Zambrosi FB Me Fran
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FRANCA
2017
FABRÍCIO BACHIEGA ZAMBROSI
FRANCA
2017
Zambrosi, Fabrício Bachiega.
Terra ou morte: trajetória intelectual e revolucionária
de Hugo Blanco (1958-1972) / Fabrício Bachiega
Zambrosi. – Franca : [s.n.], 2017.
154 f.
BANCA EXAMINADORA
1º Examinador:_________________________________
Dr.(a) Nome do Examinador, Instituição
2º Examinador: _______________________________
Dr.(a) Nome do Examinador, Instituição
Agradeço, antes de tudo, a Deus, que concedeu infinitas graças para a realização deste
trabalho.
A toda minha família, que desde sempre derramou as mais belas palavras e gestos de
carinho, alimentando minha alma com força, dedicação e disciplina, para a concretização
desta pesquisa. Sou imensamente grato por ter ao meu lado meu pai, Raimundo, e minha mãe,
Vera, que me ensinaram desde cedo o valor do trabalho e das letras. Agradeço também à
companhia dos meus amados irmãos, Fernando e Flávio, que são exemplos de pessoas e
profissionais. A meu primo Guilherme. Obrigado pelos livros trazidos do EUA.
Aos camaradas da trajetória escolar, universitária e da vida adulta. Assim, não poderia
esquecer os meus Professores, todos eles, desde o ciclo básico, mas sem deixar de mencionar
Seu Jader, D. Cecília e D. Marilda, que me mostraram cedo a riqueza das ciências humanas.
Agradeço ainda o carinho e a companhia dos amigos de infância, que cultivam a amizade
assim como o tempo cultiva os vinhos. São eles: Murilo Barthman. Patrick F. Coutinho,
André Morett, Thales (cabeça), Paulo Eduardo, Lucas (Banwa), Roberto (Durval) e Dieguin.
Aos amigos que contribuíram nesta jornada das mais diversas formas: obrigado,
Francisco, Inácio, Paulo, Andrea, Maria Luiza e, principalmente, obrigado Noely Breda.
Obrigado Maria Natalina, Luzia Angélica, Daniela, Alex Belduscho, Francisco...e tantos
outros.
Aos Amigos constituídos na UNESP-Franca, que, apesar da distância, são seres de
coração de grande fôlego: prontos para correrem para longe, mas com a mesma disposição
pararegressarem. Agradeço a cada um de vocês, que estiveram na origem de tudo: Junin
(Taz), Mateus (Tuche),Danilo (Celeste), Galhardo, Paulo (Pizza), Denis, Caloi, Lagosta,
Lenin, Gustavo, André, Elvis, Alex, Aliene, Cinthia Bonareto e Erica Albarral. Agradeço
também à minha amiga Mayara Brandão e, de forma especial, à minha grande amiga Marina
C. Bianchi. Mas não poderia deixar de destacar, também, dois grandes amigos e ex-jogadores
do time mais simpático da primeira década dos anos 2000 da Unesp, o Peitão de Frango. São
eles: Valter Nailton e Fred Maciel. Abriram sua casa e sua paciência a mim. Sou eternamente
grato. Mas sem esquecer toda a contribuição intelectual de Fred, que cedeu seu tempo e seu
conhecimento às minhas dúvidas e reflexões. Obrigado também à Equipe de Judô da UNESP,
coordenada pela extinta Atlética Clodoaldo Silva.
Aos professores da UNESP-Franca que, em meio a todas as dificuldades, todos os
anos mobilizam seus instrumentos, seus conhecimentos, sua paciência e perseverança para
talharem pedras brutas, que chegam das mais diversas partes do estado e do Brasil. Expresso
aqui minha admiração, pois transformam tais pedras, que se afundariam nas mais rasas poças,
em pilares prontos a caminharem sozinhos e a seguirem os nobres passos de seus mestres,
sejam nas escolas ou nas universidades espalhados pelo país.
Nesse sentido, agradeço também aos Profs. Drs. que participaram do meu exame de
qualificação, Alberto Aggio e Marcos Alves, pelas reflexões e críticas.
À Cinthia Xavier, minha companheira de todas as horas, que, com todo amor e
carinho, conheceu de perto as alegrias e dificuldades deste caminho. Leitora,conselheira e
incentivadora assídua dos meus escritos, tornou-se um dos alicerces em que se ergueu este
trabalho. A você, amor, sou muito grato por tudo. Por cada palavra e por cada gesto. Você é
um presente.
À Sandra Palomino, peruana apaixonada pelo Brasil, que fez o favor que nenhum
dinheiro pode pagar. Obrigado pelos livros enviados do Peru, sem os quais este trabalho nem
sequer seria possível. Jamais esquecerei tamanho gesto.
Uma vez li que nada que pudesse ser medido poderia continuar suficientemente
grande. Eis aqui, portanto, minha dificuldade de encontrar as palavras certas para agradecer a
meu orientador, Prof. Dr. Marcos Sorrilha Pinheiro, pois nada que eu disser irá alcançar o
tamanho da minha gratidão. Gratidão por ter acreditado no sonho deste garoto e por não ter
desistido diante das minhas falhas. Agradeço o companheirismo, a amizade, a todas as
conversas e cada minuto de sua atenção. Obrigado pelas críticas, pela paciência, pelas leituras
e correções. Levarei você, meu amigo e orientador, para sempre comigo.
Finalmente, agradeço imensamente à agência fomentadora de pesquisa CNPq, que
financiou a maior parte deste trabalho.
“Eis o que aprendi do sol, desse opulento sol
de inesgotável riqueza que, ao pôr-se,
derrama o seu ouro pelo mar; por isso,
até os mais pobres pescadores
remam com dourados remos”.
Resumo
The present dissertation project was based on the evaluation of the intellectual and
revolutionary trajectory of the Peruvian trotskyist Hugo Blanco, between 1958 and 1972. This
period corresponded to the moment in which Hugo Blanco moved out from the urban area to
the rural area in order to begin his revolutionary movement; at this time, he also published his
most important book, Land or Death. Hugo Blanco acted among the peasants from the La
Convención and Lares, region of Cuzco, until be arrested in 1963. Then, he was sent to exile
by the military government at early 70’s. Hugo Blanco’s actions formed an unique context
within Peru and Latin America. The first one concerns his interference in the mountainous
area of the country, where there was an agrarian structure having several pre-modern
characteristics. This structure received significant emphasis and severe criticism in the texts
published by Hugo Blanco. And, the second one deals with the manner by which the Latin
America was being influenced by the Cuban Revolution. As an outcome of the several
possibilities originated from this revolutionary movement, particularly with regard to its
political and military content that were valorized and disseminated across the continent by
Cuban government and intellectuals, including the use of guerrilla, the left-political
organization of the continent planned also to use such a strategy in their own countries. In this
scenario, it was raised the bases of the revolutionary project proposed by Hugo Blanco.
Accordingly, we aimed with this research to demonstrate that his project interacts with the
mentioned historical context, principally with the new ideas and perspectives offered by the
Cuban Revolution. However, the proposal of Hugo Blanco had the peculiarity of offering
alternatives in relation to the ideas propagated by the mentioned revolution. This might be
associated to the fact that he structured his project based on the lessons learned from Leon
Trotsky and his connection with the sections of IV International dedicated to Latin America,
such as SLATO. In summary, rather than refute the adoption of guerrilla, Hugo Blanco acted
as intellectual proposing a better understanding and utilization of trotskyism in accordance
with the peculiarities of the rural area of Peru. In this context, he also used important elements
that constituted the political organization of the country, such as the indigenism and marxism.
Introdução 12
INTRODUÇÃO
Dentre os atores do político que nas últimas décadas cada vez mais passaram a ser
objetos de trabalhos historiográficos, está a figura do intelectual. Resultado da retomada e da
renovação vivida pela história política após os anos setenta, mas também em razão do
desenvolvimento próprio do seu campo de atuação, a história envolvendo os intelectuais,
como defendeu Jean-François Sirinelli (2003), avançou, alcançou status de autonomia e se
tornou um lugar privilegiado para a análise de fenômenos históricos.
Porém, se os trabalhos dedicados especificamente aos intelectuais surgiram em
tempos consideravelmente recentes, o mesmo não podemos dizer sobre este personagem. A
figura do intelectual é antiga e suas origens, principalmente daquele que mais nos interessa,
isto é, o intelectual preocupado e interessado em pensar os assuntos da cidade, remonta à
antiguidade clássica. Por outro lado, antes de serem assim chamados, esta figura (o
intelectual), a depender do tempo e da sociedade que estava inserido, reconheceu-se e foi
reconhecido mediante outros nomes, como: sábios, filósofos, clercs e homens de letras.
Apesar dos nomes variados ao longo do tempo, queremos chamar a atenção para uma
característica permanente desses homens, que é justamente, segundo Norberto Bobbio, a de
serem:
os sujeitos a quem se atribui de fato ou de direito a tarefa específica de
elaborar e transmitir conhecimentos, teorias, doutrinas, ideologias,
concepções de mundo ou simples opiniões, que acabam por constituir as
ideias ou os sistemas de ideias de uma determinada época e de uma
determinada sociedade (BOBBIO, 1996, p. 110).
Por conta de sua função social estar atrelada ao pensamento e a reflexão em torno dos
problemas de sua comunidade, o substantivo intelectual, por vezes, confunde-se com o
adjetivo, imaginando-se que tais pessoas estariam apenas reclusas a ambientes ilustrados ou
acadêmicos. Entretanto, é bom que se diga que não consideramos Hugo Blanco, o intelectual
peruano que é alvo deste trabalho, pertencente a este grupo de intelectuais que na América
Latina ficou conhecido por seus vínculos às universidades ou à elaboração de grandes obras,
fossem elas filosóficas ou literatas, ainda que estas estivessem carregadas com viés político e
social. Segundo entendemos, Blanco faz parte de outra categoria de intelectual, aquela que
integra o grupo conhecido como intelectual revolucionário, figura esta que deixou a sua marca
na história da América Latina, especialmente durante a segunda metade do século XX.
Como argumentou Norberto Bobbio, por intelectual revolucionário compreende-se a
figura de alguém que comunga do “[...] princípio de que não se faz revolução sem uma teoria
revolucionária (...) (BOBBIO, 1996, p. 125)”. Trata-se daquele que se coloca “[...] contra o
poder constituído em nome de uma nova classe e pela instauração de uma nova sociedade [...]
(BOBBIO, 1996, p. 124)”, além de se conceber como sujeito fundamental para a execução e
criação dos meios que conduzirão ao fim desejado, isto é, a revolução. Eis, por conseguinte, o
prisma pela qual compreenderemos Hugo Blanco ao longo do trabalho.
Desta feita, Hugo Blanco foi um personagem da história peruana que dedicou boa
parte de sua trajetória a promover a revolução socialista. Imbuído desse ideal, empunhou tanto
a pena como a espada. A empreitada não custou a sua vida, mas vários anos na prisão e no
exílio. O período significativo das ações revolucionárias de Hugo Blanco foi desenvolvido na
área rural do Peru, entre os camponeses desse país, precisamente a partir de 1958, quando
deixou a cidade para se juntar àqueles, no vale de La Convención, no departamento de Cuzco.
Desde então, e até 1963, ano em que foi preso, esteve com os camponeses e a fundar
sindicatos, os quais, liderados por ele, se tornaram a fagulha de um incêndio que desencadeou
diversos ataques às estruturas políticas, sociais e culturais dessa região, que eram famosas
pelo seu “arcaísmo”. De qualquer maneira, estes ataques, mais do que a expressão de seu
espírito revolucionário, eram também sinais de suas concepções indigenistas, dada a
permanente defesa aos índios camponeses que Blanco percebia como vítimas no Peru.
Por outro lado, enquanto o mencionado período ficou marcado pela sua praxe
revolucionária, os anos seguintes foram marcados pelo seu trabalho intelectual, uma vez que
os seus principais escritos datam de meados dos anos 60 e início dos anos 70. No caso,
fazemos referência aos trabalhos intitulados, respectivamente, como El camino de nuestra
revolución e Terra ou Morte. Feitas tais considerações, convém, inclusive, demarcar o recorte
14
que compõe a presente dissertação: os anos entre 1958 e 1972, isto é, entre a ida de Hugo
Blanco ao campo e a publicação do livro Terra ou Morte.
Ao mesmo tempo, é importante ressaltar que, antes de adentrarmos propriamente dito
na análise da trajetória intelectual e revolucionária de Hugo Blanco, procuramos destacar
importantes fenômenos políticos, sociais e cultuais que davam forma e conteúdo ao contexto
peruano e latino-americano. Com isso, objetivamos compreender a trajetória intelectual e
revolucionária de Hugo Blanco articulada, não isolada do referido contexto.
Hugo Blanco desenvolveu sua trajetória intelectual e revolucionária em um período
em que a ideia de Revolução havia voltado à ordem do dia na América Latina. Esta opção
política estava ancorada na recente vitória dos revolucionários cubanos, em 1959, que, pouco
tempo depois, inauguravam o primeiro Estado socialista do continente americano. Como
afirmou Allan Angel (2009), tal revolução produziu um efeito “eletrizante” sobre as esquerdas
do continente, de tal maneira que muitos grupos e sujeitos passaram a se movimentar e a
acreditar que o socialismo estava a “la vuelta de la esquina”, não faltando outra coisa para
concretizá-lo a não ser a radicalização, o sacrifício e a força de vontade. Na época, foram
destaque destes princípios especialmente os jovens universitários. Hugo Blanco, por exemplo,
era jovem e oriundo do meio universitário.
A Revolução Cubana, por sua vez, emergiu no cenário continental não apenas
animando outros revolucionários, mas oferecendo novos referenciais políticos e
organizacionais para as esquerdas do continente executarem a revolução. Para alguns
intelectuais revolucionários, dadas as novidades empregadas pelos combatentes cubanos ao
longo do processo de tomada de poder, a Revolução Cubana foi interpretada como um ponto
de mutação em relação a outros modelos de revolução. Não sem razão, para Régis Debray, o
movimento cubano foi uma “Revolução na Revolução”. Essa noção de ruptura esteve
vinculada, principalmente, à relevância que se deu aos aspectos militares em detrimento do
político, no interior do processo e da teoria revolucionária. A partir de então, a Revolução
Cubana e seus entusiastas não apenas questionaram a hierarquia que existia entre luta armada
e a esfera do partido, que antes garantia a superioridade e a prioridade deste último sobre o
primeiro, como equalizaram e submeteram à luta armada as funções antes delegadas ao
partido.
Em outras palavras, para muitos admiradores e intelectuais revolucionários, a
Revolução Cubana consagrava a guerra de guerrilhas, isto é, a teoria do foco guerrilheiro
como modelo de revolução. Noção esta que foi chamada neste trabalho principalmente de
“castro-guevarismo”. Assim, por meio de um pequeno grupo armado, atuando
15
qualquer agrupamento armado, fosse este uma guerrilha ou uma milícia. Isto é, no seu modo
de ver, os aspectos políticos e militares do processo revolucionário deviam permanecer
hierarquicamente desiguais, e sem perdas do primeiro em relação ao segundo. A respeito do
partido, prevalecia a noção de partido de vanguarda, organização responsável por conduzir,
educar e organizar um dos pontos mais fundamentais de toda revolução: as massas. Deste
processo, segundo Blanco, nasciam as revoluções. Ademais, era necessariamente deste
processo que emergia a luta armada; não o caminho inverso.
A respeito ainda do trotskismo e do socialismo internacional, convém adiantarmos que
nos preocupamos em localizar Hugo Blanco no interior da IV Internacional Comunista e
evidencia a importância desta última durante o movimento camponês no vale de La
Convención. Esta preocupação veio à tona na medida em que avançávamos na pesquisa e
identificávamos que desde que Hugo Blanco havia estado na Argentina, ele jamais havia
passado despercebido ou desvinculado da IV Internacional. Entre 1961 e 1963, por exemplo,
além de duas cartas enviadas a Blanco por Nahuel Moreno, que na época era líder da seção
argentina intitulada SLATO (Secretariado Latino-Americano do Trotskismo Ortodoxo), este
órgão procurou auxiliar teoricamente e materialmente o processo revolucionário que Hugo
Blanco havia inaugurado em seu país. Não o bastante, enquanto nos preocupávamos com a
história da IV Internacional e suas implicações com a “Revolução Peruana”, acabamos por
problematizar a história de outras Internacionais que marcaram presença na América Latina,
como a III Internacional1 e, ainda, a “Internacional de Havana”. Isto foi relevante porque foi
possível identificar, na época das ações de Hugo Blanco, certa disputa e concorrência entre o
SLATO e Havana, uma vez que ambas, além de representarem táticas e estratégias
divergentes, galgavam que seus respectivos métodos fossem aplicados e disseminados nos
países da região.
Uma vez clareados nossos principais problemas e objetivos, convém destacar como
procuramos desenvolvê-los nos três capítulos que integram a presente dissertação. Vejamos.
No primeiro capítulo, intencionamos, em um primeiro momento, apresentar alguns
aspectos estruturais da sociedade peruana, com destaque para o mundo rural. Desta maneira,
chamamos a atenção para o fato do Peru estar, em meados do século XX, ainda vinculado à
imagem de que o país possuía duas realidades, a saber, a costa e a serra. A primeira carregava
os signos do desenvolvimento e da modernização, mas não a segunda. A serra representava o
1
A III Internacional foi desarticulada em 1943. De qualquer modo, as Internacionais foram idealizadas
almejando organizar e expandir a revolução para além de suas fronteiras originais, mediante suporte teórico,
técnico, material e humano.
18
atraso. Mas foi justamente nessa paisagem que encontramos as primeiras ações do nosso
intelectual revolucionário no Peru. Foi aqui que Hugo Blanco iniciou seu trabalho entre os
camponeses, que, no caso peruano, eram indígenas dedicados ao trato da terra e da
agricultura, e que permaneciam vinculados às haciendas e aos donos destas mediante relações
pessoais e arcaicas de trabalho. Além disso, procuramos demonstrar também como a região
em questão, na época, era atingida por consideráveis transformações, fruto dos processos de
modernização desencadeados especialmente por meio de ações do Estado peruano, desde a
década de 1920. O primeiro capítulo também se dedica a apresentar Hugo Blanco inserido no
contexto social, político e cultural do Peru, entre os anos vinte e o início dos anos setenta do
século XX, momento pelo qual aproveitamos para chamar a atenção para a relação entre a
corrente de pensamento indigenista e Hugo Blanco.
No segundo capítulo, contextualizamos Hugo Blanco no interior das ideias do
socialismo revolucionário que emergiram na América Latina e no Peru desde o início do
século XX. Dessa maneira, destacamos, em um primeiro momento, os ecos e efeitos da
Revolução Russa (1917). Posteriormente nos dedicamos à Revolução Cubana (1959). Com
isso, quisemos abordar o surgimento e a trajetória do partido comunista peruano, do
movimento trotskista, do partido aprista e dos grupos inspirados na revolução de 1959, mas
sem deixar de salientar as principais ideias circuladas por cada um e as inimizades que tais
correntes e grupos desde cedo nutriram um pelo outro. Não obstante, neste segundo capítulo
também nos atentamos em rastrear as linhas de tensão, comunicação e disputa entre as ideias
ventiladas por cada uma das Internacionais surgidas na esteira de cada uma das revoluções
mencionadas.
No terceiro capítulo, embora sem nos esquecermos de outros escritos, procuramos
apresentar a principal obra de Hugo Blanco: o livro Terra ou Morte, publicado em 1972. Aqui
demonstramos quais eram as intenções do autor com a publicação desta obra, assim como
com quais ideias relacionadas ao socialismo revolucionário Hugo Blanco estava dialogando e
concordando; quais estava defendendo, contestando ou mesmo ignorando. Tendo em vista
este objetivo, nos pareceu ficar evidente neste livro o esforço do autor em se colocar como um
autêntico trotskista, conhecedor dos ensinamentos de Leon Trotsky, precisamente do
Programa de Transição, redigido por este, em 1938, e, principalmente, aplicador do
mencionado Programa. Ao longo do livro, notamos ainda que, mais do que a aplicação, Hugo
Blanco se esforçou para adaptar o Programa de Transição à realidade rural em que se
encontrava.
19
Além disso, neste último capítulo tentamos deixar claro como o livro Terra ou Morte
também era um recado à IV Internacional, que, na época, segundo alguns membros, estava se
inclinando a incorporar os princípios da guerra de guerrilha em detrimento dos ensinamentos
de Leon Trotsky. Por fim, tivemos o objetivo de demonstrar como as ações de Hugo Blanco
no vale de La Convención, entre os camponeses, não deixou de ser uma significativa ruptura,
especialmente em relação a algumas ideias que Trotsky havia consagrado aos camponeses no
interior de processos revolucionários.
A modo de conclusão, nas considerações finais, retomaremos as principais ideias
apresentadas, buscando afirmar os vínculos de Hugo Blanco com o trotskismo e as
singularidades de seu projeto revolucionário ao longo de sua trajetória, especialmente frente à
Revolução Cubana.
A respeito das fontes, utilizamos, principalmente, os mais importantes textos de Hugo
Blanco: El Caminho de Nuestra Revolución e Milícia ou Guerrilha, que foram publicados,
inicialmente, no Peru, em 1964, e a obra Terra ou Morte, publicada em 1972. Além desses
escritos, nos valemos de algumas correspondências que Hugo Blanco escreveu ou recebeu
dentro do período que recorta o presente trabalho. Nesse sentido, analisamos as cartas
trocadas com um dos maiores novelistas do país, o indigenista José María Arguedas, em
1969; uma carta enviada, em 1970, ao um dirigente americano e trotskista do Socialist Work
Party, que era vinculado a IV Internacional; e a carta recebida de Nahuel Moreno, em 1961.
No caso, Moreno era vinculado à referida internacional e dirigente da seção argentina
conhecida por SLATO.
20
2
Entendemos estrutura agrária como afirmou Norman Long: “Contudo, uma estrutura agrária abrange muito
mais do que esse conjunto de fatores de produção e recurso técnico, natural, chamado usualmente sistema
agrícola. Compreende, além disso, as instituições legais e políticas que sustentam esse sistema, as relações entre
o campo e a cidade, as estruturas de comercialização, as classes sociais presentes na zona rural, os negociantes,
os artesãos e diferentes classes de agricultores e o sistema econômico maior que, em alguns casos, inclui a
economia mundial” (LONG, 2009, p. 405).
21
3
Dentre os objetivos do IEP, o que se pode notar é que seus intelectuais acreditavam que, valendo-se do
passado, de um modelo teórico adequado para abordá-lo e se levassem em consideração as várias dimensões
dessa sociedade articulando-as, poderiam descrever o processo histórico do Peru e, assim, explicar os problemas
do país. Nesta perspectiva, assim expôs um dos mais prestigiosos autores do Instituto, o intelectual José Matos
Mar: Entender el Perú, diagnosticarlo, significa ante todo comprender su historia. Explicar la historia del Perú
significa, a su vez, concebir un modelo teórico en el que las diversas configuraciones sociales acorridas en su
largo proceso evolutivo se ofrezcan racionalmente concatenadas e interpretadas (MATOS MAR, 1983, p. 19).
23
Peru Problema, que, na ocasião, 1968, foi eleito pela imprensa como el libro del año,
corroborava para reforçar a ideia de que existia um consenso: o Peru era um celeiro de
problemas. Sendo um deles a permanência do desenvolvimento desigual que citamos.
Ao mesmo tempo, tais considerações demonstram que fica difícil menosprezar o
alcance que os intelectuais latino-americanos são capazes de cultivar no interior de suas
sociedades, por conta do papel de destaque que eles ocupam dentro das mesmas (ver
HOFMEISTER, 2004, p. 8). Nesse sentido, é válida a interpretação que veja relação entre o
título do livro e as críticas contidas em suas páginas e estrutura social e agrária peruana, bem
como a relação entre o golpe militar que ocorreu no país no mesmo ano, 1968. De certa
maneira, as principais bandeiras do regime erigido pelo General Velasco Alvarado como a
questão da terra, a reforma agrária e o camponês eram centrais naquelas análises (cf.
PINHEIRO, 2013, p. 59-60).
De qualquer forma, se é importante reconhecer as mencionadas características
estruturais da sociedade peruana, em relação à costa e à serra, ainda na década de 60,bem
como a existência, no período em questão, de um debate intelectual a respeito da referida
estrutura, é porque ambas convergem na direção de Hugo Blanco. Este, como se sabe, atuou
na serra, precisamente no vale de La Convención, no departamento de Cuzco, onde se deparou
com diversos elementos pré-modernos, que cerceavam a vida social e política dos
camponeses. Elementos estes, aliás, que apareceram mais tarde em seu trabalho intelectual.
Além disso, é importante que se diga que o referido debate foi aprofundado especialmente
após as ações de Hugo Blanco, pois chamou a atenção da sociedade e dos intelectuais para os
problemas que acometiam, na sua maioria, o mundo rural da região serrana.
Assim sendo, chamou nossa atenção, ao mesmo tempo, o fato de muitos estudiosos,
em diferentes momentos, compararem a estrutura agrária da serra peruana e o modo de vida
que se levava nessas regiões ao feudalismo europeu. É bem verdade que a referência possa ser
passível de crítica, no entanto não eram simbolicamente equivocadas. Isto foi o caso, por
exemplo, de José Carlos Mariátegui (2007), Victor Villanueva (1967), Eric Hobsbawm (1969)
e Manuel Burga e Alberto Flores Galindo (1994; 1997c). Em nossa concepção, essa
abordagem é a constatação, mais uma vez, de que nesta região vários tipos de arcaísmos ainda
regiam a vida, a economia e a política da população ali localizada.
Agora, como não é possível enveredarmos por todos os elementos que compõem a
estrutura agrária do país, suas características pré-modernas e seus arcaísmos, nos ateremos
àqueles que possuem importância direta para o nosso trabalho. Nesse percurso, para sermos
mais exatos, abordaremos fenômenos da parte que ficou conhecida como “mancha índia”, que
24
4
Eis os dados a respeito da concentração de terras no Peru na década de 1960: “Región de la costa. – Sobre
761,000 hectáreas de tierra de cultivo: 10% de propietarios poseen el 89% del área agrícola; 90% de poseen el
11% del área agrícola. Región de la sierra. – Sobre 9’039,000 hectáreas de cultivo y pastos naturales: 3% de
propietarios poseen el 83% del área agrícola; 97% de propietarios poseen el 17% del área agrícola”
(VILLANUEVA, 1967, p. 15).
25
O gamonalismo, por sua vez,foi objeto de análise de muitos intelectuais, sendo um dos
mais famosos o intelectual José Carlos Mariátegui. Para este autor, que escreveu no início do
século XX, o gamonalismo e haciendas (tradicionais) estavam entrelaçados. Essa estreita
ligação era a prova de muitas coisas, dentre elas, que o Peru não havia conseguido avançar ou
consolidar a nação liberal que o advento da República de 1821 previa. Conforme entendia,
hacienda e gamonalismo, ao caminharem juntos, promoviam a formação de poderes locais, os
quais fatalmente minavam qualquer intento de universalidade da lei imaginado pelo projeto
liberal, uma vez que as fronteiras da hacienda possuíam regras próprias, por meio do recurso
da força. Indo um pouco mais além, isso que expomos é um dado destacável porque, quando o
gamonalismo e a hacienda inviabilizavam o projeto iniciado em 1821, isso queria dizer,
igualmente, que o Estado peruano mantinha uma enorme população desassistida, assim como
impedida a formação de uma cultura de participação democrática nos moldes imaginados
pelos regimes republicanos do século XIX. E o que mais nos chamou a atenção, ainda, é que
essa população era justamente a indígena, aquela que simplesmente compunha quatro quintos
da população total. Diante disso, ainda segundo Mariátegui, o gamonalismo era mais uma
razão que justificava até mesmo a afirmação de que o Peru era uma nação inconclusa.
