Reflexões Sobre A Ideologia Do Trabalho No Século XXI - Antonio O. Ferreira

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REFLEXÕES SOBRE A IDEOLOGIA DO TRABALHO NO SÉCULO XXI

Antonio Oneildo Ferreira1

Sumário: a) Paraíso interrompido; b) A tradição do trabalho; c) A modernidade do trabalho; d)


Servidão ideológica; e) Consciência revolucionária; f) A ideologia ainda impera; g) Peculiaridades
no Sul global: a formação da força de trabalho no Brasil; h) Genealogia dos direitos.

“Antes de sua expulsão do Paraíso, Adão e Eva desfrutavam, sem trabalhar, um nível de vida
elevado. Depois de sua expulsão, tiveram de viver miseravelmente, trabalhando de manhã
até a noite. A história do progresso técnico dos dois últimos séculos é a de um esforço para
voltar a encontrar o caminho do Paraíso” [Wassily Leontief, 1973].

a) Paraíso interrompido

“Porque ouviste a voz de tua mulher e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido
comer, maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com trabalhos penosos o teu sustento todos
os dias de tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra. Comerás o
teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de que foste tirado; porque és pó, e pó te hás
de tornar”.2 Com essas palavras, Deus expulsou Adão e Eva do Jardim do Éden, do eterno paraíso
em que estariam imersos até o fim dos tempos, não fosse pelo cometimento da primeira das
blasfêmias. Por comer do fruto proibido, foram arrancados da infinita quietude e atirados contra a
incessante tormenta. A punição que se lhes infligia era tirar da terra o sustento, derramar o suor do
rosto para obter-se o pão diário. Em suma, em razão de haverem desobedecido as suas ordens, Deus
castigava os homens e as mulheres – os que são e os que virão – com a imposição de um verdadeiro
martírio, mas que, a nós, homens modernos de agora, se afigura nada além de trivial: o trabalho.

Não seria exagero afirmar que a dispersão do paraíso notabiliza-se como um dos mitos fulcrais
da civilização ocidental a respeito da trajetória humana. E no centro dessa narrativa encontra-se a
categoria do trabalho, que acompanha o gênero humano desde tempos imemoriais e atravessa o limiar
entre os séculos de forma perene. Tendo em vista o estabelecimento de um modelo de organização
calcado em um sistema produtivo, organizamo-nos conforme uma lógica de fracionamento temporal
inspirada na divisão do trabalho. Essa lógica indica a alternância entre dia e noite, e demarca e limita
os momentos de trabalho e os momentos de repouso; pelo menos um, e tão somente um, dos dias da
semana (o “dia do Senhor”, o Domingo, do latim “dies Domenica”) é reservado ao descanso. Assim

1
Advogado especialista em Direito Trabalhista e Sindical. Diretor-Tesoureiro do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil. Pós-graduado em Direito Constitucional.
2
Bíblia Sagrada. Gênesis 3: 17-19. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/vc/gn/3. Acesso em: 17/11/2016.
2

teria sido a criação do universo – anterior mesmo ao “pecado original” e à imposição do trabalho
como pena: “Assim os céus, a terra e todo o seu exército foram acabados. E havendo Deus acabado
no dia sétimo a obra que fizera, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E
abençoou o dia sétimo, e o santificou: porque nele descansou de toda a sua obra que Deus criara e
fizera”.3 Aos seis dias de duro trabalho, sucede o dia de descanso. Ao dia em que os fiéis se reuniam
em torno da Igreja (o Domingo, o dia do Senhor) sucedem os dias de comércio, os dias de “feira”: a
segunda-feira, a terça-feira, a quarta-feira... A divisão do ano conforme as estações (365 dias, em
média, divididos em 12 meses, cada qual composto de semanas de 7 dias), por sua vez, obedecia
principalmente aos imperativos do planejamento das atividades agrícolas.

Mas a gênese da atividade humana fundamental evoca um infortúnio: etimologicamente, o


vocábulo “trabalho” provém do latim tripalium – agregação das palavras tri (“três) e palus (“pau”).
Tripalium era como se denominava o instrumento de tortura romano, uma espécie de tripé cravado
no chão, no qual eram supliciados os escravos. Trabalho remonta, destarte, à ideia de tortura; aqueles
que trabalhavam eram os escravos, não por acaso pessoas destituídas de posses e honrarias. A mesma
representação foi incorporada pelo idioma francês por meio do verbo travailler, que significava
inicialmente sentir dor ou sofrer, e, posteriormente, cumprir uma atividade exaustiva, dura,
desgastante. Aqueles que trabalhavam, no sentido exposto, eram os camponeses, agricultores,
pedreiros, artesãos etc. Registra-se que somente a partir do século XIV o verbo “trabalhar”
generalizou-se no sentido que ora lhe atribuímos: aplicação das forças, faculdades, talentos e
habilidades humanas com o escopo de alcançar um determinado fim,4 “toda atividade realizada pelo
homem civilizado que transforma a natureza com sua inteligência”.5

Dificilmente a definição pregressa estaria em conformidade com a concepção que atualmente


compartilhamos. Trabalhar é visto, agora, como um ato existencial, vital, e até mesmo emancipatório,
que confere sentido e propósito à existência humana; que a um só tempo dignifica, redime e liberta.
Ao redor do trabalho se constrói toda a realidade social, em função dele se erige todo planejamento
individual e comum, são feitos os cálculos, os questionamentos e as escolhas primordiais para os
indivíduos e para as coletividades. Parece insinuar-se um abismo intransponível entre ambas as
concepções exibidas: de um lado, o trabalho como penúria, e, de outro, o trabalho como libertação.
Como explicar uma tal oscilação semântica através da história? Quais circunstâncias fizeram do vil e
ímpio trabalho uma espécie de divindade contemporânea?

3
Bíblia Sagrada. Gênesis 2:1-3. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/2.
4
Conferir pesquisa sobre a genealogia da palavra “trabalho” em: http://www.dicionarioetimologico.com.br/trabalho/.
Acesso em: 17/11/2016.
5
CARMO, Paulo Sérgio do. A ideologia do trabalho. 2 ed. São Paulo: Moderna, 2005, p. 21.
3

b) A tradição do trabalho

Se, na atualidade, é o trabalho que nos confere estima e aceitação social, durante um longo
período o fato de “ganhar o pão com o suor do próprio rosto” não acarretava senão vergonha e
rejeição. Na Grécia Antiga, sob a influência do cultivo da contemplação em detrimento da atividade,
trabalhar, longe de atestar nobreza, reduzia-se a prática destinada à subsistência diante da
contingência das necessidades e carências físicas. Estava-se perante uma sociedade rigidamente
estratificada, em que o trabalho se revestia de valor distinto para cada um de seus estamentos. A
célebre filosofia de Platão ilustra essa mentalidade: a distinção natural entre os homens justifica que
cada qual se ocupe daquilo que melhor expresse suas habilidades. Ao filósofo cabe governar a
República, do mesmo modo que cabe aos escravos a labuta. Em base semelhante repousa o
pensamento de Aristóteles: os escravos beneficiar-se-iam de sua própria servidão, na medida em que
não seriam naturalmente afeitos ao governo e a arriscar a vida pela liberdade. De modo oposto, os
cidadãos precisavam ser livres e desincumbidos do trabalho, para que pudessem dedicar mais tempo
às obrigações republicanas, aos prazeres do corpo e à vida contemplativa. As mais nobres ocupações,
para os gregos, interpelam pelo ócio (otium): “a beleza e a verdade do universo só advêm com a
quietude humana requerida pela contemplação, que possibilita a interrogação filosófica,
característica da faculdade humana”. 6 O monopólio da responsabilidade pelo trabalho agrícola e
doméstico era, via de regra, relegado aos escravos, enquanto uma parcela dos homens livres
(estrangeiros e descendentes), porém não-cidadãos, assumia o artesanato e o comércio. O mesmo
padrão de aversão ao trabalho se repetia em outras civilizações antigas, como a romana, a egípcia e a
persa.

