5953-Texto Do Artigo-14505-1-10-20110606
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5953-Texto Do Artigo-14505-1-10-20110606
Abstract
Resumo This paper tries to discuss the relationship
O presente artigo procura discutir a relação do between constructed space and society, using
espaço construído e sociedade tomando como as reference the Pilot Plan for Brasília and its
referência o Plano Piloto de Brasília e o seu Setor de Diversões Sul (SDS-Conic – South
Setor de Diversões Sul – SDS/Conic. Partindo Entertainment Sector). Starting from the
da existência de múltiplas determinações na existence of multiple determinations in the
dinâmica da cidade, procura analisar a relação city’s dynamics, we try to analyze the relations
entre os usos de um centro comercial na área between the uses of a commercial center in the
tombada de Brasília, o perfil dos seus usuários listed area of Brasilia and the characteristics
que em princípio se chocam com a proposta of its users which, in principle, collide with
original de um ambiente mais sofisticado. Pro- the original proposal for a more sophisticated
cura mostrar que a cidade, enquanto um fenô- environment. Also, we try to show that the
meno dinâmico, modifica propostas originais city, as a dynamic phenomenon, modifies the
do planejamento e se adapta às necessidades original planning proposals and adapts to its
de seus habitantes, numa estreita relação es- inhabitants’ needs, in a narrow space/society
paço e sociedade, de tal maneira que sociabili- relation, in such a way that heterogeneous
dades heterogêneas se articulam com espaços sociabilities articulate with heterogeneous
construídos heterogêneos. Mostra ainda que o constructed spaces. Finally, we try to show
Conic contribui para tornar a área tombada do that the Conic contributes to make the listed
Plano Piloto uma área urbana, na perspectiva area of the Pilot Plan an urban area, in the
sociológica: variada, densa e socialmente hete- sociologic perspective: varied, dense and
rogênea. socially heterogeneous.
Palavras-chave: Brasília; Conic; edifí- Keywords: Brasília; Conic; urban
cios urbanos; sociabilidades urbanas; espaço constructions; urban sociability; constructed
construídoe sociedade. space and society.
outros;através desses elos transformam co- pensamos, portanto, a cidade estamos nos
letivamente o meio natural, dando-lhe uma referindo a um ambiente ao mesmo tempo
função e um sentido. Dessa maneira, o meio material e humano.2
natural se transforma e reflete diretamente Essa discussão, que, aliás, avança
a estrutura social da qual ele é o suporte. muito além do que aqui se apresenta, foi
Assim, todo e qualquer território explorado tratada por diferentes correntes do pensa-
ou habitado traz em si as marcas das ativi- mento, especialmente os arquitetos, uma
dades humanas que nele se desenvolvem. categoria socioprofissional diretamente
Se levarmos esse argumento para o envolvida com a produção física/funcional
espaço da cidade, podemos constatar as di- da cidade. Os modernistas, por exemplo,
ferentes formas que assumem os ambientes chegaram à radical imagem da cidade como
construídos em razão das modalidades e “instrumento de trabalho” e as casas como
atividades humanas que neles se implantam. “máquinas de morar”, ao ponto de Le Cor-
Durkheim (1987) argumenta que os subs- busieur argumentar que os projetos de uma
tratos físicos da vida social devem ser con- colher ou de uma cidade partiam de um
siderados como maneiras de ser que “são mesmo problema de design industrial.3 Daí
maneiras de fazer consolidadas” que refle- a se chegar à ideia de que a heterogeneida-
tem níveis diferenciados de cristalização da de que caracteriza sociológica e fisicamente
vida social. Ambientes residenciais, indus- a cidade pode ser sintoma do caos urbano
triais, comerciais, de lazer e de circulação seria um passo.
trazem em si valores funcionais, estéticos As polêmicas que caracterizam esse de- 15
e econômicos inerentes aos seus interessa- bate é de difícil síntese. Podemos, entretan-
dos. Portanto, “cada unidade arquitetônica to lembrar o estudo de Jane Jacobs (1991)
integra um sistema que não é nunca neutro, que criticando a visão dos modernistas,
já que carregado de funcionalidades, méto- considera a cidade um laboratório (aliás, tal
dos estruturais e a própria fisicidade das qual a produção de Chicago já o fazia, es-
formas distribuídas no espaço” (Coulquhon, tudando as relações sociais urbanas) e que
1991, apud Duarte, 2002, p. 152). Esta- muitas vezes as soluções para problemas
mos então em pleno contexto da multidisci- urbanos podem estar sendo apontadas pelas
plinaridade, pois esse sistema é tratado por próprias características de tais sítios e não
Durkheim como parte da morfologia social, necessariamente em debates intelectuais.
