Ferreira, Varga & Silva - Trabalho em Equipe Multiprofissional

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Trabalho em equipe multiprofissional:

ARTIGO ARTICLE
a perspectiva dos residentes médicos em saúde da família

Working in multiprofessional teams:


the perspectives of family health residents

Ricardo Corrêa Ferreira 1


Cássia Regina Rodrigues Varga 2
Roseli Ferreira da Silva 2

Abstract Brazilian medical residency is increasing- Resumo A residência médica brasileira, cada vez
ly specializing physicians in his practices underval- mais, especializa os médicos em suas práticas, des-
uing the multiprofessional practices that guide the prezando as práticas multiprofissionais que orien-
integrality in health. Aiming at changing this prac- tam a integralidade em saúde. Na tentativa de rom-
tice, the multiprofessional residency in family health per com essa prática, a residência multiprofissional
was proposed to prepare professionals searching for em saúde da família foi proposta objetivando formar
a comprehensive health care to the general public. profissionais que visem o cuidado integral à saúde
In this context, in 2003, Faculdade de Medicina de das pessoas. Neste contexto, a Faculdade de Medicina
Marília started this residency program having as de Marília, em 2003, iniciou esta residência, tendo
the main idea the multiprofessional work in family como núcleo central o trabalho multiprofissional em
health teams. The study shows the perception of fam- equipes de saúde da família. Analisou-se, neste estu-
ily health residents at Faculdade de Medicina de do, a percepção dos residentes médicos em saúde da
Marília regarding the multiprofessional work de- família acerca do trabalho multiprofissional desen-
veloped in the Family Health Program. The method volvido no Programa de Saúde da Família. A abor-
used in this research was the qualitative approach. dagem qualitativa foi o método desta investigação.
The collected data had been interpreted through a Os dados coletados foram interpretados por meio da
thematic content analysis, building three empirical análise temática de conteúdo, construindo-se três
categories: Anchors and markers of an interdiscipli- categorias empíricas: Âncoras e balizas da visão in-
nary view on team work that permeate the Family terdisciplinar no trabalho em equipe permeiam a
Health residency perspective; Conflicts and paradox- perspectiva da residência em saúde da família; Os
es of team work and the maintenance of an assembly conflitos e paradoxos do trabalho em equipe e a ma-
line; Dilemmas of the team work facing an hierar- nutenção da linha de montagem; Dilemas do traba-
chical structure. The data analysis points to an ad- lho em equipe frente a uma estrutura hierarquiza-
1
Faculdade de Medicina de vancement that multiprofessional team work brings da. A análise dos dados aponta para o avanço que o
Marília. Av. Monte to the medical formation, once it allows perspectives trabalho em equipe multiprofissional traz para a for-
Carmelo 800, Fragata.
that would not be possible without a team. mação médica, pois permite uma visão de perspecti-
17519-030 Marília SP.
[email protected] Key words Internship and residency, Medical edu- vas que, sem a equipe, não seria possível.
2
Centro de Ciências cation, Patient care team Palavras-chave Internato e residência, Educação
Biológicas e da Saúde,
Departamento de Medicina,
médica, Equipe de assistência ao paciente
Universidade Federal de São
Carlos.
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Ferreira RC et al.

Introdução sua formação educacional quanto na sua forma-


ção profissional condizente às reais necessidades
O programa de residência multiprofissional em da população.
saúde da família, parte da pós-graduação latu sen- Considerando a atenção básica como o pilar
su da Faculdade de Medicina de Marília, iniciado a na construção de novos rumos à saúde – no que
partir de 2003, visa potencializar a capacidade de tange à mudança no paradigma assistencial da saú-
mudança na formação de profissionais da saúde e de –, novos cenários e papéis, como os exercidos
no atual modelo de cuidado à saúde das pessoas e pelas equipes das Unidades de Saúde da Família
das comunidades1, propondo, por meio da estra- (USF) na atenção básica em saúde (ABS), têm ge-
tégia do Programa de Saúde da Família (PSF), um rado novas e ampliadas abordagens no processo
novo perfil tanto para os profissionais quanto para saúde-doença4.
