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Vol.30 n.

1
2024

e-ISSN: 2594-8296
Programa de Pós- graduação em História
Universidade Federal de Juiz de Fora

Capa e concepção gráfica:


Jessica Marques Toledo e-ISSN: 2594-8296
Equipe Editorial

Editora Editor Assistente


Profa. Dra. Hebe Mattos Prof. Dr. Odilon Caldeira Neto
Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

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Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
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Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil

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Departmento de Estudos Luso-Brasileiros Universidade Federal da Paraíba, Brasil
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Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Federal do Rio de Janeiro, Brasil

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Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Universidade Livre de Berlim, Alemanha

Prof. Dr. Ismael Saz Prof. Dr. Xosé Manoel Núñez Seixas
Universidade de Valência, Espanha Universidade de Santiago de Compostela, Espanha
Índice
01
Editorial: Locus e a excelência do PPGH-UFJF
Hebe Mattos

Dossiê

03
Apresentação: História Digital: tecnologia e
fazer historiográfico entre teoria e prática
Anita Lucchesi e Mônica Ribeiro de Oliveira

12
Modulações da História na Cultura Digital :
Considerações sobre uma história da História
Digital
Luiz Filipe Correia

36
A lepra e a tarkat: uma representação da
doença e do doente nos jogos eletrônicos
Leonardo Dallacqua de Carvalho

63
O diálogo com a Comunicação na construção
de narrativas históricas digitais em jogos: a
cultura do povo indígena Huni Kuin
Camila Escudero e Helena Schiavoni Sylvestre

Estratégias e Desafios na Divulgação


Científica em História: a problemática
indígena no estudo de caso entre métricas e
79
linguagens
Maria de Fátima Barbosa Pires
03
94
Poésie Grande Guerre: como a história digital
desafiou cânones no centenário da Primeira
Guerra mundial
Julia Ribeiro S. C. Thomaz

“Anos Tenebrosos”: a luta armada na obra


da Brasil Paralelo
114
Murilo Prado Cleto

Entrevistas
“CTRL+F História”. Entrevista com
Tiago Gil
138
Anita Lucchesi e Mônica Ribeiro de Oliveira

159
Sobre uma história que não poderia ser feita à
mão. Entrevista com Keila Grinberg

Anita Lucchesi e Mônica Ribeiro de Oliveira

Seção Livre
Infância, Raça e Classe Social: As Políticas de
Assistência a Menores no Brasil (1920-1960) 175
Fabíola Amaral Tomé de Souza

201
Cirurgiões militares e seus requerimentos à
esfera régia: o uso dos regimentos militares
como espaço de mobilidade social na
capitania de Minas Gerais (1771/1807)
Ana Paula Pereira Costa e Pâmela Campos
Ferreira

03
Resenhas

221
Os ecos dos movimentos estudantis latino-
americanos
Danielle Barreto Lima

03
Editorial
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.45715

Locus e a excelência do PPGH-UFJF

Locus and excellence of PPGH-UFJF

Locus y la excelencia de PPGH-UFJF

Hebe Mattos
https://orcid.org/0000-0001-2345-6789

A presente edição da Locus: Revista de História comemora a reparação do equívoco


cometido na última avaliação da revista, com a correção do conceito da mesma para A 2. É o
reconhecimento de um trabalho de excelência que completa três décadas, juntamente com o
Programa de Pós-Graduação em História da UFJF.
É uma alegria e uma responsabilidade assumir a edição da revista neste momento de
celebração. Neste trigésimo volume, Mônica Ribeiro (Universidade Federal de Juiz de Fora) e Anita
Luchesi (Universidade de Luxemburgo/Fundação Getúlio Vargas) organizam o dossiê intitulado
História Digital: tecnologia e fazer historiográfico entre teoria e prática, que certamente irá marcar
época. A apresentação das organizadoras discute a consolidação da história digital como campo
historiográfico, com problemas, fontes e metodologias específicas. Esta consolidação se reflete em
seis instigantes artigos inéditos, comentados pelas organizadoras, que nos brindam também com
duas excelentes entrevistas com pioneiros da história pública digital no Brasil, Tiago Gil e Keila
Grinberg.
O volume traz ainda dois artigos avulsos. Fabíola Amaral Tomé de Souza analisa a
construção da categoria “menor” no Brasil da primeira metade do século XX, em Infância, Raça e
Classe Social: As Políticas de Assistência a Menores no Brasil (1920-1960). Ana Paula Pereira Cruz
e Pâmela Campos Ferreira abordam os cruzamentos entre carreira militar e práticas médicas como
estratégia de ascensão social no império colonial português no texto Cirurgiões militares e seus
requerimentos à esfera régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na
capitania de Minas Gerais (1771/1807). Resenha do livro de Nicolás Dip, Movimientos

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Hebe Mattos | Locus e a excelência do PPGH-UFJF

estudiantiles en América Latina: Interrogantes para su história, presente y futuro, escrita por
Danielle Barreto Lima fecha o volume.
Está aberta a chamada de artigos para o próximo dossiê (volume 30:2), Patrimônios
imateriais afro-indígenas na América Latina: invisibilidades, história, lutas por direitos e novas
epistemologias. Da concepção do dossiê aos artigos avulsos e resenhas aceitos para a publicação, a
revista passa a dialogar a partir deste número com as novas linhas de pesquisa do PPGH/UFJF:
— história da arte, patrimônio, cultura e sociabilidade; — história global, micro história e diálogos
epistêmicos; — política, cultura e usos do passado. As três linhas de pesquisa do PPGH têm
aspectos de suas preocupações abordados no dossiê com a chamada em aberto, com destaque para
as noções transversais de patrimônio, diálogos epistêmicos e usos do passado.
Organizado por Jeremias Brasileiro (Universidade Federal de Uberlândia, GTEP-
MG/UFJF) e Christine Douxami (Université de Franche-Comté, IMAF/IRD-BRÉSIL), a
proposta dialoga diretamente com os seminários mensais da rede Patrimônio Imaterial Afro-
indígena e Políticas Públicas na América Latina, coordenada por Christine Douxami na IRD –
INSTITUT DE RECHERCHE POUR LE DEVELOPMENT (www.ird.fr/bresil), desde maio
de 2022 e com o Projeto Patrimônios e Memórias negras e afro-indígenas em Minas Gerais, da
rede de pesquisa Passados Presentes - LABHOI/UFF/UFJF e do Grupo de Pesquisa
Emancipações e Pós-abolição em Minas Gerais, com sede no PPGH/UFJF, do qual Jeremias
Brasileiro é pesquisador destacado. Em breve divulgaremos a chamada para os dossiês de 2025.
Esta edição não seria possível sem o apoio do antigo editor, neste número editor assistente,
Odilon Caldeira Neto. A manutenção da qualidade da revista durante o período difícil do recurso
à CAPES foi, sobretudo, mérito pessoal dele. Como se isso fosse pouco, Odilon me ensinou todos
os segredos da plataforma da revista em tutoriais que estou arquivando para os editores que me
sucederão. A excelência do trabalho por ele realizado só aumenta minha responsabilidade em
sucedê-lo.
Faço aqui, também, um agradecimento especial à equipe de pós-graduandos que carrega a
revista nos ombros. Agradeço a todos, em nome dos gerentes editoriais Alina Nunes, Ana Amélia
Gimenez Dias, Chrigor Liberio, Gabriel Machado e Joyce Mirella.
Por fim, ressalto mais uma vez minha alegria em assumir a editoria da revista na celebração
dos seus 30 anos e faço um pequeno comentário onomástico. Tenho muitos nomes na minha
carteira de identidade e os formulários oficiais da UFJF gostam muito de reproduzi-los todos, mas
profissionalmente prefiro assinar como nos livros.
A todos, desejo boa leitura.
Hebe Mattos, editora.

2
Apresentação
https://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.45716

História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre teoria e prática

Digital History: technology and historiography between theory and practice

Historia Digital: tecnología e historiografía entre la teoría y la práctica

Anita Lucchesi*
https://orcid.org/0000-0002-8523-111X

Mônica Ribeiro de Oliveira**


https://orcid.org/0000-0001-7168-7653

A oportunidade e espaço aberto pela LOCUS – Revista de História da Universidade Federal


de Juiz de Fora para abrir uma chamada e compor um dossiê com o tema que intitula este artigo –
“História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre teoria e prática” – não é fruto de uma
escolha casual. Ora, é bem verdade que em uma atividade editorial poucas escolhas serão casuais,
mas o que pretendemos chamar atenção aqui é que esta publicação se tornou possível pela
compreensão de que existia (e persiste para além do presente número) uma demanda gigantesca
para realizarmos uma reflexão mais detida sobre as tensões metodológicas e epistemológicas das
práticas de pesquisas atuais, atravessadas pelas interferências e condicionamentos do componente
digital. O desejo manifesto de organizar um número da revista dedicado à História Digital,
buscando ativamente contribuições que conjugassem teoria e método, aponta também para um olhar
peculiar do corpo editorial que, ao fazê-lo, distinguiu-se da maior parte das coletâneas dedicadas às
Humanidades Digitais de forma geral, que acabam por privilegiar as questões métodos, as
ferramentas e o como fazer.

*
Pesquisadora na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde coordena um projeto de divulgação científica com
podcasts. É também co-investigadora do software de gestão de fontes primárias digitalizadas, Tropy. Área de atuação:
Teoria da História, História da Historiografia e Ensino de História, com ênfase em História Pública Digital.
**
Professora titular de História do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. É docente do
PPGHistoria/UFJF e pesquisadora da Fapemig. Área de atuação: história de família, sociedades agrárias nos séculos
XVIII e XIX e micro-história.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

Esta longa ênfase nos modos de fazer métodos digitais em constante atualização é uma
tendência compreensível, dada a novidade e necessidade de descrever, documentar e explicar tais
métodos aos seus pares. Algo também sintomático de um momento de afirmação e interrogação
do que viriam a ser as tais humanidades digitais, um esforço coletivo de definição e
compartilhamento de novos repertórios de práticas. Entre leituras mais favoráveis e abertas às
experimentações com as novas tecnologias e posturas mais resistentes, notou-se, porém, que para
abandonar o que Franco Moretti criticou como a “longa infância” das humanidades digitais, era
preciso deixar de lado algumas perspectivas dicotômicas (Moretti apud Dinsman 2016). Ao invés
de seccionar, buscar conciliar tradição e novidade, teoria e método, reflexões sobre riscos e
possibilidades, poderia se mostrar – e este dossiê se entende como um exercício nesta direção –
um caminho para, como sugeriu Dilton Cândido Maynard, deixar de ser simplesmente contra ou a
favor do digital (ou da Internet, como escrevera originalmente), para buscar analisar
qualitativamente as mudanças que ele produz no nosso ofício (Mayard 2011, 42). Trata-se, como
Melvin Kranzberg já enunciara há quase quatro décadas, de reconhecer e ativamente lembrar, de
tanto em tanto, que “a tecnologia não é boa, nem má e também não é neutra” (Kranzberg 1986,
545-46, tradução nossa)1.
Entre teoria e prática, neste dossiê buscamos dar a ler uma diversidade de abordagens
mediadas pelo digital, trazendo contribuições que em conjunto refletem um movimento na direção
de abrir espaço para que reflexões sobre o hack and yack da pesquisa na Era Digital possam ocupar
o mesmo lugar no seio de uma publicação para toda a comunidade historiadora 2. Embora cada
texto favoreça um pouco mais um aspecto que outro, como veremos, nossa editoria se animou
com a expressão de teorias e práticas aplicadas em trabalhos que avançam a discussão
historiográfica e deslocam os marcadores da reflexão acerca do digital daquele discurso outrora
tautológico sobre o que são ou deixam de ser a história digital ou as humanidades digitais, para
trazer argumentos originais. Complementam esta perspectiva cruzada as entrevistas com
especialistas que com seu trabalho contribuíram justamente para o aprofundamento e avanço das
discussões sobre o tema no Brasil, ampliando um pouco mais a camada meta-reflexiva do conjunto
de trabalhos aqui reunidos.

1
Citação originalmente publicada em língua inglesa: “Technology is neither good nor bad; nor is it neutral.”
2
O início dos anos 2000 foi marcado por uma certa querela “prática vs. teoria” nas Humanidades Digitais referindo-
se à aparente dualidade, ou prerrogativa da aplicação prática de ferramentas digitais e o debate teórico sobre suas
implicações. Bethany Nowviskie argumenta que ambas são essenciais, destacando a importância de equilibrar o
desenvolvimento técnico (“hack”) com a reflexão crítica (“yack”) para o avanço da área (Nowviskie 2014).

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

Tendo contemplado brevemente os bastidores desta edição, podemos dizer que este dossiê
é sobretudo sobre as pesquisas que hoje fazemos. Quem consegue mais conduzir uma investigação
sem o auxílio de um banco de dados por menor que seja e leitura de fontes digitalizadas por horas
intermináveis e solitárias frente a um computador? Mas será disso que estamos tratando? Se no
passado, a microfilmagem se justificava pela certeza da conservação dos documentos a longo prazo
e a crença de que os microfilmes sobreviveriam a uma guerra nuclear e se tornariam o testemunho
da humanidade, hoje, por diferentes motivos, a digitalização tornou-se o caminho. Um caminho
que dialoga com a atual rapidez, fluidez e dimensão que as informações podem alcançar. Inovações
se sobrepõem gerando incertezas quanto ao futuro. Será suficiente e seguro? Ou é um poderoso
recurso para recuperação, preservação e acesso às informações, mantendo sua autenticidade e
confiabilidade? Estas questões emergem na ciência da informação e arquivologia, por seus
objetivos e processos comuns e convoca a todos a uma revisão em todos os procedimentos de
conservação e disponibilização de fontes. O suporte de qualquer pesquisa realizada pelo historiador
se assenta sobre esse trabalho anterior, realizado por novos profissionais, novos gestores e
curadores de dados e informações. Então, voltando à pergunta inicial – se é disso que estamos
tratando – respondemos que não. O historiador ao se beneficiar das fontes digitalizadas não está
fazendo História Digital.
Refazendo novamente a questão, questionamos se é possível produzir novos argumentos
em pesquisa e, concomitantemente, realizar a transferência de conhecimentos sobre esse passado
que não poderiam ser acessados sem a dimensão de uma história digital? (Lucchesi e Burge 2024).
A discussão proposta centra-se na produção do conhecimento histórico condicionada pelo
componente digital, com perguntas, problemas e preocupações metodológicas, com o
enfrentamento da incerteza e imprecisão dos dados, que precisam ser validados e checados,
reconhecendo que a incerteza histórica permanece uma constante dos tempos pré-digitais ao agora.
Mas como lidar criticamente com o incerto diante dos constrangimentos do determinismo
tecnológico? A tecnologia pode, pelo seu potencial, oferecer técnicas, ampliar recursos, minerar
dados e fontes e, de fato, descortinar novas formas de leitura, novas variáveis, novas escalas e novas
questões. Vamos entender então como os autores desse dossiê se beneficiaram dessa virada
tecnológica, contribuíram com novas perspectivas e oferecem as melhores práticas de produção do
conhecimento.
O artigo Modulações da História na Cultura Digital- Considerações sobre uma história da História
Digital de Luiz Filipe Correia, nos apresenta uma valiosa análise de como as transformações técnicas
resultantes do desenvolvimento da cibernética e da informática no contexto do neoliberalismo,

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

geraram a cultura digital dos dias de hoje. Com essa motivação, na primeira parte do artigo, Correia
realiza um levantamento historiográfico, analisando repetições e a persistência de temas, além das
implicações teórico-metodológicas e desafios impostos à prática historiográfica pela popularização
das tecnologias digitais. Para ele, as repercussões na disciplina História induzem a descoberta de
novas fontes, objetos, métodos, ferramentas, mas também novas epistemologias. Por outros
caminhos, o autor colabora com a questão formulada por nós, quando evidencia que a escolha que
os historiadores realizam em sua investigação, tanto de suas fontes, como de seus métodos, vão
influir diretamente em seus resultados. Portanto, a incorporação de procedimentos da história
digital possibilita produzir um conhecimento antes não possível pelas formas analógicas, o que se
alinha com a proposição inicial desse dossiê. Na segunda parte de seu texto, Correia faz outras
escolhas de obras e respectivos conceitos como o de modulação e alternância de Deleuze, o
presentismo nas Ciências Humanas e História de Hartog e conclui com uma proposição otimista
de um futuro público do passado e o papel das universidades nesse compromisso ético. De fato,
uma excelente contribuição ao debate aqui proposto.
Em A lepra e a tarkat: uma representação da doença e do doente no jogo eletrônico Mortal Kombat 1
(2023), Leonardo Dallacqua de Carvalho, propõe uma análise inovadora e interdisciplinar ao
investigar a representação da doença no contexto dos jogos eletrônicos, especificamente no reboot
mais recente da franquia Mortal Kombat. Este estudo se insere no campo da história digital ao
tratar os jogos eletrônicos como fontes históricas relevantes, explorando como a doença fictícia
tarkat é utilizada para construir narrativas que ressoam com a história e as representações sociais
de doenças reais, como a lepra. O trabalho destaca a importância das mídias digitais na formação
da memória coletiva e na sensibilização do público em relação a temas complexos como a doença
e o estigma social. Ao integrar conceitos de História Pública e retórica processual, o artigo contribui
significativamente para o dossiê ao ilustrar como o componente digital pode ser instrumental na
reinterpretação de fenômenos históricos e sociais, trazendo uma contribuição original e relevante
para o avanço das pesquisas no campo da História da Saúde e das Doenças, ao mesmo tempo que,
enriquece as discussões sobre as novas possibilidades metodológicas e teóricas na era digital.
Os dois próximos artigos, por meio de diferentes formas, versam sobre a relação entre
tecnologias e comunicação e perpassam sobre a questão indígena. O primeiro artigo discute a
história da cultura e identidades do povo indígena Kaxinawá – ou Huni Kuin, uma etnia da fronteira
brasileira-peruana da Amazônia, partindo da relação entre tecnologias, comunicação e fazer
historiográfico. Já o segundo busca conectar práticas digitais com teorias de comunicação científica
em História pelo Youtube em cima da questão Yanomâmi.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

No artigo de Camila Escudero e Helena Schiavoni Sylvestre, O diálogo com a Comunicação na


construção de narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin, vemos um diálogo
entre os campos da História digital e da Comunicação para a Transformação Social por meio da
análise de um jogo eletrônico e construção de uma narrativa audiovisual ambientada em espaços
virtuais e estruturada em diversas regras.
As autoras destacam que o jogo eletrônico “Huni Kuin: Yube Baitana” foi desenvolvido
com o intuito de preservar a memória do povo indígena Kaxinawá, resgatando elementos de suas
identidades culturais, ao mesmo tempo em que tenta promover o intercâmbio desses
conhecimentos por meio da linguagem dos videogames. São representados cantos, grafismos,
mitos e rituais desse povo, possibilitando uma circulação desse conhecimento por uma rede mais
ampla. Não só os elementos identitários desse grupo indígena ganham visibilidade, mas a própria
investigação histórica ganha outra dimensão por meio da intersecção entre comunicação,
tecnologias e práticas socioculturais. A construção do game acaba por desafiar conceitos
tradicionais de narrativa histórica e abre novas possibilidades de representação e disseminação do
conhecimento histórico em ambientes digitais comunicacionais. O debate torna-se ainda mais
profícuo quando consideramos o campo da educação e seu diálogo com outras áreas, além da
disseminação de conhecimentos sobre temas da cultura brasileira.
Já em Estratégias e Desafios na Divulgação Científica em História no Youtube: A problemática indígena
no estudo de caso entre métricas e linguagens de Maria de Fátima Barbosa Pires introduz ao debate a
relação entre as novas mídias e o Ensino de História, um campo altamente relevante e repleto de
desafios. Especificamente, a autora explora a divulgação científica em História como uma
importante ferramenta de ensino, concentrando-se na problemática indígena, com ênfase nos
Yanomamis e a lógica de recomendação no YouTube.
A questão respondida pela autora objetiva compreender como tais plataformas podem
contribuir para a ressonância de narrativas historicamente “invisibilizadas”; quais as estratégias
promissoras para ampliar o debate a partir dessa plataforma, e como utilizar o algoritmo a serviço
dessas reparações históricas. Sua investigação destaca a necessidade de adaptação constante às
demandas do público e à lógica algorítmica e a importância da didatização, engajamento e respeito
à diversidade de perspectivas na comunicação histórica, bem como estratégias de promoção de
conteúdos mais aprofundados no YouTube. Revelou também que os vídeos curtos e bem
ranqueados podem atrair um público não só extenso, como também diverso.
O artigo nos oferece uma outra dimensão da questão formulada para esse dossiê: ele já
parte do pressuposto que, não obstante a lógica de mercadológica das novas mídias, por meio de

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

diferentes estratégias é possível produzir conteúdo relevante e de qualidade para a sociedade, bem
como dar visibilidade a grupos socialmente marginalizados e sub representados. Nessa perspectiva,
é possível pensar em novos cenários de pesquisa e produção da cultura digital para a história
pública.
Os artigos de Escudero e Sylvestre, bem como o de Pires, apresentam duas boas práticas
da era digital e atestam a interconexão entre a historiografia acadêmica e a história pública facilitada
pelos meios digitais e constituem exemplos instigantes do potencial que a cultura digital pode
ofertar.
O próximo artigo, Poésie Grande Guerre: como a história digital desafiou cânones no centenário da
Primeira Guerra Mundial, é de autoria de Julia Ribeiro S. C. Thomaz e examina como as ferramentas
e práticas das humanidades digitais permitiram a construção de uma nova compreensão sobre a
poesia da Primeira Guerra Mundial, desafiando cânones literários estabelecidos e promovendo uma
abordagem interdisciplinar que questionou a suposição de que “não existe poesia da Primeira
Guerra mundial na França”, como destaca na introdução do texto. Através da análise do projeto
Poésie Grande Guerre3, que criou e disponibilizou online uma base de dados abrangente sobre poetas
e suas experiências durante a guerra, Thomaz revela como o componente digital foi crucial para
tirar do esquecimento um corpus significativo de obras poéticas, permitindo uma visão mais
inclusiva e diversificada da produção literária do período. O artigo se encaixa perfeitamente no
dossiê ao demonstrar como a história digital pode reconfigurar nossa compreensão de fenômenos
históricos e culturais, contribuindo para a dissolução de hierarquias tradicionais e promovendo uma
poética histórica pública e acessível.
Ao enfatizar como o uso de ferramentas digitais não apenas permite a preservação, mas
também pavimenta o caminho para novos achados e perspectivas de análise, como a abordagem
prosopográfica da base de dados, o trabalho de Thomaz aponta como o digital pode viabilizar
novas interpretação para velhos problemas, através de serendipidades outras, capazes de engendrar
novos argumentos para a historiografia. Pode-se considerar um trabalho dedicado faire taire les canons
(Thomaz 2024, 7) dos céticos da técnica e lançar luz à validade dos métodos digitais.
Fechando a seção de artigos do dossiê, Murilo Prado Cleto Anos Tenebrosos: a luta armada na
obra da Brasil Paralelo explora a complexa relação entre História Pública Digital e a construção de
narrativas revisionistas no contexto contemporâneo brasileiro. Através da análise do documentário
“1964 - O Brasil entre armas e livros”, produzido pela Brasil Paralelo, o texto examina como essa

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Disponível em: https://pgg.parisnanterre.fr

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

produção audiovisual, alinhada a um revisionismo ideológico, busca reinterpretar o papel da luta


armada durante a ditadura militar. O estudo oferece uma reflexão crítica sobre os desafios éticos e
metodológicos enfrentados pela historiografia digital, particularmente em um cenário onde a
produção de conhecimento histórico está cada vez mais sujeita a manipulações por atores políticos
e midiáticos.
Em diálogo com Letícia Cesarino e sua noção de “crise do sistema de peritos”, Cleto
contextualiza a produção da Brasil Paralelo e analisa suas consequências no processo de
reorganização epistêmica impulsionado pelas novas estruturas técnicas, que desestabilizou
profundamente os sistemas tradicionais de produção da verdade. Dessa forma, a contribuição
corresponde à demanda do dossiê, e deixa um convite para discussões que aprofundem as
implicações da história digital no campo da memória coletiva e da disputa por narrativas históricas,
um fecho-abertura para um debate continuado e fundamental sobre as fronteiras entre história,
política educação e tecnologia na era digital.
A próxima seção deste número – Entrevistas – consiste em duas entrevistas realizadas de
forma remota, gravadas e transcritas pelas organizadoras do dossiê com os historiadores Keila
Grinberg e Tiago Gil para a finalidade de publicação impressa, ambos selecionados pela editoria
pela relevância de suas contribuições na historiografia da história digital no Brasil.
Keila Grinberg é historiadora e professora titular da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro (UNIRIO) e da Universidade de Pittsburgh, onde também é Diretora do Center for
Latin American Studies. Em sua entrevista, ela explora sua vasta experiência, abordando desde suas
primeiras inspirações no uso de tecnologias digitais até os desafios contemporâneos de integração
dessas ferramentas no ensino e na pesquisa histórica. Grinberg destaca o impacto transformador
dos bancos de dados na pesquisa histórica, permitindo análises que seriam impossíveis sem o uso
da tecnologia. Ela também discute a importância da colaboração interdisciplinar, especialmente na
criação de projetos como o “Atlas das Injustiças Históricas”, ideia ainda embrionária que tem
inspiração no conhecido Passados Presentes4, e buscará mapear memórias associadas a injustiças
históricas, conectando dados de memória a locais específicos tirando partido de técnicas de
georreferenciamento.

4
O projeto Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil é uma iniciativa da Rede de Pesquisa Passados Presentes
(LABHOI/UFF – Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense e NUMEM/UNIRIO
– Núcleo de Memória e Documentação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Disponível em:
http://www.passadospresentes.com.br

9
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

A entrevista evidencia a preocupação de Grinberg com os desafios técnicos e institucionais


que dificultam a implementação de projetos digitais no Brasil e nos Estados Unidos, mostrando
que, apesar das diferenças de infraestrutura, os desafios de armazenamento e gestão de dados
persistem em ambos os contextos. Além disso, ela reforça a necessidade de um letramento digital
mais abrangente tanto para historiadores quanto para estudantes, ressaltando a importância de
explicitar o método histórico e de engajar o público de forma ética e acessível. A contribuição da
entrevista com Grinberg para o dossiê é de grande relevância, pois oferece uma visão crítica e
experiente sobre o uso das tecnologias digitais na pesquisa e no ensino de história, promovendo a
reflexão sobre os limites e possibilidades da história digital e pública em um contexto global e
interconectado.
Tiago Gil, pesquisador e professor da Universidade de Brasília (UNB), junto a um seleto
grupo, pode ser considerado um dos precursores da História Digital no Brasil. A partir de suas
experiências no Brasil e no exterior, ele sugere ferramentas, plataformas, softwares, trata da
importância da interdisciplinaridade, dos desafios e das alternativas hoje disponíveis dentro das
universidades.
Pode ser considerado pioneiro por integrar a tecnologia dos sistemas de informação
geográfica no campo da pesquisa histórica, além de vários outros trabalhos usando ferramentas e
produzindo dados hipotéticos e experimentais. Demonstra uma visão vanguardista ao defender
que os historiadores necessitam de um maior letramento para o uso da tecnologia como técnica,
mas também como uma infraestrutura controlada por algoritmos e relações de poder, em que os
todos os cidadãos precisam saber reconhecer, lidar, adotar posturas e, especialmente, entender a
lógica que a máquina opera.
Ao discorrer sobre o impacto do componente digital na compreensão histórica e aparentar
uma certa desconfiança quanto ao atual uso nas pesquisas, Tiago Gil conclui suas reflexões
defendendo a clássica metodologia em pesquisa histórica, ou seja, devemos nos guiar pelas
perguntas para definir depois as técnicas mais apropriadas. Para ele, esse procedimento não
representa prescindir da técnica, mas utilizá-la de forma apropriada a cada objeto.
No contexto dos estudos de Max Kemman sobre as ditas trading zones (zonas de troca ou
de contato) da história digital, o conceito de “digital history brokers” pode ser entendido como
figuras fundamentais na interface entre a história e as tecnologias digitais (Kemman 2021, 189).
Esses “brokers” desempenham um papel crucial na gestão de projetos, coordenando práticas de
coleta, transformação e descrição de dados, e traduzindo as questões históricas em problemas
infraestruturais. Eles atuam, por assim dizer, como mediadores, capazes de transitar entre

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática

diferentes comunidades de prática, conectando especialistas em computação e historiadores, e


facilitando a colaboração e o alinhamento de perspectivas.
Consideramos Grinberg e Gil como exemplos eloquentes desses “mediadores da história
digital” no Brasil. Ambos têm desempenhado papéis essenciais na promoção e integração da
história digital no país. Grinberg, com sua vasta experiência em projetos que combinam história
pública e digital, e Gil, com sua abordagem interdisciplinar que incorpora tecnologias geográficas
e digitais na pesquisa histórica, exemplificam a capacidade de mediar entre as comunidades
acadêmicas e tecnológicas. Eles têm contribuído para transformar as práticas históricas no Brasil,
conectando diferentes domínios do saber e promovendo um diálogo entre historiadores e
especialistas em tecnologia.
Este dossiê reúne, portanto, uma diversidade de vozes e perspectivas que ilustram como a
história digital vem se consolidando de forma vibrante e em constante evolução, abrindo novas
possibilidades de análise e reflexão. Desejamos que esta leitura inspire novas pesquisas,
colaborações, diálogos, iniciativas voltadas para o ensino e que, enfim, possa suscitar debates mais
amplos sobre os cruzamentos da história e da tecnologia, que extravasam os muros das
universidades e das mais variadas salas de aula. Como se pode ver nas contribuições aqui reunidas,
discutir o componente digital na/para/a partir/através da História é de grande interesse para a nossa
sociedade como um todo. Boa leitura!

Referências:

Dinsman, Melissa. The Digital in the Humanities: An Interview with Franco Moretti. Los Angeles Review
of Books, Março, 2016. https://lareviewofbof’/s.org/article/the-digital-in-the-humanities-an-
interviewwith-franco-moretti.
Kemman, Max. Trading Zones of Digital History. Berlin: De Gruyter, 2021.
Kranzberg, Melvin. Technology and History: “Kranzberg’s Laws”. Technology and Culture, vol. 27,
n. 3, 1986.
Lucchesi, Anita. BURGE, Caitilin. Historical Arguments and the Digital – A White Paper.
Acesso em 14/08/24 https://zenodo.org/records/11526834
Mayard, Dilton Cândido Santos. Escritos sobre história e internet. Rio de Janeiro: Luminária
academia, 2011.
Nowviskie, Bethany. On the Origin of ‘Hack’ and ‘Yack.’ Bethany Nowviskie (blog). 08 de
janeiro de 2014. http://nowviskie.org/2014/on-the-origin-of-hack-and-yack/.

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Dossiê: História Digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática
http:/ doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.43219

Modulações da História na Cultura Digital


Considerações sobre uma história da História Digital.

Modulations of History in Digital Culture


Considerations about a history of Digital History.

Modulaciones de la Historia en la Cultura Digital


Consideraciones sobre una historia de la Historia Digital.

Luiz Filipe Correia*


https://orcid.org/0000-0001-9039-0898

RESUMO: O conceito de modulação, desenvolvido pelo filósofo francês Gilles Deleuze, é usado
neste artigo como ferramenta analítica para compreender as transformações nas práticas
historiográficas com a popularização das tecnologias digitais e, por extensão, da cultura digital.
Desde a segunda metade do século XX, as tecnologias digitais provocaram uma série de
modulações na prática histórica e este artigo examina como estas modulações podem ser percebidas
no trabalho de historiadores e historiadoras que discutem relações entre a disciplina de História, a
tecnologia e a História Digital. Os textos discutidos são apresentados em ordem cronológica e
exemplificam as modulações conceituais, metodológicas, relacionadas aos usos que os historiadores
fazem das tecnologias digitais e, principalmente, nas práticas de pesquisa, escrita, divulgação e
ensino de história. Por fim, a noção de modulação também pode contribuir para as discussões
sobre a delimitação e a busca de uma identidade própria para a História Digital.
Palavras-chave: História Digital. Modulação. Cultura Digital. Historiografia. História da
Tecnologia.

ABSTRACT: This article employs the concept of modulation, developed by the French
philosopher Gilles Deleuze, as an analytical tool to understand the transformations in
historiographical practices brought about by the proliferation of digital technologies and the digital

*
Doutor em História Social pela Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São
Paulo (USP), estuda as relações entre cultura e tecnologia digital desde 2008. Atualmente, além de professor substituto
do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP)- campus Hortolândia, também estuda
temas relacionados com a História Digital e a História da Ciência e da Tecnologia. E-mail: [email protected].

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

culture. Since the mid-20th century, digital technologies have induced a series of modulations in
historical practice. This article examines how these modulations appear in works of historians who
explore the interplay between the discipline of History, technology, and Digital History. The
analyzed texts are presented chronologically and exemplify the conceptual and methodological
modulations associated with historians' use of digital technologies, particularly in historical research
practices such as writing, dissemination, and teaching. Lastly, modulation can also contribute to
discussions concerning the boundaries and the quest for an identity for Digital History.
Keywords: Digital History, Modulation, Digital Culture, Historiography, History of Technology

RESUMEN: Este artículo utiliza el concepto de modulación, desarrollado por el filósofo francés
Gilles Deleuze, como herramienta analítica para comprender las transformaciones en las prácticas
historiográficas producidas por la proliferación de las tecnologías digitales y, en consecuencia, de
la cultura digital. Desde mediados del siglo XX, las tecnologías digitales han inducido una serie de
modulaciones en la práctica histórica. Este artículo examina cómo se manifiestan estas
modulaciones en el trabajo de historiadores que exploran la interrelación entre la disciplina de la
Historia, la tecnología y la Historia Digital. Los textos analizados se presentan cronológicamente y
ejemplifican las modulaciones conceptuales y metodológicas asociadas al uso que los historiadores
hacen de las tecnologías digitales, particularmente en las prácticas de investigación histórica,
escritura, difusión y enseñanza. Por último, la noción de modulación también puede contribuir a
las discusiones sobre la delimitación y búsqueda de una identidad para la Historia Digital.
Palabras clave: Historia Digital, Modulación, Cultura Digital, Historiografía, Historia de la
Tecnología

Como citar este artigo:


Correia, Luiz Filipe. “Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história
da História Digital”. Locus: Revista de História, 30, n. 1 (2024): 12-35.
***

Apresentação1
O termo cultura digital começou a se popularizar já na década de 1990 em direta relação
com as transformações culturais, políticas e econômicas decorrentes da massificação dos
computadores pessoais e da Internet. Na atualidade, a cultura digital atravessa e constitui os mais
diversos níveis da sociedade e da experiência humana, fazendo-se presente tanto nos afetos, nas
sensibilidades, na linguagem e nas modas, quanto nas diversas esferas do conhecimento, na política,
nas relações internacionais e na economia. Desdobramento direto da chamada cibercultura, a

1
Todas as citações presentes neste ensaio e que foram extraídas de livros e artigos em inglês são traduções livres
realizadas pelo autor do texto.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

cultura digital pode ser entendida como o resultado do acúmulo de desenvolvimentos e


conhecimentos científicos e tecnológicos ocorridos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, entre
os quais a cibernética, a microeletrônica e a informática. A partir da segunda metade da década de
1990, com o barateamento dos computadores pessoais e a difusão da Internet em um contexto de
economia política marcada pelo neoliberalismo, essas transformações técnicas mudaram a forma
como as pessoas passaram a se comunicar e promoveram uma completa e acelerada reconfiguração
cultural, econômica e política2 que moldou, e molda até hoje, os espaços de experiência e os
horizontes de expectativa (Kosselleck 2006). Portanto, de maneira geral, a cultura digital deve ser
entendida como o conjunto de práticas, comportamentos, valores, e expressões que surgem em
torno do uso de tecnologias digitais e que vão desde os computadores pessoais, a multimídia, a
Internet, os smartphones, até as redes sociais, os algoritmos, o big data e as atuais IAs generativas.
Esse conjunto de práticas, comportamentos, valores e expressões também influenciam as
Ciências Humanas, como revela a chamada Virada Digital, termo que passou a fazer parte do
vocabulário das Humanidades e que é usado para descrever as inovações teóricas e metodológicas
decorrentes do uso das tecnologias digitais nas práticas acadêmicas. Essas inovações levaram ao
surgimento das Humanidades Digitais no início do século XXI, um campo interdisciplinar que
integra as Humanidades e a Ciência da Computação tanto na pesquisa quanto no ensino (Bresciano
2015, 7). No caso específico da História, que é o foco deste artigo, é possível notar mudanças nas
bases teóricas e metodológicas, que culminaram na formulação do campo de estudo e pesquisa
conhecido como História Digital. Neste breve ensaio, a partir de uma perspectiva histórica, será
discutido como a disciplina de História tem acompanhado, explorado e incorporado elementos das
tecnologias digitais nas suas práticas teóricas e metodológicas. Para isso será utilizado o conceito
de modulação discutido pelo filósofo francês Gilles Deleuze.
O artigo está dividido em duas seções principais. A primeira apresenta o conceito de
modulação desenvolvido pelo filósofo francês Gilles Deleuze a partir da obra de Gilbert Simondon,
que dizia que modular é moldar de maneira contínua e perpetuamente variável, em seguida será
discutida a utilidade desse conceito para a compreensão das transformações nas práticas
historiográfica no contexto da difusão das tecnologias digitais e do surgimento da História Digital.
Na seção seguinte são apresentados em ordem cronológica 15 textos de historiadores e
historiadoras que tem como temática as relações entre História, tecnologias digitais e História

2
A dificuldade em nomear o conjunto de transformações das últimas décadas do século XX fez surgir uma profusão
de metáforas e conceitos que foram utilizados para definir o período. Globalização foi aquela que se popularizou e
tomou conta dos corações e mentes na passagem do século XX para o século XXI. Sobre a globalização, ver Santos
2000; Sevcenko 2001.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

Digital3. Nesta segunda seção, o conceito de modulação é mobilizado como ferramenta analítica
para, por um lado, compreender como as práticas historiográficas tradicionais se transformaram
em resposta às mudanças tecnológicas e, por outro, contribuir para as discussões sobre a
delimitação e a busca de uma identidade própria para a História Digital. Além disso, a abordagem
cronológica possibilita situar as discussões historiográficas em relação aos contextos de
transformações técnicas e permite entender historicamente as modulações da História em suas
relações com a tecnologia.

Modulações da História e a História Digital


No começo da década de 1990, Gilles Deleuze afirmou que o computador era a máquina
símbolo da Sociedade de Controle (Deleuze 1992, 227). Neste famoso ensaio, o filósofo descreveu
a Sociedade de Controle como um regime de poder no qual as narrativas e técnicas de organização
e de produção de saber social não operam mais a partir de áreas de confinamento como foram a
fábrica, a escola e demais instituições de sequestro da sociedade disciplinar; mas sim ao ar livre, por
meio de discursos e processos técnicos. Esse novo estágio das sociedades seria caracterizado pelo
“rastreamento” contínuo do indivíduo, pelo endividamento e pelo controle nos espaços abertos.
Ele alertava que as Sociedades de Controle não deveriam ser entendidas simplesmente como fruto
de uma evolução tecnológica, mas, sim, como uma “mutação no capitalismo”, na qual gostos,
salários, hábitos e subjetividades podem ser modulados com o uso de computadores. A modulação
é, portanto, uma das características fundamentais da Sociedade de Controle, sendo definida por
Deleuze como “uma moldagem auto-deformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou
como uma peneira cujas malhas mudassem de um ponto ao outro” (Deleuze 1992, 225).
Atualmente, o conceito de modulação vem sendo utilizado de maneira bastante profícua
em trabalhos que buscam entender as novas formas de controle propiciadas pelas tecnologias
digitais, mais notadamente a “modulação algorítmica” nas redes sociais e seus vínculos com a
possível manipulação de subjetividades (Souza, Avelino e Silveira, 2018). Contudo, ao contrário do
que se poderia supor, para Deleuze, a modulação não é uma característica exclusiva do digital, de
fato, ela é intrínseca ao analógico. Segundo o filósofo, “a analogia no sentido mais estrito e também
no sentido estético, pode ser definida precisamente pela modulação” (Deleuze 2008, 167) e assim

3
A lista completa dos textos é a seguinte: The Historian and the computer (Shorter 1971); “Documento/Monumento” (Le
Goff, 1996); “História e Informática: o ponto da situação” (Morris, 1993); “História e Informática: O uso do
computador” (Figueiredo 1997); Writing, teaching, and researching history in the electronic age: historians and computers (Trinkle
1998); “Options and Gopherholes: Reconsidering Choice in the Technology-Rich History Classroom” (Sicilia, 1998);
“History in Hypertext” (Ayers 1999a); “The Pasts and Futures of Digital History” (Ayers 1999b); Clio wired: the future of
the past in the digital age (Rosenzweig 2011); Digital History: A Guide to Gathering, Preserving, and Presenting the Past on the Web
(Rosenzweig e Cohen 2006); “Defining Digital History”(Andersen 2002); “What Is Digital History?” (Seefeldt e
Thomas 2009); “História e Informática” (Tavares 2012); Digital History e Storiografia Digitale: Estudo Comparado sobre a
Escrita da História no Tempo Presente (2001-2011) (Lucchesi 2022); “Teoria da História em tempos digitais” (Saliba 2020).

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

é “a noção de modulação em geral (e não de similaridade) que é apta a nos fazer compreender a
natureza da linguagem analógica” (Deleuze 2007, 118). Além disso, ele não entende o analógico e
o digital como coisas distintas ou opostas, na verdade, Deleuze identifica que o digital “enxerta”
código no analógico, que tem suas potencialidades produtivas e criativas ampliadas por meio da
modulação, que pode ocorrer no tempo, no espaço e simultaneamente em diversos níveis,
frequências e amplitudes. Ao utilizar a pintura como exemplo, Deleuze explica que “pintar é
modular a luz e a cor” em “função de um sinal de espaço que resulta na figura”, e, logo a noção de
modulação indica alternância, variação, capacidade de moldar, produzir e criar algo novo (Deleuze
2008, 168-169). Em suma, modular é moldar de maneira contínua e perpetuamente variável e a
modulação produz e é produzida por similaridades, são estes aspectos da modulação deleuziana
que nos interessam particularmente neste ensaio.
A noção de modulação, conforme desenvolvida por Gilles Deleuze, oferece uma
abordagem conceitual que ajuda a compreender as transformações nas práticas historiográficas no
contexto da difusão das tecnologias digitais e do surgimento da História Digital. Nesse sentido, a
própria tentativa de uma definição e delimitação da História Digital, que pode ser entendida tanto
como um campo de estudo e pesquisa quanto uma prática metodológica, deve ser percebida como
uma modulação conceitual e metodológica, uma modulação entre teoria e prática. Além disso, os
próprios limites da História Digital também são modulados conforme novas tecnologias e
abordagens são desenvolvidas e analisar as modulações destes limites permite identificar
permanências e mudanças no campo. Um segundo tipo de modulação, que decorre deste primeiro
teórico e metodológico, está relacionado com a interdisciplinaridade, uma vez que nesse contato
com as novas tecnologias a História recorre a outras disciplinas como a sociologia, a antropologia
e a ciência da computação, para citar apenas algumas.
Outro tipo de modulação, mais evidente, está relacionado ao uso de tecnologias digitais
para potencializar práticas tradicionais de pesquisa, escrita, divulgação e ensino de história que são
amplificadas com a criação e consulta de bancos de dados e acervos digitais; pelas novas formas de
escrita e narrativa histórica com imagens, dados e objetos interativo; por viabilizarem a divulgação
em jornais científicos online e as novas modalidades de História Pública; e por permitirem o uso
de recursos digitais no ensino, por meio de teleaulas entre outras modalidades de educação remota.
Essa modulação é mais evidente pois a História é inexoravelmente atravessada pela cultura digital
e a interseção de entre cultura digital e História provoca uma modulação nas práticas
historiográficas tradicionais de pesquisa, escrita, divulgação e ensino com o uso de tecnologias
digitais. Além de se desdobrar em reflexões teóricas e metodológicas, essa modulação entre as
práticas historiográficas tradicionais também abre outro tipo de modulação relacionada com o

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
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História Digital.

nível, a frequência e a amplitude do uso de tecnologias digitais na prática historiográfica. Essa


modulação engloba os diversos níveis de uso das tecnologias digitais, que vão desde a utilização de
processadores de textos básicos, pesquisas em sites, publicações em jornais acadêmicos online e
aulas remotas, até sofisticados projetos de big data, digitalização, construção e visualização de
bancos dados e criação de softwares complexos.
Adam Crymble, em seu livro Technology and the Historian. Transformations in the Digital Age, de
2021, aborda a influência da tecnologia nos praticantes de estudos históricos na Era Digital como
parte de um processo com raízes mais antigas e que é resultado de circunstâncias históricas
específicas. Embora o autor afirme que os “historiadores optaram por não reconhecer o papel
transformador da tecnologia" ele reconhece que “nenhuma disciplina investiu mais energia e
pensamento em tornar suas fontes e evidências publicamente disponíveis, em engajar o público
por meio de meios digitais e transformar a memória coletiva de forma política” que a História
(Crymble 2021, 2-3). Porém, a falta de reconhecimento dos estudiosos inclinados ao digital em
relação ao seu próprio passado e sua fixação em um “presente eterno” e nas promessas de “futuros
brilhantes” com as mudanças que ainda estão por vir é entendida por ele como um dos principais
problemas desse campo de estudos. De acordo com o historiador, as primeiras tentativas de
descrever a História Digital tinham o propósito político de criar pontes entre os historiadores
“analógicos” (tradicionais) e os historiadores digitais e essas conversações teóricas e metodológicas
em torno das relações entre História e tecnologia precedem, inclusive, a virada digital (Crymble
2021, 8). Portanto, entender historicamente as modulações da história em suas relações com a
tecnologia permite, por um lado, compreender como as práticas historiográficas tradicionais se
transformaram em resposta às mudanças tecnológicas e, por outro, contribuir para as discussões
sobre a delimitação e a busca de uma identidade própria para a História Digital.

Uma história das modulações da História com as tecnologias digitais


As discussões sobre o uso do computador e as redes de comunicação nas práticas
historiográficas, bem como os possíveis impactos que essas tecnologias iriam propiciar no trabalho
dos historiadores e historiadoras, não são novas. Nas décadas de 1950 e 1960, com a chamada
História Serial-Quantitativa, os historiadores sociais, políticos e econômicos passaram a adotar
métodos das Ciências Sociais e utilizavam computadores para a análise de taxas de crescimento
populacional, casamentos, epidemias, ocupação do espaço, educação e migrações (Anderson 2007).
Em 1971, o historiador Edward Shorter, com o livro The Historian and the Computer. A practical guide,
ofereceu um guia para ajudar historiadores e outros pesquisadores das áreas de humanidades a
utilizarem computadores em suas pesquisas quantitativas e para orientar “o leitor nas etapas de um

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

projeto de pesquisa utilizando o computador e a análise estatística dos resultados” (Shorter 1971,
121).
Neste livro, Shorter ensinou como preparar os dados e preencher os cartões perfurados
que eram utilizados nos computadores naquele período e respondeu questões do tipo “quando usar
computadores?” ou “quais os procedimentos básicos no uso de computadores?”. Apesar do
entusiasmo com as novas possibilidades ele terminou o texto com um conselho: “O computador
é apenas uma ferramenta entre muitas para servir a esse propósito. As máquinas não devem ser
permitidas a desviar nossa atenção última do estudo dos homens para o estudo dos números”
(Shorter 1971, 126). Ou seja, ele alertou os historiadores a não perderem de vista os objetivos
intelectuais tradicionais ao utilizarem os computadores. Nesse contexto, a ideia de modulação
conforme desenvolvida por Deleuze mostra, por um lado, que a tecnologia é apresentada como
uma maneira de expandir o potencial dos historiadores, por outro, que as práticas tradicionais da
disciplina, como a problematização da escolha das fontes e a análise crítica das mesmas devem ser
mantidas. O texto de Shorter revela ainda que no começo dos anos 1970 os computadores já
colocavam em pauta a criação de novas fontes para os historiadores, transformavam a própria
noção de memória histórica e punham em questão a noção de documento e o seu tratamento.
No final da década de 1970, em seu famoso texto “Documento/Monumento”4, o
historiador Jean Jacques Le Goff abordou essa questão e apresentou uma síntese das principais
problemáticas do uso de dados gerados por computador no trabalho historiográfico até então.
Segundo Le Goff, o computador dilatava a memória histórica em meio à revolução documental
propiciada pelo uso de dados quantitativos e seriais. O medievalista ressaltou ainda que não se
tratava de uma revolução puramente tecnológica, nem imposta pelo computador, mas, sim, uma
“revolução na consciência historiográfica” propiciada pela utilização de novas formas de arquivo
(Le Goff 1996, 533). De acordo com ele, a valorização da memória coletiva exigiria uma “nova
erudição” capaz de transferir o documento/monumento do campo da memória para o da ciência
histórica atendendo às exigências tecnológicas dos computadores e ao mesmo mantendo uma
atitude crítica quanto à influência exercida pela tecnologia na produção da memória coletiva (Le
Goff 1996, 539). Assim, o corpus de dados tomado como documento também deve ser visto como
monumento, uma vez que esse corpus é constituído pelo conjunto das relações de poder
subjacentes a eles. O impacto dos computadores no âmbito da memória e da documentação,
portanto, demandaria uma crítica mais radical dos dados tornados documentos/monumentos,

4
O texto foi publicado originalmente no 5º Volume da Encyclopedia Einaudi em 1978 e posteriormente foi incluído
na primeira edição do livro História e Memória publicado em 1979.

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Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

tanto em termos de autenticidade quanto no fato de que a própria seleção desses dados implica
uma escolha subjetiva para os historiadores.
Pensando em termos de modulação, essa crítica radical no trabalho com documentos
sugerida pelo medievalista mostra uma síntese entre os métodos historiográficos tradicionais e as
práticas digitais. Da mesma forma, a “nova erudição” sugerida por Le Goff, também é uma
modulação entre as práticas tradicionais e o uso dos computadores. Logo, questões relativas à
autenticidade, à heurística, à hermenêutica e à análise de conteúdo, características da história
tradicional, devem agora ser reinterpretadas a partir da modulação da História com o uso de
tecnologias digitais. Não é de se estranhar que as preocupações de Le Goff estivessem centradas
em aspectos fundamentais da prática historiográfica (arquivos e documentos) e que passavam por
mudanças proporcionadas pela utilização de tecnologias digitais na elaboração de cálculos
estatísticos e criação de banco de dados históricos. Quando o texto foi publicado, no final dos anos
1970, os cálculos realizados a partir de bases de dados e o armazenamento de informações eram os
principais usos dos computadores até então. Os computadores pessoais ainda eram uma novidade;
o equipamento havia sido “inventado”5 em 1977, apenas dois anos antes do texto.
Na década de 1980, os computadores pessoais foram apresentados como um símbolo da
“chegada do futuro” que levaria a humanidade para uma “Era de Conhecimento”, sendo inclusive
eleitos “Máquina do Ano” pela Revista Time em 19826. No âmbito da historiografia, essa década
foi considerada uma verdadeira “revolução nas relações entre história e informática” com a
consolidação da ideia dos arquivos digitais como prova histórica (Bresciano 2015, 22). A facilidade
em utilizar e criar bancos de dados, o barateamento e o aumento da capacidade de armazenamento
dos computadores permitiram aos historiadores trabalharem com quantidades maiores de
informação e modificaram a própria prática de pesquisa e escrita do passado. Além disso, a
popularização das tecnologias digitais nesse período começou a modificar o compartilhamento de
informações entre pesquisadores e mudou a maneira como os conhecimentos históricos são
divulgados e ensinados.
Em texto de 1991, Robert John Morris refletiu sobre o impacto da popularização dos
computadores nas práticas historiográficas durante a década de 1980, mostrando que temas
abordados no texto de Le Goff haviam se consolidado nesse período. Morris (1993) explicou que
desde que começaram a usar computadores, os historiadores se acostumaram a lidar com um
volume maior de informações, o que resultou em análises mais rigorosas e maneiras diversificadas

5
Um dos marcos do surgimento da computação pessoal foi o computador Apple II, lançado em 1977. Contudo, mais
do que uma invenção a criação do computador pessoal pode ser entendida como o resultado do acúmulo de uma série
de desenvolvimentos técnicos. Sobre esse processo ver (Winston 1998)
6
Ver: Barbrook 2009 e Correia 2018.

19
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

de questionar os dados. Para Morris, embora os “fatos” históricos fossem fundamentais para uma
prática orientada pela informática, esses “fatos” estariam sempre ligados aos contextos de valores
em que eram criados e aos pesquisadores que os utilizavam e, portanto, ele considerava essencial o
trabalho tradicional de crítica das fontes e de contextualização. Nas palavras do historiador: “A
abordagem da informação processada automaticamente irá exigir não só capacidade de julgamento
e imaginação – tão características do ensaio histórico, – mas também o rigor analítico e lógico que
outras ciências sociais sempre exigiram aos historiadores” (Morris 1993, 103). Como no texto de
Le Goff, o que Morris sugere pode ser entendido como a modulação entre as práticas tradicionais
da análise de fontes geradas por computadores, inclusive com a criação de softwares destinados aos
historiadores7.
Cabe destacar, no entanto, que a popularização dos computadores pessoais enfrentou
resistência até mesmo entre pesquisadores que utilizavam os equipamentos em seus trabalhos,
como foi o caso de Manfred Thaller, então presidente da Association for History and Computing. Em
entrevista realizada em 1992, Thaller expressou ceticismo em relação ao uso de computadores
pessoais nas práticas historiográficas. Para ele, antes do “boom” dos computadores pessoais havia
contribuições metodologicamente avançadas que discutiam as dificuldades da aplicação de
métodos digitais à história, mas com o aumento significativo de historiadores familiarizados com a
informática muitos passaram a usar programas de forma superficial e a divulgarem suas descobertas
sem o devido rigor metodológico. Segundo o historiador, os primeiros anos da revolução dos
computadores pessoais diminuíram o nível de sofisticação metodológica e conceitual na história e
representaram um retrocesso metodológico (Thaller 1992, 164). Essa crítica de Thaller, pode ser
interpretada também pelo viés da modulação, uma vez que reflete uma tensão entre a tradição
historiográfica e o uso das tecnologias digitais que demandam um maior rigor metodológico e
sugere ainda que Thaller entendia que os historiadores deveriam se engajar mais diretamente na
produção de soluções digitais, como softwares e programas específicos para a prática historiográfica,
uma questão que está presente até hoje nas discussões relativas à História Digital.
A partir da década de 1990, o computador pessoal se popularizou rapidamente graças à
redução dos preços, à abertura da Internet para fins comerciais, e à difusão de softwares com
interfaces amigáveis, que facilitaram ainda mais a utilização do equipamento (Correia, 2018). Foi
nesse contexto de popularização dos computadores pessoais e da Internet que as tecnologias
digitais começaram a chegar com mais premência no cotidiano dos brasileiros, fato que também
teve reverberações nos trabalhos historiográficos realizados no Brasil. Em 1997, foi publicada a
coletânea Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia organizada por Ronaldo Vainfas e Ciro

7
Neste artigo Morris oferece uma lista destas iniciativas

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História Digital.

Flamarion Cardoso. Um dos ensaios da coletânea trazia como título “História e Informática: o uso
do computador” e foi escrito pelo historiador Luciano R. Figueiredo. O texto apresentou algumas
das principais questões e usos das tecnologias digitais na prática historiográfica nesse momento de
popularização dos computadores pessoais e da Internet. Luciano R. Figueiredo começou o texto
mencionando a “reviravolta silenciosa” iniciada na década de 1960 e a “verdadeira revolução nas
relações entre história e informática” ocorrida a partir dos anos 1980, com o barateamento dos
microcomputadores. Em certo sentido, o historiador retorna a questões que já haviam sido
colocadas por Shorter (1971), Le Goff (1996) e Morris (1993), como, por exemplo, a ampliação da
capacidade de memória e a possibilidade de analisar maiores quantidades de informação nos
“armazéns eletrônicos”, termo utilizado por Figueiredo para se referir aos computadores.
A proposta do ensaio era fazer “uma aproximação inicial entre o historiador e o uso do
computador” com indicações de “possibilidades, recursos e – por que não dizer – vantagens que a
informática traz ao longo das rotinas de trabalho do pesquisador e do professor de história” e
mostrar que o computador poderia ser muito “mais do que uma máquina de escrever eficiente”.
(Figueiredo 1997, 420). Entre as vantagens ele citou: catalogação, referência e controle
bibliográfico; edição de texto; transcrição de dados; uso de scanners; planilhas, gráficos, tabelas e
banco de dados; e as redes de comunicação nacionais e internacionais. As bases de dados foram
apresentadas por ele como “uma das mais poderosas ferramentas para a história”, por permitirem
o tratamento de vastas e variadas séries documentais (Figueiredo 1997, 421). Segundo o historiador,
neste momento existiam “dois níveis de discussão possíveis a respeito do tema informática e
história”, o primeiro relacionado com a instrumentalização e o segundo voltado para questões
metodológicas. Estes dois níveis foram discutidos a partir das transformações decorrentes da
utilização de computadores para escrever textos, analisar e armazenar dados, reproduzir arquivos
multimídia e acessar as redes de comunicação. Os comentários sobre os usos do computador para
a escrita de textos, algo tão natural e banal na atualidade, revelam que naquele momento o uso de
editores de texto provocava uma transformação na própria noção de linearidade da escrita.
Mudança vista pelo historiador como sendo vantajosa e capaz de reduzir qualquer oposição ao uso
dos computadores (Figueiredo 1997, 422). O texto também abordou os benefícios do que o autor
chamou de “micros transportáveis” (laptops e notebooks). Segundo Figueiredo (1997, 422), embora
fossem raros no Brasil, em outros países eram “poucos pesquisadores que ainda transcreviam
documentos à mão” graças aos “micros transportáveis” que ainda ofereciam como vantagens a
“indiscutível” economia de tempo e a “menor margem de erros na coleta dos dados”. Contudo,
essa poderosa ferramenta apresentava dois tipos de dilemas para os historiadores: um técnico, a
incompatibilidade entre bases de dados, e outro epistemológico, “a intervenção junto às fontes

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históricas e escolha e hierarquização das informações que devem constituir a base de dados a ser
formulada” (Figueiredo 1997, 424). Ou seja, ele retorna à mesma questão posta por Le Goff, de
que os historiadores são responsáveis pela escolha das bases de dados que irão usar no trabalho
historiográfico.
Ele também chamou a atenção para as “transformações radicais” nas instituições da
memória, graças aos bancos de dados com documentação textual, iconográfica e sonora
digitalizada. O historiador notou ainda que a disseminação dessas informações, por meio das redes
de comunicação, entre pesquisadores e, inclusive, um público mais amplo, mudava a função dos
arquivos históricos que deixavam de serem "templos” para se tornarem “redes de informação”
(Figueiredo 1997, 429). Outro tema abordado foi o da difusão do conhecimento histórico em meios
digitais, como a multimídia que foi descrita como uma das “últimas fronteiras alcançadas pelo
desenvolvimento tecnológico” por unir texto, imagem e som, o que seria grande utilidade para
difusão e ensino de conhecimentos históricos. O texto também citou iniciativas “embrionárias e
experimentais” do oferecimento de disciplinas de informática nos cursos de história no Brasil e,
principalmente, no exterior. Sobre a Internet, então uma novidade, ele explicou que ela oferecia
para os historiadores importantes canais para acesso e distribuição de informações no formato de
livros, artigos, revistas científicas, grupos de discussão, catálogos e coleções de arquivos (Figueiredo
1997, 434). Em resumo, o artigo de Figueiredo (1997) mostra uma modulação da História onde as
práticas tradicionais de pesquisa, escrita, divulgação e ensino são potencializadas e transformadas
com as tecnologias digitais.
Longe de ser um texto puramente entusiasta da tecnologia, o historiador reforçou que “a
circulação das informações não deve impedir a circularidade da crítica”, uma vez que a “ditadura
da máquino-dependência” tinha um “custo excessivamente alto” e provocava “excessivo
individualismo”, “fragmentação das experiências” e “isolamento” e concluiu o texto afirmando
que: "O amanhã - nessa velocíssima vertigem que a ciência informática (e o mercado) introduziu -
tornará esse artigo obsoleto. Ainda bem” (Figueiredo 1997, 439). E tornou mesmo, como veremos
a seguir. Mas o mais importante é que Figueiredo nos dá uma importante pista sobre as modulações
das práticas historiográficas a partir da utilização das tecnologias. Pois essa modulação vai depender
das transformações tecnológicas, uma vez que as tecnologias mudam, mas as práticas tradicionais
da história continuam sendo a base das novas práticas influenciadas pelas tecnologias digitais.
Nos Estados Unidos, um ano depois do texto de Luciano Figueiredo, foi lançado o livro:
Writing, teaching, and researching history in the electronic age: historians and computers editado pelo historiador
Dennis A. Trinkle. O livro foi o resultado de uma conferência realizada na cidade de Cincinnati
nos Estados Unidos em 1997 que reuniu mais de 200 pesquisadores para discutir “o futuro da

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história na era dos computadores”. A proposta do livro era “apresentar um panorama das novas
perspectivas introduzidas pelos computadores e promover um diálogo sobre suas consequências e
armadilhas” (Trinkle 1998, ix). No prefácio, o editor explicou que ao contrário da crença de que
“os historiadores são considerados um grupo neoludita”, na verdade eles “têm estado há muito
tempo na vanguarda das humanidades, adaptando inovações eletrônicas à sua disciplina”. Trinkle
(1998, ix) destacou que já nas décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial, com a invenção de
computadores, os historiadores começaram a fazer uso destes equipamentos para manipular
conjuntos grandes e complexos de dados e que que nas últimas décadas do século XX a
popularização dos computadores pessoais e da internet trazia “novos modos e meios vigorosos
para a prática da história”.
O historiador ainda alertou que essas tecnologias não ofereciam apenas vantagem, mas que
também tinham limitações e custos econômicos e humanos; e ele complementava que “o caminho
que a história tomará na era eletrônica será resultado das escolhas feitas por historiadores
individuais e por grupos profissionais” (Trinkle 1998, x). Entre os temas dos artigos presentes na
coletânea estavam: o potencial da Internet em remodelar a compreensão da história como
disciplina; novas formas de comunicação e publicação acadêmica na “Era Eletrônica”; o uso do
computador para aprimorar e expandir o ensino da história; o problema das imagens manipuladas
digitalmente; e exemplos de uso vantajoso da tecnologia eletrônica em pesquisas históricas. Ou
seja, as modulações nas práticas tradicionais de pesquisa, escrita, divulgação e ensino. Embora os
artigos da coletânea apresentem as novas práticas historiográficas digitais em contraste com as
práticas tradicionais, na prática, o que se percebe não é uma negação destas formas tradicionais,
mas, sim, uma modulação delas a partir do uso de recursos tecnológicos, muitos dos quais hoje são
considerados obsoletos, como, por exemplo, o multimídia.
Também é interessante notar que, entre todos os artigos do livro, o adjetivo digital atribuído
à história aparece apenas uma vez (Sicilia 1998, 79). Neste artigo, o termo digital history é citado em
letras minúsculas, o que revela que não se trata nem de um campo de estudos propriamente dito,
nem de um conceito, mas, sim, de um conjunto de práticas historiográficas realizadas com a ajuda
de ferramentas digitais, que por sua vez deveriam ser usadas de maneira crítica e eficaz para
melhorar, em vez de substituir, os métodos de ensino tradicionais. Aqui a ideia de história digital,
em minúsculas, mais uma vez pode ser entendida como uma modulação das práticas tradicionais
que são aprimoradas com o uso das ferramentas digitais.
Um ano depois, em 1999, o termo digital history, novamente em letras minúsculas, foi citado
nominalmente nos artigos “History in Hypertext” e “The Pasts and Futures of Digital History”,
que foram escritos pelo historiador Edward L. Ayers e publicados no site do Centro de História

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Digital da Virgínia (The Virginia Center for Digital History - VCDH). “History in Hypertext” aborda
as possibilidades estéticas e analíticas do hipertexto e o que Edward Ayers chamou de história
hipertextual, que corresponderia às “novas narrativas históricas” produzidas com arquivos digitais
que quebravam a “linearidade do passado” (Ayers 1999a). O termo digital history apareceu duas
vezes no texto, uma para explicar que ela não iria minar os esforços tradicionais da escrita da
história, pois, segundo o autor, os estilos de pesquisa histórica haviam mudado relativamente pouco
"desde o nascimento da história profissional”, uma vez que os historiadores seriam "mais
conservadores epistemologicamente e metodologicamente entre os acadêmicos”. Na segunda
menção, ele relacionou a história digital com a apresentação de evidências em quantidades enormes
que podem ser examinadas e manipuladas a partir de diferentes ângulos (Ayers 1999a). Por sua vez,
o texto “The Pasts and Futures of Digital History” voltou ao tema das possibilidades de escrita da
história a partir da difusão dos arquivos digitais e do hipertexto, além de abordar o uso de realidade
virtual no ensino de história. Nas palavras do historiador: “As mudanças na tecnologia da
informação, muito distantes de qualquer consideração dos seus possíveis usos para a nossa
disciplina, tornaram-nos possíveis pensar em novas formas de abordar o passado” (Ayers 1999b).
A ideia de história digital presente em Ayers é essencialmente uma modulação entre as práticas
tradicionais, que não seriam mudadas, mas sim aprimoradas pelo uso das tecnologias digitais. Além
disso, o texto discute ainda a modulação teórica e conceitual uma vez que a História Digital pode
ser entendida como modulação entre um campo de estudos e a uma metodologia baseada no uso
de recursos digitais para a pesquisa, a escrita, a divulgação e o ensino da história. Desde o final da
década de 1990, Edward L. Ayers, participa de inúmeros projetos que ajudaram a formular algumas
das bases do que se convencionou chamar de História Digital8. Seus dois textos sintetizaram os
principais temas das modulações da história na cultura digital nas últimas décadas do século XX
que podem ser exemplificadas pelas transformações na escrita da história, a revolução documental
como o excesso de fontes, o uso dos recursos digitais na difusão dos conhecimentos históricos,
que também estão presente nos textos de Shorter, Le Goff, Morris, Figueiredo e Trinkle.
Às vésperas da chegada do novo milênio, as preocupações e discussões em torno do
chamado Bug do Milênio mostraram que, na virada para o ano 2000, os computadores e a Internet
haviam se enraizado nos mais variados aspectos da experiência cotidiana9. O rápido crescimento

8
Entre 1998 e 2005, Edward L. Ayers foi o responsável pelo Centro de História Digital da Virginia (Virginia Center for
Digital History VCDH) (http://www.vcdh.virginia.edu) e desde 2015 é um dos responsáveis pelo projeto New
American History (https://www.newamericanhistory.org). Em uma conferência recente ele contou um pouco da sua
trajetória: https://youtu.be/_g2SfZW-xY4?si=7fB39FoGD6ocgXb-. Acesso em 27 dez. 2023.
9
Em várias partes do planeta, jornais e programas de televisão dedicaram muitas páginas e minutos preciosos das
grades de programação para tratar do tema e governos, como o brasileiro, investiram em propagandas veiculadas nos
meios de comunicação para tranquilizar a população para os efeitos do Bug do Milênio. Na Inglaterra, a empresa aérea

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da internet na década de 1990 foi acompanhado também pelo aumento da especulação em torno
das ações financeiras de empresas de tecnologia na bolsa eletrônica Nasdaq. Como consequência,
a bolha especulativa das empresas pontocom acabou estourando nos primeiros anos do século XXI
e provocou uma série de fusões e falências nas empresas do setor e marcou o surgimento da
chamada de web 2.0. A Web 2.0 é uma mudança na maneira como como usuários utilizam e
desenvolvedores projetam a internet e que se caracteriza pela interatividade, mas também pela
centralização e o controle. Esse é o contexto da popularização dos mecanismos de buscas como o
Google, da disseminação das redes sociais, dos comunicadores instantâneos, dos blogs pessoais,
do início da ampliação do acesso à telefonia móvel e do surgimento de sites como a Wikipedia, que
utilizam recursos wiki10
Um panorama das mudanças propiciadas pelas tecnologias digitais na virada do século é
encontrado no livro Clio Wired: The Future of the Past in the Digital Age, uma coletânea póstuma de
textos publicados entre 1994 e 2006 pelo historiador americano Roy Rosenzweig que foi lançada
em 201111. Embora os textos de Clio Wired não citem em nenhum momento o termo História
Digital, na introdução escrita por Anthony Grafton fica evidente o papel de Roy Rosenzweig na
consolidação do campo de estudo. Roy Rosenzweig ficou conhecido por diversas iniciativas que
utilizavam tecnologias digitais nas práticas historiográficas tradicionais e inclusive a participação de
historiadores na criação de softwares e outras ferramentas para auxiliar na produção do
conhecimento histórico12. De fato, em vida, o último livro de Roy Rosenzweig foi publicado em
2006, em co-autoria com o historiador Daniel Cohen e recebeu o nome de Digital History: A Guide
to Gathering, Preserving, and Presenting the Past on the Web. Na prática, a proposta do livro era incentivar
os historiadores a colocarem a “mão na massa” e criarem seus próprios sites de difusão de
conhecimento histórico.
O livro trouxe um guia para que tanto pessoas leigas quanto historiadores profissionais
conseguissem planejar, compreender e escolher tecnologias adequadas para a criação de um site de

British Airways cancelou mais da metade dos voos programados para a virada do ano por falta de passageiros, que
receavam que as falhas nos sistemas computadorizados provocassem queda de aviões (McDowell 1999).
10
Wiki se refere tanto a sites colaborativos que permitem edição coletiva de conteúdo, como a Wikipedia, quanto a
própria tecnologia que permite a criação desse tipo de site.
11
Os textos fornecem um quadro das principais questões que permearam os debates sobre a disciplina de história e as
tecnologias digitais entre os anos de 1994 e 2006 quando foram originalmente publicados. Entre os temas abordados
no livro estavam: o paradoxo da escassez/abundância das fontes; a preservação do passado e os arquivos na “Era
Digital”; a questão da verdade e do conhecimento na Internet; o uso do hipertexto na produção do conhecimento
histórico; a escrita da história com computadores; a coleta de dados históricos online, entre outros exemplos de usos
das tecnologias digitais na prática historiográfica.
12
Ele realizou uma série de projetos que podem ser enquadrados no campo da História Digital e foi o responsável
pela criação do Centro para a História e a Nova Mídia (Center for History and New Media - CHNM), na Universidade
George Mason em 1994 e entre os projetos estão a publicação do jornal acadêmico anual Current Research In Digital
History, ferramentas como o software de organização de imagens digitais Tropy, além de sites e podcasts. Ver
https://rrchnm.org/our-work/. Acesso em 27 dez. 2023.

