LIvro de Casos de Sherlock Holmes
LIvro de Casos de Sherlock Holmes
LIvro de Casos de Sherlock Holmes
1 Henry Fielding, romancista inglês do século XVIII, introdutor do narrador onisciente. Escreveu livros
como The history of Tom Jones, a foundling (1749) e The Lovers Assistant – new art of love (1740).
2 Samuel Richardson, romancista e editor inglês do século XVIII. Suas obras mais conhecidas são três
romances epistolares: Pamela (1740), Clarissa (1747), e A História de Sir Charles Grandison (1753).
3 Sir Walter Scott, romancista, poeta, dramaturgo e historiador escocês, que estabeleceu os parâmetros
do romance histório no início do século XIX. Publicou sua maior obra, Ivanhoe em 1820.
4 Charles Dickens, romancista inglês tido por historiadores da literatura como o maior romancista da Era
Vitoriana, retratava, frequentemente, em seus livros o sotaque cockney e seus falantes. É autor de obras
clássicas como Grandes Esperanças (1860) e Oliver Twist (1837).
5 William Makepeace Thackeray, romancista inglês da Era Vitoriana, tendo escrito livros renomados
como Feira das Vaidades (1848) e As Memórias de Barry Lyndon (1844).
6 Segundo a mitologia nórdica, Valhalla era o palácio dos mortos heroicos.
Holmes estreou em Um estudo em vermelho e em O signo dos quatro, dois pequenos
livrinhos que apareceram entre 1887 e 1889. Foi em 1891 que “Um escândalo na
Boêmia”, o primeiro conto da extensa série, foi publicado na The Strand Magazine. O
público parecia grato e desejoso de mais, de modo que desde aquela data, trinta e nove
anos atrás, eles foram produzidos em uma série fragmentada que agora contém nada
menos que cinquenta e seis histórias, republicadas em As Aventuras, As Memórias, O
Retorno e O último adeus. E restam esses doze publicados durante os últimos anos que
são aqui produzidos sob o título de The Case Book of Sherlock Holmes. Ele começou
suas aventuras no coração da era vitoriana tardia, continuou durante o reinado muito
curto de Eduardo7 e conseguiu manter seu pequeno nicho mesmo nesses dias febris.
Portanto, seria correto dizer que aqueles que leram sobre ele pela primeira vez, quando
jovens, viveram para ver seus próprios filhos adultos seguindo as mesmas aventuras na
mesma revista. É um exemplo notável da paciência e lealdade do público britânico.
Eu estava determinado a dar cabo de Holmes na conclusão de As Memórias, pois
senti que minhas energias literárias não deveriam ser muito direcionadas para um canal.
Aquele rosto pálido e bem definido e a figura de membros soltos ocupavam uma parte
indevida da minha imaginação. Eu pratiquei a ação, mas felizmente nenhum legista se
pronunciou sobre os restos mortais e, portanto, após um longo intervalo, não foi difícil
para mim responder à demanda lisonjeira e explicar meu ato precipitado. Nunca me
arrependi, pois na prática não descobri que esses esboços mais leves me impediram de
explorar e encontrar minhas limitações em ramos tão variados da literatura como história,
poesia, romances históricos, pesquisa psíquica e drama. Se Holmes nunca tivesse
existido, eu não poderia ter feito mais, embora talvez ele tenha atrapalhado um pouco o
reconhecimento de minha obra literária mais séria.
E assim, leitor, adeus a Sherlock Holmes! Agradeço por sua fidelidade pregressa
e posso apenas esperar que algum retorno tenha ocorrido na forma daquela distração
das preocupações da vida e daquela estimulante mudança de pensamento que só pode
ser encontrada no reino das fadas do romance.
7Eduardo VII, filho da Rainha Vitória, reinou por 9 anos entre 1901 e 1910. O fim de seu reinado foi
marcado por uma polêmica crise constitucional.
Tradutora: Naara Bitencourt Ramalho
Revisor: Thales Nascimento Buzan
Paratexto
O conto “The Adventure of the Illustrious Client” foi publicado pela primeira vez em
novembro de 1924, nos Estados Unidos, pela revista Collier’s, e depois em fevereiro e
março de 1925 pela Strand Magazine no Reino Unido, dividido em duas partes. A
narrativa está contida na última coletânea de contos publicados por Arthur Conan Doyle
e estreia a obra The Case-Book of Sherlock Holmes de 1924.
No início do conto, Sherlock Holmes e seu parceiro, John Watson, são procurados
por James Damery para investigar o caso que assombra seu enigmático cliente ilustre,
cuja identidade não se sabe até então. O caso é narrado por Watson, que acompanha o
desenrolar da investigação de perto e fornece ricos detalhes sobre cada personagem
introduzido na história.
Nesta versão, elementos do século XX foram traduzidos de forma a preservar a
ambientação do contexto cultural britânico da época — tais como descrição de lugares
e roupas e expressões linguísticas. Por isso, termos como “polainas lilases”, “luvas de
pelica”, “aposentos”, “Diabos!”, “lacaio” aparecerão no texto. Quanto ao vocabulário
geral, as escolhas tradutórias foram tomadas a fim de manter o caráter formal dos
personagens — típico nas narrativas de Conan Doyle — e, ainda assim, ser inteligível
ao contexto de chegada do leitor brasileiro.
Perfil da tradutora
Em 2020, Naara Bitencourt ingressou como graduanda em Bacharelado em Letras
– Tradução, com especialização em inglês, pela Universidade Federal de Juiz de Fora,
e, a partir do contato com a teoria dos Estudos da Tradução e com a prática tradutória
ao longo do curso, é considerada uma tradutora generalista — tendo experiência em
tradução de textos acadêmicos, médicos, jurídicos, comerciais, jornalísticos, e
legendagem e dublagem — com aspiração profissional pela tradução de textos literários.
Formalmente, este conto é a primeira tradução que realizou para fins de publicação.
O CLIENTE ILUSTRE
— Agora já não faz mal — foi o comentário do Sr. Sherlock Holmes quando, pela
décima vez em tantos anos, eu lhe pedi licença para revelar a narrativa a seguir. Foi
assim que, por fim, obtive permissão para registrar o que era, de alguma forma, o
momento supremo da carreira de meu amigo.
Tanto Holmes quanto eu tínhamos um fraco pelo banho turco. Na agradável
atmosfera do vestiário, em meio ao vapor, eu o encontrei menos resistente e mais
humano do que em qualquer outro lugar. No andar superior do estabelecimento da
Northumberland Avenue, há um canto recluso onde ficam dois sofás, um ao lado do
outro, e neles descansamos no dia 3 de setembro de 1902, data em que minha narrativa
começa. Tinha lhe perguntado se havia alguma novidade e, em resposta, ele tirou seu
comprido, fino e nervoso braço debaixo dos lençóis que o cobriram e puxou um envelope
do bolso interno do casaco que estava pendurado ao seu lado.
— Talvez seja um tolo exigente e presunçoso ou um caso de vida ou morte —
disse ele, entregando-me o bilhete — Não sei nada além do que está escrito nesta
mensagem.
Era do Carlton Club e datava da noite anterior. Foi isto que li:
— Não é preciso dizer que já a confirmei, Watson — disse Holmes, quando lhe
devolvi o papel. — Sabe alguma coisa a respeito desse Damery?
— Apenas o fato de ser um nome conhecido na sociedade.
— Bem, posso lhe dizer um pouco mais do que isso. Ele tem a reputação de tratar
de assuntos delicados que devem ser mantidos longe dos jornais. Talvez se lembre de
suas negociações com Sir George Lewis sobre o caso do Testamento de Hammerford.
Ele é um homem experiente com uma inclinação natural para a diplomacia. Portanto, sou
obrigado a acreditar que não seja um alarme falso e que ele, de fato, precise de nossa
assistência.
— Nossa?
— Bem, se você fizer as honras, Watson.
— Ficarei honrado.
— Então já sabe o horário: 4h30min. Até lá, podemos esquecer esse assunto.
Naquela época, eu morava em meus próprios aposentos na Queen Anne Street,
mas estava perto da Baker Street antes da hora mencionada. Às quatro e meia,
precisamente, o coronel Sir James Damery foi anunciado. Não é necessário descrevê-
lo, porquanto muitos se lembrarão de sua personalidade exagerada, franca e honesta,
de seu rosto largo e barbeado, e, sobretudo, de sua voz suave e agradável. Franqueza
brilhava em seus olhos cinzentos de irlandês, e bom humor estava presente em seus
lábios expressivos e sorridentes. Sua cartola lustrosa, a sobrecasaca preta, sem dúvidas,
cada detalhe, desde o alfinete de pérola na gravata de cetim preto até as polainas lilases
sobre os sapatos envernizados, demonstrava o meticuloso esmero para com a
vestimenta que o tornou famoso. O grande e magistral aristocrata dominava o pequeno
cômodo.
— Evidentemente, estava preparado para encontrar o Dr. Watson — comentou
ele, curvando-se de maneira cortês. — Sua colaboração pode ser muito necessária, dado
que, nesta conjuntura, Sr. Holmes, estamos lidando com um homem a quem a violência
é familiar e que, literalmente, não se intimidará com nada. Devo dizer que não há homem
mais perigoso na Europa.
— Já tive diversos oponentes a quem esse lisonjeiro título foi aplicado — disse
Holmes, com um sorriso. — O senhor não fuma? Então, permita-me acender o meu
cachimbo. Se seu homem é mais perigoso do que o finado professor Moriarty ou que o
coronel Sebastian Moran, que ainda está vivo, decerto, vale a pena conhecê-lo. Pode
me dizer o nome dele?
— Já ouviu falar do barão Gruner?
— O senhor se refere ao assassino austríaco?
O coronel Damery ergueu as mãos com luvas de pelica e riu. — Nada lhe escapa,
Sr. Holmes! Que maravilha! Então o senhor já o tomou como assassino?
— É meu ofício acompanhar os detalhes de crimes do continente. Quem poderia
ter lido o que aconteceu em Praga e ter alguma dúvida quanto à culpa do homem? O
que o salvou foi um argumento jurídico puramente técnico e a morte suspeita de uma
testemunha! Estou tão certo de que ele matou a esposa quando ocorreu o chamado
"acidente" no desfiladeiro Splugen como se eu tivesse testemunhado o crime. Soube
também que Gruner tinha vindo para a Inglaterra e tive um pressentimento de que, mais
cedo ou mais tarde, ele me daria certo trabalho. Então, o que o barão Gruner tem
aprontado? Presumo que não seja essa velha tragédia que voltou à tona, certo?
— Não, receio que seja algo mais sério. Vingar-se de um crime é importante, mas
impedi-lo é ainda mais. É algo terrível, Sr. Holmes, testemunhar um evento hediondo,
uma situação atroz, preparando-se diante dos seus olhos, entender claramente a que
rumo levará e ainda ser capaz de evitá-lo cabalmente. Pode um indivíduo ser submetido
a uma posição mais difícil?
— Talvez não.
— Então o senhor simpatizará com o cliente de cujos interesses estou cuidando.
— Não havia percebido que o senhor era meramente um intermediário. Quem de
fato está interessado?
— Sr. Holmes, devo pedir-lhe que não insista em tal pergunta. É de suma
importância que eu assegure a ele que seu honroso nome não fora, em nenhuma
circunstância, envolvido no assunto. Suas motivações são, em último grau, nobres e
honráveis, mas ele prefere manter-se incógnito. Não é necessário dizer que seus
honorários serão assegurados e que o senhor tem permissão para proceder da maneira
que desejar. Certamente, o verdadeiro nome de seu cliente é de pouca relevância?
— Perdoe-me — disse Holmes. — Estou habituado a ter enigmas em uma
extremidade dos meus casos, mas tê-lo nas duas extremidades é altamente confuso.
Receio, Sir James, ter de recusar este caso.
Nosso visitante ficou extremamente transtornado. Seu rosto comprido e sensitivo
estava encoberto de emoção e desapontamento.
— O senhor não consegue perceber as consequências de sua recusa, Sr. Holmes
— disse ele. — O senhor me coloca em um seríssimo dilema, pois tenho total certeza de
que ficaria orgulhoso de assumir o caso se me fora permitido contar-lhe os fatos,
entretanto uma promessa me proíbe de revelá-los por completo. Permita-me, ao menos,
partilhar tudo o que está ao meu alcance?
— É claro, uma vez posto que não irei me comprometer com nada.
— Isso está posto. Em primeiro lugar, o senhor certamente ouviu falar do general
de Merville?
— De Merville, famoso em Khyber? Sim, já ouvi falar dele.
— Ele tem uma filha, Violet de Merville, jovem, rica, de bela aparência, talentosa,
uma mulher admirável em todos os sentidos. É esta filha, esta moça adorável e inocente
que estamos tentando salvar das garras de um demônio.
— O barão Gruner possui algum domínio sobre ela, então?
— O mais forte dos domínios quando se trata de uma mulher: o do amor. O sujeito
é, como o senhor deve saber, extraordinariamente bonito, com um jeito fascinante, uma
voz suave e aquele ar de romance e mistério que é tão apreciado por uma mulher. Dizem
que ele tem todo o público feminino à sua mercê e que fez amplo uso desse fato.
— E como um homem desses conheceu uma dama da classe da Srta. Violet de
Merville?
— Foi durante uma viagem de iate pelo Mediterrâneo. A companhia, embora
seleta, pagava suas próprias passagens. Sem dúvida, os promotores sequer perceberam
o verdadeiro caráter do barão até que fosse tarde demais. O vilão se afeiçoou à moça
com tanto efeito que conquistou seu coração completa e absolutamente. Afirmar que ela
o ama não expressa o sentimento, ela o idolatra, é obcecada por ele. Fora dele não há
nada na Terra. Ela não ouvirá uma palavra contra ele. Já foi feito de tudo para curá-la de
sua loucura, mas em vão. Em suma, a moça propõe-se a casar-se com ele no próximo
mês. Por ser maior de idade e ter uma determinação indiscutível, é difícil saber como
impedi-la.
— Por acaso, ela sabe sobre o episódio da Áustria?
— O demônio astuto contou a ela todos os escândalos públicos desagradáveis de
sua vida pregressa, mas sempre de tal forma a fazer-se passar por um mártir inocente.
Ela aceita completamente a versão que ele apresentou e não admite nenhuma outra.
— Céus! Mas ouso dizer que o senhor deixou escapar inadvertidamente o nome
de seu cliente? Sem dúvida, é o General de Merville.
Nosso visitante se inquietou em seu assento.
— Eu poderia enganá-lo ao dizer que sim, Sr. Holmes, mas não seria verdade. De
Merville é um homem abatido. O bravo soldado foi profundamente desmoralizado por
esse incidente. Ele perdeu a coragem que nunca lhe faltou no campo de batalha e se
tornou um velho fraco e debilitado, totalmente incapaz de enfrentar um patife brilhante e
poderoso como esse austríaco. Meu cliente, no entanto, é um velho amigo, que conhece
o general intimamente há muitos anos e tem um interesse paternal por essa jovem desde
quando ela usava roupas miúdas. Ele não admite que essa tragédia se consuma sem
que haja alguma tentativa de impedi-la. Não há nada que a Scotland Yard possa fazer.
Ele mesmo sugeriu que o senhor fosse solicitado, mas, como disse anteriormente, com
a explícita condição de que ele não deveria estar pessoalmente envolvido no assunto.
Não tenho dúvidas, Sr. Holmes, de que, com seus grandes poderes, o senhor poderia
facilmente rastrear meu cliente até mim, mas devo pedir-lhe, por uma questão de honra,
que se abstenha de fazer isso e que não invada seu anonimato.
Holmes deu um sorriso extravagante.
— Creio que posso prometê-lo com segurança — disse ele. — Também
acrescento que seu caso me interessa e que estarei preparado para investigá-lo. Como
devo contatar o senhor?
— O Carlton Club saberá me encontrar. Mas, em caso de emergência, há um
telefone particular: XX. 31.
Holmes anotou a observação e sentou-se, ainda sorrindo, com o bloco de
anotações aberto sobre o joelho.
— O endereço atual do barão, por favor?
— Vernon Lodge, perto de Kingston. É um casarão. Ele foi afortunado em algumas
especulações um tanto suspeitas e é um homem abastado, o que naturalmente o torna
um antagonista ainda mais perigoso.
— Ele se encontra em casa no momento?
— Sim.
— Além do que o senhor me disse, é possível acrescentar alguma informação
sobre o homem?
— Ele possui gostos refinados. Tem uma paixão por cavalos. Por um curto
período, ele jogou polo em Hurlingham, mas depois que o caso de Praga foi noticiado,
foi obrigado a sair. Coleciona livros e quadros. É um homem com um considerável lado
artístico em sua natureza. Ele é, acredito eu, uma autoridade ilustre em cerâmica chinesa
e escreveu um livro sobre o assunto.
— Uma mente complexa — disse Holmes. — Todos os grandes criminosos têm
uma. Meu velho amigo Charlie Peace era um virtuoso do violino. Wainwright era um
artista notório. Eu poderia citar muitos outros. Bem, Sir James, informe ao seu cliente
que tenho meus pensamentos voltados para o barão Gruner. É tudo o que posso dizer.
Eu mesmo possuo algumas fontes próprias de informação e arrisco em dizer que
encontraremos algum meio de abrir o caso.
Assim que nosso visitante partiu, Holmes ficou sentado por tanto tempo, absorto
em seus pensamentos, que me pareceu que ele havia se esquecido da minha presença.
Mas, finalmente, voltou abruptamente à Terra.
— Então, Watson, alguma ideia? — perguntou ele.
— Eu penso que deveria ir ver a jovem pessoalmente.
— Meu caro Watson, se o seu pobre e velho pai não é capaz convencê-la, como
eu, um estranho, serei? No entanto, sua sugestão tem algo a oferecer se tudo o mais
falhar. Mas acho que devemos começar por um ângulo distinto. Imagino que Shinwell
Johnson pode ser útil.
Não tive a oportunidade de mencionar Shinwell Johnson nestas narrativas porque
raramente extraí os casos das últimas fases da carreira de meu amigo. Durante os
primeiros anos do século, ele fez-se um assistente valioso. Johnson, lamento dizer,
tornou-se, a princípio, conhecido como um vilão muito perigoso e cumpriu dois mandatos
em Parkhurst. Finalmente, arrependeu-se e aliou-se a Holmes, atuando como seu agente
no vasto submundo do crime de Londres e obtendo informações que constantemente se
mostraram de importância vital. Se Johnson tivesse sido um "informante" da polícia, logo
teria sido descoberto, mas como lidava com casos que nunca chegavam diretamente
aos tribunais, suas atividades de modo algum foram percebidas por seus companheiros.
Com o prestígio de suas duas condenações, ele tinha acesso a todos os clubes noturnos,
albergarias e casas de apostas da cidade, e sua observação sagaz e cérebro ativo o
tornavam um agente ideal para obter informações. Foi a ele que Sherlock Holmes se
propôs a recorrer.
Não foi possível acompanhar os passos imediatos de meu amigo, pois eu tinha
alguns assuntos profissionais urgentes, porém o encontrei com hora marcada naquela
noite no Simpson's, onde, sentado a uma mesinha na janela da frente e olhando para o
intenso fluxo de vida na Strand, ele me contou algo que ocorrera.
— Johnson está à espreita — disse ele. — É possível que ele encontre algum
rastro nos recônditos mais escuros do submundo, pois é, lá embaixo, em meio às raízes
obscuras do crime, onde devemos caçar os segredos desse homem.
— Mas se a moça não aceita o que já é de conhecimento comum, por que
qualquer nova descoberta sua a faria desistir de seu juízo?
— Quem sabe, Watson? O coração e a mente de uma mulher são para o homem
enigmas insolúveis. Um homicídio pode ser perdoado ou explicado e, entretanto, algum
crime menor pode ser danoso. O barão Gruner mencionou para mim...
— Ele mencionou algo para você!
— Ah, mas é claro, eu não lhe contei sobre meus planos. Bem, Watson, eu adoro
confrontar o homem com quem estou lidando. Gosto de encontrá-lo cara a cara e
reconhecer por mim mesmo a essência de sua natureza. Após dar a Johnson as
instruções, tomei um táxi para Kingston e encontrei o barão num humor bastante
agradável.
— Ele o reconheceu?
— Quanto a isso não houve dificuldade, pois simplesmente enviei meu cartão. Ele
é um excelente antagonista, frio como gelo, de voz sedosa e suave como um de seus
elegantes consultores, e venenoso como uma cobra. Há nele a verdadeira essência de
um aristocrata do crime, com traços do chá das cinco e toda a crueldade do túmulo por
trás. Sim, estou satisfeito por ter voltado minha atenção ao barão Adelbert Gruner.
— Você disse que ele era agradável?
— Um gato ronronante que pensa ver ratos em potencial. A agradabilidade de
alguns é mais letal que a violência das mais rudes almas. Sua saudação foi
característica. "Imaginei que o veria mais cedo ou mais tarde, Sr. Holmes", disse ele. “O
senhor foi solicitado, sem dúvida pelo General de Merville, para tentar impedir meu
casamento com sua filha, Violet. Estou certo, não? ”
— Eu concordei.
— “Meu caro”, disse ele, “tudo que conseguirá fazer é arruinar sua tão merecida
reputação. Este não é um caso em que terá sucesso. Seu trabalho será árido, sem
mencionar o perigo a que está sujeito. Permita-me aconselhá-lo, de maneira enfática, a
desistir imediatamente”.
— “É curioso", respondi, "mas esse era o exato conselho que pretendia lhe
oferecer. Respeito a sua inteligência, barão, e o pouco que vi de sua personalidade
decerto não o diminuiu. Permita-me dizer isto a você de homem para homem. Ninguém
deseja desenterrar seu passado e, assim, deixá-lo vãmente desconfortável. O que ficou
para trás, ficou para trás, o senhor agora está em águas tranquilas, mas, se persistir
neste casamento, provocará um enxame de inimigos poderosos que nunca o deixarão
em paz até tornarem a Inglaterra um lugar insustentável para o senhor. Será que o jogo
vale a pena? Sem dúvidas, a decisão mais sábia é deixar a moça em paz. Sem dúvida,
não seria agradável para o senhor que tais fatos de seu passado fossem levados ao
conhecimento dela.
— O barão tem, embaixo do nariz, pequenas pontas de pelos oleosos, como as
antenas minúsculas de um inseto. Essas pontas tremiam de diversão enquanto ele ouvia
e, finalmente, ele soltou uma risada suave.
— "Perdoe o meu divertimento, Sr. Holmes", disse ele, "mas é realmente cômico
vê-lo tentar jogar sem cartas nas mãos. Creio que não há ninguém que conseguiria fazer
isso melhor, mas é um tanto patético, mesmo assim. Nem uma carta colorida aí, Sr.
Holmes, nada além da menor das menores".
— "É o que o senhor pensa” — eu disse.
— "É o que sei. Deixe-me tornar claras algumas coisas para o senhor, pois minha
mão é tão superior que posso me dar ao luxo de mostrá-la. Tive a sorte de conquistar
toda a afeição dessa moça. Eu a consegui apesar de ter contado a ela, com muita
clareza, todos os incidentes infelizes da minha vida pregressa. Também esclareci a ela
que certas pessoas perversas e malignas – espero que você se identifique – a
procurariam e lhe contariam tais coisas, e eu a adverti sobre como tratá-los. O senhor já
ouviu falar de sugestão pós-hipnótica, Sr. Holmes? Bem, o senhor verá como ela
funciona, pois um homem de personalidade pode usar o hipnotismo sem nenhum truque
ou tolices. Portanto, ela está pronta para recebê-lo e, não tenho dúvidas, marcaria um
encontro com você, uma vez que é bastante favorável à vontade do pai – exceto por uma
pequena questão".
— Bem, Watson, parecia não haver mais nada a dizer, de modo que me despedi
da maneira mais fria e digna que consegui, mas, quando estava com a mão na maçaneta
da porta, ele me impediu.
— "A propósito, Sr. Holmes", disse ele, "você conheceu Le Brun, o agente
francês?”
— "Sim”, respondi.
— “O senhor sabe o que se passou com ele?”
— "Ouvi dizer que foi espancado por alguns apaches no distrito de Montmartre e
ficou aleijado para o resto da vida”.
— "É verdade, Sr. Holmes. Por uma curiosa coincidência, ele estava bisbilhotando
meus assuntos apenas uma semana antes. Não faça isso, Sr. Holmes; não é sensato.
Muitos já descobriram isso. Minha palavra final para o senhor é: siga seu próprio caminho
e deixe-me seguir o meu. Adeus!”.
— Então, aqui está, Watson. Agora está a par de tudo.
— O sujeito parece perigoso.
— Muito perigoso. Eu desdenho o fanfarrão, mas esse é o tipo de homem que fala
muito menos do que quer dizer.
— Você precisa interferir? Realmente importa se ele se casar com a moça?
— Considerando que ele, incontestavelmente, assassinou sua última esposa, eu
diria que importa muito. Além disso, o cliente! Bem, bem, não precisamos discutir isso.
Quando terminar seu café, é melhor que volte para casa comigo, pois o alegre Shinwell
estará lá com seu relatório.
Nós encontramos, com certeza, um homem enorme, grosseiro, de rosto vermelho
e escorbuto, com um par de olhos negros vívidos que eram o único sinal externo da
mente muito astuta que havia dentro dele. Parece que ele havia mergulhado no que era
peculiarmente seu reino, e ao seu lado, no sofá, estava a pista que ele trouxera na forma
de uma jovem magra e flamejante, com um rosto pálido e intenso, jovial, e, no entanto,
tão devastada pelo pecado e pela tristeza que era possível notar os anos terríveis que a
haviam marcado.
— Esta é a Srta. Kitty Winter — disse Shinwell Johnson — acenando com sua
mão gorda como uma apresentação. — O que ela não sabe – bem, ela falará por si
mesma. Encontrei-a dentro de uma hora após sua mensagem, Sr. Holmes.
— É fácil me encontrar — disse a jovem.
