossas convicções corremos o risco de enquadrá-lo naquilo que desejamos que
ele seja e não no que ele representa de fato. 2) A novidade trazida por Jesus não
se encontra no rompimento, no afastamento ou negação do outro. A novidade se
expressa na convivência, na tolerância e no respeito à diversidade.
O texto de Mc 8,27-30 tem relação com as narrativas posteriores e anterio-
res em Marcos. Apresenta-se como um divisor. A ideologia do poder faz com que

espalhando boatos e inverdades, perseguição e desmoralização. Em muitos casos,


procura-se conhecer o outro com o intuito de combatê-lo.
Para conhecer é necessário ouvir o que o outro diz sobre si mesmo. Conhe-
cer algo mediado pela descrição dos outros em geral não leva ao conhecimento.
Às vezes criam-se visões distorcidas da realidade. Na história da América Lati-
na os povos ameríndios, os negros, as mulheres, os ateus, os pobres e diversos
grupos tiveram sua imagem descrita por outros. Na maioria das vezes a imagem
retratada não condizia com a realidade.
A novidade se expressa na convivência e no respeito. O novo é a tolerância
e o respeito à diversidade. Por muito tempo fomos acostumados a aceitar a intole-
rância como ação normal. O que vemos em Marcos, quando Jesus vai ao templo,
é que ele propõe um templo para todas as nações, um Deus que está de aliança,

e a todos está disposto a ouvir na “casa de oração” de “todas as nações”! Jesus


abre o templo a todos.
Todas as culturas e religiões podem lançar mão da pergunta de Jesus e in-
dagar ao outro: O que vocês dizem que eu sou? O que a sociedade ou as pessoas
dizem que eu sou? As religiões de matriz africana, os cristãos, os budistas, os
islâmicos, os hinduístas, os ateus, os negros, os índios, os homoafetivos etc., to-
dos podem fazer a mesma pergunta. Quais são as respostas quando lançamos a
pergunta em relação a estes grupos acima citados? Algumas nós já conhecemos:
-
tos, terroristas etc.
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A pergunta não foi realizada com a intenção de revelar nem a autoridade


de Jesus nem a de Pedro e sim a proposta do projeto. Jesus será reconhecido
pelo seu projeto. O projeto do Cristo. Nesse sentido, a mensagem do Cristo se
constitui no novo quando comparado com a mensagem tradicional de algumas
lideranças judaicas.
Após estas análises pontuais e temáticas, Flávio Martinez de Oliveira e
Eduardo dos Santos de Oliveira propõem a abordagem das relações entre a cidade
de hoje, sua história, a crise internacional atual e a Nova Jerusalém. Como ponto
de partida descrevem e analisam as manifestações de rua em 2013, no Brasil e
no mundo. Situa-se a atual realidade das cidades em sua história. A situação das

-
ca, social, ecológica, política, cultural e religiosa – da atual civilização ou para
medidas a serem assumidas pelos sujeitos sociais em alternativas comunitárias
focadas nos direitos humanos, o que parece muito difícil, senão impossível. Neste
contexto surge o retorno do apocaliptismo com marca em 2012. Em consequên-
cia, propõe-se no texto a Nova Jerusalém como horizonte alternativo a animar a
esperança dos cristãos em sua fé, em meio à crise e ao sofrimento.
Sem dúvida, vive-se uma crise sem precedentes que pode levar a humanida-
de à catástrofe ou a trilhar novos caminhos, planos, programas e projetos, o que
não parece muito fácil. Particularmente, as cidades tiveram seu nascimento, apo-
geu e declínio, mas foram sempre o centro das civilizações, impérios e Estados.
As exigências que hoje pesam sobre elas, particularmente sobre as megalópoles,
nunca foram tão imensas e amedrontadoras.
O Apocalipse nos revela que não há situação sem saída e fornece-nos esque-
mas de interpretação da história. Vive-se uma transição de época, sujeita a muitas
vítimas e enorme sofrimento. A Nova Jerusalém, em particular, traz esperança na
real novidade. A história deverá consumar-se numa ruptura que não permite fuga.
A Nova Jerusalém, símbolo do povo cristão, é dom de Deus, aponta à esperança,
porém, pede compromisso humano. Mas, como foi levantado, deve-se reconhe-
cer que sempre permanece algo de mistério indevassável, a absoluta incognos-
cibilidade do plano divino no Apocalipse. Não obstante isso, a Nova Jerusalém
suscita e alimenta uma fé esclarecida, na esperança inabalável e na solidariedade
inarredável. Por isso, ela é nova, ao contrário de todas as propostas que hoje se
veem disseminadas e multiplicadas.
Os próximos textos referem-se ao Antigo Testamento.
-
cia da economia de mercado e a sua condição de transitoriedade. Busca-se a todo
instante um produto novo, visto que o que se tem já não desperta mais interesse

novo, a insatisfação que o acompanha não é menos intensa. O apelo do desejo é


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quase irresistível, porém a sensação experimentada quando se obtém aquilo que


-

e vínculos.
O texto de Qohélet chama a atenção do leitor pela constante repetição de
ideias. A mais famosa, sem dúvida, é aquela contida na fórmula que abre e en-
cerra o livro: “Vaidade das vaidades, diz Qohélet, vaidade das vaidades, tudo é
vaidade” (1,2; 12,8).
Diferente de hébel, porém, só há duas ocorrências do adjetivo
(novo) no livro de Qohélet, ambas no capítulo 1 (versículos 9 e 10). Todavia,
a expressão we –
sol – é o martelo batido única vez, cuja sentença correspondente, porém, vigora
em toda a obra. Por isso, é mais do que razoável considerá-la uma chave de lei-
tura. Nada de novo?
Ao longo do livro, essa impressão vai se tornando cada vez mais sólida.
Desde o século VI aC, os judeus eram trocados de mãos entre grandes impérios
que se sucediam: babilônico, persa e, agora, grego. Qohélet é um sábio, mas não
conformista.
Tudo parece uma mesmice, porém, lê-se “Eis o que vejo ( ) ser bom
( ): convém comer e beber, experimentar a felicidade (we – e ver feli-
) em todo o trabalho com que o homem se afadiga sob o sol, durante o nú-
mero dos dias de vida que Deus lhe concede; esta é a parte que lhe cabe” (5,17).
O que o Qohélet descobre? Em primeiro lugar, que o trabalho deve propor-
cionar tanto sustento como alegria. Em segundo lugar, que o sustento e a alegria
pelo trabalho são dádivas de Deus (9,7-9). Isso é o bom, é a felicidade para o ser
humano. Acrescenta-lhes, todavia, com o emprego do verbo , a experiência
da paixão e do amor. Qohélet estaria recomendando a homens e mulheres que
descobrissem juntos, através de uma relação de amor, aquilo que há de melhor na
vida. Com isso se pode começar a viver uma vida nova. Digamos que ele redes-
cobre novidade em coisas que não eram exatamente novas, mas cujo valor trans-
cende uma percepção árida da vida como mera repetição de processos naturais ou
sucessão de eventos indiscriminados, fadada a desaguar no vazio da morte.
Pedro Kramer propõe-se a abordar “O novo na liturgia do Deuteronômio”
e pergunta se uma liturgia centralizada pode ser libertadora. As causas da cen-
tralização remontam a Ezequias (725-667 aC). Todas as coisas foram centrali-
zadas em Jerusalém: economia, política e cultura, além do culto. Outra causa
que legitimou a centralização, especialmente, da liturgia no templo de Jerusalém,
aconteceu durante o governo do rei de Judá, Josias (640-609 aC). É o retorno à
política nacional israelita e, principalmente, a volta ao Deus Iavé. Ela iniciou com
131

século VIII aC.


O novo que a liturgia deuteronômica criou é a romaria, a peregrinação e a
caminhada dos israelitas para o templo de Jerusalém. Todos eram convidados e
reinava a fraternidade, a solidariedade e a partilha. Isto acontecia nas grandes fes-
tas segundo o calendário litúrgico deuteronômico. A lei da centralização do dízi-
mo anual do trigo, do vinho e do óleo, prescrita em Dt 12,17 e regulamentada em
Dt 14,22-27, não foi abolida, pois era principalmente empregada para sustentar
os santuários locais e regionais e o pessoal do culto. O legislador deuteronômico
transformou a entrega do dízimo anual num meio de promoção da partilha e da
solidariedade entre pessoas socialmente fracas e legalmente dependentes, sem
mais haver empobrecidos e excluídos. Também a lei da centralização dos primo-
gênitos machos, prescrita em Dt 12,17 e 14,23 e regulamentada em Dt 15,19-23,
ordena que eles também não sejam entregues no santuário central a alguém e a
uma instituição, mas apenas consagrados a Iavé, para favorecer a partilha e a
solidariedade entre os empobrecidos e excluídos.
Esta alegria na oferenda dos sacrifícios e na celebração das festas, no entan-
to, só é completa quando todos os israelitas participam das refeições comunitárias
diante de Iahweh. Assim não há mais empobrecidos e excluídos, marginalizados
e oprimidos na sociedade israelita. Primeiramente e antes de tudo, deve-se des-
tacar que, segundo os liturgistas deuteronômicos, a presidência da oferenda de
sacrifícios, de todas as festas e de todas as celebrações no templo de Jerusalém é
função e tarefa não de sacerdotes, mas sim do povo israelita; então as mulheres
também podem exercer essa função. Tudo aparece extremamente novo.
Romano Dellazari procura o novo no Saltério e aponta que apenas seis ve-
zes é usado o sintagma “cântico novo” nos Salmos, ao lado de Is 42,10. As seis
passagens bíblicas são analisadas para mostrar, respeitando o contexto literário e
sempre que possível o contexto histórico, que elas não são apenas a repetição de
algo do passado, mas são sempre realidades novas e atuais.
O contexto do Sl 40,4, onde diz: “Pôs em minha boca um cântico novo,
louvor (te
pelas numerosas maravilhas realizadas. O contexto tem tudo a ver com o pós-exí-
lio. O louvor dirige-se a Deus mediante a irrupção do novo. Essa é também uma
palavra profética, haja vista que quem fala em nome de Deus é profeta, ou seja, é
Deus quem põe sua palavra na boca do profeta.
Outro lugar onde se encontra o sintagma “cântico novo” é no primeiro ver-
sículo dos Sl 96 e 98. Esses “cânticos novos” são a prova da esperança de Israel
que se orienta em direção à soberania visível e palpável de Iahweh, onde se ma-
nifesta a implantação seu poder sobre todo o mundo e visa a uma radical liberta-
ção e transformação do momento presente com a participação de todos os povos
nessa salvação.
132

O Sl 33 é um “hino”. Nesse salmo, no v. 3 aparece o sintagma “cântico


novo”. Esse salmo louva Iahweh por aquilo que é, ou seja, a retidão de sua pala-
vra, seu amor pela justiça e o direito, a criação pela palavra etc. O cântico não é
novo em relação ao tempo, mas é um cântico supremo, compêndio de todos os
cânticos, e está além do tempo e do espaço. É um cântico ao Salvador cósmico
(cf. Sl 103,5.8.13) e histórico (v. 8.10.12-16); é um cântico que ritualiza no pre-

divino na história.
Dentro dos “hinos”, o sintagma aparece também no Sl 144: “eu canto a ti um
cântico novo” (Sl 144,9). São as esperanças espelhadas na revolução macabaica.
O salmo que, por último, contém o sintagma “cântico novo” é o Sl 149.
Como o Sl 144, apesar de que o salmo possa ter seu pano de fundo na época de
Neemias onde se diz: “com uma das mãos cada qual fazia o seu trabalho, e com
a outra segurava uma arma” (Ne 4,11), pensa-se que a época mais certa para am-

O “cântico novo” sugere uma nova era. De fato o Sl 137 deixara transpa-
recer o quanto era odioso recitá-los fora de Jerusalém. A volta à pátria, após o
exílio, permitira novamente cantá-los agora como um “cântico novo”. A catás-
trofe do ano 586 aC comporta a cessação de cânticos (antigos) e que novamente
são cantados após o período de silêncio do exílio. Isso faz jus ao fato de que seja
um “cântico novo” e que ele celebre de modo especial a antecipação da vitoriosa
intervenção de Deus prevista para o futuro, não somente para Israel, mas para
todos os seres do universo.
Este número termina com o texto de Cássio Murilo Dias da Silva que se

Testamentos: Antigo/Novo ou Primeiro/Segundo Testamento? O artigo elabora


um mosaico crítico do que está envolvido e avalia se a mudança tem fundamentos
exegéticos e teológicos.
Cássio aborda as relações entre os dois Testamentos, o que a termino-
logia tem a ver com os conceitos de revelação e inspiração e a diferença entre
Palavra de Deus e Escritura. Encontram-se implicadas razões intrínsecas e extrín-
secas à Escritura neste debate por ele exposto. Por exemplo, Jesus e a Escritura

a validade do Antigo Testamento antes de Jesus e em relação ao Novo Testamen-


to? Observa-se que Jesus é a plenitude da Revelação; o Novo Testamento, não.
O Novo Testamento isoladamente não é a plenitude (e muito menos a totalida-
de) da Palavra de Deus, nem da Sagrada Escritura, nem da revelação. O Antigo
Testamento é inspirado (cf. 2Tm 3,16), mas em que sentido e em que extensão,
considerando o cânon judaico de então? Qual dos dois Testamentos depende do
outro? Como Jesus põe-se na legitimação do Antigo Testamento ou como o An-
133

tigo Testamento legitima/elucida Jesus? O Antigo Testamento se tornou Palavra


de Deus só depois do Novo (ou, se alguém preferir, só depois de Jesus), ou já era
Palavra de Deus antes? O Antigo Testamento já era inspirado antes de Jesus ou se
tornou só depois dele?
O debate é complexo e sinuoso, e mesmo muito rico na exposição. Cássio
conclui que é necessário reconhecer: a
favor da mudança e, portanto, a escolha da nova terminologia é algo subjetivo e

Por isso – e aplicando o mesmo reivindicado por quem


advoga o uso de “primeiro” e “segundo” –, até que se encontre um argumento

quem prefere a nova convenção e quem prefere a convenção tradicional terão de


conviver e respeitar a liberdade da escolha do outro.
O “NOVO” EM PAULO

Resumo

Palavras-chave:

Abstract

* Flávio Schmitt é doutor em Ciências da Religião pela UMESP, professor nas Faculdades EST em São Leo-
poldo, RS. E-mail: [email protected].

ISSN 1676-4951 Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 135-147, abr/jun 2015
136 Flavio Schmitt

-
-

Keywords:

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A sociedade global necessita da novidade. No mundo das mercadorias e do

imperativo do mundo do consumo. A novidade é o sinal da atualidade. Quem


não tem nenhuma novidade para apresentar, nada tem a oferecer. A novidade é o
caminho de acesso ao consumo.
Um espaço onde a novidade é sintomática é o horizonte do marketing. O
marketing vive de novidade. Sem novidade, não há lugar para o marketing. Tanto
a propaganda quanto a publicidade estribam sua razão de ser na novidade que
anunciam ou vendem. A marca da propaganda é a novidade. Nesse sentido, a
novidade age no terreno da ideologia.
Além desse terreno essencialmente marcado pela ideologia do consumo, há
também um território demarcado pela natureza dos produtos. Quando o assunto é
produto, então a lógica invoca a inovação. A inovação é a marca das mercadorias

acompanhar o ritmo frenético da produção e comercialização de mercadorias e


serviços, inovação é o caminho. O mercado necessita da inovação.
Embora novidade e inovação sejam dois conceitos extremamente oportunos
para a compreensão e interpretação do mercado, o mesmo não se pode dizer da
vida. No âmbito das relações que se estabelecem com as coisas, inovação e novi-
dade têm o seu lugar garantido. Contudo, quando o assunto diz respeito à pessoa,
já não é mais possível dizer o mesmo. O que melhor caracteriza a natureza do ser
humano é o novo.
Este artigo se ocupa em tematizar a inovação, a novidade e o novo. Ten-
do em vista a importância do novo na Bíblia, especialmente no Novo Testamen-
to, particularmente em Paulo, o foco será o novo nos escritos e pensamento
do apóstolo.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 135-147, abr/jun 2015


O “Novo” em Paulo 137

1. DEFININDO CONCEITOS
O com cinco

se vê pela primeira vez, alteração inesperada no andamento regular das coisas,


coisa rara; raridade”1.. -
sitado, não corriqueiro, não normal. Trata da qualidade de que algo ou alguém
seja portador.
Para o substantivo feminino inovação, este mesmo dicionário apresenta
2
. Aqui está presente
a dimensão da ação. Inovação tem como característica o fato de inovar na ação.
Do ponto de vista etimológico, inovação é um termo derivado do latim in-
novatio e pode se referir a uma ideia, objeto ou método que se distingue dos
padrões anteriores.

que é aplicado. Para Christopher Freeman, inovação é o processo que inclui as


atividades técnicas, concepção, desenvolvimento, gestão e que resulta na comer-
cialização de novos (ou melhorados) produtos, ou na primeira utilização de no-

potenciar e ser motor de competitividade”3. No meio corporativo empresarial,


inovação está associada ao sucesso. “Sucesso para as empresas, por exemplo, sig-

de lucro, entre outros benefícios”4.


As inovações tecnológicas sempre estão relacionadas com produtos e pro-
cessos. “Para que uma inovação seja caracterizada como tal é necessário que

mercado, na receita da empresa etc.”5.

1. Novidade. Aurélio, dicionário on line de Português. Disponível em: <http://www.dicionariodoaurelio.com/


novidade>. Acesso em: 10.10.2014.
2. Inovação. Aurélio, dicionário on line de Português. Disponível em: <http://www.dicionariodoaurelio.com/
inova%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 10.10.2014.
3. Inovação. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Inova%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 10.10.2014.

Acesso em: 10.10.2014.

Acesso em: 10.10.2014.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 135-147, abr/jun 2015


138 Flavio Schmitt

Existem basicamente dois tipos de inovação: Inovação de produtos e inova-

produto através de uma mudança na forma como é percebido pelos consumido-


res. Na inovação de processos, há uma mudança no processo de produção de um
produto (do químico para o orgânico, por exemplo) ou no serviço6.

especialmente no consumidor; na inovação de processos e serviços, o impacto


-
tividade e redução de custos.

seu impacto. No que diz respeito ao objeto focal, ocorre quando há mudanças no
modelo de negócio, na forma como determinado produto ou serviço é oferecido
ao mercado. “Não implica necessariamente em mudanças no produto ou mesmo
no processo de produção, mas na forma como ele é levado ao mercado”7.
O grande segredo da inovação está relacionado com a vantagem que o
protagonista da inovação passa a desfrutar em relação aos concorrentes. As
“inovações são capazes de gerar vantagens competitivas a médio e longo prazo,
inovar torna-se essencial para a sustentabilidade das empresas e dos países no
futuro”8. Inovar é a palavra de ordem para enfrentar o cenário competitivo.
novo contem-
pla as seguintes possibilidades: “Que existe há pouco tempo; acabado de fazer.
Moço, de pouca idade. Que é dito, tratado, visto pela primeira vez”. Para o subs-
tantivo masculino
velho e o novo se confrontam”9.
Novo diz respeito a algo que não era conhecido até então. Algo é novo por
existir há pouco, por começar a ser. Novo também está relacionado com algo que
se vê ou ouve pela primeira vez.

Acesso em: 10.10.2014.

Acesso em: 10.10.2014.

Acesso em: 10.10.2014.


9. Novo Dicionário on line de P ortuguês. Disponível em: <http://www.dicio.com.br/novo/>. Acesso em:
10.10.2014.

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O “Novo” em Paulo 139

2. O NOVO EM PAULO

Paulo é um cidadão de três mundos. Viveu no primeiro século da era cristã.


-
do grego e do mundo romano. Por sua vez, cada um destes mundos, no sentido
macro, tem um correspondente num âmbito micro. No mundo judaico, Paulo
experimenta esta realidade como judeu da diáspora, depois como discípulo do
-
na a Paulo, entre outras coisas, a oportunidade de se expressar nesta língua. O
mundo romano, por sua vez, é percebido por Paulo a partir do lugar de quem não
participa das estruturas de poder do império. Além disso, Paulo vive num mo-
mento particular do período de domínio romano, seja sobre a Palestina seja sobre
as demais regiões onde as comunidades cristãs passaram a ser constituídas10.
Por conta deste horizonte, não basta dizer que Paulo é resultado de um mo-
mento histórico. Tão importante quanto perceber os mundos que compõe a pai-
sagem existencial de Paulo, é preciso perceber o lugar a partir de onde Paulo se
situa neste cenário. E aqui reside um detalhe: nem sempre temos acesso direto ao
lugar concreto a partir de onde Paulo compreende a vida e o mundo. Seguro é o
fato de Cristo ter transformado sua vida radicalmente.
Este dado objetivo impõe a Paulo uma releitura de sua história pessoal, das

vida com os quais está comprometido.


É neste contexto de abertura para o futuro que devemos contextualizar o
sentido atribuído por Paulo ao conceito de novo em seus escritos. Para o apóstolo,
o novo se constitui efetivamente e mal do radicalmente sui generis, não obstante
sua genealogia ligada ao passado. Em Paulo, novo e passado comungam de um
mesmo horizonte de sentido. É como tirar coisas novas de um baú (Mt 13,44-52).

A palavra ‘novo’ aparece quatro vezes nas cartas consideradas autênticas


de Paulo (1Cor 11,25; 2Cor 5,17(2x); Gl 6,15. Nas cartas deuteropaulinas, cinco
vezes (Ef 2; 15; 4,24; Cl 3,10; Hb 9,15 e 10,20).
Os dicionários costumam traduzir a palavra “kainé” por “novo, nova”. Con-
tudo, o “kainé” da língua grega desempenha mais que a função de um sim-

10. O ser romano não era exclusivamente título de que nasceu na cidade de Roma, mas uma condição daqueles
que viviam sob o domínio, normas e cultura do império. Cf. DIAS, Agemir de Carvalho. :
Introdução às teorias Sociológicas sobre o Fenômeno Religioso. São Paulo: Paulinas, 2012, p. 96.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 135-147, abr/jun 2015


140 Flavio Schmitt

como adjetivo, um adjetivo com funções substantivadas.

2.2.1 O “novo” nas Cartas Autênticas


a. 1 Coríntios 11,25

(1Cor 11,25).

O primeiro uso que Paulo faz da palavra “kainé” aparece no contexto da


eucaristia. Paulo entende estar transmitindo o que também recebeu. Sua fonte
é a prática da própria comunidade. Ao fazer memória da vida e morte de Jesus,
recorre à narrativa aqui apresentada pelo apóstolo.
Nesta passagem Paulo faz uma clara distinção entre nova e antiga aliança.
O sentido da palavra “novo” é determinado pela palavra “antiga”. Para entender
a “nova” aliança é preciso considerar a “antiga” aliança.
Por aliança subentende-se um pacto, um acordo. Trata-se de um entendi-
mento bilateral. Tanto a antiga quanto a nova aliança são estabelecidas por Deus.
-
metem à obediência aos mandamentos. A nova aliança aponta para “as condições
da fé e da perseverança, da transformação voluntariamente aceita segundo a ima-
gem de Cristo, o que ocorre através da ação de um ser, através do poder atuante
do Espírito Santo” (CHAMPLIM, 1998a, p. 182).
Chama atenção que a palavra não aparece nos evangelhos sinóticos. Paulo,
contudo, distingue nova e antiga aliança. Não apenas distingue, mas destaca o
contraste entre as duas alianças. Tanto na antiga quanto na nova, a aliança é esta-
belecida com Deus11.
No Novo Testamento, a ideia de “nova” contida na palavra grega

questão não é discutir o melhor sentido para o substantivo aliança ou testamento,


mas destacar a sua qualidade de nova, novo.
Outrossim, a aliança é estabelecida com Deus, ... Não obstante, essa nova
aliança é igualmente um novo “testamento”, porquanto, através da morte,

11. Champlin chama atenção para a passagem de Lucas 22,20. Na compreensão do autor, “No trecho de Lc
22,20 essa palavra aparece na maioria dos manuscritos e traduções; mas isso pode ter sido feito para obtenção
de harmonia com a presente passagem, podendo não ter feito parte original do evangelho de Lucas. (Ver as notas
textuais ali). É provável que a palavra ‘nova’ seja uma adição feita pelas igrejas, embora se trate de uma verdade
bíblica. E também é possível que tenha sido uma adição lucana à tradição sinóptica, e não uma adição escribal”
(CHAMPLIM, 1998a, p.182).

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O “Novo” em Paulo 141

-
damente chamados de seus herdeiros (CHAMPLIM, 1998a, p. 182).

Quando fala de aliança, é provável que Paulo tenha em mente a nova alian-
ça a ser estabelecida em Israel pelo messias e anunciada pelos profetas, espe-
cialmente por Jeremias (31,31-34). Esta nova aliança deveria suplantar a antiga.

inteira. Ela será nova para Israel, mas também será nova para toda humanidade,
uma vez que nela está presente uma nova forma de salvação, mediante participa-
ção na natureza divina por meio de Jesus Cristo.

a. 2 Coríntios 5,17
-
(2Cor 5,17)

Em 2Cor 5,11–6,10, Paulo fala do Ministério da Reconciliação. Este é um


dos temas centrais do pensamento do apóstolo. Para Paulo, reconciliação é a
transformação operada pelo Espírito de Deus.
É preciso destacar que a tradução da palavra pode ser criação ou
criatura. Além de designar o ato divino (criação), designa também o produto da
criação (criatura).
O termo grego “ktisis”, traduzido aqui por “criatura”, tem três usos di-
versos nas páginas do NT, a saber: 1. O “ato de criar”, em Rm 1,20; 2. A
“súmula das coisas criadas”, em Ap 3,14 e Mc 13,19; e 3. Uma “coisa ou
criatura criada”, em Rm 8,39. Dentro da literatura rabínica, a expressão é
usada para indicar um homem convertido da idolatria. “Aquele que traz
um estrangeiro e o torna um prosélito é como se o tivesse criado”. (Ra-
bino Eliezer). Essa é igualmente a ideia aqui expressa por Paulo, embora
mediante expressões místicas, indicada por “em Cristo” (CHAMPLIM,
1998a, p. 348).

Ao falar em “nova criatura”, Paulo está se referindo à verdadeira conversão


efetuada por Jesus na vida de seus seguidores. O ser “nova criatura” pode ser
compreendido como um processo de regeneração semelhante a uma nova cria-
ção. O que está em jogo para o ser da “nova criatura” reside no “experimentar a
força do ato criativo do Espírito Santo”. Na “nova criatura” está presente o pro-
cesso de intervenção divina (CHAMPLIM, 1998a, p. 348).
Se na linguagem rabínica “nova criatura” diz respeito ao ser levado ao co-
nhecimento de Deus, para Paulo a
“nova criação” consiste da formação da natureza essencial de Cristo no ser
do homem, de tal modo que um indivíduo venha a participar da verdadeira

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142 Flavio Schmitt

natureza de Cristo, e, por conseguinte, da divindade (cf. Cl 2,10). Tra-


ta-se de uma autêntica nova criação, sendo esse o mais elevado conceito
do evangelho (CHAMPLIM, 1998a, p. 348).

b. Gálatas 6,15

(Gl 6,15)

A carta de Paulo aos Gálatas discute a questão da liberdade em Cristo. Em


Gl 5,1–6,18, o apóstolo trata da responsabilidade diante do sistema da graça. Para
os judeus, as palavras de Paulo soam como uma verdadeira afronta. Tudo o que
tinha vigência desde o pacto abraâmico, cujo símbolo principal era a circuncisão,
agora perde sua razão de ser diante da nova perspectiva apresentada por Cristo
(CHAMPLIM, 1998a, p. 522).
A relativização da circuncisão como critério de fé e pertencimento ao povo
de Deus, coloca o ser “nova criatura” como nova condição de inclusão no se-
guimento ao Cristo. Ao acolher e “aderindo a Jesus Cristo, nos tornamos ‘nova
criatura’, e nos colocamos no mundo como embaixadores de Cristo e do Pai”
(GIAVINI, 1987, p. 109).

2.2.2 O “novo” nas Cartas Deuteropaulinas


Os textos deuteropaulinos que tratam do novo são Efésios 2,15 e 4,24; Co-
lossenses 3,10; Hebreus 9,15 e 10,20.

a. Efésios 2,15

paz (Ef 2,15).

O v. 15 faz parte da unidade que compreende Ef 2,13-18. Ao iniciar com a


expressão “mas agora” (v. 13), a passagem reforça o contraste entre a antiga e a
nova vida. Antes, a antiga vida era sem Cristo. Agora, a nova vida é em Cristo.
O sangue de Cristo estabelece uma nova relação entre judeus e gentios.
Cristo é o instrumento de reconciliação entre Deus e os humanos. Na sua car-
ne cumpriu a lei por nós. Cristo desfez a inimizade entre judeus e gentios. De
dois povos, fez um só. A animosidade deu lugar à fraternidade. A legislação
mosaica foi abolida. Cristo desfez toda a condenação da lei. Agora vale a lei
do espírito de vida (Rm 8,2). Ao operar a libertação da lei, Cristo promove a
verdadeira unidade.

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O “Novo” em Paulo 143

A unidade de dois povos feita por Cristo cria uma nova humanidade. A nova
criação acontece com a obra regeneradora do Espírito Santo (Tt 3,5). Esta nova
criação, “novo homem”, é o povo de Deus reunido na Igreja. O “novo homem”
está amarrado com Cristo e com a comunidade. Existe numa “comunhão mística
com Cristo, possibilitando a unidade e conferindo vida a essa unidade, a saber, a
própria vida de Cristo” (CHAMPLIM, 1998a, p. 567).
O novo não é nem judeu nem grego, mas vale tanto para o indivíduo quanto
para a comunidade. Nas palavras de Efésios, aqui na terra é apenas um peregrino,
pois é cidadão dos céus (Fl 3,20). “O novo homem traz a imagem do ‘homem
celestial’, Cristo Jesus, e não mais a imagem do homem terreno, ‘Adão’. O novo
homem foi elevado acima de Adão, em cuja natureza impera a contenda e a divi-
são”. O novo homem é a comunidade dos crentes, a igreja, considerada como o
corpo de Cristo (CHAMPLIM, 1998a, p. 568).

(Ef 4,24).

O capítulo 4 trata da dimensão prática da vida cristã. Depois de falar dos

novo, da nova conduta, do novo ser criado à imagem de Deus. Para que o novo
homem tenha lugar é preciso abandonar o velho homem (v. 22). Aqui o novo
“se aplica ao crente individual, referindo-se à ‘natureza regenerada’, ao ‘homem
remido’, ao ‘homem convertido’, ao ‘homem regenerado’, ‘à nova natureza’”
(CHAMPLIM, 1998a, p. 610).
Aqui há uma semelhança com 2Cor 5,17, pois aqueles que estão em Cristo
são nova criação. O novo é o ser humano regenerado, liberto da corrupção. É
novo por ter se tornado partícipe da vida e da natureza divina (2Pd 1,4; Cl 3,3).
Não se trata do velho renovado ou do velho reformado, mas do ser humano re-
generado. O novo homem é Cristo ‘formado’ no crente (Gl 2,20; 4,19; Cl 1,27).
O novo homem é imagem do Criador. “... Portanto, o ‘novo homem’ é ‘vestido’,
mas não por sobre o ‘velho homem’, pois este é ‘despido’”. Por compartilhar a
imagem e natureza de Cristo, é nova criação. O novo está revestido da justiça e
santidade (CHAMPLIM, 1998a, p. 610).

b. Colossenses 3,10

perfeito (Cl 3,10).

O texto de Cl 3,10 pode ser confrontado com a passagem de Rm 13,14 “...


mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e nada disponhais para a carne, no tocan-
te às suas concupiscências” e o próprio texto de Ef 4,24 (CHAMPLIM, 1998b,
p. 139). Efésios fala em vestir. Romanos, como Colossenses, fala em revestir.

