Sobre o Protestantismo Brasileiro

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 13

Sobre o Protestantismo Brasileiro:

VXDVFRQWUDGLo}HVHGHVD¿RV
(Algumas anotações histórico-teológicas
sobre sua inserção no interior da cultura brasileira)
Zwinglio M. Dias1

RESUMO
O artigo oferece comentários a respeito da contraditória interação
do protestantismo com a cultura religiosa de sociedade brasileira ao in-
dicar que suas expressões eclesiásticas deram origem a formas alterna-
tivas de religiosidade que se manifestam numa mescla estonteante de
emancipação individualista, autoritarismo e visão mágica do mundo. O
artigo sublinha também as debilidades teológicas das versões eclesioló-
gicas protestantes aqui implantadas que não souberam, ou não puderam
mesmo, resistir à antropofagia cultural dos trópicos, indigenizando-se,
abandonando as formas e os conteúdos teológicos dos modelos eclesiás-
tico-pastorais exportados pelas metrópoles espirituais do norte do he-
misfério, assumindo o s sonhos, os desejos e as carências vivenciados e
sentidos a partir das matrizes religioso-culturais do povo brasileiro.

1
 'RXWRUHP7HRORJLDSHOD8QLYHUVLGDGHGH+DPEXUJR $OHPDQKD 3URIHVVRU&RQYL-
dado no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Universidade Fede-
UDOGH-XL]GH)RUD 8)-) 0*HGLWRUGD5HYLVWD(OHWU{QLFDTempo & Presença, de
“KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço”.
76 REFLEXUS - Ano IX, n. 15, 2016/1

PALAVRAS-CHAVE
Protestantismo Brasileiro; Religiosidade; Cultura brasileira.hhuhhg

ABSTRACT
The paper deals with the contradictory interaction between Prot-
estantism and the religious culture of Brazilian society. It indicates that
the ecclesiastical expressions of the Protestantism gave rise to alter-
native forms of religiosity that manifest themselves in a dizzying mix
of individualistic emancipation, authoritarianism and magical view
of the world. The paper also emphasizes the theological weakness
of the Protestant ecclesiological versions here established that did not
know, or not might even resist the cultural cannibalism of the trop-
ics, abandoning the forms and Theological content of Ecclesiastical
and Pastoral models exported by the spiritual metropolis of North-
ern hemisphere and take the dreams, desires and needs experienced
and felt from the religious and cultural perspectives of the Brazilian
people.

KEYWORDS
Brazilian Protestantism; Religiosity; Brazilian Culture.

Introdução

Os historiadores e estudiosos do Protestantismo no Brasil o clas-


VL¿FDP HP WUrV YHUWHQWHV SULQFLSDLV R 3URWHVWDQWLVPR GH 0LJUDomR R
Protestantismo de Missão e os Movimentos Pentecostais. Outras duas
vertentes se acrescentarão mais tarde, especialmente, a partir da segunda
metade do século XX, como resultado da interação das primeiras com
o imaginário religioso característico do universo cultural do continente,
tendo como pano de fundo as transformações socioeconômicas e políticas
do período. Estas duas novas e tardias manifestações estão diretamente
referidas ao processo de expansão dos Pentecostalismos. Segundo a tipo-
logia sugerida por J. Bittencourt Filho trata-se do Pentecostalismo Autô-
QRPR FRQVDJUDGRSHORVRFLyORJR5LFDUGR0DULDQRFRPR1HRSHQWHFRV-
WDOLVPRHSHORKLVWRULDGRU3DXOR6LHSLHUVNLFRPRSyVSHQWHFRVWDOLVPR 
REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciências das Religiões 77

