5953-Texto Do Artigo-14505-1-10-20110606

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Elementos para uma sociologia

dos espaços edificados em cidades:


o “Conic” no Plano Piloto de Brasília
Brasilmar Ferreira Nunes

Abstract
Resumo This paper tries to discuss the relationship
O presente artigo procura discutir a relação do between constructed space and society, using
espaço construído e sociedade tomando como as reference the Pilot Plan for Brasília and its
referência o Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul (SDS-Conic – South
Setor de Diversões Sul – SDS/Conic. Partindo Entertainment Sector). Starting from the
da existência de múltiplas determinações na existence of multiple determinations in the
dinâmica da cidade, procura analisar a relação city’s dynamics, we try to analyze the relations
entre os usos de um centro comercial na área between the uses of a commercial center in the
tombada de Brasília, o perfil dos seus usuários listed area of Brasilia and the characteristics
que em princípio se chocam com a proposta of its users which, in principle, collide with
original de um ambiente mais sofisticado. Pro- the original proposal for a more sophisticated
cura mostrar que a cidade, enquanto um fenô- environment. Also, we try to show that the
meno dinâmico, modifica propostas originais city, as a dynamic phenomenon, modifies the
do planejamento e se adapta às necessidades original planning proposals and adapts to its
de seus habitantes, numa estreita relação es- inhabitants’ needs, in a narrow space/society
paço e sociedade, de tal maneira que sociabili- relation, in such a way that heterogeneous
dades heterogêneas se articulam com espaços sociabilities articulate with heterogeneous
construídos heterogêneos. Mostra ainda que o constructed spaces. Finally, we try to show
Conic contribui para tornar a área tombada do that the Conic contributes to make the listed
Plano Piloto uma área urbana, na perspectiva area of the Pilot Plan an urban area, in the
sociológica: variada, densa e socialmente hete- sociologic perspective: varied, dense and
rogênea. socially heterogeneous.
Palavras-chave: Brasília; Conic; edifí- Keywords: Brasília; Conic; urban
cios urbanos; sociabilidades urbanas; espaço constructions; urban sociability; constructed
construído­e sociedade. space and society.

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Apresentação visam suas habitações prescindindo de um


projeto, sempre levam em conta o elemento
humano que dele irá usufruir. Entretanto,
A sociologia urbana que se produz no Brasil as questões associadas à prática de constru-
vem se debruçado com insistência sobre pro- ção, especialmente a arquitetura, é comple-
cessos sociais que ocorrem nos espaços das xa e de difícil discernimento, evoluindo per-
cidades, chamando atenção para aspectos os manentemente em função de vários fatores,
mais diversos e variados. Entretanto, curio- mesmo se o resultado dessas práticas tenha
samente e com raras exceções, o estudo de implicações diretas em nossos ambientes de
vínculos sociais determinados pelo espaço vida. Aspecto corriqueiro, pois a arquitetura
construído – praças, imóveis residenciais, é expressão da própria cultura, além do que,
industriais, comerciais, áreas de circulação,­ toda ela, mesmo as privadas, tem implica-
etc. – não prioriza o projeto em si, mas o ções na qualidade dos espaços públicos.
considera como um suporte onde as práticas Pressupomos que essa relativa ausência
sociais ocorrem. Particular­mente os imóveis, de interesse advém do lugar que o “territó-
os edifícios, são vistos como cenários e não rio” e o “espaço” ocupam nas análises so-
tratados como artefatos que interferem nas ciais, embora sua presença na esfera teórica
interações que neles possam ocorrer. seja uma constante entre autores consagra-
Podemos lembrar alguns títulos que dos do campo sociológico.1 De fato e ape-
mais se aproximam desse recorte: o de Gil- sar de tudo, os tratamos (o território e o
14 berto Velho (1989), analisando um edifício espaço) invariavelmente como cenário, raras
em Copacabana no Rio de Janeiro, ainda na vezes como agente. A discussão é exten-
década de 1980, ou ainda, o excelente es- sa e profícua; dificilmente se esgotaria nos
tudo de Paola Berenstein-Jacques sobre a quadros de um artigo. Porém, vale lembrar
arquitetura das favelas nos morros cariocas. alguns aspectos que podem contribuir para
Nesses trabalhos, observamos com detalhes esse debate e introduzir o nosso caso em
como o ambiente construído é não apenas análise neste texto que se propõe uma ava-
o cenário, mas muito mais do que isso, in- liação dos usos que se faz de um edifício em
terfere diretamente nas modalidades de pleno Plano Piloto de Brasília, cidade ícone
vínculos­e práticas sociais que aí ocorrem. da arquitetura moderna no século XX.
Curiosamente, a sociologia urbana
pouco­­ tem contribuído para esse debate,
pois somos os que menos se interessam pe-
lo desenho do ambiente construído ou pela
Algumas considerações
proposta de intervenção no espaço oriunda teóricas como apoio
dos escritórios de arquitetura. Essa assertiva
é mais instigante ainda se nos dermos conta A sociologia parte do pressuposto de que
de que os profissionais da arquitetura e até sociedade é interação social por meio da
mesmo os que, por razões diversas, impro- qual os seres humanos se ligam uns aos

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outros;­através desses elos transformam co- pensamos, portanto, a cidade estamos nos
letivamente o meio natural, dando-lhe uma referindo a um ambiente ao mesmo tempo
função e um sentido. Dessa maneira, o meio material e humano.2
natural se transforma e reflete diretamente Essa discussão, que, aliás, avança
a estrutura social da qual ele é o suporte. muito além do que aqui se apresenta, foi
Assim, todo e qualquer território explorado tratada­ por diferentes correntes do pensa-
ou habitado traz em si as marcas das ativi- mento, especialmente os arquitetos, uma
dades humanas que nele se desenvolvem. categoria socioprofissional diretamente
Se levarmos esse argumento para o envolvida com a produção física/funcional
espaço da cidade, podemos constatar as di- da cidade. Os modernistas, por exemplo,
ferentes formas que assumem os ambientes chegaram à radical imagem da cidade como
construídos em razão das modalidades e “instrumento de trabalho” e as casas como
atividades humanas que neles se implantam. “máquinas de morar”, ao ponto de Le Cor-
Durkheim (1987) argumenta que os subs- busieur argumentar que os projetos de uma
tratos físicos da vida social devem ser con- colher ou de uma cidade partiam de um
siderados como maneiras de ser que “são mesmo problema de design industrial.3 Daí
maneiras de fazer consolidadas” que refle- a se chegar à ideia de que a heterogeneida-
tem níveis diferenciados de cristalização da de que caracteriza sociológica e fisicamente
vida social. Ambientes residenciais, indus- a cidade pode ser sintoma do caos urbano
triais, comerciais, de lazer e de circulação seria um passo.
trazem em si valores funcionais, estéticos As polêmicas que caracterizam esse de- 15
e econômicos inerentes aos seus interessa- bate é de difícil síntese. Podemos, entretan-
dos. Portanto, “cada unidade arquitetônica to lembrar o estudo de Jane Jacobs (1991)
integra um sistema que não é nunca neutro, que criticando a visão dos modernistas,
já que carregado de funcionalidades, méto- considera a cidade um laboratório (aliás, tal
dos estruturais e a própria fisicidade das qual a produção de Chicago já o fazia, es-
formas distribuídas no espaço” (Coulquhon, tudando as relações sociais urbanas) e que
1991, apud Duarte, 2002, p. 152). Esta- muitas vezes as soluções para problemas
mos então em pleno contexto da multidisci- urbanos podem estar sendo apontadas pelas
plinaridade, pois esse sistema é tratado por próprias características de tais sítios e não
Durkheim como parte da morfologia social, necessariamente em debates intelectuais.
tal qual a população, as estruturas políticas Segundo a autora, não é exatamente “caos”
e jurídicas, todas elas mais do que reflexos, o que explicaria a complexa diversidade de
são sintomas da realidade social, um fator ambientes que se encontram em uma me-
ativo que pesa sobre o movimento dos pro- trópole; ao contrário, estaria aí o seu maior
cessos sociais. Assim, embora Durkheim se potencial. Aliás, argumento que vai encon-
interesse mais pelas instituições sociais do trar respaldo em Durkheim, para quem a
que propriamente a cidade, suas análises divisão do trabalho é tanto mais complexa
trazem subentendida uma problemática do quanto maior for a densidade populacional
espaço, o que nos leva a deduzir que quando de uma sociedade4 (ou cidade, diria eu).