a organização do cuidado. A reorganização do modelo tecnoassistencial
Contextualizando, a residência médica tem sido do SUS, com base nos princípios da universalida-
reconhecida como uma estratégia educacional efi- de, integralidade, equidade, resolubilidade, inter-
caz e eficiente de treinamento profissional. O pri- setorialidade, humanização do atendimento e par-
meiro programa surgiu nos Estados Unidos, em ticipação social, ainda constitui um grande desafio
1889, no Johns Hopkins Hospital, coordenado pelo para todos os diversos atores sociais da saúde pú-
cirurgião William Halsted. No Brasil, o primeiro blica. Muitas propostas têm sido implementadas
programa foi em ortopedia, implantado no Hos- na construção do sistema de saúde nacional, mas
pital das Clínicas da USP em 19452. Desde então, foi a partir da década de noventa que políticas pú-
observa-se no processo de formação dos profissi- blicas se uniram em torno da reorganização da
onais de saúde a força da especialização em detri- atenção básica em saúde, orientada, principalmente,
mento da formação generalista: valoriza-se o su- pelo Programa de Saúde da Família5.
perespecialista e dá-se ênfase à ação curativa, en- Neste cenário, os profissionais da saúde neces-
quanto conceitos de prevenção de doenças e pro- sitam integrar as dimensões biopsicossociais para
moção à saúde são mais teóricos do que pratica- o cuidado dos indivíduos, famílias e comunidades
dos entre os profissionais3. com novos modos de agir e de interagir com a
Por várias questões históricas que envolveram prática a fim de responder às necessidades de saú-
o desenvolvimento das residências médicas no país, de das pessoas em suas diferentes dimensões6.
o espaço para a prática generalista foi desapare- Para tanto, o trabalho em equipe multiprofis-
cendo e as especialidades médicas passaram a ser sional é um importante pressuposto para a reor-
porta de entrada para o trabalho no sistema de ganização do processo de trabalho no âmbito das
saúde. Desta forma, o número de consultas foi se Unidades de Saúde da Família, dentro da aborda-
multiplicando em contraposição à queda de reso- gem integral e resolutiva, e, para que isto ocorra,
lubilidade dos problemas das pessoas. Não se cons- há a necessidade de mudanças na organização do
truíram vínculos (ou foram fracos), houve total trabalho, na formação e na atuação dos profissio-
desresponsabilização dos profissionais com a saúde nais de saúde.
global do paciente e uma profunda insatisfação do Neste processo de trabalho, as equipes de saú-
usuário com o serviço recebido3. de da família necessitam conhecer as famílias do
Atualmente, nas ações do processo aprendiza- território de sua abrangência, identificando os pro-
gem-trabalho dos programas de residência, os blemas de saúde e as situações de risco na comuni-
médicos têm poucas oportunidades de atuar com dade, ao passo que devem elaborar planos de ação
outros membros da equipe de saúde, desconhe- para enfrentar os desafios do processo saúde-do-
cem o que seja rede de serviços, vigilância epidemio- ença enquanto desenvolvem ações de promoção
lógica, territorialização, planejamento local, traba- de saúde, prevenção de doenças, tratamento e rea-
lho em grupos, programas de promoção da saúde bilitação no âmbito da atenção básica em saúde7.
e prevenção de doenças. Nos hospitais, estes pro- Tem-se que a ampliação de intervenção além
fissionais, no que diz respeito a preceptorias, não do âmbito individual e clínico demanda mudan-
recebem aporte especial nem em seu processo de ças na forma de atuação e organização do traba-
aprendizagem, nem em relação à dinâmica das lho, além de requerer alta complexidade de saberes
unidades não-hospitalares3. em que cada profissional é chamado a desempe-
Entretanto, o Ministério da Saúde vem inves- nhar sua profissão em um processo de trabalho
tindo maciçamente no Programa de Saúde Famí- coletivo, cujo produto deve ser fruto de um traba-
lia, e surgem, com esta iniciativa, os programas de lho formado pela contribuição das diversas áreas
residência em saúde da família como alternativa profissionais, esperando-se que os integrantes das
para formar profissionais diferenciados tanto na equipes sejam capazes não só de conhecer e anali-
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sar o trabalho – verificando as atribuições especí- atra, a um psicólogo para um trabalho de psicote-
ficas e do grupo na unidade, no domicílio e na rapia; assim, a cooperação não é automática, mas
comunidade – mas também de compartilhar co- estabelece contatos entre os profissionais e suas
nhecimentos e informações8. áreas de conhecimento12.