tal qual a população, as estruturas políticas Segundo a autora, não é exatamente “caos”
e jurídicas, todas elas mais do que reflexos, o que explicaria a complexa diversidade de
são sintomas da realidade social, um fator ambientes que se encontram em uma me-
ativo que pesa sobre o movimento dos pro- trópole; ao contrário, estaria aí o seu maior
cessos sociais. Assim, embora Durkheim se potencial. Aliás, argumento que vai encon-
interesse mais pelas instituições sociais do trar respaldo em Durkheim, para quem a
que propriamente a cidade, suas análises divisão do trabalho é tanto mais complexa
trazem subentendida uma problemática do quanto maior for a densidade populacional
espaço, o que nos leva a deduzir que quando de uma sociedade4 (ou cidade, diria eu).
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Funarte
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Fonte: Iara Martorelli: O projeto “Artes Visuais” da Funarte – CEAD/UNB – Brasília – 2008.
LEGENDA
1- Praça dos Três Poderes 12- Torre de TV
2- Marco da Bandeira 11- Funarte
7- Panteão da Liberdade e da Democracia 13- Planetário (desativado)
5- Palácio do Itamarati 14- Clube do Choro
9- Catedral 15- Centro de Convenções
45- Museu Nacional de Brasília 16- Complexo Esportivo do DF
32- Biblioteca Nacional de Brasília 17- Memorial dos Povos Indígenas
10- Teatro Nacional 18- Memorial JK
sul, no centro espalham-se as roupas, discos, rodoviária, vista por quem desce o eixo em
calçados, etc. num diversificado ambiente automóveis ou ônibus.
comercial que indica uma lógica locacional O comércio que se encontra no Conic
no prédio. Os restaurantes se concentram atende a uma clientela absolutamente he-
mais aos fundos, onde também podem ser terogênea. Nota-se perfeitamente a convi-
encontrados alguns estabelecimentos espe- vência de indivíduos de diferentes estratos
cializados, tais como instrumentos musicais, sociais, fato de rara constatação no Plano
livrarias religiosas, sedes de partidos políti- Piloto, onde vive uma classe média padroni-
cos e fotocopiadoras. A frente para a praça zada no estilo de ser, vestir e se comportar
externa aparece como uma espécie de vitrine em áreas coletivas. O que se percebe é que
daquilo que está espalhado pelo interior do ali os moradores das satélites se sentem fa-
imóvel, ou seja, materiais fotográficos, óti- miliarizados com a disposição e padrão das
cas, roupas, livros e os bares um pouco mais lojas, e a possibilidade de se apropriarem do
sofisticados. Essa calçada faz claramente o espaço sem a sensação de estarem invadindo
papel de uma rua tradicional de cidade, tal- um território privado. Essa sensação, visível
vez uma das poucas do Plano Piloto. nos shopping centers mais sofisticados da ci-
O subsolo do edifício tem ar de espaço dade (Pátio Brasil, Brasília Shopping, Liberty
semiabandonado: muitas lojas fechadas, va- Mall e em menor escala no próprio Conjun-
zias, algumas situadas em becos com pou- to Nacional) fica completamente diluído no
ca luminosidade, aliás, uma das particula Conic, que transmite uma imagem de área
ridades de inúmeros edifícios da primeira multisocial onde um indivíduo morador do 21
fase da cidade. No geral, o subsolo trans- Plano Piloto convive com aquele das satéli-
mite uma sensação de difícil acessibilidade e tes, frequentando ambientes comuns.