— Diabos, Londres sempre me denuncia. O mesmo endereço para Porky
Shinwell. Somos velhos amigos, Porky, você e eu. Mas, por Deus! Há outro que deveria
estar em um inferno pior que o nosso, se houvesse alguma justiça no mundo! Esse é o
homem que o senhor está procurando, Sr. Holmes.
Holmes sorriu. — Imagino que esteja favorável ao nosso desejo, Srta. Winter".
— Se eu puder ajudar a colocá-lo onde ele pertence, estou à disposição para dizer
o que for — disse nossa visitante com uma energia feroz. Havia uma intensidade de ódio
em seu rosto branco e definido e em seus olhos flamejantes que as mulheres raramente
conseguem atingir, e os homens, nunca. — Não precisa mencionar o meu passado, Sr.
Holmes, pois não faz diferença. Mas, aquilo que sou é obra de Adelbert Gruner. Se eu
pudesse destruí-lo! — Ela se agarrou freneticamente o ar com suas mãos. — Ah, se eu
pudesse arrastá-lo até o poço onde ele empurrou tantas!
— A senhorita sabe do que se trata?
— Porky Shinwell me mantém informada. Ele está atrás de outra pobre tola e quer
se casar com ela dessa vez. O senhor quer impedir isso. Bem, certamente está inteirado
o suficiente sobre esse demônio a fim de impedir que qualquer moça decente e sensata
queira estar na mesma paróquia que ele.
— Ela não está em seu juízo. Está perdidamente apaixonada. Já lhe contaram
tudo a respeito dele, mas ela não se importa.
— Contaram-lhe sobre o assassinato?
— Sim.
— Meu Deus, ela deve ser muito corajosa!
— Ela considera todas as acusações como calúnias.
— O senhor não poderia apresentar provas diante de seus olhos ingênuos?
— Bem, pode nos ajudar a fazer isso?
— E não sou eu mesma uma prova? Se estivesse diante dela e lhe contasse como
ele me usou...
— Faria isso?
— Se eu faria? É claro!
— Bem, talvez valha a pena tentar. Mas ele já lhe contou a maioria de seus
pecados e recebeu o perdão dela, e sei que ela não vai reabrir a questão.
— Aposto que ele não lhe contou tudo — disse a Srta. — Tive um vislumbre de
um ou dois assassinatos além daquele que causou tanto alvoroço. Ele falava de alguém
com seu jeito aveludado e depois olhava para mim com um olhar firme e dizia: “Ele
morreu em um mês”. Ele não estava mentindo, não mesmo. Mas não dei tanta
importância, entenda, eu o amava naquela época. Independentemente do que tenha
feito, guardei comigo, assim como com essa pobre tola! Houve apenas uma coisa que
me abalou. Sim, por Deus! Se não fosse por sua língua venenosa e mentirosa que explica
e acalenta, eu o teria deixado naquela mesma noite. Trata-se de um livro que ele tem,
um livro de couro marrom com um trinco, e seu brasão em ouro na parte de fora. Creio
que ele estava um pouco bêbado naquela noite, do contrário não o teria mostrado para
mim.
— De que se trata o livro, afinal?
— Eu lhe digo, Sr. Holmes, esse homem coleciona mulheres e tem orgulho de sua
coleção, como homens que colecionam mariposas ou borboletas. Havia tudo naquele
livro. Fotografias, nomes, detalhes, tudo sobre elas. Tratava-se de um livro bestial, um
livro que homem nenhum, mesmo aquele vindo direto da sarjeta, conseguiria montar. De
qualquer modo, continuava sendo o livro de Adelbert Gruner. "Almas que arruinei",
poderia estar escrito na capa, se ele quisesse. No entanto, isso não vem ao caso, pois o
livro não lhe serviria e, se servisse, o senhor não poderia obtê-lo.
— Onde está o livro?
— Como posso lhe informar onde está agora? Já se passou mais de um ano desde
que o deixei. Eu sei onde ele o guardava naquela época. Gruner é rigoroso e metódico
em muitos de seus hábitos, portanto, talvez ainda esteja no escaninho do velho armário
em seu gabinete particular. Por acaso conhece sua casa?
— Já estive no gabinete — disse Holmes.
— É mesmo? Ora, o senhor não está caminhando devagar em sua investigação
posto que só começou esta manhã. É possível que, desta vez, o querido Adelbert tenha
encontrado seu antagonista. O gabinete externo é o que tem a louça chinesa, um
admirável armário de vidro entre as janelas. Atrás de sua mesa, há uma porta que dá
acesso ao gabinete interno, um pequeno cômodo onde ele guarda papéis e outras
coisas.
— Ele não tem medo de ladrões?
— Adelbert não é covarde. Nem o pior de seus inimigos poderia descrevê-lo dessa
forma. Ele sabe cuidar de si mesmo. Há um alarme contra ladrões à noite. Ademais, o
que o ladrão tem a ganhar, a não ser fugir com toda essa louça sofisticada?
— Não há benefícios — disse Shinwell Johnson com a voz convicta de um
especialista. — Ninguém quer essas coisas que não são possíveis de derreter nem
vender.
— É verdade — disse Holmes. — Bem, Srta. Winter, se puder vir aqui amanhã às
cinco da tarde, eu consideraria, nesse meio tempo, se a sua sugestão de encontrar essa
moça pessoalmente é possível de providenciar. Estou extremamente grato por sua
cooperação. Não preciso dizer que meus clientes apreciarão generosamente...
— Nada disso, Sr. Holmes — gritou a jovem. — Dinheiro não me interessa. Deixe-
me ver esse homem na lama e terei tudo pelo que trabalhei – na lama com meu pé em
seu rosto amaldiçoado. Esse é o meu preço. Posso estar com o senhor amanhã ou em
qualquer outro dia, desde que o mantenha debaixo do seu faro. Porky sempre pode lhe
dizer onde me encontrar.
Não vi Holmes novamente até a noite seguinte, quando jantamos mais uma vez
em nosso restaurante de sempre, o Strand. Ele deu de ombros quando lhe perguntei se
tivera sorte em sua entrevista. Em seguida, me contou a história, que eu viria a repetir
desta forma. A declaração que me ofereceu, dura e enxuta, precisa de uma pequena
edição e, assim, ser suavizada nos termos da vida real.
— Não houve dificuldade alguma com relação ao encontro, — declarou Holmes
— pois a moça vangloria-se ao demonstrar obediência filial abjeta em todas as coisas
secundárias, como uma tentativa de compensar o flagrante rompimento de seu noivado.
O general telefonou dizendo que tudo estava pronto, e a fervorosa Srta. W. compareceu
conforme o combinado, de modo que, às cinco e meia da tarde, um táxi nos deixou em
frente ao número 104 da Berkeley Square, onde o velho soldado reside – um daqueles
horrendos castelos cinzentos de Londres que fariam uma igreja parecer frívola. Um
lacaio nos conduziu a uma grande sala de visitas com cortinas amarelas, e lá estava a
senhora nos esperando, recatada, pálida, contida, tão inflexível e distante quanto a
imagem de neve em uma montanha.
— Não sei bem como descrevê-la de forma clara para você, Watson. Talvez você
venha a conhecê-la antes de fecharmos o caso e, assim, consiga utilizar seu dom com
palavras. Ela é bonita, mas com a beleza etérea exterior a este mundo, a beleza de
certos fanáticos cujos pensamentos estão no alto. Já vi rostos similares nos quadros dos
antigos mestres da Idade Média. Sigo procurando entender como um homem tão bestial
poderia ter colocado suas garras vis sobre este ser de outro mundo. Talvez tenha notado
como os extremos se aproximam uns dos outros, o espiritual do animal, o homem das
cavernas do anjo. Nunca se viu caso pior do que este.
— Ela estava ciente do que viemos fazer, é claro — aquele vilão não perdeu tempo
em envenenar sua mente contra ao nosso respeito. Acredito que a chegada da Srta.
Winter a surpreendeu bastante, mas ela nos acenou para nossas respectivas cadeiras
como uma reverenda abadessa recebendo dois pedintes leprosos. Caso esteja inclinado
a tornar-se um presunçoso, meu caro Watson, procure a Srta. Violet de Merville.
— “Pois bem, senhor”, disse ela em uma voz como o vento de um iceberg,
“reconheço seu nome. O senhor ligou, pelo que entendi, para difamar meu noivo, o barão
Gruner. Estou aqui somente a pedido de meu pai, e já o aviso de antemão: o que quer
que tenha a me dizer não terá o mínimo efeito sobre minha mente”.
— Tive piedade dela, Watson. Tive tamanha consideração por ela no momento
que era como se fosse uma filha minha. Não costumo ser eloquente. Uso minha razão,
não minhas emoções. Mas eu realmente implorei a ela com todo o calor das palavras
que pude encontrar em minha natureza. Pintei para ela o terrível cenário da mulher que
só desperta para o caráter de um homem depois de ser sua esposa, uma mulher que se
submete a ser acariciada por mãos sangrentas e lábios lascivos. Não a poupei de nada
— a vergonha, o medo, a agonia, a falta de esperança sobre tudo isso. Todas as minhas
palavras calorosas não foram capazes de trazer um tom de cor àquelas bochechas de
marfim ou sequer um brilho de emoção àqueles olhos abstratos. Refleti sobre o que o
patife havia dito sobre uma influência pós-hipnótica. Era realmente possível acreditar que
ela estava vivendo acima das nuvens, em algum sonho extático. No entanto, não havia
nada de indefinido em suas respostas.
— "Eu o ouvi com paciência, Sr. Holmes", tornou a dizer. “O efeito em minha
mente é exatamente o previsto. Estou ciente de que Adelbert, meu noivo, teve uma vida
tempestuosa, na qual incorreu em ódios amargos e nas mais injustas calúnias. O senhor
é apenas o último de um elenco que trouxe suas calúnias até mim. Possivelmente o
senhor é um homem com boas intenções, embora eu saiba que é um agente pago que
estaria igualmente disposto a agir a favor do Barão e contra ele. Mas, de qualquer forma,
preciso que entenda, de uma vez por todas, que eu o amo e que ele me ama, e que a
opinião de qualquer indivíduo no mundo não é mais relevante para mim do que o gorjeio
dos pássaros do lado de fora da janela. Caso a nobre natureza dele tenha caído por um
instante, devo ter sido enviada especialmente para elevá-la a seu verdadeiro e sublime
nível. Não conheço", nesse momento, ela voltou os olhos à minha acompanhante, “esta
jovem senhora".
— Eu estava prestes a responder quando a senhorita invadiu a cena como um
redemoinho. Se alguma vez você já viu fogo e gelo frente a frente, foram essas duas
mulheres.
— "Eu lhe direi quem sou eu", gritou ela, levantando-se da cadeira, com a boca
retorcida de paixão. “Sou a última amante dele. Sou uma das cem que ele seduziu, usou,
arruinou e descartou, assim como fará com você. Sua pilha de recusas parece mais
túmulo, e talvez isso seja o melhor. Eu lhe digo, mulher tola, se casar-se com esse
homem, ele será a sua morte. Talvez seja um coração partido ou um pescoço quebrado,
mas ele a terá de um jeito ou de outro. Eu lhe falo não por amor a você. A mim, pouco
importa se viverá ou morrerá. Mas falo por ódio a ele, para irritá-lo e para me vingar de
tudo que já me fez. Mas é sempre igual, e não há necessidade de me olhar assim, minha
bela dama, pois é provável que seja tão atroz quanto eu antes de terminar com isso.
— “Prefiro não discutir tais assuntos", disse a Srta. de Merville friamente. “Deixe-
me dizer, de uma vez por todas, que tenho conhecimento de três passagens da vida de
meu noivo em que ele teria se envolvido com mulheres traiçoeiras e que estou segura
de seu arrependimento sincero por qualquer mal que possa ter feito”.
— "Três passagens!”, gritou minha acompanhante. “Quanta tolice! A mais
inexpressível tolice!”
— “Sr. Holmes, peço-lhe que encerre este encontro", disse a voz gelada. “Obedeci
ao desejo de meu pai de vê-lo, mas não tenho obrigação de ouvir os delírios dessa
pessoa.”
— Com um juramento, a Srta. Winter se lançou para a frente e, se eu não a tivesse
tomado pelo pulso, ela teria agarrado essa mulher alucinante pelos cabelos. Eu a arrastei
em direção à porta e tive sorte de colocá-la de volta no táxi sem fazer uma cena pública,
pois ela estava extremamente raivosa e fora de si. De maneira fria, eu mesmo estava
bastante furioso, Watson, pois havia algo indescritivelmente irritante na calma indiferença
e na suprema autocomplacência da mulher que estávamos tentando salvar. Portanto,
agora, uma vez mais, você sabe exatamente como estamos, e está claro que devo
planejar uma nova jogada de abertura, pois essa jogada não funcionará. Entrarei em
contato com você, Watson, pois é mais do que provável que tenha que desempenhar o
seu papel, embora seja possível que o próximo passo seja dado por eles, e não por nós.
E foi o que aconteceu. O golpe deles não teve êxito, ou melhor, o golpe dele, pois nunca
acreditei que a moça tivesse conhecimento disso. Acho que poderia lhe mostrar a
calçada onde estava quando meus olhos se depararam com o anúncio, e uma pontada
de horror atravessou minha alma. Estava entre o Grand Hotel e a estação de Charing
Cross, onde um vendedor de jornais de uma só perna exibia seus jornais da noite. A data
era apenas dois dias após a última conversa. Ali, preto sobre amarelo, estava a terrível
folha de notícias:
Paratexto
Perfil do tradutor
Paratexto
Perfil do tradutor
Licenciado em Inglês e Bacharelando em Tradução Português-Inglês pela Universidade
Federal de Juiz de Fora, tradutor generalista.
A AVENTURA DA PEDRA MAZARIN
Foi um prazer para Dr. Watson se ver mais uma vez naquela sala desorganizada
do primeiro andar na Baker Street, que já fora o ponto de partida para tantas aventuras
memoráveis. Buscou pelas tabelas periódicas na parede, pela bancada de produtos
químicos queimada por ácido, pelo estojo de violino inclinado no canto, pelo balde de
carvão, que tinha cachimbos e tabaco velhos. Finalmente, seus olhos recaíram sobre o
rosto novo e sorridente de Billy, um pajem jovem, porém inteligente e cauteloso, que
ajudava a preencher um pouco o vazio de solidão e de isolamento que envolvia a figura
amargurada do grande detetive.
— Tudo parece tão igual, Billy. Você não mudou também. Haveria esperanças de
dizer o mesmo sobre ele?
Billy olhou com um pouco de preocupação para a porta fechada do quarto.
— Acho que ele está na cama, dormindo — disse ele.
Eram sete da noite de um adorável verão, mas Dr. Watson estava familiarizado o
suficiente com os horários irregulares de seu velho amigo para não ficar surpreso com a
possibilidade.
— Isso quer dizer um caso, eu suponho?
— Sim, senhor, ele está muito empenhado nisso agora. Temo por sua saúde. Está
mais pálido e magro, e não come nada. “Quando será conveniente jantar, Sr. Holmes?”,
a Sra. Hudson perguntou. “Sete e trinta, de depois de amanhã”, ele respondeu. Você
sabe o método dele quando está ávido por um caso.
— Sim, Billy, eu sei.
— Ele está seguindo alguém. Ontem, saiu como um trabalhador à procura de
emprego. Hoje, era uma mulher idosa. Fui igualmente enganado, de fato, e já deveria
saber de seus métodos. — Billy apontou com um grande sorriso para um largo guarda-
sol inclinado contra o sofá. — É parte da fantasia de mulher idosa — disse ele.
— Mas do que se trata isso tudo, Billy?
Billy abaixou a voz, como alguém que discute um grande segredo de estado. —
Não me importo de te contar, senhor, mas isso não deve ser passado adiante. É
o caso do diamante da Coroa.
— O quê… O roubo de cem mil libras?
— Sim, senhor. Eles devem querê-lo de volta, senhor. Ora, tivemos ambos o
Primeiro-Ministro e o Secretário de Estado sentados neste mesmo sofá. O Sr. Holmes
foi bem simpático com eles. Tratou logo de acalmá-los e prometeu que faria tudo que
pudesse. Então tem o Lorde Cantlemere…
— Ah!
— Sim, senhor, sabe o que isso quer dizer. Ele é um cara rígido, senhor, se eu
posso dizer assim. Posso lidar bem com o Primeiro-Ministro e não tenho nada contra o
Secretário de Estado, que me parece um tipo de homem cortês e gentil. Mas não consigo
tolerar Sua Senhoria. Nem o Sr. Holmes consegue, senhor. Veja, ele não acredita no Sr.
Holmes e foi contra contratá-lo. Prefere que ele falhe.
— E o Sr. Holmes sabe disso?
— O Sr. Holmes sempre sabe o que tem para saber.
— Bem, esperemos que ele não falhe e que o Lorde Cantlemere fique frustrado.
Mas me diga, Billy, para que é aquela cortina do outro lado da janela?
— O Sr. Holmes a colocou lá há três dias. Temos uma coisa divertida atrás dela.
Billy avançou e afastou a tapeçaria que escondia a alcova da janela saliente.
Dr. Watson não pôde conter o grito de surpresa. Havia uma duplicata de seu velho
amigo, de robe e tudo, o rosto inclinado em direção à janela e para baixo, como se lesse
um livro invisível, enquanto o corpo afundava em uma poltrona. Billy removeu a cabeça
e a segurou no ar.
— Colocamos em ângulos diferentes, para que possa parecer mais realista. Não
ousaria tocar nela se a persiana não estivesse abaixada. Mas quando está levantada,
você consegue vê-la do outro lado da rua.
— Usamos uma vez algo parecido.
— Antes de eu chegar — disse Billy. Ele afastou as cortinas da janela e olhou
para a rua. — Tem umas pessoas que nos observam de lá. Consigo ver um sujeito agora
na janela. Veja você mesmo.
Watson deu um passo à frente quando a porta do quarto se abriu e a forma longa
e magra de Holmes surgiu. Seu rosto estava pálido e fechado, mas seus passos e gestos
estavam ativos como sempre. Com um único salto, ele já estava na janela e fechou a
persiana de novo.
— Isso servirá, Billy — disse. — Sua vida estava em risco, meu garoto, e não
posso fazer isso sem você por enquanto. Bem, Watson, é bom vê-lo em seu velho
alojamento de novo. Você chegou em um momento crítico.
— Presumo que sim.
— Você pode ir, Billy. Aquele garoto é um problema, Watson. Até que ponto seria
justo permitir que ele fique em perigo?
— Perigo de quê, Holmes?
— De morte súbita. Estou esperando por algo esta noite.
— Esperando pelo quê?
— Ser assassinado, Watson.
— Não, não, você está de brincadeira, Holmes!
— Até meu senso de humor limitado conseguiria fazer uma brincadeira melhor
que essa. Mas nós podemos ficar à vontade enquanto isso, não podemos? É permitido
álcool? O gasogênio e os cigarros estão no antigo lugar. Deixe-me vê-lo mais uma vez
na habitual poltrona. Você não aprendeu, espero, a desprezar meu cachimbo e meu
lamentável tabaco? Eles tomaram o lugar da comida estes dias.
— Mas por que não comer?
— Porque as capacidades se tornam mais refinadas se deixá-las com fome. Ora,
certamente, como um médico, meu caro Watson, deve admitir que o suprimento de
sangue para a digestão é uma perda para o cérebro. Eu sou um cérebro, Watson. O
restante de mim é um mero apêndice. Logo, é o cérebro que eu devo priorizar.
— Mas e quanto ao perigo, Holmes?
— Ah, sim, no caso disso se concretizar, talvez fosse bom que você ocupasse sua
memória com o nome e o endereço do assassino. Você pode entregar à Scotland Yard,
com meu amor e uma benção de despedida. Sylvius é o nome. Conde Negretto Sylvius.
Escreva, homem, escreva! 136 Moorside Gardens, N. W., entendeu?
A face honesta de Watson estava tremendo de ansiedade. Ele sabia muito bem
os imensos riscos que Holmes assumia, tanto quanto estava ciente de que o que ele
dissera era mais provável de ser brando do que um exagero. Watson sempre foi um
homem de ação e estava à altura da situação.
— Conte comigo, Holmes. Não tenho o que fazer por esses dias.
— Seus princípios não melhoram, Watson. Acrescentou contar lorotas aos seus
outros vícios. Você carrega sinais de um médico ocupado, a quem se recorre a todo
momento.
— Ninguém de grande importância. Mas você não poderia prender esse sujeito?
— Sim, Watson, eu poderia. E é isso que o preocupa tanto.
— Então por que não o faz?
— Pois não sei onde o diamante está.
— Ah! Billy me contou… A joia desaparecida da Coroa!
— Sim, a grande pedra Mazarin amarela. Eu joguei a rede e peguei meus peixes.
Mas não peguei a pedra. Qual o objetivo em pegá-los? Podemos fazer do mundo um
lugar melhor se os colocarmos atrás das grades. Mas não é disso que eu estou atrás. É
a pedra que eu quero.
— E seria esse Conde Sylvius um de seus peixes?
— Sim. E ele é um tubarão. Ele morde. O outro é Sam Merton, o boxeador. Não
é um sujeito ruim, mas o Conde o usou. Sam não é um tubarão. É um gobião grande,
tolo e cabeça-dura. Mas está se debatendo na minha rede da mesma forma.
— Onde está esse Conde Sylvius?
— Estive debaixo de seu nariz a manhã toda. Você já me viu como uma mulher
idosa, Watson. Nunca fui tão convincente. Ele surpreendentemente apanhou meu
guarda-sol para mim uma vez. “Com sua licença, senhora”, ele disse, meio italiano, sabe,
e com uma educação sulista quando disposto, mas como a encarnação do demônio
quando não. A vida é cheia de acontecimentos peculiares, Watson.
— Poderia ter sido uma tragédia.
— Bem, poderia. Eu o segui pela velha oficina de Straubenzee, em Minories.
Straubenzee fez a espingarda de ar comprimido, um belo trabalho, até onde entendo, e
eu até a imagino na janela da frente, neste exato momento. Viu o manequim? Claro, Billy
o mostrou a você. Bem, ele pode acabar com uma bala atravessada em sua bela cabeça
a qualquer momento. Ah, Billy, o que é isso?
O garoto reapareceu na sala com um cartão em cima de uma bandeja. Holmes
olhou para ele com sobrancelhas arqueadas e um sorriso de divertimento.
— O próprio. Eu não esperava exatamente por isso. Enfrentemos o problema,
Watson! Um homem de coragem. Você já deve ter ouvido sobre sua reputação de
atirador de caça de grandes animais. Seria, de fato, um final triunfante para o excelente
registro esportivo dele se me acrescentasse à sua lista. Isso é a prova de que ele
percebeu que estou colado em seus calcanhares.
— Envie para a polícia.
— Eu provavelmente deveria. Mas não ainda. Poderia olhar cuidadosamente para
fora da janela, Watson, e ver se alguém está na rua à espera?
Watson olhou, cauteloso, pela beirada da cortina.
— Sim, há um sujeito bruto perto da porta.
— Esse seria Sam Merton… O fiel, mas um tanto tolo, Sam. Onde está esse
cavalheiro, Billy?
— Na sala de espera, senhor.
— Traga-o quando eu sinalizar.
— Sim, senhor.
— Se eu não estiver na sala, apresente-o mesmo assim.
— Sim, senhor.
Watson esperou até que a porta se fechasse e então virou, sério, para seu
companheiro.
— Veja bem, Holmes, isso é simplesmente impossível. Esse é um homem
desesperado, que não se prende a nada. Ele pode ter vindo para te matar.
— Eu não ficaria surpreso.
— Insisto em permanecer com você.
— Você ficaria terrivelmente no caminho.
— No caminho dele?
— Não, meu caro colega… no meu caminho.
— Bem, eu não posso simplesmente deixá-lo.
— Sim, você pode, Watson. E você vai, já que nunca falhou em jogar o jogo. Eu
tenho certeza de que você vai jogá-lo até o final. Esse homem pode ter vindo para seu
próprio benefício, mas pode permanecer para o meu. — Holmes pegou seu caderno e
rabiscou algumas linhas. — Pegue um táxi para Scotland Yard e dê isso ao Youghal do
Departamento de Investigação Criminal. Volte com a polícia. A prisão do sujeito se dará
em sequência.
— Farei isso com prazer.
— Antes do seu retorno, posso ter o tempo exato de que preciso para descobrir
onde a pedra está. — Ele badalou o sino. — Acho que sairemos pelo quarto. Essa
segunda saída é excessivamente útil. Prefiro ver meu tubarão sem que ele me veja e eu
tenho, como você se recordará, meu próprio jeito de fazer isso.
Era, então, uma sala vazia para a qual Billy, no minuto seguinte, conduziu o Conde
Sylvius. O famoso atirador, esportista e sofisticado, era um sujeito grande e moreno, com
um formidável bigode escuro, que sombreava uma boca cruel e de lábios finos e que era
superada por um nariz longo e curvado, como o bico de uma águia. Ele estava bem-
vestido, mas sua magnífica gravata, seu brilhante broche e seus deslumbrantes anéis
eram ostensivos por si só. Assim que as portas se fecharam atrás dele, olhou em volta
com um olhar feroz e alarmado, como alguém que espera por uma armadilha a qualquer
momento. Então ele levou um susto quando viu a cabeça impassível e o colarinho do
robe que estavam projetados acima da poltrona na janela. Sua primeira expressão foi de
pura surpresa. Então a luz de uma trágica esperança brilhou em seus olhos escuros e
homicidas. Ele deu mais uma olhada ao redor para se certificar de que não havia
testemunhas e, então, na ponta dos pés, com uma grossa bengala semi levantada,
aproximou-se da figura silenciosa. Ele estava agachado para o golpe final quando uma
voz calma e sarcástica o saudou da porta aberta do quarto:
— Não o quebre, Conde! Não o quebre!
O assassino cambaleou para trás, com surpresa estampada em seu rosto agitado.