O fato das necessidades de saúde expressarem Na interdisciplinaridade – o terceiro nível –,
múltiplas dimensões demanda ações que não po- tem-se que é comum um grupo de disciplinas co-
dem se realizar por ações isoladas de um único nexas e definidas em um nível hierárquico imedia-
agente, necessitando-se de recomposição dos tra- tamente superior – o que introduz a noção de fi-
balhos especializados tanto no interior de uma nalidade – em que há dois níveis e objetivos múlti-
mesma área profissional como na relação inter- plos com a coordenação advinda de nível superi-
profissional9. or11, encontrada, por exemplo, numa equipe de
O trabalho em equipe exige uma construção atendimento ambulatorial de gestantes adolescen-
coletiva das ações em saúde, em que as dificuldades tes de baixa renda. A equipe é formada por um
estão sempre presentes e precisam ser refletidas e pediatra, um psiquiatra, um psicólogo, um assis-
superadas. A formação de uma equipe permite a tente social e uma enfermeira, contudo, o que pre-
troca de informações e a busca de um melhor pla- valece é o saber médico, cabendo a coordenação e
no terapêutico, colocando-se a cooperação como a tomada de decisão a estes profissionais12.
instrumento para enfrentar o fazer em grupo. Na transdisciplinaridade – o quarto nível –, a
Entretanto, é árduo o caminho para a constru- coordenação de todas as disciplinas e interdiscipli-
ção do trabalho cooperativo, que pressupõe soli- nas centra-se em um sistema de níveis e objetivos
dariedade e confiança. Nesta perspectiva, cabe ao múltiplos, com sistemas comuns11, exemplificado
profissional inserido nessa lógica refazer a visão por uma equipe formada por profissionais como
do seu processo de trabalho e considerar que a psicólogos, psiquiatras, assistentes sociais, que re-
equipe é o pilar para o “fazer” integrado e que as cebe pacientes com problemas mentais. O paciente
buscas pelas possibilidades auxiliam a alçar o de- chega para uma avaliação e todos o assistirão,
senvolvimento do seu fazer. buscando formular um diagnóstico acerca do caso.
Considerou-se que o trabalho em equipe mul- Dessa forma, para que haja configuração trans-
tiprofissional consiste numa modalidade de tra- disciplinar, é necessário que todos os profissionais
balho coletivo que se configura na relação recípro- estejam reciprocamente situados em sua área de
ca entre as múltiplas intervenções técnicas e a inte- origem e na área de cada um dos colegas12.
ração dos agentes de diferentes áreas profissionais. É preciso que cada problema não seja solucio-
Por meio da comunicação, ou seja, da mediação nado em cada uma das diferentes áreas, mas sim à
simbólica da linguagem, dá-se a articulação das luz de um novo entendimento13.
ações multiprofissionais e a cooperação10. Uma equipe será transdisciplinar quando sua
Se olharmos os vários modos de relacionamen- reunião congregar diversos profissionais com o
to do trabalho multiprofissional, constataremos intuito de uma cooperação entre eles sem que haja
que as relações profissionais se dão através das uma coordenação fixa. Mas como não verticalizar
diferentes interações disciplinares, estabelecidas em uma coordenação? A transdisciplinaridade deve ser
cinco níveis de agrupamento11. encarada como meta a ser alcançada e nunca como
O primeiro nível é o da multidisciplinaridade – algo pronto; deve ser encarada como um desafio
que traz variadas disciplinas propostas simultanea- que serve de parâmetro para que todos os mem-
mente, contudo, sem deixar transparecer diretamen- bros da equipe estejam atentos para eventuais cen-
te as relações que podem existir entre elas11 –, exem- tralizações do poder12.
plificada com vários profissionais reunidos, em que O trabalho multiprofissional numa perspecti-
cada um trabalha isoladamente, sendo que a au- va transdisciplinar requer humildade e disponibi-
sência de uma articulação não significa, no entanto, lidade por parte de cada profissional, pois é, em
uma ausência de relação entre estes profissionais12. suma, um movimento de reconhecimento de posi-
O segundo nível é a pluridisciplinaridade e se ções diferentes em relação a um mesmo objeto, e
relaciona à justaposição de várias disciplinas situ- gerar novos dispositivos é a segunda meta para se
adas geralmente no mesmo nível hierárquico e agru- iniciar um trabalho transdisciplinar em que os pro-
padas de modo que apareçam as relações existen- fissionais possam se ajudar reciprocamente em suas
tes entre elas; há cooperação, contudo, sem coor- dificuldades13.
denação11, e pode ser exemplificada por meio de Desta forma, é necessário que cada profissio-
um paciente que procura atendimento psiquiátri- nal descubra um interesse e uma curiosidade pela
co e, após receber orientação e prescrição psicofar- área de seu colega. Quando uma equipe está reuni-
macológica, é encaminhado, pelo próprio psiqui- da e deseja optar por um funcionamento transdis-
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Ferreira RC et al.