Pouco se deslocou o significado do trabalho na transição para a Idade Média. Vigorava a visão
confessional do trabalho como penitência, expiação pelo pecado original, condizente com a
hegemonia do catolicismo. Este apregoava o primado da veneração a Deus, a qual poderia ser
prejudicada pelo demasiado apego ao trabalho, à vida material em contraposição à vida espiritual,
conforme subjaz ao Sermão da Montanha: “olhai os lírios do campo, não trabalham nem fiam”.
Indubitavelmente, o preenchimento da subsistência carecia de trabalho, mas se condenavam atos
exorbitantes como a ganância, a usura, a volúpia e a luxúria, de sorte que não se poderia admitir
qualquer glorificação da produtividade. No máximo, dedicar-se ao trabalho, com comedimento, era
uma oportunidade de redenção e penitência oferecida pela graça divina, uma ocasião para restaurar a
pureza da mente e reafirmar a resignação cristã. Afinal de contas, a doutrina católica derivada da

6
Ibidem, p. 28.
4

Rerum Novarum7 prescrevia aos homens “aceitar com paciência a sua condição”, pois as
desigualdades seriam tanto naturais, portanto harmônicas com a lei divina, quanto necessárias para o
funcionamento social; tal equilíbrio seria proporcionado pela necessária harmonia e conciliação entre
as classes, tendo em vista que “não pode haver capital sem trabalho, nem trabalho sem capital”.8 O
trabalho servil do medievo era realizado em pequenas comunidades autossuficientes, onde havia
predomínio da economia agrícola. Para os “homens de qualidade” e “mais próximo de Deus”, em
contrapartida, recomendava-se a ocupação com atividades do pensamento, de direção dos negócios
políticos e religiosos, de gestão de bens e finanças – atividades outrora não consideradas trabalho. O
culto à ociosidade era prerrogativa dos nobres e do clero.9

O passo decisivo em direção à erosão das estruturas tradicionais do trabalho deu-se a partir de
duas reviravoltas culturais no início da Era Moderna: a Reforma Protestante e o Renascimento. Com
a Reforma do século XVI, importantes princípios do cristianismo foram postos em xeque, dentre os
quais a concepção acerca do trabalho: este foi alçado a motivo de orgulho e sacrifício, porquanto
legitimou-se em terrenos religiosos o princípio da obtenção do sucesso profissional. Em primoroso
estudo, o sociólogo Max Weber10 demonstrou como as ideias de Lutero e Calvino estiveram ligadas
ao começo da consolidação do sistema capitalista, ao aproximar as esferas religiosa e econômica, na
medida em que realçavam a afinidade entre a ideia protestante de vocação e o princípio da compulsão
pelo lucro. Ao passo que se condenava a ociosidade e o desperdício, se encorajava o reforço da fé
pelo trabalho, destarte se criando as condições propícias para fomentar a acumulação do capital, a
qual passa a ser um telos e um dever do indivíduo: “Sendo o trabalho a melhor oração, a obtenção
de êxito e a prosperidade por meio dele revela a condição de ‘eleito’ para entrar no reino de Deus.
Trabalhar passou a constituir a própria finalidade da vida”.11

A época renascentista apenas veio confirmar essa tendência inaugurada pela revolução no
universo religioso do cristianismo. Operou-se uma inversão em que o fazer adquiria primazia sobre
o saber – sobretudo o fazer artesanal e artístico. Daí em diante podemos dizer que o trabalho se
modernizou, sendo germinadas as primeiras sementes do que hoje chamamos de capitalismo, e a
humanidade entrou em um estágio de glorificação ideológica do trabalho. Ideológica, pois, como

7
Ver CARTA ENCÍCLICA «RERUM NOVARUM» DO PAPA LEÃO XIII SOBRE A CONDIÇÃO DOS OPERÁRIOS
“Dada em Roma, junto de S. Pedro, a 15 de Maio de 1891, no décimo quarto ano do Nosso Pontificado”. Disponível em:
http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.pdf.
8
CARMO, Op. Cit., p. 6.
9
Ibidem, pp. 31-33.
10
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Trad.: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
11
CARMO, Op. Cit., p. 38.
5

vimos, por detrás dessa ruptura paradigmática existia uma doutrina, uma alteração radical no nível
das representações simbólicas a respeito do trabalho e de sua reputação e valia.

c) A modernidade do trabalho

Para desenvolver-se, o capitalismo demandava farta mão-de-obra, oportunamente encontrada


graças à corrosão da sociedade tradicional pré-capitalista medieval, concentrada na vida rural e nas
corporações de artesões, na produtividade localizada em baixa escala, gradativamente substituída
pelas máquinas e pelo opulento ambiente fabril. Um “exército” de homens, mulheres e crianças
desvalidas compôs a primeira geração de proletários – pessoas cuja única posse era sua própria força
de trabalho. Esse movimento de exploração do grosso caldo dos desamparados e miseráveis foi
favorecido por duas estratégias de engenharia social: de um lado, a religião cristã legitima o dever do
pobre de resignar-se quanto à vida que lhe fora reservada por Deus, e entregar-se à devoção à labuta;
de outro, o Estado se centraliza e passa a impor todo um aparato de leis e técnicas de disciplinamento,
que forjaram o necessário hábito da subordinação e da docilidade dos corpos e das mentes.12
Instituições sociais como Igreja e Estado passaram a manipular uma ideologia de domesticação13 das
classes subalternas, incutindo-lhes uma ética de exaltação das virtudes do trabalho. O Papa Leão XIII,
sumo pontífice da Igreja Católica, em 1891 fez publicar a célebre Encíclica Rerum Novarum, pela
qual se expressava claramente a concepção de que “o trabalho dignifica o homem”, tão corrente entre
nós: “O trabalho do corpo, pelo testemunho comum da razão e da filosofia cristã, longe de ser um
objeto de vergonha, honra o homem, porque lhe fornece um nobre meio de sustentar a sua vida”.14

Surgem neste período os primeiros discursos científicos, filosóficos e econômicos dedicados


a profundas reflexões sobre o trabalho. O liberalismo político e econômico desponta como a primeira
grande teoria filosófica legitimadora da nova ideologia do trabalho: ao defender o postulado geral da
liberdade defronte do Estado, os liberais defendiam, em decorrência, a mínima intervenção do Estado,
a livre concorrência, as “sagradas” liberdades individuais de contrato e propriedade privada, e, como
não poderia ser de outra maneira, a liberdade do indivíduo para vender (alienar) sua força de trabalho
em vias de manter sua subsistência e promover seu conforto.15 É importante ressaltar que o
liberalismo desembocou em uma doutrina expansionista: para encontrar matérias-primas e expandir