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Duarte (2002, p. 150) sintetiza com Algumas características


justeza esse fenômeno quando escreve:
de Brasília e do Conic
De uma forma ou de outra as cidades
vão se destruindo e se reconstruindo, O exemplo escolhido aqui é interessante
de acordo com valores culturais, econô- por várias razões, inclusive pelo fato de
micos e tecnológicos. Essas destruições estarmos tratando de uma área do Plano
e reconstruções respondem ao que aqui Piloto que foi priorizado com destaque no
se tem chamado de matrizes espaciais, projeto original da capital do país, aquela
isto é, há uma interrelação dos sistemas que na concepção de seu idealizador deve-
que ativam a sociedade e formam uma ria se consolidar como um boulevard nos
matriz que, boa parte das vezes em si- moldes de cidades europeias. Já se discutiu­
lêncio, transfigura a cidade.5 bastante sobre a elevada dose de utopia
que estava presente na proposta vencedo-
De imediato, fica patente que a cidade – a ra para a nova capital. Claro que, sendo na
sua estrutura física e social – é um fenôme- época um território praticamente vazio,
no dinâmico que se modifica continuamente os arquitetos (tanto Lúcio Costa como os
em função de modificações nos elementos demais concorrentes no concurso para o
que compõem a sua matriz constitutiva. Aos projeto para a nova capital) puderam expor
efeitos sobre o espaço construído de varia- muito de suas­concepções sobre urbanismo
ções nas dimensões sociais, políticas, econô- e cidades. A ausência de resistências sociais
16
micas, culturais e tecnológicas se somam a à implantação de qualquer um dos proje-
própria determinação do espaço, suas res- tos – inclusive aquele vencedor – favorecia
trições e seus potenciais. Além do mais, as a livre imaginação.6
características do lugar se agrega às iden- A racionalidade do projeto de Lúcio
tidades de seus usuários, de tal forma que Costa tinha pressupostos curiosos, no sen-
podemos falar numa simbiose entre o ser tido de que imaginava a possibilidade de um
e o estar em algum lugar. Ser carioca ou novo homem naquele espaço novo, portan-
ser candango, por exemplo, remete a uma to a relação espaço e sociedade claramente
representação não só cultural mas também demarcada. Além disso, Brasília, sendo capi-
territorial. tal político-administrativa da nação, iria ser
Essas questões são pertinentes à nossa habitada sobretudo pela burocracia estatal
intenção de refletir sobre um edifício cons- que, no Brasil, goza de certas condições pri-
truído no Plano Piloto de Brasília, a partir de vilegiadas ante os percalços da conjuntura
uma concepção de espaço urbano presente econômica: emprego estável e salários re-
nos autores, tanto do plano urbanístico da lativamente compensadores, além, é claro,
cidade (Lúcio Costa) quanto de seus monu- das vantagens que advêm da condição de
mentos mais importantes (Oscar Niemeyer). funcionário público. Poder-se-ia, portanto,
Referimos-nos ao Conic, um complexo de imaginar esse novo homem, na medida em
lojas e escritórios situado na confluência das que as condições de sua existência material
Asas com o Eixo Monumental em Brasília. estariam garantidas de antemão.

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Entretanto, é impossível supor um desse espaço, particularmente nos chama-


espaço urbano socialmente homogêneo, dos “Setores de Diversão”.
mesmo se o seu desenho e a sua arquite- Temos então um cenário peculiar: área
tura possam ser padronizados. A dimensão de moradia de famílias de altas rendas que
cultural daquilo que chamamos de matrizes lhe dá um caráter socialmente homogêneo,
espaciais não cabem num modelo único de o Plano Piloto é também local de trabalho
homem, tendo que se adequar às hetero- de diversas categorias socioprofissionais,
gêneas modalidades de existência social. De além é claro do funcionalismo de baixo es-
fato, foi o que ocorreu no Distrito Federal: calão, moradores das cidades satélites. Essa
um crescimento populacional acima de qual- mistura faz desse cruzamento onde se situa
quer previsão, composto por migrantes de o Conic uma das áreas “urbanas” de Brasília,
diferentes origens socioeconômicas e cultu- justamente pela heterogênea composição de
rais, polarizados por um Plano Piloto (Bra- atividades e grupos sociais que ali transitam.
sília) que se apresenta hoje como uma exce- O boulevard imaginado por Lúcio Costa é,
ção numa área urbana com elevada dose de portanto, o principal centro comercial do
heterogeneidade. De um lado, um território Plano Piloto.
planejado segundo critérios racionais e, de Trabalha nos edifícios do Conic uma
outro, um universo onde imperam as leis do população aproximada de 10.000 pessoas
mercado, com aquele ar caótico que caracte- e circulam pela sua área cerca de 150.000
riza as periferias urbanas brasileiras. pessoas por dia. De fato, o Conic disputa
Interessa-nos nessa discussão ressaltar com o Conjunto Nacional (aproximadamen- 17
o elevado peso simbólico que Brasília detém, te 500.000 pessoas/dia) o maior número
praticamente absorvendo toda e qualquer de pessoas diárias nas suas dependências.
representação do universo urbano do Distri- Evidentemente, esse afluxo nesse espaço
to Federal externa ao seu Plano Piloto. Ali está diretamente ligado à presença da rodo-
se implantaram as representações governa- viária urbana com ônibus e outros tipos de
mentais, seus edifícios e monumentos, além transportes coletivos que unem a Esplanada
de concentrar a maciça oferta de trabalha a todo o Distrito Federal. Mesmo se a clas-
formal no Distrito Federal. O cruzamen- se média do Plano e dos Lagos não tem o
to das Asas Norte e Sul com o Eixo Monu- hábito de circular pelo Conic, não se deve
mental é a área onde circula diariamente a menosprezar o seu potencial de atração de
população oriunda das cidades satélites que pessoas. Ora, a presença de atividades de
trabalha no Plano Piloto. O Conic, portanto, prestação de serviços no edifício é exclusiva-
é um lugar privilegiado pela sua acessibili- mente pela sua localização privilegiada, que
dade, justamente porque a implantação da é o grande trunfo do Conic.
rodoviária urbana na área contribui para a O desenho a seguir permite visualizar es-
paulatina mudança do padrão de usuário se núcleo central a que estamos nos referindo.

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Funarte

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Fonte: Iara Martorelli: O projeto “Artes Visuais” da Funarte – CEAD/UNB – Brasília – 2008.