H GR 1HRGHQRPLQDFLRQDOLVPR DTXHODV IRUPDo}HV UHOLJLRVDV GH FRUWH


tradicional marcadas pela ênfase na chamada renovação espiritual-ca-
rismática e também conhecidas como pentecostalizadas, assim como os
movimentos responsáveis pelo surgimento das comunidades evangélicas
LQGHSHQGHQWHVGDVHVWUXWXUDVGHQRPLQDFLRQDLVWUDGLFLRQDLV $VGXDVSUL-
meiras vertentes, em geral, são englobadas sob a denominação de Pro-
testantismo histórico.
1RSULPHLURPRPHQWRGHVWDUHÀH[mRSURFXUDUHPRVRIHUHFHUDOJXQV
comentários a respeito de sua contraditória interação com a cultura reli-
giosa de nossa sociedade na medida em que suas expressões eclesiásticas
deram origem a formas alternativas de religiosidade que se manifestam
numa mescla estonteante de emancipação individualista, autoritarismo e
visão mágica do mundo.
Em seguida, procuraremos sublinhar as debilidades teológicas das
versões eclesiológicas protestantes aqui implantadas que não souberam,
ou não puderam mesmo, resistir à antropofagia cultural dos trópicos, in-
GLJHQL]DQGRVH KRMHVHGL]LQFXOWXUDQGRVH DRDEDQGRQDUHPDVIRUPDV
e, principalmente, os conteúdos teológicos dos modelos eclesiástico-pas-
torais exportados pelas metrópoles espirituais do norte do hemisfério e
assumir os sonhos, os desejos e as carências vivenciados e sentidos a
partir das matrizes religioso-culturais do povo brasileiro. Estas, por sua
vez, foram construídas, tanto positiva quanto negativamente, na resis-
tência ao cruel e desumano processo colonizador que, por outros modos,
continua ainda em vigência.

D O Protestantismo dos missionários...

O Protestantismo de Missão chega à América Latina e, em parti-


cular, ao Brasil, como parte do projeto expansionista das nações nor-
te-atlânticas, especialmente dos Estados Unidos. Apesar da roupagem
Pietista, que concentra a relação como Transcendente numa experiência
místico-subjetiva, o Protestantismo de Missão aqui chegou nas asas do
liberalismo já consolidado em sua sociedade de origem, apresentando-se
FRPRXPGHVD¿RjVRFLHGDGHEUDVLOHLUDHQWmRHVFUDYLVWDDULVWRFUiWLFDH
conservadora. Seu conteúdo teológico, embora caudatário das principais
IRUPXODo}HVGD5HIRUPDGRVpFXOR;9,KLSHUWUR¿RXDGLPHQVmRSHVVRDO
78 REFLEXUS - Ano IX, n. 15, 2016/1

da salvação legitimando, com isso, o individualismo característico do


liberalismo.
Dadas às características quase feudais da sociedade brasileira, onde
não havia espaço para o exercício mínimo da cidadania, o Protestantismo
de Missão funciona, a princípio, como um elemento de ruptura e trans-
formação social ao fazer coincidir seu discurso teológico anti-romano
católico com as premissas básicas do modelo liberal de sociedade, anta-
gônico, portanto, à estrutura sociopolítica e econômica do país.
Ao transformar Romanos-católicos em Protestantes este tipo de Pro-
testantismo estava, aparentemente, lançando as bases para a formação de
um novo modelo de cidadão no país: moderno, burguês, liberal; respon-
sável por si mesmo e pela construção de uma nova sociedade. A ênfase
na educação e na erradicação do analfabetismo, por si só, já demonstrava
os possíveis alcances da nova proposta eclesiológica emergente no país
a partir da segunda metade do século XIX. Tratava-se, entretanto, de um
projeto contraditório e de curta duração. Bastou que a sociedade brasilei-
ra se integrasse ao processo de modernização do mundo ocidental, para
que as carências deste projeto se tornassem evidentes.
Preso a uma concepção ingênua de sociedade, que não levava em
conta as interações entre os grupos sociais e as gritantes contradições de
classe, o Protestantismo de Missão, caracteristicamente, não foi capaz de
perceber a natureza peculiar e própria da formação sociocultural brasilei-
ra que a distinguia da sua congênere norte-americana2. O ideal societário
proclamado por meio de sua mensagem teológico-doutrinária não en-
FRQWURXUHVVRQkQFLDVX¿FLHQWHTXHOKHSURSRUFLRQDVVHRGHVHPSHQKRGH
XPSDSHOWUDQVIRUPDGRUVLJQL¿FDWLYRQRkPELWRVRFLRFXOWXUDOHSROtWLFR
nacional. Contribuiu para isto, e muito, sua incapacidade de incultura-
ção, revelada no rechaço de tudo aquilo que constituía, na realidade, o
ethos característico da cultura latino-americana em geral e da brasileira
em particular, mas que era entendido como conteúdo próprio do Roma-
no-catolicismo. Razão porque as igrejas do Protestantismo de Missão se
caracterizaram, por décadas, como espaços de culturizadores de frações
descontentes e frustradas dos escassos setores médios da sociedade em
função de sua impotência social e política. Acrescente-se, ademais, que