ciplinar, é preciso que cada membro exponha suas blemas de saúde das famílias e da comunidade de
ferramentas de trabalho, suas teorias, seu entendi- forma ética, visando à elaboração de planos de
mento do caso, além de permitir ao seu colega a cuidado que considerem a utilização dos recursos
mesma exposição12. sociais disponíveis, articulando e promovendo,
A residência multiprofissional em saúde da fa- permanentemente, possíveis propostas de ações
mília da Faculdade de Medicina de Marília tem integradas para a melhoria constante da qualida-
como pressuposto que o enfoque multiprofissio- de de saúde da população;
nal da residência fortalece o desenvolvimento do . respeitar os interesses, valores e a cultura da
trabalho em equipe e a troca de saberes para a comunidade, considerando as condições de vida e
construção de novos conhecimentos que são ori- sua forma de atuação/organização no sentido de
ginados na interface dos diferentes campos de tra- melhorar a qualidade de vida;
balho profissional1 . . utilizar instrumental do planejamento estra-
A proposta da residência multiprofissional em tégico e participativo, buscando atuar em conjun-
saúde da família localiza-se na perspectiva trans- to com os movimentos populares e as lideranças
disciplinar e o objetivo geral do programa é pro- comunitárias locais, visando à melhoria da quali-
mover o desenvolvimento de atributos profissio- dade de vida e do meio ambiente.
nais que possibilitem aos médicos e enfermeiros Na área de organização e gestão do trabalho
formados pelo programa de residência o exercício de vigilância à saúde:
profissional com excelência nas áreas de cuidado . atuar em equipe, promovendo o trabalho éti-
integral à saúde das pessoas e de comunidades e na co, participativo, co-responsável, multiprofissio-
gestão e organização do trabalho, visando à me- nal e intersetorial;
lhoria da saúde e da qualidade de vida1. . gerenciar planos, programas, projetos e ativi-
Os objetivos específicos estão caracterizados em dades de trabalho na equipe de saúde na qual atua;
função da proposta metodológica em três áreas1: . participar da formação e da capacitação de
Na área de vigilância à saúde – cuidado inte- pessoal auxiliar, voluntários e estudantes, utilizan-
gral às necessidades de saúde individuais em todas do metodologias ativas de ensino-aprendizagem e
as fases do ciclo de vida: promovendo aprendizagem significativa e diferen-
. estabelecer vínculo com pacientes, famílias e ciada;
comunidade pautado pelo respeito, ética e respon- . auto-avaliar-se e avaliar atividades, atitudes e
sabilidade no cuidado à saúde, desenvolvendo uma ações da equipe, mantendo um processo perma-
prática humanizada e com excelência técnica; nente de reflexão crítica.
. orientar o trabalho de cuidado à saúde se- Esses objetivos estão insertos e articulados com
gundo identificação das necessidades de saúde das uma proposta pedagógica orientada para a com-
pessoas; petência profissional, competência essa que expli-
. compreender o indivíduo como sujeito na cita o que o profissional deve ser capaz de fazer
promoção, manutenção e recuperação de sua saú- para desempenhar sua prática com sucesso, de-
de, potencializando sua capacidade ativa e co-res- senvolvendo padrões de profissionalismo1.
ponsável nesse processo, respeitando os interes- Ainda segundo o manual da residência multi-
ses, valores e a cultura das pessoas; profissional em saúde da família, a inserção dos
. interpretar e organizar as informações cole- residentes no serviço de saúde é orgânica e potencia-
tadas na história e nos exames clínicos para a for- liza o vínculo com a equipe da USF e com a comuni-
mulação de hipóteses e dos problemas de saúde dade local. Estes são co-responsáveis pelo cuidado
das pessoas de forma ética, visando à elaboração à saúde das pessoas, famílias e comunidade, ao
de planos de cuidado que considerem a autono- mesmo tempo em que constroem o próprio conhe-
mia, o consentimento e as condições sociocultu- cimento a partir da prática profissional num pro-
rais do paciente, a identificação e utilização dos cesso de ação-reflexão-ação, no qual são responsá-
recursos sociais disponíveis, articulando e promo- veis pela busca de informações e identificação de
vendo, permanentemente, possíveis propostas de melhores evidências para o cuidado em saúde.
