Representações Do Homem Do Campo em

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MISCELÂNEA

Revista de Pós-Graduação em Letras


UNESP – Campus de Assis
ISSN: 1984-2899
www.assis.unesp.br/miscelanea
Miscelânea, Assis, vol.6, jul./nov.2009

REPRESENTAÇÕES DO HOMEM DO CAMPO EM


MONTEIRO LOBATO: DE JECA TATU A ZÉ BRASIL

Mário Luís Simões Filho


(Doutorando  UFPB)
Wilma Martins de Mendonça
(Orientadora  UFPB)

RESUMO ABSTRACT
Pautado pelo cientificismo vigente dos Based on the effective scientific mentally
fins do século XIX e inícios do século XX, of ends of the 19th century and
base teórico-ideológica na qual se beginnings of the 20th, theoretic-
assentam as perspectivas do progresso e ideological ground on which takes seat
da civilização ocidental, Monteiro Lobato the occidental perspectives of progress
alinhar-se-ia, ao longo de sua vida, à and civilization, Monteiro Lobato would
variadas posições ideológicas. Desse line up, throughout his life, to several
alinhamento, resultariam diversas ideological positions. From this alignment,
configurações dos traços físicos e sociais would result diverse configurations of the
do mundo caboclo. Neste estudo, physical and social traces of the caipira.
seguindo itinerário esboçado por Marisa In this study, following an itinerary
Lajolo, nos voltaremos para as narrativas sketched by Marisa Lajolo, we analyse
lobatianas acerca do homem rural, narratives concerning the peasant,
escritas entre 1914 e 1947. Nesta tarefa, written between 1914 and 1947. In this
observaremos que, Monteiro Lobato, task, we will observe that, Monteiro
trilhando, contraditoriamente, o caminho Lobato, treading, contradictorily, the way
da tradição, permaneceria fiel ao of the tradition, would remain faithful to
Naturalismo, propondo, através da the Naturalism, considering, through the
literatura, a inserção do caipira no literature, the insertion of caipira in the
mundo do capital, do progresso, da world of the capital, the progress, science
ciência e da riqueza individual. and the individual wealth.

PALAVRAS-CHAVE KEYWORDS
Literatura; sociedade; identidade cultural. Literature; society; cultural identity.
Mário Luís Simões Filho e Wilma Martins Mendonça

P autado pelo cientificismo vigente dos fins do século XIX e inícios


do século XX, base teórico-ideológica na qual se assentam as
perspectivas do progresso e da civilização ocidental, Monteiro Lobato alinhar-
se-ia, ao longo de sua vida, a variadas posições ideológicas. Desse
alinhamento, resultariam diversas configurações dos traços físicos e sociais do
homem do campo, num percurso marcado, claramente, pela diversidade, como
assinala Marisa Lajolo: “de 1914 a 1947, Monteiro Lobato parece ter percorrido
quase todas as posições ideológicas disponíveis para um intelectual de seu
tempo” (LAJOLO, 1983, p. 101). Um persistente esforço de atualização, através
do qual, é possível apreender a extrema dificuldade de Lobato em sair de si
mesmo, de relativizar as suas certezas e as de seu século, de apreender a difícil
trajetória do povo brasileiro.
Filho e neto de grandes proprietários de terras no Vale do Paraíba,
Monteiro Lobato integra, pela origem, a pequena nobreza oligárquica do Brasil,
como comprova o título nobre de seu avô, Visconde de Tremembé, conferido
pelo Imperador. Prática comum aos imperadores portugueses, essas distinções
aproximavam, simbolicamente, a oligarquia brasileira da nobreza européia. O
vocábulo indígena, largamente utilizado nessas comendas, acentuava a lisonja
imperial aos grandes senhores de terra em nosso país.
Preso às divagações de nossa autenticidade cultural, ao exercício de
busca de um novo estilo, atividade privilegiada pela geração de Lobato, como
nos informa Nelson Palma Travassos, memorialista e contemporâneo do autor
de Urupês  “Éramos em 1918 uma época em busca de um estilo”
(TRAVASSOS, 1964, p. 26)  Monteiro Lobato publicaria, nesse ano, em forma
livresca, as narrativas, “Velha praga” e “Urupês”, já editadas pela imprensa
escrita desde 1914. Nelas, a configuração literária do caboclo paulista,
tematizada no personagem Jeca Tatu, caracterizava a representação de Lobato,
simultaneamente, pela ruptura e pelo aproveitamento de nossa tradição
literária, em especial da perspectiva nacionalista romântica.

