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CADERNOS LITERÁRIOS N 17

A POESIA DE JAYME PAVIANI: DESCRENÇA E APREENSÃO

Antônio Carlos Mousquer

Nascido no dia 4 de junho de 1940, em Nova Pádua, distrito de Flores da Cunha (RS), Jayme
Paviani tem, além de uma extensa produção literária, destacada atuação no meio universitário.
Possui Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Doutorado em Letras pela mesma instituição e Pós-Doutoramento em Filosofia pela Universidade
de Pádova, Itália. Suas publicações, estudos e ensaios ultrapassam o solo da poesia e estendem-se ao
campo da Estética e da Filosofia. Exerce a docência nas Universidades de Caxias do Sul com
passagens pela PUCRS, em Porto Alegre, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São
Leopoldo, e pela Universidade Federal de São Carlos, no Estado de São Paulo.

1 – A descrença

Do conjunto da obra poética de Jayme Paviani,composta dos livros Matricula,Onze horas


úmidas, Águas de colônia, O exílio dos dias, Agora e na hora das origens, Poemas: 1967-1987 e
Antes da palavra, assinalam-se alguns tópicos, como uma poesia baseada em elementos
remanescentes e referenciais. Nela, o foco poético direciona-se para reflexões cujo objeto é o
homem na sua existência e questões daí advindas, como a passagem do tempo e o sentido das
coisas. Suas meditações, muitas vezes, são tingidas de uma conotação sutilmente erótica. É peculiar
também o exercício de registrar a transitoriedade, marcada pela recorrência de semânticas
itinerantes. A ênfase ao complexo e à tradição é outro posicionamento tomado pelo poeta. Tais
indicações são depreendidas da dialetização de opostos, da expressão lírica ultrapassando o palpável
e o sentido para decifrar a problemática do existir e do apego à memória.

O problema da representação do sujeito lírico na modernidade e suas decorrências como a


desagregação, a ineficácia e o desequilíbrio constituem pontos temáticos recorrentes ao longo da
produção poética de Paviani e se estendem ao manuseio com a palavra; por isso a preocupação com
a exatidão e a pontualidade do signo. Tais indicações e o labor depreendido deixam marcas na
linguagem dos poemas, que, por sua vez, não só não se entregam com facilidade, como transitam
em sua busca de eficácia e compreensão entre o vago e o impreciso. Há, ainda, como suprimento
buscado frente ao impasse da significação e a sua mobilidade, as reminiscências associadas ao
espaço natural, cuja perenidade e completude contrastam com a efemeridade e a fragmentação aos
tempos modernos associadas.
Ao detectar a dupla absorção que Baudelaire faz da cidade, Hugo Friedrich mostra o apego
do poeta à modernidade, “enquanto conduz a novas experiências” e a recusa frente aos produtos do
seu avanço, como “o progresso material e o racionalismo cientifico”. 1 Jayme Paviani, inserido no
contexto da Serra gaúcha, traz para o interior da representação artística o contraponto positivo à
imprecisa e indecifrável realidade que o homem constrói.

Nascida de reminiscências e da atuação dos sentidos voltados ao contexto circundante, a


vida campestre e seus artefatos, pela completude com que se apresenta, adquire consagração e toma

1
FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p.66.

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feição compensatória na subjetividade que se expressa. Por meio da nomeação, um resgate que traz
à vida o já temporalmente distante, o poeta reencontra, como na poesia “Moinho sonolento”, uma
vivência que agora se mostra latente:

O ruído das rodas


do moinho sonolento
fantasma de pedra
manso sob as águas
ainda trabalha
dentro de mim.

Brincava menino
à beira de abismos
de beleza profunda. (MA, 16)2

Em outros momentos, como em “Ausência”, essa notação impregna-se de ausência e, pelo


reconhecimento do já distante, encaminha a uma nostalgia intensa:

As árvores roubam a solidão.


