13 Resenha Pinto Ensaios Filosoficos Volume Xxiv

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PINTO, Ensaios Filosóficos, Volume XXIV – Dezembro/2021


Resenha do livro Democracias Espectrais: por uma desconstrução da
colonialidade de Marcelo José Derzi Moraes 1

Nem amor nem ódio: uma reflexão sobre a democracia


Marinazia Cordeiro Pinto2

A obra Democracias Espectrais: por uma desconstrução da colonialidade,


publicada pela Editora NAU em 2020, de Marcelo Moraes, propõe, a partir de um
pensamento desconstrutor, um olhar profundo sobre a democracia. Marcelo não se dispõe
a dar respostas, a fechar conceitos. O autor, a todo momento, conduz o leitor a fazer
perguntas que desconstroem uma visão romantizada e tradicional sobre a democracia.
Trata-se de um movimento de plantar a desconfiança, de despertar as perguntas, sem
assumir como tarefa o respondê-las; talvez para, conscientemente, não reproduzir a
proposta de verdade de uma certa filosofia tradicional. Essa obra nos leva, então, a
caminhar pelos percursos indecidíveis da história e da filosofia.
Nesse sentido, o livro não só se refere aos mais diversos tipos de violências –
epistêmicas, sociais e políticas – como também traz, ele mesmo, uma violência
característica de todo discurso que questiona aquilo que é dado como verdade. O
movimento aporético que desconstrói o cânone da democracia não tem como não ser
agressivo, não tem como não deixar no leitor um desconforto, um mal-estar.
No entanto, diferente do que muitos possam desavisadamente afirmar, esse
movimento não é improdutivo, não se trata de questionar por questionar, não se trata de
desconstruir o que está posto desde sempre só por capricho. Não! Os questionamentos
que Marcelo propõe, apesar de muitas vezes nos deixar com a sensação de que nunca
pensamos sinceramente sobre a democracia, mobilizam no leitor um compromisso, que
podemos classificar, pelas suas implicações, como um compromisso radical de buscar
atender às demandas da democracia que o autor denomina, como eco de sua formação
filosófica derridiana, como uma democracia por vir.
Democracia por vir não diz respeito a uma democracia que vai se presentificar no
futuro – a própria noção de presença é desconstruída -, nem a uma democracia que pode
ser construída dentro de uma lógica de causa-efeito. Trata-se de uma democracia que,
embora nos apresente demandas urgentes, as quais exigem um investimento também