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Embaraçado pela quimera de nossa autenticidade cultural, que embalou


o nacionalismo literário, Monteiro Lobato resgataria, dialeticamente, a tradição
romântica pela via da contradição e da reafirmação. Problematiza-lhes os
textos, enquanto se apropria de seus processos escriturais, como se vê na
explicitação de seu próprio modo composicional de “Urupês”, (dezembro,
1914). Caminha pelo paradoxo ao anunciar a morte do indianismo, enquanto
reafirma a sua ressurreição, como se observa nos fragmentos de “Urupês”
descritos a seguir:

Esboroou-se o balsâmico indianismo de Alencar ao advento dos


Rondons que, ao invés de imaginarem índios num gabinete,
com reminiscências de Chateaubriand na cabeça e a Iracema
aberta sobre os joelhos, metem-se a palmilhar sertões de
Winchester em punho. Morreu Peri [...] Não morreu todavia.
Evolui. O indianismo está de novo a deitar copa, de nome
mudado. Crismou-se de ‘caboclismo’. O cocar de penas de
arara passou a chapéu rebatido à testa; o ocara virou rancho
de sapé; o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje
espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para o pio
de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito.
(LOBATO, 2004, p. 166).

Nessa contradição consigo mesmo, Lobato procede ao aproveitamento


estético do indianismo romântico, como já observara Silviano Santiago em seu
texto “Monteiro Lobato hoje  ponto e vírgula”, publicado em 2003, na
coletânea, organizada por João Cezar de Castro, Nenhum Brasil existe, e
reeditado, em 2006, na obra de ensaios literários, Ora (direis) puxar conversa!:

Em página bastante conhecida sobre a expressão literária da


nacionalidade, Lobato substitui o índio pelo caboclo. A
simplicidade no raciocínio evolutivo é tão grande que parece
estarmos diante de uma errata pouco pensante (SANTIAGO,
2003, p. 659).

O olhar diferente, graças ao prisma naturalista que adota como


convenção literária, leva Monteiro Lobato a substituir o componente ideológico
romântico pelas ideologias naturalistas, responsáveis pela sua cruzada em
defesa da “desliteralização” da literatura nacional e de sua elevação ao
(impossível) plano da realidade, como manifesta abaixo, ao criticar os escritores

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citadinos que, sem a vivência no campo, se atrevem a escrever sobre essa


temática apenas com os recursos da tradição e da imaginação. Nesse exercício
sobre o seu fazer literário, Monteiro Lobato afirma a legitimidade de sua escrita,
posto que elaborada a partir de sua experiência como fazendeiro, defendendo,
assim, o exercício estético como atividade proveniente da experiência:

A nossa literatura é fabricada nas cidades por sujeitos que não


penetram nos campos de medo dos carrapatos. E se por acaso
se atreve e faz uma “entrada”, a novidade do cenário embota-
lhe a visão, atrapalha-o, e, ele, por comodidade entra a ver o
velho caboclo romântico já cristalizado  e até vê caipirinhas
cor de jambo, como o Fagundes Varela. O meio de curar esses
homens de letras é retificar-lhes a visão. Como? Dando a cada
um, ao Coelho, à Júlia Lopes, uma fazenda na serra para que a
administrem. Se eu não houvesse virado fazendeiro e visto
como é realmente a coisa, o mais certo era estar lá na cidade a
perpetuar a visão erradíssima do nosso homem rural. O
romantismo indianista foi todo ele uma tremenda mentira; e
morto o indianismo, os nossos escritores o que fizeram foi
mudar a ostra. Conservaram a casca... Em vez de índio, caboclo
(LOBATO, 1961, p. 364).

Com a visão ofuscada pela perspectiva naturalista, Monteiro Lobato não


se apercebe de que a sua experiência com o caboclo paulista o induz não à
literatura autêntica que deseja, mas a uma literatura organizada por um olhar
senhorial, extremamente depreciativo em relação ao caboclo e ao seu mundo.
Dessa óptica, caracteriza nosso caipira como um “funesto piolho da terra,
inadaptável à civilização”, desconfiado e avesso ao progresso, no conto “Velha
praga” (novembro, 1914), texto que antecede “Urupês”:

Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem


baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à
beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o
progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a
valorização da propriedade, vai ele refugindo em silêncio, com
o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro, de modo a
sempre conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Encoscorado
numa rotina de pedra recua para não adaptar-se (LOBATO,
2004, p.161).