As árvores na tarde fria.
Na sala já não arde a lareira
ninguém abre a porta
deixando entrar uma lufada fria.
Ninguém traz notícias
se há casimira na venda
se a Elizabete vai casar
se a estrebaria ficou aberta. (MA, 17)

A incorporação pela poesia de circunstâncias ligadas ao já experimentado e à finitude não


assimilada mostra a força ativa do devaneio, não obstante o tom enternecido do sujeito que fala. O
acordo que se estabelece entre o homem e o transcurso do tempo, reside na transformação desse
estado em matéria de poesia, que, por sua vez, é origem e finalidade da criação artística em
“Infância”:

A minha infância resume-se


nessa história do homem de óculos
que posso contar:
era uma vez um homem de óculos
devagar e sem ruído
foi roubando minha infância.
E a poesia ficou sendo uma canção de exílio. (MA, 25)

O vagar impreciso que envolve o tempo e suas decorrências, como a efemeridade e o


transcurso, fica tematizado em “Poema do mar”:

O homem em viagem
habita o lugar.
Tudo é longe
para se poder ficar. (OM, 34)

2
Os poemas serão identificados pela colocação entre parênteses do nome do livro de origem e da respectiva página.

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Além disso, afirma-se ele como exemplaridade de um modo mais amplo, o de uma singular
experiência de criação na qual o indecifrável e a inexatidão são a tônica. Por isso, o poema se faz
não apenas sobre os sobressaltos no movimento da palavra a caminho da significação, como
também sobre a inocuidade da comunicação. Essa disposição temática fica constatada em
“Margens”, por meio da exaltação da natureza e de sua autonomia frente ao convencionalismo
lingüístico:

Os cordeiros
não sabem o que dizem
às águas do rio.

Nas margens da noite


há excessos de mistério.
Quem rompe a aurora?

Ninguém sabe
o início e o fim. (ED, 126)

e também em “Verão”:

O pescador que passa


sabe o gemido
das ondas. (AP, 257)

A lacuna problemática entre a experiência e o seu registro leva à idealização da natureza,


plena em seu oferecimento e em sua autonomia, e em contraponto positivo ao embate da
significação e da evidência através da linguagem. Essa descrença na atividade significativa fica
expressa em “Imagem”: “A palavra verde/ não arde” (AP, 207), quando se mostra a dificuldade da
palavra em incorporar o sentido.

No conjunto da obra essa desconfiança toma dimensão mais ampla e efetiva, a de um


procedimento adotado de forma recorrente por Paviani: a retomada e a reelaboração dos poemas,
uma tentativa de alcançar a pontualidade. A incorporação desse conflito, o da evidência que não se
plenifica e não se pereniza, e a tentativa de equacioná-lo ocupam o interior da expressão poética no
poema citado: “Aguardo como pedra de margem/ o rio do início ao fim” (AP, 207).

A efemeridade da significação e a dificuldade da palavra em fixar, em exprimir e em fazer


conhecer, apresentam-se diante da percepção do poeta como contraponto às coisas naturais, plenas
em sua essência. Essa descrença pode ser revertida, como fica registrada em “Signos desprovidos de
espanto”, com a correspondência entre o signo e os objetos do mundo:

Palavras de pássaros se cruzam


na beleza do rio. (AP, 200)

O processo comunicativo não implica, sob a ótica do poeta, um jogo sempre válido, pois a
determinação do sujeito que fala frente ao outro pólo dessa relação nem sempre encaminha à
significação. Por vezes, conforme se vê em “Diálogo”, e como decorrência da ausência de alcançar
a plenitude, tem-se a falência do discurso:

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Falar dos rios sem margens


de teus pés tão frágeis
dos dias insuportáveis
do papel que se amassa
(carta que se volta a guardar)
é antes de tudo silenciar. (AP, 210)

A louvação exaltada à essencialidade, que a palavra luta em alcançar e que as disposições da


modernidade não envolvem, mostra a recusa ao convencionalismo e às disposições arbitrárias, que,
sob a ótica do poeta, são inócuas em seu devir. A dúvida em relação ao signo e à modernidade que
se revela na cidade fica ratificada no apego à imagem do rio, fluxo que avança desregrado, como em
“Mambituba” – “o rio distraído/ torna-se mar”. (AP, 236)

Os versos acima definem como significação primária o caminho à indiferenciação, o do


ajuntamento das águas e, num segundo momento, o alcance de uma elevação. Porém, há que se
destacar, no caso da segunda evidência, uma implicação mais ampla, a da realidade como fluxo,
essa uma notação que o foco poético, quando incide sobre a cidade, conforme se vê a seguir, nela
não detecta.