2
ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Paulinas, l982, p. 113-114.
REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciências das Religiões 79

a proposta eclesiológica, com seu concomitante projeto sociopolítico,


dado seu rigorismo ético-moralista, pouco apouco começou a perder sua
capacidade de produção de sentido para os setores médios aos quais o
Protestantismo de Missão, preferencialmente, se dirigia, na medida em
que a modernização das sociedades latino-americanas avançava, espe-
cialmente a partir dos anos posteriores à II Guerra Mundial.
Incapaz de perceber as mudanças que começaram a sacudir e trans-
formar a sociedade brasileira, com o advento da industrialização e o ver-
tiginoso e caótico processo de urbanização, o Protestantismo de Missão
congela sua visão de mundo e sua mensagem religiosa perdendo, assim,
seus interlocutores preferenciais, anquilosando-se e se transformando
numa subcultura de refúgio e aprisionamento simbólico para os segmen-
tos melhor situados economicamente nos setores populares e na pequena
classe média, ávidos de ascensão social, porém, objetivamente, incapa-
citados de alcançá-la.
Entretanto, nem tudo foi perdido nesse processo de transplante e
inserção do Protestantismo de Missão na realidade sociocultural latino
-americana e brasileira. Os ideais democráticos e a ênfase no direito à
liberdade cidadã geraram alguns resultados positivos que precisam ser
resgatados. É verdade que em proporção bem menor do que se esperava.
Mesmo assim, deixaram sua marca no processo de construção da cons-
ciência de cidadania no interior de nossas sociedades.

E O Protestantismo iluminista: uma metamorfose tropical?3

Antonio G. Mendonça, trabalhando com os conceitos de “situação


-limite” e “reserva religiosa” de Paul Tillich, em sua análise da gravi-
tação histórica do Protestantismo, lembra que o Protestantismo, “ao se
ajustar constantemente à cultura e assumir com ela perigosos compro-
missos... só pode sobreviver graças a sua ‘reserva religiosa’ dinamizado-
ra nas ‘situações limite’”.

3
Expressão usada por Leonard para referir-se ao Movimento Pentecostal. Cf. LEO-
NARD, E. G. O Protestantismo Brasileiro. S. Paulo: ASTE, s/d; O Iluminismo num
Protestantismo de Constituição Recente. S. Paulo: Programa Ecumênico de Pós-gra-
duação em Ciências da Religião, 1988.
80 REFLEXUS - Ano IX, n. 15, 2016/1