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história “fácil de usar, acadêmico e interativo”. Para isso, os autores ofereceram dicas de
digitalização de documentos, debateram questões de direitos autorais, uso justo e deram conselhos
para garantir a preservação a longo prazo. Embora vissem a tecnologia como uma forma de
potencializar o trabalho dos historiadores, os autores afirmavam que não se alinhavam nem com
os “entusiastas otimistas” da tecnologia, nem com os “pessimistas apocalípticos”, mas sim com os
“tecnorealistas”13, para os quais “fazer história digital envolve estar ciente das vantagens e
desvantagens da tecnologia, maximizando as primeiras enquanto minimiza as últimas” (Rosenzweig
e Cohen 2006, 3). Este trabalho nos interessa particularmente pois ele é representativo das
modulações da história, uma vez que os autores apresentaram a História Digital tanto como um
campo de estudos, quanto como uma metodologia de pesquisa, escrita, divulgação e ensino14. Ou
seja, a ideia de modulação teórica e conceitual e da modulação como uma forma de melhorar,
aperfeiçoar as práticas tradicionais. Além disso, a introdução do livro também revela que algumas
práticas que antes eram vistas como novidade e se tornaram tão difundidas que provocavam
estranhamento em quem não as praticava:

Nas últimas duas décadas, novas mídias e novas tecnologias desafiaram os historiadores a
repensar as maneiras como pesquisam, escrevem, apresentam e ensinam sobre o passado.
Quase todo historiador considera um computador como equipamento básico; colegas
veem aqueles que escrevem seus livros e artigos sem a ajuda de software de processamento
de texto como objetos de curiosidade. Professores de história trabalham em seus slides do
Powerpoint [...]. O e-mail e a troca de mensagens instantâneas ampliaram círculos de
comunicação e debate entre praticantes de história dispersos, estudiosos e entusiastas
amadores (Rosenzweig e Cohen 2006, 2).
A difusão acelerada das tecnologias digitais provocou uma rápida “naturalização” dos “usos
e abusos” destas tecnologias na prática historiográfica e no decorrer da primeira década dos anos
2000, conforme as tecnologias digitais ganhavam mais premência na experiência cotidiana, a
chamada História Digital começou a se consolidar como um campo de estudos propriamente dito.
Já em 2002, no editorial “Defining Digital History”, Deborah Lines Andersen destacou essas
transformações ao analisar artigos publicados no Journal of the Association for History and Computing
(JAHC). A historiadora observou que a revolução digital não apenas tinha alterado os métodos de
pesquisa e ensino, mas também exigia novas definições e entendimentos das práticas
historiográficas. Segundo Andersen (2002), “o campo da história passava por uma mudança na
forma como os acadêmicos utilizavam e acessavam informações” e a abordagem dos historiadores
em relação às fontes e métodos tradicionais passava por uma reconfiguração. Ela salientou a

13Conhecidos como tecnorealistas se apresentavam como o caminho do meio, uma alternativa entre os tecno-utópicos
(“entusiastas otimistas”) e os neoluditas (“pessimistas apocalípticos”). Ver Lemos, 2023.
14 Os autores identificaram sete qualidades das tecnologias digitais que poderiam potencializar o trabalho dos

historiadores: capacidade de armazenamento, acessibilidade, flexibilidade, diversidade, manipulabilidade, interatividade


e hipertextualidade. E também indicaram cinco perigos e ameaças da “supervia da informação”: qualidade,
durabilidade, legibilidade, passividade e inacessibilidade (Rosenzweig e Cohen, 2006)

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complexidade em se definir a História Digital, uma vez que se tratava de um campo complexo e
multifacetado que ia desde a digitalização de fontes primárias tradicionais até o uso avançado de
tecnologias como simulações de realidade virtual e sistemas de informação geográfica (GIS).
Andersen destacou que a abrangência das mudanças provocadas pela “digitalização” nas
práticas de ensino, comunicação, pesquisa e publicação na área da história demandavam uma
padronização na terminologia e a formação de historiadores capazes de integrar essas tecnologias
de maneira crítica e reflexiva. Para ela, a instabilidade na terminologia era reflexo da rápida evolução
tecnológica e da necessidade constante de atualização e adaptação por parte dos historiadores. O
que mostrava a História Digital como um campo dinâmico, marcado pela integração de novas
tecnologias, e pela transformação contínua das práticas historiográficas. Essa instabilidade na
terminologia e a dificuldade de definição da História Digital, portanto, deve ser entendida como
um reflexo das modulações conceituais e teóricas das práticas historiográficas suscitadas pelas
tecnologias digitais em constante transformação devido aos desenvolvimentos técnicos.
Sete anos depois, em 2009, dois historiadores ligados ao VCDH voltaram ao tema da
definição do que seria a História Digital. Escrito por Douglas Seefeldt e William G. Thomas, o
artigo “What is Digital History?” afirma a novidade da História Digital como “um campo
totalmente novo” que ainda carecia de uma definição mais precisa pois estava sendo
conceitualizado “à medida que os historiadores experimentavam com esse novo meio” (Seefeldt e
Thomas 2009). Para os autores, esse “campo totalmente novo” precisava de uma definição pois
“sem exemplos bem definidos de produção acadêmica digital, melhores práticas estabelecidas e,
especialmente, critérios claros de avaliação, poucos acadêmicos se envolveram totalmente com o
meio digital” (Seefeldt e Thomas 2009). A definição proposta pelos historiadores foi a seguinte:

A história digital pode ser entendida de forma ampla como uma abordagem para examinar
e representar o passado que trabalha com as novas tecnologias de comunicação do
computador, da Internet e dos softwares. Por um lado, a história digital é uma arena aberta
de produção e comunicação acadêmica, abrangendo o desenvolvimento de novos materiais
didáticos e esforços de coleta de dados acadêmicos. Num outro nível, a história digital é
uma abordagem metodológica enquadrada pelo poder hipertextual destas tecnologias para
criar, definir, consultar e assinalar associações no registo humano do passado. Fazer história
digital, então, é certamente digitalizar o passado, mas é muito mais do que isso. É criar uma
estrutura por meio da tecnologia para que as pessoas experimentem, leiam e acompanhem
uma discussão sobre um importante problema histórico (Seefeldt e Thomas 2009).
O entendimento desse campo “totalmente novo” proposto pelos autores é amplo e opera
em diversos níveis que variam de práticas de digitalização de acervos, abordagens metodológicas e
formas de produção e comunicação da história. Essa variedade nos sentidos da História Digital é
mais um exemplo das modulações impostas pela cultura digital à pesquisa, à escrita, à divulgação e
ao ensino de História. Os historiadores argumentaram que “a história digital, talvez mais do que a
analógica, convida estudantes e o público para o processo digital” e permite que as pessoas

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“investiguem e formem suas próprias associações interpretativas” (Seefeldt e Thomas 2009). Esta
interatividade, uma marca registrada da web 2.0, não apenas transforma a maneira como a história
é consumida, mas também como é produzida e ensinada. A digitalização dos acervos, as novas
metodologias de pesquisa e as formas inovadoras de comunicação acadêmica criam um campo
onde a interdisciplinaridade e o cruzamento de fronteiras são essenciais e envolvem historiadores
e outros profissionais no uso de ferramentas digitais. Como é possível notar, nessa tentativa de
definição da História Digital são percebidos três tipos de modulação da História: a modulação das
práticas tradicionais, a modulação interdisciplinar e a modulação conceitual, uma vez que a
definição dos autores ressalta a variedade de práticas e abordagens da História Digital.
Essas mudanças identificadas pelos autores refletem um movimento mais amplo na
sociedade no final da primeira década do século XXI, onde as promessas de maior participação
política e democrática, proporcionadas pelas tecnologias digitais, geraram um otimismo
significativo15. Nesse contexto de intensas mudanças propiciadas pelas tecnologias digitais,
pesquisadores das áreas de Humanidades se voltavam para os impactos dessas transformações na
sociedade e por consequência nas próprias Ciências Humanas. Em 2011, foi publicado o Manifesto
das Humanidades Digitais, que era resultado da percepção de que o digital alterava as condições de
produção do conhecimento. Neste manifesto, as Humanidades Digitais eram apresentadas como
uma “transdisciplina portadora de métodos e dispositivos e das características heurísticas ligadas
ao digital no domínio das Ciências Humanas e sociais” e composta por uma comunidade
multilíngue presente em mais de 24 países16. O manifesto também reforçou o papel das
Humanidades Digitais para “o progresso do conhecimento, o reforço da qualidade da pesquisa em
nossas disciplinas, e o enriquecimento do saber e do patrimônio coletivo” e defendeu a divulgação,
a circulação e o livre enriquecimento dos métodos, do código, dos formatos e dos resultados da
pesquisa (Dacos 2011).

Alguns críticos sugerem que embora as Humanidades Digitais sejam apresentadas como
um campo aberto e transdisciplinar, os “humanistas digitais” muitas hierarquizam e categorizam
os pesquisadores entre aqueles que criam novos produtos e ferramentas e aqueles que apenas
discutem teoricamente as tecnologias17. Outros sugerem que as Humanidades Digitais podem ser
entendidas como uma estratégia e uma alternativa das áreas de Humanidades contra os cortes de

15
Em várias partes do mundo começam a emergir movimentos sociais, como o Occupy Wall Street e a chamada
Primavera Árabe, que se organizavam e se mobilizavam pela Internet. Ver (Castells 2013; Gerbaudo 2012; 2017)
16 Segundo dados do site https://humanidadesdigitais.org/, em 2011 existiam aproximadamente 114 Centros de

Humanidades Digitais ao redor do mundo, desses, 44 estavam nos Estados Unidos, outros 40 na Europa e o restante
no resto do mundo, sendo dois no Brasil. Disponível em https://www.ucl.ac.uk/infostudies/melissa-
terras/DigitalHumanitiesInfographic.pdf. Acesso em 15 dez. de 2023.
17 Sobre esse tema ver o debate “hack versus yack” em Nowviskie 2016.

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verbas que marcavam as instituições de ensino superior e que se acentuaram a partir da crise
econômica de 2008 (Grusin 2014). Por outro lado, ao colocar em pauta questões como como
práticas de acesso, distribuição, legibilidade, atuação dos campos do saber, papel da esfera pública
e de outros espaços de disseminação do saber, as Humanidades Digitais também oferecem um
contraponto necessário à invasão da filosofia do Vale do Silício via grande Universidades
Americanas, na formação educacional digital (Silva, Almeida e Hooper 2016). De todo modo, e em
linhas gerais, as Humanidades Digitais podem definidas como um campo de pesquisa
interdisciplinar que busca integrar métodos digitais e computacionais às ciências humanas
tradicionais, tais como literatura, filosofia, linguística, arqueologia e história, e criar novas práticas
e linguagens aplicáveis a várias disciplinas. Assim, a História Digital pode ser entendida como um
subcampo das Humanidades Digitais que apresenta características próprias, afinal ela se concentra
especificamente no uso de tecnologias digitais para a pesquisa, escrita, divulgação e ensino de
história. Além disso, dentro das Humanidades Digitais, a História Digital ocupa um lugar
privilegiado, pois, apesar da desconfiança e da indiferença de uma parte dos historiadores e
historiadoras, a preocupação com o impacto das tecnologias digitais está presente na historiografia
desde pelo menos a década de 1960 (Bresciano 2015). Por fim, um olhar atento para o Manifesto das
Humanidades Digitais, revela ainda que temáticas presentes no texto já estavam sendo discutidas no
campo da História, como, por exemplo, a questão da divulgação dos conhecimentos e dos dados
abertos nas redes digitais e a memória coletiva.
No ano seguinte ao lançamento do Manifesto das Humanidades Digitais, em 2012, foi publicada
uma nova coletânea organizada por Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas, que recebeu o
nome de Novos Domínios da História. Esta edição também contou com um texto sobre “História e
Informática”, mas dessa vez sem o subtítulo “o uso do computador”. O texto foi escrito pela
historiadora Célia Cristina da Silva Tavares e é uma espécie de versão 2.0 do texto de Luciano
Figueiredo publicado 15 anos antes. A historiadora abordou o tema das fontes e da preservação;
os processos de digitalização de documentos; as implicações relativas aos direitos autorais; e o fato
de que a escolha das fontes partia do historiador: “computadores ou quaisquer ferramentas
utilizadas nunca iriam substituir a atuação do profissional de história, a escolha de critérios e
referências que cabe somente a ele estabelecer” (Tavares 2012, 305). Apesar da repetição destes
temas, o texto da historiadora revela como a tecnologia havia se transformado entre 1997 e 2012.
Enquanto Figueiredo destacou principalmente aspectos dos computadores pessoais na escrita de
textos, no processamento e armazenamento de dados, criação de arquivos digitais e reprodução de
arquivos multimídia, Célia Cristina da Silva Tavares enfatizou os sites de internet, como o Google,

29
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

a Wikipedia, as redes sociais, a computação em nuvem e as modalidades de educação à distância


propiciadas pela Internet.
Os 15 anos que separam os dois textos ainda dão pistas do processo de difusão e recepção
dos computadores portáteis que “tornaram-se companheiros fundamentais dos historiadores
dedicados à pesquisa arquivística ou mesmo livresca” e da mudança de mentalidade dos
historiadores em relação à utilização dos computadores. Isso porque ela identificava que “ainda na
década de 1990, a maioria dos historiadores “repudiava” o uso desta poderosa ferramenta [o
computador]” (Tavares 2012, 304) e agora (em 2012) o assunto era tema de discussões de
importantes historiadores como Carlo Ginzburg, Roger Chartier e Robert Darnton. Como
Figueiredo (1997), a historiadora citou a obsolescência tecnológica e defendeu uma postura crítica
como atitude obrigatória em relação aos meios digitais que “provocam ansiedade” e permitem “a
difusão de conteúdos inverídicos, por vezes apresentados com a aparência de verdade” (Tavares
2012, 308). Ao retomar temas já presentes em Figueiredo, mas apresentar outras abordagens
tecnológicas para esses temas, o texto de Tavares revela que a modulação da história depende e
sofre influência dos desenvolvimentos técnicos. E a despeito da autora não usar em momento
algum o termo História Digital e nem recorrer aos trabalhos de Roy Rosenzweig ou Edward Ayres
ou mesmo citar as Humanidades Digitais, os temas abordados por ela são parte das discussões
tanto da História Digital quanto das Humanidades Digitais.
Com efeito, embora o conceito de História Digital já fosse difundido nos Estados Unidos
na primeira metade dos anos de 2010, o campo de estudos e de práticas historiográficas
relacionadas às tecnologias digitais ainda carecia de um olhar mais atento em lugares como o Brasil.
É o que mostrou a dissertação defendida por Anita Lucchesi em 201418. Neste trabalho, a
historiadora compara duas tendências historiográficas: a Storiografia Digitale, nomenclatura italiana
inspirada pelo livro de mesmo nome do historiador italiano Dario Ragazzini, e a Digital History,
nomenclatura estadunidense inspirada, principalmente nos trabalhos de Roy Rosenzweig e de
Edward Ayres. Anita Lucchesi relacionou essas duas tendências ao contexto do tempo presente e
a existência de um projeto de fundo comum entre estas duas correntes que se caracterizam por
serem “inscritas no ciberespaço, escritas digitalmente (hipertextualmente) e divulgadas na rede”
(Lucchesi 2022, 203). Entre as distinções destas duas tendências estariam as diferenças de
concepção em termos de práticas, metodologias e conceitos, mas também de recursos financeiros,
políticos e humanos (Lucchesi 2022, 204).

18
A dissertação deu origem ao livro Digital History e Storiografia Digitale: Estudo Comparado sobre a Escrita da
História no Tempo Presente (2001-2011) publicado em 2022 e que está sendo utilizado nesta discussão

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

Para Lucchesi (2022, 203): “A ausência de um consenso sobre a definição do


conceito/campo/método/disciplina ‘História Digital’ ou ‘Historiografia Digital’” seria, “na
verdade, um signo dessa transição da cultura impressa para a cultura digital”. Assim, essa distinção
entre as práticas americanas e italianas e a falta de consenso sobre o que constitui a História Digital
evidencia a noção de modulação da história e as tecnologias digitais, uma vez que análise de
Lucchesi sobre a Storiografia Digitale e a Digital History revela não apenas diferenças metodológicas e
conceituais, mas também um panorama mais amplo de como diferentes contextos culturais,
acadêmicos e tecnológicos modulam as práticas historiográficas. A partir da segunda metade dos
anos 2010, com a aceleração da difusão das tecnologias digitais, a cultura digital começou a ocupar
cada vez mais espaço e interferir de maneira direta na realidade e nos espaços de experiência e nos
horizontes de expectativa. No rescaldo da mobilização política nas “redes de indignação e
esperança” (Castells 2013), emergiu uma onda conservadora da extrema direita que ascendeu ao
poder em várias partes do mundo usando as redes digitais como instrumento de difusão de
ideologias anti-minorias, propagação de discursos de ódio e divulgação de fake-news (Cesarino 2022).
Paralelamente, nesse período começam a despontar perfis em redes sociais, canais no
Youtube e podcasts com temas históricos e as Humanidades Digitais e a História Digital passaram
a ocupar um espaço maior nas Universidades brasileiras, embora de maneira ainda tímida19.
Sintomático dessa transformação é que mesmo no tradicional curso de História da Universidade
de São Paulo há abertura para o oferecimento de disciplinas como o curso de Teoria da História
ministrado pelo professor Elias Thomé Saliba, que discute as mudanças provocadas pela cultura
digital na historiografia. As discussões desta disciplina de Teoria da História foram sintetizadas em
um artigo publicado em 2020, no qual Elias Saliba analisa o papel da teoria da história como
reflexão crítica e metódica e “sismógrafo” das inquietações na disciplina de história, abordando as
sucessivas viradas epistemológicas da disciplina, como a linguística, a cultural, a subjetiva e a atual
digital. Em seguida, ele apresenta uma caracterização do mundo digital, inserido na dinâmica do
capital, da cultura e da política, e o papel da Internet como instrumento de comunicação, registro,
presentificação, esquecimento e mobilização. De acordo com o historiador, a “voragem digital”
provoca um esgarçamento da memória subjetiva por meio da presentificação; assim em um
contexto de excesso de deslumbramento tecnológico, excesso de informação e da doença do curto
prazo, os historiadores podem contribuir com o olhar de longa duração e também no combate às
fake news, uma vez que “o conhecimento histórico ainda é o motor que nos empurra em direção
de um mundo mais verdadeiro e mais justo” (Saliba 2020, 34). As discussões presentes no texto de

19
Em 2009 foi criado um grupo de Pesquisa de Humanidades Digitais na Universidade de São Paulo e em 2018 foi
criado o Laboratório de Humanidades Digitais da Universidade Federal da Bahia (UFBA), por exemplo.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

Saliba (2020), é mais um indício de como as tecnologias digitais e a virada digital provocam uma
modulação teórica e metodológica na disciplina de História.
Nesse mesmo ano de 2020, a Pandemia de Coronavírus catalisou, acelerou e criou novas
tendências, propiciando uma intromissão ainda maior da cultura digital nos espaços de experiência
cotidianos. As medidas do chamado isolamento social expandiram e popularizaram modalidades
de trabalho e de aulas remotas, além de videoconferências, palestras e as chamadas lives transmitidas
ao vivo para todo o planeta. Mesmo aqueles mais avessos à tecnologia foram lançados
compulsoriamente no mundo digital de uma hora para a outra. Professores de todas as partes do
planeta precisaram se adaptar para ministrar aulas síncronas e assíncronas, e muitos perceberam,
de maneira quase traumática, que a experiência nos dispositivos de videoconferência era bem
diferente da praticada nas salas de aula tradicionais. Por outro lado, muitos professores e
pesquisadores passaram a ter contato com softwares para criação de apresentações de slides, entre
outros recursos digitais que contribuem para o ensino, a pesquisa e, inclusive, a extensão. Ou seja,
a Pandemia impulsionou ainda mais as modulações das práticas historiográficas. Ainda em 2020, o
Journal of Digital History (JDH), vinculado ao Centro de História Contemporânea de Luxeburgo
(Luxembourg Centre for Contemporary and Digital History - C²DH) da Universidade de Luxemburgo e
Gruyter, abriu sua primeira chamada de artigos com a proposta inovadora de ser uma “plataforma
de publicação em várias camadas para estudos acadêmicos baseados em dados no campo da história
digital” (Fickers e Clavert 2021). Os artigos do site são apresentados em um formato de acesso que
mistura texto, visualização de dados, linhas de código em linguagem Python e material audiovisual.
No Brasil, a História Digital parece ter se consolidado nos últimos anos com a publicação de
dossiês20, coletâneas (Nicodemo, 2022) e importantes estudos teóricos e metodológicos como
(Barros 2022; Pereira 2022), além do já citado trabalho de Anita Lucchesi publicado como livro
também em 2022.
Seja como for, esse processo de intensificação do uso de recursos tecnológicos nas
abordagens historiográficas tem despertado a atenção inclusive de historiadores e historiadoras que
não se identificam com a História Digital, fato que mais uma vez evidencia as diversas modulações
da História nas suas interseções com as tecnologias digitais. Assim, parafraseando Alex Reid, no
final das contas, a História Digital talvez seja simplesmente a historiografia feita no momento

20
Conf. História Digital: Perspectivas, Experiências e Tendências, 2017 (http://bit.ly/3S0fYLK) e História global e
digital: novos horizontes para a investigação histórica, 2020 (https://bit.ly/48CseaD). Acesso em 27 dez. 2023.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Luiz Filipe Correia | Modulações da História na Cultura Digital Considerações sobre uma história da
História Digital.

presente21 a partir das modulações da História desencadeadas pelas tecnologias digitais e quem sabe
daqui uns anos não estaremos nos referindo a uma História Quântica22?

Considerações Finais
Os textos apresentados no decorrer desse artigo foram escolhidos por permitirem discutir
as diversas modulações da História na sua relação com as tecnologias digitais23, e por fornecerem
também um quadro da história das tecnologias digitais e das implicações dessas tecnologias nas
práticas historiográficas do final do século XX e começo do século XXI. As modulações discutidas
a partir de uma perspectiva histórica mostram recorrências de temas, tópicos e questões
relacionadas com as “perturbações” provocadas na historiografia pela difusão e popularização das
tecnologias digitais. Compreender estas perturbações a partir do conceito de modulação abre uma
perspectiva teórica e metodológica para enfrentar os desafios impostos pela cultura digital à
História e suas práticas de pesquisa, escrita, divulgação e ensino; e também na própria tentativa de
uma delimitação para a História Digital. A noção de modulação pode explicar a dificuldade de se
delimitar a História Digital, uma vez que esta pode ser vista como o resultado das modulações da
História discutidas no artigo. Os textos podem contribuir, inclusive, para uma História da Ciência
e da Tecnologia, pois oferecem indícios do processo de difusão e recepção de novas tecnologias
entre os historiadores e historiadoras. Por fim, em um contexto de aceleração da difusão de novas
tecnologias, a História Digital tem uma importância fundamental, não apenas porque ela permite
pensar as diversas modulações da História com a difusão destas tecnologias, mas porque a História
Digital também pode proporcionar uma visão crítica, ética e política das transformações
desencadeadas pela cultura digital.

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http://www.vcdh.virginia.edu/Ayers.OAH.html.

21
No original “The Digital Humanities are just the humanities of the present moment”. Disponível em
https://humanidadesdigitais.org/breve-panorama/. Acesso em 26 dez. 2023
22
A computação quântica opera a partir de preceitos da mecânica quântica e ainda está estágios iniciais de
desenvolvimento. Sendo a principal diferença da computação clássica, que trabalha com a lógica binária (0 e 1), é o
uso de qubits, nos quais o 0 e o 1 podem se sobrepor e coexistir.
23 Não era objetivo fazer uma revisão sistemática da literatura sobre as relações entre a História e as tecnologias digitais,

de todo modo, as referências bibliográficas presentes nos trabalhos discutidos no presente artigo dão conta de uma
biografia básica sobre o tema.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
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34
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***
Recebido: 29 de dezembro de 2023
Aprovado: 26 de abril de 2024

35
Dossiê: História Digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.42957

A lepra e a tarkat:
uma representação da doença e do doente no jogo eletrônico Mortal Kombat
1 (2023)

Leprosy and tarkat:


a representation of the disease and the patient in the electronic game Mortal Kombat 1
(2023)

Lepra y tarkat:
una representación de la enfermedad y el paciente en el juego electrónico Mortal Kombat
1 (2023)

Leonardo Dallacqua de Carvalho*


https://orcid.org/0000-0002-7893-3092

RESUMO: Este estudo busca explorar, em perspectiva histórica, a representação de uma doença
no jogo eletrônico Mortal Kombat 1 (2023). No jogo, a fictícia doença “tarkat” pode ser associada à
lepra (hanseníase). Tendo em mente a análise dos jogos eletrônicos como fonte histórica, alinhada
à História das Ciências, especialmente no debate sobre as representações sociais das doenças,
pretende-se examinar como a narrativa do personagem Baraka foi construída para abordar questões
morais e físicas relacionadas à compreensão da doença e do doente na imaginação social. Quando
o texto foca na História Pública, a relação entre doença e empatia aparece em discussões entre
usuários em plataformas de redes sociais, como Reddit e YouTube. A seção final do texto propõe a
transformação do personagem por meio de um enredo no qual a doença reimagina sua história no
jogo. Assim, um personagem que anteriormente era visto com repulsa devido à sua deformidade
física, ao ser reimaginada como vítima de uma doença degenerativa e fatal, provoca sensibilidade e
uma reinterpretação de sua personalidade.
Palavras-chave: Jogos eletrônicos. doença como representação. História Pública. Mortal Kombat 1.

*
Professor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual do Maranhão (PPGHIST-UEMA).
Doutor em História pela Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ/RJ. Contato: [email protected].

36
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Leonardo Dallacqua de Carvalho | A lepra e a tarkat: uma representação da doença e do doente no jogo
eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)

ABSTRACT: This study seeks to explore, from a historical perspective, the representation of a
disease in the electronic game Mortal Kombat 1 (2023). In the game, the fictional “tarkat” disease
can be associated with leprosy. Through an analysis of electronic games as a historical source,
aligned with the History of Sciences, especially in the debate on the social representations of
diseases, the aim is to examine how the narrative of the character Baraka was constructed to address
moral and physical issues related to the understanding of the disease and the patient in social
imagination. As the text focuses on Public History, the relationship between disease and empathy
emerges in discussions among users on social media platforms such as Reddit and YouTube. The
final section of the text proposes the transformation of the character through a plot in which the
disease reimagines its story in the game. Thus, a character who was previously viewed with
repulsion due to their physical deformity, when reimagined as a victim of a degenerative and fatal
disease, elicits sensitivity and a reinterpretation of their personality.
Keywords: Electronic games. disease as representation. Public History. Mortal Kombat 1

RESUMEN: Este estudio busca explorar, desde una perspectiva histórica, la representación de una
enfermedad en el juego electrónico Mortal Kombat 1 (2023). En el juego, la enfermedad ficticia
“tarkat” puede estar asociada con la lepra. Teniendo presente el análisis de los juegos electrónicos
como fuente histórica, alineado con la Historia de las Ciencias, especialmente en el debate sobre
las representaciones sociales de las enfermedades, pretendemos examinar cómo se construyó la
narrativa del personaje Baraka para abordar cuestiones morales y físicas. relacionados con la
comprensión de la enfermedad y del paciente en el imaginario social. Cuando el texto se centra en
la Historia Pública, la relación entre enfermedad y empatía aparece en discusiones entre usuarios
en plataformas de redes sociales, como Reddit y YouTube. El último apartado del texto propone la
transformación del personaje a través de una trama en la que la enfermedad reimagina su historia
en el juego. Así, un personaje que antes era visto con repulsión por su deformidad física, cuando
se reimagina como víctima de una enfermedad degenerativa y mortal, provoca sensibilidad y una
reinterpretación de su personalidad.
Palabras clave: Juegos electrónicos. enfermedad como representación. Historia Pública. Mortal
Kombat 1

Como citar este artigo:


Carvalho, Leonardo Dallacqua de. “A lepra e a tarkat: uma representação da doença e do doente
no jogo eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)”. Locus: Revista de História, 30, n. 1 (2024): 36-62.
***

Li Mei: A lei exige que os infectados sejam isolados.


Baraka: Ela exige que sejamos tratados como monstros?
(Diálogo em Mortal Kombat 1 [2023])

37
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Leonardo Dallacqua de Carvalho | A lepra e a tarkat: uma representação da doença e do doente no jogo
eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)

Como estabelecer a relação entre uma doença fictícia, originada no interior de uma
linguagem computacional, e a experiência social ou individual de uma doença real, como a lepra?
Este foi um dos principais desafios que o presente texto impôs à sua viabilidade. A resposta não é
nova. Charles Rosemberg (1989) explica que o interesse na experiência das doenças é um domínio
interdisciplinar, sendo uma preocupação particular da História Social. Aqui, o historiador assume
o papel delineado por Rosemberg ao considerar as doenças como dispositivos de amostragem
multidimensionais e analisar a relação entre pensamento social e estrutura social (Rosemberg 1989,
14). O autor estimula, ainda no final da década de 1980, uma agenda de pesquisas futuras para
entender a experiência individual da doença em relação às temporalidades, a influência da cultura
nas definições de doença, bem como o impacto da doença na formação da cultura (Rosemberg
1989, 14). Dado que esse enquadramento social das doenças não é desprovido de valores, parece
apropriado desenvolver essa agenda em consonância com artefatos culturais como videogames e
jogos eletrônicos.
A historiadora Dilene Raimundo do Nascimento, ao abordar a doença como objeto da
História, ressalta a importância da representação social das doenças para o ofício do historiador.
Entre suas lições metodológicas, ela considera as narrativas literárias e científicas como cruciais
para evidenciar a complexidade cultural das representações sobre a doença na sociedade,
especialmente ao interpretar e contrapor as alegorias nos discursos (Nascimento 2005, 42-43). Ao
revisar diferentes autores que adotaram esse modelo de análise1, a autora sustenta que as
abordagens que incorporam o enfoque cultural, representações, crenças e símbolos são essenciais
para observar o fenômeno patológico como um fenômeno social. No trecho a seguir, Dilene
Nascimento argumenta sobre a importância das representações, aliadas ao discurso de novas
modalidades de fontes, para que o historiador explore e compreenda essa dimensão social das
doenças:

Uma investigação no campo da história de doenças, centrada na sua representação social, isto é, nas
visões que os homens produzem de seus males, inclusive as fantásticas, pode trazer alguns
problemas, uma vez que o pesquisador estará lidando com símbolos — pois representar é sempre
lidar com símbolos. A dificuldade reside precisamente na interpretação, no risco de ser superficial
ou confinar-se às aparências. Todavia, a dificuldade nessa interpretação pode ser menor na medida
em que se tem consciência de que as coisas são sempre representadas, mas de forma diferenciada,
isto é, a partir da diversidade e complexidade nas inter-relações das representações com o real
(Nascimento 2005, 40).
Este debate, entretanto, tem estabelecido um consenso ente os historiadores nas últimas
décadas. A complexidade se intensifica quando estabeleço uma conexão com um artefato cultural

1
A autora menciona os seguintes estudos: McNeill, 1976; Sendrail, 1980; Bertolli, 1992; Delaporte, 1990; Armus, 1995;
Cueto, 1997; Brandt, 1985; Carrara, de 1996; Tronca, 2000; e Herzlich & Pierret, 1984 (Nascimento 2005, 36).

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Leonardo Dallacqua de Carvalho | A lepra e a tarkat: uma representação da doença e do doente no jogo
eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)

que possui a estética dos jogos eletrônicos. Em outras palavras, os videogames e, por extensão, os
jogos eletrônicos, possuem códigos próprios que precisam ser considerados para uma análise
eficiente. Esses artefatos culturais não apenas envolvem a produção humana de seus códigos, mas
também ações humanas necessárias para completar suas representações - neste contexto, me refiro
à interatividade e às representações processuais. Os jogos eletrônicos conservam regras específicas
dentro de um conjunto predefinido de programação e prática de programação. A “retórica
processual”, destacada pelo pesquisador Ian Bogost, auxilia na compreensão de como a persuasão
é alcançada ao definir certas intencionalidades nos jogos a partir dessa linguagem. Assim, este autor
define,

No entanto, o significado nos videogames não é construído por meio de uma recriação do mundo,
mas sim por meio da modelagem seletiva de elementos apropriados desse mundo. A representação
procedural modela apenas algum subconjunto de um sistema de origem, a fim de chamar a atenção
para essa parte como o objeto da representação (Bogost 2007, 46).
Com base nessa orientação metodológica, passo a analisar o jogo eletrônico Mortal Kombat
1 com o propósito de observar como ele representa uma doença fictícia, abrangendo seu quadro
clínico e aspectos sociais, e comparando-a com uma doença real, a lepra, que possivelmente serviu
como inspiração. Da mesma forma, examino como os “jogadores casuais” interpretaram o
contexto da doença por meio do personagem Baraka.
Em relação à História Pública, tornou-se clássica a interpretação da historiadora britânica
Jill Liddington, que aproxima a História Pública à maneira como compreendemos nosso sentido
de passado e os significados da memória. Nesse sentido, no que tange aos jogos digitais, é possível
aproximar a ideia da autora ao entender a História pública como “[...] a apresentação popular do
passado para um leque de audiências - por meio de museus e patrimônios históricos, filme, ficção
histórica” (Liddington 2011, 34).
Na historiografia brasileira, esforços como os de Juniele Rabêlo Almeida e Marta Gouveia
de Oliveira Rovai, na coletânea Introdução à História Pública (2011), expandem a consciência
multidisciplinar da História Pública nas representações do passado. Não por acaso, alertam para a
compreensão dos novos públicos e suas formas de comunicação interativa, nas quais os jogos
digitais trazem suas contribuições.
Os jogos digitais estão conectados à História Pública em diferentes aspectos. A informação
tecida nas redes sociais, especialmente com o avanço da web 2.0, revelou como a memória, as
representações e as compreensões do passado podem ser discutidas e rediscutidas. No caso dos
jogos eletrônicos, as discussões sobre a História, não necessariamente conectadas à história
acadêmica, aparecem como narrativas do passado. O ensaio de Sara Albieri, História Pública e
Consciência Histórica, não perde de vista que “É preciso agir em favor da continuidade e da

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eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)

multiplicação dos meios que põem em comunicação os vários modos de história, tanto na academia
quanto na cultura comum” (Albieri 2011, 28). A autora oferece argumentos que permitem
enquadrar os jogos eletrônicos como um meio de expandir as narrativas vigentes na cultura popular
e suas representações sobre o passado:

Outro aspecto da educação histórica está associado à divulgação científica da história por meio de
documentários, filmes de caráter histórico, livros romanceados com pano de fundo histórico,
histórias em quadrinhos ambientadas historicamente. São outras tantas formas de publicação da
história presentes na cultura comum, que por vezes merecem reflexão aos conteúdos históricos que
veiculam (Albieri 2011, 21).
Para aderir às variadas formas de publicação da história presentes na cultura comum,
conforme proposto por Sara Albieri, é possível aproximar o argumento de Anita Lucchesi e Bruno
Leal de Carvalho (2016), que entendem o digital como uma ampliação dos contextos socioculturais
em relação ao conhecimento histórico. Os indivíduos que interagem com esses artefatos culturais
também são produtores de memórias, expressões artísticas e outras formas de manifestações que
estão vinculadas ao passado.
Essa conexão entre os jogos digitais e o potencial que estes têm de estabelecer uma crítica
do passado, reconhecendo a importância da História Pública, foi abordada pelo estadunidense
Jeremiah McCall (2019, 30). Ele destaca, do ponto de vista do Ensino de História, como educandos
e professores podem observar de que maneira os jogos eletrônicos distorcem ou são eficazes ao
pensar diferentes passados. Como mencionei em outro trabalho:

A história pública fornece um quadro que vai além dos limites da história acadêmica e do monopólio
narrativo do historiador, permitindo uma compreensão mais ampla da relação entre história e jogos
eletrônicos. Ela desafia o historiador a reconhecer as diversas maneiras pelas quais a história é
construída e destaca que ignorar essas formas pode limitar o alcance do trabalho público do
historiador (Carvalho 2024, 164).
A era digital, especialmente no mundo da conectividade das redes sociais, redefiniu nossa
compreensão sobre o público que consome a História, tornando difícil uma quantificação. Diante
a ampla audiência da internet, dos videogames e dos jogos eletrônicos, o historiador Jurandir Malerba
reconhece o potencial das novas tecnologias e questiona a necessidade de uma prática
historiográfica que estabeleça novos objetivos, métodos e formas narrativas (Malerba 2017, 142).
Por essa razão, o autor destaca que é função do historiador permanecer atento às formas de acesso
ao passado por um público não especializado/leigo.
Na minha análise, o público não especializado é composto por jogadores casuais que
interagiram com uma narrativa fictícia que propõe um enredo centrado na representação social da
doença. Dessa forma, o jogador casual interpreta e expressa publicamente suas emoções e sua
consciência histórica ao estabelecer conexões com doenças reais, em especial, a lepra. Como
Malerba afirma em outro texto, análises como essa, que exploram uma história popular/pública

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veiculada por meio de diferentes mídias, constituem “[...] um campo fundamental e permanente de
reflexão a exigir a atenção permanente dos historiadores acadêmicos” (Malerba 2014, 43).

Mortal Kombat em três décadas


A franquia de jogos eletrônicos Mortal Kombat estreou em 1992. Desenvolvido e publicado
pela editora Midway, Mortal Kombat (1992) foi idealizado pelo programador Ed Boon e o designer
gráfico John Tobias. A proposta era criar um jogo de luta no estilo de fantasia científica, visando
rivalizar com outro game de sucesso no mercado, Street Fighter II (1991). Trinta anos depois, Mortal
Kombat conta com 12 jogos principais e várias adaptações derivadas da temática. Do ponto de vista
econômico, a franquia vendeu cerca de 79 milhões de cópias, gerando um faturamento de
aproximadamente 5 bilhões de dólares (Ribas 2023). Além disso, o título expandiu-se para a
indústria de brinquedos, quadrinhos, cinema (Mortal Kombat [1995], Mortal Kombat, A Aniquilação
[1997] e Mortal Kombat [2021]) e televisão (Mortal Kombat: A conquista [1998]).
O que torna Mortal Kombat único em relação a outros jogos eletrônicos do gênero de luta,
como Street Fighter, Tekken, Soul Calibur, The King of Fighters, Dragon Ball Fighter Z, Super Smash Bros,
Skullgirls ou Marvel Vs Capcom, é sua proposta de violência extrema e explícita. Com muito sangue
jorrando durante as lutas, o jogo permite que, ao vencer um adversário, o jogador execute uma
série de comandos que, se bem-sucedido, realizará o conceito nomeado de “Fatality”. Fatalidade,
como sugere, consiste em uma cena final na qual o jogador vencedor assassina cruelmente seu
adversário – como arrancar sua cabeça com a coluna vertebral exposta ou seu coração, ainda
pulsando, com as mãos.
O impacto de Mortal Kombat na cultura e na sociedade mobilizou forças políticas para
restringir seu conteúdo. Na década de 1990, Joe Biden, atual presidente dos Estados Unidos e então
senador, juntamente com outros senadores como Bob Keeshan e Joseph Lieberman, lideraram
uma campanha para censurar jogos eletrônicos violentos, alegando que estes eram responsáveis
pela violência no país. Esse debate, no qual Mortal Kombat desempenhou um papel central, resultou
na implementação de classificações etárias para jogos eletrônicos (Woodcock 2020, 62; Church
2022, 72). Mortal Kombat também foi proibido em países como Alemanha, pela agência alemã de
vigilância da mídia juvenil, devido ao seu teor violento (Donovan 2010). Curiosamente, o sistema
de classificação não reduziu o desenvolvimento de jogos violentos. Pelo contrário, como relata
Donovan, “As vendas de Mortal Kombat e Night Trap dispararam durante as audiências” (Donovan
2010).
Seja do ponto de vista econômico, político ou cultural, os jogos eletrônicos são artefatos
culturais que demandam a atenção dos historiadores. São fontes históricas que proporcionam uma

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interpretação da sociedade pelos seus autores-programadores-editoras, e sua produção não está


desvinculada de diversas questões humanas. Considerar os jogos eletrônicos apenas como
entretenimento é negligenciar a potencialidade de uma fonte histórica tão rica quanto a literatura
ou o cinema.
O debate sobre se os jogos, eletrônicos ou não, são caminhos viáveis para pesquisas nas
ciências humanas é antiquado. Brian Sutton-Smith e Elliott Avedon (1971, 2), no início da década
de 1970, abordavam os jogos como fenômenos culturais autênticos, com espaço para serem
considerados como representações de comportamentos sociais e psicológicos distintos, ou mesmo
modelos conceituais para refletir acerca do comportamento humano. Esses autores percebiam os
jogos na esfera multidimensional, dotados de variados sentidos culturais aos quais eram aplicados
e suscetíveis. O teórico dinamarquês Jesper Juul (2001b) recorda que à época dessa coletânea, os
jogos de computadores ainda não eram tão populares. Desse modo, reconhece que coletâneas
como a de Avedon e Sutton-Smith tendem a organizar o campo, especialmente, como no presente
texto, no âmbito dos jogos eletrônicos, constituindo uma terceira onda de pesquisas sobre jogos.
Qualquer historiador atento à noção de artefato cultural pode compreender a relevância
dos jogos, em diferentes formatos, a partir de clássicos da historiografia, como o Homo Ludens, de
Johan Huizinga (2000). Em essência, o objetivo não consiste em sintetizar as potencialidades dos
jogos eletrônicos como fonte. De outro modo, é crucial transcender esse debate, conforme
salientado por Espen Aarseth (2003); do contrário, ficaremos perpetuamente no estágio
introdutório dos estudos de jogos eletrônicos para o ofício do historiador. Por isso, a proposta
busca abordar discussões que englobam a História das Ciências, os jogos eletrônicos e a História
Pública.
Na fantasia de Mortal Kombat, o universo está fragmentado em seis reinos: Earthrealm
(Plano Terreno), Chaosrealm (Reino do Caos), Edenia, Orderrealm/Seido (Reino da Ordem),
Netherrealm (Submundo) e Outworld (Exoterra). A conquista entre esses reinos ocorre por meio
de um torneio de artes marciais conhecido como “Mortal Kombat”. O reino desafiante que triunfar
em dez combates consecutivos contra o reino desafiado, ao longo de dez gerações, conquista o
direito de subjugar e integrar o reino derrotado ao seu próprio território.
John Tobias, um dos cocriadores do jogo, idealizou uma trama que entrelaça fragmentos
da mitologia chinesa com elementos característicos dos filmes de artes marciais (Church 2022, 19).
No entanto, não conseguiu evitar o uso de uma linguagem que abusa dos estereótipos culturais e
da sexualização de personagens femininas. A despeito de Mortal Kombat apresentar diversas
lutadoras poderosas, a sexualização persistiu por meio das vestimentas ao longo da evolução do

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jogo. Em uma entrevista ao conceituado site “mortalkombatonline.com”2, Tobias expressou


arrependimento pela abordagem adotada e esclareceu sua posição: “Não tenho nenhum problema
em me desculpar por isso. O único consolo que posso oferecer é que ambos os personagens tinham
arquétipos femininos muito fortes e atípicos... e pelo menos poderiam chutar seus colegas
masculinos” (Tobias 2012).
Durante os trinta anos de Mortal Kombat, a história dos personagens foi constantemente
modificada, resultando em confusões e lacunas na narrativa. A análise de Mortal Kombat 1 se justifica
devido à mudança de enredo e história dos personagens, sendo considerado o reboot mais drástico
da franquia, superando o de Mortal Kombat (2011)3. Em termos gerais, os jogos do gênero de luta
costumam apresentar narrativas genéricas, o que, em certa medida, explica a escassez de estudos
relacionados ao game para além das questões da violência extrema ou da estética cinematográfica.
Como apontado por David Church (2022, 25), a escolha dos personagens pelos jogadores é mais
influenciada pelas habilidades de luta do que por qualquer aspecto narrativo.
Em Mortal Kombat 1, as narrativas dos lutadores foram reiniciadas e enriquecidas,
explorando temas como saúde, racismo, gênero, espoliação, golpe de Estado, e diversos outros
contextos que estão em sintonia com o mundo real. A inclusão em relação ao capacitismo foi uma
preocupação dos desenvolvedores do game. Por essa razão, foi desenvolvido um “sensor de
proximidade”, uma espécie de “bip”, permitindo que os jogadores identifiquem o local em que
estão no cenário da luta e a distância em relação ao oponente. Além disso, os famosos “fatalitys”
contam com narração, de forma relativamente suave, para aprimorar a acessibilidade. Não à toa,
Mortal Kombat 1 recebeu a indicação para a premiação na categoria “Inovação em acessibilidade”,
no prestigioso prêmio The Game Awards (2023)4. Tais demandas sociais têm impulsionado a criação
e repaginação de diferentes jogos eletrônicos.
Essa abordagem tem se tornado cada vez mais comum, embora não seja totalmente
inovadora, pois “Um número crescente de jogos - incluindo Gone Home, The Last of Us e Papers,
Please – começaram a abordar a questão ética e temas mais maduros” (Woodcock 2020, 68). De
fato, é impossível dissociar a história dos videogames e jogos eletrônicos de discussões relacionadas
a estereótipos, racismo e questões de gênero (Cassel e Jenkins, 1998).
Minha análise concentra-se em Baraka, um personagem com uma aparência monstruosa
que, em versões anteriores, era retratado como membro de uma raça de mutantes nômades
chamada tarkatâneos. No reboot de 2023, Baraka é apresentado como um doente de tarkat que lidera

2 www.mortalkombatonline.com está na web desde 1998.


3
Popularizado como Mortal Kombat 9.
4 https://thegameawards.com/nominees/innovation-in-accessibility (Acesso em 17 de novembro de 2023).

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eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)

uma colônia de outros enfermos em busca de dignidade como indivíduos. Meu objetivo é destacar
como os desenvolvedores da narrativa lidam com a doença, observando a possibilidade de
relacioná-la a uma doença real, como a lepra. Também destaco conceitos de persuasão para se
pensar jogos eletrônicos como “retórica da empatia” ou mesmo as “retóricas processuais”. A
próxima seção abordará a evolução da narrativa do personagem ao longo de três décadas da
franquia, preparando o terreno para a análise, na última parte do texto, da representação social da
doença e do debate público sobre o personagem.
Uma vez que as narrativas dos primeiros jogos de Mortal Kombat eram limitadas, o material
paratextual extra, derivado de histórias em quadrinhos, guias de estratégias e os intratextos, nas
breves biografias dentro do jogo, oferecem uma alternativa para traçar o histórico de
desenvolvimento dos personagens. Do material paratextual utilizei como fonte seis edições da
revista Sangue e Trovão (1994), a revista Mortal Kombat Especial: Baraka (1996), assim como biografias
e diálogos intratextuais de jogos específicos da saga: Mortal Kombat II (1993), Mortal Kombat Gold
(1999), Mortal Kombat: Deception (2004), Mortal Kombat: Armageddon (2006), Mortal Kombat vs. DC
Universe (2008), Mortal Kombat (2011), Mortal Kombat 1 (2023). Ademais, realizei um levantamento
de comentários de jogadores casuais das plataformas Youtube e Reddit com a finalidade de observar
suas impressões sobre a doença, o personagem, a empatia e possíveis aproximações históricas com
a lepra.

Baraka: o monstro cruel de Mortal Kombat

Desde o primeiro jogo da franquia, a proposta de gameplay de Mortal Kombat era bastante
simples. Os jogadores enfrentavam uma sequência de personagens, escalando uma torre de
progresso até alcançar o ponto mais alto, onde encontrariam o subchefe e o chefe. Na torre do
Mortal Kombat II (1993) os jogadores se deparavam pela primeira vez com Baraka, um humanoide
com presas gigantes, deformações na pele e lâminas afiadas saindo de seus braços. A batalha ocorre
no cenário conhecido como “The Dead Pool” (Piscina da Morte), um ambiente que lembrava um
esgoto ou calabouço, repleto de correntes com ganchos de açougue pendurados no teto e uma
piscina de ácido mortal ao redor. O cenário perfeito para a morada de uma besta.

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Figura 1 — Descrição de Baraka em Mortal Kombat II (1993)


Baraka é apresentado como um guerreiro habilidoso de uma raça nômade que residia nas
terras devastadas de Outworld (Exoterra). Graças às suas destrezas de combate, ele foi liderado pelo
vilão Shao Kahn e encarregado de atacar o Templo Shaolin, local de origem do protagonista Liu
Kang. É importante notar que, até antes do Mortal Kombat 1, como veremos, a descrição de Baraka
o apresentava não como um doente, mas como membro de uma raça nômade sanguinária.
Para descobrir o desfecho de Baraka, o jogador precisa selecioná-lo como personagem e
concluir a torre de progresso, derrotando os subchefes Shang-Tsung, o shokan Kintaro e o chefe
final, Shao Kahn. Ao superar esse trio, o ending5 de Baraka é revelado: anteriormente aliado de Shao
Kahn, ele é tomado por uma fúria de ataques violentos devido às suas ações imprevisíveis. Baraka
derrota tanto os guerreiros da Terra quanto seus superiores. Após vencer o vilão, a raça de mutantes
liderada por Baraka se rebela contra as tropas espalhadas de Kahn, assumindo o controle de
Outworld, com as regras agora proclamadas pelo recém-coroado Rei Baraka.
Como se pode observar, Mortal Kombat II fornecia poucas informações sobre suas
personagens, deixando aos jogadores a tarefa de imaginar quaisquer características adicionais.
Baraka não fez parte da sequência da franquia, Mortal Kombat III (1995), e sua atualização Ultimate
Mortal Kombat III (1995). Sua reintrodução ocorreu na segunda atualização de Mortal Kombat III,
intitulada de Mortal Kombat Trilogy (1996). Nesta versão, ele é apresentado como um poderoso aliado
do antagonista Shao Kahn. Seu ending é mais discreto em comparação com Mortal Kombat II (1993).
Na cena final, Baraka ataca um Shao Kahn enfraquecido, mas, temendo represálias, foge de volta
para as ruínas nômades de seu povo.
Com poucas informações ingame, a franquia Mortal Kombat expandiu-se para os quadrinhos
em duas versões principais. Uma delas, canônica, foi editada Midway, intitulada de Collector’s Edition
Comic Book (1993), que contou com a redação e arte de um dos criadores de Mortal Kombat, o
designer gráfico John Tobias. A outra série foi uma (re)imaginação de Mortal Kombat em quadrinhos

5
Cada personagem tem uma história revelada dos acontecimentos após derrotar o chefe final do jogo.

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publicada pela editora americana Malibu Comics6, com sede na Califórnia. A série de quadrinhos da
Malibu Comics é praticamente toda escrita pelo roteirista Charles Marshall.
Na edição da Midway (1993), Baraka desempenha um papel discreto na trama, atuando
como guerreiro-servo de Shao Kahn. Por sua vez, a Malibu Comics, com liberdade criativa na
história, ofereceu novos desenvolvimentos a alguns personagens, como na série de seis volumes
Sangue e Trovão (1994). A editora estadunidense também dedicou algumas edições a personagens
específicos, incluindo o Baraka.
No Brasil, as edições de Mortal Kombat da Malibu Comics eram editadas e distribuídas pela
Editora Escala, fundada em 1992, de propriedade do empresário Hercílio de Lourenzi. A Editora
Escala foi responsável por diversas outras edições em português da franquia: Mortal Kombat: Sangue
e Trovão (6 volumes - 1994), Mortal Kombat Goro: O príncipe das Trevas (3 volumes - 1994), Mortal
Kombat – Edição Torneio (1955), Mortal Kombat: Battlewave (4 volumes – 1995), Mortal Kombat: U.S.
Special Forces (2 volumes - 1995) e MORTAL KOMBAT II: Revista Oficial de Colecionador (4 volumes
– 1995). Adicionalmente, houve uma sequência de números especiais focados em personagens
específicos: Mortal Kombat Special: Raiden e Kano (2 volumes - 1995), Mortal Kombat Special: Kitana e
Mileena (1996), Mortal Kombat Special: Kung Lao (1996) e Mortal Kombat Special: Baraka (1996).
Para a análise em questão, destaco dois materiais: o primeiro volume de MORTAL
KOMBAT II: Revista Oficial de Colecionador (1995) e a edição Mortal Kombat Special: Baraka (1996). A
primeira revista fornece informações sobre a produção do jogo, entrevistas com os criadores,
curiosidades e dicas de jogabilidade. Baraka é apresentado como um “nômade de outro mundo”,
um “maníaco” e um “horrível mutante”, notável por sua monstruosidade. A característica mais
marcante de Baraka é sua animalidade, a ponto de ele não ser capaz de falar, apenas emitir
grunhidos.
Na edição Mortal Kombat Special: Baraka (1996) houve uma tentativa de conferir ao
personagem algum protagonismo, distanciando-o da simples condição de vassalo de Shao Kahn.
Na narrativa elaborada por Charles Marshall, a raça de Baraka é caracterizada pela perseguição dos
soldados de Shao Kahn. Na perspectiva de Marshall, Baraka assume a posição de líder da sua raça
(tarkatâneos), sendo considerado o mutante mais forte, selvagem e sanguinário. Ele demonstra
racionalidade ao decidir com quem faz alianças, seja com o maligno Shao Kahn ou mesmo com os
guerreiros do plano terreno, como Kitana, Kung Lao e Sub-Zero. No enredo, a raça de Baraka está
sendo dizimada, e a ele cabe a proteção de uma criança tarkatânea chamada Nania, destinada a

6
Foi vendida para a Marvel Comics em 1994 (Ver: https://www.deseret.com/1994/11/16/19142815/marvel-
entertainment-buys-up-malibu-comics (Acesso em 14 de outubro de 2023).

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influenciar o futuro de Outworld. Apesar da interpretação bestial, Baraka foi concebido por Marshall
como um protetor de seu povo, com um certo senso de honra.
A próxima aparição de Baraka em jogos eletrônicos ocorreu em Mortal Kombat Gold (1999)7,
exclusivo para o videogame Dreamcast. Sua representação mantém a essência de um nômade que
percorre vários reinos, mas, desta vez, ele se alia a outro vilão para subjugar seus inimigos, o
feiticeiro Quan Chi. O ending de Baraka não é triunfante, mas trágico. Ao vencer seus inimigos em
cooperação com Quan Chi, não resta mais nenhum reino para governar, pois todos estão mortos.
Enfurecido, Baraka ataca Quan Chi. Para a sua surpresa, tratava-se de uma réplica do feiticeiro. O
verdadeiro Quan Chi, observando o desdobrar da cena, aparece por trás de Baraka e o explode em
pedaços. Novamente, a narrativa de Baraka é sombria, caracterizada por seus impulsos vingativos
e pela monstruosidade.
Em 2004, a Midway lançou Mortal Kombat: Deception. Após a ausência no jogo anterior, Mortal
Kombat: Deadly Aliance (2002), Baraka retorna caracterizado como um tarkatâneo, parte de uma raça
selvagem de guerreiros nômades. Como novidade no enredo, sua raça foi forjada a partir de
habitantes de Outworld e demônios do submundo, com o objetivo claro de matar e conquistar. O
ending de Baraka em Mortal Kombat: Deception, mais uma vez, não é notável. Se resume à busca por
matar Mileena, responsável por envenenar seu exército de tarkatâneos.
A sequência da franquia continua com Mortal Kombat: Armageddon (2006). Em resumo, no
desfecho de Baraka ao vencer o Armageddon e o poderoso chefe Blaze, ele decide não mais servir,
mas liderar. Baraka ressuscita Shao Kahn e Onaga, dois dos maiores vilões da série, oferecendo-
lhes a opção de se tornarem seus lacaios. Ambos recusam e atacam Baraka, que, por sua vez, os
derrota. No final, ele escolhe Mileena, uma meia-tarkatânea, para governar ao seu lado. Este
desfecho se destaca pela originalidade em comparação com os anteriores, uma vez que enfatiza a
dignidade de Baraka, indo além de suas características físicas. Isso é evidenciado especialmente em
sua determinação de deter o poder e governar.
Mortal Kombat vs. DC Universe (2008) se trata de um crossover8 com heróis e vilões da DC
Comics. Os tarkatâneos são retratados como mutantes cruéis, sendo Baraka considerado o mais
brutal da raça. Ele atua como carrasco pessoal no exército maligno de Shao Kahn, impulsionado
por uma motivação vingativa. O ending pode ser resumido como a busca de Baraka e sua raça pela
vingança, almejando dominar todas as outras.

7
Embora exclusivo para o videogame Dreamcast, o jogo é considerado uma expansão de Mortal Kombat 4 (1997), com
a inclusões de novos personagens, como Baraka, e novas arenas de combate.
8
Quando personagens de diferentes ficções interagem em um contexto único.

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Por fim, acontece o primeiro reboot, Mortal Kombat (2011). Apesar de dar continuidade à
trama de Armageddon, sua proposta é retornar às raízes dos três primeiros jogos da franquia. A
narrativa de Baraka mantém-se estreitamente vinculada àquela apresentada em Mortal Kombat vs.
DC Universe. Ele é retratado como um mutante nômade, feroz e cruel, que habita com sua raça os
desertos de Outworld. Novamente, sua condição é a de vassalo do vilão Shao Kahn. No desfecho,
Baraka revela mais um aspecto da servidão de sua raça ao mal. Ele descobre que o feiticeiro
metamorfo Shang Tsung estava se passando por Shao Kahn. Baraka mata Shang Tsung, e sua raça
ascende como a preferida do imperador.
Ao relembrar a participação de Baraka nos principais jogos da série, seja na linha do tempo
que se inicia em Mortal Kombat (1992) e vai até Mortal Kombat: Armageddon (2006), ou no reboot de
Mortal Kombat (2011) que culmina em Mortal Kombat 11 (2019), sua história permanece praticamente
a mesma. Baraka é retratado como um serviçal do mal, pertencente a uma raça nômade e cruel,
cuja sede de sangue e o espírito de vingança o perseguem. Mesmo com um enfoque mais
humanizado nos quadrinhos, em Mortal Kombat Special: Baraka (1996), de Charles Marshall,
elementos de ignorância, animalidade física e moral, e vingança alimentam a narrativa da
personagem. Contudo, sua história terá uma reviravolta a partir do novo reboot de Mortal Kombat 1
(2023).

A redenção de Baraka pela representação da doença

Mortal Kombat 1 marca o segundo reboot da história da franquia. Ed Boon, o criador da série,
justificou a necessidade de uma renovação completa para todos os personagens: “Todos eles serão
apresentados novamente, com novas características, relacionamentos e tudo mais. Serão os
personagens que você conhece, e ama, mas de uma maneira completamente diferente” (Boon
2023). A promessa foi cumprida, e a trama incorpora várias questões identitárias, incluindo o
relacionamento homoafetivo entre as personagens Mileena e Tanya. Além disso, o jogo abandonou
parte do sexismo associado às roupas femininas, colocando ênfase no poder de luta e protagonismo
das mulheres na narrativa.
Baraka sofreu uma transformação completa em Mortal Kombat 1. Na lista de personagens,
sua principal característica é a preservação dos tarkatâneos. No entanto, ao contrário dos outros
jogos da franquia, os tarkatâneos não são mais uma raça nômade e bestial de Outworld, mas sim
indivíduos doentes de tarkat. O roster oficial conta a sua sinopse:

Baraka já foi um respeitado mercador da Exoterra. Mas essa vida acabou em um instante quando
ele contraiu a temida doença Tarkat. Incurável, contagiosa e causadora de graves deformidades
físicas, a Tarkat transformou Baraka em um monstro. Ele foi expulso e condenado a viver seus dias
em uma colônia de aflitos. Quando Baraka chegou, a colônia estava em desordem. Seus

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eletrônico Mortal Kombat 1 (2023)

companheiros tarkatâneos haviam desistido e estavam prontos para morrer. A desesperança deles
acendeu um fogo no coração de Baraka. Ele sabe que, enquanto lutar, nunca será verdadeiramente
uma vítima (https://www.mortalkombat.com/pt-br/roster - Acesso em 15 de setembro de 2023).
No curso da história, além de ser um rico mercador que comercializava seus produtos ao
longo de toda a costa de Fartakh, Baraka é revelado como um ex-oficial da Exoterra, pertencente
ao Tribuno do Alvorecer. Baraka contraiu a doença tarkat, sendo banido para uma colônia de
doentes e condenado a passar o resto da vida em isolamento. Ao chegar à colônia e testemunhar o
sofrimento daquelas pessoas, passou a liderar os doentes em busca de uma melhor condição de
vida.

Figura 2 — Modo História em Mortal Kombat 1 (2023). Baraka diz: “Somos vítimas da tarkat”.
A takart foi apresentada como uma doença com baixo grau de contágio, mas perigosa em
exposição prolongada. Inicialmente, seu efeito é a desfiguração e debilitação. Gradualmente,
transforma o doente em criaturas sanguinárias. Não há cura, sendo a única libertação a morte do
doente.
O final de Baraka em Mortal Kombat 1 representa uma redenção para o personagem, que
agora encontra um propósito e um desejo de zelar por sua raça de doentes. Ao contrário de outros
desfechos nos quais ele agia como capanga, morria ou planejava vingança, na nova linha do tempo,
ele busca uma audiência com a imperatriz da Exoterra para expor as condições penosas de seu povo
doente e solicitar ajuda. A imperatriz Mileena, também doente de tarkat, embora essa informação
permaneça em segredo para seu povo, concorda em auxiliar a colônia de Baraka. --
A abordagem das diversidades tem sido uma prática constante de alguns estúdios de jogos
eletrônicos. Um exemplo notável é o jogo The Last Of Us: Parte II (TLOU2), no qual o jogador
assume o controle de uma personagem lésbica. De acordo com Kimberly Dennin e Adrianna
Burton (2023), TLOU2 busca destacar a diversidade, apresentando personagens de diversas origens
étnicas, abordando o capacitismo, explorando problemas relacionados à saúde mental e incluindo
personagens queer e trans. No entanto, as autoras observam que, em vez de focar na centralidade

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do romance lésbico e em outras representações queer, na prática, a empatia gerada não funciona
como uma experiência genuína, mas sim como uma empatia orientada para um público não-queer.
A crítica à “teoria da empatia” não é exatamente uma novidade. A pesquisadora Bonnie
Ruberg tem questionado a forma como os videogames, embora muitas vezes bem-intencionados
com a “retórica da empatia”, acabam promovendo a apropriação e o consumo de experiências
marginalizadas (Ruberg 2020, 2). Essa “colonização do afeto”, como mencionado por Ruberg, está
intrinsicamente ligada a questões políticas e de mercado, convertendo a empatia em uma
mercadoria para os jogos eletrônicos. Em sua crítica, a indagação sobre a “retórica da empatia”
procura examinar como as narrativas dos videogames delineiam sua intenção política e interroga a
quem essas narrativas verdadeiramente servem (Ruberg 2020, 5). Na sua visão, essa função social
do jogo eletrônico deveria ir no sentido de:

More valuable than a video game that allows players to identity with someone else is a game that
requires players to respect the people with whom they cannot identify. The rhetoric of empathy
promises that video games can help us understand one another. Yet it is equally important, if not
more important, for video games to show us we can value those we do not understand (Ruberg
2020, 15).
De fato, Ruberg considera ultrapassada a interpretação de autores como Steve Wilcox
(2014), os quais acreditam na empatia como habilidade e na capacidade dos videogames de treiná-
la. Wilcox, por sua vez, defende a potencialidade dos videogames em desenvolver o conhecimento
do jogador para contextualizar as experiências e informações de diferentes pessoas. Já o escritor e
artista visual Dan Solberg (2016) vai além, questionando se os jogadores que se dedicam a essa
modalidade estão verdadeiramente preocupados com o enredo em si ou se ocupam apenas em
vencer níveis e alcançar pontuações máximas. Solberg concorda que a empatia por si só não é
suficiente, sendo necessário realizar ações no “mundo real” como resultado mais importante.
Mortal Kombat 1, devido às fatalidades e à natureza do gênero de luta, claramente não se
enquadra na categoria de “empathy game”, como entendido por Ruberg. No entanto, alguns enredos
permitem essa aproximação, como o caso de Baraka e sua enfermidade. Penso que a “retórica
processual” de Ian Bogost é mais adequada para compreender o que está dentro dos parâmetros
do jogo. São esses parâmetros que estabelecem uma lógica processual e delineiam os limites para o
jogador durante a interatividade. Dentro dessa lógica, como explicado por Bogost (2007, 8), podem
coexistir operações de sistemas culturais, sociais e históricos. Para ter significado, afirma o autor, é
essencial compreender o que motiva os atores humanos na tentativa de entender a lógica do
conjunto dos sistemas culturais. Partindo do que ele define como “lacuna de simulação”, Bogost
destaca que “A procedural model like a videogame could be seen as a system of nested
enthymemes, individual procedural claims that the player literally completes through interaction”

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(Bogost 2007, 8). Nessas circunstâncias, a interatividade oferece uma interpretação da tarkat como
uma doença inserida em um código cultural compreensível para o jogador casual.
Ao considerar o quadro clínico e a repulsa social gerada pela fictícia doença tarkat, a
aproximação mais coerente com o mundo real parece ser a lepra. Assim como a lepra, a tarkat
debilita, deforma a pele e a fisionomia, é contagiosa, incorpora a mitologia de ser considerada um
castigo divino, é socialmente estigmatizada com a prática de isolamento em colônias, e seus doentes
enfrentam repressão em diferentes níveis da sociedade. Alguns diálogos entre personagens do jogo
ajudam a compreender essa analogia.
Em primeiro lugar, a tarkat, assim como a lepra, representava uma punição divina e de
caráter moralista:

Diálogo 1:
Baraka: Apanhar tarkat não é uma falha moral.
Sindel: Não, mas evidencia a falta de cuidado (Mortal Kombat [2023]).
Diálogo 2:
Baraka: Por que Liu Kang deixa pessoas boas sofrerem?
Geras: Nem mesmo ele controla tudo, Baraka (Mortal Kombat [2023]).
A ideia de que algumas doenças têm uma razão punitiva, alinhada à moral ou a castigos
divinos, é antiga. Susan Sontag (1984) lembra que na Idade Média, o leproso era um tema social
conectado à corrupção e um símbolo de decadência. A sociedade medieval, conforme mencionado
pelo pesquisador Gabriel Pinto “[...] encarava os leprosos com medo, desconfiança e, sem dúvida,
ódio. O contato com eles era indesejado e a lepra era vista como a pior das desgraças possíveis”
(Pinto 1995, 136). A historiadora Dilma Costa também argumenta que a medicina medieval
integrava a etiologia da lepra a fatores como topografia, predisposição, alimentação e clima (Costa
2007, 28). Assim, “Na hipótese venérea a lepra se configurava como uma doença física, mas
também moral, associando à tradição religiosa à medicina medieval” (Costa 2007, 30). Os dois
diálogos de Baraka trazem à tona a religiosidade e a moralidade.
No contexto religioso bíblico, a lepra historicamente foi considerada uma metáfora de
impureza (II Reis, 15:5) ou um castigo divino (Números, 5:2). Esse modelo religioso aparece em
Mortal Kombat 1. No primeiro diálogo, Baraka explica à rainha Sindel, do reino da Exoterra, que sua
doença não representa uma falha moral. No segundo diálogo, Baraka conversa com Geras, um
personagem guardião da ampulheta do tempo, e questiona por que Liu Kang, o Deus criador
daquela linha do tempo, permitiu a existência da tarkat e foi conivente com a morte de pessoas
boas. Geras responde que nem mesmo um Deus pode controlar todas as coisas.
O isolamento compulsório do doente, característico na história da lepra, foi outro aspecto
retratado na narrativa de Mortal Kombat 1 em relação à fictícia doença tarkat. A historiadora Vívian

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Cunha (2005, 1) menciona que na antiguidade os doentes de lepra eram expulsos da cidade,
enquanto na Idade Média, muitos leprosos passavam por rituais que os desqualificavam como
membros plenos da sociedade.
Representações sociais da lepra e a necessidade do seu isolamento sobreviveram ao longo
dos séculos, estabelecendo uma “tradição do isolamento” para o doente de lepra. Tanto antes
quanto depois da descoberta do bacilo causador da doença, o isolamento era uma medida adotada
em diversas partes do mundo, incluindo a Europa e países como Moçambique, na África
(Zamparoni 2017). Vívian Cunha revela que o isolamento da lepra era uma recomendação
incontornável para os cientistas desde a Primeira Conferência Internacional de Leprologia (1897),
inclusive proposta pelo dermatologista norueguês Gerhard Hansen, responsável pela identificação
do bacilo Mycobacterium leprae. Como o método de transmissão da doença ainda era indefinido pela
ciência na época, a autora afirma que a ideia do isolamento estava presente nas práticas médicas de
profilaxia: “[...] a moldura cultural milenar do estigma, embora não mais presente nos discursos
daqueles responsáveis pela profilaxia da lepra, ainda aparecia transcendente na estratégia do
isolamento” (Cunha 2005, 5). De diferentes formas, como o estabelecimento de asilos-colônias no
século XX, a ideia do isolamento do doente persistiu e contribuiu para a interpretação social das
doenças por meio de seus estigmas. Vale ressaltar que a bíblia sagrada, em seu Antigo Testamento,
também preconizava o isolamento: “Ordene aos israelitas que mandem para fora do acampamento
todo aquele que tiver lepra, ou que tiver um fluxo, ou que se tornar impuro por tocar um cadáver”
(Números, 5:2). Alguns diálogos entre Baraka e outras personagens em Mortal Kombat 1 tratam do
isolamento da tarkat:

Diálogo 3:
Mileena: A rota deveria estar livre. Não dava para adiar?
Li Mei: Devo permitir que tarkatâneos contaminem a cidade, Alteza? Os capturados estavam
escondendo eles, em vez de entrega-los para a quarentena.
Mileena: Os seres terrenos não podem saber nossos segredos, Li Mei (Diálogo em Mortal Kombat 1
[2023])

Diálogo 4:
Sindel: tarkat não pode crescer livremente.
Baraka: Nos enclausurar não vai resolver a questão (Diálogo em Mortal Kombat 1 [2023]).

Diálogo 5:
Baraka: Arrisquei a vida pela Exoterra, imperatriz.
Sindel: E agora você a serve vivendo longe (Diálogo em Mortal Kombat 1 [2023]).

Diálogo 6:
Reiko: Volte para sua colônia imunda.
Baraka: Sou livre para ir onde quiser, Reiko (Diálogo em Mortal Kombat 1 [2023]).

Diálogo 7:
Li Mei: A lei exige que os infectados sejam isolados.
Baraka: Ela exige que sejamos tratados como monstros? (Diálogo em Mortal Kombat 1 [2023]).

