CADERNO1702
CADERNO1702
CADERNO1702
Nascido no dia 4 de junho de 1940, em Nova Pádua, distrito de Flores da Cunha (RS), Jayme
Paviani tem, além de uma extensa produção literária, destacada atuação no meio universitário.
Possui Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
Doutorado em Letras pela mesma instituição e Pós-Doutoramento em Filosofia pela Universidade
de Pádova, Itália. Suas publicações, estudos e ensaios ultrapassam o solo da poesia e estendem-se ao
campo da Estética e da Filosofia. Exerce a docência nas Universidades de Caxias do Sul com
passagens pela PUCRS, em Porto Alegre, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em São
Leopoldo, e pela Universidade Federal de São Carlos, no Estado de São Paulo.
1 – A descrença
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FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. p.66.
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feição compensatória na subjetividade que se expressa. Por meio da nomeação, um resgate que traz
à vida o já temporalmente distante, o poeta reencontra, como na poesia “Moinho sonolento”, uma
vivência que agora se mostra latente:
Brincava menino
à beira de abismos
de beleza profunda. (MA, 16)2
O homem em viagem
habita o lugar.
Tudo é longe
para se poder ficar. (OM, 34)
2
Os poemas serão identificados pela colocação entre parênteses do nome do livro de origem e da respectiva página.
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Além disso, afirma-se ele como exemplaridade de um modo mais amplo, o de uma singular
experiência de criação na qual o indecifrável e a inexatidão são a tônica. Por isso, o poema se faz
não apenas sobre os sobressaltos no movimento da palavra a caminho da significação, como
também sobre a inocuidade da comunicação. Essa disposição temática fica constatada em
“Margens”, por meio da exaltação da natureza e de sua autonomia frente ao convencionalismo
lingüístico:
Os cordeiros
não sabem o que dizem
às águas do rio.
Ninguém sabe
o início e o fim. (ED, 126)
e também em “Verão”:
O processo comunicativo não implica, sob a ótica do poeta, um jogo sempre válido, pois a
determinação do sujeito que fala frente ao outro pólo dessa relação nem sempre encaminha à
significação. Por vezes, conforme se vê em “Diálogo”, e como decorrência da ausência de alcançar
a plenitude, tem-se a falência do discurso:
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O poeta faz, na cidade, a exorcização a sua feição generalista, a sua efemeridade e a sua
incapacidade de atender às necessidades do homem, lacunas que também a palavra, segundo vê o
artista, ao não chegar à essencialidade, não preenche, um ponto nada pacífico da poética de Paviani.
A perda da fé na eficácia da palavra contrasta com a plenitude que a natureza em si congrega, como
fica demonstrado em “O cão”:
O homem e suas cautelas
de abandono. As cadelas
espontâneas mexem o rabo.
O mundo é cela.
O cão livre é morno
sabe o íntimo do dono
sem a prudência da palavra
que mente. (ED, 134)
A inferência do homem no mundo por meio da palavra aparece minimizada pelo reforço na
força instintiva que suplanta o intelecto. O conflito com a palavra encaminha à louvação da
natureza, fundadora do reino do conhecimento, ao contrário da obscuridade do signo que, muitas
vezes, não revela a verdade e não chega à essência. De modo conseqüente, como se vê em “O
círculo”, o artista estende essa descrença à modernidade, entendendo-a como o espaço da
desrealização e do ilusório: “O mundo se dilui nas sombras”. (ED, 109)
A modernidade, que tem o aglomerado urbano como explanação, ocupa o centro do poema
“A cidade”. Nesse texto, o poeta traça um retrato impiedoso da formação urbana. Desprovida de
multiplicidade e de individuação, ela conduz, de acordo com a contigüidade apresentada no interior
da matéria poética, do homem, da lata e da máscara, ao apagamento do humano e ao desvelar de
uma noção fundamental da poesia moderna levantada por Baudelaire – o reconhecimento do
impacto que a cidade causa:
Latas e máscaras
da noite, a cidade
o mesmo homem
a mesma mulher. (ED, 108)
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O labor com que o poeta se debruça sobre o observado e o organiza tem como traço
proeminente a opção por definitivos, um fazer que não só deixa ver a arbitrariedade que a seleção
reveste, como quebra, com causalidades, o fruto maduro da inspiração. A distribuição, no poema, do
que o sujeito colhe e a arquitetura dessa elaboração definem um modo de realização artística no
qual, de acordo com o próprio autor, o trabalho com a palavra é a tônica. Essa intenção é ratificada
por Paviani em uma entrevista ao afirmar: “De nosso lado, a preocupação maior foi tão-somente a
fidelidade à palavra”.4
De modo mais amplo, o poeta afirma, como mostra em “Profecia”, a confiança na poesia e
em sua contraposição – a rudeza e a efemeridade características da modernidade:
Na cidade futura
não haverá desperdício
apenas poesia
no corpo nu da palavra,
a solidão dos prados. (AC, 70)
À noite, os homens
na lataria das ruas
procuram a si próprios,
o fruto eqüidistante
é difícil de colher.
Os pés, pisando outras uvas,
os braços, em súplica,
o mosto, o gosto da solidão. (ED, 115)
3
Id. Ib. p. 37.
4
HOHLFELDT, Antonio. Quatro poetas da região do vinhedo preparam um novo livro: “Matrícula”. Correio do Povo,
Porto Alegre, 13 dez. 1977. Caderno de Sábado, p. 17.