LEGENDA
1- Praça dos Três Poderes 12- Torre de TV
2- Marco da Bandeira 11- Funarte
7- Panteão da Liberdade e da Democracia 13- Planetário (desativado)
5- Palácio do Itamarati 14- Clube do Choro
9- Catedral 15- Centro de Convenções
45- Museu Nacional de Brasília 16- Complexo Esportivo do DF
32- Biblioteca Nacional de Brasília 17- Memorial dos Povos Indígenas
10- Teatro Nacional 18- Memorial JK

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Cidade ainda em fase de consolidação, As superquadras mais antigas, da Asa


Brasília vive ainda um surto de construção Sul (108, 308, 208, 408 e as vizinhas),
na sua área central, onde estão se implan- além de algumas outras esporádicas, não
tando edifícios comerciais de alto luxo, ho- conseguiam tirar o sentimento de um gran-
téis e shoppings centers justamente nesse de canteiro de obras que ainda hoje sur-
polo central. A área vem se transformando preende o mais desprevenido visitante da
paulatinamente numa área de alto padrão cidade. Assim, na época, o Conic era de fato
de consumo e do terciário sofisticado (con- longe e de difícil acesso, não exercendo um
sultorias, comércio, clínicas médicas, etc.) papel de centro de diversões cotidianas e ro-
afastando para mais distante atividades me- tineiras tal qual havia imaginado o seu idea-
nos “nobres”. Os primeiros centros comer- lizador. Como iremos observar mais à fren-
ciais (Setor de Diversão Sul – Conic e Setor te, o edifício vai assumindo funções que se
de Diversões Norte – Conjunto Nacional) alternam com a consolidação do projeto da
vão perdendo status perante os novos que nova capital, em cada momento funcionando
se implantam nos arredores. Há, portanto, de forma integrada à vida da cidade.
um movimento de valorização de novos es- Mesmo assim, apesar de nunca ter se
paços da cidade e desvalorização de outros, transformado naquilo que foi planejado,
manifestos no perfil do consumidor médio logo após sua inauguração, o Conic atraiu
que os frequenta. embaixadas ainda em fase de implantação
A inauguração do Conic se deu por vol- na cidade com suas sedes em construção.
ta de 1967, ou seja, sete anos após a inau- Essa presença atraía restaurantes e lojas 19
guração da nova capital, sendo o primeiro mais sofisticadas, quase que concretizando
edifício voltado para a Esplanada dos Minis- a proposta original para o edifício. A histó-
térios. Foi batizado informalmente de Conic ria mostra que, na medida em que as em-
a partir do nome da construtora pernambu- baixadas constroem suas sedes e transfere
cana que o edificou, com seu nome numa dali todas as atividades de rotina, o Conic
enorme placa durante a obra, terminando experimenta rapidamente um processo de
por se fixar na memória dos passantes co- esvaziamento de suas funções e muda de-
mo uma das referências da área. Na época, vagar o uso de suas instalações. Começam
Brasília contava com poucos habitantes, a a aparecer clubes noturnos, bares pouco
maioria moradores do Plano Piloto (ainda sofisticados, dando início à degradação da
em fase de implantação) e algumas poucas área, na medida em que afasta a classe mé-
cidades satélites (eram quatro: Taquatinga, dia do Plano e é esquecido pelas autorida-
Ceilândia, Sobradinho, Núcleo Bandeirantes des locais.
e atualmente são vinte e duas). De fato, a
burocracia do Estado que vinha se instalando
em Brasília ainda era em pequeno número:
os órgãos públicos e as embaixadas foram Etnografia do Conic7
chegando devagar, alguns deles resistindo à
mudança, enquanto outros permanecem até Chegamos ao Conic no período da ma-
hoje na antiga capital, Rio de Janeiro. nhã para dar uma explorada no prédio,

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caminhando­ pelas suas galerias comerciais Além dessas atividades comerciais, o


procurando observar o ritmo de pessoas da térreo do Conic apresenta, ao longo de suas­
área. Sábado, dia de nossa visita, de fato é ruelas e caminhos, ares de um verdadeiro
um dia de menor movimento. O comércio centro comercial, com atividades as mais
funcionava, mas se sentia que o ritmo era variadas, tais como lojas de discos, roupas,
um pouco mais lento, diferente dos demais sapatos, instrumentos musicais, fotos, foto-
dias da semana, de segunda às sextas-feiras, cópias, papelaria, etc. Cabe destaque a sim-
quando funcionam as empresas e os escritó- plicidade das lojas, sem nenhuma preocupa­
rios nos andares superiores. O desenho da ção em parecerem sofisticadas, numa clara
área térrea, pela entrada da luz do sol no seu indicação de que a clientela que para lá se
interior, aproxima-se daquele que se imagina dirige está procurando mercadorias cuja ne-
para pequenas e antigas cidades: passagens, cessidade vem antes de um status ou pres-
algumas amplas, outras estreitas, que dão tígio oferecido por comércios que trabalham
em pequenas praças a céu aberto, pequenos com marcas ou grifes.
becos, esquinas, portanto onde o cruzamen- Chama a atenção, ainda, a existência de
to pode dar origem ao inesperado. O lugar, livrarias especializadas em ciências sociais,
apesar de não apresentar lixos ou detritos medicina e direito na ala sul do imóvel, além
espalhados pelas vias, não transmite aquele de um cinema com shows de strip tease e
ar acético típico dos shoppings centers do filmes pornográficos (funcionando a partir
Plano Piloto. Há projetos para transformar do meio dia indo até altas horas da noite)
20 as pistas de pedestres mais parecidas àque- ao lado de centros religiosos de cultos evan-
las dos shoppings, com a colocação de pisos gélicos. As livrarias são de excelente quali-
em cerâmica ou granitos, talvez procurando dade, com obras representativas de cada
atrair uma clientela de gosto mais dentro dos área acadêmica que trabalham. Visitei com
clichês típicos da classe média brasiliense. mais cuida­do a que oferece obras de ciências
Uma primeira sensação que vem quando­ sociais e pude comprovar a excelente quali-
se caminha por suas ruelas é a diversidade­ dade do acervo disponível, além do elevado
de comércio, com a presença marcante de domínio dos últimos lançamentos pelo seu
algumas atividades em particular.­Assim, en- proprietário. Destaca-se, inclusive, a erudi-
trando pela ala norte do Conic, no nível da ção do mesmo, que não só está ciente dos
rua, são inúmeros os comércios de óculos, últimos títulos no mercado como emite opi-
tanto para venda como para reparação. En- niões de obras e autores com bastante co-
tre uma e outra, esporadicamente, encontra- nhecimento de causa.
se um bar ou um boteco sem muita sofisti- A distribuição do comércio pela área
cação, com suas mesas e cadeiras de fórmica do imóvel obedece à lógica de localização
ou plástico, sem uma harmonia aparente. de atividades comerciais em sítios urbanos
Observa-se também um número importante tradicionais. Assim, há uma concentração de
de salões de cabeleireiros, manicuras­ ou de atividades em áreas próximas segundo a na-
estética em geral. Estes eram os mais pro- tureza do serviço ou do produto ofertado:
curados naquela hora da manhã, entre nove lojas de materiais óticos situam-se na entra-
e onze horas, com clientelas em todos eles. da norte do imóvel, as livrarias, na entrada