12
Ibidem, p. 42.
13
A abordagem biopolítica do poder disciplinar perpassa toda a obra de Michel Foucault. Ver, por todos: FOUCAULT,
Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Vol I. 13ª ed,1988.
Trad.: Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro:
Edições Graal.
14
CARTA ENCÍCLICA «RERUM NOVARUM, Op. Cit., p. 7.
15
CARMO, Op. Cit., p. 53.
6

mercados de consumo dos produtos excedentes, era providencial a conquista de colônias Europa
afora. Para justificar o colonialismo, religião e filosofia prontamente levaram a cabo uma doutrina
civilizatória segundo a qual era responsabilidade dos europeus levar às sociedades “selvagens” os
benefícios da civilização mais “avançada”, quais sejam, o progresso cultural, moral, religioso,
científico e técnico.16 No defrontar-se com o Outro,17 os povos nativos foram estigmatizados como
indolentes por natureza e ensinados a trabalhar nos moldes produtivistas europeus.18

Nada obstante, conforme nos alerta a lição hegeliana da dialética do processo histórico, sabe-
se que a toda predominância se opõe uma reação. O socialismo passou a denunciar o liberalismo,
supostamente uma doutrina de disciplinamento da classe trabalhadora, de modo que protagonizou a
primeira vultuosa contestação, em âmbitos teorético e político, do entusiasmo liberal. A reflexão
socialista, sobretudo aquela inspirada pelo materialismo histórico, parte da seguinte perplexidade: se
só o trabalho gera riqueza, por que justamente quem a produz (ou seja, quem trabalha) não tem direito
a ela? Basicamente a isto se refere o conceito de trabalho alienante: ao trabalho cujos produtos são
alienados do ponto de vista do trabalhador. A relação entre as classes seria, pois, de exploração, já
que o trabalhador despende toda a sua força produtiva em troca de uma pequena retribuição
pecuniária, gerando mais lucro para o empregador do que recebendo em contrapartida (na linha do
conceito de mais-valia da teoria marxista). Seria incorreto categorizar o socialismo como um mero
pensamento especulativo e descritivo, pois se tratava de uma doutrina propositiva mais complexa de
emancipação da classe trabalhadora, que apelava para diretrizes revolucionárias que conduziriam à
libertação com relação ao trabalho alienante e explorador.19

16
A superioridade cultural eurocêntrica esteve desde sempre presente no discurso filosófico da Modernidade. O humanista
espanhol Gilés de Sepúlveda, em 1550, assim justificou a expansão colonialista: “A primeira razão (da justiça desta
guerra e conquista) é que, sendo por natureza servos os homens bárbaros (índios), incultos e inumanos, se negam a
admitir o império dos que são mais prudentes, poderosos e perfeitos do que eles; império que lhes traria grandíssimas
utilidades, sendo além disto coisa justa por direito natural que a matéria obedeça à forma, o corpo à alma, o apetite à
razão, os brutos ao homem, a mulher ao marido, o imperfeito ao perfeito, o pior ao melhor, para o bem de todos. (...) A
segunda causa é desterrar as torpezas nefandas e salvar de graves injúrias muitos inocentes mortais os quais estes
bárbaros imolam todos os anos”. (In: “Da justa causa da guerra contra os índios”, publicado em Roma em 1550, apud
DUSSEL, Enrique. 1492 – O Encobrimento do Outro: A origem do “mito da Modernidade: Conferências de Frankfurt.
Tradução: Jaime A. Clasen. Petrópolis, RJ: Vozes, 1993, p.75).
17
O choque cultural entre “Velho” e “Novo” Mundo ecoou no discurso filosófico da Modernidade. Kant (apud DUSSEL,
Op. Cit., p.17) define a Ilustração como “a saída por si mesma da humanidade de um estado de imaturidade culpável. A
preguiça e a covardia são as causas pelas quais grande parte da humanidade permanece prazerosamente nesse estado
de imaturidade”. Seguindo a mesma intuição eurocêntrica, Hegel elimina a América Latina e a África da História
Mundial, e situa a Ásia num estado de imaturidade ou infância essencial: “O mundo se divide em Velho Mundo e Novo
Mundo.(...) Este mundo é novo não só relativamente mas também absolutamente; o é com respeito a todos os seus
caracteres próprios, físicos e políticos. (...) Da América e de seu grau de civilização, especialmente no México e Peru,
temos informação a respeito de seu desenvolvimento, mas como uma cultura inteiramente particular, que expira no
momento em que o Espírito se aproxima dela. A inferioridade destes indivíduos é, em tudo, inteiramente evidente” (apud
DUSSEL, Op. Cit., 1993, p. 18).
18
CARMO, Op. Cit., p. 56.
19
Ibidem, p. 55.
7

d) Servidão ideológica

O ponto de partida da crítica marxista à concepção burguesa de trabalho foi a elaboração do


conceito de ideologia. Em sentido amplo, ideologia é simplesmente uma representação global da
realidade, composta de doutrinas, ideias, crenças, normas, procedimentos e valores tomados como
realidade por uma sociedade, classe ou grupo. Na específica acepção marxista, entretanto, ganha o
sentido de falsa consciência a respeito da realidade, de imposição de um conjunto de ideias de uma
classe sobre a outra com o objetivo de dominação.20 As estruturas de dominação dos capitalistas sobre
os proletários se sustentam muito menos na violência explícita e na repressão policial do que na
propagação de concepções que acomodam o indivíduo no seu devido lugar social de trabalhador
cooperante com uma engrenagem de poder e submetido a um sistema de controle e alienação de si
mesmo e do produto do seu labor. Essa dicotomia é incorporada por Louis Althusser através da
diferenciação entre aparelhos repressivos e aparelhos ideológicos de Estado. Althusser descreve o
sistema educacional como o principal responsável por transmitir os valores e procedimentos típicos
de classe.21 Na escola, jovens e crianças são aclimatados aos hábitos de classe, à função que
desempenharão na sociedade, no mercado e na produção, à prática da subordinação e da obediência,
ao louvor incondicional do trabalho; em síntese, nas escolas se formam subjetividades que se
autocompreendem como peças a ser encaixadas em um modo de produção atravessado por normas e
valores específicos.

Posto de outro modo, a servidão experimentada pelo trabalhador é voluntária, é mais fruto de
sua disposição ideologicamente enviesada e autossugerida do que de injunções repressivas externas.
Lembra-nos, com os devidos ajustes e guardadas as devidas proporções, o clássico discurso sobre a
servidão voluntária concebido por Étienne de la Boétie no século XVI. Boétie recordava que nenhum
poder consegue dominar e explorar sem a colaboração, ativa ou resignada, dos dominados ou
explorados.22 Já indagava, lançando as bases do futuro conceito de ideologia: “Procuremos entretanto
compreender, se for possível, como essa vontade obstinada de servir criou raízes tão profundas que
se julgaria que o próprio amor à liberdade não é tão natural”.23 Antecipou também o conceito de
naturalização mediante processo educativo que orientaria os sociólogos vindouros (como Foucault e
Althusser) muitos séculos depois: “Os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados
na servidão, sem olhar mais à frente, contentam-se em viver como nasceram e não pensam que têm
outros bens e outros direitos a não ser os que encontraram. Chegam finalmente a persuardir-se que

20
Ibidem, pp. 22-23.
21
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos Ideológicos de Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos de Estado. 2ª ed. Trad.:
Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
22
LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária. Trad.: Casemiro Linarth. São Paulo, Martin Claret, 2009,
p. 16.
23
Ibidem, p. 39.
8

a condição de seu nascimento é a natural”.24 Isto é, já no século XVI uma incipiente consciência a
respeito da ideologia – chamada outrora de hábito – estava em gestação.

