Deboramakuch,+862 2202 1 - ED
Deboramakuch,+862 2202 1 - ED
Deboramakuch,+862 2202 1 - ED
2022;23:e862
Doi 10.22421/1517-7130/es.2022v23.e862
© 2018 - ISSN 15177130
ENSAIO
O primeiro caso do novo coronavírus (SARs-CoV2) mundial desencadeada pela mortalidade do vírus;
foi identificado na cidade de Wuhan, China, em 31 nesse período, o Brasil já confirmava o primeiro caso
de dezembro de 2019; propagando-se rapidamente e, em poucos dias, o primeiro óbito decorrente da
pelo continente asiático e, em seguida, Europa. doença1.
Com a transmissibilidade acelerada, a Organização Atualmente, passados dois anos, o mundo soma mais
Mundial da Saúde (OMS) apontou a identificação de de 450 milhões de casos positivos e 6,18 milhões
casos suspeitos, bem como de uma potencial crise de óbitos. Famílias e comunidades inteiras foram
Autor de Correspondência:
*Thais Lazaroto Roberto Cordeiro. E-mail: [email protected]
acometidas pela doença que evoluiu para pandemia. estabelecimento de políticas públicas eficientes que
O Brasil sofreu um aumento gradativo de casos e possibilitem a maior adesão da população6.
passou por momentos delicados, com indicadores
O crescimento da descrença relativa à imunização
alarmantes entre casos confirmados e óbitos –
acontece por inúmeros fatores, sendo a desinformação
que somam mais de 660 mil em decorrência de
recorrente um deles. Definidas como: “Informação
complicações dessa patologia2.
falsa ou imprecisa cuja intenção deliberada é
Inseridos em um contexto de crise sanitária, embates enganar”7, as Fake News – termo utilizado desde o
políticos e econômicos atingiram quase todas as governo Trump e persistente no diálogo de políticos
nações, motivados tanto pela saúde quanto pela conservadores e pseudocientistas8 – são amplamente
própria repercussão da pandemia. Logo, houve um disseminadas à sociedade; por meio da conectividade
movimento imediato das instituições de pesquisa em e interação em redes sociais e à facilidade de acesso
busca de soluções para erradicar a patologia. Nesse às notícias.
cenário, comunidades científicas se engajaram para
Este cenário acarreta notícias como essa: “Sarampo,
produzir um imunobiológico eficaz e seguro para
pólio, difteria e rubéola voltam a ameaçar após
superar o momento.
erradicação no Brasil”. A publicação, de julho de
No Brasil, o Programa Nacional de Imunizações 20189, torna-se cada vez mais comum, com o texto
(PNI) tem destaque mundial pela eficácia no evidenciando a baixa cobertura vacinal de grupos
combate e erradicação de várias doenças, como prioritários e estratégicos no combate às patologias
a poliomielite e a rubéola. A implementação do elencadas. A falta de adesão da população decorre
programa leva à vacinação os grupos prioritários, do crescimento das Fake News referentes ao tema,
conforme calendário estabelecido, de modo gratuito logo há também o aumento da desconfiança sobre a
e com acesso universal, respeitando os princípios segurança e necessidade de vacinação10.
doutrinários do Sistema Único de Saúde (SUS) . 3
graças a um evento específico, por exemplo, a perspectiva de que a própria palavra tem autoridade
pandemia atual1. sobre qualquer tema, fazendo com que médicos
e leigos interessados sem questões relacionadas
Nestas atualizações diárias há o bombardeamento
à saúde, por exemplo, tenham o mesmo peso de
de estudos e panoramas nacionais de vacinação,
palavra, como no caso da vacinação. A razão, dessa
reforçando a necessidade de adesão como um
forma, acaba pendendo para quem “grita mais alto”,
pacto coletivo que visa o término da pandemia11.
tem mais influência digital, ou é visto como formador
Devido ao acesso às tecnologias, a disseminação
de opinião por um grupo14.