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sul, no centro espalham-se as roupas, discos, rodoviária,­ vista por quem desce o eixo em
calçados, etc. num diversificado ambiente automóveis ou ônibus.
comercial que indica uma lógica locacional O comércio que se encontra no Conic
no prédio. Os restaurantes se concentram atende a uma clientela absolutamente he-
mais aos fundos, onde também podem ser terogênea. Nota-se perfeitamente a convi-
encontrados alguns estabelecimentos espe- vência de indivíduos de diferentes estratos
cializados, tais como instrumentos musicais, sociais, fato de rara constatação no Plano
livrarias religiosas, sedes de partidos políti- Piloto, onde vive uma classe média padroni-
cos e fotocopiadoras. A frente para a praça zada no estilo de ser, vestir e se comportar
externa aparece como uma espécie de vitrine em áreas coletivas. O que se percebe é que
daquilo que está espalhado pelo interior do ali os moradores das satélites se sentem fa-
imóvel, ou seja, materiais fotográficos, óti- miliarizados com a disposição e padrão das
cas, roupas, livros e os bares um pouco mais lojas, e a possibilidade de se apropriarem do
sofisticados. Essa calçada faz claramente o espaço sem a sensação de estarem invadindo
papel de uma rua tradicional de cidade, tal- um território privado. Essa sensação, visível
vez uma das poucas do Plano Piloto. nos shopping centers mais sofisticados da ci-
O subsolo do edifício tem ar de espaço dade (Pátio Brasil, Brasília Shopping, Liberty
semiabandonado: muitas lojas fechadas, va- Mall e em menor escala no próprio Conjun-
zias, algumas situadas em becos com pou- to Nacional) fica completamente diluí­do no
ca luminosidade, aliás, uma das particula­ Conic, que transmite uma imagem de área
ridades de inúmeros edifícios da primeira multisocial onde um indivíduo morador do 21
fase da cidade. No geral, o subsolo trans- Plano Piloto convive com aquele das satéli-
mite uma sensação de difícil acessibilidade e tes, frequentando ambientes comuns.
em outros momentos foi o lugar preferido A frequência de certos estabelecimentos
por­marginais. O mesmo pode ser deduzido do edifício é, no entanto, claramente, deter-
quando se olha para a lateral sul do prédio minada pelo status social. Por exemplo, nos
ou a parte detrás do imóvel. Nesta há um cabeleireiros, o que se percebe é uma clien-
estacionamento e serve também para car- tela mais popular, o mesmo pode também
gas e descargas de mercadorias. Essa parte ser observado em alguns bares, restaurantes
detrás é, curiosamente, a de maior visibi- ou igrejas ali existentes. Porém,­nas lojas de
lidade para quem olha o Conic a partir do tênis, materiais de esportes radicais (skates,­
Setor Comercial Sul ou do Hotel Nacional, rollers, discos, etc.), a clientela é mais he-
ou mesmo descendo o eixo monumental em terogênea, com indivíduos­ de aspecto­ típi-
direção à Esplanada dos Ministérios. Uma co dos frequentadores dos shoppings mais
visibilidade esteticamente comprometedo- sofisticados. Nestes, as rodas de jovens na
ra pois o bric-a-brac dos anúncios comer- porta ou alguns transeuntes que param nas
ciais transmite a impressão de um imóvel vitrines indicam um território particular­
sujo, sem regras ou administração. Claro de “tribos” urbanas que se autoidentifi-
que essa impressão é reforçada pela arqui- cam por um padrão similar de consumo,
tetura clean do Setor Hoteleiro ao lado ou de vestimenta, de gosto, enfim, de estética
mesmo pela perspectiva da plataforma da no seu sentido mais amplo. É um território

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aparentemente­democrático, onde o que une não deixa de ter o seu charme garantido.
os que ali estão é o interesse comum por Isso, sobretudo, porque os frequentadores
certos produtos e marcas vendidas nas lojas, do Conic­ fazem dali um lugar para estar e
definindo certos espaços do Conic pelas ca- não apenas para passar, como é usual em
racterísticas de seus frequentadores. shoppings.
As livrarias especializadas e a loja­ Um acontecimento curioso foi a che-
de partituras musicais – “uma das mais gada dos evangélicos na área. Inicialmente,
completas­ do país”, segundo o seu proprie- houve uma proposta do Bispo Macedo para
tário – têm uma clientela exclusiva: um am- comprar o Cine Atlântida, uma das melhores
biente calmo, tranquilo como deve ser um salas de cinema da cidade. De fato, o cine-
lugar de leitura e de pesquisa em acervos. A ma, como todo o conjunto, é tombado pelo
loja de instrumentos e partituras musicais já IPHAN, mas o espaço estava ficando ocioso
apresenta uma clientela maior, mas o am- justamente pela fuga dos espectadores. O
biente é peculiar, com pessoas conversando governo do DF encaminhou então à Câmara
em voz baixa, vestidos de maneira tradicio- Legislativa uma consulta sobre as possibili-
nal sem ostentação, com gestos contidos, dades de a Igreja Universal adquirir o Cine
traduzindo uma clientela com certo grau de Atlântida numa área do Plano projetada pelo
sofisticação, habituados talvez a frequentar Lúcio Costa. O parecer da Câmara Legisla-
ambientes similares em outros centros. tiva foi positivo, sob o argumento de que
Circulando pelo Conic, pudemos obser- atividades religiosas podem ser entendidas
22 var a presença de pessoas notáveis de Bra- como teatro, uma diversão do povo, não fe-
sília, entre profissionais liberais, professores rindo as recomendações do projeto original
universitários e indivíduos com seleto gosto do Plano Piloto e do edifício. Mesmo se não
musical procurando material original nas li- concordássemos com a designação de arte
vrarias e nas lojas especializadas (disco e de às cerimônias religiosas, do ponto de vista
instrumentos e partituras musicais). Para os formal, é diversão, é encontro, é interação.
boêmios, pessoas ligadas direta ou indireta- Não há, portanto, incompatibilidade com o
mente à atividade artística, funciona ali um projeto de Lúcio Costa.8 Por outro lado, a
teatro e uma escola de arte dramática. Este presença dos fiéis no Conic praticamente
é, sem dúvida, um aspecto particular de um não interfere em nada na rotina do edifício:
edifício urbano que foge aos padrões tradi- chegam, oram e partem sem olhar para o
cionais dos edifícios da administração federal lado. É um público que não consome, não
na Esplanada ou mesmo de shoppings­ cen- se diverte, não se envolvendo com a vida do
ters de Brasília, frequentados quase exclu- imóvel. Mas acaba sendo a única razão para
sivamente pela classe média. Se agregarmos o Conic estar nas residências de milhões de
ainda a possibilidade de convivência com brasileiros diariamente, pois as cerimônias
diferentes perfis de pessoas atraídas ainda que ali acontecem são televisionadas em ca-
pela diversidade de seu comércio, o Conic deia nacional.