Para Mendonça, “a mensagem dos missionários protestantes pode


ser vista como a ‘reserva religiosa’ do Protestantismo em meio ao bom-
EDUGHLRGDVFRUUHQWHVFLHQWt¿FDV¿ORVy¿FDVHVRFLROyJLFDVTXHFRPSX-
nham o liberalismo do século XIX... Essa ‘reserva religiosa’ encontrou
um receptor em ‘situação limite’, quer dizer, um extrato da população
brasileira sem rumo e sem horizonte, à margem das leis e da sociedade.
Aí ela, a mensagem, caiu bem. Mas, a ‘reserva religiosa’ inicial enrije-
ceu-se e ideologizou-se no fundamentalismo e invadiu o Protestantismo
brasileiro e, este, por sua vez, superando suas condições sociais iniciais
de ‘situação limite’ descansou no conforto da pequena burguesia urba-
na”4. Ainda segundo este autor, o Protestantismo histórico não foi capaz
de sustentar sua “reserva religiosa” e perceber as novas “situações limi-
tes” que se criavam com o incremento da urbanização, quando a popu-
lação se concentrava nas cidades e anelava por propostas plausíveis de
organização e reestruturação simbólica que a mística e a espiritualidade
lhes podiam oferecer. O Movimento Pentecostal, presente na socieda-
de brasileira desde a segunda década do século, assumiu esta “reserva
religiosa” na medida em que integrou em sua mensagem salvacionis-
ta, escoimada do enrijecido racionalismo do Protestantismo histórico,
os conteúdos simbólicos, místicos e mágicos daquilo que J. Bittencourt
Filho denominou de “Matriz Religiosa Brasileira”5.
Desenvolvendo-se nos grandes aglomerados urbanos, em meio às
PDVVDVGHWUDEDOKDGRUHV L PLJUDQWHVDV,JUHMDVGR0RYLPHQWR3HQWH-
costal conheceram acelerado crescimento numérico a partir da década
GHFRPSOH[L¿FDQGRVHGHVGHHQWmRQXPDWHLDGHIRUPDVRUJDQL]D-
cionais as mais distintas. Aí se combinaram a herança do messianismo
milenarista oriundo da espiritualidade do Protestantismo histórico e o
substrato religioso da cultura brasileira, também eivado do milenarismo
subjacente ao Catolicismo popular, num encontro feliz, ainda mais que
regado com o, a principio, admirado, mas nem sempre desejado, rigo-
rismo moralista do Protestantismo de Missão, hoje a caminho de sair de

4
MENDONÇA, A. G. “Discussão sobre a viabilidade do Protestantismo histórico no
Brasil”. In: NOTAS. Jornal de Ciências da Religião. Ano I, n. 3. S. Bernardo do Cam-
po, 1994, p. 5.
5
BITTENCOURT FILHO, J. Matriz Religiosa Brasileira – Notas Ecumênicas. In:
Tempo e Presença, nº. 264, Rio de Janeiro: CEDI, 1992, p. 49-51.
REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciências das Religiões 81

cena, especialmente nas formações eclesiológicas recentes do Movimen-


to Neopentecostal.
Na segunda metade do século XX observamos o Movimento Pente-
costal avançando com ímpeto no interior de uma sociedade brasileira em
processo de desenvolvimento socioeconômico desigual e perverso que
privilegia, via uma modernização seletiva, as velhas estruturas de poder
HFRQ{PLFRHSROtWLFRDRPHVPRWHPSRHPTXHVDFUL¿FDSHODH[FOXVmR
econômica e a marginalização política a grande maioria da população do
país. Exposta a uma luta desiguale cruel pela sobrevivência esta popu-
lação se vê tangida para os centros urbanos em busca de trabalho onde é
tolhida num processo de urbanização caótico e desumano. É entre essa
SRSXODomRHPSHUPDQHQWHDÀLomRGHVJDUUDGDGHVHXVYDORUHVPDLVFDURV
que a mensagem Pentecostal deita suas raízes, oferecendo toda sorte de
lenitivos para o sofrimento e estruturas de sentido para os desorienta-
dos, mas sem atentar, no entanto, para as causas reais que produzem,
continuadamente, o mal estar social que caracteriza a sociedade como
um todo. Por outro lado esta mensagem, em sua interação com a cultura
dos segmentos por ela atingidos entrou num processo de adaptação e
transformação permanente que, pouco a pouco, foi-lhe escoimando de
todos aqueles elementos de difícil ou impossível adaptação. Com isso
podemos arriscar a dizer que a religiosidade Pentecostal hoje, deitada
no “berço esplendido” da religiosidade tradicional brasileira, acabou por
QDFLRQDOL]DU FXOWXUDOPHQWH IDODQGR  GH¿QLWLYDPHQWH R TXH UHVWRX GD
proposta eclesiológica trazida pelos missionários protestantes em sua in-
teração com a cultura brasileira.
Estas sumárias considerações críticas, acerca da realidade das insti-
tucionalidades protestantes entre nós, não nos devem levar à conclusão
precipitada e injusta de que os equívocos e as contradições vivenciados
pelos primeiros imigrantes protestantes, pelos missionários e por seus
seguidores constituíram um grande engodo ou um erro histórico que só
trouxe divisões e confusão para os segmentos da população brasileira
TXHFRPHOHVVHLGHQWL¿FDUDP(PVHXPRPHQWRHGDPDQHLUDTXHOKHV
HUD SRVVtYHO SHUFHEHU RV SULPHLURV SURWHVWDQWHV VLJQL¿FDUDP XP PR-
mento novo dentro da história brasileira e latino-americana. Podemos
não concordar com a proposta de sociedade que trouxeram, mas não po-
demos deixar de reconhecer a importância que tiveram na tentativa de
82 REFLEXUS - Ano IX, n. 15, 2016/1