em outros momentos foi o lugar preferido A frequência de certos estabelecimentos
pormarginais. O mesmo pode ser deduzido do edifício é, no entanto, claramente, deter-
quando se olha para a lateral sul do prédio minada pelo status social. Por exemplo, nos
ou a parte detrás do imóvel. Nesta há um cabeleireiros, o que se percebe é uma clien-
estacionamento e serve também para car- tela mais popular, o mesmo pode também
gas e descargas de mercadorias. Essa parte ser observado em alguns bares, restaurantes
detrás é, curiosamente, a de maior visibi- ou igrejas ali existentes. Porém,nas lojas de
lidade para quem olha o Conic a partir do tênis, materiais de esportes radicais (skates,
Setor Comercial Sul ou do Hotel Nacional, rollers, discos, etc.), a clientela é mais he-
ou mesmo descendo o eixo monumental em terogênea, com indivíduos de aspecto típi-
direção à Esplanada dos Ministérios. Uma co dos frequentadores dos shoppings mais
visibilidade esteticamente comprometedo- sofisticados. Nestes, as rodas de jovens na
ra pois o bric-a-brac dos anúncios comer- porta ou alguns transeuntes que param nas
ciais transmite a impressão de um imóvel vitrines indicam um território particular
sujo, sem regras ou administração. Claro de “tribos” urbanas que se autoidentifi-
que essa impressão é reforçada pela arqui- cam por um padrão similar de consumo,
tetura clean do Setor Hoteleiro ao lado ou de vestimenta, de gosto, enfim, de estética
mesmo pela perspectiva da plataforma da no seu sentido mais amplo. É um território
aparentementedemocrático, onde o que une não deixa de ter o seu charme garantido.
os que ali estão é o interesse comum por Isso, sobretudo, porque os frequentadores
certos produtos e marcas vendidas nas lojas, do Conic fazem dali um lugar para estar e
definindo certos espaços do Conic pelas ca- não apenas para passar, como é usual em
racterísticas de seus frequentadores. shoppings.
As livrarias especializadas e a loja Um acontecimento curioso foi a che-
de partituras musicais – “uma das mais gada dos evangélicos na área. Inicialmente,
completas do país”, segundo o seu proprie- houve uma proposta do Bispo Macedo para
tário – têm uma clientela exclusiva: um am- comprar o Cine Atlântida, uma das melhores
biente calmo, tranquilo como deve ser um salas de cinema da cidade. De fato, o cine-
lugar de leitura e de pesquisa em acervos. A ma, como todo o conjunto, é tombado pelo
loja de instrumentos e partituras musicais já IPHAN, mas o espaço estava ficando ocioso
apresenta uma clientela maior, mas o am- justamente pela fuga dos espectadores. O
biente é peculiar, com pessoas conversando governo do DF encaminhou então à Câmara
em voz baixa, vestidos de maneira tradicio- Legislativa uma consulta sobre as possibili-
nal sem ostentação, com gestos contidos, dades de a Igreja Universal adquirir o Cine
traduzindo uma clientela com certo grau de Atlântida numa área do Plano projetada pelo
sofisticação, habituados talvez a frequentar Lúcio Costa. O parecer da Câmara Legisla-
ambientes similares em outros centros. tiva foi positivo, sob o argumento de que
Circulando pelo Conic, pudemos obser- atividades religiosas podem ser entendidas
22 var a presença de pessoas notáveis de Bra- como teatro, uma diversão do povo, não fe-
sília, entre profissionais liberais, professores rindo as recomendações do projeto original
universitários e indivíduos com seleto gosto do Plano Piloto e do edifício. Mesmo se não
musical procurando material original nas li- concordássemos com a designação de arte
vrarias e nas lojas especializadas (disco e de às cerimônias religiosas, do ponto de vista
instrumentos e partituras musicais). Para os formal, é diversão, é encontro, é interação.
boêmios, pessoas ligadas direta ou indireta- Não há, portanto, incompatibilidade com o
mente à atividade artística, funciona ali um projeto de Lúcio Costa.8 Por outro lado, a
teatro e uma escola de arte dramática. Este presença dos fiéis no Conic praticamente
é, sem dúvida, um aspecto particular de um não interfere em nada na rotina do edifício:
edifício urbano que foge aos padrões tradi- chegam, oram e partem sem olhar para o
cionais dos edifícios da administração federal lado. É um público que não consome, não
na Esplanada ou mesmo de shoppings cen- se diverte, não se envolvendo com a vida do
ters de Brasília, frequentados quase exclu- imóvel. Mas acaba sendo a única razão para
sivamente pela classe média. Se agregarmos o Conic estar nas residências de milhões de
ainda a possibilidade de convivência com brasileiros diariamente, pois as cerimônias
diferentes perfis de pessoas atraídas ainda que ali acontecem são televisionadas em ca-
pela diversidade de seu comércio, o Conic deia nacional.