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A invisibilidade do concreto por bom-gosto. Certamente, o submun-


do que o Conic representou passou a ser
a ferida exposta da cultura asséptica que
Compreender essa diversidade de tipos so- prevalece no Plano Piloto, que, fora esse
ciais que aí circulam pode ser um exercício edifício, talvez só possa ser encontrada em
interessante para analisar os efeitos do pro- alguns bares tradicionais redutos da boemia
jeto de Lúcio Costa para o Plano Piloto de da cidade. Mesmo naqueles onde uma van-
Brasília. Saindo do Conic na pequena praça guarda da cidade faz ponto, o Conic sempre
que se situa à sua frente, nos damos conta foi visto como “muito mais maldito”, mui-
de que, enquanto morador do Plano Pilo- to mais transgressor. E isso, mesmo hoje,
to, que passa em automóveis algumas vezes quando, com a chegada das igrejas evangé-
por semana vindo da Asa Norte em direção licas, o lugar passou de profano a sagrado,
à Asa Sul, o prédio parece invisível. Curioso com requintes de bom comportamento por
que, enquanto o Conjunto Nacional chama parte dos fiéis frequentadores dos templos
a atenção pelo movimento diurno ou pelos aí localizados.
néons noturnos, o Conic não tem registro Por outro lado, é a própria localização
nenhum na nossa memória. Sinto-me in- do edifício, uma extensão do Setor Comer-
capaz de descrevê-lo enquanto transeunte cial Sul, que como tudo no Plano Piloto pa-
rotineiro do lugar. Tudo se passa como se rece tão longe, mesmo quando está “logo
olhássemos sem vê-lo. É um edifício que, ali”. O Conic só se torna uma exceção quan-
situado na área mais privilegiada do dese- do olhado ou da Esplanada, ou do Tea­t ro 23
nho da Esplanada – com exceção é claro Nacional, ou até mesmo do Conjunto Nacio-
dos monumentos do Estado –, consegue ser nal. Do contrário, ele é apenas uma prolon-
completamente invisível ao olhar dos tran- gação do Setor Comercial Sul em direção à
seuntes, motorizados ou pedestres. Só mui- rodoviária, beneficiando-se de uma quanti-
to recentemente foram instalados anúncios­ dade enorme de pedestres, consumidores
em néon que se destacam, sobretudo pa- em potenciais, que fazem o trajeto cotidia-
ra quem vem do Congresso Nacional, pela no de ida e volta ao Setor Comercial Sul nas
Esplanada dos Ministérios em direção ao suas rotinas de trabalho. A maioria habitan-
cruza­mento dos eixos. te das cidades satélites, comerciantes, pro-
Podemos supor dois aspectos que po- fissionais liberais, bancários, camelôs, jorna-
dem estar na base de compreensão daque- leiros, flanelinhas, auxiliares de escritórios,
la sensação de invisibilidade que o edifício office boys , enfim, uma multiplicidade de
transmite. Por um lado, um senso estético tipos humanos e atividades que terminam
hegemônico no Plano que não consegue in- por serem os verdadeiros responsáveis para
corporar nos seus parâmetros alguns prin- que o Plano Piloto adquira um ar de espaço
cípios de uso do espaço, sobretudo quan- urbano, que aliás causou admiração a Lúcio
do vem expresso por indivíduos ou grupos Costa quando visitou Brasília em fins dos
considerados “exteriores” ao que se toma anos 80.

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O imaginado e o modalidades de comércio, que poderia ser


privilégio de consumidores mais exigentes,
acontecido com o Conic não foi suficiente para evitar que, devagar,
o uso do imóvel fosse cada vez mais se po-
É interessante ressaltar que, com todas as pularizando. A esse discurso inicial que pla-
restrições que porventura se possa fazer ao neja uma área com um certo uso para um
edifício, ele é patrimônio da humanidade,
grupo com um certo padrão de exigência e
tanto quanto os demais imóveis de porte
de estética se impregnou a imagem estigma-
que aparecem no projeto original da cidade.
tizada que o Conic apresenta hoje perante
Nesse aspecto, talvez seja essa a única razão
os moradores do Plano Piloto.
pela qual não tenha ainda sido demolido, co-
Essa imagem estigmatizada se apresen-
mo de tempos em tempos se cogita.
ta em duas dimensões: por um lado, pelo
Na proposta original de Lúcio Costa, es-
estado de conservação do imóvel, abaixo dos
te “Setor de Diversões Sul” estaria seleciona-
padrões dos shoppings da cidade; por outro,
do para abrigar livrarias, cafés, boates­e ou-
pelo perfil médio dos frequentadores do lu-
tras atividades que pudessem vir a preencher
gar, no geral. Curioso que o Setor Comer-
as necessidades de lazer da futura população
cial Sul (SCS), ao lado, não provoca tanto
do Plano. É interessante esse aspecto pois,
mal-estar, mesmo porque, compondo-se de
embora se tenha tido a intenção de diversi-
diferentes edifícios, o uso e o porte é muito
ficar os grupos sociais que viriam habitar a
superior ao do Conic e a sua apropriação é
cidade planejada, os equipamentos de lazer
24 absolutamente absorvida pelos moradores
propostos se dirigiam, em tese, para­ pa-
do Distrito Federal. Certamente essa absor-
drões sofisticados de consumo, numa clara
ção se dá também pelo próprio desenho das
ambivalência daquilo que a proposta conti-
ruas e dos imóveis que compõem o SCS que
nha. De fato, esse Setor de Diversões é ima-
integra também aqueles espaços “invisíveis”
ginado como algo sofisticado, para atender
do Plano Piloto, em torno do qual passamos
padrões também sofisticados de consumo.
quotidianamente ser vê-lo, ao contrário,
A tentativa de se reproduzir um padrão
portanto, do Conic este sim, situado num
de uso do espaço próximo de um Quartier
lugar de passagem obrigatório para quem
Latin, onde diferentes grupos de funcioná-
circula no Plano Piloto, detentor de uma vi-
rios, estudantes, comerciantes, profissionais
sibilidade evidente.
liberais se encontram denota uma intenção
de reproduzir algo sofisticado que, fora a
democracia dos espaços das praias urbanas
do Rio de Janeiro, não corresponde à cultura O processo de
de lazer da classe média urbana do país. De
qualquer forma, a existência de um teatro,
degradação do edifício
de uma escola de arte dramática, de livrarias e arredores
de diferentes especialidades – científicas,
religiosas, etc. – de cinemas (hoje cedendo Num primeiro momento, o fato de se ter
lugar a templos evangélicos), dentre outras um edifício estigmatizado no centro do

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elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades

Plano Piloto de Brasília, em si, não é uma de centro comercial e de diversões que foge
questão original. Todas as grandes cidades aos padrões similares oriundos dos modelos
do mundo apresentam áreas desvalorizadas, norte-americanos, além de sua originalidade
justamente em locais que, pela sua antigui- arquitetônica, dada as características climá-
dade, já contam com infraestrutura urbana ticas do Planalto.
praticamente completa. É, aliás, essa a razão Poderíamos também formular uma ou-
pela qual a onda de renovação urbana tem tra questão: por que o Conic se deteriora,
sido observada em praticamente todas as enquanto o Conjunto Nacional, de seu lado e
grandes cidades do mundo ocidental nestas com várias semelhanças de usos, guarda sua
últimas décadas. Paris, Nova York, Barcelo- imagem? Mesmo se levarmos em conta­ que
na, São Paulo, Salvador, Recife, dentre ou- o público que frequenta o Conjunto Nacio-
tras, passam por processos de gentrificação nal seja também diversificado por origem e
de seus espaços degradados, atraindo uma renda (característica, aliás, inevitável, pois a
classe média endinheirada e intelectualizada localização no cruzamento dos eixos e sobre
que valoriza justamente a estética e o con- a rodoviária urbana induz a isso), o edifício
forto dos velhos imóveis de outros tempos. tem muito dos princípios arquitetônicos pa-
Apesar de tímida, a tentativa de renovação dronizados para shopping centers. A exceção
do Conic vai na mesma direção, são lojas com abertura para as calçadas exter-
Entretanto, fica sempre uma questão nas, mas que, por arranjos de fácil execução,­
inquietante: por que edifícios ainda recentes, voltaram-se para o interior do prédio. Fora
situados em áreas privilegiadas da cidade, isso, é um shopping com diversidade de usos 25
gozando de facilidade de acesso e de uma e de frequência dos mais movimentados da
infraestrutura completa e adequada se dete- cidade com condições semelhantes ao Conic.
rioram com tanta rapidez? É verdade que o Não deixa de ser, portanto,­uma questão que
Plano Piloto tem alguns edifícios com carac- se coloca quando se pensa nos caminhos que
terísticas de degradação precoce, mas todos seguiram um e outro edifício.
eles nunca antes ocupados efetivamente. Uma das causas dessa diferença pode
São muitos deles projetos inacabados, que ser atribuída ao modelo de gestão adotado
se transformam em ruínas antes mesmo de em ambos. Enquanto o Conjunto Nacional
terem sido inaugurados. foi adquirido por um grande grupo que o
Mas o Conic é diferente. Aqui é, de transforma naquilo que ele é hoje, subme-
fato, um imóvel em pleno uso, com uma tendo-o a uma única administração, o Conic
inserção específica na vida da cidade e que é formado por 13 edifícios, logo, 13 con-
pode ser considerado como um dos mais domínios, com 1.700 proprietários, cada
eclé­­ticos imóveis do Plano Piloto, pela di- qual com sua parcela de poder na definição
versidade de usos e de frequência. Se rom- dos rumos do imóvel. Há cerca de dez anos
permos com a imagem de shopping center atrás foi criada uma Prefeitura do conjunto
como aquele lugar superprotegido, fechado, para centralizar a administração do prédio,
sem visibilidade externa, o Conic pode ser com a função prioritária de acabar com o
considerado um shopping center tal e qual estigma de área perigosa e para normatizar
os demais. Talvez até mesmo uma proposta as áreas degradadas. A primeira função foi