ações integradas para a melhoria constante da Constroem, assim, um processo de aprendiza-
qualidade de saúde da população. gem que passa a ter novas bases em sua constitui-
Na área de vigilância à saúde – cuidados às ção educacional, voltada ao desenvolvimento de
necessidades de saúde coletivas: atributos pessoais e profissionais que visam ao
. interpretar e organizar as informações cole- cuidado integral à saúde das pessoas, famílias e da
tadas para a formulação de hipóteses e dos pro- comunidade.
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Objetivo sessões de tutoria, laboratórios de simulação da
prática profissional, supervisão técnica, horário
Analisar a percepção dos residentes médicos do pro- pró-estudos e participação no curso de especiali-
grama de residência multiprofissional em saúde da zação em saúde da família, aos sábados pela ma-
família acerca do trabalho em equipe multiprofissi- nhã, no primeiro ano da residência1.
onal que realizam na Unidade de Saúde da Família. Dado o contexto apresentado, este projeto uti-
lizará, como objeto de estudo, o espaço de desen-
volvimento da residência multiprofissional dos
Método residentes de 1º e 2º anos, no cenário das USF, em
Marília (SP). O programa oferece vinte vagas de
Fundamentos metodológicos residentes médicos (dez residentes do 1º ano - R1 e
dez residentes do 2º ano - R2), sendo que cada
Esta investigação se desenvolveu por meio de residente atua conjuntamente em uma USF com
um estudo qualitativo que, segundo Minayo14, um residente de enfermagem do programa de re-
consiste em uma análise de abordagem subjetiva sidência multiprofissional.
que não esgota um fenômeno social, explorando- Esta investigação foi aprovada pelo Comitê de
se a percepção dos residentes médicos em saúde da Ética em pesquisa da Faculdade Medicina de Ma-
família, dos 1º e 2º anos de residência, acerca do rília e contou com um universo de dez residentes
trabalho em equipe multiprofissional que desen- médicos, sendo cinco R1 e cinco R2. Os sujeitos
volvem no programa de residência multiprofissi- foram selecionados através dos critérios da amos-
onal em saúde da família. tra representativa e intencional.
Desta forma, a análise de atitudes, motivações, Na coleta dos dados, foi utilizada a técnica de
expectativas e valores destes residentes frente à re- grupo focal, que consiste em uma entrevista em
sidência multiprofissional é mais bem compreen- grupo que se baseia em um tópico a ser explorado
dida por meio de uma abordagem qualitativa15. ou discutido pelos participantes do grupo. Nesta
Este tipo de estudo também compreende e classi- investigação, contamos com dois grupos focais:
fica processos dinâmicos vividos por grupos so- um grupo composto por cinco residentes - R1 e
ciais e contribui para o processo de mudança e enten- outro grupo composto por cinco residentes - R2.
dimento do comportamento dos indivíduos, envol- Após a concordância na participação, os sujeitos
ve interesse maior ao cotidiano que aos fatos isola- da pesquisa assinaram o termo de consentimento
dos, além de apresentar maior utilização de signifi- livre e esclarecido e foram seguidos os procedi-
cados em detrimento da frequência destes fatos, mentos previstos na Resolução 196/96 do Conse-
objetivando-se, então, a percepção dos residentes16. lho Nacional de Saúde sobre pesquisa envolvendo
seres humanos. Acrescentamos que não houve
Caracterização da residência conflitos de interesse dos autores na pesquisa.