Por um instante, ele começou a levantar mais uma vez sua bengala, como se
direcionasse sua violência da efígie para o original. Mas havia algo naquele olhar firme
e cinzento e no sorriso zombeteiro que fez sua mão ficar rente ao corpo.
— É uma coisinha bela — disse Holmes, avançando em direção à imagem. —
Tavernier, o modelador francês, que fez. Ele é tão bom com figuras de cera quanto seu
amigo Straubenzee é com espingardas de ar comprimido.
— Espingardas de ar comprimido, senhor! O que quer dizer com isso?
— Ponha o chapéu e a bengala na mesa de centro. Obrigado! Por favor, sente-
se. Se importaria em colocar o revólver também? Oh, tudo bem, se você prefere se sentar
sobre ele. Sua visita é realmente muito oportuna, pois eu queria tanto ter alguns minutos
de conversa com você.
O Conde, com as sobrancelhas pesadas e ameaçadoras, fez uma cara de irritado.
— Eu também queria trocar algumas palavras com você, Holmes. É por isso que
estou aqui. Não negarei que pretendia atacá-lo agora.
Holmes balançou sua perna na beirada da mesa.
— Deduzi que tivesse ideias desse tipo em sua cabeça — disse ele. — Mas por
que lidar com isso diretamente?
— Porque se empenhou em me incomodar. Porque você colocou suas criaturas
no meu rastro.
— Minhas criaturas! Asseguro-lhe que não!
— Besteira! Eu tive gente as seguindo. Dois podem jogar esse jogo, Holmes.
— É coisa pequena, Conde Sylvius, mas talvez você pudesse, por gentileza,
referir-se de forma adequada quando se endereçar a mim. Você consegue entender que,
com a minha rotina de trabalho, eu preciso estar familiarizado com metade da galeria de
ladinos e concordará que exceções são indesejáveis.
— Bom, Sr. Holmes, então.
— Excelente! Mas lhe asseguro que está enganado em relação aos meus
supostos agentes.
Conde Sylvius riu com desdém.
— Outras pessoas podem observar tão bem quanto você. Ontem era um velho
esportista. Hoje, uma mulher idosa. Eles me vigiaram o dia todo.
— Realmente, senhor, gentileza da sua parte. O velho Barão Dowson disse, na
noite anterior de ser enforcado, que, no meu caso, o que a justiça ganhou, os palcos
perderam. E agora você dá aos meus pequenos disfarces seus bondosos
enaltecimentos?
— Era você… Você mesmo?
Holmes deu de ombros.
— Pode ver ali no canto o guarda-sol que você educadamente entregou a mim
em Minories antes de começar a suspeitar.
— Se eu soubesse, você nunca veria…
— Veria essa humilde casa novamente. Eu estava bem ciente disso. Nós todos
temos oportunidades perdidas para lastimar. Como aconteceu, você não sabia, então cá
estamos!
A testa do Conde franziu mais forte acima de seus olhos ameaçadores.
— O que diz só torna as coisas piores. Não foram seus agentes, mas você mesmo
disfarçado e bisbilhoteiro! Você admite que me seguiu. Por quê?
— Ora, vamos lá, Conde. Você costumava atirar em leões na Argélia.
— E?
— Mas por quê?
— Por quê? O esporte… A emoção… O perigo!
— E, sem dúvidas, para livrar o país de uma praga?
— Exatamente!
— Esse é o resumo dos meus motivos!
O Conde ficou de pé e sua mão involuntariamente se moveu para seu bolso de
trás.
— Sente-se, senhor, sente-se! Existe outro, e mais prático, motivo. Eu quero
aquele diamante amarelo!
Conde Sylvius reclinou-se na cadeira com um sorriso perverso.
— Tem minha palavra! — disse ele.
— Você sabia que eu estava atrás de você por isso. O real motivo pelo qual está
aqui essa noite é para descobrir o quanto eu sei sobre essa questão e o quanto minha
eliminação é absolutamente essencial. Ora, eu poderia dizer que, do seu ponto de vista,
é absolutamente essencial, por eu saber tudo sobre isso, salvo por apenas uma coisa, e
que você está prestes a me contar.
— Oh, é mesmo? Então, por favor, o que é este fato que está faltando?
— Onde o diamante da Coroa está agora.
O Conde olhou subitamente para seu companheiro.
— Oh, você quer saber isso, não quer? Como diabos eu devo ser capaz de te
contar onde ele está?
— Você pode, e você vai.
— É mesmo?
— Você não consegue blefar comigo, Conde Sylvius. — Os olhos de Holmes,
enquanto o encaravam, contraíram e animaram-se até se tornarem duas pontas de aço
ameaçadoras. — Você é transparente como água. Posso ver até o fundo de sua mente.
— Então, claro, veja onde o diamante está!
Holmes bateu suas mãos em divertimento e então apontou zombeteiro.
— Então você sabe. Você admitiu!
— Não admiti nada.
— Agora, Conde, se você for sensato, podemos fazer negócios. Caso contrário,
irá se ferir.
Conde Sylvius direcionou seus olhos para o teto.
— E você falando sobre blefe! — disse ele.
Holmes olhou para ele de forma pensativa, como um mestre em xadrez que
pondera sobre seu movimento glorioso. Então abriu a gaveta da mesa e retirou um
caderno atarracado.
— Você sabe o que eu guardo neste caderno?
— Não, senhor, eu não sei!
— Você!
— Eu?!
— Sim, senhor, você! Você está todo aqui… Cada ação da sua repugnante e
perigosa vida.
— Maldito seja, Holmes! — gritou o Conde, com os olhos flamejando. — Há limites
para minha paciência!
— Está tudo aqui, Conde. Os verdadeiros fatos referentes à morte da velha Sra.
Harold, que deixou para você a propriedade Blymer, a qual você rapidamente perdeu em
apostas.
— Você está sonhando!
— E a história completa da vida da Senhorita Minnie Warrender.
— Tsc! Você não tirará nada disso!
— Há bem mais aqui, Conde. Aqui está o roubo no luxuoso trem para Riviera, em
13 de fevereiro de 1892. Aqui está o cheque fraudado, no mesmo ano, no banco Credit
Lyonnais.
— Não, você está errado nessa.
— Então estou certo nas outras! Agora, Conde, você é um jogador de cartas.
Quando o outro jogador tem todos os trunfos, espera-se o tempo certo para baixar toda
sua mão.
— O que toda essa falação tem a ver com a joia de que tanto falou?
— Tenha calma, Conde. Controle essa mente impaciente! Deixe-me chegar ao
assunto ao meu próprio estilo entediante. Eu tenho tudo isso contra você, mas, acima de
tudo, tenho provas nítidas contra você e seu valentão lutador no caso do diamante da
Coroa.
— É mesmo?
— Eu tenho o cocheiro que levou vocês para Whitehall e o cocheiro que os tirou
de lá. Tenho o porteiro que os viu próximo da caixa. Tenho Ikey Sanders, que se recusou
a cortá-la em pedaços para vocês. Ikey delatou, e o jogo acabou.
As veias saltaram na testa do Conde. Suas mãos escuras e peludas estavam
cerradas em uma convulsão de emoções reprimidas. Ele tentou falar, mas nenhuma
palavra tomou forma.
— Essa é a mão com a qual joguei — disse Holmes. — Estão todas na mesa. Mas
uma carta ainda está faltando. É o rei de ouros. Eu não sei onde a pedra está.
— Você nunca saberá.
— Não? Ora, seja sensato, Conde. Considere a situação. Você ficará trancafiado
por vinte anos. Assim como Sam Merton. Que bem você irá tirar do seu diamante?
Nenhum neste mundo. Mas se o entregar… Ora, eu posso deixar isso passar. Não
queremos você ou Sam. Queremos a pedra. Desista dela e, até onde me disser respeito,
você pode ficar livre enquanto se comportar no futuro. Se cometer outro deslize… Bem,
será seu último. Mas, agora, fui contratado para conseguir a pedra, não você.
— Mas e se eu recusar?
— Ora, então… Ai!… Deverá ser você e não a pedra.
Billy apareceu em resposta a uma badalada.
— Acho, Conde, que seria melhor ter seu amigo Sam nesta conferência. Afinal,
os interesses dele devem ser representados. Billy, você verá um cavalheiro largo e feio
do lado de fora da porta. Peça para que suba.
— E se ele não vier, senhor?
— Sem violência, Billy. Não seja rude com ele. Se disser que o Conde Sylvius o
quer aqui, ele certamente virá.
— O que você fará agora? — perguntou o Conde assim que Billy desapareceu.
— Meu amigo Watson estava comigo agora mesmo. Disse a ele que tinha um
tubarão e um gobião em minha rede. Agora estou puxando a rede e eles estão vindo
juntos.
O Conde levantou de sua cadeira e suas mãos estavam para trás. Holmes
segurava alguma coisa meio saliente no bolso de seu robe.
— Você não morrerá em sua cama, Holmes.
— Eu sempre tive uma ideia semelhante. Isso importa tanto assim? Afinal, Conde,
sua própria saída é mais provável de ser perpendicular do que horizontal. Mas essas
antecipações do futuro são mórbidas. Por que não se entregar ao irrestrito prazer do
presente?
Uma feroz e repentina luz brotou nos sombrios e ameaçadores olhos do mestre
do crime. A figura de Holmes parecia ficar maior enquanto ele ficava tenso e preparado.
— Não adianta tocar seu revólver, meu amigo — disse ele, em uma voz calma. —
Você sabe perfeitamente bem que não ousaria usá-lo, mesmo se eu lhe desse tempo
para sacá-lo. Coisas barulhentas e desagradáveis, os revólveres, Conde. Melhor se ater
às espingardas de ar comprimido. Ah! Acho que ouvi os passos graciosos de seu
estimável parceiro. Bom dia, Sr. Merton. Meio entediante a rua, não?
O jovem campeão de boxe e de corpo bem desenvolvido, com o rosto magro,
obstinado e entediado, parou desajeitadamente na porta, inspecionando-o com uma
expressão intrigada. O modo cortês de Holmes era uma experiência nova e, ainda que
ele sentisse vagamente que era hostil, não sabia como retrucar. Ele se virou para seu
mais astuto camarada em busca de ajuda.
— Qual é o jogo agora, Conde? O que esse sujeito quer? O que houve? — sua
voz era grave e rouca.
O Conde deu de ombros, e foi Holmes quem respondeu.
— Se me permite resumir, Sr. Merton, eu diria que está tudo acabado.
O lutador ainda endereçava seus comentários para seu associado.
— Este homem está tentando ser engraçado, ou o quê? Não estou no clima de
piadas.
— Não, eu espero que não — disse Holmes. — Acho que posso lhe assegurar
que você se sentirá ainda menos bem-humoradas conforme a noite avança. Agora, veja
bem, Conde Sylvius. Sou um homem ocupado e não posso perder tempo. Irei para
aquele quarto. Por favor, sintam-se relativamente em casa em minha ausência. Você
pode explicar para seu amigo como a situação se encontra, sem se limitar pela minha
presença. Tentarei tocar Barcarole de Hoffman no meu violino. Em cinco minutos
retornarei para sua resposta final. Você entendeu completamente as alternativas, certo?
Devemos prendê-los ou devemos ter a pedra?
Holmes retirou-se, pegando seu violino no canto enquanto passava. Alguns
momentos depois da longa retirada, lamentosas notas daqueles tons mais assombrosos
passavam levemente através da porta fechada do quarto.
— Do que se trata? — perguntou Merton, ansioso, no que seu companheiro virava
para ele. — Ele sabe sobre a pedra?
— Ele sabe demasiadamente demais sobre isso. Não tenho certeza de que não
sabe de tudo sobre ela.
— Meu Deus! — O rosto pálido do lutador ficou ainda mais branco.
— Ikey Sanders nos dedurou.
— É mesmo? Vou matá-lo por isso se eu for enforcado.
— Isso não vai nos ajudar muito. Temos que decidir o que fazer.
— Só um momento — disse o lutador, com um olhar suspeito para a porta do
quarto. — Ele é um homem desconfiado que quer observar. Devo confiar que não está
escutando?
— Como ele estaria escutando com aquela música tocando?
— Está certo. Talvez alguém esteja atrás das cortinas. Há muitas cortinas nessa
sala. — Enquanto olhava em volta, de repente, ele viu, pela primeira vez, a efígie na
janela e ficou parado e apontando, muito pasmo para falar.
— Tsc! É só um manequim — disse o Conde.
— Um falso, não é? Bem, me belisque! Não seria obra da Madame Tussaud.
Cuspido e escarrado, com o robe e tudo. Mas e as cortinas, Conde!
— Esqueça as cortinas! Estamos perdendo nosso tempo, e já não resta muito. Ele
pode nos prender por causa dessa pedra.
— O diabo que ele pode!
— Mas ele apenas nos deixará ir se nós contarmos onde o item roubado está.
— O quê! Desistir dela? Desistir de cem mil tostões?
— É um ou o outro.
Merton coçou a cabeça.
— Ele está sozinho lá. Vamos matá-lo. Se ele partisse dessa, não teríamos o que
temer.
O Conde balançou a cabeça.
— Ele está armado e pronto. Se atirarmos nele, dificilmente conseguiríamos
escapar em um local como esse. Além do mais, é bastante provável que a polícia saiba
de qualquer evidência que ele tenha. Ei! O que foi isso?
Houve um vago som que parecia vir da janela. Os dois homens correram, mas
estava tudo quieto. Com exceção da estranha figura sentada na poltrona, a sala
certamente estava vazia.
— Alguma coisa na rua — disse Merton. — Agora olha só, chefe, você é o cérebro.
Com certeza consegue pensar em uma forma de sairmos disso. Se bala não resolve,
então a decisão é sua.
— Já enganei homens melhores que ele — respondeu o Conde. — A pedra está
aqui no meu bolso secreto. Não me arriscaria em deixá-la por aí. Ela pode estar fora da
Inglaterra essa noite e cortada em quatro partes em Amsterdam antes de domingo. Ele
não sabe de nada sobre Van Seddar.
— Pensei que Van Seddar iria na semana que vem.
— E iria. Mas agora ele precisa sair no próximo barco. Um de nós dois precisa
escapar com a pedra até a Lime Street e dizer a ele.
— Mas o fundo falso não está pronto.
— Bem, ele deve levá-la assim mesmo e arriscar. Não há tempo a perder.
De novo, com o senso de perigo que se tornou instintivo para o caçador, ele parou
e olhou firmemente para a janela. Sim, com certeza foi da rua que o leve som veio.
— Quanto ao Holmes — continuou ele —, podemos enganá-lo facilmente.
Perceba, o desgraçado não vai nos prender se puder conseguir a pedra. Ora,
prometeremos a ele a pedra e o colocaremos na trilha errada. Antes que note que está
no caminho errado, ela estará em Holland e nós estaremos fora do país.
— Parece ótimo para mim! — gritou Sam Merton, com um grande sorriso.
— Você vai na frente e diz ao holandês para ele se apressar. Eu verei esse trouxa
e o encherei de confissões fictícias. Direi a ele que a pedra está em Liverpool. Droga de
música lamentosa. Está me dando nos nervos! Na hora que ele descobrir que ela não
está em Liverpool, ela estará dividida em quatro e nós em alto mar. Venha aqui, longe
da vista da fechadura. Aqui está a pedra.
— Eu me pergunto como se atreve a carregá-la por aí.
— E onde ela estaria mais segura? Se nós conseguimos tirá-la de Whitehall, um
outro alguém certamente poderia tirá-la de meus aposentos.
— Vamos dar uma olhada nela.
Conde Sylvius lançou um tipo de olhar desconfiado para seu associado e ignorou
a mão suja que lhe foi estendida.
— O quê… Você acha que eu vou roubá-la de você? Veja bem, senhor, estou
ficando cansado de suas atitudes.
— Ora, ora, sem ofensas, Sam. Não podemos nos dar ao luxo de discutir. Venha
até a janela se você quiser ver a belezura de verdade. Agora, segure-a na luz! Aqui!
— Obrigado!
Com um único movimento, Holmes saltou da cadeira do manequim e agarrou a
preciosa joia. Ele agora a segurava em uma mão, enquanto a outra apontava um revólver
para a cabeça do Conde. Os dois vilões cambalearam para trás em completa surpresa.
Antes que pudessem se recuperar, Holmes pressionou a campainha.
— Sem violência, cavalheiros… Sem violência, eu imploro a vocês! Pensem na
mobília! Deve estar bem claro para vocês que estão em uma situação impossível. A
polícia está esperando lá embaixo.
A perplexidade do Conde dominou a fúria e o medo.
— Mas como diabos…? — suspirou ele.
— Sua surpresa é bastante natural. Você não está ciente de que uma segunda
porta do meu quarto leva para trás daquela cortina. Eu temia que você pudesse me ouvir
quando substituí a figura, mas a sorte estava do meu lado. Isso me deu a chance de
escutar sua vigorosa conversa, que seria dolorosamente limitada se tivesse consciência
de minha presença.
O Conde fez um gesto de resignação.
— Você tem meu reconhecimento, Holmes. Creio que seja o próprio diabo.
— Não estou tão longe dele, de qualquer forma — respondeu Holmes com um
sorriso respeitoso.
O vagaroso intelecto de Sam Merton ia gradualmente apreciando a situação.
Agora, com o som de passos pesados vindo das escadas lá fora, ele por fim quebrou o
silêncio.
— Um tira justo! — disse ele. — Mas, digo, e quanto àquele crescente tocar de
violino! Eu ainda o escuto.
— Tsc, Tsc! — respondeu Holmes. — Você está perfeitamente certo! Deixe-o
tocar! Esses gramofones modernos são uma invenção notável.
Houve uma entrada súbita da polícia, o clique das algemas, e os criminosos foram
levados para o carro. Watson permaneceu com Holmes, parabenizando-o por mais uma
conquista para sua coleção. Uma vez mais, a conversa foi interrompida pelo inabalável
Billy com sua bandeja e um cartão.
— Lorde Cantlemere, senhor.
— Traga-o, Billy. Esse é o proeminente nobre que representa os mais altos
interesses — disse Holmes. — Ele é uma pessoa excelente e leal, mas adepto ao velho
regime. Deveríamos endireitá-lo? Nós nos atreveríamos a tomar uma pequena
liberdade? Ele não sabe, podemos supor, de nada do que ocorreu.
A porta se abriu para permitir a entrada de uma figura magra e séria, com um rosto
desagradável e costeletas pendentes, de estilo vitoriano e um preto brilhante, que mal
correspondia aos ombros curvados e o andar debilitado. Holmes avançou
amigavelmente e apertou uma mão indiferente.
— Como você está, Lorde Cantlemere? Está frio para esta época do ano, mas um
tanto quente dentro de casa. Posso pendurar seu sobretudo?
— Não, eu agradeço. Não irei tirá-lo.
Holmes colocou suas mãos insistentemente na manga.
— Por favor, permita-me! Meu amigo, Dr. Watson, asseguraria a você que essas
mudanças de temperatura são traiçoeiras.
Sua Senhoria se esquivou com um pouco de impaciência.
— Estou bem confortável, senhor. Não tenho razões para ficar. Eu apenas passei
para saber como seu autonomeado trabalho estava progredindo.
— Está difícil… muito difícil.
— Eu temia que você achasse isso.
Havia um distinto desdém nas palavras e modos do velho cortesão.
— Todo homem tem suas limitações, Sr. Holmes, mas pelo menos ela nos cura
da fraqueza da satisfação pessoal.
— Sim, senhor, eu fiquei bastante confuso.
— Sem dúvidas.
— Especialmente em um ponto. Talvez você pudesse me ajudar nessa questão?
— Você solicita meu conselho um tanto tarde do dia. Pensei que tivesse seus
próprios métodos autossuficientes. Ainda assim, estou pronto para ajudá-lo.
— Veja, Lorde Cantlemere, podemos, sem dúvida, construir o caso contra os
atuais ladrões.
— Quando você os tiver pegado.
— Exatamente. Mas a questão é… Como devemos proceder contra o receptor?
— Isso não é um tanto prematuro?
— É bom já termos nossos planos prontos. Agora, o que você consideraria como
uma evidência final contra o receptor?
— A atual posse da pedra.
— Você o prenderia com isso?
— Indubitavelmente.
Holmes quase riu, mas ele ficou tão próximo de rir quanto seu velho amigo Watson
poderia lembrar.
— Nesse caso, meu caro senhor, estou sob a pesarosa necessidade de dar-lhe
voz de prisão.
Lorde Cantlemere estava muito furioso. Uma antiga chama se acendeu em suas
bochechas amareladas.
— Você tomou uma grande liberdade, Sr. Holmes. Em cinquenta anos na vida de
oficial, não me recordo de tal caso. Sou um homem ocupado, envolvido em negócios
importantes, e não tenho tempo nem aptidão para piadas tolas. Devo dizer-lhe
francamente, senhor, que nunca acreditei em seus poderes e sempre fui da opinião de
que esse assunto estaria bem mais seguro nas mãos da força policial convencional. Sua
conduta confirma todas as minhas conclusões. Tenho a honra, senhor, de lhe desejar
uma boa-noite.
Holmes rapidamente mudou de posição e estava entre o nobre e a porta.
— Um momento, senhor — disse ele. — Sair de fato com a pedra Mazarin seria
uma ofensa mais séria do que ser encontrado em posse temporária dela.
— Senhor, isso é intolerável! Deixe-me passar.
— Coloque sua mão no bolso direito do seu sobretudo.
— O que quer dizer com isso, senhor?
— Vamos… Vamos, faça o que eu peço.
Um instante depois, o pasmo nobre estava parado, piscando e gaguejando com
a grande pedra amarela na palma de suas mãos trêmulas.
— O quê! O quê! Como é possível, Sr. Holmes?
— Lamentável, Lorde Cantlemere, lamentável! — gritou Holmes. — Meu velho
amigo aqui lhe dirá que eu tenho um endiabrado hábito de fazer pegadinhas. E também
que eu nunca resisto a uma situação dramática. Eu tomei a liberdade… uma grande
liberdade, admito… de colocar a pedra no seu bolso no começo de nossa entrevista.
O velho nobre olhou da pedra para o rosto sorridente em sua frente.
— Senhor, eu estou confuso. Mas… Sim… É realmente a pedra Mazarin. Estamos
em uma grande dívida com você, Sr. Holmes. Seu senso de humor pode, como admitiu,
ser um tanto perverso, e sua exibição notavelmente inoportuna, mas ao menos eu retiro
qualquer reflexão que fiz sobre seus excelentes poderes profissionais. Mas como…
— O caso está quase finalizado. Os detalhes podem esperar. Sem dúvida, Lorde
Cantlemere, seu prazer em contar desse resultado bem-sucedido no nobre círculo para
qual retornará será uma pequena reparação para a minha pegadinha. Billy, acompanhe
Sua Senhoria até a saída e diga à Sra. Hudson que eu ficaria contente se ela pudesse
enviar um jantar para dois logo que possível.
Tradutoras: Larissa Silva Leitão Daroda e Carolina Alves Magaldi
Revisor: Eduardo Lisovski Schmidt
Paratexto
Creio que nenhuma de minhas aventuras com o Sr. Sherlock Holmes tenha
começado de forma tão abrupta, ou tão dramática, quanto a que eu denomino As Três
Empenas. Eu não via Holmes há alguns dias e não tinha ideia do novo rumo que suas
atividades tinham tomado. No entanto, ele estava tagarela naquela manhã e havia
acabado de me fazer sentar na poltrona gasta ao lado do fogo, enquanto se aconchegava
com seu cachimbo na boca na cadeira oposta, quando nosso visitante chegou. Se eu
dissesse que um touro furioso havia chegado, daria uma impressão mais exata do que
ocorreu.
A porta se escancarou e um enorme negro irrompeu na sala. Ele teria sido uma
figura cômica se não fosse tão aterrorizante, pois vestia um terno xadrez cinza berrante
com uma gravata esvoaçante cor de salmão. Seu rosto largo e nariz achatado foram
projetados para a frente, enquanto seus olhos escuros e soturnos, com um brilho latente
de malícia neles, se alternavam entre nós dois.
— Quem dos senhores é Sinhô Holmes?
Holmes ergueu seu cachimbo com um sorriso lânguido.
— Ah, é você, não é? disse nosso visitante, se aproximando com um passo
desagradável e dissimulado. — Veja bem, Sinhô Holmes, fique longe dos negócios de
outras pessoas. Deixe as pessoas cuidarem de seus próprios assuntos. Entendeu, Sinhô
Holmes?
— Continue — disse Holmes. — Está indo bem.
— Ah! está bem, não é mesmo? — grunhiu o selvagem. — Não vai estar tão bem
se eu tiver que cortar um pouco de você. Já lidei com gente do seu tipo antes, e eles não
pareciam tão bem quando eu terminei com eles. O que acha disso, Sinhô Holmes?
Ele balançou os nós de um grande punho fechado debaixo do nariz de meu amigo.
Holmes examinou atentamente com um ar de grande interesse. — Você nasceu assim?
— perguntou. — Ou foi ficando assim com o tempo?
Pode ter sido a gelada frieza de meu amigo, ou pode ter sido o leve barulho que
fiz ao pegar o atiçador. De qualquer forma, os modos de nosso visitante tornaram-se
menos extravagantes.
— Bem, já dei o aviso — disse ele. — Tenho um amigo que tem interesse lá para
os lados de Harrow, sabe o que quero dizer, e ele não quer que você se intrometa.
Entendeu? Você não é a lei, eu também não sou a lei, e se você vier para cima eu vou
estar pronto. Não se esqueça.
— Há tempos queria conhecê-lo — disse Holmes. — Não vou lhe pedir para se
sentar, porque não gosto de seu cheiro, mas você não é Steve Dixie, o brutamontes?
— É meu nome, Sinhô Holmes, e você vai se ver comigo se vier falar grosso.
— Definitivamente, é a última coisa de que você precisa — disse Holmes,
encarando a boca horrenda de nosso visitante. — Mas sobre o assassinato do jovem
Perkins perto do Holborn Bar... O que foi? Você não está indo embora, está?