Plano Piloto de Brasília, em si, não é uma de centro comercial e de diversões que foge
questão original. Todas as grandes cidades aos padrões similares oriundos dos modelos
do mundo apresentam áreas desvalorizadas, norte-americanos, além de sua originalidade
justamente em locais que, pela sua antigui- arquitetônica, dada as características climá-
dade, já contam com infraestrutura urbana ticas do Planalto.
praticamente completa. É, aliás, essa a razão Poderíamos também formular uma ou-
pela qual a onda de renovação urbana tem tra questão: por que o Conic se deteriora,
sido observada em praticamente todas as enquanto o Conjunto Nacional, de seu lado e
grandes cidades do mundo ocidental nestas com várias semelhanças de usos, guarda sua
últimas décadas. Paris, Nova York, Barcelo- imagem? Mesmo se levarmos em conta que
na, São Paulo, Salvador, Recife, dentre ou- o público que frequenta o Conjunto Nacio-
tras, passam por processos de gentrificação nal seja também diversificado por origem e
de seus espaços degradados, atraindo uma renda (característica, aliás, inevitável, pois a
classe média endinheirada e intelectualizada localização no cruzamento dos eixos e sobre
que valoriza justamente a estética e o con- a rodoviária urbana induz a isso), o edifício
forto dos velhos imóveis de outros tempos. tem muito dos princípios arquitetônicos pa-
Apesar de tímida, a tentativa de renovação dronizados para shopping centers. A exceção
do Conic vai na mesma direção, são lojas com abertura para as calçadas exter-
Entretanto, fica sempre uma questão nas, mas que, por arranjos de fácil execução,
inquietante: por que edifícios ainda recentes, voltaram-se para o interior do prédio. Fora
situados em áreas privilegiadas da cidade, isso, é um shopping com diversidade de usos 25
gozando de facilidade de acesso e de uma e de frequência dos mais movimentados da
infraestrutura completa e adequada se dete- cidade com condições semelhantes ao Conic.
rioram com tanta rapidez? É verdade que o Não deixa de ser, portanto,uma questão que
Plano Piloto tem alguns edifícios com carac- se coloca quando se pensa nos caminhos que
terísticas de degradação precoce, mas todos seguiram um e outro edifício.
eles nunca antes ocupados efetivamente. Uma das causas dessa diferença pode
São muitos deles projetos inacabados, que ser atribuída ao modelo de gestão adotado
se transformam em ruínas antes mesmo de em ambos. Enquanto o Conjunto Nacional
terem sido inaugurados. foi adquirido por um grande grupo que o
Mas o Conic é diferente. Aqui é, de transforma naquilo que ele é hoje, subme-
fato, um imóvel em pleno uso, com uma tendo-o a uma única administração, o Conic
inserção específica na vida da cidade e que é formado por 13 edifícios, logo, 13 con-
pode ser considerado como um dos mais domínios, com 1.700 proprietários, cada
ecléticos imóveis do Plano Piloto, pela di- qual com sua parcela de poder na definição
versidade de usos e de frequência. Se rom- dos rumos do imóvel. Há cerca de dez anos
permos com a imagem de shopping center atrás foi criada uma Prefeitura do conjunto
como aquele lugar superprotegido, fechado, para centralizar a administração do prédio,
sem visibilidade externa, o Conic pode ser com a função prioritária de acabar com o
considerado um shopping center tal e qual estigma de área perigosa e para normatizar
os demais. Talvez até mesmo uma proposta as áreas degradadas. A primeira função foi
ele aparece justamente como uma exceção envelheceram e perderam o charme muito
ao padrão estético e funcional da área. Nes- rapidamente.