Cumpre fazer um pequeno aparte a respeito do papel dos intelectuais na reprodução (e


eventual alteração) dos hábitos de classe e de suas respectivas ideologias. Essa perspectiva foi
explorada com acurácia por Antonio Gramsci,25 para quem a função dos intelectuais em face do poder
(e os intelectuais, como ressalta Norberto Bobbio,26 sem dúvida exercem um poder ideológico)
consiste na construção ou conservação dos projetos hegemônico de classe. Cabe aos chamados
intelectuais orgânicos patrocinar um projeto político de classe contra-hegemônico, em nível ético-
político, emancipatório com relação aos interesses do capital; patrocinar a formação de uma vontade
coletiva revolucionária dirigida à classe operária, de onde é capaz de emergir uma nova hegemonia.
Um intelectual orgânico recusa atitudes paternalistas para com as classes instrumentais, na medida
em que se considera parte integrante dessa classe, e nunca seu servo ou dominador, mas, mais
precisamente, um seu dirigente intelectual e moral. Uma vez que todo grupo social necessita de
intelectuais que legitimem sua posição de classe, são os intelectuais orgânicos os responsáveis por
representar os interesses de sua classe no conjunto da vida social, em oposição aos intelectuais
tradicionais, vinculados aos grupos sociais dominantes. Todo grupo social tem, ou tende a formar,
sua própria camada de intelectuais, de modo que nunca há intelectuais completamente independentes.
Gramsci prescreve-lhes a função de estar sempre em contato com “os simples”, por meio da
elaboração de um pensamento cientificamente coerente e orgânico, superior ao senso comum, que
concorra para uma relação coerente entre teoria e práxis, entre pensar o mundo e agir no mundo; para
uma condensação, sob a forma de princípios coerentes, dos problemas postos pelos “simples” em
suas atividades práticas; para a construção, enfim, da identidade filosófica de um grupo social.27

e) Consciência revolucionária

A ideia de revolução parece inteiramente comum aos séculos XVIII e XIX, embora seja um
tanto estranha para aqueles que nasceram nas últimas décadas do século XX ou no começo do século
XXI. Mesmo acusados de utopia e contra todas as evidências, Marx e Engels previram a iminência
de uma insurgência dos trabalhadores contra os donos dos meios de produção, uma total revolução
infraestrutural que conduziria, preliminarmente, a uma inversão nos vetores de dominação – à

24
Ibidem, p. 45.
25
Conferir: GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere, V. Turim: Einaudi, 1975. 4 v. (Edição Crítica de Gerratana).
26
Conferir: BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder: dúvidas e opções dos homens de cultura na sociedade
contemporânea. Trad.: Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora UNESP, 1997.
27
DURIGUETTO, Maria Lucia. “A questão dos intelectuais em Gramsci”. In: Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 118, p. 265-
293, abr./jun. 2014.
9

ditadura do proletariado – e, superada a transição socialista, à plena implantação de um regime


comunista sem Estado nem propriedade privada, gerido diretamente pela classe trabalhadora. O
trilhar desse caminho dar-se-ia quando os trabalhadores tomassem consciência de classe, isto é,
consciência de sua própria opressão experimentada devido ao pertencimento à classe social produtiva,
porém alienada dos meios de produção.

As bases da irresignação foram lançadas pelo supracitado Étienne de la Boétie. Elaborando


algo próximo do que hodiernamente conhecemos como desobediência civil, Boétie prelecionava que
a recusa a submeter-se à autoridade injusta necessariamente destruiria os fundamentos dessa
autoridade, mesmo que se prescindisse da resistência violenta. “A tirania se destrói sozinha quando
os indivíduos se recusam a consentir com sua própria escravidão.28 (...) São, por conseguinte, os
próprios povos que se deixam, ou melhor, que se fazem maltratar, pois seriam livres se parassem de
servir. É o próprio povo que se escraviza e se suicida quando, podendo escolher entre ser submisso
ou ser livre, renuncia à liberdade e aceita o jugo; quando consente com seu sofrimento, ou melhor,
o procura.29 (...) Mas basta não lhes dar nada e não lhes obedecer, sem combatê-los ou atacá-los, e
eles ficam nus e são derrotados, e não são mais nada, assim como o ramo que, não tendo mais sumo
nem alimento em sua raiz, seca e morre.30 (...) O que ele [o tirano] tem a mais são os meios que lhe
[vós, os povos oprimidos] destes para destruir-vos31. (...) Sede resolutos em não querer servir mais
e sereis livres”32.

O processo de condução à epifania da consciência de classe foi descrito de forma comovente


pelo poeta Vinícius de Moraes: “De forma que, certo dia/ À mesa, ao cortar o pão/ O operário foi
tomado/ De uma súbita emoção/ Ao constatar assombrado/ Que tudo naquela mesa/ - Garrafa, prato,
facão -/ Era ele quem os fazia/ Ele, um humilde operário,/ Um operário em construção/ (...) Ah,
homens de pensamento/ Não sabereis nunca o quanto/ Aquele humilde operário/ Soube naquele
momento!/ Naquela casa vazia/ Que ele mesmo levantara/ Um mundo novo nascia/ De que sequer
suspeitava./ (...) E um fato novo se viu/ Que a todos admirava:/ O que o operário dizia/ Outro
operário escutava./ E foi assim que o operário/ Do edifício em construção/ Que sempre dizia sim/
Começou a dizer não. (...).”33

Durante algum tempo, as previsões de Marx e Engels acerca de um “mundo novo que nascia”
pareceram, pelo menos em parte, frutificar: a Revolução Russa de 1917 marca a eclosão de um regime

28
LA BOÉTIE, Op. Cit., p. 15.
29
Ibidem, p. 36.
30
Ibidem, p. 37.
31
Ibidem, p. 38.
32
Ibidem, p. 39.
33
Disponível em: http://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-operario-em-construcao. Acesso
em 29/11/2016.
10

de poder e gestão econômica protagonizado pelos trabalhadores urbanos e rurais (e neste último fato
reside uma das ironias da história, que excederam as predições). A Revolução, que se espalhou
décadas mais tarde por países como Cuba e China, traduzia a esperança de modelo social sem
exploração e alienação do trabalho humano, em que os próprios trabalhadores tomariam as rédeas do
desenvolvimento e tornar-se-iam sujeitos de sua própria história. Infelizmente, a promessa não se
concretizou. Já na Era Lenin, o esforço de superação das primeiras crises internas fez surgirem os
primeiros campos de trabalhos forçados, para onde eram enviados os opositores do regime. Com o
passar do tempo, o Estado (em lugar das empresas) passou a patrocinar uma nova exploração
proletária, incorporando metas produtivistas que forçavam o ininterrupto desempenho laboral – numa
verdadeira adaptação de técnicas como o taylorismo e o fordismo34 ao socialismo – e promovendo a
concentração de poder de disciplinamento em um aparato burocrático que se ramificava desde a alta
burocracia estatal até a direção das fábricas.35

O quadro de opressão institucionalizada se intensificou na Era Stalin: um governo totalitário


foi acompanhado de uma contundente propaganda de fidelidade ao regime, que incluía a
incondicional dedicação ao trabalho e o desencorajamento da indisciplina. O trabalho tornava-se
compulsório para todos, e sua recusa configurava rebelião política. Tal propaganda em nada se
diferenciava daquelas levadas a efeito pelas fábricas norte-americanas. Por seu turno, a promessa de
maior autonomia e autogerência para o trabalhador foi de vez por todas frustrada: ele era um “mero
executor das tarefas impostas pelo Estado, era apenas um assalariado que não dispunha nem dos
meios de produção nem do produto de seu trabalho”.36 O colapso da União Soviética, nos fins da
década de 1980, de certa forma sepultou os ideais revolucionários no que tange às expectativas de
consolidação de um modelo social em que haveria uma equivalência total entre sujeitos trabalhadores
e proprietários das riquezas.