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144 Flavio Schmitt

O verbo grego “renovar” ( ) somente é empregado por Paulo (Rm


12,2; Tt 3,5). Expressa o ato de inaugurar, de começar algo novo.
“O revestir-se do ‘novo homem’ é receber a regeneração, o que é o meio
de adquirirmos a própria imagem de Cristo” (Rm 8,29). O revestir consiste num

por meio da qual a Imagem de Cristo é implantada no ser humano. O ‘novo ho-
mem’ é Cristo que se vai formando no crente, a ‘nova criação’” (CHAMPLIM,
1998b, p. 140).

c. Hebreus 9,15

-
(Hb 9,15).

Na carta aos Hebreus a palavra ‘novo’ aparece no contexto de Hb 8,1–10,39,


onde além do tema central (Hb 8,1–9,28), esta homilia trata do tema do perdão
dos pecados (Hb 10,1-18) e da exortação (10,19-39).
Aqui o tema da “nova aliança” vem reforçar o argumento da melhor aliança.
Nesta passagem o termo grego , mais que aliança, desempenha função
de testamento, pois “exige a morte do testador para que se cumpra, para que os

herdeiros enquanto não falecer o testador” (CHAMPLIM, 1998b, p. 585).

d. Hebreus 10,20

(Hb 10,20).

mesmo fez o caminho. Ele é o pioneiro do caminho. Ele é o primeiro a cami-


nhar. Como ser humano, aprendeu lições acerca do “andar santo, da transfor-
mação espiritual”.
A palavra ‘novo’ já está presente no verbo enekainesen (inaugurou). Aqui o
novo não é expresso com a palavra kainé, mas com o termo prosphatos, “cuja de-
rivação parece ser do termo ‘pephamai’, forma perfeita de ‘phenein’, isto é, ‘ma-
tar’; portanto, originalmente, o termo indicava ‘recém-morto’” (CHAMPLIM,
-
tar para outra direção, para a novidade, para o acontecimento, para o fato de ser
consumado pela primeira vez.
Em certo sentido, Cristo é o “pioneiro” do caminho, e não apenas o próprio
caminho. Na qualidade de homem, foi-lhe necessário limitar-se aos meios huma-

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O “Novo” em Paulo 145

nos para achegar-se a Deus; e assim aprendeu muitas lições acerca da natureza do
andar santo, da transformação espiritual.
O caminho é novo por ter sido recentemente aberto, do ponto de vista dos
leitores originais. Também é ‘novo’ em contraste com o ‘antigo’ caminho
do sacerdócio levítico; e é igualmente ‘novo’ em contraste com a ideia de
‘nenhum caminho’, pois somente o caminho neotestamentário realmente é
caminho para Deus (CHAMPLIM, 1998b, p. 603).

Hebreus deixa claro que não há escolha entre o caminho antigo e o novo
caminho. Não é assim que ambos conduzam para o mesmo lugar. Pelo contrário,
o caminho antigo conduz numa direção, o caminho novo conduz a Cristo. Não
se trata de uma questão de método, mas de opção. O novo eliminou o antigo. O
verdadeiro caminho é novo e nunca perderá seu prazo de validade. Será eterna-
mente novo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A primeira conclusão que a análise do termo “novo” em Paulo permite des-


tacar é que há uma diferença abismal entre o evangelho do mercado e o evangelho
de Paulo. No discurso do evangelho do mercado predomina o campo semântico
da novidade e da inovação, voltada para o consumo e para o lucro. No evangelho
de Paulo, o campo semântico aponta para uma mudança radical, onde o novo
passa a ser o elemento constitutivo da existência diante das velharias da vida.
Tanto nas cartas autênticas quanto nos escritos considerados deuteropauli-
nos, o contexto em que o termo “novo” é empregado é variável. Contudo, Paulo
tem claro qual o sentido do novo em suas palavras.
Em primeiro lugar, o novo sempre está relacionado com Jesus. O novo é

ares. Nele tudo se renova. Agora não é mais possível ver as coisas como sempre
foram vistas e percebidas. Jesus inaugura um novo tempo, uma nova maneira de
ver a vida e as coisas. O novo impõe uma releitura de tudo que até então havia
sido anunciado em termos de relação de Deus com seu povo.
Em segundo lugar, o novo exige renovação. A lei, a aliança, o mandamento
e o ser humano não podem continuar desempenhando o papel que desempenha-
ram antes de Cristo. Cristo é o divisor de águas entre o novo e o antigo. Agora é
o novo quem dita as regras do jogo da vida.
Da análise das passagens das cartas autênticas onde Paulo emprega o termo
novo pode-se concluir que Paulo confere grande destaque ao ser nova cria-
tura, nova criação. Nisso reside a essência do novo: na capacidade de renovar,
regenerar o ser humano.

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146 Flavio Schmitt

Paulo insiste na necessidade de ser nova criatura em Cristo para correspon-


der ao propósito de Deus. Ninguém que não tenha deixado de ser o velho Adão
pode verdadeiramente ser considerado uma nova criatura.
Paulo recorre aos termos “novo” e “nova” para expressar uma realidade
totalmente diferente de tudo o que até então era dado a conhecer acerca do ser
humano e de sua perspectiva de salvação.
Do novo inaugurado por Cristo nasce o novo povo de Deus, o novo ser hu-
mano e a nova comunidade. Esta nova realidade inaugurada pelo novo impõe um
novo patamar de relações do ser humano com Deus e dos seres humanos entre si.

determinar as relações.

ser humano renovado à imagem de Deus constitui-se em santidade e justiça. Seu


destino é “alcançar um conhecimento cada vez mais perfeito”. Seu caminho é o
caminho novo consagrado por Cristo. Trata-se de um caminho, novo e vivo, sem-

na medida em que desempenha a função de ser sempre de novo o novo que brota
do Cristo.

inovacao/a-inovacao/>. Acesso em: 10.10.2014.


BÍBLIA. Português. CNBB. CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO
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O “Novo” em Paulo 147

GIAVINI, Giovanni. : liberdade e lei na Igreja. São Paulo: Paulinas, 1987 (Peque-
no comentário bíblico).
MESTERS, Carlos. Paulo apóstolo: um trabalhador que anuncia o Evangelho. São Paulo:
Paulinas, 1991, 143 p. (Por trás das palavras).
Novidade. Aurélio, dicionário online de Português. Disponível em:
<http://www.dicionariodoaurelio.com/novidade>. Acesso em: 10.10.2014.
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POHL, Adolf. . Curitiba: Editora Evangélica Esperança, 1999 (Co-
mentário esperança).
PRIETO, Christine. : a pregação do Evangelho no mundo gre-
co-romano. São Paulo: Paulus, 2007 (Bíblia e sociologia (Paulus).

Rua Borges de Medeiros, 418


93030-200 São Leopoldo, RS

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E VÓS, QUEM DIZEIS QUE EU SOU?

Resumo

.
Palavras-chave:

Abstract

Keywords:

Introdução
Em geral, os autores quando comentam sobre esse texto bíblico, dão ên-

-
zer que Jesus é Cristo? Qual é a impressão que fazemos dos outros? Em muitas
ocasiões descrevemos quem são os outros, mas na maioria das vezes essas im-
pressões não correspondem à realidade. Por esse motivo, criamos preconceitos,

Grupo de Pesquisa sobre Intolerância Religiosa, Educação e Direitos Humanos. Professor do Programa de
Pós-graduação do Centro Universitário Metodista – IPA de Porto Alegre.
** Mestre em Teologia pela Escola Superior de Teologia em São Leopoldo, RS.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
E vós, quem dizeis que eu sou? 149

discriminações e barreiras. É necessário conhecer o outro a partir de sua própria


descrição. O conhecimento do outro por si mesmo não traz aproximação. Faz-se
necessário uma postura de abertura, acolhimento e respeito.

Texto: Marcos 8,27-301


27. Jesus saiu com seus discípulos para as aldeias de Cesareia de Filipe. No
caminho, perguntou aos seus discípulos, dizendo-lhes: “Quem os homens dizem
que eu sou?”
28. Eles, então, disseram-lhe: “João Batista; outros Elias; outros ainda, um
dos profetas”.
29. E ele lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Respondendo,
Pedro lhe disse: “Tu és o Cristo”.
30. Então, repreendeu-os para que a ninguém dissessem nada a seu respeito.

Crítica Literária
Marcos 8,27-302 Mateus 16,13-20 Lucas 9,18-21
27. Jesus saiu com seus dis- 13. Chegando, então, às re- 18. E aconteceu que, enquan-
cípulos para as aldeias de giões de Cesareia de Filipe, to Jesus estava rezando sozi-
Cesareia de Filipe. No ca- Jesus perguntou ao seus nho, seus discípulos estavam
minho, perguntou aos seus discípulos, dizendo: Quem com ele, e ele lhes perguntou,
discípulos, dizendo-lhes: os homens dizem que o Fi- dizendo: Quem as multidões
“Quem os homens dizem lho do Homem é? dizem que eu sou?
que eu sou?”

14. Eles então disseram: Al- 19. Eles, então, responden-


28. Eles, então, disseram- guns João Batista; outros, do, disseram: João Batista;
lhe: “João Batista; outros Elias; outros ainda, Jere- e outros, Elias; outros ainda,
Elias; outros ainda, um dos mias ou um dos profetas. que um dos antigos profetas
profetas”. ressurgiu.

15. Ele lhes disse: E vós,


29. E ele lhes perguntou: quem dizeis que eu sou? 20. Mas ele lhes disse: E vós,
“E vós, quem dizeis que eu quem dizeis que eu sou?
sou?”
Pedro, então, respondendo,
16. Respondendo, então,
Respondendo, Pedro lhe disse: O Cristo de Deus!
Simão Pedro disse: Tu és
disse: “Tu és o Cristo”.
o Cristo, o Filho de Deus
vivo.

1. Estamos utilizando a tradução realizada por: SILVA, Cássio Murilo Dias; RABUSKE, Irineu J.
. Novíssima tradução dos originais. São Paulo: Loyola, 2011.
2. Tradução realizada por: SILVA, Cássio Murilo Dias; RABUSKE, Irineu J. ,
2011.

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150 Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva

Marcos 8,27-30 Mateus 16,13-20 Lucas 9,18-21


30. Então, repreendeu-os 17. Mas, respondendo, Je- 21. Então, repreendendo-os,
para que a ninguém disses- sus lhe disse: Bem-aven- ordenou que a ninguém
sem nada a seu respeito. dissessem isso.
de Jonas, porque a carne e
o sangue não te revelaram
isso, e sim meu Pai que está
nos céus!
18. Mas eu então te digo:
Tu és Pedro e sobre esta ro-
-
ja, e as portas da mansão
dos mortos não prevalece-
rão sobre ela.
19. Eu te darei as chaves
do Reino dos Céus: o que
porventura ligares na terra
estará ligado nos céus, e o
que porventura desligares
na terra estará desligado
nos céus.
20. Então recomendou aos
seus discípulos que a nin-
guém dissessem que ele
era o Cristo.

O núcleo comum da história mostra que Jesus faz uma pergunta para os seus
discípulos procurando descobrir o que as pessoas dizem acerca dele (Quem dizem
que eu sou?). A resposta a esta pergunta se apresenta de forma semelhante nos três
evangelhos: “João Batista, Elias ou um dos profetas”. Em seguida Jesus faz outra
pergunta querendo saber o que os discípulos pensam a respeito dele. A pergunta
aparece de forma igual nos três evangelhos: “E vós, quem dizeis que eu sou? O

-
cionado, esse é o núcleo comum nos três evangelhos. A partir daí temos também as
variações ou informações comuns a dois evangelhos ou a apenas um deles.
Vejamos então quais são essas variações e diferenças. Somente Mateus traz
a resposta de Jesus a Pedro, fazendo uma longa consideração sobre ele. Diz que a

chaves do Reino e poder para ligar e desligar o que quiser aqui na terra, uma vez
que teria a aprovação dos poderes celestiais.

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E vós, quem dizeis que eu sou? 151

Quanto à localização na qual os discípulos estavam quando foi feita a per-

que estavam chegando em Cesareia de Filipe e Lucas apenas diz que Jesus estava
rezando ou orando com seus discípulos. Em relação à primeira pergunta também
existem algumas divergências. Mateus e Marcos querem saber o que “os ho-
mens” dizem, enquanto Lucas quer saber a resposta da “multidão”. Mas há ainda
uma outra questão. Enquanto Marcos e Lucas querem saber o que os homens ou
a multidão pensam acerca de Jesus, Mateus introduz em sua pergunta um título,
ou seja, o que os homens dizem acerca do “Filho do Homem”. A resposta a esta
pergunta tem um núcleo comum, porém Mateus acrescenta o profeta Jeremias.
É provável que a expressão “o que os homens dizem que eu sou” esteja se
referindo às autoridades políticas e religiosas de Jerusalém. Os escribas e fariseus
haviam descido de Jerusalém (Mc 7,1) para ver de perto quem era Jesus e o que

também aos ouvidos de Herodes as histórias a respeito de Jesus (Mc 6,14), uma
vez que seu nome se tornava notório e alguns já diziam que ele era João Batista,
Elias ou um dos profetas. Parece-nos que Marcos está mais preocupado com a
opinião das autoridades. Ele deixa muito claro qual era a intenção dos fariseus e
herodianos. Após Jesus ter curado um em uma sinagoga, o evangelista informa

de destruí-lo (Mc 3,1-6; 11,18). Embora o evangelho de Marcos mencione várias


vezes que Jesus estava acompanhado pela “multidão”, é o evangelho de Lucas
que faz a pergunta para a multidão. “O que as multidões dizem que eu sou”?
Como vimos, a resposta a essa pergunta já havia sido apresentada para Herodes
(Mc 6,15).
Quando Jesus faz a segunda pergunta, desta vez buscando saber o que os
discípulos pensam a seu respeito, a primeira parte da resposta se apresenta de
forma comum a todos (Tu és o Cristo), porém na segunda parte Mateus acres-

Jesus repreendeu, recomendou e ordenou que não dissessem nada a seu respeito,
ou, como diz o evangelista Mateus, que ele não era o Cristo.
É estranha essa ênfase para que não se contasse nada a respeito de Jesus.
Desde o primeiro capítulo, Marcos mostra que a atividade de Jesus na Galileia
envolvia multidões, inclusive sua fama já havia se espalhado por toda a vizi-
nhança (Mc 1,28). Mas é verdade também que ainda no primeiro capítulo, após
curar um leproso, Jesus o adverte com severidade: “Não digas nada a ninguém”
(Mc 1,44). No capítulo cinco acontece o contrário. Após livrar um homem de um
espírito impuro, Jesus recomenda: “vai para tua casa, para junto dos teus, e conta
a eles o que o Senhor te fez e como teve misericórdia de ti” (Mc 5,19). Nesse

Jesus ordena que “ninguém tomasse conhecimento” (Mc 5,43).

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152 Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva

Cremos que o Evangelho de João, embora não fazendo parte dos sinóticos,
poderá nos ajudar nesta questão. Se levarmos em consideração a localização geo-
-

trazendo à tona as mesmas preocupações abordadas em nossos textos sinóticos.


Nos capítulos 6 e 7 do evangelho de João, Jesus aparece na Galileia. João
também levanta o mesmo problema a respeito da identidade de Jesus. Os judeus
estavam confusos, querendo saber quem era Jesus (Jo 6,41). Também muitos dos
seus discípulos o haviam abandonado (Jo 6,66). Talvez alguns discípulos aban-
donaram o movimento com medo da reação das autoridades judaicas ou porque
Jesus não correspondeu às suas expectativas. É provável também que o pedido
para manter o silêncio a respeito do movimento deu-se pelo fato de que Jesus ti-
nha consciência de que sua mensagem não estava sendo bem-vista ou aceita pelas
autoridades em Jerusalém.
Quando seus irmãos sugerem que ele não se esconda, mas apareça publi-
camente, Jesus argumenta que ele é alvo do ódio do “mundo” (Jo 7,1-9). Ele
sabia do perigo que corria, visto que alguns diziam: Não é este aquele a quem
procuram matar (Jo 7,25.30.32)? Da mesma forma que nos evangelhos sinóti-
cos, João demonstra que o povo o reconhecia como profeta e Cristo (Jo 7,40).

Deus” (Jo 6,69). Porém, o evangelista informa que havia uma divisão entre o
povo, os discípulos e as autoridades acerca do verdadeiro objetivo do movi-
mento de Jesus. “Uns diziam: ele é bom! Mas outros diziam: Não! Ao contrário,
ele engana a multidão” (Jo 7,12). Diante disso, e da provável perseguição que
já estava acontecendo, ninguém queria mais falar em público a seu respeito, por
medo dos judeus (Jo 7,13). Cremos, portanto, que isso explica o pedido para se
manter em silêncio.

Contexto Maior
O Evangelho de Marcos deve ter sido escrito, segundo Myers2, antes do ano
70 na Galileia. Ainda segundo este autor, há dois indícios que nos levam a pen-
sar nesta direção: Primeiro a forte crítica que Marcos faz ao templo indica que o
templo ainda estava de pé. Segundo que os escritos de Marcos demonstram que
os grupos revolucionários populares ainda estavam atuando. Kümmel sustenta

provenientes da gentilidade, que não têm mais ligação com Jerusalém”3.

2. MYERS, Ched. . São Paulo: Paulinas, 1992.


3. KÜMMEL, Werner Georg. . São Paulo: Paulinas, 1982, p.104.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


E vós, quem dizeis que eu sou? 153

Flávio Josefo descreve a Galileia como sendo um lugar muito povoado,


com cidades e vilas/aldeias. Composta de um povo valente e uma terra muito
fértil. Diz ele:
Embora essas duas províncias (Alta e Baixa Galileia) estejam rodeadas de
tantas e tão diversas nações, todavia, elas sempre lhes resistiram em todas
as suas guerras, porque, além de serem muito populosas, seus habitantes
são muito valentes e instruídos, desde a infância, na arte da guerra. As ter-
ras são tão férteis e tão bem plantadas com toda espécie de árvores, que sua
abundância convida a cultivá-las mesmo aqueles que têm pouca inclinação
para a lavoura e não há terras inúteis4.

No entanto, sabemos que era uma região conhecida e até mesmo denomi-
nada de Galileia dos gentios (Is 9,1). Ao que nos parece esse nome revela a com-
posição do povo que habitava essa região. Eram pessoas de diferentes etnias,
viviam nas montanhas e estavam fora da estrutura das cidades que dominavam
a área. A Galileia era uma terra de povos miscigenados, com culturas diferentes.
Os Judeus denominavam a Galileia de “terra dos gentios”. Assim sendo, não po-
demos dizer que Jerusalém, Samaria e Galileia compartilhassem de uma cultura
judaica comum5.
-
xa Galileia. Sua economia estava baseada na agricultura. Os camponeses não
tinham grandes propriedades e, além do mais, suas terras muito mal davam para
a subsistência, devido às taxas. Portanto, a comunidade de Marcos habita esse
contexto. Provavelmente era composta de trabalhadores do campo, pescadores
e artesãos. Pessoas simples. Marginalizadas devido a sua origem, sotaque e
prática religiosa6.

Contexto Menor
De acordo com Myers7, a segunda parte do Evangelho de Marcos vai de
8,22 a 16,8. Nesse bloco Jesus ainda se encontra na Galileia, mas a partir do ca-
pítulo 10 se desloca para Jerusalém. Muitos autores sugerem que nesse bloco a

e incompreensão com Jerusalém e os critérios e instruções acerca do Reino de

4. JOSEFO, Flávio. . Rio de Janeiro: CPAD, 1990, p. 91.


5. FREYNE, Séan. : Enfoques literários e investigação histórica. São Paulo:
Loyola 1996.
6. HORSLEY, Richard A. . Valley Forge: Trinity Press International, 1995.
7. MYERS, Ched, 1992, p. 149.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


154 Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva

Deus. Ao delimitar ainda mais esse bloco Myers situa o texto de Marcos 8,27-30
no conjunto que compreende um grupo de textos que vai de 8,22–9,308.
Ainda de acordo com Myers a primeira parte do evangelho corresponde a
6,1–8,21. Nesse bloco Myers constata que a pregação de Jesus já havia criado

chama atenção da comunidade para ter cuidado com o fermento dos fariseus e o
fermento dos Herodes (8,15)9. Suas pregações acerca do Reino de Deus e do ar-
rependimento já haviam gerado três ações de rejeição: “Pela sua cidade natal, os
apóstolos missionários pelas famílias que não quiseram hospedá-los e, sobretudo,
o “fermento de Herodes”, cujo desfecho é o assassínio de João Batista10.
Segundo Balancin11,“o Evangelho de Marcos foi escrito para responder a
seguinte pergunta: Quem é Jesus? Nesse sentido, esse Evangelho teria uma fun-
ção instrutiva e formativa”. Não é por acaso que este autor coloca o texto 8,27-30
dentro de um contexto que ele denominou de “formação dos discípulos”, que
segundo ele vai de 8,22 até o versículo 38.
Assim sendo, de acordo com esta visão, a intenção do evangelho era mani-
festar a mensagem de Jesus e sua verdadeira identidade a uma comunidade bas-
tante perturbada. “Ninguém tinha uma ideia clara quanto ao mistério da identidade
de Jesus, exceto os leitores a quem foi dito no prólogo que Jesus é o Messias”12.
Malloney divide a segunda parte do evangelho a partir de 8,27 a 10,52. Nes-
-
pulos e profere quatro discursos sobre o Reino de Deus. Parece que o evangelista
quer deixar claro o que é ser discípulo de Jesus”13. Collins e Tolbert14
esse bloco apresenta o tema da morte e sofrimento, enquanto 8,27 a 9,1 anuncia
que Jesus é o Messias15.

8. MYERS, Ched, 1992, p. 312.


9. MYERS, Ched, 1992, p. 260.
10. MYERS, Ched, 1992, p. 260.
11. BALANCIN, Euclides Martins. . Quem é Jesus? São Paulo: Paulus, 1991,
p. 109.
12. MALLONEY, Elliot C. . O Reino de Deus no Evangelho de Marcos.
São Paulo: Paulinas, 2008, p. 18.
13. MALLONEY, Elliot C, 2008, p. 61.
14. TOLBERT, Mary Ann. . Mark´s world in literary-historical perspective. Minneapolis:
Fort Press, 1984, p. 187.
15. COLLINS, Adela Yarbo. . Probings of Mark in context. Minneapolis: Augsburg
Fort Press, 1984, p. 62.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


E vós, quem dizeis que eu sou? 155

O texto que estamos analisando tem relação com as narrativas posteriores


e anteriores. Apresenta-se como um divisor. No texto anterior (8,15) há uma
advertência para que a comunidade tome cuidado com o fermento dos fariseus e

com que o seu pensamento possa se espalhar de forma muito rápida. A ideologia
do poder faz com que a realidade apareça bela e atrativa. Mas também tem o po-

a cura de um cego e a ordem para que não entrasse no povoado. Essa ordem pode

em que Jesus é apresentado como um dos profetas (Elias, João Batista). No texto
posterior (8,31–9,1) predomina o tema da perseguição, sofrimento e da decisão

todos sabem quem é ele e qual o seu projeto.


O movimento de Jesus já havia criado algumas tensões nas várias localida-
des por onde passou. As tensões não se restringiram somente ao grupo de seus
discípulos, pelo contrário, gerou preocupação na liderança político-religiosa. A
comunidade já havia experimentado, ouvido e visto o que os seus inimigos eram
capazes de fazer. Herodes mesmo faz questão de lembrar que ele havia mandado
matar o profeta João Batista (Mc 6,16).

gerados, era de se esperar que a comunidade apresentasse dúvidas sobre a iden-


tidade de Jesus e seu movimento. Na segunda parte do evangelho, o evangelista
vai se encarregar de dar essa resposta.
Diante desse processo de indecisões a respeito da identidade de um grupo
criam-se expectativas. É possível também que houvesse um movimento delibera-
-
mento de Jesus tenha sido difamado e malcompreendido. Mas é possível pensar
também que em muitas ocasiões os que exercem o poder político e religioso
sobre o povo, não querendo perder essa hegemonia e constatando o crescimento
e popularidade, lançam intencionalmente não somente uma perseguição, mas um
processo de desmoralização. Parece que falar mal do movimento se constituiu em

milagre em meu nome e logo depois possa falar mal de mim”.


Nesse sentido, a imagem que os adversários querem passar é a de que Jesus
-
dores, que não segue as determinações da religiosidade no que se refere à pureza
(Mc 7,1-22), que é contra o templo e que deseja tomar o poder (Mc 11,12-19), se
igualando desta forma à linhagem real de Davi. Se essa imagem correspondia à
verdade, então seus inimigos de fato tinham um motivo para declará-lo inimigo e
proclamar seu banimento. Portanto, diante disso, a pergunta: “Quem vocês dizem
que eu sou”, torna-se crucial.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


156 Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva

O que dizem sobre mim?

A principal questão desse texto é a seguinte: Quem os homens/multidões


dizem que eu sou? Nos dias atuais quando se lança uma novidade ou uma nova
mercadoria procura-se saber e conhecer a opinião da população sobre aquele

sentido, costuma-se perguntar: o que a opinião pública achou do produto? Depen-


dendo da receptividade, o produto continua no mercado ou se faz alguns ajustes
para atender as necessidades dos clientes.
No caso do movimento de Jesus não era essa a intenção que o levou a lançar
a pergunta. Ele não se coloca como um produto. Embora, muitos grupos religio-
sos atualmente estejam utilizando desse artifício, ou seja, moldam Jesus e sua
mensagem ao gosto do mercado e dos clientes. Jesus faz a pergunta interessado
em saber o que as pessoas, o povo, a multidão e os líderes pensam a seu respeito
e consequentemente a respeito de seu movimento. Mesmo porque, seja no modo
linear ou ocasional, Jesus ofereceu ao grupo mais íntimo e à multidão uma iden-

fazia. Não é sem razão que Jesus usa um cognome para falar de si mesmo: Filho
do Homem.
As lideranças que representam o poder e a hegemonia sempre estão interes-
sadas pela legalidade da ação ou do grupo. Para estes não basta ter reconhecimen-
to popular, é necessário ter a autorização da lei ou do Estado. Sumo sacerdote,
escribas e anciãos perguntam para Jesus: “Com que autoridade fazes isso, ou
quem te deu tal autoridade para fazeres isso?” (Mc 11,28). Nesse caso, o outro

hegemônico ou pelo poder político. Acontece que muitas vezes a descrição que se
faz do outro nem sempre corresponde ao que de fato ele é. Principalmente quando
se tem a intenção de demonizá-lo.
Por muito tempo, estivemos preocupados em descrever o outro. No entanto,
nossa descrição nem sempre resulta numa descrição real. Muitas vezes a preocu-

fazer amizade ou simplesmente conhecer. Em muitos casos, procura-se conhecer


o outro com o intuito de combatê-lo.
No caso de Jesus, e na visão de Marcos, Jesus transita em meio à diversi-
dade de pessoas, de grupos e de instituições. Esse evangelista coloca Jesus diante
de pessoas diferentes, com expectativas diferentes em relação ao pessoal, social e

assim tenta a construção do projeto do reino de Deus, que a seu modo permite a
aproximação e a comunhão. Ele faz declarações sobre pessoas, sobre que opinião
tem delas, mas procura as inserir na realidade que anuncia e oferece a todos.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


E vós, quem dizeis que eu sou? 157

Para conhecer é necessário ouvir o que o outro diz sobre si mesmo. Conhe-
cer algo mediado pela descrição dos outros em geral não leva ao conhecimento.
Às vezes criam-se visões distorcidas da realidade. Na história da América Latina
os povos ameríndios, os negros, as mulheres, os ateus, os pobres e outros grupos
tiveram sua imagem descrita por outros. Na maioria das vezes a imagem retratada

como: violentos, preguiçosos, incapazes, inferiores, não civilizados, sem moral,


sem religião e muitos outros termos.
Jesus mostrou-se disponível para ouvir e para falar. Conviveu com um pre-

galileu, a menos que esses galileus ameacem o poder. O preconceito é resultante

excludente. A necessidade procura a comunhão! O ouvir o outro requer abertura


para compartilhar o poder com esse outro. Uma comunidade interiorana ouviu
Jesus, mas não reconheceu nada nele senão ameaça e o levou aos penhascos para

coração, acolher para conhecer e conhecer para amar e servir.


A pergunta feita por Jesus não se constitui em uma pergunta antropológica

com sua identidade. É uma pergunta a respeito de um movimento. É uma ten-


tativa de colher impressões. Na sociedade atual estamos sempre descrevendo o
outro ou representando-o de alguma forma. No tempo de Jesus isso também não
era diferente.

Dizer que Jesus era o Cristo representava uma novidade?


Qual era a novidade trazida pelo movimento de Jesus que causava incômo-
do às autoridades religiosas e políticas de Jerusalém? Em Mc 1,27 o evangelista

novidade que surgiu dentro do judaísmo do primeiro século? A resposta de Pedro


diz que Jesus é o Cristo. Vê-se que Mateus mostra bem que Pedro faz um enqua-
dramento de Jesus a uma moldura de poder excludente. Para ele, Jesus representa
a vitória de um mediante a derrota de outro, com privilégios para pessoas e insti-
tuições. Há no Evangelho de Marcos um segredo que envolve a pessoa de Jesus
que não é percebido por aqueles que não mudam seu modo de ver e de entender o
outro ser humano. Qual seria a novidade de um Jesus como Cristo? Qual foi a no-
vidade para a comunidade daqueles dias e qual a novidade para a sociedade atual?

A sociedade brasileira tem experimentado e convivido com um grande


número de movimentos religiosos que se apresentam como novas expressões
do cristianismo. Será que realmente são novas expressões ou velhas formas

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


158 Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva

de experiências religiosas? Em relação à composição religiosa da sociedade


bras
Estatística) de 2010 demonstrou que ainda existe uma hegemonia do cristia-
nismo, porém informa também que a nossa sociedade se caracteriza por sua
diversidade religiosa.
Jesus se mostra uma outra pessoa. Sua utopia passa necessariamente por
um compromisso de missão e por uma experiência de fé, que correm por fora
do sistema religioso. Ele não bate na tecla do seu messianismo, mas na tecla do
messianismo do Reino de Deus, onde as coisas funcionam de outro modo, produ-
zindo fraternidade e solidariedade.
Se levarmos em consideração a pluralidade e diversidade do campo religio-
so brasileiro, bem como as várias concepções culturais, será que continuar apre-
sentando Cristo como a única via, o único caminho ou única verdade se constitui
em novidade? O judaísmo do primeiro século não admitia outra possibilidade ou
-
dade não se encontra no rompimento, no afastamento ou na negação do outro.
A novidade se expressa na convivência e no respeito. O novo é a tolerância e o
respeito à diversidade. Por muito tempo fomos acostumados a aceitar a intolerân-
cia como ação normal. O que vemos em Marcos, quando Jesus vai ao templo, é
que ele propõe um templo para todas as nações, um Deus que está de aliança, não

todos está disposto a ouvir na “casa de oração” de “todas as nações”!