te sentido, e apenas neste, ele aparece como
um espaço singular que abrange não apenas
os tipos sociais, mas também a sua própria
arquitetura interna que vai sendo criada e
A dinâmica social
recriada sem a rigidez legal da Esplanada. do edifício
Aí sim ele é singular; uma singularidade que
se acentua dada a “distância” do Setor Co- Há um consenso entre os frequentadores
mercial Sul. Aí ele pode ser visto como um usuais do Conic, mais particularmente entre
gueto, um corpo estranho a uma classe mé- os comerciantes que têm lojas no edifício,de
dia moradora do Plano Piloto, com a dife- que se trata de um dos lugares mais seguros
renciação nos tipos sociais e no uso ante os do Plano Piloto, incluindo o Setor Comercial
demais imóveis da área. Sul e o próprio complexo Gilberto Salomão
Permanece sempre a pergunta do por- no Lago Sul área nobre da cidade. Esse argu-
que numa área tão privilegiada o “povo bra- mento pode encontrar princípio de realidade,
sileiro”11 tomou conta daquele espaço. Uma sobretudo se levarmos em conta a presença
das possíveis explicações pode estar no gru- de um batalhão da polícia militar com uma
po que está por detrás da construção dos delegacia dentro do próprio conjunto edifica-
prédios do Conic. Brasília foi um eldorado do: fala-se num efetivo de 500 homens que
para as construtoras quando da edificação se revezam dia e noite na vigília do prédio 27
da cidade nos anos 50. Além das grandes e arredores, o que inviabiliza qualquer con-
empresas nacionais que se responsabiliza- vívio com criminosos de qualquer estirpe.
ram pelas obras dos edifícios públicos, pe- Claro que não estamos aqui considerando o
lo sistema viário e mesmo pelos blocos dos trabalho das prostitutas que ali fazem ponto
apartamentos funcionais, outras empresas noturno, não causando nenhum transtorno
regionais também fizeram fortuna naquele maior aos frequentadores do lugar, inclusive
momento.12 Talvez por razões de economia os evangélicos e suas famílias. Entretanto, o
ou por valores culturais e estéticos, ou mes- Conic hoje tem uma imagem estigmatizada,
mo porque a cidade que se construía naquele principalmente junto à classe média tradicio-
momento, não tinha ainda como exigência a nal do Plano Piloto, resquício de um período
ostentação de luxo e sofisticação como atual em que a situação beirava o descontrole. Po-
mente ocorre, o fato é que o visual do pré- demos considerar três fases na vida do edifí-
dio é simples, sem ostentação. Fica evidente cio a partir de sua inauguração.
quando o olhamos que seus idealizadores Numa primeira fase, o edifício atraía
não tiveram a estética como diretriz. Aliás, as embaixadas estrangeiras que tinham ali
se olharmos os prédios por eles construídos seus escritórios de representação, os pro-
no Plano Piloto, certamente, eles estariam fissionais liberais, partidos políticos, etc. A
classificados entre os que apresentam uma localização privilegiada facilitava a preferên-
arquitetura sem estilo, numa caricatura de cia, que se manteve enquanto as sedes ofi-
um modernismo caboclo: construções que ciais das representações diplomáticas foram
Lúcio Costa. Para os moradores da cidade, uma sensação curiosa e familiar ao mesmo
uma das maiores carências são as áreas de tempo. De fato, a cidade tem gente, tem um
convívio coletivo que escape aos jardins e movimento. No fundo, é ali que a Esplanada
áreas verdes. Ou seja, aquilo que falta nas é mais cidade.
grandes cidades brasileiras, Brasília tem em Na verdade, podemos nos perguntar
quantidade, porém não dispõe, por exem- se seria o caso de intervir para alterar ou
plo, de “botecos” um velho hábito urbano ordenar o espaço coletivo do edifício? Cla-
do país, que foi completamente esquecido, ro que se olharmos pelo lado da arquitetura
talvez pela trivialidade do fato. Áreas onde não oficial do Plano Piloto, especialmente
seja possível tomar um cafezinho, utilizar da Esplanada, o Conic é sem dúvida o maior
um banheiro, sentar numa mesa para um monumento histórico da cidade. O fato de
aperitivo, uma conversa. Lazer em Brasília os arquitetos da nova capital não terem tido
são bares e restaurantes, a maioria deles nenhuma preocupação com populações fo-
formais o suficiente para exigir um certo ri- ra do núcleo do poder, do governo, fez do
tual de frequência. Dificilmente são lugares Conic o contraponto entre o oficial e o não
onde se vai espontaneamente. Pois o Conic oficial na estética do Plano Piloto: a antíte-
é justamente isso. Com uma localização pri- se daquilo que é a regra geral para o Plano
vilegiada, pensado justamente para ter es- Piloto. Talvez seja o único edifício de uma
tas características de uso, sem a assepsia de área tombada pela Unesco que, de tempos
shoppings com seus insistentes apelos de em tempos, alguém propõe demolir. Cau-
consumo. Aqui se vê que a parcela criativa sam pouca reação propostas dessa natureza, 29
do urbanista foi pensada, o que faltou foi a mas servem para reunir um grupo de inte-
criatividade das pessoas que para cá vieram, lectuais, arquitetos, artistas, comerciantes
obviamente com as exceções de praxe. e frequentadores do Conic num grupo de
reflexão para traçar o futuro do edifício e
protegê-lo das ameaças de destruição. Tudo
está indicando que intervenções seriam sim-
Espaço de exceção, plesmente para consolidar o papel atual do
espaço de outras Conic construído em décadas de existência
sociabilidades que se confunde com a própria história da
cidade. Será nesse confronto entre o “ódio”
Toda a discussão sobre o estigma que carac- que o Conic provoca em uns e o “amor” que
teriza o Conic é no fundo um olhar de fora desperta em outros que o futuro do edifício
sobre o edifício. Há na cidade indivíduos que está sendo tratado.