implantação de um espírito democrático, de noções ainda que incipientes


de cidadania responsável, na defesa da liberdade individual e no sonho
de uma sociedade de oportunidades iguais para todos em meio a uma
sociedade aristocrática, escravocrata e autoritária. Se seus continuadores
QmRIRUDP¿pLVDHVWDYLVmRLVWRMipRXWUDKLVWyULD

F A Igreja dos missionários e imigrantes

Como sublinhamos anteriormente, o Protestantismo que chega ao


Brasil não é mais o Protestantismo da Reforma, mas a versão nuançada
desenvolvida pelas Igrejas estadunidenses, marcada pela cultura daquele
povo, depois de mais de três séculos. O mesmo aconteceu com o Protes-
tantismo dos imigrantes que representa muito mais a cultura religiosa de
seus povos do que os conteúdos teológicos dos pais fundadores. Recebe-
mos dos missionários e dos imigrantes a mensagem da Reforma envolta
nas formas socioculturais/religiosas que, ao longo do tempo, se foram
plasmando em suas sociedades. Ou, dito de outro modo, recebemos al-
guns modelos de igrejas, ou seja, formas já institucionalizadas de igrejas,
moldadas segundo as necessidades e condicionamentos socioculturais e
políticos característicos de seus países de origem. Nesse longo proces-
so de construção de formas institucionais muita coisa se perdeu ou foi
adaptada ao sabor dos interesses de diferentes grupos sociais que, como
não podia ser de outra maneira, sufocaram ou deram outro sentido às
formulações iniciais dos Reformadores. Assim, a herança da Reforma
chega até nós desgastada, tergiversada e diminuída pelo processo de ins-
titucionalização experimentado até então. Não recebemos a proposta de
Igreja de Lutero e de Calvino, mas o modelo eclesiástico, formalmente
atribuído a eles, mas construído pelos seus subsequentes intérpretes, ao
longo da expansão protestante no chamado Novo Mundo. O que experi-
mentamos, especialmente com o movimento missionário do século XIX,
foi o transplante de determinadas formas eclesiástico-institucionais do
Protestantismo desenvolvidas e consolidadas tanto no contexto europeu
como e, principalmente, naquele dos Estados Unidos. Um modelo larvar,
fechado, acabado e absolutizado, entendido como a verdadeira forma da
Igreja de Cristo, impermeável às mudanças, voltado sempre para a sua
autorreprodução, incapaz de se abrir para as outras culturas e de perceber
REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciências das Religiões 83

nelas a presença do Espírito criador e transformador do Deus bíblico. Os


povos a serem evangelizados deveriam ser convertidos a essa maneira de
ser cristão, pois se entendia que nada tinham a oferecer. Caudatários de
uma visão absolutista do Cristianismo como a única religiosidade válida,
forjada na Idade Média europeia e marcados pelo racismo prevalente
na sociedade estadunidense, os missionários vão se relacionar de forma
negativa frente às expressões culturais próprias do contexto latino. Co-
meçando pelo Catolicismo, vão demonizar todas as manifestações de
religiosidade presentes entre os povos latino-americanos. Especialmente
aquelas características dos povos indígenas e das populações afrodes-
cendentes. Assim, o Espírito só podia lhes falar na linguagem desta ou
daquela igreja consolidada no contexto das culturas do Atlântico Norte.