de notícias se dá de maneira instantânea, pois a
ideia é contribuir para a democratização do acesso Hoje, o poder atrela-se à influência digital e às
aos fatos e conhecimentos de modo geral; porém, reformulações de discursos; os influencers são
há uma dificuldade inserida no refinamento das subsidiados por interesses comerciais, capitalistas e
informações, de modo a identificar quais conteúdos contam com a habilidade de distorcer informações
são reais e quais apresentam um caráter duvidoso no intuito de proferir sobre determinado tema, como
(fake news). ao fundamentar a não adesão à vacinação contra o
Covid.
Nesse sentido, o assunto ganhou tamanha relevância
que, em 03 de julho de 2020, foi encaminhado ao Ocorreu, recentemente, após o óbito do ator Tarcísio
senado o Projeto de Lei 2630/202012 que institui Meira, o aumento significativo de discursos que
a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade afirmam a ineficácia da vacina, “a vacina não protege,
e Transparência na Internet, criando medidas de ele morreu após duas doses”; outras notícias também
combate à disseminação de conteúdos falsos nas ganharam grande destaque, como: “Enfermeira-
redes sociais, como Facebook e Twitter, e nos chefe desmaia 'ao vivo' após tomar vacina contra
serviços de mensagens privadas, como WhatsApp e Covid-1915”. Ou “Enfermeira desmaia após tomar
Telegram. vacina contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech16”. Tais
notícias, bem como seu potencial de disseminação
Houve grande dificuldade no consenso entre os
relacionado à dúvida sobre a segurança da vacina
parlamentares sobre o que é a desinformação e como
é evidente, grupos negacionistas utilizam esses
seria possível a checagem das fake news, pois há uma
argumentos para criar um arsenal contra a
mudança constante das variantes que interferem nas
imunização.
construções das verdades, sendo este um fenômeno
fluído (as verdades), que se adapta e readapta aos A disseminação de fake news pode ocorrer de maneira
contextos e dinâmicas cujas certezas e incertezas se mais estrondosa quando um ator social em posição de
reconfiguram a todo momento. liderança, ou pessoas que tenham nível privilegiado
na sociedade, por exemplo, proferem discursos de
Uma das problemáticas se refere ao conceito de
apoio a grupos negacionistas. Um exemplo é um
pós-verdade: “expressa que o racional (logos) perde
médico produzindo um discurso que associa esse
frente ao emocional (pathos) - diante da vontade de
acontecimento a uma reação vacinal, a sociedade
sustentar crenças, apesar dos fatos demonstrarem
pode compactuar com esse discurso devido à posição
o contrário13”. A participação nas redes sociais e os
de privilégio de um médico proferindo uma opinião
fenômenos sociais gerados por elas, concedem a voz
como especialista do assunto, mesmo que isso seja
a quem normalmente não a teria. Pois, onde alguns
um fato inverídico, aumentando o potencial de
indivíduos sentem a necessidade de ter uma opinião
disseminação dessa informação equivocada14.
formada acerca de todos os assuntos, cria-se a
Explorando o discurso sob a ótica de Michel lo a grandes instituições como o governo, empresas,
Foucault igrejas17.
Michel Foucault, em sua obra “A Ordem do Discurso” Porém, para Foucault ele (o discurso) está presente
(1970), discorre sobre a hipótese de domínio do em todos os lugares e não atrelado a um indivíduo
discurso por um indivíduo em posição de liderança e o apenas, mas sim conectado por uma rede. Um grupo
poder desse discurso sobre determinada coletividade. constrói seus saberes coesos entre si, apegam-se
No livro, o filósofo procura explicar como o discurso a discursos que fortalecem tais conhecimentos e
se organiza, se manifesta na sociedade, assim como agem no seu território usando os micropoderes
os frutos que ele pode gerar, pontuando os seus para o controle sobre o cotidiano dos sujeitos.
perigos, potencialidades e proliferação .