Desse campo visual, Monteiro Lobato acusaria o caboclo de agressor-


parasita da natureza, de destruidor da fertilidade do nosso solo, responsável

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pelos enormes prejuízos, ambientais e econômicos, criticando, assim, a prática


arraigada da coivara, herdada pelos caboclos dos seus ancestrais ameríndios. O
olhar lobatiano, de proprietário desejoso de progresso e de braços servis para o
nosso tão protelado progresso, nos deixa entrever o neto e o herdeiro do
Visconde de Tremembé que, em dificuldades, investe contra o caboclo
denominando-o pejorativamente ora de incendiário, o Nero brasileiro então, ora
de quantidade negativa, como se lê, novamente, em “Velha praga”:

A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra,


peculiar ao solo brasileiro como o Argas o é aos galinheiros ou
o Sarcoptes mutans à perna das aves domésticas [...] Pronto o
roçado, e chegado o tempo da queima, entra em funções o
isqueiro. Mas aqui o ‘sarcopte’ se faz raposa. Como não ignora
que a lei impõe aos roçados um aceiro de dimensões suficientes
à circunscrição do fogo, urde traças para iludir a lei, coçando
dest´arte a insigne preguiça e a velha malignidade [...] Quem
foi o incendiário? Donde partiu o fogo? Indaga-se, descobre-se
o Nero: é um urumbeva qualquer, de barba rala, amoitado num
litro de terra litigiosa. [...] Enquanto a mata arde, o caboclo
regala-se.  Eta fogo bonito! (LOBATO, 2004, p. 161-4).

Em “Urupês”, Monteiro Lobato, pautando-se nas suas acentuadas


convicções naturalistas, contrapõe Iracema e Peri, ícones maiores da
idealização indianista alencariana, às representações indígenas dos sertanistas
modernos que, como ele, representam os índios brasileiros a partir de seus
próprios contatos e experiências com esses aborígines:

Contrapôs-lhe a cruel etnologia dos sertanistas modernos um


selvagem real, feio e brutesco, anguloso e desinteressante, tão
incapaz, muscularmente, de arrancar uma palmeira, como
incapaz, moralmente, de amar Ceci. Por felicidade nossa  e
de D. Antônio de Mariz  não os viu Alencar; sonhou-os qual
Rousseau. Do contrário, lá teríamos o filho de Araré a moquear
a linda menina num bom braseiro de pau-brasil, em vez de
acompanhá-la em adoração pelas selvas, como o Ariel
benfazejo do Paquequer (LOBATO, 2004, p. 165).

Em outros escritos, Lobato acentuaria essa caracterização depreciativa,


física e moral, do aborígine agora transfigurado em caboclo. Em O problema
vital (1918), marco de uma nova perspectiva lobatiana, espécie de compilação
de vários artigos nos quais defende o saneamento do país, o criador de Jeca

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Tatu culpabiliza, nesse novo olhar, o estado verminoso do caboclo, denominado


de náufrago da fisiologia, viveiro ambulante do verme, pela indolência, pela
feiúra, pelo cansaço e pelo fatalismo do homem rústico do Brasil:

O que nos campo a gente vê, deambulando pelas estradas com


ar abobado, é um lamentável naufrago da fisiologia, a que
chamamos homem por escassez de sinonímia. Feiíssimo, torto,
amarelo, cansado, exangue, faminto, geófago  viveiro
ambulante do verme destruidor [...] É fantástico, isto! Milhões
de criaturas humanas com a função social adstrita à veiculação
das posturas do ancilostomo! Um país com dois terços do seu
povo ocupados em por ovos alheios! Em conseqüência da
escravização do homem ao verme jaz o país em andrajosa
miséria econômica, resultante natural da miséria fisiológica
(LOBATO, 1959, p. 234).

Iniciando um caminho de revisão de sua primeira perspectiva acerca do


caipira, Monteiro Lobato retomaria o caminho escritural traçado por Alencar, em
Ubirajara (1874). Em sua última obra indianista, José de Alencar, sem a
ambigüidade que permanece no texto de Monteiro Lobato, culpabilizaria os
viajantes, cronistas e historiadores do primeiro período colonial pelas
caracterizações grosseiras das quais ele mesmo se utilizara em suas narrativas
indianistas, como se apreende da leitura de O Guarani (1857) e de Iracema
(1865), conforme constata Wilma Martins de Mendonça:

Encontramos um Alencar, então, que não apenas revisita os


relatos quinhentistas, mas revê sobremaneira, o seu próprio
olhar. Dessa forma, o narrador de Ubirajara investe não apenas
contra a cegueira quinhentista, mas contra a própria cegueira
do seu Autor Pai (MENDONÇA, 2002, p. 17).