Mariátegui, contudo, não percebeu no gamonalismo apenas um dado importante para
comprovar a falência do projeto liberal e a manutenção da exclusão da população indígena,
ele percebeu por esse fenômeno as razões de sua própria reprodução, por conseguinte, a
permanência daquela falência. Pois, o gamonalismo expressava não apenas um poder
econômico (hacienda), mas o alcance do poder político que os donos das haciendas
estabeleceram no Peru5. Isso quer dizer que uma fatia considerável do Estado e de suas
instituições esteve sujeita à influência direta ou indireta daqueles, fossem eles da costa ou da
serra, o que, certamente, contribuiu para que muitos interesses desse grupo pudessem ser
atendidos ao longo do tempo, como a manutenção de poderes locais. Não obstante, esse
quadro era possível em função da rede de pessoas (funcionários públicos ou grupos sociais de
uma forma geral) que os hacendados articulavam, mobilizavam e controlavam. Acerca do
tema, Mariátegui afirmou:
5
El factor central del fenómeno es la hegemonía de la gran propiedad semifeudal en la política y el mecanismo
del Estado. Este es un fenómeno definitivamente republicano y criollo y de ninguna manera colonial, ni español.
En la Colonia, los grandes propietarios de la tierra eran españoles y criollos, pero por la naturaleza del estado
colonial los terratenientes gozaban principalmente de pode económico y prestigio social, no así de poder y
gobierno políticos. Con el advenimiento de la República se produce el secuestro de las propiedades religiosas y
fortalecimiento del poder terrateniente de los criollos. Además, desaparecida la administración colonial, los
propietarios de la tierra acceden al poder político y al gobierno militar de las regiones (GALINDO, 1994, p.
169).
28
Nesse sentido, tendo em vista o que afirmamos até este momento, um dos pontos que
devemos chegar é o alcance do conceito em questão para se compreender os elementos que
compõem a estrutura agrária da serra peruana. O outro ponto, e mais importante, é que o
gamonalismo ainda persistia no Peru em meados do século XX. Sobre isso, o autor Fioravanti
(1974, p. 57-58), por exemplo, demonstrou, através de sua pesquisa, o alcance desse
fenômeno justamente no vale em que Hugo Blanco atuou. E o interessante, por sua vez, é que
o próprio Blanco parecia reconhecer o fenômeno do gamonalismo, pois os localizamos em
seus escritos, apesar da edição brasileira se referir ao tema em questão através do termo
caciquismo, como é possível observar nesta passagem: “o caciquismo de La Convención e
Lares levou a estes vales as relações de produção e o sistema de exploração serrano”
(BLANCO, 1979, p. 44)
No capítulo em que discutimos as ideias de Hugo Blanco, por exemplo, demonstramos
como o gamonalismo, elemento característico da serra peruana, e que prosperou no vale de La
Convención,foi fundamental para Blanco desempenhar sua característica de intelectual, pois
foi a partir deste fenômeno que ele sustentou a aplicação daquilo que Leon Trotsky chamava
poder dual à realidade peruana. Neste particular, consideramos que, de certa forma, Blanco
procurou “peruanizar” o trotskismo.
1.3. Os Camponeses
Existe, ainda, outro tema que exige nossa atenção e que está diretamente relacionado
com tudo o que foi dito até agora: os camponeses. Estes são, aliás, os personagens que muito
nos interessa, afinal, foram estes que Hugo Blanco liderou no vale de La Convención, na
década de 1960. Contudo, é necessário realizar algumas breves advertências sobre o grupo em
questão e sobre os movimentos que estes desencadearam ao longo de sua história peruana.
Etnicamente falando, a maior parte da população peruana é composta pela população
indígena, e a grande maioria desta está localizada na região serrana. Porém, ainda que
29
etnicamente possam ser assim classificados, por conta de toda uma peculiaridade histórica que
vincula as lutas desses grupos aos movimentos sociais, em um processo de auto
reconhecimento, nós os trataremos como camponeses, até porque, como afirmava José Carlos
Mariátegui “La raza indígena es una raza de agricultores” (MARIÁTEGUI, 2007, p. 42).
Além disso, para o nosso trabalho, existe um tipo de camponês que nos é mais
interessante, são aqueles que estavam fixados no interior das haciendas, chamados também de
“gente de hacienda” ou de colonos. Por fim, tais informações são importantes porque
revelam um outro dado sobre os movimentos campesinos peruanos, a saber, que o
protagonismo, nesse período, havia sido transferido das comunidades para os colonos, por
conseguinte, para o interior das haciendas (BURGA; FLORES GALINDO, 1997c).
Os camponeses integravam a estrutura agrária da serra peruana. No sul, tendo em vista
o que foi dito até este momento, a maioria deles estava sujeita à vida oferecida pelas
haciendas tradicionais, ou seja, eles estavam submetidos às expressões arcaicas dessa
instituição.Neste,em particular, era muito comum a concessão de terras aos camponeses em
troca de trabalhos a serem realizados nas terras do gamonal. Acerca do assunto, assim
escreveu Hugo Blanco, na obra Terra ou Morte:
6
Assim afirmaram Manuel Burga e Flores Galindo acerca do tema: “el paternalismo era una de las actitudes que
legitimaba la explotatión del gamonal. Aparecía confundido con un despotismo despiadado. (…) El trato con
sus colonos oscilaba entre la ternura y la violencia. Se sentían padres de sus indios, los podían amar y castigar
(1994, p. 165).
31
denominado como “triângulo sem base”. O modelo de Cotler tem esse nome, pois os
integrantes que compõe a suposta base dessa pirâmide encontram-se desarticulados e
fragmentados, não estabelecendo relações horizontais entre si. São, portanto, uma população
que não consegue se converter em uma classe social, deixando o modelo analítico desprovido
de um alicerce (conforme observamos na figura abaixo). Ao mesmo tempo, os integrantes da
base estão diretamente ligados à elite, através de mecanismos que convergem para cima, mas
sem que isso resulte em vínculos com seus pares. De baixo para cima existe uma poderosa
amarração, de cunho personalista e que contribui ainda mais para o isolamento entre os
membros da “base”. Neste sentido, o que estrutura esta pirâmide, ou seja, o que faz dela um
modelo que se sustenta, é o patriarcalismo. Tais relações estabelecidas entre a população
fragmentada e as elites coesas representam as laterais do triângulo. Neste processo, os
gamonais desempenham um papel decisivo, pois são aqueles responsáveis por articular os
polos do modelo.
Fonte: http://perueconomico.com/ediciones/69/articulos/1253
Por fim, cabe agora problematizar como toda essa estrutura agrária, principalmente
esta última parte, que tratou da relação entre gamonais e camponeses, se entrelaça com a
trajetória de Hugo Blanco. De uma maneira geral, identificamos que os elementos aqui
tratados também apareceram de alguma maneira no trabalho intelectual de Blanco, mas
apareceram carregados de reprovação. Assim, notamos que Hugo Blanco foi um sujeito em
constante desacordo com as condições a que eram submetidas os camponeses. Nesse sentido,
sua ação revolucionária e intelectual nunca deixou de atacar e reivindicar o fim dessa
estrutura que mencionamos. Em La Convención, por exemplo, enquanto esteve junto aos
32
camponeses, Hugo Blanco orquestrou, com estes últimos, diversas investidas contra as
haciendas e o gamonalismo, por exemplo.
Mas este posicionamento, obviamente, não era proveniente apenas de seu vínculo com
o socialismo que, no seu cerne e na sua vertente revolucionária, como o trotskismo, prevê
imediatamente o fim dessas estruturas arcaicas no campo, isto é, a Revolução Agrária7. Ou
seja, há outros fatores além deste que queremos chamar a atenção neste momento. Desta
forma, aquele posicionamento, na verdade, era em razão também de suas concepções em
favor dos indígenas peruanos, por conseguinte, em razão de seu indigenismo, incorporados
durante a sua primeira infância e pela literatura indigenista, que foi lida por Blanco durante
sua juventude (VILLANUEVA, 1967). E, apesar de retomarmos e ampliarmos a questão do
indigenismo em outro momento, convém adiantar desde já que esta literatura tinha a
particularidade de chamar bastante atenção para o mundo rural, principalmente, para as
formas de interação entre gamonais e camponeses (BOURRICAUD, 1989, p. 48).
Assim, tendo, em grande medida, o referido mundo como pano de fundo, essa
literatura, desde o final do século XIX, tornou-se uma valiosa testemunha e divulgadora, no
interior da sociedade peruana, sobre importantes elementos que faziam parte da estrutura
agrária serrana, como as haciendas tradicionais e os elementos que giravam em torno dela.
Além disso, de maneira poética, chamava atenção para as relações humanas que nasceram
dentro dessa estrutura. Um breve olhar sobre algumas obras, como fez Bourricaud em relação
ao livro El mundo es ancho y ajeno de Ciro Alegria e Yawar Fiesta de José María Arguedas, é
o suficiente para compreender que o que prevalece nessa literatura é um universo de relações
desiguaise de conflito entre gamonais e os camponeses.
Com isso, ainda que estivesse na essência do trotskismo a revolução agrária,
consideramos que é significativo o vínculo entre indigenismo e Hugo Blanco para
compreendermos as origens da ação intelectual e revolucionária do mesmo, especialmente a
defesa apaixonada dos índios camponeses e o ataque também apaixonado à mencionada
estrutura agrária. Afinal, em uma carta a um dos maiores novelistas peruanos, José Maria
Arguedas, em 1969, Hugo Blanco não apenas exaltou grandes nomes da literatura indigenista,
como os responsabilizou por alimentar o mencionado sentimento de amor e ódio, após o
fazerem perceber, na sua visão, as injustiças a que eram submetidos os camponeses peruanos:
7
A Revolução Agrária que integra o pensamento trotskista prevê o ataque às estruturas arcaicas/feudais que
predominam no campo. No entanto, ela não significa uma coletivização forçada e imediata das terras. Na
verdade, essa Revolução supõe o fim do regime de servidão, o parcelamento das terras entre os camponeses e
incentivos a favor do desenvolvimento produtivo dessas terras. Tal, noção, por exemplo, apareceu no livro
Programa de Transição (p. 41-42, 1978), escrito por Leon Trotsky. Ao mesmo tempo, no Trotskismo, a
Revolução Agrária é observada como uma etapa fundamental dentro do processo revolucionário.
33
“por eso (...) mucho respeto a esos señores: Clorinda Matto, Ciro Alegría, Jorge Icaza,
Enrique López Albújar. Esos señores pusieron la semilla en mi corazón cuando sólo era un
muchacho, ellos también ayudaron para que mi sangre hirviera, me hicieron ver lo que no
veía” (BLANCO, 2009, p.9)8.
No início desse capítulo, nos valemos das afirmações de François Bourricaud, de Julio
Cotler e Felipe Portocarrero para chamarmos a atenção para os arcaísmos que ainda existiam
na serra em meados do século XX. No entanto, não devemos encará-los como fenômenos que
guardavam toda sua força e coesão. De certa maneira, neste mesmo período, verificou-se que
tais estruturas começavam a perder seu vigor por conta de transformações sociais e
econômicas no Peru e que finalmente começavam a refletir no campo. Em outras palavras, o
famoso triângulo sem base de Julio Cotler encontrava-se fragilizado. Como consequência,
podemos citar, inclusive, o movimento camponês de Hugo Blanco, pois tanto emergiu como
se espalhou para outras regiões se alimentando de tais desgastes.
Esse novo panorama vivido pelo Peru, por sua vez, se deu por conta de uma conexão
mais orgânica entre as regiões que integravam à sociedade global, que, há tempos, mas
principalmente nesse período (anos cinquenta), passava por intensas transformações
modernizantes. Contribuíram, ainda, reformas na estrutura de educação, saúde e na área de
medicamentos que proporcionaram um aumento da natalidade infantil, provocando um
crescimento populacional. Ao mesmo tempo, a incorporação de tecnologia no setor da
produção permitiu reconfigurações nas formas de trabalho tradicionais. Como afirmou Hugo
Neira (1968, p. 49) “El impacto modernizante penetrará profundamente en el área de sombra
sureña”. Vejamos essa questão com mais calma.
As importantes transformações que atingiam o Peru, bem como suas principais
consequências, podem ser expressas pela seguinte afirmação de Alberto Andriazén (1990, p.
15): “1950, para muchos peruanos, es un año casi mágico. Es el inicio de lo que muchos
sociólogos y cientistas políticos han llamado la nueva industrialización, modernización y
urbanización”. Estas foram responsáveis por mudarem, senão completamente o desenho, a
maior parte das cores e dos traços que desenhavam a sociedade peruana. Se seguirmos alguns
8
BLANCO, H. Cartas entre José Maria Arguedas e Hugo Blanco. Lucha Indígena Lima, 22 de maio de 2009.
Disponível em: http://www.luchaindigena.com/wp-content/uploads/2009/06/Cartas-entre-Jos%C3%A9-
Mar%C3%ADa-Arguedas-y-Hugo-Blanco.pdf. Acesso em: 20/02/2017.
34
autores, como Wilfredo Kapsoli (1982), Pedro Gibaja Vargas Prada (1983), Julio Cotler
(2006), Giorgio Alberti (1976), dentre outros, o novo momento que o país vivia foi seguido
por novidades no interior dos grupos que até então haviam tido maior protagonismo na
condução da política do país, dando espaço para a ascensão de outros mais próximos dessas
transformações, cuja consequência foi privilegiar áreas e grupos que não estivessem restritos
aos setores primários da produção.
Assim sendo, e tendo em vista a afirmação de Andriazén (1990), profundas alterações
acometeram a economia nacional, pois o país deixava de ser predominantemente agrário; o
protagonismo, para sermos mais exato, passou a ser evidenciado na economia de tipo urbano.
Entre 1950 e 1963, a participação da agricultura para a conformação da riqueza nacional
baixou de 35% para 20%. Seguindo essa linha, a força de trabalho, entre 1950 e 1970,
diminuiu a porcentagem da população ativa no campo, enquanto a de tipo urbano deu
importantes saltos positivos (COTLER, 2006, p. 232-233).
Como a agricultura perdia espaço, os grupos atrelados a ela diminuíram sua
participação na vida nacional, tanto no nível econômico como no nível político, cedendo, por
conseguinte, espaço para que setores urbanos se fortalecessem. De todo modo, a partir dessa
nova onda de transformações capitalistas, a pressão imediata recaiu em maior medida sobre as
haciendas ditas tradicionais. Uma das principais razões desse processo estava na baixa renda
per capita que essa agricultura rendia ao Peru: em 1960 ela gerava um valor de 23% abaixo
da média de outros 51 países de população semelhante (COTLER, 2006, p. 235). Outro fator
girou em torno da incapacidade dessa agricultura de suprir com alimentos uma população que
não parava de crescer em números, o que levou os governantes a recorrerem à importação de
alimentos. Acerca do assunto, Flores Galindo e Manuel Burga escreveram: “la mayoría de las
haciendas persistían en ser tradicionales, rutinarias, mientras la demanda interna, sobre todo
de productos alimenticios, había aumentado. Inicialmente esta demanda fue cubierta (…)
recorriendo a las importaciones de alimentos” (BURGA; GALINDO, 1997c, p. 210).
Neste quadro de modernização, podemos perceber que esta provocou na sociedade
peruana uma melhoria na qualidade de vida de maneira generalizada. Com mais acesso a
hospitais e medicamentos, a população passou a crescer. Este fato que poderia ser
comemorado, no entanto, provocou um desmoronamento da estrutura gamonal no sul andino,
uma vez que o crescimento populacional gerou também um exército de mão de obra que não
conseguia ser incorporado pelas haciendas tradicionais, que, ao seu passo, não tinham
capacidade para produzir alimentos suficientes para toda essa gente que se agigantava ao seu
redor. As insatisfações aumentaram e a radicalização passou a ser uma opção contra um
35
sistema que, além de autoritário, agora já não conseguia gerar sustento aos camponeses
atrelados a ele.
Diante disso, a solução para muitos camponeses que viviam nessas regiões foi a de
deixar suas famílias e migrar para outros lugares do país onde poderiam ganhar dinheiro. A
partir dos anos 40, a população serrana partiu em direção à costa. População essa que se
colocou em movimento devido, em grande medida, aos seus referidos problemas internos,
como a falta de terra e o aumento demográfico, mas principalmente pelas atrações que o
desenvolvimento urbano-industrial oferecia àquela população, com destaque para o consumo,
a educação e oportunidades de emprego.
No entanto, dada sua magnitude e também ao caráter dependente do
desenvolvimento econômico peruano, essa mesma migração foi responsável, como defendeu
Aníbal Quijano (1978), por criar grandes bolsões de marginalização nas cidades: as
conhecidas “barriadas”. Longe de ser uma solução para os problemas de falta de emprego, a
migração representou uma transferência da pobreza para os setores urbanos, diante de um país
que, resistente à modernização, não conseguia incorporar e transformar essa massa de pessoas
em trabalhadores. O fato, em última instância, é que as ditas transformações foram
insuficientes e incapazes de incorporar toda a população que se deslocava. A título de
exemplo e para nos aproximarmos um pouco mais da dimensão dessas migrações,
observemos estes números trazidos por Julio Cotler e Felipe Portocarrero: “las 17 ciudades
mayores de 20.000 habitantes de la costa aumentaron su población en 240% (...)” (1976, p.
270). E, por fim, tais haciendas, mas principalmente ogamonalismo, tiveram sua legitimidade
questionada após os movimentos campesinos da década de 60, isto é, durante o movimento
liderado por Hugo Blanco. Sem essas transformações, talvez fosse impossível que o
empreendimento de Blanco obtivesse o sucesso que teve.
Se a modernização da economia peruana e os grupos que faziam parte desse processo,
de uma forma ou de outra, colaboraram para fragilizar a manutenção das haciendas
tradicionais da região serrana, uma vez que passaram a perceber os problemas que ela gerava,
os golpes sobre aquela advieram também de seu próprio entorno. Seu auge, certamente, foram
as revoltas camponesas dos anos 60, mas, antes delas, um conjunto de fatores deram sua
contribuição. Para as nossas preocupações, por sua vez, apenas alguns merecem maior
atenção.
Primeiramente podemos começar mencionando aquilo que Guilhermo de la Peña
(2009) chamou de “capitalização da agricultura”, que, aliás, foi bastante característico no vale
de La Convención, onde Hugo Blanco atuou. Na ocasião, a região se tornou uma grande
36
produtora de café, com vínculos com o mercado nacional e internacional, situação esta que
conduziu a um choque de interesses entre camponeses e haciendados. Os primeiros
descobriram, por iniciativa própria, as vantagens do cultivo e da venda do café, que era
realizado nas terras que lhes eram concedidas em troca de trabalho, e passaram a perceber
cada vez mais as desvantagens que a manutenção dos arcaísmos e da concentração fundiária
causavam sobre seus interesses econômicos. O resultado, mais tarde, mediante a liderança de
Hugo Blanco, foi a contestação não apenas do tipo de relação de trabalho pouco capitalista
que ligava camponeses e haciendados, mas a contestação do próprio sistema de hacienda,
uma vez que os camponeses passaram a ocupar as terras, a expulsar os gamonais e a
implementar uma reforma agrária.
Outro fenômeno importante foi a proletarização dos camponeses, dentro de algumas
haciendas, que procuraram se modernizar em resposta aos novos tempos. Isto provocou uma
maior monetarização da região. Vantagens também foram trazidas pelas construções de
estradas, em que se destacam também a chegada da linha de trem, e que possibilitaram a
intensificação de intercâmbios, especialmente comerciais, alcançando a dimensão
internacional (comércio de lã e café). A abertura de linhas férreas e rodoviárias não apenas
trouxe mais dinamicidade econômica à região, como promoveu um encurtamento na distância
entre sul andino com a capital e outros setores urbanos em desenvolvimento. Ao mesmo
tempo em que isso expandiu o horizonte de possibilidades dos camponeses, que poderiam
imaginar uma nova vida construída na cidade, também representou um maior intercâmbio de
experiências de mobilização entre os movimentos sociais e intelectuais da costa e da serra.
Isto fica claro com a adoção do modelo de sindicatos por parte dos camponeses, como
discutiremos mais adiante.
Com um olhar mais aguçado, como já dissemos, é possível considerar tais mudanças e
novidades pontos essenciais para a fragilização do poder dos gamonais, uma vez que as
relações “personalistas” entre este último e os camponeses eram incompatíveis com a
proletarização destes. Por outro lado, a abertura de novas rotas de transporte também
comprometia o gamonalismo, à medida que dava mais mobilidade aos camponeses, fato que
retirou dos gamonais a sua condição de intermediários, fosse para o comércio, fosse para o
diálogo com as instituições estatais ou com os caudilhos da região. Em relação às estradas, se
insistirmos um pouco mais nesta questão, veremos que Flores Galindo foi muito mais preciso
em sua análise do que Wilfredo Kapsoli (1982), que via na Ley de Conscripción vial, do
governo de Leguía (1919-1930), a consolidação do poder do capital estrangeiro e das
oligarquias regionais sobre a população indígena e camponesa do interior do país. Parece que,
37
ao menos nas décadas seguintes, esta equação mudou completamente de figura, sendo
responsável por fragilizar esse poder. De qualquer forma, tais fatores, apesar de fundamentais,
não encerram o assunto, porque falta mencionarmos a sindicalização agrária, isto é, a
reivindicação econômica do trabalhador dentro das normas previstas pela lei, que, em último
caso, foi outro golpe sobre as haciendas tradicionais.
A sindicalização agrária nos importa, primeiramente, porque foi um dos responsáveis
por fornecer aos sujeitos atomizados e que ocupavam a parte inferior do triângulo sem base de
Julio Cotler (1969) as relações horizontais de que eram destituídos; por conseguinte, forneceu
organização e articulação. Em segundo lugar, a sindicalização merece atenção porque foi a
organização de massa preferida de Hugo Blanco. Entre 1958 e 1963, por exemplo, Blanco
fundou dezenas de sindicatos camponeses na região onde atuou. Contudo, em seu trabalho
intelectual e revolucionário, como demonstramos especialmente no último capítulo, foi
possível identificarmos a intenção de ultrapassar os objetivos que animaram a fundação dos
primeiros sindicatos na região, uma vez que derramou sobreas novas organizações um tom
com conteúdo mais revolucionário do que, necessariamente, econômico.
No Peru, o sindicalismo não possui uma história muito antiga, desenvolveu-se durante
as primeiras décadas do século XX, especialmente na região da costa, onde a modernização
estava dando seus primeiros passos, fosse dentro da economia urbano-industrial, fosse na
produção agrícola. O mais interessante, no entanto, é que esse tipo de organização, aos
poucos, penetrou na região serrana. É verdade que estes não chegaram a ter a mesma
importância e o reconhecimento do Estado e dos principais partidos de massa do período,
como tiveram os sindicatos da costa, mas foram suficientes para organizar e dar voz aos
camponeses localizados na outra parte do país.
A presença de sindicatos significava, ainda, algumas outras mudanças que acometiam
o cerne dessa população. Dentre elas, as formas de organização e reivindicação mais próxima
da realidade urbana, que se concretizavam na própria figura do sindicato e em algumas
estratégias de luta, como a greve. Cotler e Portocarrero (1976, p. 270-271), no interior dessa
perspectiva, mencionaram a importância do aprofundamento dos contatos entre a região da
costa e da região serrana, que se davam pelos meios de comunicação de massa e pelas
migrações. Essas, ao mesmo tempo em que colocaram os camponeses mais próximos das
formas de luta que envolvia o proletariado da região da costa, não desligaram os camponeses
de suas haciendas ou de suas comunidades de origem, fazendo da manutenção desse contato o
caminho pelo qual o sindicato foi sendo incorporado pela população campesina da região da
serra. Foi esse tipo de organização, portanto, que passou a se valer os camponeses,
38
principalmente do interior das haciendas (os colonos) para alcançar seus objetivos. Acontece
que isso revelou, a um só tempo, outros pontos importantes: a mudança na forma e no
conteúdo dos movimentos camponeses, pontos estes bastante característicos após 1945, como
vamos demonstrar agora.
Com o passar do tempo, as exigências dos camponeses ganharam elementos mais
modernos, que estavam muito mais próximos daquelas transformações ligadas à capitalização
da economia campesina e do estreitamento dos contatos entre mundo urbano e rural do que
dos elementos próprios do mundo indígena. Passaram, nesse sentido, a lutar pelo
cumprimento da lei, que proibia, dentre as várias coisas, os trabalhos gratuitos e garantia
jornadas de 8 horas, bem como pela manutenção da posse da terra e pelo fim das arcaicas
relações sociais e econômicas. Segundo Eduardo Fioravanti, por exemplo, ao comentar sobre
os sindicatos localizados na região onde tivemos a atuação de Hugo Blanco, “el movimiento
sindical de La Convención y Lares es la respuesta adecuada del campesinado para eliminar
los frenos al desarrollo del sistema capitalista” (FIORAVANTI, 1974, p. 6).
Nesse sentido, é válida a afirmação de que as demandas dos camponeses ganharam
novos contornos, evidenciando o distanciamento e a perda do protagonismo dos elementos
característicos do mundo indígena para que os camponeses se colocassem em movimento.
Essa constatação, por sua vez, não pode ser observada como algo banal, pois demonstra uma
mudança significativa em relação ao movimento camponês de outros tempos, como ressaltou
Pedro Gibaja Vargas Prada (1983) ao comentar os movimentos campesinos entre 1945-1964.
Segundo argumentou, a mobilização e as exigências dos camponeses tinham um caráter mais
reformista, o que contrastava bastante com os anseios e como até então a população
camponesa dessas regiões havia demonstrado seus descontentamentos e exigido mudanças.
Seguindo esta análise, anteriormente a mobilização dos camponeses girava em torno de
revoltas violentas, imersas em ideologias que conversavam diretamente com perspectivas
advindas do interior da sociedade indígena. O conteúdo dessas mobilizações era, portanto,
marcado por perspectivas milenaristas, nativistas e messiânicas, fato que irá perder a força em
meados do século XX. Se observarmos o livro de Wilfredo Kapsoli Los movimientos
campesinos en el Peru 1879-1965 (1982), já mencionado aqui outras vezes, quando este
tratou dos levantes da década de 1920 e dos posteriores a 1945, é possível confirmar essa
descontinuidade pontuada por Pedro Gibaja.
Portanto, os pontos abordados até aqui são relevantes porque falam, direta ou
indiretamente, do mundo que Hugo Blanco ia encontrar ao fazer sua travessia da cidade para
o campo. Neste novo ambiente, ele se deparou com a maioria dos arcaísmos que descrevemos
39
1.5. Hugo Blanco, vida, e contexto histórico do Peru entre 1920 e 1970.
Leguía permaneceu como chefe máximo da nação entre 1919 e 1930. Com o auxílio
de intelectuais, como o do positivista Mariano H. Cornejo, denominou seu governo como um
momento de ruptura por excelência e, adotando o lema Patria Nueva, tentava sinalizar que
novos tempos chegavam ao país. O que deveria ser ultrapassado era o velho Peru,
representado, política e socialmente, pelo domínio do Partido Civil, que desde 1899
mantinha-se no poder, com a exceção do período do governo de Guillermo Billinghurst
(1912-1914).
