LIvro de Casos de Sherlock Holmes

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O LIVRO DE C ASOS D E SHER LOCK H OLMES

Carolina Alves Magaldi


Larissa Silva Leitão Daroda

A presente coletânea, O livro de casos de Sherlock Holmes (ou The case-book of


Sherlock Holmes, em inglês) compreende doze contos publicados inicialmente na revista
inglesa Strand Magazine entre 1921 e 1927 que têm como protagonista Sherlock
Holmes, renomado e brilhante detetive fictício que moldou a forma como hoje
percebemos narrativas de investigação.
O impulso criador desse marco da literatura mundial foi Sir Arthur Conan Doyle
(1859-1930), escritor e médico escocês. Protagonista de diversos contos e um romance
publicados por Conan Doyle desde 1897, Holmes estreou na obra “Um Romance em
Vermelho”. Seu amigo e coadjuvante, Dr. John Watson, foi o narrador da maior parte
das histórias do detetive. Médico e ex-militar, Watson foi o parceiro paciente e
observador, além de catalisador do raciocínio rápido e dedutivo de Sherlock Holmes e,
por muito tempo, seu colega de apartamento na Baker Street, 221B.
Conan Doyle não se restringiu à escrita de histórias de detetive. Detinha especial
predileção pelo romance histórico e também se dedicou a algumas obras na área do
espiritismo e da não-ficção. Foi condecorado cavaleiro em 1902 por seus trabalhos em
um hospital durante a Guerra dos Bôeres, na África do Sul, experiência que se reflete
em algumas de suas histórias, como O Soldado Desvanecido, presente nesta coletânea,
e na personagem de John H. Watson, médico ferido na Segunda Guerra Anglo-Afegã.
Trazer a presente obra a um grande público de língua portuguesa foi, portanto,
um desafio e uma grande honra. O projeto para tradução deste livro nasceu no âmbito
da disciplina dedicada à Tradução Literária do curso Bacharelado em Letras-Tradução
Inglês-Português da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nesta disciplina, foi
desenvolvido um projeto para tradução dos doze contos, organizado pela professora
Carolina Magaldi e pela estagiária doutoranda Larissa Daroda. A maior parte dos contos,
portanto, foi traduzida e revisada por alunos desta disciplina, e os demais por integrantes
do grupo de pesquisa Prisma Interculturalidade e Tradução, da mesma instituição, após
ampla discussão sobre o escopo e os parâmetros gerais da tradução em um processo
colaborativo.
Cada conto conta com um paratexto redigido pelo próprio tradutor, apresentando
alguns desafios tradutórios e suas soluções, assim como particularidades do texto
traduzido. Espera-se que a iniciativa sirva de estímulo para a leitura do mestre das
histórias de detetive, assim como que possibilite um vislumbre do processo tradutório.
Sumário
Tradutores investigadores de Sherlock ....................................................................... 2
Prefácio ....................................................................................................................... 5
O CLIENTE ILUSTRE.................................................................................................. 7
O SOLDADO DESVANECIDO .................................................................................. 36
A AVENTURA DA PEDRA MAZARIN ....................................................................... 58
A AVENTURA DAS TRÊS EMPENAS ...................................................................... 78
A AVENTURA DO VAMPIRO DE SUSSEX .............................................................. 98
A AVENTURA DOS TRÊS GARRIDEBS ................................................................ 119
O PROBLEMA DA THOR BRIDGE ......................................................................... 137
A AVENTURA DO HOMEM RASTEJANTE ............................................................ 166
A AVENTURA DA JUBA-DE-LEÃO ......................................................................... 189
A AVENTURA DA INQUILINA DE ROSTO VELADO .............................................. 212
A AVENTURA DO CASARÃO SHOSCOMBE ......................................................... 226
A AVENTURA DO COLORISTA APOSENTADO .................................................... 246
Ficha Tecnica .......................................................................................................... 264
Temo que o Sr. Sherlock Holmes possa se tornar como um daqueles tenores
populares que, tendo sobrevivido ao seu tempo, ainda são tentados a fazer repetidas
reverências de despedida para suas audiências indulgentes. Isso deve cessar, e ele deve
seguir o caminho de toda carne, material ou imaginária. Gostamos de pensar que existe
algum limbo fantástico para os filhos da imaginação, algum lugar estranho e impossível
onde os namorados de Fielding1 ainda podem fazer amor com as belas de Richardson2,
onde os heróis de Scott3 ainda podem pavonear-se, os deliciosos Cockneys de Dickens4
ainda fazem rir, e os mundanos de Thackeray5 continuam suas carreiras repreensíveis.
Talvez em algum canto humilde de tal Valhalla6, Sherlock e seu Watson possam
encontrar um lugar por um tempo, enquanto algum detetive mais astuto com algum
companheiro menos astuto ainda pode preencher o palco que eles deixaram vago.
Sua carreira foi longa — embora seja possível exagerá-la; cavalheiros decrépitos
que se aproximam de mim e declaram que suas aventuras formaram a leitura de sua
infância não encontram de mim a resposta que eles parecem esperar. Ninguém fica
ansioso para que suas datas pessoais sejam tratadas com tanta indelicadeza. Aliás,

1 Henry Fielding, romancista inglês do século XVIII, introdutor do narrador onisciente. Escreveu livros
como The history of Tom Jones, a foundling (1749) e The Lovers Assistant – new art of love (1740).
2 Samuel Richardson, romancista e editor inglês do século XVIII. Suas obras mais conhecidas são três
romances epistolares: Pamela (1740), Clarissa (1747), e A História de Sir Charles Grandison (1753).
3 Sir Walter Scott, romancista, poeta, dramaturgo e historiador escocês, que estabeleceu os parâmetros
do romance histório no início do século XIX. Publicou sua maior obra, Ivanhoe em 1820.
4 Charles Dickens, romancista inglês tido por historiadores da literatura como o maior romancista da Era
Vitoriana, retratava, frequentemente, em seus livros o sotaque cockney e seus falantes. É autor de obras
clássicas como Grandes Esperanças (1860) e Oliver Twist (1837).
5 William Makepeace Thackeray, romancista inglês da Era Vitoriana, tendo escrito livros renomados
como Feira das Vaidades (1848) e As Memórias de Barry Lyndon (1844).
6 Segundo a mitologia nórdica, Valhalla era o palácio dos mortos heroicos.
Holmes estreou em Um estudo em vermelho e em O signo dos quatro, dois pequenos
livrinhos que apareceram entre 1887 e 1889. Foi em 1891 que “Um escândalo na
Boêmia”, o primeiro conto da extensa série, foi publicado na The Strand Magazine. O
público parecia grato e desejoso de mais, de modo que desde aquela data, trinta e nove
anos atrás, eles foram produzidos em uma série fragmentada que agora contém nada
menos que cinquenta e seis histórias, republicadas em As Aventuras, As Memórias, O
Retorno e O último adeus. E restam esses doze publicados durante os últimos anos que
são aqui produzidos sob o título de The Case Book of Sherlock Holmes. Ele começou
suas aventuras no coração da era vitoriana tardia, continuou durante o reinado muito
curto de Eduardo7 e conseguiu manter seu pequeno nicho mesmo nesses dias febris.
Portanto, seria correto dizer que aqueles que leram sobre ele pela primeira vez, quando
jovens, viveram para ver seus próprios filhos adultos seguindo as mesmas aventuras na
mesma revista. É um exemplo notável da paciência e lealdade do público britânico.
Eu estava determinado a dar cabo de Holmes na conclusão de As Memórias, pois
senti que minhas energias literárias não deveriam ser muito direcionadas para um canal.
Aquele rosto pálido e bem definido e a figura de membros soltos ocupavam uma parte
indevida da minha imaginação. Eu pratiquei a ação, mas felizmente nenhum legista se
pronunciou sobre os restos mortais e, portanto, após um longo intervalo, não foi difícil
para mim responder à demanda lisonjeira e explicar meu ato precipitado. Nunca me
arrependi, pois na prática não descobri que esses esboços mais leves me impediram de
explorar e encontrar minhas limitações em ramos tão variados da literatura como história,
poesia, romances históricos, pesquisa psíquica e drama. Se Holmes nunca tivesse
existido, eu não poderia ter feito mais, embora talvez ele tenha atrapalhado um pouco o
reconhecimento de minha obra literária mais séria.
E assim, leitor, adeus a Sherlock Holmes! Agradeço por sua fidelidade pregressa
e posso apenas esperar que algum retorno tenha ocorrido na forma daquela distração
das preocupações da vida e daquela estimulante mudança de pensamento que só pode
ser encontrada no reino das fadas do romance.

7Eduardo VII, filho da Rainha Vitória, reinou por 9 anos entre 1901 e 1910. O fim de seu reinado foi
marcado por uma polêmica crise constitucional.
Tradutora: Naara Bitencourt Ramalho
Revisor: Thales Nascimento Buzan

Paratexto

O conto “The Adventure of the Illustrious Client” foi publicado pela primeira vez em
novembro de 1924, nos Estados Unidos, pela revista Collier’s, e depois em fevereiro e
março de 1925 pela Strand Magazine no Reino Unido, dividido em duas partes. A
narrativa está contida na última coletânea de contos publicados por Arthur Conan Doyle
e estreia a obra The Case-Book of Sherlock Holmes de 1924.
No início do conto, Sherlock Holmes e seu parceiro, John Watson, são procurados
por James Damery para investigar o caso que assombra seu enigmático cliente ilustre,
cuja identidade não se sabe até então. O caso é narrado por Watson, que acompanha o
desenrolar da investigação de perto e fornece ricos detalhes sobre cada personagem
introduzido na história.
Nesta versão, elementos do século XX foram traduzidos de forma a preservar a
ambientação do contexto cultural britânico da época — tais como descrição de lugares
e roupas e expressões linguísticas. Por isso, termos como “polainas lilases”, “luvas de
pelica”, “aposentos”, “Diabos!”, “lacaio” aparecerão no texto. Quanto ao vocabulário
geral, as escolhas tradutórias foram tomadas a fim de manter o caráter formal dos
personagens — típico nas narrativas de Conan Doyle — e, ainda assim, ser inteligível
ao contexto de chegada do leitor brasileiro.

Perfil da tradutora
Em 2020, Naara Bitencourt ingressou como graduanda em Bacharelado em Letras
– Tradução, com especialização em inglês, pela Universidade Federal de Juiz de Fora,
e, a partir do contato com a teoria dos Estudos da Tradução e com a prática tradutória
ao longo do curso, é considerada uma tradutora generalista — tendo experiência em
tradução de textos acadêmicos, médicos, jurídicos, comerciais, jornalísticos, e
legendagem e dublagem — com aspiração profissional pela tradução de textos literários.
Formalmente, este conto é a primeira tradução que realizou para fins de publicação.
O CLIENTE ILUSTRE

— Agora já não faz mal — foi o comentário do Sr. Sherlock Holmes quando, pela
décima vez em tantos anos, eu lhe pedi licença para revelar a narrativa a seguir. Foi
assim que, por fim, obtive permissão para registrar o que era, de alguma forma, o
momento supremo da carreira de meu amigo.
Tanto Holmes quanto eu tínhamos um fraco pelo banho turco. Na agradável
atmosfera do vestiário, em meio ao vapor, eu o encontrei menos resistente e mais
humano do que em qualquer outro lugar. No andar superior do estabelecimento da
Northumberland Avenue, há um canto recluso onde ficam dois sofás, um ao lado do
outro, e neles descansamos no dia 3 de setembro de 1902, data em que minha narrativa
começa. Tinha lhe perguntado se havia alguma novidade e, em resposta, ele tirou seu
comprido, fino e nervoso braço debaixo dos lençóis que o cobriram e puxou um envelope
do bolso interno do casaco que estava pendurado ao seu lado.
— Talvez seja um tolo exigente e presunçoso ou um caso de vida ou morte —
disse ele, entregando-me o bilhete — Não sei nada além do que está escrito nesta
mensagem.
Era do Carlton Club e datava da noite anterior. Foi isto que li:

Sir James Damery apresenta seus cumprimentos ao Sr. Sherlock Holmes, a


quem visitará amanhã às 4h30min. Sir James insiste em dizer que o assunto sobre o
qual ele deseja consultar o Sr. Holmes é demasiado delicado e também demasiado
importante. Ele confia, portanto, que o Sr. Holmes fará todos os esforços para conceder
esta reunião e a confirmará por telefone ao Carlton Club.