Retomando o caminho da revisão alencariana, Monteiro Lobato acusa a


política brasileira, a falta de saneamento e o abandono do homem do campo,
que, escravizado pela “miséria econômica” e pela miséria fisiológica é impedido
de criar riqueza. Nesse momento, Lobato se aproxima de Euclides da Cunha.
Este, em Os Sertões (1901) também denunciaria o abandono do homem
sertanejo, denominando a repressão do exército brasileiro a Canudos como
crime de nacionalidade; como se observa:

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Faltou-nos o estadista de visão bastante lúcida para apreender


este outro modo de obter braços: a restauração pelo
saneamento dos milhões que temos em casa, incapacitados
para o trabalho por força de males curáveis e evitáveis. O
exemplo da Trappa ensina-nos que o saneamento vale por
avultada corrente imigratória. É mister, curando-o, valorizar o
homem da terra, largado até aqui no mais criminoso abandono.
Curá-lo é criar riqueza (LOBATO, 1959, p. 284, grifos nossos).

Reproduzamos, intactas, todas as impressões, verdadeiras, ou


ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhando a
celeridade de uma marcha militar, demos, de frente, numa
volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares, que ali
estão  abandonados  há três século (CUNHA, 1979, p. 95-
6, grifos nossos).

Ainda em 1918, Monteiro Lobato publica o conto “Jeca Tatu  a


ressurreição”, reafirmando sua nova perspectiva do universo caboclo, na qual
deixa explícito o seu entusiasmo com as recentes medidas sanitárias, em
processo de implantação no país, graças aos esforços, segundo Lobato, tanto
de um Osvaldo Cruz como de um Belisário Pena, como ressalta em “Dezessete
milhões de opilados”, artigo que antecede a publicação de seu Jeca
ressuscitado:

Foi mister que nascesse Osvaldo Cruz, que Osvaldo fundasse


Manguinhos, que Manguinhos reunisse em seu seio uma
plêiade de estudiosos, e que dentre eles Belisário Pena
desferisse um grito lancinante de angústia para que afinal
volvêssemos para os males caseiros os olhos há tantos anos
postos nas coisas européias. Ah, se o Brasil que fala e pensa e
age consagrasse ao estudo e solução dos problemas internos
um décimo das energias despendidas em comentar os fatos
europeus... (LOBATO, 1959, p. 237).

O entusiasmo com as novas medidas na área da saúde pública, sinais


inequívocos de nossa entrada na modernidade, como supõe Lobato, torna o
autor de “Velha praga” num ativo militante da melhoria e da reconfiguração do
quadro da saúde pública entre nós, como expressa, repetidas vezes, ao longo
da nova narrativa. Desse novo front, Lobato atacaria o descuido e a negligência
brasileira no trato com as questões da saúde pública, tanto em artigos

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publicados no jornal O Estado de S. Paulo, como no novo texto literário,


claramente marcado pelo tom propagandista da campanha em curso.
Oriunda, ideológica e escrituralmente, da nova campanha abraçada
pelo escritor, a nova narrativa lobatiana procede a uma reinterpretação das
causas da pobreza e da apatia do Jeca Tatu, elegendo, desta feita, o estado
verminoso, a precariedade da saúde pública como responsáveis pela indolência
e preguiça do seu personagem. Dessa forma, Lobato redime seu antigo Jeca
Tatu do pecado capital da preguiça, enquanto revisita o seu olhar anterior:

Jeca não queria saber de nada. Trabalhar não era com ele [...]
Um dia um doutor portou lá por causa da chuva e espantou-se
de tanta miséria. Vendo o caboclo tão amarelo e chucro,
resolveu examiná-lo.  Amigo Jeca, o que você tem é doença.
 Pode ser. Sinto uma canseira sem fim, e dor de cabeça, e
uma pontada aqui no peito que responde na cacunda. Isso
mesmo você sofre de anquilostomiase [...] O doutor receitou-
lhe o remédio adequado; depois disse: ‘E trate de comprar um
par de botinas e nunca mais me ande descalço nem beba
pinga, ouviu?’  Ouvi, sim senhor!  Pois é isso, rematou o
doutor, tomando o chapéu. A chuva já passou e vou-me
embora. Faça o que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o
italiano [...] Tudo o que o doutor disse aconteceu direitinho!
Três meses depois ninguém mais conhecia o Jeca. A preguiça
desapareceu (LOBATO, 1959, p. 331-4).

Nessa revisitação, em que diagnostica as “verdadeiras” causas do


atraso do caipira e do mundo rural, Monteiro Lobato retomaria a aliança entre
literatura e ciência fisiológica um dos traços estruturantes do naturalismo do
século XIX, como observa Flora Süssekind, no texto “A estética faz-se
fisiológica”, da obra em que analisa a transplantação e a sedimentação do
Naturalismo no Brasil:

Também o indivíduo e a nação a que pertence tornam-se


‘organismos’ análogos, cujo funcionamento e possíveis
diagnósticos ficam a cargo da fisiologia [...] O médico dos
romances naturalistas possui traços que o aproximam dos
intelectuais brasileiro da virada do século. Enquanto um possui
poder de intervenção no espaço familiar, a ponto de ordenar
internações e casamentos, o outro desejaria estar investido de
idêntica possibilidade de transformar a vida nacional
(SÜSSEKIND, 1984, p. 84-130).