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O retrato que o poeta traça da modernidade e a elevação artística do que a ela se associa não
se reduzem, como aponta Friedrich ao se deter sobre Baudelaire, no “resgate da decadência, mas no
pressentir uma beleza misteriosa, não descoberta até então”. 5 Assim, a cidade desenhada pela
representação poética tem sua fealdade transformada pelo arranjo imagético que alicerça o feio e o
degradado em uma beleza alheia ao que comumente a ela está associado. O poema “A roda dos
dias” inscreve-se nessa realização:
Mendigos e coxos
tomam conta da cidade,
a pureza dos brinquedos os salva
do grande incêndio da técnica,
o grito silencioso das rosas,
o desejo de viver
fere a realidade
do homem íntimo e estrangeiro
que habita sob o mesmo teto. (MA, 12)
2 – A apreensão
5
. FRIEDRICH, Hugo. A estrutura da lírica moderna. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975 p. 43.
6
Marilena Chauí destaca como temas fundamentais do pensamento de Heráclito: a realidade como fluxo ou devir
permanente e terno; a guerra dos contrários como justiça e ordem do mundo; a unidade da multiplicidade ou da luta e
oposição dos contrários; o fogo como physis e a crítica dos que imaginam poder conhecer as coisas pela simples
observação sensorial ou empírica. In: CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Brasiliense,
1984. p. 67.
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O que é, permanece
desfeito em pedaços
vive na unidade. (OH, 36)
Na perspectiva fixada por Heráclito, os opostos que se tensionam têm a guerra como ponto
pacificador, pois é a partir do embate que se define a harmonia. Conforme desenha o poema “As
crianças na guerra”, a convergência para uma realidade além, na verdade a contínua passagem de
um estado a outro, promove pelo desmoronamento e a partir dele a fixação de uma nova e mesma
unidade, as diversas faces do existir:
O devir que à existência dinamiza caracteriza-se, dentro do universo fixado pelo pensador,
por um fluxo no qual as coisas se transformam, ou seja, um permanente renascer e finar. Essas e
aquelas são apenas faces de um decorrer, da passagem de um oposto a outro. As marcas registradas
em “Outono”, sublinham, por meio da enumeração de um acontecer extensivo, o processo
conciliador que define as diferenças:
Lento armazenamento
da prudente estação.
Os homens recolhem
sonhos, mel e pão.
Outono no tempo
pesa sobre os ombros.
Outono no espaço
repouso das formas. (AC, 68)
7
HERÁCLITO. Fragmentos. In: Os pensadores: pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1990. p. 88.
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O princípio da diferença
dá origem a todas as formas. (OH, 52)
Dormem as sementes
correm as águas
nascem os filhos
morre o avô. (AC, 73)
Dentro da visão de mundo que o poeta absorve e que a poética alicerça, ou seja, a da
realidade como um movimento contínuo, o rio, também presença fundamental no universo
filosófico de Heráclito, toma dimensão mais ampla. Conforme se observa em “O sol e natureza”: “ O
homem sem os rios é um tronco seco” (AP,238), e em “Manhãs de agosto”: “Os dias sentem/ a falta do
rio” (AC,83), esse elemento ultrapassa a simples representação e passa a encenar valores
fundamentais, como os que definem as próprias dualidades da existência. Em “Todo” a natureza
humana homologa-se ao rio:
De forma homóloga, dinamismo como uma força impositiva que define a vida é a tônica em
“Estudo para aumentar a nitidez”. O rio é a existência em mundo obstaculizado e transitivo: “O rio
contorna as rochas/ e os milênios”. (AP, 211)
O encadeamento causal das ações, a extensão para o plano do significado do sentido que
percorre a poética e que tem a compreensão da vida como um acontecer programático, tem seu
dinamismo, mais uma vez, buscado na itinerância, como se vê em “Fonte acesa”:
Tudo flui.
Os dias ordenados
os anos ensinados
a paciência das mãos. (AP, 212)
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A rosa e a roda
por ofício de design
transformam as diferenças
em pontos de equilíbrio. (AH, 185)
Os homens morrem
sem entender o enigma.
A noite e a morte
crescem nos beirais. (OH, 45)
O movimento que se mostra à intuição do sujeito e a sua revelação pela palavra contempla
como objetos dessa representação, uma série de símiles relacionados a transcurso. Ao rio, à rosa, à
roda, acresce o girassol, uma flor cuja existência é condicionada pelo sol e que de modo amplo
simboliza em si a incidência do tempo e sua mensuração. O ser da natureza abre-se ao poeta, como
mostra o poema “Girassol”, para nele o decifrador sondar os caminhos do reconhecimento:
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PAVIANI, Jayme. Águas de colônia. Caxias do Sul: EDUCS, 1982. p. 7.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERTHOLDO, Oscar; PAVIANI, Jayme; POZENATO, José Clemente et al. Matrícula. Caxias do Sul: Livro Sul, 1967.
CHAUÍ, Marilena. Introdução à história da filosofia. São Paulo: Brasiliense, 1984.
HERÁCLITO. Fragmentos. In: Os pensadores: pré-socráticos. São Paulo: Nova Cultural, 1990.
HOLFELDT, Antônio. Quatro poetas da região do vinhedo preparam um novo livro. Correio do Povo, Porto Alegre, 13
dez. 1977. Caderno de Sábado, p. 17.
PAVIANI, Jayme. Onze horas úmidas. Porto Alegre: A Nação; IEL, 1974.
_____. Águas de colônia. Caxias do Sul: EDUCS, 1970.
_____. O exílio dos dias. Caxias do Sul: EDUCS, 1982.
_____. Agora e na hora das origens. Caxias do Sul: EDUCS, 1987.
_____. Poemas: 1967-1987. Caxias do Sul: Arte e Cultura, 1990.
_____. Antes da palavra. Caxias do Sul: Pyr, 1998.
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