— Não é preciso dizer que já a confirmei, Watson — disse Holmes, quando lhe
devolvi o papel. — Sabe alguma coisa a respeito desse Damery?
— Apenas o fato de ser um nome conhecido na sociedade.
— Bem, posso lhe dizer um pouco mais do que isso. Ele tem a reputação de tratar
de assuntos delicados que devem ser mantidos longe dos jornais. Talvez se lembre de
suas negociações com Sir George Lewis sobre o caso do Testamento de Hammerford.
Ele é um homem experiente com uma inclinação natural para a diplomacia. Portanto, sou
obrigado a acreditar que não seja um alarme falso e que ele, de fato, precise de nossa
assistência.
— Nossa?
— Bem, se você fizer as honras, Watson.
— Ficarei honrado.
— Então já sabe o horário: 4h30min. Até lá, podemos esquecer esse assunto.
Naquela época, eu morava em meus próprios aposentos na Queen Anne Street,
mas estava perto da Baker Street antes da hora mencionada. Às quatro e meia,
precisamente, o coronel Sir James Damery foi anunciado. Não é necessário descrevê-
lo, porquanto muitos se lembrarão de sua personalidade exagerada, franca e honesta,
de seu rosto largo e barbeado, e, sobretudo, de sua voz suave e agradável. Franqueza
brilhava em seus olhos cinzentos de irlandês, e bom humor estava presente em seus
lábios expressivos e sorridentes. Sua cartola lustrosa, a sobrecasaca preta, sem dúvidas,
cada detalhe, desde o alfinete de pérola na gravata de cetim preto até as polainas lilases
sobre os sapatos envernizados, demonstrava o meticuloso esmero para com a
vestimenta que o tornou famoso. O grande e magistral aristocrata dominava o pequeno
cômodo.
— Evidentemente, estava preparado para encontrar o Dr. Watson — comentou
ele, curvando-se de maneira cortês. — Sua colaboração pode ser muito necessária, dado
que, nesta conjuntura, Sr. Holmes, estamos lidando com um homem a quem a violência
é familiar e que, literalmente, não se intimidará com nada. Devo dizer que não há homem
mais perigoso na Europa.
— Já tive diversos oponentes a quem esse lisonjeiro título foi aplicado — disse
Holmes, com um sorriso. — O senhor não fuma? Então, permita-me acender o meu
cachimbo. Se seu homem é mais perigoso do que o finado professor Moriarty ou que o
coronel Sebastian Moran, que ainda está vivo, decerto, vale a pena conhecê-lo. Pode
me dizer o nome dele?
— Já ouviu falar do barão Gruner?
— O senhor se refere ao assassino austríaco?
O coronel Damery ergueu as mãos com luvas de pelica e riu. — Nada lhe escapa,
Sr. Holmes! Que maravilha! Então o senhor já o tomou como assassino?
— É meu ofício acompanhar os detalhes de crimes do continente. Quem poderia
ter lido o que aconteceu em Praga e ter alguma dúvida quanto à culpa do homem? O
que o salvou foi um argumento jurídico puramente técnico e a morte suspeita de uma
testemunha! Estou tão certo de que ele matou a esposa quando ocorreu o chamado
"acidente" no desfiladeiro Splugen como se eu tivesse testemunhado o crime. Soube
também que Gruner tinha vindo para a Inglaterra e tive um pressentimento de que, mais
cedo ou mais tarde, ele me daria certo trabalho. Então, o que o barão Gruner tem
aprontado? Presumo que não seja essa velha tragédia que voltou à tona, certo?
— Não, receio que seja algo mais sério. Vingar-se de um crime é importante, mas
impedi-lo é ainda mais. É algo terrível, Sr. Holmes, testemunhar um evento hediondo,
uma situação atroz, preparando-se diante dos seus olhos, entender claramente a que
rumo levará e ainda ser capaz de evitá-lo cabalmente. Pode um indivíduo ser submetido
a uma posição mais difícil?
— Talvez não.
— Então o senhor simpatizará com o cliente de cujos interesses estou cuidando.
— Não havia percebido que o senhor era meramente um intermediário. Quem de
fato está interessado?
— Sr. Holmes, devo pedir-lhe que não insista em tal pergunta. É de suma
importância que eu assegure a ele que seu honroso nome não fora, em nenhuma
circunstância, envolvido no assunto. Suas motivações são, em último grau, nobres e
honráveis, mas ele prefere manter-se incógnito. Não é necessário dizer que seus
honorários serão assegurados e que o senhor tem permissão para proceder da maneira
que desejar. Certamente, o verdadeiro nome de seu cliente é de pouca relevância?
— Perdoe-me — disse Holmes. — Estou habituado a ter enigmas em uma
extremidade dos meus casos, mas tê-lo nas duas extremidades é altamente confuso.
Receio, Sir James, ter de recusar este caso.
Nosso visitante ficou extremamente transtornado. Seu rosto comprido e sensitivo
estava encoberto de emoção e desapontamento.
— O senhor não consegue perceber as consequências de sua recusa, Sr. Holmes
— disse ele. — O senhor me coloca em um seríssimo dilema, pois tenho total certeza de
que ficaria orgulhoso de assumir o caso se me fora permitido contar-lhe os fatos,
entretanto uma promessa me proíbe de revelá-los por completo. Permita-me, ao menos,
partilhar tudo o que está ao meu alcance?
— É claro, uma vez posto que não irei me comprometer com nada.
— Isso está posto. Em primeiro lugar, o senhor certamente ouviu falar do general
de Merville?
— De Merville, famoso em Khyber? Sim, já ouvi falar dele.
— Ele tem uma filha, Violet de Merville, jovem, rica, de bela aparência, talentosa,
uma mulher admirável em todos os sentidos. É esta filha, esta moça adorável e inocente
que estamos tentando salvar das garras de um demônio.
— O barão Gruner possui algum domínio sobre ela, então?
— O mais forte dos domínios quando se trata de uma mulher: o do amor. O sujeito
é, como o senhor deve saber, extraordinariamente bonito, com um jeito fascinante, uma
voz suave e aquele ar de romance e mistério que é tão apreciado por uma mulher. Dizem
que ele tem todo o público feminino à sua mercê e que fez amplo uso desse fato.
— E como um homem desses conheceu uma dama da classe da Srta. Violet de
Merville?
— Foi durante uma viagem de iate pelo Mediterrâneo. A companhia, embora
seleta, pagava suas próprias passagens. Sem dúvida, os promotores sequer perceberam
o verdadeiro caráter do barão até que fosse tarde demais. O vilão se afeiçoou à moça
com tanto efeito que conquistou seu coração completa e absolutamente. Afirmar que ela
o ama não expressa o sentimento, ela o idolatra, é obcecada por ele. Fora dele não há
nada na Terra. Ela não ouvirá uma palavra contra ele. Já foi feito de tudo para curá-la de
sua loucura, mas em vão. Em suma, a moça propõe-se a casar-se com ele no próximo
mês. Por ser maior de idade e ter uma determinação indiscutível, é difícil saber como
impedi-la.
— Por acaso, ela sabe sobre o episódio da Áustria?
— O demônio astuto contou a ela todos os escândalos públicos desagradáveis de
sua vida pregressa, mas sempre de tal forma a fazer-se passar por um mártir inocente.
Ela aceita completamente a versão que ele apresentou e não admite nenhuma outra.
— Céus! Mas ouso dizer que o senhor deixou escapar inadvertidamente o nome
de seu cliente? Sem dúvida, é o General de Merville.
Nosso visitante se inquietou em seu assento.
— Eu poderia enganá-lo ao dizer que sim, Sr. Holmes, mas não seria verdade. De
Merville é um homem abatido. O bravo soldado foi profundamente desmoralizado por
esse incidente. Ele perdeu a coragem que nunca lhe faltou no campo de batalha e se
tornou um velho fraco e debilitado, totalmente incapaz de enfrentar um patife brilhante e
poderoso como esse austríaco. Meu cliente, no entanto, é um velho amigo, que conhece
o general intimamente há muitos anos e tem um interesse paternal por essa jovem desde
quando ela usava roupas miúdas. Ele não admite que essa tragédia se consuma sem
que haja alguma tentativa de impedi-la. Não há nada que a Scotland Yard possa fazer.
Ele mesmo sugeriu que o senhor fosse solicitado, mas, como disse anteriormente, com
a explícita condição de que ele não deveria estar pessoalmente envolvido no assunto.
Não tenho dúvidas, Sr. Holmes, de que, com seus grandes poderes, o senhor poderia
facilmente rastrear meu cliente até mim, mas devo pedir-lhe, por uma questão de honra,
que se abstenha de fazer isso e que não invada seu anonimato.
Holmes deu um sorriso extravagante.
— Creio que posso prometê-lo com segurança — disse ele. — Também
acrescento que seu caso me interessa e que estarei preparado para investigá-lo. Como
devo contatar o senhor?
— O Carlton Club saberá me encontrar. Mas, em caso de emergência, há um
telefone particular: XX. 31.
Holmes anotou a observação e sentou-se, ainda sorrindo, com o bloco de
anotações aberto sobre o joelho.
— O endereço atual do barão, por favor?
— Vernon Lodge, perto de Kingston. É um casarão. Ele foi afortunado em algumas
especulações um tanto suspeitas e é um homem abastado, o que naturalmente o torna
um antagonista ainda mais perigoso.
— Ele se encontra em casa no momento?
— Sim.
— Além do que o senhor me disse, é possível acrescentar alguma informação
sobre o homem?
— Ele possui gostos refinados. Tem uma paixão por cavalos. Por um curto
período, ele jogou polo em Hurlingham, mas depois que o caso de Praga foi noticiado,
foi obrigado a sair. Coleciona livros e quadros. É um homem com um considerável lado
artístico em sua natureza. Ele é, acredito eu, uma autoridade ilustre em cerâmica chinesa
e escreveu um livro sobre o assunto.
— Uma mente complexa — disse Holmes. — Todos os grandes criminosos têm
uma. Meu velho amigo Charlie Peace era um virtuoso do violino. Wainwright era um
artista notório. Eu poderia citar muitos outros. Bem, Sir James, informe ao seu cliente
que tenho meus pensamentos voltados para o barão Gruner. É tudo o que posso dizer.
Eu mesmo possuo algumas fontes próprias de informação e arrisco em dizer que
encontraremos algum meio de abrir o caso.
Assim que nosso visitante partiu, Holmes ficou sentado por tanto tempo, absorto
em seus pensamentos, que me pareceu que ele havia se esquecido da minha presença.
Mas, finalmente, voltou abruptamente à Terra.
— Então, Watson, alguma ideia? — perguntou ele.
— Eu penso que deveria ir ver a jovem pessoalmente.
— Meu caro Watson, se o seu pobre e velho pai não é capaz convencê-la, como
eu, um estranho, serei? No entanto, sua sugestão tem algo a oferecer se tudo o mais
falhar. Mas acho que devemos começar por um ângulo distinto. Imagino que Shinwell
Johnson pode ser útil.
Não tive a oportunidade de mencionar Shinwell Johnson nestas narrativas porque
raramente extraí os casos das últimas fases da carreira de meu amigo. Durante os
primeiros anos do século, ele fez-se um assistente valioso. Johnson, lamento dizer,
tornou-se, a princípio, conhecido como um vilão muito perigoso e cumpriu dois mandatos
em Parkhurst. Finalmente, arrependeu-se e aliou-se a Holmes, atuando como seu agente
no vasto submundo do crime de Londres e obtendo informações que constantemente se
mostraram de importância vital. Se Johnson tivesse sido um "informante" da polícia, logo
teria sido descoberto, mas como lidava com casos que nunca chegavam diretamente
aos tribunais, suas atividades de modo algum foram percebidas por seus companheiros.
Com o prestígio de suas duas condenações, ele tinha acesso a todos os clubes noturnos,
albergarias e casas de apostas da cidade, e sua observação sagaz e cérebro ativo o
tornavam um agente ideal para obter informações. Foi a ele que Sherlock Holmes se
propôs a recorrer.
Não foi possível acompanhar os passos imediatos de meu amigo, pois eu tinha
alguns assuntos profissionais urgentes, porém o encontrei com hora marcada naquela
noite no Simpson's, onde, sentado a uma mesinha na janela da frente e olhando para o
intenso fluxo de vida na Strand, ele me contou algo que ocorrera.
— Johnson está à espreita — disse ele. — É possível que ele encontre algum
rastro nos recônditos mais escuros do submundo, pois é, lá embaixo, em meio às raízes
obscuras do crime, onde devemos caçar os segredos desse homem.
— Mas se a moça não aceita o que já é de conhecimento comum, por que
qualquer nova descoberta sua a faria desistir de seu juízo?
— Quem sabe, Watson? O coração e a mente de uma mulher são para o homem
enigmas insolúveis. Um homicídio pode ser perdoado ou explicado e, entretanto, algum
crime menor pode ser danoso. O barão Gruner mencionou para mim...
— Ele mencionou algo para você!
— Ah, mas é claro, eu não lhe contei sobre meus planos. Bem, Watson, eu adoro
confrontar o homem com quem estou lidando. Gosto de encontrá-lo cara a cara e
reconhecer por mim mesmo a essência de sua natureza. Após dar a Johnson as
instruções, tomei um táxi para Kingston e encontrei o barão num humor bastante
agradável.
— Ele o reconheceu?
— Quanto a isso não houve dificuldade, pois simplesmente enviei meu cartão. Ele
é um excelente antagonista, frio como gelo, de voz sedosa e suave como um de seus
elegantes consultores, e venenoso como uma cobra. Há nele a verdadeira essência de
um aristocrata do crime, com traços do chá das cinco e toda a crueldade do túmulo por
trás. Sim, estou satisfeito por ter voltado minha atenção ao barão Adelbert Gruner.
— Você disse que ele era agradável?
— Um gato ronronante que pensa ver ratos em potencial. A agradabilidade de
alguns é mais letal que a violência das mais rudes almas. Sua saudação foi
característica. "Imaginei que o veria mais cedo ou mais tarde, Sr. Holmes", disse ele. “O
senhor foi solicitado, sem dúvida pelo General de Merville, para tentar impedir meu
casamento com sua filha, Violet. Estou certo, não? ”
— Eu concordei.
— “Meu caro”, disse ele, “tudo que conseguirá fazer é arruinar sua tão merecida
reputação. Este não é um caso em que terá sucesso. Seu trabalho será árido, sem
mencionar o perigo a que está sujeito. Permita-me aconselhá-lo, de maneira enfática, a
desistir imediatamente”.
— “É curioso", respondi, "mas esse era o exato conselho que pretendia lhe
oferecer. Respeito a sua inteligência, barão, e o pouco que vi de sua personalidade
decerto não o diminuiu. Permita-me dizer isto a você de homem para homem. Ninguém
deseja desenterrar seu passado e, assim, deixá-lo vãmente desconfortável. O que ficou
para trás, ficou para trás, o senhor agora está em águas tranquilas, mas, se persistir
neste casamento, provocará um enxame de inimigos poderosos que nunca o deixarão
em paz até tornarem a Inglaterra um lugar insustentável para o senhor. Será que o jogo
vale a pena? Sem dúvidas, a decisão mais sábia é deixar a moça em paz. Sem dúvida,
não seria agradável para o senhor que tais fatos de seu passado fossem levados ao
conhecimento dela.
— O barão tem, embaixo do nariz, pequenas pontas de pelos oleosos, como as
antenas minúsculas de um inseto. Essas pontas tremiam de diversão enquanto ele ouvia
e, finalmente, ele soltou uma risada suave.
— "Perdoe o meu divertimento, Sr. Holmes", disse ele, "mas é realmente cômico
vê-lo tentar jogar sem cartas nas mãos. Creio que não há ninguém que conseguiria fazer
isso melhor, mas é um tanto patético, mesmo assim. Nem uma carta colorida aí, Sr.
Holmes, nada além da menor das menores".
— "É o que o senhor pensa” — eu disse.
— "É o que sei. Deixe-me tornar claras algumas coisas para o senhor, pois minha
mão é tão superior que posso me dar ao luxo de mostrá-la. Tive a sorte de conquistar
toda a afeição dessa moça. Eu a consegui apesar de ter contado a ela, com muita