O negro havia se jogado para trás e sua face estava lívida. — Não vou escutar
essa conversa — disse ele. — O que eu tenho a ver com esse Perkins, Sinhô Holmes?
Eu estava treinando no Bull Ring em Birmingham quando esse garoto se meteu em
encrenca.
— Sim, você informe ao juiz sobre isso, Steve — disse Holmes. — Tenho
observado você e o Barney Stockdale...
— Que Deus me ajude! Sinhô Holmes...
— Agora chega. Vá embora. Eu o chamarei quando precisar de você.
— Bom dia, Sinhô Holmes. Não ficou sentido comigo por essa visita, né?
— Ficarei a não ser que você me diga quem o mandou vir.
— Ora, não é segredo para ninguém não senhor. Foi o mesmo cavalheiro que o
senhor mencionou.
— E quem o mandou?
— Alguém me ajude. Eu não sei, Sinhô Holmes. Ele só falou: “Steve, vai lá ver o
Sr. Holmes e diga a ele que a vida dele estará em risco se ele for para os lados de
Harrow.” Juro que é a verdade. — Sem esperar por mais questionamentos, nosso
visitante disparou para fora da sala quase tão subitamente quanto havia entrado. Holmes
bateu as cinzas do cachimbo com um risinho silencioso.
— Fico feliz em saber que você não foi obrigado a quebrar a cabeça confusa dele,
Watson. Observei seus movimentos com o atiçador. Mas na verdade ele é um sujeito
bem inofensivo, um bebezão tolo, arrogante e facilmente influenciável, como você pôde
ver. Ele faz parte da gangue de Spencer John e participou de alguns trabalhos sujos
ultimamente, que pretendo esclarecer quando tiver tempo. Seu chefe imediato, Barney,
é um tipo mais astuto. Eles são especializados em assaltos, intimidação e coisas do tipo.
O que eu quero saber é: quem está por trás deles nesta ocasião em especial?
— Mas por que eles querem intimidá-lo?
— É esse caso do bosque de Harrow Weald. Tomei a decisão de investigar o
assunto, pois se vale a pena alguém se preocupar tanto, deve haver algo nisso.
— Mas o que é isso?
— Eu estava para lhe contar quando tivemos esse interlúdio cômico. Aqui está o
bilhete da Sra. Maberley. Se você se dispuser a ver comigo nós a avisaremos e sairemos
imediatamente.
Atenciosamente,
Mary Maberley
“... o rosto sangrava consideravelmente com os cortes e golpes, mas não era
nada, comparado ao sangramento de seu coração quando ele viu aquele rosto
adorável, o rosto pelo qual ele estava preparado para sacrificar sua própria vida,
olhando para sua agonia e humilhação. Ela sorriu — sim, por Deus! ela sorriu, como o
demônio sem coração que era, quando ele olhou para ela. Foi nesse momento que o
amor morreu e o ódio nasceu. O homem deve viver para alguma coisa. Se não for por
seu abraço, minha senhora, certamente será por sua ruína e minha completa
vingança.”
Paratexto
Holmes leu atentamente a mensagem que o último correio lhe trouxera. Então,
com uma risadinha seca que era o que mais se aproximava de uma risada, ele jogou-a
para mim.
𑁋 Para uma mistura do moderno e do medieval, do prático e do extremamente
fantasioso, penso que este é certamente o limite 𑁋 disse ele. 𑁋 O que você acha disso,
Watson?
Li o seguinte:
Old Jewry, 46
19 de novembro.
Assunto: vampiros
Senhor:
𑁋 Matilda Briggs não era o nome de uma jovem, Watson 𑁋 disse Holmes com
uma voz reminiscente. 𑁋 Era uma embarcação associada ao rato gigante de Sumatra,
uma história para a qual o mundo ainda não está preparado. Mas o que sabemos sobre
vampiros? Isso também está dentro da nossa alçada? Qualquer coisa é melhor do que
a estagnação, mas na verdade parece que fomos jogados em um conto dos Irmãos
Grimm. Estenda o braço, Watson, e veja o que o V tem a dizer.
𑁋 Eu conheço esse país, Holmes. Está repleto de casas antigas que têm os
nomes dos homens que as construíram há séculos. Tem Odley, Harvey e Carriton, as
pessoas são esquecidas, mas seus nomes vivem em suas casas.
𑁋 Exato 𑁋 disse Holmes friamente. Uma das peculiaridades de sua natureza
orgulhosa e reservada era que, embora registrasse qualquer informação nova com muita
calma e precisão em seu cérebro, ele raramente deixava transparecer ao interlocutor. 𑁋
Imagino que saberemos muito mais sobre Cheeseman, Lamberley, antes de
terminarmos. A carta é, como eu esperava, de Robert Ferguson. A propósito, ele afirma
conhecê-lo.
𑁋 A mim!
𑁋 É melhor você ler.
Ele me entregou a carta. Tinha por cabeçalho o endereço citado.
Caro Sr. Holmes [dizia]:
Fui recomendado ao senhor por meus advogados, mas na verdade o assunto é
tão extraordinariamente delicado que é muito difícil discuti-lo. Trata-se de um amigo
que estou representando. Este cavalheiro casou-se há cerca de cinco anos com uma
moça peruana, filha de um comerciante peruano, que conheceu por ocasião da
importação de nitratos. A moça era muito bonita, mas a sua nacionalidade estrangeira
e sua religião estranha sempre causaram uma divergência de interesses e de
sentimentos entre marido e mulher, de modo que depois de um tempo o amor dele por
ela pode ter esfriado e ele pode ter chegado a considerar que sua união foi um erro.
Ele sentiu que havia lados da personalidade dela que ele nunca poderia explorar ou
compreender. Isso era ainda mais doloroso porque ela era uma esposa tão amorosa
quanto um homem poderia desejar ter, para todas as aparências, absolutamente
devota.
Agora vamos ao ponto que deixarei mais claro quando nos encontrarmos. Na
verdade, esta mensagem serve apenas para lhe dar uma ideia geral da situação e para
verificar se o senhor se interessaria pelo assunto. A moça começou a mostrar alguns
traços curiosos, bastante estranhos ao seu temperamento doce e gentil. O cavalheiro
fora casado duas vezes e teve um filho com a primeira esposa. Esse menino agora
com quinze anos, era um jovem muito encantador e afetuoso, embora infelizmente
tivesse se ferido em um acidente na infância. Por duas vezes, a esposa foi pega em
flagrante agredindo esse pobre rapaz absolutamente sem motivo. Uma vez ela bateu
nele com um pedaço de pau e deixou uma grande marca em seu braço.
Contudo, isto era um fato pequeno, comparado com a sua conduta para com o
seu próprio filho, um menininho com pouco menos de um ano de idade. Certa ocasião,
há cerca de um mês, essa criança foi deixada por sua babá por alguns minutos. Um
grito alto do bebê, como se fosse de dor, chamou a babá de volta. Ao entrar correndo
na sala, ela viu sua patroa, a moça, inclinada sobre o bebê aparentemente mordendo
seu pescoço. Havia um pequeno ferimento no pescoço, de onde havia escapado um
fluxo de sangue. A babá ficou tão horrorizada que quis ligar para o marido, mas a moça
implorou-lhe que não o fizesse e chegou a dar-lhe cinco libras para pagar pelo seu
silêncio. Nenhuma explicação jamais foi dada e, por algum tempo, o assunto foi
deixado de lado.
Aquilo deixou, no entanto, uma impressão terrível na mente da babá, e a partir
desse momento ela começou a observar atentamente sua patroa e a vigiar mais de
perto o bebê, a quem ela amava ternamente. Parecia-lhe que, ao mesmo tempo que
observava a mãe, a mãe também a observava, e que sempre que era obrigada a deixar
o bebé sozinho, a mãe estava à espera para que ela o fizesse. Dia e noite, a babá
cobria a criança, e dia e noite a mãe silenciosa e vigilante parecia estar à espreita
como um lobo à espera de um cordeiro. Isso deve parecer muito inacreditável para o
senhor, mas peço-lhe que leve a sério, pois a vida de uma criança e a sanidade de um
homem podem depender disso.
Por fim chegou o dia terrível em que os fatos não puderam mais ser ocultados
do marido. A coragem da babá cedeu; ela não aguentou mais a tensão e confessou
tudo ao homem. Para ele, parecia uma história tão louca quanto pode parecer agora
para o senhor. Ele sabia que sua esposa era uma esposa amorosa e, exceto pelas
agressões ao enteado, uma mãe amorosa. Por que, então, ela iria ferir seu querido
bebezinho? Ele disse à babá que ela estava sonhando, que suas suspeitas eram de
uma lunática e que tais calúnias contra sua esposa não seriam toleradas. Enquanto
conversavam, ouviu-se um súbito grito de dor. A babá e o patrão correram juntos para
o berçário. Imagine o que ele sentiu, Sr. Holmes, ao ver sua esposa se levantar de uma
posição ajoelhada ao lado da cama e ver sangue no pescoço exposto da criança e no
lençol. Com um grito de horror, ele virou o rosto da esposa para a luz e viu sangue em
volta de seus lábios. Foi ela — ela, sem sombra de dúvida — quem bebeu o sangue do
pobre bebê.
Então o problema permanece. Ela agora está confinada em seu quarto. Não
houve explicação. O marido está semi enlouquecido. Ele sabe, e eu sei, pouco sobre
vampirismo além do nome. Pensávamos que fosse alguma história louca de terras
estrangeiras. E, no entanto, aqui no coração do Sussex Inglês — bem, tudo isso pode
ser discutido com o senhor pela manhã. O senhor poderia me encontrar? O senhor
usará seus grandes poderes para ajudar um homem perturbado? Se sim, por favor,
mande um telegrama para Ferguson, Cheeseman, Lamberley, e estarei em seu
escritório às dez horas.
— Com os melhores cumprimentos,
Robert Ferguson.
P. S. Acredito que seu amigo Watson jogou rugby no Blackheath quando eu era três-
quartos no Richmond. É a única introdução pessoal que posso dar.
Baker Street
21 de novembro.
Assunto: vampiros
Senhor:
Referindo-me à sua carta do dia 19, afirmo-lhe que examinei o inquérito do seu cliente,
Sr. Robert Ferguson, de Ferguson e Muirhead, comerciantes de chá, de Mincing Lane,
e que o assunto foi levado a uma conclusão satisfatória.
Com agradecimentos pela sua recomendação,
— Com os melhores cumprimentos,
Sherlock Holmes.
Tradutora: Luiza Maia Amaral
Revisora: Naara Bittencourt Ramalho
Paratexto
O conto "The Adventure of the Three Garridebs" foi traduzido para o português
como “A Aventura dos Três Garridebs”. Neste conto, o famoso detetive está em busca
da verdade acerca de um homem misterioso que pede sua ajuda para encontrar outros
dois homônimos. Durante o relato do caso feito por Watson, fiel companheiro de
Sherlock, uma verdade cheia de perigos começa a aparecer.
O conto foi traduzido para um público geral e a linguagem visou respeitar o estilo
policial e jornalístico. O conto também possui títulos específicos da cultura-fonte, como
"knighthood", que foi traduzido como "cavaleiro" para português; além de apresentar
muitos desafios tradutórios como a repetição de frases e palavras como em "It may have
been a comedy, or it may have been a tragedy" que foi traduzido como "Pode ter sido
uma comédia ou pode ter sido uma tragédia".
Perfil da tradutora
Pode ter sido uma comédia ou pode ter sido uma tragédia. Custou a um homem
sua razão, custou a mim um derramamento de sangue e custou a outro homem as
penalidades da lei. No entanto, houve, certamente, um elemento de comédia. Bem, os
senhores julgarão por si mesmos.
Lembro-me da data muito bem, pois foi no mesmo mês em que Holmes recusou
um título de cavaleiro por serviços que talvez um dia possam ser descritos. Refiro-me ao
assunto apenas de passagem, pois, em minha posição de sócio e confidente, sou
obrigado a ser particularmente cuidadoso, para evitar qualquer indiscrição. Torno a dizer,
no entanto, que esse fato me permite memorar a data, que foi no final de junho, em 1902,
logo após o término da Guerra da África do Sul. Holmes havia passado vários dias
deitado na cama, como costumava fazer de tempos em tempos, mas surgiu, naquela
manhã, com um longo documento em papel almaço na mão e com um brilho de diversão
em seus austeros olhos cinzentos.
— Há uma chance de você fazer um dinheiro, meu amigo Watson — disse ele.
— Você já ouviu o nome Garrideb?
Admiti que não.
— Bem, se você puder colocar suas mãos em um Garrideb, há dinheiro envolvido.
— Por quê?
— Ah, é uma longa história – um tanto excêntrica, também. Penso que, em todas
as nossas explorações das complexidades humanas, nunca encontramos algo tão
singular. O sujeito estará aqui em breve para um interrogatório. Portanto, não tocarei no
assunto até que ele chegue. Mas, enquanto isso, esse é o nome que queremos.
A lista telefônica estava sobre a mesa ao meu lado. Folheei as páginas em uma
busca sem esperança. Mas, para minha surpresa, lá estava esse estranho nome em seu
devido lugar. Dei um grito de triunfo.
— Aqui está, Holmes! Aqui está!
Holmes pegou o livro de minha mão.
— “’Garrideb, N.” — ele leu, — “136 Little Ryder Street, W.” Lamento desapontá-
lo, meu caro Watson, mas este é o próprio homem. Este é o endereço que consta em
sua carta. Queremos outro igual a ele.
A Sra. Hudson entrou com um cartão em uma bandeja. Peguei-o e dei uma olhada
nele.
— Ora, aqui está! —gritei com espanto. — Esta é uma inicial diferente. John
Garrideb, Advogado, Moorville, Kansas, E.U.A.
Holmes sorriu ao olhar para o cartão. — Receio que tenha de fazer mais um
esforço, Watson, — disse ele. — Este senhor também já está na trama, embora eu
certamente não esperasse vê-lo nesta manhã. No entanto, ele está em posição de nos
contar muitas coisas que quero saber.
Um momento depois, ele estava na sala. O Sr. John Garrideb, Advogado, era um
homem baixo, poderoso, com o rosto redondo, fresco e barbeado, característico de
muitos homens de negócios americanos. O efeito geral era rechonchudo e um tanto
infantil, de modo que se tinha a impressão de um homem bastante jovem com um largo
sorriso no rosto. Seus olhos, no entanto, eram impressionantes. Raramente, em qualquer
cabeça humana, vi olhos que denotassem uma vida interior mais intensa, tão brilhante,
tão alerta, tão sensível a cada mudança de pensamento. Seu sotaque era americano,
mas não era acompanhado de nenhuma excentricidade na fala.
— Sr. Holmes? — perguntou ele, olhando de um para o outro. — Ah, sim! Seus
retratos não são muito diferentes do senhor, se me permite dizer. Acredito que o senhor
tenha recebido uma carta do meu homônimo, o Sr. Nathan Garrideb, não é mesmo?
— Sente-se, por favor. — disse Sherlock Holmes. — Imagino que teremos muito
o que conversar. — ele pegou suas folhas de papel almaço. — O senhor é,
evidentemente, o Sr. John Garrideb mencionado neste documento. Mas certamente já
está na Inglaterra há algum tempo?
— Por que diz isso, Sr. Holmes? — identifiquei uma súbita suspeita em seus olhos
expressivos.
— Todo o seu traje é inglês.
O Sr. Garrideb forçou uma risada. — Já li sobre seus truques, Sr. Holmes, mas
nunca pensei que seria alvo deles. Como percebeu isso?
— O corte do ombro de seu casaco, o bico de suas botas. Alguém poderia duvidar
disso?
— Ora, ora, não tinha ideia de que eu era um britânico tão óbvio. Mas os negócios
trouxeram-me para cá há algum tempo e, como você disse, meu traje é quase todo
londrino. No entanto, creio que seu tempo é valioso, e não nos encontramos para falar
sobre o corte das minhas meias. Que tal irmos direto ao papel que você tem nas mãos?
Holmes havia incomodado de alguma forma o nosso visitante, cujo rosto
rechonchudo assumiu uma expressão bem menos amável.
— Paciência! Paciência, Sr. Garrideb! — disse meu amigo com uma voz suave.
— O Dr. Watson diria que às vezes essas minhas pequenas digressões acabam tendo
alguma importância para o assunto. Mas por que o Sr. Nathan Garrideb não veio com o
senhor?
— Por que ele o envolveu nisso? — perguntou nosso visitante com uma súbita
chama de raiva. — O que raios você tem a ver com isso? Tratava-se de um negócio
profissional entre dois cavalheiros, e um deles precisava chamar um detetive! Eu o vi
hoje de manhã e ele me contou a peça que me pregou, e é por isso que estou aqui. Mas
me sinto mal mesmo assim.
— Não houve nenhuma reflexão sobre o senhor, Sr. Garrideb. Foi simplesmente
zelo da parte dele para atingir seu objetivo – um objetivo que, pelo que sei, é igualmente
vital para vocês dois. Ele sabia que eu tinha meios de obter informações e, portanto, era
muito natural que ele me procurasse.
O rosto irritado de nosso visitante foi se dissipando aos poucos.
– Bem, isso é diferente — disse ele. — Quando fui vê-lo nesta manhã, ele me
disse que havia mandado chamar um detetive, pedi seu endereço e vim imediatamente.
Não quero que a polícia se meta em um assunto particular. Mas se você quiser apenas
nos ajudar a encontrar o homem, não há nenhum mal nisso.
– Bem, é exatamente isso — disse Holmes. — E agora, senhor, já que está aqui,
é melhor termos um relato claro de sua própria boca. Meu amigo aqui não sabe nada
sobre os detalhes.
O Sr. Garrideb me examinou com um olhar não muito amigável.
— Ele precisa de saber? — perguntou.
— Normalmente trabalhamos juntos.
— Bem, não há razão para que isso seja mantido em segredo. Vou lhe contar os
fatos da forma mais resumida possível. Se fosse do Kansas, eu não precisaria lhe
explicar quem foi Alexander Hamilton Garrideb. Ele ganhou dinheiro com imóveis e,
posteriormente, com o comércio de trigo em Chicago, mas gastou comprando a maior
quantidade de terras possível para formar um de seus condados, localizado ao longo do
rio Arkansas, a oeste de Fort Dodge. São terras de pastagem, terras de madeira, terras
cultiváveis e terras mineralizadas, e todo tipo de terra que rende dólares ao proprietário.
— Ele não tinha parentes – ou, se tinha, nunca ouvi falar. Mas ele se orgulhava
da estranheza de seu nome. Foi isso que nos uniu. Eu era advogado em Topeka e, um
dia, recebi sua visita e ele ficou muito feliz em conhecer outro homem com seu próprio
nome. Era seu hobby preferido, e ele estava decidido a descobrir se havia mais Garridebs
no mundo. “Encontre outro!”, disse ele. Eu lhe disse que era um homem ocupado e que
não poderia passar minha vida caminhando pelo mundo em busca de Garridebs. “No
entanto”, disse ele, “é exatamente isso que você fará se as coisas saírem como
planejei”. Achei que ele estava brincando, mas havia um grande significado em suas
palavras, como eu descobriria logo.
“Pois ele morreu um ano depois de dizê-las e deixou um testamento. Foi o
testamento mais estranho já registrado no Estado do Kansas. Sua propriedade foi
dividida em três partes, e eu ficaria com uma, desde que encontrasse dois Garridebs que
dividissem o restante. São cinco milhões de dólares para cada um, mas não podemos
encostar um dedo nele até que nós três estejamos um ao lado do outro.
“Era uma chance tão grande que deixei de lado minha prática jurídica e saí em
busca dos Garridebs. Não há nenhum nos Estados Unidos. Procurei todos, senhor,
passei um pente fino e nunca consegui encontrar um Garrideb. Então, tentei no antigo
país. Com certeza, o nome estava na lista telefônica de Londres. Fui atrás dele há dois
dias e lhe expliquei todo o assunto. Mas ele é um homem solitário, como eu, com
algumas parentes mulheres, mas nenhum homem. O testamento diz que são três
homens adultos. Como vê, ainda temos uma vaga e, se puder ajudar a preenchê-la,
estaremos dispostos a pagar seus honorários. — concluiu.
— Bem, Watson —, disse Holmes com um sorriso, — eu disse que era um tanto
excêntrico, não é? Eu teria pensado, senhor, que sua maneira óbvia de anunciar seria
nas colunas dos jornais.
–Já fiz isso, Sr. Holmes. Sem respostas.
— Meu Deus! Esse é certamente um pequeno problema muito curioso. Posso dar
uma olhada nisso quando tiver tempo. A propósito, é curioso que você tenha vindo de
Topeka. Eu costumava ter um correspondente – ele já morreu –, o velho Dr. Lysander
Starr, que foi prefeito em 1890.
— O bom e velho Dr. Starr! — disse nosso visitante. — Seu nome ainda é honrado.
Bem, Sr. Holmes, suponho que tudo o que podemos fazer é nos reportar ao senhor e
informá-lo sobre o nosso progresso. Acho que o senhor terá notícias dentro de um ou
dois dias. Com essa garantia, nosso visitante americano fez uma reverência e partiu.
Holmes acendeu o cachimbo e ficou sentado durante algum tempo com um sorriso
curioso no rosto.
— Então? – perguntei por fim.
— Estou me perguntando, Watson – apenas me perguntando!
— O quê?
Holmes tirou o cachimbo da boca.
— Eu estava me perguntando, Watson, qual poderia ser o objetivo desse homem
nos contando esse monte de mentiras. Quase perguntei a ele – há momentos em que
um ataque frontal brutal é a melhor política – mas achei melhor deixá-lo pensar que havia
nos enganado. Aqui está um homem usando um casaco inglês desgastado no cotovelo
e calças puídas no joelho com um ano de uso e, no entanto, segundo este documento e
segundo seu próprio relato, ele é um americano provinciano que desembarcou
recentemente em Londres. Não havia anúncios nas colunas. Você sabe que não perco
uma sequer. Elas são meu esconderijo favorito para colocar um pássaro, e eu nunca
teria ignorado um faisão como aquele. Nunca conheci um Dr. Lysander Starr, de Topeka.
Toque-o onde quiser, ele era falso. Acho que o sujeito é realmente americano, mas seu
sotaque foi suavizado por anos em Londres. Qual é o jogo dele, então, e que motivo está
por trás dessa busca absurda por Garridebs? Isso merece nossa atenção, pois, embora
o homem seja um malandro, ele certamente é complexo e engenhoso. Agora precisamos
descobrir se nosso outro correspondente também é uma fraude. Basta ligar para ele,
Watson.
Liguei e ouvi uma voz fina e trêmula do outro lado da linha.
— Sim, sim, eu sou o Sr. Nathan Garrideb. O Sr. Holmes está aí? Eu gostaria
muito de dar uma palavra com o Sr. Holmes.
Meu amigo pegou o telefone e eu ouvi o diálogo sincopado de sempre.
— Sim, ele esteve aqui. Entendo que o senhor não o conhece... Há quanto tempo?
... Apenas dois dias!... Sim, sim, é claro, é uma perspectiva muito cativante. Você estará
em casa esta noite? Suponho que seu homônimo não estará lá?... Muito bem, iremos
então, pois prefiro conversar sem ele... O Dr. Watson virá comigo... Pelo que entendi de
seu bilhete, você não saía com frequência... Bem, chegaremos por volta das seis. Não
precisa mencionar isso ao advogado americano... Muito bem. Adeus!
Era um lindo anoitecer de primavera, e até a Little Ryder Street, um dos menores
desdobramentos da Edgware Road, a uma distância de uma pedra da velha Tyburn Tree
de má memória, parecia dourada e maravilhosa sob os raios inclinados do sol poente. A
casa para a qual fomos direcionados era um grande edifício georgiano antigo, com uma
fachada plana de tijolos, interrompida apenas por duas janelas profundas no andar
térreo. Era neste andar térreo que nosso cliente morava e, de fato, as janelas baixas se
mostraram ser a frente do enorme quarto no qual ele passava suas horas de vigília. Ao
passarmos, Holmes apontou para a pequena placa de latão que trazia o curioso nome.
— Já está aqui há alguns anos, Watson, — observou ele, indicando sua superfície
descolorida. — De qualquer forma, é seu nome verdadeiro, e isso é algo a se notar.
A casa tinha uma escada comum, e havia vários nomes pintados no saguão,
alguns indicando escritórios e outros aposentos particulares. Não era um conjunto de
apartamentos residenciais, mas sim a residência de solteiros boêmios. Nosso cliente
abriu a porta para nós e se desculpou dizendo que a mulher responsável saiu às quatro
horas. O Sr. Nathan Garrideb revelou-se uma pessoa muito alta, desconjuntado,
corcunda, magro e careca, com cerca de sessenta e tantos anos de idade. Ele tinha um
rosto cadavérico, com a pele morta e sem brilho de um homem que desconhecia
exercícios. Seus óculos grandes e redondos e sua pequena e saliente cavanhaque
combinavam com a atitude condescendente e davam-lhe dar uma expressão de
curiosidade. O efeito geral, entretanto, era amável, embora excêntrico.
A sala era tão curiosa quanto seu ocupante. Parecia um pequeno museu. Era
ampla e profunda, com armários e gabinetes por toda parte, repletos de espécimes
geológicos e anatômicos. Cada lado da entrada era ladeado por caixas de borboletas e
mariposas. Uma grande mesa no centro estava repleta de todos os tipos de detritos,
enquanto o comprido tubo de metal de um poderoso microscópio se eriçava entre eles.
Enquanto olhava em volta, me surpreendi com a universalidade dos interesses do
homem. Aqui estava uma caixa de moedas antigas. Ali estava um armário de
instrumentos de pedra. Atrás de sua mesa central havia um grande armário com ossos
fósseis. Acima, havia uma linha de crânios de gesso com nomes como "Neandertal",
"Heidelberg", "Cro-Magnon" impressos abaixo deles. Estava claro que ele era um
estudioso de muitos assuntos. Enquanto estava diante de nós, ele segurava um pedaço
de couro de camurça na mão direita, com o qual estava polindo uma moeda.