O perigo de construir uma imagem distorcida do outro


Todas as culturas e religiões podem lançar mão da pergunta de Jesus e in-
dagar ao outro: O que vocês dizem que eu sou? O que a sociedade ou as pessoas
dizem que eu sou? As religiões de matriz africana, os cristãos, os budistas, os
islâmicos, os hinduístas, os ateus, os negros, os índios, os homoafetivos etc., to-
dos podem fazer a mesma pergunta. Quais são as respostas quando lançamos a
pergunta em relação a estes grupos citados acima? Algumas nós já conhecemos:
-
tos, terroristas etc.
No caso da pergunta feita por Jesus, não houve resposta considerada nega-
tiva. Mas em outras ocasiões Jesus já havia sido descrito como amigo dos peca-
dores e publicanos, alguém que estava possuído por Belzebu ou fora de si (Mc
3,21). Quando construímos a imagem do outro, corremos o risco de criarmos uma
imagem deturpada e que, portanto, não corresponde à realidade. Às vezes cons-
truímos a imagem do outro de acordo com nossas crenças e convicções. Nesse
caso, tudo aquilo que não encaixar em nossa convicção pode ser interpretado

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


E vós, quem dizeis que eu sou? 159

Os discípulos naquele momento representavam a comunidade, por isso, po-


demos imaginar que a pergunta foi dirigida à comunidade, à coletividade, ao

de fé ou defesa de uma cristologia. Em todo caso, nos três textos, retirando os


acréscimos, Jesus é apresentado como o Cristo (Tu és o Cristo).

achavam que o movimento de Jesus se parecia com o movimento de João Batista

preocupação de Herodes não era que Jesus se assemelhasse aos profetas do Anti-
go Testamento. Provavelmente Herodes estava preocupado com os movimentos
proféticos que surgiram nesse período, descritos pelo historiador Flávio Josefo
de maneira muito pejorativa. Segundo Josefo, esses movimentos “trabalhavam
no sentido de provocar destruição e levante, procurando arrastar o povo ao fana-
tismo religioso [...] através de sinais milagrosos”16. Além do mais, as autoridades
judaicas não acreditavam que da Galileia pudesse sair algum profeta (Jo 7,41-42;
1,46). Ao mesmo tempo, havia a crença de que “o profeta Elias, que exerceu suas
atividades no Reino do Norte de Israel, seria o precursor do messias [...]. Acre-
ditava-se que havia dois libertadores: Elias da Tribo de Levi e o messias da Casa
de Davi”17.
Como já foi mencionado, Marcos está constantemente querendo responder
à pergunta: Quem é Jesus? Ou Quem é este? De acordo com Myers “é uma per-
gunta que é feita constantemente pelo evangelista Marcos. Essa posição do texto
pode querer indicar a relação com Moisés, o libertador do povo Hebreu e que fez
a pergunta semelhante sobre Javé”18.
Vale salientar que a pergunta é: Quem eu sou e não o que eu sou? A inda-

a essência de algo. Geralmente a resposta para “quem eu sou” se dá pela função,


atividade ou missão que a pessoa exerce (mestre, sábio, soldado, escravo, polí-

função. Ou será que Cristo é algo que faz parte da essência dele? Parece-nos que
nesse caso Cristo é uma função. Da mesma forma que profeta, sacerdote e outros.

sentido se existir um futuro pelo qual vale a pena lutar. É necessário haver uma

16. THEISSEN, Gerd. . São Leopoldo: Sinodal, 1987, p. 75.


17. BIETENHARD, H. Elias. In: São Paulo: Vida
Nova, 1985, p. 36.
18. MYERS, Ched. 1992, p. 294.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


160 Clemildo Anacleto da Silva e Sydney Farias da Silva

motivação. Saber “quem eu sou”, ou quem é a comunidade, projeta um futuro que

que Jesus transcende o próprio eu em direção a outras coisas diversas dele próprio.
Na atualidade, muitos grupos religiosos constroem suas imagens sobre a
exaltação do eu e do(a) líder carismático(a), no qual concentra todo o poder. Je-
sus, ao contrário, “A ele não interessa dizer coisas esotéricas e incompreensíveis,
nem a todo custo novas. [...] Ele traz à luz aquilo que os homens sempre sabiam
ou deveriam saber e que, por causa de sua alienação, não chegaram a ver, com-
preender e formular”19.

A pesquisa bíblica tem procurado desvendar quem é Jesus. A resposta a essa


pergunta varia conforme a linha ideológica do pesquisador ou aquilo que se quer

comunista, Flho de Deus, Cristo, revolucionário).


O que leva o movimento de Jesus a ser perseguido pelas autoridades é o
fato de Jesus se apresentar como o Cristo e realizar uma interpretação da lei
que desobriga o povo de cumprir certos preceitos considerados opressivos. Nesse
sentido, Cristo representa alguém que propõe mudanças internas no ser humano,
mudanças no que se refere à interpretação da lei e mudanças nas relações sociais.
A pergunta não foi realizada com a intenção de revelar nem a autoridade
de Jesus nem a de Pedro, e sim a proposta do projeto. Jesus será reconhecido
pelo seu projeto. O projeto do Cristo. Nesse sentido, a mensagem do Cristo se
constitui no novo quando comparado com a mensagem tradicional de algumas
lideranças judaicas.
Se quisemos conhecer o outro precisamos saber o que ele diz de si mesmo.
Como ele mesmo se descreve. Quando descrevemos o outro a partir das nossas
convicções corremos o risco de querer que ele se enquadre naquilo que queremos
que ele seja e não no que ele representa de fato. Percebemos que uma das causas
da intolerância está no fato de descrevermos o outro de forma pejorativa ou dis-

imagem deturpada.

BALANCIN, Euclides Martins. . Quem é Jesus? São


Paulo: Paulus, 1991.

19. BOFF, Leonardo. . Rio de Janeiro: Vozes, 1988, p. 62.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 148-161, abr/jun 2015


E vós, quem dizeis que eu sou? 161

BOFF, Leonardo. . Rio de Janeiro: Vozes, 1988.


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tive. Minneapolis: Fort Press, 1984.

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E vós, quem dizeis que eu sou? 161

BOFF, Leonardo. . Rio de Janeiro: Vozes, 1988.


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O IMPACTO DO NOVO SOBRE A ORDEM ARCAICA:
uma nova espiritualidade em Mc 2,18-22

Resumo

Palavras-chave:

Abstract

Keywords:

Teologia (EST), professor e pesquisador no Centro Universitário Metodista – IPA.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 162-171, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
O impacto do novo sobre a ordem arcaica... 163

Introdução

evangelhos sinóticos, considerando o embate entre os discípulos de João Batista/


fariseus e Jesus sobre a temática da prática do jejum e a alegoria do pano novo co-
locado sobre o tecido velho e do vinho novo depositado em odres velhos? Nessa

com a sua chegada.

quem faz o questionamento, apenas introduz os personagens, mas quem efetiva


o questionamento são “alguns”, embora, no episódio da refeição na casa de Levi
(Mc 2,15-17), apareçam os personagens dos escribas dos fariseus.
A contestação é enfática, pois justo naquele momento de restrição alimen-
tar, Jesus e os seus discípulos se banqueteavam com Levi. É possível que a men-
ção aos fariseus tenha sido acrescentada pela comunidade nascente, em virtude
das constantes críticas que o grupo de Jesus recebia desse segmento. Note-se
que os fariseus são os protagonistas das polêmicas desde 2,15 até 3,6 (SOARES;
CORREA JUNIOR, 2002).
A narrativa paralela de Mt 9,14-17, utilizando o mesmo contraste de priva-
ção de alimento, enfatiza o já conhecido propósito do autor de confrontar a Lei
seguida pelos judeus (o velho) com Cristo, como a novidade, melhor, capaz de
transformar o velho mundo. “Os discípulos de João, e bem assim, os dos fariseus
frequentemente jejuam” (POHL, 1998). Essa narrativa contextualiza o questiona-

semana, na segunda e na quinta-feira (Lc 18,12).


O terceiro texto paralelo é o de Lc 5,33-37, que contextualiza sua narrativa
confrontando o jejum frequente dos discípulos de João e dos discípulos dos fari-
seus com a prática do comer e do beber dos discípulos de Jesus. Há um narrador
que introduz a fala.
O contraste se constituía pelo cumprimento das antigas práticas ritualísti-
cas, preservadas pelos discípulos de João e pelos fariseus, que se alimentavam
de uma mesma tradição ultrapassada, com a iminência do novo que se fazia
presente em Jesus. Parece que aquele jejum proposto pelo Batista como ar-
rependimento, abandono do pecado e preparação para o batismo, que deveria
ser praticado uma única vez, se tornara prática ritual para os seus seguidores,
mesmo após sua decapitação (MATEO; CAMACHO, 1998). A essência da re-

o mais perdia seu sentido.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 162-171, abr/jun 2015


164 Norberto da Cunha Garin

Para os judeus, o jejum consistia numa forma de expressar, exteriormente,


a tristeza que sentiam dentro de si. Num contexto mais abrangente, o jejum era
uma prática religiosa essencial para os orientais e o é até agora. Para os judeus,
o ritual do jejum estava ligado ao Dia de Expiação, uma celebração tardia que
não aparece nos textos históricos anteriores ao desterro babilônico. A sua convo-
cação está descrita em Lv 23,27-32 e trata-se de um texto de redação sacerdotal
que determinava o jejum absoluto sob pena de exclusão da pessoa, banindo-o da
comunidade. A descrição dessa prática se encontra em Lv 16.
Fora essa prática do jejum pela expiação, o mesmo podia ser realização para
acrescentar um “crédito” de supererrogação. Além disso, havia alguns jejuns de
caráter geral que envolviam todo o povo. Após Israel ser vencido na segunda ba-
talha contra os benjaminitas o povo praticou um jejum coletivo (Jz 20,26). Outro
jejum aconteceu quando o povo abandonou os baals e as astartes e resolveu se
voltar para Javé em Masfa, sob o julgamento de Samuel (1Sm 7,6). Um jejum
coletivo pelo pecado dos casamentos mistos aconteceu no período sob o comando
de Neemias (Ne 9,1). Também havia os jejuns preparatórios para grandes efemé-
rides: o jejum de Moisés, por quarenta dias, para recepção da Lei (Ex 24,18) e
aquele que Jesus praticou para enfrentar as tentações do deserto (Mt 4,1).
De outra sorte, parte dessa controvérsia sobre o jejum pode ter se originado
dentro da comunidade cristã posterior. Na Didaqué 8.1, da virada do primeiro
século, há advertências para que os cristãos não adotem a mesma data do jejum
dos judeus (segunda-feira e quinta-feira). A recomendação é que se jejuasse na
quarta-feira, dia da prisão de Jesus, e na sexta-feira, dia da morte. Caso seja as-
sim, essa perícope poderia ser um acréscimo tardio. Entretanto, isso não pode ser
aceito sem uma análise mais acurada, visto que a narrativa é na direção de uma
nova maneira de praticar a religião. Esse jejum semanal parece ter se tornado
prática apenas no terceiro século (POHL, 1998).

O cumprimento da lei
O contexto de Mc 2,18-22 envolve diversas interlocuções provocativas
tentando colocar Jesus diante da lei e dos costumes do seu tempo. A tendência
conservadora dos segmentos políticos e sociais, liderada por escribas e fariseus,
empurrava as novidades na direção de suas próprias contradições. A altercação
se referia à prática do jejum, que os opositores reparavam não ser observado pelo
grupo de Jesus. O jejum era, juntamente com a oração e a esmola, uma das obri-
gações de todo o judeu na época. Tratava-se do jejum de supererrogação semanal
praticado pelos fariseus (Lc 18,12) como forma geral de piedade.
Com uma liderança como a de Jesus não seria diferente, visto que ele des-

pois essa detinha a exclusividade de absolver pecados. Jesus aproveitava as oca-

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 162-171, abr/jun 2015


O impacto do novo sobre a ordem arcaica... 165

siões que apareciam para reforçar sua disposição de cumprir a Lei (Mt 5,17), po-
rém não na forma como os escribas e fariseus a interpretavam. Livre de sua letra

plena do amor que constrói o humano do ser humano, numa sociedade rastreada

Essa cena integra controvérsias que antecedem à redação do evangelho de


Marcos. As comunidades cristãs se acostumaram a serem rechaçadas pela crítica
de que não cumpriam a Lei, na visão das autoridades religiosas daquele tempo. O
próprio Jesus era tachado de anti-Lei.
Como resposta, Jesus retrucava com o argumento de que aquilo, que para a
sociedade era elevado e importante, não possuía o mesmo valor diante de Deus.
Enfatizava que a prática do jejum, assim como a oração e a esmola, deveria ser
realizada discretamente, de tal sorte que as outras pessoas não percebessem.
O jejum deveria ser uma expressão sincera do arrependimento. Eclesiástico
34,26 (ou 31) remete a uma questão pertinente: “Assim é o homem que jejua por
seus pecados, depois vai-se e comete-os de novo; quem ouvirá a sua oração?”

qual o autor manifesta o descontentamento de Deus em relação ao jejum: “Seria


-
beça como o junco e estenda debaixo de si pano de saco e cinza? Chamarias tu a
isto jejum e dia aceitável ao Senhor?” (Is 58,5) salientando que o jejum escolhido
teria relação com o cumprimento da justiça e a construção de relações de liberda-
de (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).
A narrativa de Mateus (6,16-18) é enfática quando apresenta uma observa-
ção de Jesus sobre a aparência de quem jejua, indicando que havia praticantes
do jejum que faziam questão de aparentar, física e espiritualmente, que estavam
cumprindo a lei (BORTOLINI, 2003). Na mesma direção, o Senhor observa que
as práticas do jejum deveriam ser exclusivamente com o propósito de agradar a
Deus e não para ser visto pelas demais pessoas (Lc 16,15-18).

noivo, bastante associada à relação Deus-ser humano. O seu argumento remete


à consulta feita a Zacarias sobre a manutenção dos jejuns que choravam a des-
truição de Jerusalém (Zc 7,1-3). A resposta recebida, na forma de estímulo para a
“alegria, contentamento e felizes dias de festa” (Zc 8,19), apontava para a realida-
de de que os muros da cidade já tinham sido reconstruídos. O transbordamento de
alegria se materializava na refeição da casa de Levi. O momento era de alegria e
de felicidade porque o “noivo” estava junto como preconizara o profeta do exílio
(Jr 33,11). O segundo Isaías constrói uma relação evidente entre a alegria das

te desposarão a ti; como o noivo se alegra da noiva, assim de ti se alegrará o teu

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166 Norberto da Cunha Garin

Deus”. A presença de Jesus representava a chegada desse tempo de íntima rela-


ção, portanto de festa e de alegria (LENTZEN-DEIS, 1998).
A festa de bodas era capaz de quebrar as rotinas ritualísticas dos judeus. Até
mesmo os jejuns eram quebrados, numa espécie de licença especial para as oca-
siões de bodas. Nesse contexto, Jesus anunciara que estavam num período assim
e, portanto, os seus discípulos e ele mesmo não deveriam jejuar (POHL, 1998).
É necessário salientar que, no tempo de Jesus, na Judeia, as bodas eram
distintas de como se celebra no Ocidente, por exemplo. Após o casamento, os

parentes e amigos que celebravam, com eles, por uma semana inteira de festas e

pois eram celebrados como se fossem reis e rainhas. Não era admissível, durante
uma festa tão efusiva, alguém jejuar. Era a essas bodas que Jesus se referia, a um
enlace íntimo entre Deus e o ser humano celebrado na pessoa dele. Essa proxi-
midade radical, íntima, se aplicava à presença dele no meio o povo, visto que,
assim como no casamento, não havia distância entre ele e as pessoas. Tratava-se
de uma aproximação da mais profunda intimidade e do maior comprometimento
-
vadores, visto que aparecia no Antigo Testamento (Am 3,2; Is 49,18-21; Jr 2,2;
Ez 16,1-14; Os 1,2). Mas irritava os judeus enquanto referida à presença de Jesus
como possibilidade de uma relação direta com a transcendência.
Assim, Jesus provocava sacerdotes, escribas e fariseus com bastante inten-
sidade ao falar-lhes através de parábolas como a do banquete nupcial, na qual se

Nessa, os convidados não entenderam a sua missão, mas ao convidar a escória da


sociedade, os pecadores, esses responderam com sua presença tornando o recinto
repleto (Mt 22,9-10). Mais uma vez, Jesus voltou ao tema da relação conjugal
ao contar a parábola das dez virgens (Mt 25,1-13), apontando para aquelas que
estavam preparadas para receber o noivo.
O anúncio de que “será tirado o noivo” (Mc 2,20a) apontava para o tempo
de sua partida e a consequente ressurreição, que inaugurava o novo, o tempo do
-
munidade mais tardia que havia testemunhado esses fatos. Por outro lado aponta-
va para a realidade da experiência da comunidade cristã, que mesmo saboreando
a alegria do novo tempo não se eximia de passar pela crueldade da cruz que se
manifestava através das perseguições.

O novo no velho

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 162-171, abr/jun 2015


O impacto do novo sobre a ordem arcaica... 167

fez uma ligação com a alegoria anterior, a do noivo, que põe vestes novas ao
se preparar para as bodas. O cenário é o de uma casa nova, onde as vestes são
novas e o vinho novo marca a celebração do novo que está chegando. Apontava,
também, para a intimidade da casa onde estão o tecelão e o vinhateiro, símbolos
da produção artesanal de Israel à época (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).
O contexto dessa altercação remete à vida da comunidade nascente, con-
frontada com as antigas práticas rituais. Ainda que não se adequassem ao contexto
do jejum, as oposições pano velho(palaión)-pano novo (kainón), odres ve-
lhos-odres novos parecem ter sido alocadas aqui propositalmente. A alterca-
ção entre jejum e festa apontava para a presença dos pecadores, aqueles a quem
Jesus se dirigia e que ocupavam os lugares da mesa do novo banquete. É a co-
munhão dos pecadores, que não encontraram mais possibilidades de reintegração
na comunidade religiosa judaica, percebiam, na comunidade cristã nascente, o
caminho do perdão e da paz (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).
A comunidade que se seguiu à ressurreição de Jesus adotou a prática do

um ato de penitência, porque agora o perdão já havia sido alcançado pelo sa-

no sofrimento do Senhor como preparatório para momentos importantes da vida


comunitária. Havia, pelo menos, a determinação de um dia de jejum na nova
comunidade (At 27,9).
A nova comunidade não se adequava às antigas práticas do jejum porque
era portadora de novas práticas, inauguradas com a chegada do noivo. O remendo
novo não se adequava ao pano velho, pois havia uma incompatibilidade qualitati-
va. A melhor qualidade não conseguia se ajustar aos antigos padrões costumeiros.
-
lhecida. O novo contrastava com o velho visto que o pano já estava gasto, não

molhado durante a lavagem, encolheria e repuxaria o tecido antigo, numa alusão


à provocação que a sua presença representava para quem ainda continuava “res-
sequido”, arraigado às velhas práticas. À época de Jesus, as vestes eram usadas
por muito tempo, em alguns casos, por mais de uma geração. Por isso, recebiam
diversas lavagens no decorrer de sua existência útil (POHL, 1998). Os rombos
abertos no velho judaísmo não tinham mais consertos: ou aderiam ao novo re-
presentado pela chegada do Reino de Deus, representada por Jesus, ou estavam
fadados à falência.
A velha ordem de coisas já havia caducado diante do que recém havia che-
gado. O velho se desgastara pela própria inoperância e não havia mais como
remendar. Mesmo que se tentasse, o abismo entre as duas ordens de coisas era
intransponível. Não havia como tapar os rombos de uma religiosidade arcaica,
fundada no cumprimento ritualístico na antiga Lei. Suas promessas não se reno-

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168 Norberto da Cunha Garin

vavam pela simples repetição das antigas fórmulas litúrgicas, até mesmo porque
o seu cumprimento visava à aparência de tristeza, muito distante da sinceridade
de coração.
-
mento da letra fria da Lei mosaica; tratava-se de um novo paradigma de relações
que não se enquadravam mais às antigas estruturas legalistas (Hb 8,13). Está
clara a ameaça que a nova ordem representava para o velho sistema judaico. É
como se fossem remendos novos em tecidos desgastados, ou como vinho em fer-
mentação em vasilhas rotas. Não cabem mais, não se amoldam nem se coadunam
mais e se rompem (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).

se lançava contra o novo e o tentava destruir, levando Jesus à morte pela cruci-

voltava-se contra o sistema e a ressurreição inauguraria o novo Reino, trazendo a


inclusão e a justiça, capazes de restabelecer a paz. Como diz Mc 1,10, rasgam-se
os céus para que o Espírito invada fecundando a nova ordem de coisas (SOARES;
CORREA JUNIOR, 2002).
Os odres velhos apontavam para um judaísmo cansado de práticas inócuas
que não propiciavam a libertação. Tratava-se de um conjunto de normativas e ri-
tuais obsoletos que não resistiam às análises críticas do seu tempo. Permaneciam
como tradições inoperantes, apenas como repositório de memórias de outros
tempos. Os velhos odres estavam ressequidos pela reutilização consecutiva das
práticas rituais judaicas. Não propiciavam mais a paz nem traziam a libertação
necessária.
Os novos odres continham a elasticidade necessária para acolher a nova
forma de conceber a transcendência, não mais como uma distância que só seria
acessível através de orações e jejuns. Representava o vigor do acesso direto, do
face a face com a divindade que se apresentava na forma de ser humano.
A distinção entre aqueles que guardavam a Lei e mantinham o jejum demar-

cegos, coxos, incluindo os endividados por tributos, que se encontravam excluí-


dos da comunidade religiosa judaica. O banquete era o sinal da chegada do Reino
novo, do paraíso de alegria e abundância (SOARES; CORREA JUNIOR, 2002).

A presença marcante de Cristo no mundo criado por Deus reordenava a


desordem estabelecida pelo ser humano em sua trajetória de pecado. Tra-
tava-se da nova criação provocando o aparecimento da nova criatura (2Cor
5,17), condição de quem se encontrava em Cristo. Não se tratava apenas de

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O impacto do novo sobre a ordem arcaica... 169

uma mudança individual, mas do Novo1 que mudaria a terra e os céus, visto
que nesse Novo a reconciliação se efetivaria em sua plenitude com Deus, unin-
do todos os seres.
A prática do jejum se destinava ao luto e à tristeza, provocadas pelo pecado.

à graça nele contida. Acabou o caminho da busca do perdão pelos rituais e sacri-

ordem. Os rituais não tinham mais a qualidade de proporcionar o alívio da cons-


ciência. Agora, o Novo o oferecia de graça para o cristão arrependido.
A velha criação ainda gemia entre dores por causa da maldade humana, de
sua corrupção (Rm 8,22), mas a chegada do Novo possibilitaria a inauguração da

terceiro Isaías quando falava da noiva que se aprontava para as bodas e do noivo
que se preparava para a festa (vinho). A terra, a vegetação, o jardim, tudo brotava
com a chegada do tempo messiânico, pois com a emergência do Novo uma nova
criação iria se instalar (Is 61,10-11). Um novo paradigma havia se instalado na
humanidade e colocado por terra todos os paradigmas anteriores.
Essa nova criação se estabeleceria pela restauração da paz vinculada ao
sangue vertido na cruz. Agora já se aproximava a hora de beber do cálice para

ter uma experiência de alegria, já que o novo tempo havia sido inaugurado. Era
como viver os dias das novas bodas.
O Novo não vinha como uma proposta de salvação individual para judeus
e gentios, mas como a libertação que se efetivaria, sobretudo, pela submissão
perfeita diante de Deus. O velho era representado pelo sistema judaico, cuja lei e
costumes impunham restrições ritualísticas à vida, como a observância do jejum
e a prática da festa de núpcias que se estendia por uma semana.
Também aparece o antigo sistema romano simbolizado nos odres velhos
que guardavam os melhores vinhos para os seus bacanais pós-conquistas milita-
res, práticas arcaicas de antivida. Os discípulos de João e os fariseus não conse-
guiam discernir o tempo no qual estavam inseridos: tratava-se do tempo do Novo.
O tempo da lei já havia acabado. Os sinais já estavam aparentes, mas eles não
conseguiam fazer a leitura desses novos sinais.
Apesar da distância cronológica do evento fundante, o Novo continua a ser
novo porque representa o espaço atemporal, o espaço do kairós. Ele é o Novo
diante da contemporaneidade consumista, de novidades ultrapassadas.

1. Quando aparece o termo Novo grafado com inicial maiúscula, refere-se a Cristo.

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170 Norberto da Cunha Garin

Não é possível continuar vivendo no século vinte e um e cumprindo rituais


religiosos de tempos inexistentes. Cabe ler os sinais que se manifestam agora, e
agora é o tempo do Novo, o tempo de Cristo. Não está circunscrito ao tempo cro-
nológico, mas é um novo que é atemporal, é . É um novo incorruptível,

tempo do Novo, as novidades proclamadas pela efervescência dos anúncios não


são mais que a chegada do velho que se repete nos rituais carcomidos de oferecer
realização e felicidade.
O Novo inaugura o tempo da essência que contrasta com as práticas ri-
tuais da aparência cansada de luzes e de cores, que não promovem vida, mas a
futilidade vazia de efervescência momentânea. Como nos rituais da antiga Lei
mosaica, continuam a ser caminhos para a tristeza e para a morte. Foi-se o tempo
do consumismo como caminho para o encontro da alegria e da paz. O tempo dos
remendos de panos novos em vestes antigas, ou de vinhos novos em odres velhos,
faliu. Não têm mais sentido.
Os praticantes dos velhos rituais do consumismo excludente continuam a
não entender a maneira como a comunidade do Novo se alegra sem aderir às
compras propaladas pela propaganda. Para eles é incompreensível que a alegria
possa brotar da simplicidade de uma vida que se realiza no encontro, na experiên-
cia comunitária com o Novo.
Agora é o tempo do encontro de si consigo mesmo na alegria da fraterni-
dade. O banquete com o Novo está servido e representa o reencontro do humano
que se esconde em cada ser humano. O novo vinho e as novas vestes representam
a alegria do banquete coletivo, cujos convidados são os amigos do Novo: os po-
-
des incuráveis, os homoafetivos, os atormentados, e toda a sorte de excluídos da
sociedade das aparências.
Todos são bem-vindos ao banquete do vinho Novo!

BARCLAY, William. . V. 3. Buenos Aires (Ar-


gentina): La Aurora, 1974.
BORTOLINI, José. : para uma catequese com adultos. São Paulo:
Paulus, 2003.
LENTZEN-DEIS, Fritzleo. : modelo de nueva evan-
gelización. Estella (Espanha): Verbo Divino, 1998.

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O impacto do novo sobre a ordem arcaica... 171

MATEO, J.; CAMACHO, F. : texto e comentário. São Paulo: Paulus, 1998.


POHL, Adolf. : comentário esperança. Curitiba: Editora Evangé-
lica Esperança, 1998.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. . São
Paulo: Vida Nova, 2000.
SCHÖKEL, Luís Alonso. : novo testamento. 2. ed. São Paulo: Paulus,
1996.
SOARES, Sebastião A.G.; CORREA JUNIOR, João Luiz. : refazer
a casa. Petrópolis: Vozes, 2002.
VAUX, R. de. . Barcelona (Espanha): Herder, 1992.

Rua Cel. Feijó, 442/504


Porto Alegre, RS
CEP 90520-060

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A CIDADE, A CRISE E A NOVA JERUSALÉM

Resumo

Palavras-chave: -

Abstract
-

* Doutor em Teologia Bíblica na Pontifícia Università Gregoriana, Roma. Mestre em Saúde e Comportamento
na Universidade Católica de Pelotas. Professor no Instituto de Teologia Paulo VI, Arquidiocese de Pelotas, e no
Curso de Medicina da UCPel. Diretor do Instituto Superior de Cultura Religiosa da UCPel.
** Mestrando em Teologia em Faculdades EST (São Leopoldo), bolsista da CAPES – entidade governamental

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A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 173

Keywords:

INTRODUÇÃO
Considerando as manifestações de massa e inúmeros planos e programas
recentes, pode-se esperar algo de novo na cidade? Os movimentos convulsivos
que ganharam as ruas no mundo e no Brasil em 2013 mostraram o esgotamento
tanto das políticas urbanas quanto da democracia representativa. Desenha-se algo
de novo na cidade considerando a atual conjuntura econômica, política, social e
cultural? O que se pode esperar olhando mais longe na história da cidade e a crise

algo de realmente novo no empenho humano de transformar a cidade? Em termos


da fé cristã, o que vem do esforço humano e o que depende de Deus? A pergunta
relaciona-se ao contexto cultural e religioso do momento: o retorno ao apocaliptis-

Nova Jerusalém? Estas são as questões às quais este texto procura responder.

1. UM OLHAR SOBRE A CIDADE: COMEÇANDO NO BRASIL


Algo se move na cidade. Olhemos inicialmente o Brasil.“Cidades rebel-
des” é o título de uma das obras que abordam as manifestações urbanas por
1

mudanças que tomaram as ruas do Brasil. Como na Turquia, foram às ruas mais
de um milhão de pessoas, após uma década de crescimento excepcional do país.
No epicentro do terremoto foram apontadas várias razões, tais como a questão da
efetivação e ampliação dos direitos sociais, o direito à cidadania. Entrava em jogo
a questão urbana, particularmente a reforma urbana2. Há uma lógica entre legis-

das campanhas eleitorais, hoje tema em voga. A cidade também é um grande


negócio, uma disputa entre os fundos públicos e sua distribuição no espaço. Há
uma urbanização dos baixos salários na periferia, de outra forma zonas de disputa
eleitoral. A principal vítima da violência é o jovem negro e pobre, morador da
periferia urbana3, seja no Brasil seja nos Estados Unidos da América, o que vem

1. ROLNIK, Raquel et al. : passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São
Paulo: Boitempo, 2013.
2. MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido! In ROLNIK, 2013, p. 19-26.
3. Cf. WAISELFISZ, Júlio Jacobo. “A cor dos homicídios no Brasil”. . Disponível em <http://
maparadaviolencia.org.br”>. Acessado em 27 dez. 2014. Os dados foram atualizados em 4 nov. 2014.

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174 Flávio Martinez de Oliveira e Eduardo dos Santos de Oliveira

acentuado com a globalização. A reforma urbana no Brasil, a partir da primeira


década deste século, esqueceu a reforma fundiária, não obstante tantos programas
sociais e queda do desemprego. A terra urbana permaneceu refém dos interesses
imobiliários e a eles associam-se os problemas de gestão e mobilidade, violência
no trânsito. Para todos, num mundo de anomia e alienação, raiva e frustração, a
vida tornou-se mais estressante.
De país a país as diásporas traçam redes através das fronteiras; migrantes
ilegais e clandestinos; moradores de rua, associados ao uso de drogas, são a mais
calamitosa expressão. Por outro lado, no passado recente, são as cidades o palco
-
na até Quebec e Bangkoc. É nesta direção que a cidade, empresa e mercadoria
vão às ruas. Os problemas encontrados nas cidades de todos os lugares são os
mesmos: saúde, poluição, água, energia, recursos naturais, os quais se acentuam
com as mudanças climáticas. A questão diz respeito ao próprio futuro do planeta.
Quanto mais crescem, mais elas precisam 4
. No Brasil, segundo o IBO-
PE, nas manifestações em junho de 2013 eram reivindicadas saúde (78%), segu-

-
forto e descontentamento; sem dúvida um processo complexo que afeta diversos
países de maneiras variadas. No Brasil, além do mais, a reforma urbana liga-se

2. A CIDADE NA HISTÓRIA
A questão da cidade não é de hoje nem vem restrita a uma região. A história
o demonstra5. A experiência urbana é universal e milenar. Jericó data de 7500-
6800 aC. A maior criação da humanidade foi a cidade. Sua história é apaixonante,
deslumbrante e cruel. A cidade hoje representa o mundo.
Cidades foram criadas e grandes cidades caíram – como Ur, Nínive, Babilô-
nia, Atenas, Siracusa e Roma, a primeira e arquetípica megalópole – em estreita
relação com o aspecto sagrado do lugar, a capacidade de proporcionar segurança
6
. O rápido crescimento
do cristianismo não poderia ter acontecido sem a vasta infraestrutura urbana do
Império Romano. O Apocalipse de João, porém, traz o contexto e as marcas da

4. ELY, Lara. A fórmula das cidades. Entrevista: Geoffrey West. Zero Hora, Porto Alegre. 27. jun 2014, p. 6-7.
5. KOTKIN, Joel. : uma história global. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
6. Ibidem, p. 19-20.68.