clareza, todos os incidentes infelizes da minha vida pregressa. Também esclareci a ela
que certas pessoas perversas e malignas – espero que você se identifique – a
procurariam e lhe contariam tais coisas, e eu a adverti sobre como tratá-los. O senhor já
ouviu falar de sugestão pós-hipnótica, Sr. Holmes? Bem, o senhor verá como ela
funciona, pois um homem de personalidade pode usar o hipnotismo sem nenhum truque
ou tolices. Portanto, ela está pronta para recebê-lo e, não tenho dúvidas, marcaria um
encontro com você, uma vez que é bastante favorável à vontade do pai – exceto por uma
pequena questão".
— Bem, Watson, parecia não haver mais nada a dizer, de modo que me despedi
da maneira mais fria e digna que consegui, mas, quando estava com a mão na maçaneta
da porta, ele me impediu.
— "A propósito, Sr. Holmes", disse ele, "você conheceu Le Brun, o agente
francês?”
— "Sim”, respondi.
— “O senhor sabe o que se passou com ele?”
— "Ouvi dizer que foi espancado por alguns apaches no distrito de Montmartre e
ficou aleijado para o resto da vida”.
— "É verdade, Sr. Holmes. Por uma curiosa coincidência, ele estava bisbilhotando
meus assuntos apenas uma semana antes. Não faça isso, Sr. Holmes; não é sensato.
Muitos já descobriram isso. Minha palavra final para o senhor é: siga seu próprio caminho
e deixe-me seguir o meu. Adeus!”.
— Então, aqui está, Watson. Agora está a par de tudo.
— O sujeito parece perigoso.
— Muito perigoso. Eu desdenho o fanfarrão, mas esse é o tipo de homem que fala
muito menos do que quer dizer.
— Você precisa interferir? Realmente importa se ele se casar com a moça?
— Considerando que ele, incontestavelmente, assassinou sua última esposa, eu
diria que importa muito. Além disso, o cliente! Bem, bem, não precisamos discutir isso.
Quando terminar seu café, é melhor que volte para casa comigo, pois o alegre Shinwell
estará lá com seu relatório.
Nós encontramos, com certeza, um homem enorme, grosseiro, de rosto vermelho
e escorbuto, com um par de olhos negros vívidos que eram o único sinal externo da
mente muito astuta que havia dentro dele. Parece que ele havia mergulhado no que era
peculiarmente seu reino, e ao seu lado, no sofá, estava a pista que ele trouxera na forma
de uma jovem magra e flamejante, com um rosto pálido e intenso, jovial, e, no entanto,
tão devastada pelo pecado e pela tristeza que era possível notar os anos terríveis que a
haviam marcado.
— Esta é a Srta. Kitty Winter — disse Shinwell Johnson — acenando com sua
mão gorda como uma apresentação. — O que ela não sabe – bem, ela falará por si
mesma. Encontrei-a dentro de uma hora após sua mensagem, Sr. Holmes.
— É fácil me encontrar — disse a jovem.
— Diabos, Londres sempre me denuncia. O mesmo endereço para Porky
Shinwell. Somos velhos amigos, Porky, você e eu. Mas, por Deus! Há outro que deveria
estar em um inferno pior que o nosso, se houvesse alguma justiça no mundo! Esse é o
homem que o senhor está procurando, Sr. Holmes.
Holmes sorriu. — Imagino que esteja favorável ao nosso desejo, Srta. Winter".
— Se eu puder ajudar a colocá-lo onde ele pertence, estou à disposição para dizer
o que for — disse nossa visitante com uma energia feroz. Havia uma intensidade de ódio
em seu rosto branco e definido e em seus olhos flamejantes que as mulheres raramente
conseguem atingir, e os homens, nunca. — Não precisa mencionar o meu passado, Sr.
Holmes, pois não faz diferença. Mas, aquilo que sou é obra de Adelbert Gruner. Se eu
pudesse destruí-lo! — Ela se agarrou freneticamente o ar com suas mãos. — Ah, se eu
pudesse arrastá-lo até o poço onde ele empurrou tantas!
— A senhorita sabe do que se trata?
— Porky Shinwell me mantém informada. Ele está atrás de outra pobre tola e quer
se casar com ela dessa vez. O senhor quer impedir isso. Bem, certamente está inteirado
o suficiente sobre esse demônio a fim de impedir que qualquer moça decente e sensata
queira estar na mesma paróquia que ele.
— Ela não está em seu juízo. Está perdidamente apaixonada. Já lhe contaram
tudo a respeito dele, mas ela não se importa.
— Contaram-lhe sobre o assassinato?
— Sim.
— Meu Deus, ela deve ser muito corajosa!
— Ela considera todas as acusações como calúnias.
— O senhor não poderia apresentar provas diante de seus olhos ingênuos?
— Bem, pode nos ajudar a fazer isso?
— E não sou eu mesma uma prova? Se estivesse diante dela e lhe contasse como
ele me usou...
— Faria isso?
— Se eu faria? É claro!
— Bem, talvez valha a pena tentar. Mas ele já lhe contou a maioria de seus
pecados e recebeu o perdão dela, e sei que ela não vai reabrir a questão.
— Aposto que ele não lhe contou tudo — disse a Srta. — Tive um vislumbre de
um ou dois assassinatos além daquele que causou tanto alvoroço. Ele falava de alguém
com seu jeito aveludado e depois olhava para mim com um olhar firme e dizia: “Ele
morreu em um mês”. Ele não estava mentindo, não mesmo. Mas não dei tanta
importância, entenda, eu o amava naquela época. Independentemente do que tenha
feito, guardei comigo, assim como com essa pobre tola! Houve apenas uma coisa que
me abalou. Sim, por Deus! Se não fosse por sua língua venenosa e mentirosa que explica
e acalenta, eu o teria deixado naquela mesma noite. Trata-se de um livro que ele tem,
um livro de couro marrom com um trinco, e seu brasão em ouro na parte de fora. Creio
que ele estava um pouco bêbado naquela noite, do contrário não o teria mostrado para
mim.
— De que se trata o livro, afinal?
— Eu lhe digo, Sr. Holmes, esse homem coleciona mulheres e tem orgulho de sua
coleção, como homens que colecionam mariposas ou borboletas. Havia tudo naquele
livro. Fotografias, nomes, detalhes, tudo sobre elas. Tratava-se de um livro bestial, um
livro que homem nenhum, mesmo aquele vindo direto da sarjeta, conseguiria montar. De
qualquer modo, continuava sendo o livro de Adelbert Gruner. "Almas que arruinei",
poderia estar escrito na capa, se ele quisesse. No entanto, isso não vem ao caso, pois o
livro não lhe serviria e, se servisse, o senhor não poderia obtê-lo.
— Onde está o livro?
— Como posso lhe informar onde está agora? Já se passou mais de um ano desde
que o deixei. Eu sei onde ele o guardava naquela época. Gruner é rigoroso e metódico
em muitos de seus hábitos, portanto, talvez ainda esteja no escaninho do velho armário
em seu gabinete particular. Por acaso conhece sua casa?
— Já estive no gabinete — disse Holmes.
— É mesmo? Ora, o senhor não está caminhando devagar em sua investigação
posto que só começou esta manhã. É possível que, desta vez, o querido Adelbert tenha
encontrado seu antagonista. O gabinete externo é o que tem a louça chinesa, um
admirável armário de vidro entre as janelas. Atrás de sua mesa, há uma porta que dá
acesso ao gabinete interno, um pequeno cômodo onde ele guarda papéis e outras
coisas.
— Ele não tem medo de ladrões?
— Adelbert não é covarde. Nem o pior de seus inimigos poderia descrevê-lo dessa
forma. Ele sabe cuidar de si mesmo. Há um alarme contra ladrões à noite. Ademais, o
que o ladrão tem a ganhar, a não ser fugir com toda essa louça sofisticada?
— Não há benefícios — disse Shinwell Johnson com a voz convicta de um
especialista. — Ninguém quer essas coisas que não são possíveis de derreter nem
vender.
— É verdade — disse Holmes. — Bem, Srta. Winter, se puder vir aqui amanhã às
cinco da tarde, eu consideraria, nesse meio tempo, se a sua sugestão de encontrar essa
moça pessoalmente é possível de providenciar. Estou extremamente grato por sua
cooperação. Não preciso dizer que meus clientes apreciarão generosamente...
— Nada disso, Sr. Holmes — gritou a jovem. — Dinheiro não me interessa. Deixe-
me ver esse homem na lama e terei tudo pelo que trabalhei – na lama com meu pé em
seu rosto amaldiçoado. Esse é o meu preço. Posso estar com o senhor amanhã ou em
qualquer outro dia, desde que o mantenha debaixo do seu faro. Porky sempre pode lhe
dizer onde me encontrar.
Não vi Holmes novamente até a noite seguinte, quando jantamos mais uma vez
em nosso restaurante de sempre, o Strand. Ele deu de ombros quando lhe perguntei se
tivera sorte em sua entrevista. Em seguida, me contou a história, que eu viria a repetir
desta forma. A declaração que me ofereceu, dura e enxuta, precisa de uma pequena
edição e, assim, ser suavizada nos termos da vida real.
— Não houve dificuldade alguma com relação ao encontro, — declarou Holmes
— pois a moça vangloria-se ao demonstrar obediência filial abjeta em todas as coisas
secundárias, como uma tentativa de compensar o flagrante rompimento de seu noivado.
O general telefonou dizendo que tudo estava pronto, e a fervorosa Srta. W. compareceu
conforme o combinado, de modo que, às cinco e meia da tarde, um táxi nos deixou em
frente ao número 104 da Berkeley Square, onde o velho soldado reside – um daqueles
horrendos castelos cinzentos de Londres que fariam uma igreja parecer frívola. Um
lacaio nos conduziu a uma grande sala de visitas com cortinas amarelas, e lá estava a
senhora nos esperando, recatada, pálida, contida, tão inflexível e distante quanto a
imagem de neve em uma montanha.
— Não sei bem como descrevê-la de forma clara para você, Watson. Talvez você
venha a conhecê-la antes de fecharmos o caso e, assim, consiga utilizar seu dom com
palavras. Ela é bonita, mas com a beleza etérea exterior a este mundo, a beleza de
certos fanáticos cujos pensamentos estão no alto. Já vi rostos similares nos quadros dos
antigos mestres da Idade Média. Sigo procurando entender como um homem tão bestial
poderia ter colocado suas garras vis sobre este ser de outro mundo. Talvez tenha notado
como os extremos se aproximam uns dos outros, o espiritual do animal, o homem das
cavernas do anjo. Nunca se viu caso pior do que este.
— Ela estava ciente do que viemos fazer, é claro — aquele vilão não perdeu tempo
em envenenar sua mente contra ao nosso respeito. Acredito que a chegada da Srta.
Winter a surpreendeu bastante, mas ela nos acenou para nossas respectivas cadeiras
como uma reverenda abadessa recebendo dois pedintes leprosos. Caso esteja inclinado
a tornar-se um presunçoso, meu caro Watson, procure a Srta. Violet de Merville.
— “Pois bem, senhor”, disse ela em uma voz como o vento de um iceberg,
“reconheço seu nome. O senhor ligou, pelo que entendi, para difamar meu noivo, o barão
Gruner. Estou aqui somente a pedido de meu pai, e já o aviso de antemão: o que quer
que tenha a me dizer não terá o mínimo efeito sobre minha mente”.
— Tive piedade dela, Watson. Tive tamanha consideração por ela no momento
que era como se fosse uma filha minha. Não costumo ser eloquente. Uso minha razão,
não minhas emoções. Mas eu realmente implorei a ela com todo o calor das palavras
que pude encontrar em minha natureza. Pintei para ela o terrível cenário da mulher que
só desperta para o caráter de um homem depois de ser sua esposa, uma mulher que se
submete a ser acariciada por mãos sangrentas e lábios lascivos. Não a poupei de nada
— a vergonha, o medo, a agonia, a falta de esperança sobre tudo isso. Todas as minhas
palavras calorosas não foram capazes de trazer um tom de cor àquelas bochechas de
marfim ou sequer um brilho de emoção àqueles olhos abstratos. Refleti sobre o que o
patife havia dito sobre uma influência pós-hipnótica. Era realmente possível acreditar que
ela estava vivendo acima das nuvens, em algum sonho extático. No entanto, não havia
nada de indefinido em suas respostas.
— "Eu o ouvi com paciência, Sr. Holmes", tornou a dizer. “O efeito em minha
mente é exatamente o previsto. Estou ciente de que Adelbert, meu noivo, teve uma vida
tempestuosa, na qual incorreu em ódios amargos e nas mais injustas calúnias. O senhor
é apenas o último de um elenco que trouxe suas calúnias até mim. Possivelmente o
senhor é um homem com boas intenções, embora eu saiba que é um agente pago que
estaria igualmente disposto a agir a favor do Barão e contra ele. Mas, de qualquer forma,
preciso que entenda, de uma vez por todas, que eu o amo e que ele me ama, e que a
opinião de qualquer indivíduo no mundo não é mais relevante para mim do que o gorjeio
dos pássaros do lado de fora da janela. Caso a nobre natureza dele tenha caído por um
instante, devo ter sido enviada especialmente para elevá-la a seu verdadeiro e sublime
nível. Não conheço", nesse momento, ela voltou os olhos à minha acompanhante, “esta
jovem senhora".
— Eu estava prestes a responder quando a senhorita invadiu a cena como um
redemoinho. Se alguma vez você já viu fogo e gelo frente a frente, foram essas duas
mulheres.
— "Eu lhe direi quem sou eu", gritou ela, levantando-se da cadeira, com a boca
retorcida de paixão. “Sou a última amante dele. Sou uma das cem que ele seduziu, usou,
arruinou e descartou, assim como fará com você. Sua pilha de recusas parece mais
túmulo, e talvez isso seja o melhor. Eu lhe digo, mulher tola, se casar-se com esse
homem, ele será a sua morte. Talvez seja um coração partido ou um pescoço quebrado,
mas ele a terá de um jeito ou de outro. Eu lhe falo não por amor a você. A mim, pouco
importa se viverá ou morrerá. Mas falo por ódio a ele, para irritá-lo e para me vingar de
tudo que já me fez. Mas é sempre igual, e não há necessidade de me olhar assim, minha
bela dama, pois é provável que seja tão atroz quanto eu antes de terminar com isso.
— “Prefiro não discutir tais assuntos", disse a Srta. de Merville friamente. “Deixe-
me dizer, de uma vez por todas, que tenho conhecimento de três passagens da vida de
meu noivo em que ele teria se envolvido com mulheres traiçoeiras e que estou segura
de seu arrependimento sincero por qualquer mal que possa ter feito”.
— "Três passagens!”, gritou minha acompanhante. “Quanta tolice! A mais
inexpressível tolice!”
— “Sr. Holmes, peço-lhe que encerre este encontro", disse a voz gelada. “Obedeci
ao desejo de meu pai de vê-lo, mas não tenho obrigação de ouvir os delírios dessa
pessoa.”
— Com um juramento, a Srta. Winter se lançou para a frente e, se eu não a tivesse
tomado pelo pulso, ela teria agarrado essa mulher alucinante pelos cabelos. Eu a arrastei
em direção à porta e tive sorte de colocá-la de volta no táxi sem fazer uma cena pública,
pois ela estava extremamente raivosa e fora de si. De maneira fria, eu mesmo estava
bastante furioso, Watson, pois havia algo indescritivelmente irritante na calma indiferença
e na suprema autocomplacência da mulher que estávamos tentando salvar. Portanto,
agora, uma vez mais, você sabe exatamente como estamos, e está claro que devo
planejar uma nova jogada de abertura, pois essa jogada não funcionará. Entrarei em
contato com você, Watson, pois é mais do que provável que tenha que desempenhar o
seu papel, embora seja possível que o próximo passo seja dado por eles, e não por nós.
E foi o que aconteceu. O golpe deles não teve êxito, ou melhor, o golpe dele, pois nunca
acreditei que a moça tivesse conhecimento disso. Acho que poderia lhe mostrar a
calçada onde estava quando meus olhos se depararam com o anúncio, e uma pontada
de horror atravessou minha alma. Estava entre o Grand Hotel e a estação de Charing
Cross, onde um vendedor de jornais de uma só perna exibia seus jornais da noite. A data
era apenas dois dias após a última conversa. Ali, preto sobre amarelo, estava a terrível
folha de notícias:

Ataque contra a vida de Sherlock Holmes


Creio que permaneci atônito por alguns instantes. Depois, tenho uma lembrança
confusa de ter arrancado uma página, da indignação do homem, a quem eu não havia
pago, e, finalmente, de ter ficado na porta de uma farmácia enquanto eu procurava o
parágrafo fatídico. Foi assim que aconteceu:
Lamentavelmente, informamos que o Sr. Sherlock Holmes, o conhecido detetive
particular, foi vítima esta manhã de um ataque violento que o deixou em uma situação
precária. Não temos detalhes exatos, mas o fato parece ter ocorrido por volta das 12
horas na Regent Street, do lado de fora do Café Royal. O ataque foi cometido por dois
homens armados com bastões, e o Sr. Holmes foi espancado na cabeça e no corpo,
recebendo ferimentos que os médicos descrevem como muito graves. A vítima foi
levada ao Hospital Charing Cross, tendo insistido depois em ser levado para seus
aposentos na Baker Street. Os malfeitores que o atacaram aparentemente estavam
vestidos de forma respeitável, tendo escapado dos espectadores ao atravessarem o
Café Royal e saírem na Glasshouse Street, na parte de trás. Seguramente, os homens
pertenciam àquela fraternidade criminosa que ocasionalmente teve a oportunidade de
lamentar a ação e a esperteza da vítima.
Não é preciso dizer que meus olhos mal haviam passado sobre o parágrafo antes
que eu entrasse em uma carroça e estivesse a caminho de Baker Street. Encontrei Sir
Leslie Oakshott, o famoso cirurgião, no saguão e seu coche esperando na calçada.
— Não há perigo imediato — foi seu relatório. — Duas feridas laceradas no couro
cabeludo e alguns hematomas consideráveis. Vários pontos foram necessários. A
morfina foi injetada e o silêncio é essencial, mas uma visita de alguns minutos não seria
absolutamente proibida.
Com essa permissão, entrei na sala escura. O enfermo estava bem acordado, e
pude ouvir meu nome em um sussurro rouco. A cortina estava quase totalmente
abaixada, mas um raio de sol atravessou e atingiu a cabeça enfaixada do homem ferido.
Uma mancha carmesim havia atravessado a compressa de linho branco. Sentei-me ao
lado dele e inclinei a cabeça.
— Está bem, Watson. Não pareça tão assustado — ele murmurou com uma voz
muito fraca. — Não é tão ruim quanto parece.
— Graças a Deus por isso!
— Como você sabe, tenho certa experiência em me defender com um bastão.
Peguei a maioria deles em minha guarda. Foi o segundo homem que foi demais para
mim.
— O que posso fazer, Holmes? É claro que foi aquele maldito sujeito que os
incitou. Eu vou lá e dou uma surra nele se você der a ordem.
— Bom e velho Watson! Não, nada podemos fazer a menos que a polícia ponha
as mãos nos homens. Mas a fuga deles foi bem preparada. Temos certeza disso. Espere
um pouco. Tenho meus planos. A primeira coisa é exagerar meus ferimentos. Eles virão
até você para obter mais notícias. Seja direto, Watson. Sorte a minha se sobreviver à
semana — diga que é concussão, delírio — o que você quiser! Só não dramatize demais.
— Mas e o Sir Leslie Oakshott?
— Ah, ele está bem. Ele verá o pior lado de mim. Eu cuidarei disso.
— Algo mais?
— Sim. Diga a Shinwell Johnson para tirar a garota do caminho. Aquelas beldades
estarão atrás dela agora. Eles sabem, é claro, que ela estava me ajudando na
investigação. Se eles se atreveram a me matar, não é provável que a negligenciem. Isso
é urgente. Faça isso hoje à noite.
— Eu irei agora. Algo mais?
— Ponha meu cachimbo sobre a mesa; e o maço de tabaco. Certo! Venha todas
as manhãs e planejaremos nossa campanha.
Naquela noite, pedi a Johnson que levasse a Srta. Winter para um subúrbio
tranquilo e cuidasse para que ela ficasse quieta até que o perigo passasse.
Durante seis dias, o público teve a impressão de que Holmes estava à beira da
morte. Os boletins eram muito graves e havia parágrafos apavorantes nos jornais.
Minhas visitas constantes me garantiram que não era tão ruim assim. Sua constituição
robusta e sua vontade determinada estavam fazendo maravilhas. Ele estava se
recuperando rapidamente e, às vezes, eu suspeitava que ele estava realmente se
recuperando mais rápido do que fingia, mesmo para mim. Havia uma curiosa tendência
secreta no homem, que levou a muitos efeitos dramáticos, mas deixou dúvidas até
mesmo em seu amigo mais íntimo sobre quais seriam seus planos exatos. Ele levava ao
extremo o axioma de que o único conspirador seguro era aquele que conspirava sozinho.
Eu estava mais perto dele do que de qualquer outra pessoa e, ainda assim, sempre
estive consciente da distância entre nós.
No sétimo dia, os pontos foram retirados e, apesar disso, houve um relato de
erisipela nos jornais da noite. Os mesmos jornais vespertinos traziam um anúncio que
eu era obrigado, estivesse eu doente ou bem, a levar para meu amigo. Era simplesmente
que, entre os passageiros do navio Ruritania, da Cunard, que partiu de Liverpool na
sexta-feira, estava o barão Adelbert Gruner, pois tinha alguns negócios financeiros
importantes para resolver nos Estados Unidos antes de seu casamento iminente com a
Srta. Violet de Merville, filha única de etc., etc. Holmes recebeu a notícia com um olhar
frio e concentrado em seu rosto pálido, indicando que ela o atingiu em cheio.
— Sexta-feira! — ele gritou. — Um intervalo de três dias, apenas. Acredito que o
patife queira se colocar fora de perigo. Mas ele não vai conseguir, Watson! Por Deus, ele
não vai! Agora, Watson, quero que você faça algo por mim.
— Estou aqui à disposição, Holmes.
— Bem, então, passe as próximas vinte e quatro horas em um estudo intensivo
de cerâmica chinesa.
Ele não deu explicações e eu não requisitei alguma. Com a longa experiência, eu
havia aprendido a sabedoria da obediência. Mas, quando saí de seu quarto, caminhei
pela Baker Street pensando em como eu poderia cumprir uma ordem tão estranha.
Finalmente, me dirigi à James's Square e falei sobre o assunto com meu amigo Lomax,
o sub-bibliotecário, e parti para meus aposentos com um bom volume debaixo do braço.
Dizem que um advogado que estuda um caso com tamanha cautela pode interrogar uma
testemunha perspicaz na segunda-feira e, antes do sábado seguinte, esquecer toda a
sabedoria forçada. Certamente eu não gostaria de me apresentar agora como uma
autoridade em cerâmica. E, no entanto, durante todo aquele fim de tarde e toda aquela
noite, com um pequeno intervalo para descanso, e durante toda a manhã seguinte, estive
absorvendo conhecimento e memorizando nomes. Fui capaz de aprender sobre as
marcas dos grandes artistas-decoradores, sobre o mistério das datas cíclicas, as marcas
do Hung-wu e as belezas do Yung-lo, os escritos de Tang-ying e as glórias do período
primitivo do Sung e do Yuan. Eu estava munido de todas essas informações quando
visitei Holmes na noite seguinte. Ele já não estava mais na cama, embora não fosse
possível adivinhar isso pelos relatos publicados, e se encontrava sentado com a cabeça
coberta de muitas bandagens apoiada na mão, no fundo de sua poltrona favorita.
— Ora, Holmes, — eu disse — se alguém acreditou nos jornais, você está
morrendo.
— Essa — disse ele — é exatamente a impressão que eu pretendia transmitir. E
agora, Watson, aprendeu suas lições?
— Ao menos tentei.
— Ótimo. É capaz de manter uma conversa inteligente sobre o assunto?
— Acredito que sim.
— Então me passe essa caixinha que está na lareira.
Ele abriu a tampa e retirou um pequeno objeto cuidadosamente embrulhado em
uma fina seda oriental, desdobrando-o e revelando um delicado pires da mais bela cor
azul-escura.
— Ele precisa ser manuseado com cuidado, Watson. Esta é a verdadeira cerâmica
em casca de ovo da dinastia Ming. Peça nenhuma tão fina quanto esta passou pela
Christie's. Um conjunto completo valeria o resgate de um rei – de fato, é contestável que
haja um conjunto completo fora do palácio imperial de Pequim. Apenas o vislumbre disso
levaria um verdadeiro admirador à loucura.
— O que devo fazer com isso?
Holmes me entregou um cartão no qual estava impresso:
— Dr. Hill Barton, 369 Half Moon Street.
— Este é seu nome para esta noite, Watson. Você fará uma visita ao barão
Gruner. Conheço um pouco de seus hábitos e, às oito e meia da noite, ele provavelmente
estará livre. Um bilhete o avisará com antecedência que você está prestes a visitá-lo e
você dirá que está levando para ele um exemplar de um conjunto de porcelana Ming
absolutamente único. Você também pode ser um médico, já que esse é um papel que
você pode desempenhar sem duplicidade. O Sr. Barton é um colecionador, esse conjunto
apareceu em seu caminho, ele ouviu falar do interesse do barão pelo assunto e não é
avesso a vender por um preço.
— Qual o preço?
— Boa pergunta, Watson. Você certamente se daria mal se não soubesse o valor
de seus próprios produtos. O pires foi comprado para mim por Sir James e, pelo que sei,
vem da coleção de seu cliente. Não estará exagerando se disser que dificilmente poderia
ser igualado no mundo.
— Talvez eu possa sugerir que o conjunto seja avaliado por um especialista.
— Excelente, Watson! Você está cintilante hoje. Sugira a Christie ou a Sotheby.
Sua sutileza o impede de colocar um preço por si mesmo.
— E caso ele não queria me receber?
— Ah, decerto, ele o receberá. Ele é um colecionador fanático em sua forma mais
aguda, e sobretudo a respeito desse assunto, no qual ele é uma autoridade reconhecida.
Sente-se, Watson, e eu lhe ditarei a carta. Não precisa responder. Você apenas dirá que
está a caminho e por quê.
Era um documento admirável, curto, cortês e que atiçava a curiosidade do
admirador. Um mensageiro do distrito foi devidamente despachado com ele. Na mesma
noite, com o precioso pires na mão e o cartão do Dr. Hill Barton no bolso, parti em minha
própria aventura.
A bela casa e o terreno indicavam que o barão Gruner era, como Sir James havia
dito, um homem de considerável riqueza. Um longo caminho sinuoso, com bancos de
arbustos raros em ambos os lados, abria-se em uma grande praça de cascalho adornada
com estátuas. O local havia sido construído por um rei do ouro da África do Sul na época
do grande boom, e a casa comprida e baixa com torres nos cantos, embora fosse um
pesadelo arquitetônico, era imponente em seu tamanho e solidez. Um mordomo, que
teria adornado um banco de bispos, mostrou-me a entrada e me entregou a um elegante
lacaio, que me conduziu à presença do barão.
Ele estava de pé na frente aberta de uma grande vitrine que ficava entre as janelas
e que continha parte de sua coleção chinesa. Quando entrei, ele se virou com um
pequeno vaso marrom na mão.
— Por favor, sente-se, doutor — disse ele. — Eu estava examinando minha
própria coleção de tesouros e me perguntando se realmente poderia me dar ao luxo de
aumentá-la. Este pequeno exemplar de Tang, que data do século VII, provavelmente lhe
interessaria. Tenho certeza de que nunca viu um trabalho mais refinado ou um esmalte
mais rico. Trouxe consigo o pires Ming do qual falou?
Eu o desempacotei cuidadosamente e o entreguei a ele. Gruner sentou-se à
mesa, acendeu o abajur, pois já estava escurecendo, e começou a examiná-lo. Enquanto
ele fazia isso, a luz amarela incidia sobre suas próprias feições, e eu pude estudá-las à
vontade.
Sem dúvida, ele era um homem extraordinariamente bonito. Sua reputação
europeia de beleza era totalmente merecida. Sua figura não passava de um homem de
estatura mediana, mas tinha linhas graciosas e ativas. Seu rosto era moreno, quase
oriental, com olhos grandes, escuros e lânguidos que poderiam facilmente exercer um
fascínio irresistível sobre as mulheres. Seu cabelo e bigode eram negros como penas de
um corvo, sendo que o último era curto, pontudo e cuidadosamente aparado. Suas
feições eram regulares e agradáveis, com exceção apenas da boca reta e de lábios finos.
Se alguma vez eu vi a boca de um assassino, era essa: um corte cruel e duro no rosto,
comprimido, inexorável e terrível. Ele não deveria aparar seu bigode de modo a deixar
sua boca exposta, já que ela era um sinal de perigo, como um aviso da natureza às suas
vítimas. Sua voz era cativante e sua conduta admirável. Quanto à idade, eu o colocaria
com pouco mais de trinta anos, embora seu registro posterior mostrasse que ele tinha
quarenta e dois.
— Excelente! De fato, excelente! — disse ele por fim. — E o senhor mencionou
que possui um conjunto de seis para corresponder. O mais intrigante é o fato de jamais
ter ouvido algo a respeito de espécimes tão magníficos. Só conheço um na Inglaterra
que se iguala a este, e certamente não deve estar no mercado. Seria indiscreto se eu
lhe perguntasse, Dr. Hill Barton, como o senhor conseguiu isso?
— Isso realmente importa? — perguntei com o ar mais descuidado que consegui
reunir. — O senhor pode ver que a peça é genuína e, quanto ao valor, estou satisfeito
em aceitar a avaliação de um especialista.
— Muito misterioso — disse ele com um rápido e suspeito lampejo de seus olhos
escuros. — Ao lidar com objetos de tal valor, é natural que se deseje saber tudo sobre a
transação. O fato de a peça ser genuína é certo. Não tenho nenhuma dúvida quanto a
isso. Mas suponha que – estou sujeito a levar em consideração todas as possibilidades
– se prove depois que você não tinha o direito de vender?
— Eu o garantiria contra qualquer reivindicação desse tipo.
— Isso, é claro, abriria a questão sobre o valor de sua garantia.
— Meus banqueiros responderiam a isso.
— É verdade. E, no entanto, toda a transação me parece bastante incomum.
— O senhor pode fazer negócio ou não — eu respondi com indiferença. — Eu lhe
fiz a primeira oferta pois me inteirei de que é um conhecedor, mas não terei dificuldades
em encontrar outros interessados.
— Quem lhe disse que eu era um conhecedor?
— Estava ciente de que havia escrito um livro sobre o assunto.
— O senhor leu o livro?
— Não.
— Meu caro, isso está ficando cada vez mais difícil de entender! O senhor é um
conhecedor e colecionador com uma peça muito valiosa em sua coleção e, no entanto,
nunca se preocupou em consultar o único livro que poderia lhe dizer o real significado e
valor daquilo que possui. Como pode explicar isso?
— Sou um homem muito ocupado. Sou um médico em exercício.
— Isso não é resposta. Se um homem tem um hobby, ele o segue, quaisquer que
sejam suas outras atividades. Disse em seu bilhete que era um conhecedor.
— E sou mesmo.
— Posso lhe fazer algumas perguntas para testá-lo? Sou obrigado a lhe dizer,
doutor, se é que o senhor é mesmo um médico, que o incidente está ficando cada vez
mais suspeito. Gostaria de lhe perguntar o que o senhor sabe sobre o Imperador Shomu
e como o associa ao Shoso-in perto de Nara? Meu caro, isso o intriga? Fale-me um
pouco sobre a dinastia Wei do Norte e seu lugar na história da cerâmica.
Levantei-me de minha cadeira com raiva simulada. — Isso é intolerável, senhor
— exclamei. — Vim aqui para lhe fazer um favor, e não para ser examinado como se eu
fosse um estudante. Meu conhecimento sobre esses assuntos pode ser inferior ao seu,
mas certamente não responderei a perguntas que foram feitas de forma tão ofensiva.
Ele olhou para mim com firmeza. A languidez havia desaparecido de seus olhos. De
repente, eles brilharam. Havia um brilho de dentes entre aqueles lábios cruéis.
— Qual é o jogo? Está aqui como espião. O senhor é um emissário de Holmes.
Isto é uma artimanha contra mim. Ouvi dizer que o sujeito está morrendo, então ele envia
seus instrumentos para me vigiar. O senhor entrou aqui sem permissão e, por Deus!
talvez seja mais difícil sair daqui do que entrar.
Ele se levantou e eu dei um passo para trás, preparando-me para um ataque, pois
o homem estava fora de si. Ele pode ter suspeitado de mim desde o início, certamente
esse interrogatório lhe mostrou a verdade, mas estava claro que eu não poderia enganá-
lo. Ele enfiou a mão em uma gaveta lateral e remexeu furiosamente. Então, algo lhe
chamou a atenção, pois ele permaneceu ouvindo atentamente.
— “Ah!” — ele gritou. — “Ah!” — e entrou correndo no quarto atrás dele. Dois
passos me levaram até a porta aberta, e minha mente sempre terá uma imagem clara
da cena que se passava lá dentro. A janela que dava para o jardim estava escancarada.
Ao lado dela, parecendo um fantasma terrível, com a cabeça coberta de bandagens
ensanguentadas e o rosto branco e desenhado, estava Sherlock Holmes. No instante
seguinte, ele passou pela fresta, e ouvi o estrondo de seu corpo entre os arbustos de
louro do lado de fora. Com um uivo de raiva, o dono da casa correu atrás dele até a
janela aberta.
E então! Ocorreu subitamente, e ainda assim, eu vi claramente. Um braço – o
braço de uma mulher – saiu de entre as folhas. No mesmo instante, o barão soltou um
grito horrível – um grito que ficará marcado em minha memória. Ele levou as duas mãos
ao rosto e correu pela sala, batendo a cabeça horrivelmente contra as paredes. Depois,
caiu no carpete, rolando e se contorcendo, enquanto gritos e mais gritos ecoavam pela
casa.
— Água! Pelo amor de Deus, água! — ele gritava.
Peguei uma garrafa em uma mesa lateral e corri para ajudá-lo. No mesmo
instante, o mordomo e vários lacaios vieram correndo do saguão. Lembro-me de que um
deles desmaiou quando me ajoelhei ao lado do homem ferido e virei aquele rosto horrível
para a luz da lâmpada. O ácido sulfúrico estava consumindo-o por toda parte e pingando
das orelhas e do queixo. Um olho já estava branco e vidrado. O outro estava vermelho e
inflamado. As feições que eu havia admirado alguns minutos antes eram agora como
uma bela pintura sobre a qual o artista passou uma esponja úmida e suja. Estavam
borradas, descoloridas, desumanas, terríveis.
Em poucas palavras, expliquei exatamente o que havia ocorrido, no que se refere
ao ataque com o ácido. Alguns haviam entrado pela janela e outros correram para o
gramado, mas estava escuro e havia começado a chover. Entre seus gritos, a vítima se
enfurecia e se queixava contra o vingador. — Foi aquela criatura dos infernos, Kitty
Winter! — gritou ele. — Oh, a demônio! Ela deve pagar por isso! Ela deve pagar! Oh,
Deus do céu, essa dor é mais do que posso suportar!
Banhei seu rosto com óleo, coloquei algodão nas superfícies cruas e administrei
uma hipodérmica de morfina. Toda a suspeita sobre mim havia desaparecido de sua
mente diante desse choque, e ele se agarrou às minhas mãos como se eu ainda pudesse
limpar aqueles olhos de peixe morto que me fitavam. Eu poderia ter chorado sobre a
ruína se não tivesse me lembrado claramente da vida vil que levou a uma mudança tão
hedionda. Era repugnante sentir as palmas de suas mãos em chamas, e fiquei aliviado
quando o cirurgião de sua família, seguido de perto por um especialista, veio me aliviar
de minha responsabilidade. Um inspetor de polícia também havia chegado e, a ele,
entreguei meu cartão verdadeiro. Teria sido inútil e tolo fazer o contrário, posto que eu
era quase tão conhecido na Yard quanto o próprio Holmes. Então, deixei aquela casa de
escuridão e terror. Em uma hora, estava na Baker Street.
Holmes estava sentado em sua cadeira de sempre, parecendo muito pálido e
exausto. Além de seus ferimentos, até mesmo seus nervos de ferro haviam sido
abalados pelos eventos da noite, e ele ouviu com horror meu relato sobre a
transformação do barão.
— O salário do pecado, Watson... o salário do pecado! — disse ele. — Mais cedo
ou mais tarde, ele sempre virá. Deus sabe que já houve pecado suficiente —
acrescentou, pegando um volume marrom da mesa. — Este é o livro de que a mulher
falou. Se isso não acabar com o casamento, nada poderá acabar. Mas ele vai, Watson.
Tem de acabar. Nenhuma mulher que se preze poderia suportar isso.
— É o diário de amor dele?
— Ou seu diário de luxúria. Chame como quiser. No momento em que a mulher
nos contou sobre ele, percebi a tremenda arma que havia ali se pudéssemos colocar as
mãos nele. Na época, não disse nada que indicasse meus pensamentos, pois a mulher
poderia tê-lo revelado. Mas fiquei refletindo sobre o assunto. Então, esse ataque contra
mim foi a minha chance de deixar o barão pensar que não era necessário tomar
precauções contra mim. Isso foi esplêndido. Eu teria esperado um pouco mais, mas sua
visita à América forçou minha decisão. Ele jamais deixaria um documento tão
comprometedor para trás. Portanto, tivemos de agir imediatamente. É impossível fazer
um roubo à noite. Ele toma precauções. Mas havia uma chance à noite, se eu pudesse
ter certeza de que a atenção dele estava comprometida. Foi aí que você e seu pires azul
entraram em cena. Mas eu tinha que ter certeza da posição do livro e sabia que tinha
apenas alguns minutos para agir, pois meu tempo era limitado pelo seu conhecimento
de cerâmica chinesa. Portanto, peguei a garota no último momento. Como eu poderia
adivinhar o que era o pequeno pacote que ela carregava tão cuidadosamente sob a
capa? Pensei que ela tivesse vindo para tratar de meus negócios, mas parece que ela
também tinha alguns.
— Ele adivinhou que eu você me enviou.
— Eu temia que sim. Mas você o segurou por tempo suficiente para que eu
pegasse o livro, embora não o suficiente para escapar sem ser observado. Ah, Sir James,
estou muito feliz por você ter vindo!
Nosso amigo cortês havia aparecido em resposta a uma convocação anterior. Ele
ouviu com a maior atenção o relato de Holmes sobre o que havia acontecido.
— Você fez maravilhas! Maravilhas! — ele gritou depois de ouvir a narrativa. —
Mas se esses ferimentos são tão terríveis quanto o Dr. Watson descreve, então
certamente nosso objetivo de impedir o casamento é suficientemente alcançado sem o
uso desse livro horrível.
Holmes balançou a cabeça.
— Mulheres do tipo De Merville não agem assim. Ela o amaria ainda mais como
um mártir desfigurado. Não, não. É o lado moral dele, não o físico, que temos de destruir.
Esse livro a trará de volta à realidade, e não conheço nada mais que possa fazê-lo. Está
em sua própria escrita. Ela não conseguirá passar por ele.
— Sir James levou o livro e o precioso pires. Como eu mesmo estava atrasado, o
acompanhei até a rua. Uma charrete estava esperando por ele. Ele entrou, deu uma
ordem apressada ao cocheiro e partiu rapidamente. Jogou seu sobretudo para fora da
janela para cobrir as inscrições do escudo sobre painel, mas, mesmo assim, eu as vi sob
o brilho da luz da nossa claraboia. Arfei de surpresa. Então, voltei para trás e subi a
escada para o quarto de Holmes.
— Descobri quem é nosso cliente — gritei, explodindo com minha grande notícia.
— Ora, Holmes, é...
— É um amigo leal e um nobre cavalheiro — disse Holmes, erguendo a mão para
me conter. — Que isso seja suficiente para nós, agora e sempre.
Não sei dizer como o livro incriminador foi utilizado. Sir James pode ter conseguido
isto. Ou é mais provável que uma tarefa tão delicada tenha sido confiada ao pai da jovem.
O efeito, de qualquer forma, foi tudo o que se poderia desejar. Três dias depois, apareceu
um parágrafo no Morning Post dizendo que o casamento entre o barão Adelbert Gruner
e a Srta. Violet de Merville não seria realizado. O mesmo jornal publicou a primeira
audiência no tribunal da polícia sobre o processo contra a Srta. Kitty Winter, sob a grave
acusação de ter jogado ácido sulfúrico. As circunstâncias atenuantes do julgamento
foram tantas que a sentença, como deve ser lembrado, foi a menor possível para tal
delito. Sherlock Holmes foi ameaçado com um processo por roubo, mas, quando um
objetivo é bom e um cliente é suficientemente ilustre, até mesmo a rígida lei britânica se
torna humana e flexível. Meu amigo ainda não foi levado ao banco dos réus.
Tradutor: Paulo Cilas de Oliveira Júnior
Revisora: Larissa Silva Leitão Daroda

Paratexto

O conto “O Soldado Desvanecido”, que integra a coletânea O livro dos casos de


Sherlock Holmes, tem a particularidade de ser narrado pelo próprio Sherlock, em vez de
pelo Dr. Watson, como de costume. De acordo com a história, Watson estava casado na
época e, portanto, não participou dessa aventura junto com Sherlock. É apresentada a
história do Sr. James M. Dodd, que está à procura de um companheiro de armas.
O maior desafio tradutório foi tentar manter, no português, uma linguagem
parecida com aquela do conto original, mas que não fosse tão rebuscada a ponto de a
história se tornar difícil de compreender. Os discursos da época em que o conto foi escrito
eram bastante formais e isso foi preservado na tradução, mas de uma forma que tentou
não ficar pedante para o leitor.
Outro desafio foi encontrar traduções para o vocabulário específico que tratava do
exército e da guerra de boêr, como “Imperial Yeomanry”, que foi traduzido como
“Unidade da Guarda Imperial”, e “Middlesex Corps”, que teve como tradução
“Corporação Middlesex”.
A tradução do título do conto foi feita pensando em uma maneira de não entregar
o desfecho da história, afinal, é um conto de investigação que prende o leitor justamente
pelo mistério. A palavra "Blanched", no original em inglês, poderia ser traduzida ao pé da
letra, mas além de conter um spoiler, perderia a ambiguidade contida na própria palavra.
O soldado do título é apresentado na história em 3 momentos, sendo que no primeiro
deles, inaugurando a problemática do conto, está desaparecido. A escolha de
"desvanecido" foi feita por ser um termo que contém em si possibilidades de
interpretações distintas. Desvanecer pode ser o ato de sumir, mas também de dissipar
no ar, como uma aparição, ou mesmo de ir se apagando, perdendo o brilho e a cor. Os
sentidos contidos na palavra poderiam, portanto, abarcar os momentos distintos em que
o soldado é apresentado ao leitor, sem entregar de fato o que aconteceu com ele.

Perfil do tradutor

Paulo Cilas de Oliveira Junior é tradutor, escritor e bacharel em Letras-Tradução


pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). É mestrando em Estudos Literários
na mesma instituição, onde pesquisa tradução de literatura de língua inglesa sob um viés
intersemiótico. É ainda licenciado em língua e literatura italiana, também pela UFJF.
Publicou alguns livros pela Amazon, entre eles estão “Cadernos e Águas Vivas” e “A
Sociedade Secreta”.
O SOLDADO DESVANECIDO

As ideias do meu amigo Watson, apesar de limitadas, são extremamente obstinadas.