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Desejoso da possibilidade de transfigurar a feição nacional, tacanha e


atrasada, em feição de progresso e prosperidade, Monteiro Lobato transforma
sua narrativa numa espécie de texto publicitário a serviço da campanha de
saneamento do país, a maneira de Zola, como se apreende da leitura do texto
de Flora Süssekind, sobre os escritores naturalistas do país:

Esse radicalismo pela metade explica que, junto a uma


obsessiva defesa da ciência e da modernização, nossos
romancistas naturalistas tenham aviado apenas em parte a
receita de Zola. Dele se tomou um modelo romanesco, mas se
apagou a orientação ideológica socialista. Dele se tomou a
histérica (Thérèse Raquin), o médico (Docteur Pascal), a
concepção da sociedade em que se vive como um organismo
doente. Mas isolados pelo ‘cordão sanitário’ do naturalismo
brasileiro de qualquer receituário socialista (SÜSSEKIND, 1984,
p. 131).

Nesse radicalismo pela metade, para usarmos a expressão de Flora


Süssekind, Monteiro Lobato persistiria em sua campanha de saneamento. Em
1924, republicaria, com o título de “Jeca Tatuzinho”, a narrativa “Jeca Tatu  a
ressurreição”. Afora o novo título, a inserção da propaganda médico-comercial
e a forma de difusão, Monteiro Lobato se manteria fiel ao texto do seu Jeca
ressuscitado, inclusive mantendo como personagem o Jeca Tatu.
Rebatizado como Jeca Tatuzinho, o Jeca redimido de Monteiro Lobato
alcançaria um contingente de leitores nunca verificado em nossa história
editorial. Acirrando a aliança entre a literatura e a ciência, Monteiro Lobato se
uniria ao Laboratório Fontoura, que garantiria, financeiramente, a circulação do
Jeca Tatuzinho entre milhões de brasileiros, notadamente, aqueles que povoam
o nosso espaço rural e periferias das grandes cidades. Esse financiamento
garantiria, a “Jeca Tatuzinho”, o lugar de best-seller entre os best-sellers do
Brasil, segundo assinala Silviano Santiago ao reconhecer o caráter elitista dessa
elaboração:

Jeca Tatu foi escrito por fazendeiro para agregados, isto é, para
ser lido por aqueles que, julgava serem os jecas tatus da vida.
Não é por acaso que, até 1982, as edições do Jeca Tatuzinho,
financiadas pelo Laboratório Fontoura, tenham ultrapassado a

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marca dos cem milhões de exemplares. Deve ser o best-seller


dos best-sellers brasileiros (SANTIAGO, 2003, p. 660).

Denominação nova, texto velho. Em relação ao novo/velho e, agora,


afetuoso, nome do Jeca, nutrimos certa reserva em relação à leitura de Marisa
Lajolo que vê, na utilização do diminutivo, a solidariedade do escritor, ou
nomeador, ao seu personagem, o nomeado. Optamos, nesse caso, pelo próprio
discurso de Lobato que, em nota explicativa, atribuiria sua nova concepção
onomástica, à analogia que faz com o formato do livreto distribuído. Nesse
caso, a afetividade que o uso do diminutivo indicia é dirigida não ao
personagem, mas ao próprio produto literário, como expõe Monteiro, em texto
posto em cotejo com o de Marisa Lajolo:

O velho Jeca (agora no diminutivo, o que em nossa prática


lingüística supõe certa afetividade, entre nomeador e nomeado)
é apresentado como vítima com a qual se solidariza o Lobato
de agora: opilado pela verminose, fraco, anêmico, os males
deste Jeca dos anos vinte não começam na preguiça nem na
falta de disposição para o trabalho: a desnutrição e a
precariedade de seu estado de saúde é que desembocam na
pouca produtividade do camponês itinerante (LAJOLO, 1983, p.
101).

Esta pequena história teve um curioso destino. Adotada por


Candido Fontoura, esse homem de visão tão penetrante, para
propaganda de seus preparados medicinais contra a malária e a
opilação, vem sendo espalhada pelo país inteiro na maior
abundância. As tiragens já alcançaram quinze milhões de
exemplares  e prosseguem. Não há recanto do Brasil, não há
fundo de sertão, onde quem sabe ler não haja lido o
“Jecatatuzinho”, que é o nome popular da história por causa do
pequeno formato das edições distribuídas. E desta forma,
graças à ação de Fontoura, as noções dadas no “Jecatatuzinho”
sobre as origens da malaria e da opilação já entraram no
conhecimento do povo roceiro, habilitando milhares e milhares
de criaturas a se defenderem e também a se curarem, quando
por elas alcançados (LOBATO, 1959, p. 340).