O poeta faz, na cidade, a exorcização a sua feição generalista, a sua efemeridade e a sua
incapacidade de atender às necessidades do homem, lacunas que também a palavra, segundo vê o
artista, ao não chegar à essencialidade, não preenche, um ponto nada pacífico da poética de Paviani.
A perda da fé na eficácia da palavra contrasta com a plenitude que a natureza em si congrega, como
fica demonstrado em “O cão”:
O homem e suas cautelas
de abandono. As cadelas
espontâneas mexem o rabo.
O mundo é cela.
O cão livre é morno
sabe o íntimo do dono
sem a prudência da palavra
que mente. (ED, 134)

A inferência do homem no mundo por meio da palavra aparece minimizada pelo reforço na
força instintiva que suplanta o intelecto. O conflito com a palavra encaminha à louvação da
natureza, fundadora do reino do conhecimento, ao contrário da obscuridade do signo que, muitas
vezes, não revela a verdade e não chega à essência. De modo conseqüente, como se vê em “O
círculo”, o artista estende essa descrença à modernidade, entendendo-a como o espaço da
desrealização e do ilusório: “O mundo se dilui nas sombras”. (ED, 109)

A modernidade, que tem o aglomerado urbano como explanação, ocupa o centro do poema
“A cidade”. Nesse texto, o poeta traça um retrato impiedoso da formação urbana. Desprovida de
multiplicidade e de individuação, ela conduz, de acordo com a contigüidade apresentada no interior
da matéria poética, do homem, da lata e da máscara, ao apagamento do humano e ao desvelar de
uma noção fundamental da poesia moderna levantada por Baudelaire – o reconhecimento do
impacto que a cidade causa:
Latas e máscaras
da noite, a cidade
o mesmo homem
a mesma mulher. (ED, 108)

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A objetivação do que a cidade consagra e compreende implica o distanciamento dos dados


empíricos, a razão última da estética romântica ao associar poesia e experiência, porém negada pela
poesia moderna ao realizar a despersonalização. Como aponta Hugo Friedrich em seu olhar sobre o
poeta francês, “Baudelaire justifica a poesia em sua capacidade de neutralizar o coração pessoal”. 3
Dentro dessa perspectiva, inclui-se a realização, por Paviani, de um estilo imune ao
confessionalismo. Isso se pode perceber pela ausência, em seu fazer artístico, da subjetividade na
expressão, por meio do afastamento da primeira pessoa, das impressões e dos sentimentos, salvo
aqueles momentos em que o sujeito volta-se a reminiscências, como em “Elegias”:

Não vejo tua figura no prado


plantando e recolhendo com suor
mas todos sentem a presença
de uma absoluta ausência
que nos diz a luz do sol e
os primeiros brotos das árvores. (AH, 188)

O labor com que o poeta se debruça sobre o observado e o organiza tem como traço
proeminente a opção por definitivos, um fazer que não só deixa ver a arbitrariedade que a seleção
reveste, como quebra, com causalidades, o fruto maduro da inspiração. A distribuição, no poema, do
que o sujeito colhe e a arquitetura dessa elaboração definem um modo de realização artística no
qual, de acordo com o próprio autor, o trabalho com a palavra é a tônica. Essa intenção é ratificada
por Paviani em uma entrevista ao afirmar: “De nosso lado, a preocupação maior foi tão-somente a
fidelidade à palavra”.4

De modo mais amplo, o poeta afirma, como mostra em “Profecia”, a confiança na poesia e
em sua contraposição – a rudeza e a efemeridade características da modernidade:

Na cidade futura
não haverá desperdício
apenas poesia
no corpo nu da palavra,
a solidão dos prados. (AC, 70)

O distanciamento entre a pessoa empírica e a unidade da poesia, uma característica


sublinhada pela literatura moderna, implica a supremacia do fazer sobre a expressão e a conversão,
em conteúdos poéticos, daquilo que a realidade oferece, ao invés dos estados anímicos. A cidade
moderna e seus matizes descoloridos e sombrios passam a fornecer o material sobre o qual o artista
se volta. O artificial, oposto à natureza pujante e de modo fundamental o manancial da satisfação,
alça sentido poético em “Lascivas ruas”:

À noite, os homens
na lataria das ruas
procuram a si próprios,
o fruto eqüidistante
é difícil de colher.
Os pés, pisando outras uvas,
os braços, em súplica,
o mosto, o gosto da solidão. (ED, 115)

3
Id. Ib. p. 37.
4
HOHLFELDT, Antonio. Quatro poetas da região do vinhedo preparam um novo livro: “Matrícula”. Correio do Povo,
Porto Alegre, 13 dez. 1977. Caderno de Sábado, p. 17.