As acusações de Leguía, bem como as várias críticas que, ao longo do tempo, muitos
intelectuais destinaram ao período do civilismo, eram um ataque geral à maneira como esse
partido se apossou do Estado e organizou a sociedade e os recursos da nação, pois era
evidente, aos olhos dos acusadores, o caráter oligárquico desse empreendimento9. Nesse
sentido, não foram desacertados os estudiosos que nomearam o período em questão de
“República Aristocrática”.
Alberto Flores Galindo (1994), que se consagrou como um especialista neste período,
chamou de oligarquia o grupo social que comandou tal República. Além de uma certa coesão
econômica e cultural, esse grupo ficou conhecido por ser numericamente reduzido, por se
manter distante dos grupos populares e por ter sido destituído de projetos que dessem ao
Estado a capacidade de ser uma instituição em condição de acolher e integrar toda a
população, especialmente daquela que compunha a maior parcela da população peruana: os
camponeses. Para as nossas preocupações, por sua vez, esse momento da história peruana
merece ser destacado porque foi característico dele o poder representado pela posse da terra e
o fortalecimento de vários mecanismos culturais, econômicos e institucionais que promoviam
e mantinham a marginalização e a exploração da população camponesa da região serrana e
que podem ser exemplificados pela violência e os arcaísmos vistos nas seções anteriores.
Dentre eles, podemos destacar o gamonal, que, segundo o mesmo autor, possuía uma relação
orgânica com a oligarquia da costa: “En la relación entre oligarquía y clase subalternas
ocupó um lugar decisivo, como nexo, el gamonalismo”. (BURGA; FLORES GALINDO,
1994, p. 140). Por isso, tendo em vista que Hugo Blanco foi um personagem típico do
momento de desarticulação do modelo oligárquico, é interessante que também saibamos como
o mesmo se constituiu.
9
Podemos entender o conceito de oligarquia segundo a definição de François Bourricaud “Aquí se enlazan dos
nociones, la de um poder absoluto y la de que ese poder está ejercido pou um número reducidísimo de
personas” (1989, p. 39).
41
No entanto, seu governo desgastou-se por diversos fatores ao longo do tempo. Nem
mesmo os elogios vindos de estrangeiros, como aquele proferido pelo embaixador dos
Estados Unidos, que chamou Leguía de “El gigante del Pacífico”, foram suficientes para
mantê-lo a frente do Estado. Mas quem selou de fato sua queda foi a crise do capitalismo
mundial do final dos anos 20, uma vez que todo seu projeto era dependente dos empréstimos
norte-americano e do bom funcionamento do comércio mundial. Isto é, dependia em grande
medida de tudo aquilo que a Crise de 1929 colocou abaixo. Não por acaso, portanto, 1930
significou o fim do oncenio de Leguía.
Apesar de seu colapso final, o período de Leguía proporcionou o surgimento de novas
possibilidades de discursos identitários e de projetos culturais de construção da nação peruana
que antes estavam alijados pela presença da oligarquia no poder. Com a maior articulação de
setores médios e a breve migração de camponeses para a costa, a temática do indígena
começou a ganhar as páginas de livros, revistas e jornais. Justamente por isso, no início do
século, o Peru foi marcado por um dos seus movimentos culturais mais simbólicos: o
indigenismo. De maneira geral, esse movimento, no continente, conheceu seu apogeu entre os
anos de 1920 e 1970 e esteve ligado às perspectivas humanistas, bem como com o contexto
dos países latinos do final do século XIX e início do século XX, a saber, o desenvolvimento
capitalista e a construção da nação. Justamente por isso foi um movimento profundamente
marcado por seu tom ideológico, político e social, promovido especialmente por intelectuais.
De um modo geral, podemos afirmar como fez Henri Favre, “(...) o indigenismo na América
Latina é, em primeiro lugar, uma corrente de opinião que tende a proteger a população
indígena, a defendê-la das injustiças de que é vítima e a fazer valer das qualidades ou
atributos positivos que reconhecem” (2011, p. 3).
Essa noção, carregada de humanismo, acompanhou as diferentes expressões
indigenistas que apareceram nos diferentes países do continente, como a artística, a cultural,
as associações e as políticas oficiais. No entanto, estas não estavam desvinculadas de
problemáticas maiores, como a questão, já referida, da nação e o avanço do capitalismo.
Grosso modo, sobre a primeira, existia em certos setores da sociedade a percepção de que a
independência e, por conseguinte, a constituição das repúblicas latino-americanas, não haviam
conseguido integrar os índios ao longo do século XIX. Estes continuavam marginalizados, as
divisões e as exclusões dos mais variados tipos entre índios e não índios prosseguiam. Isto é, a
nação, de forma plural e verdadeiramente republicana, ainda não era uma realidade. Mas que
poderia vir a ser desde que, na visão dos indigenistas, se valorizasse a figura do índio. Se
levarmos este ponto para o Peru, não fica estranho se notarmos que contra a “República
43
10
“A primera vista la política de Leguía respecto al campesinado indígena tuvo un carácter contradictorio. Por
un lado, se desarrolló una política indigenista que revalorizaba el papel del indígena en nuestra sociedad
rescatándole su credencial ciudadana y su papel protagónico en la economía. Esta política implicó un cierto
44
por outro, tais ações, por refletirem as intenções modernizantes da Patria Nuevae pela
proximidade do governo com os setores mais progressistas da sociedade peruana,
identificavam-se com o desenvolvimento capitalista do país. Nessa perspectiva, tais órgãos
serviriam para livrar os camponeses da servidão, aumentar a produção e elevar a mão de obra
disponível para o capitalismo crescente do país. Este tema foi resumido por Favre, assim:
nivel de enfrentamiento con los planteamientos gamonales tradicionales. Sin bargo, por otro lado la ardorosa
retórica pro indigenista se combinará con una despiadada explotación de la misma población indígena.
Durante el régimen de Leguía se darán la leyes de conscripción vial (obligando a la población a trabajar
gratuitamente en la construcción de carreteras) y la ley de vagabundería (concediendo a los hacendados,
mineros y empresarios en general la posibilidad de usar coactivamente la mano de obra indígena desocupada).
Por otro lado, se tolerará la consolidación de muchas haciendas sobre la base de usurpación de tierras
indígenas y las protestas de la población serán ahogadas en sangre. Igualmente, en el plano tributario deberán
soportar los pobladores indígenas una fuerte carga” (VALDERRAMA, M.; ALFAJEME, A., 1978, p. 91).
45
processos legais. É possível encontrarmos inclusive o pai de Hugo Blanco nesse contexto,
afinal, foi ele um advogado que assessorou juridicamente índios serranos. E, segundo alguns
autores, os relatos trazidos pelos camponeses até seu pai, enquanto Blanco era criança, foram
importantes para engendrar suas ideias e concepções indigenistas.
Essas mudanças podem ser relacionadas, ainda, segundo Carlos Arroyo Cetal (2015), à
proximidade com que aquelas associações colocaram os índios com o mundo urbano, que na
época, início do século XX, era sacudido por um emergente proletariado organizado em torno
do anarco-sindicalismo. De qualquer forma, há outro ponto a se observar. As ações de Leguía,
os canais de comunicação abertos pelas associações e as novas estratégias de protesto dos
indígenas tinham um denominador comum: o Estado. Por conseguinte, esse quadro é
importante porque, mais tarde, quando Hugo Blanco vai para o campo promover a revolução,
ele partiu também da experiência e de instrumentos já utilizados na região e que tinham o
tramite legal como principal caminho para os camponeses expressarem suas demandas.
A literatura foi outro meio e, obviamente, um dos mais importantes pelo qual o
indigenismo se fez visto, lido e se fez influente na América Latina 11. No Peru, não foram
poucos os intelectuais que legaram obras indigenistas, isto é, o país Peru foi um reduto de
autores que, como diria o filósofo Santo Agostinho (2010, p. 171), “com a língua de sua
pena” se colocaram a serviço da defesa dessa população que cobria a maior parte das terras
peruanas. Nesse sentido, na contra mão da marginalização e do papel secundário a que
haviam ficado submetidos os índios, os indigenistas, sobretudo os literatos, procuraram
exaltar as qualidades que cercavam o índio, bem como erigir os valores nacionais a partir da
revalorização de sua cultura e população. Dentro desse movimento literário, seu apogeu
ocorreu entre o final do século XIX, com a publicação de “Aves sem ninho”, de Clorinda
Mato de Turner (pseudônimo), e o final da década de 60, com a morte de José María
Arguedas, autor este com quem Hugo Blanco trocou algumas correspondências em 1969, aqui
já mencionadas.
Como já adiantamos, foi essa mesma literatura responsável também por disseminar na
sociedade diversas concepções a respeito da vida dos camponeses que ocupavam a região
serrana do país, que certamente, ao longo do tempo, ajudaram a promover e legitimar diversas
ações políticas a favor dessa população, uma vez que o grosso de seus escritos serviram para
11
Eis as características dessa literatura, segundo Henri Favre: “O que caracteriza a literatura indigenista é a
intenção social que contém e que se afirma já de maneira muito notável em ‘Aves sem ninho’. Ao tomar
resolutamente o partido dos índios, essa literatura comprometida se entrega à crítica da sociedade que os oprime
e os explora. Pretende ser historicamente verdadeira, sociologicamente exata, moralmente edificante e
politicamente eficaz, com uma preocupação pela eficiência que, em alguns autores prevalece sobre qualquer
outra. Seu gênero de predileção é a novela (...)” (2011, p. 24).
46
denunciar a desconfortável situação dos camponeses dentro das haciendas e fora destas. Neste
caso, chamamos novamente a atenção para Hugo Blanco, pois parece ter comungado, desde
cedo, de um profundo indigenismo, inicialmente alimentado e cultivado pela literatura em
questão. Um estudioso do caso de La Convención, Victor Villanueva, por exemplo, também
considera importante se levar em conta a literatura indigenista para se compreender as
afirmações e os caminhos seguidos pelo intelectual revolucionário Hugo Blanco.
No entanto, temos motivos suficientes para achar que as ações e as ideias de Hugo
Blanco não ficaram presas a esse indigenismo humanista ou de denúncia. Em nossa
concepção, a trajetória intelectual e revolucionária de Blanco foi a expressão desse
indigenismo envolvido e imerso em concepções marxistas. E, no Peru, tanto o marxismo
como a simbiose entre este último e o indigenismo foi um fenômeno significativo, pois
passou a compor uma importante tradição política que foi alimentada, desde o início do século
XX, pelos escritores indigenistas e pelo principal marxista peruano, José Carlos Mariátegui.
Tais ideias, por sua vez, foram mais bem trabalhadas no terceiro capítulo, pois, no momento,
o que devemos deixar expresso é que identificamos no trabalho de Hugo Blanco a
convergência daquelas duas correntes de pensamento. Nesse sentido, se observarmos de perto
o trabalho intelectual e revolucionário de Hugo Blanco, compreenderemos que o ataque
apaixonado de Hugo Blanco aos arcaísmos da serra, ao mesmo tempo em que era o fruto de
seu indigenismo, como aqui foi colocado em outro momento, também era a expressão de seu
marxismo, afinal, este último, principalmente na vertente trotskista12, pressupunha a extinção
de tais arcaísmos, durante o processo revolucionário que conduzia a sociedade ao socialismo.
12
No livro, a Revolução Permanente (1985), de Leon Trotsky, por exemplo, o projeto revolucionário ali
apresentado foi elaborado, em grande medida, para sociedade atrasadas, em que sobreviviam diversas estruturas
arcaicas/feudais. Desta forma, Trotsky pressupunha que, assim que a revolução tomasse sua principal forma,
aspecto este identificado na tomada do poder, uma das primeiras etapas seria a destruição dessas estruturas, que
era, a um só tempo, uma maneira de atender as demandas do campesinato e uma maneira de atrair os
camponeses em favor do proletariado, que se acreditava ser a verdadeira e única classe revolucionária. O
interessante, por sua vez, é que, nesse livro, Trotsky sustentava a ideia de que a implementação do socialismo em
países atrasados era possível, dentre outras coisas, porque combinava o programa mínimo com o programa
máximo, isto é, a tomada do poder significava, simultaneamente, que a sociedade ia ser abalada por diversas
revoluções, que eram: a revolução agrária, a revolução burguesa e a socialista, daí o aspecto permanente presente
47
no título do livro do autor em questão. Com isso, Trotsky, a um só tempo, defendia que não pulava nenhuma
etapa e garantia que todas estas fossem cumpridas (PASQUINO, 2009, p. 1261).
13
Alan Angell resumiu algumas dessas diferenças, mas para nossas preocupações fica o protagonismo que
Mariátegui, sempre muito mais que Haya de la Torre, destinou aos camponeses: “(...) As diferenças entre ele e
Haya de la Torre eram profundas e o debate entre ambos repercutiu muito além do Peru e de sua época. A atitude
de Haya perante o campesinato aproximava-se do ideário marxista ortodoxo, no qual o desdém pela falta de
potencial revolucionário do campesinato vinha acompanhado de conselhos paternalistas para que participassem
do movimento revolucionário. Mariátegui, em compensação, admirava os camponeses por sua capacidade de
sobreviver em condições duríssimas e via em suas organizações as sementes de um futuro socialismo peruano.
Haya de la Torre enfatizava o papel do Estado central na tarefa de criar a nação: Mariátegui preferia começar
desenvolvendo a sociedade civil – somente então seria possível alcançar o poder. Haya de la Torre tinha uma
visão muito mais militar que elitista do poder e legitimava a insurreição destinada a conquistar o poder do Estado
como política fundamental da Apra. Sua visão do partido era disciplinada, autoritária e vertical, e ele próprio se
via como o Lênin peruano. A versão que Mariátegui dava ao partido era muito mais ampla, mais participativa e
pluralista (...)”(ANGELL, 2009, p. 484-485).
48
ações (COTLER; PORTOCARRERO, 1976, pp. 272-276). Podemos acrescentar também que,
na época, isto é, final dos anos 50, existia na esquerda um ar de profundo descontentamento
com o APRA, em virtude da sua postura menos combativa e mais próxima de seus antigos
inimigos. Em 1956, por exemplo, ajudou a eleger um autêntico membro da oligarquia,
Manuel Prado. Esta e outras atitudes fizeram com que muitos simpatizantes e membros
rompessem com o partido.
Portanto, como quisemos demonstrar, até o final do governo de Leguía, em 1930, o
Peru vivenciou uma mudança considerável no contexto social, político, cultural e econômico,
fruto da fragilidade política oligárquica, do advento de novas ideias, partidos, grupos sociais e
o aprofundamento da modernização capitalista. O fim da “Patria Nueva”, como já
anunciamos, esteve intimamente ligado não só com a crise internacional do capitalismo
iniciada em 1929, mas também com o peso do contexto interno, até porque ele foi o
responsável por fornecer à década de 30 um dos personagens mais marcantes: os militares.
Estes derrubaram Leguía e assumiram as rédeas do Estado. Num primeiro momento, o
protagonismo foi do militar Luiz Sánchez Cerro, mas depois de assassinado, em 1932, foi
substituído pelo general Óscar R. Benavides, que ficou no poder entre 1933-1939. Para
Manuel Burga e Galindo e Manuel (1994, p. 19), a presença da farda na política significava a
tentativa desesperada da oligarquia de manter-se no poder, já que era incapaz de monopolizar
o Estado sozinho, como fizera antes.
A presença de Sánchez Cerro e de Benavides neste momento da história peruana deve
ser observada tendo em vista o contexto político e social emergido a partir de todas aquelas
mudanças mencionadas, já que passaram a produzir, de uma forma geral, um clima bastante
conturbado, afinal, greves, paralisações e sublevações de diferentes setores sociais tornaram-
se eventos corriqueiros. Esse clima tenso teve a contribuição do Aprismo. A força que o
partido demonstrou nas eleições de 1931, ao receberem enorme quantidade de votos e
mostrarem considerável poder de organização, infiltração e mobilização das forças populares
foi algo que preocupou a já assustada elite política e social, que viria a se amedrontar ainda
mais com o atentado perpetrado por um militante aprista contra a vida do vencedor daquelas
eleições de 1931, Sanchéz Cerro. O resultado dessa conjuntura foi a intensificação da
repressão sobre os membros do APRA, que foram presos, exilados ou mesmo mortos. Não
obstante, os grupos dirigentes trataram de impedir que o referido partido participasse das
eleições de 1936, assim como estenderam, via Congresso, por mais três anos o mandato de
Óscar R. Benavides. Como afirmou Gonzalo Portocarrrero:
51
1.6. Hugo Blanco e o Peru após a Segunda Guerra Mundial e o início do governo militar
Em 1939, o Peru iniciava outro processo eleitoral, pois os três anos acrescidos ao
mandato de Óscar Benavides pelo congresso chegavam ao fim. O vencedor foi o civil Manoel
Prado. Nesse período, diferente dos anos 30, o governo pôde se desenrolar sobre um clima
político mais tranquilo. Isso foi possível, em grande parte, por fatores internos e externos.
Eclodia na Europa a Segunda Grande Guerra e a aliança que Prado firmou com os Estados
Unidos e, consequentemente, com as democracias ocidentais, exigiu do governo uma postura
menos enérgica, colaborando assim para que a sociedade civil voltasse a se organizar com
52
menos cerceamentos. Esse quadro político de tensões amenizadas foi nutrido também pelos
próprios partidos de esquerda, que, em troca das perseguições, comprometeram-se em não
fomentar as massas. Além disso, o Partido Comunista adotou como queria a III Internacional
a estratégia de formar frentes populares, uma aliança com diferentes grupos sociais a fim de
combater a ameaça nazista que se fazia presente tanto na Europa como na América Latina.
Isso também ficou conhecido como “browderismo”.
Quanto ao APRA, numa mesma direção, tratou de reavaliar e mudar sua postura da
década anterior. Nesse sentido, buscou o apaziguamento e a aproximação com seus inimigos
históricos, o imperialismo dos EUA e até mesmo a oligarquia peruana, bem como passou a
adotar a via parlamentar. Quem resumiu muito bem este período foi Julio Cotler:
Durante os anos quarenta, bem como uma boa parte da década anterior, a vida
econômica do Peru se estabilizou. A exportação voltou a crescer, passados os anos críticos da
crise de 1929, e foi comum também o incentivo Estatal em favor da industrialização com uma
política protecionista e o aumento do fisco sobre as exportações, política adotada
especialmente por Manoel Prado e usada para aquecer a indústria nacional (CONTRERAS;
CUETO, 2007, p. 262). No entanto, esse quadro economicamente positivo foi se esfacelando
após o fim da Segunda Guerra, uma vez que as exportações declinaram, enquanto elevavam-
se as importações e o custo de vida; em 1947, por exemplo, o custo estava 60% maior do que
três anos antes (COTLER, 2006. p. 220). Passada a bonança, quem herdou esses problemas
foi o governo de Bustamante y Rivero, iniciado em 1945, representante dos ventos
democráticos advindos diretamente da luta contra o nazi-fascismo na Europa, que varriam a
América Latina e chegavam ao Peru.
O entusiasmo democrático, no entanto, não foi suficiente para sanar aqueles
problemas, muito menos foi capaz de tornar a elite política e econômica plenamente simpática
53
aos princípios democráticos. Na verdade, esta se mostrava bastante descontente com os novos
rumos da política, que parecia incapaz de melhorar a economia, mas que promovia desordem
social com os sindicatos reconhecidos. Soma-se a isso, a desconfiança que esse grupo
alimentava em relação à política de apaziguamentos que o APRA promovia no Congresso.
Para completar, no início de 1948, este partido, reconhecendo que seria independente de
qualquer política de “boa vizinhança”, impedido pela coalizão dos grupos economicamente
mais poderosos de chegar ao poder, desencadeou um novo levante militar. Depois de serem
derrotados, foram tirados da legalidade. Três semanas depois, por outro lado, quem saiu de
cena foi Bustamante y Riveiro, deposto pelo General Manuel Odría, colocando fim à
experiência democrática peruana.
O governo de Odría (1948-1956), segundo Carlos Contreras e Marcos Cueto (2007),
significou a restauração oligárquica. Isso porque a economia teve uma reorientação, os
incentivos à industrialização e a proteção desta foram substituídos por uma política mais
liberal, portanto, menos protecionista e mais aberta ao capital estrangeiro. Para Julio Cotler,
quem soube aproveitar essa nova reorientação no Peru foi o capital norte-americano, que, até
o final da década de 60, aumentou em 38% seus investimentos no país (COTLER, 2006, p.
226). Contudo, se esse panorama não era favorável ao desenvolvimento de uma burguesia
nacional e autônoma:
15
Aqui se pode ler sobre o nascimento da “Nueva Izquerda”. Alguns autores que abordaram o assunto e tentaram
explicar suas origens, parecem encaixá-la numa espécie de pêndulo que balança entre fatores internos e externos
ao Peru, é o caso de Héctor Bejar (1990) e Jorge Nieto (1990), por exemplo. Com a diferença do foco que, no
final, acabam dando a cada um desses fatores, ambos os autores chamaram a atenção para o panorama
internacional iniciado com o fim da Segunda Guerra Mundial, que provocou questionamentos em Partidos
Comunistas de todo o mundo, em função da dissolução da III Internacional, em 1943, pela Revolução Chinesa,
em 1949, pela morte do líder da União Soviética, Stalin, em 1953, pelas denúncias de Kruschovi no XXI
Congresso da PCUS, em 1956, pela repressão aos movimentos populares conduzidos pelo exército vermelho na
Europa e pela Revolução Cubana, em 1959. No contexto interno, a esquerda pagava um preço muito alto pelos
longos anos de repressão promovidos pelo governo de Odría, que impediram o amadurecimento político do PC e
do APRA. O PC ainda era vítima de sua inexpressividade política, dos desentendimentos internos e da
incapacidade de compreender claramente o que se passava internacionalmente e internamente, tanto com o
movimento comunista, como com a sociedade peruana em si. Do outro lado, o APRA, ao aprofundar sua política
de apaziguamento e aliança com seus inimigos históricos, a oligarquia e os Estados Unidos, representada
especialmente pela coalizão que estabeleceu com o governo de Manoel Prada (Convivência) e depois com
odristas no início dos anos 60, abriram um expressivo vazio na esquerda peruana e um desentendimento digno de
nota no interior do partido. Para muitos militantes, o ambiente interno e externo era um convite para romperem
com ambos os partidos, para assim ressurgirem com novos nomes e propostas. O PC deu origem ao que ficou
conhecido como Exército de Liberación Nacional (ELN), e o APRA deu origem ao APRA Rebelde,
posteriormente conhecido como Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR). Partes dos trotskistas peruanos
deram início ao FIR (Frente de Izquierda Revolucionaria). Foram grupos que marcaram em grande medida os
anos 60, com destaque para a proposta de luta armada que tinham em seus programas, especialmente porque a
Revolução Cubana parecia o norte a ser seguido para a Revolução.
56
A Nueva Izquerda (cf. nota anterior) é relevante para o nosso trabalho por diversos
fatores. Primeiro porque a ação de Hugo Blanco e os partidos a que ele estava ligado ou
ajudou a fundar são classificados dentro dos aspectos que caracterizaram essa esquerda, cujos
mais relevantes se referem aos métodos de luta e algumas ideias políticas. No entanto, temos
motivos suficientes para perceber em Hugo Blanco fatores que, ao mesmo tempo em que o
aproximam das principais características dessa Nueva Izquierda, o colocavam distante dela.
Nesse sentido, se a Revolução Cubana o influenciou de alguma forma, defendemos que isso
deva ser relativizado, o que já parece não poder ser feito na mesma proporção com as
organizações contemporâneas a sua. O Ejército de Liberación Nacional (ELN), nascido do
racha do Partido Comunista, e o Movimento de Izquierda Revolucionaria (MIR), nascido do
cisma do APRA, considerando diversos autores, especialmente o recente livro do holandês
Jan Lust (2013), que traz entrevistas e trechos de documentos valiosos sobre cada uma dessas
organizações, demonstram o peso que o exemplo irradiado pela ilha caribenha teve sobre suas
iniciativas. O fato de vários de seus membros terem ido treinar em Cuba é algo que temos que
levar em consideração. Porém, se medindo pelas táticas e estratégias da Revolução Cubana,
podemos distanciar Blanco dessas organizações, elas se aproximavam pela paisagem de ação,
isto é, o campo, e não mais a cidade e também por comungarem oposição em relação às elites
políticas. As razões para os mencionados distanciamentos, por sua vez, foram expostos nos
próximos dois capítulos.
Em 1956, após eleições, Odría deixava o poder. Os problemas econômicos, políticos e
sociais estavam muito além do remédio que o Estado, de característica oligárquica, estava
munido e disposto a dar. A economia, demasiadamente aberta e dependente de um mercado
internacional, minguou quando este deixou de consumir os produtos nacionais reduzindo os
recursos do governo e, consequentemente, seus investimentos, marcados pelos gastos em
infraestrutura, saúde e educação, cada vez mais urgentes em função do novo ambiente urbano
(migração serra-costa). Politicamente, a oposição emergia dentro de seus próprios apoiadores,
que desaprovava tais gastos, além de uma classe média mais moderna, cansada do clima
repressivo – Ley de Seguridade Interior – e já em condições de oferecer seus próprios projetos
políticos para o país, conforme aponta Gabriela Pellegrino Soares (2000). Tudo isso fragilizou
o governo, que acabou convocando as eleições, mas que foi vencida por Manoel Prado,
representante do Movimento Democrático Peruano.
É interessante que não deixemos de mencionar que no pleito de 1956, Prado concorreu
com novas opções políticas: a Ação Popular (AP), a Democracia Cristã (DC) e o Movimento
57
Essas novas opções políticas, no entanto, não são o foco do nosso trabalho. Mas elas
nos servem para marcar, por um lado, como em meados do século XX, os tradicionais
partidos de esquerda, o APRA e o PC, estavam perdendo espaços para outras opções. Sem
contar, é claro, o nítido rechaço que os fundadores desses mesmos novos partidos estavam
nutrindo pelo APRA, pois desaprovavam a nova política deste, que havia ficado mais próxima
da elite econômica e política do país, isto é, os seus antigos inimigos.
Por outro lado, servem para mostrar como o descontentamento avançou sobre a classe
média, que vinha engrossando suas fileiras, desde Leguía, em função da ampliação do Estado,
da educação e pelo desenvolvimento capitalista do país. Mas é interessante notar que, além da
percepção de que o Peru precisava encontrar novos caminhos para os novos tempos a que
estavam sujeitos, esses partidos pareciam recuperar muitos elementos da tradição política
peruana nascida principalmente com Mariátegui e Haya de la Torre, o que nos faz achar
possível, apesar das óbvias diferenças que cada um fez das ideias desses dois, colocar tais
partidos em paralelo com algumas perspectivas da Nueva Izquierda. Estas, vejamos, não
estavam distantes da maioria destes elementos que apareceram no jornal “Libertad”, do
Movimento Social Progressista (MSP), onde se lê: “El diario se define como antiimperialista,
antiyanqui, antioligárquico, hostil a la convivencia, al APRA y al régimen de Prado”
(BOURRICAUD, 1989, p. 234). No partido Acción Popular, embora menos enfático, as
referências ao programa inicial de Haya de la Torre evidenciam de uma outra forma a mesma
recuperação (BOURRICAUD, 1989, p. 257).
Simultaneamente ao início dos questionamentos no interior da esquerda internacional
e nacional, que ajudaram a produzir a Nueva Izquierda e outros tantos partidos, acontecia a
administração de Manoel Prado, sucessor de Odría. A ruptura maior com o regime anterior,
certamente, foi a abertura política, pois economicamente a doutrina continuava de cunho
liberal. Este último ponto não surpreende se consideramos a origem de Prado: oligárquica.