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Diálogo 8:
Baraka: A tarkat não tira meu valor como oponente
Omni-Man: Não vou tolerar que espalhe essa peste. (Diálogo em Mortal Kombat 1 [2023]).
O diálogo 3, apresenta duas figuras importantes no reino da Exoterra: a princesa Mileena,
filha da rainha Sindel, que simboliza o componente político-administrativo da monarquia, e Li Mei,
a Primeira Condestável e líder do grupo de guerreiros de condestáveis de Sun Do, a força da ordem
da capital da Exoterra, desempenhando o papel de aparato policial. No contexto da história, doentes
de tarkat estavam sendo levados para a quarentena quando a Exoterra recebia a visita de lutadores
do reino da Terra. Revelar os tarkat aos visitantes seria uma atitude condenável, uma vez que
exporia as vulnerabilidades e problemas do reino.
Os diálogos 4, 5 e 7 endossam a prática do isolamento dos doentes como uma política de
Estado da Exoterra. Por sua vez, o diálogo 6, entre o Reiko, leal ao general Shao e segundo na linha
sucessória de comando, revela desprezo pelos doentes. Reiko exige que Baraka retorne à sua
“colônia imunda”.
No diálogo 8, ocorre uma interação entre Baraka e um personagem que não pertence
originalmente à franquia Mortal Kombat. A partir de Mortal Kombat (2011), alguns lutadores
convidados foram incorporados, como Freddy Krueger, Kratos, Jason, Exterminador do Futuro,
Predador, Leatherface, Rambo, Alien, Robocop, entre outros. No Mortal Kombat 1, o primeiro
convidado adicionado foi o super-herói Omni-Man dos quadrinhos da série Invincible (Editora Image
Comics). Omni-Man considera a doença de Baraka uma praga e pretende exterminá-lo para erradicá-
la. Nesse contexto, assim como no diálogo com Reiko, a doença é percebida como uma
característica de uma população “anormal”, cujos corpos não se encaixam nos padrões sociais, e
devem ser exterminados (Zamparoni 2017, 33).
Como os jogadores interpretaram essa redefinição de Baraka? Há algum apelo em relação
à doença? Novamente, é necessário ser cauteloso em relação à “retórica da empatia”, uma vez que
o objetivo não é afirmar que os desenvolvedores pretendiam despertar conscientização sobre
doenças e doentes no mundo real ou sugerir qualquer ação de assistência. Os videogames possuem
seu próprio sistema de regras, autorreferência, como Juul (2001a) nos aponta, composto por uma
estrutura descritiva e normativa. De acordo com o filósofo Joshua Wood (2018, 6), essa natureza
autorreferencial proporciona uma percepção de mundo cujo conteúdo não pode ser transferido
para o mundo real, mas sua estrutura sim. Em resumo, Wood (2018, 4) argumenta que os
videogames impactam o jogador durante a interatividade, e suas experiências no jogo acabam sendo
levadas e moldam sutilmente a maneira como abordam o mundo. Esses impactos, conforme o
autor, quando ocorrem, dependem da cultura e do contexto.

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Dessa forma, busquei realizar uma triagem da percepção de jogadores casuais, ou seja,
aqueles que não são jogadores profissionais, mas sim espectadores que acompanharam a história
de Baraka em Mortal Kombat 1 e expressaram suas opiniões em redes sociais. A triagem foi
conduzida nos espaços destinados a comentários dos usuários na plataforma de vídeos online
YouTube e no fórum internacional Reddit. Duas perguntas orientaram minhas análises nessa
garimpagem: 1 - O fato de Baraka não ser mais retratado como um monstro sanguinário nômade,
mas sim como um comerciante afligido por uma doença mortal, na qual sua família também foi
vítima, e agora líder de uma colônia em isolamento, teve algum impacto na empatia com o
personagem? 2 - Como os jogadores se manifestam em relação à doença fictícia?
Do YouTube, selecionei comentários em quatro vídeos específicos que abordam a história
de Baraka, sendo dois vídeos estrangeiros e dois vídeos em língua portuguesa, especialmente
direcionados à comunidade brasileira. São eles, respectivamente: “GamelutioN”, um produtor de
conteúdo que explora a evolução dos jogos de lutas, enredos, entre outros, dedicando uma parte
significativa à série Mortal Kombat. No momento da redação deste artigo, o canal possui 257 mil
seguidores; “Shirrako”, outro produtor de conteúdo que abrange uma variedade de jogos
eletrônicos. Seu canal possui 2 milhões de inscritos; “Max Vianna”, um produtor de conteúdo
especializado em Mortal Kombat. O brasileiro, especialista na história da franquia, possui um canal
que soma mais de 622 mil inscritos; “Alpha Gamer”, um canal que cria conteúdo sobre jogos de
lutas, com foco em Mortal Kombat e Injustice. O canal conta com 27 mil inscritos.
No canal de “GamelutioN” selecionei o vídeo Baraka & Mileena Share their Experience with
tarkat Disease9. Em “Shirrako”, Mortal Kombat 1 - How Baraka Became Monster Scene (MK1 2023)10. De
“Max Vianna”, MK1: FINAL DO BARAKA11. Por último, FALAS DO BARAKA COM OS
PERSONAGENS - MORTAL KOMBAT 1, do produtor de conteúdo “Alpha Gamer”12.

9 https://www.youtube.com/watch?v=LHNLMdQzAHE&t=3s (Acesso em 25 de outubro de 2023).


10 https://www.youtube.com/watch?v=cF4zzvVF4oU (Acesso em 2 de novembro de 2023).
11 https://www.youtube.com/watch?v=N29VutZ7Bp8&t=1s (Acesso em 4 de novembro de 2023).
12 https://www.youtube.com/watch?v=QA2KBTbSsP4&t=246s (Acesso em 5 de novembro de 2023).

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Figura 3 — “GamelutioN”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LHNLMdQzAHE&t=3s (Acesso


em 25 de outubro de 2023).

Figura 4 — “Shirrako”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cF4zzvVF4oU (Acesso em 2 de


novembro de 2023).

Figura 5 — “Max Vianna”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=N29VutZ7Bp8&t=1s (Acesso em 4


de novembro de 2023).

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Figura 6 — “Alpha Gamer”, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=QA2KBTbSsP4&t=246s Acesso


em 5 de novembro de 2023).

Os principais comentários destacados nos canais do YouTube revelam que a reinterpretação


de Baraka teve um impacto emocional positivo entre os jogadores casuais. Um dos aspectos mais
significativos é a relação estabelecida entre a doença e a narrativa do personagem. A presença da
enfermidade trouxe uma sensibilidade a um personagem que, ao longo de décadas na franquia, era
caracterizado por brutalidade e uma aparência bestial. Agora, ele se transformou em um líder
protetor e humanizado. Isso fica evidente no comentário do usuário “halfmoonbr01”, que
menciona: “[...] ele era apenas um monstro nos outros Mortal Kombat, agora ele ganhou uma
personalidade muito forte. É legal saber da determinação dele em restabelecer e curar seu povo”.
Um usuário do canal estrangeiro “GamelutioN”, identificado como “harry__vince”, compreendeu
essa reinvenção da seguinte forma:

A história de Baraka é uma das razões pelas quais eu realmente gosto desta nova era, seu personagem
agora não se parece em nada com um traficante incivilizado e sedento de sangue como era no jogo
anterior. Pelo menos ele era um dos mocinhos do MK11. Mas ainda assim, considerar como eles
fazem dele um herói literal agora é uma redenção total. Eu estou realmente feliz (“harry__vince”,
2024).
Praticamente todos os comentários analisados demonstraram aprovação em relação à
alteração na história de Baraka, na qual a doença também desempenha um papel central. Os
usuários não encaram a doença como uma punição moral, mas sim como uma fatalidade. Essa
interpretação reflete, por exemplo, a leitura de Sontag (1984), em que a doença fictícia tarkat evoca
sentimentos de compaixão.
É possível observar que alguns usuários buscaram estabelecer paralelos com doenças reais,
como evidenciado pelo usuário “sroliveira3493”, que comparou os doentes de tarkat a uma
“autêntica Ordem de São Lázaro na Exoterra”. Seu paralelo é intrigante, pois aproxima Baraka e

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seus guerreiros tarkatâneos à Ordem de São Lázaro. De acordo com David Macombe, estudioso
dos guerreiros leprosos da Ordem de São Lázaro, na Baixa Idade Média, o convento de São Lázaro
tornou-se um local comum para cavaleiros leprosos, especialmente os Templários, possivelmente
devido às suas ligações aristocráticas (Macombe 2003, 11). A ideia de colocar a doença como central
para a história e personalidade de Baraka permite que ele transcenda seu papel secundário como
mero subordinado de vilões, destacando-se e gerando empatia entre os jogadores.
Em fóruns estrangeiros, como o Reddit, a percepção foi semelhante, inclusive com
referência à lepra:

Figura 7 — Fórum Reddit. Disponível em:


https://www.reddit.com/r/MortalKombat/comments/156mygx/what_does_everyone_think_of_baraka_in_mk1/
(Acesso em 6 de outubro de 2023).

Figura 8 — Fórum Reddit. Disponível em


https://www.reddit.com/r/MortalKombat/comments/156a7g7/baraka_is_now_just_a_man_suffering_from_a_fat
al/ (Acesso em 7 de outubro de 2023).

Quanto aos usuários do Reddit, Baraka adquiriu uma aura mais simpática, e a introdução da
doença foi crucial para a aceitação dessa nova versão. Um usuário, identificado como

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“HarveryDent”, chegou a descrever Baraka como um super-herói leproso. Contudo, as reações às


mudanças na história de Baraka não foram unânimes. Para muitos jogadores, a caracterização do
personagem foi comprometida e passou a ser incompatível com a concepção de um monstro
malévolo ávido por sangue. Em uma postagem no Reddit, o usuário conhecido como “TheOldStag”
expressou insatisfação, afirmando que Baraka se transformou em um leproso triste.13

Considerações finais
O objetivo do artigo foi explorar como as doenças podem ser conceptualizadas nos jogos
eletrônicos. No caso em análise, a doença fictícia tarkat, presente em Mortal Kombat 1, possui uma
conexão representativa com a lepra. A doença fictícia e a doença real são integradas em uma
linguagem narrativa coesa, facilitando para o jogador estabelecer paralelos entre o jogo e o mundo
real.
Uma das questões levantadas foi se essa representação se encaixaria na construção de um
jogo dedicado à polêmica “retórica da empatia”. Embora seja um conceito amplamente discutível,
como demonstrei, a triagem por meio das redes sociais revelou que os jogadores casuais
estabeleceram uma conexão entre a lepra e a tarkat, o que favoreceu uma mudança na concepção
em relação ao personagem Baraka. Anteriormente, na franquia de mais de trinta anos de Mortal
Kombat, Baraka era percebido como um monstro nômade sedento por vingança e sangue,
subserviente a quase todos os vilões. No entanto, em Mortal Kombat 1, sua imagem foi transformada:
ele agora é apresentado como um ex-mercador e guerreiro que perdeu sua família devido à tarkat,
liderando uma colônia de doentes em busca de dignidade.
Minhas conclusões não necessariamente indicam que o jogador casual, diante de uma
situação real envolvendo um doente contagioso, como no caso da lepra, “calce o sapato do outro”,
expressão popular para a empatia. No entanto, a imagem de um doente em busca de dignidade
para sua colônia gerou simpatia entre os jogadores casuais, especialmente quando comparada às
histórias de outros personagens. O que se pode extrair das fontes é que o jogo despertou
sensibilidade em relação à doença, e os jogadores expressam publicamente como essa sensibilidade
transforma a percepção sobre o personagem. A maneira como publicizam as suas conclusões nos
foram virtuais revela como o aspecto do doente altera a percepção de uma personagem
caracterizada anteriormente pela monstruosidade.
Do ponto de vista dos estudos sobre “retórica processual” nos videogames, conforme
proposto por Ian Bogost, essas pesquisas enriquecem meu argumento ao delimitar o videogame e

13
https://www.reddit.com/r/MortalKombat/comments/16ogf1d/i_hate_that_all_the_evil_characters_are_now/
(Acesso em 5 de outubro de 2023).

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os jogos eletrônicos como artefatos culturais capazes de conter processos persuasivos. Essa
perspectiva é essencial para a definição cultural das ações nos jogos eletrônicos e seus códigos
internos. A retórica processual presente em Mortal Kombat 1, especialmente em relação ao
personagem Baraka, busca torná-lo mais afetivo, dotando-o de características morais como honra,
liderança e proteção. A introdução da doença como elemento narrativo procura afirmá-lo nessas
condições, exercitando a simpatia, e expressando, por meio da programação, padrões específicos
de valor cultural, como destacado pelo conceito de “retóricas processuais” (Bogost, 2007, 54).
Ao final, aliar a perspectiva da representação social das doenças, do ponto de vista da
História, com um artefato cultural como jogos eletrônicos, amplia as possibilidades de investigação
dos historiadores por meio de novas modalidades de fontes. A despeito de jogos eletrônicos e
fóruns de debates virtuais, como o Reddit ou Youtube, parecerem ainda distante para alguns
historiadores, há, na verdade, um campo em expansão no que diz respeito às interações sociais e à
História Pública. Os usuários que divulgam virtualmente suas opiniões e interagem com outros
usuários, oferecem e negociam a sua visão de mundo sobre diferentes temas. A sensibilidade com
o tema da doença foi um fator decisivo para que alterassem as suas impressões sobre Baraka.
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***

Recebido: 20 de novembro de 2023


Aprovado: 12 de março de 2024

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Dossiê: História Digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.43958

O diálogo com a Comunicação na construção de narrativas históricas


digitais em jogos:
A cultura do povo indígena Huni Kuin

Dialogue with Communication in the building of digital historical narratives in games:


The culture of the Huni Kuin indigenous people

El diálogo con la Comunicación en la construcción de narrativas históricas digitales en


juegos:
La cultura del pueblo indígena Huni Kuin

Camila Escudero*
https://orcid.org/0000-0002-9399-1207

Helena Schiavoni Sylvestre**


https://orcid.org/0009-0004-9170-3293

RESUMO: Este trabalho propõe um diálogo entre os campos da História digital e da Comunicação
para a Transformação Social (CCS), na análise do jogo eletrônico “Huni Kuin: Yube Baitana”.
Nosso objetivo é verificar de que forma a história da cultura e identidades do povo indígena
Kaxinawá – ou Huni Kuin, como eles próprios se denominam – é narrada. Para isso, partimos de
uma abordagem qualitativa, fazendo uso da técnica de análise exploratória a partir do registro e
representação no jogo de: 1) Histórias e mitos; 2) Arte tradicional; 3) Trilha sonora cultural; 4)
Figuras míticas e seres sobrenaturais; 5) Língua Huni Kuin. Entre os principais resultados,

*
Doutora em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com período de pesquisa
no Latin American and Latin Studies Program da University of Illinois at Chicago (UIC). Professora do Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, na linha de pesquisa Culturas, organizações
e transformações sociais. Membro da equipe de formadores do Núcleo para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(NEER), da Secretaria Municipal de Educação da Prefeitura de São Paulo. Consultora UNESCO, das Nações Unidas,
escritório do Brasil. Coordenadora da plataforma de dados Brasileiros no Exterior. E-mail:
[email protected].
**
Doutoranda em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo, mestra em Mídia e Tecnologia pela
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” e graduada em Jornalismo pela mesma instituição. Tem como
principais temas de estudo os jogos eletrônicos e a educomunicação. Bolsista da CAPES. E-mail:
[email protected].

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Camila Escudero & Helena Schiavoni Sylvestre | O diálogo com a Comunicação na construção de
narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin

destacam-se as convergências entre os campos da História Digital e da CCS na tentativa de


compreensão de processos de preservação da memória e identidade cultural, inovação e
disseminação do conhecimento.
Palavras-chave: História digital. Comunicação para a Transformação Social (CCS). Jogo eletrônico.
Povo indígena Huni Kuin. Identidades culturais.

ABSTRACT: This paper proposes a dialogue between the fields of Digital History and
Communication for Social Transformation (CCS), in the analysis of the electronic game “Huni
Kuin: Yube Baitana”. Our objective is to verify how the history of the culture and identities of the
Kaxinawá indigenous people – or Huni Kuin, as they call themselves – is narrated. To do this, we
start from a qualitative approach, using the exploratory analysis technique based on the recording
and representation in the game of: 1) Stories and myths; 2) Traditional art; 3) Cultural soundtrack;
4) Mythical figures and supernatural beings; 5) Huni Kuin language. Among the main results, we
highlighter the convergences between the fields of Digital History and CCS to understand
processes of preserving memory and cultural identity, innovation and dissemination of knowledge.
Keywords: Digital History. Communication for Social Transformation. Eletronic games. Huni
Kuin indigenous people. Cultural identities.

RESUMEN: Este trabajo propone un diálogo entre los campos de la Historia Digital y la
Comunicación para la Transformación Social (CCS), en el análisis del juego electrónico “Huni
Kuin: Yube Baitana”. Nuestro objetivo es verificar cómo se narra la historia de la cultura y las
identidades del pueblo indígena Kaxinawá – o Huni Kuin, como ellos mismos se llaman. Para eso,
partimos de un enfoque cualitativo, utilizando la técnica de análisis exploratorio basado en el
registro y representación en el juego de: 1) Historias y mitos; 2) arte tradicional; 3) Banda sonora
cultural; 4) Figuras míticas y seres sobrenaturales; 5) Lengua Huni Kuin. Entre los principales
resultados destacan las convergencias entre los campos de la Historia Digital y la CCS en un intento
de comprender los procesos de preservación de la memoria y la identidad cultural, la innovación y
la difusión del conocimiento.
Palabras clave: Historia Digital. Comunicación para la Transformación Social. juego electrónico.
Pueblo indígena Huni Kuin. Identidades culturales.

Como citar este artigo:


Escudero, Camila; Sylvestre, Helena Schiavoni . “O diálogo com a Comunicação na construção de
narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin”. Locus: Revista de
História, 30, n. 1 (2024): 63-78.
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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Camila Escudero & Helena Schiavoni Sylvestre | O diálogo com a Comunicação na construção de
narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin

Introdução

Há uma intrínseca relação entre as áreas da História e da Comunicação, enquanto campo


do conhecimento. Isso porque, além de ambos estarem relacionados a questão tempo e espaço, a
história só pode ser conhecida quando comunicada, ao mesmo tempo em que a comunicação
depende de situações e contextos históricos para se materializar.
Entendemos que a evolução das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs),
especialmente no fim dos anos 1990, com a popularização da Internet e das práticas de
digitalização, têm introduzido transformações importantes no acesso e compartilhamento e na
comunicação do conhecimento histórico, especialmente, na forma como se produzem os registros.
Um dos resultados dessa mudança é a disseminação da informação em uma amplitude e velocidade
nunca anteriormente verificadas, ainda que em um contexto de caminho múltiplos, complexos e
não-lineares de desdobramentos, surgidos com os formatos tradicionais, desde a época da prensa
de Gutemberg, até o ciberespaço (Sodré 2012, Briggs e Burke 2024).
Por parte da História, esse contexto da chamada “história digital” delega ao campo o desafio
de pensar sobre conceitos, experiências, tendências, perspectivas, problemáticas, temas e interfaces
relacionados, em última instância, à produção de uma consciência histórica, em um cenário de
constante evolução. Por parte da Comunicação, oferece possibilidades de se pensar para além do
aspecto tecnicista dos meios e das características das linguagens produzidas, a articulação, o
engajamento e a participação social, bem como a apropriação dos processos de conteúdo
comunicacionais, especialmente no nível de grupos minoritários e comunidades e povos
tradicionais, como defende a linha da Comunicação para a transformação social (CCS, em
espanhol).
Assim, o presente artigo tem como objetivo verificar de que forma a história da cultura do
povo indígena Kaxinawá – ou Huni Kuin, como eles próprios se denominam – é narrada e pode
ser conhecida a partir da relação entre tecnologias, comunicação e fazer historiográfico. Interessa-
nos saber como o jogo eletrônico “Huni Kuin: Yube Baitana” se utiliza de elementos históricos e
identitários do grupo, como os cantos, grafismos, mitos e rituais, possibilitando uma circulação
desse conhecimento por uma rede mais ampla e de um modo alternativo de comunicação.
Para isso, partimos de uma abordagem qualitativa, fazendo uso da técnica de análise
exploratória (Gil 2008) do jogo eletrônico, desenvolvido através da plataforma gratuita Unity3D e
em um formato de apresentação bidimensional, no ano de 2018. A produção foi realizada por
equipes de pesquisadores, técnica e de narradores, desenhistas e cantadores indígenas, os quais
buscaram um esforço permanente de tradução entre culturas, mídias e formatos.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Camila Escudero & Helena Schiavoni Sylvestre | O diálogo com a Comunicação na construção de
narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin

Este texto está dividido em três partes principais, para além desta Introdução e das
Considerações Finais. Na primeira, discorremos sobre os pontos de convergência entre a história
digital e a comunicação. Na segunda, apresentamos uma breve descrição sobre o povo Huni Kuin
a fim de contextualizar nosso objeto de estudo. Na terceira, expomos o jogo “Huni Kuin: Yube
Baitana”, analisando-o a partir de cinco categorias: 1) Histórias e mitos; 2) Arte tradicional; 3) Trilha
sonora cultural; 4) Figuras míticas e seres sobrenaturais; 5) Língua Huni Kuin.

História digital e Comunicação: Pontos de intersecção para a proposta de um


diálogo

Parece consenso entre autores como Maynard (2016), Brasil e Nascimento (2020), Lucchesi
(2013; 2014) e em diversos artigos presentes nas obras organizadas por Nicodemo, Rota e Marino
(2022) e Soares, Rovai, Carvalho e Porto Jr. (2017) que o termo história digital envolve uma
abordagem de estudo, exame e representação do passado e da memória em conjunto com as TICs
e já está amplamente disseminado com destaque para iniciativas e reflexões relevantes. No entanto,
a partir de visões bastante críticas e o questionamento de se pensar os fatos em meio ao constante
e veloz desenvolvimento tecnológico, ainda é um campo de discussão em construção no Brasil, no
qual se verifica a possibilidade de pleno fortalecimento.

Apesar de a informação contida na fonte continuar “sendo a mesma” – no sentido de que a


digitalização não alteraria substancialmente o conteúdo do registro histórico –, podemos dizer que
a modificação na ‘materialidade’ da fonte histórica nos conduz, inevitavelmente, a uma nova
condição em relação ao modo de lidarmos com a informação ali contida (Brasil e Nascimento 2020,
201).
Assim, Lucchesi (2013) argumenta que falar em história digital remete a um novo jeito de
escrever a história, não somente em uma produção de história sobre a cultural digital, mas sobre
uma nova prática. “Nova porque, ora, se contrastada com as anteriores apresentará inovações ou
desvios (Lucchesi 2013, 9)”.

Nossa compreensão é a de que existem potencialidades inexploradas no meio digital, que vão muito
além de simplesmente comunicar, acessar e processar dados: novos sentidos são criados em cada
relação tecnologicamente mediada – sentidos retóricos, políticos, históricos. (...) Não basta que a
comunidade histórica acadêmica acesse bancos de dados online, acervos digitais, crie listas de
discussões, sites ou blogs. Isso já acontece de forma bastante compartilhada. O problema (...) é que
determinadas atitudes, sejam elas práticas ou subjetivas, de elaboração/abstração, muitas vezes são
tomadas como óbvias e, como tais, não são questionadas porque se naturalizaram, se camuflaram
em meio a rotina do trabalho (Lucchesi 2014, 50).
Nesse contexto, diversas possibilidades emergem em duas frentes principais. A primeira
compreende conceituações epistemológicas, metodologias de ensino e aspectos éticos e legais da
historiografia digital. A segunda, podemos dizer, envolve mais o empírico, ou seja, experiências e
campo de pesquisa, como digitalização de acervo histórico e disponibilização de dados (e acesso),

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narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin

arquivos digitais e patrimônio cultural, entre outras. Especificamente nesta segunda, reside a visão
essencial para este trabalho: a construção de narrativas históricas em ambientes digitais em formato
alternativo, reconhecidas como formas de escrita, de representação e de conhecimento histórico.
Paralelo a isso, dentro da Comunicação Social, Thompson (2014) diz que a mídia permite
um distanciamento “espaçotemporal” e a fixação da forma simbólica, ou, pelo menos, sua preservação
em diferentes graus de durabilidade. Além disso, não só favorece o registro e a reprodução do
conteúdo, mas é capaz de multiplicar o conteúdo de diferentes formas simbólicas. Consideramos
essas características marcadas pelo autor como um primeiro ponto de diálogo que propomos neste
trabalho, entre os campos da História Digital e da Comunicação.
O segundo ponto, ao nosso ver, está na possibilidade de formas da narrativa historiográfica,
isto é, no uso de “linguagens e processos alternativos” para registro e disseminação de um fato. O
termo alternativo, no âmbito social, costuma ser utilizado para designar tudo aquilo que não está
alinhado ao comportamento e práticas vigentes. Nesse sentido, as ações alternativas de registro de
memória, de fatos e de comunicação se configuram um processo orgânico, muito alinhado a
movimentos sociais, populares, minorias, povos tradicionais, entre outros grupos, que lutam não
só pela preservação de uma identitária cultural compartilhada (que engloba todo um conjunto de
hábitos, tradições, costumes e valores), mas, também, visibilidade e reconhecimento.
Antes de prosseguir, importante ressaltar aqui que adotamos neste trabalho o conceito de
identidade cultural de Hall (2005). Segundo o autor, as identidades estão localizadas em diferentes
dimensões dentro de um sistema amplo de representação social. Envolve reivindicações
essencialistas sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo ou aparecem
baseadas em marcadores sociais como etnia, raça, nacionalidade etc. Frequentemente, elas estão
ancoradas em alguma versão essencialista da história do passado (na qual a história é constituída
como uma verdade imutável – tradições).

Ao invés de tomar a identidade por um fato que, uma vez consumado, passa, em seguida, a ser
representado pelas novas práticas culturais, deveríamos pensá-la, talvez, como uma “produção” que
nunca se completa, que está sempre em processo e é sempre constituída interna e não externamente
à representação. Esta visão problematiza a própria autoridade e a autenticidade que a expressão
“identidade cultural” reivindica como sua (Hall 1996, 68).
Ressalta-se que, ainda de acordo com Hall (2005), as identidades estão vinculadas também
a condições sociais e materiais, uma vez que o social e o simbólico se referem a dois processos
diferentes. E, por fim, as identidades não são unificadas; há contradições no seu interior que
precisam ser negociadas a todo momento (Escudero 2017, 93).
Voltando à questão do alternativo, na Comunicação, o conceito de comunicação alternativa
é constantemente revisitado, como propõe Peruzzo (2009, 58-59):

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A comunicação alternativa se recria continuamente. Sua vertente comunitária vem ganhando


expressividade e distinção no Brasil desde o final dos anos 1990. Recentemente a comunicação
comunitária, popular-alternativa e o jornalismo alternativo se atualizam e assumem diversas feições.
As motivações para tanto possivelmente vêm do interesse social presente nos cidadãos e nas
organizações civis em interferir nos sistemas geradores e mantenedores da desigualdade, além das
possibilidades inovadoras, como a efetiva interatividade, que as novas tecnologias de informação e
comunicação oferecem (Peruzzo 2009, 58-59).
Está alocado em um conceito mais amplo, de Comunicação para a Transformação Social
(sigla Comunicación para el Cambio Social – CCS, em espanhol). Para Gumúcio-Dagron (2011), os
processos de CCS são heterogêneos e suas características vão de acordo com a realidade envolvida.
Entretanto, as ações têm em comum: 1) participação comunitária democrática e apropriação dos
processos e dos conteúdos comunicacionais; 2) legitimidade a partir da língua e das identidades
culturais envolvidas; 3) geração de conteúdos próprios que resgatem o saber acumulado através de
muitas gerações; 4) uso da tecnologia apropriada e dimensionada com as necessidades e
possibilidades de acesso de cada grupo; e 5) a constituição de convergências e redes que contribuem
não só para consolidar os processos, como para dar visibilidade às ações.

Os games no contexto da CCS para a construção de narrativas históricas

É recorrente na literatura a utilização dos games para o estudo de registro e disseminação da


história, uma vez que esse tipo de produção, segundo Bello e Vasconcelos (2017), apresenta um
discurso sobre o passado por meio de narrativa audiovisual ambientada em espaços virtuais
estruturados em regras de jogo.

Os jogos eletrônicos são resultado de um processo histórico de desenvolvimento de questões sócio-


tecnológicas a partir do cinema e do computador, e sua particularidade é expressa em sua relação
específica entre sua forma e conteúdo, isso é, entre as estruturas de regras, a composição audiovisual,
as possibilidades de interatividade e a narrativa transmitida. É possível observar em tal composição
múltiplas dimensões do social, tanto em sua representação imagética, quanto na própria maneira em
que foram historicamente construídos para serem jogados, já que a interatividade coloca o jogador
em uma posição onde sua ação é constantemente requisitada e causa interferência e resposta do
emissor eletrônico (Bello e Vasconcelos 2017, 221-222).
Dessa forma, para captar a essência das representações no contexto da CCS em mídias
como videogames é crucial considerar como elas se inserem em seu próprio contexto histórico e
nas identidades envolvidas. Isso significa entender a perspectiva dos criadores, levando em conta
seu tempo, cultura e técnicas, a fim de verificar como eles visualizaram ou desejavam o passado.
Em outras palavras: essas representações não comunicam a história de forma literal, mas sim como
foi escolhida e interpretada, refletindo uma memória histórica socialmente moldada.
Neste cenário, é importante considerar, também, a imaginação. Apesar de a história ser
inventada e simulada pelo jogador, não há fontes concretas para uma análise direta. As
possibilidades de interpretação se expandem, já que esses “experimentos” com diferentes cenários

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narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin

históricos oferecem uma variedade quase ilimitada de possibilidades (Eucídio, 2010). No entanto,
as identidades culturais exploradas pela narrativa, acabam por garantir uma espécie de legitimidade
dos temas envolvidos, como prevê a CCS.
García (2006) destaca que esse aspecto é uma das principais forças dos games com temas
históricos. Ao colocar o jogador no papel de um personagem histórico, a narrativa permite que as
ações dos jogadores afetem a história simulada e provoquem reações dos oponentes. De acordo
com autor, esse processo é benéfico, uma vez que “ajuda” os jogadores a entender como as ações
dos personagens do passado tiveram efeitos significativos na história.
Atualmente, é impossível ignorar a interconexão entre a historiografia acadêmica e a história
pública amplamente disseminada pelos meios digitais (Malerba 2017). O crescente número de jogos
digitais na cultura histórica atual tem possibilitado a exploração de novas fronteiras de diálogo entre
a historiografia e os chamados history games (Telles e Alves 2015). Esses jogos não apenas destacam
seu potencial para o aprendizado do pensamento histórico, mas também surgem como novos
formatos populares de interpretação e comunicação do passado.

O povo Huni Kuin: Breve contexto histórico

O povo Huni Kuin habita a fronteira brasileira-peruana da Amazônia. Em território


brasileiro, as aldeias estão localizadas no estado do Acre, perto do município de Jordão, e se
espalham pelos rios Taruacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus. Os Huni Kuin
constituem a maior população indígena do Acre, com aproximadamente 7,567 indivíduos
contabilizados (IBGE e FUNAI 2009).
Huni Kuin é a forma como esse povo indígena se autodenomina, e significa “povo
verdadeiro” ou “povo da fumaça” em Hatxa Kuin, a língua derivada do tronco linguístico Pano.
Os Huni Kuin também são conhecidos como Kaxinawá, nome que ganharam de outros povos.
A divisão entre os sexos é uma das bases da sociedade Kaxinawá e marca mais a vida
cotidiana desse povo do que qualquer outra categorização. As crianças, assim que aprendem a andar
sozinhas, são encaminhadas às atividades consideradas próximas de seu gênero. As tarefas
produtivas consideradas mais importantes são feitas por homens e mulheres na fase adulta
(Amazônia Latitude 2019).
A etnia Huni Kuin é formada por verdadeiros botânicos que trabalham com espécies
vegetais medicinais integradas ao ambiente da floresta. Os desenhos típicos Huni Kuin respeitam
a geometria sagrada ensinada pela Yube (Jiboia) e são denominados kenês. Mais que mera

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decoração, simbolizam cura e proteção, e aparecem nos corpos, nas cerâmicas, na tecelagem e em
adereços.
Com a chegada dos seringueiros no final do século XIX, muitos Huni Kuin decidiram
avançar para as áreas mais isoladas da floresta com o intuito de fugir da escravidão. Os que se
renderam ao domínio dos seringueiros acabaram se afastando da cultura indígena tradicional. Fato
que até hoje tenta ser revertido pelas demais gerações. Tal resgate das identidades culturais do
grupo esbarrou em dificuldades diversas, como a escassez de pessoas que de fato tenham vivido
uma vida tipicamente aldeada, presenciando os rituais, cantos, danças, artesanatos, pinturas
corporais e demais tradições que fazem parte dessa cultura (Instituto Nawá 2024).
Os Huni Kuin se caracterizam por uma subdivisão de dois grupos linguísticos (Aranque e
Pano), com o histórico em comum de sobrevivência à atividade extrativista da borracha e do
caucho desde 1860. A migração de nordestinos, bolivianos e peruanos, somada a ataques e
massacres contra a população Kaxinawá, resultou no engajamento compulsório da etnia no
extrativismo de látex e caucho (Amazônia Latitude 2019).

O jogo “Huni Kuin: Yube Baitana” como fonte de elementos identitários históricos
e prática comunicacional

O jogo eletrônico “Huni Kuin: Yube Baitana” foi desenvolvido com o intuito de preservar
a memória do povo indígena Kaxinawá, resgatando elementos de suas identidades culturais, ao
mesmo tempo em que tenta promover o intercâmbio desses conhecimentos por meio da linguagem
dos videogames.
Assim, podemos dizer que a proposta do jogo “Huni Kuin: Yube Baitana” é propiciar uma
imersão no universo huni huin, em que os jogadores possam entrar em contato com os elementos
identitários indígenas, como os cantos, grafismos, mitos e rituais desse povo, possibilitando uma
circulação desse conhecimento por uma rede mais ampla. Em outras palavras: serve como fonte
de investigação historiográfica do grupo envolvido, em uma intersecção comunicação, tecnologias
e práticas socioculturais.
Conforme dissemos na introdução deste texto, a produção do jogo foi realizada por uma
equipe de pesquisadores, uma equipe técnica e de narradores, desenhistas e cantadores indígenas,
os quais buscaram um esforço permanente de tradução entre culturas, mídias e formatos. Já o
roteiro foi elaborado a partir de cinco histórias do povo Huni Kuin (Kaxinawá), denominadas
Shenipabu Miyui (história dos antigos): Yube Nawa Aĩbu, Siriani, Shumani, Kuĩ Dume Teneni e Huã
Karu Yuxibu.

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● Yube Nawa Aĩbu conta sobre o aprendizado da medicina nixi pae (ayahuasca) pelo povo
Huni Kuin; aprendizado que se deu com o povo jiboia que vive no fundo do lago. Essa
versão é contada pelo pajé Dua Busẽ e compõe a primeira fase do jogo.
● Siriani conta como aconteceu o aprendizado dos kene (grafismos) pelas mulheres com a
Jiboia Encantada. Os kene podem ser vistos hoje nos artesanatos, na tecelagem e na cestaria
huni kuin.
● Shumani é um encantado da floresta, que corre muito rápido. A história contada pelo
cacique Siã (Tadeu Mateus Kaxinawá) conta sobre o aprendizado do uso do jenipapo e do
urucum pelos Huni Kuin.
● Kuĩ Dume Teneni, história contada pelo cacique Siã (Tadeu Mateus Kaxinawá) mostra
como os Huni Kuin aprenderam a reunir o tabaco e as cinzas de árvores para a preparação
do rapé (dume deshke) e utilizaram a sua força para vencer os encantados.
● Em Huã Karu Yuxibu, o pajé Dua Busẽ conta sobre o surgimento e a classificação das
plantas medicinais utilizadas pelos Huni Kuin e o segredo da imortalidade. A história
compõe a última fase do game.
Apesar de ser narrado na língua hatxã kuĩ, logo na tela inicial, o jogador de “Huni Kuin:
Yube Baitana” tem a opção de escolher quatro idiomas para legenda: português, inglês, espanhol e
o idioma nativo. Para jogar, é preciso movimentar a personagem usando as setas do teclado ou os
botões A, W e D (caso o jogador esteja utilizando um computador). Por meio desses movimentos
é possível pular obstáculos e plataformas, pegar itens como alimentos e ervas medicinais, escapar
de espinhos, pular sobre buracos e troncos de madeiras. Usando o mouse para mirar e atirar, é
possível caçar antas, pacas, veados, porquinhos-do-mato e japós.
No jogo, pode-se ainda juntar kenes (espécie de grafismos) espalhados pelas fases para
receber itens especiais, como peças de artesanatos, que dão vários bônus de atributo à personagem.
Outro ponto de destaque do game é o fato de que quando a personagem fere animais demais em
pouco tempo, as entidades chamadas Yuxibu ficam bravas e se vingam transformando as caças em
animais agressivos, tornando suas carnes podres e elevando seus atributos como pontos de vida,
ataque e área de alcance.
Os alimentos comestíveis, como a banana, a macaxeira, o amendoim e a carne saudável,
restauram a força vital do personagem. Já as medicinas, como o cipó, o tabaco e as cinzas de
determinadas árvores possibilitam habilidades de pajelança quando se aciona o “especial”.

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A partir de uma análise exploratória (Gil 2008), procuramos identificar os elementos


identitários que constituem a história Huni Kuin presentes e representados no jogo eletrônico, por
meio de narrativa audiovisual construída em um ambiente digital. Para fins de sistematização,
elencamos cinco categorias, conforme se segue:

1) HISTÓRIAS E MITOS: O jogo apresenta uma variedade de histórias, mitos e lendas do


povo Huni Kuin. Essas narrativas de caráter simbólico-imagético são frequentemente
baseadas em eventos históricos, figuras lendárias ou experiências espirituais significativas
para a comunidade. Em outras palavras: não é uma realidade independente, mas evolui com
as condições históricas e étnicas relacionadas à cultura envolvida. No casso do jogo
analisado, por meio dessas histórias, os jogadores podem aprender sobre a visão de mundo
dos Huni Kuin, seus valores éticos, suas relações com a natureza e sua compreensão do
universo.

Figura 1 — Lenda da jiboia Yube


Fonte: Reprodução de tela do jogo Huni Kuin: Yube Baitana.

2) ARTE TRADICIONAL: O estilo visual do jogo é fortemente influenciado pela arte


tradicional dos Huni Kuin, entendida como práticas estilizadas que remetem ao caráter
moral do povo envolvido. Pode-se dizer que é uma forma de expressão e comunicação
coletiva. No game foco deste estudo, inclui padrões geométricos, formas abstratas, e
representações de figuras e símbolos significantes para a cultura Huni Kuin. Essa estética
reflete não apenas a estética visual, mas também os valores, mitos e tradições da
comunidade.

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Figura 2 — Os kenes (grafismos) criados pelos Huni Kuins


Fonte: Reprodução de tela do jogo Huni Kuin: Yube Baitana.

3) TRILHA SONORA CULTURAL: A trilha sonora do jogo é composta por músicas


autênticas e instrumentos tradicionais Huni Kuin, como flautas, tambores, maracás e outros
instrumentos de percussão. Essa música tradicional é criada em colaboração com membros
da comunidade Huni Kuin, garantindo uma representação autêntica e respeitosa de sua
cultura musical, de origem remota e ancestral e caráter poético que envolve, não só a
história da comunidade, mas ainda a expressão de crenças e formas de organizações sociais.

Figura 3 — Música tradicional do povo Huni Kuin


Fonte: Reprodução de tela do jogo Huni Kuin: Yube Baitana.

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4) FIGURAS MÍTICAS E SERES SOBRENATURAIS: O jogo Huni Kuin apresenta


uma variedade de personagens e seres míticos que desempenham papéis importantes na
cosmologia e na mitologia do povo Huni Kuin. Estes podem incluir deidades, espíritos da
natureza, animais mágicos e outras entidades sobrenaturais que habitam o mundo do jogo
e influenciam a vida dos personagens. Tratam-se de recursos simbólicos para expressões
de comportamentos e sentimentos envolvidos na organização da comunidade.

Figura 4 — A Jiboia Encantada


Fonte: Reprodução de tela do jogo Huni Kuin: Yube Baitana.

5) LÍNGUA HUNI KUIN: O jogo pode incorporar palavras, frases e diálogos na língua
Huni Kuin. Isso não apenas adiciona autenticidade cultural ao jogo, mas, também, promove
a preservação e a revitalização da língua indígena, que é uma parte vital da identidade do
povo Huni Kuin. Sabe-se que os processos de comunicação não podem ignorar as
particularidades de cada língua. Pelo contrário, deve se apoiar nelas para se legitimar. Dessa
forma, as exposições e trocas linguísticas são “saudáveis” quando ocorrem em um contexto
de equidade e respeito como visto no game analisado.

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Figura 5 — Introdução do jogo, onde se pode optar por jogar com a língua original dos Huni Kuin
Fonte: Reprodução de tela do jogo Huni Kuin: Yube Baitana.
Ressalta-se, por fim, que o fato de considerarmos o jogo eletrônico “Huni Kuin: Yube
Baitana” como uma fonte historiográfica digital não o isenta de pensarmos em um contexto
específico de espaço e tempo, considerando que se trata de uma narrativa contada e de uma
memória reconstruída por parte de um grupo. Porém, a partir das diferentes formas de apropriação
e representação dos elementos identitários verificados, percebe-se que as dinâmicas de escolha
levam em consideração aspectos vistos na CCS, como apropriação dos processos e dos conteúdos
comunicacionais; a língua e os elementos identitários em comum dando legitimidade à narrativa; a
geração de conteúdos próprios resgatando o saber acumulado através de gerações, além do uso da
tecnologia apropriada e dimensionada com as necessidades e possibilidades de acesso de cada
grupo, no caso “materializado” em um formato alternativo de game (e não, os tradicionais livros,
documentários etc.), permitindo, ainda, uma interação e convergências em rede de pessoas que,
não necessariamente, têm relação com a cultura envolvida, mas se identificam, de alguma maneira,
com o ato de jogar.

Considerações finais

O estudo sobre a construção de narrativas históricas digitais em jogos, com foco na cultura
do povo indígena Huni Kuin, nos conduziu neste trabalho a algumas reflexões sobre a interseção
entre tecnologia, comunicação e historiografia. O jogo eletrônico "Huni Kuin: Yube Baitana" se
mostrou, dessa forma, não apenas uma tentativa de preservação da memória e identidade cultural

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Huni Kuin, mas, também, uma inovação no campo da representação e disseminação do


conhecimento histórico.
Ao considerar o jogo eletrônico como uma fonte historiográfica digital, reconhecemos a
importância de contextualizar sua narrativa dentro de um espaço e tempo específicos,
compreendendo-a como uma memória reconstruída por parte de um grupo. No entanto, a
utilização de elementos identitários verificados no jogo e indícios sobre a forma de produção –
que, reconhecemos, requer pesquisa futura mais aprofundada – revela dinâmicas de apropriação e
representação que se alinham com os princípios da Comunicação para a Transformação Social
(CCS), promovendo a participação democrática, a valorização da língua e cultura indígena, e a
geração de conteúdos próprios que resgatam o saber acumulado através de gerações.
Por fim, destacamos que o jogo "Huni Kuin: Yube Baitana" representa uma experiência
única de imersão na cultura e história do povo Huni Kuin, ao mesmo tempo em que desafia
conceitos tradicionais de narrativa histórica e abre novas possibilidades de representação e
disseminação do conhecimento histórico em ambientes digitais comunicacionais. Ainda que haja
lacunas e que se trate do resultado de uma memória construída – conceito que não chegamos a
trabalhar aqui por delimitações do formato artigo – é um exemplo inspirador de como a tecnologia
pode ser utilizada de forma criativa e responsável para preservar e compartilhar as histórias e
tradições de povos indígenas, contribuindo para uma maior valorização e reconhecimento de sua
rica herança cultural.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Camila Escudero & Helena Schiavoni Sylvestre | O diálogo com a Comunicação na construção de
narrativas históricas digitais em jogos: A cultura do povo indígena Huni Kuin

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Recebido: 20 de março de 2024


Aprovado: 18 de junho de 2024

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Dossiê: História Digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.43183

Estratégias e Desafios na Divulgação Científica em História no Youtube:


A problemática indígena no estudo de caso entre métricas e linguagens

Strategies and Challenges in Scientific Communication in History on Youtube: The


Indigenous Issue in the Case Study between Metrics and Languages

Estrategias y Desafíos en la Comunicación Científica en Historia en Youtube: La


Problemática Indígena en el Estudio de Caso entre Métricas y Lenguajes

Maria de Fátima Barbosa Pires *


https://orcid.org/0000-0001-8229-8741

RESUMO: Este artigo explora a divulgação científica em História, concentrando-se na


problemática indígena, com ênfase nos Yanomamis e suas tensões históricas amplamente
exploradas pelos meios de comunicação em 2023. O estudo aborda estratégias e desafios na
convergência de métricas digitais e linguagens, buscando analisar as negociações de sentidos entre
discursos científicos, linguagem algorítmica e engajamento do público. Relatamos estratégias
formuladas para despertar o interesse pela questão indígena, delineando caminhos promissores para

*
Professora de História da rede municipal de educação de Niterói (RJ) - FME/Niterói (RJ). Pós doutoranda em
História, sob supervisão da professoa Ana Maria Maud pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora em
Educação (UFRJ, 2022); Mestre em Ensino (UERJ, 2016). Especialista em Ensino de História (UFRJ, 2011) e em
Divulgação Científica (FIOCRUZ, 2023). Bacharel e Licenciada em História. Consultora dos processos de avaliação
de Livro Didático (PNLD, 2018, 2022, 2024). Áreas e estudos de interesse: Comunicação, Popularização e Divulgação
Científica; Redes sociais, Estudo de audiências e lógicas de recomendação, Identidades Culturais; Saberes subjugados;
Espaços formais e não formais de Educação; Avaliação, Planejamento, Currículo, Didática e Formação de Professores.
Principais publicações: PIRES, M. F. B. Diálogos Interculturais no Ensino de História: oficinas pedagógicas para
implementação da lei 11.645-08. Rio de Janeiro: PoD, 2017 (Disponível em:
https://app.pr2.ufrj.br/public/uploads/repositories/PIRES_-_DIALOGOS_INTERCULTURAIS.pdf Acesso:
29/07/2024); PIRES, M.F.B. A cidade como fonte histórica: proposições para o ensino da temática indígena e afro-
brasileira numa perspectiva relacional. REVISTA OLHARES E TRILHAS, v. vol.23,n.3, p. 1074-1103, 2021
(Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/olharesetrilhas/article/view/62908 Acesso em: 29/07/2024); PIRES,
M. F. B. “TINHA UMA PEDRA”: INTERLOCUÇÕES ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA E A HISTÓRIA
PÚBLICA NA IMPLEMENTAÇÃO DA LEI 11.645/08. História & Ensino, v. 25, p. 297-324, 2019 (Disponível em:
https://ojs.uel.br/revistas/uel/index.php/histensino/article/view/36291 Acesso: 29/07/2023); SILVA, M.F.B Livro
didático de História: representações do “índio” e contribuições para a alteridade. REVISTA HISTÓRIA HOJE, v. 1,
p. 151-168, 2013 (Disponível em: https://rhhj.anpuh.org/RHHJ/article/view/45 Acesso em: 29/07/2024). E-mail:
[email protected]

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A problemática indígena no estudo de caso entre métricas e linguagens

obter recomendações na plataforma analisada e as interações do público. Fundamentado nos


princípios teóricos da divulgação científica em História, com diálogos interdisciplinares, o artigo
investiga lógicas de recomendação no YouTube. Resultados obtidos indicam correlação direta entre
a possibilidade de recomendação e a aderência do público ao conteúdo. Além disso, observamos
que o interesse do público pode ser influenciado por fatores externos, como notícias amplamente
divulgadas sobre questões indígenas. Ressalta-se que vídeos mais curtos podem gerar resultados
promissores. Este artigo oferece uma perspectiva específica e aprofundada, proporcionando
valiosas percepções sobre as complexas dinâmicas da divulgação científica em História no ambiente
digital.
Palavras-chave: Divulgação Científica em História. Yanomami. Estudo das audiências e de
engajamento do público. Métricas Digitais. História Pública.

ABSTRACT: This article explores scientific dissemination in History, focusing on indigenous


issues, with an emphasis on the Yanomamis and their historical tensions widely explored by the
media in 2023. The study addresses strategies and challenges at the convergence of digital metrics
and languages, aiming to analyze negotiations of meaning between scientific discourses, algorithmic
language, and audience engagement. We report on strategies formulated to awaken interest in the
indigenous issue, outlining promising paths to garner recommendations on the analyzed platform
and analyzing audience interactions. Grounded in the theoretical principles of scientific
dissemination in History, with interdisciplinary dialogues, the article investigates recommendation
logics on YouTube. Results obtained indicate a direct correlation between the possibility of
recommendation and audience adherence to content. Additionally, we observe that audience
interest can be influenced by external factors, such as widely publicized news on indigenous issues.
It is highlighted that shorter videos can yield promising results. This article offers a specific and in-
depth perspective, providing valuable insights into the complex dynamics of scientific
dissemination in History in the digital environment.
Keywords: Scientific Communication in History. Yanomami. Audience and Engagement Study.
Digital Metrics. Public History.

RESUMEN: Este artículo explora la divulgación científica en Historia, centrándose en la


problemática indígena, con énfasis en los Yanomamis y sus tensiones históricas ampliamente
exploradas por los medios de comunicación en 2023. El estudio aborda estrategias y desafíos en la
convergencia de métricas digitales y lenguajes, buscando analizar las negociaciones de sentidos
entre discursos científicos, lenguaje algorítmico y el compromiso del público. Informamos sobre
estrategias formuladas para despertar el interés por la cuestión indígena, delineando caminos
prometedores para obtener recomendaciones en la plataforma analizada y analizando las
interacciones del público. Fundamentado en los principios teóricos de la divulgación científica en
Historia, con diálogos interdisciplinarios, el artículo investiga lógicas de recomendación en
YouTube. Los resultados obtenidos indican una correlación directa entre la posibilidad de
recomendación y la adherencia del público al contenido. Además, observamos que el interés del

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público puede ser influenciado por factores externos, como noticias ampliamente divulgadas sobre
cuestiones indígenas. Se destaca que los videos más cortos pueden generar resultados
prometedores. Este artículo ofrece una perspectiva específica y profunda, proporcionando valiosas
percepciones sobre las complejas dinámicas de la divulgación científica en Historia en el entorno
digital.
Palabras clave: Divulgación Científica en Historia. Yanomami. Estudio de las audiencias y del
compromiso del público. Métricas Digitales. Historia Pública.

Como citar este artigo:


Pires, Maria de Fátima Barbosa. “Estratégias e Desafios na Divulgação Científica em História no
Youtube: A problemática indígena no estudo de caso entre métricas e linguagens”. Locus: Revista de
História, 30, n. 1 (2024): 79-93.
***

Introdução
(...) para manejar, dirigir, governar os grupos e indivíduos, deparamos forçosamente com o fato de
que os meios utilizados (...) se encontram ajustados às circunstâncias nas quais são operados, bem
como aos objetivos pretendidos de uma atuação configuradora sobre os homens (José Antônio
Maravall 1997, 119).
No cenário contemporâneo, a Divulgação Científica (DC) emerge como uma poderosa
ferramenta para o Ensino de História, especialmente quando ancorada no vasto alcance do
Youtube. Inspirada pelas reflexões do historiador José Antonio Maravall (1997), esta pesquisa
busca explorar as intricadas possibilidades e contingências inerentes à disseminação do
conhecimento histórico por meio das redes sociais, visando compreender como tais plataformas
podem contribuir para a ressonância de narrativas historicamente “invisibilizadas”.
A principal motivação para esta investigação reside na percepção da “atuação configuradora
sobre os homens” exercida pelos programas de inteligência artificial e algoritmos. Essas entidades,
em sua essência, atuam como mediadores entre os anseios dos usuários por conhecimento e o
vasto espectro de conteúdos disponíveis na plataforma em análise. Diante das atuais tecnologias
de comunicação e informação, é imperativo que historiadores ampliem sua compreensão além dos
limites do método historiográfico, adentrando nas complexas lógicas de recomendação desses
algoritmos e inteligências artificiais.
Ao negligenciar a compreensão desses mecanismos, corremos o risco de restringir o alcance
e a visibilidade do trabalho historiográfico. Nesse sentido, a interação entre historiadores e as

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A problemática indígena no estudo de caso entre métricas e linguagens

plataformas digitais se torna uma via de mão dupla, onde o domínio das lógicas de recomendação
fortalece a capacidade de influenciar a divulgação e compreensão da História pelo público.
Para contextualizar nossa pesquisa, em 2020, criamos o canal “Histórias para todos” 1 no
Youtube, atualmente com aproximadamente 1500 inscritos. Embora seja considerado de pequeno
porte, esse canal tem servido como um estudo de caso valioso, oferecendo insights fundamentais
para nossa investigação. A escolha do nome do canal reflete a essência da renovação historiográfica
da década de 1980, que preconizava a necessidade de questionar as versões tradicionais da história
para ouvir a voz de sujeitos outrora silenciados.
Este artigo procura não apenas apresentar um produto de Divulgação Científica (DC), mas
também contextualizar as motivações que orientaram nossas estratégias. A compreensão das
lógicas de recomendação do Youtube torna-se, assim, essencial para potencializar nossas iniciativas
de divulgação e ensino, expandindo o acesso ao conhecimento histórico.
No centro de nossas reflexões estão quatro questões de pesquisa cruciais. A primeira busca
compreender como visibilizar e popularizar narrativas historicamente invisibilizadas, a segunda
volta-se para o desafio de despertar e ampliar o interesse pela problemática indígena na
contemporaneidade. A terceira indagação direciona-se para estratégias promissoras que
possibilitem o alcance de recomendações na plataforma analisada, enquanto a última questiona
como tais estratégias contribuem para a ampliação e engajamento do público.
Diante desses questionamentos, nosso objetivo geral é compreender as negociações de
sentidos entre os discursos científicos historiográficos, a linguagem algorítmica e o engajamento do
público. Para atingi-lo, delineamos objetivos específicos que envolvem a elaboração de estratégias
para despertar e ampliar o interesse pela problemática indígena, a compreensão das vias
promissoras para o alcance de recomendações na plataforma e a análise das interações e
engajamento do público.
A justificativa para este estudo reside na necessidade de identificar as “condições de
emergência” (Foucault, 2008) para as narrativas dos sujeitos historicamente invisibilizados. Desde
2008, nossas pesquisas concentram-se na lacuna entre as leis identitárias (10.639-03 e 11.645-08) e
as práticas educacionais, buscando transcender os espaços formais da sala de aula.
A Lei 10.639/03 torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana
nas escolas, enquanto a Lei 11.645/08 estende essa obrigatoriedade para incluir a história e cultura
indígena. Ambas as leis visam promover o reconhecimento e a valorização das contribuições desses

1
Ver: https://www.youtube.com/channel/UCSC6e07v8OiTOV2I8vCoqXw?sub_confirmation=1 Acesso em:
28/07/2024

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A problemática indígena no estudo de caso entre métricas e linguagens

grupos para a formação da sociedade brasileira, contribuindo para a construção de uma educação
inclusiva e plural.
O YouTube surge como um campo empírico promissor para implementar essas diretrizes,
pois permite a criação e disseminação de conteúdos que abordam essas temáticas de forma
dinâmica e acessível. Além disso, há a possibilidade de trocas em tempo real, através de “lives”
(transmissões ao vivo), bem como, a formação de comunidades de pessoas interessadas, sejam
professores, estudantes, pesquisadores e público leigo.
Esses sujeitos, em seus diversos contextos e áreas de interesse, podem convergir para
auxiliar na divulgação dos conteúdos através de compartilhamentos em outras diversas redes
sociais, a interatividade, a amplitude do alcance e as aprendizagens mútuas exemplificam como este
campo empírico pode ser frutífero para a implementação dessas leis e, de modo geral, para o ensino
de História e a Divulgação Científica.
Ao utilizar o YouTube como ferramenta educativa, é possível transcender as limitações
físicas da sala de aula, oferecendo aos estudantes e ao público em geral, uma fonte rica e
diversificada de informações sobre história, culturas e identidades. Dessa forma, o YouTube não
apenas complementa o ensino tradicional, mas também se estabelece como uma prática
educacional inovadora e eficaz, capaz de engajar e educar sobre a diversidade cultural brasileira.
Contudo, a subestimação desse espaço nas pesquisas acadêmicas é evidente. Ao efetuarmos
levantamento bibliográfico na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD), tendo
como parâmetro o período entre 2017-2021 a partir dos descritores: Youtube, divulgação científica,
História e Ensino de História, com incidências sobre qualquer um desses termos, encontramos
33.060 resultados. Esse número é indicativo de que pesquisas com esse enfoque ou que o
tangenciem são relevantes pois tem sido demandadas pelos programas de Pesquisas no Brasil como
reflexos de interesses da nossa sociedade.
Através da leitura dos títulos dos milésimos primeiros trabalhos, identificamos que embora
haja uma profusão de canais no Youtube com a intencionalidade de divulgação de conhecimentos
históricos produzidos cientificamente, estudos sobre esses canais com foco na Ciência Histórica e
sua divulgação são ainda poucos numerosos, conforme tabela 1 abaixo:

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Tabela 1 — Levantamento bibliográfico (parâmetro 2017 – 2021)


Fonte: Banco de Teses e Dissertações (BDTD) - Acesso: 06/10/2021.
A profusão de canais com intenções de divulgação de conhecimentos históricos contrasta,
pois, com a escassez de estudos dedicados a analisar essas iniciativas.
Ao compreendermos a importância do funcionamento das lógicas de recomendação e de
enunciar os saberes dos povos, historicamente, invisibilizados, nos dedicamos na enunciação da
problemática dos Yanomamis que ganhou notoriedade mundial na mídia entre janeiro e março de
2023. Nesse momento houve uma ampla aderência do público em relação a esta problemática,
resultando em uma “escuta sensível”.
Esta notoriedade do povo Yanomami deveu-se às graves denúncias de genocídio
resultantes do garimpo ilegal em suas terras. A presença massiva de garimpeiros ilegais levou à
contaminação de rios por mercúrio, desmatamento e violência contra as comunidades indígenas.
Relatórios indicaram que a desnutrição, doenças e a falta de assistência médica adequada
causaram um aumento alarmante de mortes entre os Yanomamis. A situação se agravou ao longo
dos anos devido à flexibilização das políticas ambientais e à falta de fiscalização, culminando em
uma crise herdada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que assumiu a presidência do Brasil
em janeiro de 2023. A crise foi amplamente divulgada pela mídia, gerando comoção internacional
e pressões sobre o governo brasileiro para tomar medidas urgentes para proteger os direitos e a
vida dos povos indígenas.
Dessa forma, analisando os conteúdos de quatro canais que versam sobre o Ensino de
História, indicados pela ferramenta “Google Trends Topics”, no período em que a problemática
dos Yanomamis ganhava notoriedade na mídia (Janeiro – Março/2023), temos os seguintes
resultados:

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1. Café História2: O Café História é um canal apresentado por historiadores que discutem
temas relacionados à história. Nesse período, o canal abordava o trabalho de Gramsci e a questão
dos Yanomamis não foi debatida com o público do canal. Analisando o conteúdo do canal, não
identificamos algum vídeo que focalizasse a temática indígena;
2. História Online3: O História Online é um canal apresentado por professores de história
que oferecem aulas completas sobre diversos temas históricos, desde a antiguidade até a
contemporaneidade. O canal também se propõe a debater notícias atuais e suas raízes históricas,
entretanto, a problemática a respeito dos Yanomamis também não foi enunciada, assim como as
questões indígenas não foram abordadas no canal;
3. ObrigaHistória: trata-se de um canal dedicado a História Pública focado em vídeos
expositivos que buscam levar conteúdo acadêmico a públicos mais amplos. Assim como os dois
primeiros a questão dos Yanomamis não foi abordada, porém, o canal explorou a questão indígena
através de um vídeo que focaliza a sexualidade dos indígenas norte-americanos, embora não
apresente nenhum conteúdo relativo aos povos nativos do Brasil
4. Lili Schwarcz4: Canal da professora Lilia Moritz Schwarcz com vistas à democratização
do conhecimento histórico. A questão dos Yanomamis também não passou pelo “radar” da
professora. Entretanto, entre os 180 vídeos, há alguns que colaboram para o debate sobre a questão
indígena: “o que é indigenismo”; “é indígena, senhor presidente (short)”; “aula descobrimento do
Brasil”; “a questão indígena no atual governo (2018); além disso temas como: democracia racial;
sentidos da nossa independência, entre outros contribuem para reflexão sobre a problemática
cultural brasileira.
Esses canais foram indicados pela ferramenta “Google Trends Topics” durante a pesquisa
para a elaboração do produto de DC, um vídeo sobre a problemática dos Yanomamis (2023), que
será melhor detalhado adiante.
A ferramenta “Google Trends Topics” é gratuita e disponibilizada pelo Google e ao utilizá-
la, esta indicou os quatro canais acima listados como canais de divulgação científica; alguns, pela
notoriedade do trabalho desenvolvido, são acessados por variados públicos e têm seus conteúdos
frequentemente recomendados pelos algoritmos da plataforma do YouTube. Embora, não
tenhamos esgotado os dados, haja vista a profusão de elementos a serem analisados, estes já nos
dão indícios do quanto é urgente enunciar as vozes dos nossos povos originários.

2 Ver: https://www.youtube.com/@cafehistoriatv/featured Acesso em: 28/07/2024


3 Ver: https://www.youtube.com/@historia_online Acesso em: 29/07/2024
4 Ver: https://www.youtube.com/@LiliSchwarcz Acesso em 29/07/2024

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Contudo, é importante ressaltar que para atingir o público, ampliando-se o debate sobre a
temática indígena na nossa sociedade não é suficiente apenas a emissão da mensagem, é necessária
uma comunicação assertiva e tempestiva para alcance de uma maior receptividade.
Os resultados a seguir buscam não apenas apresentar o produto elaborado, isto é, o vídeo
para o Youtube sobre a problemática dos Yanomamis (2023), e sim também, as motivações que
nos levaram a determinadas estratégias. Trata-se de um recorte das estratégias que estamos
desenvolvendo nesse campo empírico com o auxílio das nossas interlocuções teóricas.

Diálogos teóricos e a “práxis” no Youtube


“Teoria senza pratica è filosofia, pratica senza teoria è mera routine” (Antonio Gramsci, 2012).
As interlocuções teóricas propostas neste artigo estão alinhadas com o nosso campo
empírico e com o produto de Divulgação Científica (DC) nele desenvolvido. Devido às limitações
deste artigo, nosso foco é oferecer uma análise do contexto prático, sustentada por uma base
teórica. No entanto, leitores interessados em explorar mais profundamente as relações entre
Divulgação Científica e História encontrarão importantes contribuições nos trabalhos de Pires
(2023) e Carvalho e Teixeira (2019).
Além do âmbito da Divulgação Científica, nossas interlocuções teóricas encontram
respaldo nos campos do Ensino de História, História Pública e História Digital. Ao adentrarmos o
campo da Divulgação Científica, podemos, inicialmente, defini-lo como um processo de
didatização com o propósito de tornar acessível o conhecimento científico ao público leigo:

Esse processo envolve a tradução de uma linguagem especializada para uma linguagem comum e
próxima do cotidiano dos sujeitos. Mais do que simplesmente transmitir conhecimento, é necessário
estabelecer uma conexão com o público, independentemente do tema, a fim de que o conhecimento
seja verdadeiramente compartilhado e não apenas apresentado (Bessa 1984, 19).
Esse envolvimento do público vai além da mera observação, permitindo que ele participe
ativamente das decisões sobre temas de interesse da sociedade (Caldas e Zanvettor 2014, 5). Dessa
forma, a divulgação científica deixa de ser um fenômeno unilateral, transformando-se em um
exercício de diálogo.
Na contemporaneidade, a divulgação científica deve ocupar diversos espaços midiáticos,
indo além dos tradicionais, como as plataformas impressas. Essa abordagem possibilita o
engajamento em tempo real do público, utilizando uma variedade de canais e meios, como
audiovisuais, mídias interativas e redes sociais.
No que diz respeito ao nosso campo empírico, o YouTube, que em tradução livre significa
“você na televisão”, é uma plataforma de compartilhamento de vídeos e rede social. Nesse

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contexto, as mediações devem seguir critérios específicos para estabelecer pontes entre o usuário
e o produtor de conteúdos.
É relevante observar que a lógica por trás das recomendações é predominantemente
mercadológica, dado que o YouTube é uma empresa patrocinada por anúncios publicitários em
sua plataforma. Diante disso, a divulgação científica nesse meio digital exige adaptações para
aproximar os sentidos entre a linguagem das inteligências artificiais, a linguagem acadêmica e uma
linguagem massiva.
O termo “massivo” pode ser compreendido conforme o trabalho teórico do historiador
José Antônio Maravall, que destaca quatro características: a heterogeneidade em relação à formação
dos grupos sociais, a possibilidade de anonimato, a inserção parcial do indivíduo na massa e a
ausência de proximidade física (Maravall 1997, 184-185).
A conciliação entre os interesses da divulgação científica, que expressa em certa medida
saberes eruditos, e os interesses massivos demanda negociações de sentidos. No que tange à
linguagem acadêmica, o rigor metodológico e científico são imprescindíveis. Por outro lado, para
a linguagem destinada ao público leigo, o foco está no exercício da tradução, cujo objetivo não é
simplificar, mas sim um processo complexo de didatização capaz de despertar o seu interesse.
Nesse contexto, as palavras da professora e crítica literária argentina Beatriz Sarlo ilustram os
efeitos dessa relação:

As regras do método da disciplina histórica (incluindo suas lutas de poder acadêmico) supervisionam
os modos de reconstituição do passado ou, pelo menos, consideram ser esse um ideal epistemológico
(...) o que não quer dizer que a partir dela se alcance uma história de interesse para um grande público
(...) isso depende também de o historiador acadêmico não se obstinar em provar obtusamente sua
aquiescência às regras do método, mas, ao contrário, de demonstrar que elas são importantes
justamente porque permitem fazer uma história melhor (Sarlo 2007, 13).
É precisamente na direção de despertar o interesse do grande público, demonstrando que
as regras do método da disciplina histórica são relevantes porque possibilitam uma melhor
compreensão da história, que o campo do Ensino de História tem orientado nosso trabalho de
pesquisa a partir da empiria.
Afirmando que o ensino de História é um “lugar de fronteiras” (Monteiro 2007),
reconhecemos não apenas o hibridismo de saberes, mas também que suas “teias discursivas”
(Monteiro e Pires 2022) resultam de relações de poder, pois os conhecimentos validados em nossa
sociedade são atravessados por essas relações. Como nos lembra Foucault (2008), não há
(inter)ditos sem disputas, pois a enunciação é um poder pelo qual lutamos.
Então, como enunciar saberes invisibilizados, narrativas e trajetórias silenciadas nos
percursos históricos? Que estratégias são promissoras para ampliar o debate a partir dessa

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plataforma? Em outras palavras, como utilizar o algoritmo a serviço dessas reparações históricas?
Ou, nas palavras do historiador José Antônio Maravall: devemos dar “ao público o que ele deseja
ou se conseguir fazê-lo desejar o que é oferecido?” (Maravall 1997, 165).
Esses questionamentos não são de fácil resolução, sobretudo, porque envolvem também
dilemas éticos. Para Sarlo (2007) é imprescindível educarmos o gosto da maioria para que possamos
avançar na construção de uma sociedade democrática. Contudo, como efetuar esse processo
educativo sem incorrer no perigo da unilateralidade?
Por isso, nosso olhar teórico, ademais, tem sido orientado pela necessidade de uma ruptura
com uma visão da Divulgação Científica numa acepção moderna fundamentada no modelo
positivista, que, em síntese, defendia a neutralidade científica, desconsiderando os fatores sociais,
culturais e históricos circundantes.
Esse modelo positivista tem sido objeto de críticas por diversos autores contemporâneos,
sobretudo porque, conforme nos afirma Sandra Harding (1991), pesquisadora norte-americana nos
campos dos estudos feministas e decolonialidade, a Divulgação Científica deve considerar a
diversidade de perspectivas e valores culturais presentes na produção e recepção do conhecimento
científico.
Assim, o trabalho em nosso campo empírico não busca “iluminar” o público, conduzindo-
o a uma determinada “verdade” capaz de excluir outras verdades nas relações de poder. Podemos
afirmar que nossas práticas de Divulgação Científica no YouTube partem da premissa do
paradigma Ciência e a Sociedade.
Segundo Bauer et al. (2007, 85), o paradigma teórico da Ciência e Sociedade constitui uma
perspectiva de horizontalidade de saberes construídos em rede, saberes esses que são sensíveis e
demandados pela própria sociedade. Dessa forma, o público/integrantes da comunidade são vistos
como sujeitos ativos e não apenas como receptores passivos. É em direção a essa participação ativa
que à seguir iremos apresentar alguns resultados obtidos.

Indígenas no Ensino de História e Divulgação Científica: O que nos dizem as


métricas do Youtube?
A análise das métricas do Youtube Studio5 apresenta-se como um recurso para
compreender a relação entre o conteúdo e a audiência. A partir dessa perspectiva, é possível
identificar o perfil do público, seus interesses e preferências em relação ao conteúdo veiculado,
além de avaliar a efetividade da estratégia de divulgação.

5
O Youtube Studio é uma plataforma exclusiva para criadores de conteúdos atrelada a cada canal do Youtube.

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É importante relembrarmos que a plataforma que nos serviu como campo empírico é
impulsionada por uma lógica mercadológica. Isso implica afirmar que os produtores de conteúdos
podem impulsionar seus próprios conteúdos através de anúncios, o que pode ser uma das facetas
de competição desleal.
Outra faceta é que o Youtube irá, preferencialmente, recomendar àqueles conteúdos mais
promissores para reter a atenção do público por um período maior de tempo para que os anúncios
possam ser exibidos de forma mais recorrente. Nesse sentido, se o canal é mais robusto a tendência
é indicá-lo pois já é conhecido pelo público e ocupa de certa forma, um lugar de autoridade.
Enio Candotti acredita ser esta questão mercadológica, que também é atravessada por
problemas éticos, um dos obstáculos a serem superados. Voz nada isolada, ele se baseia nos
princípios de Budapeste para a popularização da Ciência defendidos também pela Unesco6.

Primeira impressão
O vídeo em análise foi publicado em 11 de fevereiro de 2023 e apresentava o seguinte
roteiro:

No Brasil, os Yanomami são uma das comunidades indígenas mais vulneráveis e ameaçadas. Suas
terras tradicionais, localizadas na fronteira entre o Brasil e a Venezuela, são ricas em minerais
valiosos, o que atrai os garimpeiros ilegais.
Esse garimpo ilegal não só destrói a biodiversidade e ecossistemas importantes, mas também coloca
em risco a saúde e segurança dos Yanomami e viola seus direitos territoriais. Além disso, o garimpo
ilegal também traz consigo doenças e violência, prejudicando gravemente a vida dessas
comunidades.
É importante que as autoridades tomem medidas para proteger as terras Yanomami e punir os
responsáveis pela exploração ilegal. Além disso, é crucial ouvir e apoiar as lideranças indígenas para
garantir que suas perspectivas e necessidades sejam levadas em conta. Juntos, podemos trabalhar
para proteger as comunidades indígenas e suas terras (Pires, 2023). 7
Este roteiro foi explorado em um minuto (mas não se tratava de um vídeo “short”8) através
de música, imagens, mapas e outros recursos. Desde então, em nosso canal ele vem ocupando a
primeira posição. É um fenômeno raro, haja vista que esse não é o primeiro conteúdo em que
abordamos a questão indígena, mas é o primeiro a obter essa performance. Existe uma alternância
entre as posições dos vídeos do canal, isso se deve, especialmente aos interesses do público.