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A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 175

vez maiores em meio a uma persistente estagnação econômica bem como uma
disfunção social e política. É o caso do México e de São Paulo, cidades de
muros entre as classes. Em 2015 haverá 23 colossos com mais de 10 milhões
de habitantes7.
As análises revelam uma crise das megalópoles. O tamanho é mais fardo
que vantagem. A vantagem do tamanho vem superada pelo crescimento das no-
vas tecnologias. As tendências descentralizadoras observam-se em Nova York,
ainda a mais importante das megalópoles do mundo. Além disso, as grandes ci-
dades estão cada vez mais propensas a tornarem-se cidades duplas: uma elite
cosmopolita e uma grande classe de pessoas que, por baixos salários, basica-
mente, atende suas necessidades8. Fato é que hoje se enfrenta o capitalismo de
mercado irrestrito ao lado da corrupção. De outro lado, ninguém está seguro na
cidade, seja pela violência cotidiana seja pelo terrorismo. A cidade moderna vive
do medo, na sensação de fragilidade e vulnerabilidade, com a desregulamentação
e suas consequências individualistas9. As novas classes, constituídas de gente em

. 10

São guaritas, câmeras, alarmes os mais difundidos nos condomínios murados,


edifícios e mesmo casas particulares11.
Difícil, além disso, é acomodar populações diferentes em termos culturais
e religiosos, um fruto das grandes migrações. Os estrangeiros hoje representam
no mínimo uma ameaça de imprevisibilidade. Mas é de se supor que é na cidade
12
. Questionando apo-
calipticamente, se vierem!
A transformação do mundo atual tem o seu epicentro na cidade: 1) Nas
grandes áreas urbanas se concentram as funções mais avançadas do capitalismo,
que tem se reacomodado segundo uma lógica de rede, cujos núcleos estruturais
são justamente os centros globais. 2) Por outro lado, as cidades tornam-se objeto

renda: seja nos bairros pobres, com a formação de uma elite global móvel e
-

7. Ibidem, p. 176-181.
8. BAUMAN, Zygmunt. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, p. 187-202.
9. Ibidem, p. 18-19.
10. BAUMAN, 2009, p. 23-25.
11. Ibidem, p. 62-63.
12. KOTKIN, 2012, p. 210-211.

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176 Flávio Martinez de Oliveira e Eduardo dos Santos de Oliveira

turões periféricos. A questão é: Será possível fugir desse destino? Será possível,
na situação atual, percorrer outro caminho13?

3. E O MUNDO? APÓS A CRISE


-
cante do capitalismo. Qual a saída? O mundo dos dominados tornou-se tão diver-
so e tão fragmentado que ele desconhece a forma de engendrar um ator histórico,
isto é, a vontade de ação coletiva tendo um efeito sobre as orientações da socie-
dade14. Não vivemos uma sociedade totalmente líquida, como pensa Bauman, e
A
-
cepções culturais, se existirem, que orientem as condutas, inclusive as sociais15.

acima dos Estados16. A consequência é a decomposição da vida social, o silêncio


dos partidos e dos sindicatos. Espera-nos a catástrofe ou a superação da crise?
A nova sociedade ainda não se formou, mas ela se anuncia com um novo
modelo de atores, ainda impossível de descrever. Esta passagem para uma nova
sociedade implica a transformação das instituições atuais, o que chamamos de
crise da cidade, crise da democracia, crise da justiça, crise da escola ou da fa-
mília. Esta separação entre o mundo econômico e o social caracteriza a situação
atual, particularmente porque a globalização situa a economia num nível no qual
nenhuma instituição social, política ou mesmo econômica pode intervir. A única
resposta, se vier, será um comunitarismo defensivo17, que já foi intuído na apo-
calíptica, como veremos. Trata-se de lutar contra os efeitos destruidores da eco-
nomia atual, isto é, de agir sobre as ideologias e as condições naturais de nossa
sobrevivência18.
Pela primeira vez na história, o mundo da produção, dos bancos e das tecno-
logias é separado do mundo dos atores. É uma crise para além dos partidos e go-
vernos. Criou-se um abismo entre o mundo da economia e aquele das instituições
sociais. 19
. Os jovens ou

13. BAUMAN, 2009, p. 8-9.


14. TOURAINE, Alain. : a decomposição da vida social e o surgimento de atores não sociais.
Petrópolis: Vozes, 2011, p. 25.
15. Ibidem, p. 31.
16. TOURAINE, 2011, p. 47-58.
17. Ibidem, p. 105-106.
18. Ibidem, p. 117.
19. Ibidem, p. 121-124.

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A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 177

protestam em certos períodos ou fogem do mundo real em direção a um mundo


ideal mais condizente com a natureza, formas de contracultura20. O objetivo dos
liberais é fazer com que o individualismo extremo sepulte as instituições sociais e
coletivas. A crise nos impede de sermos sujeitos21. Os sujeitos sociais são reduzi-
dos ao papel de vítimas, no desenraizamento da economia moderna. Não é mais o
trabalho que liberta o homem, mas o consumo. É possível uma reação popular de
-
de nova; ela simplesmente traduzirá a fraca organização e a ausência de projetos
políticos da população vitimada pela crise econômica22, o que é um sintoma de
impotência apocalíptica. Os extremos sempre mais se afastam do valor mediano,
enquanto as classes médias e os assalariados estáveis vão se aproximando23. Vi-

individualismo religioso. Para além do desemprego, a exclusão social se alastra24.


-

social. Segundo Touraine, a única solução é nos colocarmos acima da realidade


econômica e social no apelo aos direitos universais de todos os seres humanos, no
controle do mundo político e econômico25. Será possível?

4. QUESTÕES APOCALÍPTICAS
O retorno da consciência apocalíptica no início do século XXI revela uma
desorientação, tematizada, sobretudo, como medo e angústia na atualidade ou

civis, da pobreza extrema, das catástrofes climáticas? Ou será que representa uma
fuga da atualidade, que do contrário poderia parecer insuportável26? São questões
apocalípticas.
O alerta vem de Ernst Conradie27. Para que seja um discurso apocalíptico
responsável,

20. Ibidem, p. 131.


21. Ibidem, p. 132-134.
22. Ibidem, p. 136-139.
23. Ibidem, p. 147.
24. Ibidem, p. 148-152.
25. TOURAINE, 2011, p. 196-198.
26. HAKER, Hille; QUEIRUGA, Andres Torres; WACKER, Marie-Theres. Editorial. O retorno da consciência
apocalíptica. v. 356, n. 3, 2014.
27. Ibidem, p. 11. Cf. CONRADIE. Idem, p. 96-100.

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178 Flávio Martinez de Oliveira e Eduardo dos Santos de Oliveira

Em primeiro lugar, essa apocalíptica deve partir daqueles que são vítimas da
atual constelação de poder. Em segundo lugar, deve tomar conhecimento de
que exortações de instituições estatais muitas vezes são ignoradas conscien-

segurança são estabelecidos para voltar-se contra os protestos. Em terceiro


lugar, é necessário que se encontrem códigos para minar os mecanismos de
controle. Em quarto lugar, uma nova apocalíptica deve projetar símbolos e
imagens que possam motivar à ação. Em quinto lugar, é necessário que se-
jam estabelecidas práticas de solidariedade que possam ajudar, de um lado,
-
sam superar as constelações e estruturas de dominação. Em sexto lugar, uma
apocalíptica com um projeto renovado deve despertar esperança e fomentar
solidariedade para poder manter a resistência também sob pressão.

Além da história, “A apocalíptica bíblica não é uma agenda da história glo-


bal, mas um fermento em toda teologia, que não deixou de pensar, de ter espe-

novo”28. Totalmente novo não é o que se observa nas análises anteriores.


A ideia de que Deus inicia a renovação evidencia que uma transformação
abrangente jamais poderá ser obra humana. Continua sendo tarefa dos se-
res humanos engajar-se sempre de novo num mundo atual, imperfeito, em
favor de ordens sustentáveis e contra pseudo-ordens perniciosas29.

A apocalíptica é o novo, mais que nunca oportuno, pois a crise é o caldo de

crise. João vai além da teologia profética do telos, pois ilumina a história a partir

10). Este novo vem apresentado numa cidade; a Nova Jerusalém, histórica, mas
-
calipse se pode tirar luz para enfrentar a crise atual e, ao mesmo tempo, manter
viva a esperança de que outro mundo é possível30. A adoção de uma postura pro-
priamente apocalíptica é – hoje mais do que nunca – a única maneira de manter
a cabeça fria e resistir31.

28. EBACH, Jürgen. As coisas não permanecerão sempre como estão. Observações e intuições sobre a apoca-
líptica bíblica. v. 356, n. 3, p. 24n, 2014.
29. BACHMANN, Verônica. Seguindo os rastros de uma ordem sustentável rumo aos inícios dos escritos apo-
calípticos do judaísmo antigo. v. 356, n. 3, p. 24, 2014.
30. SANTAMARIA, Xavier Alegre. O Apocalipse de João, modelo de releitura crente da vida em tempos de
crise. v. 356, n. 3, p. 45, 2014.
31. ZIZEK, Slavoj. : Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism. Londres: Verso,
2012, p. 983. DICKINSON, Colby. Só os verdadeiros ateus são teólogos? Sobre o pensamento continental
contemporâneo e o seu tom eternamente apocalíptico. v. 356, n. 3, p. 50, 2014.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015


A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 179

O processo, porém, é doloroso e violento: “O universo apocalíptico irrompe,


atualmente, em contato com o poder destrutivo da crise global, é experimentado
32
.
É preciso estar alerta, pois se, historicamente, a apocalíptica foi produzida
pelas vítimas, os empobrecidos e os excluídos, hoje procede não somente dos que
estão em pior situação, mas também dos poderes políticos, econômicos e cultu-

Com lucidez, como experiência, a apocalíptica constata a brecha entre o mundo


desejado e o mundo real; é consciente que:
A metástase apocalíptica atual desenvolveu-se em torno da ameaça nuclear
[...] ao lado do ‘apocalipse silencioso’ para aludir à morte massiva pela
fome e desnutrição nos países do Terceiro Mundo [...] Atualmente causa
-
nômica, ecológica, energética, alimentar, ética e cultural, até reinventar os
rostos da pobreza, da desigualdade e da exclusão [...] O mercado deixa de
ser considerado como ‘o maior progresso funcional da civilização’ para
transformar-se no grande mito apocalíptico33,

com seus tsunamis, furacões e estiagens. A crise atual desacreditou o código te-
telos) mediante um progresso linear, ininterrupto,
ascendente e irreversível (logos) que leva a uma etapa superior da consciência, da
vida e da sociedade. O futuro é representado por uma ameaça, não uma promessa
(profética). Sintomaticamente,

de uma economia baseada no interesse individual, de uma cultura cegada


pelas mercadorias, de uma sociedade satisfeita, de uma Igreja autorrefe-
rencial34.

Os elementos proféticos e apocalípticos, que no Antigo Testamento se su-


cediam no tempo, no Apocalipse de João coexistem. O autor sente-se um pro-
feta (10,11), designa sua obra que chama de Apocalipse como “palavras de
profecia”, e esta expressão retornará com insistência particular no epílogo (cf.
22,7.10.18.19). O Apocalipse foi profético porque soube interpretar os sinais de
-
guições35. O autor apresenta, portanto, uma síntese nova entre apocalíptica e pro-

32. ROCA, Joaquim García. Apocalíptica e crise global. v. 356, n. 3, p. 80, 2014.
33. Ibidem, p. 82-84.
34. ROCA, 2014, p. 87.
35. DOGLIO, Cláudio. Inroduzione all’Apocalissi di Giovanni. In: GHIBERT, Giuseppe et al. -
Torino: Elledici, 2003 (Logos. Corso di Studi Biblici, 7), p. 177.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015


180 Flávio Martinez de Oliveira e Eduardo dos Santos de Oliveira

fecia, mas com as seguintes observações: Em primeiro lugar, a mentalidade apo-


calíptica é diferente da cosmovisão teleológica ou da cosmovisão evolucionista.

cumulativo de seu movimento para frente, a apocalíptica é uma “interrupção”


total da história36, mas na história. Aí reside o novo. É o que veremos a seguir.
Em segundo lugar, a escatologia do Apocalipse, com sua riqueza e complexidade
de elementos, não permite uma fuga para frente a respeito da realidade em que a
Igreja vive. Sua escatologia é ainda ancorada na história. É a continuidade da pe-
netração da “novidade” de Cristo na histórica como se realiza progressivamente
em todo arco de desenvolvimento da mesma história. O Apocalipse, de fato, tem

entendida no seu sentido concreto. Mas, humildemente, deve-se reconhecer que


sempre permanece algo de mistério indevassável, a absoluta incognoscibilidade
do plano divino no Apocalipse37.

5. A NOVA JERUSALÉM
A Nova Jerusalém (Ap 21,1-8.9-27) está além de tudo o que vemos, sentimos

é uma evolução, mas é o novo na imanência que vem da Transcendência, como


veremos. Ap 21,1 traz um contato literal textual com Is 65,17, mas vai muito além
de algo positivo logrado ao máximo e assegurado contra a insídia dos elementos
antagônicos (cf. 65,20-25)38. A promessa de Isaías (65,17-25) é um mundo sem
mortalidade infantil (v. 18-19), sem morte prematura (v. 20), sem exploração do
-
cia (v. 25), com Deus mais presente a nós do que nós mesmos (v. 24) .39

Há duas fases sucessivas na apresentação da Nova Cidade40:


1ª Apresentação da Nova Jerusalém “como noiva que se adorna para seu es-
poso” (21,2): situação escatológica terminal, mas vista em relação com a situação
atual, com particular referência à assembleia litúrgica, com a qual a Igreja é e se
sente ainda a “noiva” (21,1-8).

36. METZ, Johann Baptist. New York: Seabury Press, 1980, p. 171. PI-

v. 356, n. 3, p. 109, 2014.


37. DOGLIO, op. cit., p. 174.
38. VANNI, Ugo. : Hermenéutica, exégesis, teologia. Estella: Verbo Divino, 2005, p. 279.
39. MESTERS, Carlos; OROFINO, Francisco. : a teimosia da fé dos pequenos. Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 339.
40. VANNI, op. cit., p. 279.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015


A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 181

2ª 21,9–22,5 mostra-nos ainda a Nova Jerusalém, mas como a “noiva” que


se converteu em “mulher” (21,9). Estamos num nível escatológico em estado
puro e considerado em si mesmo.
No capítulo 21 temos duas visões de Jerusalém como cidade-esposa: 21,1-4
apresenta a cidade como esposa; 21,9-27 é apresentada como uma cidade. Há um
paralelismo evidente entre a prostituta, símbolo de Roma (17,1-28), e a Esposa
do Cordeiro, símbolo da cidade de Jerusalém (21,9-27)41.
Agora esta cidade é Nova, não repetição da antiga (21,2; cf. Is 54,11-17;
62,4-5; Os 2,18-25). A novidade que é destacada em Isaías implica uma ação
criadora de Deus no que tem a ver com o ambiente do homem, correspondendo à

a primeira: uma tenda (Ex 25,10-16; 33,7; 40,34-38), imagem que indica família,
clã, comunidade, lar, proteção, acolhida, aconchego, presença. Deus “habitará

Os 2,25; Rm 9,26).
Realiza-se agora o mundo em sua totalidade: céu-terra, onde “tudo é bom”,
entrevisto idealmente em Gn 1,1–2,3, numa surpreendente correspondência entre
Gn e Ap, aqui uma “nova criação”. O “Novo céu e nova terra” compreendem-se,
comparando com o mundo de antes (“primeiro céu e primeira terra”: os de agora).
Não se fala em destruição do mundo atual, mas este vai desaparecer, sair
de cena, numa superação radical ( ), no sentido de uma renovação cristo-
lógica (kainos: novo no Ap está sempre referido a contextos que têm a ver com
Cristo, particularmente evidente em Ap 5,9: anciãos e videntes entoam um “canto
novo”). Esta ação contínua de renovação de Deus é atribuída a Cristo42.
A Nova Jerusalém é uma cidade universal. Ao contrário da prostituta (Ap
17,1-18) que vivia oprimindo os outros e sugando o sangue dos outros, a nova
cidade é lugar de plenitude (21,24), foco de cura da humanidade (22,2). Nela
procuram luz e encontram alegria. Esta imagem da cidade aberta (não fecha suas
portas jamais) é o ponto culminante do Apocalipse. Esta é a nossa cidade; a ela
devemos tender a partir deste mundo43.

escatológica como o ambiente novo no qual ela se encontra44. A Nova Jerusalém

41. Cf. AUNE, David E. Revelation 17-22. [s.l.]: Thomas Nelson, 1998. (World Biblical Commetary, 52c),
p. 1146: Ap 21,9–22,9 foi conscientemente estruturada em imitação a 17,1–9,10 após Ap 21,5–22,2 ter sido
inserida entre 2,13-3 e 22,3-5.
42. VANNI, op. cit., p. 283.
43. PIKAZA IBARRONDO, Xabier. . Roma: Borla, 2001, p. 277-278.

cidade é um símbolo transparente do povo de Deus, a Igreja.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015


182 Flávio Martinez de Oliveira e Eduardo dos Santos de Oliveira

não tem origem terrena como a primeira. Provém diretamente da transcendência,


do “céu”. A Transcendência entra em contato com os homens, estabelecendo uma
nova relação entre imanência e transcendência.
Mundo novo é o mundo cósmico e o mundo dos homens saturado dos valo-
res de Cristo que, com sua presença, realizada gradualmente no curso da história,
terá preenchido os vazios atuais.
Há uma ruptura total com o sofrimento do passado: “Deus enxugará toda a
lágrima dos seus olhos” (Is 25,8). Em Gn 2,17 foi introduzida a morte, na Nova
Jerusalém esta será superada (21,4). O juiz revogou a sentença: “As coisas anti-
gas se foram”. João projetou na meta dos tempos uma humanidade reconciliada,
perdoada, consolada, além da dor e da morte. A vida não é pranto, dor, sofrimen-
to, mas alegria.
Do Deus espelho da violência humana (trombetas, cálices de veneno) passa-
se a um Deus do amor completo que se manifesta no abismo de consolação hu-
mana pela humanidade. Revela-se a presença pessoal do Deus amigo, intimidade
amiga. As núpcias do cordeiro são suprema e eterna companhia. Ele faz novas

Ao instaurar o Novo, Deus revela-se contra a mentira de um mundo de inve-


ja e engano (as bestas, a prostituta), como verdade cumprida através do cordeiro/

pecados que lembram os catálogos de vícios e virtudes do Novo Testamento (cf.


22,15). São ampliações das advertências das cartas (Ap 2–3), e têm um senso

que têm medo, mas os que renegam Jesus no momento de serem provados e assim
traem os irmãos. Mais do que medo, têm falsidade (cf. Sir 2,12), mentira e duplo
jogo45
linha dos nicolaítas e dos jezabelitas de Ap 2–3).

mas ao mesmo tempo é convite ao compromisso do cristão. “O vencedor re-


ceberá esta herança” (2,7). Este sabe que um outro mundo é possível, com a
produção e comercialização comunitárias, a economia solidária, sustentável, não
consumista, a participação na defesa dos direitos, contra uma cultura privatizada
e individualista, na resistência ao ilusório poder do império do mercado e do setor
46
.

45. PIKAZA IBARRONDO, 2001, p. 268.


46. ARENS, Eduardo; DÍAZ MATEOS, Manuel. Para sair do império hoje. : a força da esperança.
Estudo, leitura, comentário. São Paulo: Loyola, 2004, cap. 9, p. 280-316.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015


A cidade, a crise e a Nova Jerusalém 183

CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS
Sem dúvida, vive-se uma crise sem precedentes que pode levar a humanida-
de à catástrofe ou a trilhar novos caminhos, planos, programas e projetos, o que
parece muito difícil ou quase impossível. Particularmente, as cidades tiveram
seu nascimento, apogeu e declínio, mas foram sempre o centro das civilizações,
impérios e Estados. As exigências que hoje pesam sobre elas, particularmente as
megalópoles, nunca foram tão imensas e amedrontadoras.
O Apocalipse nos revela que não há situação sem saída e fornece-nos esque-
mas de interpretação da história. Vive-se uma transição de época, sujeita a muitas
vítimas e enorme sofrimento. A Nova Jerusalém, em particular, traz esperança
na real novidade. A história deverá consumar-se numa ruptura que não permi-
te fuga. A Nova Jerusalém, símbolo do povo cristão, é dom de Deus, aponta
para a esperança, mas pede compromisso humano. Mas, como foi levantado,
deve-se reconhecer que sempre permanece algo de mistério indevassável, a
absoluta incognoscibilidade do plano divino no Apocalipse. Não obstante isso,
a Nova Jerusalém suscita e alimenta uma fé esclarecida, na esperança inabalável
e na solidariedade inarredável.

AUNE, David E. . Thomas Nelson, 1998 (World Biblical Commentary,


52c) s.l.
BACHMANN, Verônica. Seguindo os rastros de uma ordem sustentável rumo aos inícios
dos escritos apocalípticos do judaísmo antigo. v. 356, n. 3, p. 24, 2014.
BAUMAN, Zygmunt. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
DOGLIO, Cláudio. Inroduzione all’Apocalissi di Giovanni. In GHIBERT, Giuseppe et
al. Torino: Elledici, 2003 (Logos. Corso di Studi Biblici, 7), p. 177.
EBACH, Jürgen. As coisas não permanecerão sempre como estão. Observações e intui-
ções sobre a apocalíptica bíblica. v. 356, n. 3, p. 24, 2014.
ELY, Lara. A fórmula das cidades. Entrevista: Geoffrey West. Zero Hora, Porto Alegre.
27. jun 2014, p. 6-7.
HAKER, Hille; QUEIRUGA, Andres Torres; WACKER, Marie-Theres. Editorial. O re-
torno da consciência apocalíptica. v. 356, n. 3, 2014.
KOTKIN, Joel. : uma história global. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
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Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 172-184, abr/jun 2015


184 Flávio Martinez de Oliveira e Eduardo dos Santos de Oliveira

ROLNIK, Raquel et al. : passe livre e as manifestações que tomaram as


ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, 2013.
-
co Zero. v. 356, n. 3, p. 109, 2014.
SANTAMARIA, Xavier Alegre. O Apocalipse de João, modelo de releitura crente da
vida em tempos de crise. v. 356, n. 3, p. 45, 2014.
TOURAINE, Alain. : a decomposição da vida social e o surgimento de atores
não sociais. Petrópolis: Vozes, 2011.
VANNI, Ugo. : Hermenéutica, exégesis, teología. Estella: Verbo
Divino, 2005.
WAISELFISZ, Júlio Jacobo. “A cor dos homicídios no Brasil”. . Dis-
ponível em <http://maparadaviolencia.org.br”>. Acessado em 27 dez. 2014.
ZIZEK, Slavoj. : Hegel and the Shadow of Dialectical Materialism.
Londres: Verso, 2012, p. 983. DICKINSON, Colby. Só os verdadeiros ateus são
teólogos? Sobre o pensamento continental contemporâneo e o seu tom eternamente apo-
calíptico. v. 356, n. 3, p. 50, 2014.

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QOHÉLET E O NOVO

Resumo
-

Palavras-chave:

Abstract

* Mestre em Teologia pelas Faculdades EST.

ISSN 1676-4951 Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015
186 Ruben Marcelino Bento da Silva

Keywords:

INTRODUÇÃO
O tema do novo na Bíblia certamente pode assumir feições variadas tantos
quantos forem os textos bíblicos abordados nessa direção. Contudo, quaisquer
-
çar-se sobre três questões: De que maneira o novo

Que contribuição o texto bíblico pode oferecer à compreensão e à experiência do


novo em nosso tempo?
No âmbito de sua investigação, a saber, o livro de Qohélet, este artigo su-
gere, respectivamente, três respostas: a) Em nossa época, o novo é alvo de uma
busca impetuosa, visto que o sistema econômico global e os constantes avanços
tecnológicos põem à disposição das pessoas ampla variedade de mercadorias, dos
mais diversos gêneros. A emergência contínua de , no entanto, faz com
que o novo caduque de uma hora para outra e, com ele, toda satisfação que pro-
metia; b) Conforme o expõe em seu livro, Qohélet depara-se, sob a perspectiva
histórica e teológica, com a completa ausência do novo. Todavia, seu trabalho in-
vestigativo de sábio leva-o a descobrir em valores velhos o novo capaz de ajudar

dos Ptolomeus; c) Hoje, esses valores podem oferecer às pessoas um fundamento


sólido para a vida perante o esvaziamento de sentido resultante da corrida sem
descanso atrás de um novo que num instante perde o brilho.

1. O NOVO E A CONTEMPORANEIDADE
é uma palavra muito marcante na atualidade. Pode-se dizer que esse
adjetivo extrapolou seu papel de determinante de substantivos dentro da gramá-
tica para tornar-se um indicador da veemência com que se experimenta, sob a

ocidentais. Busca-se a todo instante um produto novo, visto que o que se tem já

o telefone celular em mãos por um novo aparelho com mais aplicativos e


requerem um
, ou seja, mais memória, maior velocidade de processamento de informa-
ções, aumento da capacidade de armazenamento de dados, além de novos softwa-

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


Qohélet e o novo 187

res (programas), mais atualizados. Não se pode permanecer sem renovar o guar-
da-roupa para acompanhar as tendências da moda. A todo instante surgem novos
sabores para degustar, novas imagens para ver, enredos novos para acompanhar,
ideias novas para apreciar. Simplesmente não se consegue dar conta de tanta no-
pipocando aqui e ali, tampouco se deseja que elas parem de estourar.
Por maior que seja o fascínio provocado pelo novo, a insatisfação que o
acompanha não é menos intensa. O apelo do desejo é quase irresistível, porém a
sensação experimentada quando se obtém aquilo que se tinha em vista dura muito
pouco. A imensa variedade de itens disponíveis à escolha do indivíduo – dos pro-
dutos alimentícios aos serviços estéticos; das modalidades de entretenimento aos

religiosas – lança-o num estado de angústia, visto que, embora consciente de sua
autonomia, percebe-a incapaz tanto de levá-lo a provar de tudo como também de
assegurar a permanência dos efeitos daquilo a que conseguiu ter acesso.
Então, a que leva essa incessante procura contemporânea pelo novo? Se o

cessam de aparecer e, pela mesma razão, aquilo que se conseguirá obter adiante
não contentará o desejo por muito tempo, o saldo não será mais do que o vazio

para viver é determinado exclusivamente pelo desejo individual, pergunta-se que


espaço haverá para o pertencimento, o afeto, a aprendizagem, a tolerância. Não
se trata, claro, de hostilizar o novo, considerando-o puramente nocivo, mas de
discutir o seu papel na construção da identidade do indivíduo.
Na literatura bíblica há uma obra que problematiza o novo de maneira bas-
tante singular. Inclusive, é possível estabelecer um ponto de contato entre o juízo

das pessoas hoje. Estamos falando do livro de Eclesiastes ou Qohélet.

2. O LIVRO DE QOHÉLET: SINGULARIDADE E REPETIÇÕES


O livro de Qohélet é um dos mais fascinantes da Bíblia judaica. A razão
disso talvez resida em seu caráter não convencional. Seu autor, que se autodeno-
mina (1,12)1, entrega ao leitor uma obra que, à primeira vista, deixa de

1. A palavra hebraica ( é seu equivalente grego) aparece, ao todo, 7 vezes no livro: 1,1.2.12;
7,27; 12,8.9.10. Embora se trate de um particípio feminino, usa-se exclusivamente com formas verbais masculi-
nas, o que sugere ter sido o autor um homem. A partir da explicação de Whybray, entende-se que, tendo em vista
alguns exemplos semelhantes encontrados em Esd 2,55 e Ne 7,57, , a princípio, designaria um ofício

caso seja levada em consideração a leitura proposta pelo aparato crítico da , cuja

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


188 Ruben Marcelino Bento da Silva

fora elementos teológicos fundamentais encontrados na literatura hebraica (e, em


porção bastante reduzida, aramaica) canônica. O nome sagrado do Deus judaico,
Javé, por exemplo, que ocorre 5.321 vezes no conjunto dos demais2, não é en-
contrado ali; em vez disso, predomina o substantivo (Deus)3.
A aliança entre Javé e Israel, assunto principal dos livros da Torá/Pentateuco
(Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio), tampouco recebe destaque
explícito em suas páginas. A pregação vigorosa contra a injustiça social ou a
idolatria, própria de profetas como Amós, Oseias ou Isaías, também está ausente.
Além disso, temas importantes da literatura sapiencial (gênero ao qual a obra
pertence) – é um deles – são abordados de maneira diferente.
Por outro lado, o texto de Qohélet chama a atenção do leitor pela constante
repetição de ideias. A mais famosa, sem dúvida, é aquela contida na fórmula que
abre e encerra o livro: “Vaidade das vaidades, diz Qohélet, vaidade das vaidades,
tudo é vaidade” (1,2; 12,8)4. A palavra-chave hébel ( – mais propriamente
sopro, vento; por extensão, vazio, ilusão) aparece 38 vezes5, compondo diferentes
expressões: “tudo é vaidade e perseguir vento” (1,14; 2,11.17); “isso também é
vaidade” (2,1.15.19.23; 5,9; 7,6; 8,10.14); “Também isso é vaidade e grande mal”
(2,21); “também isso é vaidade e perseguir vento” (2,26; 4,4.16; 6,9); “pois tudo
é vaidade” (3,19); “Vi, ainda, uma vaidade sob o sol” (4,7); “Também isso é vai-
dade, é mau negócio” (4,8); “Quando há abundância de sonhos e vaidades” (5,6);
“Isso também é vaidade e mal doloroso” (6,2); “pois veio em vão [ :
] e para as trevas se vai” (6,4); “Se há palavras em abundân-
cia, fazem abundar a vaidade” (6,11); “os dias de [minha/tua/sua] vã existência”
(6,12; 7,15 [ : ]; 9,9); “Há algo sobre a terra,
que é pura vaidade” (8,14); “os teus dias vãos” (9,9); “e tudo o que acontece é
vaidade” (11,8); “pois a juventude e a aurora da vida são vaidade” (11,10).
Outros exemplos de expressões ou pensamentos frequentemente pronun-
ciados pelo autor, com variações sutis em determinadas ocorrências, são: “to-
dos os trabalhos com que se afadiga sob o sol” (1,3; 2,18.19.20.22; 9,9); “sob o

. Isso indica-
ria que, nessa obra, provavelmente é um título ou apelido. WHYBRAY, Roger Norman. .
Grand Rapids: Eerdmans; London: Marshall; Morgan & Scott, 1989, p. 2. Conforme Ceresko,
“aquele que reúne” (tanto alunos ou ouvintes como escritos de sabedoria); cf. 12,9. CERESKO, Anthony R. A
. São Paulo: Paulus, 2004, p. 100-101.
2. HARRIS, R. Laird et al. . São Paulo: Vida Nova,
1998, p. 345.
3. A transliteração dos termos hebraicos para o alfabeto latino foi feita com base em HARRIS, -
, p. xiv-xvii.
4. As citações bíblicas foram extraídas de A BÍBLIA. Tradução Ecumênica. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995.
Em 12,8, a fórmula é mais curta: “Vaidade das vaidades, diz Qohélet, tudo é vaidade”.
5. LÍNDEZ, José Vílchez. . São Paulo: Paulus, 1999, p. 133, 433.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


Qohélet e o novo 189

sol/céu” (1,3.9.13.14; 2,3.11.17.18.19.20.22; 3,1.16; 4,1.3.7.15; 5,12.17; 6,1.12;


8,9.15.17; 9,3.6.9.11.13; 10,5); “Que proveito tira o operário do trabalho que
faz?” (1,3; 2,22 [ e
...:
]; 3,9; 5,15); “vi / experimentei / percebi
/ considerei / observei” [verbo : ver] (1,14; 2,13.24; 3,10.16.22; 4,1.4.7.15;
5,12.17; 6,1; 7,15; 8,9.10.17; 9,11.13; 10,5.7); “para tudo há momento” (3,1.17;
8,6); “a mesma sorte cabe a todos” (2,14.15; 3,19; 9,2.3.11); “Nada melhor para
o homem que comer e beber e experimentar felicidade no seu trabalho” (2,24;
3,12.13.22; 5,17.18; 8,15; 9,7); “a obra que Deus faz/a obra de Deus / Deus fez”
[ : obra; : fez] (3,11; 7,13.14.29; 8,17; 11,5).
Por que Qohélet é tão repetitivo? Uma resposta possível é que ele teria ten-
tado compor um estilo de escrever que retratasse sua própria percepção de como
o mundo funciona. Observe-se como o autor começa seu livro (1,4-11):
4 5

Se algo
-

Segundo Glasser, esse trecho é construído na forma de um quiasmo ou es-


trutura concêntrica, tendo por base a antítese do versículo 4, isto é, uma oposição
entre natureza (1,5-8) e humanidade (1,9-11)6. Entretanto, cabe dizer que, com
muita habilidade, Qohélet logo põe em evidência o fator que as une: a repetição,
a imutabilidade, a mesmice. O diagrama abaixo propõe uma organização dos
elementos do texto:

6. GLASSER, Étienne. São Paulo: Paulinas, 1975, p. 26. Certamente essa


não é a única maneira de interpretar os limites dos dois elementos desenvolvidos nesse trecho. Ravasi, por
exemplo, que usa o termo estrofes, divide assim: 4-7 e 8-11. Na primeira estrofe, Qohélet se ocupa do cosmo;
na segunda, do ser humano, representando-o por uma “[...] tríade corporal-existencial: boca aberta, olhos arre-
galados, ouvidos atentos”. RAVASI, Gianfranco. Coélet. São Paulo: Paulinas, 1993, p. 57-58. Contudo, se bem
que possa ser entendido como uma espécie de frase de transição, o versículo 8 é aqui mantido no horizonte da
natureza porque esta, sem dúvida, é a fonte que estimula a atividade dos sentidos referidos (visão e audição), à
qual se junta a articulação da fala.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


190 Ruben Marcelino Bento da Silva

A 1,4a A humanidade: sucessão contínua das gerações


B 1,4b A natureza: permanência indeterminada da terra
B’ 1,5-8 A natureza: • os ciclos ininterruptos do sol, do
vento, dos rios e do mar (6-7)
• a apreensão incansável do mundo
externo pelos sentidos (8)
A’ 1,9-11 A humanidade: • a mesmice do acontecer (9-10)
• a mesmice do fazer (9-10)
• a mesmice do esquecer (11)

Qohélet imediatamente subverte a antítese inicial para mostrar que o vai-


vém constante dos seres humanos, entre o nascer e o morrer, não se traduz em
nada além de atividade monótona destinada a cair no esquecimento, do mesmo
modo que, inscritos numa terra-cosmo7 perpetuamente durável, sol, vento, rios
e mar são incapazes de superar uma circularidade interminável. Diante disso, o
autor conclui: nada (há) de novo sob o sol!
Diferente de hébel, só há duas ocorrências do adjetivo (novo) no
livro de Qohélet, ambas nesse primeiro capítulo (versículos 9 e 10). Todavia, se
hébel
leitor para sua crítica dos saberes e fazeres do seu tempo, a expressão we’ên kol
– – é o martelo batido
única vez, cuja sentença correspondente, porém, vigora em toda a obra. Por isso,
é mais do que razoável considerá-la uma chave de leitura.