Durante muito tempo, ele me importunou para eu escrever uma experiência por conta
própria. Talvez eu tenha incentivado essa insistência, porque muitas vezes tive a
oportunidade de lhe mostrar quão superficiais são os seus relatos e de acusá-lo de
agradar ao gosto popular, em vez de se limitar rigidamente a fatos e números.
“Experimente você mesmo, Holmes!” ele respondia, e sou obrigado a admitir que, tendo
pegado minha caneta na mão, começo a perceber que o assunto deve ser apresentado
de uma forma que possa interessar ao leitor. O caso a seguir dificilmente deixará de fazê-
lo, porque está entre os acontecimentos mais estranhos da minha coleção, embora tenha
sucedido que Watson não tivesse nenhum registro disso em sua coleção. Falando do
meu velho amigo e biógrafo, gostaria de aproveitar esta oportunidade para observar que,
se me sobrecarrego com um companheiro nas minhas pequenas e variadas
investigações, não é por sentimentalismo ou capricho, mas porque Watson tem algumas
características próprias notáveis, às quais, em sua modéstia, ele deu pouca atenção, em
meio às suas estimativas exageradas de meu próprio desempenho. Um aliado que prevê
suas conclusões e sua linha de conduta é sempre perigoso, mas aquele para quem cada
desenvolvimento é uma surpresa perpétua e para quem o futuro é sempre um livro
fechado é de fato um companheiro ideal.
Descubro em meu caderno que foi em janeiro de 1903, logo depois do fim da Guerra
dos Bôeres, que recebi minha visita do Sr. James M. Dodd, um grande, viçoso,
bronzeado, íntegro britânico. O bom Watson havia nessa época me abandonado por uma
esposa, a única ação egoísta de que me lembro em nossa parceria. Eu estava sozinho.
Era meu costume sentar com as costas para a janela e posicionar minhas visitas na
cadeira oposta, onde a luz cai em cheio sobre elas. O Sr. James M. Dodd parecia de
algum modo perdido sobre como começar a entrevista. Eu não tentei ajudá-lo, porque
seu silêncio me deu mais tempo para observação. Havia descoberto que era prudente
impressionar clientes com um senso de poder, então dei a ele algumas das minhas
conclusões.
— Percebo que o senhor vem da África do Sul.
— Sim, senhor — ele respondeu, com alguma surpresa.
— Unidade da Guarda Imperial, imagino.
— Exatamente.
— Corporação Middlesex, sem dúvida.
— É isso mesmo. Sr. Holmes, o senhor é um mago.
Sorri diante de sua expressão confusa.
— Quando um cavalheiro de aparência viril entra na minha sala com tal bronzeado
em seu rosto que um sol inglês nunca poderia dar, e com o lenço em sua manga em vez
de no bolso, não é difícil saber sua posição. O senhor usa uma barba curta, o que mostra
que não está na ativa. Tem a postura de um cavaleiro. Quanto a Middlesex, seu cartão
já me mostrou que você é corretor da bolsa de valores da Rua Throgmorton. Em que
outro regimento ingressaria?
— O senhor vê tudo.
— Não vejo mais que o senhor, mas me treinei para reparar no que vejo. Entretanto,
Sr. Dodd, não foi para discutir a ciência da observação que o senhor me chamou esta
manhã. O que aconteceu em Tuxbury Old Park?
— Sr. Holmes...!
— Meu caro senhor, não há nenhum mistério. Sua carta veio com aquele cabeçalho,
e quando você marcou esse encontro em termos muito urgentes, ficou nítido que algo
repentino e importante havia ocorrido.
— Sim, de fato. Mas a carta foi escrita durante a tarde, e muita coisa aconteceu
desde então. Se o Coronel Emsworth não tivesse me expulsado…
— Expulsado!
— Bem, foi praticamente isso o que aconteceu. Ele é um osso duro, esse Coronel
Emsworth. O maior disciplinador do Exército em sua época, e também foi uma época de
linguagem grosseira. Eu não poderia ter tolerado o coronel se não fosse por Godfrey.
Acendi meu cachimbo e recostei-me na cadeira.
— Talvez o senhor queira explicar do que está falando.
Meu cliente sorriu maliciosamente.
— Eu comecei a supor que o senhor sabia de tudo sem ser informado —, disse ele.
— Mas eu lhe darei os fatos, e espero, por Deus, que o senhor seja capaz de me dizer
o que eles significam. Fiquei acordado a noite toda confundindo meu cérebro, e quanto
mais eu penso, mais incrível isso se parece.
“Quando me alistei em janeiro de 1901 – há apenas dois anos – o jovem Godfrey
Emsworth havia ingressado no mesmo esquadrão. Ele era o único filho do Coronel
Emsworth — Emsworth, o veterano da Guerra da Crimeia — e ele tinha o sangue de
combatente em si, por isso não é de admirar que tenha se alistado como voluntário. Não
havia rapaz melhor no regimento. Fizemos amizade — o tipo de amizade que só pode
ser construída quando se vive a mesma vida e se compartilha as mesmas alegrias e
tristezas. Ele era meu companheiro — e isso significa muito no Exército. Enfrentamos
momentos difíceis e leves juntos durante um ano de lutas duras. Então, ele foi atingido
por uma bala de uma arma de caça de elefantes, em uma ação perto de Diamond Hill,
nos arredores de Pretória. Recebi uma carta do hospital da Cidade do Cabo e outra de
Southampton. Desde então, nenhuma palavra — nenhuma mesmo, Sr. Holmes, por seis
meses, talvez mais, e ele é meu amigo mais próximo.
“Bem, quando a Guerra acabou, e todos nós voltamos, escrevi para o pai dele e
perguntei onde Godfrey estava. Sem resposta. Esperei um pouco, então escrevi de novo.
Desta vez, recebi uma resposta, curta e grossa. Godfrey tinha ido em uma viagem ao
redor do mundo, e não era provável que ele estivesse de volta por um ano. Isso foi tudo.
“Eu não fiquei satisfeito, Sr. Holmes. A coisa toda não me pareceu nada natural. Ele
era um bom rapaz e não abandonaria um amigo daquele jeito. Isso não era de seu feitio.
Então eu soube que ele era herdeiro de muito dinheiro, e também que seu pai e ele nem
sempre se deram muito bem. O velho às vezes era intimidador, e o jovem Godfrey era
genioso demais para suportar. Não, eu não estava satisfeito, e estava determinado a ir
até o cerne da questão. Aconteceu, no entanto, que meus próprios negócios precisavam
de bastante atenção, depois de uma ausência de dois anos, então foi só esta semana
que fui capaz de voltar ao caso de Godfrey novamente. Mas, agora que comecei,
pretendo largar tudo para poder ir até o fim.”
O Sr. James M. Dodd parecia ser o tipo de pessoa que era melhor ter como amigo
do que como inimigo. Seus olhos azuis eram severos e seu queixo quadrado endurecia
enquanto ele falava.
— Bem, o que o senhor fez? — eu perguntei.
— Meu primeiro passo foi ir até sua casa, Tuxbury Old Park, perto de Bedford, e ver
com meus próprios olhos como estava a situação. Escrevi para a mãe, então — já estava
farto do velho ranzinza — e investi sem rodeios: Godfrey era meu amigo, eu tinha muito
interesse de contar a ela sobre nossas experiências em comum, eu estaria na
vizinhança, haveria alguma objeção, etc.? Em retorno, recebi dela uma resposta bastante
amigável e uma oferta de me hospedar durante a noite. Foi isso que me fez partir na
segunda-feira.
“Tuxbury Old Hall é inacessível — oito quilômetros de qualquer lugar. Não havia
transporte na estação, então tive que andar, carregando minha mala, e já estava
escurecendo quando cheguei. É uma casa grande, em um terreno amplo, situada em um
parque considerável. Eu diria que a casa era de todas as épocas e estilos, começando
com a fundação elisabetana em enxaimel e terminando com o pórtico vitoriano. Lá dentro
havia painéis, tapeçarias e quadros antigos meio apagados, uma casa de sombras e
mistério. Havia um mordomo, o velho Ralph, que parecia ter a mesma idade da casa, e
tinha sua esposa, que talvez fosse mais velha. Ela foi a babá de Godfrey, e eu o ouvi
falar dela como a segunda pessoa de que mais gostava, atrás apenas de sua mãe, então
eu simpatizei com ela, apesar de sua aparência estranha. Da mãe eu também gostei —
uma mulher gentil como um camundongo branco. Foi apenas o próprio coronel que não
me desceu.
“Tivemos uma desavença logo que cheguei, e eu deveria ter voltado até a estação
se não tivesse sentido que ele estava tramando um de seus joguinhos para que eu
fizesse isso. Fui direto para seu escritório e lá o encontrei, um homem enorme, de costas
arqueadas, pele fosca e barba grisalha rala, sentado atrás de sua mesa bagunçada. Um
nariz com veias vermelhas se projetava como o bico de um abutre, e dois ferozes olhos
cinzentos me encaravam por baixo das sobrancelhas espessas. Eu podia entender agora
por que Godfrey raramente falava do pai.
“— Bem, senhor, — ele disse com uma voz áspera, — eu gostaria de saber os
verdadeiros motivos desta visita.
“Eu respondi que os expliquei em minha carta para sua esposa.
“— Sim, sim, o senhor disse que conheceu Godfrey na África. Nós temos, é claro,
apenas a sua palavra para garantir isso.
“— Tenho as cartas que ele enviou para mim em meu bolso.
“— Faça a gentileza de me deixar vê-las.
“Ele olhou para as duas que entreguei a ele, e depois as jogou de volta.
“— Bem, e então? — ele perguntou.
“— Eu gostava de seu filho, Godfrey, senhor. Muitos laços e memórias nos uniram.
Não é natural que eu me espante com seu súbito silêncio e deseje saber o que aconteceu
com ele?
“— Tenho algumas lembranças, senhor, de que já me correspondi com o senhor e
lhe contei o que havia acontecido com ele. Ele fez uma viagem ao redor do mundo. A
sua saúde estava debilitada depois das suas experiências africanas, e tanto sua mãe
quanto eu éramos da opinião que era necessário um descanso completo e uma
mudança. Por favor, repasse essa explicação a quaisquer outros amigos que possam
estar interessados no assunto.
“— Certamente, — eu respondi. — Mas talvez o senhor teria a bondade de me
informar o nome do vapor e da linha pela qual ele viajou, junto com a data. Não tenho
dúvida de que conseguiria enviar uma carta para ele.
“Meu pedido pareceu ao mesmo tempo confundir e irritar meu anfitrião. Suas grandes
sobrancelhas desceram sobre os olhos e ele bateu os dedos impacientemente na mesa.
Ele finalmente olhou para cima, com a expressão de alguém que viu seu adversário fazer
uma jogada perigosa no xadrez e decidiu como enfrentá-la.
“— Muitas pessoas, Sr. Dodd, — disse ele, — ficariam ofendidas com a sua
persistência infernal e pensaria que essa insistência chegou ao ponto da maldita
impertinência.
“— O senhor deve atribuir isso, senhor, ao meu verdadeiro afeto por seu filho.
“— Exatamente. Já fiz todas as considerações por causa disso. Eu devo lhe pedir,
no entanto, que abandone esses questionamentos. Toda família tem seus próprios
segredos e seus próprios motivos, que nem sempre podem ficar claros para pessoas de
fora, mesmo que bem intencionadas. Minha esposa está ansiosa para ouvir algo sobre
o passado de Godfrey, que o senhor tem condições de contar a ela, mas eu pediria que
deixasse o presente e o futuro em paz. Esses questionamentos não têm nenhum
propósito útil, senhor, e nos colocam numa posição delicada e difícil.
“Então cheguei a um beco sem saída, Sr. Holmes. Não tinha como ultrapassar essa
barreira. Eu só podia fingir que aceitava a situação e fazer um voto interior de que nunca
descansaria até que o paradeiro do meu amigo fosse esclarecido. Foi uma noite
monótona. Jantamos em silêncio, nós três, em uma velha sala sombria e desbotada. A
senhora me questionou ansiosamente sobre seu filho, mas o velho parecia taciturno e
deprimido. Eu estava tão entediado com todo o processo que dei uma desculpa assim
que pude e me retirei para o meu quarto. Era um quarto grande e vazio no térreo, tão
sombrio quanto o resto da casa, mas depois de um ano dormindo na savana, Sr. Holmes,
a pessoa não fica muito exigente com seus aposentos. Abri as cortinas e olhei para os
jardins lá fora, observando que estava uma bela noite, com uma meia-lua brilhante. Então
sentei perto do fogo crepitante, com a lamparina sobre uma mesa ao meu lado, e tentei
distrair minha mente com um romance. Fui interrompido, porém, por Ralph, o velho
mordomo, que entrou com um novo suprimento de carvão.
“— Pensei que pudesse acabar durante a noite, senhor. O clima está desagradável
e esses quartos são frios.
“Ele hesitou antes de deixar o quarto e, quando olhei em volta, ele estava parado me
encarando com um olhar suplicante em seu rosto enrugado.
“— Perdoe-me, senhor, mas não pude deixar de ouvir o que o senhor disse sobre o
jovem Mestre Godfrey durante o jantar. O senhor sabe, senhor, que minha esposa foi
sua babá, então posso dizer que sou seu pai adotivo. É natural que tenhamos algum
interesse. E o senhor disse que ele se portou bem, senhor?
“— Não havia homem mais corajoso no regimento. Ele me tirou uma vez da mira dos
rifles dos Bôeres, eu não estaria aqui se não fosse isso.
“O velho mordomo esfregou suas mãos magras.
“— Sim, senhor, sim, isso é bem do feitio do Mestre Godfrey. Ele sempre foi corajoso.
Não existe uma árvore no parque, senhor, que ele não tenha escalado. Nada era capaz
de pará-lo. Ele era um bom garoto — e ah, senhor, ele era um bom homem.
“Eu fiquei de pé num pulo.
“— Olha aqui! — Eu gritei. — Você disse que ele era. Você fala como se ele estivesse
morto. O que é todo esse mistério? O que houve com Godfrey Emsworth?
“Agarrei o velho pelo ombro, mas ele se encolheu.
“— Não sei o que o senhor quer dizer, senhor. Pergunte ao amo sobre o Mestre
Godfrey. Ele sabe. Não cabe a mim interferir.
“Ele estava saindo do quarto, mas segurei seu braço.
“— Ouça, — eu disse. — Você vai responder a uma pergunta antes de sair, mesmo
que eu precise segurá-lo a noite toda. Godfrey está morto?
“Ele não conseguia me olhar nos olhos. Era como um homem hipnotizado. A
resposta foi arrastada de seus lábios. Uma resposta terrível e inesperada.
“— Quisera Deus que ele estivesse! — ele exclamou e, libertando-se, saiu apressado
do quarto.
“O senhor vai pensar, Sr. Holmes, que voltei para a minha cadeira em um estado de
espírito não muito feliz. As palavras do velho pareciam ter apenas uma interpretação
para mim. Era evidente que meu pobre amigo se envolvera em alguma transação
criminosa ou, pelo menos, desonrosa, que afetava a honra da família. Aquele velho
severo mandou seu filho embora e o escondeu do mundo para que algum escândalo não
viesse à tona. Godfrey era um sujeito imprudente. Ele era facilmente influenciado por
aqueles ao seu redor. Sem dúvida ele caiu em mãos erradas e foi levado à ruína. Era
uma situação lamentável, se é que realmente era verdade, mas, mesmo assim, era meu
dever procurá-lo e ver se poderia ajudá-lo. Eu estava pensando ansiosamente sobre o
assunto, quando olhei para cima e lá estava Godfrey Emsworth, parado diante de mim.”
Meu cliente fez uma pausa, como alguém profundamente emocionado.
— Por favor, continue — eu disse. — Seu problema apresenta algumas
características muito incomuns.
— Ele estava do lado de fora da janela, Sr. Holmes, com o rosto pressionado contra
o vidro. Eu lhe disse que olhei para a noite. Quando fiz isso, deixei as cortinas
parcialmente abertas. Sua figura estava enquadrada nessa abertura. A janela descia até
o chão e eu podia ver toda a extensão, mas foi seu rosto que prendeu meu olhar. Ele
estava mortalmente pálido – nunca vi um homem tão branco. Entendo que fantasmas
podem ter essa aparência; mas seus olhos encontraram os meus, e eram olhos de um
homem vivo. Ele saltou para trás quando viu que eu estava olhando para ele e
desvaneceu na escuridão.
“Havia algo de chocante naquele homem, Sr. Holmes. Não era apenas aquela face
medonha, brilhante e branca como um queijo na escuridão. Era mais sutil que isso —
algo encoberto, algo furtivo, algo carregado de culpa — algo muito diferente do rapaz
franco e viril que eu conheci. Aquilo deixou uma sensação de horror em minha mente.
“Mas quando um homem é soldado por um ou dois anos, tendo o irmão Bôer como
adversário, ele mantém a cabeça no lugar e age rapidamente. Godfrey mal tinha
desaparecido e eu já estava à janela. Havia um trinco estranho e levei algum tempo para
conseguir abri-lo. Então atravessei e corri pelo caminho do jardim, na direção que pensei
que ele poderia ter tomado.
“Era um caminho longo e a luz não era muito boa, mas parecia-me que algo se movia
à minha frente. Eu corri e chamei seu nome, mas foi inútil. Quando cheguei ao fim do
caminho, havia vários outros, que se bifurcavam em diferentes direções, para várias
dependências externas. Parei, hesitando, e quando fiz isso, escutei nitidamente o som
de uma porta se fechando. Não veio de trás de mim, na casa, mas da minha frente, em
algum lugar na escuridão. Isso foi suficiente, Sr. Holmes, para garantir que o que eu tinha
visto não foi uma aparição. Godfrey havia corrido de mim, e ele fechou uma porta atrás
de si. Disso eu estava seguro.
“Não havia mais nada que eu pudesse fazer, e passei uma noite inquieta, remoendo
o assunto em minha mente e tentando encontrar alguma teoria que pudesse explicar os
fatos. No dia seguinte, achei o coronel um pouco mais conciliador e, como a sua mulher
comentou que havia alguns locais de interesse na vizinhança, tive a oportunidade de
perguntar se a minha presença por mais uma noite os incomodaria. Um consentimento
um tanto relutante do velho me deu um dia inteiro para fazer minhas observações. Eu já
estava perfeitamente convencido de que Godfrey estava escondido em algum lugar
próximo, mas ainda não se sabia onde e por quê.
“A casa era tão grande e tão labiríntica, que um regimento inteiro poderia estar
escondido nela e ninguém saberia. Se o segredo estivesse nela, seria difícil para mim
desvendá-lo. Mas a porta que ouvi fechar certamente não estava na casa. Eu devia
explorar o jardim e ver o que podia encontrar. Não houve dificuldade no caminho, pois
os velhos estavam ocupados com seus afazeres e me deixaram entregue à minha
própria sorte.
“Havia várias dependências externas pequenas, mas no final do jardim havia uma
construção separada de tamanho considerável – grande o suficiente para ser a
residência de um jardineiro ou de um guarda-caça. Poderia ser aquele o lugar de onde
veio o som daquela porta se fechando? Aproximei-me dela de maneira descuidada, como
se estivesse passeando sem rumo pelo terreno. Ao fazer isso, um homem pequeno,
vigoroso e barbudo, de casaco preto e chapéu-coco — que não fazia nada o tipo de
jardineiro — saiu pela porta. Para minha surpresa, ele a trancou atrás de si e colocou a
chave no bolso. Então ele olhou para mim com alguma surpresa no rosto.
“— O senhor é um visitante aqui? — ele perguntou.
“Expliquei que era e que era amigo de Godfrey.
“— É uma pena que ele tenha viajado, pois ele teria gostado muito de me ver —
continuei.
“— Exatamente. Exatamente — disse ele com um ar um tanto culpado. — Sem
dúvida, o senhor o visitará novamente, em algum momento mais propício. — Ele passou,
mas, quando me virei, observei que ele estava parado me observando, meio escondido
pelos loureiros no outro extremo do jardim.
“Dei uma boa olhada na casinha ao passar por ela, mas as janelas estavam
fortemente fechadas e, até onde se podia ver, estava vazia. Eu poderia entregar meu
jogo e até ser expulso do local se fosse muito audacioso, porque ainda tinha consciência
de que estava sendo observado. Portanto, voltei para casa e esperei anoitecer antes de
prosseguir com a minha investigação. Quando tudo ficou escuro e silencioso, saí pela
janela e caminhei o mais silenciosamente possível até a misteriosa construção.
“Eu disse que estava com cortinas pesadas, mas agora descobri que as janelas
também estavam fechadas. Um pouco de luz, entretanto, estava atravessando uma
delas, então concentrei minha atenção nela. Tive sorte, pois a cortina não estava
totalmente fechada e havia uma fresta na veneziana, de modo que pude ver o interior da
sala. Era um lugar bastante alegre, com uma lâmpada brilhante e um fogo ardente. À
minha frente, estava sentado o homenzinho que eu vira pela manhã. Ele estava fumando
cachimbo e lendo um jornal.”
— Que jornal? — Perguntei.
Meu cliente pareceu irritado com a interrupção de sua narrativa.
— Isso é importante? — ele perguntou.
— É extremamente essencial.
— Eu realmente não prestei atenção.
— Possivelmente, o senhor observou se era um jornal de folha larga ou daquele tipo
menor, que se associa aos semanais.
— Agora que o senhor mencionou, não era grande. Poderia ser The Spectator. No
entanto, não pensei muito em tais detalhes, pois um segundo homem estava sentado de
costas para a janela, e eu poderia jurar que esse segundo homem era Godfrey. Não
conseguia ver seu rosto, mas conhecia a inclinação familiar de seus ombros. Ele estava
apoiado no cotovelo, numa atitude de grande melancolia, com o corpo voltado para o
fogo. Eu estava hesitando sobre o que deveria fazer, quando ouvi uma batida forte em
meu ombro e o coronel Emsworth estava ao meu lado.
“— Por aqui, senhor! — disse ele em voz baixa. Ele caminhou em silêncio até a casa
e eu o segui até meu próprio quarto. Ele havia pegado um horário no corredor.
“— Há um trem para Londres às oito e meia — disse ele. — A charrete estará na
porta às oito.
“Ele estava branco de raiva e, de fato, eu me sentia numa posição tão difícil, que só
consegui balbuciar algumas desculpas incoerentes, com as quais tentei me justificar,
alegando minha preocupação pelo meu amigo.
“— O assunto não está aberto a discussão — disse ele abruptamente. — O senhor
fez uma intrusão terrível na privacidade de nossa família. Estava aqui como convidado e
se tornou um espião. Não tenho mais nada a dizer, senhor, exceto que não desejo vê-lo