Espécie de cartilha educativa, organizada por uma pedagogia de cunho


paternalista, o texto “Jeca Tatuzinho” se aproxima, concomitantemente, ora de
um receituário, ora um texto de reclame, utilizado como suplemento dos
produtos medicinais do Laboratório Fontoura. Nesses tons, perpassados pela

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velha ideologia do progresso e pelo elogio do trabalho, Lobato organizaria a


nova publicação de Jeca Tatu, como se afere de sua leitura e em acordo com
as ponderações de Silviano Santiago, posto em diálogo com Monteiro Lobato:

Quem sofre de sezão sara com o MALEITOSAN FONTOURA.


Quem sofre de amarelão sara com a ANKILOSTOMINA
FONTOURA [...] para tomar assim: seis comprimidos hoje pela
manhã e outros seis amanhã de manhã.  Faça isso duas
vezes, com espaço de uma semana. E cada vez tome também
um purgante de sal amargo, se duas horas depois de ter
ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver evacuado [...] E o grande
remédio que combate o amarelão, esse mal terrível que tantos
braços preciosos rouba ao trabalho, é a ANKILOSTOMINA.
Assim como o grande conservador da saúde, que produz
energia, força e vigor, chama-se BIOTÔNICO FONTOURA
(LOBATO, 2004, p. 325-31).

Na combinação do conhecimento enciclopédico do generalista,


imbuído pelo pessimismo patriótico, com o bom-senso do
caixeirinho do armazém, ingênuo mas direcionado pela
ideologia do progresso individual pelo trabalho, é que Lobato
consegue diagnosticar com imprecisão de detalhes os nossos
grandes males. Com o espírito do generalista e do caixeirinho,
ele detecta as causas simples para as doenças da nossa
civilização tropical (causas ditas complexas pelo Estado burro e
corrupto, leia-se o conto “Um suplício moderno”, e pela elite
embusteira) e procura saneá-las com o proselitismo de
pregador evangélico. O generalista retira do bolso o receituário
e entrega a receita para o caixeirinho aviar. O primeiro é capaz
de prescrever, para cada mal diagnosticado, o remédio perfeito
e eficiente, e o segundo é capaz de aplicar as injeções
milagrosas, estabelecendo novas diretrizes para o
desenvolvimento e o progresso que retirariam país e cidadãos
da paralisia asfixiante. A simplicidade na análise, repitamos, é
amiga da visão abrangente e também dos remédios milagrosos
(SANTIAGO, 2003, p. 663, grifos do autor).

Não obstante o esforço de renovação empreendido por Monteiro


Lobato, o seu novo Jeca continuaria sendo apreendido através de velhos
visores, indicadores da dificuldade lobatiana em se afastar do lugar que ocupa
em nossa hierarquia social, por benesse de nascimento. Mesmo ressuscitado,
bem sucedido, o Jeca Tatu ou Jeca Tatuzinho ainda seria impedido do direito a
fala. Seu discurso se constitui como ecos de ressonância, do pensamento, dos
projetos e dos sonhos de Monteiro Lobato, como se deduz da fala do Jeca:

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Mário Luís Simões Filho e Wilma Martins Mendonça

 Nunca mais! Daqui por diante dona Ciência está dizendo,


Jeca está jurando em cima! Tesconjuro! E pinga, então, nem
pra remédio!... [...]  É que agora quero ficar rico. Não me
contento em trabalhar para viver. Quero cultivar todas as
minhas terras, e depois formar aqui duas enormes fazendas 
a Fazenda Ankilostomina e a Fazenda Biotônico. E hei de ser
até coronel [...] Só pensava em melhoramentos, progressos,
coisa americanas. Aprendeu logo a ler, encheu a casa de livros
e por fim tomou um professor de inglês.  Quero falar a língua
dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a coisa. O
seu professor dizia:  O Jeca só fala inglês agora (LOBATO,
2004, p. 326-9).

Nessa permanência, o texto de Lobato ainda abrigaria o antigo


preconceito (em sentido restrito), verbalizado, nessa nova narrativa, pelo
próprio Jeca Tatu, agora também “garoto propaganda” do Laboratório
Fontoura, como se vê na passagem em que Jeca Tatu denomina seus iguais de
“paulama”, em sentido de dicionário, “madeira que atravanca os roçados após a
queimada”, talvez numa outra analogia lobatiana com o urupê como ele
classifica o seu primeiro Jeca, destituído, de outra maneira, do direito a
expressão, como se lê a seguir:

Quando teve de aumentar a casa, foi a mesma coisa. Derrubou


no mato grossas perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe no
muque o terreiro as toras todas. Sozinho!  Quero mostrar a
esta paulama quanto vale um homem que tomou
ANKILOSTOMINA e BIOTÔNICO, que usa botina cantadeira e
que não bebe nem um só martelinho de cachaça! (LOBATO,
2004, p. 327-8).