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praticamente­ cumprida: cria-se uma delega- clara diferenciação entre o organizado e o


cia de polícia dentro do edifício e restringe- racional cartesiano que é o Projeto de Lúcio
se o tráfico de drogas e prostituição. Pode- Costa; de fato, por se tratar de uma área
mos, mesmo sem parecer enfáticos, consi- anárquica, caótica, enfim urbana, e graças
derar que hoje o Conic é uma das áreas mais a essa indefinição, uma área com maior li-
seguras dentro do Plano Piloto.9 Entretan- berdade de uso, o edifício começa a seduzir
to, o estigma permanece. As razões disso uma gama de artistas, arquitetos, poetas,
só poderiam ser encontradas na lógica de cineastas, etc., atraídos justamente por es-
fixação de pré-conceitos no imaginário dos ta “irracionalidade” e este ar de pretensa
habitantes da cidade que se enraízam e se “marginalidade”. Na verdade, uma área que
espacializam. O espaço urbano é a concre- aparece quase que como um gueto dentro
tização do imaginário social que se constrói do Plano Piloto.
no histórico cotidiano e o Conic permanece
ainda como lugar pouco nobre. De qualquer
forma, com a retirada de marginais que ali
tinham suas bases, devagar o Conic vem se
Um “gueto” ao inverso
transformando através de remodelação de no Plano Piloto
aspectos do projeto original,10 numa pro-
cura de resgate de sua primeira proposta. A ideia de “gueto” urbano vem da obra de
Isso significa que enquanto o Conic não for Wirth, quando trata das características so-
26 transformado esteticamente segundo pa- cioculturais do bairro judeu de Chicago na
drões usuais dos shoppings vizinhos ele per- primeira metade do século XX. Conforme o
manecerá um “corpo estranho”, separado, próprio Wirth destaca, o gueto foi, na ori-
mas funcionalmente necessário, limitado que gem, um lugar de Veneza, um de seus bair-
está àquela racionalidade do Plano Piloto. ros, onde se estabeleceu a primeira comuni-
Por outro lado, é essa diferenciação no dade judaica. Transformou-se, ao longo do
uso ante os demais imóveis da área que pa- tempo, numa instituição reconhecida pelo
rece constituir o ponto de apoio mais impor- costume e definida pela lei. Os dicionários
tante do argumento segundo o qual não se da língua portuguesa definem gueto como
pode considerar a área da Esplanada dos Mi- “bairro em qualquer cidade, onde são con-
nistérios esteticamente unificada. Entretan- finadas certas minorias por imposições eco-
to, vale ressaltar ainda o potencial de área nômicas e/ou raciais”.
alternativa que o Conic contém. Se, por um Tanto a definição de Wirth como aque-
lado, conforme destacado acima, a multipli- la do dicionário não poderiam se adequar à
cidade de proprietários dificulta a gestão do caracterização do Conic como um gueto. Um
imóvel nos moldes que ocorrem em outros olhar mais apressado diria mesmo que é o
shoppings centers, por outro, essa condição oposto, dada a diversidade de tipos urbanos
pode ser um trunfo que o diferencia das ex- que o frequenta e que terminam por dar-lhe
periências similares no Plano. Sim, porque o sua identidade. Entretanto, visto no contex-
Conic vem, devagar, se tornando uma área to do Plano Piloto, especialmente na Espla-
alternativa dentro do Plano Piloto, numa nada dos Ministérios, no qual ele se insere,

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ele aparece justamente como uma exceção envelheceram e perderam o charme muito
ao padrão estético e funcional da área. Nes- rapidamente.
te sentido, e apenas neste, ele aparece como
um espaço singular que abrange não apenas
os tipos sociais, mas também a sua própria
arquitetura interna que vai sendo criada e
A dinâmica social
recriada sem a rigidez legal da Esplanada. do edifício
Aí sim ele é singular; uma singularidade que
se acentua dada a “distância” do Setor Co- Há um consenso entre os frequentadores
mercial Sul. Aí ele pode ser visto como um usuais do Conic, mais particularmente entre
gueto, um corpo estranho a uma classe mé- os comerciantes que têm lojas no edifício,­de
dia moradora do Plano Piloto, com a dife- que se trata de um dos lugares mais seguros
renciação nos tipos sociais e no uso ante os do Plano Piloto, incluindo o Setor Comercial
demais imóveis da área. Sul e o próprio complexo Gilberto Salomão
Permanece sempre a pergunta do por- no Lago Sul área nobre da cidade. Esse argu-
que numa área tão privilegiada o “povo bra- mento pode encontrar princípio de realidade,
sileiro”11 tomou conta daquele espaço. Uma sobretudo se levarmos em conta a presença
das possíveis explicações pode estar no gru- de um batalhão da polícia militar com uma
po que está por detrás da construção dos delegacia dentro do próprio conjunto edifica-
prédios do Conic. Brasília foi um eldorado do: fala-se num efetivo de 500 homens que
para as construtoras quando da edificação se revezam dia e noite na vigília do prédio 27
da cidade nos anos 50. Além das grandes e arredores, o que inviabiliza qualquer con-
empresas nacionais que se responsabiliza- vívio com criminosos de qualquer estirpe.
ram pelas obras dos edifícios públicos, pe- Claro que não estamos aqui considerando o
lo sistema viário e mesmo pelos blocos dos trabalho das prostitutas que ali fazem ponto
apartamentos funcionais, outras empresas noturno, não causando nenhum transtorno
regionais também fizeram fortuna naquele maior aos frequentadores do lugar, inclusive
momento.12 Talvez por razões de economia os evangélicos e suas famílias. Entretanto, o
ou por valores culturais e estéticos, ou mes- Conic hoje tem uma imagem estigmatizada,
mo porque a cidade que se construía naquele principalmente junto à classe média tradicio-
momento, não tinha ainda como exigência a nal do Plano Piloto, resquício de um período
ostentação de luxo e sofisticação como atual­ em que a situação beirava o descontrole. Po-
mente ocorre, o fato é que o visual do pré- demos considerar três fases na vida do edifí-
dio é simples, sem ostentação. Fica evidente cio a partir de sua inauguração.
quando o olhamos que seus idealizadores Numa primeira fase, o edifício atraía
não tiveram a estética como diretriz. Aliás, as embaixadas estrangeiras que tinham ali
se olharmos os prédios por eles construídos seus escritórios de representação, os pro-
no Plano Piloto, certamente, eles estariam fissionais liberais, partidos políticos, etc. A
classificados entre os que apresentam uma localização privilegiada facilitava a preferên-
arquitetura sem estilo, numa caricatura de cia, que se manteve enquanto as sedes ofi-
um modernismo caboclo: construções que ciais das representações diplomáticas foram­