6
Os Princípios de Budapeste para a Popularização da Ciência são um conjunto de recomendações elaboradas na
Conferência Internacional sobre a Popularização da Ciência, realizada em Budapeste, Hungria, em 1999.
7
Para visualizar o vídeo na íntegra e os recursos digitais utilizados acesse o link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=hhCorWm4z94?sub_confirmation=1
8
Os vídeos “shorts” possuem uma estrutura específica e, basicamente, são formulados com o objetivo de “capturar”
o espectador a partir de sua própria página inicial, por intermédio da rolagem de tela e não através dos mecanismos de
buscas.

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Destacamos de início, a importância que a temática ganhou na mídia devido às repercussões


à respeito da invasão das terras dos Yanomamis, o garimpo ilegal e outros fatores que acirraram
ainda mais o processo histórico de genocídio que vem submetendo esses povos ao longo do tempo.
Mas existem outros fatores que iremos analisar a seguir que podem nos ajudar na
compreensão do desempenho do vídeo e com isso quiçá oferecer subsídios para a produção de
outros conteúdos. Isto porque as métricas que serão analisadas, são dados estatísticos que buscam
inferir gostos de pessoas reais.
Considerando que o vídeo, referenciado neste trabalho, se refere a uma questão atual e em
destaque na mídia (garimpo ilegal em terras indígenas), podemos classificá-lo como “trend jacking”,
ou seja, uma tentativa de capitalizar em cima de um tópico ou tendência em alta no momento.
Porém, o tema em si (proteção das comunidades indígenas e seus territórios) é relevante e
atemporal, podendo ser abordado como um conteúdo “evergreen” em outras produções.
A elaboração de um discurso de curta duração, especialmente sobre temas complexos, pode
ser um desafio para comunicadores. Nesse sentido, torna-se fundamental justificar a escolha de
uma abordagem mais sucinta como parte de uma estratégia de comunicação clara e objetiva.
Nossa intenção primordial consistia em alcançar indivíduos que desejassem compreender
a problemática, mas que não estivessem dispostos a investir um tempo expressivo para tal, porque
consideramos ser essa uma tendência do nosso tempo, a aceleração da História (Hartog 2013).
No segundo momento da nossa estratégia, almejou-se a promoção de outros conteúdos do
canal que abordassem a mesma temática, utilizando este vídeo de um minuto como uma espécie
de “introdução” ou “cartão de visitas” para um público que ainda não estava familiarizado com o
nosso trabalho. A intenção era incentivar o público a se aprofundar em outros conteúdos mais
complexos disponíveis em nosso canal.
É importante ressaltar que a comunicação depende muito mais do quanto o espectador
deseja ouvir do que o quanto o comunicador é capaz de expressar-se. No Youtube, a taxa que
procura compreender a essa relação denomina-se “retenção”, que obviamente é precedida por um
“clique” (um voto de confiança do espectador).
Dadas as limitações desse texto, não iremos explorar todas as métricas desse vídeo,
voltaremos nossa atenção apenas àquelas taxas expressivas da “primeira impressão” e como esta
possibilitou reverter a presença dos usuários em outras taxas. Esta escolha é potente para que os
interessados em DC no campo da História possam elaborar suas próprias estratégias.
A taxa de impressões é um dado relevante para entender como um determinado conteúdo
está sendo exposto para o público-alvo. No Youtube, a taxa de impressão é uma métrica que indica

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a porcentagem de vezes em que o vídeo foi exibido em relação ao número total de vezes em que
ele apareceu nos resultados de pesquisa, recomendações e outras formas de divulgação na
plataforma. Para ampliar a taxa de impressão é necessário um bom trabalho de ranqueamento
(Pires 2023)
Uma alta taxa de impressão indica que o vídeo está sendo recomendado com frequência e
é considerado relevante para o público-alvo, enquanto uma taxa baixa pode indicar problemas com
o título, descrição ou miniatura (capa) do vídeo, que não estão atraindo a atenção dos usuários. No
vídeo em questão, obtivemos uma taxa de 3,9 mil impressões como demonstra a figura abaixo:

Figura 1 — Alcance (impressões, cliques, visualizações)


Fonte: Youtube Studio — Canal Historias para todos - Conteúdo restrito. Acesso: 01/05/2023
Embora uma taxa de impressões de 3,9 mil possa parecer baixa, é importante considerar
alguns fatores positivos. Em primeiro lugar, é preciso levar em conta o tamanho do canal, uma vez
que canais menores tendem a ter uma audiência mais limitada e, portanto, menor alcance. Nesse
sentido, 3,9 mil impressões podem ser consideradas um bom resultado para um canal de pequeno
porte.
Além disso, é importante considerar a qualidade do conteúdo produzido pelo canal. Uma
taxa de impressões mais baixa pode indicar que o conteúdo está sendo entregue a um público mais
segmentado e relevante, o que pode ser um fator positivo em termos de engajamento e fidelização
de uma audiência mais comprometida com o conteúdo.
Por fim, é importante lembrar que a taxa de impressões é apenas uma das métricas que
podem ser utilizadas para medir o sucesso de um canal no YouTube. Outras métricas, como taxa
de cliques, retenção e engajamento, também devem ser levadas em consideração para uma análise

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mais completa e precisa do desempenho do canal, mas como mencionado anteriormente, tais
análises iriam extrapolar os limites desse texto.
A partir das 3,9 mil impressões obtidas com o vídeo sobre os Yanomami (2023), foi possível
calcular a taxa de cliques e isto é um dado que a própria plataforma disponibiliza. A taxa de cliques
se mostrou positiva com um resultado de 4,9%. No contexto do YouTube, a taxa de cliques indica
o número de vezes que um vídeo foi assistido após o usuário ter clicado em sua “thumbnail” (capa
de vídeo).
É importante destacar que a “thumbnail” para usuários de smartphone está perdendo
relevância, pois o próprio aplicativo já vem reproduzindo o conteúdo automaticamente no “feed”
(fluxo de conteúdo) que aparece na página inicial do usuário, com vídeos recomendados e de canais
inscritos. Por isso, é fundamental também investir no ranqueamento da introdução de cada vídeo,
ou seja, os 30 segundos iniciais (Pires 2023).
Selecionamos o período de 25 de Janeiro de 2023 até 24 de abril de 2023 para comparação
das performances dos primeiros 28 dias de cada dia dos vídeos do canal. Assim, partindo dessa
primeira impressão, o vídeo em questão, obteve os seguintes resultados: nesse período, o vídeo
ficou em segundo lugar em relevância, mas não em termos de visualizações (neste período o vídeo
contava com 1161 visualizações).
Ele atraiu 491 novos espectadores, destes, dez retornaram ao canal, ou seja, 2,0% dos
espectadores. Quando esses usuários são classificados como aqueles que retornaram ao canal (e
não necessariamente para o vídeo) significa também que eles ainda não se inscreveram no canal.
Isso é um ponto positivo pois demonstra que os usuários se identificaram ainda que não tenham
assinado a inscrição no canal. O vídeo também conseguiu converter 1,8% em novos inscritos para
o canal, a partir dessa taxa de impressões.
É importante, pois, olharmos para o detalhamento destas visualizações, para
compreendermos o quanto o vídeo reverteu a primeira impressão, em cliques, cliques em retenção,
retenção em retornos e inscrições.

Conclusões
Este trabalho buscou contribuir para a compreensão do alcance e impacto da divulgação
científica em História em plataformas digitais, especificamente, no Youtube, destacando a
necessidade de adaptação constante às demandas do público e à lógica algorítmica.
A temática indígena, em destaque na mídia, associada a uma abordagem concisa, possui
potencial para capturar a atenção do público como foi demonstrado através da análise das métricas

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do YouTube para um vídeo específico sobre os Yanomami (2023) traduzindo estratégias eficazes
de divulgação científica.
A taxa de impressões positiva, considerando o tamanho do canal, indica relevância e
segmentação de audiência. A taxa de cliques, atingindo 4,9%, destaca a eficácia na conversão de
espectadores. A estratégia de usar o vídeo como introdução para conteúdos mais complexos
demonstra retornos positivos, refletindo na retenção e retorno de usuários.
Dessa forma, as conclusões apontam para a importância da didatização, engajamento e
respeito à diversidade de perspectivas na comunicação histórica no YouTube. O estudo sugere
diretrizes práticas para futuras produções, considerando a dinâmica do algoritmo, relevância
temática e estratégias de promoção de conteúdos mais aprofundados.

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***

Recebido: 23 de dezembro de 2023


Aprovado: 20 de abril de 2024

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Dossiê: Dossiê História Digital: tecnologia e fazer historiográfico
entre teoria e prática
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.43129

Poésie Grande Guerre: como a história digital desafiou cânones no


centenário da Primeira Guerra mundial*

Poésie Grande Guerre: How Digital History Challenged Canons during the First World
War Centenary

Poésie Grande Guerre: cómo la historia digital desafió los cánones durante el centenario
de la Primera Guerra Mundial

Julia Ribeiro S. C. Thomaz**


https://orcid.org/ 0009-0006-8804-8798

RESUMO: Diante da exclusão da poesia francesa da Primeira Guerra mundial da periodização


literária, da historiografia e da memória coletiva, o projeto Poésie Grande Guerre se serviu da
efervescência científica dos anos do centenário (2024-2018) para criar uma base de dados pública,
relacionando poetas, produções literárias e experiências da guerra. Rejeitando a ideia de estabelecer
um cânone análogo ao que existe nos países de língua inglesa, essa base de dados se inspira nas
abordagens big data e da linguística de corpus para oferecer uma visão geral da poesia da Grande
Guerra como uma categoria social que descreve uma prática cultural difusa. Examinando Poésie
Grande Guerre desde a sua construção, e principalmente o engajamento em torno desse projeto nas
redes sociais, o presente artigo se divide em três partes. A primeira, consagrada à historiografia,
demonstra como a poesia foi excluída das duas primeiras configurações da historiografia da
Primeira Guerra mundial na França e como, apesar de ser aceita na configuração mais recente, o
elemento digital fornecido pelo centenário foi o catalisador para um estudo desse corpus. A
segunda parte, teórica, examina como iniciativas digitais de inscrevem em um movimento mais
amplo de questionamento não só de cânones específicos mas também da canonização em geral.
Finalmente, a terceira parte, de natureza prática, demonstra como os processos de construção do

* Pesquisa financiada pela Bourse Gerda Henkel (Historial de la Grande Guerre) e pelo Prix d’Études des Mondes
Contemporains (Association Amis de la Contemporaine).
**
Doutora em literatura francesa pela Université Paris Nanterre e em história pela École des Hautes Études en Sciences
Sociales, trabalhando sobre funções e usos da poesia durante a Primeira Guerra mundial. Atualmente é pesquisadora
visitante na Digital Humanities Hub da School of Advanced Study – University of London. Publicou no Journal of War
and Culture Studies e em Matériaux pour l’histoire de notre temps e faz parte do comitê editorial de First World War Studies.
[email protected].

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modelo de dados e de engajamento com o público nas redes sociais foram, mais do que uma técnica
ao serviço da produção de um conhecimento que lhe seria externo, fundamentais para pensar a
poesia da Grande Guerra. Assim, o estudo argumentará que ferramentas digitais desafiam os
cânones literários e historiográficos, e movem portanto, a historiografia da Primeira Guerra
mundial em direção a uma poética histórica verdadeiramente pública e interdisciplinar.
Palavras-chave: Poesia. Primeira Guerra mundial. Literatura. História. Base de Dados.

ABSTRACT: Faced with the exclusion of French poetry of the First World War from literary
periodisation, from historiography and from collective memory, the Poésie Grande Guerre Project
took advantage of the scientific effervescence of the centenary years (2014-2018) to publish na
online database relating poets, literary productions and war experiences. Rejecting the idea of
establishing a canon analogous to the English one, the database takes inspiration from big data and
corpus lingustic approaches, offering an overview of First World War poetry as a social category
pointing towards a diffuse cultural practice. By examining Poésie Grande Guerre from its creation,
and especially the engagement the project produces on social media, the present article is divided
into three parts. The first one, dedicated to historiography, demonstrates how poetry was excluded
from the two initial historiographical configuration of French studies of the Great War and how,
despite being more accepted in the latest configuration, the digital element brought about by the
centenary was the real catalyst for this corpus’s study. The second part, more theoretical, examines
how digital initiatives are part of a broader movement that questions not only individual canons
but also the very processes of canonisation. Finally, the third part, of a practical nature,
demonstrates how processes of data model construction and public engagement on social media
were, more than a technique at the service of producing external knowledge, fundamental to the
understanding of French poetry of the First World War. Thus, this study argues that digital tools
defy literary canons and therefore move French historiography of the First World War towards a
truly public and interdisciplinary historic poetics.
Keywords: Poetry. First World War. Literature. History. Database.

RESUMEN: Ante la exclusión de la poesía francesa de la Primera Guerra Mundial de la


periodización literaria, de la historiografía y de la memoria colectiva, el proyecto Poésie Grande Guerre
aprovechó la efervescencia científica del centenario (2014-2018) para publicar una base de datos en
línea que relaciona a los poetas, las producciones literarias y las experiencias bélicas. Rechazando la
idea de establecer un canon análogo al inglés, la base de datos se inspira en enfoques de big data y
lingüística de corpus, ofreciendo una visión general de la poesía de la Primera Guerra Mundial
como una categoría social que delimita una práctica cultural difusa. Al examinar Poésie Grande Guerre
desde su creación, y especialmente el tráfico que genera el proyecto en las redes sociales, el presente
artículo se divide en tres partes. La primera, dedicada a la historiografía, muestra cómo la poesía
quedó excluida de las dos configuraciones historiográficas iniciales de los estudios franceses de la
Gran Guerra y cómo, a pesar de ser más aceptada en la última configuración, el elemento digital
propiciado por el centenario fue el verdadero catalizador para el estudio de este corpus. La segunda

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Julia Ribeiro S. C. Thomaz | Poésie Grande Guerre: como a história digital desafiou cânones no centenário
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parte, más teórica, examina cómo las iniciativas digitales son parte de un movimiento más amplio
que cuestiona no sólo los cánones individuales sino también los propios procesos de canonización.
Finalmente, la tercera parte, de carácter práctico, demuestra cómo los procesos de construcción de
modelos de datos y de participación pública en las redes sociales fueron, más que una técnica al
servicio de la producción de un conocimiento externo, fundamentales para la comprensión de la
poesía francesa de la Primera Guerra Mundial. Así, este estudio sostiene que las herramientas
digitales desafían los cánones literarios y mueven la historiografía francesa de la Primera Guerra
Mundial hacia una poética histórica verdaderamente pública e interdisciplinaria.
Palabras clave: Poesía. Historia. Primera Guerra mundial. Literatura. Base de datos.

Como citar este artigo:


Thomaz, Julia Ribeiro S. C. “Poésie Grande Guerre: como a história digital desafiou cânones no
centenário da Primeira Guerra mundial ”. Locus: Revista de História, 30, n. 1 (2024): 94-113.
***

“Não existe poesia da Primeira Guerra mundial na França”. Essa é a visão que parece ter
se consolidado ao longo do século XX. Em 1925, o poeta suíço e combatente na Legião Estrangeira
do exército francês Paul Æschimann (1925, 58) afirmou que a guerra não teve a influência decisiva
sobre a poesia francesa que alguns críticos queriam lhe atribuir. Três anos depois, Jean Norton Cru,
crítico literário e também veterano da Grande Guerra, que iniciava um projeto de catalogação e
avaliação das obras literárias produzidas por combatentes de 1914-1918 para ajudar historiadores
do futuro, lamentou que, como a poesia contém mais valor literário do que documental, sua
inclusão entre potenciais fontes históricas apresentaria mais inconvenientes que vantagens (Norton
Cru 1993 [1928], 11). Em 1991, Ian Higgins, editor da Anthology of First World War French Poetry
demonstrou que a poesia francesa da Primeira Guerra mundial não era lida pois o público estimava
que não valia a pena lê-la (Higgins 1996, vii). Finalmente, o historiador da guerra Jay Winter
argumentou que, enquanto nos países britânicos surgiram war poets (poetas de guerra), entendidos
como um substantivo composto (ou seja, como uma população bem delimitada e com práticas que
lhe são próprias), os outros países beligerantes produziram apenas poetas individuais que fizeram
a escolha individual de escrever ou não sobre a guerra (Winter 2017, 94). A história da poesia
francesa da Primeira Guerra mundial é uma história de esquecimento e de exclusão.
As comemorações do centenário da Grande Guerra entre 2014 e 2018 permitiram uma
mudança nesse cenário graças, principalmente, ao componente público e digital da pesquisa
histórica produzida durante esse período. Uma abordagem baseada em big data e que lançou mão

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dos esforços de digitalização de arquivos financiados pela Mission du Centenaire (o órgão ministerial
que geriu as comemorações na França) permitiu a identificação de milhares de poetas franceses que
escreveram sobre ou combateram durante a Primeira Guerra mundial. As contribuições da história
digital, contudo, vão além de simplesmente tirar essa poesia do esquecimento. Se, como vimos
acima, Jay Winter argumentou que existe uma diferença gritante entre a exclusão da poesia de
guerra na França e sua forte presença nos países anglófonos, essa oposição deve ser nuançada. A
poesia dominante na Inglaterra foi escrita por uma dezena de poetas canônicos (cujos principais
expoentes são Wilfred Owen e Siegfried Sassoon), cujos manuscritos e documentos pessoais foram
digitalizados pelo First World War Poetry Digital Archive. A falta de diversidade nesse cânone,
composto em sua maioria por homens brancos, de classe média, educados nas grandes escolas
britânicas e em Oxford e Cambridge e que serviram como suboficiais durante a guerra, não
representa as diferentes experiências da Primeira Guerra mundial (o projeto examinado no presente
artigo multiplicou por mais de cem o número de poetas examinados para o caso francês, e permite
acesso a dados como profissão e escolaridade, facilitando assim uma história baseada em perfis
sociais mais diversos). Assim, a hipermnésia canônica dos poetas britânicos termina por distanciar
história e literatura, que parecem querer estabelecer dois cânones diferentes e, às vezes,
conflituantes: um baseado em representatividade histórica e outro baseado no valor literário das
obras. A “tela em branco” do caso francês, onde não só um cânone não foi estabelecido mas onde
a poesia foi excluída da periodização literária, da historiografia e da memória coletiva, abre a
possibilidade de uma nova relação entre história e poesia, que não seja baseada em processos
opostos de canonização. O presente artigo mostra como a história pública e digital ajudou a
construir tal ponte entre história e literatura e a evitar processos de canonização da poesia durante
o centenário da Primeira Guerra mundial na França.
Mais especificamente, esse estudo examinará o projeto de humanidades digitais Poésie
Grande Guerre, que construiu e disponibilizou online uma base de dados ligando detalhes biográficos
de poetas que escreveram durante ou sobre a Primeira Guerra mundial, suas eventuais experiências
militares (apesar da base incluir também poetas civis) e suas produções literárias. Além disso, o
artigo explorará a importância das redes sociais, e particularmente do X (antigo Twitter) para a
produsage (produção de dados pelos usuários de projetos digitais – Bruns 2018) de dados que
caracteriza não só Poésie Grande Guerre mas também a maior parte dos projetos de história pública
digital o que, por sua vez, contribui para a dissolução de cânones. O artigo partirá da historiografia
da Primeira Guerra mundial e dos três estágios pelos quais ela passou na França, abrindo caminho
tanto para a história digital quanto para que a poesia pudesse ser vista como fonte e também como

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objeto de estudo. Em seguida, ele abordará a teoria, demonstrando os problemas que o


estabelecimento de cânones poéticos cria para uma relação interdisciplinar entre História e
Literatura, bem como o potencial da história pública para combater esses processos de
canonização. Finalmente, o artigo passará à prática dessa história pública e digital e examinará de
perto o caso de Poésie Grande Guerre e sua relação com as redes sociais. Assim, o estudo argumentará
que ferramentas digitais desafiam os cânones literários e historiográficos, e movem portanto a
historiografia da Primeira Guerra mundial em direção a uma poética histórica verdadeiramente
pública e interdisciplinar, que não depende de cânones e que conta com a produsage dos usuários
para construir um corpo de textos que represente e contextualize as práticas poéticas do tempo da
guerra.

Historiografia, ou a crônica de uma ressureição inesperada

Apesar dos números consideráveis de produção e circulação de poemas, coletâneas e


antologias durante a Primeira Guerra mundial, o esquecimento dessa poesia, ilustrado pelas
afirmações que abrem o presente estudo, não surpreende muito. Na realidade, a exclusão da poesia
é condizente com as duas primeiras configurações da historiografia francesa da Grande Guerra. A
primeira fase dessa evolução, que começa no período entre os dois conflitos mundiais, se dedicava
principalmente à história militar (descrevendo batalhas específicas de um ponto de vista tático ou
estratégico) e à história diplomática (examinando a crise do verão de 1914 e, na França, visando
responsabilizar a Alemanha pela guerra). Esse período da historiografia pouco se importava com a
experiência humana da guerra, apesar do interesse que o leitorado francês demonstrava ter por
autobiografias, memórias, coletâneas de correspondências, romances e até poemas de guerra. Não
eram somente as obras poéticas mas a literatura em geral que estava completamente fora do
horizonte de interesses dos primeiros historiadores franceses a se dedicar à Grande Guerra.
Após a Segunda Guerra mundial, a historiografia do conflito precedente começa a se
interessar pela história social, se alinhando às linhas de pesquisa de orientação marxista que
dominavam as universidades francesas nos anos 1950 e 1960. Apesar do interesse pelas relações
humanas em tempos de guerra e pelas formas de adaptação que estruturas sociais dos tempos de
paz sofreram nas trincheiras, essa segunda configuração não foi mais indulgente com a poesia que
a anterior. Jay Winter e Antoine Prost (2004) marcam o início dessa segunda geração pela obra Vie
et Mort des Français, publicada em 1959 por veteranos da Primeira Guerra mundial. O prefácio dessa
obra foi escrito pelo romancista de guerra Maurice Genevoix, cuja canonicidade e importância para
a memória literária da Grande Guerra foi confirmada pelo seu sepultamento no Panthéon em Paris
no fim das comemorações do centenário, colocando um veterano de guerra ao lado de nomes

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como Victor Hugo e Jean Jacques Rousseau. O convite feito a Genevoix para escrever o prefácio
de uma obra de história (e que é hoje reconhecida como o marco de uma mudança de paradigma)
demonstra uma aproximação entre a historiografia da Primeira Guerra mundial em sua
configuração social e a literatura. Contudo, o próprio Genevoix afirma que o público perdera o
interesse pela literatura de guerra e preferia, no fim dos anos 1950, a história tradicional. Assim,
apesar da presença de Genevoix, Vie et Mort des Français representa uma passagem sucessória, onde
a responsabilidade pela memória da Primeira Guerra mundial passa dos atores e suas obras literárias
para os historiadores e suas análises. História e literatura se aproximam somente para confirmar
seu divórcio. A poesia, em compensação, continua completamente ausente do debate, como se a
tensão entre literatura e a história social da segunda geração de pesquisadores franceses não lhe
dissesse respeito.
Se é relativamente fácil compreendermos o porquê da exclusão da poesia dessas duas
primeiras configurações historiográficas, já que existem fontes mais bem qualificadas para a
descrição de batalhas ou de assuntos geopolíticos, bem como para uma história social, é
interessante notar o espaço ocupado (ou não) pela poesia na terceira fase da historiografia francesa
da Grande Guerra: a história cultural. Nos anos 1990, no crepúsculo do curto século XX, do qual
a Primeira Guerra mundial pode ser vista como o evento inaugural, a principal preocupação dos
historiadores era de recontextualizar 1914-18 face à morte dos últimos veteranos e reconhecer o
conflito como o laboratório das violências de massa que se produziram nos anos subsequentes.
Essa nova configuração historiográfica se interessa assim pela figura do combatente, suas
experiências individuais e sensoriais e o papel que elas tiveram na “brutalização” (Mosse, 1999) das
sociedades europeias. Segundo Élise Julien, nessa terceira fase da historiografia da Primeira Guerra
mundial a preocupação central é com o papel do testemunho na historiografia e com a relação
entre memória e história (Julien 2004, 53). Essas questões abrem os estudos sobre a Grande Guerra
às fontes literárias, cujo caráter supostamente subjetivo e singular (Jenny, 1990) se converte numa
vantagem para historiadores que se interessam precisamente pelas experiências individuais. Assim,
a poesia poderia se integrar à terceira configuração da historiografia da Primeira Guerra mundial.
Inaugurado pela obra de George Mosse sobre a brutalização citada acima, o paradigma da
história cultural da Grande Guerra se consolida com os trabalhos de Stéphane Audoin-Rouzeau e
Annette Becker. Os poemas começam a aparecer, ainda que de forma tímida, nos trabalhos desses
três pioneiros. George Mosse reconhece que os combates do fronte invadiram prosa e poesia e que
esses textos seriam determinantes para a visão que contemporâneos e gerações futuras teriam da
guerra (Mose 1999, 8), inscrevendo a produção poética de 1914-1918 na continuidade dos poemas

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da Guerra de Libertação Alemã (1813), que construíram uma consciência nacional não por recorrer
à razão ou à lógica, mas por sua facilidade de memorização e reprodução (Mosse 1999, 27). Apesar
disso, uma reflexão mais profunda sobre a poesia da Primeira Guerra mundial não foi incluída na
obra de Mosse. Já no livro seminal 14-18 Retrouver la guerre, entre testemunhos e correspondências,
encontram-se letras de música escritas por Claude Debussy, bem como poemas escritos por
Guillaume Apollinaire e Edmond Fleg, que ilustram a simbiose entre experiência individual da
guerra e o repertório simbólico socialmente partilhado que define a cultura de guerra (Audoin-
Rouzeau e Becker 2000, 145).
Na realidade, antes mesmo de ajudar a definir o paradigma da cultura de guerra, Stéphane
Audoin-Rouzeau já havia afirmado que a poesia servia para descrever aquilo que era insustentável,
para ajudar a tornar aceitáveis algumas atrocidades ou até mesmo para usar a forma poética para
atenuar os horrores relatados (Audoin-Rouzeau 1986, 84-87). Em seu estudo sobre as formas de
luto durante a guerra, Audoin-Rouzeau lança mão de uma abordagem micro-histórica para estudar
os casos das poetas Vera Brittain e Jeanne Catulle Mendes (Audoin-Rouzeau 2001), demonstrando
assim que a poesia é uma fonte privilegiada para estudar o luto, um processo que foi repetido por
Carine Trevisan no mesmo ano. Esses dois estudos sobre o luto fornecem ferramentas teóricas e
metodológicas para pensarmos a relação entre poesia e historiografia da Primeira Guerra mundial
em relação a outros aspectos da experiência da guerra e inauguram duas décadas de
amadurecimento de um diálogo.
Os trabalhos subsequentes que exploram as fronteiras entre história e poesia foram
diversos. Annette Becker, por exemplo, mostrou que revisitar a biografia de um dos poucos poetas
da Primeira Guerra mundial que escaparam do esquecimento, Guillaume Apollinaire, a partir do
paradigma da história cultural pode ser profícuo para esclarecer elementos biográficos e ligados à
representação e à conduta da guerra, mas também para explorar o verdadeiro problema
historiográfico de como reintroduzir os indivíduos nas análises culturais. Essa última questão
também foi confrontada por Marion Carel e Dinah Ribard, que estudaram o poder de testemunho
da poesia de Marc de Larréguy de Civrieux. Nos estudos literários, Laurence Campa foi a primeira
pesquisadora a associar sua leitura literária e as questões da terceira configuração historiográfica da
Primeira Guerra mundial em sua obra Poètes de la Grande Guerre. Com efeito, o estudo de Campa
porta tanto sobre as obras poéticas quanto sobre as experiências de guerra dos cinco casos
canônicos estudados. Entre historiadores, Nicoas Beaupré, herdeiro dos pioneiros da história
cultural e que já havia incluído a poesia em seus estudos sobre as práticas literárias do tempo da
guerra (Écrits de guerre) refletiu sobre as especificidades da poesia como fonte histórica sobre os

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regimes de historicidade próprios à Primeira Guerra mundial (Beaupré 2013 e Beaupré 2021).
Apesar desses trabalhos seminais e de extrema importância, historiadores não foram além do uso
de poemas como fontes e os estudos literários não foram além das obras de poetas relativamente
conhecidos e canônicos. As comemorações do centenário mudaram isso, e a próxima seção do
presente artigo será consagrada a uma análise teórica de como, apesar dos avanços permitidos pela
história cultural que levaram a uma certa ressurreição da poesia, processos de canonização
impediram que essa prática saísse completamente das sombras e como os anos do centenário
reuniram as condições perfeitas para que práticas de história pública digital completem essa
evolução que já dura um século.

Teoria: Faire taire les canons1

Se a historiografia da Primeira Guerra mundial evoluiu progressivamente numa direção que


permitiu a inclusão da poesia, porque esses textos não foram objeto de um estudo sistemático antes
das comemorações do centenário? A presente seção, cuja abordagem é principalmente teórica,
levanta duas hipóteses para responder essa questão. A primeira delas é que, apesar dos avanços,
nem a História nem a Literatura conseguiram se livrar dos processos opostos de canonização aos
quais elas submeteram a poesia da Primeira Guerra mundial. A segunda é que as comemorações
do centenário trouxeram consigo ferramentas e práticas da história pública e digital que permitiram,
finalmente, o silenciamento da estrutura canônica.
Uma análise quantitativa de quatorze antologias poéticas publicadas entre 1915 e 1926
demonstra a dificuldade de identificar um cânone da poesia da Primeira Guerra mundial durante
ou imediatamente após o conflito. O único poeta que aparece regularmente (e que, ainda assim,
está presente em apenas seis das obras estudadas) é Théodore Botrel, dispensado do serviço militar
em 1888 mas contratado pelo Exército em 1914 para percorrer o fronte cantando e recitando
poemas. Botrel, contudo, não é um dos poetas associados à memória do primeiro conflito mundial
no século XX. Essa leitura das antologias editadas pelos contemporâneos da guerra demonstra que
não existia uma poesia canônica da Primeira Guerra mundial, mas sim várias poesias de guerra. E
isso talvez não seja uma coisa ruim.
O espaço negativo deixado por esse não-cânone francês é acentuado, por contraste, quando
comparado à war poetry (poesia de guerra) britânica, cuja importância para a memória coletiva está

1
Em francês, a palavra “canon” designa tanto “canhão” quanto “cânone”. Assim, a polissemia do título da presente
seção significa, portanto, “silenciar os cânones/canhões”, indicando a necessidade de ir além das hierarquizações de
textos impostas tanto pelo contexto da guerra quanto pela busca por representatividade/valor literário por parte de
historiadores e críticos literários, respectivamente.

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diretamente ligada aos processos de canonização que fizeram do poema Dulce et Decorum Est, do
poeta de guerra Wilfred Owen, o texto poético mais importante dos exames do ensino secundário
na Inglaterra (Blake 2020). A observação do caso inglês permite ver como processos de
canonização transformaram práticas literárias diversas em objetos culturais monolíticos e
facilmente identificáveis, mas também como esses processos de redução a um cânone prejudicam
a relação entre história e estudos literários. Ann-Marie Einhaus (2011) identifica não um mais dois
cânones concorrentes da literatura da Primeira Guerra mundial: aquele estabelecido por críticos
literários (e que engloba principalmente obras modernistas) e aquele dos historiadores culturais.
Assim, apesar de considerar que a Grande Guerra é o evento por excelência cujo estudo e
comemoração têm por base uma convergência entre história e literatura, Einhaus afirma que a
existência desses dois cânones acaba por afastar estudos literários e estudos históricos. Portanto,
um dos motivos pelos quais a poesia francesa da Primeira Guerra mundial não se tornou um objeto
de estudo legítimo antes do centenário apesar dos avanços da história cultural está ligado ao fato
de um tal estudo exigir uma abordagem verdadeiramente interdisciplinar, mas essa
interdisciplinaridade é dificultada pela oposição entre o cânone que a crítica literária tenta
estabelecer (os “melhores” poemas seriam aqueles que têm o melhor estilo ou são mais inovadores)
e aquele dos historiadores (os “melhores” poemas seriam aqueles que melhor representam a
experiência coletiva do evento histórico).
Além de aumentar a distância entre História e poesia, esses processos de canonização
também apresentam problemas estruturais. A reflexão sobre o porquê de não estabelecer um
cânone nos modelos da war poetry para o caso francês mas, ao contrário, preferir usar a poesia
francesa como um laboratório permitindo evitar completamente as estruturas canônicas se inscreve
no prolongamento das canon wars (guerras dos cânones) que começaram nas universidades
estadunidenses nos anos 1980. Em 1988, quando alunos de Stanford questionaram não só a
bibliografia mas a existência do curso “Western Culture” (Cultura Ocidental) por seu caráter
etnocêntrico, dois campos se abriram: os defensores do cânone como tendo um alcance humanista
e universal (essas obras seriam portanto um patrimônio de toda a humanidade) e aqueles que
denunciavam a falta de diversidade étnica e de gênero desses textos fundadores. Intelectuais
feministas, e principalmente Griselda Pollock, ofereceram uma terceira via: ao invés de tentar
substituir o cânone masculino e branco por um cânone mais diverso, as canon wars oferecem uma
oportunidade de questionar a estrutura canônica e as ideologias que nos forçam a escolher os
“melhores” textos, que seriam dotados de valores estéticos tranhsitóricos.

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Se o presente artigo é, em grande parte, tributário dessa leitura norte-americana dos


processos de canonização, convém também examinar como cânones são construídos na França,
pois nesse país a relação entre a nação e o cânone parece ainda mais explícita. “Aux grnads hommes
la patrie reconnaissante” [“Aos grandes homens, a pátria é grata] dizem as pedras claras do Panthéon
de Paris, onde reposam os maiores nomes – os autores canônicos – da França. Naquele país, os
textos canônicos (aqueles que são ensinados na escola e que integram a prestigiosa coleção
Bibliothèque de la Pléiade) são mais comummente chamados “clássicos”. Antoine Compagnon (1998,
269) explica a evolução que tornou os dois termos sinônimos: na Antiguidade Clássica, o cânone
era uma norma e as obras que a empregavam e que deviam, portanto ser imitadas. No medievo, a
Igreja estabeleceu um cânone de livros divinamente inspirados e portanto dotados de autoridade.
Esses dois modelos foram combinados no século XIX, quando escritores foram reconhecidos
comos os heróis das nações e dos nacionalismos recém-formados. Alçando autores nacionais ao
panteão (e Panthéon) greco-latino, os cânones se tornam nacionais e, no caso da França, onde essa
elevação das artes faz parte da laicidade e de sua definição como valor central da República, cânone
e identidade nacional são indissociáveis. A tentação de estabelecer uma lista canônica para
momentos marcantes da história da França (e da Primeira Guerra mundial em específico) é,
portanto, grande. Apesar disso, um estudo sobre a poesia francesa da Primeira Guerra mundial que
precisa se livrar dos cânones opostos para poder existir é também central para estabelecer a zona
de fronteiras entre poesia e história como uma zona de questionamento não só de um cânone
específico mas também da própria necessidade de canonização.
Apesar das claras vantagens teóricas de abordar a poesia da Primeira Guerra mundial do
ponto de vista de um corpus heterogêneo de textos e não de um cânone hierarquizado – uma
abordagem que se inscreve na continuação da evolução historiográfica do século XX -, as
ferramentas e práticas que permitiriam essa abordagem só se desenvolveram durante o centenário
da Grande Guerra. Com efeito, os anos de 2014-2018 foram um momento de grande efervescência
par os estudos da Primeira Guerra mundial, mas também para as humanidades digitais e para a
história pública digital. Segundo Frédéric Clavert, a grande marca do centenário é que essa foi a
primeira comemoração nacional francesa na qual as principais mídias foram as redes sociais
(Clavert 2016). Assim, durante o centenário, as práticas historiográficas puderam contar com a web
não só para alcançar um público maior, mas também para transformar esse público em atores ativos
da escrita da história, uma característica da história publica digital (Lucchesi 2014). Assim, o Twitter
(atualmente X) se tornou uma plataforma central para uma comemoração construída através da
colaboração entre historiadoras profissionais, amadoras e membros do público em geral. Em

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paralelo a isso, durante os anos do centenário, vieram à tona vários projetos de digitalização e
anotação de fontes, que se baseavam não só numa abordagem de big data que prioriza o acesso a
uma grande quantidade de dados (como Europeana 14-18, que digitalizou mais de 400.000
documentos), mas também em esforços coletivos de indexação e anotação (como a iniciativa
coletiva Un jour un poilu, que visava transcrever as 1.395.290 fichas de combatentes franceses mortos
pela pátria durante a Grande Guerra). Com efeito, em 2023, com a conclusão da fase intermediária
do projeto que viu seus primeiros resultados serem publicados, constatou-se que 683 poetas da
Primeira Guerra mundial tinham experiência de combate, e que esses indivíduos haviam pertencido
a, pelo menos, 450 unidades diferentes do exército francês. Ora, os registros militares de cada um
desses 683 poetas é conservado nos arquivos do departamento (região administrativa francesa –
existem mais de cem) onde ele se alistou, enquanto os diários regimentais, que permitem retraçar
o percurso de um regimento, são conservados no Serviço Histórico da Defesa em Paris. Uma
pesquisa dessa envergadura, que exige a consulta dessas fontes, não seria viável em um contexto
de precarização das ciências humanas se tais fontes não houvessem sido digitalizadas pelos arquivos
departamentais e pela plataforma Mémoire des Hommes respectivamente, graças ao investimento da
Missão do Centenário em projetos de humanidades digitais. Assim, a evolução historiográfica
descrita acima, a necessidade teórica de se combater os processos de canonização e as práticas da
história pública digital que a concebem como um lócus privilegiado para a interdisciplinaridade e o
diálogo (Lucchesi 2013) parecem ter convergido nos anos do centenário, permitindo enfim um
ressurgimento da poesia da Primeira Guerra mundial, bem como um questionamento das práticas
de canonização. Na próxima seção, examinaremos o projeto de humanidades digitais Poésie Grande
Guerre e como ele fez aparecer um corpo de textos que fora esquecido durante um século sem para
tal recorrer à hierarquização e à canonização.

Prática: Poésie Grande Guerre

O projeto Poésie Grande Guerre, dirigido por Laurence Campa na Université Paris
Nanterre/Université Paris Lumières reune pesquisadoras nas áreas de Letras, História e História
da Arte, em diferentes estágios de suas carreiras acadêmicas (do mestrado a professoras titulares).
O projeto tem por objetivo a criação, disponibilização e constante alimentação de uma base de
dados de poetas franceses e francófonos da Primeira Guerra mundial. Esse objetivo, bastante
ambicioso, depende diretamente do caráter colaborativo e interdisciplinar do projeto, cuja vocação
é de reagrupar grandes quantidades de dados para constituir e valorizar um grande corpus de textos
entendidos pela primeira vez como formando um todo (e não como um conjunto de produções
individuais) delimitado pela intersecção entre escrita poética e experiência (civil ou militar) da

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da Primeira Guerra mundial

guerra, sem que a questão do valor das produções, que esse valor seja documental ou estético, seja
um fator determinante para a inclusão ou não na base. Com efeito, representatividade e qualidade
literária deixam de ser fatores explicativos e passam a integrar o fenômeno que a base visa a explicar.
A abordagem não se pretende exaustiva, com a base crescendo a partir de recomendações dos
próprios usuários (que serão discutidas abaixo), mas sim ampla: a definição de poesia adotada é
social (é poeta toda pessoa socialmente reconhecida como tal) e, para facilitar comparações
posteriores, a base não faz distinção entre combatentes e civis. Isso permite de responder a
questionamentos que dificilmente seriam feitos em estudos monográficos sobre poetas individuais
ou se o objetivo da base fosse estabelecer um cânone: porque poetas (tanto profissionais quanto
amadores) escolheram dar forma poética aos seus pensamentos sobre a guerra? Quais são as
diferenças entre prosa e poesia como meio para atribuir sentido à guerra? Que impactos guerra e
poesia têm uma sobre a outra?
Assim, Poésie Grande Guerre demonstra que as humanidades digitais vão além de uma simples
techné ao serviço de uma épistémé que a precede e que ela simplesmente permite alcançar de forma
mais eficiente. As humanidades digitais fazem parte de uma reflexão que permitiu tirar a poesia da
Primeira Guerra mundial do esquecimento pois elas oferecem novas maneiras de pensar, dentre as
quais o presente artigo destaca produsage e a recusa de processos de canonização. Segundo David
M. Berry,

Indeed, we could say that third-wave digital humanities points to the way in which digital technology
highlights the anomalies generated in a humanities research project and which leads to the
questioning of the assumptions implicit in such research, for example close reading, canon
formation, periodisation, liberal humanism and so forth (Berry 2012, 5).
Isso significa que a história digital, e mais especificamente a abordagem prosopográfica da
base de dados que representa a relação tridimensional entre poeta, guerra e poema, tudo isso em
larga escala, fornecem um quadro para a convergência entre História e poesia a partir do estudo do
corpus (que se opõe ao cânone) de poemas da Primeira Guerra mundial. Essa convergência se
baseia nos diferentes graus de proximidade de análise permitidos pela história digital, pois a base
de dados oferece um panorama geral da experiência que poetas tiveram da Primeira Guerra
mundial, mas também permite uma leitura próxima de casos específicos, sejam eles representativos
ou não.
Ao evitar os cânones, Poésie Grande Guerre evita também, portanto, uma visão reificada e
hipostasiada da poesia, que implicaria a mobilização de noções abstratas do que é a poesia no geral
e a poesia de guerra em específico. Isso levou a um corpus de textos de mais de 1.500 poetas, dos
quais aproximadamente metade fez a guerra em um dos frontes. Nem todos esses poetas
escreveram sobre o conflito, o que é um outro avanço na relação entre poesia e história

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possibilitado pelo projeto Poésie Grande Guerre: contrariamente a um ego-documento ou até mesmo
um romance, um poema não precisa falar da guerra para dizer algo sobre ela. Assim, abandonar a
ideia de um cânone em favor da definição de um corpus constituído pela prática poética delimitada
por uma definição social da poesia, o que é possibilitado pelo modo de pensar em grandes
quantidades de dados oriundo do trabalho na base de dados, permite também de trabalhar com a
categoria de “poetas de guerra sem poemas de guerra”, reconfigurando o pensamento sobre a
poesia da Primeira Guerra mundial.
Na prática, isso significa que Poésie Grande Guerre, mais do que simples método, foi uma
ferramenta heurística para transformar a forma como vemos a poesia. Como exprimiu Jay Winter
(citado acima), a poesia francesa da Primeira Guerra mundial não é entendida como um todo, mas
sim como uma coleção de poetas individuais, alguns dos quais escaparam ao esquecimento que
virou a norma ao longo do século XX: Guillaume Apollinaire, Blaise Cendrars e Charles Péguy,
por exemplo. A maior parte das obras sobre a poesia da Grande Guerra na França, mas também
em outros países beligerantes, parece de fato se concentrar em um número restrito de poemas:
Campa (2010), Parenteau (2014) e Collonges e Victoroff (2021), por exemplo. Por outro lado, a
construção de uma base de dados prioriza uma visão mais geral da população de poetas e uma
abordagem prosopográfica (uma biografia coletiva). Assim, a decisão de abordar a poesia da
Primeira Guerra mundial não do ponto de vista de um cânone (como teria sido mais evidente, dada
a proeminência do caso inglês) mas sim de um corpus não precede o trabalho com a base de dados.
Ou seja, o raciocínio não foi “trabalhemos com um corpus, portanto com uma base de dados e
uma metodologia prosopográfica”. Na verdade, a questão central de quem escreveu poesia durante
a Primeira Guerra mundial levou à ideia da base de dados, mas foi o processo de listar nomes para
incluí-los na base que trouxe à tona a distância entre os (raros) nomes retidos pela memória coletiva
e pela história literária e a verdadeira dimensão da prática poética durante a Grande Guerra. Assim,
isso levou a um questionamento de práticas de redução da literatura a alguns grandes nomes, o que
direcionou as pesquisadoras de Poésie Grande Guerre às referências das canon wars e confirmou a
escolha metodológica da base de dados, bem como a importância memorial de tornar esses dados
disponíveis para o público em geral.
Essa vocação de larga escala também determinou as fontes históricas com as quais Poésie
Grande Guerre se engajou. Apesar de uma lista exaustiva de todos os poetas que escreveram durante
ou sobre a Primeira Guerra mundial ser um objetivo inalcançável, o processo de Poésie Grande Guerre
passou a exigir uma análise das fontes usadas para encontrar poetas (particularmente a Anthologie
des écrivains morts à la guerre, publicada entre 1924 e 1926, o Bulletin des écrivains combattants, um

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periódico enviado gratuitamente aos escritores mobilizados, e a coleção de poesia da Primeira


Guerra mundial da biblioteca e arquivo La Contemporaine) em termos não somente dos poetas
que elas ajudaram a descobrir mas também em termos dos cânones que elas eram susceptíveis de
produzir, para então buscar outras fontes capazes de equilibrar esses vieses. Uma das analogias
fundadoras das humanidades digitais, que implementou a ideia de leitura distante, vem de Franco
Moretti (2005 e 2013), que nos diz que literários devem construir modelos interpretativos que
permitam ver a floresta e não só as árvores. Desenvolvimentos mais recentes levaram à ideia de
uma scalable reading (Blake 2020), uma leitura escalonada que pode ir de próxima a distante. Assim,
a história digital, os estudos literários digitais e Poésie Grande Guerre se beneficiaram desse jogo de
escalas para evitar cânones mas, ao mesmo tempo, a percepção da necessidade de evitar cânones
veio do processo de construção da base de dados e da visão geral que ela permitiu: se a prática
prosopográfica se consolidou na historiografia da Primeira Guerra mundial desde sua configuração
social, ela não tinha se expandido à interface entre história e literatura devido ao foco dessa última
em vozes singulares.
Entretanto, a visão geral não foi a única contribuição da história digital para esse projeto.
O processo de construção da base de dados também informou a visão de poesia delimitada acima
(a poesia como uma categoria social, que transcende não só o valor literário mas, às vezes, os textos
em si). Para construir a base, o seguinte modelo foi elaborado:
● Três tabelas: Indivíduos, Produções Literárias e Estados de Serviço Militar.
● A chave que liga as três tabelas é o identificador individual, que é designado a cada poeta
individual na tabela “Indivíduo” e vira um registro no atributo “Id_Poeta” nas tabelas
“Produção” e “Estado de Serviço”.
Para resumir, a principal forma de identificação, que mais tarde une poeta, poema e
experiência de guerra, corresponde a um indivíduo, ou seja, um poeta. Assim, o processo de
construção de Poésie Grande Guerre demonstrou que uma análise das práticas poéticas da Primeira
Guerra mundial deve sempre partir dos poetas. Em termos práticos, isso significa que o primeiro
passo do projeto após a criação do modelo de dados foi o estabelecimento de uma lista de poetas.
Contudo, o valor heurístico dessa construção vai muito além. Partir dos poetas significa que a
definição de poesia deve ser social: é poesia tudo aquilo que é escrito por poetas, e é poeta todo
individuo socialmente reconhecido como tal. Essa definição social é de extrema importância para
um trabalho que investiga a poesia do século XX. Com efeito, na segunda metade do século XIX,
a poesia se tornou cada vez mais difícil de definir: a crise dos versos anunciada pelo poeta Stéphane
Mallarmé e o poema em prosa popularizado por Charles Baudelaire liberaram a poesia da forma

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versificada e a tornaram mais difícil de reconhecer textualmente. Partir do poeta evita a discussão
(comum, mas nem sempre útil) sobre o que é ou não um poema depois da Belle Époque. Essa
liberação da poesia de sua forma versificada vai, contudo, além e se torna uma liberação do texto
em si, que é particularmente relevante no contexto da Primeira Guerra mundial. Ao considerar os
poetas reunidos na Anthologie des écrivains morts à la guerre (que são também os poetas comemorados
nos muros do Panthéon), bem como as necrologias dos poetas publicadas durante a guerra,
constata-se que muitos deles não escreveram poemas de guerra e sequer haviam publicado seus
poemas dos tempos de paz. Um dos elementos recorrentes dessas necrologias é a homenagem
rendida a poetas mortos jovens demais, promessas literárias que a guerra ceifou antes que elas
pudessem ser cumpridas. Charles Péguy, um dos raros poetas franceses a serem diretamente
associados à Primeira Guerra mundial devido a sua morte na Batalha da Marne em setembro de
1914, é provavelmente o mais famoso dos “poetas de guerra sem poema de guerra”: Péguy morre
sem publicar sobre a guerra em curso e seus poemas que falam sobre soldados franceses e alemães
são referentes à Guerra Franco-Prussiana de 1870-71. Mas Péguy é apenas um entre as centenas de
“poetas de guerra sem poemas de guerra”. O processo de construção da base de dados, que faz do
poeta o vínculo entre poemas e experiência militar, associa o estudo da poesia à documentação do
percurso de poetas, permitindo assim o estudo daqueles que são honrados como poetas de guerra
mesmo sem ter escrito sobre ela, um fenômeno típico da Grande Guerra mas que estudos
analógicos, dependentes da leitura próxima de textos, não nos deixavam enxergar.
Apesar desses grandes momentos de influência da história digital na abordagem da história
poética da Primeira Guerra mundial que ocorreram durante a construção da base dados, uma
terceira e importante mudança ocorreu em 2019, quando os dados foram disponibilizados online.
Assim, Poésie Grande Guerre passou de um projeto de história digital a um projeto de história pública
digital. Com efeito, de acordo com Shawn Graham (2013), os meios digitais tornam toda história
pública, além de usar a multimodalidade para engajar o público com um passado que é também
multimodal (Rosenzweig e Brier 1994). A partir do momento em que a base se tornou pública, as
fontes de informação se multiplicaram, pois os usuários da base, que constituíram uma comunidade
ativa no Twitter (agora X), passaram a reagir a cada novo poeta integrado à base, corrigir
informações errôneas e ainda sugerir novos nomes: dezenas de poetas foram descobertos graças a
sugestões de usuários no Twitter. Assim, além dos esforços de Poésie Grande Guerre para encontrar
fontes complementares e não aceitar cânones acriticamente, a colaboração dos usuários contribuiu
para diversificar ainda mais o corpus. Se um dos grandes desafios dos historiadores da Primeira
Guerra mundial em 2019 foi a manutenção do debate efervescente dos quatro anos anteriores,

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mantido pela comemoração, a publicação de Poésie Grande Guerre marcou não o fim de um ciclo,
mas sim o início de uma série de debates entre usuários e pesquisadoras.
Logo, o projeto fez parte de um fenômeno que, segundo Axel Bruns (2008), marcou o Web
2.0: a transição da divisão entre produção e utilização de conteúdos para uma combinação dos dois,
que Bruns chama de “produsage” (um amálgama dos termos em inglês “production” e “usage” –
produção e utilização). Se a pesquisa de Bruns se aplica a plataformas mantidas por seus usuários
como a Wikipedia, o caso de Poésie Grande Guerre também pode ser lido em termos de “produsage”.
A base de dados não é uma plataforma Wiki, ou seja, os usuários não podem incluir e editar dados
livremente, pois a alimentação da base se faz por um back-office em Wordpress protegido por senha,
ao qual somente pesquisadoras associadas têm acesso. Não obstante, a escolha de fazer um anúncio
público a cada novo poeta descoberto, bem como de compartilhar dúvidas e contar com a expertise
de outros historiadores, genealogistas e pesquisadores amadores no antigo Twitter, que são citados
como fontes na base, Poésie Grande Guerre se engajou a dar voz a toda a sua comunidade, e não
apenas às pesquisadoras. Assim, apesar de “produsage” ser uma característica da Web 2.0 (cuja marca
é precisamente a criação difusa de conteúdo), Poésie Grande Guerre faz parte de uma tendência da
Web 3.0, onde essa produsage passa pelas redes sociais e pelo diálogo, se estendendo até a produção
de conteúdo científico. Além da sugestão de novos nomes, uma das grandes dificuldades do projeto
era a utilização de fontes regimentais (regimentos dos quais nenhum das pesquisadoras de Poésie
Grande Guerre era especialista) para documentar percursos individuais de poetas. O diálogo nas redes
sociais, que envolveu alguns historiadores amadores que pesquisam com grande profundidade os
regimentos de suas regiões natais ou de seus antepassados, forneceu um nível de informação que
teria sido impossível obter sobre os 450 regimentos de poetas combatentes sem esse etos
colaborativo.
Essa colaboração e “produsage” se mostraram fundamentais em 2020 e 2021, não só por ter
mudado a visão da poesia, fornecido informações minuciosas ou ainda ajudado a descobrir novos
nomes de poetas. Durante a pandemia de Covid-19, que obrigou arquivos e bibliotecas a fecharem
suas portas, a colaboração permitiu à base de continuar sendo alimentada. Com efeito, muitos
usuários de Poésie Grande Guerre usam a base para fomentar suas práticas de bibliofilia e coleção de
livros de guerra. Esses usuários se prontificaram a fotografar suas coleções de coletâneas de poemas
para que a base pudesse continuar a crescer mesmo com o fechamento da Bibliothèque nationale de
France (o principal acervo onde se encontravam as fontes poéticas do projeto). Dada a facilidade
com a qual se estabeleceu essa generosa prática de troca de fontes digitalizadas entre usuários e
pesquisadoras do projeto, ela se perpetuou após a reabertura das bibliotecas, e Poésie Grande Guerre

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continua recebendo versões digitais de livros que são tão raros (e anti-canônicos) que não estão
disponíveis na Biblioteca Nacional.
Em conclusão, as características da história digital que se manifestaram em Poésie Grande
Guerre foram determinantes não só para que o projeto alcançasse seus objetivos, mas também para
defini-los. O processo de construção da base de dados levou a um trabalho com um corpus de textos
em oposição a um cânone, o que revolucionou a abordagem da poesia da Primeira Guerra mundial.
Com efeito, a abordagem big data mudou não só o “como” abordamos esse corpus, mas também
as questões de pesquisa que orientam essa abordagem: a tese de doutorado Sous le feu. Fonctions et
usages de la poésie de la Grande Guerre, por exemplo, defendida pela autora em 2023, lançou mão da
grande quantidade de textos descobertos por Poésie Grande Guerre para propor uma abordagem da
poesia de guerra em termos do que ela fazia por aqueles que a escreviam nas trincheiras. A base de
dados permite uma confluência entre questionamentos de história cultural e de história social, pois
ela se funda numa convergência entre prosopografia e análise literária, podendo assim juntar dois
polos historiográficos que ficaram durante muito tempo separados na historiografia francesa da
Primeira Guerra mundial: os historiadores culturais do Historial de la Grande Guerre e os
Historiadores Sociais do Collectif de Recherche International et de Débat sur la guerre de 1914-
1918. Além disso, a estrutura física do modelo de dados tirou das sombras um fenômeno típico
da Grande Guerra: o poeta de guerra sem poema de guerra. Por fim, todo esse processo de
distanciamento dos cânones e de diversificação das vozes poéticas da Primeira Guerra mundial se
coroa pela “produsage” dos dados da base. Assim, a história digital contribuiu a desafiar cânones
poéticos durante e após as comemorações do centenário da Primeira Guerra mundial e dessa
maneira reconciliar duas velhas amigas que, apesar de unidas na Antiguidade, haviam sido separadas
durante, ao menos, um século de historiografia da Grande Guerra: História e poesia de guerra.

Considerações finais

Além de suas importantes contribuições para a historiografia da Primeira Guerra mundial


e para tirar do esquecimento um importante corpus de textos poéticos que fora, até então, excluído
da periodização literária francesa, Poésie Grande Guerre fez emergir importantes considerações sobre
a história pública, sobre as humanidades digitais e sobre as práticas e condições tecnológicas que
possibilitaram a construção da base de dados. Durante o centenário, a história cultural da Grande
Guerra consolidou sua expansão em direção a uma abordagem transnacional e interdisciplinar que
incorpora a história digital e a interação com o público na web e, principalmente, nas redes sociais.
Assim, o presente artigo insiste no fato que Poésie Grande Guerre não poderia existir (ou sequer ser
concebido) sem os desenvolvimentos tecnológicos que caracterizaram o centenário da Primeira

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Guerra mundial. Por outro lado, sem as características que Poésie Grande Guerre compartilha com
grande parte dos projetos de história digital (principalmente a produsage e o foco em grandes
quantidades de dados), essa nova visão da poesia (que evita a canonização e prioriza uma
interpretação da poesia como categoria social e prática culturalmente compartilhada), que a
reconcilia com a História, não seria possível.
Essas preocupações não são, finalmente, tão diferentes das questões que inspiravam alguns
dos poetas do corpus de Poésie Grande Guerre, principalmente aqueles que eram próximos das
vanguardas artísticas. Em 1910, por exemplo, Guillaume Apollinaire escreveu: “Quand il eut assemble
les membres de l’ascèse/ Comme ils étaient sans nom dans la langue française/ Ader devint poète et nomma l’avion2”.
Ao afirmar que o pioneiro da aviação Clément Ader se comportou como um poeta para dar nome
à sua invenção, Apollinaire insiste no fato que a poesia e a tecnologia são próximas: as duas
pertencem ao domínio da criação. O presente artigo mostrou que poesia e tecnologia,
principalmente a história digital, estão ligadas também pois elas fornecem um vocabulário e um
conjunto de práticas para interpretar dar sentido e tirar das sombras fenômenos que não poderiam
ser compreendidos sem elas. Heidegger confirma: “Techne belongs to bringing-forth, to poieis; it is something
poietic” (Heidegger 1977, 13).

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2
“Quando ele reagrupara os membros da ascese/ Como eles não tinham nome na língua francesa/ Ader se tornou
poeta e deu nome ao avião”.

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***

Recebido: 19 de dezembro de 2023


Aprovado: 16 de abril de 2024

113
Dossiê: História Digital: tecnologia e fazer historiográfico entre
teoria e prática
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.43946

“Anos Tenebrosos”: a luta armada na obra da Brasil Paralelo

“Dark Years”: the armed struggle in the works of Brasil Paralelo

“Años Oscuros”: la lucha armada en la obra de Brasil Paralelo

Murilo Prado Cleto**


https://orcid.org/0000-0003-0771-9475

RESUMO: Fundada em 2016, no auge da crise político-institucional brasileira, a Brasil Paralelo


consiste numa das mais expressivas iniciativas de revisionismo histórico das novas direitas
brasileiras. Seu revisionismo ideológico já se debruçou sobre as mais diferentes temáticas da
História do Brasil, como a colonização, a escravidão negra e, claro, o regime militar. A ditadura é
tema especialmente sensível para a empresa, considerando sua postura de oposição aos públicos
dominantes no debate público e sua compreensão acerca do que define como “marxismo cultural”.
Com a promessa de desmentir professores, pesquisadores e jornalistas, o documentário “1964 - O
Brasil entre armas e livros” é a produção mais completa da Brasil Paralelo sobre o tema. Nela, são
discutidos Guerra Fria, interferências estrangeiras, o golpe militar, censura, repressão e a luta
armada. Neste artigo, serão debatidos os conceitos de História Digital, negacionismo e
revisionismos, seguidos por um panorama da atuação da Brasil Paralelo no debate público e uma
análise do seu revisionismo ideológico diante da resistência armada à ditadura.
Palavras-chave: Brasil Paralelo. História Digital. Luta armada. Regime Militar. Revisionismo
ideológico.

ABSTRACT: Founded in 2016, at the height of the Brazilian political-institutional crisis, Brasil
Paralelo is one of the most prominent historical revisionism initiatives of the new Brazilian right.
Its ideological revisionism has covered a wide range of Brazilian history topics, such as


Este artigo atualiza e repercute resultados da tese “Novas direitas, memória e revisionismo: como a Brasil Paralelo
contou a história do regime militar”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
do Paraná e financiada pela Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
**
Doutor em História pela Universidade Federal do Paraná e professor substituto de História no Instituto Federal do
Paraná. É pesquisador das novas direitas e da memória do regime militar brasileiro, atualmente em estágio pós-doutoral
no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR. [email protected]

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colonization, black slavery, and, of course, the military regime. The dictatorship is an especially
sensitive subject for the company, considering its stance of opposition to dominant publics in
public debate and its understanding of what it defines as “cultural Marxism.” With the promise to
debunk teachers, researchers, and journalists, the documentary “1964 - Brazil between Arms and
Books” is Brasil Paralelo’s most comprehensive production on the subject. It discusses the Cold
War, foreign interference, the military coup, censorship, repression, and the armed struggle. This
article will discuss the concepts of Digital History, denialism, and revisionisms, followed by an
overview of Brasil Paralelo’s role in public debate and an analysis of its ideological revisionism in
the face of armed resistance to the dictatorship.
Keywords: Brasil Paralelo. Digital History. Armed struggle. Military Regime. Ideological
revisionism.

RESUMEN: Fundada en 2016, en el auge de la crisis político-institucional brasileña, Brasil Paralelo


consiste en una de las más expresivas iniciativas de revisionismo histórico de las nuevas derechas
brasileñas. Su revisionismo ideológico ya se ha centrado en las más diferentes temáticas de la
Historia de Brasil, como la colonización, la esclavitud negra y, por supuesto, el régimen militar. La
dictadura es un tema especialmente sensible para la empresa, considerando su postura de oposición
a los públicos dominantes en el debate público y su comprensión acerca de lo que define como
“marxismo cultural”. Con la promesa de desmentir a profesores, investigadores y periodistas, el
documental “1964 - O Brasil entre armas e livros” es la producción más completa de Brasil Paralelo
sobre el tema. En él, se discuten la Guerra Fría, las interferencias extranjeras, el golpe militar, la
censura, la represión y la lucha armada. En este artículo, se debatirán los conceptos de Historia
Digital, negacionismo y revisionismos, seguidos por un panorama de la actuación de Brasil Paralelo
en el debate público y un análisis de su revisionismo ideológico frente a la resistencia armada a la
dictadura.
Palabras clave: Brasil Paralelo. Historia Digital. Lucha Armada. Régimen militar. Revisionismo
ideológico.

Como citar este artigo:


Cleto, Murilo Prado. “‘Anos Tenebrosos’: a luta armada na obra da Brasil Paralelo”. Locus: Revista
de História, 30, n. 1 (2024): 114-137.
***

Introdução: História Pública Digital, revisionismos e crise do sistema de peritos

O campo de estudos em História Digital tem suas origens provavelmente no final dos anos
1990, quando os historiadores William G. Thomas e Edward L. Ayers fundaram o Virginia Center
For Digital History (VCDH). No seu alvorecer, ele esteve associado diretamente ao manuseio de
arquivos disponibilizados na internet para consulta, análise e ensino. Nos anos seguintes, os debates

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em torno do tema se desenvolveram a partir de um olhar predominantemente otimista, como


característico das discussões sobre a rede no período. Entre as inúmeras possibilidades abertas para
a História com a expansão das tecnologias digitais, podemos citar a rapidez no compartilhamento
de arquivos, as inúmeras opções de acessibilidade, o fácil acesso a fontes antes fechadas em
arquivos burocráticos, que demandavam eventualmente longos deslocamentos, e a praticidade na
divulgação do conhecimento, que hoje pode circular por meio de livros lançados sem editora e
apresentações ao vivo ou assíncronas que aproximem o historiador do público (Lucchesi e
Carvalho 2016).
Mas a internet não funciona apenas como um repositório para uma História Digital que
opere como uma extensão dos seus espaços tradicionais. Hoje, com a centralidade da rede, é
possível pensar numa série de produtos concebidos especificamente para o formato digital,
considerando os diferentes recursos multimídia disponíveis, como fotografias, mapas, áudios e
vídeos, entre outros. Essa nova paisagem da informação trouxe impactos significativos para a
História, em constante processo de dimensionamento diante da velocidade das mudanças.
Seja como for, para a História Pública os recursos digitais têm sido um prato cheio. Embora
sua prática preceda em muito este marco, a História Pública tornou-se objeto de intensos debates
na historiografia a partir da segunda década do século XXI. O curso de Introdução à História
Pública na USP, em 2011, seguido de lançamento de coletânea homônima, costuma ser tido como
o grande disparador. Nos anos seguintes, diversos eventos dedicaram-se a expandir essa discussão,
como o Simpósio Internacional de História Pública — também na USP, no ano seguinte —, que
ensejou a criação da Rede Brasileira de História Pública; o encontro História: da produção ao
público, da ANPUH-SP; e o II Simpósio Internacional de História, na UFF. Neste contexto, a
preocupação dos historiadores estava concentrada sobretudo na ampliação de audiência, mas o
campo expandiu-se e, com ele, outras possibilidades também ganharam protagonismo (Santhiago
2016).
Não foi apenas a historiografia profissional que ganhou com esse processo, entretanto.
Negacionistas e revisionistas também aproveitaram a popularização das plataformas digitais para
crescer, utilizando suas ferramentas a favor. Por negação, é possível, entender, a partir de Mateus
Pereira (2015, 863-864), a “contestação da realidade, fato ou acontecimento que pode levar à
dissimulação, à falsificação, à fantasia, à distorção e ao embaralhamento”. “Em geral”, segundo
Pereira, “percebemos uma dissimulação e uma distorção da factualidade que, ou procura negar o
poder de veto das fontes, ou fabrica uma retórica com base em ‘provas’ imaginárias e/ou
discutíveis/ manipuladas”. Já o negacionismo, para ele, seria a “radicalização da negação e/ou do
revisionismo”, ou seja, a própria “falsificação do fato”.

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Para além dos negacionismos mais caricatos, entretanto, há também posições matizadas. O
historiador italiano Enzo Traverso (2012) divide os revisionismos históricos em três modalidades:
fecundos, discutíveis e nefastos. Se, por um lado, os revisionismos “fecundos” apontam para a
natureza da própria historiografia, qual seja, um exercício constante de atualização do “estado da
arte” de um determinado objeto, aproximações e distanciamentos de diferentes concepções
teóricas, entre outras operações que envolvem necessariamente algum tipo de revisão. Não raro,
estes esforços também podem subsidiar decisões políticas no presente, ajudando a corrigir
injustiças e a alterar os rumos da história.
Por outro lado, os revisionismos propriamente ditos ocupam outro papel. Segundo
Traverso, aqueles de ordem “discutível” são caracterizados por revisões que, ideologicamente
orientadas por interesses do presente, acabam moldando o passado a partir de uma leitura mais
conveniente. Marcos Napolitano (2021, 99-100), em abordagem similar, os caracteriza como
“revisionismos ideológicos”, porque reféns de “objetivos meramente ideológicos, da falta de
método e da ética da pesquisa historiográfica”. Entre as características intrínsecas deste tipo de
apropriação sobre o passado, estão a “apropriação descontextualizada de trabalhos
historiográficos”, o “anacronismo” e o “uso acrítico de fontes primárias”. Tudo isso, prossegue,
“com o intuito de defender uma tese dada a priori sobre o passado incômodo e sensível”.
Por fim, haveria ainda, segundo Traverso (2012), os revisionismos nefastos, estes dedicados
a reabilitar figuras históricas escarnecidas pela condução de regimes autoritários, a exemplo de
estudos que, na Itália, tentaram relativizar a brutalidade do fascismo e da figura de Mussolini. O
caso brasileiro tem demonstrado a porosidade dessas fronteiras, especialmente entre as duas
últimas modalidades de revisionismo nesta tipologia.
Em geral, estes atores integram “públicos antiestruturais”, que, segundo a antropóloga
Letícia Cesarino,

não apenas não se ancoram na mesma lógica política da esfera pública liberal e do Estado
democrático de direito, como pressionam suas instituições e pressupostos na direção de um limiar
verdadeiramente transformacional: uma dupla torção que busca reverter a relação de englobamento
(Cesarino 2022, 139).
Os públicos antiestruturais são resultado e também instigadores daquilo que Cesarino
chama de “crise do sistema de peritos”, um processo de reorganização epistêmica impulsionado
pelas novas estruturas técnicas, que abalaram profundamente os sistemas anteriores de produção
da verdade. Os “Os sistemas de peritos pré-digitais”, diz Cesarino (2022, 76), “ofereciam um campo
socialmente compartilhado de controle de entropia, ao fixar normativamente binarismos
organizadores do real como público-privado e fato-ficção”. Essas categorias antigas, segundo a
pesquisadora, se desestabilizam, oscilam e, por fim, se recombinam de acordo com as novas

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matrizes ainda emergentes. Desta forma, o colapso de contextos entre fato e ficção é resolvido,
conforme Cesarino (2022, 76-77), através “de uma bifurcação no nível da própria estrutura: entre
uma camada antiestrutural (as mídias alternativas) na qual tudo é real e autêntico, e outra (público
dominante) no qual tudo é falso e fruto da agência conspiratória de inimigos ocultos”.
No Brasil, um destes agentes mais importantes é a Brasil Paralelo, produtora audiovisual
fundada em 2016, no auge da crise político-institucional que marcou a última década. Hoje ela
acumula mais de 3,8 milhões de inscritos em seu canal do YouTube, que já tem mais de 400 milhões
de visualizações. De aspiração abertamente olavista, ela procura ocupar o espaço supostamente
dominado pela esquerda através do que chama de “marxismo cultural”, uma estratégia atribuída ao
filósofo Antonio Gramsci de infiltração dos comunistas, uma vez derrotados nas armas, na cultura
(Rocha 2021).
Nas entrevistas, que constituem o principal corpus documental da maioria de suas
produções, a Brasil Paralelo, a despeito de suas alegações de neutralidade, costuma mobilizar
depoimentos de interlocutores ligados a organizações da direita como Fórum da Liberdade,
Instituto Liberal, Instituto Borborema, Instituto Von Mises, Instituto Millenium, Instituto de
Estudos Empresariais, Estudantes Pela Liberdade, Movimento Brasil Livre, Escola Sem Partido e
Gazeta do Povo (Santos 2021).
Além de temáticas mais recentes, como o impeachment de Dilma, a pandemia e as eleições
de Portugal, a produtora também se dedica a oferecer interpretações sobre passados mais remotos
da História Geral e da História do Brasil, integrando-os numa conduta atualista da História. O
sentido de atualismo aqui empregado, baseado em Mateus Pereira e Valdei Araujo (2019), dialoga
com a noção de que os passados abordados pela produtora estão integralmente submetidos às suas
aspirações políticas no presente. E os exemplos são abundantes. Para explicar a rápida conquista
da península ibérica pelos árabes na série Brasil - A Última Cruzada, o entrevistado Rafael Brodbeck
argumenta que os visigodos não admitiram armar a população romana local. Ele é policial civil e
autor de diversos manifestos armamentistas (Alfano e Eller, 2019).
Na mesma série, também é retomada a linha de argumentação sobre a escravidão negra que
se popularizou a partir de 2009 com o polemista Leandro Narloch em O Guia Politicamente Incorreto
da História do Brasil. Segundo ela, a escravidão no Brasil não teria fundamentação racial e os
portugueses se limitavam a comprar escravos dos próprios negros no continente africano. Mas a
produção vai além e, para explicar a postura de D. Pedro II diante da questão abolicionista, trata o
imperador como um lutador impotente contra o sistema escravista. Trata-se de expediente
argumentativo muito semelhante destas novas direitas acerca de seus líderes populistas no presente,
a exemplo de Donald Trump, Javier Milei e, claro, Jair Bolsonaro (Cleto 2022).