G Os diferentes modos de resistência...

Diferente do universo católico-romano, o mundo do protestantismo,


por basear-se na adesão voluntária de indivíduos, supostamente, livres,
é profundamente fragmentado. As decisões tomadas e as atitudes assu-
midas pelos corpos dirigentes das instituições eclesiásticas nem sempre
são acolhidas e respeitadas, no todo ou em parte, pelos membros das
diferentes comunidades, principalmente quando não se referem direta-
mente, aos artigos de fé que caracterizam as diferentes famílias confes-
sionais. Com isso, os posicionamentos institucionais em favor do Estado
autoritário, por exemplo, não foram recebidos passivamente por todos
RVVHWRUHVGDVLJUHMDV2FRQÀLWRSROtWLFRLGHROyJLFRTXHFLQGLXDQDomR
brasileira, a partir da década de cinquenta e que alcançou seu auge com
o golpe civil-militar em 1964, também se fez presente no interior das
igrejas do protestantismo brasileiro. Como destacou Márcio Ananias F.
Vilela, durante as décadas de 1960 e1970, “... a disputa política vivencia-
da pelo Brasil em torno dos temas das Reformas de Base irão se revelar
na matéria do jornal Brasil Presbiteriano de setembro de 1963, intitulada
‘Vida Cristã e Reformas’. A matéria faz menção aos presbiterianos que
µFRPR¿OKRVGD5HIRUPDGRVpFXOR;9,QmRSRGHPRVVHUDQWLUUHIRU-
mistas hoje. Sem exageros [...] devemos dar a nossa contribuição por
uma reforma agrária[...] eleitoral[...] administrativa[...] bancária’. Exis-
tia, portanto, no início da década de 1960, uma crescente preocupação
84 REFLEXUS - Ano IX, n. 15, 2016/1

de setores do protestantismo com os problemas nacionais; no entanto,


aqueles contrários à participação da Igreja neste debate nomearam pejo-
rativamente tais questões de ordem técnica nas quais a Igreja não deveria
interferir. Neste sentido o Pronunciamento Social, assim como o Brasil
Presbiteriano, apresentavam uma problematização central naquele mo-
mento, a saber: qual seria o real papel da Igreja no mundo? Que projeto
teológico-político a Igreja deveria apresentar para o Brasil?”6
Destaque especial que não podemos deixar de mencionar foi o papel
desempenhado pela juventude protestante nessa época. Seja por meio
dos organismos que aglutinavam o trabalho dos jovens nas esferas de-
nominacionais, seja através do esforço ecumênico supradenominacional
FRPR D 8QLmR /DWLQRDPHULFDQDGD -XYHQWXGH (YDQJpOLFD 8/$-(  H
SULQFLSDOPHQWH D 8QLmR &ULVWm GH (VWXGDQWHV GR %UDVLO 8&(%  (VWD
última, talvez a mais antiga organização de jovens protestantes do conti-
QHQWHGHVD¿DRFRQVHUYDGRULVPRDQyGLQRGDVHVWUXWXUDVHFOHVLiVWLFDVH
assumindo a radicalidade implícita do Evangelho, escreverá páginas de
heroísmo e profunda dedicação em seu esforço por testemunhar a men-
sagem cristã nos espaços da luta política que então agitava o país. Sua
KLVWyULDMDPDLVHVFULWDRXOHPEUDGDSHODVLQVWkQFLDVR¿FLDLVGDVGHQRPL-
nações, foi sonegada às gerações seguintes, numa tentativa de esconder
o esforço renovador encabeçado pelos jovens7.
Ao lado desses corajosos jovens, muitos protestantes/evangélicos
foram expulsos e/ou abandonaram suas comunidades de origem por dis-
cordarem das posições assumidas por suas lideranças eclesiásticas. Ou-
tros trataram de se organizar internamente para, ainda que timidamente,
expressarem sua desconformidade no estreito espaço de oposição que
ainda sobrava. Entre os que foram expulsos de suas diferentes comuni-
dades e considerados “hereges” por discordarem do alinhamento político
de suas instituições, surgiram agremiações tanto de caráter ecumênico