A partir do começo da década seguinte, o capitalismo revigorou-se com toda força,


“repaginado” na forma do neoliberalismo concebido no Consenso de Washington em novembro de
1989. A ideia de revolução cada vez mais se tornou improvável, considerada delírio ou utopia diante
de uma aparente hegemonia de um inexpugnável capitalismo. Mesmo a existência da luta de classes
veio a ser desacreditada em prol de uma “nova” ideologia que preconizava uma inteira similitude de
interesses entre patrão e empregado, um bem-estar social inatacável por causa do irrefreável
desenvolvimento da tecnologia, dos mercados, e também das garantias e dos direitos “concedidos”

34
O taylorismo e o fordismo são duas doutrinas de viés cientificista criadas no início do século XXI nos Estados Unidos,
relacionadas ao esforço de aumentar a produtividade do trabalhador nas fábricas, maximizando o tempo “útil” e evitando
o desperdício de tempo, o dispêndio de mão-de-obra e comportamentos supérfluos.
35
CARMO, Op. Cit., p. 81.
36
Ibidem, p. 87.
11

aos trabalhadores tendo em vista assegurar-se a estabilidade social e a harmonia entre os diferentes
setores da sociedade. A globalização de mercados (e também, inevitavelmente, das culturas) é a nova
faceta do imperialismo; o capitalismo financeiro é a nova faceta do mercado. Assistimos, com efeito,
ao triunfo do capitalismo? Ou ainda se encontra latente uma vontade de irresignação derivada da
insuperável diferenciação – e do conseguinte conflito – entre capital e trabalho?

f) A ideologia ainda impera

A primeira peculiaridade notável da ideologia do trabalho no século XXI é que nunca antes o
capitalismo gozou de tamanha supremacia quanto neste começo de milênio. Todas as tradicionais
teorias e tentativas de insurreição, de superação do modo de produção vigente, de reforma ou de
instituição de um novo sistema econômico parecem estar adormecidas, senão esconjuradas. Em parte,
o aparente triunfo do capital deve-se a um engenhoso estratagema que dissimula as reais intenções
do patronato, as quais revestem-se de um verniz de benevolência. Atitudes focadas no estímulo à
cooperação em grupo, ao empreendedorismo individual, à competitividade, à premiação do esforço e
da eficiência (à “meritocracia”) e, sobretudo, à autocompreensão do empregado enquanto colaborador
da companhia geram tanto um vínculo afetivo quanto um cálculo racional de comportamento por
parte do trabalhador. O vínculo afetivo se deve ao fomento da sensação de que o empregado participa
diretamente dos objetivos e do sucesso da empresa. O cálculo racional de comportamento se deve ao
fato de o empregado perceber que a eficiência lhe trará mais benefícios imediatos, como a progressão
na carreira, uma bonificação salarial ou um mero elogio público. A Escola de Relações Humanas,
surgida nos Estados Unidos, captou, com perspicácia, o segredo da obtenção do esforço do
empregado: mantê-lo feliz e motivado no emprego, o que significa mantê-lo fiel à empresa. Esse
disfarce ideológico apenas encobre uma ideologia manipulatória fortemente baseada em um
simulacro de igualdade que só faz aumentar a sujeição. Ao ter a impressão de que exerce algum poder
corporativo, o trabalhador passa a dedicar-se à empresa como se ela fosse algo realmente seu, de que
devesse cuidar com todo o zelo possível.37

Uma segunda característica considerável dessas duas décadas iniciais é o esfacelamento das
relações sociais sólidas por que tem passado nossa “modernidade líquida”. Essa “liquidação” dos
laços afetivos está por trás da recente e quase incondicional devoção das pessoas ao trabalho (cujo
ápice encerra-se na caricata figura do workaholic, o sujeito viciado em trabalho). Para muitas pessoas,
o trabalho torna-se o único elo social fora do convívio familiar: com tamanho tempo gasto na jornada
laboral, somado à pungente correria do dia-a-dia, os períodos de trabalho e de lazer acabam

37
Ibidem, p. 93.
12

forçosamente se confundindo, na medida em que estes são substituídos por aqueles. Para muitas
outras pessoas, o trabalho é o único local de vida comunitária: com o aumento do fluxo migratório
para as grandes metrópoles, muitas pessoas passam a viver longe de suas famílias e de suas
comunidades de origem, ou mesmo, estimuladas pelo recrudescimento de uma cultura individualista
e de autossuficiência, optam por morar sozinhas. O trabalho, nessa óptica, “pode oferecer
compensação para os sofrimentos e as decepções existenciais”,38 para a solidão, para o isolamento,
para a fluidez e transitoriedade das relações intersubjetivas, e para a falta de sentido e propósito
existencial típica da modernidade tardia, de uma sociedade que perdeu suas referências absolutas,
sejam elas morais, políticas, estéticas ou religiosas.

Impulsionada por esses fatores, a cultura do consumo tem assumido alcance estratosférico e
tenaz intensidade nunca antes tão evidentes. Como precisam escoar sua produção, as empresas –
sobretudo aquelas que produzem e vendem artigos industrializados, especialmente tecnológicos –
aliam-se a uma contundente propaganda midiática (criou-se até mesmo um ramo da comunicação
social específico para tal fim, a chamada publicidade) para incutir nos consumidores (note-se que os
cidadãos são compreendidos tão somente em sua condição de “indivíduos aptos para o consumo”, de
alvos de propagação do marketing) o sentimento de que comprar determinadas mercadorias é uma
premissa sine qua non para que possam viver uma vida munida de bem-estar, conforto, segurança e,
principalmente, felicidade e aceitação social. O consumismo se sustenta naquele imperativo do gozo
de que nos fala o festejado Prof. Agostinho Ramalho Marques Neto: em lugar do desejo – o qual
conhece limites ali mesmo onde há falta –, o gozo da aquisição incessante é o caminho apontado por
uma sociedade de consumo: “quanto mais é oferecido, maior a demanda, criando-se assim uma
condição de permanente insaciabilidade”.39 O marketing é um dos grandes aparelhos ideológicos que
sustentam o capitalismo em sua atual fase. Sem o consumo desenfreado, muito provavelmente as
empresas não conseguiriam vender o suficiente para se manter e o capitalismo entraria em um grave
colapso. O trabalhador é precipuamente visado, então, na sua condição de consumidor daquilo que
ele próprio produz – pagando, porém, um preço mais caro para fruir suas criações. Nesse mundo de
perda de referências, o simples ato de consumir, independentemente da necessidade que se tem
daquele objeto que se consome, é “vendido” como uma fuga para a ansiedade, a depressão, a liquidez
e o vazio espiritual que caracterizam a modernidade avançada.