3. NADA DE NOVO! – E A ÉPOCA DE QOHÉLET


O adjetivo (também em sua forma feminina, ) é empregado
várias vezes na Bíblia judaica, em contextos positivos e negativos. Dentre os
contextos negativos, podem ser extraídos os seguintes exemplos: um novo rei,

de Israel (Ex 1,8-14); num cântico atribuído a Moisés, censuram-se os israelitas


por oferecerem sacrifícios a deuses novos, recém-chegados, e não a Deus (Dt
32,17); os guibeonitas, dispostos a enganar Josué para obter uma aliança de paz,
novos, estavam agora
velhos, prova de que haviam viajado durante muito tempo até chegarem aos is-
raelitas (Js 9,3-13); após ouvir de Sansão uma suposta revelação da origem de sua

7. Líndez esclarece que o termo (a terra) designa tudo que o autor conseguia contemplar com seus
olhos, isto é, o céu e a terra, o conjunto físico da criação divina. LÍNDEZ, 1999, p. 143.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


Qohélet e o novo 191

força, Dalila amarra-o com cordas novas

fabricarem um carro novo e atrelarem-no a vacas que estivessem amamentando,


-
tas, juntamente com alguns objetos de ouro para reparação (1Sm 6,1-9); o profeta
Aías de Silo rasga o manto novo que trazia consigo em doze pedaços, entregando
dez a Jeroboão como sinal de que Javé lhe dava o controle das tribos do norte, as
quais seriam arrebatadas do sucessor de Salomão (1Rs 11,29-32); o profeta Eze-
quiel adverte seus contemporâneos judeus quanto ao risco mortal de sua revolta
contra Javé, recomendando-lhes que se empenhassem por um coração e um es-
pírito novos (Ez 18,31); Jó se ressentia de já ter sido um homem respeitado entre
os anciãos e os jovens à porta da cidade, quando imaginava que sua glória seria
mantida nova junto a ele (Jó 29,20).
Contextos positivos de uso de / há diversos também: Javé
assegura que, se os israelitas observassem os mandamentos dele, teriam fartura
de alimento por muitos dias, a ponto de ter que fazer retirar o velho para dar lugar
ao novo (Lv 26,10); ao seu amado, a amada conta dos frutos novos e dos frutos
secos que havia guardado para ele (Ct 7,14); Javé anuncia, através de Jeremias,
uma nova aliança com a casa de Israel, por meio da qual ele escreverá sua instru-
ção no coração do seu povo (Jr 31,31-34); a despeito de seu queixume por causa
da destruição de Jerusalém, o poeta ainda espera pelas compaixões de Javé, novas
a cada manhã (Lm 3,22-23); profeta e salmistas convidam a entoar um cântico
novo para Javé, o salvador do seu povo (Is 42,10; Sl 33,3; 40,4; 96,1; 98,1; 144,9;
149,1); na aurora da libertação do cativeiro babilônico, Javé anuncia coisas novas
por meio de seu profeta (Is 42,9; 43,19; 48,6); além de glória entre as nações,
promete-se a Jerusalém um nome novo, que a própria boca de Javé enunciará (Is
62,2); após o exílio, um profeta declara que Javé criará céus novos e uma terra
nova, de maneira que o passado não mais será lembrado (Is 65,17).
Todavia, nas duas únicas ocorrências de em Qohélet, contra todas as

autor a respeito da realidade diante de si é muito pouco animadora. Ao longo do


livro, essa impressão vai se tornando cada vez mais sólida. Costuma-se assumir
que Qohélet teria vivido na cidade de Jerusalém (cf. 1,12)8 em meados do século
III aC, período em que os gregos dominavam a Palestina. Esse cenário, sem dúvi-
da, favoreceria sua declaração de que nada há de novo sob o sol. Desde o século
VI aC, os judeus eram trocados de mãos entre grandes impérios que se sucediam:

cf. LÍNDEZ, 1999, p. 11-22.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


192 Ruben Marcelino Bento da Silva

Com um governo centralizado em Alexandria, no Egito, os Ptolomeus im-


puseram sobre a Palestina duríssimo regime tributário, cuja base era o recolhi-
-
voura e da criação de gado. Esse sistema, por um lado, destruiu o modo de vida
das aldeias e dos pequenos lavradores judaicos, obrigando-os ao endividamento e

funcionários estrangeiros e colaboradores locais oriundos de famílias judaicas de


classe alta. Em Jerusalém, o sumo sacerdote do Templo era o chefe tanto político
quanto secular, responsável pela remessa do tributo à administração real9.
Qohélet vê, portanto, um ambiente semelhante ao de outros séculos: os ju-
deus uma vez mais submetidos à exploração de sua força produtiva por um impé-
rio hegemônico. Nos lábios dos trabalhadores rurais espoliados – e de quaisquer
outros insatisfeitos com o escoamento do ganho de seus esforços para os cofres
dos soberanos gregos – devia pesar a pergunta que Qohélet apresenta em sua obra
(1,3): “Que proveito tira o homem de todos os trabalhos com que se afadiga sob o
sol?” A ausência de uma resposta satisfatória e do mínimo traço de transformação
no horizonte talvez acabasse conduzindo à revolta. É possível que o autor do livro
tenha se deparado com grupos que conspiravam contra a autoridade estatal: “Não
amaldiçoes o rei no teu íntimo nem no teu quarto fales mal do poderoso, pois o
pássaro do céu levará a tua voz e o que tem asas espalhará a palavra” (10,20).
Embora seja verdade que os judeus usufruíram de um período de paz sob os Pto-
lomeus, justamente por causa da manutenção da estabilidade do poder político,
Qohélet deve ter presenciado várias vezes o Estado grego eliminando de modo
sistemático acusados de traição, não importa quão justas fossem suas causas.
A falta de um posicionamento mais ofensivo contra o regime político e eco-
nômico de sua época facilmente lançaria sobre Qohélet a acusação de ser um con-
formista. Sem dúvida, ele pertencia à aristocracia erudita, não ao campesinato10.
Seu distanciamento social, entretanto, não lhe fechou os olhos para a situação de
seus conterrâneos desfavorecidos: “Vi, ainda, todas as opressões praticadas sob o
sol. Eis: as lágrimas dos oprimidos, e não há para eles consolador; a força, do lado
dos opressores, e não há para eles consolador” (4,1). Em certo sentido, Qohélet
estaria jogando a toalha em relação àquilo contra o qual, na concepção dele, se-
ria comprovadamente inútil lutar. De que adiantaria revoltar-se contra o Império
Ptolomaico? Isso apenas traria sangue e morte desnecessários, pois a condição de
vassalagem permaneceria igual ou pior. A maneira que o autor encontra de lidar
com essa realidade é investigá-la, isto é, exercer sua atividade de sábio.

9. Para informações mais aprofundadas sobre a situação política e econômica da Palestina durante o domínio
dos Ptolomeus, cf. LÍNDEZ, 1999, p. 466-477; STORNIOLO, Ivo. . São Paulo: Paulus,
2002, p. 10-24.
10. LÍNDEZ, 1999, p. 15-16.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


Qohélet e o novo 193

4. NADA DE NOVO! E DEUS?


É evidente que semelhante estado de coisas terminaria por levar à pergunta:
-
rios usos na Bíblia judaica, imprime uma tonalidade bastante luminosa e
positiva à relação de Javé com seu povo: Israel deveria esperar dele compaixão
e novidade! Os séculos passaram e eis que os judeus continuavam sob o jugo de
tiranos estrangeiros. Mesmo aquilo que se acreditava ser a morada de Javé na
terra, o Templo de Jerusalém, juntamente com seu chefe, o sumo sacerdote, não
fazia mais que servir de testa de ferro para as ambições dos Ptolomeus.
Contudo, a advertência de Qohélet no tocante à peregrinação ao Templo
demonstra que levava muito a sério o poder ao qual se reportava, em última
instância, a instituição sacerdotal judaica: “Vigia teus passos, quando vais à casa
de Deus. (...). Não se precipite tua boca, nem se apresse o teu coração a proferir
palavra diante de Deus. Pois Deus está no céu e tu, na terra. Logo sejam poucas
as tuas palavras” (4,17; 5,1).
À semelhança de outros autores tardios, como os responsáveis pelos livros
de Daniel e Ester, o sábio judaico evita o uso do nome sagrado do Deus de Israel,
Javé. É provável que haja aqui uma tendência teológica de cada vez mais trans-
cendentalizar a divindade, afastando-a do contato direto com as criaturas. Nesse
de Qohélet, pouco se reconhece do Javé de Abraão, de Moisés, de Davi,
dos profetas. O autor conserva, porém, o tema do , alinhando-se,
assim, à sabedoria tradicional de Israel. Só que, em Qohélet, pode-se dizer que
o temor de Deus é abordado de forma diferente. Enquanto o livro de Provérbios
(1,20-33) declara que acolher o temor de Javé certamente conduzirá à segurança e
desprezá-lo, à desgraça, Qohélet, por sua vez, recomenda: “No dia da felicidade,
sê feliz; e no dia da desgraça, repara: tanto uma como a outra, Deus as fez, para
que o homem nada descubra do que haverá depois” (7,14). Provérbios (14,27),
com triunfo, garante: “O temor do Senhor é fonte de vida! Ele afasta os laços da
morte”. Qohélet, no entanto, rebate: “Ah, morre o sábio da mesma forma que o
insensato” (2,16). “Já vi de tudo na minha vã existência: justo que fracassa por
causa de sua justiça, malvado que sobrevive por sua maldade” (7,15).
Percebe-se em Qohélet não uma recusa do temor de Deus, mas de usá-lo
como moeda de troca num jogo de correspondências obrigatórias entre ações e
consequências. Segundo o sábio de Jerusalém, “Deus está no céu”, ou seja, ele
é indisponível, não se presta a quaisquer tipos de manipulação. Há uma frase de

que ele se ri das nossas tentativas de conhecê-lo pela teologia, aprisioná-lo em


instituições, administrá-lo pela burocracia”11. Qohélet está ciente de que não lhe
compete (e a ninguém) pasteurizar as resoluções divinas: “Sei que tudo o que

11. ALVES, Rubem. São Paulo: Loyola, 2004, p. 24.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


194 Ruben Marcelino Bento da Silva

Deus faz durará para sempre; não há nada a lhe acrescentar, nada a lhe retirar, e
Deus age de modo que haja temor diante de sua face” (3,14). À mercê do Criador,
portanto, a criatura humana, incapaz de assenhorear-se do destino para deter sua
imprevisibilidade, só pode seguir o caminho inevitável de todo ser vivo (3,18-21):

O vaivém constante dos seres humanos marcado pela mesmice, a (recor-


rente) submissão forçada à política exploratória de uma potência estrangeira, o
sobrevindo indiscriminado de felizes ou trágicos acontecimentos, o inevitável de-
saguamento da vida na morte – tudo isso Qohélet encerra sob a epígrafe lúgubre
que, com uma única batida do martelo de sua sabedoria, ele prega aos olhos dos
leitores de ontem e de hoje: nada há de novo sob o sol!

5. QOHÉLET CONCLUIU QUE NADA HÁ DE NOVO... SERÁ?


Conforme vimos antes, o sábio de Jerusalém utiliza muito a palavra
(ver). Com ela, põe o leitor a par de suas investigações. Em algumas ocasiões
é acompanhada pelo adjetivo (ou sua forma
feminina ), que pode ser traduzido em língua portuguesa tanto pelo adjetivo
quanto pelo substantivo , além do adjetivo comparativo .

( ) para o homem que comer e beber e experimentar felicidade (we


) no seu trabalho. Vi ( ) que
também isso vem da mão de Deus” (2,24). “Vejo ( ) que não há nada melhor
( ) para o homem / do que alegrar-se com suas obras, pois essa é a parte que lhe
cabe” (3,22). “Eis o que vejo ( ) ser bom ( ): convém comer e beber, ex-
perimentar a felicidade (we ) em todo o trabalho com
que o homem se afadiga sob o sol, durante o número dos dias de vida que Deus
lhe concede; esta é a parte que lhe cabe” (5,17).
Agora, observemos os dois textos seguintes:
“Nada melhor para o homem que co- “Sei que não há nada melhor para o homem
mer e beber e experimentar felicidade que alegrar-se e fazer o que é bom na vida. E
no seu trabalho. Vi que também isso também, que todo homem que come e bebe e
vem da mão de Deus” (2,24). prova de felicidade em seu trabalho, também
isso é dom de Deus” (3,12-13).

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


Qohélet e o novo 195

Trata-se da mesma ideia básica expressa em duas formulações que possuem


ligeiras diferenças. Uma delas diz respeito ao verbo , o qual Qohélet utili-
za em lugar de para falar sobre sua atividade investigativa em 3,12.
saber, , mas também
talvez seja possível considerar e como sinônimos. Esses verbos esta-
riam descrevendo, então, uma ação de descobrimento. E o que é que Qohélet des-
cobre? Em primeiro lugar, que o trabalho deve proporcionar tanto sustento como
alegria. Em segundo lugar, que o sustento e a alegria pelo trabalho são dádivas de
Deus. Isso é o bom, é a felicidade para o ser humano.
Qohélet, assim, surpreende mais uma vez! Quando o leitor era arrastado
pela onda de palavras aparentemente fatalistas do sábio de Jerusalém, perden-
do-se nas brumas de sua avaliação cética de qualquer possível revolta contra o
domínio grego e de uma teologia ingenuamente alicerçada em piedade meritória,

o que isso quer dizer?


-
mano descubra felicidade ( ) em seu trabalho, por outro lado, diz também que
mais felizes ( ) são dois do que um, pois sua remuneração será melhor. A
partilha de rendimentos, de ânimos e de ternuras ajudá-los-á a resistir contra qual-
quer ameaça externa (4,9-12). Laços de pertencimento, fraternidade e doação
fortalecem as pessoas nos momentos de angústia e presenteiam com esperança
de dias melhores.
Explorando um pouco mais a eventual sinonímia entre e , quem
sabe não se possa aplicá-la igualmente ao que Qohélet diz em 9,7-9?

Como é próprio de seu estilo, Qohélet repete o tema do comer, do beber e do


alegrar-se com o resultado do trabalho como dádivas provindas de Deus. Acres-
centa-lhes, todavia, com o emprego do verbo , a experiência da paixão e do
amor. Se também aqui for interpretado como equivalente a , tal como
descobre o dom de Deus no sustento e na alegria pelo trabalho, Qohélet estaria
recomendando a homens e mulheres que descobrissem juntos, através de uma
relação de amor, aquilo que há de melhor na vida.
Trabalho, sustento, alegria, partilha, amor. Para quem começara um livro
declarando nada haver de novo sob o sol, Qohélet provoca uma reviravolta e

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


196 Ruben Marcelino Bento da Silva

tanto em sua maneira de apresentar a realidade de seu tempo. Digamos que ele
redescobre novidade em coisas que não eram exatamente novas, mas cujo va-
lor transcende uma percepção árida da vida como mera repetição de processos
naturais ou sucessão de eventos indiscriminados, fadada a desaguar no vazio
da morte.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O novo é uma marca de nossa época. No entanto, parece trazer mais angús-
tia que contentamento. Corre-se freneticamente atrás do novo porque ele rapida-
mente se torna velho, defasado. São variedades de roupas, tecnologias, cardápios,
-
capaz de esgotar. Escolhe-se demais, obtém-se felicidade de menos. De maneira
paradoxal, a novidade mergulhou as pessoas na mesmice: troca-se continuamente
o velho pelo novo, porém nunca se experimenta satisfação. Não há nada novo em
escolher o novo sempre de novo!
No século III aC, Qohélet constatara igualmente que, assim como ocorria
com os ciclos naturais, os acontecimentos históricos e a teologia nada mostra-
vam de novo. Os judeus voltaram a ser subjugados política e economicamente
por uma potência estrangeira. A autoridade sacerdotal do Templo de Jerusalém,
mancomunada com os Ptolomeus, garantia-lhes o envio dos tributos. A sabedoria
tradicional insistia que Deus condicionava suas ações de acordo com os méritos
colhidos ou desperdiçados pela conduta individual. Para Qohélet revoltar-se con-
tra os soberanos de Alexandria seria um erro, do mesmo modo que a sabedoria
tradicional soava-lhe redondamente equivocada.
Em sua atividade investigativa de sábio, porém, Qohélet descobre o que
há de mais essencial no privilégio de existir: a alegria dos prazeres mais ele-
mentares – comer, beber, conviver, partilhar, amar. Como tudo na natureza, o ser
humano também acaba e, com ele, as tristezas vividas e toda e qualquer chance
de alegria que teria sido possível desfrutar. Perceber isso a tempo e fruir o que é
bom enquanto há oportunidade é uma dádiva de Deus. Nisso não há nada novo,
mas, insiste Qohélet, com isso se pode começar a viver uma vida nova. Por que
não aplicar a descoberta do antigo sábio de Jerusalém e renovar o cultivo de valo-
res de pertencimento e afeto nestes nossos dias em que o que surge de mais novo

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Qohélet e o novo 197

A BÍBLIA – Tradução Ecumênica. São Paulo: Paulinas; Loyola, 1995.


ALVES, Rubem. São Paulo: Loyola, 2004.
CERESKO, Anthony R. . São Paulo: Paulus, 2004.
ELLIGER, Karl; RUDOLPH, Wilhelm (Eds.). . Stuttgart:
Deutsche Bibelgesellschaft, 1990.
GLASSER, Étienne. São Paulo: Paulinas, 1975.
HARRIS, R. Laird et al. . São
Paulo: Vida Nova, 1998.
LÍNDEZ, José Vílchez. . São Paulo: Paulus, 1999.
RAVASI, Gianfranco. Coélet. São Paulo: Paulinas, 1993.
SCHÖKEL, Luis Alonso. . São Paulo: Paulus,
1997.
STORNIOLO, Ivo. . São Paulo: Paulus, 2002.
WHYBRAY, Roger Norman. . Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing
Co.; London: Marshall, Morgan & Scott, 1989.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 185-197, abr/jun 2015


O NOVO NA LITURGIA NO LIVRO DO DEUTERONÔMIO
Pode a centralização da liturgia
ser nova e libertadora?

Resumo

-
-

Palavras-chave:

Abstract

* Doutor em Teologia, na área do Antigo Testamento, com a tese doutoral: “Origem e legislação do Deuteronô-
mio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos”, no Instituto Ecumênico de Pós-graduação,
São Leopoldo, RS. Professor de Antigo Testamento e História de Israel na Fapas - Faculdade Palotina, Santa
Maria, RS.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 199

Keywords:

INTRODUÇÃO
O estudo do tema do novo na liturgia no livro do Deuteronômio vai ser
antecipado pela abordagem sintética de algumas questões introdutórias a respeito
deste livro. O nome ‘Deuteronômio’ é formado por duas palavras gregas: -
‘posterior, segundo’ e ‘lei’. O substantivo ‘Deuteronômio’, portanto,

mesma lei (Dt 17,18).


O livro do Deuteronômio foi estilizado como um conjunto de quatro dis-
cursos de Moisés, proferidos aos israelitas em Moab, antes da sua morte. As-
sim ele se encontra atualmente em nossas Bíblias. O primeiro se encontra em Dt
1,1–4,43; o segundo estende-se de Dt 4,44 até 28,68; o terceiro vai de Dt 28,69
até 32,52. E o último contém as bênçãos de Moisés em Dt 33,1-29. Em Dt 34
descreve-se a morte de Moisés no monte Nebo. O conteúdo do Deuteronômio
é alternado por relatos históricos, textos exortativos e pelo Código Deuteronô-
mico, isto é, pelo decálogo em Dt 5,6-21, pelas suas leis complementares em Dt
12–26 e pela lista de bênçãos e maldições em Dt 28. O processo de gestação e de
formação do Deuteronômio durou mais de trezentos anos. Suas partes mais anti-

(725-696 aC). Ele foi ampliado durante o reinado de Josias (640- 609 aC) e serviu
de Constituição do povo de Israel durante mais de um decênio. Ele recebeu vários
acréscimos, na época posterior ao exílio dos israelitas na Babilônia, até receber a
forma atual nas nossas Bíblias1.
Este estudo visa destacar os elementos novos da liturgia no livro do Deu-
teronômio. Estes se originaram por causa da centralização do culto israelita no
templo de Javé em Jerusalém. Em vista disso, a primeira parte apresenta as cau-
sas que levaram os liturgistas deuteronômicos a centralizar toda a liturgia, isto
é, a oferenda dos sacrifícios, as festas e comemorações no santuário central em
Jerusalém. A segunda parte destaca os elementos novos, criados pelos liturgistas
deuteronômicos, por causa da centralização de todo o calendário litúrgico no tem-
plo de Javé em Jerusalém.

1. KRAMER, Pedro. “Céu como bronze e terra como ferro” (Dt 28,23). Ecologia no Livro do Deuteronômio”.
, n. 118, Abr./Jun., 2013, p. 183-194, especialmente p. 184-188. BRAULIK, Georg. “Das Buch
Deuteronomium”. Em: Erich Zenger et al. (Orgs.). . 8. ed. Stuttgart: Verlag W.
Kohlhammer, 2012, p. 163-188.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


200 Pedro Kramer

1. CAUSAS DA CENTRALIZAÇÃO DA LITURGIA NO TEMPLO DE


JERUSALÉM
Quando se ouve falar em centralização da liturgia e, ainda mais, em sua cen-
tralização num santuário determinado como o templo de Jerusalém, começa-se
certamente logo a pensar em culto, ditado de cima para baixo, por uma autori-
dade determinada ou em sua uniformização. Ou imagina-se, talvez, a proibição
da liturgia local ou regional que valoriza as experiências de vida das pessoas e

centrada num único lugar, tem chance de sobreviver? Não estaria tal tipo de culto
condenado à esterilidade, à pura repetição de ritos, a um folclore cultural vazio
de conteúdo religioso? Mas, por outro lado, será que toda e qualquer liturgia cen-
tralizada é sempre negativa? Será que não pode haver uma liturgia centralizada
que valoriza, acolhe e defende as experiências vivas e as tradições variadas de
um povo ou de uma nação inteira? A estas ponderações e a estes questionamentos
quer-se dar uma resposta através da compreensão do culto presente no livro do
Deuteronômio.
a) A centralização de todo o culto a Deus no livro do Deuteronômio tem
várias razões. Uma delas remonta à época do rei Ezequias de Judá (725-697 aC)2.
Um enfoque de sua política era o fato de que, mais cedo ou mais tarde, o exér-
cito assírio faria uma excursão militar para o oeste do antigo Oriente Médio a

habitantes a pagar altos tributos e a viver submetidos a sua política econômica,


social, religiosa e cultural. Um enfrentamento em campo aberto do pequeno
exército israelita com o poderio militar dos assírios seria desastroso para os
interesses do diminuto Reino do Sul. Em vista disso, para proteger a população

cidades, nas quais, então, os israelitas poderiam se proteger diante da invasão


do exército assírio.
Por melhor que fosse essa estratégia política de Ezequias, pois ela visava
proteger a população israelita diante de um eventual ataque militar dos assírios,
ela não evitou uma série de problemas para a população rural israelita. Ela gerou
rupturas profundas com a vida das famílias e dos clãs arraigados à propriedade
agrícola e ao culto dos seus antepassados. Para favorecer e legitimar esse êxo-
do rural e esse processo de concentração da população rural, em certos centros
urbanos do Reino de Judá, centraliza-se também a liturgia no templo de Jerusa-
lém, com a provável concomitante destruição de santuários da região interiorana,
como o altar de chifres em Tel Xeba e a remodelação do santuário de Javé em
Tel Arad.

2. KRAMER, Pedro. . Programa de uma sociedade sem empobrecidos e


excluídos. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 17-20.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 201

A política estratégica do rei Ezequias de concentrar e proteger a população


rural israelita em certas cidades muradas do Reino de Judá parece corresponder
à verdade histórica dos fatos, porque a informação bíblica em 2Rs 18,13 encontra-se
também nos Anais do rei assírio Senaquerib (704-681 aC):
.E
o testemunho em 2Rs 18,4.22 parece corresponder às descobertas arqueológicas
em Tel Arad e em Tel Xeba: -

No livro das Crônicas, que é bastante recente, há uma informação interes-


sante. Será que ela remonta ao tempo do rei Ezequias? Nela se ressalta que, no
tempo do rei Ezequias, a festa dos Pães Ázimos foi centralizada em Jerusalém e
aí ela foi celebrada:
(2Cr 30,13).
Esta última informação bíblica corresponde muito bem com os dados em

Este texto, como já foi dito acima, se encontra também nos Anais do rei assírio
Senaquerib. Nestes há, além disso, outra informação interessante. Esta relata que
Senaquerib, além de conquistar quarenta e seis cidades de Judá, deixou Ezequias
em Jerusalém como um ‘pássaro na gaiola’. Isto quer dizer que o único espaço de
autonomia e de liberdade do rei Ezequias era a Cidade-Estado de Jerusalém. O rei
assírio achava inicialmente que seria fácil apoderar-se também da capital. Mas,
como nos informa 2Rs 19,35-37, ele teve que levantar o acampamento e retornar
para Nínive, sem ocupar a capital israelita. O motivo dessa retirada inesperada
foi talvez o medo que surgisse um rei rival e que ele lhe usurpasse seu poder. Isto
aconteceu no ano de 701 aC.
O profeta Isaías, que criticou várias vezes a política ambivalente desse rei

dos Pães Ázimos foi centralizada no templo de Jerusalém, mas todas as coisas,
isto é, a economia, a política, o culto e a cultura. Somente aí se podia transitar
com relativa liberdade.
Esta é a hora da origem e do surgimento do Deuteronômio. No momento em
que as leis do assim chamado “decálogo cultual” em Ex 34,10-26 e do Código da
Aliança em Ex 21–23 bem como a lei do altar em Ex 20,22-24 foram centraliza-
das única e exclusivamente no templo de Jerusalém, pode-se falar, pela primeira
vez, da existência do Deuteronômio. Como, para os israelitas, sobrou apenas a
Cidade-Estado de Jerusalém como espaço de autonomia e de liberdade, é óbvio

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


202 Pedro Kramer

que agora tudo converge para esta capital e dela decorrem todas as orientações
para a vida dos israelitas na região interiorana dos Reinos do Norte e do Sul.
Esta é igualmente a hora do nascimento da “fórmula de centralização”:
Ela
se encontra repetida em quatorze leis no livro do Deuteronômio. Estas centrali-
zam seu conteúdo em Jerusalém: Dt 12,4-7.8-12.13-19.20-28; 14,22-27; 15,19-
23; 16,1-8.9-12.13-15.16-17; 17,8-13; 18,1-8; 26,1-11; 31,10-13. Estas leis
de centralização, espalhadas por todo o livro do Deuteronômio, ou seja, 2x7
leis, – o número sete é número de plenitude e de totalidade, assim há duas pleni-

uma vezes, isto é, 3x7, novamente várias plenitudes, a assim chamada ‘fórmula
de centralização’ com mais ou menos o mesmo teor3. Nem todas as perícopes que
contêm a ‘fórmula de centralização’ têm a mesma origem histórica. Há, no entan-
to, algumas, como Dt 12,13-19, que foram redigidas no século VIII aC.
A tese, portanto, que data a origem do Deuteronômio durante o reinado de
Ezequias, é interessante e muito provável devido ao pano de fundo histórico que
a situação da Assíria e a política nacional do rei Ezequias fornecem. A situação

da Cidade-Estado de Jerusalém, favoreceu a centralização de tudo, especialmente


do calendário litúrgico, no templo de Jerusalém. Assim se poderia criar um cen-
tro simbólico de unidade dentro de uma situação caótica de desmantelamento de
várias instituições na sociedade israelita.

aC, se compunha provavelmente apenas de leis litúrgicas, provindas de Ex 34,10-


26, e de algumas leis ético-sociais, extraídas de Ex 21–23. Ele possivelmente

bênçãos e maldições em Dt 28. Apesar do seu tamanho reduzido, ele era a Torá,
isto é, a base da vida dos israelitas e a orientação fundamental do governo do rei
Ezequias.
b) Esse Deuteronômio original, no entanto, caiu no esquecimento e foi dei-
xado de lado durante o governo dos reis de Judá, Manassés (696-642 aC) e do seu

no Segundo livro dos Reis, sintetizam muito bem sua política de submissão aos
assírios em todos os sentidos e, por conseguinte, de rompimento com Javé. O
Deuteronômio original sumiu dentro do templo de Jerusalém:

[...]. -
(2Rs 21,5-6.16).