novamente.
“Com isso, perdi a paciência, Sr. Holmes, e falei com certo entusiasmo.
“— Eu vi seu filho e estou convencido de que, por algum motivo, o senhor o está
escondendo do mundo. Não tenho ideia de quais são seus motivos para escondê-lo
dessa maneira, mas tenho certeza de que ele não é mais um homem livre. Eu o aviso,
Coronel Emsworth, que até ter certeza da segurança e do bem-estar do meu amigo,
nunca desistirei dos meus esforços para chegar ao fundo do mistério, e certamente não
me permitirei ser intimidado por qualquer coisa que o senhor possa dizer ou fazer.
“O velho parecia diabólico e eu realmente pensei que ele estava prestes a me atacar.
Eu havia dito que ele era um velho gigante, magro e feroz, e embora eu não seja fraco,
talvez fosse difícil me defender dele. No entanto, depois de um longo olhar de raiva, ele
se virou e saiu da sala. De minha parte, tomei o trem marcado pela manhã, com a
intenção de vir direto até o senhor e pedir seu conselho e assistência, conforme já havia
escrito.”
Esse foi o problema que meu visitante me apresentou. Apresentou, como o leitor
astuto já terá percebido, algumas dificuldades na sua solução, pois são muito limitadas
as alternativas que me permitem chegar à raiz da questão. Ainda assim, por mais
elementar que fosse, havia pontos interessantes e novos naquilo que podiam justificar
meu registro. Procedi então, usando meu método familiar de análise lógica, para
restringir as soluções possíveis.
— Os criados, — perguntei; — quantos havia na casa?
— Até onde eu sei, havia apenas o velho mordomo e sua esposa. Eles pareciam
viver da maneira mais simples.
— Não havia nenhum criado, então, na casa separada?
— Nenhum, a menos que o homenzinho de barba fosse um. Ele parecia, no entanto,
ser uma pessoa bastante superior.
— Isso parece muito sugestivo. O senhor tinha alguma indicação de que a comida
era transportada de uma casa para outra?
— Agora que o senhor mencionou, eu vi o velho Ralph carregando uma cesta pelo
caminho do jardim e indo na direção desta casa. A ideia de comida não me ocorreu
naquele momento.
— O senhor fez alguma investigação local?
— Sim, eu fiz. Falei com o chefe da estação e também com o estalajadeiro da aldeia.
Simplesmente perguntei se eles sabiam alguma coisa sobre meu antigo camarada,
Godfrey Emsworth. Ambos me garantiram que ele havia feito uma viagem ao redor do
mundo. Ele havia voltado para casa e, quase imediatamente, partiu de novo. A história
foi evidentemente aceita por todos.
— O senhor não disse nada sobre suas suspeitas?
— Nada.
— Isso foi muito sábio. O assunto certamente deveria ser investigado. Voltarei com
o senhor para Tuxbury Old Park.
— Hoje?
Acontecia que, naquele momento, eu estava esclarecendo o caso que meu amigo
Watson descreveu como sendo da Abbey School, no qual o duque de Greyminster
estava tão profundamente envolvido. Recebi também uma comissão do Sultão da
Turquia que apelava a uma ação imediata, uma vez que poderiam surgir consequências
políticas das mais graves com sua negligência. Portanto, foi somente no início da
semana seguinte, como registra meu diário, que pude iniciar minha missão em
Bedfordshire, na companhia do Sr. James M. Dodd. No caminho para Euston,
encontramos um cavalheiro sério e taciturno, de aspecto acinzentado, com quem eu
havia feito os preparativos necessários.
“Este é um velho amigo”, disse eu a Dodd. “É possível que a sua presença seja
totalmente desnecessária e, por outro lado, pode ser essencial. Não é necessário, no
atual momento, aprofundar o assunto.”
As narrativas de Watson acostumaram o leitor, sem dúvida, ao fato de que eu não
desperdiço palavras nem revelo meus pensamentos enquanto um caso está realmente
sob consideração. Dodd pareceu surpreso, mas nada mais foi dito e nós três
continuamos nossa jornada juntos. No trem, fiz mais uma pergunta a Dodd, que desejava
que nosso companheiro ouvisse.
— O senhor afirma que viu o rosto do seu amigo claramente na janela, tão
claramente que tem certeza da identidade dele?
— Não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Seu nariz estava pressionado contra o
vidro. A luz da lamparina brilhou intensamente sobre ele.
— Não poderia ter sido alguém parecido com ele?
— Não, não, foi ele.
— Mas o senhor diz que ele mudou?
— Só a cor. Seu rosto estava — como posso descrever? — era da brancura de uma
barriga de peixe. Estava desbotado.
— Era igualmente pálido no restante?
— Eu acho que não. Foi sua testa que eu vi mais claramente, quando pressionada
contra a janela.
— O senhor o chamou?
— Fiquei muito assustado e horrorizado no momento. Então eu o persegui, como já
lhe contei, mas sem resultado.
Meu caso estava praticamente concluído e só seria necessário um pequeno
incidente para fechá-lo. Quando, depois de uma viagem considerável, chegamos à
estranha e velha casa que meu cliente havia descrito, foi Ralph, o mordomo idoso, quem
abriu a porta. Eu havia requisitado a carruagem para o dia todo e pedi ao meu amigo
idoso que permanecesse nela, a menos que o convocássemos. Ralph, um velhinho
enrugado, usava o traje convencional de casaco preto e calças acinzentadas, com
apenas uma variante curiosa. Ele usava luvas de couro marrom, que, ao nos ver, ele
imediatamente tirou, colocando-as sobre a mesa do corredor quando entramos. Tenho,
como meu amigo Watson deve ter observado, um conjunto de sentidos anormalmente
aguçado e senti um leve aroma, mas era incisivo e aparente. Parecia centrar-se na mesa
do hall. Voltei, coloquei meu chapéu ali, derrubei-o, abaixei-me para pegá-lo e consegui
colocar meu nariz a trinta centímetros das luvas. Sim, era sem dúvida delas que exalava
o curioso odor de alcatrão. Quando passei para o escritório, tinha meu caso completo.
Que pena que eu tenha que mostrar meu jogo ao contar minha própria história! Era
ocultando esses elos da cadeia que Watson conseguia produzir seus finais incríveis.
O Coronel Emsworth não estava em sua sala, mas chegou rapidamente ao receber
a mensagem de Ralph. Ouvimos seus passos rápidos e pesados no corredor. A porta foi
aberta e ele entrou correndo, com a barba eriçada e feições distorcidas, o homem mais
terrível que já vi. Ele segurou nossos cartões na mão, rasgou-os e pisou sobre os
fragmentos.
— Eu não lhe disse, seu intrometido dos infernos, que o senhor deveria sair da
propriedade? Nunca ouse mostrar sua maldita cara aqui novamente. Se o senhor entrar
novamente sem minha permissão, estarei dentro dos meus direitos se usar violência.
Vou atirar em você, senhor! Por Deus que vou! Quanto ao senhor — voltando-se para
mim, — estendo-lhe o mesmo aviso. Conheço sua profissão ignóbil, mas o senhor deve
levar seus talentos de renome para algum outro lugar. Não há espaço para eles aqui.
— Não posso sair daqui — disse meu cliente, com firmeza, — até ouvir dos próprios
lábios de Godfrey que ele não está privado de liberdade.
Nosso anfitrião involuntário tocou a campainha.
— Ralph — disse ele, — telefone para a polícia do condado e peça ao inspetor que
mande dois policiais. Diga a ele que há ladrões na casa.
— Um momento — disse eu. — O senhor deve saber, Sr. Dodd, que o Coronel
Emsworth está dentro dos seus direitos e que não estamos em condição legal na sua
casa. Por outro lado, ele deve reconhecer que a sua ação é motivada inteiramente pela
amizade que tem pelo filho dele. Atrevo-me a pensar que, se me fosse permitido ter uma
conversa de cinco minutos com o Coronel Emsworth, certamente poderia mudar sua
opinião sobre o assunto.
— Não mudo tão facilmente — disse o velho soldado. — Ralph, faça o que eu lhe
disse. Que diabo você está esperando? Ligue para a polícia!
— Nada disso — eu disse, ficando de costas para a porta. — Qualquer interferência
policial traria a mesma catástrofe que o senhor teme. — Peguei meu caderno e rabisquei
uma palavra em uma folha solta. — Isso — disse eu, ao entregá-lo ao coronel Emsworth,
— foi o que nos trouxe até aqui.
Ele olhou para a escrita com um rosto no qual toda expressão, exceto espanto, havia
desaparecido.
— Como o senhor sabe? — ele engasgou, sentando-se pesadamente em sua
cadeira.
— É meu trabalho saber das coisas. Esse é o meu ofício.
Ele ficou pensando profundamente, a mão magra puxando a barba desgrenhada.
Então ele fez um gesto de resignação.
— Bem, se os senhores desejam ver Godfrey, que vejam. Não é culpa minha, mas
os senhores me forçaram. Ralph, diga ao senhor Godfrey e ao senhor Kent que dentro
de cinco minutos estaremos com eles.
Ao final desse tempo, descemos o caminho do jardim que nos levou à frente da casa
misteriosa. Um homenzinho barbudo estava parado na porta com uma expressão de
considerável espanto no rosto.
— Isso é muito repentino, Coronel Emsworth — disse ele. — Irá perturbar todos os
nossos planos.
— Não posso evitar, Sr. Kent. Fomos forçados a isso. O sr. Godfrey pode nos ver?
— Sim, ele está esperando lá dentro. — Ele se virou e nos conduziu até uma sala
grande e mobiliada com simplicidade. Um homem estava de costas para o fogo e, ao vê-
lo, meu cliente avançou com a mão estendida.
— Ora, Godfrey, meu velho, está tudo bem!
Mas o outro acenou de volta.
— Não me toque, Jimmie. Mantenha distância. Sim, você pode muito bem olhar! Não
pareço o inteligente cabo-lanceiro Emsworth, do Esquadrão B, pareço?
Sua aparência era certamente extraordinária. Podia-se ver que ele era de fato um
homem bonito, com feições bem definidas, queimadas pelo sol africano, mas, salpicadas
sobre essa superfície mais escura, havia curiosas manchas esbranquiçadas que haviam
branqueado sua pele.
— É por isso que não quero visitantes — disse ele. — Não me importo com você,
Jimmie, mas teria sido melhor sem o seu amigo. Suponho que haja uma boa razão para
isso, mas você me deixa em desvantagem.
— Eu queria ter certeza de que tudo estava bem com você, Godfrey. Eu vi você
naquela noite, quando você olhou pela minha janela, e não pude deixar o assunto de
lado até ter esclarecido as coisas.
— O velho Ralph me disse que você estava lá e não pude deixar de dar uma espiada
em você. Eu esperava que não me visse e tive que correr para minha toca quando ouvi
a janela subir.
— Mas, por Deus, qual é o problema?
— Bem, não é uma história longa para contar — disse ele, acendendo um cigarro.
— Você se lembra daquela luta matinal em Buffelsspruit, nos arredores de Pretória, na
linha ferroviária oriental? Você ouviu que fui atingido?
— Sim, ouvi sobre isso, mas nunca recebi detalhes.
— Três de nós nos separamos dos outros. Era um país muito destruído, você deve
se lembrar. Havia Simpson — o sujeito que chamávamos de Simpson Careca — e
Anderson, e eu. Estávamos terminando com o irmão boêr, mas ele se escondeu e pegou
nós três. Os outros dois foram mortos. Recebi uma bala de matar elefante no ombro. No
entanto, agarrei-me ao meu cavalo e ele galopou vários quilômetros antes de eu
desmaiar e cair da sela.
“Quando voltei a mim, já era noite e me levantei, sentindo-me muito fraco e doente.
Para minha surpresa, havia uma casa perto de mim, uma casa bastante grande, com
uma ampla varanda e muitas janelas. Estava um frio de matar. Você se lembra do tipo
de frio entorpecente que costumava surgir à noite, um tipo de frio mortal e nauseante,
muito diferente de uma geada fresca e saudável. Bem, eu estava gelado até os ossos, e
minha única esperança parecia estar em chegar àquela casa. Cambaleei e me arrastei,
mal consciente do que fazia. Tenho uma vaga lembrança de subir lentamente os
degraus, entrar por uma porta escancarada, passar por um quarto grande que continha
várias camas e me jogar no chão com um suspiro de satisfação sobre uma delas. Estava
desfeita, mas isso não me incomodou nem um pouco. Coloquei as cobertas sobre meu
corpo trêmulo e num momento estava num sono profundo.
“Era de manhã quando acordei e tive a impressão de que, em vez de sair para um
mundo de sanidade, havia emergido em algum pesadelo extraordinário. O sol africano
entrava pelas grandes janelas sem cortinas, e cada detalhe do grande quarto vazio e
caiado se destacava com clareza. Na minha frente, estava um homem pequeno, parecido
com um anão, com uma cabeça enorme e bulbosa, que tagarelava agitadamente em
holandês, acenando duas mãos horríveis que me pareciam esponjas marrons. Atrás dele
estava um grupo de pessoas que pareciam extremamente divertidas com a situação,
mas um arrepio tomou conta de mim quando olhei para elas. Nenhuma delas era um ser
humano normal. Todas estavam retorcidas, inchadas ou desfiguradas de alguma forma
estranha. A risada dessas estranhas monstruosidades era algo terrível de se ouvir.
“Parecia que nenhuma delas sabia falar inglês, mas a situação precisava ser
esclarecida, pois a criatura com a cabeça grande estava ficando perigosamente furiosa
e, soltando gritos de fera, colocou suas mãos deformadas sobre mim e estava me
arrastando da cama, independentemente do novo fluxo de sangue da minha ferida. O
monstrinho era forte como um touro, e não sei o que ele poderia ter feito comigo se um
homem idoso, claramente em posição de autoridade, não tivesse sido atraído para o
quarto pela agitação. Ele disse algumas palavras severas em holandês, e meu
perseguidor recuou. Então ele se virou para mim, olhando para mim com o maior
espanto.
“— Como diabos o senhor veio parar aqui? — ele perguntou surpreso. — Espere um
pouco! Vejo que o senhor está exausto e que seu ombro ferido precisa de cuidados. Sou
médico e em breve vou fazer um curativo em você. Mas, homem de Deus! O senhor
corre um perigo muito maior aqui do que jamais correu no campo de batalha. O senhor
está no Hospital dos Leprosos e dormiu na cama de um leproso.
“Preciso dizer mais alguma coisa, Jimmie? Parece que, em vista da batalha que se
aproximava, todas estas pobres criaturas tinham sido evacuadas no dia anterior. Depois,
à medida que os britânicos avançavam, foram trazidas de volta por ele, o seu
superintendente médico, que me garantiu que, embora acreditasse estar imune à
doença, nunca ousaria fazer o que eu tinha feito. Ele me colocou num quarto particular,
tratou-me com gentileza e, em cerca de uma semana, fui transferido para o hospital geral
em Pretória.
“Então aí está minha tragédia. Eu tinha esperança, contra todas as probabilidades,
mas foi só quando cheguei em casa que os terríveis sinais que você vê em meu rosto
me disseram que eu não havia escapado. O que eu deveria fazer? Fiquei nesta casa
separada. Tínhamos dois criados em quem podíamos confiar totalmente. Havia uma
casa onde eu poderia morar. Sob promessa de sigilo, o Sr. Kent, que é cirurgião,
preparou-se para ficar comigo. Parecia bastante simples nesse sentido. A alternativa era
terrível: segregação vitalícia entre estranhos, sem nunca ter esperança de libertação.
Mas o sigilo absoluto era necessário, ou até mesmo nesta zona rural tranquila haveria
um clamor, e eu teria sido arrastado para a minha horrível condenação. Até você, Jimmie
— até você teve que ser mantido no escuro. Por que meu pai cedeu, não consigo
imaginar.”
O Coronel Emsworth apontou para mim.
— Este é o cavalheiro que me obrigou. — Ele desdobrou o pedaço de papel onde eu
havia escrito a palavra “Lepra”. — Pareceu-me que, se ele sabia tanto, seria mais seguro
que soubesse tudo.
— É verdade — disse eu. — Quem sabe isso pode resultar em algo bom? Entendo
que apenas o Sr. Kent atendeu o paciente. Posso perguntar, senhor, se o senhor é uma
autoridade em tais doenças, que são, pelo que entendi, de natureza tropical ou
semitropical?
— Tenho o conhecimento normal de um médico instruído — observou ele com certa
rigidez.
— Não tenho dúvidas, senhor, de que o senhor é totalmente competente, mas tenho
certeza de que concordará que, em tal caso, uma segunda opinião é valiosa. O senhor
evitou isso, eu entendo, por medo de que fosse pressionado a segregar o paciente.
— É verdade — disse o Coronel Emsworth.
— Eu previ esta situação — expliquei, — e trouxe comigo um amigo cuja discrição é
absolutamente confiável. Certa vez, consegui prestar-lhe um serviço profissional, e ele
está pronto para aconselhar como amigo e não como especialista. O nome dele é Sir
James Saunders.
A perspectiva de uma entrevista com Lorde Roberts não teria despertado maior
admiração e prazer num subalterno inexperiente do que agora se refletia no rosto do Sr.
Kent.
— De fato, ficarei lisonjeado — ele murmurou.
— Então pedirei a Sir James que venha até aqui. Ele está no momento na carruagem
do lado de fora da porta. Enquanto isso, Coronel Emsworth, talvez possamos nos reunir
em seu escritório, onde eu poderei dar as explicações necessárias.
E é aqui que sinto falta do meu Watson. Por meio de perguntas astutas e
exclamações de admiração, ele conseguiu elevar minha arte simples, que nada mais é
do que bom senso sistematizado, a um prodígio. Quando conto minha própria história,
não tenho essa ajuda. E, no entanto, apresentarei o meu processo de reflexão, tal como
o apresentei ao meu pequeno público, que incluía a mãe de Godfrey no escritório do
Coronel Emsworth.
— Esse processo — disse eu, — começa com a suposição de que quando você tiver
eliminado tudo o que é impossível, então tudo o que resta, por mais improvável que seja,
deve ser a verdade. Pode muito bem acontecer que subsistam várias explicações e,
nesse caso, tentamos, teste após teste, até que uma ou outra delas tenha um
embasamento convincente. Aplicaremos agora este princípio ao caso em questão. Tal
como me foi apresentado pela primeira vez, havia três explicações possíveis para a
reclusão ou encarceramento deste senhor num anexo da mansão de seu pai. Havia a
explicação de que ele estava escondido por um crime, ou que estava louco e desejavam
evitar o asilo, ou que ele tinha alguma doença que causava sua segregação. Não
consegui pensar em nenhuma outra hipótese adequada. Estas, então, tiveram que ser
peneiradas e equilibradas umas contra as outras.
“A hipótese de crime não deu nada na investigação. Nenhum crime não resolvido
fora relatado naquele distrito. Eu tinha certeza disso. Se houvesse algum crime ainda
não descoberto, então seria claramente do interesse da família livrar-se do delinquente
e mandá-lo para o estrangeiro, em vez de mantê-lo escondido em casa. Não consegui
ver explicação para tal linha de conduta.
“A insanidade era mais plausível. A presença da segunda pessoa nas dependências
externas sugeria um vigia. O fato de ele ter trancado a porta ao sair reforçou a suposição
e deu a ideia de constrangimento. Por outro lado, esta restrição não poderia ser severa
ou o jovem não poderia ter se soltado e descido para dar uma olhada no amigo. O senhor
deve se lembrar, Sr. Dodd, que procurei pontos, perguntando-lhe, por exemplo, sobre o
artigo que o Sr. Kent estava lendo. Se tivesse sido The Lancet ou The British Medical
Journal, isso teria me ajudado. Não é ilegal, contudo, manter um lunático em instalações
privadas, desde que haja uma pessoa qualificada presente e que as autoridades tenham
sido devidamente notificadas. Por que, então, todo esse desejo desesperado de sigilo?
Mais uma vez, não consegui fazer com que a teoria se ajustasse aos fatos.
“Restava a terceira possibilidade, na qual, por mais raro e improvável que fosse, tudo
parecia se encaixar. A lepra não é incomum na África do Sul. Por algum acaso
extraordinário, este jovem podia tê-la contraído. Seus pais seriam colocados numa
posição muito terrível, pois desejariam salvá-lo da segregação. Seria necessário um
grande sigilo para evitar a propagação de rumores e a subsequente interferência das
autoridades. Um médico dedicado, se fosse suficientemente pago, seria facilmente
encontrado para cuidar do doente. Não haveria razão para que o doente não pudesse
ter liberdade depois de escurecer. O clareamento da pele é uma consequência comum
da doença. O caso era grave — tão grave que decidi agir como se já estivesse realmente
provado. Ao chegar aqui, notei que Ralph, que faz as refeições, tinha luvas impregnadas
de desinfetantes, então minhas últimas dúvidas foram tiradas. Uma única palavra
mostrou-lhe, senhor, que seu segredo foi descoberto e, se eu escrevi em vez de dizer,
foi para provar-lhe que minha discrição era confiável.”
Eu estava terminando esta pequena análise do caso, quando a porta se abriu e a
figura austera do grande dermatologista entrou. Mas, pela primeira vez, suas feições de
esfinge relaxaram e havia uma humanidade calorosa em seus olhos. Ele foi até o Coronel
Emsworth e apertou-lhe a mão.
— Muitas vezes é meu destino trazer más notícias e raramente boas — disse ele. —
Esta ocasião é ainda mais bem-vinda. Não é lepra.
— O quê?
— Um caso bem marcado de pseudo-lepra ou ictiose, uma afecção da pele
semelhante a escamas, feia, obstinada, mas possivelmente curável e certamente não
infecciosa. Sim, Sr. Holmes, a coincidência é notável. Mas é coincidência? Não existem
forças sutis em ação sobre as quais pouco sabemos? Temos certeza de que o medo que
este jovem sem dúvida sentiu desde a sua exposição ao seu contágio não pode produzir
um efeito físico que simule aquilo que teme? De qualquer forma, juro pela minha
reputação profissional... Mas a senhora desmaiou! Acho que é melhor que o Sr. Kent
fique com ela até que ela se recupere desse choque de alegria.
Tradutor: Carlos Colucci de Castro Azevedo
Revisores: Carolina Couto e Charlie Milo Bergo