Vivemos em uma era sabiamente apelidada de globalização. “A globalização é reflexo da


intensificação dos fluxos comerciais e financeiros, bem como dos contratos e trocas entre empresas

38
Ibidem, p. 129.
39
MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. “Neoliberalismo e gozo”. Disponível em:
https://blogdotarso.com/2013/01/21/neoliberalismo-e-gozo-agostinho-ramalho-marques-neto/#_ftn9.
13

e pessoas em diferentes partes do mundo”.40 Mas seria ingênuo supor que a globalização transporta
apenas mercadorias; ela também transporta culturas. E essas culturas não pressupõem relações
precedentes de igualdade entre as nações. Assim sendo, basicamente são exportados modos de vida
e hábitos de trabalho oriundos dos países desenvolvidos (o consumismo é um deles) interessados na
hipertrofia do capital e no recrudescimento de suas potencialidades de gerar riqueza mediante
consumo. Um dos paradigmas do trabalho do século XXI é a terceirização, amplamente praticada
pelas empresas multinacionais, por meio da qual elas instalam suas fábricas nos países onde há capital
barato, devido aos baixos salários pagos aos trabalhadores e à exiguidade ou completa ausência de
direitos trabalhistas. Une-se à terceirização a crescente mecanização das forças produtivas que
acompanha o progresso tecnológico, de que resultam índices assombrosos de desemprego ou de
situações de subemprego no mercado informal. Ao passo que o liberalismo e o socialismo foram as
duas doutrinas dicotômicas que disputaram hegemonia nos séculos XIX e XX, neste século incipiente
o neoliberalismo goza de predomínio absoluto. As únicas bandeiras políticas capazes de freá-lo, até
o momento, diminuindo seu impacto avassalador, são aquelas inspiradas pelas doutrinas
redistributivas do Estado social, do constitucionalismo social e dos direitos sociais.

g) Peculiaridades no Sul global: a formação da força de trabalho no Brasil

Narrativas históricas focadas em temas universais – como é o caso do trabalho – costumam


pecar pela generalidade e linearidade que empregam. É comum que elas apaguem diferenças locais
significativas e reduzam a complexidade dos fatores históricos que elucidam identidades culturais
específicas. Teria a circunstância de os países colonizados da América haverem usado mão-de-obra
escrava contribuído em alguma medida para uma ideologia do trabalho distintiva no Sul global? Até
que ponto a longa história escravocrata do Brasil – que se arrastou por 389 anos, isto é, por mais de
três quartos da história do País – ainda afeta ideologicamente o trabalho em nossa sociedade? Vale
procedermos a uma pequena recapitulação histórica da formação da força de trabalho brasileira.

A mais sobressaltada peculiaridade da formação da força de trabalho no Brasil é o expressivo


retardamento da inserção do trabalho livre, em descompasso com o que ocorria no mundo capitalista
europeu. Nos primórdios da colonização, os portugueses aproveitaram a mão-de-obra indígena
disponível no local, porém, tão logo perceberam que essas populações não compartilhavam a mesma
concepção produtivista de trabalho, decidiram substituí-la por outros povos mais acostumados ao
hábito do trabalho nos moldes esperados. Os índios desde então são estigmatizados como indolentes
e preguiçosos por natureza, simplesmente porque o significado do trabalho para eles se revestia de

40
Ibidem, p. 125.
14

um caráter mais diversificado, descontínuo, condicionado às necessidades básicas e espiritualmente


ligado à vida e à terra. A substituição dos nativos pelos escravos africanos atendeu aos ditames de
intensificação da produção na economia colonial açucareira.

À revelia de qualquer ética do trabalho, os escravos suportavam, por cerca de 15 anos, uma
média de 16 horas de trabalho diário, acompanhada de condições de vida aviltantes. Faltas cometidas
no trabalho ou fugas eram rigorosamente punidas principalmente pelo açoite – no máximo 40
chibatadas por dia, recomendava o frei italiano Jorge Benci, “para não mutilar o escravo”, embora
haja relatos da aplicação de até 600 açoites diários.41 Boa parte da população negra trazida da África42
morria ainda no percurso entre as zonas de captura e o litoral (40%) ou na travessia do Oceano
Atlântico (15%), enquanto outra parcela definhava nos alojamentos, tais como o Mercado do
Valongo, do Rio de Janeiro (de 10% a 12%).43 Semelhante tratamento dispensado aos negros já
excluía de antemão qualquer possibilidade de conotação humana dada ao trabalho no Brasil. O
tratamento animalesco, quando não se transmudava em tormentos e castigos físicos, já se entrevia nas
precárias condições de trabalho e na exploração sem mínima recompensa. Estima-se que um escravo
podia custar até 11 mil réis mensais (o equivalente a não mais que meio salário mínimo) ao seu dono,
incluindo-se sua “remuneração” e suas despesas básicas de alimentação, conservação da saúde e
higiene. Para justificar a instituição de que dependia a economia nacional, criou-se e propagou-se um
engenhoso repertório moral.44

De fato, a escravatura mobilizava e era sustentáculo de toda a economia colonial e imperial.


Em 1812, os maiores comerciantes do Rio de Janeiro eram os traficantes de escravos.45 Diante disso,
é natural que a alforria e principalmente a abolição fossem evitadas a todo custo pelo poder público,
sob o argumento de que a escravidão era uma instituição primordial do sistema econômico e social
vigente. Afinal, o Brasil não era menos que o mais robusto e mais duradouro centro escravagista de
todo o Hemisfério Ocidental: cerca de 40% dos 10 milhões de escravos africanos trazidos para as
Américas durante os mais de três séculos em que a insidiosa instituição vigia destinou-se às terras
brasileiras. Uma educadora alemã que por aqui estava de passagem resumiu lapidarmente, em 1881,

41
GOMES, Laurentino. 1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta engaram Napoleão e
mudaram a História de Portugal e do Brasil. 3. Ed. São Paulo: Globo, 2014, p. 244.
42
Estima-se que, em 1817, mais da metade da população brasileira era composta de escravos: 1,9 milhões dos 3,6 milhões
de habitantes. Em 1850, o número de escravos havia subido para 3,5 milhões.
Fonte: http://www.areliquia.com.br/artigos%20anteriores/41escrav.htm.
43
Ibidem, p. 238.
44
Conferir ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1868-88). 1ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2015, p. 57: “David Brion Davis identificou três linhagens de justificação do escravismo no
Ocidente. Uma, a partir de Aristóteles, considerava natural a supremacia de senhores sobre escravos. Outra, de
iluministas como Voltaire, Kant, Hume, deu cor à diferença, hierarquizou brancos e negros. A terceira maneira veio da
religião e justapôs escravidão e pecado, lastreando-se em episódio da Bíblia em que Deus pune o fratricida Caim com
uma mancha negra indelével e hereditária na pele”.
45
Ibidem, p. 237.
15

o espírito daquele tempo: “Neste país, os pretos representam o papel principal; acho que, no fundo,
são mais senhores do que escravos dos brasileiros. (...) Todo o trabalho é realizado pelos pretos,
toda riqueza é adquirida por mãos negras, porque o brasileiro [branco] não trabalha”.46
Concomitantemente, criava-se uma “ralé branca” composta pelos indivíduos não integrados à rígida
ordem escravocrata, que não eram escravos, tampouco senhores.47