58
Aliás, na época, circulava a ideia de que a economia peruana era controlada por um clã
composto por 30 famílias, sendo uma delas a de Prado (LUST, 2013, p. 58). De todo modo,
apesar dos muitos esforços, como a troca do ministro da fazenda, empréstimos adquiridos no
exterior e o fim da sustentação artificial da moeda (PEASE, 1995, p. 225), Prado não
conseguiu melhorar a economia.
Não obstante, a pressão sobre o governo aumentou em outras duas direções. Primeiro,
porque as eleições de 1962, por diversos motivos internos, sagrariam Haya de la Torre chefe
máximo na nação. Segundo, porque, nestes anos, os camponeses, a partir da organização de
Hugo Blanco, davam mostras do quão convulsionado estava o campo e de como não era mais
possível ignorar ou se aliar às características arcaicas da região serrana. Flores Galindo
relatou: “Ese año los Andes peruanos estaban convulsionados por trescientos mil campesinos
reclamando tierras, escuela y pago salarial” (2005, p. 321). E a quem de perto observava
eram os militares, a quem não agradavanenhum pouco esse contexto. Eles, por fim,
interromperam o governo de Prado através de um golpe. Foram os militares responsáveis
também pela repressão ao movimento camponês e a prisão de Hugo Blanco, em 1963. Na
prisão, este passou a se expressar mais intelectualmente. É a partir desse momento que
abundam seus escritos.
Os militares puseram fim às ações de Hugo Blanco após este ter dado início aquilo que
muitos autores chamaram de Revolução Agrária. Aníbal Quijano (1979), Victor Villanueva
(1967) e Eduardo Fioravanti (1974), entre outros, por exemplo, seguiam esta linha, afirmaram
que os camponeses liderados por Blanco haviam cumprido tal revolução, pois acreditavam
que a estrutura pré-moderna da região havia sido atacada e desarticulada pelos camponeses.
Este processo, por sua vez, teve início em 1958, quando Hugo Blanco se mudou para a cidade
de Cuzco, e, logo depois, para o vale de La Convención, onde entrou em contato com a
população campesina da região. Blanco começou seus trabalhos nas terras do colono Andrés
Gonzales, um camponês que trabalhava nas terras do gamonal mais conhecido da zona de
Chupimayo, área esta que integrava o referido vale. O gamonal em questão era Alfredo
Romainville.
Em 1958, Hugo Blanco chegou ao vale de La Convención, no momento em que os
seus 15 sindicatos organizavam, no mês de setembro de 1958, La Federación Provincial de
Campesinos de La Convención y Lares (FPCLCyL). Na época, tais sindicatos e a Federación
em questão eram vinculadas à Federación de Trabalhadores de Cuzco (FTC), isto é, com laços
com o Partido Comunista Peruano. Um mês depois, em dezembro, elegeu-se a primeira junta
que ia dirigir a FPCLCyL. No geral, os camponeses queriam o fim das relações arcaicas de
59
16
No auge do movimento Hugo Blanco decretou a reforma agrária no vale em questão. Esta reforma foi expressa
em cinco ponto: primeiro, “la Asamblea General de cada Sindicato debe nombrar una “Comisión de Reforma
Agrária” surgida de su seno” (VILLANUEVA, 1967, p. 127). Segundo, “los colonos (arrendires) y sub-colonos
(alegados) se convierten automáticamente en propietarios de las tierras que trabajan” (p. 127). Terceiro, “las
tierras no cultivadas se distribuyen en parcelas, comenzando fundamentalmente por los campesinos más pobres”
(p. 127). Quarto, “las tierras en las cuales se han hecho plantaciones para el hacendado, quedan en poder de éste
si es que no ha tenido un comportamiento caracterizado por atropello humano. De lo contrario, esos cultivos y si
es posible la casa-hacienda con las instalaciones que hayan pasado a poder del Sindicato en forma coletiva, se
dedican a escuela, botiquín, canalizaciones, etc. Quinto, Las autoridades al servicio de los gamonales no podrían
intervenir porque los únicos que conocen bien la realidad agraria son los propios campesinos” (p. 128).
60
e 1962. No ano seguinte, Hugo Blanco já estava preso pelas forças militares que haviam
chegado ao poder no ano anterior.
A duração dos militares no comando do Estado foi curta, apenas de um ano, em 1963
já aconteciam novas eleições. O golpe de 1962 foi bem diferente daqueles ocorridos durante a
República, pois não foi de caráter “caudilhesco”, mas institucional. O que se percebe é uma
mudança de perspectiva dos militares, uma vez que, mais do que uma questão de lei e ordem,
as Forças Armadas passaram a entender a necessidade de novos projetos políticos para o país,
projetos que fossem, fundamentalmente, modernizantes, para superar as perspectivas
oligárquicas e superar as estruturas arcaicas que acometiam os camponeses da Serra, assim
como tratar dos problemas sociais trazidos pelos migrantes.
Tais ideias foram fomentadas e discutidas ao longo dos anos 50, especialmente no
CEAM (Centro de Altos Estudos Militares) e no SI (Serviço de inteligência do Exército), mas
que não estiveram livres da influência dos Estados Unidos e do clima da Guerra Fria. Nesse
sentido, dentro do contexto da época e na posição que o Peru ocupava no bloco ocidental, as
ações e reflexões dos militares se enquadram na luta contra o comunismo, que foi pensado
para ser feito no interior do próprio território. Ao final, as forças armadas reconheceram a
necessidade de reformas que atacassem as fragilidades econômicas e sociais da população,
pois, em última instância, eram elasque formavam um ambiente fértil para a subversão da
população em direção ao comunismo.
Não menos importante, os militares reconheceram, ao mesmo tempo, a incapacidade
do governo civil de empreender tais reformas, porque, uma vez presos em querelas
partidárias, que travavam projetos fundamentais, como a reforma agrária, assim como presos
no conceito de luta de classes e na inércia do discurso democrático, esqueciam-se do interesse
maior: a nação. Este foi outro motivo para que em 1968 os militares resolvessem pôr fim à
presidência de mais um civil: o governo de Fernando Belaúde Terry, eleito em 1963, e
fundador da AP, Acción Popular. Tendo o caminho livre, os militares trataram de empreender
seus objetivos. O primeiro deles foi realizar uma ampla reforma agrária, em 1969. É
interessante recuperarmos que concomitante a isso, Hugo Blanco escrevia um dos seus mais
importantes livros, Terra ou Morte, que trata justamente da luta pela terra que ele e os
camponeses haviam realizado anos antes no vale de La Convencón. Sobre a reforma agrária
dos militares, assim escreveu Pedro Gibaja Vargas Prada: “(...) una reforma agraria que si
bien no solucionó el problema agrario peruano, sí logró una radical transformación de los
patrones de tenencia y propiedad de la tierra” (1983, p. 12).
61
Para encerrarmos, embora consideramos importante os fatores internos para que Hugo
Blanco tenha escrito o livro referido, é relevante não perdermos de vista o contexto
internacional, especialmente o que Cuba passou a significar para as esquerdas latino-
americanas a partir do final dos anos 60, especialmente para os intelectuais que atuavam
nessas fileiras. Até porque o que não falta no livro de Blanco são críticas ao modelo cubano
de revolução. Quem chamou a atenção para isso foi Jorge Castañeda (1994, p. 159), que
destacou a ruptura do consenso entre os intelectuais, que, de uma forma geral, em todos os
países abaixo dos Estados Unidos, apoiavam ou simpatizavam com a Revolução Cubana. Foi
a partir de 1968 que o casamento entre os intelectuais espalhados pelo continente e a ilha
caribenha passou a enfrentar maiores problemas. Isso foi apoiado pela evidente derrota de
todos os movimentos revolucionários armados que eclodiram nos diversos países da América
do Sul e Central e pelo aprofundamento das relações entre Cuba e a União Soviética (URSS),
evidenciada pelo apoio que Fidel Castro deu à invasão da Tchecoslováquia. De qualquer
maneira, como deixaremos claro nos próximos capítulos, o desacordo entre Hugo Blanco e a
Revolução Cubana são anteriores a 1968, demonstrando assim que suas críticas não
esperaram a constatação da derrota das guerrilhas que haviam surgido no continente ou a
aproximação de Cuba com a URSSS.
Portanto, nesta parte do capítulo quisemos descrever os principais aspectos
econômicos, sociais, políticos e culturais do Peru, do início do século até o golpe militar de
1968. A atenção que destinamos a tais elementos é uma tentativa de recuperamos uma parte
do contexto vivido por Hugo Blanco, o qual pensamos ser importante para explicar parte de
seu projeto de revolução para o Peru.
62
No início da década de 1970, Hugo Blanco publicou seu mais importante livro: Terra
ou Morte. Embora apresente muitos aspectos que o qualifiquem como um livro de memória, a
julgar pelos esforços do autor em recordar, registrar e narrar o movimento camponês de La
Convención, seu valor, dentro das perspectivas da atual pesquisa, deve ser medido pelas
intenções políticas do autor que perpassam a obra. Contudo, além deste texto há outro que foi
escrito anteriormente, em 1964, enquanto Blanco esteve preso, e intitulado: El camino de
nuestra revolución, que foi direcionado especialmente aos seus companheiros que davam
continuidade ao movimento camponês na referida região.
Apesar da distância temporal dos textos e dos contextos de produção e publicação, os
temas e os conceitos mobilizados por eles nos servem como uma importante porta de entrada
para identificarmos onde estava localizado Hugo Blanco no interior da esquerda latino-
americana e com quais correntes de pensamento que a compunham Blanco dialogou, isto é, se
aproximou, se distanciou, concordou ou refutou. Este percurso permitirá recuperar,
compreender e problematizara trajetória deste intelectual revolucionário.
Após o auge alcançado pelo movimento camponês na região de La Convención,
Blanco foi preso no início de 1963. Em termos gerais, o que nos chamou bastante atenção foi
sua defesa e identificação com o trotskismo, tanto em nível teórico-metodológico, como nos
termos de organização política. Aliás, foi em função da atuação de Blanco que, no início dos
anos 60, o trotskismo peruano engendrou seu fortalecimento, alcançando patamares que o
tiraram da marginalidade política. Sobre esta identificação e visibilidade do trotskismo,
Blanco insistiu em sustentá-la durante todo o período ao qual se dedica o presente trabalho.
Porém, foi justamente a observação de sua condição enquanto intelectual que
demonstrou que sua atuação dentro da esquerda peruana não estava desvinculada de
polêmicas que envolviam, de uma forma geral, a esquerda latino-americana. Aspecto este que
intencionamos demonstrar ao longo deste capítulo.
63
Nesse sentido, é interessante observar que Blanco não economizou espaço em seus
trabalhos para defender o trotskismo perante outros conceitos do marxismo revolucionário
demonstrando muitas vezes que, não necessariamente, o maior inimigo para o sucesso das
propostas de seu grupo político estivesse localizado em torno dos grupos identificados e
organizados à direita, mas na verdade no interior da própria esquerda. Esta perspectiva, por
exemplo, foi facilmente percebida em seus principais escritos, pois várias vezes o
encontramos definindo quem foram os principais desarticuladores do movimento camponês
que ele liderou: os stalinistas e os putchistas (também chamados de oportunistas). Em outras
palavras, se referia aos membros do Partido Comunista Peruano e àqueles que, naquele
momento, entusiasmados com a Revolução Cubana e com as novidades táticas e estratégicas
trazidas pela mesma, se guiaram pelo modelo desta última.
Portanto, não foi por acaso que em 1964 Blanco escreveu aos seus companheiros
tecendo elogios à respeito dos esforços contra o putchismo que alguns membros haviam
injetado à frente revolucionária (FIR),criada pelos trotskistas: “Es así como aún dentro de sus
limitaciones han dado una batalla heroica contra el putchismo y su profundo significado
(…)” (BLANCO, 1965, p. 6). Mais à frente, sobre o principal desafio e êxito na condução das
massas campesinas, afirmou queisto se devia àsuperação do seguinte problema: “el interno es
la lucha por la direción del movimiento campesino entre nosotros y los oportunistas y los
stalinistas” (1965, p. 9).
Em resumo, em uma primeira análise, tais afirmações confirmam que Hugo Blanco foi
um intelectual revolucionário que esteve ligado aos principais temas de discussão da esquerda
do continente americano, ao mesmo tempo em que confirma a multiplicidade de vertentes
políticas e ideológicas que a compunham, bem como a relação tensa entre elas. Como ficou
expressa por Allan Angel:
Não existia, nem existe ainda, uma esquerda unida. As relações entre os
diversos grupos, partidos e movimentos que afirmavam ser a verdadeira
esquerda foram frequentemente hostis, quando não violentas. Às vezes, a
competição foi mais intensa entre eles do que com os partidos de direita. Se
a história da esquerda é em parte uma história de uma luta heroica e paciente
contra terríveis obstáculos, também é em parte uma história de sectarismo,
de rivalidades pessoais e de mesquinharia (ANGELL, 2009, p. 471).
políticas e ideológicas provocadas tanto pela Revolução Russa, de 1917, quanto pela
Revolução Cubana, de 1959. Afinal, nosso intelectual esteve localizado justamente em um
contexto em que ocorreu o encontro dessas duas teorias revolucionárias.
movimento que, embora houvesse realizado a revolução no interior das fronteiras nacionais,
guardava em seu seio o gérmen da revolução internacionalista preconizado por Karl Marx.
Nesse sentido, desde o início, os bolcheviques reconheciam a necessidade de exportar
a revolução para além das fronteiras russas, exportação esta que encontrou expressão na
fundação, em 1919, da Komintern, isto é, a III Internacional Comunista. A criação desse
organismo resolveu, inclusive, uma contradição importante, pois, como afirmou Hannah
Arendt, “quando um movimento, internacional em sua organização, universal em seu alcance
ideológico e global em sua aspiração política, toma o poder num único país, coloca-se
obviamente em situação contraditória” (ARENDT, 2012, p. 439).
Desta feita, a Komintern procurou estabelecer células comunistas nas mais variadas
partes do mundo sob seu controle. Por um lado, como sublinhou Betancourt (1995, p. 72),
isso significou uma ligação orgânica entre a América Latina e o movimento que se
autodenominava internacional, ao mesmo tempo em que redundou no início de um processo
chamado de “bolchevização” (PONS, 2014), o que significou, em um primeiro momento, que
o controle se daria pela transferência do modelo de revolução experimentado por Lênin às
outras partes do mundo, isto é, a transferência do marxismo-leninismo17.
Contudo, convém ressaltar que o cerceamento que a Internacional promoveu sobre os
partidos comunistas espalhados pelo mundo, até 1927, não foi tão profundo como haveria de
ser no período posterior a esta data, haja vista que foi durante a década de 1920, por exemplo,
que se deu o surgimento de ricas adaptações do marxismo à América Latina, representadas
por autores como José Carlos Mariátegui, já mencionado no capítulo anterior. Além disso,
apesar das intenções coercitivas do Komintern, seus primeiros Congressos pareciam menos
inflexíveis e, por vezes, mais próximos da realidade presente no subcontinente americano
(BETANCOURT, 1995, p. 70-71). Alberto Flores Galindo, por exemplo, defendeu que foram
as resoluções do Congresso de 1921 que orquestraram boa parte do caminho percorrido por
Mariátegui para conceber seu marxismo heterodoxo e seu partido socialista, apesar de
reconhecer que esta ligação tenha sido apenas informal, pois a vinculação direta entre o
marxismo peruano com o Komintern apenas se daria após 1927, durante o predomínio do
“stalinismo” (FLORES GALINDO, 1982, p. 75).
1717
Como observou Domenio Settembrini, “O Leninismo é a interpretação teórico-prática do marxismo, em
clave revolucionária, elaborada por Lenin num e para um país atrasado industrialmente como a Rússia, onde os
camponeses representavam a enorme maioria da população” (2010, p. 679). Nesse sentido, foi um conceito que,
embora nascido para atender as particularidades da Rússia, tornou-se modelo sobre a tomada e a gestão do poder,
identificados com a insurreição armada, a ditadura do proletariado e o partido de vanguarda.
66
Se o Komintern durante os primeiros anos da década de 1920 não apareceu como uma
instituição capaz de impedir que na América Latina surgissem expressões autônomas quanto à
reflexão e à prática do marxismo, a mesma instituição, por outro lado, foi fundamental para
consagrar e difundir, através de seus partidos, a bandeira do maxismo-leninismo, principal
recurso teórico e prático para a concretização da revolução socialista. Eis, portanto, uma das
tradições mais importantes legadas pela Revolução Russa: o conceito marxista-leninista de
revolução. Este conceito nos chama a atenção, uma vez que a sua utilização se dá de maneira
recorrente no interior das concepções sobre revolução elaboradas por Hugo Blanco em seus
livros, com especial destaque à necessidade da violência revolucionária, mas sobretudo em
relação ao partido de vanguarda.
Esta concepção de partido foi lançada por Vladimir Lenin, no início do século XX,
através do livro intitulado Que Fazer (1978). Nesta obra, em reflexão sobre os instrumentos
de poder e organização passíveis de aplicação no contexto revolucionário, o autor defendeu a
existência de um organismo político integrado por revolucionários profissionais que fossem,
igualmente, condutores das massas e garantidores dos caminhos que os levariam à vitória do
socialismo. Acerca do assunto, afirmou Settembrini: “Partido que será o depositário da
verdade, como intérprete da essência mais real da classe operária, a encarnação atual do
socialismo, a única garantia de seu advento futuro” (2010, p. 681).
O conceito de partido de vanguarda apareceu constantemente desde os primeiros
textos de Hugo Blanco e, no livro Terra ou Morte, a falta de um partido de vanguarda foi
apresentado como a principal deficiência da revolução peruana, como é possível identificar
nesta passagem: “mas também vejo esta atividade, como uma mostra do funesto que é o
descaso pela construção do partido revolucionário, de tipo leninista” (BLANCO, 1971, p. 29).
Contudo, consideramos que o marxismo-leninismo que apareceu reivindicado na obra
de Hugo Blanco não esteve diretamente vinculado às ações do Komintern ou pelo partido
comunista peruano, pois o primeiro foi extinto em 1943 e o segundo, na época da formação e
atuação política de Hugo Blanco, embora ainda se colocasse como o autêntico representante
do marxismo-leninismo, já não o praticava seguindo seus preceitos iniciais, uma vez que as
concepções stalinistas passaram a predominar em tais organizações, especialmente após 1927.
Nesse sentido, se Hugo Blanco se valeu de princípios leninistas, ele o fez, certamente,
de duas maneiras: indo direto às fontes ou, principalmente, acionando-os pela ponte
construída pelo movimento trotskista até o leninismo. Este segundo ponto, por exemplo, fica
claro se observarmos o Programa de Transição, de 1938, redigido por Trotsky, e que tinha
como um de seus alicerces o marxismo revolucionário elaborado por Lênin (SAGRA, 2005,
67
p. 140). Além disso, ao longo de sua trajetória política e intelectual, Leon Trotsky se
aproximou em diversos momentos do tipo de partido inspirado por Lenin (PASQUINO, 2010,
p.1266). Por conta disso, não surpreende que em um trecho do livro Terra ou Morte, ao se
referir direta ou indiretamente aos diversos modelos de revolução que haviam surgido desde a
Revolução Russa, Blanco afirmou, sem deixar escapar o tom positivo, que: “[lá] está o
caminho de Lênin e Trotski” (BLANCO, 1971, p. 30), o que demonstra sintonia e
conhecimento das duas leituras do marxismo revolucionário. Por fim, o posicionamento em
paralelo destes dois líderes revolucionários mostra, a um só tempo, que o autor em questão
percebia muito mais semelhanças do que diferenças entre o trotskismo e o leninismo.
Assim, a defesa que Hugo Blanco fez do partido de vanguarda estava assentada em
grande medida no conhecimento e na concordância que ele cultivara com as concepções do
leninismo ou com o trotskismo. Mas não unicamente isso. Temos a impressão de que tal
defesa foi realizada também em razão da sua condição de homem de ação. Pois, como toda a
trajetória do movimento revolucionário dos camponeses no vale de La Convención foi
marcada pelo conflito e pela tensão entre diferentes correntes da esquerda, Blanco foi
testemunha dos esforços de seus pares e de seus inimigos para preservar e cooptaras
organizações de massa (sindicatos e federações campesinas) que haviam nascido no interior
dos latifúndios localizados no referido vale. Aliás, essa política de cooptação era uma das
bases que sustentavam a ideia do partido de vanguarda. Na ocasião, a disputa foi bastante
polarizada entre os trotskistas e o Partido Comunista, como é possível observar nesta
afirmação de Fioravanti (1974, p. 205):
(...) existían en los valles dos zonas claramente delimitadas: los partidarios
de Blanco controlaban las propiedades de Romainville (Huadquiña,
Chaupimayo y Santa Rosa) y el valle de Lares, así como la dirección de la
Federación Provincial de Campesinos de La Convención y Lares, mientras
que los partidos del Partido Comunista dominaban los distritos de Santa
Ana, Maranura, Huayopata y Echarate).
A disputa foi de dada importância que “el PCP [Partido Comunista peruano] envió a
la Convención y Lares a más de treinta militantes cuzqueños a apagar el ‘fuego’ propagado
por Blanco” (FIORAVANTI, 1974, p. 205). Este “incêndio”, na visão dos comunistas, dizia
respeito àlinhaconferida pelas propostas mais radicais que Hugo Blanco e seus pares
deramaos sindicatos da regiãoe que pregavamo fim das relações arcaicas de trabalho ea
invasão de terras e o fim do latifúndio. Tais ações se opunham àquelas incentivadas pelo
Partido Comunista, naquele momento.
68
Para Silvio Pons (2014, p. 110), em 1923, na Alemanha, teria sido a última vez que os
líderes da União Soviética haviam arriscado a segurança do Estado revolucionário em favor
da revolução mundial, política esta que só viria a se aprofundar, sobretudo, durante o período
identificado com o stalinismo, isto é, de 1927 até 1953. Nessa linha adotada por Stalin, o
sentido dado à III Internacional e ao papel dos partidos comunistas, que desde a vitória da
Revolução Russa em 1917 havia se alastrado pelo mundo, foram inclinados a se combinar
com os interesses nacionais da União Soviética. Isso, como sublinhou Pons, não significou
que o Komintern havia renunciado à revolução mundial, mas estava claro que ela foi
ressignificada dentro da concepção do “socialismo em um só país”.
Porém, ainda que esses novos ventos não custassem e nem diminuíssem os
entusiasmos e a legitimidade que muitos grupos sociais continuariam a cultivar pela
Revolução de Outubro (PONS, 2014, p. 11), no plano prático e teórico, a história foi outra,
pois o marxismo revolucionário que o Komintern fez ecoar desde a União Soviética até aos
partidos comunistas espalhados pelo mundo provocou consequências profundas. Em último
caso, coube aos partidos comunistas nacionais uma intensa burocratização vinda de cima para
baixo, bem como a imposição de estratégias e interpretações ortodoxas do marxismo como a
revolução por etapas e o “socialismo em um só país”. Conforme Pons:
sendo este de importante valor para o nosso trabalho: o trotskismo. O trotskismo foi um termo
que surgiu na União Soviética para caracterizar, dentro do Partido Comunista, a ala de
membros mobilizados em torno de Leon Trotsky, os quais se opunham aos caminhos que
alguns dirigentes do Partido Comunista estavam dando à revolução de 1917. Mas como tal
oposição foi muito mais oscilante do que linear e decisiva, o resultado foi o afastamento e
posterior expulsão de Trotsky, tanto do partido como da União Soviética (CAMPOS, 1985, p.
25-32).
Em 1927 a oposição que ele encabeçara havia sido derrotada e em 1929 foi obrigado a
deixar a Rússia. De qualquer maneira, outro resultado dessa oposição que precisa ser
mencionado foi que os trotskistas passaram a conhecer uma crítica e perseguições que a
União Soviética fez questão de perpetuar e de espalhar para todos os partidos comunistas, o
que produziu e legou um longevo desacordo entre trotskistas e comunistas para além da
Rússia. Hugo Blanco foi testemunha deste conflito dentro da esquerda, pois responsabilizou a
perseguição que sofreu do Partido Comunista Peruano devido à sua condição trotskista. Em
1956, por exemplo, logo após retornar da Argentina e dois anos antes de se juntar aos
camponeses, organizou a formação de um sindicado de vendedores de jornais com o objetivo
de adentrar na Federación de Trabajadores de Cuzco (FTC), que era controlada pelos
comunistas, e da qual foi expulso. Sobre isso, Blanco afirmou que: “(...) yo era trotskista,
entonces me expulsaron de la Federación, no me admitían y bueno en La Convención
comenzaron a decir que yo era: “agente del imperialismo (...)”(BLANCO, 2011, p. 244).
O ponto envolvendo as tensões entre stalinismo e trotskismo que culminou com a
expulsão de Trotsky nos é fundamental, porque foi durante o período de exílio que Trotsky
mobilizou toda sua competência teórica e prática, contribuindo, a um só tempo, para
denunciar, pelo menos na sua visão, os descaminhos que Stalin destinava ao Estado
Revolucionário, bem como para recolocar os partidos comunistas filiados à III Internacional
de volta ao caminho que os levaria em direção à revolução mundial (CAMPOS, 1985, p. 11).
Contudo, a degeneração burocrática que havia atingido o Partido Comunista Soviético, a
preponderância dos interesses nacionais em detrimento da revolução mundial e, ainda, a
adoção de estratégias equivocadas e executadas pelo Komintern– como aquelas que
contribuíram para a derrota dos revolucionários e a ascensão dos nazistas ao poder na década
de 1930, na Alemanha (COGGIOLA, 1984, pp. 12-13) –, foram alguns dos fatores que
colaboraram para que Trotsky achasse que a III Internacional havia renunciado aos seus
objetivos originais. Conforme José Roberto Campos:
71
18
Como defendeu Gianfranco Pasquino, a [...] teoria da revolução permanente, a qual [...]constitui
provavelmente a contribuição mais original do pensamento marxista depois de Marx e Engels”(PASQUINO,
2010, p 1261).
72
e prática revolucionária, especialmente a partir da década de 1950, pois é neste ponto que
localizamos Hugo Blanco.
Na década de 50, o trotskismo não passava pelos seus melhores momentos. Nas
palavras de Michael Löwy (2005, p. 201), o período em questão significou o mesmo que uma
“travessia do deserto”, tamanhos foram os desafios. A morte de Trotsky, assassinado a mando
de Stalin, no México, em 1940, e o início da Segunda Guerra Mundial não contribuíram para
o fortalecimento e o amadurecimento do trotskismo. Na verdade, tais fatores colaboraram
para que as organizações filiadas à IV Internacional aprofundassem suas fragilidades. Como
sublinhou José Roberto Campos: “logo veio a II Guerra Mundial que, ao lado do assassinato
de Trotski [...] contribuiu para dispersar a nova organização – pequena, isolada da classe
operária, frágil teórica e praticamente” (1985, p. 12).
Diante disso, não demorou para que a jovem IV Internacional sofresse duros golpes,
sendo o mais relevante a cisão de 1953, momento que inaugurou duas grandes correntes: o
Secretariado Internacional da IV Internacional (SI), dirigido pelo Belga Ernest Mandel, e o
Comitê Internacional da IV Internacional (CI), dirigido pelo francês Pierre Lambert.