O caboclo é um sombrio urupê de pau podre a modorrar


silencioso no recesso das grotas. Só ele não fala (LOBATO,
2004, p. 176).

Em sua nova percepção do mundo caboclo, Monteiro Lobato, entre a


ingenuidade, a generalização e o simplismo, como assinalou Silviano Santiago,
propõe, pelo caminho da literatura, a inserção do caipira no mundo do capital,
do progresso, da ciência e da riqueza individual, conforme se deduz da leitura
de seus textos produzidos entre 1918 e 1924.
Persistindo na tematização do homem rústico brasileiro, Monteiro
Lobato lançaria, vinte e três anos depois, terceira e uma última versão do

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caipira. Em 1947, publica um folheto sob o patrocínio da Editorial Vitória,


difusora de textos marxistas e comprometida com o programa do Partido
Comunista Brasileiro, numa clara demonstração de seu ecletismo ideológico.
Monteiro Lobato trilharia um percurso marcado, claramente, pela
diversidade, como assinala Marisa Lajolo: “de 1914 a 1947, Monteiro Lobato
parece ter percorrido quase todas as posições ideológicas disponíveis para um
intelectual de seu tempo” (LAJOLO, 1983, p. 101).
Submetendo a sua escritura às idéias que defende, Monteiro Lobato,
em sua terceira versão do caipira, conceberia Zé Brasil, fortemente influenciado
pelo ideal do comunismo. No campo restrito do projeto estético, Lobato
abandona a fisiologia dominante nos romances naturalistas do fim do século
XIX alinhando-se aos romancistas naturalistas de Trinta, permanecendo, assim,
fiel ao Naturalismo. Nessa atualização, segue a tendência naturalista em voga,
tendência, esta, predominantemente marcada pela interpretação da sociedade
através das ciências sociais, como analisa Flora Süssekind, em sua obra já
citada:

Talvez porque obsessivamente voltada para o estabelecimento


de semelhanças e a restauração de identidade, a ficção
naturalista também se veja sucessivamente submetida a
superações históricas [...] Nos decênios de Trinta e Quarenta
não se poderia encarar o naturalismo do fim do século com seu
biologismo, sem a ironia de um período marcado culturalmente
pelas explicações econômicas, pelas ciências sociais
(SÜSSEKIND, 1984, p. 86-7).

Sob a influência das idéias comunistas e da nova orientação naturalista,


Monteiro Lobato, de fato, revisitaria a sua obra. Nessa reavaliação, procederia a
uma evidente autocrítica à sua visão preconceituosa à sua cegueira, ao mesmo
tempo em que indica a distribuição das terras como solução da injusta condição
do camponês do Brasil:

A gente da cidade  como são cegas as gentes das cidades!...


Êsses [sic] doutores, esses escrevedores nos jornais, êsses
deputados, paravam ali e era só crítica: vadio, indolente, sem
ambição, imprestável... não havia o que não dissessem do Zé
Brasil [...] Quer dizer que terra é o que não falta. Falta uma

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boa distribuição das terras, de modo que se acabe com isto de


uns terem e a grande maioria não ter nada (LOBATO, 1947, p.
9-19).

A proximidade com o Partido Comunista Brasileiro, fundado no contexto


de renovação do início dos anos Vinte, tornaria a nova escrita de Lobato num
texto politicamente engajado à campanha de Luiz Carlos Prestes. Nesse
engajamento, o autor de Urupês já aproximado, literariamente, do escritor
baiano, Jorge Amado, pela vertente literária comum, o Naturalismo, e pelas
elaborações estéticas de veio regionalista, somar-se-ia a esse na campanha do
“cavaleiro da esperança”, título de uma obra de Amado, elaborada, também,
através de um forte apelo das idéias comunistas. Jorge Amado, membro do
Partido Comunista Brasileiro, não apenas saúda Luiz Carlos Prestes, como o
representa como “o cavaleiro da esperança”, da redenção do Brasil, como
ostenta no título de sua narrativa publicada em 1944. Essa atitude escritural
seria retomada por Monteiro Lobato, em seu Zé Brasil. Dessa forma, Lobato se
avizinharia de Jorge Amado não apenas pela adoção da perspectiva naturalista
como, também, pela transformação do personagem recente de nossa história
em personagem de sua última obra sobre o elemento rural brasileiro:

Não é assim Zé. Apareceu um homem que pensa em você, que


por causa de você já foi condenado pela lei desses ricos que
mandam em tudo  e passou nove anos no cárcere.  Quem é
esse homem?  Luiz Carlos Prestes... [...] Se todos os que
sofrem essa injustiça de falta de terras próprias num país tão
grande como este, se reunirem em redor de Prestes, a situação
acabará mudando completamente. O Brasil tem 5 habitantes
para cada quilômetro quadrado... (LOBATO, 1947, p. 18-19)

Pelo exposto, constata-se que, do alinhamento de Monteiro Lobato às


mais variadas concepções ideológicas, resultaria a sua diversidade escritural
acerca do homem rural. Como bem sugere o itinerário esboçado por Marisa
Lajolo, Lobato caminharia da intolerância elitista e senhorial (“Velha praga” e
“Urupês”) a uma solução generalizante, ingênua e paternalista (Jeca
Tatuzinho), à reivindicação da distribuição da terra (Zé Brasil), conforme as
ponderações de Lajolo:

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Para este Lobato de 1914, o caboclo era “um parasita, um


piolho da terra (...), espécie de homem baldio, seminômade,
inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na
penumbra das zonas fronteiriças [...]” Protagoniza agora a
história de Jeca Tatuzinho onde Lobato substitui a indignação
frente às práticas incendiárias e ociosas do piraquara pela
denúncia da precariedade da saúde pública brasileira. Mas há
uma terceira aparição do Jeca num texto lobatiano em 1947,
num outro Brasil, um outro Lobato rebatiza sua personagem. O
Brasil já passara pela revolução de 30 e Lobato já perdera boa
dose do seu paternalismo ingênuo dos anos 20. Em causa,
agora, a legalidade do Partido Comunista Brasileiro. Jeca
Tatuzinho, nascido Jeca Tatu, atende agora pelo nome de Zé
Brasil [...] E é este Zé Brasil, representado com toda sua carga
de alienação que, com um interlocutor anônimo, discute a
precariedade de sua situação. E esta situação precária é
firmemente atribuída ao latifúndio e ao sistema econômico que
rege o estatuto agrário brasileiro (LAJOLO, 1983, p. 101-2).

Na verdade, ao atinar, em sua terceira versão do homem caipira, com


as causas do atraso e da pobreza do mundo rural, Monteiro Lobato, mesmo
sem perder o velho tom paternalista, revisitaria o seu próprio percurso,
invertendo a relação entre Jeca Tatu e os senhores de terra. Se na primeira
versão é o Jeca o tatu, o parasita; na terceira versão são os próprios
proprietários que são reconhecidos como tatus parasitários:

Não é assim, Zé. Apareceu um homem que pensa em você [...]


 Quem é êsse [sic] homem?  Luiz Carlos Prestes...  Já
ouvi falar. Diz que é um tal comunista que quer desgraçar o
mundo, acabar com tudo...  Quer acabar com a injustiça do
mundo. Quer que em vez de um Tatuíra, dono de milhares de
alqueires de terra e vivendo à custa dos que trabalham, homem
prepotente que faz o que fez a você... (LOBATO, 1947, p. 18).

Nessa revisão em que chega à tese do parasitismo social das elites


latino-americanas elaborada por Manoel Bomfim, em 1903, Monteiro Lobato
trilharia, novamente, o caminho da tradição. Não é demais lembrar José de
Alencar; em sua terceira produção indianista, Ubirajara, também revisitaria os
seus preconceitos em relação aos aborígenes brasileiros, principalmente em
relação aos resistentes ao projeto de colonização lusa, como afirma Wilma
Martins de Mendonça:

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Apesar do comprovado e reconhecido parentesco entre as


obras indianistas alencarianas  assinalado pelo próprio autor
 ressaltamos, todavia, a intrigante postura do narrador de
Ubirajara. Em sua última produção indianista, José de Alencar
critica e revê as informações prestadas pelos viajantes,
missionários e aventureiros acerca dos indígenas. [...]
Encontramos um Alencar, então, que não apenas revisita os
relatos quinhentistas, mas revê, sobremaneira, o seu próprio
olhar (MENDONÇA, 2002, p. 17).

O inquietante tema suscitado e, persistentemente, revisitado por


Monteiro Lobato, assim como, por variados discursos artísticos e ideológicos
durante o todo o século XX, permanece revestido de uma importância atual. O
olhar de Lobato contribuiria para uma pluralidade de visão e de revisão do
homem rústico do Brasil. Razão pela qual, somada à qualidade estética de seu
texto, não obstante o prisma naturalista de apego à transparência da
linguagem, que Lobato soube muito bem abrandar, se deve à persistente
atualidade das representações lobatianas acerca do homem do campo
brasileiro.

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Artigo recebido em 02/03/2009 e publicado em 30/09/2009.

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