1
Resenha publicada originalmente na Revista HHMagazine – Humanidades em Rede.
2
Doutoranda do ProPEd/UERJ. Bolsista da FAPERJ.
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radical, nunca se completará, sempre estará em um por vir inalcançável que exige de nós
comprometimento social e político.
Ao ler esse livro, percebemos que a violência da exclusão não caracteriza apenas
o mundo fora da universidade. Mais que isso, ficamos com a sensação de que é no mundo
da produção acadêmica que essa exclusão é mais contundente, mais competente e, ao
mesmo tempo, mais disfarçada, menos dada a questionamentos. Existe uma violência em
uma filosofia que se propõe a estudar uma pretensa verdade e parte apenas dos filósofos
europeus, uma violência em uma historicidade que apresenta a democracia apenas como
legado ateniense. Existe também uma violência em uma filosofia que desconsidera o
outro que não é europeu, negando seus conhecimentos, sua contribuição, sua cultura, sua
arte, sua medicina, suas técnicas. Trata-se da exclusão do outro de forma acadêmica,
articulada, com ares de inquestionável, com um léxico filosófico-científico. Mas que,
nesse livro, é posta em xeque a partir de uma pesquisa criteriosa e farta de referências
bibliográficas tão ricas e sérias que ficamos sem entender onde tudo isso se escondia, que
mecanismo tão poderoso foi capaz de produzir séculos de filosofia e história da
democracia, apagando essas marcas de forma tão efetiva.
Para aqueles que insistem em uma teleologia em tudo que reflete e estuda, é desse
ponto que podemos extrair a “produtividade” dessa obra. Isso se dá porque só somos
levados a querer estudar mais profundamente algo quando percebemos que o
conhecimento que achávamos que tínhamos era um meio-conhecimento, um
conhecimento que se fazia universal quando na verdade consistia apenas em uma fração
da episteme, uma fração que se instituía como um inteiro por meio de uma repetição que
se pretendia mantenedora, mas que nela mesma trazia sempre algo novo.
A filosofia ubuntu com que Marcelo fecha esse livro com a sua premissa do “uma
pessoa só é uma pessoa através das outras”, com o entendimento de que todos os seres
estão de alguma forma interligados, pode ser identificada não apenas no quinto capítulo,
mas em todos os quatro capítulos anteriores. Essa preocupação com o outro/leitor se
exemplifica logo na dedicação do autor em um longo primeiro capítulo em que,
generosamente, municia o leitor de referenciais importantes para o entendimento de sua
reflexão. Esse capítulo traz de forma pormenorizada e paciente um entendimento sobre
as noções de espectrabilidade e repetição/iterabilidade. Sem essas noções, toda a leitura
subsequente estaria comprometida.
Percebe-se essa visão do outro também nos questionamentos que o filósofo nos
apresenta sobre quem de fato pode se configurar como “besta”, quem é o monstro, quem
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é o selvagem. E também nas noções de “hóspedes” e “intrusos”. A todo momento,
Marcelo nos leva a pensar a alteridade como necessária a qualquer subjetividade, no
sentido de que, em um movimento de différance, a minha subjetividade só é possível na
relação com o outro; aniquilá-lo constitui a minha própria aniquilação.
Um aspecto negativo que talvez possa ser apontado nesse livro é o fato de que o
autor é repetitivo nas suas colocações. No entanto, o que parece se configurar na retórica
de Marcelo Moraes é aquilo que ele mesmo nos apresenta no início do livro, a repetição.
O movimento do discurso nesse texto é o movimento da iterabilidade. O leitor atento vai
notar que, a cada aparente repetição de conteúdo, o autor nos traz algo que ele ainda não
havia dito. O mesmo ocorre com as citações. Cada uma tem um porquê, seja pelo seu
conteúdo propriamente ou pela importância de trazer aquele autor naquele momento do
texto. Enfim, essa dinâmica da repetição borra a separação entre prática e teoria, na
medida em que Marcelo performatiza o conteúdo do seu texto na sua escrita. Dessa forma,
o texto se configura como um meta-texto, um texto que descreve aquilo que em si mesmo
se efetiva.
Nessa mesma dinâmica da repetição, Marcelo reitera ideias, trazendo para seu
texto outros gêneros textuais, tais como o gênero poesia com versos como os de Manuel
de Barros e o gênero dramático em referência a textos teatrais de Shakespeare e de Artaud;
além de aludir a textos cinematográficos, fazendo pontes com filmes de Charles Chaplin,
Elio Petri, Lars Von Trier entre outros. Todas essas referências trazem para a obra uma
riqueza cultural que pode levar o leitor a intertextualidades que propiciam um diálogo
com produções artísticas, enchendo de vida o texto acadêmico e se apresentando elas
mesmas como verdadeiros tratados filosóficos, que em muitos sentidos lançam também
sobre o mundo um olhar profundo e desconstrutor.
Relevante também ir para o texto, buscando relacionar as partes do título e o seu
gráfico na capa, em que as letras são escritas com sombras delas mesmas, em referência
a uma espectralidade. Importante perguntar-se qual seria a conexão entre as democracias
espectrais e a proposta de desconstrução da colonialidade. Essas democracias espectrais,