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O retrato que o poeta traça da modernidade e a elevação artística do que a ela se associa não
se reduzem, como aponta Friedrich ao se deter sobre Baudelaire, no “resgate da decadência, mas no
pressentir uma beleza misteriosa, não descoberta até então”. 5 Assim, a cidade desenhada pela
representação poética tem sua fealdade transformada pelo arranjo imagético que alicerça o feio e o
degradado em uma beleza alheia ao que comumente a ela está associado. O poema “A roda dos
dias” inscreve-se nessa realização:

Um grande armazém é a cidade!


Os braços erguidos das pedras
derrubam as estrelas,
os transeuntes escoam pelo cimento,
as crianças e os mendigos
como lixo das ruas. (MA, 14)

De igual elaboração, a que tematiza os materiais constitutivos da aglomeração urbana e suas


decorrências sociais e econômicas, o artífice promove em “Canto de salvação” a intensificação dos
aspectos dissonantes da metrópole, quais seriam, miséria e avanço tecnológico:

Mendigos e coxos
tomam conta da cidade,
a pureza dos brinquedos os salva
do grande incêndio da técnica,
o grito silencioso das rosas,
o desejo de viver
fere a realidade
do homem íntimo e estrangeiro
que habita sob o mesmo teto. (MA, 12)

A organização, no interior da representação poética, dos contrários, conforme faz Paviani ao


agregar oposições, formaliza um procedimento enraizado no pensamento do filósofo pré-socrático,
Heráclito, e a seguir desvelado: o encontro com a significação a partir da coincidência de opostos. O
aproveitamento do fogo enquanto princípio de evolução e da realidade como fluxo (nesse último,
note-se a referência ao rio) são pontos aproveitados pelo poeta e apresentados no segmento a seguir.

2 – A apreensão

A analogia que Paviani mantém com as propostas advindas da filosofia, um registro


patenteado ao longo de sua produção, fica perceptível na tomada de um estilo que privilegia a
consolidação de um conhecimento vinculado aos preceitos levantados por Heráclito 6. Há, ainda,
nesse fazer, a indução à biografia do poeta, mais especificamente à sua formação acadêmica e uma
especificidade em sua atividade como artista decifrador, não obstante a busca desse amparo
filosófico tenta atenuar a perplexidade frente ao vazio da essencialidade nos tempos modernos.

5
. FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975 p. 43.
6
Marilena Chauí destaca como temas fundamentais do pensamento de Heráclito: a realidade como fluxo ou devir
permanente e terno; a guerra dos contrários como justiça e ordem do mundo; a unidade da multiplicidade ou da luta e
oposição dos contrários; o fogo como physis e a crítica dos que imaginam poder conhecer as coisas pela simples
observação sensorial ou empírica. In: CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Brasiliense,
1984. p. 67.

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A verdade e o conhecimento, pontos caros da reflexão filosófica, assumem espaço flagrante


que se manifesta de modo amplo na obra de Paviani, E que pode ser percebido nos detalhes que a
sustentam. Dentro dessa realização, encontra-se, no poema “Fantasia”, de modo preciso, a
articulação de pontos incontestes do universo de Heráclito, como o da apreensão sensorial, inócua,
pois não interfere no fluxo que define a vida, a dualidade do renascer e do morrer. Nesse sentido,
estende-se a pontualidade na escolha da rosa e, de modo mais amplo, o privilégio dado ao jardim,
metáfora do espaço vital que consagra em si um constante dinamismo:

Não tem nenhuma importância


a oposição trabalho e descanso
no jardim de Epicuro.
No plantio das rosas
a arquitetura entre a flor e o espírito
ensina a função dos contrários. (AP, 249)

O universo acima desenhado, o da coincidência na harmonia, vem ao encontro das seguintes


considerações do filósofo: “conjunções o todo e o não todo, o convergente e o divergente, o
consoante e o dissonante, e de todas as coisas um e de um todas as coisas”. 7 Essas elucidações são
assim configuradas pelo poeta em “Poema do ser”:

O que é, permanece
desfeito em pedaços
vive na unidade. (OH, 36)

Na perspectiva fixada por Heráclito, os opostos que se tensionam têm a guerra como ponto
pacificador, pois é a partir do embate que se define a harmonia. Conforme desenha o poema “As
crianças na guerra”, a convergência para uma realidade além, na verdade a contínua passagem de
um estado a outro, promove pelo desmoronamento e a partir dele a fixação de uma nova e mesma
unidade, as diversas faces do existir:

Máquinas moem a carne


matéria prima de anjos. (ED, 100)

O devir que à existência dinamiza caracteriza-se, dentro do universo fixado pelo pensador,
por um fluxo no qual as coisas se transformam, ou seja, um permanente renascer e finar. Essas e
aquelas são apenas faces de um decorrer, da passagem de um oposto a outro. As marcas registradas
em “Outono”, sublinham, por meio da enumeração de um acontecer extensivo, o processo
conciliador que define as diferenças:

Lento armazenamento
da prudente estação.
Os homens recolhem
sonhos, mel e pão.

Outono no tempo
pesa sobre os ombros.

Outono no espaço
repouso das formas. (AC, 68)

7
HERÁCLITO. Fragmentos. In: Os pensadores: pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1990. p. 88.

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A exemplaridade de ressonância entre as propostas de Heráclito, mais especificamente a que


se volta à constituição do mundo, e a obra de Paviani ganha reforço. Não em raros momentos, como
em “A casa”, e dentro da linha de consecução assumida, a poesia aparece, mais uma vez, sendo
filtrada por padrões de ordem cultural:

O princípio da diferença
dá origem a todas as formas. (OH, 52)

A descrição do processo acima descrito, o da regularidade e do equilíbrio, que caracterizam


as mudanças e transformações do mundo, toma o centro temático em “Destino”:

Dormem as sementes
correm as águas
nascem os filhos
morre o avô. (AC, 73)

A conjunção entre a matéria cultural, os pressupostos filosóficos que vão se desenhando ao


longo da obra poética e a construção artística tem, na imagem do rio, sua melhor expressão. Esse
tópico, fortemente apontado, não apenas na formulação filosófica aqui tomada como objeto, mas
com igual intensidade nas leituras simbólicas, aparece em “Viagem” como agente dinâmico que
define e abastece o fluxo vital:

Fluem planície e montanha


e um rio
banhando de fertilidade
as margens. (OH, 58)

Dentro da visão de mundo que o poeta absorve e que a poética alicerça, ou seja, a da
realidade como um movimento contínuo, o rio, também presença fundamental no universo
filosófico de Heráclito, toma dimensão mais ampla. Conforme se observa em “O sol e natureza”: “ O
homem sem os rios é um tronco seco” (AP,238), e em “Manhãs de agosto”: “Os dias sentem/ a falta do
rio” (AC,83), esse elemento ultrapassa a simples representação e passa a encenar valores
fundamentais, como os que definem as próprias dualidades da existência. Em “Todo” a natureza
humana homologa-se ao rio:

Entre o certo e o desejo


pêndulo visível dos dias,
somos um rio. (ED, 113)

De forma homóloga, dinamismo como uma força impositiva que define a vida é a tônica em
“Estudo para aumentar a nitidez”. O rio é a existência em mundo obstaculizado e transitivo: “O rio
contorna as rochas/ e os milênios”. (AP, 211)

O encadeamento causal das ações, a extensão para o plano do significado do sentido que
percorre a poética e que tem a compreensão da vida como um acontecer programático, tem seu
dinamismo, mais uma vez, buscado na itinerância, como se vê em “Fonte acesa”:

Tudo flui.
Os dias ordenados
os anos ensinados
a paciência das mãos. (AP, 212)

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Em outros momentos, como em “Tempo devastado”, os verbos ausentam-se, e um modelo


plasticizado, fruto da arbitrariedade do sujeito que recolhe uma variedade tensa, define a unidade,
por sua vez, também múltipla e dinâmica:

O fragmento, o todo, o branco


a sala
indiferente aos objetos
a palavra sem tempo
boneca sem braços, mágoas
peça íntima, migalha
raios e copos. (ED, 106)