3. KRAMER, 2006, p. 62-63.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 203

O rei Manassés participou, com mais de vinte reis vassalos, da solene ce-
lebração no santuário central de Nínive, na qual eles prometeram ao rei assírio
-
nhado de juramento. O exegeta G. Braulik ainda acrescenta que o rei Manassés,

e do amor exclusivo ao rei assírio o seguinte formulário: “Se vós não amardes
Asaradon, vosso senhor, como a vossa própria vida, com todo o coração, com
toda a alma e com toda a força”. Este texto do tratado de vassalagem tinha ainda

apenas com os lábios e não com todo o vosso coração”4. Não há necessidade de
muita fantasia para imaginar que o redator de Dt 6,4 copiou literalmente o texto

dos reis vassalos ao grão-rei assírio, substituindo apenas o nome do rei assírio
Asaradon pelo de Javé.
Nestas celebrações solenes de juramento do texto de tratado entre os reis
vassalos e o rei assírio entregava-se também o tributo imposto pelo rei assírio. É
desconhecida a quantia de tributos que o rei Manassés devia pagar ao rei assírio.
O rei Ezequias, no entanto, devia pagar ao rei Senaquerib a ‘bagatela’ de trezen-
(2Rs 18,14). Destes dados pode-se ter uma
ideia a respeito de quanto, mais ou menos, o rei Manassés pagava de tributo aos
assírios. Levando-se em conta que um talento equivale aproximadamente a 34kg,
então, disto resulta como tributo a ser pago: 10.200kg de prata e 1.020kg de ouro.
O texto original no cilindro de Taylor, col. III, 34ss., no entanto, contém outros
números referentes ao tributo que Ezequias devia pagar: “30 talentos de ouro, 800
talentos de prata e muitas preciosidades”5.
c) Outra causa que legitimou a centralização, especialmente, da liturgia no
templo de Jerusalém, aconteceu durante o governo do rei de Judá, Josias (640-609
aC)6
uma conspiração palaciana. Os assassinos do rei foram mortos por um grupo de
agricultores do Reino do Sul, chamado de ‘povo da terra’. Estes entronizaram
Josias, com apenas oito anos de idade (2Rs 21,19-26). É evidente que esse grupo
de agricultores queria governar por conta própria, durante os anos de minoridade
de Josias, assessorado por peritos em política, em religião e em leis. É o retorno
à política nacional israelita e, principalmente, a conversão ao Deus Javé. Esta

4. BRAULIK, Georg. “Die Liebe zwischen Gott und Israel. Zur theologischen Mitte des Buches Deuterono-
mium”. 41, 2012, p. 549-564, p. 551.
5. DONNER, Herbert. . V. 2. Petrópolis: Vozes ; São Leopoldo: Sinodal,
1997, p. 373, nota 42.
6. KRAMER, 2006, p. 20-32.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


204 Pedro Kramer

aos assírios e aos seus deuses bem como a opção única e exclusiva por Javé.
Esta mudança de atitude dos israelitas em relação à Assíria, no entanto, só
foi possível porque a política do rei Assurbanipal (669-630 aC) já dava sinais cla-
ros de decadência. Este vácuo de poder internacional proporcionou ao rei Josias,
no ano de 626 aC, a realização de uma profunda reforma e a renovação de todos
os setores da vida dos israelitas em Jerusalém e no Reino de Judá. Ele iniciou

tolerada ou talvez até incentivada pelos reis Manassés e Amon, durante o longo
período de dominação assíria.
Os trabalhos de reforma no templo, no entanto, trouxeram à tona o “Livro
da Lei”. O sumo sacerdote Helcias comunicou ao secretário do rei Josias, Safã,
apenas o seguinte: (2Rs 22,8). Este
livro foi lido por Safã que, depois, o leu também para o rei Josias. Seu conteúdo
devia tê-lo impressionado profundamente: -
(2Rs 22,11). E não só isso. Ele imediatamente
ordenou aos seus melhores e mais diretos servidores para que fossem levar o “Li-

do conteúdo deste Livro. Ela comprovou a veracidade e a legitimidade do seu


conteúdo (2Rs 22,12-20).
-
los biblistas com o Deuteronômio original, composto no tempo do rei Ezequias,

Em base a este Deuteronômio original com, certamente, alguns acréscimos,

Deus do povo de Israel. O redator do texto em 2Rs 23,1-2 está preocupado em


não esquecer ninguém porque todos os israelitas devem renovar a sua aliança
com Javé. O Deuteronômio original, chamado de “Livro da Lei” em 2Rs 22, é
agora designado de “Livro da Aliança” (2Rs 23,3).
E, por incrível que pareça, o mesmo formulário, usado por Manassés do Rei-

ao rei assírio e aos deuses do panteão assírio, é agora utilizado pelos israelitas e
pelo rei Josias para renovar a aliança única, exclusiva e incondicional com Javé:

(2Rs 23,3).
Esta renovação da aliança, baseada no texto do Deuteronômio original, é a
mais nítida declaração da independência dos israelitas da Assíria, em nível eco-
nômico, social, político, religioso e cultural. É o grito de liberdade da dominação

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O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 205

e exploração dos assírios durante mais de cem anos. Esta declaração da indepen-
dência foi explicitada através da celebração da Páscoa israelita. Esta celebração
sempre recorda a libertação original dos hebreus da escravidão egípcia. A sua
comemoração agora festeja a libertação dos israelitas da escravidão dos assírios.
Essa declaração da independência da Assíria com a celebração da páscoa liberta-
dora em Jerusalém tem uma data bem precisa:
-
(2Rs 23,23). Esta data corresponde ao ano de 622 aC do reinado de Josias.
À renovação da aliança e à celebração da páscoa libertadora segue uma
verdadeira reforma religiosa, acabando com os ritos, os templos e os agentes
idolátricos no Reino de Judá (2Rs 23,4-20.24). Esta reforma do rei Josias está
muito bem testemunhada e sintetizada em 2Rs 23,25:

Este testemunho faz


do rei Josias um israelita e rei exemplar.
As razões aludidas acima mostraram que podiam surgir situações na his-
tória de um povo em que a liturgia centralizada, num só templo e numa única
cidade, não precisava ser necessária e automaticamente negativa. No caso do
povo de Israel, no tempo do rei Ezequias, a centralização da liturgia era a única
possibilidade de autonomia e liberdade que lhe restava. É evidente que, por outro
lado, a centralização da liturgia, num só templo e apenas em uma única cidade,
podia provocar rupturas com os santuários locais e regionais. Mas, este mesmo
fator negativo podia se tornar fonte de criação de uma novidade radical no culto
do povo de Israel. E o novo que a liturgia deuteronômica criou é a romaria, a
peregrinação e a caminhada dos israelitas para o templo de Jerusalém e seu jeito
novo de celebrá-la diante de Javé. De agora em diante, todos os sacrifícios, toda a
oferenda dos primogênitos e dos dízimos bem como todas as festas, celebrações
e comemorações só poderão ser realizados no lugar escolhido por Javé. Esta no-
vidade litúrgica, provocada pela centralização do culto no templo de Jerusalém,
vai ser desenvolvida e apresentada no item a seguir.

2. O NOVO NA LITURGIA DEUTERONÔMICA


É evidente que a centralização de todo o culto em Jerusalém provocou
muitas mudanças e rupturas profundas na vida do povo de Israel. Estas, no entan-
to, não só tiveram consequências negativas. Aliás, muitas delas se tornaram até
muito positivas, graças à criatividade dos liturgistas deuteronômicos. Estas serão
destacadas nos passos seguintes.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


206 Pedro Kramer

A centralização de todo o culto israelita, no lugar escolhido por Javé, que é


concretamente o templo de Jerusalém, provocou a criação de um novo ritual litúr-
gico: a romaria7. Após ter descrito as razões que levaram as autoridades israelitas
a centralizar toda a liturgia no templo de Jerusalém, procura-se agora compreen-
der e descrever esta realidade nova na vida dos israelitas.
A romaria dos israelitas para Jerusalém mudou, para muitos deles, o eixo
de suas vidas, em vários sentidos. Este eixo mudou radicalmente de direção. En-
quanto que, no tempo dos reis Manassés e Amon, a romaria dirigia-se para a
central dos assírios, que era a capital Nínive, para onde os tributos, como sinal
de submissão e de dependência, eram levados, agora os dízimos e o material dos
sacrifícios e das oferendas são conduzidos para a central dos israelitas, a capital
Jerusalém. Enquanto que dos reis assírios de Nínive vinham as ordens, a domina-
ção da língua e da religião, agora as orientações básicas para a vida dos israelitas
têm sua fonte no Deus Javé. Em síntese, a rota humilhante, deprimente e sufo-
cante para Nínive mudou radicalmente. Agora, com a centralização do culto no
lugar escolhido por Javé, é para seu templo que são levados os dízimos anuais, os
primogênitos machos dos animais e as primícias dos produtos da terra prometida,
todo o material para os sacrifícios e as oferendas. E, além disso, é neste santuário
central que as celebrações, as festas e as comemorações são realizadas. Portanto,
um conteúdo renovado e um ritual cultual novo, em linguagem e estrutura do

dos liturgistas deuteronômicos. Que criatividade teológico-litúrgica dos redato-


res das leis litúrgicas do Deuteronômio!
O novo ritual litúrgico, como a romaria para o

fazê-lo habitar (Dt 12,5), criado pelos redatores deuteronômicos, encontra-se,


-
nômio: 12,4-7.8-12.13-19.20-28; 14,22-27; 15,19-23; 16,1-8.9-12.13-15.16-17;
17,8-13; 18,1-8; 26,1-11; 31,10-13; estas leis de centralização podem ser facil-

de centralização”, com pequenas variações. Nesta série de leis, ele descobre uma
espécie de esquema que ele passa a chamar de “esquema de romaria”8. Este es-

7. KRAMER, 2006, p. 61-66.


8. LOHFINK, Norbert. “Opferzentralisation, Saekularisierungsthese und mimetische Theorie”. In: _______.
III. SBAB 20. Stuttgart: Verlag Katholisches
Bibelwerk, 1995, p. 219-260, p. 233. KRAMER, 2006, p. 61-66.

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O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 207

quema tem, para ele, quatro passos. Estes não aparecem, com a mesma intensida-
de, em todas as leis de centralização. Mas, há nelas verbos ou frases verbais que
descrevem uma série repetitiva de ações subjacentes a elas.
a)
preparação da peregrinação em casa, no local da moradia dos romeiros. Este ele-
mento aparece bem destacado na lei de centralização das primícias em Dt 26,1-
11. O agricultor israelita recolhe as primícias da terra e as coloca num cesto. E
assim elas são levadas para o templo de Jerusalém. Este elemento, além disso,
também se encontra enfatizado na lei das causas difíceis que, segundo Dt 17,8-
13, devem ser julgadas pelos sacerdotes levitas nas cidades do interior do Reino
de Judá. Como estas, no entanto, ultrapassam a competência deles, devem ser
apresentadas aos sacerdotes levitas e ao juiz que estiverem atuando no templo de
Jerusalém nesses dias.
b) O segundo passo do esquema de romaria é a viagem de casa rumo ao san-
tuário central. Dependendo da respectiva lei de centralização, o casal agricultor
deve estar atento às pessoas que ele deve convidar, no seu povoado ou na cidade,
-
rações. Elas podem ser escravos, levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas. O motivo
desse passo não ser tão enfatizado nas leis de centralização pode-se talvez atribuir
ao fato do cansaço e do sofrimento que a viagem para Jerusalém podia acarretar.
E, além disso, não se pode descartar oposição, aberta ou velada, à lei da centrali-
zação. Ninguém duvida que seria muito mais fácil e simples realizar celebrações,
festas, comemorações e sacrifícios nos santuários locais ou regionais, tão antigos
e tão queridos.
c) O terceiro passo do esquema de romaria é a ação propriamente dita no
templo de Javé. Dependendo das leis de centralização, algumas vão destacar mais
certas ações e outras, procedimentos diversos. Basta apenas pensar nas diferentes
celebrações e nos vários tipos de sacrifícios. Quanta variedade de ação cultual no
templo! Mas, apesar de tanta diversidade litúrgica, por causa dos seus conteúdos

comunitária e/ou com o convite à alegria pelos mais variados grupos de partici-
pantes. A alegria é, sem dúvida, o ponto alto da liturgia realizada no templo de
Jerusalém, na presença de Javé. Que compreensão criativa e libertadora de culto
dos liturgistas deuteronômicos!
d) O quarto passo do esquema de romaria é o retorno para casa, isto é, onde
os presidentes e os participantes do culto residem. Ele, nas leis de centralização,
não é muito enfatizado. No entanto, deve ser sempre suposto, onde há exortações
e parêneses, pois estas apontam para a vida em casa em família, após a liturgia
vivida no santuário central, como por exemplo em Dt 12,28; 15,21-23; 16,12.15;
17,13; 31,12-13.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


208 Pedro Kramer

Ao analisar as comemorações, as festas e os sacrifícios do calendário litúr-


gico deuteronômico, percebe-se logo que suas realizações têm sempre em vista
criar fraternidade/irmandade, solidariedade e partilha, sinais de uma sociedade
sem empobrecidos e excluídos.

2.2.1 O NOVO NAS COMEMORAÇÕES DA PÁSCOA E DOS PÃES ÁZIMOS

Segundo o calendário litúrgico deuteronômico, as celebrações da Páscoa e


dos Pães Ázimos foram juntadas numa só comemoração. A integração aconte-
ceu devido a seu conteúdo muito próximo e à ligação delas com a libertação da
opressão do Egito.
-
(Dt 16,1). E a respeito da celebração dos Pães
Ázimos prescreve-se: (Páscoa)

(Dt 16,3).
A hora do início da celebração da Páscoa e dos Pães Ázimos é indicada no
texto pela alusão (Dt 16,6). Ela se estende durante toda a
noite. Da carne cozida (Dt 16,7) dos bois e das ovelhas (Dt 16,2) nada deverá
-
mer pão fermentado, mas só pão ázimo (Dt 16,3). A celebração da Páscoa dura
um dia, ela inicia à tarde, prolonga-se noite adentro, estende-se até a manhã do
dia seguinte. Após sua comemoração volta-se para as localidades onde se mora.
A celebração dos Pães Ázimos, no entanto, se estende durante sete dias. Ela
inicia na mesma noite em que se comem a carne cozida da Páscoa e o pão sem
fermento, no santuário central em Jerusalém. Ao voltar para as residências, conti-
nua-se a comer pão ázimo, durante sete dias, nos povoados e nas cidades do Rei-
no de Judá. Os ritos dessas duas celebrações, integradas numa só comemoração
da libertação da opressão do Egito, são muito concretos. Cada israelita, que delas
participa, sente no seu próprio corpo a carne cozida, certamente muito gostosa,

de pão sem fermento durante sete dias, nas localidades onde se vive.
A presidência e os participantes da celebração da Páscoa e dos Pães Ázimos
o texto atribui ao “tu”. E esse “tu” alude a todo o povo de Israel que, de uma ou
de outra forma, preside à celebração da Páscoa e dos Pães Ázimos e dela partici-
pa. Certamente, ao pai e à mãe de família cabia uma responsabilidade especial.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 209

Jerusalém. Após sua imolação, a carne dos animais era cozinhada. E assim se pre-
parava a ceia pascal comunitária e se tomava parte dela. Ao amanhecer, volta-se
para casa, onde todos, homens e mulheres, grandes e pequenos, passam sete dias,
comendo pão sem fermento. Que bela experiência de fraternidade/irmandade es-
sas duas comemorações promovem! Que consciência crítica elas criam e que
espiritualidade profética e mística libertadora elas alimentam nas pessoas! Será
que a celebração da Páscoa cristã cria, nos seus presidentes e seus participantes,
a resistência a todo e qualquer tipo de opressão e alimenta a luta pela libertação
das pessoas por mais vida?
Os outros textos na Bíblia que falam da Páscoa e dos Pães Ázimos descre-
vem-nas como celebrações com conteúdos diferentes. Elas são comemoradas em
dias distintos e em locais espalhados pelo território israelita, cujos participantes

na história do povo de Israel enfoques diferentes.

2.2.2 O NOVO NAS FESTAS DAS SEMANAS E DAS TENDAS

A festa das Semanas e das Tendas (Dt 16,9-15)9 celebram o resultado das
colheitas do agricultor israelita, durante o ano. Através delas, ele proclama o
Deus Javé, como a fonte da bênção e da libertação, porque ele é a causa última da
fecundidade das pessoas e dos animais e da fertilidade da terra. Na festa das Se-
manas, ele rende graças a Deus pela colheita dos cereais, no verão; na das Tendas,
ele agradece pelos produtos vindos da eira e do lagar, no outono. Elas prescrevem
-
-
das no templo de Jerusalém durante o tempo da colheita, em forma de rodízio.
A festa das Semanas é celebrada durante um dia, no quinquagésimo dia,
após as sete semanas seguintes ao início da colheita das espigas (Dt 16,9). A festa
das Tendas, por outro lado, é comemorada durante sete dias, após o recolhimento
do produto da eira e do lagar (Dt 16,13). As duas festas não contêm um rito espe-

das duas festas é a alegria diante de Javé durante as refeições comunitárias (Dt
16,11.14-15).
A novidade na comemoração destas duas festas consiste no fato de que, em

9. KRAMER, 2006, p. 48-50.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


210 Pedro Kramer

ser entregue a alguém ou a alguma instituição ou até queimada em honra de Javé.


Mas, então, quem vai consumir tudo isso? A resposta é simples: todo o povo de
Israel, os ofertantes do resultado das colheitas e os participantes das ações litúr-

e os legalmente dependentes, como o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (Dt


16,11.14). Essas refeições comunitárias, festivas e alegres diante de Javé são a
realização real e simbólica da fraternidade/irmandade de todo o povo de Israel.
Nenhuma pessoa e nenhuma classe social da sociedade israelita são excluídas
e descriminadas, porque a participação de todos nessas refeições comunitárias
diante de Javé é um direito ancorado na legislação litúrgica deuteronômica.
Este pano de fundo ajuda a entender melhor por que a característica funda-
mental dessas duas festas é a alegria. E, de fato, a alegria apenas torna-se comple-
ta quando, nas refeições comunitárias diante de Javé, não houver mais excluídos,
marginalizados e oprimidos. Celebrar e presidir festas, deste modo, é uma grande
novidade e uma experiência de fraternidade/irmandade única no mundo. Isto foi
criado pelos liturgistas deuteronômicos quando eles centralizaram as festas no
templo de Jerusalém.

2.2.3 O NOVO NA LITURGIA DA OFERENDA DOS SACRIFÍCIOS

Em Dt 12,13-28, o redator deuteronômico elenca seis tipos diferentes de


sacrifícios: holocaustos, dízimo do trigo, vinho e óleo, primogênitos das vacas e
das ovelhas, sacrifícios votivos, sacrifícios espontâneos e dons das mãos. A lista
de sacrifícios é completada pela oferenda das primícias em Dt 26,1-11. Todos es-
tes sete sacrifícios devem ser oferecidos a Javé no templo de Jerusalém. Também
eles foram centralizados no santuário comum de todos os israelitas. Esses dois
textos, Dt 12,13-28 e Dt 26,1-11, recebem um destaque especial pelo legislador
deuteronômico porque eles formam a moldura em torno das leis complementares
ético-econômicas em Dt 13–25. É um consenso quase total que a perícope Dt
12,13-28 é a mais antiga de Dt 12 e que sua formulação seja pré-exílica.
As leis referentes ao dízimo e as que se relacionam com os primogênitos
machos das vacas e das ovelhas recebem uma legislação própria e detalhada em
Dt 14,22-27 e em Dt 15,19-23. A lei da centralização do dízimo anual do trigo,
do vinho e do óleo, prescrita em Dt 12,17 e regulamentada em Dt 14,22-27, po-
deria ter sido abolida, pois era principalmente empregada para sustentar os san-
tuários locais e regionais e o pessoal do culto. Mas, não foi. Porque o legislador
deuteronômico transformou a entrega do dízimo anual num meio de promoção
da partilha e da solidariedade entre as pessoas socialmente fracas e legalmente

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 211

dependentes. Assim, na sociedade israelita não deveria mais haver empobrecidos


e excluídos. E, além disso, ela deveria se tornar uma sociedade nova e alternativa
em relação às demais sociedades.
A lei da centralização dos primogênitos machos, prescrita em Dt 12,17 e
Dt 14,23 e regulamentada em Dt 15,19-23, ordena que eles também não devem
ser entregues, no santuário central, a alguém e a uma instituição, mas apenas
consagrados a Javé. Como, porém, este Deus não quer que o primogênito seja
queimado em sua honra, como as vítimas nos holocaustos (Dt 12,13.27), ele de-
volve o animal ao agricultor para que seja consumido numa refeição comunitária
e familiar diante dele (Dt 15,20). Portanto, também a lei da oferenda dos primo-
gênitos é transformada pelo redator deuteronômico para favorecer a partilha e a
solidariedade entre os empobrecidos e excluídos. Esta novidade litúrgica, criada
através da oferenda dos sacrifícios, tonou-se mais uma marca registrada da socie-
dade Israelita na segunda parte do século VII aC.
Esses sete tipos de sacrifícios, no entanto, contêm diferenças e semelhanças
em relação às duas celebrações da Páscoa e dos Pães Ázimos, em Dt 16,1-8 e em
relação às duas festas, a das Semanas e a das Tendas, em Dt 16,9-15. A diferença
maior entre essas várias ações cultuais se encontra no fato de que as celebrações
e as festas são comemoradas uma vez por ano:
-
(Dt 16,16),
enquanto que os vários tipos de sacrifícios conduzem o povo de Israel, diversas
vezes ao ano, para o templo de Jerusalém.
E a semelhança maior entre as duas celebrações, as duas festas e os sete
tipos de sacrifícios são as refeições comunitárias diante de Javé, das quais par-
ticipam pessoas empobrecidas, dependentes e sem-terra, como o servo e a serva
e o levita (Dt 12,18). Se, no entanto, o estrangeiro, o órfão e a viúva não são

são intencionalmente excluídos. Até pelo contrário. Porque, presumivelmente,


por ocasião da festa das Tendas, que era celebrada durante sete dias, acontecia
a entrega dos dízimos anuais, dos primogênitos machos e das primícias. E dessa
festa participam, com pleno direito, o estrangeiro, o órfão e a viúva (Dt 16,14).
Outra semelhança, no mesmo nível, transparece tanto nas duas festas, a das
Semanas e a das Tendas, como na oferenda dos sete sacrifícios que é a alegria:

(Dt 12,18). As refeições comunitárias diante de Javé e a alegria dos israelitas na


oferenda dos sacrifícios transformam essas ações litúrgicas em festa. Aliás, festa
sem alegria não é festa! Esta alegria na oferenda dos sacrifícios e na celebração
das festas, no entanto, só é completa quando todos os israelitas participam das

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


212 Pedro Kramer

refeições comunitárias diante de Javé. Assim não há mais empobrecidos e excluí-


dos, marginalizados e oprimidos na sociedade israelita.
Esta novidade, os liturgistas deuteronômicos criaram quando eles centrali-
zaram as duas festas e a oferenda de todos os sacrifícios no templo de Jerusalém.
Para eles, portanto, a abundância das colheitas e a oferenda dos animais não são
mais um meio para enriquecer alguns e empobrecer outros, gerando assim um
abismo intransponível e crescente entre as pessoas e as classes sociais, mas, pelo
contrário, são um instrumento de união e de crescente comunhão entre as pessoas
e as classes sociais. Isto se torna visível, palpável e real nas refeições comunitá-
rias de todos os israelitas diante de Javé no templo de Jerusalém.

2.2.4 O NOVO NA PRESIDÊNCIA DA LITURGIA DEUTERONÔMICA

a) Primeiramente e antes de tudo, deve-se destacar que, segundo os liturgis-


tas deuteronômicos, a presidência da oferenda de sacrifícios, de todas as festas e
de todas as celebrações no templo de Jerusalém é função e tarefa não de sacerdo-
tes, mas sim do povo israelita. Isso pode ser demonstrado, com toda a clareza, na
lei que regulamenta a remuneração dos sacerdotes em Dt 18,3. Nesta passagem
se fala explicitamente sobre os direitos dos sacerdotes sobre o povo e especial-
mente sobre os ofertantes de sacrifícios. Esta passagem não diz nada a respeito
da presidência dos sacerdotes na oferenda de sacrifícios, mas fala das partes de
carne das vítimas que são carneadas pelo povo e oferecidas em sacrifício por ele.
A entrega da espádua, das queixadas e do estômago para os sacerdotes é remune-
ração não pelo trabalho deles na presidência da liturgia, mas por outras funções
e tarefas que eles exercem no templo de Jerusalém, como a orientação do povo
como teólogos, catequistas e professores de religião e a interpretação da Palavra
de Deus para sua vida no dia a dia.
Há, no entanto, duas exceções segundo as quais sacerdotes e levitas desem-
penham funções no culto. Em Dt 26,3-4, o sacerdote recebe do agricultor o cesto
das primícias e o coloca sobre o altar. E em Dt 33,10 diz-se que os levitas ofere-
cem holocaustos sobre o altar. O sacrifício de holocaustos não tem muita impor-
tância no Deuteronômio. E, além disso, estes dois textos são uma adição posterior
da época pós-exílica. Os v. 3-4 em Dt 26 rompem claramente a unidade literária.
A presidência de toda a liturgia no templo de Jerusalém é, portanto, função
e tarefa do povo israelita e não dos sacerdotes. Se, em vista disso, compete ao
povo oferecer sacrifícios, então, as mulheres também podem exercer essa função.
Porque em Dt 29,9-10 as mulheres e os homens estão subentendidos no pronome
“vós” e, além disso, elas são expressamente mencionadas, ao lado das crianças e
dos homens, como sujeitos legais na realização da aliança em Moab, através da

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


O novo na liturgia no Livro do Deuteronômio... 213

qual Israel é constituído povo de Javé (Dt 29,9-14). Além disso, em Dt 31,10-13,
as mulheres são explicitamente mencionadas quando o povo de Israel, na sua
igualdade original, reúne-se para celebrar a festa das Tendas do sétimo ano, na
qual se rememoriza a Torá deuteronômica que, durante os sete dias de festa, é
solene e publicamente proclamada. A ordem em Dt 31,12 é muito clara:

(cf. Js 8,35). Se até o estrangeiro deve


ser ouvinte da lei deuteronômica para, depois, se tornar um praticante, quanto
mais a mulher israelita!
b) Se no pronome “vós” ou “tu” deve-se subentender o varão e a mulher
israelitas, então é importante perceber que tanto o varão e/ou a mulher podem
presidir no templo de Jerusalém:
Dt 12,14: (Moisés) te

Dt 12,27:

Dt 14,22:
Dt 15,19:

Dt 16,10:
Dt 16,15:
Dt 26,5.13:
Dt 26,10:

liturgia, na oferenda de sacrifícios, nas festas e nas celebrações, é função e tarefa


do povo israelita, concretamente, do agricultor e da agricultora. Porque tanto ele
como ela estão incluídos no pronome “tu” ou “vós”, a quem a legislação deu-

masculino referentes às leis sobre os sacrifícios e as festas se relacionam tanto


ao homem como à mulher. Em vista disso, se o agricultor e pai de família, por
um ou outro motivo – como em caso de doença ou estando na guerra ou sendo
-
rusalém, então sua esposa puxava o “cordão” dos romeiros e era ela quem presidia a
oferenda de todos os sacrifícios, de todas as celebrações e de todas as festas no san-
tuário central dos israelitas. Segundo a legislação deuteronômica, portanto, a mãe

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


214 Pedro Kramer

e o pai de família têm os mesmos direitos para presidir todo o culto no templo de
Jerusalém10. Que originalidade e criatividade dos liturgistas deuteronômicos! Nas
leis litúrgicas e ético-sociais no Deuteronômio não há marginalização e discrimi-
nação e empobrecidos e excluídos na sociedade israelita.

CONCLUSÃO
O estudo do tema sobre a novidade da liturgia deuteronômica possibilita
-
tâncias históricas bem precisas levaram as autoridades israelitas a centralizar todo
o calendário litúrgico no templo de Jerusalém. Ao realizar isto, os liturgistas deu-
teronômicos foram muito criativos. Porque a oferenda de sacrifícios, a celebração
de festas e de comemorações no templo de Jerusalém só teria sentido, para eles,
se todo o culto promovesse e favorecesse a fraternidade/irmandade do povo de
Israel no santuário de Javé em Jerusalém. Eles a criaram, de modo magistral, atra-
vés das refeições comunitárias de todos os israelitas diante de Javé no templo de
Jerusalém. Em vista disso, prescreveram que o consumo da carne e dos produtos
colhidos do solo e levados para o templo de Jerusalém deveria ser um meio para
acabar com a realidade de empobrecidos e excluídos e um instrumento que pro-
movesse a solidariedade e a partilha, especialmente para com as classes sociais
legalmente dependentes e economicamente fracas, como o levita, o estrangeiro,
o órfão e a viúva. Neste contexto deve ser dito que, ao lado dessas leis litúrgicas,
os legisladores deuteronômicos criaram também um conjunto de leis socioeco-
nômicas que igualmente visavam erradicar da sociedade israelita a exclusão e a
marginalização, tornando-a uma sociedade nova, alternativa e igualitária. Esse
estudo também já foi feito e publicado11.

BIBLIOGRAFIA
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. 8. ed. Stuttgart: Verlag W. Kohlhammer. 2012, p. 163-188.
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uma sociedade igualitária, de solidariedade e de partilha”. 35, Jul./Dez. 2010,
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Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 198-215, abr/jun 2015


CANTAI A IAHWEH UM CÂNTICO NOVO!

Resumo

Palavras-chave:

Abstract
(syntagma)

-
-

Keywords:

Dentro do Saltério, quando se vai procurar onde aparece a expressão “cânti-


co novo” (heb. LXX ai ), vamos perceber que sua aparição
acontece raras vezes. Ela aparece só uma vez dentro de um salmo pertencente ao

* Professor na PUCRS em Humanismo e Cultura Religiosa. Mestre em Ciências Bíblicas no Instituto Bíblico
de Roma; Doutor em Teologia, com área de concentração: Bíblia na EST de São Leopoldo; Pós-doutorado no
Instituto Bíblico de Roma.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015 ISSN 1676-4951
Cantai a Iahweh um cântico novo! 217

gênero literário1 “Ação de Graças Individual”: “Pôs em minha boca um cântico


novo” (Sl 40,4). Ela ainda aparece duas vezes dentro de dois salmos pertencentes
ao gênero literário “Realeza do Senhor”: “Cantai a Iahweh um cântico novo” (Sl
96,1; 98,1). No restante das vezes, ou seja, três vezes aparece dentro do gênero li-
terário “Hino”: “Cantai-lhe um cântico novo” (Sl 33,3), “eu canto a ti um cântico
novo” (Sl 144,9) e “Cantai a Iahweh um cântico novo” (Sl 149,1)2.
O vocábulo , quase ausente no semítico meridional, é atestado
já no antigo babilônio em textos provenientes de Mari3. Segundo Stauder: “Na
Mesopotâmia a música não era expressão de arte ou de sensibilidade individual,
mas era de uso exclusivo do culto e tinha a ‘função de servir a Deus, de adorá-lo e
de apresentar-lhe os pedidos dos seres humanos’”4. O termo é amplamente usado
também no ugarítico. Segundo H. Gese:
Os cantores e músicos do templo ( ), segundo os profetas, são uma com-
ponente importante entre os funcionários do culto. Eles, em Ugarit, como
em outros lugares do antigo Oriente Médio, gozaram de grande prestígio.
Isso pode ser deduzido a partir dos textos mitológicos e, em particular,
através da menção da lira divina junto com o incensário dos deuses encon-
trados na lista do panteão5.