que Marcelo descreve como as democracias que espectram a Europa, no que se refere a
seu desenvolvimento em muitas áreas - destacando aqui o âmbito político -, espectram a
democracia que se convencionou definir como nascida na Europa. Em um movimento de
desconstrução da oposição existente entre a noção de origem e a noção de cópia, o autor
nos leva a refletir sobre de que forma a filosofia e a política do continente africano
espectram a filosofia e a política do continente europeu. Isso se dá, segundo Marcelo,
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porque constam registros de visitas de filósofos, matemáticos e homens europeus de
outros ofícios ao continente africano, onde provavelmente tiveram contato com muitos
elementos que levaram em sua bagagem no retorno ao seu continente e que lá esses
elementos se hibridizaram, foram reinterpretados e produziram muitos frutos; influência
que é apagada nos livros escolares e nos discursos tradicionais da academia.
Esse movimento de colonização de saberes se repete no decorrer da história em
muitas estratégias que são análogas às atitudes de colonizadores no encontro com
habitantes do espaço que transformariam em seus espaços, em suas colônias, de forma
autoritária, etnocêntrica e violenta. Quando estudiosos viajantes europeus vão ao Egito e
lá aprendem sobre a arte da política e de outras áreas, voltam para seu continente e os
registros dessa troca são relegados; permite-se que a Europa floresça como se só
dependesse dela mesma para se desenvolver. Esse mesmo movimento ocorreria séculos
à frente. O europeu invadiria, mataria e saquearia bens, força de trabalho e também
conhecimento e arte de outros povos. Não se trata apenas de espoliar; vai muito além
disso. Trata-se de levar o que aprende com o outro, as suas riquezas concretas e subjetivas
e, em momento algum, assumir essa influência inegável no próprio “progresso”. Diz
respeito a se apropriar e, ao mesmo tempo, apagar a troca. Trazer e se declarar proprietário
desses bens materiais e imateriais sem, contudo, dar relevância ao fato de que aprendeu
com o outro.
Ao pesquisar o quanto a política egípcia espectrou a política ateniense,
considerada berço da democracia, Marcelo nos traz um rico material sobre a cultura e os
costumes egípcios, tirando o seu leitor de um ciclo vicioso de afirmações cuja única
sustentação é o fato de que elas são reiteradas desde sempre no nosso mundo ocidental,
como se não fossem passíveis de questionamento. A desconstrução da colonialidade a
que se refere o título do livro tem efeito no instante em que o autor nos apresenta um
Egito para além da aura folclórica em que o ocidente envolveu essa civilização. O autor
traz para nosso entendimento os períodos intermediários, fases da história do Egito em
que não existia a figura do Faraó como aquele que coordenava e orientava com mão forte
todos os movimentos do país. Foram períodos em que os pesquisadores descrevem uma
descentralização do poder e uma política próxima, em muitos momentos, ao que
conhecemos hoje como governo representativo.
Como o próprio filósofo nos diz na introdução, esse livro é “o esgotamento de
uma tese de doutorado”, despertando com esse significante “esgotamento” uma
multiplicidade de sentidos que vai desde uma exaustão pela profundidade do que ele nos
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apresenta e por todo o esforço dedicado à construção de mais de trezentas páginas de
muita força e intensidade, até a ideia de que sua tese foi despejada nesse livro como as
águas de um rio são esgotadas no mar. Tudo isso pode nos dar a impressão de ponto final,
mas esperamos que o autor siga produzindo reflexões que nos movam a aporias que
transformem o pensamento, que nos faça entender que precisamos abrir mão da fixidez,
do imutável porque não passam de ilusão. Precisamos considerar os espectros, precisamos
saber conviver com eles, precisamos perceber a força que eles nos trazem, levando-nos a
um entendimento de que tudo é passível de ser desconstruído, isto é, pensado de uma
outra forma, entendido a partir de outras possibilidades, o que nos tira o conforto e a
segurança, mas nos dá enriquecimento de reflexões e ações.
Enfim, trata-se de uma obra que não se prende apenas a apontar os limites e os
paradoxos da democracia. Diz respeito a um texto que nos leva a refletir o quanto a
democracia em que pensamos viver não passa de um arremedo de democracia. Não que
o filósofo queira afirmar a existência de uma democracia original, passível de ser
reproduzida em algum momento e em algum lugar. A questão é que acreditar que se vive
em uma democracia plena e impor esse modelo para outros povos é ficar alheio ao
acontecimento da desconstrução a que essa democracia, como tudo o mais, está sujeita.
Esse é o movimento que Marcelo nos traz de forma tão relevante e rica nessa obra. Um
livro que tem o potencial de trazer a escritura de um compromisso acadêmico e pessoal
do autor com uma desconstrução da colonialidade, que corresponde ao questionamento
de verdades instituídas, em prol de uma abertura que se propõe contínua e indecidível.

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