— Siracusano, o melhor período, — explicou ele, segurando-a. — Eles se
degeneraram muito no final. Em seu melhor momento, eu os considero supremos,
embora alguns prefiram a escola de Alexandria. O senhor encontrará uma cadeira aqui,
Sr. Holmes. Por favor, permita-me limpar esses ossos. E o senhor – sim, Dr. Watson –
se tiver a bondade de deixar o vaso japonês de lado. Os senhores veem ao meu redor
meus pequenos interesses na vida. Meu médico me ensinou a nunca sair, mas por que
eu sairia quando tenho tanto para me manter aqui? Posso lhe garantir que a catalogação
adequada de um desses armários me levaria uns bons três meses.
Holmes olhou ao seu redor com curiosidade.
— Mas, me diga, o senhor nunca sai? — disse ele.
— De vez em quando vou até a Sotheby's ou a Christie's. Mas raramente saio do
meu quarto. Não sou muito forte, e minhas pesquisas me absorvem muito. Mas pode
imaginar, Sr. Holmes, que choque terrível – agradável, mas terrível – foi para mim quando
soube dessa boa sorte sem igual. Só é preciso mais um Garrideb para completar e
certamente podemos encontrar um. Eu tinha um irmão, mas ele já morreu, e parentes de
sexo feminino são desqualificados. Mas certamente deve haver outros no mundo. Ouvi
dizer que você lida com casos estranhos, e foi por isso que o procurei. É claro que esse
senhor americano tem toda a razão, e eu deveria ter seguido seu conselho primeiro, mas
agi pelo melhor.
— Acho que o senhor agiu com muita sabedoria, — disse Holmes. — Mas está
realmente ansioso para adquirir uma propriedade na América?
— Certamente não, senhor. Nada me faria deixar minha coleção. Mas esse senhor
me garantiu que me comprará assim que tivermos estabelecido nossa reivindicação. A
soma mencionada foi de cinco milhões de dólares. No momento, há uma dúzia de
espécimes no mercado que preenchem lacunas em minha coleção e que não posso
comprar por falta de algumas centenas de libras. Pense no que eu poderia fazer com
cinco milhões de dólares. Ora, eu tenho o núcleo de uma coleção nacional. Serei o Hans
Sloane da minha época.
Seus olhos brilhavam por trás de seus grandes óculos. Ficou muito claro que o
Sr. Nathan Garrideb não pouparia esforços para encontrar um homônimo.
— Liguei apenas para conhecê-lo, e não há motivo para interromper seus estudos
—, disse Holmes. — Prefiro estabelecer contato pessoal com aqueles com quem faço
negócios. Há poucas perguntas que preciso fazer, pois tenho sua narrativa muito clara
em meu bolso e preenchi as lacunas quando o cavalheiro americano ligou. Sei que, até
esta semana, você não sabia da existência dele.
— É verdade. Ele ligou na última terça-feira.
— Ele lhe contou sobre nossa entrevista de hoje?
— Sim, ele voltou direto para mim. Esteve muito irritado.
— Por que ele estaria com raiva?
— Ele parecia pensar que isso era um reflexo de sua honra. Mas ele estava
bastante alegre novamente quando voltou.
— Ele sugeriu algo?
— Não, senhor, ele não fez isso.
— Ele recebeu algum dinheiro de você ou pediu algum?
— Não, senhor, nunca!
— Você não vê nenhum objetivo possível que ele tenha em vista?"
— Nenhum, exceto o que ele afirma.
— Você contou a ele sobre nosso encontro por telefone?
— Sim, senhor, eu contei.
Holmes estava perdido em seus pensamentos. Eu podia ver que ele estava
confuso.
— Você tem algum artigo de grande valor em sua coleção?
— Não, senhor. Não sou um homem rico. É uma boa coleção, mas não muito
valiosa.
— Não tem medo de ladrões?
— Nem um pouco.
— Há quanto tempo está aqui?
— Há quase cinco anos.
O interrogatório de Holmes foi interrompido por uma batida na porta. Assim que
nosso cliente a abriu, o advogado americano entrou animado na sala.
— Aqui está você!, – gritou ele, acenando com um papel sobre sua cabeça. —
Achei que chegaria a tempo de pegá-lo. Sr. Nathan Garrideb, meus parabéns! Você é
um homem rico, senhor. Nosso negócio está felizmente concluído e tudo está bem.
Quanto ao senhor, Sr. Holmes, só podemos dizer que sentimos muito se lhe causamos
algum problema inútil.
Ele entregou o jornal ao nosso cliente, que ficou olhando para um anúncio
marcado. Holmes e eu nos inclinamos para frente e lemos o anúncio por cima de seu
ombro. Estava escrito:
Paratexto
Perfil da tradutora
Carolina Couto é formanda do Bacharelado em Tradução Inglês-português com
formação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, voltada para tradução literária.
O PROBLEMA DA THOR BRIDGE
Em algum lugar nos cofres do banco da Cox and Co., na Charing Cross, há uma
caixa de despacho de latão, desgastada devido a tantas viagens, com meu nome, John
H. Watson, M.D., Exército Indiano, marcado na tampa. A caixa está abarrotada de
papéis, praticamente todos sendo registros de casos que ilustram os curiosos problemas
que o Sr. Sherlock Holmes precisou examinar em vários momentos. Alguns, não menos
interessantes, foram completos fracassos e, como tal, não merecem ser narrados, uma
vez que não foram completamente solucionados. Um problema sem uma solução pode
interessar o aluno, mas dificilmente deixará de aborrecer seu leitor casual. Junto a estes
contos inacabados está o do Sr. James Phillimore que, ao retornar até a própria casa e
pegar seu guarda-chuva, nunca mais foi visto neste mundo. Não menos notável, há o
caso do veleiro Alicia, que navegou em uma manhã de primavera em direção a um
pequeno nevoeiro de onde nunca mais saiu, nem nunca mais se ouviu falar dele ou de
sua tripulação. Um terceiro caso digno de nota é o de Isadora Persano, eminente
jornalista e duelista, que se encontrou em estado de completa insanidade com uma caixa
de fósforos à sua frente, contendo um verme singular que se dizia ser desconhecido da
ciência. Para além destes casos insondáveis, há alguns envolvendo segredos de
famílias, que a simples ideia de serem conhecidos pela imprensa causaria consternação
nos mais elevados distritos. Não preciso dizer que uma quebra de confiança como essa
é impensável e que estes registros serão separados e destruídos, agora que meu amigo
tem tempo de voltar suas energias para o assunto. Resta ainda um conjunto considerável
de casos de maior ou menor relevância que eu poderia ter publicado antes, se não
receasse enjoar o público com o excesso, passível de afetar a reputação do homem que,
acima de todos os outros, eu admiro. Em alguns, eu mesmo estive envolvido e posso
relatar como testemunha ocular, enquanto, em outros, não estive presente, ou contribuí
com uma participação tão pequena que poderia ser relatada por uma terceira pessoa. A
narrativa que se segue vem de minha própria experiência.
Era uma manhã agitada de outubro e, enquanto me vestia, eu observava as
últimas folhas alaranjadas se desprenderem da solitária árvore que decorava o quintal
nos fundos de nossa casa. Desci para a refeição matinal, preparado para encontrar meu
companheiro em seu espírito melancólico, visto que, como todos os grandes artistas, era
facilmente impressionado pelo ambiente a sua volta. Pelo contrário, descobri que ele já
estava para acabar sua refeição e que seu humor estava particularmente radiante, com
aquela alegria um pouco sinistra que era característica dos seus momentos mais
despreocupados.
— Tem um novo caso, Holmes? — comentei.
— A arte da dedução é certamente contagiosa, Watson, — ele respondeu. — Ela
permitiu que sondasse o meu segredo. Sim, tenho um novo caso. Depois de um mês de
trivialidades e de estagnação, as engrenagens tornam a rodar.
— Pode dividi-lo comigo?
— Há pouco para se dizer sobre ele, mas podemos discutir depois que você tiver
consumido dois ovos cozidos que nosso novo cozinheiro preparou. Pode ser que o
estado destes ovos esteja conectado com o exemplar do Family Herald que notei ontem
em cima da mesa do hall de entrada. Mesmo uma questão tão trivial quanto cozinhar um
ovo demanda a consciência da passagem do tempo e é incompatível com o romance
nesse excelente periódico.
Quinze minutos depois, a mesa havia sido limpa e estávamos frente a frente. Ele
retirou uma carta de seu bolso.
— Alguma vez ouviu falar sobre Neil Gibson, o Rei do Ouro? — ele disse.
— Refere-se ao senador americano?
— Bem, ele foi senador de algum estado do Oeste, porém é mais conhecido como
o maior magnata da extração de ouro do mundo.
— Sim, já ouvi falar sobre ele. Tenho certeza de que morou na Inglaterra por um
tempo. O nome me é muito familiar.
— Sim, ele comprou uma propriedade considerável em Hampshire há cerca de
cinco anos. Você provavelmente ouviu sobre o final trágico da esposa?
— Naturalmente. Eu me lembro agora. Por isso que o nome me é familiar.
Entretanto não sei nada sobre os detalhes.
Holmes acenou, indicando alguns papéis sobre uma cadeira.
— Eu não fazia ideia de que o caso acabaria nas minhas mãos, ou já teria feito
minhas anotações, — ele disse. — O fato é que o problema, apesar de excessivamente
sensacionalista, não parecia apresentar qualquer dificuldade. A interessante
personalidade da acusada não obscurece a clareza das evidências. Esse foi o ponto de
vista tomado pelo julgamento do médico-legista e, também, pela ata do tribunal de
justiça. O processo está agora remetido para o Tribunal de Justiça de Winchester. Temo
que esta seja uma tarefa ingrata. Eu posso descobrir os fatos, Watson, mas não posso
mudá-los. A menos que algo inteiramente novo e inesperado venha à luz, não vejo como
meu cliente possa nutrir qualquer esperança.
— Seu cliente?
— Ah, esqueci-me de que não lhe contei. Estou pegando seu hábito de contar a
história de trás para frente, Watson. É melhor que leia isso, primeiro.
A carta que me foi entregue, escrita em letra firme, por uma mão habilidosa, dizia
o seguinte:
Claridge's Hotel
3 de outubro
Prezado Sr. Sherlock Holmes: Sou incapaz de assistir à melhor mulher já criada
por Deus morrer sem fazer tudo a meu alcance para tentar salvá-la. Não posso explicar
as coisas... Sequer posso tentar explicá-las, entretanto, sei, além de qualquer dúvida,
que a Senhorita Dunbar é inocente. O senhor conhece os fatos, quem não? Tem sido o
assunto de fofoca por todo o país. E nenhuma voz foi levantada a favor dela! É a
maldita injustiça, acima de tudo, que me deixa maluco. Aquela mulher possui um
coração tão bom que seria incapaz de fazer mal a uma mosca. Bem, irei amanhã às
onze horas e descobrirei se você consegue encontrar um raio de luz em meio a essa
escuridão. Talvez eu tenha uma pista que ainda não tenha percebido. De qualquer
modo, tudo o que eu sei, assim como tudo o que eu tiver a meu alcance e tudo o que
sou, estarão a seu dispor caso possa salvá-la. Se em algum momento de sua vida, o
senhor mostrou seus poderes, coloque-os agora nesse caso.
— Cordialmente,
J. Neil Gibson.
Paratexto
Perfil do tradutor
Eduardo Lisovski Schmidt é tradutor pela Universidade Federal de Juiz de Fora,
tem como língua de trabalho o inglês e possui interesse na área de tradução literária.
A AVENTURA DO HOMEM RASTEJANTE
O Sr. Sherlock Holmes sempre foi a favor de que eu publicasse os fatos singulares
conectados ao professor Presbury, se somente se dissipassem, de uma vez por todas,
os rumores pravos os quais, cerca de vinte anos atrás, agitaram a universidade e
ecoaram pela sociedade intelectual de Londres. Existiam, no entanto, certos obstáculos
pelo caminho, e a verdadeira história desse curioso caso permaneceu sepultada no
fundo da caixa de latão onde se encontram muitos registros das aventuras de meu amigo.
Apenas agora, nós recebemos permissão para ventilar os acontecimentos que
constituíram um dos últimos casos investigados por Holmes antes de sua aposentadoria
do ofício. Mesmo neste momento, reserva e discrição devem ser tomadas antes de
explicar o caso para o público.
Foi em um anoitecer de domingo no começo de setembro do ano de 1903 que
recebi uma das mensagens lacônicas de Holmes:
“Venha num pé se for conveniente… se inconveniente, venha no mesmo”.
— S.H.
A relação entre nós ultimamente estava peculiar. Ele era um homem de manias,
estreitas e concentradas manias, e eu havia me tornado uma delas. Como uma
instituição, eu era como o violino, o tabaco grosseiro, o velho cachimbo preto, o livro
índice e outros menos justificáveis. Quando era um caso de trabalho ativo e um
camarada em cuja coragem ele poderia depositar certa confiança era necessário, meu
papel era óbvio. Mas, além disso, eu era útil. Eu era a pedra de amolar para a mente
dele. Eu o estimulava. Ele gostava de pensar em voz alta em minha presença.
Dificilmente se poderia dizer que suas observações poderiam ter sido feitas para mim —
muitas delas teriam sido feitas de maneira mais apropriada para a cabeceira de sua cama
— mas, de qualquer forma, formado o hábito, tornou-se, de alguma forma, útil que eu
devesse registrar e interromper. Se eu o irritasse por certa lentidão metódica em minha
mentalidade, a irritação servia apenas para fazer suas flamejantes intuições e
impressões fumegarem de modo mais vívido e veloz. Esse era meu singelo papel em
nossa aliança.
Quando cheguei à Baker Street, eu o encontrei acomodado em sua poltrona com
os joelhos para cima, o cachimbo na boca e o cenho franzido pelo pensamento. Estava
claro que ele estava nas entranhas de algum problema complicado. Com um aceno de
mão, ele indicou a minha própria poltrona, mas, apesar disso, por meia hora, ele não deu
nenhum sinal de que havia percebido minha presença. Então, com um sobressalto, ele
pareceu sair de seu devaneio, e com seu habitual sorriso excêntrico, recebeu-me de
volta para o lugar onde um dia havia sido minha casa.
— Desculpe-me a abstração pontual da mente, caro Watson — disse ele. —
Certos fatos curiosos chegaram até mim nas últimas vinte e quatro horas, e eles, por sua
vez, originaram certas especulações de caráter mais geral. Considero seriamente
escrever um pequeno estudo a respeito do uso de cães no trabalho de investigação.
— Mas, decerto, Holmes, isso foi explorado — disse eu. — Sabujos, cães
farejadores...
— Não, não, Watson. Este lado do assunto é, evidentemente, óbvio. Todavia,
existe outro, que é muito mais sutil. Você talvez lembre que, no caso em que você, à sua
maneira excepcional, uniu-se às Faias Cor de Cobre, eu fui capaz de, ao observar a
mente de uma criança, formular uma dedução a respeito dos costumes criminosos do
muito convencido e respeitável pai.
— Sim, lembro-me bem.
— Minha linha de raciocínio sobre cães é análoga. Um cão reflete a vida da
família. Quem vê um cachorro espirituoso em uma família melancólica, ou um triste em
uma casa feliz? Pessoas que rosnam possuem cães que rosnam, pessoas perigosas
possuem animais perigosos. E os humores instáveis deles podem refletir os humores
instáveis dos donos.
Eu balancei a cabeça.
— Sem dúvida, Holmes, isso é um pouco absurdo — disse eu.
Ele colocou mais tabaco no cachimbo e retomou seu assento, sem tomar nota de
meu comentário.
— A aplicação prática do que eu disse é muito similar ao caso que estou
investigando. É um novelo emaranhado, você vê, e eu estou procurando por uma ponta
solta. Uma possível ponta solta reside na pergunta: por que o lébrel do professor
Presbury, Roy, tentou mordê-lo?
Eu afundei em minha cadeira, um pouco desapontado. Seria uma pergunta tão
trivial como aquela o motivo pelo qual eu havia sido tirado de meu trabalho? O olhar de
Holmes me trespassou.
— O velho Watson de sempre! — disse ele. — Você nunca aprende que os
problemas mais graves podem ser causados pelas menores das intercorrências. Mas
não lhe parece estranho que um filósofo sério, de idade avançada... você já ouviu a
respeito de Presbury, é claro, o fisiologista famoso de Camford?... um homem cujo único
amigo foi seu devotado lébrel, agora ter sido atacado duas vezes pelo próprio cão? O
que você pensa sobre isso?
— O cachorro está doente.
— Bem, podemos considerar. Mas ele não ataca ninguém e nem importuna seu
dono, apenas em ocasiões muito específicas. Curioso, Watson... muito curioso. Mas o
jovem Sr. Bennett chegou antes da hora se for ele quem tocou a campainha. Eu esperava
ter uma conversa mais duradoura com você antes que ele chegasse.
Houve passos velozes nas escadas, batidas afiadas à porta e, um momento
depois, o novo cliente se apresentou. Ele era um homem jovem e alto, belo e próximo
dos trinta anos, bem vestido e elegante, mas com algo em seu comportamento que
sugeria mais a timidez do estudante do que a assertividade de um homem bem-vivido.
Ele apertou a mão de Holmes e então, com certa surpresa, olhou para mim.
— Essa questão é muito delicada, Sr. Holmes — ponderou ele. — Considere a
relação que possuo com o professor Presbury, tanto de maneira privada quanto pública.
Realmente não posso me perdoar se eu falar diante de qualquer terceira pessoa.
— Não tenha medo, Sr. Bennett. Dr. Watson é a alma da discrição, e eu posso
assegurar a você que esse é um caso em que é muito provável a minha necessidade de
um assistente.
— Como preferir, Sr. Holmes. Você vai, creio eu, entender as minhas reservas
com essa questão.
— Você vai gostar, Watson, quando eu lhe contar que este cavalheiro, Sr. Trevor
Bennett, é o assistente do grande cientista, mora sob o teto dele e é noivo de sua única
filha. É certo que devemos concordar que o professor sustenta todas as alegações a
respeito de sua lealdade e devoção. Mas isso pode ser demonstrado melhor se
tomarmos os passos necessários para esclarecer esse estranho mistério.
— Espero que sim, Sr. Holmes. Esta é minha pergunta. O Dr. Watson tem
conhecimento da situação?
— Não tive tempo para explicá-la.
— Então, talvez seja melhor que eu recupere tudo, mais uma vez, antes de
explicar alguns acontecimentos mais frescos.
— Eu mesmo o farei — disse Holmes — para mostrar que tenho os eventos em
sua devida ordem. O professor, Watson, é um homem de reputação europeia. A vida
dele era acadêmica até então. Nunca existiu nenhum suspiro de escândalo. Ele é viúvo
com uma única filha, Edith. Ele é, lembro-me, um homem de caráter muito viril e positivo,
alguns podem até dizer combativo. O problema começou cerca de alguns meses atrás.
“Então, a corrente de sua vida foi interrompida. Ele tem sessenta e um anos de
idade, mas se tornou noivo da filha do professor Morphy, seu colega no gabinete de
anatomia comparativa. Não foi, como eu compreendo, a decisão racional de um homem
com mais idade, mas sim o furor apaixonado da juventude, pois ninguém poderia tê-lo
apresentado uma amante mais devotada. A dama, Alice Morphy, era uma moça perfeita
tanto de corpo quanto de mente, então ali estavam todas as desculpas a favor da
enfatuação do professor. De qualquer forma, isso não foi aprovado totalmente na família
dele.”
— Achamos um tanto excessivo — disse nosso visitante.
— Exato. Excessivo e um pouco violento e não natural. O professor Presbury era
rico, no entanto, e não houve objeção partida da parte do pai. A filha, no entanto, tinha
outra visão, e já existiam diversos candidatos para a mão da moça, os quais, caso fossem
menos aceitáveis sob um ponto de vista mais mundano, possuíam, ao menos, mais
idade. A jovem parecia gostar do professor apesar das excentricidades dele. Era apenas
a idade que se colocava no caminho.
“Por volta dessa época, um pequeno mistério, de repente, enevoou a rotina normal
da vida do professor. Ele fez o que nunca havia feito antes. Saiu de casa e não deu
qualquer informação a respeito de onde estava indo. Ele ficou longe por uma quinzena
e retornou um tanto cansado da viagem. Não fez alusão ao lugar onde esteve, embora
fosse, normalmente, a honestidade em pessoa. Aconteceu, entretanto, que nosso cliente
aqui, o Sr. Bennett, recebeu uma carta de um colega de Praga, que disse estar grato por
ter visto o professor Presbury ali, embora não tivesse conseguido falar com ele. Foi
apenas dessa maneira que a família soube onde ele havia estado.
“Aqui está o ponto. Daquela vez em diante, uma mudança curiosa se apossou do
professor. Ele se tornou furtivo e ladino. Aqueles próximos dele sempre tinham a
sensação de que ele não era o homem que haviam conhecido, e sim que ele estava sob
alguma sombra, a qual havia escurecido suas maiores qualidades. Seu intelecto não foi
afetado. Suas aulas estavam tão brilhantes como sempre. Mas sempre havia algo novo,
algo sinistro e inesperado. Sua filha, que era devotada a ele, tentou de novo e de novo
retomar a relação antiga e penetrar a máscara a qual o pai dela parecia ter colocado.
Você, senhor, como eu entendo, fez o mesmo... mas foi tudo em vão. E, agora, Sr.
Bennett, conte em suas próprias palavras o incidente das cartas — solicitou Holmes.
— Você deve compreender, Dr. Watson, que o professor não guardava segredos
de mim. Se eu fosse filho ou irmão mais novo dele, eu não poderia ter aproveitado por
completo sua confiança. Como secretário, eu entregava cada documento que chegava
até ele, e eu abria e separava suas cartas. Pouco tempo depois de seu retorno, tudo isso
mudou. Ele me contou que certas cartas poderiam chegar para ele de Londres, as quais
estariam marcadas por uma cruz sob do selo. Essas deviam ser reservadas para seus
próprios olhos, apenas. Posso dizer que várias dessas passaram pelas minhas mãos,
elas possuíam a marca E.C. e estavam escritas em uma caligrafia iletrada. Se ele
respondeu a todas elas, as respostas não passaram por mim e nem pela cesta de cartas
da qual nossa correspondência era coletada.
— E a caixa — disse Holmes.
— Ah, sim, a caixa. O professor trouxe uma pequena caixa de madeira de suas
viagens. Era a única pista que sugeriu uma rota continental, pois era uma daquelas
coisas pitorescas entalhadas que se associa à Alemanha. Ele a guardou em seu armário
de instrumentos. Um dia, na procura por uma cânula, eu peguei a caixa. Para a minha
surpresa, ele ficou muito bravo e me reprovou em palavras que foram um tanto brutais
para a minha curiosidade. Foi a primeira vez que algo assim aconteceu, e eu fiquei
profundamente magoado. Esforcei-me para explicar que foi apenas um acidente eu ter
tocado a caixa, mas durante toda a noite eu percebia de que ele me olhava com dureza,
e que o acontecimento supurava em sua mente — O Sr. Bennett tirou um pequeno diário
de dentro do bolso. — Isso foi no dia 2 de julho — disse ele.
— Você é de fato uma testemunha admirável — observou Holmes. — Eu posso
precisar de algumas dessas datas que você anotou.
— Eu aprendi métodos, dentre outras coisas, com meu grande professor. Desde
o momento em que observei anormalidade no comportamento dele, senti que era meu
dever estudar seu caso. Deste modo, eu tenho aqui que foi naquele exato dia, 2 de julho,
que Roy atacou o professor quando ele saía de sua sala de estudos para o corredor.
Novamente, no dia 11 de julho, houve uma cena da mesma espécie, e, então, tenho uma
nota de outro ataque no dia 20. Depois disso, nós tivemos que exilar Roy para os
estábulos. Ele era um animal querido e carinhoso... mas temo estar entediando você.
Sr. Bennett falou em tom de desaprovação, porque estava bastante claro que
Holmes não estava ouvindo. Seu rosto estava rígido e seus olhos fitavam o teto de
maneira abstrata. Com esforço, ele se recuperou.
— Singular! Que singular! — ele murmurou. — Esses detalhes eram novos para
mim, Sr. Bennett. Acho que, agora, já recordamos toda a história, não é mesmo? Mas
você comentou de alguns acontecimentos recentes.
O rosto ingênuo e agradável de nosso visitante se enevoou, coberto por alguma
recordação obscura.
— Aquilo de que falo se deu na noite anterior do último acontecimento — disse
ele. — Eu estava acordado por volta das duas da manhã quando percebi um som fraco
e abafado vindo do corredor. Abri minha porta e espiei para fora. Devo explicar que o
professor dorme ao final do corredor...
— E qual a data…? — quis saber Holmes.
Nosso visitante estava claramente incomodado diante de uma interrupção tão
irrelevante.
— Eu disse, senhor, foi na noite anterior à última... isto é, 4 de setembro.
Holmes assentiu e sorriu.
— Por favor, continue — disse ele.
— Ele dorme ao final do corredor e teria de passar pela minha porta para chegar
até as escadas. Foi uma experiência de fato aterrorizante, Sr. Holmes. Eu acho que tenho
nervos de aço tais quais os dos meus vizinhos, mas fiquei perplexo com o que vi. O
corredor estava escuro, exceto por uma janela logo no meio, que lançava ali um feixe de
luz. Eu podia ver que algo estava atravessando corredor, algo escuro e agachado. Então,
aquilo de repente mergulhou na luz, e eu vi que era ele. Ele estava rastejando, Sr.
Holmes, rastejando! Ele não estava exatamente apoiado nas mãos e nos joelhos. Devo
dizer, ao invés disso, nas mãos e nos pés, com o rosto afundado entre as mãos. Ainda
assim, ele parecia se mover com facilidade. Eu fiquei tão paralisado pela visão que foi
apenas quando ele chegou até a minha porta que fui capaz de dar um passo à frente e
perguntar se poderia ajudá-lo. A resposta dele foi extraordinária. Ele se endireitou, cuspiu
alguma palavra cruel para mim e passou correndo pela minha porta e desceu as escadas.