O termo é desconhecido no hebraico extrabíblico.


O vocábulo , , conhecido em todo o contexto bíblico, tanto como

religioso e sacro, mesmo quando é cantado por mulheres (Sl 68,26, apesar de que
no coro litúrgico existiam, ainda depois do exílio, apenas homens)6.
O vocábulo (novo -
car basicamente “ser novo, tornar novo” e também “renovar, rejuvenescer”. Nos
textos extrabíblicos seu largo uso está presente nas festas mensais à deusa lua que
a cada mês se renova7.

2. ed. São
Paulo: Paulinas, 1985, p. 522.
2. Cf. MANDELKERN, Solomon. Schocken. 2.
Auff. Tel Aviv: [s.n.], 1978.
3. GLAT IX, p. 195. (GLAT = Aos cuidados de BOTTERWECK, G. Johannes; RINNGREN, Helmer.
Brescia: Paideia, 1988 [Original: -
, Stuttgart: Verlag W. Kohlhammer, 1973-].
4. GLAT IX, p. 195.
5. GLAT IX, p. 196-197.
6. BRUNERT, G.; KLEER, M.; STEINS, G. In GLAT IX, p. 201.
7. NORTH, R. In GLAT II, p. 805.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


218 Romano Dellazari

Dentro do nosso estudo, vai nos interessar apenas o sintagma , ou


seja, o encontrado no saltério que, como já vimos, aparece apenas
seis vezes em todo o saltério.

1. PÔS EM MINHA BOCA UM CÂNTICO NOVO (Sl 40,4)


O contexto do Sl 40,4, onde diz: “Pôs em minha boca um cântico novo, lou-
vor (te -
las numerosas maravilhas realizadas. O contexto tem tudo a ver com o pós-exílio,
onde a observância da lei (rolo do livro: v. 8) é mais importante que sacrifícios,
ofertas, holocaustos e expiação (v. 7). Uma nova situação leva a uma nova postu-
ra diante de Deus, onde a interioridade do ser humano torna-se mais importante
que a formalidade exterior. Outro aspecto interessante é o fato de que ele diz que
Deus pôs em sua boca um cântico novo, ou seja, o próprio Deus ensina como se
deve agradecer a Deus por um benefício recebido de Deus. Foi o próprio Iahweh
quem colocou (heb. natan), de forma inspirada, essa palavra na boca do redimi-
do. A partir dessa colocação emerge um novo sentido para o sintagma “cântico
novo”: é uma notícia alvissareira, provinda do poder de Iahweh8. Com isso, como
diz Kraus, não se tem o direito de muito rapidamente pensar esse “canto novo”
como sendo um “canto escatológico”. Isso o fará o Novo Testamento, tendo-o
como inspirado. “A explicação deve ser buscada no campo do encontro entre
tradição e inspiração. O orante do salmo não se encontra preso pela linguagem
tradicional: é livre para entoar um ‘canto novo’. O louvor se dirige a Deus me-
diante a irrupção do novo”9. Essa é também uma palavra profética, haja vista que
quem fala em nome de Deus é profeta, ou seja, é Deus quem põe sua palavra na
boca do profeta. Assim, no dizer de Santo Agostinho: “O homem novo recite um
cântico novo; o renovado ame as coisas novas com as quais ele se renovou”10.

2. CANTAI A IAHWEH UM CÂNTICO NOVO (Sl 96,1; 98,1)


Outro lugar onde se encontra o sintagma “cântico novo” é no primeiro ver-
sículo dos Sl 96 e 98. São dois salmos do gênero literário “Realeza de Iahweh”.

(96,10). O Sl 98 convida: “Aclamai ao rei Iahweh!” (98,6).

8. Cf. KRAUS, Hans-Joachim.


9. KRAUS, Hans-Joachim. . Salamanca: Sigueme, 1985, p. 191.
10. Tradução para o espanhol de RODRÍGUEZ, Ángel Aparicio. . Bilbao: Desclée de Brouwer,
2005, p. 382. A tradução para o Brasil publicada pela Paulus traduz: “Faça-se homem vivo, cante o cântico
novo. Renovado, ame as coisas novas, que o renovam”. Santo Agostinho. . São
Paulo: Paulus, 1997, p. 641.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


Cantai a Iahweh um cântico novo! 219

O Sl 96,1
é um hino à realeza do Senhor. Canta o seu sereno e seguro reino, sem
nenhuma evocação aos momentos de tensão que antecederam à sua vitória
-
dencia ainda mais pela repetição por sete vezes do termo kol ‘tudo’. Todos
devem participar, exceto os deuses porque são apenas ídolos11.

Zenger dizendo:
O entoar de um canto novo é a resposta do indivíduo nos salmos de ação
de graças depois da salvação acontecida assim como o acontece no Sl 40,4.
[...], Is 42,10(-13) é essa exigência pelo louvor e é uma reação frente à nova
intervenção de Iahweh em favor de Israel. Dentro da criação isso se refere
à experiência de uma estabilidade e uma continuidade e, por isso, motiva
para o louvor. No ambiente da história se sucedem novos acontecimentos e
esses conduzem a novos cânticos12.

Kraus já anteriormente falara que esses “cânticos novos”, tanto esse hino
como também o Sl 98,1, são a prova da esperança de Israel que se orienta em
direção à soberania visível e palpável de Iahweh onde se manifesta a implantação
de seu poder sobre todo o mundo e visa uma radical libertação e transformação do
momento presente com a participação de todos os povos nessa salvação.

mesmo em direção aos futuros passos e caminhos da história de Israel. Por


isso a comunidade de culto não está num espaço alheio à história e nem a
desconhece. A comunidade de culto é o , daquela
que o Antigo Testamento fala e narra em todas as suas partes13.

O poeta desse salmo é um herdeiro da espiritualidade surgida no exílio14.


O cântico que se entoará é inédito e não isento de surpresas. Não é um cântico
que passará e envelhecerá. Está centrado no Segundo Isaías. Quando ele fala de
um novo êxodo, não é a repetição pura e simples do primeiro êxodo (a saída do
Egito), mas supõe uma nova criação, um novo começo (Is 42,9; 43,19); ou seja,
é algo que rompe com as categorias de espaço e tempo15.

11. LORENZIN, Tiziano. . 4. ed. Milano: Paoline, 2009, p. 376.


12. HOSSFELD, Frank-Lothar; ZENGER, Erich. . 4. ed. Freiburg: Herder, 2000, p. 668.
13. KRAUS, Hans-Joachim. . Op. cit., p. 93.
14. Quanto à discussão se o ensejo para o “cântico novo” desses dois salmos tenha sido adotado de Isaías ou
vice-versa, cf. GLAT IX, p. 215-216.
15. Cf. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. . Op. cit., p. 270.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


220 Romano Dellazari

O Sl 98 apresenta Iahweh como juiz da terra. A Bíblia de Jerusalém16 apre-

neutralizando a perturbação que desestabiliza. Isso proporciona novamente a paz.

fora quebrado se restabelece e neutraliza o elemento perturbador da paz.


Estas são as bases que fazem surgir uma situação de concórdia pública e
de bem-estar. Essa sucinta descrição da justiça vale tanto para o êxodo do
Egito quanto para a saída da Babilônia, pois ambos podem ser os aconte-
cimentos históricos que estão como ponto de partida para esse salmo. É
também válida para o mundo novo que esperamos17.

Como os livros proféticos tendem a ver a salvação (vitória) unida à justiça,


o ensejo para esse convite ao louvor, aqui (Sl 98,1) e no Sl 96,1, encontram-se
tanto no segundo como no terceiro Isaías: “Iahweh descobriu o braço santo aos
olhos de todas as nações e todas as extremidades da terra e viram a salvação do
nosso Deus” (Is 52,10) e “Então seu próprio braço veio em seu socorro, sua jus-
tiça o sustentou” (Is 59,16b).
Alonso Schökel e Carniti alertam para o fato de que “maravilhas” está no
plural e o restante está no singular. Dizem eles que dentro de “maravilhas”, algo
genérico, podem estar incluídos muitos atos singulares.
Canta-se uma ação singular, uma ‘vitória’ da ‘justiça’, na qual o Senhor
‘lembrou-se’, teve presente sua ‘lealdade’. Podemos parafrasear: o Senhor
foi coerente consigo, levou em conta seus compromissos, manteve sua
‘lealdade’. De certa maneira é algo que o Senhor deve a si, ainda que seja a
favor de outra parte: lealdade refere-se a outra pessoa e exige continuidade.
Pois bem, essa lealdade que é recordação põe a ação singular numa longa
série de maravilhas18.

3. CÂNTICO NOVO DENTRO DOS HINOS


O Sl 33 é um “hino”. Nesse salmo, no v. 3 aparece o sintagma “cântico
novo”. Esse salmo louva Iahweh por aquilo que é, ou seja, a retidão de sua pala-
vra, seu amor pela justiça e o direito, a criação pela palavra etc.
O cântico não é novo em relação ao tempo, mas é um cântico supremo,
compêndio de todos os cânticos, e está além do tempo e do espaço. É um

16. , nota d.
17. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2008, p. 285.
18. ALONSO SCHÖKEL, Luís; CARNITI, Cecília. . São Paulo: Paulus, 1998, p. 1224.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


Cantai a Iahweh um cântico novo! 221

cântico ao Salvador cósmico (cf. Sl 103,5.8.13) e histórico (v. 8.10.12-16);

12.18-19) [...] com as ‘aclamações’ ao vencedor das forças destruidoras do


-

19
.

Este salmo, neste versículo, acrescenta que se toque com arte na hora da
“ovação”. O cântico novo, como diz Hossfeld/Zenger, deve ser cantado com jú-
bilo (te ). A existência desse “cântico novo”, também em conexão com o
Dêutero-Isaías não pode ter sido anterior ao exílio. Além disso, “o tema central
do ‘novo’ cântico baseia-se na ‘esperança da manifestação do poder da realeza

que optam pela a realeza de Iahweh’”20.


Dentro dos “hinos”, o sintagma aparece também no Sl 144: “eu canto a ti

de fato é um salmo antológico e compósito21, com temas de épocas diferentes,


inspirado, sobretudo, no Sl 1822, mesmo assim apresentando certa unidade23. Os v.
12-15, onde se passa de um cenário bélico para o lírico, detecta-se um vocabulá-
rio aramaicizante e inclusive persa. Isso faz com que se coloque sua conclusão no
período pós-exílico ligando-se, inclusive, às esperanças espelhadas na revolução
macabaica24.

surpreendente novo acontecimento, não se deve pensar muito rapidamente num


contexto escatológico. O que o v. 10 deixa entrever é Iahweh que presenteia Is-
rael com um novo rei espelhado na dinastia davídica. O cântico novo espelha
uma ação salvadora fundada na salvação de Davi, o servo de Iahweh (Sl 89,4). A
temática da primeira parte espelha-se no período pré-exílico25.

19. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. . Bilbao: Desclée de Brouwer, 2005, p. 316-317.


20. HOSSFELD, Frank-Lothar; ZENGER, Erich. . Würzburg: Echter Verlag, 1993,
p. 208.
21. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2009, p. 339.
22. LORENZIN, Tiziano. . Milano: Paoline, 2009, p. 526.
23. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2009, p. 339.
24. LORENZIN, Tiziano. . 4. ed. Milano: Paoline, 2009, p. 339.
25. Cf. KRAUS, Hans-Joachim.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


222 Romano Dellazari

O salmo que, por último, contém o sintagma “cântico novo” é o Sl 149:


“Cantai a Iahweh um cântico novo” (Sl 149,1). Ele faz parte da coleção de cinco
salmos que começam com aleluia (o Sl 147 inicia com louvai = ) e termi-
nam com aleluia. O salmo é composto de duas partes: v. 1-5 que é um convite
ao louvor, tanto em público como privadamente, um versículo tampão: v. 6 e os
v. 7-9 que é um julgamento sobre as nações26. Como o Sl 144, apesar de que o
salmo possa ter seu pano de fundo na época de Neemias onde se diz: “com uma
das mãos cada qual fazia o seu trabalho, e com a outra segurava uma arma” (Ne

salmo seja a época macabaica27.


No v. 1
o salmista convida, acima de tudo a dirigir o louvor ao Senhor. E o louvor
consiste num cântico novo, porque composto para a ocasião, e porque nova
é a experiência, anunciada publicamente, no meio da comunidade dos seus

êxodo demonstrou como o povo de Israel entrou na história e aí permane-


ceu não por força própria, mas graças ao Rei que escolheu Sião como lugar
de sua própria residência28.

O cântico não é novo porque foi recentemente composto ou porque celebra


algo que não foi anteriormente celebrado e nem por seu tema. Ele “é novo porque

espiritual e moral do judaísmo na época helenista”29.


O novo cântico canta uma “nova” e inesperada ajuda de Iahweh para com
seu povo que tem um sentido universal ou até cósmico. Iahweh arranca seu povo
das mãos dos povos inimigos, deve-se levar em consideração que, segundo Kraus,
citando L. Köhler:

O pensamento hebraico, porém, não tem essa ideia de passado ou histó-


ria... Passado e presente pertencem à mesma ação de Deus ( -
, 1953-1976, 126). Por isso tudo o que aconteceu ‘em outros
tempos’ não é passado, mas presente. As grandes ações de Iahweh são uma
realidade que cria vida hoje30.

26. LORENZIN, Tiziano. . 4. ed. Milano: Paoline, 2009, p. 540.


27. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2009, p. 380.
28. LORENZIN, Tiziano. . 4. ed. Milano: Paoline, 2009, p. 541.
29. RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2009, p. 282.
30. KRAUS, Hans-Joachim. . Op. cit., p. 141.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


Cantai a Iahweh um cântico novo! 223

Por isso o “cântico novo”, não quer simplesmente ser a renovação da cele-
bração do ciclo anual da vida natural regulada pelas estações31. Mowinckel modi-

e quando o aplica a Israel, ele o diz:


Em Israel, o conteúdo principal da festa era a revitalização da história. Iah-
weh novamente vinha e renovava a aliança com seu povo e, de certa forma,
recriando-a. Na festa, a comunidade fazia a experiência da antiga história
da salvação; a saída do Egito, as maravilhas acontecidas junto ao mar dos
Juncos, a revelação do Sinai: tudo isso era vivido como uma realidade nova
e atual. A religião de Israel adquire assim uma característica que a distingue
de todos os outros cultos do antigo Oriente Médio32.

demais preso às estações do ano. O próprio culto, com suas palavras e ritos (o
drama cultual), pode ser também apenas uma repetição do passado que estaria
perdendo sua força. O serviço divino, feito com esse pensamento, não capta o
núcleo do pensamento cultual de Israel, onde “Iahweh é o único que age, cria e
está presente. correspondem à ação , se inserem
no seu governo e situam os participantes do culto neste acontecimento (cf. Ex
12,11-14)”33. Poder-se-ia falar de “memória” ( ), onde o passado é um
acontecimento sempre presente.
Como o sintagma “cântico novo” fora dos salmos é encontrado apenas em
Is 42,10, e como não se sabe quem primeiro o usou, Isaías ou o autor dos salmos
supramencionados, não se pode falar propriamente de um novo tipo de salmo.
O “cântico novo” sugere uma nova era. De fato o Sl 137 deixa transparecer o
quanto era odioso recitá-los fora de Jerusalém. A volta à pátria, após o exílio per-
mitira novamente cantá-los agora como um “cântico novo”. No período macabai-

( )34. Se pensarmos a partir da retomada do culto em Jerusalém, tem


sentido falar de um ‘canto novo’. Isso poderia ser aplicado ao Dêutero-Isaías. A
catástrofe do ano 586 aC comporta a cessação de cânticos (antigos) e que nova-
mente são cantados após o período de silêncio do exílio. Isso faz jus ao fato de
que seja um “cântico novo” e que ele celebre de modo especial a antecipação da
vitoriosa intervenção de Deus prevista para o futuro, não somente para Israel,
mas para todos os seres do universo35.

31. MOWINCKEL, Sigmund. . Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1953, p. 64.


32. MOWINCKEL, Sigmund. . Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1953, p. 73.
33. KRAUS, Hans-Joachim. . Op. cit., p. 142.
34. Cf. GLAT IX, p. 228.
35. Cf. GLAT IX, p. 228-229.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


224 Romano Dellazari

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11. ed. Schocken: Tel Aviv, 1978.
RODRIGUEZ, Ángel Aparicio. . Bilbao: Desclée de Brouwer, 2005.
STORNIOLO, Ivo. 2. ed. São Paulo: Pau-
linas, 1985.

Av. Juca Batista, 330 – Ipanema


Porto Alegre, RS
Dellazari2000@ yahoo.com.br

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 216-224, abr/jun 2015


“NOVO” OU “SEGUNDO” TESTAMENTO?

Resumo

Palavras-chave: -

Abstract

Keywords:

* Doutor em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor na Faculdade de Teologia
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

ISSN 1676-4951 Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 225-244, abr/jun 2015
226 Cássio Murilo Dias da Silva

INTRODUÇÃO
Negro ou preto? Óleo ou azeite? Diabo ou demônio? Circunferência ou
círculo? Sociopata ou psicopata? Em toda e qualquer língua e idioma, a lista e o
elenco de termos e das palavras sinônimas e equivalentes é longa e extensa! No

e as divergências sobre a nomenclatura e a respeito da terminologia!


Como o/a leitor/a observou, o parágrafo anterior é propositadamente re-
cheado de vocábulos que aparentemente dizem a mesma coisa. Todavia, olhando
mais de perto, nenhum deles exprime tão perfeitamente o conceito expresso pelo
outro, a ponto de não ter, cada um deles, suas próprias nuanças, seja por sua eti-
mologia, por sua aplicação, pela ideologia que carrega, pelas consequências que
provoca etc.
Na teologia e na exegese não poderia ser diferente, e muitas das discussões

para o objeto de estudo.


Desde meados da década de 1990, em muitos ambientes eclesiásticos, teo-
lógicos e acadêmicos, difundiu-se o costume de não mais se falar em “Antigo”
e “Novo” Testamentos, e sim “Primeiro” e “Segundo”. Também no Brasil esta
nova nomenclatura fez um bom número de adeptos entre professores, autores,
pregadores, teólogos, biblistas e cientistas da religião. Talvez você mesmo/a, lei-

pergunte a si mesmo/a: Por que você optou por “Segundo” Testamento?


Talvez você tenha escutado ou lido que a velha nomenclatura – “Antigo”
Testamento, “Novo” Testamento – traz consigo ranços antijudaicos. Talvez tenha
se convencido de que a nova nomenclatura é mais adequada ao diálogo inter-re-
ligioso. Talvez tenha aceito a argumentação de que a nova nomenclatura é mais
bíblica do que a anterior. Talvez outro motivo de algum modo ligado à exegese e
à teologia. Talvez você tenha aceito a nova nomenclatura sem se perguntar se ela
tem sustentação exegética e teológica, se ela é adequada e se cumpre a função que
os seus proponentes advogam.
Antes de continuar a leitura deste artigo, responda a si mesmo/a: Você sabe
quais são as questões teológicas envolvidas na passagem de “Antigo”/“Novo”
para “Primeiro”/“Segundo” Testamento? Você sabe o que está em jogo por trás
dessa mudança para o “politicamente correto”?
Esta pergunta assim formulada talvez seja genérica demais. Então, vamos

(a) Qual a diferença entre “novo” e “segundo”?


(b) De que modo um ou outro termo afeta o modo de compreender e expli-
car as relações entre os dois Testamentos?

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 227

(c) O que isso tem a ver com os conceitos de revelação e inspiração?


(d) Qual a diferença entre revelação e inspiração?
(e) Qual a diferença entre Palavra de Deus e Sagrada Escritura?
Estas são apenas algumas das perguntas que precisam ser respondidas an-
tes de uma escolha por qualquer uma das possibilidades. Portanto, se você não
pensou seriamente sobre isso, cuidado! Talvez você tenha aceito a nova nomen-
clatura somente por gostar de mudanças e, neste caso, tua preferência é quase que

opção que não foi tomada após a avaliar os prós, os contras e os desdobramentos
dessa mudança e, o que é mais importante, o que está por trás da proposta da nova
nomenclatura!
Este artigo visa apresentar os vários dados do problema, mas não de modo
exaustivo e sistemático (o que seria impossível em um breve artigo), e sim de
modo provocativo e fragmentado. Provocativo, porque quer “cutucar” os con-
ceitos exegético-teológicos que talvez estejam adormecidos no/a leitor/a. Frag-
mentado, porque, como um mosaico, tocará somente os pontos relevantes para

que servirá de base para o leitor fazer (ou rever) a sua opção.

1. AS RAZÕES DA PROPOSTA DE MUDANÇA


Comecemos com esta provocação: boa parte das pessoas que adotam (e até

Nos âmbitos acadêmicos, os que defendem a mudança apresentam argu-


mentos tanto de ordem extrínseca ao texto bíblico como de ordem intrínseca.

embora o termo “antigo” não necessariamente seja negativo (antigo = ultrapassa-


do, obsoleto), é a conotação pejorativa que predomina entre os cristãos, para mui-
tos dos quais o cristianismo “substituiu” o judaísmo. Por conseguinte, “antigo”
deixa de denotar “origem, algo que está na fonte, algo respeitável e de idoneidade
comprovada”, para ser compreendido como “algo superado e que perdeu valor”.
O termo “antigo” obstaculiza o diálogo entre cristãos e judeus, pois é consequên-
cia de um antijudaísmo ainda enraizado em muitos ambientes.
Os argumentos de ordem intrínseca têm a ver com a relação entre as duas
partes da Bíblia: a nova nomenclatura expressa de modo mais adequado os vários

(1) A expressão “Primeiro Testamento” é mais bíblica do que “Antigo Tes-


tamento”, uma vez que aparece em Hb 8,7.13; 9,1.15.18 e também na

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 225-244, abr/jun 2015


228 Cássio Murilo Dias da Silva

versão grega de Lv 26,39-45, que fala de uma “primeira” aliança no


Sinai.
(2) Os ordinais “primeiro” e “segundo” correspondem melhor à continuida-
de histórica das Escrituras: primeiro, a Bíblia judaica; depois, a Bíblia
cristã.
(3) O esquema “promessa-cumprimento”, embora seja um dos modos bí-
blicos de compreender a mensagem da revelação, não é perfeitamente
adequado para expressar as relações entre os dois Testamentos.
Diante de tudo isso, segundo os defensores da nova terminologia, ela traz as
seguintes consequências positivas:
(a) Evita o tradicional menosprezo embutido no termo “antigo”.
(b) Reproduz corretamente a sequência histórica: o “Antigo” Testamento é
anterior ao “Novo”, e, portanto, “Primeiro” em relação a um “Segundo”.
(c) É teologicamente mais correto, uma vez que Deus falou a Israel como
seu “primogênito”, isto é, a revelação a Israel é o “começo” da Aliança
que Deus quer estabelecer com todos os povos.
(d) O termo “Primeiro” Testamento remete a um “Segundo” Testamento:
como não há “segundo” sem “primeiro”, também vice-versa, nenhuma
das duas partes da Bíblia é completa sem a outra1.
Antes de uma avaliação crítica desses argumentos e das consequências da
nova nomenclatura, é necessário dar um (ou alguns) passo(s) para trás e rever
alguns conceitos básicos de teologia fundamental e de hermenêutica bíblica, para
discernir com clareza o que está em jogo.

2. JESUS CRISTO, A “PLENITUDE A REVELAÇÃO”?


O primeiro ponto teológico a ser revisitado é o conceito cristão segundo o
qual Jesus Cristo é a “plenitude a revelação”. Esta frase é usada e abusada. Entre-
tanto, a grande maioria dos que a utilizam não se perguntam o que cada um dos

de fato, de uma discussão que dura, no mínimo, 2.000 anos!


A revelação é o principal objeto de estudo da chamada “teologia fundamen-
tal”. Ao longo da história da teologia, a compreensão do que é a revelação – como
ela acontece, qual seu conteúdo, se há distinção entre revelação e inspiração e

1. Resumo de ZENGER, Erich. A Sagrada Escritura de judeus e cristãos. In: ZENGER, Erich et al.
. São Paulo: Loyola, 2003. p. 20-21.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 225-244, abr/jun 2015


“Novo” ou “Segundo” Testamento? 229

Não obstante os teólogos fundamentais tenham passado a considerar a reve-


lação “um ato comunicativo de Deus”, as teologias do século XX não consegui-

principalmente a medieval, que não distinguia revelação de inspiração. Por isso,


para muitos (não só teólogos, mas também bispos e outras autoridades eclesiás-
ticas), a revelação é um “depósito de verdades” sobre Deus, sobre a fé e sobre

Deus, e que (b) com a morte do último apóstolo encerrou-se a revelação.


Esta compreensão de revelação é, no mínimo, questionável. Basta partir de
algumas questões práticas: O que Jesus disse acerca do uso da energia atômica? O
que o apóstolo Pedro ensinou sobre células-tronco? O que o evangelista Marcos
escreveu sobre o sincretismo religioso na Bahia? Que argumentos Paulo usou

Absolutamente nada!
Portanto, estamos diante de um problema: Se estas questões teológicas e de
moral não foram contempladas por Jesus nem pelos autores neotestamentários...
como então Jesus é a “plenitude da revelação”?

-
gia, possa ser aplicada àqueles problemas. Por exemplo, “o fruto da árvore que
está no meio do jardim não comerás nem tocarás nela” (parafraseando Gn 2,16 e
3,3) é interpretado como referente à fertilização in vitro e, portanto, usado como
argumento para considerar pecado as experiências genéticas! Este tipo de teolo-
gia, no entanto, além de ser marcado pelo moralismo exacerbado, baseia-se em
um conceito inadequado de revelação – o depósito de verdades – e, por conse-
guinte, de “plenitude da revelação”.
Quando se fala de “plenitude” há de se perguntar se se trata de uma plenitu-
de “quantitativa” ou “qualitativa”. Por plenitude “quantitativa” compreende-se o
acúmulo de “verdades reveladas” (o depósito), que atingiu a carga máxima com
Jesus e os apóstolos, depois do qual não haverá nenhuma novidade sobre Deus,
sobre a fé e sobre a moral. Diferente é o caso da plenitude “qualitativa” que não
se restringe à superioridade da mensagem do Novo Testamento em relação à do
Antigo, mas que atinge o próprio conceito de revelação.
E com isso, compreende-se a diferença entre revelação como um “depósito

não é ensinar verdades divinas que de outro modo nunca saberíamos, e sim levar
com Deus. E se o objetivo da revelação é levar o homem

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230 Cássio Murilo Dias da Silva

ar que “Jesus é ”, uma plenitude não


(que seria a soma de todas as experiências de comunhão com Deus ao
longo da história da salvação: Moisés, Elias, Davi, Maria etc.), e sim :
Jesus é o paradigma, o ponto de referência para avaliar as experiências de comu-
nhão com Deus, tanto as anteriores a ele, como as posteriores, chegando até nós.
Resumindo, a superação dos conceitos de revelação como “depósito de ver-
dades” e de plenitude como “quantidade” exige que se rompam também duas
barreiras:
(a) a primeira, para depois de Jesus, acerca do da revelação;
(b) a segunda, para antes de Jesus, acerca da do Antigo Testamento.
Acerca do da revelação, aqui, apenas uma abordagem sumária.
Se a revelação é um pelo qual Deus quer nos levar à -
com ele, então, a revelação com a morte do último
apóstolo2. Ao contrário, ela continua acontecendo para que o homem de hoje (e

de sua realidade histórica, social, tecnológica etc., o melhor modo de chegar à


.
A revelação, como ato comunicativo em vista da comunhão com Deus, re-
coloca em outros termos as questões ligadas aos exemplos de alguns parágrafos
acima: Que tipo de uso pode ser feito da energia atômica e da engenharia genética
sem romper a comunhão com Deus? Como estar em comunhão com Deus em
uma sociedade sincrética? Que modos de compreender Deus hoje nos aproximam
dele ou, ao contrário, nos afastam?
A segunda barreira – aquela referente à do Antigo Testamento – é
igualmente complexa e a ela dedicaremos mais tempo, mais bytes e mais tinta.

3. A INTERPRETAÇÃO CRISTÃ DAS ESCRITURAS


-
pois deles, os pais da Igreja valeram-se de esquemas para tentar exprimir as com-
plexas relações entre os dois Testamentos. Alguns deles:
– Modelo
e da Igreja.
– Modelo : personagens e eventos do Antigo remetem aos perso-
nagens e eventos do Novo.

2. A concepção de que a revelação se encerrou com a morte do último apóstolo, está diretamente ligada ao
conceito de revelação como “depósito de verdades”.

Estudos Bíblicos, vol. 32, n. 126, p. 225-244, abr/jun 2015


“Novo” ou “Segundo” Testamento? 231

– Modelo do : no Novo Testamento se cumprem as profecias


messiânicas e escatológicas do Antigo.
– Modelo : muito usado por Paulo, defende que Deus não
mudou seu modo de agir, mas repete agora com os gentios o que antes
havia feito com Israel.
– Modelo da : ao mesmo tempo em que o
Novo Testamento lança suas raízes no Antigo, dele se destaca, uma vez
que o evento Cristo vai além do esperado.
– Modelo da superação: a Lei de pureza e as prescrições litúrgicas são su-
peradas pela nova Lei do amor.
– Modelo da relativização: o Antigo Testamento é “servo” do Novo, isto é,
3
.
Esses e outros esquemas servem para dizer que o Novo Testamento termina
o que o Antigo tinha começado. Mas cada um deles é sempre uma releitura, uma
leitura da leitura, absolutamente marcada pela fé que Jesus de Nazaré é o Cristo e,
como tal, o Revelador (ele é a perfeita manifestação de Deus) e o Revelado (nele,
a revelação se cumpre plenamente).
Mais ainda, cada esquema desses é uma interpretação do interpretante, isto
é, de Jesus como Cristo. Ora, se Jesus é a Palavra eterna do Pai, a “plenitude da

a palavra escrita nos livros do Novo Testamento, mas somente com o próprio
Jesus. Acontece que, como por duas vezes alerta o autor do Quarto Evangelho,
de tudo o que Jesus foi, fez e falou, está escrita somente uma mínima parte (cf.
Jo 20,30-31 e 21,25). Ou seja... é a plenitude da revelação; o Novo Testa-
mento, não!
Talvez o/a leitor/a esteja perguntando: O que isso tem a ver com o objetivo
deste artigo?
Devemos recordar que uma das motivações para mudar a nomenclatura
é a carga pejorativa carregada pelo termo “antigo”, enquanto o binômio “pri-
meiro-segundo” exprimiria melhor o vínculo entre as duas partes da Bíblia. E
isso tem a ver com uma das questões latentes à mudança: o conceito de inspi-
ração e como este conceito pode ser aplicado aos dois Testamentos.

4. INSPIRADOS? COMO?
Jesus é a plenitude da revelação. Jesus... não a Bíblia! Nem os dois Testa-
mentos juntos e muito menos cada um isoladamente!