O legado da escravidão que se estendeu oficialmente até 1888, para a ideologia do trabalho
pátria, foi a difusão, ainda pulsante, da desvalorização ética do trabalho manual, como as atividades
rurícolas, domésticas,48 braçais, de construção civil etc., tidas como típicas de escravos e, por isso,
vis e repugnantes. No clássico Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda assevera que o Brasil
colonial tinha aversão ao trabalho; que, em contraste com a ideologia reinante nos grandes centros
capitalistas, a metrópole colonizadora ambicionava obter riqueza não pelo trabalho esforçado e
planejado, mas pela exploração rápida e inconsequente: “O que o português vinha buscar era, sem
dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”.49 Em geral,
trabalhar foi considerado motivo de vergonha até a dignificação promovida pelo advento do trabalho
dos imigrantes europeus, ou seja, apenas a partir do “branqueamento” da mão-de-obra.50 Os cerca de
1 milhão de estrangeiros que ingressaram no Brasil até 1920, vindos de uma Europa em crise,
devastada pela Guerra, ajudaram a formar o operariado brasileiro emergente no século XX. Uma
classe operária retardatária teve de conviver com o autoritarismo paternalista do governo de Getúlio
Vargas. É inegável que houve avanços nos primeiros anos do governo Vargas e mesmo no Estado
Novo, considerando que, pela primeira vez, o Estado brasileiro importava-se com o trabalhador e
permitia um vislumbre de Estado social. Entretanto, as iniciativas interventoras desse período não
estão imunes à devida severidade crítica: a distribuição de direitos e a criação de sindicatos atrelados
ao Estado servia também, ou principalmente, ao propósito de domar a auto-organização e as
reivindicações da classe operária, técnica largamente utilizada pelos regimes fascistas
contemporâneos ao getulismo. Essa classe ainda ficaria por décadas silenciada por conta do regime
autoritário instaurado pela ditadura civil-militar de 1964. Apenas no final da década de 1970, com a

46
GOMES, Laurentino. 1889: como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado
contribuíram para o fim da Monarquia e a Proclamação da República no Brasil. 1 ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 212.
47
CARMO, Op. Cit., pp. 101-103.
48
Os resquícios atualizados desse preconceito se fazem presentes em nossa história recente. O limiar entre casa grande e
senzala ainda ecoa nas relações entre empregadores e empregadas domésticas, trazendo à tona a cultura servil da
“mucama”. Para se ter uma ideia, o Estado reluta em reconhecer às empregadas domésticas os mesmos direitos
franqueados aos trabalhadores em geral. No texto constitucional originário, excepcionava-se expressamente o alcance dos
direitos trabalhistas às domésticas. Somente a partir da aprovação da Emenda Constitucional nº 72/2013, vieram a ser
reconhecidos direitos básicos como jornada de trabalho de 44 horas semanais com indenização das horas-extras,
recolhimento obrigatório do FGTS, recebimento de seguro-desemprego em caso de desemprego involuntário,
remuneração do trabalho noturno superior à do diurno, etc. (Ver art. 7º, Parágrafo único, da Constituição).
49
Apud GOMES, Laurentino. Op. Cit. (2014), p. 55.
50
Ibidem, p. 104.
16

sinalização da reabertura democrática, é que surgiu, sobretudo no ABC paulista, um operariado


combativo.51

h) Genealogia dos direitos

Acima de todas as crises cíclicas por que passa o sistema capitalista, um binarismo
fundamental se mantém constante e irredutível: a dicotomia entre trabalho e capital. A crise que
eclodiu no segundo quarto do século passado – cujo estopim é representado pela “quebra” da Bolsa
de Nova Iorque em 1929 –, aliada à maciça pressão por melhores condições de vida do operariado,
deu vazão ao surgimento do Estado social de direito, paradigma voltado à materialização dos antigos
direitos formais do Estado liberal-burguês. Um Estado social em ascensão buscava gerenciar a
sociedade rumo à diminuição das desigualdades sociais e à proteção dos menos favorecidos, por meio
de um intervencionismo estatal na economia que promovesse um nível sustentável de seguridade
social. Neste particular estágio, o direito acolhe as lutas dos trabalhadores, revestindo-as de forma
jurídica. Países como México e Alemanha foram pioneiros na constitucionalização do direito
trabalhista (em 1917 e 1919, respectivamente), a partir de quando se verificou a consolidação do
constitucionalismo social que vigoraria ao longo das próximas décadas.

Foi nesse momento histórico que direitos sociais passaram a integrar a compreensão mais
abrangente de direitos humanos – uma segunda geração de direitos. Tornaram-se, então, parte
destacada daquilo que podemos vislumbrar como a ideologia da dignidade humana. Para os
socialistas críticos mais radicais, essa ideologia da dignidade seria uma “concessão” do Estado
capitalista com o objetivo de mascarar a desigualdade social e amortizar a luta de classes. Se, nos
primórdios do constitucionalismo moderno, o conteúdo constitucional se restringia às normas que
dispunham sobre os limites do poder do Estado (normas que estabeleciam direitos dos indivíduos na
sociedade política e a organização político-administrativa do Estado), com a passagem para o Estado
social, o conteúdo constitucional (as normas constitucionais em sentido material) passa a agregar a
determinação de fins públicos a serem concretizados por um Estado provedor de bem-estar social.
Nas Constituições do primeiro pós-Guerra, reconhece-se um direito fundamental a um núcleo básico
de direitos sociais que promovam um mínimo existencial compatível com a dignidade humana de
cada cidadão, na ausência do qual o Estado se torna infrator de obrigações jurídico-positivas impostas
pelas ordens constitucional e internacional.

51
Ibidem, p. 113.
17

Por outro lado, o antídoto para as crises que se desvelam sob a hegemonia neoliberal
negligencia sempre (propositadamente) o aspecto do trabalho em prol da defesa da incolumidade do
capital. Maior crise econômica desde a Grande Depressão, a crise global de 2008 reacendeu o debate
entre defensores do Estado intervencionista e defensores do livre mercado. Nesses momentos, fica
em xeque a própria competência do governo para desempenhar funções corretivas, para desenvolver
esquemas compensatórios que atenuem certos efeitos perversos do mercado desregulado. O próprio
pai do liberalismo econômico, Adam Smith, já detectava um conspícuo desequilíbrio entre capitalista
e trabalhador no momento de negociar empregos e salários. Ao passo que a oferta de mão-de-obra
costuma ser larga – especialmente quando o desemprego torna-se uma realidade contumaz –, o
mercado, por si só, (des)regulado pela “mão invisível”, tende a manter os salários em níveis
miseráveis. A doutrina neoliberal, por sua vez, sequer faz questão de disfarçar a ostensiva
desigualdade que propõe. Como preleciona o nunca demais lembrado Prof. Agostinho Ramalho
Marques Neto, a desigualdade constitui (ao lado da competição e da eficiência) o tripé de sustentação
do neoliberalismo. Ela não é acidental, antes estrutural e pressuposta. Por isso, o economista
Frederich Hayek, pai do neoliberalismo, acreditava que uma “saudável desigualdade” – uma
dissimetria entre os consumidores no mercado econômico – favorece a “competição eficiente”. “A
exclusão social é endêmica ao neoliberalismo. Longe de ser um mero ‘acidente de percurso’, ela faz
parte da lógica interna do modelo neoliberal”52 – sentencia o Prof. Agostinho.