6
VILELA, MARCIO ANANIAS F. Discursos e Práticas da Igreja Presbiteriana do
Brasil durante as décadas de 1960 e 1970: diálogos entre religião e política. Tese de
doutorado. Programa de Pós-Graduação em História. UFPE, Recife, 2014.
7
Este momento da história do Protestantismo foi resgatado, numa pesquisa minuciosa
e bem documentada, por Moisés A. Coppe, no livro Piedade, Responsabilidade e
Política – História e Memória da UCEB %HOR +RUL]RQWH )LOKRV GD *UDoD 1RDK
(GLo}HV 
REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciências das Religiões 85

como também entidades confessionais alternativas e, mesmo, pequenas


comunidades independentes.

Epílogo

Caudatário das formas históricas assumidas, ao longo do tempo,


pelo Protestantismo europeu e norte-americano, as formas eclesiásticas
protestantes que se consolidaram no Brasil vão estar marcadas por certas
ênfases anti-romano-católicas que as impediram de perceber, no coração
da história e da cultura da América Latina e do Brasil, em particular, as
situações-limite às quais o Evangelho deveria responder. Elevadas à ca-
tegoria de “absolutos” as formas doutrinais e devocionais trazidas pelos
missionários e brandidas contra os romano-católicos, foram erigidas, de
IRUPDUtJLGDHLPXWiYHO LQIDOtYHLV" FRPRPRQXPHQWRVLGHQWLWiULRVGH
uma nova forma de ser igreja, em tudo e por tudo, semelhante à Igreja
medieval contra a qual o Protestantismo se levantara. Construiu-se as-
sim uma espécie de unanimidade ideológica não-planejada alicerçada no
fundamentalismo que passou a caracterizar o conjunto das diferentes de-
nominações. Símbolos viraram coisas, metáforas ganharam dimensões
metafísicas e a teologia virou uma ideologia religiosa atemporal, cheia
de certezas e respostas prontas para questões que ninguém está mais for-
mulando.
Ao se instalarem no continente sul-americano desprovidas da ra-
dicalidade do Princípio Protestante e apresentando escassas expressões
GD³6XEVWkQFLD&DWyOLFD´ TXDVHVLPXODFURVGHVWD DVLQVWLWXLo}HVHFOH-
siásticas do Protestantismo se tornaram, ao longo do tempo, presa fá-
cil do antropofagismo cultural responsável pela constituição da “Matriz
Religiosa Brasileira.” Pouco a pouco os modos de ser cristão moldados
pelo Romano Catolicismo e pelas expressões afro-indígenas, que estão
na base dessa matriz religiosa, vão achar seu lugar nos espaços religiosos
GDVLQVWLWXFLRQDOLGDGHVIRUPDOPHQWHSURWHVWDQWHV$UDFLRQDOLGDGHUHÀH-
xiva, responsável pela vigorosa teologia dos Reformadores e seus mais
VLJQL¿FDWLYRVVHJXLGRUHVIRLVXEVWLWXtGDSHODLGHRORJL]DomRGHVHQFXOWX-
UDGDGHVXDVUHDOL]Do}HVWHROyJLFDVPDLVVLJQL¿FDWLYDV$KHUPHQrXWLFD
bíblica foi submetida ao crivo deum literalismo absoluto e a disciplina
86 REFLEXUS - Ano IX, n. 15, 2016/1