17
Nesta esteira, grupos negacionistas buscam brechas
e reformulações de discursos para fortalecer
A obra teve origem em uma aula de abertura no
suas práticas de proliferação de falas negativas
College de France, posteriormente tornando-se
direcionadas à vacina, buscando argumentos para
livro; na ocasião, Foucault relata os procedimentos
sua não adesão17.
instituídos para ordenar o discurso, como aqueles
externos. Ele define termos como a “rejeição”, que Caso haja desvio no padrão estabelecido por um dado
compete a quem pode falar sobre um assunto, por grupo, o indivíduo destoante é expulso, fortalecendo
exemplo: em uma missa quem poderia falar seria a política do cancelamento, o que pode parecer
apenas o padre, pois estudou para tanto; já em uma liberdade, porém trata-se de uma eterna prisão,
família tradicional patriarcal seria o patrão ou pai, com o recorrente vigiar (seu discurso) e punir (com a
pela posição ocupada na sociedade, quem possui expulsão quem discorda)18.
o “direito privilegiado”, pois se encontra em nível
Há vários elementos subjetivos, sociais, políticos,
prestigiado naquela comunidade (ou núcleo familiar)
individuais e coletivos que interferem na adesão
e sua palavra é vista como uma verdade17.
à vacinação e em como cada pessoa recebe as
Assim, “o discurso não é simplesmente aquilo que informações; reconhecer os fatores de influência
traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mais deve ser um pilar no combate à desinformação19.
aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual
Separar a informação verídica da desinformação
podemos nos apoderar, permitir a transubstanciação
é um grande desafio contemporâneo, em que a
e fazer do pão um corpo17. Este fenômeno está
construção de redes de confiança para a verificação
relacionado à legitimidade da pessoa que profere o
de fatos é um caminho oportuno; reconhecer as
discurso, ou seja, uma barreira imposta em relação a
especializações de cada sujeito e questionar os fatos
quem teria o poder de falar sobre determinado tema,
antes de compartilhá-los, são boas alternativas. Além
na posição de autoridade e propriedade enquanto
disso, compete a nós o reconhecimento de temas
sujeito de fala. Isto é, apenas pessoas qualificadas e
que dominamos e aqueles que podemos opinar com
selecionadas poderiam falar sobre alguns assuntos,
o devido embasamento, tendo ainda a capacidade
sendo legítimo o seu discurso e, assim, apenas
de compreender as próprias limitações sobre o seu
as palavras desses indivíduos seriam levadas em
conhecimento.
consideração17.
A preocupação sobre a adesão à vacinação refuta a
Outro fator discutido pelo autor é o poder e os seus
publicação de notícias como essa: “Desinformação
mecanismos na sociedade. O discurso, por exemplo,
preocupa mais do que grupos 'antivacina', diz
é um deles, ao influenciar e moldar a coletividade a
epidemiologista 20
”; o impacto da desinformação é
um bem ou ideia comuns, sendo recorrente associá-
de difícil mensuração, pois não há métricas precisas a sua posição no grupo, para auxiliar na contenção
referentes a sua interferência na tomada de decisão das fake news.
de quem a acessa, mas é possível ver os reflexos na
Se conscientize dos locais que você atua como
sociedade, como a baixa adesão à imunização, a
“dominador do discurso”, seja como professor,
constante circulação e reforço de informações sem
cientista, estudante ou indivíduo que tem acesso a
base científica acerca de dados inverídicos e que se
fontes confiáveis de informação científica e utilize de
contrapõem à vacinação20.
múltiplos recursos a sua disposição para o combate
Nesse contexto, o professor tem papel fundamental, às Fake News.
pois sua posição corrobora a ideia de “dominador
do discurso” e, frente a esses acontecimentos, como
a publicação de notícias falsas, cabe a nós, nos
posicionarmos para contradizer e desacreditar as fake REFERÊNCIAS
news. Nesse contexto é possível desfazer equívocos
e ainda mais, permitir que a ciência se torne mais 1. ANVISA/OPAS/OMS. Informações Básicas Covid-19.