Paratexto

O conto “A aventura da pedra Mazarin” é narrado em terceira pessoa e tem como


cenário a residência de Sherlock Holmes, contando com a presença de seu fiel
companheiro, Watson, e de seu ajudante, um pajem chamado Billy. Com o sumiço de
um valioso diamante, o detetive é contratado por importantes figuras da cidade, como o
rígido Lorde Cantlemere. Para achá-lo, porém, ele terá que lidar com o Conde Negretto
Sylvius e, seu braço direito, o boxeador Sam Merton. O autor traz o humor peculiar e as
artimanhas características do famoso detetive para lançar luz sobre a pedra
desaparecida.
Para a tradução deste conto, alguns pontos são válidos serem explicados: (1) o
nome Mazarin foi mantido como no texto em inglês, pois pode referir-se tanto ao primeiro-
ministro francês do século XVII, quanto a um personagem de Alexandre Dumas, autor
de Os três mosqueteiros; (2) devido à natureza peculiar de Sherlock, algumas frases
podem soar estranhas para o leitor, porém se fez necessário para, principalmente,
diferenciar do vocabulário do Conde Sylvius; (3) por convenção, em português, o itálico
é usado para demarcar palavras estrangeiras no texto, por isso, quando usado em inglês,
optou-se pelo negrito em português.

Perfil do tradutor
Licenciado em Inglês e Bacharelando em Tradução Português-Inglês pela Universidade
Federal de Juiz de Fora, tradutor generalista.
A AVENTURA DA PEDRA MAZARIN