frequentam rotineiramente o lugar, fazem Os clássicos da sociologia, Simmel à
dali um ponto de encontro entre amigos, de frente, trataram a metrópole como um “fato
conversas, compras, enfim, fazem dele um civilizatório” na medida em que ela simboli-
lugar urbano de multiusos. Para a rotina zava a forma geral da modernidade. Nisbet
de Brasília, onde o ato de andar à pé só se (1984, p. 381) argumenta que a metrópo-
faz nos fins de semana, quando se caminha le joga no pensamento de Simmel o mesmo
pelas superquadras ou pelos parques, ficou papel que a democracia para Tocqueville, o
capitalismo para Marx e a burocracia para mostrar para o caso do Conic é que socia-
Weber. Foi ele o primeiro que fez da gran- bilidades heterogêneas induzem ao apare-
de cidade o lugar por excelência no qual se cimento de ambientes (estéticas) também
exprime a lógica social da sua época. Com heterogêneos, mesmo em espaços pensados
os avanços do capitalismo e com a globali- para serem homogêneos, como é o Plano
zação, podemos afirmar que essa é uma as- Piloto. A área escolhida pode ser lida então
sertiva cada vez mais evidente. Não se pode como um espaço de possibilidades de novas
perder de foco o fato que a heterogeneidade modalidades de uso da cidade por indivíduos
da metrópole termina encontrando nela um e grupos que não estavam contemplados no
ambiente adequado à existência de grupos seu projeto original, apontando fissuras no
e tipos urbanos singulares e com menores seu espaço físico.14 Há aqui estreita relação
possibilidades de controle. Garantindo a uni- entre ambiente construído e seus usos: fre-
dade na diversidade, a metrópole termina quentar o Conic é elemento identificatório
por se constituir como a síntese civilizatória do lugar social do indivíduo, exigindo na sua
dos tempos modernos, ambiente propício ao análise elementos científicos e metodológi-
aparecimento de formas originais de socia- cos que dialoguem com um certo número de
lização. Mais uma vez temos que recorrer disciplinas, tais como a arquitetura, a eco-
a Simmel para recuperar o seu argumento nomia, o urbanismo em torno de questões
de generalização da moeda na metrópole, sobre a racionalização, a concentração, a di-
fenômeno que permite o aparecimento de visão do trabalho.