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sendo construídas. Naquele momento, o legal ou tranquila, mesmo se em passado


local era frequentado pela alta burocracia recente era comum nas cidades brasileiras
do Estado, tinha lojas e restaurantes condi- reservar uma de suas áreas onde se concen-
zentes com os frequentadores, um retrato travam as prostitutas (a zona); hoje essas
que se aproximava muito daquele imagina- zonas estão praticamente desaparecidas. É
do por Lúcio Costa. Esse público com poder de se supor que nos anos sessenta e setenta
de compra estável e de elevado padrão cer- a cidade tinha um mercado razoável para o
tamente atrai diferentes atividades para a sexo, na medida em que as pessoas chega-
área, particularmente aquela que se instala vam, desenraizadas, descoladas de vínculos
na segunda fase do edifício. mais estreitos e, sobretudo, com salários fi-
Nessa fase segunda, o local é invadi- xos que permitiam alguns “excessos”. Uma
do pela prostituição, pelo crime, tráfego de parcela da burocracia vai encontrar na ofer-
drogas, num período de decadência, respon- ta das prostitutas do Conic uma facilidade
sável pela imagem que o edifício carrega até enorme para se satisfazer e, em sendo um
os dias atuais. Essa imagem se alastra com negócio, pode-se argumentar que há uma
uma certa facilidade, talvez pela situação racionalidade econômica na opção por aque-
do imóvel dentro do Plano Piloto e a sen- le território.13
sação de invisibilidade que ele transmite aos Atualmente, podemos considerar como
passantes pelas suas calçadas e ruas que o sendo a terceira fase do Conic. Cria-se a sua
circundam. É essa ambivalente situação es- prefeitura atendendo demanda dos comer-
28 pacial – visibilidade e invisibilidade – aliada ciantes e profissionais que ali trabalham,
a um desenho interno que, tentando repro- instala-se uma delegacia, há uma debanda-
duzir ruas e becos de sítios urbanos tradi- da do crime e do tráfego. Essa terceira fase
cionais, termina por ser funcional às trans- pode ser considerada a “onda política” com
gressões que ali se desenrolavam. Se consi- a presença da sede de diferentes partidos e,
derarmos que a sociedade não deixa de ser portanto, frequentado rotineiramente pelos
um mecanismo de introjeção de valores e dirigentes e militantes. Alguns estabeleci-
comportamentos, muitos deles restringindo mentos comerciais (livrarias, teatro, lojas
a própria natureza humana, podemos tam- especializadas, alguns bares) atraem profes-
bém assumir que espaços de transgressão sores universitários, aposentados (no Plano
sempre existiram nas cidades na história. A Piloto é importante a presença de aposenta-
funcionalidade da prostituição – “a mais an- dos), profissionais liberais que, ao lado dos
tiga profissão do mundo” –, as drogas, que candangos das satélites, fazem do lugar um
funcionam como mecanismos de escape, ou ponto de referência, de encontro. De forma
de vícios, enfim uma série de práticas que que, hoje, entre o estigma de lugar decaden-
são reprimidas socialmente, mas que a so- te e a procura de um charme de vida urbana
ciedade arruma sempre uma forma de per- que raramente se encontra no Plano Piloto,
mitir a sua existência é regra geral em áreas o Conic vive sua nova fase.
de elevada densidade populacional. Claro Poderia estar aí um dos trunfos da rea­­­
que os espaços urbanos­para práticas trans- bilitação ou da inserção do Conic no Plano­
gressoras nunca são definidos­ de forma Piloto nos moldes que foi pensado por

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elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades

Lúcio­ Costa. Para os moradores da cidade, uma sensação curiosa e familiar ao mesmo
uma das maiores carências são as áreas de tempo. De fato, a cidade tem gente, tem um
convívio coletivo que escape aos jardins e movimento. No fundo, é ali que a Esplanada
áreas verdes. Ou seja, aquilo que falta nas é mais cidade.
grandes cidades brasileiras, Brasília tem em Na verdade, podemos nos perguntar
quantidade, porém não dispõe, por exem- se seria o caso de intervir para alterar ou
plo, de “botecos” um velho hábito urbano ordenar o espaço coletivo do edifício? Cla-
do país, que foi completamente esquecido, ro que se olharmos pelo lado da arquitetura
talvez pela trivialidade do fato. Áreas onde não oficial do Plano Piloto, especialmente
seja possível tomar um cafezinho, utilizar da Esplanada, o Conic é sem dúvida o maior
um banheiro, sentar numa mesa para um monumento histórico da cidade. O fato de
aperitivo, uma conversa. Lazer em Brasília os arquitetos da nova capital não terem tido
são bares e restaurantes, a maioria deles nenhuma preocupação com populações fo-
formais o suficiente para exigir um certo ri- ra do núcleo do poder, do governo, fez do
tual de frequência. Dificilmente são lugares Conic o contraponto entre o oficial e o não
onde se vai espontaneamente. Pois o Conic oficial na estética do Plano Piloto: a antíte-
é justamente isso. Com uma localização pri- se daquilo que é a regra geral para o Plano
vilegiada, pensado justamente para ter es- Piloto. Talvez seja o único edifício de uma
tas características de uso, sem a assepsia de área tombada pela Unesco que, de tempos
shoppings com seus insistentes apelos de em tempos, alguém propõe demolir. Cau-
consumo. Aqui se vê que a parcela criativa sam pouca reação propostas dessa natureza, 29
do urbanista foi pensada, o que faltou foi a mas servem para reunir um grupo de inte-
criatividade das pessoas que para cá vieram, lectuais, arquitetos, artistas, comerciantes
obviamente com as exceções de praxe. e frequentadores do Conic num grupo de
reflexão para traçar o futuro do edifício e
protegê-lo das ameaças de destruição. Tudo
está indicando que intervenções seriam sim-
Espaço de exceção, plesmente para consolidar o papel atual do
espaço de outras Conic construído em décadas de existência
sociabilidades que se confunde com a própria história da
cidade. Será nesse confronto entre o “ódio”
Toda a discussão sobre o estigma que carac- que o Conic provoca em uns e o “amor” que
teriza o Conic é no fundo um olhar de fora desperta em outros que o futuro do edifício
sobre o edifício. Há na cidade indivíduos que está sendo tratado.
frequentam rotineiramente o lugar, fazem Os clássicos da sociologia, Simmel à
dali um ponto de encontro entre amigos, de frente, trataram a metrópole como um “fato
conversas, compras, enfim, fazem dele um civilizatório” na medida em que ela simboli-
lugar urbano de multiusos. Para a rotina zava a forma geral da modernidade. Nisbet
de Brasília, onde o ato de andar à pé só se (1984, p. 381) argumenta que a metrópo-
faz nos fins de semana, quando se caminha le joga no pensamento de Simmel o mesmo
pelas superquadras ou pelos parques, ficou papel que a democracia para Tocqueville, o