Para a realização dos grupos focais, foram fei-
Para a implementação desta proposta inova- tas perguntas norteadoras da discussão, as quais
dora de residência, foi firmado um convênio de envolveram a percepção dos residentes acerca do
parceria entre a Faculdade Medicina de Marília e a trabalho em equipe nas atividades multiprofissio-
Secretária Municipal de Higiene e Saúde de Marília nais que desenvolvem na residência. Tais pergun-
(SMHS), com o apoio do Ministério da Saúde (MS). tas são: a) Fale sobre as atividades multiprofissio-
Assim, o contexto do Programa de Saúde da nais que vocês realizam na residência em saúde da
Família do município de Marília passou a ser o família; b) O que significam para vocês estas ativi-
cenário privilegiado do processo de aprendizagem dades?; c) Como as atividades multiprofissionais
e da construção da competência do médico especi- contribuem para o processo de aprendizagem pro-
alista em saúde da família. fissional médica nesta residência? As falas dos su-
Este programa de residência tem a duração de jeitos foram gravadas e transcritas literalmente.
dois anos, em tempo integral, com carga horária Para análise dos dados, foi empregada a técni-
semanal de sessenta horas, totalizando 5.524 ho- ca de análise de conteúdo. Segundo Bardin17, é
ras. As atividades desenvolvidas pelos residentes “uma técnica de investigação que, através de uma
são: atendimento médico nas Unidades de Saúde descrição objetiva, sistemática e quantitativa do
da família, em todas as áreas de competências pre- conteúdo manifesto das comunicações, tem por
vistas no programa de residência, plantões de doze finalidade a interpretação destas mesmas comuni-
horas semanais em diversos serviços (hospital, cações”. Os passos descritos pela autora foram
pronto-socorro, pronto-atendimento) e reuniões utilizados para a análise dos dados obtidos na rea-
técnicas com SMHSM. As atividades didáticas são: lização dos grupos focais.
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Primeiramente, realizou-se uma leitura flutuan- Na caracterização do conceito, os depoimen-


te do texto obtido em cada grupo focal; em segui- tos expressam que, quando os residentes assumem
da, foram realizadas outras leituras com o objeti- seus papéis, realizando o exercício da prática mé-
vo de identificar e desmembrar as unidades de re- dica, os momentos de discussão e trocas de experi-
gistro, ou seja, foi feita uma codificação, que cor- ências em suas vivências com os outros profissio-
responde a uma transformação dos dados brutos nais potencializam a construção do conhecimento
do texto, para que se conseguisse atingir uma re- e a articulação com as outras áreas do saber, o que
presentação do conteúdo visando à categorização. permite que o fazer médico possa ser efetivado pela
A codificação foi feita por meio das falas dos gru- integração do trabalho em equipe e pela participa-
pos focais, em que cada fala foi separada como ção complementar do outro profissional.
uma unidade de registro, ou seja, uma unidade de A gente encaminha para a psiquiatra, que pode-
sentido que traduzisse a percepção dos residentes ria me auxiliar, e se eu encaminhar para a fisiotera-
médicos em saúde da família acerca do trabalho pia, ela vai falar o que tenho que fazer; a psicóloga
multiprofissional que desenvolvem na residência, me orientar como falar para família. Eu faço a mi-
sendo que, posteriormente, construíram-se cate- nha parte médica. (E4R1)
gorias de análise com as falas relacionadas. Eu acredito que, sozinho, como médico, você não
As categorias identificadas na interpretação da vai sozinho ajudar aquele doente, porque se não ti-
falas podem ser sintetizadas em três eixos temáti- ver um agente comunitário para ir na casa dele,
cos: Âncoras e balizas da visão interdisciplinar no entregando a medicação ou dando uma orientação
trabalho em equipe permeiam a perspectiva da resi- melhor, ele não vai tomar o remédio. E você vê que o
dência em saúde da família; Os conflitos e parado- médico não resolve tudo sozinho. (E3R1)
xos do trabalho em equipe e a manutenção da linha O momento da reunião dos profissionais apa-
de montagem; Dilemas no trabalho em equipe frente rece, nos depoimentos, como eixo central, como o
a uma estrutura hierarquizada. Esses eixos são pers- carro-chefe da base dessa perspectiva interdiscipli-
pectivas que não são, necessariamente, excludentes; nar, pois é neste espaço que a prática do trabalho
ora se imbricam com idéias que se superpõem, ora em equipe se materializa e permite uma visão mais
se diferenciam por seguir lógicas distintas. integral. Neste espaço, é possível para o residente
em formação romper com uma visão fragmenta-
da. A discussão em equipe – embora mencionada
Discussão dos resultados como a soma de um grupo de profissionais – per-
mite, segundo os depoimentos, que, ao estarem
Âncoras e balizas da visão interdisciplinar todos, não haja a soma das partes, e, nesse senti-
no trabalho em equipe permeiam do, a atuação que poderia se manter com certo
a perspectiva da residência reducionismo pode circunscrever-se a uma visão
em saúde da família transformadora. Essa visão transformadora é sen-
tida como algo que, sem esse espaço, jamais seria
Esta categoria é composta pelos depoimentos possível ao profissional em formação.