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Uma das ferramentas utilizadas pela produtora para mobilizar seu público diante destes
passados mais remotos é tratar este conteúdo como uma espécie de revelação proibida, porque
profundamente indesejada pelos públicos dominantes. Por isso, são comuns as denúncias de
boicote e censura sofridos ou supostamente sofridos pela produtora. Em geral, movimentações de
contrários à exibição dos seus filmes nas universidades, por exemplo, são utilizados como troféus
que confirmariam a pertinência do seu conteúdo (Moraes e Cleto 2023). Na abertura da série O
Teatro das Tesouras, o apresentador Filipe Valerim diz que “essa pode ser a última vez que você fala
de política na internet” (Brasil Paralelo 2018).
O regime militar, embora tangencialmente abordado em outras produções, entrou de vez
no radar da empresa em 2019, momento em que a memória de 1964 foi significativamente
reavivada pelo novo contexto. Jair Bolsonaro, eleito presidente no ano anterior, foi o primeiro
militar a ocupar o cargo desde a redemocratização. Sua atuação como parlamentar, ao longo de
quase três décadas no Congresso, foi basicamente pautada pelo rechaço aos princípios basilares da
Nova República e por uma defesa entusiasmada dos valores de 1964, com destaque para a
homenagem a Carlos Alberto Brilhante Ustra, notório torturador do Doi-Codi, durante o voto pelo
impeachment de Dilma em 2016 (Bauer, 2020). Além disso, seu vice, o também militar general
Hamilton Mourão, chegou a admitir em campanha a possibilidade de um autogolpe (G1 2018),
que, embora cogitado no fim do mandato, não se concretizou por razões ainda a serem plenamente
esclarecidas (Serapião, Feitoza e Chaib 2024).
1964 - O Brasil entre armas e livros, documentário específico da Brasil Paralelo sobre a ditadura,
foi lançado justamente neste contexto. Em 2 de abril de 2019, exatos 55 anos após a ratificação do
golpe pelo Congresso Nacional, estreou o vídeo no YouTube, que já conta com mais de 11 milhões
de visualizações. Os dias que antecederam o lançamento foram marcados por muitas polêmicas,
com protestos contra as sessões de pré-estreia agendadas nas salas da rede Cinemark. Semanas
antes, o entusiasmo de bolsonaristas com o trailer do filme induziu ao diagnóstico de que Entre
armas e livros viria para defender o regime militar (O Globo 2019a). A Brasil Paralelo reagiu
energicamente, negando as acusações e buscando direito de resposta na Justiça (O Globo 2019b).
Naturalmente, a História Digital, sobretudo a do tempo presente, impõe uma série de
desafios para os profissionais da área. Primeiro, sem dúvidas, os de ordem metodológica. Diferente
do que costuma ocorrer no caso de passados mais remotos, o problema dos historiadores do digital
não está na falta, mas no excesso de fontes — o que demanda um trabalho acurado de
depuramento, seleção e catalogação. Outro elemento digno de nota é a efemeridade destes
artefatos, que, sem o arquivamento necessário, podem simplesmente desaparecer da nuvem por
vontade dos seus produtores ou quaisquer outras razões (Almeida 2022). A Brasil Paralelo tirou do

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ar quase uma centena de vídeos logo após as eleições de 2022, junto a diversos outros canais
alinhados à direita (Couto 2022). Seja por estratégia mercadológica ou por problemas com a Justiça,
ou com as políticas de desinformação das plataformas, essa é uma prática corriqueira da produtora.
Entre armas e livros, entretanto, continua disponível em seu canal no YouTube.
Outro desafio digno de nota é o ético. Diante da forte identificação da Brasil Paralelo com
representantes de uma direita saudosista da ditadura militar, a exemplo do próprio Bolsonaro, pode
ser tentadora a ideia de distribuir rótulos indiscriminadamente e atribuir à produtora posições que
não são exatamente as suas. Essa prática não é rara entre os públicos dominantes, que muitas vezes
resistem a ouvir o que essas novas direitas estão dizendo (Ortellado 2021). Evidentemente, não se
trata de reproduzir acriticamente o que esses atores têm a proclamar, mas a atenção com o rigor
do olhar sobre sua atuação na esfera pública nunca é demais.
Afinal, o documentário defende a ditadura? Um exame pormenorizado de sua abordagem
sobre o contexto de recrudescimento do Estado de exceção e sua relação com a luta armada ajuda
a esclarecer a posição da produtora.

A luta armada em 1964 - O Brasil entre armas e livros

Na análise crítica da memória social sobre o período mais sombrio do regime, 1964 - O
Brasil entre armas e livros não menciona a expressão “anos de chumbo”. Em vez dela, o termo “anos
tenebrosos” é utilizado durante a extensa introdução ao tema pela narração em off de Filipe Valerim:

Mesmo antes de 1964, guerrilhas rurais e movimentos armados já existiam e estavam determinados
em fazer a revolução. Após o 31 de Março, esses grupos passam a adotar métodos hediondos e
submetem o Brasil a anos tenebrosos. O terrorismo revolucionário se torna cotidiano. O crime, o medo
e o sangue marcam presença na vida dos brasileiros. Assaltos a bancos e a estabelecimentos
comerciais. Explosão de bombas em lugares públicos. Fuzilamento e tortura de inocentes. Os
revolucionários assassinavam até os próprios colegas que queriam desistir da luta armada. Os
comunistas brasileiros seguiam o exemplo de seus companheiros ideológicos, que em outros países
já somavam mais de 50 milhões de assassinatos, em nome da revolução. No mês de fevereiro, antes
da subida dos militares ao poder, o PCdoB enviou brasileiros para a China com o objetivo de
aprender as técnicas de guerrilha de Mao Tsé-Tung. Foram estes cidadãos que voltaram quatro anos
depois e formaram a Guerrilha do Araguaia. Preso nessa guerrilha, foi José Genoíno. Mesmo
exilado, Leonel Brizola fomentava de fora a revolução no Brasil. Segundo seu filho, Fidel Castro
entregou um milhão de dólares para seu pai, para comprar armamento e munição e entregá-los aos
revolucionários no Brasil. Bandidos e terroristas, hoje reverenciados como heróis nacionais,
sequestraram, torturaram e assassinaram inocentes em nome de seus ideais. Essa, uma verdade
pouco noticiada nos anos seguintes pela imprensa e a academia brasileira, que tratou tudo como
uma luta contra a ditadura e pela democracia (Brasil Paralelo 2019, 1:21:12).
Neste esforço retórico, os “anos de chumbo” do terrorismo de Estado são eclipsados pelos
“anos tenebrosos” da luta armada, inclusive com a adoção do vocabulário da ditadura. A
designação de “guerrilheiro”, historicamente associada ao termo “terrorista” pelo establishment
militar, é ressaltada, embora certos grupos de esquerda tenham tentado reivindicá-la (Gaspari
2014). Como evidenciado na conclusão do texto, uma das principais preocupações da Brasil

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Paralelo é a glorificação dos comunistas armados na memória social e histórica do regime,


retratados como heróis da luta pela democracia. Esta percepção é ilustrada por uma declaração
pública de Dilma Rousseff, então presidente da República, que afirmou: “Eu, particularmente,
participei e tenho a honra de ter participado do processo de resistência à ditadura” (Brasil Paralelo
2019, 1:23:01), durante uma cerimônia oficial. Ex-membro dos grupos Política Operária (Polop) e
Comando de Libertação Nacional (Colina), Dilma estava presente, ao lado de seu marido, Carlos
Araújo, na reunião que selou a união deste último à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) em
1969, formando a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares) (Carvalho 2009).
Araújo é então exibido descrevendo as ações do movimento:

Eu tenho muito orgulho também de ser companheiro da Dilma por esse tempo todo. Nós formamos
uma organização nacional chamada Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Nós praticávamos
ações de expropriação, que nós chamávamos, dos bancos. Nós íamos buscar dinheiro nos bancos.
Nós queríamos ter dinheiro para comprar armas. Fizemos ações em quartéis também, alguns
quartéis, para pegar armas (Brasil Paralelo 2019, 1:23:01).
Posteriormente, são apresentados depoimentos de outros ex-membros da luta armada para
corroborar o argumento de que o compromisso da esquerda não era com a democracia, mas sim
com uma forma alternativa de ditadura. O primeiro depoente é Fernando Gabeira, que admite que
“ninguém, no fundo, queria a democracia estrategicamente. Todo mundo queria, na verdade, o
socialismo. Buscava-se outra forma de ditadura, que é a ditadura do proletariado” (Brasil Paralelo,
1:23:30). Em seguida, Vera Sílvia Magalhães, integrante do Movimento Revolucionário 8 de
Outubro (MR-8), declara: “Nós não éramos exatamente contra a ditadura. Nós éramos contra a
ditadura militar burguesa, mas nós éramos a favor da ditadura do proletariado. Isso ninguém diz,
mas precisa ser dito porque faz parte da nossa história” (Brasil Paralelo, 1:23:42).
A atuação da luta armada acabou romantizada, de fato, pela memória hegemônica do
regime, como parte de um esforço de acomodação durante o longo processo de transição política
(Napolitano 2015). Num documentário da TV Câmara sobre Vera, a guerrilheira é apresentada
como alguém que

poderia ter desfilado a beleza de seus vinte anos pelas calçadas de Ipanema, no Rio de Janeiro onde
nasceu. Poderia ter sido uma garota que amava os Beatles e os Rolling Stones, no embalo da
liberação de costumes que varreu o mundo na década de 60. Ou poderia ter concluído o curso de
Economia e levado uma vida burguesa, beneficiada pelo “milagre brasileiro” que fez o País crescer
dez por cento ao ano no período mais repressivo dos governos militares. Mas Vera Sílvia Magalhães
amava a revolução e, como tantos jovens de sua época, não admitia viver sob a ditadura implantada
pelo golpe de 64. Nenhum deles, porém, foi tão longe: ela pegou em armas, assaltou bancos, trocou
tiros com forças de segurança e sequestrou o embaixador do país mais poderoso do mundo. Viu o
companheiro tombar a seu lado, quando tentavam escapar de um cerco policial. E a peruca que
usava para se disfarçar nos assaltos a transformou em personagem de primeira página nos jornais
populares: era a loura noventa, que empunhava dois revólveres calibre 45. Acabou baleada, presa,
torturada e banida do país que queria libertar. E virou personagem de um filme que concorreu ao
Oscar. Trinta anos depois, vividos entre o exílio e a volta, Vera Sílvia Magalhães ainda procura seu
lugar no mundo. Carrega no corpo e na alma as marcas da violência. E se pergunta o que fazer agora

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de tanta ousadia e tanta generosidade, de tanta coragem e tanta ternura (Câmara dos Deputados
2004).
Muitas são as representações semelhantes, amplamente difundidas na sociedade, que
sugerem uma suposta inclinação democrática dos guerrilheiros. 20 anos depois de sua execução
pelos militares, o militante José Manoel da Silva teve os restos mortais recuperados por Toritama,
Pernambuco, sua cidade natal. Ele foi morto junto a outros cinco militantes da VPR no Massacre
da Chácara São Bento, em 1973. Durante o cortejo, o locutor o descreveu como “aquele que
tombou em defesa da democracia” (Roberto Monte 2013, 3:10).
De qualquer forma, embora essa perspectiva tenha obscurecido, ao menos parcialmente,
ao longo das décadas seguintes, uma realidade menos gloriosa da luta armada, também não se pode
dizer que esse passado seja totalmente desconhecido. As evidências para essa conclusão estão
presentes no próprio documentário: nenhum dos ex-guerrilheiros foi ouvido a partir de entrevista
exclusiva para a produção, mas por meio de imagens de arquivo. Isso também significa que, mesmo
dentro da própria esquerda revolucionária, teoricamente vitoriosa no âmbito da memória, existe
uma demanda pelo reconhecimento da dimensão política dessa experiência, seja para sua exaltação
ou como forma de autocrítica.
Ao longo das décadas seguintes, diversos ex-guerrilheiros produziram memórias sobre a
luta armada, como Gabeira (2009), Daniel Aarão Reis (1990) e Jacob Gorender (1987), todos com
considerável influência jornalística ou acadêmica. Esses relatos, embora variados, abordam
abertamente temas controversos relacionados à oposição armada ao regime e não hesitam em fazer
uma avaliação crítica de seus próprios colegas. Os historiadores argentinos Beatriz Sarlo (2007) e
Hugo Vezzetti (2007) também têm criticado uma memória que retrata os opositores da ditadura
apenas como vítimas. Conforme apontado pelo historiador brasileiro Clóvis Gruner (2020, 234),
“em nome da distinção clara e inequívoca entre criminosos e vítimas, culpados e inocentes, grupos
e indivíduos tiveram suas motivações e afiliações políticas mais diversas temporariamente
suspensas, esquecidas”.
Mas Entre armas e livros insiste: “É a mentira, que de tão repetida, tornou-se história” (Brasil
Paralelo 2019, 1:23:56), como conclui a narração em off. O jornalista William Waack complementa:

Mais tarde, as narrativas históricas vão ficando cada vez mais deturpadas em relação a esse período,
até o ponto de hoje, infelizmente, parecer ponto pacífico que gente como a Dilma, por exemplo,
tivesse lutado pela liberdade ou pela democracia, ou pelos direitos humanos. Isto é uma falsificação
histórica (Brasil Paralelo, 1:24:00).
Para a Brasil Paralelo, entretanto, os guerrilheiros de esquerda não são ingênuos ou
idealistas, como consagrou a memória liberal do período, mas os protagonistas de uma era marcada
por “crime, medo e sangue”. A extensa intervenção da narração em off de Valerim reforça esse
ponto de vista:

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Derrubar o regime era o pretexto utilizado ao atrair militantes para a causa principal: instalar a
ditadura comunista. Eram dezenas de grupos que, com brutalidade e frieza, cometiam atrocidades
contra o povo brasileiro. Entre os grupos terroristas que tiveram maior destaque neste período
sombrio, estavam ALN, Colina, MR-8, PCdoB, VPR, VAR-Palmares, MRT. Estes grupos eram
formados por pessoas que protagonizaram nos anos seguintes a política no Brasil. Entre elas, está
Dilma Vana Rousseff, que pertenceu aos grupos Polop, Colina, VAR-Palmares e virou presidente
do país em 2011. Os grupos que Dilma participou foram responsáveis por diversos atentados,
assaltos, sequestros e assassinatos. Outro nome que protagonizou o terrorismo brasileiro foi Carlos
Marighella. Junto com grupos ligados à Teologia da Libertação, foi responsável pela criação do grupo
terrorista mais perigoso do país, a Aliança Libertadora Nacional. Autor do livro Minimanual do
Guerrilheiro Urbano, publicado em junho de 1969, Mariguella divulga todas as táticas e objetivos dos
grupos terroristas que seguiam à risca seus ensinamentos cruéis: matar policiais e membros do
Exército, preparar bombas, assaltar, sequestrar, fazer terrorismo e executar colegas que desertassem.
No ano de 2013, Marighella foi homenageado em sessão solene no Senado Federal, pelo que
chamaram de “luta social”, assim como filmes exaltando seus feitos foram produzidos pela esquerda,
que aplaude e comemora a barbárie e a criminalidade. No dia 4 de setembro de 1969, a Aliança
Libertadora Nacional de Marighella e o MR-8 de Franklin Martins sequestraram o embaixador
americano Charles Elbrick, com a exigência de que criminosos presos fossem soltos. Sem opção, os
militares aceitaram o pedido e liberaram 15 presos. Entre eles estava José Dirceu, personagem que
surgiria décadas mais tarde como guru da esquerda e ministro da Casa Civil, até ser condenado no
maior esquema de corrupção da história do Brasil (Brasil Paralelo, 1:24:22).
Neste trecho, é evidente a ênfase da produção em destacar a conexão entre os crimes da
luta armada e figuras políticas contemporâneas. Dilma Rousseff, Franklin Martins e José Dirceu,
destacados membros do PT, são mencionados nominalmente. Embora não haja evidências de sua
participação direta em atentados violentos (Loyola 2014), a narração opta por estabelecer
associações entre as organizações guerrilheiras e o partido. Esta não é a primeira vez que o passado
guerrilheiro de Dilma é trazido à tona no debate público. Em 2009, a Folha de S. Paulo divulgou
uma ficha falsa da então ministra da Casa Civil durante a ditadura, com um suposto plano de
sequestro que envolvia Delfim Netto (Magalhães 2009). No ano anterior, o senador Agripino Maia
(DEM-RN), de família ligada à Arena, tentou questionar um depoimento de Dilma à Comissão de
Infraestrutura, baseando-se em uma confissão de que ela havia mentido aos militares sob tortura
quando foi presa em 1970 (Folha de S. Paulo 2008).
A narração então descreve alguns atentados promovidos pela esquerda, com destaque para
a explosão de uma bomba que visava o então candidato à sucessão presidencial Arthur da Costa e
Silva, em Guararapes (Costa e Azevedo 2018):

O ano de 1966 foi marcado por diversos ataques na capital de Pernambuco. Após sucessivos
atentados sem vítimas, no dia 25 de julho daquele ano uma maleta contendo explosivos foi deixada
no saguão do aeroporto de Guararapes deixando 17 feridos e dois mortos. Entre eles, o jornalista
Edson Régis de Carvalho, casado e pai de cinco filhos. Assassinatos como este e outros atentados
terroristas aconteceram centenas de vezes nas décadas de 1960 e 1970. Os nomes dessas pessoas
foram apagados da história, ao serem ignoradas pela imprensa e pela academia. Nada se falou das
vítimas que o comunismo fez no Brasil. A história dos inocentes não foi contada (Brasil Paralelo
2019, 1:26:28).
Ao contrário das vítimas do regime, os alvos da esquerda são identificados por nome, rosto
e identidade. Por exemplo, a morte do jornalista Vladimir Herzog, evento inescapável em qualquer
elaboração sobre a ditadura, não tem autoria definida. “Nós temos a morte de Herzog, nós temos

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vários símbolos que acentuam esse desgaste”, limita-se a dizer Thomas Giulliano enquanto narra a
crise nos primeiros anos de Geisel, com foco na inflação (Brasil Paralelo, 1:50:54). No entanto, em
Entre armas e livros “o crime, o medo e o sangue” têm uma tangibilidade real. A produção então
apresenta estatísticas da violência fatal durante o regime:

Foram 119 vidas assassinadas em nome da revolução. A maioria não tinha a ver com a guerra entre
militares e terroristas. Há uma divergência sobre o número de mortos e desaparecidos durante o
regime militar: 424, segundo os movimentos de esquerda; 362, segundo os militares. O número
verdadeiro deve estar em algum lugar no meio dessa diferença (Brasil Paralelo, 1:27:12).
Além de subestimar em 10 o total de mortos contabilizados pela Comissão Nacional da
Verdade, a elaboração ainda põe em dúvida o número de vítimas do regime. Cada lado apresentaria
seus números e a verdade, diz a narração, “deve estar em algum lugar no meio”. Mas os indivíduos
mortos pela esquerda são, para a produção, exatamente 119, embora essa contagem tenha sido
originalmente feita pelo coronel Brilhante Ustra, chefe do Doi-Codi do II Exército em São Paulo
(Folha de S. Paulo 2014). Diante da discrepância entre os números das vítimas da direita e da luta
armada, o documentário recorre, como mencionado no texto que introduz a seção, à genérica
estimativa de “50 milhões de assassinatos” provocados pelo comunismo no mundo. A necessidade
de ilustrar o terror da luta armada brasileira era tamanha que a Brasil Paralelo incluiu uma fotografia
feita por Sebastião Salgado no garimpo de Serra Pelada, no Pará, sem qualquer conexão com os
eventos em discussão. Posteriormente, essa imagem foi removida do vídeo após uma ação judicial
movida pelo autor (Paulo 2020).
A narração então continua, atribuindo o “ambiente de guerra” no país à ação de
“psicopatas, torturadores e criminosos de ambos os lados”:

Com o terrorismo comunista cada vez mais crescente, a esquerda radical deu o pretexto para que a
população sentisse medo e a linha-dura do Exército conseguisse expandir seu poder. E foi nesse
ambiente de guerra que psicopatas, torturadores e criminosos de ambos os lados se valiam para
praticar as suas perversidades em nome de uma causa ou de outra. A tortura contra opositores já era
presente na política desde a ditadura de Getúlio Vargas. Infelizmente, ela não teve o seu fim no
regime militar (Brasil Paralelo 2019, 1:27:34).
A “teoria dos dois demônios”, utilizada especialmente para descrever o contexto de
radicalização política nas ditaduras do Cone Sul, pressupõe a existência de duas forças extremas em
evolução, uma da esquerda e outra da direita (Oliveira e Reis 2021). A despeito de todas as críticas
possíveis a ela, graças à evidente disparidade de forças entre as ditaduras e os guerrilheiros, a Brasil
Paralelo mobiliza uma versão específica dela, mas com um notável acento anticomunista que
exagera as ações da luta armada para minimizar o papel dos agentes da repressão, retratando um
demônio claramente maior e mais ardiloso do que o outro. No filme, as únicas vezes em que o
termo “tortura” é mencionado são para caracterizar especificamente o modus operandi da

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esquerda, para descrevê-la como algo “presente na política desde a ditadura de Getúlio Vargas” ou,
no máximo, atribuí-la a “ambos os lados”.
A função do destaque à perenidade da prática parece ser a de relativizar a prática durante a
ditadura militar, já que vinha sendo praticada pelo Estado brasileiro há décadas. Além disso, a
produção reforça a tortura como um expediente da esquerda, graças ao entendimento de que até
mesmo Vargas teria sido um ditador comunista (Brasil Paralelo 2020), embora o autogolpe do
Estado Novo tenha sido fundamentado principalmente em uma orientação anticomunista (Motta
2020). Mais do que uma ocorrência sistemática, a tortura perpetrada pelos agentes do Estado é
retratada como algo anômalo, se atribuída a “psicopatas”, ou paradoxalmente tão comum que
sequer mereceria destaque se considerada uma prática contínua. Um levantamento da Human
Rights Watch estima em 20 mil o total de torturados pelo regime no Brasil (Jansen 2019).
Como fizeram os grandes jornais do período (Napolitano 2017), Entre armas e livros também
atribui ao movimento estudantil “exagero”, “instrumento político”, “publicidade” e
“instrumentalização” na contabilização de cadáveres:

A guerra travada pelos terroristas expandia as justificativas para a repressão por parte do Exército.
Do outro lado, permitia que o movimento estudantil usasse os mortos em combate para construir a
ideia de que a tortura era uma política de Estado, fazendo dessa bandeira seu instrumento político e
sua publicidade. O exagero fez parte dessa instrumentalização. Algumas pessoas que constam como
desaparecidas na verdade se auto exilaram ou eram delatores que ganharam uma nova identidade do
governo para não serem mortas pelos próprios ex-companheiros de guerrilha. Não é preciso
justificar tortura e ditadura para reconhecer que crimes foram cometidos. Os objetivos das guerrilhas
eram claros, e a democracia não estava entre eles. A palavra sequer aparece nos livros, discursos e
debates à época (Brasil Paralelo 2019, 1:28:06).
Na verdade, há fortes evidências que sustentam a afirmação de que a tortura era uma
política de Estado durante a ditadura. Essa conclusão foi alcançada pelo coordenador da Comissão
Nacional da Verdade, Pedro Dallari, após dois anos de pesquisa (Betim 2014). A tortura inclusive
foi um elemento fundamental na repressão da luta armada. Muitos guerrilheiros que estavam
vivendo na clandestinidade foram capturados graças a longas sessões de tortura que resultaram em
delações. Em cursos sobre técnicas de interrogatório, especialistas estrangeiros justificavam o uso
da tortura argumentando que ela poderia salvar a vida de inocentes (Motta 2021). Desde pelo
menos 2018, não é possível negar que os generais tinham conhecimento das execuções sumárias
realizadas pelo regime. Um memorando da CIA, descoberto pelo pesquisador Matias Spektor,
descreve em 11 de abril de 1974 a anuência de Geisel na continuação da política de extermínio do
Centro de Inteligência do Exército, embora tenha alertado para que esse destino fosse reservado
apenas para “subversivos perigosos” (Borges 2018).
Na parte final do trecho, assim como na narração em off que introduz a discussão sobre a
luta armada, é mencionada a prática de justiçamentos dentro da esquerda, um tema bastante
sensível que deixou suas vítimas em uma espécie de limbo nas políticas de memória desenvolvidas

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pelo Brasil. Na primeira menção, o documentário afirma que “os revolucionários assassinavam até
os próprios colegas que queriam desistir da luta armada” (Brasil Paralelo 2019, 1:21:46). A imagem
que ilustra esse trecho é uma fotografia dos guerrilheiros de Três Passos, do Movimento
Revolucionário 26 de Março, presos já em 1965. Os “tribunais revolucionários” durante o regime,
entretanto, só começaram em 1969, após o AI-5, e continuaram até 1973, quando os últimos focos
da guerrilha estavam em declínio diante da repressão.
Com o objetivo de narrar as histórias dessas vítimas sem reproduzir a versão dos militares,
o jornalista Lucas Ferraz publicou em 2021 o livro Injustiçados, resultado de uma pesquisa iniciada
ainda em 2007. Ferraz, assim como muitos outros pesquisadores, foi atraído para o tema a partir
da trajetória de José Anselmo dos Santos, popularmente conhecido como Cabo Anselmo, o mais
famoso infiltrado da ditadura e responsável pela execução de pelo menos 20 companheiros da luta
armada, incluindo sua namorada. Mesmo com muitas suspeitas sobre ele na época, o militar
sergipano, que morreu aos 80 anos de causas naturais, nunca foi levado à “justiça revolucionária”
por seus colegas. A principal conclusão de Injustiçados, como sugere o título do livro, é que todos
os pares vítimas da luta armada no Brasil foram erroneamente julgados como traidores pelos
tribunais revolucionários, apesar de sua evidente ilegitimidade (Ferraz 2021).
Ao todo, quatro pessoas foram executadas nessas circunstâncias durante a ditadura: Márcio
Leite de Toledo, Carlos Alberto Maciel Cardoso, Francisco Jacques de Alvarenga e Salatiel Teixeira
Rolim. De acordo com Ferraz, esses números são proporcionais à dimensão do movimento
revolucionário armado brasileiro. No entanto, ao contrário do que sugere Entre armas e livros, esses
episódios foram amplamente explorados e até mesmo superestimados pelo regime, que divulgou
versões ainda mais aterrorizantes por meio da imprensa. Os justiçamentos eram tão convenientes
que eventualmente foram usados para tentar atribuir à luta armada alguns dos cadáveres produzidos
pela ditadura. Isso levou a família de Márcio, o primeiro justiçado, a acreditar por um tempo que
ele teria sido morto em um teatro armado pela repressão. Por outro lado, seria muito improvável
o contrário, uma vez que os guerrilheiros costumavam deixar longas cartas assinadas pelas
organizações junto aos corpos, como forma de conferir legitimidade às execuções (Ferraz 2021).
Embora sejam bárbaros e injustificáveis, esses assassinatos, além de não alcançarem a
dimensão indicada pela Brasil Paralelo no filme, também podem ser atribuídos à ditadura. Esta,
como instauradora de um regime que levou a oposição radicalizada à paranoia,1 infiltrando agentes

1
Essa paranoia é bem descrita na obra de Ferraz (2021) como “síndrome de Severino”, em referência a um militante
da Aliança Libertadora Nacional, José da Silva Tavares, conhecido como Severino. Ele foi preso na primavera de 1970
em Belém pelo Cenimar, serviço de inteligência da Marinha. No entanto, retornou aos companheiros com uma história
de fuga cinematográfica do hospital após uma tentativa de suicídio. Resumindo a trama: na realidade, ameaçado de
morte, ele fez um acordo com o delegado Fleury, do temido Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) de São
Paulo, para entregar Câmara Ferreira, experiente guerrilheiro sucessor de Marighella no comando da organização.

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e convertendo militantes para torturá-los e executá-los a sangue-frio, deve ser considerada coautora
da tragédia humanitária que cada uma dessas mortes representa.
A abordagem do documentário sobre os desaparecidos procura explorar justamente este
filão, quando são mencionados os nomes de seis militantes que supostamente mudaram de
identidade e desapareceram por medo de represálias de seus próprios companheiros após um
acordo de delação. Embora o justiçamento tenha sido uma realidade dentro da oposição armada
ao regime, a narrativa apresentada pelo filme parece aceitar sem questionamentos a versão de Hugo
Studart num livro lançado em 2018, Borboletas e Lobisomens. Esta obra gerou grande repercussão na
historiografia e entre entidades de direitos humanos, tendo recebido críticas significativas por não
revelar suas fontes e por não fornecer documentos comprobatórios que sustentem suas afirmações
(Monteleone 2018). Além disso, familiares dos supostos desaparecidos negam as alegações feitas
no livro (Quadros 2021).
O acesso à vasta documentação produzida pelo próprio regime militar poderia fornecer
informações cruciais para esclarecer o destino dos mais de 200 desaparecidos no Brasil. Como
evidenciado pelo jornalista Lucas Figueiredo (2015) em seu livro Lugar Nenhum: militares e civis na
ocultação dos documentos da ditadura, os serviços de inteligência das Forças Armadas elaboraram,
copiaram e mantiveram milhões de páginas de dossiês sobre a esquerda e com informações sobre
o paradeiro de seus militantes no país. No entanto, as ordens para disponibilizar esses documentos,
especialmente durante a Nova República, foram tratadas com desdém e, por vezes, com cinismo
por parte das instituições militares. Esses arquivos sem dúvidas seriam fundamentais para lançar
luz sobre muitos casos de desaparecimentos durante o regime militar no Brasil.
O livro de Lucas Figueiredo apresenta várias contradições e omissões nos relatórios
apresentados pelos militares quando solicitados pelo poder civil. Um exemplo concreto está na
posição oficial do Exército sobre o paradeiro de Miguel Pereira dos Santos. Ao ministro da Justiça
Maurício Corrêa, em 1993, a força terrestre limitou-se a dizer que ele “participou ativamente da
guerrilha do Araguaia, onde teria desaparecido em 1972”. No entanto, em 2007, com a descoberta
do Orvil, soube-se que já em 1988 o Centro de Informações do Exército (CIE) havia declarado o
guerrilheiro como “morto numa emboscada, tendo seu acompanhante logrado fugir ileso”.
Existem outros casos semelhantes, que mostram inclusive que a alegação de que as Forças Armadas
teriam destruído os documentos, eventualmente acionada para justificar as ausências, era uma

Embora tenha sido alertado sobre a possibilidade de traição, Ferreira defendeu o companheiro. Tavares forneceu
informações sobre mais de 100 militantes treinados em Cuba e entregou o paradeiro de quatro militantes de uma só
vez, incluindo o novo comandante da ALN, que morreu sob tortura.

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distração. O próprio Leônidas Pires Gonçalves admitiu, já com 85 anos, que os documentos não
haviam sido queimados “coisa nenhuma” (Figueiredo 2015).
O caso de Antônio de Pádua Costa, listado como falso desaparecido pela Brasil Paralelo
no filme, é bastante revelador dessa postura das Forças Armadas. Segundo depoimentos registrados
pelo Ministério Público, ele foi preso e forçado a guiar soldados pela mata no Araguaia. No entanto,
o Exército foi lacônico ao dizer que ele teria sido apenas morto. Outro exemplo é o de Luiz Renê
Silveira e Silva, também classificado como “vira-casaca” em 1964 - O Brasil entre armas e livros. Seus
dados de morte foram ocultados pela força terrestre no relatório para o Ministério da Justiça, mas
em 1996 o jornal O Globo divulgou documentos sigilosos do próprio Exército que confirmavam
sua execução, juntamente com outros 10 companheiros. Todos os nomes apresentados pela
produção foram citados no relatório de 1993 entregue pela Marinha ao ministro da Justiça. No
entanto, duas décadas depois, acabaram ignorados nos informes solicitados pela Comissão da
Verdade. O documentário da Brasil Paralelo e outras produções não fazem cobranças pelo acesso
a esses arquivos, o que poderia ajudar a esclarecer muitos desses casos.

A Brasil Paralelo e a violência política da direita

A Brasil Paralelo fundamenta sua posição de não defender a ditadura principalmente devido
à sua rejeição ao AI-5. Como fizeram muitos liberais que apoiaram o golpe que derrubou João
Goulart e romperam com o regime após seu recrudescimento, a produtora só reconhece a ditadura
a partir de 1968. Antes disso, teria havido apenas algo como um regime meramente transitório que
em algum momento se perdeu no caminho. Essa posição não é novidade no debate público, como
se sabe a partir das intervenções do historiador conservador Marco Antonio Villa (2009), por
exemplo.
Na narração em off, Filipe Valerim inicia o trecho com destaque para as ações da esquerda
armada, afirmando: “O governo de Costa e Silva sofria forte oposição, desde as manifestações
estudantis até os atos terroristas. O governo se via cada vez mais isolado” (Brasil Paralelo 2019,
1:28:57). O jornalista Lucas Berlanza continua:

Ele reúne o seu ministério para discutir medidas duras e aí apresenta o projeto do Ato Institucional
número 5, que dava ao Executivo o poder de acabar com os outros poderes se necessário, assim
sempre que necessário, fechar o Congresso, intervir nos magistrados, nos juízes; relativizava o
habeas corpus, o que é muito perigoso (Brasil Paralelo, 1:29:07).
Silvio Grimaldo começa com a série de rechaços: “A ideia de que o Ai-5 surgiu para poder
combater a guerrilha é fantasiosa porque os dispositivos constitucionais que existiam permitiam o
combate da guerrilha” (Brasil Paralelo, 1:29:34). Logo a seguir, Berlanza questiona:

Havia manifestações, havia guerrilha. Mas a reflexão que fica é: será que era preciso um AI-5 para
combater isso tudo? Será que manifestações justificam o AI-5? Começa por aí. Ter gente na rua, seja

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de esquerda ou de direita, para protestar contra o governo, justifica você fazer o fechamento total
do sistema político? (Brasil Paralelo, 1:30:07)
William Waack responde taxativamente que não, mas não perde a oportunidade de dar
destaque à luta armada:

Eu vi como a Itália, a França e a Alemanha souberam dominar movimentos terroristas sem perder
a sua essência do regime democrático. É possível, sim. É possível combater o terrorismo militante,
covarde, assassino, sem que esses países deixem de lado o respeito à lei, à ordem e à democracia
(Brasil Paralelo., 1:29:46).
É plausível imaginar que o movimento revolucionário brasileiro pudesse produzir vítimas
em larga escala durante o contexto da Guerra Fria, mesmo sob um governo democrata, uma vez
que a oposição à “democracia burguesa” era uma constante nos escritos desses grupos. No entanto,
esse exercício contrafactual não passaria de mera especulação. A comparação entre as social-
democracias da Itália, França e Alemanha e o Brasil também é insustentável, pois já era evidente o
processo de fechamento do regime mesmo antes do AI-5. Até 1966, quando as ações mais efetivas
da esquerda armada tiveram início (Ferraz 2021), o governo militar já havia editado quatro Atos
Institucionais. Isso sem mencionar o próprio golpe, que por si só implicou uma série de medidas
autoritárias.
O documentário também omite as centenas de atentados perpetrados pela direita, alguns
dos quais ocorreram até antes do golpe, como a bomba colocada para explodir a Exposição
Soviética no Campo de São Cristóvão em 1962, e outros ocorridos muito depois da derrocada da
luta armada, a exemplo do artefato que detonou o prédio da OAB carioca e resultou na morte da
secretária Lyda Monteiro da Silva, em 1980. Um panfleto da Aliança Anticomunista Brasileira
(AAB) encontrado no local afirmava que “a OAB está totalmente dominada pelos comunistas, que
transformam a entidade em uma agência de trabalho de Moscou contra os interesses do Brasil” e
que a bomba era um “primeiro alerta” (Motta 2020, 182).
O infame caso Riocentro, amplamente reconhecido como uma das mais emblemáticas
reações de setores militares à abertura política, é surpreendentemente descrito por Lucas Berlanza
no filme como “muito provavelmente [...] coisa da linha-dura e não da extrema esquerda” (Brasil
Paralelo 2019, 1:52:06). Embora essa narrativa tenha perdido força nos últimos anos do regime,
principalmente devido ao seu desgaste e à maior liberdade da imprensa, os militares continuaram
insistindo que os atentados eram perpetrados pela própria esquerda. Na noite de 30 de abril de
1981, o centro de convenções tinha cerca de 20 mil pessoas reunidas para uma série de shows
musicais em comemoração ao Dia do Trabalhador, quando duas bombas explodiram no recinto.
Uma delas detonou prematuramente dentro do carro que as transportava, resultando na morte
instantânea do sargento Guilherme Pereira do Rosário. Apesar de gravemente ferido, o capitão

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Wilson Dias Machado conseguiu sobreviver. A versão oficial, no entanto, não admitiu
envolvimento da direita ou governo, evidentemente (Batista 2021).
Rodrigo Patto Sá Motta (2020, 178), em seu livro Em Guarda Contra o Perigo Vermelho, analisa
esse expediente, demonstrando que ele seguiu as tendências de aumento das atividades
anticomunistas no país. Segundo o historiador, os relatórios das autoridades policiais sobre os
atentados da direita no início dos anos 1960 “parecem ter sido elaborados apenas para cumprir
uma exigência burocrática”. Um dos casos analisados por ele beira a comicidade: o responsável
pela investigação de um atentado lamenta não ter conseguido encontrar o registro do Movimento
Anticomunista (MAC) em cartório. O mais próximo que se chegou da identificação dos seus
financiadores apareceu em uma coluna apócrifa do Jornal do Brasil, em janeiro de 1962, que afirmava
que o governo havia mantido os nomes em sigilo graças ao envolvimento de “gente graúda”. Na
época, houve especulações sobre tenentes, almirantes e empresários, mas as investigações não
avançaram (Motta 2020).
Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade optou por não contabilizar a
maioria dessas mortes, considerando o foco na ação direta do Estado e por razões eminentemente
políticas. Mesmo que os números dessa contagem (434 pela ditadura e 119 pela esquerda) sejam
admitidos friamente, é essencial considerar que 90% das mortes atribuídas à luta armada resultaram
de confrontos armados com agentes de segurança, enquanto o leque de vítimas do regime foi muito
mais diversificado. A narrativa favorável à ditadura, de que ela apenas executou opositores
altamente perigosos, também é falaciosa: entre suas vítimas estão estudantes desarmados,
parlamentares, jornalistas, mães de desaparecidos e até crianças, frequentemente usadas em sessões
de tortura. Isso sem mencionar as inúmeras mortes de guerrilheiros que o regime forjou como
resultado de tiroteios. Se fossem incluídas as execuções de camponeses e indígenas,
predominantemente perpetradas por pistoleiros a serviço de grupos privados em colaboração com
a ditadura, esse número aumentaria exponencialmente (Motta 2021).
Além da ação de grupos terroristas marginais e da leniência das autoridades, a direita
autoritária também contava com um aparato estatal repressivo pré-existente, mas em franca
evolução desde o golpe, que incluía as criações do Serviço Nacional de Informações (SNI),
estabelecido em 1964 e diretamente subordinado ao Exército; do Centro de Informações do
Exército (CIE), em 1967; do Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa), em 1968; do
Departamento de Polícia Federal (DPF), uma espécie de polícia nacional que posteriormente se
ocupou da censura, e a Inspetoria Geral das Polícias Militares (IGPM), em 1967; dos Doi-Codi, em
1970, inspirados pela experiência da Operação Bandeirantes no ano anterior, que contou com o
apoio de empresários; e das Divisões de Segurança e Informações (DSI) e Assessorias de Segurança

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e Informação (ASI), no início da década de 1970. Também é importante ressaltar que a Lei de
Segurança Nacional, em vigor desde 1953, sofreu atualizações em 1967 e 1969 para ampliar as
opções de enquadramento da subversão. Toda essa estrutura, como destaca Motta, à exceção dos
Doi-Codi, já estava estabelecida antes mesmo de a luta armada começar a representar um desafio
significativo para os militares (Motta 2021).
E enquanto a esquerda recebeu ajuda internacional, notadamente de Cuba, o regime militar
contou com o suporte bélico, técnico e tático dos Estados Unidos, Inglaterra e França (Motta
2021). Além disso, houve cooperação estratégica entre as ditaduras do Cone Sul já na década de
1970, exemplificada pela Operação Condor (Rossi 2019). Por outro lado, de maneira geral, é
possível afirmar que a estrutura da luta armada no Brasil era mais do que precária.
Esse diagnóstico não tem como finalidade minimizar as intenções bélicas da guerrilha, mas
sim reconhecer seus limites na prática e, principalmente, a fragilidade de uma interpretação que a
equipara ao aparelho repressivo da ditadura. Considerando a desproporcionalidade das forças em
oposição, se a “teoria dos dois demônios” já não consegue capturar com precisão a realidade dos
“anos de chumbo” no Brasil, a versão apresentada pela Brasil Paralelo, que exagera o perigo
comunista para minimizar a ação da ditadura como meramente reativa, chega a beirar a fantasia.

Conclusão

Uma análise atenta de 1964 - O Brasil entre armas e livros revela algumas importantes posições
contraintuitivas da Brasil Paralelo que merecem destaque. Em primeiro lugar, seus entrevistados,
em sua maioria, admitem que o que houve em 31 de março de 1964 foi um golpe de Estado. Além
disso, a produção tem posição unânime de rechaço ao AI-5, instrumento que institucionalizou as
ferramentas mais autoritárias da repressão. A Brasil Paralelo reconhece, portanto, a existência da
ditadura e não parte abertamente em sua defesa.
Por outro lado, apesar de aparentemente flertar com a memória hegemônica crítica ao
regime, esta de matriz liberal (Napolitano 2015), marcando posição contrária à ditadura, a
produtora acaba por reciclar uma série de elementos da memória militar, notadamente graças ao
superdimensionamento da ameaça de um golpe comunista. Este golpe supostamente iminente em
1964 teria sido interrompido por um movimento iniciado pela sociedade civil, em uníssono, e
seguido pelos militares. Um dos entrevistados da produção chega inclusive a chamar o golpe de
“revolução”, tamanho entusiasmo. No documentário, a insistente trilha de suspense é finalmente
substituída por uma marcha triunfal que celebra o fim da Quarta República brasileira. O que faz a
Brasil Paralelo, portanto, mais do que relativizar o golpe, como fizeram os liberais desembarcados,
é comemorá-lo efusivamente. Além disso, embora a repressão tenha sido abertamente condenada

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pelos entrevistados, há uma clara extrapolação da real força da resistência armada à ditadura militar.
Ela reproduz o discurso oficial da época e, ainda, o consagrado pelos oficiais que escreveram sobre
a experiência no futuro.
Mesmo crítica à ditadura, a produção acaba por revelar algumas preferências através do que
diz e do que oculta. Evidência disso são admissões de que teria havido censura, tortura e
assassinatos praticados pelos militares, mas desacompanhadas de qualquer caso concreto. Já os
casos da esquerda, por sua vez, são fartamente explorados, numa balança que, como dito, confere
ao “demônio” da esquerda tamanho muito superior ao da direita, numa avaliação insustentável
diante do que se sabe hoje sobre o assunto (Motta 2020).
Em entrevista para o comediante Danilo Gentili, os sócios da Brasil Paralelo têm a
oportunidade de se defender da acusação de que o documentário consiste num elogio à ditadura.
Lucas Ferrugem diz que “é extensa a lista de críticas feitas ao período militar”. Quando tem a
oportunidade de se explicar, ele arremata:

A principal crítica que ele [o filme] faz aos militares… Ele faz uma dura crítica nesse sentido, que,
além de ele ter aparelhado o Estado, inflado o Estado, ele deixou uma brecha gigantesca para que
se criassem movimentos de massa, culturais, etc. E depois, quando acabou o regime, o único partido
de massa que surgiu foi o PT, que protagonizou, depois, mais à frente, os próximos anos da política
brasileira. E o fato de eles terem aparelhado todo esse Estado, eles entregaram isso de bandeja para
uma oposição tenaz, que se criou durante o período militar e permitiu que o sonho da Nova
República fosse na verdade um mito em que a gente só ganhou uma nova escolha para o cabresto
(The Noite com Danilo Gentili 2019, 15:28).
Quer dizer, as prisões arbitrárias, a falta de eleições livres, a censura, a tortura, as execuções
e o desaparecimento de corpos não são um problema tão grande para a produtora quanto o fato
de o regime ter supostamente entregue o Estado para a oposição. Se não defende a ditadura, como
alega, a Brasil Paralelo também não parece estar muito preocupada com a democracia.
Apesar de superestimar a força da luta armada, Entre armas e livros reproduz uma percepção
especialmente cara a Olavo de Carvalho, segundo a qual as guerrilhas não passariam de mera
distração para os militares. Um artigo de Olavo para o Diário do Comércio diz que

Sim, desde aquela época, quando os generais acreditavam mandar no país porque controlavam a
burocracia estatal, a esquerda, dominando a mídia, o movimento editorial e as universidades, já tinha
o monopólio da narrativa histórica e portanto, o controle virtual do curso dos acontecimentos. Os
militares, que em matéria de guerra cultural eram menos que amadores, nada perceberam.
Imaginaram que a derrota das guerrilhas havia aleijado a esquerda para sempre, quando já então uma
breve leitura dos Cadernos do Cárcere teria bastado para mostrar que as guerrilhas nunca tinham
sido nada mais que um boi-de-piranha, jogado às águas para facilitar a passagem da boiada
gramsciana, conduzida pelo velho Partidão no qual os luminares dos serviços de “inteligência”
militares só enxergavam um adversário inofensivo, cansado de guerra, ansioso de paz e democracia,
quase um amigo, enfim (Carvalho 2012).
Na mesma entrevista para Gentili, Ferrugem diz que o intuito do documentário é apenas
“equilibrar”, já que “a propaganda política que está tendo no momento é muito forte, então a gente
tem que tentar buscar a verdade nisso”. A ideia, então, seria “tirar o panfleto político, tirar essa

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carga ideológica que teve no período” (The Noite com Danilo Gentili 2019, 5:38). Nunca é demais
lembrar que esta também foi a motivação dos militares que, já na transição democrática, escreveram
o Orvil. “Porém, para os vencidos, o combate continuou. Os derrotados trocaram as armas pelas
palavras, fazendo questão de não deixar cicatrizar as feridas que procuram manter abertas até hoje”,
escreveu Ustra (2012, 23) na apresentação do livro.
O que está em jogo, neste sentido, é mais do que a mera interpretação do regime e da
resistência a ele, mas a própria legitimidade dos atores que têm produzido essa interpretação. Para
os olavistas, incluindo a Brasil Paralelo, o discurso dos públicos dominantes — que inclui num
mesmo pacote a historiografia, as universidades, a educação básica e o jornalismo — tem um vício
de origem, que é a contaminação, voluntária ou não, daquilo que chama de “marxismo cultural”,
na verdade um álibi que as direitas utilizaram para manter incandescente o imaginário
anticomunista num contexto de declínio dos regimes comunistas pelo mundo. Em suma, trata-se
de um esforço de desqualificação cuja finalidade é suplantar o papel desempenhado pelos “peritos”
dos sistemas pré-digitais, habilitando estes atores para contar a história da ditadura e qualquer outra.
Os resultados desse processo, ainda em aberto, são difíceis de prever. Fato é que se trata
de um cenário complexo e impossível de ignorar. Na berlinda, o conhecimento acadêmico precisa
recuperar a confiança da sociedade. E é preciso arregaçar as mangas para isso, compreendendo as
novas dinâmicas e ajudando a propor saídas bem fundamentadas. A universidade, como se sabe,
não se basta. Em última instância, ao menos em regimes democráticos, quem decide sobre seu
papel é a sociedade civil. As novas direitas radicais perceberam isso e resolveram agir. Que não seja
para reproduzir seu modus operandi, em muitos casos deplorável, ao menos provoque uma profunda
reflexão sobre as práticas dentro ou fora da academia em seu nome. No horizonte, está o imenso
desafio de permanecer atenta e crítica aos negacionismos ou revisionismos ideológicos e
garantidora dos princípios de pluralismo e liberdade de expressão.

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Murilo Prado Cleto | “Anos Tenebrosos”: a luta armada na obra da Brasil Paralelo

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https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0503200908.htm.

***

Recebido: 19 de março de 2024


Aprovado: 10 de maio de 2024

137
Entrevista
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.45717

“CTRL+F História”. Entrevista com Tiago Gil

“CTRL+F History”. Interview with Tiago Gil

“CRTL+F Historia”. Entrevista con Tiago Gil

Anita Lucchesi*
https://orcid.org/0000-0002-8523-111X

Mônica Ribeiro de Oliveira**


https://orcid.org/0000-0001-7168-7653
Como citar esta entrevista:
Lucchesi, Anita; Oliveira, Mônica Ribeiro de. “Entrevista com Tiago Gil (Universidade de
Brasília)”. Locus: Revista de História, 30, n. 1(2024): 138-158.
***

Tiago Luís Gil possui graduação em Licenciatura em História pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2000), graduação em Bacharelado em História pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (2002), mestrado em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (2003) e doutorado em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2009).
Atualmente é professor Associado da Universidade de Brasília (UnB). Tem experiência na área de
História, com ênfase em História do Brasil Colônia, atuando principalmente nos seguintes temas:
economia colonial, história digital, contrabando, fronteira, história espacial, geoprocessamento em
história e bancos de dados.

*
Pesquisadora na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde coordena um projeto de divulgação científica com
podcasts. É também co-investigadora do software de gestão de fontes primárias digitalizadas, Tropy. Área de atuação:
Teoria da História, História da Historiografia e Ensino de História, com ênfase em História Pública Digital.
**
Professora titular de História do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. É docente do
PPGHistoria/UFJF e pesquisadora da Fapemig. Área de atuação: história de família, sociedades agrárias nos séculos
XVIII e XIX e micro-história.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Tiago Gil (Universidade de Brasília)

A Locus: Revista de História apresenta uma entrevista exclusiva com Tiago Luís Gil – uma
importante referência para os estudos sobre as humanidades digitais, especialmente a História
Digital. Concedida de forma muito generosa pelo colega, a entrevista integra o dossiê temático
“História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre teoria e prática” e foi conduzida pelas
organizadoras do dossiê, Anita Lucchesi e Mônica Ribeiro, explorando a trajetória de Gil nas
veredas digitais, buscando compreender sobretudo suas motivações para se investir nos estudos e
na utilização de sistemas de informação geográfica no campo da pesquisa histórica.
Para melhor legibilidade da entrevista, a transcrição da gravação foi editada para remover
alguns marcadores do registro oral e comentários paralelos relacionados aos preparativos e ou
encerramento da gravação, como testes de som e/ou ruídos externos, buscando preservar a
integridade das perguntas e respostas em seus significados.

● Monica Ribeiro de Oliveira: Tiago, o que te inspirou a integrar a tecnologia dos


sistemas de informação geográfica no campo da pesquisa histórica? E
especialmente, gostaríamos que falasse para nós um pouco do Atlas Digital da
América Lusa, que é um fruto extremamente importante de seu trabalho e com uma
centralidade nos estudos sobre geoprocessamento e cartografia no Brasil.

Todas as minhas iniciativas de trabalhar com história digital, podemos chamar assim,
sempre foram pautadas pela pergunta histórica, pergunta de historiador, de pesquisa histórica, que
antecedia a abordagem técnica. O Atlas Digital da América Lusa1 é um exemplo disso. Por quê?
Porque quando estava no doutorado eu trabalhava com crédito, história do crédito. Como é que
as pessoas emprestavam, tomavam emprestado, como é que as pessoas se endividavam, etc. E
comecei a acreditar que tinha uma geografia do crédito e precisava saber até que ponto o espaço
geográfico era uma variável importante para tomar em conta. Comecei a fazer experimentos com
o que tinha em mãos, desenhava no papel, “mas deve ter um jeito, digamos assim, certinho de fazer
isso”, pensei. Na época eu estava fazendo o Sanduíche, no Instituto Universitário Europeu, em
Florença, e vi um cartazinho de um curso de geoprocessamento para historiadores, oferecido por
uma professora da Universidade de Florença, chamada Margherita Azzari. Eu me inscrevi neste
curso e aprendi muita coisa. Voltei para o Brasil e consegui o programa que ela usava, e comecei a

1
O Atlas Digital da América Lusa é uma proposta colaborativa, que congrega pesquisadores de diversas instituições. A
ferramenta base foi desenvolvida pelo Laboratório de História Social (LHS) da Universidade de Brasília, usando
tecnologia do Ministério do Meio Ambiente, o software I3GEO. O LHS/UnB também produziu mapas base com
informações de unidades urbanas e populacionais do período entre 1500 e 1800, além de outros bancos de dados de
informações geográficas. Nele podem ser publicados dados espacializados de diversas pesquisas ou mesmo
informações que possam passar pelo processo de geoprocessamento a cargo do LHS/UnB. A ideia é que diversos
pesquisadores possam enviar informações de seus estudos e, ao mesmo tempo, usufruir deste grande banco de dados
coletivo revisado, organizado e certificado, assim como da cartografia produzida. Disponível em:
http://lhs.unb.br/atlas/Início.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Tiago Gil (Universidade de Brasília)

trabalhar, até que eu consegui fazer o que precisava. Consegui fazer o que eu queria fazer, o mapa
das povoações da América Portuguesa Meridional, São Paulo para baixo, Rio para baixo, e mapear
o caminho das tropas. Então desenhei o caminho das tropas ali. Foi bastante trabalho, mas foi
importante para a pesquisa. Aí pensei que seria bom se tivesse tido tudo isso pronto, assim, para
fazer, não precisava ter pesquisado tanto para reconstituir as vilas, bastava eu ter baixado de algum
lugar e usado. Assim, pensei que podia fazer isso para o Brasil todo. Surgiu então o Atlas Digital da
América Lusa com essa função. Ele tenta ser uma ferramenta que imita Google Maps, uma navegação
pelos lugares, onde podemos ver as vilas, os rios com os nomes da época, os caminhos, as cidades.
Depois podemos descer para a nível das capelas, até chegar nas ruas e nas quadras das cidades que
estão já referenciadas. Temos 100 vilas de um total de 260, 100 vilas com desenho do casco urbano.
A pessoa pode baixar e trabalhar em cima disso. Constam também os jesuítas, os carmelitas, e mais
uma série de informação que dá para produzir mapas a partir desse material. A equipe do Atlas
nunca explorou totalmente esse material. Fizemos três artigos com três hipóteses cruzando dados
que estavam no Atlas. Cruzamos, por exemplo, o avistamento de grupos indígenas com a povoação,
depois elaboramos um artigo sobre a morfologia da conquista. Então, fizemos vários trabalhos
usando esses dados, mas assim, sempre hipotéticos, sempre experimentais. Provocando uma
historiografia, a historiografia da conquista, por exemplo, da ocupação territorial, que é muito da
geografia e da arquitetura, para que dialogassem com a história indígena, num debate que
praticamente não existia e que acho produtivo. Então, a gente tem feito isso, mas agora estamos
um pouco parados, digamos, estamos trabalhando em outras frentes e não voltamos mais para o
Atlas. Ele, basicamente, é uma ferramenta de navegação num tempo e espaço. E, diferentemente
do Google Maps, é uma ferramenta que também valoriza o tempo. Podemos ver o século XVI, por
exemplo, ou só uma década específica, ou só um ano específico, podemos delimitar isso e navegar
por ele. Com uma pequena diferença do Google Maps, a gente também permite que as pessoas
baixem os dados dos seus computadores e usem esses dados em software de cartografia digital.
Então, é a pergunta que orienta a técnica e o Atlas Digital da América Lusa responde um pouco essa
demanda, uma demanda que surgiu lá atrás, que eu achei que poderia ser melhor explorada por
outras pessoas. Mas, o porém dessa história é que até agora não tivemos muitos usos do Atlas. Não
sei se chegou a cinco pessoas que usaram os dados que estão ali. É uma boa questão o porquê que
isso também acontece. Talvez as pessoas não vejam vantagem na geografia como uma variável
importante. É uma questão que temos que pensar.

● Anita Lucchesi: Você mencionou que começou a trabalhar com software da


professora Margherita Azzari e perguntamos que ferramentas seriam essas? Se
alguém estiver interessado em trabalhar com gerenciamento geográfico, enfim,

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Tiago Gil (Universidade de Brasília)

esses softwares de cartografia para um leigo, que ferramentas são essas? Por onde
começar? E já adicionando, se você acha que o baixo uso do Atlas pode ter relação
com o desconhecimento dessas ferramentas também?

Mas antes, eu gostaria de matizar uma questão relativa ao baixo uso do Atlas, e
especialmente, a parte dos dados cartográficos, tendo em vista que a parte textual do Atlas é
bastante usada. O que me faz pensar que é o fato de os historiadores serem muito alfabetizados,
em termos de alfabeto mesmo, e pouco alfabetizados em termos de imagem e outras formas de
comunicação. Historiador, por exemplo, tem medo de imagem, gráfico, tem medo de tabela, que é
um pouco textual ainda, não é? Tem medo de imagem, também. São poucas pessoas que trabalham
com imagens. Não estou dizendo que elas não existem, e que são poucos os corajosos, não é? Por
outro lado, mesmo na história oral, pouca gente se aventura. Dada a importância dessas técnicas,
desses conhecimentos de história oral, de histórias das imagens, é pouca gente. A maior parte vai
para o texto, que é um terreno confortável para o historiador e eu mesmo faço isso. E os
historiadores, quando analisam mapas, quando começou a chamada crítica da cartografia, nos anos
1990, a nova cartografia, a cartografia crítica, se falava de “ler mapas” como se lê um texto. Ou
seja, de novo, tem que traduzir para poder fazer o trabalho, porque ao olhar um mapa por si mesmo
o historiador se mostra pouco capaz. Não sei se é tanta questão técnica e um melindre tecnológico,
ou outra dificuldade, porque, por exemplo, a história oral poderia ser mais feita, se os historiadores
não fossem tão textuais. E a tecnologia para a história oral não é tão difícil assim. A análise de
imagens com uso de tecnologia, também não é tão complicada. As pessoas têm medo, têm receio
de fazer. Enfim, é um pouco uma impressão. Depois tem a parte também tecnológica que assusta,
o que não duvido, mas não sei se é só isso.
Aí, a pergunta que você fez, sobre o software, eu serei bem partidário aqui. A professora
Margherita Azzari, usava um software comercial “proprietário”, que é um software de uma empresa
privada que o vende. Na época (2007), não havia outra alternativa. No entanto, hoje nós temos
alternativas e vou mencionar só esse software, que é open source/código aberto, gratuito, que é o
QGIS, QuantumGIS2. Que é um programa ético, muito aberto. As pessoas podem participar dele e
financiar. Enfim, é muito transparente, ao contrário do outro, proprietário, que a gente não sabe
bem como é feito. Eu não vou nem mencionar o proprietário para não fazer propaganda. Tanto é
que, nesse meio tempo, a Margherita Azzari mudou, ela não usa mais o proprietário, ela usa já o
código aberto. O QGIS é uma ferramenta muito boa para trabalhar com geoprocessamento. Faz
tudo o que a gente precisa na história. Até muito mais do que a gente precisa. É fácil de aprender,

2
QGIS é um software livre com código-fonte aberto, multiplataforma de sistema de informação geográfica que permite
a visualização, edição e análise de dados georreferenciados. Disponível em: https://www.qgis.org

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em geral, sua curva de aprendizado é bem simples. Leva-se de uma hora a duas horas para aprender
o básico do QGIS. Enquanto o proprietário, aquele outro, se leva em geral um ano para dominar.
Porque é muito cheio de ferramentas. Para usar uma metáfora, vocês já usaram o Zoom, o Zoom tem
um monte de coisa, que na maior parte são inúteis. Enquanto o Google Meet tem o básico, mas tem
o que precisa. E é muito fácil de aprender e usar o Meet, pois é meio intuitivo. Eu acho que ele tem
quase um treinamento para você usar ele na plenitude. É mais ou menos a mesma diferença, assim.
Só que, digamos que o outro comercial de cartografia é bem mais complicado que o Zoom é em
relação ao Meet. Acho que o QGIS é uma ferramenta muito boa, mesmo que pareça muito difícil
no começo. Eu começaria indicando às pessoas trabalharem com o Google My Maps. Não é o Google
Maps. Google Maps também pode ser útil, mas com o My Maps, você pode marcar os pontos,
desenhar linhas, você consegue desenhar em cima dele. E fazer os seus mapas, tendo com o mapa
de fundo, o mapa atual do Google. O que não é legal se você quer mostrar as coisas do passado, o
passado que não está mais ali no mapa visível. Tem muitas coisas do passado que ainda estão
visíveis no mapa atual, mas nem todas estão. Então, acho o My Maps uma boa ferramenta para
aprender a dominar o básico, que significa, resumindo, aprender a descrever o mundo, a paisagem
do mundo, usando três palavras: pontos, linhas e polígonos. Com pontos, você vai indicar lugares
específicos; com linhas, vai expressar rios, caminhos, fluxos; e com polígonos, vai representar áreas,
territórios. Tudo isso são coisas que você tem que ter, mas daqui a pouco você pode, em vez de
desenhar uma cidade com um ponto, representar a cidade, você pode desenhar linhas
representando as ruas dessa cidade. Então, dependendo da escala, você vai empregar mais um ou
outro e depois você tem que saber falar, essas palavras falarem mais do que elas falariam por si só,
ou seja, usar cores, usar granularidades, usar hachuras, usar outras técnicas visuais para indicar o
que você quer. Basicamente, é isso. É desenhar em cima de um plano euclidiano, sempre supondo,
e acho que essa é a coisa mais interessante da Cartografia Digital, que as relações humanas têm um
significado espacial, ou podem ter um significado espacial. Enfim, acho que é uma coisa que pode
ser útil muitas vezes para você pensar melhor algumas questões. Eu indicaria isso. Começar com
uma ferramenta bem básica, como o Google My Maps, que todo mundo que tem a conta do Google
pode usar, e depois passar para o QGIS. O QGIS não é muito mais complicado que o My Maps,
mas ele faz algumas coisas que o My Maps não faz. Você pode criar tudo do zero, ou seja, você
mesmo definir a paisagem que você quer deixar no fundo, que lugares você quer que sejam exibidos
e os que não quer, enfim, você pode reconstruir ali universos. Então, eu indicaria o QGIS como
uma ferramenta importante.

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● Monica Ribeiro de Oliveira: Muito rica a tua fala sobre a questão, não só das
ferramentas, mas quanto aos desafios. Você falou de desafios que na verdade, se
referem quase a uma falta de letramento na área, principalmente quando pensamos
nos currículos formativos na graduação. Mas ainda, dentro da questão técnica,
dentro do georreferenciamento e do geoprocessamento, quando você está diante de
uma imprecisão de fontes, como é que você lida com elas? Como é que você
consegue marcar os pontos? Os polígonos, as linhas, enfim, como é que você lida
com a imprecisão?

Sim, mas antes eu queria fazer uma pequena observação sobre o letramento que você citou
e que acho importante, porque as pessoas têm dito frequentemente, eu vejo muita gente falando:
“eu não preciso aprender a tecnologia, eu pago alguém pra fazer”. O problema é que não é só uma
questão do historiador com sua pesquisa, mas como cidadão. Estamos cada vez mais dominados
pelos algoritmos. Abrir mão de entender como isso funciona, significa, no futuro, abrir mão da
liberdade, pois nossa vida está mediada já por algoritmos. Você vai escolher um restaurante para
comer, você olha no Google a nota, e a nota não é a nota que as pessoas deram para o restaurante,
simplesmente. Aquela nota é das pessoas que o Google acha que parecem com você deram para o
restaurante. Então, há um cálculo ali, não é um cálculo simples. As indicações que ele dá são
baseadas na experiência de interação que elas têm com você. Ele já mediu quem você é. A gente
pode deixar e aceitar a dominação, é uma alternativa. Eu não gosto muito dessa ideia, mas é uma
alternativa. Sempre nos preocupamos em história em entender poderes. E agora não sabemos mais
como entender os poderes. Enquanto era a arma de fogo, a lança, achávamos que estávamos
entendendo, mas agora tem outras ferramentas que estão em jogo e que a estamos abrindo mão de
entender. A cartografia também passa por aí. Ler um mapa é uma atitude que pode ser passiva ou
ativa. Pode ser uma atitude de contemplação, de crença, de ingenuidade, de olhar para o mapa e
acreditar que ele está ali, dizendo uma verdade, não é? Tem muitas camadas na construção de um
mapa. E saber fazer mapas ajuda a gente perder um pouco essa ingenuidade. Começar a olhar para
o mapa e ver que tem muita coisa que não é neutra, por exemplo, botar esse tipo de cor para tal
coisa, não é simples. Tem um juízo de valor aqui. Enfim, tanto com as cores, como com as formas
das coisas. Eu acho que já seria uma forma de a gente lidar com a incerteza, com o desafio técnico,
ter esse domínio do conhecimento cartográfico. Mas tem muitas formas de lidar com a incerteza.
Aí, já indo ao ponto da pergunta. Tem muitas formas de lidar com a incerteza e com a imprecisão.
A primeira delas, para destacar a imprecisão para o leitor. O que eu tenho sempre orientado as
pessoas a fazer, e tenho feito, é fazer mapas feios. Fazer mapas feios. Fazer mapas bonitos é
sedutor, as pessoas olham para o mapa e acreditam no mapa. Quando a gente faz um mapa que
indica, que parece que foi feito por alguém meio amador, ele já perde um pouco essa aura. Os
cartógrafos falam que tem que ter a rosa dos ventos, tem que ter uma série de informações técnicas.

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Não acho que devemos colocar essas coisas. Deliberadamente, não devemos colocar essas coisas.
Deve-se colocar o essencial para transmitir a informação que queremos, a qual a gente não
conseguiria através do texto. Por quê? Porque é como se fossem croquis. Então, melhor dizer que
não são mapas, são croquis. Porque são tentativas de comunicar a informação espacial. Muitos
cartógrafos são bastante positivistas. Para eles, o mapa é realmente aquilo que é. E nós, na história,
não temos tanta ingenuidade assim. A gente acha que, enfim, são construtos, como qualquer outro
construto textual, ou narrativo, ou mesmo oral. Sabemos que as pessoas podem, em um discurso
ao vivo, usar a voz como uma ferramenta de convencimento e com a cartografia é a mesma coisa.
Acho que deixar o fio solto para a pessoa desconfiar do mapa é um primeiro passo, e fazer mapas
feios é uma forma de deixar o fio solto. Feio, eu não quero dizer que tem que ser horrível, mas
assim... Deixar alguma pista para o leitor de “olha, esse mapa aqui é um mapa artesanal feito de
propósito de forma de comunicar uma informação”. Depois, uma boa crítica textual na parte de
baixo do mapa, no texto que segue o mapa, talvez seja interessante para o leitor confrontar: “Olha,
a gente pode ler um mapa assim, um mapa passado, pode fazer tal interpretação, tem que ter em
conta tal problema”. Jogar aberto com o leitor no texto também, acho que isso seja importante.
Depois, tem várias técnicas de denotar a imprecisão através de recursos cartográficos. Uma delas,
por exemplo, é usar tons de cinza para indicar o grau de certeza que temos com a informação
cartográfica. Se aquele ponto, por exemplo, está bem preto, a gente sabe que é ali. Ou tons de cinza,
“olha, eu não sei, acho que é por aqui”. Então, a gente pode usar esse tipo de legenda para indicar
essa incerteza, para transmitir essa insegurança mesmo para o leitor. E depois tem outra coisa, que
é o que eu mais gosto de usar: uma escala continental. A escala continental pouco importa se a
margem de erro é de dois quilômetros. O ponto vai ficar no mesmo lugar, porque dois quilômetros,
na escala continental, não é nada. Sem certeza que a gente está trabalhando de dois quilômetros, a
escala continental faz isso ser um problema menor. Quem trabalha com história urbana não vai
poder se dar esse luxo, que eu me dou, porque os meus problemas de pesquisa são de escalas
menores (grandes regiões). Eu trabalho com fluxos de negociantes de gado. Então, para mim é
fácil fazer isso. Em história urbana, não tem como fazer isso. Vai ter que trabalhar com uma escala
onde a diferença de metros pode ser importante, metros mesmo. Se você pensar aquilo que o
Milton Santos chama de rugosidade, você vai ter um banco multinacional financeiro do lado de
uma favela. Como é que você argumenta que existe uma espacialidade dos problemas sociais se
tem essa coisa do lado da outra? Só que, ao mesmo tempo, existem fenômenos que são
geograficamente distribuídos. Na América Latina, os centros são ricos, as periferias são pobres.
Isso é uma coisa que a gente pode dizer sem ser simplista. É uma tendência. Agora, no Rio de
Janeiro, já não é tanto assim. Já é mais topográfico o problema. Também tem periferia, mas também

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é topográfico. Você vai ter, por exemplo, Pavão-Pavãozinho, no meio de Copacabana. É possível
criar ferramentas para indicar isso. E a forma mais eficiente que eu conheço é deixando isso bem
claro para o leitor. Preferentemente, entendo que é para toda a história, não só para cartografia
digital em história, é a gente enfraquecer as nossas hipóteses para que o leitor possa nos desmontar.
O que é duro, é duro, porque a gente custa muito chegar às hipóteses. Depois que chegamos às
hipóteses, ainda tem um passo que é enfraquecê-las. “Olha, eu estou com essa ideia aqui na cabeça,
que está aqui o meu modelo explicativo. Porém, eu quero trazer todos os problemas que ele tem,
por exemplo: aqui não está bem explicado, aqui é necessário um pouco mais de evidências, nesta
parte precisa de mais informação. Mas eu estou achando que isso aqui era assim.” Enfim… existem
formas de se fazer isso. A postura transparente e aberta é necessária. Não só na cartografia digital,
como eu falei, mas também em outras questões em história. Acho que faz parte um pouco de uma
nova postura de pesquisa, que é ressaltar as fraquezas. É uma forma que a gente tem de combater
um neo-empirismo que é muito evidente. Nesse mar de incertezas que vivemos, de fake news, as
pessoas estão querendo certezas. Eu tenho sentido isso nos alunos, eles querem certezas. E não,
não podemos prometer essas certezas para eles. Seria enganoso.