A reiteração do transcurso, que não se liga apenas a indicações latentes, também se


imediatiza através de uma cumplicidade de formas, a da roda e a da rosa, por si só fortes signos da
mobilidade e do decurso. Em “A roda como uma rosa”, a explicitação da matéria que ampara o
poema, a do devir, encontra coincidência na disposição figurada:

A rosa e a roda
por ofício de design
transformam as diferenças
em pontos de equilíbrio. (AH, 185)

Em sua gestão sensitiva acerca do decurso, o poeta estende, de modo recorrente, a


consciência à cessação. Tomada como resultado de um processo natural distante da elucidação,
porém próxima do encadeamento causal, a morte adquire espaço privilegiado em “Desígnio”:

Os homens morrem
sem entender o enigma.
A noite e a morte
crescem nos beirais. (OH, 45)

O movimento que se mostra à intuição do sujeito e a sua revelação pela palavra contempla
como objetos dessa representação, uma série de símiles relacionados a transcurso. Ao rio, à rosa, à
roda, acresce o girassol, uma flor cuja existência é condicionada pelo sol e que de modo amplo
simboliza em si a incidência do tempo e sua mensuração. O ser da natureza abre-se ao poeta, como
mostra o poema “Girassol”, para nele o decifrador sondar os caminhos do reconhecimento:

O teu giro, girassol


como um sino
de badalo tão longo
de som tão fino
só o poeta sabe escutar. (MA, 26)

A relação entre a perscrutação e a alteridade da luz, e nesse acontecer o espaço do velar e do


desvelar do que aos sentidos se oferece e no qual a palavra transita, vincula-se ao fragmento 123 de
Heráclito, tomado como epígrafe do livro Águas de colônia: “A natureza ama esconder-se”.8 A
caminho da evidência, o poeta traz para o interior da representação poética, como se vê na seção a
seguir apresentada, o movimento da vida nas mais diversas atribuições que diante dele se apresenta
e com igual intensidade, os (des)caminhos desse aparecer.

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PAVIANI, Jayme. Águas de colônia. Caxias do Sul: EDUCS, 1982. p. 7.

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O atendimento aos desígnios da investigação acadêmica fica ratificado no conjunto de


poemas de Jayme Paviani. A ênfase no campo temático com a questão do significado, isto é, com a
palavra e nela com a pontualidade e o rigor representativo, adquirem relevância na perspectiva
assumida pelo poeta. Assim, a afirmação do itinerário biográfico, mais especificamente, da atuação
de Paviani como professor de Filosofia e Estética, traz influxos a sua elaboração artística. Tem-se,
ainda, de modo recorrente, a orientação para a problemática da modernidade, tanto no âmbito das
determinações sociais, quanto como correlato das indisposições dos sentimentos do autor. Vem
dessas fixações, de modo mais evidente do biografismo, o estabelecimento da singularidade do seu
fazer literário.

O diálogo com a Filosofia fica patenteado no universo poético de Paviani com


aproveitamento das propostas de Heráclito, mais especificamente a que consagra o significado a
partir de aproximações contrastantes. De modo não menos presente, o poeta quebra com a
comunhão comunicativa em favor do obscurantismo, uma noção destacada por Friedrich ao se deter
diante das implicações alcançadas pela lírica moderna no espaço da recepção.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERTHOLDO, Oscar; PAVIANI, Jayme; POZENATO, José Clemente et al. Matrícula. Caxias do Sul: Livro Sul, 1967.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1984.
HERÁCLITO. Fragmentos. In: Os pensadores: pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1990.
HOLFELDT, Antônio. Quatro poetas da região do vinhedo preparam um novo livro. Correio do Povo, Porto Alegre, 13
dez. 1977. Caderno de Sábado, p. 17.
PAVIANI, Jayme. Onze horas úmidas. Porto Alegre: A Nação; IEL, 1974.
_____. Águas de colônia. Caxias do Sul: EDUCS, 1970.
_____. O exílio dos dias. Caxias do Sul: EDUCS, 1982.
_____. Agora e na hora das origens. Caxias do Sul: EDUCS, 1987.
_____. Poemas: 1967-1987. Caxias do Sul: Arte e Cultura, 1990.
_____. Antes da palavra. Caxias do Sul: Pyr, 1998.

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