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capitalismo para Marx e a burocracia para mostrar para o caso do Conic é que socia-
Weber. Foi ele o primeiro que fez da gran- bilidades heterogêneas induzem ao apare-
de cidade o lugar por excelência no qual se cimento de ambientes (estéticas) também
exprime a lógica social da sua época. Com heterogêneos, mesmo em espaços pensados
os avanços do capitalismo e com a globali- para serem homogêneos, como é o Plano
zação, podemos afirmar que essa é uma as- Piloto. A área escolhida pode ser lida então
sertiva cada vez mais evidente. Não se pode como um espaço de possibilidades de novas
perder de foco o fato que a heterogeneidade modalidades de uso da cidade por indivíduos
da metrópole termina encontrando nela um e grupos que não estavam contemplados no
ambiente adequado à existência de grupos seu projeto original, apontando fissuras no
e tipos urbanos singulares e com menores seu espaço físico.14 Há aqui estreita relação
possibilidades de controle. Garantindo a uni- entre ambiente construído e seus usos: fre-
dade na diversidade, a metrópole termina quentar o Conic é elemento identificatório
por se constituir como a síntese civilizatória do lugar social do indivíduo, exigindo na sua
dos tempos modernos, ambiente propício ao análise elementos científicos e metodológi-
aparecimento de formas originais de socia- cos que dialoguem com um certo número de
lização. Mais uma vez temos que recorrer disciplinas, tais como a arquitetura, a eco-
a Simmel para recuperar o seu argumento nomia, o urbanismo em torno de questões
de generalização da moeda na metrópole, sobre a racionalização, a concentração, a di-
fenôme­no que permite o aparecimento de visão do trabalho.
30 tipos originais no ambiente da grande cida- Já é consensual entre os estudiosos do
de (o indivíduo blasé, o estrangeiro, o re- urbanismo modernista no Brasil da segun-
servado), resultando na diferenciação social da metade do século XX que a cidade era a
típica da modernidade. É interessante essa síntese de um projeto de sociedade. Brasília,
tipologia simmeliana, pois não se trata aqui sob essa perspectiva, aparece como a unida-
de classificar os indivíduos que frequentam o de central (a city) física e social, cujo espaço
Conic como excluídos ou algo parecido. A di- construído é denso, com funções econômi-
versidade de tipos humanos e de atividades cas (terciárias) vitais. Ela se liga às cidades
econômicas poderia dar margens a tensões satélites, relativamente autônomas, mas se
no convívio diário. Mas tudo está indicando mantém como sede das atividades econômi-
que há códigos informais de convívio e as cas, do emprego formal, com uma autono-
pessoas terminam por não interferir no es- mia interna. Essa centralidade física e social
paço uma das outras. Certamente, a imagem polariza os seus arredores e deve, portanto,
de uma área caótica que se sente quando ali garantir espaços de sociabilidades que esca-
estamos tem muito da programação visual pam àquela hegemônica oriunda da cultura
do comércio ali existente e do contraste com burocrática de uma cidade-Estado. Na verda-
o desenho racional da maioria dos edifícios de, ela cumpre assim seu papel de metrópo-
do Plano Piloto. le, na medida em que garante a existência de
Assim, não se trata de um recorte eco- tipos urbanos peculiares da grande cidade:
nômico simplesmente, mas sim de formas em outras palavras, o “estrangeiro” tem seu
de sociabilidade distintas. O que procuramos território de existência garantido no Conic.

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elementos para uma sociologia dos espaços edificados em cidades

Brasilmar Ferreira Nunes


Doutor em Sociologia pela Université de Picardie – França. Professor Ttitular de Sociologia da
Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do CNPq (Rio de Janeiro, Brasil).
[email protected]

Notas
(1) Ver, por exemplo, Georg Simmel, Max Weber e Pierre Bourdieu, para ficar apenas entre os consi-
derados referências em nosso campo de trabalho. Isso para não falar no geógrafo, Prof. Milton
Santos, que insiste de forma recorrente em sua obra sobre a importância do espaço na constru-
ção das relações sociais.

(2) O que, aliás, foi a perspectiva dos intelectuais da Escola de Chicago na primeira metade do século
XX que tratavam a cidade e suas áreas como “zonas morais”. Park (1976), Chapoulie (2001).

(3) Com a evolução da tecnologia e a expansão do setor terciário da economia onde hoje o lugar de
trabalho é cada vez menos dependente da localização da unidade produtiva e onde o trabalho
em casa ganha cada vez mais importância, não se pode negar que o debate sobre os argumen-
tos dos modernistas ganham novos elementos.

(4) É em razão disso que ele introduz a noção de “ambiente” e faz das variações do ambiente um
fator decisivo para compreender por que a solidariedade mecânica se torna ultrapassada e deve
ser substituída pela solidariedade orgânica. A esse respeito, ver Jean Remy (1995).
31
(5) A ideia de matriz utilizada pelo autor é “a organização de paradigmas de várias disciplinas que
formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo” (Duarte,
2002, p. 23).

(6) Não iremos aqui reproduzir essa discussão, de resto inútil, pois a cidade de Brasília se implantou e se
consolidou com todas as limitações que porventura possa se constatar no projeto apresentado.

(7) Na elaboração desse tópico, tive a companhia de Naraina Kujimian, então bolsista de PIBIC. Em
certa medida, procuramos seguir as orientações de Howard Becker (2008) sobre pesquisa, fa-
zendo uma leitura minuciosa do cotidiano do edifício para situar o leitor no contexto do objeto
analisado.

(8) Nas palavras de um de nossos entrevistados: “É polêmico, mas se respeitarmos a liberdade de


culto e de crença, a Igreja Universal é hoje o teatro do absurdo mais importante do mundo”.

(9) Após o período de auge, quando de sua inauguração, o Conic sofre um processo de decadência
que transforma o lugar num ponto de tráfico de drogas, prostituição e mendicância. A Prefeitu-
ra trouxe então o Batalhão da Polícia Militar, afugentando os indesejáveis. Hoje não se fala mais
em quadrilhas de traficantes agindo no Conic e a área é uma das mais seguras do Plano Piloto.

(10) Liderados principalmente pela arquiteta Flavia Portella, que redesenha o projeto do Conic e pro-
põe várias intervenções no seu desenho físico.

(11) Expressão de Lúcio Costa referindo-se à população que tomou conta da rodoviária e arredores de
Brasília. Ver Costa (1987).

(12) Na construção do Conic estão três dos grandes empresários pioneiros construtores de Brasília:
Venâncio, Baracá e o Karim Narrote.

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(13) Argumentos semelhantes podem ser aplicados para o tráfego de drogas, que se beneficia do
mercado consumidor do Plano Piloto.

(14) É interessante isso, pois hoje já se pode constatar que essas “fissuras” no projeto original estão
ampliando seus territórios dentro da área, sobretudo na Avenida W3, onde a ocupação dos imó-
veis por pessoas e atividades que fogem ao padrão hegemônico no Plano está cada vez mais
evidente, num claro sinal de que a cidade é um produto coletivo em movimento. Ver Luis Felipe
Castelo (2007).

Referências
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Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009

cadernos metrópole 21 pp. 13-32 10 sem. 2009

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