Lembrando que durante todo o período que tivemos o movimento de camponeses em La
Convención, Hugo Blanco cultivou de alguma maneira relações mais próximas com o Comitê
Internacional. Este elo, por sua vez, era realizado por meio de uma seção localizada na
Argentina, o SLATO (Secretariado Latinoamericano del Trotskismo Ortodoxo), liderado pelo
trotskista Nahuel Moreno. A divisão da IV Internacional, por sua vez, não foi algo que
permaneceu solidificado no tempo, afinal, em 1963, vários grupos identificados com o
Comitê Internacional se reincorporaram ao Secretariado Unificado da IV Internacional (SU).
Sendo um desses grupos a seção argentina liderada por Nahuel Moreno19.
Assim, não bastasse a fragilidade da IV Internacional após a II Guerra Mundial, a
cisão ocorreu também em função da recusa, por parte de alguns partidos trotskistas, de
aceitarem as diretrizes organizadas por um dos delegados da Internacional, o grego Michel
Pablo, que foram apresentadas no III Congresso Mundial, em Paris (1952). Pablo, analisando
o contexto pós-guerra, ofereceu o caminho do “entrismo” para os partidos trotskistas, isto é,
afirmava que a opção que restava aos trotskistas, diante da mais nova guerra mundial que se
19
Esta unificação, por um lado, se não significou a superação das diferenças internas, uma vez que tensões
internas continuaram a marcar presença, por outro, esta unificação revelou o impacto que a Revolução Cubana
causou sobre a IV Internacional. Como ressaltou Isabella Meucci (2015), a vitória dos revolucionários, o tom
marxista que estes acabaram emplacando à revolução e a convergência das análises de trotskistas de diferentes
seções sobre o que se passava na ilha contribuíram para a reunificação de 1963. Com efeito, podemos considerar
que a partir deste momento, o trotskismo internacional passou a estar, como diria Osvaldo Coggiola (1984), “sob
o signo da Revolução Cubana”, o que certamente teve um impacto profundo sobre a trajetória intelectual de
Hugo Blanco, pois este se manteve crítico ao castro-guevarismo.
73
anunciava, era adentrar nos partidos comunistas submetidos à burocracia stalinista procurando
cooptá-los, para então, resgatando-os das mãos destes, os transformarem em partidos
revolucionários novamente. Acontece que suas considerações não agradaram a todos, aliás,
para alguns, o programa de Pablo era a negação do programa que havia inaugurado a
Internacional, isto é, a recusa das linhas expressas pelo Programa de Transição (CAMPOS,
1985, p. 54).
Sobre as ideias de Pablo, Mabelle Bandoli (2016), no artigo intitulado
Desenvolvimentismo e institucionalização partidária: o trotskismo invulgar do POR (1952-
1960) tratou da cisão de 1953, trazendo assim, resumidamente as considerações daquilo que
ficou conhecido como pablismo, como se segue abaixo:
entre dois grupos que ansiavam representar a IV Internacional, representados por Nahuel
Moreno e João Posadas.
Como o III Congresso Mundial que havia incorporado as ideias de Michel Pablo foi o
mesmo que reconheceu a organização de João Posadas, na Argentina, para representar o
movimento trotskista internacional, Nahuel Moreno, que em um primeiro momento havia
aceitado a decisão, rompeu com o Secretariado Internacional (SI) e se juntou ao Comitê
Internacional (CI) em 1954. Para tanto, criou o Secretariado Latino americano do trotskismo,
o (SLATO), que agregava seções da Argentina, do Chile e do Peru. Por fim, o resultado
dessas cisões foi a emergência de dois organismos responsáveis pela organização do
trotskismo na América Latina, pois, enquanto Moreno liderava o SLATO, Posadas executava
a constituição do Bureau Latino-americano (BLA) ligado ao SI. Diante disso, não é um
exagero reconhecermos também que o continente americano, durante a década de 1960,
contava com diversas “Internacionais”, que, em última instância, buscavam sua hegemonia
sobre a revolução e os movimentos de esquerda na região. Conforme Coggiola “de fato,
Moreno e Posadas enviaram delegados onde podiam e consumaram a divisão dos grupos
trotskistas do continente” (1984, p. 56).
É importante lembrar, igualmente, que foi justamente no ano de 1954 que Hugo
Blanco se mudou para Buenos Aires, onde deu início ao curso de agronomia na Universidade
de La Plata. Com efeito, juntou-se ao grupo de Moreno quando este formalizava o SLATO.
Nesse sentido, partimos do princípio de que Blanco, além de ter sido o elo para que o Comitê
Internacional chegasse a ter representação no Peru (COGGIOLA, 1984, p. 71), foi exatamente
na Argentina onde ele experimentou importantes lições, que certamente o acompanharam
quando, em 1956, voltou ao Peru. Contudo temos que destacar que o trotskismo peruano,
durante o período em questão, não deixou de apresentar as mesmas fragilidades do trotskismo
internacional. Assim, a partir de 1956, o Peru conviveu com dois PORs, o de Ismael Frías,
ligado ao SI e ao BLA de Posadas, na Argentina; e o de Hugo Blanco, ligado ao CI e ao
SLATO, este a partir de maio de 1957, dois meses depois de realizarem o I Congresso do
partido do POR.
Sobre as lições aprendidas por Blanco na Argentina podemos destacar a linha seguida
pelo grupo de Moreno. Estes mudaram sua atitude em relação ao governo populista
desenvolvido por Juan D. Perón (1952-1955), passando a apoiá-lo, após o golpe de 1955. A
partir desse momento ficou bastante evidente o entrismo perpetrado pelo grupo de Moreno
sobre os sindicatos submetidos e comandados pelo peronismo, atitude essa que, por um
75
20
A história da Nueva Izquierda ultrapassa os anos sessenta, contudo só nos interessa a sua primeira fase, isto é,
entre 1959-1965, que foi o momento em que as organizações que a integravam promoveram a luta armada no
Peru.
76
Acontece que esse quadro de isolamento do partido não foi apenas uma condição do
início dos anos 1930, mas uma constante das décadas subsequentes. Como se pode notar, essa
condição está relacionada aos vínculos estabelecidos com o Komintern, pois contribuíram
para que o dogmatismo se tornasse predominante, deixando o partido e seus membros muito
mais preocupados em adaptar-se às ordens vindas de Moscou do que incliná-los a uma
reflexão sobre as singularidades políticas e socioeconômicas do Peru, bem como sobre as
práticas e as teorias revolucionárias do marxismo.
De qualquer maneira, pode-se acrescentar também que, se o isolamento dos anos
iniciais se prolongou até as décadas posteriores, isso está diretamente relacionado com o
desenrolar da própria história peruana, que passou por um número incontável de reveses
políticos que desaguariam em uma série de golpes e contragolpes de Estado, governos
autoritários e uma considerável modernização capitalista conduzida também de forma
autoritária. A combinação de tais elementos possibilitou que novos questionamentos
surgissem em torno da realidade peruana, provocando uma espécie de renovação no
pensamento político no Peru, fato que resultou no rompimento de alguns personagens e
setores populares com os tradicionais partidos, tanto da esquerda como da direita, que
integravam o cenário político peruano até então (ANDRIAZÉM, 1990).
Simultaneamente a todo esse processo, outra razão para o enfraquecimento do Partido
Comunista no Peru esteve ligada ao abandono progressivo de antigas bandeiras do partido,
como o radicalismo insurrecional representado pelo leninismo e a incorporação de uma pauta
cada vez mais reformista e democrática21, pois tudo isso, apesar de condizente com a onda
21
À semelhança dos anos 20, na década de 30 a Revolução Russa continuou atraindo simpatizantes pelo mundo,
sendo os intelectuais um dos grupos mais inclinados a essa simpatia (PONS, 2014, p. 157; ANGELL, 2009, p.
477). Além disso, as recomendações do VII Congresso do Komintern, realizado em 1934, não tardou a produzir
seus efeitos sobre os partidos comunistas latino-americanos. Eudócio Ravines, então dirigente do partido no
Peru, adotou a recomendação de se produzir as famosas “Frentes Populares”, ou seja, a uma união antifascista de
partidos comunistas, socialistas e democrático-burgueses (LÖWE, 2006, p. 28). As “Frentes”, contudo merecem
menção não simplesmente porque mostraram mais uma vez o vínculo entre os partidos do subcontinente
americano e o Komintern, nem porque conseguiram atrair grupos sociais para além do proletariado ou porque
realizaram a união entre grupos esquerdistas que tiveram, anteriormente, suas siglas e seus programas
reprovados pelo partido comunista peruano, como o APRA e o Partido Socialista. O fato é que o programa da
“Frente Popular” encabeçado pelo partido comunista peruano confirmava o apoio às agendas de caráter
reformista em detrimento de uma agenda radical/insurrecional (LÖWE, p. 30). Com isso queremos afirmar que a
revolução socialista não estava mais na ordem do dia. Nas eleições de 1936, no Peru, já foi possível observar a
atuação das “Frentes Populares”, mas apesar de ela ter atraído a simpatia de uma ampla massa urbana e ter
juntado uma força relativamente interessante entre as esquerdas, foram os grupos identificados por tenderem à
direita que se sagraram vencedores. No entanto, a vitória foi alcançada através de um golpe, o qual foi
responsável por manter o General Benavides no poder até 1939, sendo que o mesmo já dirigia o Peru desde
1933. O golpe foi seguido pela perseguição aos partidos de esquerda e às organizações sindicais, com destaque
para os sindicatos vinculados à CGTP (Confederación General de Trabajadores del Perú). O PC comunista,
embora clandestino, não deixou de interferir na política e na organização das massas peruanas, contudo a linha
79
de atuação continuou orquestrada por uma agenda reformista. Com a aproximação da Segunda Guerra Mundial,
algumas mudanças a nível interno externo do movimento comunista aconteceram, deixando sua marca sobre o
Partido Comunista peruano. No Peru, esta política ficou bastante evidente durante as eleições de 1939 e durante
o desenrolar da segunda guerra mundial, principalmente a partir do momento em que a aliança entre União
Soviética e Estados Unidos se evidenciavam. Nesse caminho boa parte do esforço do partido esteve em prol das
forças democráticas e na luta contra os simpatizantes do totalitarismo europeu, que, no País andino, apareceram
ligados ao candidato José Quesada, em torno do grupo denominado Frente Patriótico, em 1939 (ANDERLE,
1985, p. 375). Na ocasião, os valores democráticos eram representados pelo candidato Manuel Prado, o qual teve
apoio do partido comunista peruano. Mas esse apoio representou uma mudança considerável em importantes
concepções internas do partido, concepções estas que foram umas das principais bandeiras de sua fundação: a
luta contra a oligarquia e contra o imperialismo estadunidense. Assim, deixar de lado as críticas aos Estados
Unidos e alinhar-se a Prado, quando o mesmo era conhecido por ser um autêntico representante da oligarquia,
significava aproximar-se, a um só tempo, de inimigos históricos do partido comunista (LÖWE, p. 28; 30). Mais
tarde, a manutenção dessa agenda moderada e a aproximação com tais inimigos foram fundamentais para o
surgimento da Nueva Izquierda.
22
Esse distanciamento também foi vivido pelo partido aprista, que não conseguiu atrair, como o fizeram na
década de 30, as classes médias emergentes.
80
Mas, se formos um pouco mais além, perceberemos que a situação pouco confortável
do Partido Comunista Peruano também estava relacionada com o contexto soviético. Até
pouco antes de 1956, a União Soviética gozava de intenso prestígio no mundo, pois, além de
ter saído vitoriosa da Segunda Guerra, havia ampliado sua área de influência no espaço
europeu (PONS, 2014). No entanto, após a morte de Stalin, em 1953, as coisas começaram a
mudar. O relatório elaborado por Nikita Krushchov e lido no XX Congresso do Partido
Comunista Soviético denunciou os crimes cometidos por Stalin durante seu período no
poder23. As consequências para o mundo comunista foram praticamente imediatas, pois
colocou em xeque todo um conjunto de elementos que sustentavam o mito revolucionário do
Estado Soviético.
Assim sendo, desde 1956, a Revolução Russa começou a passar por um processo de
desmistificação que custou, num curto prazo, a unidade do movimento e boa parte do
prestígio e do apoio que os comunistas conseguiam arregimentar nas mais diversas partes do
mundo e nos mais diversos grupos sociais (PONS, 2014, p. 388). Sílvio Pons, por exemplo,
observou que após esta data ocorreu uma debandada de intelectuais dos partidos comunistas.
Mas a responsabilidade pela configuração desse quadro também estava assentada na repressão
violenta que os soviéticos emplacaram sobre os revolucionários húngaros, no ano de 1956 24.
Em outras palavras, na segunda metade da década de 1950, o movimento comunista
internacional passava por uma crise profunda. A morte de Stalin, a divulgação do relatório
secreto e a crise húngara abriram, a um só tempo, um vácuo de poder e consequências
imprevisíveis para todo o mundo comunista (PONS, 2014, p. 399).
Além disso, é neste instante que não podemos nos esquecer da IV Internacional, pois
foi oportuno este momento de fragilização da liderança de Moscou, uma vez que, desde sua
origem, a IV Internacional anunciava críticas aos partidos comunistas e há tempos tentava se
colocar como representante do comunismo internacional e dirigente da revolução mundial. O
destaque deste acontecimento ganha ainda mais peso em nossa análise quando percebemos
23
Em 1956, o então secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Krushchov leu, no 20°
Congresso do Partido Comunista, o relatório secreto que denunciava os crimes cometidos pelo seu antecessor,
Josef Slatin. Na ocasião, Krushchov criticou diversas políticas promovidas por Stalin, como os expurgos da
década de 30 e o culto à personalidade de Stalin. Tal relatório foi relevante especialmente para abalar certa
confiança e admiração que muitos grupos sociais espalhados pelo mundo alimentavam pelo comunismo
representado pela União Soviética.
24
Em 1956 eclodiu, na Hungria, uma revolução. Contrários ao governo instituído com apoio da União Soviética,
a população húngara se levantou. A repressão inicial, conduzida especialmente contra os estudantes, acabou por
animar outros grupos, o que contribuiu para ampliar a massa participante. Dentro de alguns meses, por sua vez, a
revolução foi derrotada, e contou com forte participação das tropas soviética. Na época, este episódio, junto com
o “relatório secreto”, colaborou para que muitos grupos e pessoas reavaliassem seu apoio a União Soviética.
82
que sua ocorrência se deu no mesmo ano em que o POR (Partido Obrero Revolucionario) foi
refundado no Peru, em 1956.
Portanto, para as preocupações do nosso trabalho, o que deve ser percebido é que o
movimento comunista, nos âmbitos nacionais ou internacionais, não gozava de estabilidade e
o seu prestígio passava por uma crise difícil de ser ignorada. Jorge Castañeda (1994), por
exemplo, sublinhou que nesse período era possível decretar a morte dos partidos comunistas
da América Latina, pois não passavam de organizações de pouca relevância política,
incapazes de se colocarem à luta pelo poder.
Essa constatação não estava toda ela em desacordo com o caso peruano, como foi
possível notar até aqui. E isso deve ser ressaltado porque esta conjuntura descrita abriu
brechas não apenas para que um novo grupo político (ELN) pudesse emergir a partir das
cisões internas do Partido Comunista25, mas para o próprio crescimento da participação dos
trotskistas, que, aproveitando as mesmas brechas, conseguiram elevar sua inserção entre as
massas urbanas e, principalmente entre as rurais.
2.4. APRA
Como foi possível notar na citação colocada mais acima, Hugo Blanco considerava o
APRA como um partido traidor. Embora já tenhamos anunciado algumas informações que
possam esclarecer este julgamento, convém um maior grau de precisão sobre o tema. Além
disso, esse julgamento não foi privilégio apenas de Blanco, mas inclusive de membros
internos do Partido Aprista, os quais, ao não entrarem em acordo com os dirigentes irrompeu
25
Foi exatamente este contexto de crise interna e externa dos partidos comunistas que contribuiu para que
membros do partido comunista peruano, sendo muitos deles jovens, saíssem ou fossem expulsos do partido,
dando, a partir disso, a formação do ELN (Exército de Liberación Nacional), um dos principais grupos armados
que compuseram a Nueva Izquierda entre 1959-1965. Conforme entende Jan Lust, “En el grupo estaban algunos
exmiembros del PCP. Anteriormente, ellos habían formado parte de una corriente crítica dentro del partido
comunista que surgió, por un lado, de la insatisfacción respecto del rumbo político implementado por la
dirección nacional y, por otro, bajo la influencia de una serie de acontecimientos acaecidos en el movimiento
comunista internacional” (2013, p. 137).
83
26
Posteriormente, como intencionava participar das eleições de 1931, e as leis então vigentes impediam o
vínculo com qualquer organização internacionalista, Haya de La Torre fundou o Partido Aprista Peruano (PAP).
84
1920 provocaram uma cisão incontornável entre eles, de tal maneira que durante toda a
existência do APRA, estes se mantiveram anticomunistas e ambos empreenderam uma
disputa vigorosa pelo controle das organizações de massa que existiam no país. De qualquer
maneira, não sendo o conteúdo do desacordo entre os dois autores aquilo que nos interessa, o
que pode ser sublinhado é que este rompimento entre Haya e Mariátegui serve para reforçar
uma afirmação que já fizemos: as frequentes divisões e disputas que marcavam a esquerda no
continente.
Mas se os desacordos acabaram prevalecendo entre os dois autores (FLORES
GALINDO, 1982), existiu por sua vez a semelhança de ambos terem ambicionado uma leitura
própria do marxismo. Para Haya de la Torre, conforme se entende, em função de uma leitura
bastante particular do marxismo e a partir de uma perspectiva que objetiva valorizar em
demasia as particularidades da América Latina (LÖWY, 1999), recusando-se, assim, a
escrever a história desta parcela do continente americano sob a ótica eurocêntrica
(PORTOCARRERO, 1983), partia do princípio de que o futuro e o desenvolvimento do Peru
seguiriam um caminho diferente das etapas pelas quais passou a Europa. Em última instância,
objetivava-se atingir uma organização econômica e social, nem capitalista, nem comunista
(PORTOCARRERO, 1983, p. 73). Nesse caminho, segundo Gonzalo Portocarrero (1983, pp.
70-73), o papel de destaque recairia sobre o Imperialismo, as classes médias e o Estado
nacionalista “antiimperialista”.
Em relação às concepções políticas do APRA, podemos afirmar que no início o
radicalismo revolucionário era algo presente no horizonte aprista, haja vista os vários levantes
armados que perpetrou em seus anos iniciais. Sobre isto podemos destacar o evento que ficou
conhecido como o Massacre de Trujillo, em 1932. Mas o interessante é que esta radicalidade
não ficou restrita ao grupo dirigente do partido, pelo contrário, ela foi difundida pelas massas,
especialmente pela capilaridade junto à sociedade civil que o partido desenvolveu através de
várias organizações sociais, atingindo também setores do exército de baixa patente.
Julio Cotler (2006, p. 193) comentou como a região Norte, conhecida pelo seu
desenvolvimento capitalista, esteve sob influência aprista através de organizações sindicais,
culturais, juvenis, estudantis, profissionais e até desportivas. O problema, contudo, ainda
segundo Cotler, era que o APRA, apesar da forte base popular, não contava com o apoio
dentro das camadas altas da sociedade, especialmente no interior da oligarquia (COTLER,
2006, p. 199). Sendo que essa falta de apoio foi agravada ainda mais pela aproximação entre
oligarquia e militares, pois este fato os colocou diante do APRA como seus dois principais
85
Embora esta citação também denuncie certa simpatia que Blanco cultivou pelo o
aprismo enquanto era estudante dos ciclos iniciais, que pode ser confirmada principalmente
no início desta mesma entrevista28 e por algumas afirmações de Eduardo Fioravanti (1974),
ela nos ajuda a compreender porque ele considerou, como dissemos mais acima, que o APRA
cometera traição. Ora, Blanco reconheceu que à semelhança do Partido Comunista, o APRA,
no lugar da sua agenda radical, cada vez mais se inclinou à tendência reformista. Além de
27
Embora com perspectivas radicais, em 1931, Victor Raul Haya de la Torre concorreu às eleições. Como se
pode imaginar, quem venceu foram os grupos e os interesses organizados em torno da União Revolucionária,
encabeçada pelo general Luíz Sanchez Serro, militar que havia derrubado anos antes o governo de Augusto
Leguía. Acontece que, em 1932, os ânimos que haviam polarizado a disputa entre os dois partidos não haviam
diminuído. Assim, Sanchez deu início a leis que permitiam perseguir opositores, impedir reuniões, proibir
publicações e prender pessoas. O APRA foi uma das primeiras vítimas desse clima. Soma-se a esse quadro a
tentativa de assassinato do presidente cometido por um militante aprista, as greves e, principalmente, o levante
desencadeado pelo partido em Trujillo, como já mencionamos. Foi, inclusive, nessa ocasião, como afirmou
Carlos Contreras e Marcos Cueto (2002, p. 259), que começou o embate entre o partido de Haya de la Torre e o
exército, pois durante o levante vários oficiais foram mortos pelo APRA deixando este permanentemente
maculado aos olhos do exército. O clima de instabilidade se agravaria ainda mais quando o diretor do jornal El
Comercio, Antonio Miró Quesada, um dos principais veículos que se opunham ao APRA, foi assassinado.
Mesmo fim que acometeu Sanchez Cerro em 1933. O desfecho desse panorama foi a nomeação de outro militar
para a condução do país, Óscar R. Benavides, que ficou no poder até 1939.
28
“Yo entre a la izquierda y a la vida política cuando era joven. Era la época de Odría, cuando el partido
aprista y el partido comunista estaban fuera de la ley. Yo simpatizaba con la izquierda en general o sea con el
APRA y con el partido comunista” (BLANCO, 2011, p. 243).
86
bastante contraditória, pois a defesa que passou a fazer do imperialismo, dos Estados Unidos e
suas alianças com a oligarquia da sociedade peruana, demonstravam uma ruptura com as
bandeiras que um dia fundamentaram sua origem.
Assim, com esta viragem, que foi se tornando evidente, especialmente a partir dos
anos 40,o APRA foi levado ao encontro dos políticos tradicionais e dos setores mais
conservadores da sociedade peruana, ao ponto de aparecerem como a opção oligárquica no
plano eleitoral durante a década de 1960. Assim sendo, para as eleições de 1945, que
marcariam o início daquilo que Carlos Contreras e Marcos Cueto (2007, p. 261) chamaram de
respiro democrático, o APRA já havia adotado uma política muito mais conciliatória do que
radical. Antes das eleições, por exemplo, o famoso discurso “interamericanismo democrático
sem império” dava mostras das novas intenções do partido, que de uma maneira geral,
renunciava a suas árduas críticas ao imperialismo estadunidense, o capitalismo e aos grupos
dominantes. Para Julio Cotler, o partido de Haya de La Torre, durante os três anos de
democracia, diferente dos anos 30, quis atender aqueles que ele representava (as camadas
populares) dentro do jogo parlamentar (COTLER, 2006, p. 216).
Como se sabe, este respiro democrático foi sufocado pelo golpe liderado pelo militar
Manuel Odría, que perduraria por oito anos no poder. Durante este período, convém recordar,
que o APRA teria passado por um problema semelhante ao que destacamos sobre o Partido
Comunista anteriormente, pois, o regime ditatorial havia comprometido o desenvolvimento do
pensamento político de ambos os partidos, deixando-os em defasagem com o país que durante
o período em questão aprofundava sua modernização capitalista29.
Além disso, ao longo deste contexto de viragem do APRA, formou-se um grupo de
inclinação mais radicalizada, liderado por Luis de la Puente, no interior do Partido Aprista e
que se opunham aos caminhos que os dirigentes levavam o partido naquele momento. O
resultado foi a expulsão da maior parte dessa oposição, que ocorreu a partir de 1959, isto é,
quando os efeitos da Revolução Cubana já se faziam sentir sobre o referido grupo. Na época,
formaram o APRA-Rebelde, que mais tarde seria mudado para MIR (Movimiento de
Izquierda Revolucionaria), mencionado anteriormente. Tal grupo foi responsável por
desenvolver atividades com os conceitos do castro-guevarismo no Peru durante a primeira
metade da década de 60. Acerca do tema, Jan Lust escreveu:
29
Tais fatos, por seu lado, não comprometeram a inserção e a capilaridade do partido em questão na sociedade
peruana, uma vez que permaneceram como o principal partido de massa do Peru e porque ainda ganhariam as
eleições de 1961, embora esta tenha sido anulada pelo golpe militar de 1962.
87
Eis que, chegado a este ponto, fica claro, portanto, a fragilização da esquerda
tradicional, bem como a emergência de importantes grupos que compuseram a Nueva
Izquierda a partir das cisões que aquela sofreu. Este cenário nos ajuda a entender como existiu
um terreno propício para o surgimento de novas lideranças, sejam elas voltadas a dialogar
com os setores médios e urbanos da sociedade ou com os setores camponeses e andinos, como
foi o exemplo de Hugo Blanco. Por outro lado, nos deixa evidente como o projeto de Blanco
se deu em um momento em que não havia consenso sobre os caminhos da esquerda e até
mesmo a via radical se desmembrava entre as opções maoístas, castristas ou aquelas
perpetradas pelo próprio Blanco.
Não há dúvidas, conforme sustentamos neste trabalho, que a ação intelectual de Hugo
Blanco se deu em diálogo com esta esquerda fragmentada e, mais especificamente, com a
esquerda radical. Justamente por isso é tão importante entendermos quais eram as propostas
deste setor, com especial destaque ao modelo Cubano que, em meados da década de 1960, era
hegemônico no Peru30. Portanto, a partir daqui nos preocuparemos com a Revolução Cubana,
pois, como afirmou Jorge Castañeda “Em nenhum país latino-americano, a esquerda local
deixou de ser influenciada por Cuba” (CASTAÑEDA, 1994, p. 69). Contudo, a relação que
nos importa recai somente sobre alguns pontos, como seu internacionalismo e o aspecto
político-militar do paradigma revolucionário consagrado pela revolução de 1959. Esse
caminho é relevante justamente porque envolve o contexto de formação e atuação do
intelectual revolucionário Hugo Blanco.
30
Já nas décadas de 1970 e 1980, o protagonismo da esquerda radical esteve reservado a partidos de orientação
Maoísta, como era o caso do Sendero Luminoso.
88
No início de janeiro de 1959, um grupo liderado por Fidel Castro marchou triunfante
sobre Havana, a capital cubana. Para alguns pesquisadores, a Revolução Cubana, assim como
um dia foi a Revolução Russa, marcou profundamente as esquerdas latino-americanas. Estas,
sob os efeitos eletrizantes provocados pela referida revolução (ANGELL, 2009, p. 506),
tiveram seus dogmas abalados e sua inércia reformista, característicos daqueles anos,
transformados em impulso e entusiasmo a favor da transformação imediata. Em outras
palavras, a Revolução Cubana trouxe o tema da revolução de volta ao primeiro plano na
América latina.
31
Pelo menos essa é uma das possibilidades de interpretação abertas pela perspectiva político-militar.
90
partido para a guerrilha; em outras palavras, da esfera política para a esfera militar. Esta
superação foi defendida no livro Revolução na Revolução, do intelectual francês Régis
Debray (1967). Nessa obra, o autor apresentou e acrescentou os diversos pontos que tornavam
o castro-guevarismo o exemplo mais adequado para o sucesso revolucionário, especialmente
perante a inércia dos partidos de esquerda tradicionais e perante as particularidades do
continente latino-americano, assim como tratou de ultrapassar as divisões e as hierarquizações
no interior da teoria revolucionária referentes às esferas política e militar.
