Morte e Vida Severina
Morte e Vida Severina
Morte e Vida Severina
Informativos Gerais
Relação com os 100 anos de Arapiraca;
Será uma releitura, tendo em vista as condições
apresentadas;
Mais de um Severino, pois ele não foi o primeiro, único, e
nem o último a passar pelas adversidades do sertão
nordestino;
Tempo de apresentação será de 20 a 25 minutos;
Gravação das falas: 24 e 25 de setembro;
Dia do projeto: 25 de outubro;
Iremos encerrar o projeto;
Pontuação: Será dividido com o projeto de
empreendedorismo.
Personagens e Funções
SEVERINO — Mais sorte tem o defunto irmãos das almas, pois já não fará
na volta a caminhada.
PESSOA 1 — O cemitério não cai longe, irmãos das almas, seremos no
campo santo de madrugada.
SEVERINO — Partamos enquanto é noite irmãos das almas, que é o
melhor lençol dos mortos noite fechada.
SEVERINO —— Pois então tá certo, não vou mais lhe amolar. Estou indo
embora agora e procurar o meu lugar.
—— Bem me diziam que a terra se faz mais branda e macia quando mais
do litoral a viagem se aproxima. Agora afinal cheguei nesta terra que
diziam. Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui têm água vitalícia. Cacimbas por todo lado
cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade o que pensei ser
mentira Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina? Não tenho
medo de terra (cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço contra
a piçarra da Caatinga será fácil amansar esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém, só folhas de cana fina somente ali à distância
aquele bueiro de usina somente naquela várzea um bangüê velho em
ruína. Por onde andará a gente que tantas canas cultiva? Feriando: que
nesta terra tão fácil, tão doce e rica, não é preciso trabalhar todas as horas
do dia, os dias todos do mês, os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui jamais envelhece aos trinta nem sabe da morte em
vida, vida em morte, severina e aquele cemitério ali, branco de verde
colina, decerto pouco funciona e poucas covas aninha.
COVEIRO 1 —— O dia hoje está difícil não sei onde vamos parar. Deviam
dar um aumento, ao menos aos deste setor de cá. As avenidas do centro
são melhores, mas são para os protegidos: há sempre menos trabalho e
gorjetas pelo serviço e é mais numeroso o pessoal (toma mais tempo
enterrar os ricos).
COVEIRO 2 —— pois eu me daria por contente se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de Casa Amarela não estarias a reclamar. De trabalhar
no de Santo Amaro deve alegrar-se o colega porque parece que a gente
que se enterra no de Casa Amarela está decidida a mudar-se toda para
debaixo da terra.
COVEIRO 1 —— é que o colega ainda não viu o movimento: não é o que se
vê. Fique-se por aí um momento e não tardarão a aparecer os defuntos
que ainda hoje vão chegar (ou partir, não sei). As avenidas do centro, onde
se enterram os ricos, são como o porto do mar não é muito ali o serviço:
no máximo um transatlântico chega ali cada dia, com muita pompa,
protocolo, e ainda mais cenografia. Mas este setor de cá é como a estação
dos trens: diversas vezes por dia chega o comboio de alguém.
COVEIRO 2 —— Mas se teu setor é comparado à estação central dos trens,
o que dizer de Casa Amarela onde não para o vaivém? Pode ser uma
estação mas não estação de trem: será parada de ônibus, com filas de
mais de cem.
COVEIRO 1 —— Então por que não pedes, já que és de carreira, e antigo,
que te mandem para Santo Amaro se achas mais leve o serviço? Não creio
que te mandassem para as belas avenidas onde estão os endereços e o
bairro da gente fina: isto é, para o bairro dos usineiros, dos políticos, dos
banqueiros, e no tempo antigo, dos bangunlezeiros (hoje estes se
enterram em carneiros) bairro também dos industriais, dos membros das
associações patronais e dos que foram mais horizontais nas profissões
liberais.
COVEIRO 2 —— Só pedi que me mandasse para as urbanizações discretas,
com seus quarteirões apertados, com suas cômodas de pedra.
COVEIRO 1 —— Esse é o bairro dos funcionários, inclusive
extranumerários, contratados e mensalistas (menos os tarefeiros e
diaristas). Para lá vão os jornalistas, os escritores, os artistas ali vão
também os bancários, as altas patentes dos comerciários, os lojistas, os
boticários, os localizados aeroviários e os de profissões liberais que não se
libertaram jamais.
COVEIRO 2 —— Também um bairro dessa gente temos no de Casa
Amarela: cada um em seu escaninho, cada um em sua gaveta, com o nome
aberto na lousa quase sempre em letras pretas. Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.
COVEIRO 1 —— Gorjetas aqui, também, só dá mesmo a gente rica, em
cujo bairro não se pode trabalhar em mangas de camisa onde se exige
quepe e farda engomada e limpa.
COVEIRO 2 —— Mas não foi pelas gorjetas, não, que vim pedir remoção: é
porque tem menos trabalho que quero vir para Santo Amaro aqui ao
menos há mais gente para atender a freguesia, para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.
COVEIRO 2 —— Passo para o dos industriários, que também é o dos
ferroviários, de todos os rodoviários e praças-de-pré dos comerciários.
COVEIRO 1 —— Passas para o dos operário, deixas o dos pobres vários
melhor: não são tão contagiosos e são muito menos numerosos.
COVEIRO 2 —— é, deixo o subúrbio dos indigentes onde se enterra toda
essa gente que o rio afoga na preamar e sufoca na baixa-mar.