● Anita Lucchesi: Como as questões, como a nossa cultura institucional no Brasil,


em nossas instituições, sobretudo nas universidades, têm dado suporte para esse
trabalho todo que você está comentando até agora acontecer? Claro que muito
acontece na nossa esfera individual, tudo que você descreveu aqui sobre apresentar
as certezas foi muito rico, inclusive, suas respostas estão dando uma grande aula,
estou aprendendo muito. Mas como é que é a universidade brasileira em termos
dessa infraestrutura para o trabalho digital? Você encontra esse suporte
institucional? Você tem que trabalhar muito sozinho? Você mencionou um software
aberto. O que tem de recurso, o que você pode comentar para a gente em termos
desses desafios institucionais?

De modo geral, a infraestrutura brasileira para esse tipo de pesquisa é péssima. Não quero
dizer que em outros países seja muito melhor. Tem problemas, vou dizer, no mundo inteiro assim,
que não são relacionados só com a tecnologia ou com a estrutura e dinheiro, mas com segurança.
Por exemplo, muitas universidades europeias vetam projetos desse tipo, porque a gente usa
softwares que, para eles, não têm a segurança adequada, o que é correto. Então, tem um pouco de
problema aí, porque o mundo da internet não é um mundo tão pacífico e fácil de lidar para quem
tem site. É um mundo bem hostil, difícil, porque tentativas de invasão são frequentes. O Atlas já
caiu três vezes ao longo dos últimos quase 15 anos por conta de ataques que não eram ao Atlas,
eram à universidade. Tentativa de pessoas injetarem conteúdo malicioso para bombar websites
russos, por exemplo, ou árabes. Já foram duas vezes, um caso árabe e um caso russo. Não era

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contra a gente, mas era um oportunista, encontrou uma falha e aproveitou. E é um desgaste sempre,
mas isso não é uma coisa com a gente, com o Brasil, digamos assim. Agora, não posso reclamar
da Universidade de Brasília, porque sempre tivemos aqui um bom acolhimento e temos um
servidor de dados que pagamos com dinheiro de projeto que fica no Centro de Processamento de
Dados da universidade. E que a gente tem toda liberdade de inclusive fazer coisas burras, digamos,
inseguras. Então, temos protocolo de segurança um pouquinho inferior ao que a universidade
gostaria para poder manter alguns projetos funcionando. Eu não vou dizer aqui quais são as nossas
vulnerabilidades, mas, enfim, fazemos algumas coisas que outros lugares não conseguiriam por
conta desse problema de segurança, de insegurança no nosso caso. A gente tem um pouco mais de
liberdade tendo esse servidor, porque se der algum problema, vai ser o nosso servidor, a universidade
não se incomoda – se quiseram liberdade, arquem com os custos. Se o servidor fosse da
universidade, eles não iam deixar. Pela boa parte das coisas que temos, porque comprometeria o
sistema de matrículas, por exemplo. E aí não ia dar certo. Já pensou se a gente cria um problema e
derruba matrículas dos alunos? Cinquenta mil pessoas afetadas, é complicado. Mas a gente tem
uma boa estrutura que não dá para reclamar. Inclusive, já hospedamos projetos de colegas
europeus, porque eles não tinham condições de fazer lá. Um amigo meu italiano tem um servidor
na sala dele ligado na rede, quase clandestino, para alguns projetos que ele tem. E se não fosse
assim, ele não teria liberdade de fazer o que ele quer. Mas isso não é por questão de estrutura, de
dinheiro, mas é uma questão de segurança, que é o maior problema hoje em dia que os CPDs têm
é garantir a segurança do sistema e isso acaba sendo uma barreira bastante grande. Agora, vocês
pediram para ligar com o software. Eu acho que isso tem tudo a ver, porque, por exemplo, tem
sistemas, aquele proprietário que eu falei, que vendem em um pacote fechado. É uma workstation
completa. A pessoa pode fazer tudo ali, o que dá a sensação de ser mais amigável, de ser mais fácil.
Só que ele tem dois problemas: o tempo de aprendizado é muito lento, e, incrivelmente, esse
software é pago e custa muito caro, custa entre R$5 mil e R$10 mil ao ano por projeto, em alguns
casos, mais. Eu estou falando sobre a parte básica, quando é o workstation, é bem mais caro, vai a
R$25 mil, 30 mil. E, mesmo caro, é pesado e lento. Então, ele tem esse porém, ainda que seja de
fácil instalação em estruturas universitárias. Mas tem softwares que são bem fáceis de instalar
também e que são código aberto e tem bastante, na verdade, hoje em dia tem muitas opções.
Sabendo fazer direitinho, dá para ter segurança e qualidade ao mesmo tempo. Um exemplo: No
Atlas, usávamos um software brasileiro feito para o Ministério do Meio Ambiente, que era o i3Geo3.

3
O i3Geo Foi desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente e distribuído sob a licença GPL (General Public License),
tendo como objetivo difundir o uso do geoprocessamento como instrumento técnico-científico e implementar uma
interface genérica para acesso aos dados geográficos existentes em instituições públicas, privadas ou não
governamentais. Ver: http://mapas.mma.gov.br/i3geo/mma/openlayers.htm

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O i3Geo foi descontinuado porque o criador dele achou que não precisava mais trabalhar nele, já
tinham alternativas suficientes para ele. Somos o último projeto que ainda usa o i3Geo, eu acho.
Esse é o nosso único sistema desde 2010, quando saiu. E nós vamos trocar agora em breve também,
pois o i3Geo usa certas estruturas de software de PHP4 e de SQL5 que são antigas, provocam
insegurança. Teremos que mudar e atualizar essas coisas. É uma questão de segurança que a gente
vai ter que fazer, não vai adiantar. A escolha do software determina também o grau de segurança
que você tem e a infraestrutura que você precisa. Agora, não são recursos, não são estruturas muito
caras. Não é uma questão de dinheiro. Vamos lá, com R$5.000, um departamento conseguiria
manter uma estrutura de dados de sistemas informáticos para todos os professores, por exemplo.
Um servidor de R$5.000 sustenta 30, 40 projetos ao mesmo tempo, com toda tranquilidade, sem
precisar usar o sistema da universidade, que nem sempre é tão amigável, por exemplo. Então, não
acho que seja uma questão de infraestrutura, o problema maior do meu ponto de vista hoje em dia
é a segurança.

● Monica Ribeiro de Oliveira. Então, vamos falar sobre a questão da


interdisciplinaridade. Você mencionou a questão da segurança, a questão dos
softwares, softwares pagos e assim perguntamos, como é que está a nossa relação
com as outras áreas? Com o pessoal da ciência da computação, com o pessoal da
modelagem computacional. Nós, historiadores, por outro lado, temos que
realmente nos atualizar sim, mas nós damos conta disso? Esse diálogo com as
outras áreas é importante para nós, é vital? Como é que você vê esse intercâmbio
entre diferentes áreas?

Bom, intercâmbio é um pouco forte, eu acho, porque eles não precisam aprender muito
com a gente. Talvez fosse interessante, mas não... enfim. Curiosamente, até hoje, os programadores
com o que eu trabalhei, todos tinham uma sensibilidade humana muito grande. Pode ser uma
questão de amostragem, que eu calhei de encontrar pessoas que eram muito sensíveis e
preocupadas com questões maiores. Por exemplo, Leonardo Barleta, que foi o primeiro da equipe,
ele é professor de história. É historiador. Hoje é professor da Universidade de Nebraska, Estados
Unidos, em história. Depois, o outro colega, o Cássio, era programador e tinha uma militância
ambiental. Ele fez softwares para medir impacto ambiental. Recentemente, o outro colega, o Saulo,
é um programador militante de esquerda, e fica me perguntando coisas o tempo todo de história

4
Segundo a Wikipedia, PHP (um acrônimo recursivo para “PHP: Hypertext Preprocessor", originalmente Personal
Home Page) é uma linguagem interpretada ou linguagem de programação livre, utilizada para criar sites e aplicativos na
internet. Ela funciona no servidor, processando dados e gerando páginas web dinâmicas que são enviadas para o
navegador da pessoa usuária. Para mais, ver o verbete: https://pt.wikipedia.org/wiki/PHP.
5 SQL, ou Structured Query Language (em tradução literal "linguagem de consulta estruturada"), é uma linguagem

utilizada para se comunicar com bancos de dados, ajudando a organizar, buscar e manipular informações armazenadas
neles. Ver verbete: https://pt.wikipedia.org/wiki/SQL.

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porque ele está estudando. E me pergunta muitas coisas. Então a gente troca um pouco, mas não
porque a demanda da história leve ele a pensar em outras coisas. Mas talvez fosse interessante
porque, de fato, tem umas coisas que eles pensam que é surpreendente que eles pensem e que a
gente poderia explorar aqui. Geralmente é muito mecânico, de fato, o trabalho de programação.
Faz um passo, depois faz outro e então outro. É muito industrial, muito linha de produção. Eles,
inclusive, usam essas metáforas de linha de produção para se pensar a programação. Agora, também
teríamos muito a aprender com eles, em certo sentido. Porque quando somos obrigados a contar
o que a gente pensa, historicamente, de uma forma lógica e clara, temos dificuldade e a máquina
não entende. Não dá para dizer simplesmente que é mais ou menos assim. Até tem como dizer que
mais ou menos assim. Dá para fazer uma série de “ses” (“se” isso é assim, faça deste modo, etc.).
Mas ela dificilmente vai ter essa sensibilidade para coisas que são, para nós, um pouco mais
impressionistas. Acaba sendo um desafio de como é que eu penso o mundo e como é que eu teria
que pensar o mundo de uma forma mais mecânica. Pensando nisso como um exercício pode ser
interessante e até divertido. Não acho que todas as pessoas têm que saber programar. Boa parte
das pessoas, dos historiadores, não vai precisar usar programação nas suas vidas. Mas sabe que
talvez fosse interessante ter uma noção de saber ler programação? Por uma questão social inclusive,
porque a gente vai vivendo um mundo cada vez mais dominado por isso. Não é a questão de ser
historiador ou não. É a questão de como as máquinas pensam. Como é que o algoritmo calcula.
Começar inclusive para poder se safar de problemas. Começar a antecipar o que a máquina vai
fazer. Ou entender por que deu aquele resultado. É a questão de uma vida cívica digna e em história
não é menos importante. Vejo muita gente usando inteligência artificial de uma forma muito
acrítica, “ah, me resolve o problema, me resolve o problema, eu dei aqui umas fontes e ele
conseguiu separar os nomes para mim”. Ok, ele vai fazer isso. Acho que o maior problema,
primeiro e grande problema disso, é que nós estamos usando a inteligência artificial para resolver
ambições, desejos e fetiches empiristas do século XIX. Estamos alimentando uma sanha, uma
vontade empirista de ter todos os documentos possíveis e imagináveis usando a tecnologia de
ponta. O tipo de história que a gente está fazendo é alimentar o que ainda tem dentro de nós de
século XIX. Olha a contribuição que a tecnologia está nos dando. Está nos ajudando a voltar ao
passado. Até uma coisa que eu não falei antes, que acho importante, a cartografia digital em história,
ela não é boa para responder perguntas, mas para fazer novas perguntas, para colocarmos, como
eu falei antes, a geografia como uma variável a ser considerada. E não para resolver, responder,
“olha, aqui é a prova da coisa”. Não, não tem prova nenhuma. Quando a gente começa a trabalhar
com cartografia digital, a gente fica com todas as sensações possíveis, menos a certeza. Então, acho
que ela é boa para fazer perguntas, para colocar novas perguntas e repensar questões, não para

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responder coisas. Só que o que eu tenho visto, é que as pessoas têm usado tecnologia para ter
grandes respostas. Outro dia um amigo falou: “Ah, eu tenho 300 mil páginas transcritas”. Aí eu
respondi: “E o que você concluiu com isso?” “Tal coisa”, disse ele. “Mas você já sabia disso por
outras pesquisas!”, retruquei. Aí ele: “Mas agora está provado.”, concluiu o amigo. Péssimo, penso
eu. Melhor antes do que era como hipótese! Agora está provada alguma coisa. Por quê? Porque a
gente tem um corpus massivo, gigantesco. Outro exemplo: Tem uma ferramenta chamada
Transkribus6. E é uma ferramenta que transcreve automaticamente. Você treina ele e ele transcreve
para você. O que é uma coisa interessante, não deixa ele ser interessante, mas a propaganda que
eles fazem é “Unlock the past”, que é desbloquear o passado. Como se o passado tivesse
desbloqueado por uma falta empírica, por uma falta de fontes e não por problemas de
interpretação, que cada geração tem para interpretar o que aconteceu. Agora, quando nós tivermos
todas as fontes do mundo, a gente vai descobrir o que foi a história! Não, não vai descobrir! Vai
seguir sendo polêmica, vai seguir sendo política, vai seguir sendo disputada, palmo a palmo, por
diferentes leituras do presente. Então é inútil ter tanta fonte, é inútil. Melhor seria ter melhores
perguntas. Mas o que eu estou vendo é isso, essa tecnologia que está nos levando ao que restava
entre os historiadores de empirismo. Eu sou uma pessoa que vai muito para o Arquivo. Eu me
definiria como um empirista, que é muito de ver fonte e vai muito para o Arquivo. Se tivesse um
passaporte dos arquivos, o meu ia estar bem carimbado. Mas porque eu trabalho com pessoas
comuns, com pessoas pobres, desconhecidas. Sempre trabalhei com pessoas que eram as mais
marginais das marginais. Contrabandistas pé-de-chinelo no século XVIII, no Rio Grande do Sul, e
agora trabalhando com fiandeiras do Brasil colonial, que eram mulheres muito pobres. Eu preciso
de muita fonte para encontrar essas senhoras. Preciso de muita fonte. Tem tantas mil páginas ali.
Mas para descartar 89%, porque é um eterno “não é ela”, “não é ela”, “não é ela”, “achei ela”! E
então eu junto três ou quatro caquinhos de cada uma delas. No fim, eu olho muita fonte para
descartar a imensa maioria e ficar com pouquíssimas fontes, que é o que eu tenho delas. Mas eu
tenho visto isso para gente que trabalha com objetos sobre os quais há muita fonte. É um
empirismo perigoso.

● Anita Lucchesi: Deixa eu aproveitar, Tiago, para engatar a próxima pergunta que
tem muito a ver com isso que você está comentando, que é falar do impacto do
componente digital na compreensão histórica. Eu achei que você enveredou por
esse caminho, desse pensamento, dessa perspectiva empirista que a gente está
revisitando, que é muito interessante. É uma coisa do tudo salvado, de tudo
transcrever, de acumular, uma atitude muito voluntarista. Aí, como você poderia
desenvolver mais um pouco esse ponto, que eu achei super interessante, mas

6
Disponível em: https://www.transkribus.org.

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também indicando como você acha que isso está aparecendo nas nossas
publicações, nos resultados de pesquisa, se isso está já chegando para as
universidades e vai chegar para a sociedade?

Antes de ir para esse ponto, queria só finalizar algo que não finalizei. Acho que era a coisa
central da pergunta anterior, a interdisciplinaridade. No meu modo de ver, precisamos ser
interdisciplinares. Não basta trabalhar em equipe. Ok, legal, trabalhar em equipe. Legal que tenha
um geógrafo, um programador, etc. Mas eu sempre incentivei eles a aprenderem história e eu
tentava entender geografia, tentava entender a programação, porque não sendo assim, a gente não
entende o que o outro está falando. E às vezes parece que a gente está se entendendo e não está.
Com o geógrafo, isso é mais fácil ainda, porque a gente parece que se entende, mas acaba que não.
Temos que fazer muito exercício de ler a bibliografia básica uma do outro. Todo mundo precisa
ser um pouco interdisciplinar. E nesse ponto, acho que é importante os historiadores conhecerem
um pouco de programação. Não para fazer, não porque tenham que fazer, mas para se proteger.
O Pierre Bourdieu dizia que as ciências sociais deviam ser tomadas como se fossem artes marciais,
para a autodefesa. E entendo que ela tem essa função, as ciências sociais, a história inclusa, têm que
ser uma arma de defesa. Ainda mais hoje em dia, por exemplo, pegando grupos que são vulneráveis,
que foram vítimas de aparatos normativos, vamos pensar machismo, racismo. Acho que grupos
que são vítimas desses sistemas normativos devem usar a história para se proteger, no mínimo,
para se proteger. A história é uma ferramenta muito importante nisso. E nesse ponto, acho que
saber programação é uma forma de a gente se proteger não só como historiadores, mas também
com cidadãos. Será importante cada vez mais no futuro. Será importante a gente entender como
as coisas funcionam. Não significa saber programar, saber digitar código. Significa entender a lógica
que a máquina opera. Acho que seria seguro, um pouco mais seguro para as pessoas. Mas voltando
à pergunta sobre o componente digital e a compreensão histórica. Primeiro, eu acho que não estou
muito seguro se isso está muito disseminado. As pessoas têm muita rejeição por vários fatores. Por
um lado, assusta, ver aquele monte de código, o banco de dados, que é uma coisa bem mais usada
por historiadores há muito tempo, já assusta. Então, acho que está muito longe ainda. E se pensar,
por exemplo, que a cartografia digital também está bem longe. As pessoas usam pouco. Até
comentei, há pouco, que os dados cartográficos do Atlas foram usados por pouquíssimas pessoas.
E não sou só eu quem se queixa disso. Tem um pesquisador austríaco, trabalhando na École, na
França, que criou um Atlas da América Espanhola, o HGIS de Índias 7. Ele reconstruiu todo o
Império espanhol nas Américas, e em um artigo que ele fala: “Eu consigo contar nos dedos as

7
Disponível em: https://www.hgis-indias.net/.

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pessoas que usaram os dados”. Ele se queixa que ninguém usa os dados dele. Eu uso os dados dele
em História da América. Mas esse uso não fica registrado em lugar nenhum. Não sei se alguém usa
o Atlas por aí. Alguns me dizem que usam, mas eu nunca sei até que ponto isso é uma coisa muito
comum. Acho que é muito residual. E é interessante isso. Por que tem essa distância? Estou muito
convencido que a geografia pode ser uma variável explicativa importante em história. E eu acho
que isso é uma coisa que era muito forte nos anos 1930, 40, 50, 60 até 70. Por alguma razão as
pessoas parecem que desconectaram, todas parecem que desconectaram da geografia. E não é que
os geógrafos se afastaram da gente, eles nunca estiveram muito próximos, nós que éramos mais
ligados a eles. Depois que os historiadores abraçaram a antropologia, parece que a geografia não
tem mais espaço nenhum. Pensa no Duby, por exemplo, que era um cara completamente ligado à
geografia e produzia trabalhos incríveis. Eu fico pensando por que a gente abandonou isso. E foi
a história que deu as costas para a geografia. Estou muito convencido disso.

● Monica Ribeiro de Oliveira: É Braudel, né?

Claro, toda a geração deles. Enfim, por que isso aconteceu? E o que tem me assustado, que
é mais perigoso, que é a história global. Quando eu leio sobre história global, muitas vezes, a
impressão que eu tenho é que a noção de geografia que eles estão trabalhando, não é a geografia
do século XX, é a do século XIX. É a geopolítica, são os grandes impérios. É que eles não estão
pensando no global como Milton Santos pensaria. Eles estão pensando no global como Ratzel
pensaria. É uma filosofia geográfica muito polêmica. É algo que me assusta muito, porque está
muito em voga agora e com ares de ser uma história mais progressista. Porque não tem essa
discussão. Não se discute com que geografia se está pensando. E Braudel, que admiro muito,
aprendeu com La Blache, e La Blache ok, é o pai da geografia humana, todo mundo fala disso, mas
La Blache também não rompeu tanto assim com a velha geografia. Também tem ali a noção de
império, um pouco diferente do Ratzel. Mas não é Milton Santos. Está muito longe de Milton
Santos. Milton Santos deu um passo muito além da geografia europeia-americana. Temos que levar
um pouco isso em conta. Respondendo, acho que a gente tem que ser um pouco interdisciplinar.
Mas eu não sei, não vejo muito o componente digital presente entre historiadores. E quando eu
vejo, vejo ele muito, muito ingênuo. Um exemplo, que gosto muito de dar é a busca do Google -
ele é muito baseado no algoritmo, que vai trazer resultados de acordo com o local que a pessoa
está, a faixa etária que ela tem, uma série de variáveis demográficas. Então, a busca não vai ser igual
para todo mundo. Não é, digamos, auditável. Os resultados que as pessoas vão chegar vão ser
outros que vão sempre reproduzir o que elas já sabem. Porque o Google vai trazer resultados que

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são bons para aquela pessoa pelo que ela já sabe. Vai aumentar a tendência às bolhas, as bolhas
sociais e etárias e ninguém se questiona disso em história. Pessoas usam o Google normalmente
para buscar dados, para buscar informações, só que esses resultados vão ser muito tendenciosos.
Sempre. E ninguém discute isso. Pessoas usam normalmente, ok que use, mas acho que deveria ter
um pouco mais de reflexão sobre esse uso. Ou se a gente deveria, talvez, criar outras ferramentas
que não tivessem esses vieses. Porque a gente está sempre vendo aquilo que já sabemos no Google.
E aquilo que o Google quer que a gente veja. Então, não tem nada de neutro nisso aí. E a usamos.
Poucos, na história, não usam o Google. Eu sei porque tanto na academia.edu, quanto no Atlas,
eu vejo as estatísticas de quem abre as coisas. E o Google tem um índice de uso, entre historiadores,
superior ao uso normal geral. Os historiadores usam mais o Google que qualquer outro ser
humano. É impressionante que as pessoas sejam tão críticas de tanta coisa e tão ingênuas no
consumo do digital.

● Monica Ribeiro de Oliveira: Você teria ainda, dentro dessa questão ligada à
colaboração e compartilhamento, algumas plataformas que você recomendaria?
Você está falando de Google, mas quais outras plataformas que a gente teria para
acesso, para aprendizado? E vinculado também à questão da cartografia, do
geoprocessamento.

Tá, eu vou dar duas indicações. O primeiro é um projeto internacional que é o Programming
Historian8, que é muito interessante. Também tem o Eric Brasil que é um grande pesquisador de
digital também que está fazendo conteúdo para esse projeto. Tem a versão brasileira que está
traduzindo e criando artigos novos sobre digital para historiadores. O nome pode assustar,
Programming Historian, porque parece que é programação, mas tem aulas, lições, de ferramentas
digitais em geral, inclusive tem uma aula sobre o QGIS que está ali disponível. Então acho que é
uma boa ferramenta. Outra boa ferramenta, agora puxando a brasa para a minha sardinha, é uma
página que a gente criou aqui na UnB. Na verdade, criei para os meus alunos, mas está aberta.
Chama-se Cliomática9. Clio da musa, mática de automático. É uma ferramenta que é um site que,
inclusive, é bilíngue, tem português e italiano. Tem o pessoal da Itália que fez a versão italiana. Tem
um monte de conteúdo lá, algumas traduções dos nossos, outros são deles porque em algumas
coisas, por exemplo, os nossos eram muito pensados para o pessoal do Brasil. A ideia é ter em
outras línguas também. Mas tem um monte de conteúdo sobre cartografia digital, bancos de dados,
programação, além de Sistemas de referência bibliográfica. Tem uma aula sobre o Zotero10. Dá para

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Disponível em: https://programminghistorian.org/
9 Disponível em: http://lhs.unb.br/cliomatica/
10 Disponível em: https://www.zotero.org

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o pessoal ter meio que um auto aprendizado, poder ir se guiando por conta própria. São
plataformas de aprendizado bem interessantes. E vai sair agora, em breve, um Google de história
do Brasil colonial. Vai ser de Brasil colonial e império. Vai se chamar Oxóssi, que é o orixá das
caçadas. O Oxóssi vai ser uma ferramenta onde você busca palavras-chave. Procura por uma
temática. Pode especificar, inclusive só um assunto, mas apenas no século XVI. E que cite Gilberto
Freyre, por exemplo, ou que não cite Gilberto Freyre. Então vai dar para fazer esse tipo de busca,
assim, bem complexa. E os resultados são só de trabalhos acadêmicos.

● Anita Lucchesi: O banco de dados do Oxóssi, o que há nele? São teses,


dissertações?

Teses, dissertações, artigos, monografias... Tudo que tem no Instituto Brasileiro de


Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT), né? No repositório OASIS11, portal brasileiro de
publicações e dados científicos em acesso aberto do IBICT. São 16 mil produtos, 16 mil itens
biográficos. E aí vai ser pesquisável. A gente já fez uma versão prévia anterior com 600 trabalhos.
E agora estamos escalando para 16 mil. Então... vai mudar um pouco. Vamos ter que fazer
adaptações para poder dar conta dessa escala. O banco de dados que se usa para 600 é um, quando
é 16 mil é outro. A gente estava usando a SQLite, não vai dar mais para usá-la e teremos que usar
um banco de dados mais robusto. Então essa é a questão, mas vai sair em breve. A ideia é que ele
seja como Google acadêmico para a pesquisa em história do Brasil Colônia... Colônia e Império.
Brasil até 1850, vamos dizer assim, até a Lei de Terras.

● Monica Ribeiro de Oliveira. Então você está dando uma boa nova para nós?

Eu prefiro controlar a minha ansiedade e sempre partir da pergunta para a técnica, pois a
minha grande crítica às humanidades digitais é essa. É a técnica pela técnica. Eu acho que a gente
tem que partir da pergunta e depois achar, mesmo que a gente tenha que inventar, a técnica. Temos
que inventar a técnica para responder à pergunta, não o contrário. Mas assim, já agora pegando
para esse lado, é uma ferramenta que vai sair em breve: o Oxóssi, que eu mencionei. E tem uma
outra ferramenta que a gente está desenvolvendo, que já estou usando direto, mas ainda não
consegui fazer ela ficar amigável, porque ela só usa programação por enquanto, que é uma
ferramenta que não transcreve, mas ela faz buscas em manuscritos. Ela vai em imagens de
manuscritos, se você pega um pedacinho do manuscrito, uma palavra que você quer, e você quer

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Disponível em: https://oasisbr.ibict.br/vufind/

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encontrar iguais àquela e saber em que páginas, em que imagens, tem aquela palavra. Você dá para
o software e ele traz o resultado. Aí ele vai, inclusive, pintando um retângulo ao redor da palavra
para você. Porque, às vezes, a gente não sabe se o documento que vamos ler, manuscrito, fala de
um assunto que a gente quer tratar. Então, abre esse documento, lê ele inteiro ou não? Será que
vale a pena? Aí você usa essa ferramenta e descobre que o documento menciona essa palavra. Será
que ele usa mais vezes essa palavra? Aí você procura. Ele usa mais, em tais e tais páginas. Ele é um
buscador de palavras, um “ctrl + F” de manuscritos. Só que ao invés de dar para ele a palavra
escrita, a gente tem que dar pra ele uma amostra da imagem daquela palavra. Então, tem uma
limitação que tem que encontrar essa palavra. Vou dar um exemplo, uma palavra que eu já busquei,
o contrabando. Eu procurei “contrabando” e ele me trouxe dois casos. Então pensei “acho que
tem mais casos”. Aí eu procurei “contra” e ele trouxe vários contras, inclusive outros contrabandos
que não estavam, não tinha encontrado anteriormente. Porque estava quebrado, né? Chegava no
fim da linha contra, tracinho, bando (contra-bando). Então, tem que ter esse cuidado, mas ele ajuda
nisso, né? A vantagem, em relação aos programas de transcrição automática, que nem o Transkribus,
é que essa ferramenta não precisa treinar. Só precisa encontrar um caso e aí ele traz para você. O
Transkribus você tem que treinar com no mínimo cinco mil palavras. Cinco mil palavras, às vezes
tem documento que nem tem cinco mil palavras, né? Ou tem oito mil. E você vai treinar cinco mil
para aplicar em outras três mil. Não é vantajoso, né? Nesse caso, só precisa ter uma palavra. E ele
traz para você. Eu já usei para várias pesquisas isso. Alunos meus precisavam de uma coisa assim,
eu usei para eles, usei pra mim. Mas ainda não é amigável, então o nosso esforço agora é
transformar isso em uma ferramenta amigável.

● Anita Lucchesi: Como ele chama?

Ele não tem nome ainda, não sei, eu tinha pensado em “script ctrl+F”. Um dos nomes era
esse: “script ctrl+F”. Cheguei a fazer até um loguinho, assim, mas não sei, o Oxóssi pegou mais,
as pessoas estão usando. Mas o “ script ctrl+F” não está colando. Enfim, não sei se vamos dar um
outro nome mais rocambolesco para ele. Eu já estou usando bastante e me ajuda bastante. Por
exemplo, uma aluna minha estava trabalhando com batismos da Bahia, século XX, mas era
manuscrito e ela reparou que as crianças eram batizadas em fazendas. E ela queria saber quais eram
as fazendas que tinham mais batizados. Então, a gente pegou e mandou achar a palavra “fazenda”,
mas apenas para coletar a palavra seguinte. Aí ele trouxe um monte de registros de imagem com
os nomes das fazendas. Depois mandou aproximar por semelhança. Esse aqui é igual a esse, esse
aqui é igual a esse, e ela trouxe a pontuação para cada fazenda, quantas vezes ela aparecia. Depois

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ela revisou. Assim, ela chegou a um número de quais eram as fazendas onde tinha mais gente sendo
batizada. Ela usou esse dado para estimar o tamanho da fazenda, supondo que mais batismos a
fazenda seria maior. E isso foi bom, não para ela chegar à lista de fazendas que eram as mais
importantes da cidade dela, mas para ela questionar a lista de fazendas que a historiografia tratava
com as mais importantes, porque a historiografia tinha lá 15 fazendas que eram as fazendas da
cidade onde o poder se negociava. E o que ela viu é que era muito mais complicado que isso, que
tinha umas fazendas ali que não apareciam na lista e que eram expressivas. Ela está tentando
entender por que isso era assim. Então a questão é essa: o uso de tecnologia é bom nem tanto pra
chegar a uma resposta, mas para complicar, para azedar as respostas anteriores, digamos assim.

● Anita Lucchesi: Só uma correção, né? Eu não sou do Programming Historian não,
é o Eric Brasil mesmo que está lá, mas eu também divulgo bastante a iniciativa
porque eu sou muito partidária disso que você falou, que a gente tem que entender
a lógica das coisas. Para conseguir ir adiante, conseguir comunicar com as outras
pessoas, até pra saber o que pedir pro colega programador. Se a gente não souber
o que é possível fazer, por exemplo, não tem nem como sonhar com essa ferramenta
que você descreveu, o CTRL-F dos manuscritos.

● Monica Ribeiro de Oliveira: Bom, muito obrigada, Tiago, pelas dicas todas, e por
esse exemplo super rico, ilustrativo, do trabalho da sua aluna. Pensando nisso
também, numa reflexão mais geral, que a gente conversou até agora, para onde
você acha que a gente está andando nesse caminho do cruzamento, não só com a
cartografia digital e a história, mas a história digital como um todo. Em termos do
trabalho do nosso ofício, como que a gente vai se preparar? E aí você falou tanta
coisa hoje, acho que algo que ficou aqui é como a gente lida com a formação desse
profissional que vai lidar com esses desafios do futuro? Você falou em
autodidatismo e tal, mas e para o futuro, assim, qual é a sua visão de como a gente
vai se preparar para enfrentar esse mundo digitalizado?

Primeiro que estamos fugindo desse assunto, os historiadores estão fugindo desse assunto.
Já era a hora para a gente estar tendo formação nas universidades. Uma disciplina optativa, que
fosse. Mas não tenho segurança se as disciplinas que são tradicionais são a melhor forma de fazer
isso. Tem uma amiga que é muito inteligente, Enrica Salvatori, e ela resumiu muito bem isso. A
melhor forma que se tem de ensinar tecnologia para a história, para os alunos de história, é como
se fosse o ateliê “renascimental”. Como é que se fazia isso? Fazendo tudo junto. Todos trabalhando
num mesmo espaço e um se mete no trabalho do outro. Então, olha, estou fazendo aqui tal coisa.
Aí o colega do lado, que é de outra, dá palpite. Esses espaços de troca, de construção coletiva.
Porque se você ensinar no modo tradicional, por exemplo “hoje vamos aprender hoje cartografia
digital, aqui faz assim, assim, assado”, não vai funcionar. A pessoa vai esquecer na hora seguinte.
Por quê? Porque não faz nenhum sentido. Ela tem que aplicar aquilo, ela tem que fazer aquilo, ela

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tem que propor como um problema que ela quer resolver. Se não, não vai adiantar para ser eficiente,
tem que ser objeto orientado e não a técnica que ensinar por ensinar. Ensinar, se dar um curso
disso aqui, não dá certo. Não funciona. Não é eficiente. Tem que ter um objetivo, um desafio. Tem
que ter alguma coisa para ser feita. E é bom que a pessoa defina o que ela quer fazer. É que nem
aprender mecânica assim: “aqui tem a chave de boca, ela torce assim, aqui a chave de fenda, ela faz
assim, aqui tem a serra, ela corta assim”. O que eu faço com essas coisas? Eu não sei o que eu faço
com essas coisas. Aí tem que consertar esse carro aqui, esse problema aqui. Daí você vai começar
a saber usar essas coisas. Mas se não, não adianta. Então, a oficina “renascimental”, como um
ambiente de trabalho, é uma metáfora muito legal para a gente pensar nesse aprendizado. Eu acho
que isso deveria ser em pequenos grupos com um objeto, um problema de pesquisa específico, não
a técnica. É um problema de pesquisa. Só que isso é complicado, porque requer recursos humanos
treinados, e não vai ter muita gente disponível. Requer ambientes de treinamento pequenos. E as
universidades não construíram laboratórios de informática pequenos. Elas constroem sempre
laboratórios de informática enormes. Seria melhor ter vários de cinco, dez de cinco do que um de
cinquenta. Mas, em geral, o que temos é de cinquenta. Não sei como é que é em Juiz de Fora e
outros lugares. Eu sempre vejo um monte de computadores.

● Monica Ribeiro de Oliveira: E a tendência é até fechar esses espaços, porque as


pessoas acham que elas podem resolver isso com o seu notebook, com o seu laptop,
com o seu próprio celular. Então esses espaços estão bem vazios. Eles não são
espaços de aula.

É, e depois a instalar o software que a gente precisa nesse computador, porque, em geral,
eles são travados. Mas, enfim, é uma coisa que se tem que pensar. Eu estou achando que, ainda
que seja empobrecedor fazer de modo remoto, esse tipo de treinamento costuma ter sido mais
eficiente em aulas remotas do que em espaços presenciais. Porque o presencial exige uma
arquitetura muito diferente para funcionar. Eu acho, por exemplo, que o ideal seria uma sala que
tivesse os micros nas paredes e alguém circulando entre as cadeiras. As pessoas circulando entre as
cadeiras, olhando, podendo olhar o trabalho do outro. E não enfileirados. Essa arquitetura, ela faz
diferença, né? Assim como a gente faz com um seminário em sala de aula… um seminário, a gente
tem que fazer um círculo para ter um ambiente onde todos possam se ver. É diferente de uma aula
expositiva que todo mundo está enfileirado olhando para o professor. Essa arquitetura faz
diferença.

● Monica Ribeiro de Oliveira: Como palavras finais, quais são os seus conselhos aos
novos pesquisadores, aqueles que estão começando? Que você pudesse concluir

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para nós, para os nossos alunos, os nossos leitores, dentro da área, tanto da
programação, do banco de dados, do geoprocessamento e o uso das tecnologias
nas humanidades.

Bom, um conselho começaria dizendo o seguinte: guiem-se pelas perguntas, não pelas
técnicas. A técnica é muito importante e acho que a gente precisa discutir mais as técnicas, porque
as técnicas não são neutras. Partir de uma pergunta que tem uma base teórica X, e adotar uma
técnica que não dialoga com essa base teórica X, é um problema que é muito comum quando a
gente terceiriza para um programador fazer para a gente. Esse problema tem uma outra visão de
mundo e quem vai aplicar a técnica, vai ter escolhas, decisões que ele vai tomar que não batem com
a nossa visão de mundo e depois tem que fazer isso encaixar. Não vai dar certo. Orientam-se pela
pergunta, e a partir da pergunta definem as técnicas necessárias para responder essa pergunta. As
técnicas que eu estou falando, técnicas de pesquisa, técnicas de escrita, técnicas de leitura,
paleografia, por exemplo, técnicas de leitura de documentos não-paleográficos, documentos que
têm uma forma de escrita muito particular, relatórios diplomáticos são diferentes de cartas pessoais.
Tem que ter técnicas para dominar essas escritas. Então, a questão é para responder a pergunta,
temos que aprender técnicas. Inclusive, às vezes, técnicas de zoologia, por exemplo, já trabalhei
com produção de mulas, e eu tive que ler um pouco sobre zoologia para entender como é que a
mula era produzida. Correndo o risco de dizer besteira. Porque a mula é estéril. A mula não se
reproduz. A mula é cruza do burro com a égua. E o problema é que se eu não soubesse disso,
lendo os manuais, eu ia supor que as mulas se reproduziam. Isso é uma besteira! E isso envolve um
certo conhecimento que eles tinham na época, técnica de produção que eles tinham na época, e
entender por que alguns tinham mais que outros, por exemplo. Um pouco de zoologia foi
importante com essa pesquisa que eu fiz. A gente tem que aprender as técnicas das coisas que são
importantes para nossa pergunta. Isso que orienta todo o resto. Então, eu insistiria por aí. Boas
perguntas são melhores que muita técnica, mas boas perguntas demandam muita aprendizagem
técnica. Precisamos discutir um pouco mais isso aí. E parar de achar que a técnica é uma coisa
menor que qualquer sobrinho pode fazer. Não é verdade.

● Monica Ribeiro de Oliveira: Ou que não faz parte do trabalho do historiador.

O Certeau dizia isso: a história, a gente faz a partir de perguntas mediadas pela técnica. Ele
insistia nessa parte, mediado pela técnica. O jeito que a gente vê na universidade parece que a
técnica é uma coisa menor. Que as pessoas vão aprender por tentativa e erro. Ou que é uma coisa
de iniciados. Que só quem é iniciado vai saber. Parece que é um jogo de gato e rato. Ninguém

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ensina, mas todo mundo cobra. E aí fica aquela coisa do aluno que não sabe o que falta para ele
fazer direito. Ele estuda, ele lê pra caramba e não entendeu o que tem que fazer. Sim, porque parece
que é um culto dos mistérios a forma como — algumas vezes — a teoria é ensinada no Brasil. Tem
uma pessoa que sabe, mas não conta para os outros como é que é. E aí as pessoas têm que adivinhar
até acertar. Enfim, é perigoso isso. E a técnica faz parte, a técnica é uma coisa, é a prima pobre da
metodologia que não é ensinada porque é uma coisa vulgar. Porém ela implica decisões teóricas,
consequentemente, ela não pode ser negligenciada. É um pouco o que eu acho.

● Monica Ribeiro de Oliveira: Agradecemos muitíssimo suas reflexões


***

Recebida: 07 de julho de 2024


Aprovada: 15 de julho de 2024

158
Entrevista
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.45718

Sobre uma história que não poderia ser feita à mão. Entrevista com Keila
Grinberg

About a story that could not be made by hand. Interview with Keila Grinberg

Sobre una historia que no podría ser hecha a mano. Entrevista con Keila Grinberg

Anita Lucchesi*
https://orcid.org/0000-0002-8523-111X

Mônica Ribeiro de Oliveira**


https://orcid.org/0000-0001-7168-7653
Como citar esta entrevista:
Lucchesi, Anita; Oliveira, Mônica Ribeiro de. “Entrevista com Keila Grinberg (Universidade de
Pittsburgh)”. Locus: Revista de História, 30, n. 1(2024): 159-174.
***

Keila Grinberg é Professora Titular do Departamento de História e Diretora do Center


for Latin American Studies da Universidade de Pittsburgh. É Professora Titular licenciada do
Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. É Doutora em
História do Brasil (Universidade Federal Fluminense, 2000, com estágio (bolsa-sanduíche) na
Universidade de Maryland at College Park, 1998-1999), com pós-doutorado pela University of
Michigan (2011-2012) e pela New York University (2017-2018). É professora do Programa de Pós-
Graduação em História da UNIRIO e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História

*
Pesquisadora na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), onde coordena um projeto de divulgação científica com
podcasts. É também co-investigadora do software de gestão de fontes primárias digitalizadas, Tropy. Área de atuação:
Teoria da História, História da Historiografia e Ensino de História, com ênfase em História Pública Digital.
**
Professora titular de História do Departamento de História da Universidade Federal de Juiz de Fora. É docente do
PPGHistoria/UFJF e pesquisadora da Fapemig. Área de atuação: história de família, sociedades agrárias nos séculos
XVIII e XIX e micro-história.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Keila Grinberg (Universidade de
Pittsburgh)

(PROFHISTORIA), do qual foi vice-coordenadora local e da rede nacional (2014-2017). Foi


pesquisadora do CNPq entre 2004 e 2021 (bolsa de produtividade, nivel 1) e Cientista do Nosso
Estado da FAPERJ (2018-2020). Foi Jovem Cientista do Nosso Estado da FAPERJ (2010-2012) e
pesquisadora de várias edições do PRONEX (Faperj/CNPq). Foi pesquisadora visitante na
University of Michigan (2007), Roberta Buffet Visiting Professor in International Studies na
Northwestern University (2009), Tinker Visiting Professor na Universidade de Chicago (2015-
2016) e Andrés Bello Chair in Latin American Cultures and Civilizations na New York University
(Spring 2018). Seus principais campos de estudo são História do Brasil Imperial, Escravidão no
Brasil e no Mundo Atlântico, Ensino de História, História Pública e Humanidades Digitais.
Entre seus principais livros estão “Liberata: a lei da ambiguidade” (RJ, Relume Dumará,
1994), O Fiador dos Brasileiros: escravidão, cidadania e direito civil no tempo de Antonio Pereira
Rebouças (RJ, Civilização Brasileira, 2002) e Slavery, Freedom and the Law in the Americas, com
Sue Peabody (Boston / NY, Bedford Books, 2007), e a organização da coleção Brasil Imperial (RJ,
Civilização Brasileira, 2009), com Ricardo Salles.
Dedica-se à redação de livros de divulgação de História para o grande público e coordena,
com Hebe Mattos e Martha Abreu, o projeto digital de História Pública Passados Presentes:
memória da escravidão no Brasil (www.passadospresentes.com.br).
A Locus: Revista de História apresenta uma entrevista exclusiva com a renomada historiadora
e professora universitária Keila Grinberg, como uma contribuição especial para o dossiê temático
“História digital: tecnologia e fazer historiográfico entre teoria e prática”. Esta entrevista foi
conduzida pelas organizadoras do dossiê, Anita Lucchesi e Mônica Ribeiro, explorando a vasta
experiência de Grinberg no campo da história digital e história pública, suas inspirações iniciais,
desafios enfrentados e a evolução de suas metodologias ao longo dos anos.
Para melhor legibilidade da entrevista, a transcrição da gravação foi editada para remover
alguns marcadores do registro oral e comentários paralelos relacionados aos preparativos e/ou
encerramento da gravação, como testes de som e/ou ruídos externos, buscando preservar a
integridade das perguntas e respostas em seus significados.

● Anita Lucchesi: Bom, em primeiro lugar, Keila, queremos agradecer muito a você
por ter topado o nosso convite. Estamos aqui, eu, Anita Lucchesi, a professora
Monica Ribeiro de Oliveira e a professora Keila Grinberg para começar uma
entrevista sobre o ofício do historiador e a história digital, que vai ser dedicada para
esse dossiê da revista Locus sobre história, historiografia e os cruzamentos com a
tecnologia. Para começar, gostaria de saber qual foi sua inspiração e o que marcou
os seus primeiros passos nesse caminho? Você poderia compartilhar com a gente,

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Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Keila Grinberg (Universidade de
Pittsburgh)

o que te inspirou a começar a trabalhar com a história digital na sua pesquisa e na


sua docência, especialmente pensando no contexto brasileiro?

Bom, primeiro, obrigada, eu estou superfeliz com essa entrevista. Pensando em história
digital e pública juntas, o que me inspirou foi a sala de aula no ensino fundamental e médio,
percebendo o fascínio que a tecnologia traz para os nossos alunos; trazia principalmente, acho que
mais antes do que agora, porque era menos acessível, era uma novidade. Quando eu dava aula não
tinha celular, quando dava aula na escola a internet era discada1, eu acho que essas mudanças foram
muito grandes no nosso tempo de atuação profissional, fizeram muita diferença. A internet, o
World Wide Web, estava começando quando a gente começou. Eu digo a gente porque o meu
primeiro projeto eu fiz com a Anita Almeida, minha colega da Unirio. E eu acho que foi um pouco
isso, de tentar construir uma sala de aula mais eficaz e mais conectada com os alunos, foi o que
inicialmente me fez seguir por esse caminho. Segundo, eu mesma sou fascinada pela tecnologia,
então, foi também uma tentativa de entender essas mudanças, o que a tecnologia é, na verdade,
começando pelo banco de dados, mas aí depois, pensando no ensino, e o que trazem para nossa
própria forma de compreensão da história.

● Monica Ribeiro: Pegando um gancho com essa sua fala, Keila, e trabalhando mais
essa questão das ferramentas e métodos digitais, o que você julgou mais valioso na
sua experiência de pesquisa e ensino? Como o componente digital te ajudou a
repensar os resultados da sua pesquisa em formato inovador, um pouco diferente
em relação àqueles resultados que você poderia ter obtido com métodos
tradicionais? Como você vê isso?

Eu acho que na pesquisa, pesquisa propriamente dita, foi a capacidade de lidar com um
grande número de dados ao mesmo tempo. Eu acho que é importante [dizer] que quando eu
comecei a pesquisa, ainda na iniciação científica, eu fui bolsista, trabalhei com Guilherme Pereira
das Neves, na Universidade Federal Fluminense (UFF), que foi uma das primeiras pessoas, eu
acredito, pelo menos aqui no Rio de Janeiro, que começavam a trabalhar com um banco de dados
automatizado. Depois eu construí um banco de dados trabalhando com Hebe Mattos, e depois fiz
os meus próprios, com várias experiências, as primeiras infrutíferas, mas várias experiências de

1
Conforme a Wikipédia, a internet discada, ou simplesmente dial-up, é uma forma de acesso à internet que usa a rede
pública de telefonia comutada para estabelecer uma conexão com um Provedor de acesso à internet através de um
número de telefone para com uma linha telefônica. Para mais informações, ver o verbete Linha Discada, disponível
em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Linha_discada#:~:text=Linha%20discada%2C%20dial%2Dup%20internet,com%20u
ma%20linha%20de%20telefone.

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tentar mesclar dados sobre escravidão no século XIX de maneiras diferentes. Então, do ponto de
vista da pesquisa, se a gente for separar pesquisa e ensino, foi a computação e a elaboração de
bancos de dados que me permitiu entender coisas que eu jamais poderia sem o banco. Por exemplo,
eu fiz um banco de dados sobre as ações de liberdade do século XIX, que eram 400 ações, e para
cada uma das ações, eu inseri os dados sobre os advogados que trabalhavam nessas ações. Então
eu tinha dois mil nomes, mais ou menos, e desses dois mil nomes, o que eu queria saber na época,
que era uma pergunta ingênua, mas era minha pergunta na época. Eu queria saber quem, quais
desses advogados, defendiam senhores e quais advogados defendiam as pessoas escravizadas. E
era uma pergunta ingênua porque eu percebi que não fazia sentido para o mundo dos advogados,
eles defendiam igualmente senhores e escravos. Mas essa já foi uma resposta que o banco de dados
me deu, e que eu não teria como fazer aquilo à mão. Eu sei que outros pesquisadores,
principalmente da história econômica, tinham grandes planilhas que eles faziam à mão, mas eu não
teria conseguido fazer essa discussão. Depois eu ajudei, pensando no meu banco, a trabalhar com
os inventários que o Ricardo Salles fez para o Vale do Paraíba, que aí foi muito, um número
muitíssimo maior, porque ele pegou todos os inventários do centro de documentação histórica de
Vassouras entre 1822 e 1888, e lá pelo meio do banco, quando ele estava montando, ele se deu
conta que ele não estava colocando os dados sobre a origem dos africanos. Então… eu me lembro
bem, a gente se reuniu e voltou para trás para refazer o banco com essas características. Então foi
nessa tentativa, era muita tentativa e erro – dBase, Access e depois Excel (softwares de suporte ao
gerenciamento de dados e banco de dados) – de fazer esses bancos, eu acho, que alguns bancos de
dados, e agora a possibilidade de colocar a própria imagem do documento, que antes não era
possível, que transformou a pesquisa histórica na minha geração.

● Anita Lucchesi: Fez muito sentido, muito obrigada, Keila. Inclusive, pensando no
que você falou de tentativa e erro, eu queria pontuar um pouco as questões dos
desafios técnicos, porque a gente fala de história digital e cada geração, cada
instituição, cada contexto de atuação pode ter um desafio a depender do apoio que
se tem de outras disciplinas. Como você vê isso hoje? Os historiadores precisam ser
um pouco analistas para poder trabalhar com essa tecnologia, como é a tua
experiência? Esse exercício de combinar essas perspectivas micro e macro ou de
trabalhar com histórias conectadas? O historiador tem que maquinar tudo isso e
pensar o técnico. Como é que você fala disso para a gente?

Pensando hoje em dia, com os recursos que a gente tem, mudou muito. Muitíssimo. Eu
acho que o desafio é trabalhar colaborativamente. Na verdade, eu acho que tem dois, vou falar dois
desafios que eu venho encontrando. Eu imagino que não são exclusivamente… o primeiro é esse
de como você vai trabalhar… Continuo trabalhando com bancos de dados e as escalas são cada

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vez maiores. Então, como você constrói ferramentas que são colaborativas? E, do ponto de vista
da pesquisa histórica, elas não são ainda totalmente fáceis. Acho que a gente não precisa ser
programador, eu não sou. O meu conhecimento de banco de dados é um pouco intuitivo ainda,
ou seja, sem a pessoa com quem eu trabalho, o programador, eu não consigo fazer nada, mas eu
consigo, acho que com esses anos todos, pensar um pouco com a cabeça de quem programa um
banco de dados. E o problema hoje é, eu acho, principalmente se a gente pega os bancos de dados
sobre escravidão em larga escala, como construir dados que sejam passíveis de conversa com vários
outros bancos? Então, como você constrói esses bancos de dados colaborativos? Como você
constrói bancos e formas de divulgar os seus dados que sejam compreensíveis para outros
historiadores? O que já era uma questão há 30 anos continua sendo uma questão importante. E o
outro desafio é a automação, eu acho. Quer dizer, como a gente faz, por exemplo, para trabalhar
em bancos de larga escala, pensando as viagens… Eu estou falando de escravidão porque é o meu
campo, mas existem outros. Quando você pensa nas viagens transatlânticas, quando você pensa
em um banco que eu venho trabalhando há um tempo, que é o do Passados Presentes2, que é a
automação da memória, é muito complicado. Qual é a fonte, entre aspas, que dá origem ao
conhecimento, que vai ser quantificado e como a gente pode, se a gente pode, no futuro,
automatizar a passagem, por exemplo, de uma entrevista para uma entrada num banco. Acho que
esses são os desafios, os desafios dessa automação, que eu não estou plenamente convencida que
é possível. Eu acho que isso é um dos grandes desafios. Um dos projetos que eu estou tentando
fazer agora, se chama “Atlas das Injustiças Históricas”, que é pegar o Passados Presentes como modelo
e outras formas de conectar a memória ao lugar, que é essa nova possibilidade de
georreferenciamento. Então, conectar um dado de memória com um dado de lugar, com um
acontecimento, entre aspas, com um processo histórico. No caso, pode ser a ditadura, pode ser o
período da escravidão, e aí pensar como que essas memórias podem se superpor e a gente pode
mapear em larga escala. Então, pensando nos projetos de memória da escravidão no Brasil, como
piloto, eu estou tentando lá na Universidade de Pittsburgh, em parceria com outros colegas, criar
isso que a gente chamou de “Atlas das Injustiças Históricas”… e aí é que vêm os desafios da
automação. A gente precisa de alguém que vá fazer essa transferência e vá localizar os lugares a
cada vez que alguém fala um lugar, ou a gente consegue fazer isso de maneira automatizada, como
vocês estavam tentando fazer com as legendas (dessa entrevista)? Então, eu acho que isso é um

2
O projeto Passados Presentes: Memória da Escravidão no Brasil é uma iniciativa da Rede de Pesquisa Passados Presentes
(LABHOI/UFF – Laboratório de História Oral e Imagem da Universidade Federal Fluminense e NUMEM/UNIRIO
– Núcleo de Memória e Documentação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro). Disponível em:
http://www.passadospresentes.com.br

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dos grandes desafios, mas eu quero dizer só rapidamente outra coisa, que isso é uma ponta. Na
outra ponta, a gente ainda tem o desafio do letramento digital, dos nossos alunos e dessa
dificuldade, que é, se a gente tem uma dificuldade de qual software, qual banco a gente vai escolher
lá na ponta, a outra é a dificuldade das máquinas, do acesso à internet, numa escala ampla para os
nossos alunos. Então, são as duas pontas.

● Monica Ribeiro: Um pouco dentro disso que você falou, Keila, sobre a questão
ainda dos desafios, espremendo você um pouquinho mais para os nossos leitores,
em relação aos desafios institucionais mesmo, você está numa universidade, duas
universidades completamente diferentes, dois países em níveis diferentes em
relação à tecnologia. Como você vê a cultura institucional brasileira? Dentro da sua
universidade aqui, no Rio de Janeiro, você tem apoio institucional, existe uma
clareza da instituição sobre o suporte que ela precisa te dar? E fora do Brasil, como
está isso? Há alguma distinção entre os procedimentos institucionais?

Olha, isso é engraçado, porque eu imaginei que eu iria para os Estados Unidos e encontraria
uma situação completamente diferente. E não é. Então, para começar, aqui na Unirio, a gente não
tem, e aí não acho que é só da Unirio, eu acho que a gente não tem suporte para realizar e elaborar
projetos digitais, a gente não tem suporte para armazenar dados na universidade. E isso cria um
problema muito grande, porque inclusive é um problema que a gente talvez devesse levar para as
agências de fomento, porque quando a gente gera dados e quando a gente faz os projetos digitais,
em muitos casos, os projetos acabam sendo localizados em servidores privados, que dependem do
nosso pagamento pessoal, do nosso CPF, porque a gente não consegue armazenar, tanto em
quantidade de dados, e eu acho que vocês na Federal de Juiz de Fora estão na ponta disso, quanto
na capacidade do provedor de hospedar o tipo de projeto que a gente quer. Então, na Unirio, por
exemplo, o formato do site tem que seguir uma plataforma super antiga, que é o Plone. Então, não
é nem um projeto digital, é um site comum. Então, é complicado e eu acho que a questão mais
complicada é que esses projetos são feitos com o financiamento público e as universidades não
têm condições, acho que por vários motivos, mas as universidades públicas não têm condições de
abrigar esses projetos na sua complexidade. Isso sem falar na parte de que a gente não tem a
assistência técnica que a gente precisa. Então, esse programador vai ser sempre uma pessoa, tudo
bem, que a gente pode contratar um terceirizado, mas ele não tem uma conexão com o projeto,
que faça com que essa dimensão pública seja viabilizada. Então, eu acho que nesse ponto os
desafios institucionais são imensos e que talvez fosse o caso do CNPq mesmo, pensar em como as
universidades podem se preparar. Agora, chegando à Universidade de Pittsburgh, onde eu estou,
eu achei que ia chegar lá e receber da biblioteca justamente o espaço e a estrutura. É verdade que

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
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tem uma estrutura que a gente não tem aqui, principalmente para pensar a elaboração de bancos, a
elaboração de sites. Eu estou criando um arquivo em parceria com a Universidade Federal
Fluminense (UFF) e com a Federal de Juiz de Fora (UFJF), que é um arquivo de memória também,
mas o projeto, por exemplo, o “Passado Presentes”, que eu achei que a gente poderia hospedar, a
gente não pôde também pelas mesmas razões, porque a universidade não tem espaço para abrigar
projetos e acaba que os projetos de maior complexidade são pagos com financiamento dos
professores em servidores privados. Então, é interessante pensar que essa virada, que é uma virada
do ponto de vista da produção do conhecimento tão fundamental, não digo todas, claro, mas
muitas universidades não acompanharam porque elas exigem uma estrutura de servidores, de
provedores, de técnicos, que hoje em dia só com a obtenção do financiamento a partir dos projetos
você consegue e ainda assim com a hospedagem privada. Eu fiquei chocada. Então, por um lado,
a gente tem menos estrutura no Brasil, por outro, pensando na escala, ela não é tão diferente dos
desafios que a gente encontra lá também.

● Anita Lucchesi: Muito obrigada, Keila. Realmente, é interessantíssimo ouvir tua


experiência vinda de fora. E eu me pergunto, se nesse sentido, para enfrentar esse
desafio institucional também, além dos técnicos e da produção do conhecimento
como um todo, a relação com outras disciplinas poderia ajudar. A gente fala muito
de interdisciplinaridade como uma questão para a pesquisa, para o momento de
desenvolver o software, responder perguntas. Mas com os gestores de dados, com
o pessoal da ciência da informação mais diretamente, como você vê o trabalho da
interdisciplinaridade para esse mundo da história digital? Pode ajudar nessa
gestão?

Ele é essencial. Ele é essencial, ele não existe, no sentido de que, principalmente aqui, onde
a gente tem as áreas de formação definidas muito inicialmente, na formação dos alunos e nos
nossos campos de ação que continuam muito disciplinares, diferentes dos Estados Unidos, onde a
formação dos alunos permite que eles circulem mais. Então, muitos alunos, só para fazer essa
comparação, muitos alunos lá estão aprendendo a usar softwares e se definem como pesquisadores
na área de humanidades digitais porque eles têm um conhecimento técnico suficiente para, por
exemplo, dar assessoria para professores que querem desenvolver projetos e não têm. Então, por
exemplo, muitas chamadas de pós-doc pedem isso, alguém na área de humanidades digitais, que é
uma pessoa que, vamos supor, fez um doutorado em história, mas ao fazer seu doutorado,
construiu um banco, construiu um site, e essa pessoa sabe um pouco de programação, ela sabe usar
o Arcgis, ela sabe usar programas que facilitam essa vida. Então, acho que nesse ponto, essa
interdisciplinaridade lá é maior do que aqui. Aqui, a gente precisa de muito contato em todas as
áreas, eu acho, das ciências sociais das humanidades com a ciência da informação, com a

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computação e talvez até com a matemática, porque os professores não estão preparados para lidar
com isso, tem muitos professores que não sabem, nem quais são as perguntas que podem fazer
sobre a ligação com os dados. Os alunos também não estão preparados para desenvolver pesquisas
nessa escala, então eu acho que a gente perde. E aí, eu fiquei pensando que a gente ainda tem, em
muitos cursos, essas aulas, por exemplo, de método quantitativo. Aquilo que a gente chamava de
método quantitativo mudou radicalmente por conta das ferramentas digitais. Então, como você
trabalha com método quantitativo e história hoje, quando você pode fazer, por exemplo, curvas de
preços ou trabalhar com censo de uma maneira muito mais rápida e muito mais eficaz, mas o aluno
não tem esses instrumentos. Eu defendo, e eu já defendia antes, que a nossa formação disciplinar
é muito problemática e acho que a gente perde muito não fazendo esses diálogos, que as pessoas
das áreas de ciência da informação e de informática desses cursos também perdem. Não se
conectando e pensando nessas perguntas mais amplas que nós, eu acho, das humanidades fazemos.

● Anita Lucchesi: Muito bom. Parece que você já sabia mesmo o que a gente vinha
perguntar depois, Keila. Você já falou de alunos e currículo, de ensino e formação.
E acho que uma pergunta muito ampla agora, meio desafiadora, é pensar o impacto
do componente digital na compreensão histórica, tanto para a nossa vida de
pesquisador quanto para a nossa vida de formadores. Aí, eu queria voltar um
pouquinho na tua experiência a Anita Almeida no projeto Detetives do Passado3.
Vocês escreveram em 2012 na Revista História Hoje sobre a importância do objetivo
do site que era, dentre outras coisas, ensinar a investigar4. E isso era pensando nos
alunos mais jovens e até trabalhando com o método do paradigma indiciário 5 para
aquele público. Para você, qual seria hoje a tônica da história digital ou da história
pública digital pensando o ensino de história? Obrigada.

O Detetives do Passado ainda está no ar, com aquele formato antigo mesmo. O site
envelheceu, mas a gente de vez em quando se surpreende como que o Detetives do Passado ainda é
usado desse ponto de vista metodológico, não só como uma maneira de estudar a história da
escravidão no Brasil, no século XIX, mas também entender o método. Eu acho que, do ponto de
vista da formação dos nossos alunos, algumas das nossas questões, em história, nem diria que na

3
O projeto foi realizado no âmbito do Núcleo de Documentação, História e Memória (NUMEM) da Escola de
História da UNIRIO. Foi financiado pela FAPERJ, através do Edital "Estímulo à produção e divulgação científica e
tecnológica" de 2007, e obteve apoio da FAPERJ e do CNPq através do Programa de Apoio a Núcleos de Excelência
(PRONEX) "Dimensões da Cidadania no Oitocentos", edição 2006, liderado pelo Prof. Dr. José Murilo de Carvalho
(UFRJ). Coordenadoras e autoras das oficinas Anita Correia Lima de Almeida e Keila Grinberg, ambas professoras do
Departamento de Se a História da UNIRIO. Disponível em: http://www.numemunirio.org/detetivesdopassado/
4 Grinberg, Keila, e Ana Maria Esteves de Almeida. 2012. "Detetives do Passado no Mundo do Futuro: Divulgação

Científica, Ensino de História e Internet." Revista História Hoje, n. 1: 315–326.


5
Ginzburg, Carlo. 1990. "Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário." In Mitos, Emblemas e Sinais: Morfologia e História,
143-179. São Paulo: Companhia das Letras.

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história digital ou história pública, mas em História, permanecem as mesmas. São as mesmas agora
agravadas pelo maior acesso que a gente tem ao mundo digital e pelo nosso contexto político
contemporâneo. Quer dizer, eu acho que o nosso desafio, nossa questão, é lidar com a verdade,
com a ideia de verdade, a ideia da validação do conhecimento nesse mundo em que se produz
conhecimento falso com muita facilidade nesses meios digitais. Então, eu acho que o nosso grande
ponto – que vai unir esse conhecimento histórico mais tradicional à nossa forma de dar aula e à
nossa forma de publicizar, pensando na história pública, num conhecimento que você faz,
compartilhado com grupos, com comunidades – é como a gente vai lidar com esse mundo
contemporâneo, um mundo em que você tem o surgimento de grupos que questionam a ideia de
verdade como nós historiadores ou pessoas da área de ciências sociais e humanidades construímos.
E como a gente vai compartilhar novamente essa ideia de verdade e de confiança? Para o que acho
interessante a utilização da palavra em inglês trust, porque eu acho que esse é o nosso desafio de
hoje. E este desafio abrange o ensino nos níveis fundamental e médio e também no ensino no nível
superior. E junta também, eu acho, essas iniciativas que a gente tem, como que a gente vai lidar,
parece que a gente voltou para o século XIX, em certo sentido, mas eu acho que esse é o desafio
contemporâneo. E eu tenho muita dificuldade de pensar essas formas, porque no fundo a gente
vive um período em que a ciência, como resultado dessa produção do conhecimento, é tão
questionada e é tão fácil criar formas de disseminação de informações em qualquer nível, que não
sejam verdadeiras, que eu acho que o campo está perdido e com a inteligência artificial, mais ainda
agora, porque justamente são formas de se produzir imagens, produzir textos que são baseados em
pressupostos que nós não validamos como pressupostos verdadeiros. Então, eu acho que a gente
está num cruzamento complicadíssimo, e que talvez a nossa única chance seja, nesse sentido, voltar
aos espíritos dos detetives, que é o método indiciário, que é explicitar o método o tempo inteiro,
ou o que a gente chama de “elogio da nota de pé de página”. Porque sem isso, quer dizer, mesmo
do ponto de vista, quando a gente pensa em projetos digitais mais complexos, perder a produção
do conhecimento, na medida em que você lê o conhecimento, eu acho que é onde a gente perde o
controle sobre a forma como aquilo está construído e abre espaço para a disseminação de fake
news, abre espaço para livros baseados em opiniões e tudo isso que a gente comenta. No fundo
essas questões são as mesmas, mas elas estão hoje em dia agravadas pela complexidade, por um
lado, dessa mudança política, pelo questionamento da ideia de ciência, pelo questionamento do
conhecimento científico e pela facilidade com que a gente pode disseminar, facilidade e a rapidez
com que a gente pode disseminar, com que as pessoas podem disseminar informações falsas por
métodos digitais, incluindo redes sociais também.

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● Monica Ribeiro: Keila, obrigada, eu acho que você avançou em questões muito
importantes sobre a história pública digital e a sua importância hoje para uma
sociedade mais justa. Você oferece para nós historiadores humanistas, para a
sociedade, para o mundo global, um material validado, investigado, mais
atualizado e comprometido com os direitos humanos, com a verdade dos fatos, com
uma sociedade mais justa e comprometida com a agenda 2030 da ONU. Mas eu
queria que você falasse um pouco mais sobre a questão do compartilhamento de
dados e a possibilidade da colaboração em história e falasse um pouquinho mais
sobre o “Passado Presentes”. Você falou sobre que estão pensando até em
georreferenciar memória. Como esse tipo de projeto pode promover uma cultura
maior de intercâmbio na sociedade? Como você, trabalhando com novas
epistemologias, pode usar a tecnologia e transformar esse conhecimento em um
conhecimento mais validado, mais vasto? Como você pode entrecruzar essas
dimensões todas?

Eu acho que essas questões que você falou, são essas as questões que a gente está lidando,
elas são fundamentais porque eu acho que a tecnologia é justamente o meio, o locus, onde esses
conhecimentos vindos de várias partes, não só eles se integram, mas eles se tornam acessíveis para
a população como um todo. Então, quando você tem, por exemplo, os trabalhos, o Passados Presentes
tem várias facetas, mas essa faceta específica do banco de dados, qual é o nosso plano do banco de
dados 2.0 do Passados Presentes, é que a gente permita, continuando a trabalhar em larga escala com
comunidades quilombolas e eu acho que é importante dizer que a gente criou um sistema que não
precisa ser só sobre quilombos, é um sistema que pode ser usado por qualquer grupo, qualquer
memória. A ideia é que a gente possa georreferenciar a informação, e ao incluir essa informação
num banco que é feito em parceria com pelo menos quatro elementos, que são os historiadores e
a comunidade, a pessoa do design, que é fundamental porque estabelece como é que a gente mostra
e o que cabe nesse conhecimento e o programador. Então, são os quatro campos. Como é que a
gente pode, primeiro, produzir conhecimento novo e aí conhecimento georreferenciado a partir da
memória e a partir do nosso conhecimento histórico convencional? Então, a gente produz
conhecimento novo. Dois, a gente torna esse conhecimento acessível, e aí eu acho que é
importante, acho que é óbvio, mas importante dizer, com todas as letras, que esse conhecimento
produzido publicamente, ele tem que ser sempre de acesso público. Isso é conhecimento público,
ele é financiado com dinheiro público. Então, é engraçado quando as pessoas falam dessa questão
da história pública como uma coisa a mais que a gente faz, ou como um dado de que, como é que
os historiadores estão trabalhando a serviço do público, por exemplo, a discussão sobre a reparação
e o Banco do Brasil. Eu acho que é o contrário, é a nossa obrigação fazer isso. E como comunidade
acadêmica, ainda fazemos pouco, ainda guardamos muito para nós os resultados dos nossos
financiamentos e os resultados desse incentivo. Então, isso para as agendas dos financiamentos,

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para a agenda da produção do conhecimento histórico, eu acho que a gente não está fazendo nada
mais do que a nossa obrigação ao construir esse banco com todos os dados de acesso público.
Acho que a gente tem que ser obrigado mesmo a fazer isso. E aí, nesse modelo, são três elementos:
é a construção do conhecimento que eu já falei, é a disponibilização desse conhecimento numa
maneira que seja acessível para todo mundo e por isso que, no nosso caso, a gente está agora
trabalhando com a visualização em tela grande do computador e a visualização do celular, que é
com os aplicativos que a gente construiu em 2015, quatro aplicativos de visitação, mas que hoje
estão obsoletos e a gente agora está reconstruindo num outro formato. E o terceiro ponto é
justamente o ponto do ensino, que é, e aí o ensino também larga escala, o ensino para estudantes,
mas é o ensino de usar a visitação a esses lugares conforme a vontade das comunidades envolvidas
de maneira que elas possam divulgar o seu conhecimento. Então, são três pernas, a perna da
produção do conhecimento, a perna da divulgação ou de tornar esse acesso público e fácil. E o
terceiro é de usar esse resultado para instrumentalização ou para fins educativos mais amplos. Essa
conexão é fundamental. E acho que aí tem um ponto específico sobre o Passados Presentes que é
muito importante, que é o da sustentabilidade, a memória da sustentabilidade das próprias
comunidades que estão envolvidas. A memória é, nesse sentido, esses grupos, eles não são só
guardiões da memória, eles são, mas eles também, de certa maneira, vivem dessa memória, aqueles
que querem. Então, como é que a gente vai criar maneiras de devolver para esses grupos o
conhecimento que eles estão compartilhando conosco e que estão possibilitando que nós
avancemos e produzimos livros, produzimos artigos e produzimos sites? É tentar disponibilizar
esse conhecimento num formato que seja útil para, por exemplo, ampliar a visitação, quando é a
vontade que eles ampliem. Não é sempre o caso. Então, esses elementos podem ser, no caso do
Passados Presentes, é isso que a gente está visualizando. Então, a gente criou um sistema, que não está
totalmente disponível ainda, mas a gente espera que esteja em breve, que é da articulação do
conhecimento, da disponibilização do conhecimento e de uma forma fácil de se construir roteiros
e aplicativos de visitação, quando for o caso. Na verdade, é um desafio maior do que parece porque
a gente tem justamente alguns obstáculos técnicos e também a parte da educação digital. Porque,
no fundo, parte do que a gente faz agora é ficar treinando os nossos alunos, os nossos bolsistas, a
gente quer treinar voluntários para colocar o maior número de dados online. E aí, a gente encontra
coisas que a gente não sabia, por exemplo, uma referência de alguém que fala numa entrevista de
algo que aconteceu, sei lá, no Bracuí e aí, muito tempo depois, alguém fala dessa mesma referência
de alguma coisa que aconteceu em outro lugar, ou duas coisas diferentes, mas que aconteceram
numa mesma situação. A gente avança. E acho que o exemplo do tráfico ilegal é muitíssimo
importante com as comunidades que estão no litoral, mas a gente, hoje, sabe coisas que a gente

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não sabia por conta desse conhecimento compartilhado pelas comunidades. É uma discussão ética
fundamental no campo, não é só a história digital, mas no campo da história oral, mas na medida
em que a gente torna mais fácil o compartilhamento, a gente tem que continuar contribuindo e
ampliando essa discussão. A gente não pode colocar nenhum dado disponível sem a participação
das pessoas que estão fornecendo esse dado.