que fornecem os elementos que constituem o con- A gente acaba ganhando bastante. Quando dis-
ceito de interdisciplinaridade. Observa-se nos dis- cutimos com os outros profissionais, temos uma vi-
cursos um processo de conceituação que perpassa são que não teríamos; por exemplo, a questão social,
os eixos centrais deste conceito. A análise dos dis- a questão psicológica. Há a soma quando juntamos
cursos permite afirmar que estes transitam entre o um grupo de profissionais de diferentes áreas. (E1R2)
reconhecimento de que o conhecimento também Quando é possível desenvolver uma relação de
se faz no campo das relações interpessoais e que é compreensão do modelo de equipe, a própria com-
nessa dinâmica entre ensinar e aprender que os preensão possibilita que o trabalho seja efetivo
atributos a serem alcançados pelo residente du- porque as especificações profissionais assumem
rante a sua formação serão construídos. contornos mais flexíveis.
Para nós, é uma troca de experiência. Quando Tenho contado com o apoio de toda a equipe, e
estamos com um outro profissional, ele também vai isso tem ajudado bastante. E o trabalho com a auxi-
estar ensinando, e isso é também um aprendizado. liar de enfermagem, com o agente comunitário con-
(E2R2) tribui com a nossa formação, porque você aprende a
Você pode aprender com a agente. E com a agen- trabalhar em equipe, aprende de certa forma, a or-
te que eu aprendo a lidar com a comunidade. Com ganizar o sistema de trabalho com relação ao agen-
auxiliar, a gente aprende a entrar melhor na casa da damento de consultas, demanda espontânea, delega-
comunidade, como colher sangue, a pegar uma veia, ção de funções. (E4R2)
isso é importante. (E2R1) Em síntese, os depoimentos que compõem esta
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categoria evidenciam que a discussão sobre o que é radas nesta estrutura com as que não foram, e o
a equipe se norteia pela prática diária, pois a con- quanto a fragmentação do trabalho fica patente.
cepção dos residentes, ainda que pouco elaborada Muitas vezes, o preceptor não tem o preparo es-
teoricamente, é permeada por elementos que im- pecífico para a residência multidisciplinar; muitas
plicam a troca do saber. vezes ele não tem o perfil do PSF; entretanto, alguns
profissionais formados no PSF têm preparo para te
Os conflitos e paradoxos do trabalho orientar. (E4R1)
em equipe e a manutenção Em resumo, essa categoria apresentou as dúvi-
da linha de montagem das e a crítica do processo de trabalho em equipe
por este estar sendo constituído como fruto de um
Os depoimentos expressos nesta categoria apre- processo que ora se caracteriza como mecânico,
sentam os conflitos e paradoxos da convivência ora como fragmentado, inserido numa perspecti-
entre as pessoas no dia-a-dia do trabalho. O pres- va com objetivo de ser integral.
suposto básico percebido nos depoimentos é que,
nesta formatação, é necessário que o profissional Dilemas no trabalho em equipe
saiba realizar a sua função em conjunto com o ou- frente a uma estrutura hierarquizada
tro, mantendo esse outro informado sobre o seu
plano de cuidados. Todavia, no cotidiano das rela- Esta categoria apresenta as relações de poder
ções, há profissionais que rompem com essa lógica instituídas na estrutura hierarquizada do sistema e
e acabam por estruturar o seu trabalho e o da equi- suas interfaces com o trabalho em equipe no PSF e
pe numa perspectiva que mantém a velha estrutura com a formação. A estrutura extra-serviço é conce-
do “trabalho em linha de montagem”, no qual cada bida, segundo as falas dos residentes, como uma
um exerce sua função sem pensar na sua inserção barreira que impõe mais dificuldades ao cotidiano
dentro de um grupo, provocando conflitos e de- do trabalho em equipe. A luta pelo atendimento
sorganização no trabalho de toda uma equipe. efetivo da demanda numa estrutura que se mantém
Dentro da unidade, a gente tem interação com dicotomizada traz mais conflitos para que o traba-
as outras áreas: odontologia, a própria enfermagem; lho em equipe seja desenvolvido intra e extra PSF.