Eu esperei por cerca de uma hora, mas ele não voltou. O dia deve ter amanhecido antes
que ele retornasse para o quarto.
— Bem, Watson, o que acha disso? — perguntou Holmes com o ar de um
patologista que apresenta um espécime raro.
— Lumbago, possivelmente. Eu sei que uma crise intensa pode fazer um homem
andar dessa exata maneira, e nada seria mais irritante para humor.
— Ótimo, Watson! Você sempre nos mantém com os pés no chão. Mas é difícil
que aceitemos lumbago, uma vez que ele era capaz de ficar de pé no momento seguinte.
— Ele nunca esteve tão bem de saúde — disse Bennett. — Na verdade, ele está
mais forte do que me lembro há anos. Mas eis os fatos, Sr. Holmes. Esse não é um caso
em que podemos consultar a polícia, mas nós estamos totalmente sem direções quanto
ao que fazer, e sentimos, de uma maneira estranha, que estamos nos movendo na
direção de um desastre. Edith... A Senhorita Presbury se sente da mesma forma que eu,
nós não podemos mais esperar sem fazer nada.
— É decerto um caso muito curioso e sugestivo. O que acha, Watson?
— Falando como um homem da medicina — disse eu —, parece ser o caso para
um alienista. Os processos cerebrais do velho cavalheiro foram perturbados pela
aventura amorosa. Ele fez uma jornada para o exterior na esperança de se romper da
paixão. As cartas dele e a caixa podem estar conectadas com outra transação privada...
um empréstimo, talvez, ou certificados de ações, que estão dentro da caixa.
— E o lébrel, sem dúvida, desaprovou o negócio financeiro. Não, não, Watson,
existe algo a mais. Agora, posso apenas sugerir...
Nunca se saberá o que Sherlock Holmes estava prestes a sugerir, pois naquele
momento a porta se abriu e uma jovem adentrou a sala. Quando ela apareceu, o Sr.
Bennett se levantou com uma exclamação e correu em sua direção com as mãos
estendidas a fim de encontrar aquelas que ela mesma estendia.
— Edith, querida! Não há nada de errado, assim espero?
— Eu senti que devia seguir você. Oh, Jack, fiquei tão apavorada! É horrível estar
lá sozinha.
— Sr. Holmes, esta é a moça de quem falei. Esta é minha noiva.
— Nós estávamos chegando a essa conclusão, não é, Watson? — Holmes
respondeu com um sorriso. — Acredito, Senhorita Presbury, que há desenvolvimentos
frescos no caso, e você pensou que devêssemos saber?
Nossa nova visitante, uma radiante, bela moça de tipo tradicional inglês, sorriu de
volta para Holmes enquanto se sentava ao lado do Sr. Bennett.
— Quando eu soube que o Sr. Bennett deixou o hotel, acreditei que seria provável
encontrá-lo aqui. É claro, ele me contou que iria consultar o senhor. Mas, oh, Sr. Holmes,
não há nada que possa fazer pelo meu pobre pai?
— Tenho esperanças, Srta. Presbury, mas o caso ainda permanece obscuro.
Talvez o que você tenha a dizer possa iluminá-lo com uma nova luz.
— Foi na noite passada, Sr. Holmes. Ele esteve muito estranho o dia todo. Tenho
certeza de que há vezes nas quais ele não se lembra do que faz. Ele vive como se fosse
um sonho estranho. Ontem foi um desses dias. Aquele não é o pai com quem vivi. A
casca dele estava lá, mas não era ele de fato.
— Conte-me o que houve.
— Eu fui acordada à noite pelo cachorro latindo, furioso. Pobre Roy, ele está
acorrentado agora próximo aos estábulos. Posso dizer que sempre durmo com a minha
porta trancada; porque, como Jack... como o Sr. Bennett irá contar a você, temos todos
o sentimento de perigo iminente. Meu quarto fica no segundo andar. As cortinas estavam
suspensas em minha janela, e havia a luz brilhante da lua lá fora. Enquanto eu me
deitava com meus olhos fixos no quadrado luminoso, escutando os latidos enfurecidos
do cachorro, eu fiquei surpresa ao ver o rosto do meu pai olhando para dentro em minha
direção. Sr. Holmes, quase morri de susto e de horror. Lá estava, pressionado contra a
vidraça, e uma mão pareceu se erguer como que para empurrar a janela. Se aquela
janela tivesse aberto, acho que eu teria perdido a cabeça. Não foi um delírio, Sr. Holmes.
Estará enganado ao pensar assim. Ouso dizer que foi por cerca de vinte segundos que
fiquei deitada paralisada e fitei o rosto. Então, ele desapareceu, mas eu não consegui...
eu não consegui me levantar e ir ajudá-lo. Deitada, senti frio e arrepios até amanhecer.
No café da manhã, ele estava com o comportamento amargo e feroz e não fez alusão à
aventura da noite. Eu também não fiz, mas dei uma desculpa para vir à cidade... e aqui
estou eu.
Holmes pareceu profundamente surpreso diante da narrativa da Senhorita
Presbury.
— Minha cara jovem, você diz que seu quarto é no segundo andar. Há uma
escada longa no jardim?
— Não, Sr. Holmes, essa é a parte impressionante. Não há nenhuma maneira
possível de chegar até a janela... mesmo assim, ele estava lá.
— A data é dia 5 de setembro — disse Holmes. — Isso decerto agrava a situação.
Foi a vez da jovem de demonstrar surpresa.
— Essa é a segunda vez que você faz alusão à data, Sr. Holmes — disse Bennett.
— É possível que exista alguma relação com o caso?
— É provável, muito provável, porém não tenho meu material completo no
momento.
— Por acaso você está pensando na conexão entre a insanidade e as fases da
lua?
— Não, eu lhe asseguro. Foi uma linha bem diferente de pensamento. Talvez você
possa deixar seu caderno comigo, e eu irei conferir as datas. Agora, eu acredito, Watson,
que nossa linha de ação está perfeitamente clara. Essa jovem nos informou, e eu
deposito grande confiança na intuição dela, que o pai se lembra de muito pouco ou nada
do que ocorre em certas datas. Nós iremos, portanto, telefoná-lo como se ele tivesse
marcado um compromisso conosco em tal data. Ele irá atribuir isso à sua própria falta de
memória. Então, nós iremos começar nossa campanha após examiná-lo mais de perto.
— Excelente — disse o Sr. Bennett. — Devo alertá-lo, entretanto, que o professor
é irascível e violento às vezes.
Holmes sorriu.
— Há razões pelas quais devemos ir de uma vez... razões muito convincentes, se
minhas teorias estiverem corretas. Amanhã, Sr. Bennett, certamente nos verá em
Camford. Lá existe, se me lembro bem, uma hospedaria chamada Chequers onde o porto
costumava ser melhor do que a mediocridade e a roupa de cama era acima do impecável.
Creio, Watson, que nossa sorte pode estar em lugares menos agradáveis pelos próximos
dias.
A manhã de segunda-feira nos encontrou em nosso caminho até a famosa cidade
universitária — um esforço fácil da parte de Holmes, que não possuía raízes para
arrancar, mas que envolveu pressa e um planejamento frenético vindo de mim, uma vez
que minha prática era, nessa época, escassa. Holmes não fez nenhuma alusão ao caso
até depois de termos deixado nossas malas na antiga hospedaria da qual ele havia
falado.
— Acredito, Watson, que podemos pegar o professor logo antes do almoço. Ele
dá aula às onze e deve fazer um intervalo em casa.
— Qual a possível desculpa que teríamos para telefoná-lo?
Holmes checou seu caderno.
— Houve um período de agitação em 26 de agosto. Vamos supor que ele esteja
um pouco confuso sobre o que faz nesses momentos. Se insistirmos que estamos lá pelo
compromisso marcado, acredito ser difícil que ele ouse nos contradizer. Você tem o
descaramento necessário para levar isso adiante?
— Podemos ao menos tentar.
— Excelente, Watson! Uma mistura de Busy Bee e Excelsior. “Podemos ao menos
tentar”, o lema da empresa. Um morador local amigável certamente nos guiará.
Um desses locais, no banco de trás de uma condução elegante, levou-nos
velozmente por uma fileira de faculdades antigas e, por fim, virou em uma avenida
arborizada e parou em frente a uma encantadora casa, cingida por gramados e coberta
por glicínias roxas. O professor Presbury estava de fato cercado por todos os elementos
não apenas de conforto, como também de luxo. Enquanto nós estacionávamos, uma
cabeça grisalha apareceu na janela frontal, e percebemos um par de olhos afiados sob
sobrancelhas desgrenhadas, que nos esquadrinhavam através de grandes óculos de
chifre. Um momento depois, estávamos em seu escritório, e o misterioso cientista, cujos
caprichos nos trouxeram de Londres, estava diante de nós. Não havia sinal algum de
excentricidade, fosse em seu comportamento, fosse em sua aparência, pois ele era um
homem corpulento, de traços marcantes, sério, alto e de sobrecasaca, com a dignidade
na postura que um lecionador precisa ter. Seus olhos eram sua característica mais
notável, afiados, observadores e espertos até o limite da astúcia.
Ele olhou para os nossos cartões.
— Por favor, sentem-se, cavalheiros. O que posso fazer por vocês?
O Sr. Holmes sorriu amigavelmente.
— Era exatamente a pergunta que eu estava prestes a lhe fazer, Professor.
— Para mim, senhor?
— É possível que haja algum engano. Eu soube por meio de uma segunda pessoa
que o professor Presbury de Camford precisava dos meus serviços.
— Ah, é claro! — Pareceu-me que havia um brilho malicioso nos intensos olhos
cinzentos. — Você ouviu isso, não ouviu? Posso perguntar o nome do seu informante?
— Desculpe-me, professor, mas o assunto era confidencial. Se cometi um erro,
nenhum dano foi causado. Só posso expressar meu arrependimento.
— De forma alguma. Eu gostaria de investigar mais a fundo esse assunto. Ele me
interessa. Você tem alguma declaração escrita, alguma carta ou telegrama para
comprovar sua afirmação?
— Não, não tenho.
— Presumo que você não vá tão longe a ponto de afirmar que eu o convoquei?
— Eu prefiro não responder perguntas — disse Holmes.
— Não, temo que não — disse o professor com aspereza. — No entanto, essa em
particular pode ser facilmente respondida sem a sua ajuda.
Ele atravessou a sala em direção à campainha. Nosso amigo de Londres, o Sr.
Bennett, atendeu ao chamado.
— Entre, Sr. Bennett. Esses dois cavalheiros vieram de Londres sob a impressão
de que foram convocados. Você cuida de toda a minha correspondência. Teria qualquer
registro de algo enviado a uma pessoa chamada Holmes?
— Não, senhor — respondeu Bennett, ruborizado.
— Assim se conclui — disse o professor, olhando furiosamente para o meu
companheiro. — Agora, senhor — ele se inclinou para frente, com as duas mãos sobre
a mesa —, me parece que sua posição é uma bastante questionável.
Holmes deu de ombros.
— Posso apenas repetir que sinto muito por termos feito uma intrusão
desnecessária.
— Já basta, Sr. Holmes! — o velho homem gritou com uma voz alta e estridente,
com uma malignidade extraordinária em seu rosto. Ele se colocou entre nós e a porta
enquanto falava, e sacudiu suas duas mãos para nós com uma paixão furiosa. — Você
não poderá escapar tão fácil assim.
Seu rosto estava torcido, ele sorria e balbuciava para nós em sua raiva insensata.
Eu estava convencido de que teríamos de lutar para sair da sala se o Sr. Bennett não
tivesse interferido.
— Caro professor! — ele gritou. — Pense em sua posição! Pense no escândalo
na universidade! O Sr. Holmes é um homem conhecido. Você não pode tratá-lo com
tamanha descortesia.
Carrancudo, nosso anfitrião, se é posso chamá-lo assim, abriu caminho até a
porta. Ficamos aliviados ao estar fora da casa e na tranquilidade da avenida arborizada.
Holmes parecia bastante impressionado pelo episódio.
— Os nervos de nosso amigo erudito estão um tanto fora do prumo — disse ele.
— Talvez nossa intrusão tenha sido pouco refinada, no entanto nós conseguimos o
contato pessoal que eu desejava. Mas, meu Deus, Watson, ele certamente está no nosso
encalço. O vilão ainda nos persegue.
Houve sons de pés apressados atrás de nós, mas, para meu alívio, não era o
formidável professor que apareceu contornando a curva da avenida, mas sim seu
assistente. Ele chegou ofegante até nós.
— Eu sinto muito mesmo, Sr. Holmes. Queria lhe pedir desculpas.
— Meu caro senhor, não é necessário. Faz parte da experiência profissional.
— Nunca o tinha visto em um humor tão perigoso. Mas ele pode ficar mais sinistro.
Você pode entender, agora, por que a Srta. Presbury e eu estamos alarmados. E ainda
assim, sua mente continua perfeitamente lúcida.
— Muito lúcida! — disse Holmes. — Esse foi o meu erro de cálculo. É evidente
que sua memória é muito mais confiável do que eu havia pensado. A propósito, antes de
irmos, podemos ver a janela do quarto da Srta. Presbury?
O Sr. Bennett abriu caminho por alguns arbustos, e tivemos uma visão da lateral
da casa.
— Fica ali. A segunda à esquerda.
— Espantoso, parece quase inacessível. No entanto, você vai observar que há
uma trepadeira abaixo e um cano de água acima que oferecem algum apoio.
— Eu mesmo não conseguiria escalar — disse o Sr. Bennett.
— É provável que não. Seria de fato uma empreitada perigosa para qualquer
homem comum.
— Havia outra coisa que eu queria lhe contar, Sr. Holmes. Tenho o endereço do
homem em Londres para quem o professor escreve. Parece que ele escreveu esta
manhã, e consegui isso no papel de carta borrado. É uma posição ignóbil para um
secretário de confiança, mas o que mais posso fazer?
Holmes fitou o papel e o colocou em seu bolso.
— Dorak... um nome curioso. Tem origem eslava, eu suponho. Bem, é um elo
importante na corrente. Voltaremos a Londres esta tarde, Sr. Bennett. Não vejo nenhum
propósito em nossa permanência aqui. Nós não podemos prender o professor, porque
ele não cometeu nenhum crime, nem podemos detê-lo, pois não há como provar que ele
está louco. Não é possível tomar nenhuma medida por enquanto.
— Então, o que diabos devemos fazer?
— Um pouco de paciência, Sr. Bennett. As coisas logo se desenvolverão. A
menos que eu esteja enganado, na próxima terça-feira pode estar marcada uma crise.
Certamente estaremos em Camford nesse dia. Enquanto isso, é indiscutível que a
situação geral é desagradável, e se a Srta. Presbury puder prolongar sua visita...
— Isso é fácil.
— Então, deixe-a ficar até conseguirmos assegurá-la de que todo o perigo já
passou. Enquanto isso, deixe-o estar e não se coloque no caminho dele. Contanto que
ele esteja de bom humor.
— Lá está ele! — disse Bennett num sussurro sobressaltado. Ao olharmos entre
os galhos, nós vimos a figura alta e de boa postura surgir da porta do salão e olhar em
volta dele. Ele ficou inclinado para frente, as mãos pendendo retas à sua frente, a cabeça
virando de um lado para o outro. O secretário, com um último aceno, esgueirou-se por
entre as árvores, e nós o vimos se apresentar, sem demora, para seu empregador; os
dois adentraram a casa juntos no que pareceu ser uma conversa animada e até mesmo
empolgada.
— Eu espero que o velho cavalheiro esteja somando dois mais dois — dizia
Holmes conforme andávamos em direção ao hotel. — Ele me soou como se tivesse um
cérebro particularmente afiado e lógico pelo pouco que vi de sua pessoa. Explosivo, sem
dúvida, mas, em contrapartida, do ponto de vista dele, ele possui algo que o faça explodir
se detetives são colocados em seus calcanhares e ele suspeita de que sua própria
família esteja por trás de tudo. Eu acredito que o ilustre amigo Bennett está passando
por maus bocados.
Holmes parou nos correios e enviou um telegrama em nosso caminho. A resposta
chegou até nós ao anoitecer, e ele a lançou para mim.
Visitei a Commercial Road e vi Dorak. Sujeito suave, boêmio, idoso. Possui um grande
armazém.
MERCER
Perfil do tradutor
É extremamente singular como um problema que foi certamente tão difícil de ser
compreendido e incomum quanto qualquer um que eu tenha encarado na minha longa
carreira profissional tenha chegado até mim depois de minha aposentadoria e ter batido,
por assim dizer, à minha porta. Aconteceu após eu ter me retirado à minha pequena casa
em Sussex, quando havia me entregado completamente àquela suave vida na Natureza
que tanto ansiei nos longos anos que passei entre o desânimo de Londres. Nessa época
da minha vida, o caro Watson já havia me deixado para além da minha compreensão.
Uma ocasional visita de final de semana era o máximo que eu conseguia ter dele.
Portanto, devo ser meu próprio cronista. Ah! Mas se ele estivesse comigo, como poderia
ter feito de tão maravilhoso acontecimento meu definitivo triunfo contra cada dificuldade!
Assim como está, porém, devo contar minha história do meu jeito simples, mostrando
através de minhas palavras cada passo na estrada dificultosa que se estendeu à minha
frente enquanto eu investigava o mistério da Juba-de-Leão.
Minha casa de campo está situada sob as encostas de South Downs, imperando
uma vista incrível do Canal. Neste ponto, a linha costeira é inteiramente marcada por
falésias de calcário, que só podem ser descidas por um único caminho longo, tortuoso,
íngreme e escorregadio. Ao final do caminho, encontram-se umas cem jardas de pedras
e cascalho, mesmo quando a maré está alta. Em alguns pontos, porém, curvas e buracos
criam piscinas maravilhosas, renovadas a cada vazão. Esta admirável praia se estende
por algumas milhas em cada direção, salvo apenas em um ponto onde a pequena baía
e a vila de Fulworth despontam.
Minha moradia é solitária. Eu, minha arrumadeira e minhas abelhas temos a
propriedade toda para nós. Meia milha abaixo, porém, está o famoso estabelecimento
de tutoria de Harold Stackhurst, o Gables, bem grande o lugar, com uma contagem alta
de jovens membros se preparando para várias profissões e com uma equipe de muitos
mestres. O próprio Stackhurst foi um campeão de canoagem nos idos tempos e um
acadêmico versátil. Ele e eu sempre fomos amigáveis, desde o dia em que cheguei à
costa e ele era o único homem com quem tinha intimidade o suficiente para que
pudéssemos nos visitar durante as tardes sem um convite.
Próximo ao fim de julho de 1907, houve uma severa ventania, o vento soprava o
canal, amontoando o mar na base das falésias e deixando uma lagoa na virada da maré.
Na manhã da qual falo, o vento havia diminuído, e toda a Natureza estava limpa e
renovada. Era impossível trabalhar em um dia tão agradável, então passeei um pouco
antes do café da manhã para aproveitar o tão primoroso ar. Caminhei pelo caminho da
falésia que levava à descida para a praia. Enquanto andava, escutei um grito às minhas
costas e lá estava Harold Stackhurst balançando as mãos em um caloroso cumprimento.
— Que manhã, Sr. Holmes! Achei que o veria caminhando andando.
— Vejo que está indo nadar.
— Você e seus velhos truques novamente. — Riu ele, dando tapinhas em seu
bolso saliente. — Sim. McPherson começou cedo, e espero o encontrar lá.
Fitzroy McPherson era um mestre da ciência, um íntegro e jeitoso jovem que teve
a vida prejudicada por um problema de coração seguido de febre reumática. Porém, ele
era um atleta natural e se sobressaía em qualquer jogo que não o pressionasse muito.
No verão e no inverno ele ia nadar, e, como também sou nadador, por diversas vezes o
acompanhei.
Naquele momento vimos o homem, sua cabeça aparecendo na beira da falésia,
onde o caminho acabava. Depois, todo seu corpo apareceu no topo, cambaleando como
um bêbado. No instante seguinte, ele jogou as mãos para cima e, com um brado horrível,
caiu por sobre o rosto. Stackhurst e eu nos apressamos à frente — talvez umas cinquenta
jardas — e o viramos de costas. Ele obviamente estava morrendo. Aqueles olhos fundos
e vidrados e as bochechas de um pálido pavoroso não poderiam significar outra coisa.
Um feixe de vida passou por seu rosto por um instante, e ele proferiu duas ou três
palavras como um anseio de aviso. Elas eram distorcidas e indistintas, mas aos meus
ouvidos, as últimas, que saíram como um grito de seus lábios, eram “a Juba-de- Leão”.
Era absolutamente irrelevante e ininteligível e, ainda assim, eu não conseguia torcer o
som em nenhum outro sentido. Então, ele se levantou do chão pela metade, jogou os
braços no ar e caiu de lado. Estava morto.
Meu companheiro estava paralisado pelo súbito horror, mas eu, como muitos
poderiam bem imaginar, estava com todos os sentidos em alerta. E eu precisava estar,
visto que rapidamente se tornou evidente que estávamos na presença de um caso
extraordinário. O homem estava vestido apenas em seu sobretudo Burberry, calças e um
par de sapatos de tecidos desamarrados. Quando ele caiu, seu Burberry, que havia sido
simplesmente jogado ao redor de seus ombros, escorregou, expondo seu torso. Nós
olhamos aquilo com espanto. Suas costas estavam cobertas com linhas vermelho-escuro
como se ele tivesse sido açoitado por um flagelo de arame. O instrumento com que essa
punição havia sido infringida era claramente flexível, já que as longas e raivosas curvas
se estendiam arredondadas por seus ombros e costelas. Havia sangue escorrendo por
sobre seu queixo, pois ele havia mordido seu lábio inferior no paroxismo de sua agonia.
Sua face exaurida e distorcida dizia o quão horrível aquela agonia havia sido.
Eu estava ajoelhado e Stackhurst estava de pé perto do corpo quando uma
sombra se lançou por nós e descobrimos que Ian Murdoch estava ao nosso lado.
Murdoch era o tutor de matemática no estabelecimento, um homem alto, escuro e magro,
tão taciturno e distante que não se pode dizer que alguém já foi seu amigo. Parecia viver
em uma região elevada, onde absurdos matemáticos e seções cônicas pouco o
conectavam à vida cotidiana. Os estudantes o achavam bizarro, e ele até teria sido alvo
de piadas, não fosse o estranho sangue do homem, que se mostrava não apenas em
seus olhos de carvão e seu rosto escuro, mas também nos estouros ocasionais de
temperamento, que só podiam ser descritos como ferozes. Em certa ocasião, tendo sido
atormentado por um pequeno cachorro que pertencia a McPherson, capturou a criatura
e a atirou pela janela de vidro, ação pela qual certamente Stackhurst teria lhe dado uma
carta de dispensa se ele não fosse um professor valioso. Tão estranho e complexo era
o homem que agora aparecia ao nosso lado. Ele parecia estar honestamente chocado
com o acontecimento, embora o incidente com o cachorro pudesse mostrar que não
existia muita simpatia entre ele e o defunto.
— Pobre homem! Pobre homem! O que posso fazer? Como posso ajudar?
— Você estava com ele? Consegue nos dizer o que aconteceu?
— Não, não, eu estava atrasado esta manhã. Não estava nem na praia. Venho
direto do Gables. O que posso fazer?
— Você pode correr até a estação de polícia em Fulworth. Relate o ocorrido.
Sem dizer uma palavra ele fugiu a toda velocidade e eu continuei a lidar com a
situação, enquanto Stackhurst, aturdido pela tragédia, ficou perto do corpo. Minha
primeira tarefa era, naturalmente, notar quem estava na praia. Do alto do caminho eu
conseguia realizar uma varredura completa, e a praia estava completamente deserta,
salvo aquelas duas ou três figuras escuras que podiam ser vistas se movendo em direção
à vila de Fulworth. Tendo me satisfeito com este ponto, desci devagar o caminho. Havia
argila ou marga mole misturada ao calcário e aqui e ali eu vi as mesmas pegadas, ambas
subindo e descendo. Ninguém havia ido à praia por este percurso naquela manhã. Em
dado lugar, observei a marca de uma mão aberta com os dedos em direção ao declive.
Isso só poderia significar que o pobre McPherson havia caído enquanto subia. Também
havia buracos arredondados, que sugeriam que ele havia caído de joelhos mais de uma
vez. Ao final do caminho estava a grande lagoa, deixada pelo recuo da maré. Próximo
ao local, McPherson havia se despido, pois lá estava sua toalha em uma pedra. Estava
dobrada e seca, parecendo então, afinal, que ele nunca havia entrado na água. Uma ou
duas vezes, enquanto eu caçava ao redor do cascalho endurecido, passei por pequenos
amontoados de areia onde a marca de seu sapato de tecido, e também de seu pé,
podiam ser vistos. Este último fato provou que ele estava com tudo pronto para o banho,
embora a toalha indicasse que nunca o havia feito.
E ali estava o problema claramente definido — tão estranho quanto qualquer outro
que já havia me confrontado. O homem não havia estado na praia por mais de um quarto
de hora. Stackhurst havia o seguido vindo do Gables, então não havia dúvidas quanto a
isso. Ele havia saído para um banho e havia se despido, como as pegadas sem sapato
indicavam. Então, ele de repente correu de volta para as roupas — todas desarrumadas
e soltas — e retornou sem se banhar ou sem se secar de forma alguma. E teria sido a
razão para essa mudança de intenção ele ter sido açoitado de uma forma selvagem e
inumana, torturado até que mordeu seus lábios em agonia e só ter tido força suficiente
para rastejar e morrer. Quem teria feito essa barbárie? Havia, por certo, pequenas grutas
e cavernas na base da falésia, mas o sol baixo brilhava diretamente sobre elas, e não
havia lugar algum para se esconder. Também havia aquelas figuras distantes na praia.