● Monica Ribeiro: Keila, em relação aos desenvolvimentos futuros agora e seu


envolvimento com o mestrado profissional, o ProfHistória. Como você conseguiu,
nessa sua experiência, reunir o compromisso do ensino com a utilização de
tecnologias digitais? E o papel da tecnologia digital para a formação dos novos
pesquisadores no ProfHistória tendo em vista sua relevância para o Brasil? E,
principalmente, como o aluno, enquanto receptor? Vocês conseguem competir com
outras iniciativas com apelos mais superficiais, mais fakes? Como vocês
conseguem contribuir, de fato, para a formação de um profissional de história?

Bom, a competição, acho que a gente perde. Mas agora falando sério, acho que os
mestrados profissionais e, dentro deles, o ProfHistória, o mestrado profissional, agora que tem
vários doutorados também, na área de ensino, já não é mais uma novidade com um programa que
já tem 10 anos. Mas é certamente a experiência mais inovadora na pós-graduação brasileira, eu
acho, recente. Na área de ensino, na área que é atrelada às licenciaturas, porque ela trouxe o que eu
acho que a gente sempre queria, que é um pouco esse diálogo entre os professores da educação
superior e os professores da escola, e essa conexão mais próxima com esses desafios. Inclusive,
tem um efeito que é interessante, eu vejo pela experiência do nosso corpo docente da Unirio é que
nem todos os professores hoje, do corpo docente do ProfHistória, têm a experiência da escola, de
sala de aula, mas eles estão se aproximando do ProfHistória e querem dar aula no ProfHistória
porque querem esse diálogo, trouxe uma relevância para a nossa disciplina, que, aliás, é interessante,
porque, por exemplo, comparando de novo com casos de Estados Unidos, têm cada vez menos
alunos nas disciplinas de história, nas disciplinas de humanidade, os cursos estão diminuindo. No
nosso caso, a gente não vê isso porque a gente está no Brasil, esse conhecimento, ele está atrelado
à universidade, ele está atrelado ao ensino através do ProfHistória. Então, eu acho que o
ProfHistória é a nossa pérola, que a gente não pode abrir mão de jeito nenhum, e tem a perspectiva,
eu acho que do digital, talvez sejam duas. Uma é do trabalho em rede, porque nos permitiu, desde
o início, fazer um trabalho em rede que não seria possível antes. A gente deu disciplinas em
conjunto, a gente trabalhou em escala nacional, o Brasil é um país imenso. E essa escala nacional,
que a gente trabalha, só foi possível por conta desse desenvolvimento digital, das formas de
comunicação e compartilhamento de dados. Agora, a outra parte que é mais complexa é como que

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a gente pode pensar num programa em escala nacional pensando a formação tecnológica? Por um
lado, é a tecnologia que torna possível. Tanto essas tecnologias de comunicação quanto você pensar
que um aluno que está em situações muito isoladas, sem acesso a um arquivo, pode fazer isso
através da internet, o que ele não podia antes. Então, o ProfHistória, como outros programas em
rede, se beneficia do fato de que a gente pode compartilhar. Agora, o ponto, eu acho que mais
importante, é pensar como esses alunos do ProfHistória, que são professores que estão em sala de
aula, se inspiram e aprendem a fazer projetos digitais no programa que eles podem colocar em
prática com seus alunos. Então, o fato de ser em rede e o fato de a gente usar a tecnologia para
ensinar e que a gente também ensina, o modelo das WebQuests, que foi o modelo que a gente usou
no Detetives do Passado e que ainda é tão usado, são modelos que usam da tecnologia sem
necessariamente o acesso permanente a internet, que ainda é um problema em vários lugares do
Brasil. Mas ela permite que mesmo sem ter acesso à rede o tempo todo, os alunos usem métodos
digitais para trabalhar. Então, essa escala eu acho essencial. Eu dei aula com tecnologias e projetos
digitais no ensino de história que foram incríveis, porque, por exemplo, a gente fazia visitas virtuais
a museus do mundo inteiro com os professores da rede. E aí os professores pegavam os seus alunos
e faziam eles mesmos, não só faziam a mesma coisa, então possibilitava: ‘olha, a gente não pode ir
até o Louvre, mas vamos ver’, mas possibilitava também ‘então, vamos pensar, o que a gente pode
fazer de uma exposição do nosso museu local e como é que esse museu local pode também ficar
disponível para o mundo todo?’. Então, não é só que a gente vai consumir, mas a gente vai produzir
e a gente vai disponibilizar. E esse pulo coloca o aluno do ProfHistória e depois esse aluno do
ProfHistória como professor com os seus alunos, mas coloca o aluno no centro do processo de
produção do conhecimento, que é o que a gente quer. E é o que possibilita que essa fórmula
funcione, de novo, com os dois pés na realidade, sem a gente ficar elucubrando, a partir de
problemas reais, de questões reais, dos desafios que se encontram na sala de aula. Eu acho que,
apesar de todas as dificuldades e das complicações, a gente tem um programa como esse, que é um
programa nacional, que é um programa em rede, que criou um diálogo sobre ensino que não existia
no Brasil antes, que tirou um pouco dessa ideia de que você trabalhar com ensino é uma questão
menor. Quando eu fiz o concurso para ensino de história na Unirio, tinha um monte de gente
perguntando, mas você vai fazer? Você estuda império, estuda escravidão, está fazendo o que na
área de ensino de história? E eu brincava e respondia: porque eu sinto saudade da escola. Mas não
é só isso... eu sinto, o ensino, ainda hoje, é visto como um campo menor dentro da nossa formação.
E a gente precisa acabar com isso, porque o ensino é justamente a nossa razão da existência. Tirou
ensino, eu quero ver o que vai sobrar da gente.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Keila Grinberg (Universidade de
Pittsburgh)

● Anita Lucchesi: Keila, muito, muito generosa sua fala, inclusive você avançou em
inúmeros pontos aqui que a gente tinha imaginado de perguntar, porque essa
questão do ensino estava muito forte, na nossa perspectiva, olhando para a sua
contribuição até hoje. Então, é uma coisa coerente, com a tua atuação. E você
falando do aluno no centro do processo de produção do conhecimento, me fez
pensar como que o digital, mas não só o digital e o público, como que na sua visão,
de uma forma mais geral, a gente pode fomentar mais projetos como o ProfHistória.
O ProfHistória, o mestrado profissional de história é uma pérola, mas de que outras
formas a gente pode, a partir da nossa atuação nas universidades, fomentar esse
tipo de atitude dos alunos e de oportunidade, de possibilidade para eles
trabalharem dessa forma?

Eu acho que a gente tem várias formas, claro que eu acho que quando a gente estava
discutindo ProfHistória no começo, a Marieta de Moraes Ferreira, eu e esse grupo que a gente
formou, Marcelo Magalhães, Luís Reznik, um monte de gente que está envolvida nisso até hoje,
ninguém, talvez a gente não imaginasse a dimensão que isso tomou, porque tomou uma dimensão
muito maior do que na época, inclusive na época a origem era dispute as possibilidades de interação
entre as universidades do Rio, e aos poucos foi crescendo. Eu acho que a gente precisa incluir na
nossa, na formação dos nossos alunos, essa dimensão, a centralidade da dimensão pública do nosso
conhecimento, do conhecimento que a gente produz. E é óbvio que nos dias de hoje essa dimensão
pública se faz de maneira digital, não só, mas de maneira digital. O que eu gosto, só para voltar um
pouquinho do Passados Presentes, quando a gente fez o aplicativo, a minha ideia do aplicativo, do
celular, é que ele não separe, ele é uma forma de conexão entre as pessoas, não uma forma de
separação das pessoas. Esse conhecimento que está sendo disponibilizado daquela forma digital,
tem que ser uma maneira de aproximar as pessoas, eu continuo acreditando nisso. Mas como a
gente faz isso? Eu acho que é não separando, como justamente vocês estão fazendo, não separando
a história digital da história pública. Eu não acho que faz sentido a gente trabalhar, claro, que a
história digital, os métodos digitais, os formatos, as plataformas digitais, a gente têm uma forma de
conhecimento específico que a gente precisa enfrentar, claro, como também a gente precisa
aprender a ler um documento escrito no século XVI. Então são formas de conhecimento. Mas é
impossível hoje pensar a história pública sem a dimensão digital, e também é impossível, eu acho,
pensar nossa formação de professores no Brasil, ou seja, com os nossos alunos, sem pensar a
dimensão pública. Eu não sei se é o caso da aula de história pública, eu dou aula de história pública,
dei aula aqui, de uma disciplina que eu transformei na Unirio, dou aula de história pública lá na
Universidade de Pittsburgh, mas eu fico pensando se é o caso, acho que a gente tem que discutir
isso, ou se todas as disciplinas a gente tem que pensar qual é a dimensão pública. E a dimensão
pública tem que incorporar o ensino, porque também acho que em muitas situações existe essa

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Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Keila Grinberg (Universidade de
Pittsburgh)

separação. A dimensão pública é o todo público, e aí é o público… isso aconteceu muito na


pandemia, quando a gente estava dando aula pela internet, que os alunos, os pais, ouviam, não sei
se tiveram essas experiências, a gente teve muito retorno dos pais, pela primeira vez a gente teve
alguma interação com as famílias dos nossos alunos sem ser na formatura. Essa dimensão pública
de que você identifica, ensina, aprende história o tempo inteiro, eu acho que ela tem que, ela faz
parte da maneira como, pelo menos eu penso o conhecimento histórico hoje. Então pensar a
história sem o público, ou a história sem a pública, é impossível para mim, e eu acho que esse que
é o caminho que os projetos mais interessantes em várias temporalidades estão sendo feitos hoje
em dia, é essa impossibilidade de dissociar aquilo que a gente faz do seu público, sabendo que o
digital permeia tudo isso, a produção, a disseminação e esse consumo, do conhecimento. Acho que
é isso.

● Anita Lucchesi: Tem muita coisa. Bom, vou te perguntar aqui Keila numa condição
de quem se formou também vendo a tua experiência. Quando eu comecei pesquisar
a história digital, me marcou muito um debate que o Café História organizou com
a ANPUH-Rio, você deve se lembrar, estava lá com a Lise Sedrez com o Fábio
Heder da Fiocruz, da ANPUH-Rio, na época e a mediação do Bruno, e vocês
discutiram o que a gente conversou aqui hoje, a história digital, ensino, divulgação
e pesquisa. E eu me lembro que na época você chamou muita atenção para algo
que você já disse hoje aqui, que é a gente explicitar o método o tempo inteiro. Na
época você usou a expressão, “enfatizar o caráter processual da história”. Me
parece que você continua numa mesma, numa mesma linha de atuação e é muito
bonito, assim, eu sou uma fã aqui ouvindo, a fã da história pública, assim, já tô
doida pra reler a gente, mas queria te pedir, para fazer um fechamento, algo de
inspirador que você gostaria de sublinhar, ou que você acredita que tem que estar
no radar dos novos pesquisadores e professores de história.

É, eu acho, pensando aqui, acho que tem uns 10 anos, isso, né, não me lembro bem. É, eu
acho que esses 10 anos, não estou nem pensando só na história, pensando na ciência e na
construção da ciência, disseminação, foram, estão sendo anos muito difíceis, por conta justamente
dessa ideia, da conexão entre verdade e confiança, que a população mundial vem passando. A gente,
eu acho que é nosso dever reconstruir isso e eu continuo sendo essa pessoa que acredita no método,
na explicitação do método, que significa também uma honestidade em relação aquilo que a gente
faz. Não tem segredo na prática, e isso também tem a ver com a disponibilidade dos dados. Mas o
que eu queria falar é que dentro desse quadro de pessimismo, um mundo em que, onde a gente
tem eleições decididas por testes à ciência, eleições, populações inteiras que são afetadas por essas
questões que tem a ver com o conhecimento, e especialmente em história, eu acho que o que a
gente vê também é que as pessoas querem saber, né? As pessoas querem conhecer. As pessoas

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Anita Lucchesi & Mônica Ribeiro de Oliveira | Entrevista com Keila Grinberg (Universidade de
Pittsburgh)

querem ler os livros de história. Ao mesmo tempo em que tem tanta gente questionando o que a
gente faz, a gente também nunca teve, por exemplo, um consumo de livros de história enorme no
Brasil, o Brasil tem um mercado imenso, um mercado no sentido amplo. E, aliás, em parte esse
interesse e o fato de que a gente não ocupa esses espaços, plenamente, que a gente tem tanto
consumo de material de baixa qualidade. Então, se é pra gente pensar na formação dos nossos
alunos, no que essas gerações vão mostrar, eu acho que a gente precisa continuar produzindo
material, continuar fazendo as discussões difíceis, porque a gente tem muitos desafios no Brasil
que é justamente o de falar sobre os nossos traumas históricos, os nossos silêncios, os nossos
silêncios do passado. Porque, embora existam forças contrárias, acho que a maioria das pessoas no
Brasil e fora do Brasil, estão interessadas em conhecer, elas querem conhecer. Então, a gente não
pode abdicar desse nosso papel, que é um papel público, é o papel dos intelectuais públicos de
produzir esse conhecimento, de disseminar e de tornar acessível. Então, é isso, os desafios são
muitos, mas é um papel importante demais, e a gente precisa continuar fazendo isso. Se a geração
que está se formando agora, pegar esse desafio e agarrar, eu acho que a gente continua fazendo o
que é, aliás, o que se faz no Brasil, que é produção de conhecimento histórico de ponta. A Anita
também tem uma experiência no exterior,e agora eu. O que a gente faz no Brasil é de uma qualidade
imensa e uma qualidade reconhecida no exterior, em grande parte por causa da solidez da nossa
formação e em grande parte porque o público nos leva a isso, o público nos desafia. Então, eu acho
que a gente tem que continuar fazendo isso, continuar ouvindo. A gente fala muito, mas a gente
tem que continuar nesse papel de ouvir, e, ao ouvir e ao interagir com as comunidades, a gente
continua avançando [em busca de] uma sociedade melhor.

● Anita Lucchesi: Nós agradecemos, professora Keila!

Maravilha, que bom!

***

Recebida: 07 de julho de 2024


Aprovada: 15 de julho de 2024

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Seção livre
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.42827

Infância, Raça e Classe Social: As Políticas de Assistência a Menores no


Brasil (1920-1960)

Childhood, Race, and Social Class: Policies for Minors in Brazil (1920-1960)

Infancia, Raza y Clase Social: Políticas de Asistencia a Menores en Brasil (1920-1960)

Fabíola Amaral Tomé de Souza*


https://orcid.org/0000-0002-2048-4968

RESUMO: O presente artigo objetiva analisar as ações e os discursos em relação à assistência social
da população infanto-juvenil na primeira metade do século XX, na qual podemos observar a
construção da categoria “menor”. A partir de um estudo baseado em fontes documentais e em uma
importante bibliografia sobre raça e pós-abolição, trabalhismo e institucionalização do atendimento
ao menor, pretende-se discutir a questão de raça e classe em relação ao menorismo e à
criminalidade. Analisar a visão higienista da época e a implantação de um ideário do saneamento
moral, focalizando nos grupos com risco social, nesse caso os menores que, de acordo com as
fontes pesquisadas, precisariam, de alguma forma, ser protegidos e amparados para uma profilaxia
urbana e não causar nenhum problema para a sociedade, incluindo nessas ações o recolhimento
dessas crianças e adolescentes a instituições ligadas ao SAM – Serviço de Assistência a Menores.
Palavras-chave: raça e classe, menorismo e institucionalização do menor.

ABSTRACT: This article aims to analyze the actions and discourses in relation to social assistance
for children and adolescents in the first half of the 20th century, in which we can observe the
construction of the “minor” category. Starting from a study based on documentary sources
regarding an important bibliography on race and post-abolition, labor and institutionalization of
care for minors, we intend to discuss the issue of race and class in relation to minorism and
criminality. Analyze the hygienist view of the time and the implementation of an ideal of moral

*
Doutora em História pela UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Mestra em História Social pela
USS - Universidade Severino Sombra - Bolsista CAPES. Graduada em História Licenciatura pelo Centro Universitário
de Barra Mansa (2007). É, também, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Política e História Social e Grupo de
Estudos Mundos do Trabalho e o Pós Abolição da UFRRJ. Pesquisadora do Observatório da Educação Superior do
UniFOA. Atualmente é Professora Assistente do UNIFOA - Centro Universitário de Volta Redonda - RJ.
[email protected]

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30 n. 1, 2024
Fabíola Amaral Tomé de Souza | Infância, Raça e Classe Social: As Políticas de Assistência a Menores no
Brasil (1920-1960)

sanitation, focusing on groups at social risk, in this case Theo minors who, according to the
researched sources, would somehow need to be protected and supported to improve hygiene in
cities and did not cause any problem for society, including in these actions the collection of these
children and adolescents to institutions linked to the SAM – Assistance Service for Minors.
Keywords: race and class, minorism, institutionalization of the minor.

RESUMEN: El presente artículo tiene como objetivo analizar las acciones y discursos relacionados
con la asistencia social a la población infantil y juvenil en la primera mitad del siglo XX en Brasil,
donde se puede observar la construcción de la categoría “menor”. A través de un estudio basado
en fuentes documentales y una bibliografía relevante sobre raza, posabolición, trabajo e
institucionalización de la atención al menor, se pretende abordar la cuestión de la raza y la clase en
relación con el menorismo y la criminalidad. Se analiza la visión higienista de la época y la
implementación de un ideal de saneamiento moral, centrándose en los grupos en riesgo social, en
este caso, los menores que, según las fuentes investigadas, necesitaban ser protegidos y respaldados
de alguna manera para la profilaxis urbana, evitando así que causaran problemas a la sociedad. Esto
incluye acciones como el internamiento de estos niños y adolescentes en instituciones vinculadas
al SAM - Servicio de Asistencia a Menores.
Palabras clave: raza y clase, menorismo e institucionalización del menor.

Como citar este artigo:


Souza, Fabíola Amaral Tomé de. “Infância, Raça e Classe Social: As Políticas de Assistência a
Menores no Brasil (1920-1960)”. Locus: Revista de História, 30, n. 1 (2024): 175-200.
***

Introdução
Este artigo tem como finalidade examinar as iniciativas e os discursos concernentes à
assistência social direcionada ao público infanto-juvenil na primeira metade do século XX, período
no qual se observa a formação da categoria menor. Mediante a análise de fontes documentais e um
extenso referencial bibliográfico sobre raça e pós-abolição, trabalhismo e a institucionalização do
cuidado aos menores, busca-se explorar as intersecções de raça e classe no contexto do menorismo
e da criminalidade. Será discutida a perspectiva higienista da época e a adoção de uma ideologia de
saneamento moral, concentrando-se nos grupos socialmente vulneráveis, especialmente os
menores.
A análise é relevante, visto que as crianças nascidas em situação de pobreza e/ou em
famílias com dificuldades de criarem seus filhos ou os adolescentes que praticavam atos contra a

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Brasil (1920-1960)

lei e a “ordem” tinham um destino quase certo quando buscavam apoio do Estado: o de serem
encaminhadas para instituições como se fossem órfãs ou abandonadas (Rizzini e Rizzini 2004, 13).
O atendimento de crianças e adolescentes pobres ou em conflito com a lei existiu, desde o século
XIX, no estado brasileiro, mas não era uma política do Estado até a quarta década do Séc. XX.
A assistência dada no final do século XIX mantinha os moldes da caridade do século
anterior, abrigando crianças e adolescentes, em locais organizados e mantidos por particulares sem
uma organização técnica que garantisse proteção, educação e dignidade para os abrigados, mesmo
havendo clamores de elementos da sociedade para a especialização do atendimento.
Já nas primeiras décadas do século XX, a preocupação com as crianças e adolescentes
baseava-se na preocupação com o desenvolvimento do país. O Brasil passava por diversas
alterações no cenário político, econômico e social, pós-Proclamação da República e pós-abolição,
assim como a entrada de imigrantes no país, promovendo um aumento no contingente de homens,
mulheres e crianças nos centros urbanos (Rizzini 2004, 23).
As cidades cresceram rapidamente incentivando o interesse de especialistas em
compreender as mudanças produzidas pelo desenvolvimento industrial. A industrialização
proporcionou,

transformações tecnológicas, econômicas e demográficas, novos conceitos, valores e subjetividades


inseria-se em inquietações eugênicas que pregavam que sua população deveria ser de gente saudável
e, para que o Brasil pudesse se tornar uma grande nação, era preciso criar mecanismos de regulação
social, principalmente para dar conta das “classes inferiores” e “portadoras de degenerescências”,
cujos problemas eram de ordem social e moral. De acordo com os preceitos eugênicos, “Purificando
a raça” galgaríamos importantes degraus na “escala evolutiva” (Silva Junior e Garcia 2010, 2).
O pensamento higienista1 da época implantou um ideário do saneamento moral, com foco
em pobres, menores2, loucos, prostitutas, entre outros que, conforme esses pensadores, precisariam,
de alguma forma, serem protegidos e amparados para que melhorassem a higiene nas cidades e não
causar nenhum problema para a sociedade (Silva Junior e Garcia 2010, 2). Neste momento, os
discursos sobre a infância eram especificamente discursos de prevenção e profilaxia (Rizzini e
Rizzini 2004).

1
O higienismo brasileiro pode ser definido como o estabelecimento de normas e hábitos para conservar e aprimorar
a saúde coletiva e individual. Contudo, foi um movimento complexo visto sua generalidade difusa e heterogênea, tanto
no âmbito político quanto no científico. O “movimento higienista” era altamente heterogêneo sob o ponto de vista
teórico (nos seus fundamentos biológicos e raciais) e ideológico (liberalismo e antiliberalismo). Sobre isso ver:
Hochman 2012. Pilotti e Rizzini 2007. Junior 2007, 5-12.
2
É importante informar ao leitor que utilizei a terminologia “menor” encontrada nas fontes documentais desta
pesquisa, contudo é importante salientar que não é o nosso entendimento sobre as crianças e adolescentes. Para um
melhor entendimento disto escolhi trabalhar com essa categoria de forma destacada para evitar uma possível confusão
do leitor entre fontes e análises.

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O higienismo e a eugenia no Brasil no início do século XX estavam intimamente


relacionados, ambos fundamentados na crença de que a saúde pública e a higiene eram essenciais
para a melhoria da “qualidade” da população. Enquanto o higienismo focava na prevenção de
doenças e na promoção de práticas saudáveis através de medidas de saneamento e educação
sanitária, a eugenia utilizava esses mesmos princípios com o objetivo de melhorar geneticamente a
população (Alves & Pizolati 2019). Essa intersecção é evidente na forma como médicos e
sanitaristas da época, como Belisário Penna, advogavam por uma abordagem que combinasse
higiene com eugenia, visando a regeneração física e moral da nação. Esse enfoque é detalhadamente
discutido por Nancy Stepan em seu livro “The Hour of Eugenics: Race, Gender, and Nation in
Latin America” (1991), em que ela analisa como as políticas de higienismo e eugenia se
entrelaçavam e influenciavam as políticas públicas em países latino-americanos, incluindo o Brasil.
Essa fusão entre higienismo e eugenia moldou significativamente as políticas de saúde pública e
educação, promovendo uma visão de que melhorias ambientais e pessoais poderiam contribuir para
um futuro mais saudável e “aperfeiçoado” da população (Alves & Pizolati 2019 apud Stepan 1991).
O período compreendido de 1920 a 1960 foi de muitas transformações sociais e políticas
no Brasil, como dito anteriormente, afetando as políticas públicas, as visões sociais e as experiências
de crianças e adolescentes, especialmente aqueles de origem negra e pobre. Portanto, pensar como
as políticas de assistência à infância e juventude no Brasil, nesse período, contribuíram para a
perpetuação da desigualdade racial e social, especialmente em relação às crianças e adolescentes
negros e pobres é relevante, analisando como as visões sociais e raciais influenciaram essas políticas
e como os legados desse período continuam a afetar a sociedade brasileira.
Essas transformações ajudaram a construir o conceito de menor, visto crianças e
adolescentes necessitados serem vistos por muitos setores da elite brasileira como um desafio
social, cuja resolução era essencial para a afirmação da ordem política republicana emergente,
marcada pelo lema “ordem e progresso”. Essas crianças eram frequentemente discutidas em uma
variedade de contextos sociais como símbolos de abandono, miséria, desorganização e ameaça à
sociedade, sendo alvo de políticas estatais que enfatizavam a necessidade de disciplinar, controlar
e educar os menores (Rizzini 2006 e Marcilio 2006).
Conforme Rizzini (2011), a designação ‘menor’ transcende uma mera classificação por
idade. Ela identifica uma infância específica, nascida da pobreza e do desamparo, distinta de outros
grupos infantis da mesma época, sempre vista com a desconfiança de potencialmente tornar-se
corrupta e delinquente. A autora destaca que há uma ambivalência na maneira como essa questão
era tratada, em que o menor podia tanto representar a criança carente e merecedora de piedade
quanto simbolizar a infância desviante, vista como uma ameaça à sociedade. Essa dualidade é

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evidente nos documentos daquele período, que retratam a infância como “[...] ora em perigo, ora
perigosa” (Rizzini, 2006, 5).
Diante disso, esse artigo possui a finalidade de investigar como as políticas de assistência à
infância no Brasil durante as décadas de 1920 e 1960 foram influenciadas por fatores raciais,
econômicos e sociais, com foco na experiência das crianças negras e empobrecidas, a fim de
compreender como a interseção entre raça, classe e infância impactou a construção das políticas
públicas e as experiências destas nesse período.
A análise das políticas de assistência à infância permite uma reflexão mais profunda sobre
como a sociedade brasileira percebia e tratava suas crianças. Isso ajuda a contextualizar a história
das crianças no Brasil e a examinar como as políticas públicas afetaram suas vidas.
Destarte, esse artigo foi elaborado através de uma abordagem interdisciplinar e
multidimensional, combinando elementos da história, sociologia, antropologia e política,
enriquecendo o entendimento das políticas sociais e suas implicações em diferentes esferas da
sociedade e utilizando diversos documentos históricos, como documentos do Arquivo da Câmara
dos Deputados, como legislações e discursos, o Código Penal de 1890, Relatório das Atividades do
Exercício de 1942 e 1946 do Ministério da Justiça e Negócios Interiores (MJNI), a Revista Brasileira
de Cartografia, assim como, obras de autores renomados que pesquisam o tema.
O uso da metodologia do paradigma indiciário, proposto por Carlo Ginzburg (1989), foi
central para esta investigação, permitindo a identificação e interpretação de indícios e sinais
aparentemente marginais, mas reveladores de dinâmicas sociais e políticas profundas. Dessa forma
foi possível identificar padrões, tendências e informações relevantes para o estudo. Isso inclui a
análise de discursos e argumentos presentes nos documentos que foram corroborados por análises
bibliográficas sobre o tema. O uso das imagens, como fotografias de crianças internadas em
instituições de assistência à infância, foi importante, primeiro como evidência histórica e segundo
como comprovação do que está ausente nas fontes documentais, como a falta de referências à raça
em documentos oficiais. Demonstrando a importância de analisar o silêncio sobre a raça nas
políticas de assistência à infância e, sobretudo, como esse fato contribuiu para a manutenção de
preconceitos raciais.
Esse texto pretende levar a uma compreensão das raízes históricas das desigualdades raciais
nas políticas de assistência à infância, sendo relevante para os debates contemporâneos sobre
igualdade e justiça social no Brasil e está dividido em duas partes, sendo que na primeira parte
analisaremos a construção do conceito de “menor” no contexto da infância no Brasil, destacando
que esse termo não se refere apenas à idade, mas também à falta de direitos e recursos. Essa
categorização desigual influenciou as políticas públicas para crianças e adolescentes, com ênfase

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nas desigualdades de classe e raça. Destacando como a sociedade brasileira foi moldada pela
violência, afetando especialmente a população negra e pobre. Já a segunda parte do texto aborda
como o termo “menor” estava associado a crianças e adolescentes pobres e negros, refletindo uma
perspectiva de classe e raça e que as políticas estatais tratavam esses menores de forma
discriminatória, com práticas racistas subjacentes, a partir da análise do discurso do ex-diretor do
Serviço de Atendimento a Menores (SAM), Meton de Alencar Neto, em relação às causas da
delinquência dos menores, a influência do meio social e as características psicológicas. Destacando
o uso de testes de coeficiente intelectual na avaliação dos menores e como isso estava relacionado
às ideias racialistas.
Finalmente, que esse diagrama inicial realizado para apresentar o percurso feito neste artigo
sirva como convite à leitura.

Política menorista
Ao pensar na construção da narrativa do período estudado acerca da infância, é preciso
pensar a categoria menor. Adriana Viana escreveu em sua tese que a construção da terminologia
menor desempenha um papel simbólico, ao desagrupar e depois reagrupar certos indivíduos
presentes em uma representação coletiva de infância. Analisamos que o termo favorecia a
consolidação da desigualdade de acesso e a direitos estabelecidos no período, em decorrência de
um processo mais abrangente de hierarquização social (Vianna 1999, 17).
A construção do termo apresenta-se como forma de diferenciar os indivíduos de acordo
com os direitos e deveres que eles deveriam possuir ou seriam obrigados a seguir como brasileiros.
Observando as principais leis sobre o assunto, chamou-nos a atenção a representação histórica de
pensar estes indivíduos a partir de uma idealização menorista3. Entendendo o menor não somente
como menor de idade, mas como menor em direitos. Dessa forma a relação entre “maiores e
menores” era definida pela desigualdade de recursos oferecidos nas mais diversas situações sociais
(Vianna 1999, 17).
É importante observar a partir de um enfoque integrado a classificação menor, sendo
necessário pensar as questões sobre raça e classe, e que apesar de categorias distintas, sua interação
produzem e reproduzem as desigualdades sociais e a desigualdade de oferta de políticas públicas
de atendimento a crianças e adolescentes no período.

3
Categoria também pensada por Irene Rizzini, que a partir dessa concepção, analisa o atual processo de criminalização
da pobreza, ademais dividindo a política de atendimento à criança em: política para a criança rica e política para criança
pobre. Para fins de aprofundamentos a partir da categoria socioeconômica, ver Rizzini e Rizzini 2004.

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Um ponto importante, defendido por Adriana Viana, é o termo menor estar, também,
relacionado à atuação policial no período, implicando uma forma particular de poder policial que
diferenciava os indivíduos e os classificava a partir de critérios próprios do aparelho repressor
estatal. Esses indivíduos ou seus representantes legais, no entanto, não possuíam meios para
combater essa classificação e as consequências que ela trazia. Isto posto, o poder policial acabava
por atribuir um caráter inferiorizado aos responsáveis desses menores, estabelecendo um processo
de desautorização destes4.

Ressaltam, no plano das ideias, o movimento higienista associado aos médicos e filantropos, o
positivismo dos militares, com imperativos de “ordem e o progresso” e a sociologia evolucionista,
como determinantes da constituição e da consolidação do espaço social destinado à infância, por
meio de mecanismos conhecidos como “escala da moralidade” ou da “profilaxia da criminalidade”,
que discriminavam as crianças desvalidas, classificadas como “menores”, daquelas que possuíam
infância ou eram parte da infância concebida como produtiva. Essa estratégia estatal prolongou-se
nas décadas posteriores e marcou os primeiros passos da infância e juventude como objeto de
atenção das instituições do Estado. A matriz que orientou as primeiras intervenções referentes ao
público infanto-juvenil no início do Brasil republicano expressava um projeto manifesto de proteção
à infância que, em última instância, visava mais à defesa da sociedade (Perez e Passone 2010).
A prisão ou detenção do indivíduo era o que o caracterizava como menor, assumindo
integralmente outros aspectos da categoria, para além da faixa etária ou aparência.

Sendo assim. É possível pensar como a administração (no sentido do aparato estatal que viabiliza o
controle de determinadas populações compreendidas como nacionais); seria capaz de produzir
significados e identidades e não apenas de obedecer, sob forma de uma determinada organização
burocrática, a significados e identidades que lhe fossem supostamente anteriores (Perez e Passone
2010).
A população infanto-juvenil social e economicamente necessitada era associada à uma
concepção de risco social e moral para a parcela privilegiada da sociedade, por consequência era
necessário um tratamento diferenciado a esses menores, assemelhado ao tratamento dado aos
criminosos.

O acirramento das tensões sociais foi acompanhado por uma especialização dos aparatos de controle
e vigilância, bem como da profissionalização da polícia das técnicas que lançaram mão, com base no
cientificismo da época, na identificação e repressão dos criminosos, a partir do início do século XX
(Câmara 2010, 78).
Práticas repressivas, punitivas e autoritárias, com vieses assistencialistas, revitimadoras,
estigmatizantes e excludentes eram comuns no período. Não havia o pensamento de promoção da
igualdade de condição a todas as crianças e adolescentes, acentuando a desigualdade de tratamento,
reforçada pelas decisões discricionárias do poder judiciário e do poder policial (Rizzini e Rizzini
2004).

4
Adriana Viana não propõe que os agentes policiais escolhessem prender pessoas por estereótipo ou condição
financeira. A autora cita que tomou essa identificação “como a condição de existência desses menores. Se era possível
existir uma unidade para além do estoque de classificações empregadas e das diferentes histórias de vida, é justamente
porque a ação policial criava menores ao identificar indivíduos dessa forma”. Op. cit., p. 18.

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Era corrente, à época, a prisão de crianças que circulassem ociosas pelas ruas, ou as que nelas
desenvolvesse ocupações ocasionais, não sendo preciso apresentar motivos que as implicassem
legalmente, além da suposta vadiagem que a sua presença na rua representava A prática da vadiagem
equivalia a uma ameaça à moral e aos bons costumes, onde a associação entre ociosidade e
indigência, provocada pela miséria dava, como resultado final, os pervertidos morais, capazes de
cometer crimes contra a ordem e a propriedade. Transformada em crime, desde a promulgação do
Código Criminal de 1890, a vadiagem foi, assim, configurada com o objetivo de prevenir a desordem
na cidade (Camara 2010, 55).
É meritório pensarmos de forma mais aprofundada em relação à população infanto-juvenil,
analisar transversalmente que a formação da sociedade brasileira foi baseada na violência, com
raízes profundas na forma como foi a escravização de africanos e seus descendentes e a dizimação
de nativos americanos.
Diante disso, para a organização política construída no Brasil não existia diferenciação
entre uma pessoa adulta e uma criança. À população infanto-juvenil negra e pobre dos períodos
pré e pós-abolição havia uma diferenciação de tratamento em relação a outras crianças (Faleiros,
1995, 205). “A criança escrava não era, pois, objeto de proteção por parte da sociedade. Sua sina
estava traçada como prioridade individual do senhor seu dono, como patrimônio e mão de obra”
(Idem, 206).
A população negra estava, no período compreendido entre a abolição e o da experiência
democrática, relacionada diretamente ao desenvolvimento político, econômico e estrutural da
sociedade brasileira. A vida de negros, no pós-abolição, estava associada à de outros indivíduos que
compunham classes e grupos sociais hierarquicamente inferiores. Consequentemente, os negros
eram submetidos a mesma engenharia de dominação de classe que atingiam outros grupos
subordinados. No entanto, estes, também, enfrentavam dificuldades relacionadas à sua condição
racial (Hasenbalg 2005, 20).
Sidney Chalhoub (2011) analisou o significado da liberdade para os africanos e os seus
descendentes nascidos aqui antes de 1888 e a conceituou como precária, a qual pode, também, ser
analisada observando as condições cotidianas em que eles viveram no período pós-Abolição. A
quase ausência de trabalhos formais, a não salvaguarda dos direitos civis de negros, assim como a
falta de acesso aos direitos e benefícios públicos, como escolarização e saúde de qualidade, foram
importantes causas de desigualdade social.
Destarte, Carlos Hasenbalg, defende em sua Tese de Doutorado, que a estratificação racial
não é fruto do escravismo, mas sim do racismo e da discriminação que provocam uma
“subordinação social de não-brancos e seu recrutamento a posições sociais inferiores” (Hasenbalg
2005).
Esse pensamento racista foi, também, responsável pelas políticas de saúde pública e
reforma urbana, como a remoção das favelas, na cidade do Rio de Janeiro, a qual homens, mulheres

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e crianças negras sofreram negativamente a essas campanhas (Chalhoub 1996). Dessa forma,
percebemos que o direito e as instituições brasileiras eram racialmente desiguais no período pré e
pós-abolição.
Com a remodelação da cidade do Rio de Janeiro ocorrida no início do Séc. XX não só a
grande massa de popular que moravam ou trabalhavam no centro da cidade foram atingidas, mas,
também, os moradores dos subúrbios cariocas. Alterando, dessa forma, práticas culturais,
econômicas já entranhados nas comunidades que lá estavam estabelecidas antes da reforma
(Benchimol 1992, 277).
Existia na proposta e execução da reforma urbana razões sanitárias e políticas/ideológicas,
econômicas e fiscais, estas favorecendo a elite e o capital, já que havia a proibição do comércio de
rua, com aplicação de multas a quem desrespeitasse essas medidas. Dessa forma a receita do
município aumentou e os estabelecimentos comerciais passaram a vender mais (Benchimol 1992,
278).

Para isso, reformas foram concebidas visando a efetuar, durante a dec de 1920, a imposição de
projetos que, ancorados na tônica civilizadora, confrontassem uma diversidade de agentes
modeladores do espaço urbano e das relações sociais das classes populares. Buscando inscrever os
referenciais de Ordem e de Progresso, esses projetos instituíram uma identidade unificada e
previsível para a cidade capital. Esses reformadores sociais estiveram envolvidos com projetos de
reformas urbanas, educacionais e jurídicas a partir das quais inscreveram novas relações sociais no
espaço da cidade (Camara 2010, 77).
Essas medidas demonstravam que políticos e a elite considerando os problemas da
urbanização e modernização prejudicaram diretamente a heterogênea classe pobre carioca. Os
decretos do prefeito proibiram o comércio de diversos produtos e encampou uma luta contra os
ambulantes. Segundo o próprio Pereira Passos relatava,

comecei por impedir a venda pelas ruas de vísceras de reses, expostas em tabuleiros, cercados pelo
voo contínuo de insetos, o que constituía espetáculo repugnante. Aboli, igualmente, a prática rústica
de ordenharem vacas leiteiras na via pública, que iam cobrindo com seus dejetos, cenas estas que,
ninguém, certamente, achara dignas de uma cidade civilizada (Passos apud Benchimol 1992, 278).
As ações atingiram inúmeras famílias que dependiam desse tipo de comércio para viver, em
se tratando de um complexo cenário de recessão, o qual gerou desemprego e empurrava uma massa
para as categorias de subempregos. Esses indivíduos desempregados somavam-se, naquele
momento, aos prejudicados pelos decretos de Pereira Passos criando um contingente de
necessitados, ampliando as desigualdades sociais.
Segundo Benchimol (1992), havia uma grande quantidade de mendigos e desocupados nas
ruas da capital, o que era sempre associado aos índices de criminalidade urbana. A reforma Passos
encarregou-se de acabar com a presença desses indivíduos das ruas proibindo a mendicância em
1903. Contudo, podemos analisar que tais ações são de restrição de circulação e permanência de

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uma parcela da população negra e pobre, sem trabalho e sem moradia nas ruas centrais da capital.
Pereira Passos afirmava: “[...] muito me preocupei com a extinção da mendicidade pública, o que
mais ou menos tenho conseguido, de modo humano e equitativo, punindo os falsos mendigos e
eximindo os verdadeiros da contingência de exporem pelas ruas sua infelicidade” (Passos apud
Benchimol 1990, 278).
Esse fenômeno foi observado na capital havia muito tempo e constitui contradições
estruturais na formação da sociedade brasileira, baseada em um capitalismo tardio. No final do séc.
XIX, antes da abolição da escravidão, o trabalho desenvolvido por negros e negras, libertos ou não,
era considerado indigno pela elite. Com o fim da escravidão e o desenvolvimento da indústria e
comércio na cidade, o conceito de desocupação foi alterado, visto as mudanças de características
do que era considerado trabalho e emprego.
O processo migratório e o contingente de pessoas que já viviam na capital fluminense, não
foram absorvidos nos trabalhos formais, na indústria e no comércio, sobretudo em um contexto
de recessão econômica (Benchimol 1990). Os trabalhadores informais, em sua maioria negros,
carregavam os estigmas do período escravista de que tais serviços não eram dignos, ou seja, eram
considerados desocupados e, consequentemente, deveriam ser retirados das ruas da cidade.

Não eram mais os escravos de ganho que coloriam as ruas com seu alarido, mas negros e mulatos
tão “livres” quanto os imigrantes estrangeiros, especialmente os portugueses, já incorporados à
linguagem anedótica, depreciativamente, como “burros de carga” (afeitos a todo tipo de trabalho
pesado ou desqualificado) (Benchimol 1992, 280).
Na realização da profilaxia urbana a população indesejada foi enviada para outros bairros,
os mendigos eram recolhidos e passavam por exames, os inábeis ao trabalho eram enviados para o
asilo. Os considerados aptos para o trabalho eram classificados como vadios, incluindo nessa
análise os menores de idade, sendo entregues para o aparelho repressor e enquadrados no código
penal de 1890.
Tal fato está atrelado a um discurso racista produzido no século XIX, a partir de
experiências científicas europeias, que chegou ao século XX e afetou o trato com essa menoridade.

A assimilação desses ideais fora qual uma epidemia entre os homens letrados principalmente do final
do século e início do que muitos pensavam sobre a construção de uma identidade do elemento
brasileiro e a própria formação da sua nacionalidade. Estes ideais – o darwinismo social, o
positivismo de Comte e o evolucionismo de Spencer – informavam aos cientistas brasileiros os
perigos da constituição racial existente no país, o que, em última instância, impediria a construção
de uma nação civilizada (leia-se, branca, desenvolvida, ilustrada, industrializada). Estas verdadeiras
bases teóricas em muito ajudaram autoridades públicas e cientistas na arquitetura de planos que
visavam solucionar os “males” que os africanos e seus descendentes poderiam gerar na constituição
do “povo” desejado para o país (Nascimento 2001, 60).
A ação da polícia e dos juristas da época foram, de modo intenso, influídos pela escola de
criminologia italiana “positivista,” que acreditava que as características físicas dos indivíduos

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determinavam sua propensão ou não a cometer crimes. E, segundo esse pensamento o aparelho
repressor agia como um higienizador da sociedade, recolhendo menores, com base nas
características raciais, culturais e psicossociais (Fry 1985 apud Fischer, Grinberg e Mattos 2018,
181–82).

Entre os aspectos capazes de construir a localização de um “tipo social comum” para a infância
desvalida enunciaram-se as marcas de identificação das identidades, mediante as quais essa infância
foi percebida como outra. Demarcar as diferenças constituía-se como pedra de toque de um
pensamento científico e moderno que tinha, na individualidade e na independência dos sujeitos, a s
referência, paradoxalmente a um esforço empedernido dos setores encarregados manter a ordem,
em excluir das relações sociais estabelecidas o que não era o seu igual. Ao esforço em estigmatizar
as “classes perigosas” por seu estado de pobreza, associou-se a composição étnica da população
como mais um ingrediente justificador da matização dessas camadas sociais como deflagradora do
seu atraso (Camara 2010, 68).
Na formação policial havia uma preocupação com a identificação de criminosos natos,
conforme citado antes, inspirados nos estudos cientificistas europeus, isto posto não há como não
reconhecer que a atividade policial e a criação da categoria menor estivessem perpassadas por
princípios raciais (Vianna 1999, 103-105).
Ao analisar os castigos físicos na Marinha de Guerra, no início do século XX, Álvaro Pereira
do Nascimento discorre sobre a questão racial ser um dos fatores desses castigos. A maioria dos
marinheiros eram negros e tal fato era reconhecido como um dos grandes males da Marinha.

E boa parte dos que foram influenciados pelas ideais raciais do final do século XIX a “preguiça”, a
“incapacidade de progredir”, os vícios do jogo, do alcoolismo, das brigas, das violências sexuais, dos sambas,
do desperdício sem a previdência e tantos outros costumes reprovados pelo jovem oficial branco, eram
males inatos (ou “contingentes”) aos negros, que influenciavam os marinheiros de outras raças — mulatos,
caboclos, brancos e quase brancos (Nascimento 2001, 62).
O interessante é observar que o alistamento desses marinheiros, por diversas vezes, era
realizado compulsoriamente a partir da atuação policial, inclusive enviando menores para os
quadros das escolas de aprendizes. Ou seja, o indivíduo era detido ou preso e encaminhado para a
Marinha de Guerra para que ele fosse reeducado, reformado e pudesse se transformar em alguém
produtivo para o país (Nascimento 2001, 64–70).

De fato, desde as últimas décadas do século XIX, o pobre e o negro passaram a ser cada vez mais
alvos de políticas públicas truculentas e autoritárias. Nos discursos eram apontados como membros
das “classes perigosas” e, por isso mesmo, ameaças à segurança e ao bem-estar do cidadão e de suas
propriedades. Daí a criação de instituições que ao bem-estar do cidadão e de suas propriedades. Daí
a criação de instituições que intervinham nas habitações populares, na reurbanização da cidade, no
controle das doenças etc. De certo, à polícia restava a exclusão de certos indivíduos do espaço
público, já que, segundo os discursos destas autoridades, por serem pobres e/ou negras estariam
mais propensos ao crime e à proliferação de outros males (Nascimento 2001, 66).
Observando a legislação do período pós-abolição não encontramos uma terminologia
racial, contudo, é evidente que a prática policial revelava o contrário. Mesmo os códigos afirmando
a igualdade de todos perante a lei, na prática percebemos o tratamento diferenciado entre
indivíduos, principalmente relativos à raça.

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Não é mero acaso o fato de as primeiras medidas jurídico-policiais, como o incremento dos sistemas
de identificação e a preocupação com a reincidência, serem simultâneas ao início das discussões
sobre supostas causas hereditárias e orgânicas da vagabundagem através das ideias criminológicas
(Cunha 2002, 382).
Contudo, é possível observar avanços legais em relação ao menor, um tratamento jurídico
diferenciado a crianças e adolescentes e que aos poucos “foi sendo incorporado à legislação, com
repercussão na esfera da ação, sendo o Estado chamado a intervir” (Rizzini e Pilotti 2011, 99). Por
exemplo, o Código Penal de 1890 estabeleceu a inimputabilidade absoluta para as crianças até 9
(nove) anos. De 9 (nove) aos 14 (quatorze) anos, havia uma liberdade decisória por parte do juiz
para reconhecer a inimputabilidade, analisando se o menor havia ou não agido por vontade
própria5.
Percebemos que assim como ocorre na atualidade, as ações positivas dos legisladores em
relação à infância, figuravam muito mais no papel do que na prática, ou seja, os benefícios não
eram efetivados. Até mesmo porque a norma não refletia o comportamento da sociedade do
período, ademais diante das fontes analisadas, percebemos que o tratamento dispensado ao menor
era bem pior ao que se encontrava na letra da lei. As instituições assistenciais do período, religiosas
ou não, a partir da percepção do menor como um ser carente e abandonado, guiavam suas ações
em torno de uma prática assistencialista e repressiva.
Na segunda década do século XX, foi promulgado o primeiro Código de Menores, que
acresceu o controle sobre crianças e adolescente a partir de uma centralização de poder e ação nas
mãos do juiz.
Apresentando o padrão dos menores abandonados e órfãos, em completa ou parcial
ausência dos pais/responsáveis; os inadaptados, que se encontravam em dificuldade de adaptação
familiar e comunitária; e os infratores, autores de violação penal, como aqueles que representavam
um perigo moral para a sociedade e consequentemente reforçando que “a concepção menorista
resume a criança sem família como incapaz, perigosa, marginal, delinquente, enfim um ‘menor”
(Anjos e Rebouças 2014, 9).
A ideia de proteção à infância foi intensificada a partir da segunda década do século XX,
quando ocorreu a tentativa de uma normatização de condutas, domesticando corpos e
“delimitando fronteiras entre o normal e o patológico” (Silva Junior 2010). Segundo os pensadores
na época, as famílias deveriam ser formadoras de cidadãos capazes de fazer o país prosperar social
e economicamente, qualquer desvio desse “objetivo maior” acarretava a responsabilização dessas

5
BRASIL. Código Penal. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htm Acessado em 10/05/2019

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famílias, justificando a intervenção do Estado. “O lar burguês tornou-se referencial e modelo


sanitário, moral e arquitetônico das condições de existência na cidade” (Silva Junior e Garcia 2010).
Isto posto, ao longo das três primeiras décadas do século XX “surgiram os reformatórios
e as escolas premonitórias e correcionais, para onde foram distribuídos ‘menores abandonados e
viciosos” (Rizzini e Pilotti 2011, 223). Essas denominações substituindo o termo asilo indicam
mudanças na concepção da assistência, destinada, a prevenir as desordens e recuperar os desviantes.

Menor quase sempre negro e quase sempre pobre.


Ao estudar as instituições que abrigavam esses menores através dos processos
administrativos de pedidos de subvenção, que as instituições filantrópicas solicitavam ao Ministério
da Justiça e Negócios Interiores — MJNI, de 1940 a 1956, um livro denúncia do ex-diretor do
Serviço de Atendimento a Menores — SAM6 e documentos de uma Comissão Parlamentar de
Inquérito, de 1952, sobre irregularidades do SAM juntamente com a bibliografia sobre o assunto
foi possível perceber que o termo menor possuía, e ainda possui, como foi assinalado já algumas
vezes nesse texto, uma perspectiva de classe e raça, já que era utilizado, na maioria das vezes, para
se referir as crianças e adolescentes pobres e negros.
Há nos documentos oficiais como: leis, decretos, etc., informações muito importantes para
a construção histórica sobre as crianças e os adolescentes no Brasil e a ausência de referências em
relação à cor e à origem é relevante para compreendermos a política menorista do Estado, o qual
recolhia jovens em instituições asilares, premonitórias e correcionais a partir de um discurso de
“higiene pública”, mas, que percebemos práticas racistas nas políticas assistenciais no Estado.

[...] ao estarmos atentos a estas estruturas institucionais que se voltam para a infância sabemos que
não surgem numa perspectiva de proteção da criança, mas sim de proteger a sociedade de crianças
tidas como desviantes, perigosas e violentas. As vidas de nossas crianças negras sempre foram
referidas e vistas como “infâncias perigosas”. Quando o Estado brasileiro larga a sua condição de
Colônia passa a pensar em medidas para a infância, não porque tinha como intenção proteger a
infância, mas sim de proteger a si mesmo dos perigos causados pelo crescimento de uma população
negra e pobre que estava vivendo em completo estado de marginalidade (Nunes 2016, 10).
Na publicação Arquivos do Serviço de Atendimento a Menores, divulgada pelo Ministério
da Justiça e Negócios Interiores (MJNI), em 1942, o diretor da referida instituição, o Dr. Meton de

6
Atendendo a reivindicação da sociedade e a política de controle social instituída no país, em 1941, foi criado o SAM
– Serviço de Atendimento a Menores. Getúlio Vargas sancionou o Decreto-lei nº 3.799 de 05 (cinco) de novembro,
em que transformava o Instituto Sete de Setembro, antigo Abrigo de Menores, em SAM — Serviço de Assistência a
Menores. Um órgão burocrático e técnico, que sistematizava, fiscalizava, regulamentava as verbas orçamentárias
destinadas à Assistência Social e orientador técnico e pedagógico das instituições oficiais e privadas de atendimento ao
menor. O SAM ficava subordinado ao MJNI e ao Juizado de Menores do Distrito Federal. Instituições oficiais de
assistência ao menor já existiam no Distrito Federal e em outros Estados. Contudo, o Serviço de Assistência a Menores
(SAM) pode ser considerado o primeiro órgão nacional de regulação, fiscalização e assistência técnica e material de
atendimento ao menor.

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Alencar Neto escreveu um artigo em que fez uma análise sobre a delinquência dos menores
internados nas instituições vinculadas ao SAM.
Em seu texto, o diretor fez importantes ponderações sobre as causas da delinquência
afastando-se, mas não deixando de usá-las em determinados momentos, das ideias racialistas e
cientificistas do final do séc. XIX e início do XX e argumentava que o comportamento desviante
desses menores se dava pelo fato de que o desenvolvimento cognitivo e as percepções de conceitos
abstratos, de justiça e de responsabilidade era um processo paulatino e que somente na fase adulta
esse processo estaria completo. Outras características próprias de um corpo em crescimento e em
transformação, também foram apontadas por ele como fatores de comportamentos desviantes,
como a questão hormonal, por exemplo (Neto 1942, 57).
Atrelado a questões físicas e psicológicas, Meton Alencar Neto atribuiu, também, a
influência do meio social a que essas crianças e adolescentes eram expostas e às características
psicológicas de aceitação social vivenciadas por todos os jovens, sendo considerados, por exemplo,
imitativos e sugestionáveis (Neto 1942, 59). Havia, segundo o autor, uma “classificação padrão”
do coeficiente intelectual dos “menores delinquentes”. Sendo, na maioria das vezes crianças e
adolescentes com um coeficiente baixo, “dos 802 delinquentes que frequentaram os serviços
médicos, psicotécnicos e sociais do Serviço de Assistência a Menores, procedeu-se a apuração do
Q.I. em 476. Tão só 16,07% apresentam Q.I. acima de 80.” (Idem, 61). E o diretor apresentou,
inclusive, estudos que demonstravam que existiam diferenças entre o coeficiente intelectual e o
tipo de crime cometidos.

Os resultados de estudos experimentais destinados a esta comprovação não bastam ainda. Parece,
todavia, que os delinquentes de nível alto se especializam em roubo, furto, contrafações, chantagens,
ao passo que aqueles de nível baixo, nos atentados contra pessoas, tais como assassínio, homicídio,
violência carnal (Idem, 60).
O autor expunha em seu texto que considerava que muito dos déficits cognitivos dessas
crianças se dava pela falta de formação educacional ou por um curso primário deficiente.
Informando, inclusive, que o Distrito Federal possuía uma carência de escolas primárias para
atender essas crianças. Ele estabeleceu em seu texto uma equivalência entre menores delinquentes
e desvalidos na questão de desenvolvimento cognitivo, ou como demonstrava no artigo o
“quoeficiente intelectual (Q.I)” dos jovens em situação de pobreza, abandonados ou órfãos e os
em conflito com a lei eram igualmente baixos.
É importante discutirmos que do final do século XIX e até a década de 1960 os testes de
inteligência foram amplamente utilizados para corroborar o discurso e as políticas racialistas em
várias partes da Europa e nos EUA.

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No início do séc. XX foi proposto a aplicação dos testes em milhares de indivíduos durante
a primeira guerra mundial o que gerou dados em massa e uma pesquisa inédita A Study of American
Intelligence (1923), do psicólogo Carl Brigham, professor da Universidade de Princeton, que
desempenhou um importante papel na consolidação das interpretações racialistas para a variação
da capacidade mental. “Interessado no estudo da associação entre hereditariedade e inteligência,
Brigham estava convencido da superioridade cognitiva da raça branca ou “nórdica” frente aos
demais grupos raciais que se faziam presentes na sociedade norte-americana” (Keyles apud Maio e
Maio 2017).
O Psicólogo social e antropólogo canadense radicado nos EUA, Otto Klineberg (1899-
1992) fez críticas a utilização dos testes de inteligência, pois os considerava uma ferramenta para
legitimar hierarquias raciais. A partir de diversos estudos realizados sobre as relações entre negros,
brancos, indígenas e imigrantes nos EUA e posteriormente no Brasil como professor da
Universidade de São Paulo, entre 1945 e 1947, investigando a relação dos testes de inteligência e
condições socioeconômicas em escolas do Rio de Janeiro, o autor apresentou a teoria de que fatores
ambientais eram preponderantes no aprendizado formal e informal dos indivíduos, não
considerando que a inteligência estivesse atrelada a questão racial. Contudo, Klineberg concordava,
através de suas pesquisas, com as pesquisas de autores brasileiros, como: Arthur Ramos e Gilberto
Freyre sobre a positividade da miscigenação para as relações sociais no Brasil.
Meton Alencar Neto procurava com seu artigo explicar a criminalidade de crianças e
adolescentes a partir das pesquisas realizadas por ele dentro do Serviço de Atendimento a Menores
e diante da realidade vivenciada neste, embora apontasse em seu estudo o quoeficiente intelectual
como fator do baixo rendimento escolar e dificuldades de aprendizagem de meninos e meninas no
SAM, fez, também, análises sobre as questões econômicas do período, os índices de desigualdades
sociais e a densidade demográfica como indicadores que contribuíam com o aumento da
criminalidade e, até mesmo do abandono desses jovens, sendo estes enviados às instituições que
compunham o SAM.
Contudo, é interessante observar que Meton entendia que fatores endógenos se
sobressaiam em relação aos exógenos quando se tratava de criminalidade (Neto 1942, 71),
relativizando a questão econômica como determinante para que jovens cometessem crimes, pois
segundo ele: “Entre os menores delinquentes tanto se encontram os que procedem de famílias

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pobres, como os de pais abastados ou ricos. Quanto aos últimos não se podem desprezar a
influência exercida pela criadagem, tantas vezes prejudicial” (Neto 1942, 64) (Grifo meu) 7.
A discussão a respeito do menor é importante pois, estamos, também, analisando a
totalidade da realidade social que ocupa a sociedade. Ao analisar a criança e o adolescente atendido
por instituições asilares, premonitórias ou correcionais, estamos analisando “[...] categoria social do
tipo geracional socialmente construída” e “[...] relativamente independente dos sujeitos empíricos
que a integram, dado que ocupa uma posição estrutural” (Sarmento s.d., 3), analisando o menor
sob o aspecto de um objeto que reflete a sociedade.
Para entendermos as crianças como atores sociais em toda a sua potencialidade e
diversidade, é essencial observar as diferenças, sejam elas estruturais, subjetivas, materiais, ou de
qualquer outra natureza, na forma como vivenciam a infância e onde essa vivência ocorre,
especialmente ao analisamos a situação das crianças no Brasil, em particular no contexto da capital
federal, o Rio de Janeiro. Nesse sentido, o relatório de Meton Alencar Neto fornece subsídios
sólidos para respaldar essa afirmação.
O ex-diretor do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) continua a mencionar, no texto,
que no período de 1936 a 1941, foram examinados 805 menores em situação de transgressão no
laboratório de Biologia Infantil, esse número não representa a totalidade das crianças e adolescentes
internados nos institutos do SAM, uma vez que o autor realizou uma análise amostral. Neste
estudo, Meton de Alencar Neto estava investigando a incidência de crimes praticados por menores,
com foco na faixa etária e na localidade onde esses crimes ocorreram. No que se refere aos tipos
de crimes investigados, ele evidenciou uma grande proporção relacionada aos danos, que podem
variar de níveis a graves, totalizando 22% dos crimes registrados. Meton categorizou os delitos em:
a) Ferimentos; b) Furtos; c) Vadiagem; d) Atentados ao pudor; e) Contravenções; f) Roubos; g)
Assassinatos; h) Homicídios; i) Abortos (Neto 1942, 91).
Outro ponto levantado pelo autor diz respeito ao local da ocorrência de crimes cometidos
por menores, o que se torna um aspecto crucial para a análise do silenciamento em relação à questão
racial. Ao examinarmos os índices de criminalidade por localidade na cidade do Rio de Janeiro,
podemos compreender os processos de desigualdades raciais, que são amplificados pelas diversas
reformas urbanísticas. Entretanto, no relatório, o Diretor do Serviço de Assistência ao Menor

7
É importante analisarmos a criminalização do serviço doméstico no Rio de Janeiro nas primeiras cinco décadas do
séc. XX e a questão racial atrelada a essa criminalização. No processo do fim da escravidão havia muitas preocupações
em relação ao negro livre e como citado em parágrafos anteriores em relação ao mercado de trabalho e a mão de obra
negra nesse mercado. Existia, segundo analisou Célia Maria Marinho de Azevedo (1987) no livro Onda Negra, Medo
Branco, um processo de constituição do medo em relação ao negro e isso conduziu a agenda política e a construção de
um imaginário ratificado por um discurso cientificista que atribuía ao negro a preponderância ao ócio e ao crime
(Azevedo 1987).

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(SAM) não conduz uma análise da criminalidade com base na cor, mas sim com base no espaço
urbano.
Mesmo que a cor não tenha sido explicitamente abordada na fonte, o silêncio não apaga a
disparidade racial evidente nos padrões de vida que podem ser identificados como resultado de um
racismo institucional claramente estruturado.
Uma pesquisa realizada por Meton de Alencar Neto utilizou a distribuição da criminalidade
no Distrito Federal, com base na divisão dos Distritos Sanitários da Saúde Pública, considerando-
a mais adequada para a pesquisa, uma vez que a amostragem foi obtida no laboratório de biologia
infantil do Serviço de Assistência ao Menor (SAM). Para fornecer uma compreensão mais precisa
dos bairros onde esses distritos sanitários estavam localizados, elaboramos um mapa que identifica
os distritos sanitários e os bairros correspondentes àquela época.

Figura 1 — Mapa dos Distritos Sanitários e seus respectivos bairros - Ano 1940
Fonte dos dados e digitalização: Santos K. S. et al, 2015. Estruturação: Julia Novaes de Barros Peixoto

Classificação de Incidência de Distritos Sanitários Percentual (%) Total de Crimes


crimes (amostra)
Primeiro I 23,3 179
Segundo IX 13,0 105
Terceiro X 10,4 84
Quarto XI 6,8 56
Quinto II 5,4 43
Sexto IV 5,3 40
Sétimo VIII 4,0 33

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Oitavo XIII 3,8 31


Nono III e VII 3,2 (cada) 26 (cada)
Décimo V e XII 1,8 (cada) 15 (cada)
Décimo primeiro XV 0,8 7
Décimo segundo XIV 0,7 6
Décimo terceiro S/R 15 122

Tabela 1 — Densidade da Criminalidade de Menores no Distrito Federal, segundo os Distritos Sanitários


Fonte: NETO, Meton de Alencar. Arquivos do Serviço de Atendimento a Menores. Ministério da Justiça e Negócios
Interiores. Volume I. Junho/1942
De acordo com os dados apresentados no relatório identificamos que havia uma maior
quantidade de crimes que ocorriam no 1º Distrito Sanitário, 23.3% da criminalidade de menores
no Rio de Janeiro, que abrangia a área do Centro, cais do porto, Saúde, Gamboa, parte do Mangue,
as esplanadas do Castelo e do Senado, Mercado, sopés de Santa Teresa, Lapa e as ilhas de
Governador e Paquetá. Segundo o autor nesse distrito ocorreram os maiores números de
ferimentos e furtos seguido pelos roubos, vadiagem, atentados ao pudor e contravenções (Neto
1942, 72).
Nessa área, havia sete escolas primárias, como referência pelo diretor do Serviço de
Assistência ao Menor (SAM). Além disso, o autor notificou a presença de “templos protestantes e
muitos centros espíritas” (Neto 1942, 72). Ele descreveu que no 1º distrito se concentrava a maior
parte do comércio do Rio de Janeiro, o que resultava em uma circulação significativamente maior
de pessoas durante o dia.

Mas, há numerosas residências de família nos sobrados das casas comerciais e em apartamentos; são
inumeros os hotéis, pensões e hospedarias; abundam as “vilas”, “avenidas” e as habitações coletivas,
monturos humanos, que o vulgo apelida de “casas de cômodos”, “cortiços” e “cabeças de porco”.
As pensões estão abertas a estudantes e empregados no comércio. Exceto em determinados
apartamentos e em certos altos de loja, habitados por famílias, tanto da chamada alta sociedade como
da classe média ou pequena burguezia (Neto 1942, 75).
É possível imaginar que havia naquele espaço uma diversidade de pessoas que
movimentavam a área do centro urbano da capital e que, em razão disso, ocorria a maior parte dos
delitos, praticados por adultos ou menores, explicada por um número maior de crimes contra a
propriedade, como os furtos. Podemos analisar, também, que por ser um centro comercial, em que
circulavam o capital e os comerciantes a presença da polícia era mais significativa, assim como sua
ação mais ostensiva.
O autor analisava que a população daquela região era

um amontoado sortido de gente vária, de famílias exalando decomposição moral, algumas em vias
de desintegração, vivendo em condições agudas de miséria e numa promiscuidade que dilue os
caracteres mais peregrinos. A vida noturna tambem fervilha de rixas e um mercadejar suspeito a
agita incessantemente: ao lado de muitas de suas ruas alinham-se aquelas alamedas esconsas dos

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“destinos desgraçados, onde o vício estruge e ouvem-se os brados da danação carnal” (Neto 1942,
75).
Explicando que este distrito sanitário, conforme demonstra o mapa apresentado,
compreendia os bairros da Saúde e Gamboa que eram considerados

antros de capoeiras e capadócios, gente de arrelia, dextra na navalha e dada a vícios; hoje é moradia
de estivadores e operários, mas, ainda acoita muito malandro amigo da jogatina e da gatunice. Atinge
uma nesga do Mangue, onde fermenta o meretrício mais sórdido, preferido pela marujada
internacional”. A esplanada do Senado, salpicada de casas de “rendez-vous”, e a Lapa, coalhada de
alcouces e lupanares, botequins e casas de batota, lugares em que a virtude fenece sem abrigo. Um
bochorno quente se escôa das casas, tresanda nas ruas e becos, irritando as pituitárias e excitando a
imaginação já de si exaltada, de adolescentes dos dois sexos. Seus moradores revezam o álcool, o
deboche e o bismuto; e é daí a maior parte da gente que atulha as enfermarias e ambulatórios da
Fundação Gaffrée e Guinle, para sífilis e doenças da pele. Verdadeira universidade de desmando,
corrupção e malandragem, cujas aulas se ministram na via pública e em calão (Neto 1942, 75).
Ao tratar o local como mal frequentado e justificando o alto índice de criminalidade, o autor
da fonte nos apresenta mais uma vez o 'não dito racial' que permeia a fonte, não sendo explícito
que os bairros citados eram frequentados por homens, mulheres e crianças negras, todavia ele nos
dá pistas quando, por exemplo, cita que aquele distrito sanitário era “antros de capoeiras”. Um
excerto da obra de Eduardo Silva corrobora nosso argumento:

... os moradores da Travessa Onze de Maio, no Centro, queixavam se dos “meninos desocupados”
que proferiam palavrões e apedrejavam as pessoas. Maltas de menores desocupados cometiam toda
a sorte de desatinos, ainda, no Bulevar 28 de Setembro, em Vila Isabel. O mesmo acontecia no
subúrbio de Irajá e nas ruas transversais à Avenida Salvador de Sá, no Centro. Também nas ruas do
Sanatório e Guanabara, e no Beco João Pereira, na Glória, “vagabundos” reuniam-se para promover
desordens e desrespeitar a moralidade das familias. O mesmo acontecia no Bulevar São Cristóvão e
nas ruas Barão de Iguatemi, Saldanha da Gama e, por fim, nas travessas Araújo e Soledade, no
Engenho Velho. Zona norte, zona sul e centro: por toda parte os subterrâneos transbordam à luz
do sol. Conforme avançamos no tempo, contudo, a ênfase vai se deslocando dos “bandos de
capoeiras” para as “maltas de menores desocupados”. O período das grandes reformas urbanísticas
além da atuação do Senhor Sampaio Ferraz — parece ser, também aqui, um divisor de águas (Silva
2002, 122).
No panorama social do período, os hábitos e as virtudes surgiram como distintivos que
delineavam as origens e linhagens sociais dos indivíduos, justificando intervenções externas para
moldar uma nova identidade nacional alinhada ao progresso e à civilização. Diversos elementos,
como aspectos genéticos, raciais, sociais, morais, psicológicos e econômicos, foram apontados
como influências para o surgimento de comportamentos patológicos e desvios, caracterizando
aqueles considerados atrasados, imorais, desviados, prostitutas, malandros, além de crianças
rotuladas como delinquentes, abandonadas e vagabundas. Esses delineamentos estabeleceram os
limites nos quais as disparidades e exclusões sociais foram reiteradas por meio de iniciativas
governamentais e da sociedade civil. Nesse contexto, foi concebido um novo nacionalismo
fundamentado em aspectos culturais e políticos, no qual a educação e o cuidado com a infância
assumiram papéis proeminentes em diversas esferas discursivas da época, como as médicas,
jurídicas, urbanísticas e educacionais. Com esse propósito, propuseram-se e referenciaram-se

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mecanismos de intervenção e controle como elementos contribuintes para a preservação da ordem


social e da transformação do país. Através de práticas de higienização, medicalização, controle e
organização dos corpos e do ambiente urbano, buscou-se fomentar a modernidade associada a
conceitos como limpeza, beleza, planejamento, educação, saúde e trabalho (Câmara 2010, 72).

Os mapas da segregação social demarcam claramente a sobreposição entre a ascendência afro e as


muitas periferias urbanas do Brasil. Favelas e mocambos geralmente têm suas origens nos
quilombos, nas emancipações, na abolição, e em processos de gentrificação que expulsaram
afrodescendentes desproporcionalmente dos centros urbanos. Uma geração pioneira de ativistas
afro-brasileiros emergiu dos movimentos sociais urbanos do país. Os corpos vitimados pela
violência nas favelas são majoritariamente negros. As estatísticas só reforçam o que é óbvio para
quem presta a menor atenção: os afrodescendentes ocupam desproporcionalmente os espaços
urbanos pobres e informais do Brasil. Até mesmo os moradores brancos das favelas, que são uma
minoria significativa, acabam transformados em “quase pretos de tão pobres” (Fischer 2020, 3).
O silêncio sobre a cor garantia uma falsa ideia de equidade racial, permitindo que o
preconceito racial pudesse existir sem provocar agitações sociais, ou seja, “representou um
compromisso profundamente enraizado e estratégico com a ética do silêncio racial, que abarcava
os sonhos de real igualdade ao mesmo tempo em que reafirmava preconceitos raciais” (Fischer,
Grinberg e Mattos 2018, 177).
As teorias racistas ganharam crescente notoriedade, levando a uma percepção cada vez mais
difundida de que os indivíduos negros eram considerados como tendo características negativas que
os colocavam em categorias estigmatizadas, perpetuando a ideia de que faziam parte de grupos
socialmente marginalizados (Chalhoub 2021, 88).
Essa operação permitiu que as classes mais influentes transformassem crenças racistas em
padrões aceitos pela sociedade, estabelecendo, desse modo, uma segregação de funções sociais ao
rebaixar e restringir a igualdade de participação das comunidades negras na sociedade. Essa base
ideológica deu origem a um processo de ocultação da presença negra na sociedade brasileira,
criando 'um determinado ponto de vista que nega o reconhecimento de sua existência', um
mecanismo de rejeição do outro, manifestando-se como um meio de bloquear e permeabilizar as
relações individuais, coletivas e institucionais, promovendo e perpetuando o racismo dissimulado
que é característico das dinâmicas étnico-raciais em nosso país.
Com base no positivismo evolucionista da época e na psiquiatria, os grupos dominantes
europeizados não apenas reivindicaram um território físico, mas também uma supremacia
simbólica, materializada em um ambiente construído que exaltava a racionalidade instrumental, o
código moral e os costumes europeus. Esse processo resultou na diluição da herança cultural,
educacional e histórica do país, impactando de forma particularmente prejudicial as comunidades
negras, devido à perseguição e à estigmatização de suas maneiras de vida e seu rico patrimônio
cultural, relegando suas lembranças ao limbo do desrespeito e da negligência (Luz 2020);

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Como podemos ver a seguir nas fotos analisadas na pesquisa muitas das crianças internadas
nas unidades do SAM eram negras, corroborando a discussão sobre a construção da categoria
menor pelo aparelho estatal, a invisibilidade da categoria raça na documentação oficial e o modo
como essas crianças eram tratadas nas quatro primeiras décadas do século XX8.