COVEIRO 1 —— é a gente sem instituto, gente de braços devolutos são os
que jamais usam luto e se enterram sem salvo-conduto.
COVEIRO 2 —— é a gente dos enterros gratuitos e dos defuntos
ininterruptos.
COVEIRO 1 —— é a gente retirante que vem do Sertão de longe.
COVEIRO 2 —— Desenrolam todo o barbante e chegam aqui na jante.
COVEIRO 1 —— E que então, ao chegar, não tem mais o que esperar.
COVEIRO 2 —— Não podem continuar pois têm pela frente o mar.
COVEIRO 1 —— Não têm onde trabalhar e muito menos onde morar.
COVEIRO 2 —— E da maneira em que está não vão ter onde se enterrar.
COVEIRO 1 —— Eu também, antigamente, fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei que jamais entenderei: essa gente do Sertão que desce
para o litoral, sem razão, fica vivendo no meio da lama, comendo os siris
que apanha pois bem: quando sua morte chega, temos que enterrá-los em
terra seca. —— Na verdade, seria mais rápido e também muito mais
barato que os sacudissem de qualquer ponte dentro do rio e da morte.
COVEIRO 2 —— O rio daria a mortalha e até um macio caixão de água e
também o acompanhamento que levaria com passo lento o defunto ao
enterro final a ser feito no mar de sal.
COVEIRO 1 —— E não precisava dinheiro, e não precisava coveiro, e não
precisava oração e não precisava inscrição.
COVEIRO 2 —— Mas o que se vê não é isso: é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia morre gente que nem vivia.
COVEIRO 1 —— E esse povo de lá de riba de Pernambuco, da Paraíba, que
vem buscar no Recife poder morrer de velhice, encontra só, aqui chegando
cemitério esperando.
COVEIRO 2 —— Não é viagem o que fazem vindo por essas caatingas,
vargens aí está o seu erro: vêm é seguindo seu próprio enterro.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, que habita este lamaçal, sabes
me dizer se o rio a esta altura dá vau? sabe me dizer se é funda esta água
grossa e carnal?
HOMEM —— Severino, retirante, jamais o cruzei a nado quando a maré
está cheia vejo passar muitos barcos, barcaças, alvarengas, muitas de
grande calado.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, para cobrir corpo de homem não
é preciso muito água: basta que chega o abdome, basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
HOMEM —— Severino, retirante pois não sei o que lhe conte sempre que
cruzo este rio costumo tomar a ponte quanto ao vazio do estômago, se
cruza quando se come.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, e quando ponte não há? quando
os vazios da fome não se tem com que cruzar? quando esses rios sem água
são grandes braços de mar?
HOMEM —— Severino, retirante, o meu amigo é bem moço sei que a
miséria é mar largo, não é como qualquer poço: mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu nem tem onde se enterrar, por que ao puxão
das águas não é melhor se entregar?
HOMEM —— Severino, retirante, o mar de nossa conversa precisa ser
combatido, sempre, de qualquer maneira, porque senão ele alarga e
devasta a terra inteira.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, e em que nos faz diferença que
como frieira se alastre, ou como rio na cheia, se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
HOMEM —— Severino, retirante, muita diferença faz entre lutar com as
mãos e abandoná-las para trás, porque ao menos esse mar não pode
adiantar-se mais.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, que lhe pergunte permita: há
muito no lamaçal apodrece a sua vida? e a vida que tem vivido foi sempre
comprada à vista?
SEVERINO —— Severino, retirante, sou de Nazaré da Mata, mas tanto lá
como aqui jamais me fiaram nada: a vida de cada dia cada dia hei de
comprá-la.
HOMEM —— Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga, há nessa
vida a retalho que é cada dia adquirida? espera poder um dia comprá-la
em grandes partidas?
HOMEM —— Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que
espere comprar em grosso tais partidas, mas o que compro a retalho é, de
qualquer forma, vida.
SEVERINO —— Seu José, mestre carpina, que diferença faria se em vez de
continuar tomasse a melhor saída: a de saltar, numa noite, fora da ponte e
da vida?
CIGANA 1 —— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor. Foi por ele que o
Rio Perucaba não elevou.
CIGANA 2 —— Foi por ele que o rio fez parar o seu motor: a lama ficou
coberta e o mau-cheiro não voou.
CIGANA 1 —— E a alfazema do sargaço, ácida, desinfetante, veio varrer
nossas ruas enviada do rio distante.
CIGANA 2 —— E a língua seca de esponja que tem o vento terral veio
enxugar a umidade do encharcado lamaçal.
CIGANA 1 —— Todo o céu e a terra lhe cantam louvor e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
CIGANA 2 —— Cada casebre se torna no mocambo modelar que tanto
celebram os sociólogos do lugar.
CIGANA 1 —— E a banda de maruins que toda noite se ouvia por causa
dele, esta noite, creio que não irradia.
CIGANA 2 —— E este rio de água, cega, ou baça, de comer terra, que
jamais espelha o céu, hoje enfeitou-se de estrelas.
HOMEM —— Severino, retirante, deixe agora que lhe diga: eu não sei bem
a resposta da pergunta que fazia, se não vale mais saltar fora da ponte e
da vida nem conheço essa resposta, se quer mesmo que lhe diga é difícil
defender, só com palavras, a vida, ainda mais quando ela é esta que vê,
severina mas se responder não pude à pergunta que fazia, ela, a vida, a
respondeu com sua presença viva.
E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente,
se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida mesmo
quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida como a de há
pouco, franzina mesmo quando é a explosão de uma vida severina.
Fim da peça.