Elas pareciam muito longínquas para estarem conectadas com o crime e a grande lagoa
na qual McPherson tinha intenção de nadar estava entre eles, cercada por pedras. No
mar, dois ou três barcos pesqueiros não estavam muito longe. Seus ocupantes poderiam
ser examinados se quiséssemos. Havia vários caminhos a serem seguidos, mas nenhum
que levasse a um objetivo óbvio.
Quando, por fim, retornei ao corpo, vi que um pequeno grupo de transeuntes
curiosos havia se amontado ao seu redor. Stackhurst de certo ainda estava lá, e Ian
Murdoch tinha acabado de chegar com Anderson, o policial da vila, um homem grande,
de bigode ruivo e da raça lenta e sólida de Sussex — uma raça que cobre muito bom
senso com um exterior pesado e silencioso. Ele escutou tudo, tomou nota de tudo o que
dissemos e, finalmente, me chamou.
— Ficaria feliz com um conselho seu, Sr. Holmes. Isso tudo é muito para eu
lidarque eu lide, e serei repreendido por Lewes se eu errar.
Aconselhei-o a contactar seu superior imediato e também um médico; assim como
a não deixar que nada fosse movido e que o menor número possível de novas pegadas
fosse feito até que eles chegassem. No meio tempo, vasculhei os bolsos do morto. Lá
estavam seu lenço, uma larga faca e uma pequena carteira dobrável. Dela, um pedaço
de papel se projetava. Desdobrei-o e entreguei ao policial. Havia escrito, em um rabisco
de uma mão feminina:
— A dor local era, como ele explica, a parte menos significativa do tormento
esquisito.
"Pontadas percorriam o peito, fazendo-me cair como se atingido por uma bala. A
pulsação cessaria e, em seguida, o coração daria seis ou sete saltos, como se
quisesse romper o peito.
— Isso quase o matou, embora ele só tenha sido exposto a isso no oceano
agitado, e não nas águas calmas e estreitas de uma piscina. Ele diz que mal conseguia
se reconhecer depois, com o rosto pálido, enrugado e encolhido. Bebeu conhaque, uma
garrafa inteira, e parece que isso salvou sua vida. Aqui está o livro, inspetor. Deixo-o com
você, e não pode duvidar que ele contém uma explicação completa da tragédia do pobre
McPherson.
— E coincidentemente me exonera — observou Ian Murdoch com um sorriso
irônico. — Não culpo você, inspetor, nem você, Sr. Holmes, suas suspeitas eram
naturais. Sinto que, na véspera de minha prisão, só me livrei ao compartilhar o destino
de meu pobre amigo.
— Não, Sr. Murdoch. Eu já estava no rastro e, se tivesse saído tão cedo quanto
pretendia, poderia muito bem tê-lo salvado dessa experiência terrível.
— Mas como você sabia, Sr. Holmes?
— Sou um leitor onívoro com uma memória estranhamente retentiva para detalhes
insignificantes. Aquela frase, “a Juba-de-Leão”, assombrava minha mente. Eu sabia que
a tinha visto em algum lugar, em um contexto inesperado. Você viu que ela descreve a
criatura. Não tenho dúvidas de que ela estava flutuando na água quando McPherson a
viu, e que essa frase era a única pela qual ele poderia nos transmitir um aviso sobre a
criatura que foi a causa de sua morte.
— Então, pelo menos, estou inocentado — disse Murdoch, levantando-se
lentamente. — Há algumas palavras de explicação que devo dar, pois sei em que direção
suas investigações se dirigiram. É verdade que eu amava a dama, mas, desde o dia em
que ela escolheu meu amigo McPherson, meu único desejo era ajudá-la a ser feliz. Eu
estava completamente satisfeito em me afastar e agir como intermediário entre eles.
Muitas vezes eu levava as mensagens deles, e era porque eu estava em sua
confiança e porque ela era tão querida para mim que me apressei em contar a ela sobre
a morte do meu amigo, para que ninguém me antecipasse de maneira mais repentina e
insensível. Ela não contaria a você, senhor, sobre nossas relações, para não desaprovar
e me fazer sofrer. Mas, com sua permissão, devo tentar voltar para o Gables, pois minha
cama será muito bem-vinda.
Stackhurst estendeu a mão.
— Nossos nervos estavam todos aflorados — disse ele. — Perdoe o que passou,
Murdoch. Nos entenderemos melhor no futuro. — Eles saíram juntos, com os braços
entrelaçados de maneira amigável. O inspetor permaneceu, me encarando em silêncio,
com seus olhos de boi.
— Bem, você conseguiu! — ele exclamou por fim. — Eu já tinha ouvido falar de
você, mas nunca acreditei. É maravilhoso!
Fui obrigado a balançar a cabeça. Aceitar elogios assim seria diminuir meus próprios
padrões.
— Fui lento no começo, culposamente lento. Se o corpo tivesse sido encontrado
na água, dificilmente eu teria perdido. Foi a toalha que me enganou. O pobre homem
nunca pensou em se secar, e assim, por sua vez, fui levado a acreditar que ele nunca
havia estado na água. Por que, então, o ataque de qualquer criatura aquática me
ocorreria? Foi aí que me equivoquei. Ora, ora, inspetor, muitas vezes me atrevi a fazer
brincadeiras com vocês, senhores da polícia, mas Cyanea capillata quase vingou a
Scotland Yard.
Tradutora: Júlia Baltar de Brito
Revisor: Eduardo Lisovski Schmidt
Paratexto
Perfil da tradutora
Ao considerar-se que o Sr. Sherlock Holmes praticou a profissão por vinte e três
anos, e que durante dezessete deles eu pude colaborar com ele e fazer anotações de
seus feitos, fica evidente que eu possuo um vasto material à minha disposição. O
problema nunca foi encontrar, mas escolher. Há a extensa fileira de anuários que ocupa
uma prateleira, e há as maletas repletas de documentos, uma mina de ouro para aquele
que estuda não apenas o crime, como também os escândalos sociais e oficiais do fim da
Era Vitoriana. A respeito desses últimos, posso dizer que aqueles que escrevem cartas
angustiadas, que imploram que a honra de suas famílias ou que a reputação de seus
antepassados não sejam feridas, não têm nada a temer. A discrição e o profundo senso
de honra profissional que sempre representaram meu amigo ainda estão presentes na
escolha dessas memórias, e não haverá abuso de confiança. Eu condeno fortemente,
no entanto, as tentativas que têm sido feitas recentemente de conseguir acessar e
destruir esses documentos. A origem desses ultrajes é conhecida e, se eles se repetirem,
eu tenho a permissão do Sr. Holmes para dizer que toda a história a respeito do político,
do farol e do corvo-marinho treinado será revelada ao público. Há, pelo menos, um leitor
que irá entender.
Não é plausível supor que cada um desses casos deu a Holmes a oportunidade
de mostrar os curiosos dons de instinto e observação que eu me empenhei para
demonstrar nestas memórias. Às vezes, ele tinha que se esforçar muito para colher os
frutos, às vezes eles caíam do céu. Contudo, as mais terríveis tragédias humanas
estavam frequentemente presentes nos casos que lhe surtiam menos oportunidades
pessoais, e é um desses que eu desejo registrar agora. Ao narrá-lo, fiz uma pequena
alteração dos nomes e locais, mas, tirando isso, os acontecimentos são exatamente
como descritos.
Certa manhã — no final de 1896 — eu recebi um bilhete urgente de Holmes
solicitando minha presença. Ao chegar, encontrei-o sentado em uma atmosfera nublada
por fumaça e acompanhado de uma mulher mais velha, robusta e de ar maternal, do tipo
proprietária, sentada na cadeira à sua frente.
— Essa é a Sra. Merrilow, de South Brixton — disse meu amigo com um aceno
de mão. — A Sra. Merrilow não tem objeções ao tabaco, Watson, se você quiser se
satisfazer com seus hábitos repulsivos. Ela tem uma história interessante para contar,
que pode muito bem levar a outros desdobramentos em que sua presença pode ser útil.
— Como eu puder ajudar...
— Entenda, Sra. Merrilow, que se eu for até a Sra. Ronder, prefiro ter uma
testemunha. Faça com que ela compreenda isso antes de chegarmos.
— Que o Senhor o abençoe, Sr. Holmes — disse a nossa convidada —, ela está
tão ansiosa para encontrá-lo que você poderia levar uma legião consigo.
— Então chegaremos no início da tarde. Vamos nos certificar de que as nossas
informações estão corretas antes de começarmos. Se repassarmos os fatos, ajudamos
o Dr. Watson a entender a situação. A senhora disse que a Sra. Ronder é sua inquilina
há sete anos, e que viu o rosto dela apenas uma vez.
— E, por Deus, não queria ter visto! — disse a Sra. Merrilow.
— Estava, pelo que eu entendi, terrivelmente mutilado.
— Bem, Sr. Holmes, dificilmente se diria que é um rosto. É assim se que parecia.
Nosso leiteiro a viu de relance uma vez, enquanto ela espiava pela parte de cima da
janela, e derrubou sua lata de leite no jardim inteiro. É esse o tipo de rosto que ela tem.
Quando a vi — peguei-a de surpresa — ela se cobriu rapidamente e disse: “Agora, Sra.
Merrilow, você finalmente sabe o porquê de eu nunca levantar o meu véu”.
— A senhora sabe alguma coisa sobre a história dela?
— Nada.
— Ela deu referências quando chegou?
— Não, senhor, mas ela deu dinheiro vivo, e muito. Um quarto do valor do aluguel
na mesa, adiantado e sem questionar as condições. Nestes tempos, uma mulher pobre
como eu não pode se dar ao luxo de recusar uma chance como essa.
— Ela apresentou algum motivo para ter escolhido a sua casa?
— A minha casa fica bem afastada da estrada e é mais reservada que a maioria.
Além disso, eu só acomodo uma pessoa e não tenho família. Acredito que ela tenha visto
outras e achou que a minha era a mais adequada para ela. É privacidade que ela busca,
e ela está disposta a pagar por isso.
— A senhora diz que ela nunca mostrou seu rosto, desde o começo, exceto por
esse incidente. Bem, é uma história muito interessante, e não me surpreende que a
senhora queira que seja analisada.
— Eu, não, Sr. Holmes. Estou muito satisfeita, contanto que eu receba o meu
aluguel. Não se poderia ter uma inquilina mais silenciosa, ou que dê menos trabalho.
— Então como as coisas chegaram a esse ponto?
— A saúde dela, Sr. Holmes. Ela parece estar definhando. E tem algo terrível
dentro de sua mente. “Assassino!”, ela grita. “Assassino!”. E uma vez eu a ouvi: “Sua
criatura cruel! Seu monstro!”, ela gritou. Foi durante a noite, e o barulho ecoou pela casa
e me deu arrepios. Então eu fui até ela pela manhã. “Sra. Ronder”, eu disse, “se tiver
algo atormentando a sua alma, tem a igreja”, eu disse, “e tem a polícia. Você deve
conseguir ajuda entre eles”. “Pelo amor de Deus, a polícia não”, disse ela, “e a igreja não
pode mudar o que já aconteceu. No entanto”, ela disse, “eu ficaria mais tranquila se
alguém soubesse a verdade antes de eu morrer”. “Bem”, disse eu, “se você não quiser
os policiais tradicionais, tem esse detetive sobre o qual lemos”... perdão, Sr. Holmes. E
ela, ela se entusiasmou com a ideia. “É ele”, ela disse. “Eu me admiro não ter pensado
nisso antes. Traga-o aqui, Sra. Merrilow, e se ele não vier, diga a ele que eu sou a esposa
do Ronder, do espetáculo de animais selvagens. Diga isso, e dê a ele o nome ‘Abbas
Parva’”. Aqui está como ela escreveu: “Abbas Parva”. “Isso o trará aqui, se ele for o
homem que eu acredito que seja”.
— E isso também acontecerá — comentou Holmes. — Muito bem, Sra. Merrilow.
Eu gostaria de ter uma palavrinha com o Dr. Watson. Isso vai nos ocupar até a hora do
almoço. Por volta das três da tarde, aguarde nossa visita na sua casa, em Brixton.
Nossa convidada mal havia saído requebrando do recinto — nenhum outro verbo
descreveria a forma de andar da Sra. Merrilow — e Sherlock Holmes se atirou
determinadamente na pilha de livros banais que estava no canto. Por alguns minutos,
houve um folhear de páginas constante, e então, com um grunhido de satisfação, ele
encontrou o que buscava. Tão empolgado ele estava que não se levantou, mas sentou-
se no chão como um Buda estranho, com as pernas cruzadas, a enorme pilha de livros
ao seu redor, e um deles aberto sobre seus joelhos.
— O caso me inquietou na época, Watson. Aqui estão minhas anotações para
comprovar. Admito que não pude descobrir nada. Mas, ainda assim, eu estava
convencido de que o legista estava errado. Você não se lembra da tragédia de Abbas
Parva?
— Não, Holmes.
— No entanto, você estava comigo naquela época. Mas, sem dúvidas, a minha
própria interpretação foi muito superficial, pois não havia nada para se comprovar, e
nenhuma das partes havia contratado meus serviços. Se importaria de ler os escritos?
— Não poderia me informar os detalhes?
— Isso pode ser feito facilmente. Acredito que você irá se recordar enquanto eu
falo. Ronder, é claro, era um nome conhecido. Ele era rival de Wombwell e Sanger, dois
dos maiores produtores de espetáculos da época. Há indícios, no entanto, de que ele
começou a beber e que tanto ele quanto seu espetáculo estavam em crise na ocasião
da grave tragédia. A caravana havia parado em Abbas Parva, um pequeno vilarejo em
Berkshire, para passar a noite quando esse terrível episódio aconteceu. Eles estavam a
caminho de Wimbledon, viajando pela estrada, e estavam somente acampando, sem
fazer apresentações, uma vez que o local é tão pequeno que não valeria a pena abrir.
“Eles tinham entre suas exibições um belíssimo leão-da-barbária. Sahara King era
seu nome, e era habitual que, tanto Ronder quanto sua esposa, fizessem exibições
dentro de sua jaula. Aqui, veja, tem uma imagem de uma performance com a qual você
irá perceber que Ronder era um homem enorme e porcino, e que sua esposa era uma
mulher magnífica. Foi declarado no inquérito que havia alguns sinais de que o leão era
perigoso, mas, como de costume, santo de casa não faz milagre, e o fato não foi levado
em consideração.
“Era normal que tanto Ronder quanto sua esposa alimentassem o leão à noite. Às
vezes um, às vezes os dois, mas eles nunca permitiam que outra pessoa o fizesse, pois
acreditavam que enquanto eles fossem os responsáveis pela alimentação, o animal
consideraria que eram amigos e nunca os atacaria. Nessa noite específica, há sete anos,
os dois foram, e, em seguida, ocorreu algo extremamente devastador, cujos detalhes
nunca foram esclarecidos.
“Ao que parece, todos no acampamento foram despertados por volta da meia-
noite pelos rugidos do animal e os gritos da mulher. Os vários tratadores e funcionários
saíram correndo de suas tendas carregando lanternas e, sob a luz delas, uma imagem
terrível foi revelada. Ronder estava caído, com a parte de trás da cabeça esmagada e
marcas profundas de garras no couro cabeludo, a cerca de dez jardas da gaiola, que
estava aberta. Próxima à porta da gaiola, estava deitada de costas a Sra. Ronder, com
a criatura abaixada e rosnando sobre ela. O leão havia dilacerado seu rosto de tal forma
que nunca se acreditou que ela pudesse viver. Diversos homens do circo, liderados por
Leonardo, o homem forte, e Griggs, o palhaço, afastaram a criatura com varas, e ela
voltou para a gaiola onde foi imediatamente trancada. Como o animal se soltou era um
mistério. Acreditava-se que o casal pretendia entrar na gaiola, mas quando a porta foi
aberta, a criatura saltou sobre eles. Não havia nenhum outro elemento de interesse nas
evidências, exceto o fato de que a mulher, em um delírio de agonia, não parava de gritar:
'Covarde! Covarde!' enquanto era carregada de volta para a van em que moravam. Levou
seis meses até que ela estivesse apta a prestar depoimento, mas o inquérito foi
devidamente conduzido, com o veredicto óbvio de morte acidental — informou Sherlock.
— Que outra alternativa poderia ser concebida? — eu disse.
— Pode-se dizer isso. E, no entanto, havia algumas questões que preocupavam
o jovem Edmunds, da Polícia de Berkshire. Um rapaz inteligente! Ele foi enviado para
Allahabad posteriormente. Foi assim que me inteirei do caso, pois ele foi até lá e fumou
um cachimbo ou dois refletindo sobre o assunto.
— Um homem magro, de cabelos loiros?
— Exatamente. Eu sabia que agora você iria pegar o fio da meada.
— Mas o que o inquietava?
— Bem, inquietava a nós dois. Foi muito difícil reconstruir o caso. Observe a
situação do ponto de vista do leão. Ele está solto. O que ele faz? Dá meia dúzia de
passos à frente, o que o leva até Ronder. Ronder se vira para fugir — as marcas das
garras estavam em sua nuca —, mas o leão o derruba. Em seguida, em vez de fugir, ele
volta até a mulher, que estava perto da gaiola, a derruba e mastiga seu rosto. Então,
novamente, aqueles gritos dela parecem sugerir que o marido a havia desamparado de
alguma forma. O que o pobre coitado poderia ter feito para ajudá-la? Percebe a
complexidade?
— Perfeitamente.
— E tem mais uma coisa. Isso me veio à memória agora que estou refletindo sobre
o assunto. Havia algumas evidências de que, no momento em que o leão rugiu e a mulher
gritou, um homem começou a gritar de pânico.
— Sem dúvidas, esse homem era o Ronder.
— Bem, se seu crânio foi esmagado, dificilmente você esperaria ouvi-lo outra vez.
Houve pelo menos duas testemunhas que disseram que os gritos de um homem se
misturaram aos de uma mulher.
— Acredito que, a essa altura, todo o acampamento estava gritando. Com relação
aos outros pontos, acho que posso sugerir uma solução.
— Terei prazer em considerá-la.
— Os dois estavam juntos, a dez jardas da jaula, quando o leão se soltou. O
homem se virou e foi derrubado. A mulher teve a ideia de entrar na jaula e fechar a porta.
Esse era seu único refúgio. Ela foi em direção à gaiola e, assim que entrou, a criatura
correu atrás dela e a derrubou. Ela estava com raiva do marido por ter incentivado a fúria
da fera ao se virar. Se eles tivessem enfrentado o animal, poderiam tê-lo acalmado. Daí
seus gritos de “Covarde!”.
— Brilhante, Watson! Há apenas uma falha na sua interpretação.
— Que falha, Holmes?
— Se ambos estavam a dez jardas da jaula, como a fera pode ter se soltado?
— É possível que eles tivessem algum inimigo que a tenha soltado?
— E por que ela os atacaria com tamanha crueldade se tinha o hábito de brincar
e fazer truques com eles dentro da jaula?
— Possivelmente, o mesmo inimigo fez algo para provocá-la.
Holmes parecia pensativo e permaneceu em silêncio por alguns instantes.
— Bem, Watson, tem um ponto favorável à sua teoria. Ronder era um homem de
muitos inimigos. Edmunds me disse que, quando bebia, ele era horrível. Um homem
enorme e agressivo, ele xingava e batia em todos que entravam em seu caminho.
Acredito que aqueles gritos sobre um monstro, sobre os quais nossa visitante falou, eram
reminiscências noturnas do querido falecido. No entanto, nossas especulações são
inúteis enquanto não dispusermos de todos os fatos. Tem uma travessa de perdiz de
inverno no aparador, Watson, e uma garrafa de Montrachet. Vamos renovar nossas
energias antes de fazer um novo contato com eles.
Quando nossa condução nos deixou na casa da Sra. Merrilow, encontramos
aquela senhora robusta bloqueando a porta aberta de sua humilde, mas reformada
residência. Estava nítido que sua principal preocupação era não perder uma inquilina
valiosa, e ela nos implorou, antes de nos mostrar a porta, que não disséssemos ou
fizéssemos nada que pudesse levar a um fim tão indesejável. Então, depois de
tranquilizá-la, a seguimos pela escada reta e mal-acarpetada e fomos levados ao quarto
da inquilina misteriosa.
Era um ambiente fechado, com mofo e mal ventilado, como era de se esperar,
uma vez que sua moradora raramente saía. Como mantinha animais enjaulados, a
mulher parecia, por uma punição do destino, ter se tornado ela mesma um animal
enjaulado. Ela estava sentada em uma poltrona quebrada, no canto mais escuro da sala.
Longos anos de inércia haviam tornado grosseiras as linhas de sua silhueta, mas, em
algum momento, ela deve ter sido bela, e ainda era grande e voluptuosa. Um denso véu
escuro cobria seu rosto, mas foi cortado perto do lábio superior e revelou uma boca de
formato perfeito e um queixo delicadamente arredondado. Eu poderia muito bem
imaginar que ela havia sido, de fato, uma mulher admirável. Sua voz também era suave
e agradável.
— Meu nome não é desconhecido para você, Sr. Holmes — disse ela. — Imaginei
que isso o traria aqui.
— É verdade, senhora, embora eu não saiba como descobriu que eu estava
interessado no seu caso.
— Eu descobri quando recuperei minha saúde e fui interrogada pelo Sr. Edmunds,
o detetive do condado. Receio ter mentido para ele. Talvez tivesse sido mais prudente
que eu dissesse a verdade.
— Normalmente é mais prudente dizer a verdade. Mas por que a senhora mentiu
para ele?
— Porque o destino de outra pessoa dependia disso. Eu sei que ele era um ser
desprezível, mas, ainda assim, não queria que sua ruína pesasse em minha consciência.
Nós éramos tão próximos... tão próximos.
— Mas esse impedimento foi resolvido?
— Sim, senhor. A pessoa a quem me refiro está morta.
— Então, por que não contar à polícia tudo o que a senhora sabe?
— Porque há outra pessoa que deve ser considerada. Essa outra pessoa sou eu
mesma. Eu não suportaria o escândalo e a exposição pública que resultariam de um
inquérito policial. Não tenho muito tempo de vida, mas desejo morrer sem ser
importunada. Ainda assim, queria encontrar um homem de caráter para quem pudesse
contar minha terrível história, de modo que, quando eu morresse, tudo pudesse ser
esclarecido.
— Agradeço o elogio, senhora. Por outro lado, sou uma pessoa responsável. Não
posso prometer-lhe que, depois que você contar sua história, não julgarei que é meu
dever encaminhar o caso à polícia.
— Acredito que não, Sr. Holmes. Conheço muito bem o seu caráter e os métodos
que utiliza, pois tenho acompanhado o seu trabalho há alguns anos. Ler é o único prazer
que o destino não me tirou, e eu me informo sobre quase tudo o que acontece no mundo.
Porém, de qualquer forma, vou me arriscar quanto ao uso que o senhor fará da minha
tragédia. Contá-la aliviará a minha mente.
— Meu amigo e eu ficaremos felizes em ouvi-la.
A mulher se levantou e tirou de uma gaveta a fotografia de um homem. Ele era
claramente um acrobata profissional, um homem de físico magnífico, fotografado com
seus enormes braços cruzados sobre o peito inflado e um sorriso que despontava sob
seu pesado bigode — o sorriso de autossatisfação de um homem de muitas conquistas.
— Esse é Leonardo — ela disse.
— Leonardo, o homem forte, que prestou depoimento?
— Ele mesmo. E esse... esse é o meu marido.
Era um rosto assustador — um porco humano, ou melhor, um javali humano, pois
era formidável em sua bestialidade. Era possível imaginar aquela boca vil, mordendo e
espumando de raiva, e era possível visualizar aqueles olhos pequenos e cruéis lançando
um olhar de pura maldade ao olhar para o mundo. Desagradável, valentão, bestial —
tudo isso estava escrito naquele rosto flácido.
— Essas duas fotos os ajudarão, senhores, a entender a história. Eu era uma
pobre garota de circo, criada na serragem fazendo saltos no aro antes mesmo de
completar dez anos. Quando me tornei uma mulher, esse homem me amou, se é que
uma luxúria como a dele pode ser chamada de amor, e, em um momento de infelicidade,
eu me tornei sua esposa. Desde aquele dia, eu passei a viver em um inferno, e ele era
o demônio que me atormentava. Não havia ninguém no espetáculo que não soubesse
de seu comportamento. Ele me trocou por outras. Ele me amarrou e me bateu com seu
chicote quando eu me queixei. Todos tinham pena de mim e o odiavam, mas o que
podiam fazer? Todos eles o temiam. Pois ele era terrível o tempo todo, e assassino
quando estava bêbado. Ele foi preso diversas vezes por agressão e por crueldade com
os animais, mas tinha muito dinheiro e as multas não eram nada para ele. Todos os
melhores profissionais nos deixaram, e o espetáculo começou a decair. Somente
Leonardo e eu continuamos, junto com o pequeno Jimmy Griggs, o palhaço. Coitado, ele
não tinha muita palhaçada a fazer, mas fez o que pôde para manter as coisas sob
controle.
“Então Leonardo entrou cada vez mais em minha vida. Veja como ele era. Agora
sei o espírito fraco que estava escondido naquele corpo esplêndido, mas, comparado ao
meu marido, ele parecia o anjo Gabriel. Ele tinha compaixão e me ajudava, até que, por
fim, nossa intimidade se transformou em amor... amor profundo, profundo e apaixonado,
um amor com o qual eu sonhava, mas que nunca esperei sentir. Meu marido suspeitava,
mas acho que ele era tão valentão quanto covarde, e que Leonardo era o único homem
de quem ele tinha medo. Ele se vingou de seu próprio modo, torturando-me mais do que
nunca. Uma noite, meus gritos levaram Leonardo à porta de nossa van. Quase
aconteceu uma tragédia naquela noite, e logo meu amante e eu entendemos que isso
não poderia ser evitado. Meu marido não podia continuar vivo. Decidimos que ele deveria
morrer.
“Leonardo tinha um cérebro astucioso e calculista. Foi ele quem planejou tudo.