Assim, Debray defendeu a viabilidade de um próspero casamento entre as duas
esferas, mas não sem deixar claro de que estava rompendo com aquele princípio hierárquico e
divisional entre os âmbitos político e militar: “[...] a guerra de guerrilhas é a essência política
e que, não se pode, pois, opor o político ao militar” (DEBRAY, 1967, p. 69). Além disso, se a
guerrilha gera seus próprios quadros políticos e é responsável por agregar as massas em torno
de si, bem como por engendrar posteriormente a formação do próprio partido político, Debray
transformou a guerrilha na principal fonte geradora de poder, da revolução e das condições
revolucionárias. Com efeito, foi isso também que garantiu ao autor a possibilidadede
caracterizar a guerrilha de “o pequeno motor que ativa o grande motor” (DEBRAY, 1967,
p.88).
Tais considerações a respeito destes aspectos da Revolução Cubana são essenciais
porque elas nos auxiliam na compreensão de boa parte do trabalho intelectual de Hugo
Blanco, pois inúmeras foram as referências, e geralmente em um tom negativo, que ele
destinou àquilo que estamos chamando de castro-guevarismo. Este tom negativo, ao que tudo
indica, esteve presente em suas obras no período de análise de nossa pesquisa: seus escritos
do cárcere de 1964, intitulado El caminho de nuestra revolución, e seu livro Terra ou Morte,
publicado logo no início da década de 1970, demonstram que preservou o referido tom.
Assim, em ambas as obras, Blanco manteve a noção de putchista a todos aqueles que se
inclinaram a aplicar a concepção de guerra de guerrilha.
Contudo, é preciso esclarecer duas coisas. A primeira, é que o olhar crítico em relação
a essa linha revolucionária deixou evidente a defesa de outra linha: o paradigma
revolucionário consagrado por Lenin e Trotsky, enfim, pela revolução bolchevique de 1917.
A segunda, é que, com isso, Blanco almejava ser compreendido como alguém que conseguiu
legitimar, a um só tempo, a violência revolucionária, isto é, a defesa do uso das armas sem ser
enquadrado pelo paradigma cubano, pois, como ele destacou: “nós trotsquistas temos
defendido (...) o conceito marxista-leninista de que é impossível que os exploradores deixem
o poder sem luta. Não é possível o trânsito pacífico para o socialismo; a luta armada (...) é
91
uma fase inevitável da revolução” (BLANCO, 1979, p. 81). Ou seja, ao mesmo tempo em que
Blanco parece se aproximar do castro-guevarismo ao realçar o caráter violento e militar da
revolução, ele se distanciava ao defender o conceito leninista, que oferecia concepções muito
claras e hierárquicas sobre a importância das massas e do partido sobre o militar. Em seus
primeiros escritos do cárcere, ele observaria:
Portanto, fica um tanto claro que o autor não saiu em defesa, como fez Régis Debray,
da supremacia do aspecto militar em detrimento do aspecto político das organizações
revolucionárias. E nem imaginou que a estratégia a seguir fosse a criação de focos
guerrilheiros isolados das massas. Pelo contrário. Blanco procurou rebaixar essa concepção
revolucionária ao taxá-la pelo vocábulo putchismo; era, portanto, um evidente juízo de valor
por parte de Blanco. Dessa forma, Hugo Blanco pareceu bastante categórico a respeito destes
pontos, quando fez questão de colocar o partido posicionado no lugar mais alto da prática
revolucionária e responsável por pensar as ações armadas, além de vinculado com as massas,
de empregá-las como tática, não como estratégia. Aspecto este que foi reforçado no livro
Terra ou Morte, publicado em 1972:
MIR) que emergiram no Peru com claras tendências foquistas. Anos mais tarde, podemos
considerar que o livro Terra ou Morte insistia neste debate, inclusive contra as teses de Régis
Debray, que haviam surgido anos antes.
Esta defesa e desacordos podem ser notados na seguinte situação que envolveu a
condenação, por parte de líderes Trotskistas, como Hugo Blanco e Nahuel Moreno, de alguns
companheiros que se inclinaram às práticas do paradigma cubano no Peru no início dos anos
60. Alguns destes membros, no caso, foram enviados pelo SLATO32 da Argentina, que na
época era liderado por Moreno, sendo que eles foram responsáveis por fundarem o FIR
(Frente de Izquierda Revolucionaria). Em cartas recentemente publicadas (MORENO, 2006),
que foram trocadas entre estes últimos e os militantes enviados até o Peru, é possível perceber
a reprovação por parte de Moreno em relação aos assaltos cometidos ao longo de 1962 pelos
militantes do FIR com a intenção de levantar somas em dinheiro para a compra de armas, que
supririam uma possível guerrilha. Moreno, contrariamente, insistia que o fundamental era o
fortalecimento do partido e o trabalho entre as massas. Próximo a esta ponderação esteve
Blanco mais tarde: “no camarada Pereira, que foi enviado para reforçar nosso trabalho, essa
tendência era mais forte. Por esta razão, junto com o ganho positivo de seu trabalho, estava a
influência negativa de sua pressão‘putchista’ (...)” (BLANCO, 1979, p. 94).
Outro ponto que podemos destacar para demonstrar o distanciamento de Blanco em
relação ao castro-guevarismo, foi sua constante defesa, nos seus textos, da relevância das
massas para se chegar às atividades militares. Nestas defesas, Blanco insistia que o caminho
até a luta armada deveria ser o resultado do amadurecimento da consciência de classe das
massas, uma iniciativa que necessariamente deveria partir delas, embora vinculadas ao partido
de vanguarda. Nesse sentido, nos diferentes momentos que defendeu a formação de milícias
ou guerrilhas, as massas apareceram como o denominador comum, como se pode notar em: “a
milícia é produto da ascensão do campesinato. As massas, tendo entendido a necessidade da
luta armada, criam as milícias” (BLANCO, 2006, p. 466), e em, “cremos que as guerrilhas
surgirão como a nossa; composta pelos camponeses do lugar, como fruto de sua maturação”
(BLANCO, 1979, p. 82).
Assim sendo, fica claro também que Blanco nunca esteve próximo às ideias de Régis
Debray, que havia invertido esta lógica, uma vez que acreditava que o estabelecimento de um
foco guerrilheiro em uma dada região pudesse ser de fato “motor” capaz de angariar as
massas a seu favor. Para Blanco, inclusive, esta era uma tática inconveniente, pois, não sendo
32
Dentre os militantes estava aquele que chamavam de Camarada Pereyra.
93
uma iniciativa das massas, apenas reforçava o caráter artificial do foco, por conseguinte,
suscetível ao fracasso: “se o trabalho é feito através do crescimento da massa, não há porque
se recorrer a guerrilhas artificiais” (BLANCO, 1979, p. 82).
Portanto, clareados estes pontos sobre os desacordos do trabalho intelectual de Hugo
Blanco com o castro-guevarismo, podemos destacar o quanto é problemática uma afirmação
como esta de François Bourricaud:
Mas esta afirmação é um tanto problemática não apenas tendo em vista o que expomos
parágrafos acima. A questão é que Bourricaud pareceu confundir a simpatia que as esquerdas,
de uma forma geral, nutriram pela vitória da Revolução Cubana com a importação do castro-
guevarismo. No caso peruano, por exemplo, a importação e aplicação dessa estratégia
revolucionária não foi regra geral para todos os grupos que compunham a Nueva Izquierda, na
verdade o que percebemos é que podemos restringir isto à ELN e ao MIR deixando os
trotskistas vinculados às ações de Hugo Blanco no vale de La Convención um tanto distantes
dessa questão. E esta constatação ficou mais clara a partir da análise das origens de cada
grupo, principalmente a partir da análise dos vínculos que cada grupo estabeleceu com Cuba.
Por conseguinte, foi fundamental termos retomado a perspectiva internacionalista, tanto dos
castristas como dos trotskistas, pois demonstrou mais uma vez que existia uma disputa entre
ambos para impor seus métodos revolucionários. Na ocasião, percebemos o esforço do
SLATO, do qual fazia parte Hugo Blanco, em impor seu controle sobre os caminhos que
tomavam a revolução peruana. A estes pontos nos dedicaremos neste momento.
É sabido que desde 1959, ou seja, desde o momento em que os rebeldes marcharam
sobre Havana, a Revolução Cubana foi ganhando um status internacionalista, pois a revolução
não podia e nem deveria se restringir sobre a ilha; ela deveria se espalhar por todo o
continente latino-americano.
94
revolução, junto com suas estratégias e métodos. Aliás, isto é um dado tido como certo, pois,
conforme é mencionado no livro de Jan Lust (2013), os principais militantes do Ejército de
Liberación Nacional (ELN) foram treinados em Cuba. Ali também aprenderam a estratégia
política militar revolucionária: o castro-guevarismo. Além do ELN, outros militantes
peruanos estiveram lá para treinar, eram os membros do MIR (Movimiento de Izquierda
Revolucionaria).
Essa marca da Revolução Cubana dentro da formação da Nueva Izquierda estava
inserida no projeto de exportação da revolução. No caso, queremos chamar a atenção para
uma das formas que foram utilizadas para que isso fosse possível: atração intencional de
jovens peruanos até a ilha por meio de concessão de bolsas de estudos, mas com o intuito de
que aderissem aos treinamentos militares lá existentes. Sobre esta estratégia, podemos
considerar que ela foi eficaz, pois quase a metade dos estudantes peruanos que se mudaram
para Cuba adotaram a via revolucionária e os treinamentos (LUST, 2013, p. 153). Hugo
Blanco, por sua vez, embora fosse um jovem universitário, não teve sua formação política em
Cuba, mas na Argentina, onde entrou em contato com o trotskismo. Ainda segundo Jan Lust
(2013, p. 146)
Para não nos alongarmos, queremos dizer que além de representar uma tentativa de
exportar a revolução pelo continente, o treinamento desses jovens passava por uma questão
muito mais militar do que teórica e política, demonstrando assim que o objetivo final de tais
bolsas era o de exportar as estratégias e as táticas consagradas pela Revolução Cubana. Os
comentários e depoimentos de ex combatentes do ELN sobre o período de treinamento em
Cuba, trazidos pelo livro de Jan Lust, demonstram que a maior parte do tempo era gasto com
exercícios para combates armados, como é possível observar nessa declaração de Antonio
Pacheco: “teóricamente era tanto en organizar la guerrilla como en el manejo de armas.
Cómo manejar, cómo desarmar, cómo armar en caso de que se encasquille. No recibimos
una formación política” (LUST, 2013, p. 154).
Porém, esse quadro esboçado não esgota a nossa problematização, pois, se é verdade
que os cubanos tentaram exportar a revolução, também é verdade que essa exportação foi
muitas vezes aceita ou até mesmo buscada pelos grupos de esquerda. Nesse sentido, muitos
96
artigo de Sabrina Cordal (2016), que analisou tal correspondência. A título de exemplificação
transcrevemos o seguinte trecho de uma das cartas que Moreno enviou ao militante Daniel
Pereira, em 15 de junho de1962.
No entanto, apesar das intenções desse organismo de se colocar como direção, poderia
se argumentar que o conteúdo desta afirmação não se estendia integralmente a todos os
trotskistas que atuaram no Peru e até mesmo ao líder do SLATO, Nahuel Moreno. Primeiro
porque os trotskistas enviados da Argentina pelo SLATO, como foi dito em outro momento,
passaram a provocar assaltos a bancos entre 1961 e 1962, com o objetivo de conseguirem
dinheiro para financiar a compra de armas e o estabelecimento de focos guerrilheiros junto à
área em que estava Blanco. Além disso, podemos acrescentar que, no mesmo ano dos
assaltos, 1962, Moreno decidiu enviar alguns trotskistas argentinos a Cuba para pedir ajuda ao
movimento de Hugo Blanco no Peru (GONZÁLES, 1999, p. 316). Acontece, todavia, que
Moreno reprovou profundamente os assaltos e os objetivos que o sustentavam e, ao mesmo
tempo, aquele pedido de ajuda só foi realizado quando se percebeu que o FIR, o POR e a
maioria dos quadros do SLATO, no Peru, haviam sido liquidados pela repressão em abril de
1962, o que aconteceu após o segundo assalto. Mesmo com o pedido e o envio de um grupo,
os efeitos intencionados não foram alcançados, pois o grupo, depois que chegou à Ilha, não
manteve contato com os trotskistas argentinos ou os peruanos. E, quando retornaram, por
terem incorporado o castro-guevarismo, romperam com os trotskistas argentinos logo em
1963 (GONZALES, 1999, p. 316).
Com isto exposto, nossa intenção era demonstrar que as relações entre a Nueva
Izquierda e a Revolução Cubana não podem ser observadas como simétricas. Além disso,
percebe-se o esforço, até onde foi possível, do trotskismo internacional representado pelo
SLATO em manter a revolução peruana mais próxima de sua linha política e militar do que
daquela representada por Cuba. E, para encerrar, se Blanco, pouco antes de ser preso, em
98
1963, arriscou a formação de uma guerrilha que o deixou isolado das massas, no seu trabalho
intelectual o encontramos defendendo a inviabilidade dessa iniciativa se esse grupo armado
não estiver submetido às organizações de massa ou do partido, demonstrando mais uma vez a
defesa e seu vínculo com o trotskismo. Mas,tais considerações comentaremos ainda no
próximo capítulo.
Portanto, a intenção do capítulo era demonstrar de quais correntes revolucionárias que
compunham a esquerda peruana e latino-americana Hugo Blanco procurou se aproximar e se
distanciar. Nesse caminho, ainda, procuramos deixar claro que não é possível observar o
trabalho revolucionário e intelectual de Blanco como uma mera cópia das práticas castro-
guevaristas, ou ainda como um braço da mesma. Isto feito, cabe-nos, então, responder: qual
foi, portanto, o projeto de Revolução defendido por Hugo Blanco? De antemão, podemos
afirmar que seu projeto foi o resultado de um esforço de adaptação dessas correntes que, a seu
entender, se aproximavam mais à realidade peruana sem negar a dimensão internacionalista
da revolução.
99
E de fato, Hugo Blanco demorou a realizar sua versão sobre aqueles anos, isto é, sobre
aquele momento em que ele mesmo foi um dos personagens que colaboraram para que um
dos maiores novelistas do Peru, José Maria Arguedas, chamasse o período de “este tempo de
convulsión” (ROWE, 1979, p. 132-135). Assim, como já indicamos em outros momentos, isto
só seria contrariado no início da década de 70, com a publicação de sua principal obra, o livro
Terra ou Morte, o qual será, em grande medida, alvo das reflexões deste capítulo, apesar de
nos valermos de outros textos simultaneamente, sendo alguns destes já mencionados.
Por outro lado, antes disso, ou seja, antes de ter sido possível se deparar com o que
Hugo Blanco tinha a dizer sobre o que havia acontecido no vale de La Convención, entre 1958
e 1963, outros autores deram sua contribuição a respeito da temática. E, para Hugo Blanco e
alguns outros amigos e simpatizantes, isso estava se tornando um problema, pois estas
publicações não estavam captando, segundo eles, o âmago do que havia sido o movimento
camponês do referido vale. Conforme expressou o próprio Blanco.
É por isso também que, além de uma espécie de “livro de memórias”, devemos
compreender Terra ou Morte inserida dentro de um contexto em que a temática da estrutura
agrária e dos camponeses enquanto movimento político ganharam um novo fôlego no Peru.
Nesse sentido, o que queremos dizer é que Blanco escreveu a sua principal obra depois de
outros autores terem abordado a mesma questão. E mais, o fez em diálogo com os demais e,
ao mesmo tempo, como forma de dar uma satisfação aos seus apoiadores, ainda que essas não
fossem suas únicas motivações.
No entanto, notamos que os posicionamentos de Blanco frente a tais escritos foram
realizados de forma ligeira, ou seja, no lugar de apresentar e desenvolver sistematicamente no
seu texto a polêmica com estes autores, Blanco apenas mencionou alguns nomes, o título das
obras e com quem ele mais se inclinou a concordar. Assim sendo, ao que tudo indica, tais
obras apareceram diluídas no seu texto sem referências diretas. De qualquer maneira,
identificamos uma obra que Blanco fez questão de nomear seu autor e expressar seu
desacordo, foi o livro de Victor Villanueva, intitulado Hugo Blanco y la Rebelión Campesina
(1967), como é possível identificar a seguir. E as razões disto provavelmente estão na
preocupação demasiada do autor com os aspectos político-militares do movimento, que, como
vimos, não eram a prioridade de Blanco.
Contudo, em nossa análise, foi possível perceber que o objetivo do autor não foi
somente o de responder a tais obras. Há outras “intenções”, que tentaremos deixar claro ao
longo do capítulo. Desta forma, Terra ou Morte, além de ter sido o meio pelo qual Hugo
Blanco expressou o seu pensamento revolucionário, foi também o lugar onde ele ofereceu seu
olhar a respeito da sua experiência vivida junto ao movimento camponês no vale de La
Convención. É por isso que, a um só tempo, o livro possuiu o duplo objetivo de crítica e
exaltação dessa experiência revolucionária, bem como o de oferecer uma espécie de via
alternativa para a revolução no Peru, em que se buscava se distanciar dos caminhos que
estavam sendo percorridos pela esquerda peruana dos anos 60 que, como indicamos no
1
Apesar dos esforços, não conseguimos ter acesso a obra de Weslay Craig.
101
Além disso, convém mencionar que Hugo Blanco resolveu escrever porque não
entendia que fosse possível acomodar a sua experiência revolucionária dentro daquilo que,
segundo ele, seus observadores estavam chamando de “sindicalismo” ou “guerrilha”, até
porque, para Blanco, apesar de sua prática e teoria revolucionária terem se valido de
sindicatos e da luta armada, elas estavam a uma distância segura de tal caracterização. Assim,
para Blanco, o seu trabalho no vale representou outra coisa, em outras palavras, algo entre
estes dois polos. Diante disso, sublinhou: “creio que este trabalho ajudará a compreensão
daquilo que não foi, simplesmente, ‘sindicalismo’, como vêem uns, ou ‘guerrilha’, como
vêem outros” (BLANCO, 1979, p. 30).
É neste ponto, portanto, que devemos localizar o pilar do esforço que permite
caracterizar Hugo Blanco como um intelectual revolucionário, à medida que este intencionou
ultrapassar as definições dadas por terceiros e os caminhos da mencionada esquerda e, ao
mesmo tempo, procurou produzir interpretações sobre sua realidade e teorizar sua experiência
revolucionária. Mas qual foi, afinal, a perspectiva que Blanco ofereceu à experiência com os
camponeses no vale de La Convención? Eis a sua afirmação: “[...] vejo-o como uma
demonstração positiva da aplicação da metodologia de Programa de Transição” (BLANCO,
1979, p. 31). Ou seja, o olhar que Blanco imprimiu à sua experiência seguia inserindo-a
dentro do programa revolucionário trotskista, por conseguinte, dentro do Programa de
Transição, o mesmo princípio que, em 1938, havia dado origem à IV Internacional. Assim
sendo, podemos dizer que Blanco passou boa parte do livro demonstrando o quanto a sua
experiência esteve inserida dentro desse referido Programa. E como, a partir disso, ele
procurou se colocar equidistante tanto das acusações de sindicalista, reformista e de
102
guerrilheiro. Por outro lado, o colocou em franco debate com os trotskistas latino-americanos
nas discussões a respeito dos caminhos percorridos por esta filiação.
Contudo, isso não quer dizer que Terra ou Morte tenha sido o único e primeiro texto
em que seja possível extrair dos escritos de Blanco conceitos e ideias advindas da teoria
trotskista, pois desde seu já mencionado texto de 1964, El camino de nuestra revolución, tal
identificação era pertinente, sendo possível de serem encontrados conceitos caros a Leon
Trotsky, como a necessidade de um partido verdadeiramente revolucionário (vanguarda), a
tática do poder dual e a luta armada organizada em torno de milícias. Porém, diferente deste
primeiro momento, Terra ou Morte estava em outro patamar, pois esteve preocupado tanto
com a teoria, quanto com sua aplicação. Além disso, à diferença de 1964, Blanco fez questão
de se apresentar como trotskista revolucionário e não poupou esforços para inserir sua
experiência dentro do programa dessa linha revolucionária, inserindo-a como elemento de
uma tradição trotskista peruana.
Para encerrar, mais do que uma sustentação teórica que pudesse legitimar sua
experiência dentro do trotskismo, acreditamos que existem outras interpretações possíveis
sobre Terra ou Morte, que vão desde transformar o livro em uma possível advertência para a
IV Internacional, a qual havia se reunificado em 1963, como um projeto que tentou traduzir o
trotskismo à realidade peruana. Tais questões serão tratadas ao longo do capítulo.
Terra ou Morte foi publicado no Peru em 1972. Sua redação, por sua vez, foi realizada
na prisão. Blanco estava preso desde 1963, após ser capturado pelos esforços das forças
armadas, que objetivou colocar fim às ocupações de terra no vale de La Convención. Na
época, como já mencionamos, o Peru não usufruía da normalidade democrática, pois em 1962
os militares haviam realizado um golpe, que, a um só tempo, destituiu do poder o presidente
democraticamente eleito, Manoel Prado, e impediu que o vencedor das eleições daquele ano,
o aprista Victor Raúl Haya de la Torre, assumisse a presidência do país. Apesar de a
normalidade democrática ter sido reinaugurada logo no ano seguinte, a sorte de Hugo Blanco
não mudou, pois permanecia no cárcere. Na realidade, sua situação até se agravaria, pois em
1966 foi condenado à pena de morte. Tal condição apenas se inverteria após grande pressão
da opinião pública, nacional e internacional, com a participação de destacáveis personagens
do meio intelectual. Dentre outras figuras políticas e instituições destacamos:
103
A pressão contra a execução de Blanco surtiu efeito, pois ela não foi cumprida;
contudo, o intelectual só conheceria a liberdade no final de 1970. Neste momento, o Peru
estava sob o efeito de outra ditadura militar, comandada pelo General Velasco Alvarado, a
mesma ditadura que, após libertar Blanco em dezembro de 1970, o exilou em setembro de
1971. Nesta época, por sua vez, a obra Terra ou Morte já estava prestes a ser publicada, o que
de fato aconteceu no ano seguinte.
O mencionado livro de Hugo Blanco possui sete capítulos (Síntese Cronológica, Meio
Geoeconômico e social, O partido, Duas Linhas, Poder Dual, Luta Armada e Processo
Judicial). Tais capítulos foram antecedidos por uma introdução, de autoria de Peter Camejo,
dirigente do Socialist Workers Party dos Estados Unidos (SWP), e por um Prólogo, este de
autoria do próprio Hugo Blanco. Mas, antes de tudo, pensamos ser necessário sublinhar que a
escrita dessa introdução, no início dos anos 70, por um membro do SWP, uma das seções
mais importantes da IV Internacional, evidenciava não apenas a notoriedade atingida por
Hugo Blanco no seio do trotskismo, mas como essa aproximação revelava os agrupamentos
que andavam acontecendo no interior da IV Internacional. Demonstrando, assim, que uma
relação entre esta última e a publicação de Terra ou Morte não é de modo algum equivocada.
No entanto, sobre este aspecto procuramos deixar claro mais à frente.
Se recuperarmos o que vínhamos dizendo, segundo o dirigente Camejo (1979, p. 18),
“Terra ou Morte é um resumo de 20 anos do desenvolvimento político de Hugo Blanco, como
estudante, trabalhador e camponês”, em outra palavras, é uma obra que pode ser vista dentro
de uma certa maturidade. De fato, enquanto Hugo Blanco escrevia as linhas do seu livro, sua
idade já ultrapassava os trinta anos. Por conseguinte, ele não era mais aquele jovem
universitário chegado da Argentina, como o fora um dia, quando regressou ao Peru em 1956.
Pelo contrário, neste momento ele já acumulava uma experiência revolucionária e havia se
tornado uma figura pública conhecida, alimentada também pelas consequências que
envolveram sua prisão, como a campanha contra a sua execução.
Além disso, como figura pública, usufruía de um prestígio que o conduziu a um status
próximo ao de lenda, de tal maneira que era ouvido e respeitado por diversos grupos sociais e
políticos, dentro e fora do Peru, bem como se tornou uma espécie de mito entre os
camponeses. Como afirmou Victor Villanueva: “La campaña realizada conmovió al Perú
104
entero y el nombre de Hugo Blanco saltó a las primeras páginas de los diarios rebasando las
fronteras patrias para convertirse en personaje continental” (1967, p. 151). Mais tarde, outro
estudioso do caso de La Convención, Eduardo Fioravanti (1974), também destacaria o alcance
que Hugo Blanco atingiu entre os camponeses:
Portanto, quando Hugo Blanco escreveu Terra ou Morte, ele não era um personagem
desconhecido na sociedade peruana. E certamente foi o reconhecimento construído nestes
anos que o manteve em condições de ser um político influente no Peru nos anos seguintes 2.
Tal condição aumentou as expectativas pela publicação de suas páginas.
Em um dos primeiros capítulos, chamado “meio geoeconômico e social”, o autor
apresentou a região que seria o objeto de análise, o departamento de Cuzco, na serra ao sul do
Peru, tendo as ações fundamentais sido desenvolvidas na zona de La Convención e Lares
(BLANCO, 1979, p. 38). Após esta delimitação, o autor passa a caracterizar a região e, de
fato, se limita a fazer uma descrição dos aspectos da geografia econômica e social do local,
conforme anunciado no título do capítulo. Nesse sentido, ao tratar da geografia do lugar, fez
questão de mostrar algumas diferenças entre a parte serrana e a parte que compunha o vale,
que era onde estava La Convención. Em seguida, Blanco destacou os principais produtos
produzidos em cada uma dessas regiões, os quais, segundo ele, estavam na base dos conflitos
entre hacendados e camponeses que atingiram o vale posteriormente, uma vez que
despertaram e aguçaram os interesses econômicos de cada um. Destacamos: “a diferença
fundamental entre estes vales quentes e a região serrana reside nas suas culturas [agrícolas]
que são permanentes na maioria e não anuais. Esta característica teve grande incidência nos
fenômenos econômicos e sociais da região” (BLANCO, 1979, p. 39).
2
Não foi por acaso que em meados dos anos 70, quando o governo militar ensaiava entregar o governo aos civis,
Blanco, que já tinha sido autorizado retornar ao Peru, foi eleito com o maior número de votos entre as forças da
esquerda, para participar da Assembleia Nacional Constituinte. Anos mais tarde, o mesmo personagem disputou
as eleições presidenciais, ficando na quarta colocação. E, nesta época, segundo Alberto Flores Galindo (1997, p.
91), Blanco era o líder da esquerda mais conhecido do país (FLORES GAINDO, 1997, p. 91). De qualquer
maneira, apesar do malogro no pleito presidencial, ainda seria eleito deputado entre 1980 e 1985, e eleito
senador em 1990.
105
Diferente dos produtos agrícolas produzidos na Serra, os que eram produzidos no vale
(o café, o cacau, o chá, dentre outros) eram produtos que passaram a render ganhos mais
significativos para aqueles envolvidos em sua produção. Esta situação foi alimentada por uma
demanda que cresceu tanto dentro como fora do país: “a produção da margem da selva [vale]
está dedicada principalmente à exportação a outras regiões do país e ainda para outros países”
(BLANCO, 1979, p. 39). No entanto, apesar de mencionar tais questões, Blanco não as
aprofundou, ou seja, não se atentou em questionar as razões que fizeram do vale um lugar de
considerável geração e aplicação de capital e que estavam relacionadas com o
desenvolvimento das comunicações e pela demanda favorecida pelo contexto mundial. Sobre
isso, o estudioso polaco Zbigniew Kowalewaski (1974), destacou que
Hugo Blanco também não se preocupou em mencionar que grande parte da iniciativa
de produzir estes produtos agrícolas de maiores ganhos e investimentos e de maior demanda
internacional partiu dos camponeses da região. Iniciativa esta vinculada especialmente a partir
dos esforços de uma figura nova do ponto de vista jurídico das relações de trabalho, os
“arrendieres” (NEIRA, 1968, p. 8), que, a partir de um contrato, recebiam uma parcela de
terra dos hacendados, em troca de trabalhar determinados dias da semana nas terras do
proprietário, entre outras obrigações. Assim, ante o que foi dito, foram os arrendatários, ainda
que beneficiados por fatores externos, os principais beneficiados e responsáveis por
dinamizarem a economia da região.