3. Estes e outros modelos encontram-se em ZENGER, et al. 2003, p. 21-24, com uma avaliação crítica.

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232 Cássio Murilo Dias da Silva

Deus, de sua vontade para o ser humano, de seu projeto de salvação. Tudo isso
precisa ser completado sempre mais e de novo. Ou seja, “a revelação ainda não
acabou”!
Ora, se os dois Testamentos – tanto conjuntamente e muito menos isola-
damente – não contêm a imagem perfeita e total de Deus4, por conseguinte, é
inadmissível dizer que a imagem de Deus no Novo Testamento é melhor, ou mais
adequada, do que a imagem de Deus no Antigo. E menos admissível ainda é a
ideia de que o Deus do Antigo Testamento é diferente do Deus do Novo, uma vez
que o Deus do Antigo Testamento é vingativo, enquanto o Deus do Novo é mise-
ricordioso. Este modo de pensar é errôneo e, no mínimo, atesta desconhecimento
de que o Deus do Antigo Testamento (Ex 34,6;
Dt 4,31; Sl 103,8 e muitos outros textos), ao passo que o Deus do Novo
é furioso e vingativo (a vingança de Deus é abundante no livro do Apocalipse de
João). O próprio Jesus sente ira (Mc 11,15-18 e paralelos; Mc 1,41, conforme
alguns manuscritos), por vezes é intolerante (Mc 8,33 e paralelos) e impreca a
destruição de quem não o aceita (Mt 11,20-24 e paralelos; Mc 14,21) ou de quem
não se encaixa em seu projeto (Lc 6,24-26).

não somente o mesmo Deus, mas também o mesmo povo: Jesus era judeu e nun-
ca deixou de ser; seus discípulos eram judeus; os autores do Novo Testamento
(se não todos, a sua grande maioria) eram judeus; o principal evento do Novo
Testamento (vida-morte-ressurreição de Cristo) aconteceu entre judeus; a Igreja
começou com os judeus.
O que nos arremete para outra questão: O Novo Testamento substitui
o Antigo?

5. VARIAÇÕES DE UMA CONCEPÇÃO ERRÔNEA


Não é preciso dizer que é errado pensar que o Antigo Testamento perde sua
validade para o Novo, ou que é substituído pelo Novo, ou, ainda, que é anula-
do pelo Novo. De fato, estas são variações de um erro provocado por algumas
confusões de conceitos: confunde-se “revelação” com “Palavra de Deus”, con-
funde-se “Palavra de Deus” com “Sagrada Escritura”, confunde-se “plenitude”
com “totalidade”.

4. Caso isso acontecesse, Deus já não seria Deus, seria um ídolo, reduzido ao que nossa limitada capacidade de
entendimento consegue imaginar a respeito dele. Por conseguinte, ele deixaria de ser um , para se tornar
uma divindade “compreendida”, isto é, enquadrada, domesticada, diminuída.

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 233

É importante ter ideias claras e distintas sobre tudo isso, pois será de capital
importância para a discussão da terminologia “segundo”/”novo”. Infelizmente,
a exiguidade de páginas deste artigo não permite estabelecer as distinções. Não

(e muito menos a totalidade) da Palavra de Deus, nem da Sagrada Escritura, nem


da revelação. O mesmo se diga do Antigo.
E embora Antigo e Novo Testamento sejam Sagrada Escritura (não obstante
a diferença dos quatro cânones: judaico de Alexandria, farisaico pós-70, cristão
católico e cristão não católico), juntos os dois Testamentos também não esgo-
tam a revelação, nem a Palavra Deus. Dito de outro modo: a revelação divina e

judeu-cristianismo!
Por outro lado, há de se perguntar se um Testamento depende do outro para
que ambos sejam Palavra de Deus e documentos da revelação. Ou seja: o Novo
Testamento depende do Antigo para ser Palavra de Deus? O Antigo depende do
Novo para ser inspirado?
O conceito de revelação como “depósito de verdades” fez com que a discus-
são acerca da inspiração se restringisse quase exclusivamente à questão sobre a
autoria da Sagrada Escritura. À pergunta “Quem é o autor (a causa)?”, a resposta
-
ciente do escrito. Deste modo, tentava-se garantir que a autoria divina não impe-
disse nem rebaixasse a autoria humana.

relações entre Antigo e Novo Testamento, a ponto de vários teólogos (ou não) e
cientistas da religião (ou não) confundirem a ordem da percepção com a ordem

Palavra de Deus) somente por causa do Novo e graças a ele. Na prática, isso

sinagogas algo que não é Palavra de Deus!


Sem dúvida, o Novo Testamento o Antigo como inspirado (2Tm
-

não era, e que passa a ser quando constituído daquele modo). Voltarei a este
ponto mais adiante. Por ora, quero chamar a atenção para o fato que o Antigo
Testamento tem seu próprio sentido, independente do Novo. Ainda que não a
“plenitude”, mas é perfeitamente possível compreender o Antigo Testamento in-
dependente do Novo. O contrário, porém, não acontece: é absolutamente impos-

Então... qual depende de qual? É o Antigo que depende do Novo, ou o Novo que
depende do Antigo?

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234 Cássio Murilo Dias da Silva

Aplicada a Jesus, esta mesma pergunta se propõe assim: É Jesus quem legi-
tima/elucida o Antigo Testamento como Palavra de Deus, ou é que Antigo Testa-
mento que legitima/elucida Jesus como Messias-Cristo?
Pois, se o raciocínio segundo o qual o Antigo Testamento é Palavra de Deus
somente porque assim reconhecido pelo Novo, o mesmo pode ser usado inversa-

Mais ainda: “Jesus só é salvador porque ‘prenunciado’ pelo Antigo!” Isso impli-
caria dizer que, sem o Antigo, Jesus não seria Messias, nem Salvador, nem Filho
de Deus!
-
mento – Jesus é ou não é tudo isso?
No entanto, lembre-se o/a leitor/a: o Antigo Testamento
. São os cristãos que interpretam Jesus à luz dos escritos veterotestamen-
tários e veem nele o cumprimento e a plena realização do que lá está escrito, al-
gumas coisas de modo direto e absoluto, outras de modo alegórico e metafórico.
Basta perguntar: Jesus é o Messias? Ora, o título Messias no Antigo Testamento
tem uma carga conceitual bem diferente daquilo que Jesus foi: o Messias iria as-
sumir o status de rei do povo de Israel, restabelecer o império davídico e declarar
a independência política de Jerusalém. Jesus não fez nada disso! E, no entanto,
ele é reconhecido como Messias, agora com o título de “Cristo”. E isso implica
uma séria mudança conceitual e, por conseguinte, teológica.
Então, novamente a pergunta: para ter algum sentido – e para ser Palavra
de Deus – é o Antigo que depende do Novo, ou o Novo que depende do Antigo?

6. DEPENDÊNCIA?
Convém retomar aqui aquele conceito de que, como Palavra de Deus e para
ser interpretado como tal, o Antigo Testamento do Novo. Este modo de
pensar:
a) confunde o objeto com a percepção que se tem dele;
b) fundamenta-se em uma inadequada compreensão de “verdade”;
c) supõe que os dois Testamentos sejam rivais.

Em primeiro lugar há de se notar a diferença entre ser por si mesmo e ser


percebido como tal. Explico: uma coisa é dizer que “os cristãos percebem o An-
tigo Testamento como Palavra de Deus por causa do Novo”, outra é dizer que “o
Antigo Testamento é Palavra de Deus só por causa do Novo”.

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 235

Sem dúvida, para os cristãos, o Antigo Testamento adquire sentido no


horizonte de interpretação do Novo, o Antigo é considerado inspirado na pers-
pectiva do Novo, o Antigo é percebido como inspirado a partir do Novo. Mas
esta é a percepção cristã. Os judeus (e muçulmanos) o percebem e interpretam
diferentemente.
Basta colocar a questão: o Antigo Testamento se tornou Palavra de Deus só
depois do Novo (ou, se alguém preferir, só depois de Jesus), ou já era Palavra de
Deus antes? O Antigo Testamento já era inspirado antes de Jesus ou se tornou só
depois dele?
Para se responder a esta questão é necessário distinguir o objeto do juízo
acerca dele. Sem dúvida, o Novo Testamento que o Antigo é inspirado
e que é Palavra de Deus. De fato, são diversas as atestações neotestamentárias
acerca da inspiração e da inspirabilidade do Antigo Testamento: o -
tor mateano de que “o Senhor tinha dito por meio do profeta” (Mt 1,22; 21,5.17;
8,17 etc.), as várias vezes que Jesus fala de si mesmo à luz das Escrituras judaicas

inspirada do Antigo Testamento (2Tm 3,15-16; 2Pd 1,19-21), entre outros textos
que podem ser lidos nesta perspectiva.
Mas, que algo é não equivale a -
çar a ser. Ou seja, o Antigo Testamento sempre foi inspirado, sempre foi Palavra
de Deus, mesmo antes de o Novo Testamento e o próprio Jesus reconhecê-lo
se tornou ins-
pirado e se tornou Palavra de Deus de Jesus e do Novo Testamento,

embora legítima, não é a única, nem a primeira5.


Mais ainda, sob o risco de dizer algo óbvio e repetido, é necessário atentar
para o fato que a releitura cristã do Antigo Testamento é algo a ele, isto

do evento Jesus como Messias-Cristo.


Deixando por um momento esta releitura dos cristãos, há de se
perguntar o que o Antigo Testamento diz de si mesmo. Acerca disso, é imperativo

o Antigo Testamento é Escritura inspirada, sagrada e Palavra de Deus, o próprio


Antigo Testamento já tinha esta mesma compreensão de si mesmo. Assim: os
vários oráculos proféticos que incluem as frases “a Palavra de YHWH veio” (Is
13,1; Jr 1,4; 10,1; Jn 1,1 etc.), “assim diz YHWH” (Is 29,22; Jr 25,8 etc.) e “oráculo
de YHWH” (Is 14,22-23; Jr 3,10.12.14; Ez 16,14 etc.); as inúmeras referências à

5. Nesta linha, o Papa Bento XVI assume como sua a proposição 52 do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra de

dos cristãos” ( 41).

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236 Cássio Murilo Dias da Silva

Torá de YHWH (Sl 37,31; 119) e várias outras, de modo particular o prólogo do
tradutor de Sirácida, no qual se fala da Escritura já com uma divisão tripartite:
Lei, Profetas e Escritos.
Em outras palavras, o Antigo Testamento jamais se vê como uma muleta
para o Novo, assim como não é necessário recorrer às declarações do Novo Tes-

A resposta à pergunta de Pilatos a Jesus (Jo 18,38) não se esgota na teologia


do Quarto Evangelho (a verdade não é uma coisa, mas uma pessoa: o próprio
Jesus, cf. Jo 14,6). É necessário levar em conta também a diferença entre o modo
ocidental de conceber a “verdade” e o modo semita (ou médio-oriental).
Para o homem ocidental, a verdade está no fato, na evidência objetiva. Por
(“ade-
quação do intelecto à coisa”). Para o médio-oriental, no entanto, a verdade não

no que o fato representa. Por esta razão, enquanto o homem ocidental, ao ler a
Bíblia, interroga se os fatos aconteceram do jeito narrado, o homem
médio-oriental, ao ler a mesma Bíblia, interroga sobre qual sentido o autor quer
que o leitor dê aos episódios narrados, uma interpretação que já está embutida no
modo de narrar.
De fato, o homem ocidental se sente pouco à vontade com um texto repleto
de diferenças, contrastes e discordâncias acerca do mesmo assunto. Basta olhar,
por exemplo, os quatro retratos diferentes de Jesus nos evangelhos canônicos: o
Jesus de Lucas é muito diferente do Jesus de João, por exemplo. Ou ainda, a di-
ferença de opinião dos sábios do Antigo Testamento acerca da validade ou não da
Teologia da Retribuição: enquanto o Livro dos Provérbios defende que “aqui se
faz, aqui se paga”, Jó e Qohélet (Eclesiastes) têm opinião radicalmente contrária.
Tudo porque, para o homem ocidental, a verdade é algo objetivo, enquanto
para o homem médio-oriental a verdade é algo aberto à discussão.
Esse conceito de verdade é um dos elementos que faz a diferença entre a
leitura cristã e a leitura judaica das Escrituras. Pois a leitura cristã, marcada pela
mentalidade ocidental, pergunta qual “o” sentido das Escrituras, qual “a” inter-
pretação correta de um texto; diferentemente, a leitura judaica, eminentemente
médio-oriental, pergunta quais “os” sentidos e quais “as” interpretações de um
texto. Enquanto, para o ocidental e cristão, a verdade é a que está mais de acordo
com o dogma, para o judeu e médio-oriental, a verdade é a que faz o leitor ser
uma pessoa melhor!
Isso tem implicações graves na composição e na leitura do Novo Testamen-
to, uma vez que ele foi escrito por judeus, mas é lido por cristãos. Nem sempre

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 237

as preocupações do leitor eram as do autor, e vice-versa. Por conseguinte, a in-


terpretação cristã do Novo Testamento acabou se afastando da matriz judaica e
provocou o equívoco de que o Novo Testamento é inconciliável com o Antigo.

As seguintes concepções
– o Novo Testamento substitui o Antigo;
– plenitude da revelação equivale a totalidade da revelação;
– o Antigo Testamento não tem uma mensagem própria;
são falsas e têm como pano de fundo um equívoco ainda maior: uma errônea,
outras interpretação do que se poderia chamar de “rivalidade” entre os dois
Testamentos.
Sem dúvida, judaísmo e cristianismo são dois modos diferentes de crer, mas
não modos de crer.
O movimento de Jesus, caso tivesse sido aceito pelo judaísmo multifacetado
de sua época, seria mais um dos partidos político-religiosos do século I na Judeia
(como o foram fariseus, saduceus, zelotas e essênios).
Por uma série de razões, judaísmo e cristianismo se separaram, mas de modo
algum as Escrituras judaicas negam as Escrituras cristãs, e muito menos as Es-
crituras cristãs tornam obsoletas as Escrituras judaicas. Muito ao contrário – e
-

as Escrituras cristãs (e as suas verdades) só podem ser compreendidas com base


nas Escrituras judaicas.
Em resumo, um Testamento não substitui o outro, pois nenhum deles é a
totalidade da Palavra de Deus; nenhum deles é a completa mensagem de Deus;
nenhum deles é, sozinho, a plenitude da revelação! Por isso, é necessário deixar
valer e valorizar as diferenças. É também necessário aceitar que é possível falar
de uma “rivalidade” entre os dois Testamentos somente no âmbito da natural
divergência entre as duas Alianças, que possuem fundamentos históricos diferen-
tes: o êxodo de um povo (a saída de Israel do Egito) e o êxodo de uma pessoa (a
ressurreição de Jesus o Cristo). E, neste sentido, o Novo Testamento “rivaliza”
com o Antigo porque o relê, reinterpreta e abre para novas perspectivas à luz do
evento Cristo6.

6. Sobre isso, ver ZENGER, et al. 2003, p. 26, que fala dessa rivalidade na perspectiva do “diálogo fecunda-
mente tenso entre as duas partes da Bíblia cristã una”.

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238 Cássio Murilo Dias da Silva

Desse modo, Antigo e Novo Testamentos se vinculam não por uniformi-


dade, nem por uma unidade estrita, e sim por “nexo” compreendido em sentido
vasto e com vários níveis.

7. ANTIGO TESTAMENTO: PALAVRA DE DEUS?


Quando se fala de vários nexos em vários níveis, não se quer dizer unica-
mente os vários modelos/esquemas de interpretação cristã das Escrituras, que se
enquadram no aspecto teológico. Há também os aspectos linguístico, literário,
histórico e socioantropológico, que de algum modo estão presentes nos vários
textos do Novo Testamento que falam da(s) Escritura(s): Mt 21,42; Mc 12,24; Jo
10,35; Rm 15,4 etc.
No entanto, para o propósito deste artigo, é necessário ler novamente, à luz

e a inspirabilidade do Antigo: 2Tm 3,16-17.


-
tamento, porque ainda não existia. Então, trata-se da Escritura judaica, isto é, o
Antigo Testamento. Mas... qual? Bem provavelmente, 2 Timóteo foi escrita antes
-
bermos quais livros compõem esta “Escritura”!
Cumpre recordar que foi o concílio farisaico de Jâmnia que expurgou do
cânon judaico os livros não escritos em hebraico, embora na sinagoga de Alexan-
dria fossem utilizados também livros escritos em grego7. Em 2Tm, portanto, de
quais livros se fala: somente o que estava em hebraico ou também o que estava
em grego, isto é, algum livro da Septuaginta, tal como Sirácida e Sabedoria? Mais
ainda, esta “Escritura inspirada” inclui também os livros que não entraram no câ-
non farisaico, mas que são citados por Judas? Pois Jd 7.14-16 serve-se do
; Jd 6-7, do ; Jd 9, da !
Esses e outros questionamentos fazem retornar a problemática do conceito
de “plenitude” e dos verbos, inadequados ou não, usados para explicá-la: comple-
tar, substituir, suplantar e, de modo particular, cumprir.

Pois, se “cumprir” é lido como “executar o prescrito ou prometido; satis-


fazer o determinado; tornar efetivas as promessas”, então, o Novo Testamento
“cumpre” muito pouco o Antigo: o trono de Davi não foi restabelecido, a derrota
dos inimigos de YHWH não aconteceu, o ímpio não foi extirpado da face da terra,

porque não se tinha nenhuma cópia do original hebraico. Não obstante, foi muito estudado e comentado pelas
escolas rabínicas até a Idade Média!

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 239

o justo não prosperou na sociedade, Jerusalém não se tornou uma cidade de paz!
Nem no tempo de Jesus, nem no tempo da Igreja, desde seu início até hoje!
O Novo Testamento “cumpre” o Antigo somente no campo da cristologia, o
que equivale dizer, graças à releitura cristã. Mas o perigo é considerar o que não
é cristológico algo provisório, superado, não importante e, portanto, descartável!
-
lavra de Deus!

8. A NOVA NOMENCLATURA SE SUSTENTA?


Como você pode ver, a mudança para uma nova nomenclatura não é algo
tão tranquilo como se imagina e não traz somente consequências positivas e poli-
ticamente corretas. Ao contrário, traz no seu bojo uma série de questionamentos
ligados a problemas há muito latentes e malresolvidos. Em muitos casos, o pro-
gresso da discussão teológica revelou a fragilidade das respostas que por muito
tempo (por vezes séculos) foram aceitas. Ora, a simples mudança terminológica
não ajuda a resolver impasses nem a encontrar novas respostas. Pior, corre o
risco de até mesmo mascarar os reais problemas ou desviar a atenção de ques-
tões mais fundamentais.
Uma delas refere-se ao caráter inspirado – a inspirabilidade – dos dois Testa-
mentos: independente da mudança da nomenclatura, é necessário mudar o modo
de compreender a inspirabilidade das duas partes da Bíblia, particularmente o que
se refere ao Antigo/Primeiro Testamento. Concretamente: de nada adianta mudar
de “antigo” para “primeiro”, de “novo” para “segundo” e continuar pensando
que o “Antigo/Primeiro” Testamento é inspirado e Palavra de Deus só graças
ao “Novo/Segundo” Testamento, apenas em função e por causa dele. Este tipo
de postura caracteriza um desprezo bem maior do que o uso de um ou de outro
termo. Em outras palavras, a mudança de “antigo” e “novo” para “primeiro” e
“segundo” acaba sendo apenas um exemplo de falsa modéstia cristã, caso se con-
sidere o caráter inspirado do Antigo-Primeiro Testamento como algo dependente
do Novo-Segundo.
Além disso, não deixa de ser uma presunção cristã pensar que o Antigo Tes-
tamento é Palavra de Deus e Sagrada Escritura do Novo e

seja pelo respeito às religiões, seja porque é um erro de exegese e de teologia. Basta
lembrar que os próprios conceitos de “plenitude” e “cumprimento” para o Novo
Testamento não são tão livres de problemas, uma vez que também o Novo Testa-
mento contém promessas ainda não realizadas e, portanto, poderia não ser “plenitu-

Repetindo, a leitura cristã do Antigo Testamento é “uma” leitura: a leitura


dos cristãos. Mas, será a única? Será a mais adequada?

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240 Cássio Murilo Dias da Silva

Isso tudo tem a ver diretamente com o argumento extrínseco, isto é, que
o termo “antigo” induz ao desprezo das Escrituras judaicas como superadas e
totalmente substituídas pelas Escrituras cristãs e, por isso, deve ser evitado. Ora,
o que de fato obstaculiza o diálogo entre judeus e cristãos não é apenas e tão so-
mente a conotação pejorativa de um termo ambivalente, mas um modo de pensar
a inspiração e a Escritura, um modo que não é eliminado com a simples mudança
terminológica, embora, sem dúvida, esta possa ajudar.
Quanto aos argumentos intrínsecos, também eles demonstram-se proble-
máticos.
Primeiro, o caráter bíblico da frase “primeira aliança” ( ), ates-
tado em várias vezes em Hebreus (8,7.13; 9,1.15.18) e na versão grega do Levíti-
co (26,39-45). Trata-se de um fato inquestionável. Mas também é inquestionável
o fato de “nova aliança” ( ) ser igualmente uma frase bíblica: não
só no mesmo escrito aos Hebreus (8,8; 9,15), como também em Lc 22,20; 1Cor
11,25; 2Cor 3,6; e já antes em Jr 38,31. Portanto, é difícil admitir que “Primeiro
Testamento” seja (!) do que “Antigo Testamento”.
Caso você tenha lido com atenção o parágrafo anterior, terá notado a passa-
-
dades relativas ao segundo argumento intrínseco, isto é, que os ordinais “primei-
ro” e “segundo” correspondem melhor à continuidade histórica das Escrituras:
“primeiro” a Bíblia judaica, “segundo” a Bíblia cristã.
Sobre a inadequação dos termos “judaica” e “cristã” falarei mais abaixo.
Quero agora levantar uma questão de fundo (ou de fundamento): o “Segundo”
Testamento liga-se ao “Primeiro” somente pela continuidade, ou há também des-
continuidade e, portanto, ruptura e ? Mais ainda: a nova terminologia
não corre o risco de negar que o “segundo” seja de fato “novo”?

Trata-se de uma continuidade unicamente cronológica (porque as Escritura ju-


daicas vieram antes das Escrituras cristãs) ou deve ser levado em conta também
o aspecto teológico (e, novamente, com continuidade-repetição e descontinui-
dade-novidade)?
E também – e ainda permanecendo no registro da “continuidade” – que
fazer com a Septuaginta? Pois a assim chamada “Bíblia grega” não é uma mera
tradução das Escrituras hebraicas; antes, contém também rupturas, novidades,
acréscimos, tanto em termos literários como em termos teológicos. No último
quarto do século XX, chegou-se ao consenso de que a versão grega das Escrituras
hebraicas é também inspirada8. Isso não só fundamenta a canonicidade dos livros

8. Sobre isso, ver VELTRI, Giuseppe. L’ispirazione della LXX tra leggenda e teologia. ,
v. 27, p. 1-71, 1976.; BUZZETTI, Carlo. Traduzione della Bibbia e ispirazione della ‘Settanta’.
Italiana, v. 20, p. 131-161,1972; CIMOSA, Mario. La traduzione greca dei LXX: Dibattito sull’ispirazione.
, v. 46, p. 3-14, 1984.

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 241

“deuterocanônicos”9 -
ma: se o texto grego é tão inspirado quanto o hebraico, então deveríamos ter dois
“Antigos” Testamentos, o hebraico e o grego!
Apenas dois exemplos para ilustrar: o Saltério hebraico é diferente do Sal-
tério grego (o que, aliás, obrigou Jerônimo a manter as duas versões lado a lado
em sua Vulgata); o Jeremias hebraico é bem diferente do Jeremias grego (a ordem
dos capítulos não é a mesma, e o Jeremias hebraico é cerca de 1/8 mais longo do
que o Jeremias grego).
Essa questão da Septuaginta é importante e retornarei a ela mais adiante.
Mas, antes, é necessário olhar com mais atenção o próprio termo “testamento”.
-
em latim. Nas línguas modernas, “testamento” designa o conjunto das reco-
mendações ou vontades últimas de alguém que sabe que vai morrer. Embora se
fale também de “testamento” quando essas derradeiras determinações são dei-
xadas oralmente, em geral o termo é aplicado a um documento escrito. O termo
latino foi usado para traduzir as palavras que em hebraico e em
e . Com isso, o acento

que se impôs a ponto de se falar dos dois Testamentos bíblicos muito mais como
livros (ou partes de um único livro) do que como duas alianças10.
Ora, a mudança de “antigo/novo” para “primeiro/segundo” provoca alte-
rações também na compreensão de “testamento”, de modo a obscurecer ainda
-
sivamente o conceito de “documento” e, portanto, texto. Com isso, reemergem
os questionamentos ligados à Septuaginta, a ponto de ser inevitável a pergunta:
Se “testamento” é “livro, documento escrito”, qual é o “segundo” testamento: as
escrituras cristãs ou a versão/ampliação grega das Escrituras hebraicas? Ou seja...
o “segundo” testamento não deveria ser a Septuaginta?

nova nomenclatura, que apresenta “primeiro testamento”, “segundo testamento”,


mas não “primeira aliança”, “segunda aliança”. Pois, se é possível falar de “antiga

se pode dizer de “primeira aliança” – “segunda aliança”, que logo se demonstra


terminologia inadequada, visto que são inúmeras as alianças narradas no (livro
do) Antigo Testamento: aliança com Noé, aliança com Abraão, aliança com Moi-

9. Trata-se dos livros presentes na Bíblia católica, mas não na protestante-evangélica. Sete livros inteiros: Baruc,
Eclesiástico (Sirácida), Sabedoria, Tobias, Judite, 1 e 2 Macabeus. E ainda as partes gregas de Daniel e de Ester.

lugar de “testament”.

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242 Cássio Murilo Dias da Silva

sés, aliança com Davi! Sem falar que seria no mínimo absurdo colocar na boca
de Jesus a frase “Este cálice é a aliança no meu sangue” (cf. Lc 22,20)!
Estas várias implicações referentes ao segundo argumento intrínseco não

de que o esquema “promessa-cumprimento” expresse adequadamente as relações


entre os dois Testamentos. Como já vimos em algumas páginas acima, de fato
não o é. Mas, o que se deve mesmo perguntar é se esta inadequação do esquema

independentemente da terminologia usada.


Acrescente-se a tudo isso a observação de que, até mesmo quem adotou a
nova nomenclatura nem sempre se mantém coerente com sua opção. Cito como
exemplo o seguinte parágrafo de Milton Schwantes, um dos que aderiu à mu-
dança: “Pois os textos veterotestamentários [...]. Há quem diga que o Primeiro
Testamento [...]”11.
Por que não livros “prototestamentários”? Por uma questão de coerência
com a opção feita, o termo “veterotestamentários” deveria ser abandonado! Se-
melhantemente, dever-se-ia falar de livros “deuterotestamentários”, teologia
“prototestamentária”, teologia “deuterotestamentária” etc.
Como se vê, os argumentos intrínsecos em favor da nova terminologia reve-
lam-se bastante frágeis e problemáticos, o que deixa o argumento extrínseco sem

às duas partes da Escritura judaico-cristã.

9. EXISTE UMA NOMENCLATURA ADEQUADA?


A busca de uma terminologia totalmente isenta de problemas para evitar “Pri-
meiro/Antigo” Testamento e “Segundo/Novo” Testamento revela-se frustrante:
a) Bíblia Judaica: Terminologia totalmente inadequada, uma vez que tanto
a Septuaginta como o Novo Testamento são escrituras dos judeus e, portanto,
também são “Bíblias Judaicas”.
b) Bíblia Hebraica: Sem dúvida, “Bíblia Hebraica” designa o conjunto de
livros estabelecido pelos fariseus em Jâmnia (90-100 dC), embora nem todos os
capítulos da Bíblia “Hebraica” tenham sido escritos em hebraico (há vários capí-
tulos e versículos em aramaico). Não obstante, trata-se de uma expressão menos
problemática do que “Bíblia Judaica” (conforme o parágrafo anterior).

11. SCHWANTES, Milton. Vol. 1: Local e origens. São Leopoldo: Oikos, 2012, p. 16.

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“Novo” ou “Segundo” Testamento? 243

c) Bíblia Grega: Termo normalmente usado para falar da tradução grega do


Antigo/Primeiro Testamento. Mas, o Novo/Segundo Testamento é também Bíblia
e também em grego! Além disso, poder-se-ia aplicar “Bíblia Grega” também às
traduções de Símaco, Teodocião e Áquila. Por isso, é melhor empregar Septua-
ginta (ou Setenta ou LXX).
d) Bíblia Cristã: Expressão que normalmente designa os livros produzidos
pelos cristãos e pertencentes ao cânon cristão, isto é, os livros do Novo/Segundo
Testamento. E é exatamente esta a inadequação, pois o Primeiro/Antigo Testa-
mento (seja ele o hebraico, seja o grego) também integra a Bíblia dos seguidores
de Jesus. A rigor, portanto, é um reducionismo às novas escrituras dos cristãos.
-
plexa e, até se chegar a um consenso, havia vários “cânones”, incluindo livros
como a Terceira Carta aos Coríntios e a Primeira Carta de Clemente Romano, ou
excluindo Hebreus, Tiago, 2 Pedro e 3 João! De fato, uma lista fechada de livros
surgirá somente no século IV12.
Além de tudo isso, há sempre a questão – propositadamente omitida aqui – da
variedade de manuscritos, o que nos faz perguntar: a versão de “qual” manuscrito
é “o” texto inspirado?

BREVE CONCLUSÃO
Após todo este percurso – por vezes sinuoso e talvez repetitivo – é neces-
sário reconhecer: a favor da mudança e,
portanto, a escolha da nova terminologia é algo subjetivo e do

Por isso – e aplicando o mesmo reivindicado por quem


advoga o uso de “primeiro” e “segundo” –, até que se encontre um argumento

quem prefere a nova convenção e quem prefere a convenção tradicional terão de


conviver e respeitar a liberdade da escolha do outro.
Talvez a unanimidade venha por uma terceira via... mas que, até se impor,
também enfrentará dúvidas e questionamentos.
Terminologias vêm, terminologias vão: elas se esgotam, tornam-se obsole-
tas, revelam-se fúteis, pois são apenas palavras humanas. Permanece para sempre
somente a

12. Para uma breve história do cânon do Novo Testamento, ver KAESTLI, Jean-Daniel. História do cânon do
Novo Testamento. In: MARGUERAT, Daniel, org. . São Paulo:
Loyola, 2009, p. 571-603. Para uma apresentação mais aprofundada, ver MANNUCCI, Valerio.
. São Paulo: Paulus, 1986, p. 235-257.

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244 Cássio Murilo Dias da Silva

BENTO XVI. São Paulo: Paulinas


2010 (A Voz do Papa, 194).
BUZZETTI, Carlo. Traduzione della Bibbia e ispirazione della ‘Settanta’.
Italiana 20 (1972) 153-161.
CIMOSA, Mario. La traduzione greca dei LXX: Dibattito sull’ispirazione.
46 (1984) 3-14.
GÄDE, Gerhard. “Antico” o “Primo” Testamento? 18 (2000) 255-276
[Também em espanhol em: 160 (2001) 279-310. Disponível na
internet: http://seleccionesdeteologia.net/selecciones/llib/vol40/160/160_gade.pdf. Aces-
so em 19/12/2014].
KAESTLI, Jean-Daniel. História do cânon do Novo Testamento. In: MARGUERAT,
Daniel (org.) . São Paulo: Loyola,
2009, p. 571-603.
LEVORATTI, Armando J., ed. ¿Antiguo o Primer Testamento? In: LEVORATTI, Ar-
mando J., ed. -
. Estella: Verbo Divino, 2005, p. xiv-xxi.
MANNUCCI, Valerio. . São Paulo: Paulus, 1986 (Biblioteca de
Estudos Bíblicos).
PENNA, Romano. . Cinisello Balsamo
(Milano): San Paolo, 2011.
RAHNER, K. . São Paulo: Herder, 1967 (Quaestiones Dispu-
tatae).
SCHWANTES, Milton. . São Leopoldo: Oikos,
2012.
VELTRI, Giuseppe. L’ispirazione della LXX tra leggenda e teologia. 27
(1976) 1-71.
ZENGER, Erich (org.). . São Paulo: Loyola, 2003 (Bí-
blica Loyola, 36).

[email protected]
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
Av. Ipiranga, 6681
Prédio 5 – Sala 407 Partenon
90619-900 Porto Alegre, RS

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