entretanto, há despreparo das outras áreas. Você Para o serviço terciário não ficar lotado de pes-
encaminha para o psicólogo, mas ele não nos dá uma soas, o serviço primário tem que ser eficiente, e faz
contra-referência. Então, o prontuário fica desorga- parte do serviço terciário verificar isso. O que acon-
nizado. (E2R1) tece é que não é feita contra-referência. Se não for
Embora, nesta visão contida no exemplo aci- feita, dificilmente vai fluir bem o sistema. (E2R1)
ma, pareça haver clareza do que é imprescindível Tem que fazer melhora na própria equipe, na
para a estruturação do trabalho e, ainda, do que própria entidade. A gente tinha que ser mais respei-
compõem as responsabilidades individuais de cada tado pelas entidades de saúde. (E2R1)
membro para que as ações possam ser desenvolvi- Sumarizando, essa categoria explicita a luta de
das em uma relação de colaboração, isso não acon- poder que permeia as relações no campo da saúde
tece de fato. A âncora dessa perspectiva está centra- e a dificuldade de situar o trabalho em equipe como
da na idéia de que cabe a cada profissional buscar o algo que se constrói intra e extra Unidade Saúde da
outro profissional para fortalecer a sua ação indi- Família.
vidual. Esta concepção fortalece a concepção de “tra-
balho em linha de montagem”, pois demarca as
dúvidas sobre os papéis a serem assumidos no es- Considerações finais
paço do trabalho em equipe. Dúvidas essas que
denunciam a indefinição acerca dos papéis indivi- Este estudo apresentou-nos as dificuldades que
duais para alguns participantes deste trabalho. compõem o cotidiano do trabalho em equipe den-
Depende do profissional que você está lidando. tro de uma perspectiva que articula o trabalho
Para fazer uma visita, vamos com os agentes comu- multiprofissional e o treinamento em serviço, ou
nitários, temos contato com o auxiliar de enferma- seja, a residência médica em saúde da família.
gem; agora, algumas áreas como a psicologia, ele não Os residentes médicos trabalham com elemen-
me procura para discutir algum caso. (E4R1) tos que compõem a visão interdisciplinar em suas
Dada a complexidade de uma prática multipro- ações em saúde; contudo, não atingem efetivamente
fissional, embora desejada, esta prática ainda não essa visão no trabalho em equipe que realizam den-
foi historicamente construída; por esta razão, o des- tro do PSF, situação gerada notadamente por dile-
preparo é percebido claramente nas falas dos resi- mas e conflitos decorrentes de um processo de tra-
dentes que comparam as pessoas que foram prepa- balho cuja base é a linha de montagem.
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Ferreira RC et al.

Entretanto, a formação destes profissionais, a abordagem integral das necessidades de saúde da


dentro de um perfil de atuação vinculado às equi- população além do âmbito individual-biológico.
pes multiprofissionais de saúde, fortalece a cons- Logo, esta residência traz ganhos para os seus
trução de novos conhecimentos na interface dos participantes, expressos principalmente pela pos-
variados campos ocupacionais, ressaltando-se, ain- sibilidade do trabalho com outros profissionais e
da, o avanço na formação médica que se constrói na aprendizagem que se faz com estes; contudo, há
com esta residência diante de outros programas que se avançar em melhores estratégias que permi-
que não privilegiam a aprendizagem-trabalho dos tam a ampliação de práticas transdisciplinares neste
residentes em equipes na participação de processos programa, objetivando a efetivação do PSF.
de gestão e organização das práticas em saúde. Portanto, este estudo contribui para repensar
É claro que nem sempre é fácil encontrar o ca- o desenvolvimento dos programas de residência
minho para a cooperação no trabalho em equipe, médica brasileira e representa uma inovadora pro-
haja vista os conflitos do trabalho citados pelos posta de treinamento em serviço, tanto profissio-
próprios residentes em seu dia-a-dia, revelando a nalmente quando pedagogicamente.
velha estrutura da linha de montagem, mas há de
se considerar o avanço nas relações de trabalho
que se consegue com a interdisciplinaridade.
E, dentro deste movimento interdisciplinar do
trabalho em equipe multiprofissional, os residen- Colaboradores
tes constroem um processo de aprendizagem vol-
tado ao cuidado integral à saúde das pessoas, a RC Ferreira, CRR Varga e RF Silva participaram
organização de um trabalho voltado para a melho- igualmente de todas as etapas da elaboração do
ra da qualidade de vida da comunidade, assim como artigo.

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