Porém, esta não era o foco da narrativa de Hugo Blanco, apesar de reconhecê-la.
Blanco se preocupou mais em chamar a atenção para as relações arcaicas (“feudais”) de
produção que persistiam no vale, bem como para as iniciativas dos hacendados em promover
a expulsão dos arrendatários das terras em que se produziam os produtos de elevado interesse
comercial, fatores pelos quais, segundo ele, estiveram na base para a formação dos primeiros
sindicatos no vale: “esta agudização das contradições impulsionou a sindicalização do
campesinato na zona” (BLANCO, 1979, p. 46).
106
Estes sindicatos, por sua vez, não foram integrados apenas por arrendatários, mas por
outras categorias de camponeses que surgiram no vale. Os bons rendimentos trazidos pelas
culturas permanentes e a inclinação dos hacendados, em exigirem maior atenção dos
arrendatários às suas terras, colaboraram para que fosse necessário um incremento na mão de
obra. No caso, merece atenção a iniciativa dos arrendatários, que, para atender à demanda das
obrigações exigidas pelos fazendeiros, recorreram a novos braços. Com isso a região se
tornou um lugar de atração para outros camponeses, o que foi responsável pelo surgimento de
trabalhadores que ficaram conhecidos pelos seguintes nomes: o “allegado” e o “habilitado”3.
Mas o interessante, acima de tudo, é que, quanto à relação de produção e trabalho, o que
predominou entre hacendados e camponeses, mesmo em relação aos recém-chegados,
segundo Blanco sublinha em seu texto, foi o seu caráter arcaico, nos moldes do indicado no
capítulo primeiro. Conforme resumiu Hugo Blanco:
Foram contra essas relações arcaicas de produção, sustentada pelos hacendados, que
os camponeses se movimentaram. Ou melhor, não apenas isso, como destacou Hugo Blanco,
mas também pelas iniciativas levadas a cabo pelos donos das hacendas em retomar à força as
parcelas de terra concedidas aos arrendatários, que, por sua vez, atingiriam diretamente
também os camponeses na condição de “allegados”, uma vez que a terra destes provinham da
concessão de uma parcela cedida pelos arrendatários. Logo, não foi por acaso que os
sindicatos se alicerçaram, sobretudo a partir de arrendatários e allegados. Explicando:
3
A necessidade de mão de obra na região produziu uma cadeia de trabalhadores camponeses que estavam
diretamente relacionados.
107
Essa linha de raciocínio seguida por Hugo Blanco, que também foi aplicada por ele
quando esteve em ação no vale, entre 1958-1963, foi muito interessante, porque, apesar de
serem nítidas as diferenças entre os grupos que integravam a classe camponesa, reuniu e
separou as categorias da região em apenas duas classes antagônicas: os hacendados e os
camponeses (VILLANUEVA, 1967, p. 76), demonstrando assim o seu entendimento de que
os interesses e a exploração sofrida pelos camponeses eram semelhantes, independente da
categoria laboral ao qual estivessem vinculados. Este raciocínio, por exemplo, não foi seguido
pelo autor Eduardo Fioravanti (1974), que percebeu mais contradições do que semelhanças
entre os grupos que compunham os camponeses, podendo se constituir em uma espécie de
crítica àquilo que Blanco postulou.
De qualquer forma, a habilidade de líder sindical de Hugo Blanco em ajudar na
coordenação das ações dos camponeses, bem como o reconhecimento óbvio dos arrendatários
de que precisavam do apoio dos outros camponeses, inclusive daqueles que não possuíam a
concessão de nenhuma parcela de terra, foram fundamentais para que na região surgisse uma
polarização entre as duas classes mencionadas.
Apesar de ter sido feita de maneira breve, em seu livro, Blanco reforçou as
contradições entre hacendados e camponeses valendo-se da história peruana, especialmente
sobre a questão do domínio da terra. Neste particular, atentou para o fato de que desde os
tempos do domínio colonial e pós-colonial os camponeses haviam sido os grandes
perdedores, quer fossem aqueles membros das comunidades indígenas (ayllu), quer fossem
camponeses que viviam no interior de uma hacienda. Para Blanco, a história do Peru era a
história das agressões das haciendas sobre os camponeses.
Neste aspecto em particular, convém acrescentar, que não foi possível perceber
qualquer tipo de esforço por parte do autor em dar à temática qualquer tom menos parcial,
conforme podemos ler:
Embora seja possível identificarmos nestas passagens tanto uma herança de seu
indigenismo como uma herança do curso de agronomia iniciado por Blanco na Argentina, em
1954, pois há tanto a defesa dos índios quanto a preocupação com o trato do solo, a intenção
do autor foi a de demonstrar os aspectos históricos dos problemas dos camponeses que
persistiam. Por isso, mostrou que, além do latifúndio ter persistido ao longo da história
peruana, os grupos dirigentes do país estiveram diretamente vinculados às haciendas. Com
isso, a sorte dos camponeses teria estado à mercê dos interesses destes últimos – “Na serra de
Cuzco, as formas predominantes de produção são as da comunidade indígena, ou “ayllu” e
seu oposto: a hacienda, o latifúndio” (BLANCO, 1979, p. 40). Não obstante, exatamente aqui
temos a oportunidade, se observarmos com maior atenção, de perceber que o olhar empregado
pelo autor para enquadrar a questão estava inserido em uma perspectiva sócio-econômica. Na
sua visão, portanto, o problema estava ancorado na terra enquanto fonte de poder econômico,
social e político que ela garantiu ao longo do tempo a seus donos.
É por isso também que percebemos Hugo Blanco inserido numa tradição
interpretativa iniciada por José Carlos Mariátegui ainda na primeira metade do século XX.
Este, como se sabe, observou o problema indígena e camponês pelo prisma materialista e
econômico, por conseguinte, um problema diretamente vinculado à propriedade da terra. Com
isso, e como se sabe, Mariátegui não apenas rompeu com outras interpretações e soluções que
até então eram oferecidas, como percebeu que um dos principais gargalos do Peru
contemporâneo estava na manutenção daquilo que à época se chamava de “feudalismo
andino”4.
4
Até mesmo a caracterização de “feudal” para as relações trabalhistas nos Andes, por parte de Blanco, guarda
esta aproximação aos escritos de Mariátegui.
109
pela recuperação de terras, uma tentativa de romper com o passado senhorial (sustentado pelo
domínio da terra), o qual os indígenas comumente estiveram submetidos na serra.
Com efeito, segundo Hugo Blanco, e como logo mais demonstraremos, foi na fissura
aberta pela quebra desta estrutura fundiária e, por conseguinte, no enfraquecimento do
gamonalismo, que se estabeleceu o lugar onde se deu a instalação do poder dual no vale de Lá
Convención:
5
Com a exceção do último capítulo, que foi dedicado ao processo judicial que envolvia sua prisão, o resto do
livro representa um esforço de identificação e aplicação do Programa de Transição.
111
alicerces básicos que sustentavam a estratégia redigida por Trotsky, em 1938. No trecho a
seguir é possível identificar o que Blanco entendia sobre o Programa, bem como qual foi a
principal lacuna.
Em sintonia, portanto, com o programa teórico trotskista, Blanco reconhecia ainda que
as condições objetivas já estavam dadas, faltando apenas, além do partido, a construção de
uma ponte que conduziria essa massa à tomada inevitável do poder e, por conseguinte, à
violência revolucionária, representada pela luta armada (BLANCO, 1979, p. 29). Mas,
diferente de Trotsky, que tinha uma noção das condições objetivas em um sentido macro e até
internacional, notamos que Blanco deixou transparecer em seu trabalho uma visão mais
regionalista das mesmas. Nesse sentido, conseguiu destacar as condições que acometiam o
contexto rural da serra peruana, como as questões materiais, econômicas e políticas, mas não
estendeu isso ao resto do país ou a uma perspectiva mundial. Certamente, porque essa nunca
foi uma tarefa que Blanco se colocou. Porém, o interessante é que, justamente pelo fato de ter
se limitado a uma realidade em particular e porque pensou a sua experiência inserida no
trotskismo, é que podemos classificar Hugo Blanco como um autor preocupado em traduzir o
trotskismo para a realidade peruana.
Desta feita, não foi por acaso que, em seu livro, Hugo Blanco esteve interessado em
colocar em destaque o desenvolvimento econômico da região, bem como as contradições
desenvolvidas entre camponeses e hacendados, ou as lutas de interesses entre ambos e até
mesmo a disputa entre comunistas e trotskistas pelos sindicatos camponeses, pois nisto tudo
estariam as condições objetivas. Aliás, objetivas e plenamente maduras. As mesmas
condições que, partindo dos princípios expressos pelo Programa de Transição, seriam as
molas propulsoras que conduziram as massas a um nível de consciência mais elevado, em
outras palavras, que levariam as massas a ultrapassarem o “programa mínimo” em favor do
“programa máximo”. Desta forma, se, para Trotsky, a estratégia era fazer das lutas diárias do
proletariado, por menores e mais econômicas que fossem, uma via que levasse a classe a
tomar consciência sobre a necessidade de derrubada do capitalismo e a instauração do
socialismo, o mesmo pensou Blanco, embora tenha sido em relação ao campesinato peruano.
Portanto, ainda que a lacuna partidária tenha sido uma constante, como Hugo Blanco
demonstrou ao longo do livro Terra ou Morte, o aprofundamento das ações dos camponeses
no vale, que, de petições conduzidas por advogados contratados pelos primeiros sindicatos da
113
região, passaram a fazer greves, invadir haciendas e organizar a luta armada, tinha o objetivo
de conectar o movimento camponês à esteira do programa transitório, pois evidenciava um
processo permanente rumo à conscientização e radicalização. Em outras palavras, a superação
progressiva do “programa mínimo”.
Isto também deixa evidente a existência de uma tentativa de tradução do trotskismo à
realidade peruana, pois, diferente de Trotsky, Blanco não estava pensando no proletariado e o
contexto urbano, mas nos camponeses das haciendas. Desta preocupação do autor em se
adaptar ao contexto rural, por exemplo, surgiu um novo sentido para as greves dos
camponeses, que, segundo Blanco, ganharam um contorno e um significado diferente
daquelas praticadas pelo proletariado urbano. Em 1963 o jornal Obrero y Campesino circulou
esta concepção de Blanco, que apareceria também mais tarde no livro Terra ou Morte:
Mas, fora essa adaptação à realidade peruana, o que interessa frisar é que Blanco fez
questão de destacar que o que havia acontecido no vale de La Covención foi a implantação do
Programa de Transição próximo aos moldes trotskistas, principalmente, para evidenciar que
seu projeto não foi o mesmo de outros setores da esquerda. Este ponto, aliás, Blanco
esclareceu em diversas situações. No livro, este quadro foi incrementado por referências aos
momentos de disputa e tensão entre comunistas e trotskistas, demonstrando assim que essa
condição conflituosa estava ancorada em projetos revolucionários essencialmente opostos.
Para Blanco, os comunistas peruanos haviam renunciado ao marxismo revolucionário
ensinado por Lênin e Trotsky, pois estavam reproduzindo apenas o “programa mínimo” que,
como já indicamos no capítulo anterior, foi ganhando força a partir da ascensão do Stalinismo
na União da República Socialista Soviética. Contudo, é bom lembrar que tais acusações
devem ser compreendidas pelo prisma do trotskismo.
São necessárias lutas por objectivos transitórios (quer dizer, lutas que
aparecem aos trabalhadores como necessárias à solução dos seus problemas,
mas irrealizáveis no quadro do funcionamento normal do regime capitalista,
quer dizer, desembocando numa situação pré-revolucionária [...] para
permitir à consciência de classe dar um salto qualitativo em frente
(MENDEL, 1978, p. 14)
Mas para explicar as razões dessas teses em relação ao Partido Comunista, Blanco se
valeu da teoria da degeneração burocrática desenvolvida por Leon Trotsky, ainda na década
de 1930, formulada para esclarecer a derrota dos princípios que haviam guiado a Revolução
de Outubro e a criação da III Internacional. Para Trotsky, na União Soviética, aconteceu a
ascensão de um grupo responsável apenas em exercer o poder: a casta burocrática.
115
Hugo Blanco, bebendo nessa fonte interpretativa, também considerava que a ascensão
da chamada burocracia acabou usurpando o poder na União Soviética, pois se ergueu e se
fortaleceu às custas da inviabilização da participação das massas e comprometendo o
centralismo burocrático do Partido Comunista soviético. Este processo culminou numa
concepção de país que nem era socialista e nem capitalista, pois: “a União Soviética é um
Estado operário degenerado em proveito da burocracia; mas é um Estado operário, não
capitalista” (BLANCO, 1979, p. 57). Para Blanco, foi este Estado responsável por promover
Partidos Comunistas afeitos ao programa mínimo e contrários ao programa máximo;
incentivaram ainda direções reacionárias, que freavam a ascensão das massas, assim como
promoviam ideias contraditórias com os princípios que animaram a III Internacional no início:
a necessidade de que outras revoluções deflagrassem pelo mundo, sobretudo na Europa.
Explica:
Na sequência de seu livro, Hugo Blanco tratou de outros temas caros ao programa
trotskista: o poder dual e a luta armada. Os dois temas, por sua vez, apareceram em capítulos
separados, mas o fato é que são conceitos interdependentes. De qualquer maneira, o que
116
devemos nos atentar primeiro é justamente quanto ao esforço de Blanco em demonstrar que
de fato ele havia constituído esse poder no vale de La Convención, pois como pontuou ao
final do capítulo em que abordou o tema em particular: “estamos convencidos que houve o
Poder Dual” (BLANCO, 1979, p. 79). Mas o que seria o poder dual?
Para Leon Trotsky, a dualidade de poderes é uma situação própria de épocas
revolucionárias, um momento, por conseguinte, em que a unidade de poder é posta em xeque.
Por outras palavras, um período em que não vigora mais as condições da suposta classe
dominante de impor, mediante o controle do Estado, o seu controle econômico e político
sobre as outras classes e sobre todo o território. Nestas condições, abre-se uma situação em
que a classe dominante convive com classes organizadas que almejam e praticam ações a fim
de fragilizar o poder constituído e de inaugurar e impor um novo sistema social, deixando
evidente que cada uma dessas classes possui interesses inconciliáveis. Além disso, em uma
situação de poder dual, fora o controle de uma parte do território, as classes antes submetidas
às classes dominantes atuam com independência e muitas vezes convergindo à esperança de
outras camadas, mas, principalmente, “(...) concentra, efetivamente, em suas mãos, uma parte
importante do poder do Estado (...)” (TROSTKY, 1977, p. 185). De qualquer forma, eis a
resposta de Blanco para poder dual:
Entretanto, estas não foram palavras suas, mas palavras do famoso revolucionário
russo Trotsky, o que demonstrava a filiação de Blanco aos seus ensinamentos, e de modo
algum isto foi feito sem intenção. A verdade é que Blanco desejou convencer a quem o lesse,
como forma de legitimar o movimento liderado por ele, que de fato havia conseguido emular
o poder dual no vale de La Convención. Isto era importante por diversos motivos, por um
lado porque este conceito era mais um daqueles que podiam escorar seu projeto sob a
bandeira trotskista, bem como garantir que havia alcançado, na época, uma situação
revolucionária; por outro, demonstrava que sua práxis foi envolvida por teoria revolucionária,
não por ações aleatórias ou aventureiras. Nesse sentido, convencido da força esclarecedora da
117
teoria, se colocou a explicar porque estava convencido de que existiu, naquele evento, isso
que se classificou de poder dual.
Enquanto se dedicava a este objetivo, foi possível notar outro esforço de Blanco em
traduzir o trotskismo à realidade peruana, aspecto este que deixou transparecer na seguinte
afirmação: “ante o desconhecimento ou interpretação errada sobre nosso conceito de Poder
Dual [...]” (BLANCO, 1979, p. 70). A recorrência ao termo “nosso” deixa ainda mais
evidente a interpretação de que aquilo que ele produzira, apesar de trotskista, era, antes de
mais nada, peruano. E a singularidade do poder dual que emergiu no vale, Blanco a
identificou assentada no seu caráter não nacional, mas local, e não na disputa de poder entre
as classes que classicamente antecede a vitória socialista, isto é, entre a burguesia e o
proletariado, mas entre os “camponeses e os gamonais”:
É certo que no Peru a dualidade em escala nacional não se dará entre o poder
burguês e o campesinato, mas entre o poder burguês e o proletariado [...].
Mas isto não contradiz que, em escala local, dentro desse processo, surjam
germes de poder dual entre o governo burguês e outros setores populares que
não sejam o proletariado, inexistente, quase, em muitas zonas (BLANCO,
1979, p. 73).
6
“Em síntese, é o amo [gamonal] quase feudal. O poder está claramente concentrado nele [...]” (BLANCO,
1979, p. 74).
118
Hugo Blanco passou ideia semelhante, porque, apesar de anunciar certa contradição e
fragilidade nos interesses desses grupos, em nenhum momento identificou a concorrência
entre esses poderes. Por isso que, ao fim e ao cabo, para Blanco, o poder dual se daria entre
camponeses e hacendados7, pois, além dos interesses e a vontade de poder de ambos serem
antagônicos e irreconciliáveis, o último, devido às suas alianças, representava ao mesmo
tempo a burguesia peruana, isto é, os grupos que nosso intelectual entende como dominante.
Como sublinhou Hugo Blanco:
7
A título de exemplo, reproduzimos parte de uma citação apresentada no texto de Eduardo Fioravanti: “desde
que se organiza el sindicato, el campesino siente la necesidad de un organismo que haga justicia interna, pues
el hacendado ya no puede cumplir esa función debido precisamiente a la ruptura de relaciones que significa la
organización del sindicato; y, por otra parte, las autoridades políticas, judiciales y policiales se manifiestan
como instrumentos del patrón” (BLANCO, APOUD FIORAVANTI, 1974, p. 197).
119
camponeses: “el instrumento para la implantación del poder dual es el sindicato campesino”
(FIORAVANTI, 1974, p. 196)8.
Mas antes de adentrarmos nesta questão dos sindicatos, que, aliás, detém expressiva
relevância no pensamento de Hugo Blanco, convêm outras considerações a respeito do poder
dual.
Assim sendo, é expressivo recordar que esta temática não foi visitada pelo nosso autor
apenas durante a redação do livro Terra ou Morte. Poder dual, na verdade, é um conceito que
apareceu ainda nos escritos do cárcere de 1964: el camino de nuestra revolución. No entanto,
apesar dos princípios que sustentam o significado deste conceito ter permanecido ao longo do
período que compreende os dois referidos escritos, ficou evidente que as preocupações não
eram mais as mesmas. Em 1964, o norte que amparou este texto era justamente a ampliação
do movimento camponês, que naqueles anos se estendeu para além das fronteiras de La
Convención. Desta forma, atrelado aos princípios trotskistas, aos quais, segundo o
depoimento de um ex dirigente da juventude do Partido Comunista, “Blanco era muy fiel
[...]” (LUST, 2013, p. 91), ele ventilou algumas tarefas imediatas aos companheiros que,
diferentemente do que se passava com ele, permaneciam em liberdade e em ação juntos aos
camponeses, que eram justamente o de desenvolver o poder dual no campo.
Nesse sentido, naquele momento, Blanco informava a necessidade dos trotskistas de
tomarem a direção dos sindicatos que foram se alastrando pelo país, a exemplo do que
aconteceu no vale onde atuou. Na ocasião, como já reconhecia os problemas da falta de um
partido de vanguarda, deixou claro que tais trotskistas estariam sob a égide do Partido.
Contudo, foi categórico ao afirmar que, estar à frente de um sindicato deveria significar um
aprofundamento qualitativo sem precedente no interior do movimento camponês e do próprio
sindicato, pois de nada valeria penetrar entre as massas, tomar sua direção, fazer propaganda,
agitá-las e fazê-las entrarem em ação se a direção trotskista não tivesse consciência que seu
objetivo fundamental nesse processo era fazê-lo culminar na concretização do poder dual. Ou
seja, era necessário imprimir o tom e a consciência da situação revolucionária que os
8
A perspectiva que Hugo Blanco quis oferecer à ideia de poder dual, além de ter sido aludida por Eduardo
Fioravanti, foi captada também por Aníbal Quijano: “Las invasiones de las tierras de las haciendas de La
Convención que eran luego poseídas y trabajadas de manera colectiva por los sindicatos, dieron también como
resultado la formación de una nueva estructura de poder local, casi totalmente independiente del poder oficial y
tradicional, que llegó a controlar a través de los sindicatos, no solamente la apropiación y el trabajo colectivo de
las tierras de las haciendas invadidas, sino también todo los demás aspectos de la vida diaria de las localidades,
incluyendo la administración de justicia. Se había formado, así una especie de estado dentro del Estado
(QUIJANO, 1979, p.127).
120
sindicatos eram responsáveis por constituir. Pois, caso contrário, este poder estaria se
erguendo sobre bases frágeis, ou pior, se daria de forma inconsciente, por conseguinte, de
forma não revolucionária – “Hay el peligro que la tomada de la dirección real del
movimiento campesino por nuestro partido, no signifique un cambio qualitativo en este
desarrollo inconsciente del poder dual” (BLANCO, 1965, p. 10).
Desta forma, Hugo Blanco exigia uma “revolução” interna profunda nos sindicatos,
penetrados e cooptados para o trotskismo. Por outras palavras,“[...] la transformación del
sindicato o la organización campesina, de organización simplemente masiva del
campesinado, en organización de masa conscientemente revolucionarias” (BLANCO, 1965,
p. 10), os quais, com efeito, eram os embriões de poder dual.
Esta nova condição almejada, segundo Blanco, os conduziria a outro nível de luta
revolucionária, nível este que amadureceria a tal ponto que afastaria qualquer dúvida de que o
poder dual não havia rompido com a forma inconsciente, que era justamente o início da luta
armada. Esta nova condição nascia do poder fracionado, pois como uma fatia do Estado e do
território não estava mais sob as mãos da antiga classe dirigente, esta era impelida a retomar
seu antigo controle, enquanto a sua concorrente era impelida a se defender e, em determinadas
situações, ampliar os seus domínios. Foi por isso, inclusive, que Leon Trosky afirmou: “o
fracionamento do poder prenuncia a guerra civil” (TROTSKY, 1977. p. 185). Desta forma,
pode-se notar que, para Blanco, a luta armada era a consequência inevitável de organizações
com objetivos revolucionários. Eis o que destacou Hugo Blanco (1965, p. 11):
Do seu lado, Blanco acreditava que, embora a consciência do poder dual estivesse em grande
medida representada pela preparação e a inevitável luta armada, a base desse poder estava
primeiramente com as massas, precisamente nos sindicatos camponeses, uma vez que estes
expressavam a união e as decisões políticas de camponeses organizados. Foi por isso,
inclusive, que na maioria das vezes recomendou a formação de milícias, devido à conexão
orgânica que ele acreditava que este tipo de formação militar cultivava com as massas. Porém,
como mais à frente apontamos, nos momentos em que, nos seus escritos, cedeu e reconheceu
a possibilidade de se valer do uso e da formação de guerrilhas, esta foi esvaziada do
significado castro-guevarista, pois, além de ser emulada a partir das massas, ela estaria,
simultaneamente, submetida ao partido.
Não obstante, como já foi possível notar, foi tratando de poder dual que certamente
alcançamos uma das principais organizações que integram o arcabouço intelectual e
revolucionário de Hugo Blanco: os sindicatos. A respeito da importância e da
interdependência entre poder dual e sindicatos, Hugo Neira chegou a afirmar que ambos
compreendem as concepções políticas preferidas por Hugo Blanco (NEIRA, 1967, p. 94).
Mas, apesar da importância conferida aos sindicatos, evidenciada especialmente no texto el
caminho de nuestra revolución, Blanco aproveitou para chamar a atenção em Terra ou Morte
para que sua experiência não fosse confundida com sindicalismo. Com isso, obviamente,
Blanco tentava escapar de algumas acusações que pudessem distanciá-lo do programa
trotskista, pois, como destacou Trotsky ao longo do texto “Programa de Transição”: “ao
mesmo tempo, a IV Internacional rejeita e condena resolutamente todo o fetichismo sindical,
comum aos “trade-unionista” e aos sindicalistas” (TROTSKY, 1978, p. 29). Além disso, e
junto a outras críticas, Leon Trotsky fez questão de ressaltar também que os sindicatos não
podem e não devem substituir jamais o partido.
Crente, desde o início, e provavelmente desde sua estadia entre os trotskistas
argentinos, a respeito da importância das massas, Blanco fez questão de organizá-las quando
chegou ao vale de La Convención. Ali, como se sabe, fundou dezenas de sindicatos
camponeses. É claro que Blanco não foi o pioneiro na região, pois antes dele já existiam
alguns sindicatos. No entanto, é fato que esta organização de massa, não apenas cresceu em
proporção, como ultrapassou as intenções iniciais: as exigências por melhores condições de
trabalho, melhores salários, o cumprimento de leis que já existiam, o fim dos trabalhos
gratuitos e, especialmente, a utilização dos canais legais de reivindicação. Nesse sentido, para
a maioria dos autores aqui mencionados, foi com a chegada de Hugo Blanco que os sindicatos
122
ganharam um novo tom, o tom revolucionário9, pois desencadearam ações que galgavam
romper as estruturas econômico-sociais e políticas, que há tempos regulavam a vida dos
camponeses da região. E, no olhar de Blanco, isto era em decorrência de terem atacado a base
dessa estrutura: o latifúndio.
Os pesos transformadores que os sindicatos alcançaram, por sua vez, na prática, mais
tarde corroboraram para que Blanco sistematizasse essa experiência em seu trabalho
intelectual, onde aproveitou para chamar a atenção para um novo significado e uma nova
tarefa que deveriam ser cumpridas pelos sindicatos camponeses. Com efeito, sua ideia estava
ancorada em fazer desta organização mais do que um organismo de massa e de classe, mas
uma organização geradora de poder e estabelecida sobre bases democráticas, tal qual foram
um dia, em sua leitura, os sovietes durante a Revolução Russa – “el sindicato campesino se
erige paulatinamente en un verdadeiro organismo de poder popular democrático [...]”
(BLANCO apud FIORAVANTI, 1974, p. 196). Com isso, acreditava produzir no Peru uma
situação semelhante ao período revolucionário russo, quando os soviets desencadearam a
situação de dualidade de poderes.
A aposta em sindicatos equivalentes aos soviets ganhou tal amplitude no pensamento
de Hugo Blanco que o mesmo chegou a afirmar que o sindicato campesino era o único
“partido revolucionário sui generis de masas que hay en nuestro pais” (BLANCO, 1965, p.
12), pois:
No creo que en el Perú llegue a surgir otro organismo con apoyo del
movimiento de las masas que sea capaz de dirigir y llamar a acciones
revolucionarias. No creo en la posibilidad de soviets o grandes partidos de
masa que puedan llamar por sí solos a la revolución. Los sindicatos
cumplirán esse rol (BLANCO, 1965. p. 12-13).