[acesso em 15 jan 2022]. Disponível em: https://bvsms.saude.
acessível àqueles sem acesso à universidade e
gov.br/ultimas-noticias/3135-novo-coronavirus-covid-19-
pesquisas, na luta por políticas públicas de acesso informacoes-basicas.
ao nível superior, bem como o investimento na
educação básica. 2. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância à
Saúde (SVS): Guia de vigilância Epidemiológica. [acesso em
Cabe aos cidadãos a responsabilidade de checar as 15 jan 2022]. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/
informações recebidas. Já à ciência, cabe averiguar
as consequências desses compartilhamentos e o seu 3. Meneses J. Sobre a necessidade de conceptualizar o
impacto sobre a coletividade. fenómeno das fake news. Observatório. [Publicação online].
2018 [acesso em 24 de março de 2021]; (1): 37-53. Disponível
em: http://obs.obercom.pt/index.php/obs/article/view/1376
2020. [acesso em 24 de março de 2022]; 1(1):1-5. Disponível 15. Extra Globo. Enfermeira-chefe desmaia 'ao vivo' após
em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52054/ tomar vacina contra Covid-19. 18 de dezembro de 2020 [10
FactsheetInfodemic_por.pdf?sequence=14. ago 2021]. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/
page-not-found/enfermeira-chefe-desmaia-ao-vivo-apos-
8. Genesini S. A pós-verdade é uma notícia falsa. Revista tomar-vacina-contra-covid-19-24803342.html
USP, São Paulo: [Publicação online]. 2018. [acesso em 24 de
março de 2022] 116(1): 45-58.Disponível em: http://www. 16. Isto é dinheiro. Enfermeira desmaia após tomar vacina
revistas.usp.br/revusp/article/view/146577. contra a covid-19 da Pfizer-BioNTech. 18 de dezembro
de 2020 [05 mar 2021]. Disponível em: https://www.
9. BBC News. Sarampo, pólio, difteria e rubéola voltam a istoedinheiro.com.br/enfermeira-desmaia-apos-tomar-
ameaçar após erradicação no Brasil. 09 de julho de 2018 vacina-contra-a-covid-19-da-pfizer-biontech/
[acesso em 2021 mar.25]. Disponível em: https://g1.globo.
com/bemestar/noticia/sarampo-polio-difteria-e-rubeola- 17. Foucault M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições
voltam-a-ameacar-apos-erradicacao-no-brasil.ghtml Loyola, 1996.
10. Sanches SHDFN, Cavalcanti AELW. Direito à saúde 18. Foucault M. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. 20ª
na sociedade da informação: a questão das fake news e ed. São Paulo: Vozes, 1999, p.117.
seus impactos na vacinação. Revista Jurídica, Curitiba:
[Publicação online]. 2018. [acesso em 24 de março de 2022] 19. Sacramento I, Paiva R. Fake news, WhatsApp e a
53(4): 448-466. Disponível em: http://revista.unicuritiba. vacinação contra febre amarela no Brasil. Matrizes.
edu.br/index.php/RevJur/article/view/3227/371371743 [Publicação online]. 2020. [acesso em 24 de março de 2022]
14(1):79–106.
11. Vasconcellos-Silva PR, Castiel LD. COVID-19, as fake
20. G1. Desinformação preocupa mais do que grupos
news e o sono da razão comunicativa gerando monstros: a
'antivacina', diz epidemiologista. 17 de março de 2020 [25
narrativa dos riscos e os riscos das narrativas. Cadernos de
mar de 2021]. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/
Saúde Pública. [Publicação online]. 2020. [acesso em 24 de noticia/2019/04/17/desinformacao-preocupa-mais-do-que-
março de 2022] 36 (1): e00101920. grupos-antivacina-diz-epidemiologista.ghtml