Não digo isso para responsabilizá-lo, pois eu estava disposta a acompanhá-lo em cada
trecho do caminho. Fizemos uma clava — Leonardo o fez — e na ponta de chumbo ele
fixou cinco longos pregos de aço, com as pontas para fora, com uma disposição similar
à da pata do leão. Isso serviria para desferir o golpe mortal em meu marido, deixando
evidências de que foi o leão, o qual iríamos soltar, que havia cometido o ato.
“Era uma noite escura como breu quando meu marido e eu descemos, como era
nosso costume, para alimentar o animal. Levamos conosco a carne crua em um balde
de metal. Leonardo estava esperando na lateral da grande van pela qual deveríamos
passar antes de chegarmos à gaiola. Ele era muito lento e passamos por ele antes que
conseguisse atacar, mas ele nos seguiu na ponta dos pés e ouvi o estrondo quando a
clava esmagou o crânio de meu marido. Meu coração vibrou de alegria com aquele som.
Dei um salto para frente e soltei a trava que segurava a porta da jaula do grande leão.
“E então o fato terrível aconteceu. Vocês já devem ter ouvido falar do quão rápido
essas criaturas sentem o cheiro de sangue humano, e do quanto isso as instiga. Algum
instinto estranho disse à criatura em apenas um instante que um ser humano havia sido
morto. Quando deslizei as barras, ela se soltou e veio para cima de mim em um instante.
Leonardo poderia ter me salvado. Se ele tivesse corrido para a frente e golpeado a fera
com sua clava, poderia tê-la assustado. Mas o homem perdeu a coragem. Eu o ouvi
gritar de medo e então o vi se virar e fugir. No mesmo instante, os dentes do leão se
chocaram contra meu rosto. Seu hálito quente e fétido já havia me intoxicado e eu mal
tinha consciência da dor. Com as palmas das mãos, tentei empurrar as grandes
mandíbulas úmidas e manchadas de sangue para longe de mim e gritei por socorro. Eu
estava consciente de que o acampamento estava se alvoroçando, e então me lembrei
vagamente de um grupo de homens. Leonardo, Griggs e outros, arrastando-me para fora
das patas da criatura. Essa foi minha última lembrança, Sr. Holmes, por um longo mês.
Quando voltei a mim e me vi no espelho, praguejei aquele leão... oh, como eu o
praguejei!... não porque ele havia arrancado minha beleza, mas porque não havia
arrancado minha vida. Eu só tinha um desejo, Sr. Holmes, e tinha dinheiro suficiente para
satisfazê-lo. Era me cobrir para que meu pobre rosto não fosse visto por ninguém, e
morar em um lugar onde ninguém que eu conhecesse pudesse me encontrar. Isso era
tudo o que me restava fazer... e foi o que fiz. Uma pobre criatura ferida que se arrastou
para seu buraco para morrer... esse é o fim de Eugenia Ronder — concluiu ela.
Ficamos sentados em silêncio por algum tempo depois que a infeliz mulher contou
sua história. Então, Holmes esticou seu longo braço e deu um tapinha na mão dela com
uma demonstração de simpatia como poucas vezes eu o vi fazer.
— Pobre garota! — disse ele. — Pobre garota! Os rumos do destino são realmente
difíceis de compreender. Se não houver alguma forma de compensação no futuro, então
o mundo é uma piada de mau gosto. Mas e esse homem, Leonardo?
— Nunca mais o vi ou tive notícias dele. Talvez eu tenha me enganado ao me
sentir tão amargurada com relação a ele. Ele tanto poderia ter amado uma das
aberrações que carregamos pelo país quanto a coisa que o leão havia deixado. Mas o
amor de uma mulher não é descartado tão facilmente. Ele me deixou sob as garras da
fera, me abandonou quando eu mais precisava e, ainda assim, não consegui entregá-lo
à forca. Quanto a mim, não me importava com o que aconteceria comigo. O que poderia
ser mais terrível do que minha própria vida? Mas eu estava entre Leonardo e seu destino.
— E ele está morto?
— Ele se afogou no mês passado quando se banhava próximo a Margate. Li sobre
a sua morte no jornal.
— E o que ele fez com essa clava de cinco garras, que é a parte mais singular e
engenhosa de toda a sua história?
— Não sei dizer, Sr. Holmes. Há uma pedreira de calcário perto do acampamento,
com um lago verde e fundo na base. Talvez nas profundezas desse lago...
— Bem, isso não tem muita importância agora. O caso está encerrado.
— Sim — disse a mulher —, o caso está encerrado.
Tínhamos nos levantado para ir embora, mas havia algo na voz da mulher que
despertou a atenção de Holmes. Ele se virou rapidamente para ela.
— Sua vida não lhe pertence — disse ele. — Mantenha-se fora disso.
— Qual é a importância dela para alguém?
— Como é possível saber? O exemplo do sofrimento paciente é, por si só, a mais
preciosa de todas as lições para um mundo impaciente.
A resposta da mulher foi terrível. Ela levantou o véu e deu um passo à frente, em
direção à luz.
— Gostaria de saber se o senhor suportaria isto — disse ela.
Era horrível. Não há palavras para descrever a aparência de um rosto quando o
próprio rosto não existe mais. Dois belos olhos castanhos, vivos, olhando tristemente a
partir daquela ruína aterradora, apenas tornaram a visão ainda mais terrível. Holmes
ergueu a mão em um sinal de apoio e compaixão, e juntos saímos da sala.
Dois dias depois, quando encontrei meu amigo, ele apontou com certo orgulho
para um pequeno frasco azul sobre sua lareira. Eu o peguei. Havia um rótulo vermelho
de veneno. Um agradável aroma de amêndoas tomou o ar quando o abri.
— Ácido cianídrico? — eu disse.
— Exatamente. Chegou pelo correio. "Envio-lhe minha tentação. Vou seguir seu
conselho". Essa era a mensagem. Creio, Watson, que podemos supor o nome da
corajosa mulher que a enviou.
Tradutor: Charlie Milo Bergo
Revisora: Larissa Silva Leitão Daroda
Paratexto
Perfil do tradutor
Tradutor, revisor e pesquisador. Bacharel em Tradução Português-Inglês e
licenciando em Português-Francês pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Mestrando do PPG Estudos Literários, na linha 3 – Criação Literária (escrita criativa,
tradução e ensino) e membro do grupo de pesquisa Prisma – Interculturalidade e
Tradução, também pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
A AVENTURA DO CASARÃO SHOSCOMBE
Paratexto
Perfil do tradutor
É tradutor generalista com formação pela UFJF, além de ser licenciado em inglês
e português pela mesma instituição. É pesquisador em linguística, em nível de
doutorado, na área de aquisição de L2. Publicou, enquanto tradutor, o artigo “Chronic
Traumatic Encephalopathy in Sports Practice: A Literature Review”, pela Thieme, nos
Arquivos Brasileiros de Neurocirurgia.
AS AVENTURAS DO COLORISTA APOSENTADO
Caro Watson:
Há alguns pontos de contato que eu gostaria de estabelecer com o Sr. Josiah
Amberley. Quando eu tiver feito isso, poderemos encerrar o caso – ou não. Peço-lhe
apenas que esteja disponível por volta das três horas, pois acho possível que eu
precise de você.
– S. H.
Não soube do Holmes o dia todo, mas ele retornou na hora combinada, sério,
preocupado e distante. Nessas horas era mais sábio deixá-lo com seus pensamentos.
— Amberly já esteve aqui?
— Não.
— Ah! Estou esperando por ele.
Ele não ficou desapontado, pois logo o senhor chegou com uma expressão muito
preocupada e intrigada em seu rosto austero.
— Recebi um telegrama, Sr. Holmes. Não consegui compreender — ele o
entregou o telegrama e Holmes o leu em voz alta.
— “Venha de imediato. Posso lhe dar informações sobre sua perda recente. –
Elman. – O Vicariato.”
— Enviado às 2h10 de Little Purlington — disse Holmes. — Little Purlington fica
em Essex, creio eu, não muito longe de Frinton. Bem, é claro que você vai começar
imediatamente. Isso é evidentemente de uma pessoa responsável, o vigário do lugar.
Onde está meu Crockford? Sim, aqui está ele: “J. C. Elman, M.A., morador de Moosmoor
com Little Purlington”. Procure os trens, Watson.
— Há um às 5:20 saindo da Liverpool Street.
— Excelente. É melhor você ir com ele, Watson. Ele pode precisar de ajuda ou de
algum conselho. Claramente temos uma crise nesse caso.
Entretanto, nosso cliente não parecia estar nem um pouco preparado para
começar.
— Isso é completamente absurdo, Sr. Holmes — disse ele. — O que esse homem
pode, possivelmente, saber sobre o que ocorreu? É um desperdício de tempo e dinheiro.
— Ele não o teria enviado um telegrama se não soubesse de alguma coisa.
Comunique imediatamente que você está a caminho.
— Não acho que eu deva ir.
Holmes assumiu seu aspecto mais severo.
— Seria a pior impressão possível, tanto para a polícia quanto para mim, Sr.
Amberley, se, ao surgir uma pista tão óbvia, o senhor se recusasse a segui-la.
Sentiríamos que o senhor não estava realmente empenhado nessa investigação.
Nosso cliente pareceu horrorizado com a sugestão.
— Mas é claro que eu irei, se você coloca as coisas nessa perspectiva — disse.
— À primeira vista, parece absurdo supor que essa pessoa saiba alguma coisa, mas se
você acha...
— Sim, eu acho — disse Holmes com ênfase. E, assim, nós começamos nossa
viagem. Holmes me puxou para o lado antes de sairmos do quarto para me dar um
conselho, o que mostrou que ele considerou a questão como importante. — Faça o que
fizer, certifique-se de que ele realmente vá — disse ele. — Se ele fugir ou voltar, vá até
a central telefônica mais próxima e envie a única palavra "preso". Eu providenciarei aqui
para que ela chegue até mim, onde quer que eu esteja.
Little Purlington não é um lugar fácil de chegar, pois fica em uma ramificação. A
lembrança que tenho da viagem não é agradável, pois o tempo estava quente, o trem
era lento e meu companheiro era rabugento e silencioso, quase não falava, a não ser
para fazer um ocasional comentário sardônico sobre a futilidade de nossos
procedimentos. Quando finalmente chegamos à pequena estação, foram dois
quilômetros de viagem até chegarmos ao Vicariato, onde um clérigo grande, solene e
bastante pomposo nos recebeu em seu escritório. Nosso telegrama estava diante dele.
— Bom, senhores — ele perguntou — em que posso lhes ajudar?
— Nós viemos — expliquei — em resposta ao seu telegrama.
— Meu telegrama! Eu não enviei nenhum telegrama.
— Me refiro ao telegrama que você enviou ao Sr. Josiah Amberley acerca de sua
mulher e seu dinheiro.
— Se isso é uma piada, é uma de muito mal gosto — disse o vigário com raiva.
— Eu nunca ouvi falar do senhor ao que você se refere e não enviei nem um telegrama
a ninguém.
Nosso cliente e eu olhamos um para o outro com espanto.
— Talvez haja algum engano — disse eu. — Será que existem dois vicariatos?
Aqui está o próprio telegrama, assinado por Elman e datado do Vicariato.
— Há apenas um vicariato, senhor, e apenas um vigário, e esse telegrama é uma
falsificação escandalosa, cuja origem certamente será investigada pela polícia. Enquanto
isso, não vejo nenhum objetivo possível em prolongar essa conversa.
Assim, o Sr. Amberley e eu nos encontramos na beira da estrada, no que me
pareceu ser o vilarejo mais primitivo da Inglaterra. Fomos até o escritório do telégrafo,
mas já estava fechado. No entanto, havia um telefone no pequeno Railway Arms e, por
meio dele, entrei em contato com Holmes, que compartilhou de nosso espanto com o
resultado de nossa viagem.
— Muito peculiar! — disse a voz distante. — Extraordinário! Temo, meu caro
Watson, que não haja trem de volta hoje à noite. Sem querer, eu os condenei aos
horrores de uma pousada no interior. No entanto, há sempre a Natureza, Watson – a
Natureza e Josiah Amberley – você pode estar em estreita comunhão com ambos. —
Ouvi sua risada seca enquanto ele se afastava.
Logo ficou claro para mim que a reputação de avarento do meu companheiro não
era infundada. Ele havia reclamado das despesas da viagem, insistido em viajar na
terceira classe e agora estava reclamando da conta do hotel. Na manhã seguinte,
quando finalmente chegamos a Londres, era difícil dizer qual de nós estava com o pior
humor.
— É melhor você ir à Baker Street — disse eu. — O Sr. Holmes pode ter algumas
instruções novas.
— Se elas não valerem mais do que as últimas, não serão de muita utilidade —
disse Amberley com uma careta malévola. Mesmo assim, ele me manteve informado. Eu
já havia avisado Holmes por telegrama sobre a hora de nossa chegada, mas
encontramos uma mensagem dizendo que ele estava em Lewisham e nos esperaria lá.
Isso foi uma surpresa, mas uma surpresa ainda maior foi descobrir que ele não estava
sozinho na sala de estar de nosso cliente. Um homem de aparência severa e impassível
estava sentado ao lado dele, um homem moreno com óculos de grau e um grande broche
maçônico saindo da gravata.
— Este é o Sr. Barker, meu amigo — disse Holmes. — Ele também tem se
interessado pelos seus negócios, Sr. Josiah Amberley, porém temos trabalhado de forma
independente. No entanto, ambos temos a mesma pergunta a lhe fazer!
O Sr. Amberley se sentou pesadamente. Ele pressentia um perigo iminente.
Percebi isso em seus olhos tensos e em suas feições contorcidas.
— Qual é a pergunta, Sr. Holmes?
— Somente essa: O que você fez com os corpos?
O homem se levantou com um grito rouco. Ele se agarrou ao ar com suas mãos
ossudas. Sua boca estava aberta e, por um instante, ele se parecia com uma horrível
ave de rapina. Naquele breve instante, tivemos um vislumbre do verdadeiro Josiah
Amberley, um demônio desfigurado com uma alma tão distorcida quanto seu corpo. Ao
cair de volta em sua cadeira, ele levou a mão aos lábios como se quisesse abafar uma
tosse. Holmes agarrou sua garganta como um tigre e virou seu rosto para o chão. Uma
bolinha branca caiu de entre seus lábios ofegantes.
— Sem atalhos, Josiah Amberley. As coisas devem ser feitas de forma decente e
em ordem. O que acha disso, Barker?
— Tenho um carro nos esperando na porta — disse nossa taciturna companhia.
— São somente algumas centenas de jardas até a estação. Iremos juntos. Você
pode ficar aqui, Watson. Devo estar de volta em meia hora.
O velho colorista tinha a força de um leão em seu grande tronco, mas estava
indefeso nas mãos dos dois experientes em lidar com homens. Contorcendo-se e
resistindo, ele foi arrastado até o carro que o esperava, e eu fui deixado em minha vigília
solitária na casa de maus presságios. Em menos tempo do que ele havia dito, entretanto,
Holmes estava de volta, em companhia de um jovem e inteligente inspetor de polícia.
— Deixei Barker para cuidar das formalidades — disse Holmes. — Você ainda
não conheceu o Barker, Watson. Ele é meu odiado rival na costa de Surrey. Quando
você disse um homem alto e moreno, não foi difícil para mim completar a imagem. Ele
tem vários casos bons em seu crédito, não tem, inspetor?
— Certamente ele interferiu algumas vezes — respondeu o inspetor
reservadamente.
— Os métodos dele são irregulares, sem dúvidas, como os meus. Os irregulares
são úteis às vezes, sabe. O senhor, por exemplo, com sua advertência obrigatória de
que tudo o que ele dissesse seria usado contra ele, jamais poderia ter enganado esse
patife, levando-o ao que é praticamente uma confissão.
— Talvez não. Porém chegaremos lá mesmo assim, Sr. Holmes. Não imagine que
não tenhamos nossas próprias opiniões sobre esse caso e que não teríamos colocado
nossas mãos em nosso homem. O senhor vai nos desculpar por nos sentirmos ofendidos
quando o senhor faz uso de métodos que não podemos usar e, assim, nos rouba todo o
crédito.
— Não haverá roubo algum, MacKinnon. Eu lhe asseguro que vou me retirar de
agora em diante e, quanto a Barker, ele não fez nada além do que eu já o disse.
O inspetor pareceu consideravelmente aliviado.
— Isso é muito bonito de sua parte, Sr. Holmes. Elogios ou acusações pouco
importam para o senhor, mas, para nós, é muito diferente quando os jornais começam a
fazer perguntas.
— Precisamente. Mas, de qualquer forma, é certo que eles farão perguntas e,
portanto, seria bom ter respostas. O que você dirá, por exemplo, quando o repórter
inteligente e empreendedor lhe perguntar quais foram os pontos exatos que despertaram
sua suspeita e finalmente lhe deram uma convicção certeira sobre os fatos?
O inspetor pareceu perplexo.
— Ainda não temos fatos muito concretos, Sr. Holmes. Você diz que o prisioneiro,
na presença de três testemunhas, praticamente tendo confessado por tentar cometer
suicídio, que ele matou sua mulher e sua amante. Que outros fatos você tem?
— Você providenciou uma busca?
— Há três policiais a caminho.
— Então você logo terá o fato mais claro de todos. Os corpos não podem estar
muito longe. Tente os porões e o jardim. Não deve demorar muito para escavar os
lugares prováveis. Esta casa é mais velha do que os canos de água. Deve haver um
poço abandonado em algum lugar. Tente sua sorte lá.
— Mas como você soube disso e como foi feito?
— Primeiro, mostrarei como foi feito e, depois, darei a explicação que lhe é devida
e muito mais ao meu amigo sofrido que tem sido inestimável. Mas, primeiro, eu gostaria
de lhe dar uma visão da mentalidade desse homem. É uma mentalidade muito incomum
– tanto que acho mais provável que seu destino seja Broadmoor do que o cadafalso. Ele
tem, em grande parte, o tipo de mente que se associa mais à natureza italiana medieval
do que ao britânico moderno. Ele era um avarento miserável que, com suas atitudes
mesquinhas, tornou sua esposa tão miserável que ela era uma presa fácil para qualquer
aventureiro. Esse tipo de pessoa entrou em cena na figura do médico que jogava xadrez.
Amberley era excelente no xadrez – uma característica, Watson, de uma mente ardilosa.
Como todos os malfeitores, ele era um homem ciumento, e seu ciúme se tornou uma
mania frenética. Com ou sem fundamento, ele suspeitava de uma intriga. Decidiu se
vingar e planejou tudo com uma esperteza diabólica. Venha cá!
Holmes nos conduziu pelo corredor com tanta certeza como se já tivesse vivido
naquela casa e parou na porta aberta do quarto-forte.
— Argh! Que cheiro de tinta horroroso! — gritou o inspetor.
— Essa foi nossa primeira pista — disse Holmes. — Você pode agradecer à
observação do Dr. Watson por isso, apesar de não ter conseguido fazer a inferência.
Isso me colocou na trilha. Por que esse homem, em um momento como esse, estaria
enchendo sua casa de odores fortes? Obviamente, para encobrir algum outro cheiro que
ele desejava esconder – algum cheiro de culpa que sugerisse suspeitas. Então surgiu a
ideia de um cômodo como o que você vê aqui, com porta e grade de ferro – um cômodo
hermeticamente fechado. Juntando esses dois fatos, para onde eles levam? Eu só
poderia determinar isso examinando a casa pessoalmente. Eu já tinha certeza de que o
caso era sério, pois havia examinado a tabela de bilheteria do Haymarket Theatre – outro
feito dos olhos de lince do Dr. Watson – e tinha certeza de que nem o B30 nem o B32 do
círculo superior haviam sido ocupados naquela noite. Portanto, Amberley não tinha ido
ao teatro e seu álibi caiu por terra. Ele cometeu um deslize grave ao permitir que meu
astuto amigo notasse o número do assento ocupado por sua esposa. Agora surgiu a
questão de como eu poderia examinar a casa. Enviei um agente ao vilarejo mais
impossível que pude imaginar e enviei meu homem para lá em um horário em que ele
não poderia voltar. Para evitar qualquer erro, o Dr. Watson o acompanhou. O nome do
bom vigário eu tirei, é claro, do meu Crockford. Clareei as coisas para você?
— Quanta maestria — disse o inspetor em um tom admirado.
— Sem medo de interrupções, comecei a arrombar a casa. O arrombamento
sempre foi uma profissão alternativa, caso eu quisesse adotá-la, e tenho poucas dúvidas
de que eu teria saído na frente. Observe o que encontrei. Você está vendo o tubo de gás
ao longo do rodapé por aqui. Muito bem. Ele sobe no ângulo da parede e há uma torneira
aqui no canto. O cano vai até ao quarto-forte, como você pode ver, e termina naquela
rosa de gesso no centro do teto, onde foi ocultado pela ornamentação. Essa extremidade
está totalmente aberta. A qualquer momento, ao abrir a torneira externa, o cômodo pode
ser inundado com gás. Com a porta e a trava fechadas e a torneira aberta, eu não daria
dois minutos de consciência a ninguém que estivesse trancado naquela pequena
câmara. Não sei com que artifício diabólico ele os atraiu para lá, mas, uma vez dentro da
porta, eles ficaram à sua mercê.
O inspetor examinou o cano com interesse.
— Um de nossos policiais mencionou o cheiro de gás — disse ele. — Mas é claro
que a janela e a porta estavam abertas na ocasião e a tinta – ou parte dela – já estava
por aqui. Ele havia começado o trabalho de pintura no dia anterior, de acordo com sua
história. Mas e agora, Sr. Holmes?
— Bem, então ocorreu um incidente que foi bastante inesperado para mim. Eu
estava entrando pela janela da despensa no início da madrugada quando senti uma mão
dentro do meu colarinho e uma voz disse: "Agora, seu malandro, o que você está fazendo
aí?”. Quando consegui virar a cabeça, olhei para os óculos coloridos do meu amigo e
rival, o Sr. Barker. Foi uma reunião curiosa que nos fez sorrir. Parece que ele havia sido
contratado pela família do Dr. Ray Ernest para fazer algumas investigações e havia
chegado à mesma conclusão sobre a autoria do crime. Ele observou a casa por alguns
dias e identificou o Dr. Watson como uma das pessoas obviamente suspeitas que haviam
visitado o local. Ele dificilmente conseguiria prender Watson, mas quando viu um homem
de fato saindo pela janela da despensa, ele não conseguiu mais se segurar. É claro que
eu lhe contei como as coisas estavam e continuamos o caso juntos.
— Por que ele? Por que não nós?
— Porque estava em minha mente fazer aquele pequeno teste que deu
admiravelmente muito certo. Receio que você não teria ido tão longe.
O inspetor sorriu.
— Bem, talvez não. Entendo que tenho a sua palavra, Sr. Holmes, de que o senhor
sairá do caso agora e que nos confiará todos os seus resultados.
— Com certeza, esse é sempre o meu costume.
— Bem, em nome da força policial, eu lhe agradeço. Parece um caso claro, como
o senhor disse, e não deve haver muita dificuldade com os corpos.
— Vou lhe mostrar uma pequena e sombria evidência — disse Holmes — tenho
certeza de que o próprio Amberley nunca a observou. Você obterá resultados, inspetor,
se sempre se colocar no lugar do outro e pensar no que você mesmo faria. Isso requer
um pouco de imaginação, mas compensa. Agora, vamos supor que você estivesse
trancado neste pequeno quarto, não tivesse dois minutos de vida, mas quisesse se
vingar do demônio que provavelmente estava zombando de você do outro lado da porta.
O que você faria?
— Escreveria uma mensagem.
— Exatamente. Você gostaria de contar às pessoas como você morreu. Escrever
em um papel não adianta. Isso daria para ver. Se você escrevesse na parede, alguém
poderia se apoiar nela. Agora, olhe aqui! Logo acima do rodapé está rabiscado com um
lápis roxo permanente: “Nós fo...” Isso é tudo.
— O que você acha que é?
— Bem, está a apenas um pé acima do chão. O pobre coitado estava no chão
morrendo quando a escreveu. Ele perdeu os sentidos antes de terminar.
— Ele estava escrevendo: “Nós fomos assassinados”.
— Foi assim que eu entendi. Se você encontrar um marcador permanente no
corpo...
— Vamos procurar, pode ter certeza. Mas esses títulos? É evidente que não houve
roubo algum. E, no entanto, ele possuía esses títulos. Nós verificamos isso.
— Pode ter certeza de que ele os tem escondidas em um lugar seguro. Quando
toda a fuga tivesse se tornado história, ele os descobriria de repente e anunciaria que o
casal culpado se arrependeu e devolveu o que foi saqueado ou o deixou cair no caminho.
— Você certamente parece ter solucionado todas as dificuldades — disse o
inspetor. — É claro que ele tinha a obrigação de nos chamar, mas não consigo entender
por que ele procurou você.
— Pura arrogância! — respondeu Holmes. — Ele se sentia tão inteligente e tão
seguro de si que imaginava que ninguém poderia pegá-lo. Ele podia dizer a qualquer
vizinho desconfiado: “Veja as medidas que tomei. Consultei não apenas a polícia, mas
até mesmo Sherlock Holmes”.
O inspetor riu.
— Vamos perdoá-lo por seu “até mesmo”, Sr. Holmes — disse ele, — é um
trabalho tão profissional quanto me lembro.
Alguns dias depois, meu amigo me entregou um exemplar do jornal quinzenal
North Surrey Observer. Sob uma série de manchetes chamativas, que começavam com
“O horror de Haven” e terminavam com “Brilhante Investigação Policial”, havia uma
coluna cheia de texto que apresentava o primeiro relato consecutivo do caso. O
parágrafo final é típico de todo o caso. Ele dizia o seguinte:
— Ora, ora, Mackinnon é um bom sujeito — disse Holmes com um sorriso bem-
humorado. — Pode arquivar isso em nossos arquivos, Watson. Algum dia a história
verdadeira poderá ser contada.
Organização e Supervisão:
Carolina Alves Magaldi e Larissa Leitão Daroda
Capa e diagramação:
Jady Forte D.signer
ISBN:
978-65-00-86827-2