Figura 2 — Internos da Escola João Luiz Alves durante Festa de Natal. Ilha do Governador, Rio de Janeiro, RJ.
19/12/1954 – Autor não informado
Fonte: Arquivo Digital. Arquivo Nacional9

8
Analisamos muitas reportagens e dossiês que continham fotos das instituições ligadas ao SAM. Dentre as várias fotos
há a percepção visual de que havia uma quantidade maior de crianças negras do que brancas. Alguns estudos nos
ajudaram, como: (Vianna 1999) CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Intenção e gesto: pessoa, cor e a produção cotidiana
da (in)diferença no Rio de Janeiro, 1927-1942, Rio de Janeiro (RJ): Presidência da República, Arquivo Nacional, 2002.
9
Foto: Almoço dos internos do Instituto Premonitório XV de Novembro. Quintino, Rio de Janeiro, RJ. 19/12/1954
– Autor não informado. Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos CODAC- Arquivo Digital do
Arquivo Nacional - Disponível em:
http://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1467118&v_aba
=2 Acessado em: 24/05/2019

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Figura 3 — Festa de Natal na Escola João Luiz Alves. Ilha do Governador, Rio de Janeiro, RJ.
19/12/1954 – Autor não informado
Fonte: Arquivo Digital. Arquivo Nacional10

Figura 4 — Almoço dos internos do Instituto Premonitório XV de Novembro. Quintino, Rio de Janeiro,
RJ. 19/12/1954 – Autor não informado.

10
Foto: Almoço dos internos do Instituto Premonitório XV de Novembro. Quintino, Rio de Janeiro, RJ. 19/12/1954
– Autor não informado. Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos CODAC- Arquivo Digital do
Arquivo Nacional - Disponível em:
http://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1467118&v_aba
=2 Acessado em: 24/05/2019

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Fonte: Arquivo Digital. Arquivo Nacional11

Portanto, ao explorarmos as políticas e práticas relacionadas a crianças e adolescentes no


Brasil, com ênfase nas décadas de 1940 a 1956 por meio das fontes históricas aqui apresentadas,
bem como evidências visuais das crianças internadas nas unidades do Serviço de Atendimento a
Menores (SAM), é a clara evidência de que o termo “menor” estava intrinsecamente ligado a
perspectivas de classe e raça. Era frequentemente usado para se referir a crianças e adolescentes
pobres e negros, revelando uma discriminação sistêmica enraizada no sistema. Essa realidade revela
a existência de um racismo institucional que influenciou as políticas de assistência à infância no
Brasil.
A falta de referências explícitas à cor e à origem nos documentos oficiais era, na realidade,
uma estratégia que perpetuava a falsa ideia de equidade racial, enquanto o preconceito racial
persistia silenciosamente. A sociedade brasileira foi moldada por ideologias racistas que
estigmatizavam e marginalizavam as comunidades negras, relegando-as a um estado de
desigualdade e exclusão. “Como entender os processos pelos quais as desigualdades raciais se
perpetuaram no Brasil quando os registros oficiais muitas vezes silenciaram a questão da raça e
quando a disparidade racializada nos padrões de vida raramente se deveu a um racismo institucional
explicitamente articulado?”
Conquanto essa análise não só lança luz sobre a histórica desigualdade racial no tratamento
de crianças e adolescentes, mas também destaca a importância de uma abordagem crítica para
entender como a sociedade lida com a infância e a juventude. Já que as implicações das políticas e
práticas analisadas neste capítulo não se limitam ao passado, mas têm relevância contemporânea.
Promover a igualdade racial e eliminar o racismo institucional continua sendo um desafio vital para
a sociedade brasileira.

Considerações Finais
Ao explorar as práticas e políticas relacionadas a crianças e adolescentes no Brasil durante
as décadas de 1920 a 1956, evidenciamos uma conexão intrínseca entre o termo “menor” e
perspectivas de classe e raça. O uso recorrente desse termo revelou uma discriminação sistêmica
profundamente enraizada, destacando a prevalência do racismo institucional que permeou as
políticas de assistência à infância no país.

11
Foto: Almoço dos internos do Instituto Premonitório XV de Novembro. Quintino, Rio de Janeiro, RJ. 19/12/1954
– Autor não informado. Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos CODAC- Arquivo Digital do
Arquivo Nacional - Disponível em:
http://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1467118&v_aba
=2 Acessado em: 24/05/2019

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A análise dos documentos oficiais, mesmo com a ausência de referências explícitas à cor e
origem, revelou uma estratégia que perpetuava a falsa ideia de equidade racial. Esse silêncio
estratégico permitiu a existência silenciosa do preconceito racial, contribuindo para a construção
de uma narrativa que ocultava as disparidades e exclusões sociais. Uma sociedade, influenciada por
ideologias racistas, estigmatizava e marginalizava as comunidades negras, perpetuando um estado
de desigualdade e exclusão. A discriminação racial, embora não explicitamente articulada nos
registros oficiais, era evidente nos padrões de vida e nas políticas adotadas, contribuindo para a
construção de um ideal de uma infância racializada como “perigosa” e desviante.
A análise dessas práticas históricas destaca a importância de uma abordagem crítica para
entender como a sociedade lida com a infância e a juventude. As implicações dessas políticas
perduram, reforçando a necessidade urgente de promover a igualdade racial e eliminar o racismo
institucional. O desafio persistente reside em reconhecer e desconstruir as estruturas que
historicamente perpetuaram a desigualdade racial, garantindo que as futuras políticas e práticas não
apenas reconheçam, mas também combatam as disparidades raciais na infância e adolescência
brasileiras.

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Fabíola Amaral Tomé de Souza | Infância, Raça e Classe Social: As Políticas de Assistência a Menores no
Brasil (1920-1960)

Arquivo Nacional do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro/RJ


BRASIL. Código Penal. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890
Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Relatório das Atividades do Exercício de 1942 –
Biblioteca Nacional
Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Relatório das Atividades do Exercício de 1946 –
Biblioteca Nacional
Revista Brasileira de Cartografia

***

Recebido: 09 de novembro de 2023


Aprovado: 10 de março de 2024

200
Seção livre
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.44293

Cirurgiões militares e seus requerimentos à esfera régia: o uso dos


regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de
Minas Gerais (1771/1807)*

Military surgeons and their requirements to the royal sphere: the use of military
regiments as a space for social mobility in the captaincy of Minas Gerais (1771/1807)

Cirujanos militares y sus demandas en la esfera real: el uso de los regimientos militares
como espacio de ascensión social en la capitanía de Minas Gerais (1771/1807)

Ana Paula Pereira Costa**


https://orcid.org/0000-0002-8008-1650

Pâmela Campos Ferreira***


https://orcid.org/0000-0002-8179-103

RESUMO: O presente artigo busca levantar requerimentos e petições de cirurgiões de distintos


Regimentos Militares na capitania de Minas Gerais, que foram encaminhados à esfera monárquica
entre o período de 1771 a 1807. Primeiramente, é preciso destacar que o acervo documental a ser
utilizado é composto por requerimentos existentes no Arquivo Histórico Ultramarino (AHU).
Trabalharemos, portanto, com a chave empírica representada por esses requerimentos/petições,
pois acreditamos na hipótese de que cirurgiões ligados às hierarquias militares se utilizavam desse
espaço como meio de ascenderem socialmente.
Palavras-chave: Cirurgiões. Regimentos Militares. Requerimentos. Saúde.

ABSTRACT: This article seeks to raise requests and petitions from surgeons from different Military
Regiments in the captaincy of Minas Gerais, which were sent to the monarchical sphere between
the period 1771 and 1807. Firstly, it is necessary to highlight that the documentary collection to be

*
Pesquisa financiada pela Fapemig e pela Capes.
**
Professora Adjunta da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutora em História Social (UFRJ). E-mail:
[email protected].
*** Professora no Instituto Federal do Mato Grosso, Campus São Vicente. Doutora em História Política e Social (UFJF).

E-mail: [email protected].

201
Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n.1, 2024
Ana Paula Pereira Costa & Pâmela Campos Ferreira | Cirurgiões militares e seus requerimentos à esfera
régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

used is composed of requests existing in the Overseas Historical Archive (AHU). We will therefore
work with the empirical key representes by these requests/petitions, as we believe in the hypothesis
that surgeons linked to military hierarchies used this space as a means of social advancement.
Keywords: Surgeons. Military Regiments. Requirements. Health.

RESUMEN: Este artículo busca suscitar pedidos y peticiones de cirujanos de diferentes


Regimientos Militares en la capitanía de Minas Gerais, que fueron enviados al ámbito monárquico
entre el período de 1771 a 1807. existentes en el Archivo Histórico de Ultramar (AHU). Por tanto,
trabajaremos con la clave empírica que representan estas solicitudes/peticiones, ya que creemos en
la hipótesis de que los cirujanos vinculados a las jerarquías militares utilizaron este espacio como
medio de ascenso social.
Palabras clave: Cirujanos. Regimientos Militares. Requisitos. Sanidad.

Como citar este artigo:


Costa, Ana Paula Pereira; Ferreira, Pâmela Campos. “Cirurgiões militares e seus requerimentos à
esfera régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas
Gerais (1771/1807)”. Locus: Revista de História, 30, n. 1 (2024): 201-220.
***

Introdução
O presente artigo busca analisar requerimentos e petições de cirurgiões de distintos
Regimentos Militares na capitania de Minas Gerais, existentes no Arquivo Histórico Ultramarino
(AHU), presentes na Biblioteca Nacional Digital Brasil, e que foram encaminhados à esfera
monárquica entre o período de 1771 a 1807. Como hipótese central defendemos a ideia de que
cirurgiões ligados às hierarquias militares se utilizavam desse espaço como meio de ascenderem
socialmente.
Em relação ao quadro documental aqui elencado, utilizamos o número de dez
requerimentos trocados entre a esfera régia e os atores históricos situados na capitania de Minas
Gerais (demandantes de determinadas questões). Dentre esses dez requerimentos, cinco pertencem
às décadas finais do século XVIII, e os outros cinco ao início do XIX. Tais documentos estão
inseridos no Arquivo Histórico Ultramarino e configuram o enquadramento empírico do presente
artigo.

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Ana Paula Pereira Costa & Pâmela Campos Ferreira | Cirurgiões militares e seus requerimentos à esfera
régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

O recorte temporal leva em conta os anos de 1771 a 1807, momento em que mapeamos
diversos requerimentos de distintos homens que atuaram como cirurgiões (nas categorias ajudante
e mor, como a frente se verá). Esses sujeitos exerceram seus ofícios em Regimentos militares
existentes na capitania de Minas Gerais. O número integral de regimentos, unidades militares e
praças, bem como unidades de infantaria que existiram na América Portuguesa entre finais do
século XVIII e início do XIX, não foi aqui computado.
Entretanto, tendo em vista o levantamento e análise dos manuscritos presentes no Arquivo
Histórico Ultramarino, conseguimos identificar títulos que conferiam patentes a variados
cirurgiões. Dentre eles, segue: cirurgiões de Regimento de Cavalaria Regular de Minas Gerais,
Regimento de Cavalaria de Linha, Regimento de Cavalaria Paga, Regimento das Minas, Tropas
Pagas de Dragões, Regimento de Cavalaria Auxiliar.
Neste sentido, o artigo busca contribuir com um campo de abordagem que tem se tornado
cada vez mais profícuo na historiografia brasileira nos últimos anos, a saber, a “nova história
militar”. Durante algum tempo, a história militar foi marginalizada devido sua rotulação de história
factual e, portanto, não problematizadora do social. No contexto de renovação historiográfica
implementado pelo movimento dos Annales na primeira metade do século XX, a história militar
perdeu o atrativo temático. Como se sabe, a partir desse movimento, o estudo das esferas
econômica e social passaram a se sobrepujar ao político. Pela sua associação a esfera política,
verificada desde o século XIX, as críticas dirigidas a este campo foram também direcionadas ao
estudo dos fenômenos militares (Restier e Loureiro 2012, 93).
Todavia, nas últimas décadas do século XX, os temas militar e político retornaram às
pesquisas nas ciências humanas e na história. Em finais do século XX, houve o que René Rémond
chamou de “retorno da história política”. Esta história social do político e do militar emergiu
adjetivada pela expressão “nova”, ou seja, uma nova história militar e uma nova história política
(Restier e Loureiro 2012, 104-105). Assim, a reboque dessas transformações, desde os anos de
1990, até o presente momento, estamos assistindo ao incremento da historiografia militar alicerçada
no paradigma da nova história. Entre os especialistas em história militar no Brasil, existe certo
consenso de que a área passou por uma significativa renovação nos últimos anos. Grande foco
passou a ser dado as diferentes formas de se viver e pensar a experiência militar e suas relações
com a sociedade e com os poderes políticos (Mello 2006). Atualmente, tem se definido, inclusive,
distinções entre o que chamam de “historiografia militar tradicional” e uma “nova história militar”
(Hespanha 2003). Essa fronteira tem sinalizado as mudanças ocorridas nas pesquisas nesse campo
de estudo. Os historiadores que assumem esse ponto de vista censuram uma história militar

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régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

considerada “tradicional”, cuja narrativa, sobremaneira memorialista, estava pautada na descrição


densa de batalhas, sem a busca de uma problematização analítica ou reflexão central. Criticam
também o culto de grandes heróis. Outra crítica é a de que a historiografia militar tradicional
naturalizava o comportamento humano e as instituições militares, tornando-os, em última
instância, ahistóricos (Moreira e Loureiro 2012, 16). Renato Restier e Marcello Loureiro ressaltam
que a principal crítica com relação à historiografia militar tradicional reside na forma estanque em
que o militar e as instituições militares eram tratadas. Ou seja, eram retratados “fora” dos
“contextos social, cultural, psicológico e geográfico. Não eram entendidos como receptores e
agentes de transformação social” (Restier e Loureiro 2012, 92-93).
A nova história militar, conforme destacado por Celso Castro, Vitor Izecksohn e Hendrik
Kraay, não tem por foco aquilo que geralmente se entende por “História Militar” – o estudo das
batalhas, táticas e principais figuras militares. O objetivo é mostrar que os militares brasileiros não
se encontram isolados da sociedade abrangente, embora possam guardar uma relativa autonomia
em alguns aspectos e épocas específicas (Castro, Izecksohn e Kraay 2004, 12). Portanto, a nova
história militar tem avançado no sentido de problematizar a ação dos sujeitos atuantes nessa esfera,
colocando seus comportamentos e iniciativas como sendo moldados ou como parte integrante da
sociedade em que se inseriam.
A partir do que foi exposto, o presente texto investiga uma questão pouquíssimo abordada
na historiografia sobre o período colonial e que dialoga com as inovações vivenciadas pelo campo
da história militar mencionadas, a saber, os cargos dos cirurgiões ligados à postos militares. Através
do mapeio feito nas comunicações instituídas entre essas figuras (cirurgiões) e o rei em meados do
século XVIII, muitos foram os casos encontrados em que se solicitavam novas patentes entre
outros temas por ele levantados.
Em relação à História da Medicina no século XVIII há que se considerar que este campo
era deveras fragmentado, e que os ofícios que ajudavam os médicos (também conhecidos como
físicos) eram vistos como inferiores. O trabalho do presente artigo estabelece um diálogo com a
tese de Monique Palma Cirurgiões, práticas e saberes cirúrgicos na América Portuguesa no século XVIII, uma
vez que seguimos as trilhas deixadas por esses atores históricos, nomeadamente, os cirurgiões
(neste caso em específico os ligados à Regimentos Militares)1. A autora fez o mapeamento da

1
Os resultados apresentados neste artigo foram obtidos a partir da pesquisa levada a cabo pela tese de doutorado A
polícia médica como atribuição das câmaras municipais: instituições, agentes, relações de poder e jurisdições de saúde em Minas Gerais
(1770/1850). Portanto, na sobredita tese (defendida em 2023) foram mapeados cirurgiões ligados à outras esferas tais
como às municipalidades, exercendo assim, seus ofícios junto ao município. Ver: Ferreira 2023.

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régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

distribuição geográfica desses cirurgiões pelas capitanias da América Portuguesa como um todo.
Nosso intuito, por outro lado, foi o de focar especificamente na capitania de Minas Gerais e nos
circuitos estabelecidos – via requerimentos – com a esfera régia de poder (Palma 2021). De todo
modo, reconhecemos a importância de sua tese na medida em que expôs o percentual de cirurgiões
presentes em cada capitania da América portuguesa, bem como os vínculos institucionais a que
estavam enquadrados.
Embora, a tese de Palma defenda parte do que trabalhamos neste artigo, deve-se considerar
que nos pautamos por uma análise específica sobre a capitania de Minas Gerais, e num recorte
temporal (1771/1807) em que a saúde enquanto tema e/ou pauta passou a ganhar decisiva
relevância para os Estados Nacionais europeus2. Neste sentido, a saúde até meados do século XVIII
– pensada enquanto área – estava ligada às concepções da tradição hipocrático galênica3, que
entendiam que a função última dos oficiais da saúde (fossem médicos, cirurgiões, e boticários, cada
um dentro de seu ramo evidentemente) era restituir a saúde perdida de um corpo enfermo. Foi o
que disse o padre Raphael Bluteau em seu dicionário publicado em 1739, ao definir a medicina
como “a arte de excogitar e apontar os remédios para conservar no corpo humano a saúde que tem
e para lhe restituir a que perdeu” (Bluteau 1739, 387).
Refletindo assim sobre os ofícios das “artes de curar”, podemos considerar os três
principais níveis como sendo: o trabalho dos médicos (de caráter doutrinal), o dos boticários (estes
eram os responsáveis pela aplicação dos medicamentos aos doentes), e, finalmente, os cirurgiões
(que poderiam atuar ligados aos municípios, os chamados médicos de partido, ou aos Regimentos
militares, ou a ambos). Pela tradição galênica, ao cirurgião caberia a atuação efetivamente prática,
ou seja, era esperado toda uma atuação direta sobre o corpo doente que incluía: sangrias,
amputações e cirurgias.
Neste sentido na clássica distinção existente entre as competências do cirurgião e a do
médico, como destacado por Márcia Ribeiro, aos segundos era “facultado a cura das chamadas
moléstias internas, enquanto aos cirurgiões cabia o exercício das funções mais simples como as
sangrias, a cura de ferimentos, a extração de balas, a aplicação de ventosas e sanguessugas, cirurgias
de um modo geral”4.

2
Neste tópico em específico, observa-se a alteração de paradigmas vivenciados nos territórios europeus ao longo dos
séculos XVII e XVIII, a transição de uma sociedade de Antigo Regime para uma nova lógica, pautada numa maior
racionalidade do Estado, de um Estado que assume para si funções que eram tradicionalmente de outras corporações.
Ver: Subtil 2013; Foucault 2008.
3
Para um aprofundamento sobre a tradição hipocrático-galênica, ver: Furtado 2011.
4
No que tange à distinção existente entre as funções de médicos e cirurgiões, Ribeiro pontua: “A separação social
entre médicos e cirurgiões assentava-se inicialmente na formação que ambos recebiam. Enquanto os médicos

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régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

Os cirurgiões tanto podiam se vincular institucionalmente às câmaras municipais (cirurgiões


de partido), como aos hospitais, conventos, ou aos Regimentos Militares. Seja ocupando o cargo
de “ajudante” ou de “cirurgião-mor” – e claro que no segundo patamar eles teriam acesso a maiores
honrarias – essas figuras se vinculavam aos Regimentos para obterem ascensão social. Se
considerarmos a estigmatização social que sofriam, pois, quando comparados aos médicos, seu
ofício era considerado inferior por ser mecânico, viam na estrutura militar brechas para obterem
reconhecimento e maiores condições de ascensão.
Para além dos pontos esboçados anteriormente, no que concerne à historiografia militar,
serão também levantados os requerimentos de cirurgiões ligados à determinados regimentos
militares existentes na capitania de Minas Gerais. Pretende-se, assim, verificar os temas por eles
levantados e encaminhados à esfera régia, bem como sua inserção no meio militar, pois embora,
não fossem soldados, tinham entre suas obrigações marchar com eles, usar suas insígnias e receber
seus soldos. Eram homens estabelecidos em circuitos de interesses que acumulavam funções
atuando como cirurgião, funcionário da câmara municipal e se inserindo, também, na estrutura
militar.
Ademais, não se deve ignorar o fato de serem personagens importantes, tendo em vista
suas funções: restabelecer a vida aos lesionados ou feridos por bala. Em relação, portanto, a essas
figuras, buscando pensar em termos de suas interações com as dinâmicas locais, suas adaptações a
ela e suas contribuições para sua transformação, é forçoso considerar que, embora a Coroa buscasse
tutelá-los, estes continuavam a reger-se por leis próprias, como se verá no presente artigo. Por fim,
é válido que apontemos o diálogo entre a historiografia militar e a da saúde pública, visto que os
atores em questão eram profissionais de saúde atuando, nesse caso em específico, num espaço
militar.
Cabe sublinhar o fato de os cirurgiões serem profissionais que compunham ao lado (ou
abaixo na hierarquia existente entre eles) dos médicos – também designados como físicos – os
agentes oficiais da área da saúde pública, embora existisse também a figura dos boticários. Neste
sentido, algumas breves considerações a esse respeito devem ser feitas.

frequentavam a universidade, os cirurgiões limitavam-se ao aprendizado prático, adquirido sobretudo no Hospital Real
de Todos os Santos, em Lisboa. O terremoto de 1755 destruiu o hospital que ainda continuou funcionando até 1755,
quando Pombal resolveu transferi-lo para outro prédio, então mudando seu nome para Hospital Real de São José.
Terminado o estágio no hospital, os alunos eram submetidos a exames perante a mestres capacitados e, alcançando
bons resultados, recebiam carta de cirurgião aprovado, a qual era passada pelo cirurgião-mor do Reino. Tal documento
facultava o exercício da profissão tanto na metrópole como nos seus domínios, permitindo também que os cirurgiões
exercessem a medicina onde não residissem médicos, situação esta muito corriqueira na América Portuguesa do século
XVIII”. Ver: Ribeiro 2005.

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(1771/1807)

O regimento do Físico-mor data de carta outorgada por D. Manuel em 25 de fevereiro de


1521 (Sousa 1521, 338-343), tendo sido novamente regimentada em 28 de junho de 1611 (Portugal
1611). Mais antigo que o regimento do físico era o do cirurgião, cujo regimento era oriundo de 8
de junho de 1430 e a quem competia “examinar todas as pessoas que quizessem usar de física”.
Nesse mesmo regimento, traçava-se uma linha de divisão no que tange aos ofícios do cirurgião e
do físico, quando se proibia expressamente “os cirurgiões de tratarem de medicina e os médicos
de cirurgia” (Subtil 2013, 44).
Como colocado por Luís de Pina: “Se a medicina é uma ciência e uma arte, a cirurgia
começa por ser essencialmente uma arte, uma técnica, uma prática manual individualizada” (Pina
1998). Em total distinção dos médicos, os cirurgiões eram vistos socialmente como inferiores por
exercerem ofícios mecânicos, tais como “curativo de feridas, fraturas, luxações, extrações de
tumores, abcessos e pequenas intervenções operatórias” (Subtil 2013, 43). Por ter uma formação
de caráter prático, dispensando o saber intelectualizado dos médicos, os cirurgiões eram muito mais
facilmente encontrados. Poderiam vir dos grupos de sangradores, barbeiros, e tantos outros que
andavam a curar nos municípios.
Como lembrado por Laurinda Abreu, os cirurgiões se inscreviam em “representações que
entroncavam na medieva distinção entre o exercício da medicina, erudito e contemplativo, e as
práticas curativas que pressupunham a manipulação dos corpos e do sangue” (Abreu 2010, 111).
Portanto, e exatamente por desempenharem um ofício manual, foram penalizados socialmente por
muitos séculos5.
Tendo levantado tais apontamentos, acreditamos na possibilidade de determinados
cirurgiões se utilizarem das estruturas hierárquicas militares como forma de buscarem ascensão
social, o que dificilmente ocorreria fora dessas instâncias. Dentre os cirurgiões encontrados nos
municípios mineiros, verificamos a existência de duas categorias: os de partido e os ligados à
Regimentos Militares. Os cirurgiões com enquadramento institucional poderiam estar ligados aos
quadros de instituições como as câmaras municipais, bem como a hospitais, conventos, e aos
espaços militares (Palma 2020, 500).
Cabe sublinhar que, no contexto abordado por este trabalho, tratamos de uma sociedade
que se estruturava pelas noções de Antigo Regime português, portanto, permeada pelos valores de
honra, prestígio, privilégios, desigualdade e hierarquização. Neste cenário no qual a busca por

5
Essa penalização social duraria até, pelo menos, as reformas instituídas na medicina quando da virada paradigmática.
Partindo de Portugal, isso ficaria especialmente claro quando da reforma dos Estatutos da Universidade de Coimbra
em 1772.

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distinção social era algo que movia os indivíduos em suas ações e interações, se vincular a esfera
militar a partir da ocupação de postos constituía-se em potente estratégia para atingir tal propósito.
A estrutura formal da organização bélica lusitana se constituía a partir de três tipos de
forças: os corpos regulares (conhecidos também por tropa paga ou de linha), as milícias ou corpos
de auxiliares e as ordenanças ou corpos irregulares. Existiam ainda outras formas de tropas militares
mais específicas que subdividiam as forças de acordo com as hierarquias sociais (indígenas, pretos,
pardos e brancos). Possuir uma patente militar de qualquer uma destas forças mencionadas era um
fator de prestígio, já que o exercício das armas era um fator nobilitante (Rodrigues 2003, 247), além
de permitir usufruir de prerrogativas e isenções atinentes aos postos.
Nesta esteira, e buscando contribuir para uma reflexão que aborde as diferentes formas de
se viver e pensar a experiência militar e suas relações com a sociedade e com os poderes políticos,
partiremos agora para a análise dos requerimentos feitos por cirurgiões ajudantes solicitando à
condição de serem alçados à mor, o que denota um patamar superior do segundo em relação ao
primeiro.

Entre Requerimentos e Representações: os cirurgiões militares em Minas Gerais,


suas demandas ao rei e o desejo de mobilidade social (1771/1807)
Os casos que aqui serão analisados foram colhidos na documentação do AHU, tendo o
Conselho Ultramarino como intermediador das demandas dos povos da América Portuguesa e a
esfera régia capitaneada pela figura do rei. O monarca era por excelência o destinatário mais comum
a quem se endereçavam os requerimentos, petições e pedidos de mercê. Ainda que a Coroa
portuguesa contasse com centros decisórios plurais, o rei seguia representando, simbolicamente, o
papel de instância superior responsável por instituir normas e resolver conflitos (Raminelli 2017,
374-375).
Uma vasta historiografia aponta para a importância dos requerimentos e petições enquanto
práticas institucionais no interior das monarquias corporativas de Antigo Regime, isto é, nas
monarquias ibéricas era clara e legítima a ideia de que “todo o mundo pode apelar aos distintos
tribunais reais [...], aos quais estavam sujeitos o próprio vice-rei” (Pagden 1997, 180). Neste sentido,
muitos eram os encaminhamentos levados à presença do rei, requerimentos e petições que
poderiam ser individuais ou coletivos, ou ainda partindo de instituições como as câmaras
municipais (Fernandes 2022). Cabe lembrar que a concessão era um mecanismo recorrentemente
utilizado para agraciar fiéis vassalos e, deste modo, conseguir auxílio na manutenção da ordem e da
governabilidade de territórios ultramarinos.

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(1771/1807)

Num contexto como esse em que todos podiam requerer e/ou peticionar ao rei enquanto
súditos, vislumbramos personagens que exerciam o ofício de cirurgia, curando e tratando os
soldados feridos, a saber, os cirurgiões (seja na condição de ajudante, seja na de mor). Os temas
mais encontrados nessas comunicações em específico se referem à cirurgiões ajudantes que
almejam ser elevados à mor. Neste sentido, havia uma obrigação (por determinação régia), segundo
Monique Palma, de que os Regimentos tivessem um cirurgião-mor e que os demais integrantes
dessas instâncias devessem honrar, estimar e reconhecer o cirurgião designado para esse posto,
como expressado no trecho abaixo:

Mando aos officiaes superiores e mais officiaes do dito Regimento assim de Patente como inferiores,
por tal o reconheção honrem e estimem, e o deixem exercêr o mencionado pôsto na forma que lhe
hé permitido: e ordeno ao Ouvidor desta Comarca como Auditôr geral della, que na forma do Capº
19§.1. do Regulamento de cavallarîa, lhe difira o juramento de fidelidade, e lhe dê posse do dito
pôsto de Cyrurgião mór na prezença do Coronel do dito Regimento de que se fará assento pôsto na
forma das Reaes Ordens (Palma 2020, 196).
Portanto, para além da obrigação dos Regimentos militares contarem com a posição de
cirurgião-mor, estes deveriam ser tratados com especial deferência. Por tal apontamento não é de
se estranhar encontrarmos pedidos nesse sentido, ou seja, de elevação de posto. Tal seria o caso de
Caetano José Cardoso que, em requerimento datado de 7 de agosto de 1801, pedia para que “se lhe
declarasse praça de cirurgião-mor” do Regimento em que atuava. 6
Cardoso alegava já possuir atuação como cirurgião ajudante, asseverando a D. João VI:

Sim soberano e augusto senhor, no continente de Paracatu onde reside um grosso destacamento de
soldados, inda sem praça declarada e se por uma Portaria da Junta da Fazenda curando e assistindo-
lhes nas suas enfermidades no hospital ali estabelecido para os militares [...] nas moléstias ou justos
impedimentos do cirurgião-mor do dito Regimento igualmente na do médico do partido, sempre o
suplicante supriu a falta daqueles com zelo e caridade cumprindo exatamente as suas obrigações. 7
Este não seria caso isolado, pois, José Antônio de Almeida, em junho de 1806, solicitou ao
príncipe regente a “mercê de o despachar como cirurgião-mor agregado ao Regimento de Cavalaria
de Minas Gerais”.8 Almeida dizia ser cirurgião ajudante de Regimento de Infantaria, tendo sido
aprovado pela Real Junta do Protomedicato em cirurgia, anatomia, partos, medicina operatória, e
ligaduras. Além disso, asseverava servir há nove anos “voluntário sem capitulação do partido”9.

6
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 158, Doc. 35. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=79501
7 Idem.
8 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:

AHU_ACL_CU_011, Cx. 180, Doc. 55. Disponível em:


https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=90620
9
Ele dizia, ainda, “que ele suplicante depois de ter com aproveitamento estudado as gramáticas latina e francesa os
conhecimentos cirúrgicos que pode permitir uma terra aonde não há salas de tal faculdade, sem empregou no serviço
de V. A. R. com todo zelo e eficácia fazendo vários destacamentos e diligências não só que lhe pertençam pela

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Sua formação não apenas em cirurgia, como em anatomia, partos e medicina operatória, foi possível
por ter sido enviado por “Sua Alteza Real” para estudar na Corte, na qual, em dois anos, aprendeu
matérias na praça onde atuava. Seu desejo era, portanto, o de ser “útil ao Estado pela sua profissão”,
em um objeto “tam interessante como a saúde dos povos”. 10
Vicente Ferreira Rodrigues de Sousa, cirurgião ajudante do Regimento das Minas, estaria
numa situação próxima a de José Antônio de Almeida e Caetano José Cardoso11. Sousa requereria
12
em 1786, à Dona Maria I, a patente de cirurgião-mor do Regimento ao qual estava vinculado.
Uma fala, em específico, presente em seu requerimento é digna de nota, pois tece uma crítica ao
saber médico livresco e teórico:

A falta de cirurgiões peritos, e dezembaraçados que ignoram não só a base principal da cirurgia qual
anatomia, mas ainda alguns pontos interessantes da mesma cirurgia, e juntamente a falta de médicos
que há naquele país, sendo preciso ainda para a conservação do mesmo corpo militar, e demais gente
da mesma cidade livrar bastantes abusos que os mesmos cirurgiões conservam [...] informações os
quais por falta de conhecimento não fazem senão darem livros na saúde e aproximarem sua morte
mais abreviada. 13
Vicente Ferreira se colocava, assim, na condição de “hábil e examinado” cirurgião a quem,
todavia, faltava “a graça que a Sua Magestade tem feito a vários cirurgiões de o condecorar com
uma patente de cirurgião-mor daquele Estado com o soldo compreendente a este emprego”. O
cirurgião-mor do Regimento de Vicente, Pedro Antônio Celestino, confirmou em carta de 22 de
agosto de 1786 a atuação do suplicante, que também seria enviada à Dona Maria I 14. A rainha,
então, acabou por confirmar o requerente Vicente Ferreira no posto solicitado, e, em sua resposta,
ela ressaltava o papel da Junta do Protomedicato como a instância responsável pelo exame e

ordem regimentar, mas este oferecendo-se para as mais arriscadas e consideráveis como foi nos pretéritos campanha
na qual se ofereceu para acompanhar as tropas que da sua praça partiu para os assentamentos dos [?] aonde curou
não só os enfermos do seu Regimento, mas também dos diferentes corpos de milícia”. Ver: idem.
10
Idem.
11
Os três possuíam algo em comum, que de certa forma os distinguia dos demais, eles eram cirurgiões ajudantes
solicitando a condição de cirurgião-mor. Seus requerimentos não versavam sobre a necessidade de serem confirmados
nos respectivos ofícios, mas sim de serem elevados na hierarquia interna dos Regimentos militares.
12 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:

AHU_ACL_CU_011, Cx. 125, Doc. 22. Disponível em:


https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=62024
13
Idem.
14
Pela sua carta, lia-se: “Certifico que Vicente Ferreira Rodrigues de Sousa cirurgião ajudante, em todo o tempo que
tem servido comigo me tem dado constantes provas não só da bem decidida distribuição entre os mais [?] meus
ajudantes, mas tão bem de ser muito hábil assim na prática, como na teoria da cirurgia e anatomia, o que me tem sido
confirmado nas repetidas ocasiões em que é empregado já em registros dos doentes, já e curativo no Hospital Real
Militar”. Ver: idem.

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subsequente aprovação (ou não) do cirurgião, bem como dos médicos no contexto de extinção da
Fisicatura-mor15. Neste sentido, a monarca apontaria:

Vicente Ferreira Rodrigues de Sousa, filho de João Rodrigues, natural desta cidade de Lisboa, me
representou que ele pretendendo uzar da arte de cirurgia nestes meus Reinos e Seus Senhorios, pela
ter aprendido e praticado como mostram por certidão que foi vista e examinada pelos meus
deputados da Junta do Protomedicato, o qual foi examinado de cirurgia e anatomia na presença dos
mesmos deputados, pelos examinadores Antônio Francisco e Caetano José de Figueiredo, cirurgiões
da Casa Real, que o deram por aprovado para exercitar a dita arte por bem da qual me pediu lhe
mandasse expedir carta, para que livremente pudesse uzar da dita arte. 16
As evocações que eram mobilizadas, podiam variar de sujeito a sujeito, mas de um modo
geral giravam em torno dos que já tinham atuado como ajudantes (como no exemplo de Caetano
José Cardoso) e dos que já tinham assistido os soldados enfermos, suprindo a falta do cirurgião-
mor com “zelo e caridade”. Outras alegações podiam ser elencadas – mais pragmáticas – como as
esboçadas por José Antônio Almeida que alegava uma formação que extrapolava o campo
cirúrgico, chegando à medicina operatória, à anatomia, e a “arte de partejar” (argumentando ter
certificação do Protomedicato para tanto). No segundo caso, os argumentos mobilizados iam de
encontro ao desejo de ser “útil ao Estado” em uma “matéria tão interessante aos povos como era
a saúde pública”. Importante pontuar que eram feitas referências distintas, isto é, por certos sujeitos
seria evocada a lógica de que atuaram com caridade e, portanto, eram merecedores de alcançar o
posto desejado. Já outros, evocavam a noção de que era preciso ser útil ao Estado, útil pela
profissão, o que os colocava na condição de terem deferidas suas solicitações 17.
Argumentos como o fato de ser hábil e examinado, “faltando apenas a condecoração de
uma patente de cirurgião-mor com o soldo compreendente a este emprego”18, foram também

15
Tradicionalmente a Fisicatura-mor era a instituição que, em terras portuguesas, se responsabilizava por passar carta
à cirurgiões e médicos. Era uma antiga instituição formada pelo médico da Câmara Real, designado como “Físico-
mor”, e o “Cirurgião-mor”. Tal instância foi extinta quando da criação da Junta do Protomedicato, fato que se deu no
reinado de Dona Maria, pela lei de 17 de julho de 1782. De todo modo, a Fisicatura seria “reativada” quando a família
brigantina aportou no Rio de Janeiro em 1808, pois D. João VI refundou os lugares de físico e cirurgião-mor. Sobre a
Fisicatura-mor, ver: Subtil 2013; Pimenta 1997.
16
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 125, Doc. 22. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=62024.
17
Interessante pontuar que essas duas noções, caridade e utilidade, se referem a mundos distintos, a paradigmas
diferentes. A ideia relacionada ao trabalho como prática de caridade, em especial, ao trabalho ligado à área da saúde,
sendo o médico e o cirurgião aqueles que prestam assistência ao enfermo, assistência essa que deveria ser prestada na
chave da caridade e zelo, é uma noção muito própria de uma sociedade de Antigo Regime. Por outro lado, o vocábulo
utilidade nos remete à uma dimensão outra do social, ou seja, nos informa de uma organização paradigmática voltada à
um governo de ativos e executivos, à um governo que deve entoar como máxima a felicidade da população e que, para
ser alcançada, depende dos objetos que sejam uteis ao Estado, e um deles seria a saúde pública. Lógicas distintas que
nos informam sobre paradigmas igualmente diferentes, e que foram mobilizados como argumentos por esses cirurgiões
para terem seus pedidos aceitos. Sobre os temas aqui levantados, ver: Abreu 2014; Abreu 2010; Lopes 2018.
18
Como justificado por Vicente Ferreira, exemplo já referido.

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régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

encontrados. Estes são alguns dos exemplos de discursos empregados por esses homens como
meio de justificativa de suas demandas ao rei.
Para além de pedidos de elevação entre os postos, de ajudante à cirurgião-mor, outro caso
que aqui será elencado diz respeito à busca por confirmação de um posto já ocupado. Esse é o
exemplo de Domingos Gonçalves da Cruz, cirurgião-mor das Tropas Pagas da Guarnição de
Minas, solicitando a Dom José I confirmá-lo neste cargo. 19 Segundo Cruz, ele tinha sido provido
como cirurgião-mor das Tropas Pagas pelo então governador de Minas, Conde de Valadares. Ele
enviou ao rei a patente em que constava a sua aprovação em cirurgia, devendo o monarca confirmá-
la para que tivesse validade. O rei confirmou o requerimento de Cruz em 6 de agosto de 1771,
despachando sua resposta pelo Conselho Ultramarino.
O soldo estabelecido pelo governador foi o de 250 mil réis “em cada ano pago pela Real
Fazenda desta Capitania”20. Além de prever a garantia de todas as “prerrogativas, graças, e
isenções”, próprias ao cargo de cirurgião-mor. Compreendendo os reinados de Dom José I, Dona
Maria I e Dom João VI, os requerimentos afluíam com certa frequência no que se refere às
solicitações de confirmação do ofício. Dona Maria I confirmou as cartas patentes de Francisco
Mendes Coelho e João Ferreira Paes, nos respectivos anos de 1788 e 1789. O primeiro atuava como
cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria Auxiliar do arraial de Santa Luzia do Sabará. 21
Em moldes semelhantes aos anteriores pedidos, Francisco Mendes Coelho argumentava
ter sido provido como cirurgião-mor pelo governador de Minas – Luís da Cunha Meneses – em 25
de dezembro de 1786. De todo modo, se fazia necessário (como de costume) a confirmação pela
via régia, e ele demandava nesse sentido. A confirmação veio em 10 de janeiro de 1788, na qual a
monarca lhe conferia “mercê de o confirmar como por esta confirmo no posto de cirurgião-mor
do Regimento de Cavalaria Auxiliar criado, formado e aquartelado no Arraial de Santa Luzia do

19 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 101, Doc. 21. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=50210
20 Esse foi o valor fixado pelo governador em documento datado de 18 de novembro de 1768 – mesmo período em

que Domingos Gonçalves da Cruz foi provido como cirurgião-mor das ditas tropas – onde se lia: “Hei por bem fazer
mercê de o nomear, e eleger cirurgião-mor das tropas pagas da guarnição destas Minas e Auxiliares delas com o soldo
de 250 mil réis em cada ano pago pela Real Fazenda desta Capitania, e na qual o Desembargador Provedor dela,
remandara abrir assentos na folha militar a que pertence, quando nela não esteja incluído com a graduação que lhe
compete do posto de capitão, com uso de insígnia, e uniforme dele, e as mais prerrogativas, graças e isenções que aos
mesmos são facultados [...]”. Vila Rica de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto, feita pelo escrivão Francisco
Alexandrino ditado pelo Conde de Valadares em 18 de novembro de 1768. Ver: idem.
21 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:

AHU_ACL_CU_011, Cx. 128, Doc. 6. Disponível em:


https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=63233

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Sabará [...]”, 22 garantindo ao suplicante o gozo de “todas as honras, privilégios, liberdades, isenções,
e franquezas que em razão dele lhe pertencerem”. 23
Em relação à João Ferreira Pais, os encaminhamentos foram quase os mesmos. Se
pensarmos num modus operandi ou padrão, o requerente faz uma solicitação, que neste caso é levado
à presença de Dona Maria I em 1789, e recebe dela sua confirmação. A distinção, todavia, é que
ele atuava como cirurgião-mor de um outro Regimento, o de Cavalaria Auxiliar do arraial do
Inficionado, na cidade de Mariana. 24 Muitos foram os casos de cirurgiões vinculados à Regimentos
militares “pedindo carta patente de confirmação do posto de cirurgião-mor”25 dessa ou daquela
tropa. O que variava eram os agentes, os Regimentos, os lugares e os anos, por isso encontramos
desde a década de 1770 até os idos dos anos 1801, 1802, e 1803, por exemplo. Geralmente eles
eram providos pelo governador, como apontado nesses requerimentos, mas necessitavam, ainda,
da confirmação da esfera régia, para serem validados nos cargos.
Entendemos então, que o meio militar oferecia uma oportunidade de mobilidade social que
esses cirurgiões dificilmente encontrariam em outras dimensões em que pudessem atuar, já que
seriam preteridos em detrimento dos médicos26. Os debates relacionados a ascensão e a promoção
social em espaços coloniais sob poder português, mediante mercês, privilégios e políticas de graça,

22 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 128, Doc. 9. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=63244
23 Idem.
24
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 131, Doc. 90. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=65311
25 Além dos cirurgiões já citados, em nosso levantamento documental, foram encontrados: Domingos Fernandes

Chaves, cirurgião-mor da Cavalaria de Milícias, tendo sido provido pelo governador Bernardo José de Lorena neste
posto, buscando a confirmação de seu cargo junto à esfera régia; Florêncio Francisco Franco dos Santos que em 27 de
outubro de 1807 requeria à Dom João VI confirmá-lo como cirurgião-mor do 2º Regimento de Cavalaria de Milícias
da comarca de Ouro Preto; José Joaquim Vieira Botelho, cirurgião-mor do Regimento de Cavalaria de Milícias do Serro
Frio, que em 24 de julho de 1804 solicitava a confirmação de seu ofício; e, finalmente, Manuel Pereira da Mata Portugal,
que em 14 de junho de 1806, requeria ao príncipe regente a confirmação de seu posto como cirurgião-mor agregado
ao 1º Regimento de Cavalaria de Milícias da Comarca do Serro Frio. Ver, respectivamente: BRASIL. Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.: AHU_ACL_CU_011, Cx. 149, Doc. 22.
Disponível em: https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=74186
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 186, Doc. 60. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=93722
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 171, Doc. 28. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=85707
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 180, Doc. 68. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=90682
26 Embora já tenhamos tratado tal assunto, para mais leituras sobre a penalização social infringida aos cirurgiões, ver:

Furtado 2011.

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régia: o uso dos regimentos militares como espaço de mobilidade social na capitania de Minas Gerais
(1771/1807)

não é novo na historiografia27. O que se intenta no presente artigo, é refletir sobre a figura dos
cirurgiões com enquadramento institucional militar. Neste sentido, e considerando os
requerimentos que estamos a levantar, as possíveis promoções sociais envolviam (como se verifica)
os cirurgiões e não a matéria cirurgia28. Em outros termos, pelo que a documentação nos possibilitou
aferir, essa elevação implicava em um tratamento digno a partir do posto ocupado. Honras,
privilégios, isenções e toda uma série de prerrogativas pareciam vir a reboque do cargo almejado,
como já sugerido. Além disso, o cirurgião-mor possuía direito à um soldo, o que em boa parte
justifica os pedidos dos ajudantes para que fossem alçados à condição de mor. Como apontado por
Monique Palma, em relação à figura do cirurgião-mor (obrigatória nos Regimentos), era esperado
que se honrasse, estimasse e reconhecesse o cirurgião designado para esse posto (Palma 2020).
Numa sociedade de Antigo Regime, tal reconhecimento faria toda diferença, o ser tratado com
deferimento, com a dignidade própria do posto que se ocupa.
Esses homens podiam também buscar alcançar outros postos ou condições no interior dos
Regimentos, como exemplificado pelo caso de Antônio José Vieira de Carvalho. Este é um
exemplo que destoa dos demais até aqui apresentados, pois esse personagem já atuava como
29
cirurgião-mor, almejando, assim, o posto de capitão. Em carta de Bernardo José de Lorena –
então governador de Minas – datada de 20 de setembro de 1801, e dirigida a D. Rodrigo de Sousa
Coutinho, era comentado o fato de Carvalho ter solicitado soldo e a graduação de capitão em seu
30
exercício de cirurgião-mor. Por algumas atestações levantadas por Carvalho, foi possível
identificar, segundo o tenente coronel comandante Pedro Afonso Galvão, que o cirurgião
“assentou praça de ajudante de cirurgia em 15 de junho de 1781, passando a cirurgião-mor em 9
de agosto de 1781, por ordem do governador Dom Rodrigo José de Menezes”.31 Este cirurgião
buscava, assim, a graduação de capitão junto ao Regimento ao qual estava ligado, destacando

27
Ver estudos como: (Cabral 2001; Krause 2012; Raminelli 2015; Stumpf 2014).
28
Nesses requerimentos, como é possível perceber, a matéria cirurgia não seria apontada como central, pois esse
código documental (os requerimentos à esfera régia) não nos permite visualizar tal questão. Se por outro lado,
analisássemos tratados médico-cirúrgicos existentes ao longo do século XVIII, então certamente perceberíamos as
matérias medicina e cirurgia emergindo com protagonismo.
29
BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:
AHU_ACL_CU_011, Cx. 159, Doc. 19. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=79745
30
Idem.
31
Idem.

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atestações32, entre as quais, por exemplo, pontuava enfaticamente determinadas jornadas por ele
empreendidas, que distavam de muitas léguas de distância33.
Através da comunicação colocada entre o governador Bernardo José Lorena e o secretário
de Estado Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, tendo em vista o requerimento de Carvalho em que
pede a graduação para o posto de capitão, verifica-se que todas as atestações levantadas pelo
cirurgião atestam a defesa de sua “perícia, zelo e capacidade” enquanto cirurgião-mor. Ele precisava
provar sua excelente atuação como cirurgião para conseguir alcançar o objetivo, que neste caso era
o de ser graduado como capitão34.
35
Novamente, em 1807, ele requereu o posto de capitão do dito Regimento. Neste outro
requerimento ele argumentou que tinha feito a “aplicação de drogas indígenas, com o que forrou
de certo, graves despesas a Fazenda Real”36. Este pedido foi encaminhado à D. João VI em maio
de 1807 e, em junho do mesmo ano, ele enviou outro, dessa vez “solicitando a mercê de se averbar
37
a sua patente à graduação que tem os tenentes dos Regimentos”, o que denota uma possível
afirmação de seu requerimento anterior, no qual pedia ser alçado à condição de capitão.
Pelo teor dessas comunicações endereçadas ao poder régio, é possível, assim, considerá-las
como uma tentativa de mobilidade dentro de uma hierarquia existente nas corporações militares.

32
Ao todo foram contabilizadas dez atestações. A primeira, já comentada, tratava do tenente de seu Regimento
confirmando o exercício dele em sua Cavalaria; na segunda atestação emerge a figura do governador Dom Rodrigo
José de Menezes (1783) atestando que Carvalho serviu com “zelo e perícia”; na terceira temos o governador Luís da
Cunha Meneses (1788) asseverando no mesmo sentido; na quarta Luís António Furtado de Castro do Rio de Mendonça
(1797) atesta nos mesmos moldes dos governadores anteriores; na quinta atestação seria a vez do governador Bernardo
José de Lorena asseverar que “em todo o tempo do meu governo tem desempenhado excelentemente as suas
obrigações tratando aos doentes com muito amor e cuidado, tanto no Hospital Militar, como no da Misericórdia [...]
ter introduzido no mesmo hospital o uso de vários gêneros do país, com bom sucesso”; na sexta atestação o juiz de
fora da cidade de Mariana confirmava a capacidade de Carvalho como cirurgião-mor; na sétima atestação Manoel
António de Carvalho, almoxarife dos armazéns reais da capitania de Minas Gerais, atesta no mesmo sentido dos
anteriores; na oitava o próprio requerente justifica seu pedido; na nona novamente o tenente coronel de seu Regimento,
Pedro Afonso Galvão, certifica sobre sua boa atuação; e, finalmente, na décima Luís Beltrão de Gouveia de Almeida,
conselheiro das Fazenda do Ultramar e chanceler da relação do Rio de Janeiro, atesta a utilidade do desempenho do
cirurgião Carvalho. Todas essas atestações estão em: BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate.
Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.: AHU_ACL_CU_011, Cx. 159, Doc. 19. Disponível em:
https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=79745
33 Essa justificava dada pelo próprio Carvalho aparece na atestação de número 8, entre as 10 atestações incluídas no

requerimento. Ver: idem.


34 Para um aprofundamento sobre a dimensão militar nas minas setecentistas, ver: Costa 2006; Cotta 2000; Mendes

2004.
35 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:

AHU_ACL_CU_011, Cx. 184, Doc. 6. Disponível em:


https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=92346
36 Ainda neste sentido, ele diria: “[...] bem como por sua conduta moral, tem merecido a geral estima de todas as

pessoas gratas daquele país, e particularmente a dos governadores e capitães generais que tem sido desde o ano de
1780, em que assentou praça [...]”. Ver: idem.
37 BRASIL. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.:

AHU_ACL_CU_011, Cx. 184, Doc. 32. Disponível em:


https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=92791

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Já foi indicado que as patentes eram um instrumento de nobilitação visto que o oficial com o posto
“não vencerá soldo algum, mas gozará de todas as honras, privilégios, liberdades, isenções, e
franquezas que em razão dele lhe pertencem”, conforme vinha estipulado nas cartas patentes
concedidas pelo Rei.
Como colocado pelo último caso aqui analisado – o de Antônio José Vieira de Carvalho –
é evidente que ocupando a condição de capitão, o então cirurgião-mor teria acesso a privilégios e
honrarias, que não obteria atuando apenas como cirurgião. A depender dos postos ocupados essas
“honras” – que numa sociedade ainda fundada nas balizas próprias do Antigo Regime eram de
extrema importância (Monteiro 2005) – tendiam a variar e, evidentemente, quanto mais “degraus”
hierárquicos ele subisse, mais honras e privilégios viriam a reboque da posição ocupada, gerando
assim produção ou reprodução de prestígio e posição de comando, bens não negligenciáveis no
Antigo Regime. Ser capitão-mor, capitão, sargento-mor, era uma forma de identificação que muitos
indivíduos assumiam, e essa identificação definia seu lugar social na hierarquia. Em outros termos,
a partir da influência das formas de hierarquização e relações de poder dadas pelo Antigo Regime,
a incorporação em tropas militares poderia ter significativo peso, pontuando lugares no corpo
social, denotando a qualidade38.

Considerações finais
Dadas as questões ora apresentadas, os dois pontos mais comuns no que concerne aos
temas levantados por esses cirurgiões e encaminhados à esfera régia, são: pedidos de mudança de
posto (do posto de cirurgião ajudante ao mor) e solicitações buscando a confirmação monárquica
de uma provisão já obtida. Como apontado por Laurinda Abreu – e concordamos com tal assertiva
–, “pressente-se que, para muitos dos nomeados, o simples pedido da patente à Coroa funcionava
como uma pré-confirmação do ofício” (Abreu 2018, 507). Frente às urgências cotidianas, e a
demora em obter resposta, muitos dos nomeados entendiam os requerimentos como pré-
autorizações, ainda que, na prática, fossem pedidos iniciais de um processo a ser concluído com a
resposta régia.
Assim sendo, entendemos ser possível a validação da hipótese de que os cirurgiões que se
ligavam às estruturas militares, o faziam com o objetivo39 de galgarem novos degraus de prestígio

38
Para esclarecimentos sobre as noções de mobilidade, Antigo Regime e qualidade ver: (Fragoso, Gouvêa e Bicalho
2000).
39
É evidente que poderiam existir outros objetivos e, certamente esse processo de ascensão (ou desejo de) se dava de
forma inconsciente, além do de melhorar as condições de vida. Todavia, é inegável que em uma sociedade como a de
Antigo Regime, profundamente hierarquizada, era sempre interessante ocupar uma posição superior quando tal
possibilidade existia, pois com ela toda uma notabilidade viria.

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social. Os pedidos para serem alçados à condição de “mor”, e até mesmo a capitão do Regimento,
apontam para um desejo de ascensão, movimento este que traria como consequência uma plêiade
de honras, privilégios e benesses. Grande parte dos requerimentos giravam em torno de tal questão,
isto é, da elevação de posição no interior desses espaços militares.
Tendo em vista essas considerações, acreditamos na possibilidade desses homens utilizarem
da hierarquia militar como meio de alcançar mais altos postos, o que seria mais difícil em outros
espaços em que atuavam. Destacamos tal questão, pontuando, sobretudo, o fato de o ofício da
cirurgia ter sido desmerecido ao longo dos séculos, em detrimento do trabalho do médico graduado
na universidade40. Neste sentido, e como apontado pelos temas dos requerimentos, esses cirurgiões
que atuaram na capitania de Minas Gerais viam na estrutura militar dos Regimentos uma brecha
para obter de mobilidade social, pois tratava-se de uma sociedade estratificada, na qual o trabalho
mecânico era estigmatizado.
Deve-se considerar ainda o fato de nos pautarmos no enquadramento institucional por eles
adotados. Neste caso, o vínculo específico que tinham com os Regimentos militares, e o que
buscavam em seu interior, era a elevação social através das hierarquias militares. Por outro lado,
como apontado em momentos anteriores, eles podiam também buscar percursos de mobilidade
profissional fora dos espaços militares, atuando, por exemplo, como cirurgiões da câmara com
partido41.

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97-122. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 2010.

40
Porém, vale ressaltar que a cirurgia (enquanto área) ganharia um importante relevo quando das reformas dos
Estatutos da Universidade de Coimbra na década de 1770 em Portugal, momento em que se teciam severas críticas à
separação existente entre os campos da cirurgia e o da medicina. Figuras como o médico cristão-novo, António Nunes
Ribeiro Sanches e o clérigo português, Luís António Verney seriam alguns dos nomes a condenar tal separação e, neste
sentido, valorizando o saber cirurgião, pois era o cirurgião o profissional que dominava o saber anatômico. Ver: (Abreu
2007, 80-104)
41
Dentre os nomes citados como cirurgiões de regimento militar, mas que também atuaram como cirurgião de partido
de câmara, citamos a figura de Antônio José Vieira de Carvalho que, além de trabalhar como cirurgião do Regimento
de Cavalaria Regular de Minas, também possuíra vínculo com a câmara de Vila Rica. Ver: BRASIL. Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro. Projeto Resgate. Arquivo Histórico Ultramarino. Ref.: AHU_ACL_CU_011, Cx. 135, Doc. 58.
Disponível em: https://resgate.bn.gov.br/docreader/DocReader.aspx?bib=011_MG&pagfis=67500

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portuguesa, p. 387, 1739. Disponível em: https://digital.bbm.usp.br/handle/bbm/5412

***

Recebido: 24 de abril de 2024


Aprovado: 04 de julho de 2024

220
Resenha
http://doi.org/10.34019/2594-8296.2024.v30.43932

Os ecos dos movimentos estudantis latino-americanos

The echoes of Latin American student movements

Los ecos de los movimientos estudiantiles latinoamericanos

Danielle Barreto Lima*


https://orcid.org/0000-0002-9470-3780

Resenha do livro: Dip, Nicolás. Movimientos estudiantiles en América Latina: Interrogantes para su historia,
presente y futuro. Buenos Aires: CLACSO-IEC-CONADU, 2023.

Como citar esta resenha:


Lima, Danielle Barreto.“Resenha do livro Movimientos estudiantiles en América Latina: Interrogantes para
su historia, presente y futuro, de Nicolás Dip”. Locus: Revista de História, 30, n.1 (2024): 221-226.
***

O título da obra – Movimientos estudiantiles en América Latina: Interrogantes para su historia, presente
y futuro – já orienta o leitor sobre o seu objetivo – como se espera de bons textos: apresentar um
panorama dos movimentos estudantis latino-americanos que, a partir da discussão da história e
análise do presente, possa também pensar o futuro, considerando as diferentes perspectivas de
análise do movimento estudantil em diversos períodos e locais da América Latina, tais como
Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, México e Uruguai, tendo como base os diferentes repertórios
e debates que mobilizam os movimentos estudantis.

*
Doutoranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e
Letras da UNESP (FCLAr – Campus de Araraquara/SP). Mestra em Educação: História, Política, Sociedade pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Autora do livro CCC – Comando de Caça aos Comunistas: Do
estudante ao terrorista (1963-1980), publicado pela Editora Almedina (Lima 2021). Membro da Red de Estudios sobre
Conflictos Universitarios y Movimientos Estudantiles (RECUME) e do Grupo de Estudios Sobre Movimientos
Estudiantiles de América Latina y el Caribe (GEMEALC). E-mail: [email protected].

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Danielle Barreto Lima | Os ecos dos movimentos estudantis latino-americanos

O autor do livro, Nicolás Dip, é doutor em História e sociólogo pelo Faculdade de


Humanidades e Ciências da Educação da Universidade Nacional de La Plata (UNLP). Hoje, atua
como investigador no Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (CONICET) e é
professor na graduação e pós-graduação na Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM)
e tem se dedicado à investigação dos movimentos estudantis, aos estudos sócio-históricos das
esquerdas e à história recente das universidades e intelectuais da América Latina, com vasta e
relevante produção acadêmica a respeito do tema, sendo, inclusive, um dos articuladores da Red
de Estudios sobre Conflictos Universitarios y Movimientos Estudiantiles (RECUME) e do Grupo
de Estudios Sobre Movimientos Estudiantiles de América Latina y el Caribe (GEMEALC), grupos
que reúnem pesquisadores da área oriundos de diversas nacionalidades, incluindo acadêmicos
brasileiros.
Por meio de interrogações que têm como principal objetivo suscitar reflexões, para além
de serem respondidas exaustivamente, o autor analisa historicamente os movimentos estudantis
latino-americanos, estabelecendo conexões entre a sua atuação no começo do século XX e o que
agora se afigura. Para esta tarefa, dialoga com pesquisadores como Andrés Donoso (2020), Denisse
Cejudo (2019), Marialice Foracchi (1969; 1972) e Ordorika (2022), entre outros. Sobre este aspecto,
ainda que não se desconsidere a proposta e o que se espera de um livro de bolso, muito menos a
qualidade e relevância da obra, importa apontar a dificuldade em atingir o objetivo de realizar um
diálogo completo com a bibliografia produzida nos países latino-americanos. Pode-se citar, por
exemplo, que, apesar de o Brasil ter vasta produção sobre o movimento estudantil em geral e sobre
o ano de 1968 em particular, somente a obra de uma pesquisadora brasileira, Marialice Foracchi
(1969; 1972), é citada.
Partindo da premissa básica que é determinar a natureza dos movimentos estudantis, o
autor analisa sua importância, tomando como ponto de partida a Reforma Universitária de Córdoba
de 1918. Em sequência, analisa o emblemático ano de 1968, com suas repercussões em diferentes
países, tais como México e Brasil, sobretudo questionando se existiu um “68” latino-americano.
Sua análise chega às experiências feministas contemporâneas dentro dos movimentos estudantis,
ainda que também aponte a efetiva participação das mulheres em outros momentos da história.
Conceituar o que é movimento estudantil implica pensar que a sua existência depende de
“organización política de los estudiantes con la finalidad de enfrentar problemáticas o enarbolar
demandas que los inquietan como colectivo” (Dip 2023, 17). Para Nicolás Dip, ainda que os
ativismos estudantis possam surgir de ações mais ou menos espontâneas, a consolidação como
movimento estudantil depende de um certo grau de organização, coordenação e institucionalização,
o que aponta para a necessidade de abandonar a ideia de uma educação despolitizada.

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Danielle Barreto Lima | Os ecos dos movimentos estudantis latino-americanos

Discussão que atravessa os estudos sobre os movimentos estudantis é o duplo entre as


dimensões política e educativa de sua atuação, já que as problemáticas estudantis unem demandas
educacionais com outras que carregam fortes elementos políticos e sociais (Dip 2023, 19). Importa
dizer que essa dita dicotomia entre a atuação política e estudantil foi bastante presente nos
movimentos estudantis que atuaram contra o regime militar brasileiro (1964-1985), questão que
existia, inclusive, entre os ativistas estudantis (Valle 2008).
Apresentando as posturas divergentes dentro das discussões feitas na academia sobre a
importância, no âmbito acadêmico e além dele, dos movimentos estudantis – de um lado, há as
que neguem a influência dos estudantes nos processos políticos; de outro, há as que enaltecem os
movimentos com rituais que buscam a autocelebração –, o autor propõe que os estudos dos
movimentos estudantis tenham como premissa uma análise que não se atenha a somente um dos
pontos de vista, de forma a fomentar o debate a respeito do tema, explorando zonas menos
conhecidas.
Exemplificando a importância de lançar luz a aspectos ainda pouco explorados sobre os
movimentos estudantis, o autor reflete sobre os antecedentes da Reforma Universitária de Córdoba
de 1918, destacando a importância do Primeiro Congresso de Estudantes Americanos, ocorrido
em Montevidéu em 1908, que exigia publicamente o direito dos estudantes de participar dos órgãos
de governo universitário. Segundo Nicolás Dip, o encontro repercutiu sobremaneira no país
anfitrião que, inclusive, acabou por aprovar uma lei orgânica universitária que reconhecia um
conselheiro estudantil.
Outro grande marco dos movimentos estudantis analisado pelo autor é o “emblemático”
ano de 1968. Para Nicolás Dip, ainda que essa data ainda seja utilizada para contar a história de um
protagonismo estudantil ligado quase que com exclusividade ao “Maio francês”, estudos recentes
mostraram que houve um “68” próprio, dentro da especificidade latino-americana. Surgindo de
protestos estudantis, se uniu a outros setores da sociedade recebendo como resposta a repressão
do Estado. Como exemplo, pode-se citar o ocorrido no México em 2 de outubro de 1968, em que
estudantes foram massacrados pela polícia na Praça das Três Culturas de Tlatelolco, sem que a
identidade dos agressores e a quantidade de vítimas tenham sido, até o momento, determinadas
(Dip 2023, 33). Ainda que tal fato não seja mencionado pelo autor, importa dizer que, no mesmo
dia deste massacre, ocorria, no Brasil, um evento que ficou conhecido como a “Batalha da Maria
Antônia”, protagonizado pelo movimento estudantil e que terminou com a morte de um estudante
e a destruição do prédio de uma faculdade que era uma espécie de reduto do movimento estudantil
de oposição ao regime militar que vigorava no país (Lima 2021). Por fim, o autor entende o ano de

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Danielle Barreto Lima | Os ecos dos movimentos estudantis latino-americanos

1968 como um marco que sintetiza a atuação dos movimentos estudantis nas duas décadas
seguintes.
Com o olhar mais fincado no presente e no futuro dos movimentos estudantis, Nicolás
Dip discorre sobre se, na atualidade, os movimentos estudantis estão vivos e se há “lugares-
comuns” na história e no presente dos ativismos estudantis.
O autor, com a preocupação de não destacar de forma acrítica os movimentos estudantis,
menciona que os exemplos trazidos por ele têm como objetivo questionar a ideia de parte da
academia que aponta a apatia e a perda de vitalidade dos movimentos estudantis. Nicolás Dip
contrapõe a perspectiva que, especialmente a partir dos anos 1990, declarou a “morte” do ativismo
estudantil – ideia que guarda relação com o avanço do neoliberalismo – com exemplos de atuação
dos movimentos estudantis, tais como a greve e a ocupação de uma das maiores instituições de
ensino superior latino-americana, a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM), entre
os meses de abril de 1999 e fevereiro de 2000. Ainda que o protesto tenha terminado com a prisão
de estudantes, o objetivo dos ativistas estudantis foi atingido: a instituição permanece gratuita até
os dias atuais.
Todavia, apesar da relevância da “Greve de 99 na UNAM”, o autor assinala a importância
de não entender o evento como algo isolado: para tanto, exemplifica relatando o caso ocorrido
entre outubro de 1986 e fevereiro de 1987, em que um movimento estudantil encabeçado pelo
Conselho Estudantil Universitário (CEU) deteve as tentativas de reforma propostas por Jorge
Carpizo, então reitor da UNAM, que tinham como objetivo aumentar os valores para matrícula,
dificultar os critérios de ingresso e permanência, entre outras alterações. Depois deste feito, o
movimento estudantil em questão conseguiu realizar, em 1990, um congresso universitário para a
discussão de outras mudanças mais profundas, tais como a participação estudantil nos órgãos
universitários. Todavia, por ter perdido a sua força, não foi capaz de levar a contento suas propostas
de democratização da universidade (Dip 2023, 41).
Passando pela irrupção de movimentos estudantis da década de 1980 que enfrentaram
governos militares e autoritários na Argentina, Brasil, Chile, Guatemala, El Salvador, entre outros,
e um dito enfraquecimento dos movimentos estudantis da década de 1990 – motivado também
pelos ataques à educação pública que vinham ocorrendo –, o autor chega ao século XXI, em que
movimentos estudantis tais como a “Revolución Pingüina”, organizada em 2006 por estudantes
secundários no Chile, conseguiu instituir a chamada Assembleia Nacional de Estudantes
Secundários (ANES), que retomou os debates sobre o direito à educação após os processos de
privatização e tarifação impostos pela ditadura de Augusto Pinochet. Nicolás Dip aponta que, anos
depois, em 2011 e novamente no Chile, a Confederação de Estudantes Chilenos (CONFECH)

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Danielle Barreto Lima | Os ecos dos movimentos estudantis latino-americanos

conseguiu tornar gratuita a educação e extinguir as instituições com fins de lucro. Neste ponto, é
importante mencionar o apoio popular que, segundo o autor, o movimento estudantil recebeu.
Apoio que, inclusive, “generó condiciones para el triunfo de la izquierda en las elecciones
presidenciales de 2013” (Dip 2023, 44).
Além do caso chileno, o autor discorre sobre um grande protesto estudantil ocorrido na
Colômbia, em 2011, em que estudantes universitários conseguiram impedir alterações na legislação
que regulava a educação superior do país, uma vez que estas, além de apresentarem tendência
privatista, impunham restrições ao autogoverno universitário. Segundo Nicolás Dip, os
movimentos estudantis chileno e colombiano “se desarrollaron contemporáneamente a un
conjunto de movimientos de escala global y con un fuerte componente juvenil” (Dip 2023, 46).
Destaque, no México, para o movimento “#YoSoy132”, em 2012, por “su capacidad de
criticar el vínculo entre el autoritarismo del régimen político y el monopolio informativo de los
grandes medios de comunicación” (Dip 2023, 47) e o movimento que surgiu em 2014, após o
ataque violento a estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, em 26 de setembro deste
mesmo ano, que resultou na morte de 6 pessoas – uma delas estudante – e o sequestro e
desaparecimento de 43 estudantes – dos quais não se sabe o paradeiro até então.
Ao tratar dos “lugares-comuns” que rondam o estudo sobre os movimentos estudantis,
Nicolás Dip discorre sobre a importância de explorar outros períodos, atores e temáticas sobre o
tema, tais como a participação das mulheres no ativismo estudantil. Segundo o autor, desde a
segunda década do século XXI, o movimento feminista vem ganhando força nas universidades de
toda região, denunciando a violência contra a mulher e as questões de gênero no interior das
instituições escolares.
Outra zona que merece atenção refere-se à atuação dos estudantes alinhados politicamente
às pautas da direita política e que também atuam nos espaços estudantis. Por fim, o autor assinala
a importância de analisar a história dos movimentos estudantis para além dos eixos regionais que
recebem o foco nas pesquisas, quais sejam, Brasil, Argentina, Chile, México e suas capitais.
O autor usa a metáfora dos ecos – “grandes temáticas y debates que se van deshilvanando
en múltiples controversias” (Dip 2023, 65) – para iniciar seu livro e retoma a questão ao finalizá-
lo. Como ecos, as perguntas que orientam, organizam e finalizam cada um dos capítulos do livro,
ressoam como aporte para que se olhe de maneira holística para os movimentos estudantis latino-
americanos, para que se pense a sua importância e protagonismo não só no âmbito universitário,
mas além dele.
Nicolás Dip adverte, logo no início do seu texto, que sua obra é um “libro de bolsillo”, por
sua característica de condensar, em poucas páginas, os temas que busca tratar (Dip 2023, 15). O

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Locus: Revista de História, Juiz de Fora, v. 30, n. 1, 2024
Danielle Barreto Lima | Os ecos dos movimentos estudantis latino-americanos

que se sente ao final da leitura, entretanto, é mais que isso: o livro pode ser denominado assim não
só pela quantidade de páginas – e pela árdua tarefa de discorrer sobre um tema tão relevante em
tão curto espaço –, mas pelo fato de, mesmo após seu término, seguir acompanhando o leitor –
como um bom “libro de bolsillo” –, por meio dos ecos das interrogações que ele propõe e das
reflexões que suscita, elementares para quem se interessa e pesquisa o tema.

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Recebido: 18 de março de 2024


Aprovado: 24 de junho de 2025

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