30 tipos originais no ambiente da grande cida- Já é consensual entre os estudiosos do
de (o indivíduo blasé, o estrangeiro, o re- urbanismo modernista no Brasil da segun-
servado), resultando na diferenciação social da metade do século XX que a cidade era a
típica da modernidade. É interessante essa síntese de um projeto de sociedade. Brasília,
tipologia simmeliana, pois não se trata aqui sob essa perspectiva, aparece como a unida-
de classificar os indivíduos que frequentam o de central (a city) física e social, cujo espaço
Conic como excluídos ou algo parecido. A di- construído é denso, com funções econômi-
versidade de tipos humanos e de atividades cas (terciárias) vitais. Ela se liga às cidades
econômicas poderia dar margens a tensões satélites, relativamente autônomas, mas se
no convívio diário. Mas tudo está indicando mantém como sede das atividades econômi-
que há códigos informais de convívio e as cas, do emprego formal, com uma autono-
pessoas terminam por não interferir no es- mia interna. Essa centralidade física e social
paço uma das outras. Certamente, a imagem polariza os seus arredores e deve, portanto,
de uma área caótica que se sente quando ali garantir espaços de sociabilidades que esca-
estamos tem muito da programação visual pam àquela hegemônica oriunda da cultura
do comércio ali existente e do contraste com burocrática de uma cidade-Estado. Na verda-
o desenho racional da maioria dos edifícios de, ela cumpre assim seu papel de metrópo-
do Plano Piloto. le, na medida em que garante a existência de
Assim, não se trata de um recorte eco- tipos urbanos peculiares da grande cidade:
nômico simplesmente, mas sim de formas em outras palavras, o “estrangeiro” tem seu
de sociabilidade distintas. O que procuramos território de existência garantido no Conic.
Notas
(1) Ver, por exemplo, Georg Simmel, Max Weber e Pierre Bourdieu, para ficar apenas entre os consi-
derados referências em nosso campo de trabalho. Isso para não falar no geógrafo, Prof. Milton
Santos, que insiste de forma recorrente em sua obra sobre a importância do espaço na constru-
ção das relações sociais.
(2) O que, aliás, foi a perspectiva dos intelectuais da Escola de Chicago na primeira metade do século
XX que tratavam a cidade e suas áreas como “zonas morais”. Park (1976), Chapoulie (2001).
(3) Com a evolução da tecnologia e a expansão do setor terciário da economia onde hoje o lugar de
trabalho é cada vez menos dependente da localização da unidade produtiva e onde o trabalho
em casa ganha cada vez mais importância, não se pode negar que o debate sobre os argumen-
tos dos modernistas ganham novos elementos.
(4) É em razão disso que ele introduz a noção de “ambiente” e faz das variações do ambiente um
fator decisivo para compreender por que a solidariedade mecânica se torna ultrapassada e deve
ser substituída pela solidariedade orgânica. A esse respeito, ver Jean Remy (1995).
31
(5) A ideia de matriz utilizada pelo autor é “a organização de paradigmas de várias disciplinas que
formam uma predisposição para a apreensão, compreensão e construção do mundo” (Duarte,
2002, p. 23).
(6) Não iremos aqui reproduzir essa discussão, de resto inútil, pois a cidade de Brasília se implantou e se
consolidou com todas as limitações que porventura possa se constatar no projeto apresentado.
(7) Na elaboração desse tópico, tive a companhia de Naraina Kujimian, então bolsista de PIBIC. Em
certa medida, procuramos seguir as orientações de Howard Becker (2008) sobre pesquisa, fa-
zendo uma leitura minuciosa do cotidiano do edifício para situar o leitor no contexto do objeto
analisado.
(9) Após o período de auge, quando de sua inauguração, o Conic sofre um processo de decadência
que transforma o lugar num ponto de tráfico de drogas, prostituição e mendicância. A Prefeitu-
ra trouxe então o Batalhão da Polícia Militar, afugentando os indesejáveis. Hoje não se fala mais
em quadrilhas de traficantes agindo no Conic e a área é uma das mais seguras do Plano Piloto.
(10) Liderados principalmente pela arquiteta Flavia Portella, que redesenha o projeto do Conic e pro-
põe várias intervenções no seu desenho físico.
(11) Expressão de Lúcio Costa referindo-se à população que tomou conta da rodoviária e arredores de
Brasília. Ver Costa (1987).
(12) Na construção do Conic estão três dos grandes empresários pioneiros construtores de Brasília:
Venâncio, Baracá e o Karim Narrote.
(13) Argumentos semelhantes podem ser aplicados para o tráfego de drogas, que se beneficia do
mercado consumidor do Plano Piloto.
(14) É interessante isso, pois hoje já se pode constatar que essas “fissuras” no projeto original estão
ampliando seus territórios dentro da área, sobretudo na Avenida W3, onde a ocupação dos imó-
veis por pessoas e atividades que fogem ao padrão hegemônico no Plano está cada vez mais
evidente, num claro sinal de que a cidade é um produto coletivo em movimento. Ver Luis Felipe
Castelo (2007).
Referências
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Recebido em dez/2008
Aprovado em mar/2009