eclesiástica reduzida a um moralismo insípido e inconsequente centra-


do num individualismo avesso às dimensões sociais da experiência hu-
mana. O resultado foi a transformação das comunidades, sem formação
nem informação teológica relevante, em espaços religiosos de exercícios
emocionais alienados e alienantes. Perdendo de forma objetiva sua iden-
tidade teológica e o sentido histórico de sua existência, em aras de seu
“sucesso” enquanto formas eclesiástico-institucionais adaptadas à visão
de mundo vigente na sociedade, a maioria das igrejas do chamado pro-
testantismo de missão, principalmente, vai abandonar sua herança ecle-
siológica fechando-se sobre si mesmas e se transformando em comuni-
GDGHVGHUHI~JLRHGHDXWRVVDWLVIDomRLQGLYLGXDOLVWDGHVHXV¿pLVHPWXGR
adaptadas às exigências do todo poderoso mercado.
Com isto, estas formas eclesiásticas ditas “protestantes”, hoje apenas
por uma questão de origem histórica, terminaram por se esquecer que,
para o Evangelho ressuscitar os humanos para sua verdadeira, emanci-
pada e plena vida, é preciso que as estruturas eclesiásticas se atualizem,
continuamente, em função das novas demandas que surgem no meio
da história e deem lugar à novas formas de organização e expressão de
sua presença transformadora no meio do mundo... Ecclesia reformata
et semper reformanda est! Ou, para recordar as palavras de Jesus: “...
ninguém põe vinho novo em odres velhos, pois o vinho novo rebentará
RVRGUHVRYLQKRVHGHUUDPDUiHRVRGUHVVHHVWUDJDUmR´ /XFDV 
Isto é, como obra humana precária, incompleta e frágil, é preciso que as
formas de ser da igreja no mundo morram... dando lugar a outras novas,
mais condizentes com as necessidades sentidas de cada momento histó-
rico. E elas têm morrido ao longo do tempo, embora muitas, em diferen-
tes momentos, não se tenham dado conta disso e continuem insepultas,
olhando para o passado e fechando os olhos para o futuro onde Deus se
encontra. Para que a borboleta alcance a vida e deslumbre o mundo com
sua beleza é preciso que a larva morra!...
Frente ao desolador panorama eclesiástico que nos toca vivenciar
QRVGLDVDWXDLVXPHQRUPHGHVD¿RVHFRORFDGLDQWHGHQyVVHUPRVFD-
pazes de olhar para a vida e para o mundo com o mesmo olhar de Jesus,
que Roger Garaudy descreve da seguinte maneira: “Viver sua vida, seu
despojamento, cria um novo olhar, profético, um olhar que não se apega
DRSDUFLDOPDVTXHQHOHGHVFREUHRWRGRHRIXWXURTXHDSRQWD  9HUD
REFLEXUS - Revista de Teologia e Ciências das Religiões 87

borboleta na larva, a santa na prostituta, a águia no ovo, o irmão em meu


próximo e distante e, no sorriso efêmero do jasmim, a ressurreição eterna
da primavera. Tal é o olhar de Jesus sobre o mundo”8.

Referências

ALVES, Rubem. Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982.


BITTENCOURT FILHO, J. Matriz Religiosa Brasileira – Notas Ecumêni-
cas. In: Tempo e Presença, nº. 264, Rio de Janeiro: CEDI, 1992, p. 49-51.
GARAUDY, Roger. Deus é necessário? Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1995.
LEONARD, E. G. O Iluminismo num Protestantismo de Constituição
Recente. S. Paulo: Programa Ecumênico de Pós-graduação em Ciên-
cias da Religião, 1988.
LEONARD, E. G. O Protestantismo Brasileiro. S. Paulo: ASTE, s/d.
MENDONÇA, A. G. “Discussão sobre a viabilidade do Protestantismo
histórico no Brasil”. In: NOTAS. Jornal de Ciências da Religião. Ano
I, n. 3. S. Bernardo do Campo, l994, p. 5.
VILELA, MARCIO ANANIAS F. Discursos e Práticas da Igreja Pres-
biteriana do Brasil durante as décadas de 1960 e 1970: diálogos en-
tre religião e política. Tese de doutoramento em História na UFPE,
Recife, 1914.

8
GARAUDY, Roger. Deus é necessário? Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1995, p. 117.

Você também pode gostar