9
De acordo com esta concepção está Eduardo Fioravanti: “Un nuevo carácter adquirirían los sindicatos
campesinos con la llegada de Hugo Blanco al valle de La Convención”(1974, p. 91).
123
Como já expomos em outras passagens, uma conclusão como esta não estava em
desacordo com o que também expressou Blanco. No entanto, queremos terminar afirmando
que, em último caso, nosso intelectual quis deixar registradas as seguintes impressões: que o
poder é gerado a partir das massas e tendo o partido como guia, deixando entrever, por outras
palavras, que a revolução socialista peruana dependia deste caminho. Por outro lado, a outra
impressão que convém mencionar é que todo este conjunto de afirmações objetivava deixar
expresso o protagonismo das massas camponesas, aspecto, aliás, evidente em todos os
escritos de Blanco, mas que provavelmente apareceu com uma intenção especial no livro
Terra ou Morte.
Assim, consideramos que deixar o mencionado aspecto evidente era importante
porque significava também uma crítica e uma alternativa em relação ao governo militar
inaugurado em 1968, a partir de um golpe. Naquele momento, como se sabe, assumiu o poder
o General Juan Velasco Alvarado, governo responsável por devolver ao Estado a condição de
sujeito político cujo resultado foi a implementação de um projeto de modernização autoritário
(CONTRERAS;CUETO, 2007, p. 328). Dentre as diversas reformas colocadas em práticas,
destacou-se a reforma agrária que este governo deu início em 1969. Na ocasião, aproveitando
a bandeira revolucionária que se autocolocou e, porque a pauta em questão era uma
reivindicação de diversos ramos políticos e sociais, o governo militar aproveitou para dar
início à expropriação de latifúndios, tanto na região serrana como na região da costa do país.
Até 1979, foram desapropriados 9.1 milhões de hectares e 369 mil famílias foram
beneficiadas.
Não nos cabe, por sua vez, retomarmos as consequências e os problemas dessa
reforma agrária. O importante, na verdade, é identificar no livro Terra ou Morte a intenção de
diminuir a relevância dessa reforma realizada pelos militares, que, em última instância,
almejava cooptar as demandas da classe camponesa e servia como um desestimulante para a
ação independente dos mesmos.
124
A Revolução Agrária, como se sabe, estava representada pelas invasões de terras das
haciendas, atitude esta suficiente, para diversos autores (VILLANUEVA, 1967;
FIORAVANT, 1974; NEIRA, 1968; QUIJANO, 1979) defenderem que esse processo era
sinônimo de alteração das estruturas que predominavam na paisagem rural peruana,
especialmente em relação à serra. Neste particular, assim escreveu Aníbal Quijano em 1965:
10
Lembrando que a Revolução Agrária evocada aqui não era sinônima de coletivização das terras. Esta
Revolução, para tais autores, inclusive para Leon Trotsky, tanto no seu livro A Revolução Permanente (1985),
como no Programa de Transição(1978), significava o ataque às estruturas arcaicas/feudais que predominavam
no campo, situação esta que previa o parcelamento das propriedades entre os camponeses, incentivos em favor
do desenvolvimento produtivos dessas terras e o fim dos regime de servidão. Atender e oferecer essas condições
aos camponeses, inclusive, era a maneira que Trotsky acreditava que faria com que os camponeses seguiriam em
apoio do proletariado durante e após a insurreição revolucionária. A reforma agrária executada por Hugo Blanco,
no vale em questão, enquanto esteve à frente dos camponeses, adequava-se noção de Revolução Agrária
justamente porque realizou o mencionado ataque e parcelamento de várias haciendas ali localizadas.
125
Contudo, não foi apenas a ideia de Revolução Agrária que tais autores identificaram.
De uma maneira geral, eles, e guardadas suas particularidades, também apontaram para a
ideia de que essa revolução não ultrapassou a perspectiva agrarista, sendo, por conseguinte,
seu grande problema a falta de planos para se tomar o poder.
Para Victor Villanueva, o problema estava na direção, precisamente com o SLATO,
sob a liderança de Nahuel Moreno, que vacilava em elaborar um programa que desse suporte
político e militar para o FIR e aos camponeses sob o comando de Hugo Blanco levarem a
cabo a insurreição revolucionária. Esta lacuna, ainda segundo o mesmo autor, era gravíssima,
pois “[...] una insurrección es una operación militar hecha con fines políticos”
(VILLANUEVA, 1967, p. 113). Com efeito, sem oferecer o referido programa, nem o
SLATO, nem o movimento de Hugo Blanco podiam ser considerados revolucionários. E o
problema se agravava, na análise de Villanueva, pelo fato de que o plano do SLATO se
inclinava cada vez mais em empreender, junto aos camponeses, apenas uma espécie de
projeto estratégico-político de implementação do poder dual que não almejava a insurreição,
mas apenas a constituição de sindicatos e milícias armadas para defender e tomar as terras dos
latifúndios da região, não para assaltar o poder.
porque este mesmo renunciava o ataque ao poder. Para Blanco, a questão precisava de fato ser
colocada em termos defensivos, como é possível ler na seguinte afirmação:
Do seu lado, Hugo Blanco pautou-se bem mais nas milícias do que nas guerrilhas, mas
não por mera retórica, porque, além das milícias estarem na base do pensamento trotskista, ele
percebia que no Peru elas atendiam à etapa revolucionária e às particularidades do país,
especialmente na região rural. A respeito disso, destacou que, antes de qualquer coisa, no
campo, os camponeses estão organizados sob organismos de massas (sindicatos) que
precederam o surgimento da luta armada, o que colocava o processo revolucionário peruano,
por exemplo, num ponto de partida singular ante outras revoluções: “as experiências cubanas,
chinesas etc. caracterizaram-se, em seu ponto de partida, pela ausência de organização das
massas combatentes, até então considerada uma condição prévia [...]. No Peru já existem
organizações que agrupam amplas massas” (BLANCO, 2006, p. 465). Com efeito, defendia
que se as massas já estão organizadas, muito mais coerente era a constituição de milícias,
dada a ligação fisiológica de ambas, pois baseava-se no princípio de que as massas
organizadas, e mediante a elevação do seu nível de consciência, que seria garantida pela
atuação do partido, brotariam as milícias camponesas e a violência revolucionária. E assim
sendo, a guerra de guerrilha ficava descartada, porque de nada valeria a implementação de um
grupo guerrilheiro isolado das massas dentro do contexto em que Hugo Blanco acreditava em
que os camponeses peruanos estavam.
Desta forma, e observando tais afirmações, para Hugo Blanco, era obviamente um
equívoco destinar, no Peru, à luta armada as mesmas tarefas e relevâncias que tiveram em
outras revoluções. Em outras palavras, tentava confrontar a perspectiva de que em seu país, a
guerrilha pudesse ser o caminho pelo qual se engendraria o grande motor responsável pelas
revoluções, como queria Regis Debray (1967). Ademais, as milícias eram o caminho
conveniente porque, segundo Hugo Blanco, elas se adaptavam à realidade da vida camponesa
propriamente dita: “portanto, o guerrilheiro sai de sua casa para regressar a ela no final da
luta. Em compensação, o miliciano fica em casa, dedica-se ao trabalho e, quando é preciso
lutar, luta” (BLANCO, 1964b, p. 468). Não por acaso assim deixou destacado: “de cem
camponeses dispostos a lutar, 99 quererão ser milicianos e só um, guerrilheiro” (1964b, p.
468).
De qualquer modo, ainda que a maior parte do tempo Hugo Blanco tenha se dedicado
a promover positivamente as milícias, poderia se argumentar que Blanco tenha intentado a
formação de uma guerrilha logo antes de ser preso em 1963, bem como teria economizado,
em seus escritos, críticas em relação às guerrilhas. Apesar da aparente contradição, o fato é
que, quando observamos seu trabalho intelectual, apesar de sua preferência pela milícia, não
notamos Hugo Blanco condenando a utilização da guerrilha. O que o intelectual
128
implementação do socialismo, certamente, na visão de Blanco, não havia razão para que ele
fosse acusado de ter se circunscrito a uma agenda econômica. Sendo esta agenda o fim dos
trabalhos servis impostos aos camponeses das haciendas e o parcelamentos das terras com a
reforma agrária propostas por Hugo Blanco. Pois, diferente do que aconteceu, não planejava
frear a ascensão revolucionária das massas campesinas quando estas estivessem livres do
regime de servidão e nem quando tivessem alcançado a propriedade da terra. Na verdade, seus
escritos dão a entender que o plano era defender estas conquistas através das milícias, mas,
simultaneamente, intensificar o processo revolucionário (amadurecendo as condições
subjetivas e despertando, inclusive, as massas urbanas) até se chegar à etapa da tomada do
poder. Ou seja, ao que nos parece, Blanco quer dizer que a Revolução Agrária não era o fim,
mas apenas o meio, ou, por outras palavras, o ponto de partida da revolução no Peru.
Finalmente, porém, é preciso que se considere que o livro Terra ou Morte não foi
apenas uma defesa do Programa de Transição e dos métodos e estratégias trotskistas, dentro
de uma realidade nacional. Em nossa compreensão, o referido livro tinha uma ambição mais
ampla, pois certamente estava vinculado aos debates que aconteciam na IV Internacional, no
início dos anos 70, deixando evidente, mais uma vez, que os entendimentos da Revolução
Peruana e da trajetória do intelectual revolucionário Hugo Blanco não estavam desconectados
desse órgão. A isto nos dedicaremos agora.
11
BLANCO, H. NOME DA CARTA, ANO DA CARTA. In: SWP. International Information Bulletin, nº 7, set.
1970.Disponível em: https://www.marxists.org/history/etol/document/fi/iib-1970-76/2-apr-1970-intl-inf- Acesso
em: 15 jun. de 2017.
131
Foi nesse contexto, portanto, em que Cuba aprofundava sua responsabilidade pela
revolução em toda a América Latina, que apareceu no interior da organização trotskista, o
Secretariado Unificado (SU), um documento escrito pelo dirigente italiano Lívio Maitan, em
1968, em que se notava reverberações das intenções e propostas previstas pela OLAS.
Segundo Isabella Duarte Pinto Meucci (2016), este dirigente achava que estavam prontas as
condições objetivas para a revolução ao longo de todo o continente e que esta ganharia
expressão através de lutas armadas, sobretudo na forma de guerrilhas rurais: “Maitan
acreditava que a luta armada no continente latino-americano iria assumir a forma específica
da guerrilha rural” (MEUCCI, 2016, p. 176). Esta visão, por sua vez, não era única dentro do
SU. No início de 1969, Joseph Hansen, o principal dirigente do SWP nos Estados Unidos,
apresentou um documento questionando as análises de Maitan e denunciando sua demasiada
sintonia com a direção cubana e com o modelo de revolução representado pelo castro-
12
Conforme um artigo publicado pela historiadora Isabella Duarte Pinto Meucci (2016, p. 173), este último
ponto ganhou força dentro do SU entre os anos de 1968 e 1974.
133
guevarismo (MEUCCI, 2016, p. 176-177). Hansen defendeu outra posição. Acreditava que o
partido, além de ser a prioridade dos militantes trotskistas, deveria ser hierarquicamente
superior ao aspecto militar, demonstrando assim que o partido era a estratégia a ser
perseguida, não a formação de guerrilhas. Em outras palavras, entendia estar defendendo o
legado de Leon Trotsky.
De qualquer maneira, conquanto existissem as posições divergentes, foram justamente
as posições de Lívio Maitan que prevaleceram no IX Congresso do Secretariado Unificado.
Segundo Osvaldo Coggiola (1984, p. 71), “os documentos do IX Congresso (1969) orientam
as seções latino-americanas para a preparação da luta armada (inclusive no campo) em toda
circunstância, ainda que as lutas operárias ocupem o centro da cena”. Vitoriosas as teses de
Maitan, o que se seguiu, como já foi anunciado, foram as polêmicas no interior da
Internacional a respeito da questão da guerrilha, de tal maneira que em 1972 apareceram os
dois grupos representantes de duas correntes, a Tendência Leninista Trotskista (TLT) e a
Tendência Majoritária Interna (TMI).
De qualquer modo, o objetivo é problematizarmos Hugo Blanco dentro deste
panorama. Assim, levando em conta tudo o que foi dito a respeito da trajetória intelectual e
revolucionária dele e como o livro Terra ou Morte foi publicado no mesmo ano em que se
formalizava o grupo Tendencia Leninista Trotskista, o qual ele integrava, acreditamos que
Blanco estava contribuindo para se posicionar contra o que foi decidido no IX Congresso.
Além disso, e como procuramos demonstrar ao longo do presente trabalho, nosso intelectual
cultivou, desde o início, pouco entusiasmo em diminuir o trotskismo em detrimento da
novidade representada pelo castro-guevarismo. Aspectos estes que foram reforçados e
destacados ao longo do referido livro. Ao mesmo tempo, a defesa que ele fez do Programa de
Transição, assim como a utilização de diversas referências às obras de Trotsky revelariam que
a solução não estava no abandono do trotskismo, talvez sim no seu aprimoramento, mas
nunca na sua substituição.
Acontece que este olhar socioeconômico que Blanco priorizou sobre os indígenas,
embora fundamental para compreender os objetivos de nosso autor, não era uma novidade no
interior da tradição política peruana, pois é herdeira de uma leitura marxista da sociedade que
ganhou força ainda na primeira metade do século XX. Para tanto, importante foram as
contribuições dos socialistas, sobretudo dos intelectuais. Como afirmou Carlos Fernandez,
“Fueron los socialistas peruanos los que transformaron a los indios en campesinos” (2011, p.
8). E isto esteve longe de ser algo banal para a história do país, pois “este cambio se
oficializará cincuenta años más tarde, en la década del 70, cuando el Gobierno del Gral.
Juan Velasco modificó el nombre del 'Día del Indio' por el 'Día del Campesino”
(FERNANDEZ, 2011, p. 8). Apesar de tudo, o que queremos mostrar são as razões e
importância dessa transformação de terminologia para compreendermos como Hugo Blanco
se inseria dentro da tradição por ela estabelecida.
No socialismo, as sociedades são divididas em classes e são estas as responsáveis por
revoluções, o que sem dúvida deixa claras algumas das razões dos socialistas almejarem a
referida transmutação social, no caso do índio peruano. No entanto, é importante dizer que
não se estava apenas em busca de uma redefinição de classe. Isso também era o resultado do
esforço intelectual dos socialistas, que estavam reconhecendo, nas primeiras décadas do
século XX, além das particularidades do Peru (de população predominantemente indígena e
uma burguesia não revolucionária), que a massa proletária, pelo seu número irrisório, não
bastaria para conduzir o país à revolução. Em outros termos, denominar o indígena como
camponês fazia parte de uma saída teórica para o problema da ausência da classe proletária no
país.
Nesse sentido, percebemos Hugo Blanco como herdeiro de uma tradição socialista
peruana que tomou fôlego na primeira metade do século XX, pois Blanco, durante sua
trajetória de intelectual revolucionário, demonstrou-se cônscio da categoria de classe
camponesa, pois assim preferiu se expressar sobre os índios peruanos. Além disso, deixou
evidente em sua obra e em seus feitos que realmente acreditava ter desencadeado o ponto de
136
É claro, por sua vez, que o encontro operado não encerrava a questão. Assim, se o
indigenismo deu sua contribuição, tão importante quanto ele foi a leitura marxista pouco
ortodoxa da história peruana realizada por Mariátegui. Nessa sua leitura, especialmente ao
137
Portanto, o nosso objetivo foi expressar, ainda que brevemente, a importância dos
socialistas, especialmente de Mariátegui, assim como dos indigenistas para a composição
dessa tradição que afirmamos em que Hugo Blanco estava inserido. Porque, se existiu no Peru
uma cultura política socialista que pensou os indígenas como uma classe indispensável para a
Revolução Socialista no Peru, quando Hugo Blanco foi para o campo, organizou os
camponeses e confiou que a partir dos camponeses a revolução socialista começaria,
acreditamos que ele trilhava essa cultura política iniciada ainda na primeira metade do século
XX.
Acreditamos, ainda, que essa cultura política teve sua importância aumentada devido
ao contexto daquela época. Afinal, a década de 1950 produziu inúmeras revoluções e
convulsões políticas e sociais em países situados à margem das metrópoles capitalistas, como
Coreia, Vietnã, Argélia, Cuba, dentre outros, tornando evidente que, naquele momento, a
vanguarda não estava necessariamente nas metrópoles capitalistas e sob o auspicioso
proletariado, mas, sim, no campo, com os camponeses distantes dos centros industrializados.
A importância dessa cultura política pode ser constatada também se observarmos
algumas das concepções que pareciam ser o eixo da IV Internacional. Esta, que enfrentava as
consequências da cisão de 1953, não foi rápida para realizar alterações em seus programas a
partir da dinâmica dessas novas revoluções. Nesta questão, o posicionamento de Blanco
139
também chamou a atenção, pois sua atitude estava em desacordo com o que previa o Comitê
Internacional da IV Internacional. O (CI), no seu primeiro encontro mundial, aprovou as
propostas trazidas pelo dirigente trotskista americano Farrell Dobbs, que insistia no
protagonismo revolucionário das massas urbanas nas metrópoles capitalistas, como ponto de
partida para a revolução mundial (MONTEIRO, 2016, p. 317), e não os países periféricos e
muito menos as massas camponesas. Apesar de tudo, também foi verdade que esta tendência
do CI não encontrou unanimidade durante o congresso, pois a seção latino-americana
(SLATO), por exemplo, passou a se inclinar em favor e a defender a relevância de revoluções
na periferia do mundo capitalista.
No caso do SLATO, em 1958, o então dirigente, o argentino Nahuel Moreno,
participou do referido congresso e, como discordava do que acabou sendo decidido pelo CI,
publicou, em 1959, um informe que levava o seguinte nome: La Revolución Permanente en la
pós-guerra: crítica al documento de Farrell Dobbs. No trecho a seguir é possível identificar
sua principal crítica:
13
Além do texto La Revolución Permanente en la pós-guerra: crítica al documento de Farrell Dobbs, Moreno
publicou Tesis sobre el frente unico revolucionário: teses de Leeds. Disponível em:
https://www.marxists.org/espanol/moreno/1950s/1958fu-1.htm
140
E ao que tudo indica, Blanco foi formado na Argentina sob essa bandeira que
depositava a esperança revolucionária nos ombros apenas do proletariado. Contudo,
defendemos que ele conseguiu ultrapassar alguns pontos desse “preconceito”, em que
contribuiu não apenas a realidade que se deparou ao chegar ao Peru, em 1956, ou seja, que o
país não era essencialmente urbano e industrial – “[...] en Lima, pero entraba a una fábrica —
yo acostumbraba estar en fábricas de 10 mil obreros, 5 mil obreros en Argentina— pero solo
tenía 20 ó 15 obreros, no había sindicato”(BLANCO, 2011, p. 244) – mas a cultura política a
qual já nos referimos. Foi neste ponto, aliás, que identificamos o outro aspecto que conferiu
141
Foi então que iniciei minha militância camponesa; pois, ainda que como
militantes do POR tivéssemos um critério desproporcionadamente ‘obrerista’
para o Peru, como marxistas praticávamos o método de ver a realidade e
assimilar seus ensinamentos, e de atuar ali donde passa a corrente
revolucionária (BLANCO, 1979, p. 36)
Sobre isso, é importante que se esclareça que não estamos aqui a defender a ideia de
que Trotsky fez pouco caso dos camponeses, uma vez que é sabido o papel fundamental que
tiveram para consolidação da Revolução Russa de 1917, bem como o papel de destaque que
tiveram no interior da teoria revolucionária dos principais líderes dessa revolução
(PASQUIM, 2013). Haja vista ainda que, no livro A Revolução Permanente (1985. p. 51),
Leon Trotsky se esforçou em se defender das acusações de seus opositores, que diziam que
ele havia tentado diminuir a importância da classe camponesano processo revolucionário
russo.
Na verdade, queremos destacar o fato de que Blanco e os camponeses desencadearam
na região a Revolução Agrária, isto é, estavam eles quebrando uma estrutura arcaica ou, por
outras palavras, “o feudalismo andino”. A existência de um tipo de “Revolução Agrária”
naquele período foi confirmada pelos estudos de autores como Aníbal Quijano (1965), Victor
Villanueva (1967), Eduardo Fioravanti (1974) e,mais recentemente no livro de Jan Lust, no
qual o autor afirma: “la lucha campesina en la Convención y Lares fue revolucionaria en el
sentido de que desempeñó un papel crucial en la destruicción de las relaciones de producción
semifeudales” (LUST, 2013, p. 71).
Contudo, tais autores não pararam para refletir sobre como essa “revolução”
representava um distanciamento entre Hugo Blanco e as concepções de Leon Trotsky, como
aqui propusemos interpretar. Trotsky não acreditava que os camponeses fossem capazes de
desencadear nem uma revolução socialista, nem uma revolução agrária, pois estes eram
incapazes de uma atuação independente. Para ele, os camponeses sempre precisariam de uma
classe que os convocasse e os guiasse pelos caminhos das referidas revoluções, que, neste
caso, só poderia ser realizada pelo proletariado. E isto Trotsky deixou bastante claro no seu
clássico livro A Revolução Permanente (1985).
Ora, Hugo Blanco parece ter rompido com essa lógica, porque não esperou o
proletariado urbano se movimentar e conclamar os camponeses em favor da Revolução
Agrária, também não foi determinante que os primeiros tomassem o poder. Aliás, esta
revolução, como foi praticamente obra das massas camponesas, questionava ainda a visão de
que elas eram incapazes de se organizarem, resolverem suas próprias questões e executar
tarefas revolucionárias. Igualmente, dava a entender que, no Peru, o despertar da revolução
socialista se daria realmente a partir do campo, com ampla participação das massas
camponesas, resolvendo primeiro as antigas demandas desta classe, para depois seguir rumo
às cidades, ao encontro do proletariado, e não o contrário. Essas noções, inclusive, Blanco
deixou expressas em uma nota publicada pelo jornal trotskista Obrero y Campesino, que
circulou em agosto de 1963: “los otros sectores del pueblo comiezan a ver los resultados
benéficos de la sindicalización y de la revolución y llegan a compreender la potencia
encerrada en la masa campesina, que de ser liberada llegaría a distancias imprevisibles”
(BLANCO, apud VILLANUEVA, 1967, p. 125).
E finalmente, a novidade dos fatos foi percebida e endossada pelo líder do SLATO,
Nahuel Moreno, que, em 24 de abril de 1961 enviou uma carta a Blanco. Nesta carta foi
possível encontrar afirmações como esta:
Creo que tú tienes el mérito de haber visto antes que nadie que en vuestro
país se había iniciado ya la revolución agraria. [...]. Vuestra revolución
tiene un rasgo específico: ha comenzado en esta etapa como revolución
agraria y no como una revolución obrera o de todo el pueblo contra el
imperialismo. Tiene como su vanguardia al campesinado de una zona, el
Cuzco, que se planta el problema de la tierra, mientras el proletariado de
las ciudades y de las minas, se mantiene a la retaguarda, a la defensiva
(MORENO, 2016, p.2).
143
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deste modo, enquanto realizava suas críticas ao modelo de revolução que a ilha
caribenha e outros intelectuais revolucionários faziam questão de divulgar e ressaltar, Blanco,
a seu modo, se colocava como defensor das táticas e estratégias consagradas pela cartilha
trotskistas como o mais conveniente, inclusive, à realidade peruana. Assim, sua preocupação
esteve em fazer a defesa do partido de vanguarda; e também em fazer a defesa de que o ponto
de partida das revoluções iniciam-se necessariamente com o vínculo, com a direção e com a
educação das massas, que seria garantido a partir do mencionado partido, e cujo resultado era
a culminação em uma situação de poder dual e da luta armada, isto é, em uma situação
revolucionária. De qualquer modo, a defesa de cada desses princípios não deixou de ser uma
maneira de refutar e combater muitos dos caminhos em que se assentava o exemplo
revolucionário de Cuba, como procuramos deixar claro ao longo do trabalho. Isto também
ficou evidente quando Blanco, ao mencionar as possibilidades de se valer de guerrilhas, estas
foram esvaziadas dos fundamentos que sustentavam o modelo de guerra de guerrilhas.
Outro ponto importante foi a Revolução Agrária a que Hugo Blanco e outros
estudiosos do caso de La Convención acreditaram que foi posto em prática nessa região.
Primeiramente, ainda que esta revolução estivesse na base do pensamento trotskista, como
quisemos demonstrar, ela, em último caso, nos pareceu como um fenômeno que acabou
superando parte do pensamento de Leon Trotsky e das concepções veiculadas pela IV
Internacional naquele momento, principalmente quanto às secções que Hugo Blanco tinha
algum tipo de vínculo. Afinal, este último destinou às massas camponesas tarefas
revolucionárias que antes eram exclusivas do proletariado, e que era o caso da referida
Revolução Agrária. De qualquer maneira, como defendemos no presente trabalho, apesar da
aparente novidade, esta nova responsabilidade a que ficaram submetidos os camponeses teve
a contribuição de toda uma tradição política peruana em que participavam tanto o indigenismo
como o socialismo peruano, o que significou, igualmente, o esforço de se adaptar o trotskismo
a realidade do país em questão.
Em segundo lugar, além dessa novidade, é importante não esquecer que a Revolução
Agrária que mencionamos, embora tenha sido um ataque realizado pelos camponeses ao
sistema de hacienda e a todas às características arcaicas/feudais que este sistema sustentava,
dentro da trajetória de Hugo Blanco, tal Revolução deve ser medida não apenas como a
expressão de seu trotskismo, mas também como expressão de seu indigenismo. Assim,
defender os índios camponeses a partir dos ataques aos gamonais e aos latifúndios não
deixavam de ser uma forma de atender suas ideias e sentimentos atrelados e alimentados pela
corrente indigenistas, que, como procuramos deixar claro, estiveram na base da formação de
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Hugo Blanco enquanto sujeito. Nesse sentido, os ânimos que motivaram e que explicam a dita
Revolução Agrária que Hugo Blanco deu forma estão, de alguma maneira, estão para além do
seu trotskismo, uma vez que suas ações e pensamentos não deixaram de ser uma expressão de
defesa e valorização da população indígena do Peru.
Ademais, convém retomar o exercício intelectual de Blanco. Neste caminho, como
procuramos demonstrar, seus escritos revelaram uma intensa tentativa de adaptar o trotskismo
a realidade peruana a que estava inserido, de tal maneira que, em muitos momentos, seu
trotskismo era, antes de mais nada, peruano. Este esforço, por exemplo, ficou evidente com a
escrita do livro Terra ou Morte, pois, ao mesmo tempo em que tentava demonstrar que sua
experiência revolucionária entre os camponeses representava a aplicação do Programa de
Transição, em muitos momentos o percebemos manejando diversos conceitos do trotskismo
revolucionário a fim de adaptá-los a realidade de seu país.
Portanto, o intelectual revolucionário Hugo Blanco foi um personagem da esquerda
peruana que, mediante sua teoria e a sua ação, se colocou a serviço da revolução socialista
peruana. Blanco refletiu, sim, muitas características do contexto da época, mas não como
mero espectador pacífico, pelo contrário, foi ele um sujeito ativo, que advertiu e polemizou
com as esquerdas, interferindo diretamente, a nível nacional e internacional, em um debate,
principalmente, relacionados às ideias, táticas e estratégias revolucionárias, tanto para o Peru
como para o continente latino-americano.
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