É um caminho trivial, e aparentemente o mais fácil, propor a radicalização do domínio do


mercado, o que implicaria tornar as relações de emprego menos reguladas juridicamente e, logo, mais
flexíveis, baixando custos de contrato e demissão. Enfim, fazem apologia do ajuste do sistema dos
direitos sociais às condições do mercado. No entanto, em um Estado democrático de direito, é mister
procedermos a uma interpretação constitucional da crise: são as medidas de austeridade que devem
demonstrar compatibilização com a Constituição, e não o contrário. As normas de direitos sociais se
desdobram em direitos a prestações por parte do Estado (dimensão positiva) e ao mesmo tempo
proíbem que o Estado interfira de modo a tornar mais precárias as garantias sociais existenciais
(dimensão negativa). Nem o Estado nem terceiros poderiam atentar contra posições jurídicas
albergadas pelo âmbito de proteção desses direitos. É a seguinte a formulação do princípio da
proibição de retrocesso em matéria de direitos sociais, ou simplesmente princípio do não retrocesso:53
“quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à

52
MARQUES NETO, Op. Cit.
53
Explorei o tema do princípio do não retrocesso, com maiores detalhes, em artigo publicado no Portal Jota, datado de 6
de agosto de 2015. Disponível em: http://jota.info/artigos/principio-constitucional-do-nao-retrocesso-06082015.
18

assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a
constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjectivo”.54

A vedação do retrocesso social tem sido comumente entendida como limite material implícito
que impede a supressão, por via de emendas constitucionais ou leis infraconstitucionais, dos direitos
prestacionais que já alcançaram um grau de densidade normativa robusto e adequado, a não ser que
tal supressão seja precedida de uma prestação alternativa que impeça eventual prejuízo ao direito em
tela, uma vez que a revogação de normas que disciplinam direitos fundamentais sociais devem ser
acompanhadas de medidas compensatórias de eventuais perdas. O não retrocesso decorre do núcleo
das chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição Federal de 1988. Conforme a melhor hermenêutica,
os direitos sociais são atingidos pela intangibilidade dispensada textualmente aos direitos e garantias
individuais.55 Com o auxílio desse princípio, o constitucionalismo social se fortalece diante do desafio
da recessão econômica, transfigurando-se em estrutura permanente para além das mudanças. O
princípio do Estado social permanece intocado, acima dos modelos concretos, por vezes falíveis, de
Estado provedor: é esse princípio que sustenta o credo da democracia social plasmado nas concepções
de justiça social de nossa época.

Anuncia-se, então, um conflito entre, de um lado, a primazia de um sistema econômico


baseado no livre mercado, na irrestrita liberdade de contratar (inclusive mão-de-obra), no Estado
mínimo e na normatização mínima do capital e do trabalho, e, de outro, a primazia dos direitos sociais
conquistados ao longo dos últimos séculos pela classe trabalhadora e condensados no modelo de
Estado de bem-estar social, muito prestigiado na primeira metade do século XX. O neoliberalismo
incentiva cortes de benefícios sociais, desmonte do sistema de seguridade social, contenção de
sindicatos e desregulamentação (chamada eufemisticamente de “flexibilização”, mas verdadeira
supressão) da legislação trabalhista. O encargo de todo déficit econômico é atribuído aos custos com
o sistema de direitos trabalhistas, quando, na verdade, semelhante compreensão denuncia as opções

54
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, pp. 338-339.
55
A Constituição da República Federativa do Brasil reconhece expressamente a imodificabilidade das garantias de direitos
individuais por meio de lei. Ver art. 60, §4º, IV. Embora os direitos sociais não tenham sido textualmente incluídos,
doutrinadores do escol de Paulo Bonavides defendem a intangibilidade desses direitos: “Com efeito, introduzida e
positivada em grau máximo de intangibilidade no §4º do art. 60, deve-se entender que a rigidez formal de proteção
estabelecida em favor dos conteúdos ali introduzidos, nomeadamente os respeitantes às duas acepções ora examinadas,
não abrange apenas o teor material dos direitos da primeira geração, herdados pelo constitucionalismo contemporâneo,
senão que se estende por igual aos direitos da segunda dimensão, a saber, os direitos sociais. (...) Faz-se mister, em
primeiro lugar, perante as reflexões expendidas, rejeitar, por anacrônica, obsoleta, regressiva e incompatível com o
espírito da Constituição e a sistemática de sua unidade, arvorada em princípio, toda interpretação pertinente à
inalterabilidade, por via de emenda, dos direitos e garantias individuais com base unicamente nos valores e princípios
que outrora regiam, legitimavam e norteavam os conceitos da velha corrente liberal. Já não é possível confinar a
formulação material e concreta da liberdade ao usufruto das classes privilegiadas e sua ordem egocêntrica de interesses.
(...) Fruem, por conseguinte, uma intangibilidade que os coloca inteiramente além do alcance do poder constituinte
ordinário, ou seja, aquele poder constituinte derivado e de segundo grau, contido no interior do próprio ordenamento
jurídico”. In: Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2015, pp. 674-675.
19

usualmente invocadas pelos governos neoliberais, baseadas na precarização do trabalho e no


favorecimento do capital. Advertidamente, se deixa de mencionar que as crises financeiras do Estado
poderiam ser amenizadas por meio do aprimoramento de mecanismos que se voltassem diretamente
ao capital, como o combate à sonegação, a taxação de grandes fortunas, a recuperação do passivo
tributário, a taxação do capital especulativo, a auditoria da dívida pública, o enfoque no aspecto
atuarial; enfim, um projeto de inteligência tributária direcionado para os segmentos sociais que
efetivamente concentram renda e patrimônio, e, por conseguinte, afetam verdadeiramente as finanças
públicas por meio da sonegação. Crises se devem muito menos aos custos da produção econômica ou
aos gastos com seguridade do que à desregulação do mercado financeiro e a consequente falta de
limites de ganho a partir da especulação.56

Só os desdobramentos da história dirão quais serão os resultados do embate entre os


imperativos sistêmicos do mercado e a luta da classe trabalhadora. Ainda é cedo para sabermos se o
“Deus Mercado” continuará avançando impiedosamente sobre tudo, ou se a classe trabalhadora
reorganizar-se-á e recomporá sua luta. O pássaro de Minerva, nos dizia Hegel, só levanta voo ao cair
do crepúsculo.57 É a própria história que nos alerta sobre a imprevisibilidade dos desfechos, e sobre
o fato de que quando a opressão se torna insuportável, é de se desconfiar que uma resistência hercúlea
está por vir.

56
Esses pontos foram desenvolvidos em artigo de minha autoria intitulado “A reforma previdenciária e o equivocado
caminho rumo ao retrocesso”. Publicado em: Revista Fórum de Direito Sindical – RFDS. Ano 2, n. 2, janeiro/junho 2016.
57
Mesmo ao dizer algumas palavras sobre a doutrina de como deve ser o mundo, a filosofia sempre chega tarde demais.
Enquanto pensamento do mundo, ela aparece pela primeira vez no tempo depois que a realidade completou o seu
processo de formação e já está pronta e acabada…. Quando a filosofia pinta em claro-escuro, então um aspecto da vida
envelheceu e não se deixa rejuvenescer pelo claro-escuro, mas apenas reconhecer: a coruja de Minerva levanta voo ao
cair do crepúsculo. (Wilhelm Friedrich Hegel, 1770-1831. In: Princípios da Filosofia do Direito. Citado por Ubaldo
Nicola. Antologia Ilustrada de Filosofia. Editora Globo, 2005).

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