Foi um prazer para Dr. Watson se ver mais uma vez naquela sala desorganizada
do primeiro andar na Baker Street, que já fora o ponto de partida para tantas aventuras
memoráveis. Buscou pelas tabelas periódicas na parede, pela bancada de produtos
químicos queimada por ácido, pelo estojo de violino inclinado no canto, pelo balde de
carvão, que tinha cachimbos e tabaco velhos. Finalmente, seus olhos recaíram sobre o
rosto novo e sorridente de Billy, um pajem jovem, porém inteligente e cauteloso, que
ajudava a preencher um pouco o vazio de solidão e de isolamento que envolvia a figura
amargurada do grande detetive.
— Tudo parece tão igual, Billy. Você não mudou também. Haveria esperanças de
dizer o mesmo sobre ele?
Billy olhou com um pouco de preocupação para a porta fechada do quarto.
— Acho que ele está na cama, dormindo — disse ele.
Eram sete da noite de um adorável verão, mas Dr. Watson estava familiarizado o
suficiente com os horários irregulares de seu velho amigo para não ficar surpreso com a
possibilidade.
— Isso quer dizer um caso, eu suponho?
— Sim, senhor, ele está muito empenhado nisso agora. Temo por sua saúde. Está
mais pálido e magro, e não come nada. “Quando será conveniente jantar, Sr. Holmes?”,
a Sra. Hudson perguntou. “Sete e trinta, de depois de amanhã”, ele respondeu. Você
sabe o método dele quando está ávido por um caso.
— Sim, Billy, eu sei.
— Ele está seguindo alguém. Ontem, saiu como um trabalhador à procura de
emprego. Hoje, era uma mulher idosa. Fui igualmente enganado, de fato, e já deveria
saber de seus métodos. — Billy apontou com um grande sorriso para um largo guarda-
sol inclinado contra o sofá. — É parte da fantasia de mulher idosa — disse ele.
— Mas do que se trata isso tudo, Billy?
Billy abaixou a voz, como alguém que discute um grande segredo de estado. —
Não me importo de te contar, senhor, mas isso não deve ser passado adiante. É
o caso do diamante da Coroa.
— O quê… O roubo de cem mil libras?
— Sim, senhor. Eles devem querê-lo de volta, senhor. Ora, tivemos ambos o
Primeiro-Ministro e o Secretário de Estado sentados neste mesmo sofá. O Sr. Holmes
foi bem simpático com eles. Tratou logo de acalmá-los e prometeu que faria tudo que
pudesse. Então tem o Lorde Cantlemere…
— Ah!
— Sim, senhor, sabe o que isso quer dizer. Ele é um cara rígido, senhor, se eu
posso dizer assim. Posso lidar bem com o Primeiro-Ministro e não tenho nada contra o
Secretário de Estado, que me parece um tipo de homem cortês e gentil. Mas não consigo
tolerar Sua Senhoria. Nem o Sr. Holmes consegue, senhor. Veja, ele não acredita no Sr.
Holmes e foi contra contratá-lo. Prefere que ele falhe.
— E o Sr. Holmes sabe disso?
— O Sr. Holmes sempre sabe o que tem para saber.
— Bem, esperemos que ele não falhe e que o Lorde Cantlemere fique frustrado.
Mas me diga, Billy, para que é aquela cortina do outro lado da janela?
— O Sr. Holmes a colocou lá há três dias. Temos uma coisa divertida atrás dela.
Billy avançou e afastou a tapeçaria que escondia a alcova da janela saliente.
Dr. Watson não pôde conter o grito de surpresa. Havia uma duplicata de seu velho
amigo, de robe e tudo, o rosto inclinado em direção à janela e para baixo, como se lesse
um livro invisível, enquanto o corpo afundava em uma poltrona. Billy removeu a cabeça
e a segurou no ar.
— Colocamos em ângulos diferentes, para que possa parecer mais realista. Não
ousaria tocar nela se a persiana não estivesse abaixada. Mas quando está levantada,
você consegue vê-la do outro lado da rua.
— Usamos uma vez algo parecido.
— Antes de eu chegar — disse Billy. Ele afastou as cortinas da janela e olhou
para a rua. — Tem umas pessoas que nos observam de lá. Consigo ver um sujeito agora
na janela. Veja você mesmo.
Watson deu um passo à frente quando a porta do quarto se abriu e a forma longa
e magra de Holmes surgiu. Seu rosto estava pálido e fechado, mas seus passos e gestos
estavam ativos como sempre. Com um único salto, ele já estava na janela e fechou a
persiana de novo.
— Isso servirá, Billy — disse. — Sua vida estava em risco, meu garoto, e não
posso fazer isso sem você por enquanto. Bem, Watson, é bom vê-lo em seu velho
alojamento de novo. Você chegou em um momento crítico.
— Presumo que sim.
— Você pode ir, Billy. Aquele garoto é um problema, Watson. Até que ponto seria
justo permitir que ele fique em perigo?
— Perigo de quê, Holmes?
— De morte súbita. Estou esperando por algo esta noite.
— Esperando pelo quê?
— Ser assassinado, Watson.
— Não, não, você está de brincadeira, Holmes!
— Até meu senso de humor limitado conseguiria fazer uma brincadeira melhor
que essa. Mas nós podemos ficar à vontade enquanto isso, não podemos? É permitido
álcool? O gasogênio e os cigarros estão no antigo lugar. Deixe-me vê-lo mais uma vez
na habitual poltrona. Você não aprendeu, espero, a desprezar meu cachimbo e meu
lamentável tabaco? Eles tomaram o lugar da comida estes dias.
— Mas por que não comer?
— Porque as capacidades se tornam mais refinadas se deixá-las com fome. Ora,
certamente, como um médico, meu caro Watson, deve admitir que o suprimento de
sangue para a digestão é uma perda para o cérebro. Eu sou um cérebro, Watson. O
restante de mim é um mero apêndice. Logo, é o cérebro que eu devo priorizar.
— Mas e quanto ao perigo, Holmes?
— Ah, sim, no caso disso se concretizar, talvez fosse bom que você ocupasse sua
memória com o nome e o endereço do assassino. Você pode entregar à Scotland Yard,
com meu amor e uma benção de despedida. Sylvius é o nome. Conde Negretto Sylvius.
Escreva, homem, escreva! 136 Moorside Gardens, N. W., entendeu?
A face honesta de Watson estava tremendo de ansiedade. Ele sabia muito bem
os imensos riscos que Holmes assumia, tanto quanto estava ciente de que o que ele
dissera era mais provável de ser brando do que um exagero. Watson sempre foi um
homem de ação e estava à altura da situação.
— Conte comigo, Holmes. Não tenho o que fazer por esses dias.
— Seus princípios não melhoram, Watson. Acrescentou contar lorotas aos seus
outros vícios. Você carrega sinais de um médico ocupado, a quem se recorre a todo
momento.
— Ninguém de grande importância. Mas você não poderia prender esse sujeito?
— Sim, Watson, eu poderia. E é isso que o preocupa tanto.
— Então por que não o faz?
— Pois não sei onde o diamante está.
— Ah! Billy me contou… A joia desaparecida da Coroa!
— Sim, a grande pedra Mazarin amarela. Eu joguei a rede e peguei meus peixes.
Mas não peguei a pedra. Qual o objetivo em pegá-los? Podemos fazer do mundo um
lugar melhor se os colocarmos atrás das grades. Mas não é disso que eu estou atrás. É
a pedra que eu quero.
— E seria esse Conde Sylvius um de seus peixes?
— Sim. E ele é um tubarão. Ele morde. O outro é Sam Merton, o boxeador. Não
é um sujeito ruim, mas o Conde o usou. Sam não é um tubarão. É um gobião grande,
tolo e cabeça-dura. Mas está se debatendo na minha rede da mesma forma.
— Onde está esse Conde Sylvius?
— Estive debaixo de seu nariz a manhã toda. Você já me viu como uma mulher
idosa, Watson. Nunca fui tão convincente. Ele surpreendentemente apanhou meu
guarda-sol para mim uma vez. “Com sua licença, senhora”, ele disse, meio italiano, sabe,
e com uma educação sulista quando disposto, mas como a encarnação do demônio
quando não. A vida é cheia de acontecimentos peculiares, Watson.
— Poderia ter sido uma tragédia.
— Bem, poderia. Eu o segui pela velha oficina de Straubenzee, em Minories.
Straubenzee fez a espingarda de ar comprimido, um belo trabalho, até onde entendo, e
eu até a imagino na janela da frente, neste exato momento. Viu o manequim? Claro, Billy
o mostrou a você. Bem, ele pode acabar com uma bala atravessada em sua bela cabeça
a qualquer momento. Ah, Billy, o que é isso?
O garoto reapareceu na sala com um cartão em cima de uma bandeja. Holmes
olhou para ele com sobrancelhas arqueadas e um sorriso de divertimento.
— O próprio. Eu não esperava exatamente por isso. Enfrentemos o problema,
Watson! Um homem de coragem. Você já deve ter ouvido sobre sua reputação de
atirador de caça de grandes animais. Seria, de fato, um final triunfante para o excelente
registro esportivo dele se me acrescentasse à sua lista. Isso é a prova de que ele
percebeu que estou colado em seus calcanhares.
— Envie para a polícia.
— Eu provavelmente deveria. Mas não ainda. Poderia olhar cuidadosamente para
fora da janela, Watson, e ver se alguém está na rua à espera?
Watson olhou, cauteloso, pela beirada da cortina.
— Sim, há um sujeito bruto perto da porta.
— Esse seria Sam Merton… O fiel, mas um tanto tolo, Sam. Onde está esse
cavalheiro, Billy?
— Na sala de espera, senhor.
— Traga-o quando eu sinalizar.
— Sim, senhor.
— Se eu não estiver na sala, apresente-o mesmo assim.
— Sim, senhor.
Watson esperou até que a porta se fechasse e então virou, sério, para seu
companheiro.
— Veja bem, Holmes, isso é simplesmente impossível. Esse é um homem
desesperado, que não se prende a nada. Ele pode ter vindo para te matar.
— Eu não ficaria surpreso.
— Insisto em permanecer com você.
— Você ficaria terrivelmente no caminho.
— No caminho dele?
— Não, meu caro colega… no meu caminho.
— Bem, eu não posso simplesmente deixá-lo.
— Sim, você pode, Watson. E você vai, já que nunca falhou em jogar o jogo. Eu
tenho certeza de que você vai jogá-lo até o final. Esse homem pode ter vindo para seu
próprio benefício, mas pode permanecer para o meu. — Holmes pegou seu caderno e
rabiscou algumas linhas. — Pegue um táxi para Scotland Yard e dê isso ao Youghal do
Departamento de Investigação Criminal. Volte com a polícia. A prisão do sujeito se dará
em sequência.
— Farei isso com prazer.
— Antes do seu retorno, posso ter o tempo exato de que preciso para descobrir
onde a pedra está. — Ele badalou o sino. — Acho que sairemos pelo quarto. Essa
segunda saída é excessivamente útil. Prefiro ver meu tubarão sem que ele me veja e eu
tenho, como você se recordará, meu próprio jeito de fazer isso.
Era, então, uma sala vazia para a qual Billy, no minuto seguinte, conduziu o Conde
Sylvius. O famoso atirador, esportista e sofisticado, era um sujeito grande e moreno, com
um formidável bigode escuro, que sombreava uma boca cruel e de lábios finos e que era
superada por um nariz longo e curvado, como o bico de uma águia. Ele estava bem-
vestido, mas sua magnífica gravata, seu brilhante broche e seus deslumbrantes anéis
eram ostensivos por si só. Assim que as portas se fecharam atrás dele, olhou em volta
com um olhar feroz e alarmado, como alguém que espera por uma armadilha a qualquer
momento. Então ele levou um susto quando viu a cabeça impassível e o colarinho do
robe que estavam projetados acima da poltrona na janela. Sua primeira expressão foi de
pura surpresa. Então a luz de uma trágica esperança brilhou em seus olhos escuros e
homicidas. Ele deu mais uma olhada ao redor para se certificar de que não havia
testemunhas e, então, na ponta dos pés, com uma grossa bengala semi levantada,
aproximou-se da figura silenciosa. Ele estava agachado para o golpe final quando uma
voz calma e sarcástica o saudou da porta aberta do quarto:
— Não o quebre, Conde! Não o quebre!
O assassino cambaleou para trás, com surpresa estampada em seu rosto agitado.
Por um instante, ele começou a levantar mais uma vez sua bengala, como se
direcionasse sua violência da efígie para o original. Mas havia algo naquele olhar firme
e cinzento e no sorriso zombeteiro que fez sua mão ficar rente ao corpo.
— É uma coisinha bela — disse Holmes, avançando em direção à imagem. —
Tavernier, o modelador francês, que fez. Ele é tão bom com figuras de cera quanto seu
amigo Straubenzee é com espingardas de ar comprimido.
— Espingardas de ar comprimido, senhor! O que quer dizer com isso?
— Ponha o chapéu e a bengala na mesa de centro. Obrigado! Por favor, sente-
se. Se importaria em colocar o revólver também? Oh, tudo bem, se você prefere se sentar
sobre ele. Sua visita é realmente muito oportuna, pois eu queria tanto ter alguns minutos
de conversa com você.
O Conde, com as sobrancelhas pesadas e ameaçadoras, fez uma cara de irritado.
— Eu também queria trocar algumas palavras com você, Holmes. É por isso que
estou aqui. Não negarei que pretendia atacá-lo agora.
Holmes balançou sua perna na beirada da mesa.
— Deduzi que tivesse ideias desse tipo em sua cabeça — disse ele. — Mas por
que lidar com isso diretamente?
— Porque se empenhou em me incomodar. Porque você colocou suas criaturas
no meu rastro.
— Minhas criaturas! Asseguro-lhe que não!
— Besteira! Eu tive gente as seguindo. Dois podem jogar esse jogo, Holmes.
— É coisa pequena, Conde Sylvius, mas talvez você pudesse, por gentileza,
referir-se de forma adequada quando se endereçar a mim. Você consegue entender que,
com a minha rotina de trabalho, eu preciso estar familiarizado com metade da galeria de
ladinos e concordará que exceções são indesejáveis.
— Bom, Sr. Holmes, então.
— Excelente! Mas lhe asseguro que está enganado em relação aos meus
supostos agentes.
Conde Sylvius riu com desdém.
— Outras pessoas podem observar tão bem quanto você. Ontem era um velho
esportista. Hoje, uma mulher idosa. Eles me vigiaram o dia todo.
— Realmente, senhor, gentileza da sua parte. O velho Barão Dowson disse, na
noite anterior de ser enforcado, que, no meu caso, o que a justiça ganhou, os palcos
perderam. E agora você dá aos meus pequenos disfarces seus bondosos
enaltecimentos?
— Era você… Você mesmo?
Holmes deu de ombros.
— Pode ver ali no canto o guarda-sol que você educadamente entregou a mim
em Minories antes de começar a suspeitar.
— Se eu soubesse, você nunca veria…
— Veria essa humilde casa novamente. Eu estava bem ciente disso. Nós todos
temos oportunidades perdidas para lastimar. Como aconteceu, você não sabia, então cá
estamos!
A testa do Conde franziu mais forte acima de seus olhos ameaçadores.
— O que diz só torna as coisas piores. Não foram seus agentes, mas você mesmo
disfarçado e bisbilhoteiro! Você admite que me seguiu. Por quê?
— Ora, vamos lá, Conde. Você costumava atirar em leões na Argélia.
— E?
— Mas por quê?
— Por quê? O esporte… A emoção… O perigo!
— E, sem dúvidas, para livrar o país de uma praga?
— Exatamente!
— Esse é o resumo dos meus motivos!
O Conde ficou de pé e sua mão involuntariamente se moveu para seu bolso de
trás.
— Sente-se, senhor, sente-se! Existe outro, e mais prático, motivo. Eu quero
aquele diamante amarelo!
Conde Sylvius reclinou-se na cadeira com um sorriso perverso.
— Tem minha palavra! — disse ele.
— Você sabia que eu estava atrás de você por isso. O real motivo pelo qual está
aqui essa noite é para descobrir o quanto eu sei sobre essa questão e o quanto minha
eliminação é absolutamente essencial. Ora, eu poderia dizer que, do seu ponto de vista,
é absolutamente essencial, por eu saber tudo sobre isso, salvo por apenas uma coisa, e
que você está prestes a me contar.
— Oh, é mesmo? Então, por favor, o que é este fato que está faltando?
— Onde o diamante da Coroa está agora.
O Conde olhou subitamente para seu companheiro.
— Oh, você quer saber isso, não quer? Como diabos eu devo ser capaz de te
contar onde ele está?
— Você pode, e você vai.
— É mesmo?
— Você não consegue blefar comigo, Conde Sylvius. — Os olhos de Holmes,
enquanto o encaravam, contraíram e animaram-se até se tornarem duas pontas de aço
ameaçadoras. — Você é transparente como água. Posso ver até o fundo de sua mente.
— Então, claro, veja onde o diamante está!
Holmes bateu suas mãos em divertimento e então apontou zombeteiro.
— Então você sabe. Você admitiu!
— Não admiti nada.
— Agora, Conde, se você for sensato, podemos fazer negócios. Caso contrário,
irá se ferir.
Conde Sylvius direcionou seus olhos para o teto.
— E você falando sobre blefe! — disse ele.
Holmes olhou para ele de forma pensativa, como um mestre em xadrez que
pondera sobre seu movimento glorioso. Então abriu a gaveta da mesa e retirou um
caderno atarracado.
— Você sabe o que eu guardo neste caderno?
— Não, senhor, eu não sei!
— Você!
— Eu?!
— Sim, senhor, você! Você está todo aqui… Cada ação da sua repugnante e
perigosa vida.
— Maldito seja, Holmes! — gritou o Conde, com os olhos flamejando. — Há limites
para minha paciência!
— Está tudo aqui, Conde. Os verdadeiros fatos referentes à morte da velha Sra.
Harold, que deixou para você a propriedade Blymer, a qual você rapidamente perdeu em
apostas.
— Você está sonhando!
— E a história completa da vida da Senhorita Minnie Warrender.
— Tsc! Você não tirará nada disso!
— Há bem mais aqui, Conde. Aqui está o roubo no luxuoso trem para Riviera, em
13 de fevereiro de 1892. Aqui está o cheque fraudado, no mesmo ano, no banco Credit
Lyonnais.
— Não, você está errado nessa.
— Então estou certo nas outras! Agora, Conde, você é um jogador de cartas.
Quando o outro jogador tem todos os trunfos, espera-se o tempo certo para baixar toda
sua mão.
— O que toda essa falação tem a ver com a joia de que tanto falou?
— Tenha calma, Conde. Controle essa mente impaciente! Deixe-me chegar ao
assunto ao meu próprio estilo entediante. Eu tenho tudo isso contra você, mas, acima de
tudo, tenho provas nítidas contra você e seu valentão lutador no caso do diamante da
Coroa.
— É mesmo?
— Eu tenho o cocheiro que levou vocês para Whitehall e o cocheiro que os tirou
de lá. Tenho o porteiro que os viu próximo da caixa. Tenho Ikey Sanders, que se recusou
a cortá-la em pedaços para vocês. Ikey delatou, e o jogo acabou.
As veias saltaram na testa do Conde. Suas mãos escuras e peludas estavam
cerradas em uma convulsão de emoções reprimidas. Ele tentou falar, mas nenhuma
palavra tomou forma.
— Essa é a mão com a qual joguei — disse Holmes. — Estão todas na mesa. Mas
uma carta ainda está faltando. É o rei de ouros. Eu não sei onde a pedra está.
— Você nunca saberá.
— Não? Ora, seja sensato, Conde. Considere a situação. Você ficará trancafiado
por vinte anos. Assim como Sam Merton. Que bem você irá tirar do seu diamante?
Nenhum neste mundo. Mas se o entregar… Ora, eu posso deixar isso passar. Não
queremos você ou Sam. Queremos a pedra. Desista dela e, até onde me disser respeito,
você pode ficar livre enquanto se comportar no futuro. Se cometer outro deslize… Bem,
será seu último. Mas, agora, fui contratado para conseguir a pedra, não você.
— Mas e se eu recusar?
— Ora, então… Ai!… Deverá ser você e não a pedra.
Billy apareceu em resposta a uma badalada.
— Acho, Conde, que seria melhor ter seu amigo Sam nesta conferência. Afinal,
os interesses dele devem ser representados. Billy, você verá um cavalheiro largo e feio
do lado de fora da porta. Peça para que suba.
— E se ele não vier, senhor?
— Sem violência, Billy. Não seja rude com ele. Se disser que o Conde Sylvius o
quer aqui, ele certamente virá.
— O que você fará agora? — perguntou o Conde assim que Billy desapareceu.
— Meu amigo Watson estava comigo agora mesmo. Disse a ele que tinha um
tubarão e um gobião em minha rede. Agora estou puxando a rede e eles estão vindo
juntos.
O Conde levantou de sua cadeira e suas mãos estavam para trás. Holmes
segurava alguma coisa meio saliente no bolso de seu robe.
— Você não morrerá em sua cama, Holmes.
— Eu sempre tive uma ideia semelhante. Isso importa tanto assim? Afinal, Conde,
sua própria saída é mais provável de ser perpendicular do que horizontal. Mas essas
antecipações do futuro são mórbidas. Por que não se entregar ao irrestrito prazer do
presente?
Uma feroz e repentina luz brotou nos sombrios e ameaçadores olhos do mestre
do crime. A figura de Holmes parecia ficar maior enquanto ele ficava tenso e preparado.
— Não adianta tocar seu revólver, meu amigo — disse ele, em uma voz calma. —
Você sabe perfeitamente bem que não ousaria usá-lo, mesmo se eu lhe desse tempo
para sacá-lo. Coisas barulhentas e desagradáveis, os revólveres, Conde. Melhor se ater
às espingardas de ar comprimido. Ah! Acho que ouvi os passos graciosos de seu
estimável parceiro. Bom dia, Sr. Merton. Meio entediante a rua, não?
O jovem campeão de boxe e de corpo bem desenvolvido, com o rosto magro,
obstinado e entediado, parou desajeitadamente na porta, inspecionando-o com uma
expressão intrigada. O modo cortês de Holmes era uma experiência nova e, ainda que
ele sentisse vagamente que era hostil, não sabia como retrucar. Ele se virou para seu
mais astuto camarada em busca de ajuda.
— Qual é o jogo agora, Conde? O que esse sujeito quer? O que houve? — sua
voz era grave e rouca.
O Conde deu de ombros, e foi Holmes quem respondeu.
— Se me permite resumir, Sr. Merton, eu diria que está tudo acabado.
O lutador ainda endereçava seus comentários para seu associado.
— Este homem está tentando ser engraçado, ou o quê? Não estou no clima de
piadas.
— Não, eu espero que não — disse Holmes. — Acho que posso lhe assegurar
que você se sentirá ainda menos bem-humoradas conforme a noite avança. Agora, veja
bem, Conde Sylvius. Sou um homem ocupado e não posso perder tempo. Irei para
aquele quarto. Por favor, sintam-se relativamente em casa em minha ausência. Você
pode explicar para seu amigo como a situação se encontra, sem se limitar pela minha
presença. Tentarei tocar Barcarole de Hoffman no meu violino. Em cinco minutos
retornarei para sua resposta final. Você entendeu completamente as alternativas, certo?
Devemos prendê-los ou devemos ter a pedra?
Holmes retirou-se, pegando seu violino no canto enquanto passava. Alguns
momentos depois da longa retirada, lamentosas notas daqueles tons mais assombrosos
passavam levemente através da porta fechada do quarto.
— Do que se trata? — perguntou Merton, ansioso, no que seu companheiro virava
para ele. — Ele sabe sobre a pedra?
— Ele sabe demasiadamente demais sobre isso. Não tenho certeza de que não
sabe de tudo sobre ela.
— Meu Deus! — O rosto pálido do lutador ficou ainda mais branco.
— Ikey Sanders nos dedurou.
— É mesmo? Vou matá-lo por isso se eu for enforcado.
— Isso não vai nos ajudar muito. Temos que decidir o que fazer.
— Só um momento — disse o lutador, com um olhar suspeito para a porta do
quarto. — Ele é um homem desconfiado que quer observar. Devo confiar que não está
escutando?
— Como ele estaria escutando com aquela música tocando?
— Está certo. Talvez alguém esteja atrás das cortinas. Há muitas cortinas nessa
sala. — Enquanto olhava em volta, de repente, ele viu, pela primeira vez, a efígie na
janela e ficou parado e apontando, muito pasmo para falar.
— Tsc! É só um manequim — disse o Conde.
— Um falso, não é? Bem, me belisque! Não seria obra da Madame Tussaud.
Cuspido e escarrado, com o robe e tudo. Mas e as cortinas, Conde!
— Esqueça as cortinas! Estamos perdendo nosso tempo, e já não resta muito. Ele
pode nos prender por causa dessa pedra.
— O diabo que ele pode!
— Mas ele apenas nos deixará ir se nós contarmos onde o item roubado está.
— O quê! Desistir dela? Desistir de cem mil tostões?
— É um ou o outro.
Merton coçou a cabeça.
— Ele está sozinho lá. Vamos matá-lo. Se ele partisse dessa, não teríamos o que
temer.
O Conde balançou a cabeça.
— Ele está armado e pronto. Se atirarmos nele, dificilmente conseguiríamos
escapar em um local como esse. Além do mais, é bastante provável que a polícia saiba
de qualquer evidência que ele tenha. Ei! O que foi isso?
Houve um vago som que parecia vir da janela. Os dois homens correram, mas
estava tudo quieto. Com exceção da estranha figura sentada na poltrona, a sala
certamente estava vazia.
— Alguma coisa na rua — disse Merton. — Agora olha só, chefe, você é o cérebro.
Com certeza consegue pensar em uma forma de sairmos disso. Se bala não resolve,
então a decisão é sua.
— Já enganei homens melhores que ele — respondeu o Conde. — A pedra está
aqui no meu bolso secreto. Não me arriscaria em deixá-la por aí. Ela pode estar fora da
Inglaterra essa noite e cortada em quatro partes em Amsterdam antes de domingo. Ele
não sabe de nada sobre Van Seddar.
— Pensei que Van Seddar iria na semana que vem.
— E iria. Mas agora ele precisa sair no próximo barco. Um de nós dois precisa
escapar com a pedra até a Lime Street e dizer a ele.
— Mas o fundo falso não está pronto.
— Bem, ele deve levá-la assim mesmo e arriscar. Não há tempo a perder.
De novo, com o senso de perigo que se tornou instintivo para o caçador, ele parou
e olhou firmemente para a janela. Sim, com certeza foi da rua que o leve som veio.
— Quanto ao Holmes — continuou ele —, podemos enganá-lo facilmente.
Perceba, o desgraçado não vai nos prender se puder conseguir a pedra. Ora,
prometeremos a ele a pedra e o colocaremos na trilha errada. Antes que note que está
no caminho errado, ela estará em Holland e nós estaremos fora do país.
— Parece ótimo para mim! — gritou Sam Merton, com um grande sorriso.
— Você vai na frente e diz ao holandês para ele se apressar. Eu verei esse trouxa
e o encherei de confissões fictícias. Direi a ele que a pedra está em Liverpool. Droga de
música lamentosa. Está me dando nos nervos! Na hora que ele descobrir que ela não
está em Liverpool, ela estará dividida em quatro e nós em alto mar. Venha aqui, longe
da vista da fechadura. Aqui está a pedra.
— Eu me pergunto como se atreve a carregá-la por aí.
— E onde ela estaria mais segura? Se nós conseguimos tirá-la de Whitehall, um
outro alguém certamente poderia tirá-la de meus aposentos.
— Vamos dar uma olhada nela.
Conde Sylvius lançou um tipo de olhar desconfiado para seu associado e ignorou
a mão suja que lhe foi estendida.
— O quê… Você acha que eu vou roubá-la de você? Veja bem, senhor, estou
ficando cansado de suas atitudes.
— Ora, ora, sem ofensas, Sam. Não podemos nos dar ao luxo de discutir. Venha
até a janela se você quiser ver a belezura de verdade. Agora, segure-a na luz! Aqui!
— Obrigado!
Com um único movimento, Holmes saltou da cadeira do manequim e agarrou a
preciosa joia. Ele agora a segurava em uma mão, enquanto a outra apontava um revólver
para a cabeça do Conde. Os dois vilões cambalearam para trás em completa surpresa.
Antes que pudessem se recuperar, Holmes pressionou a campainha.
— Sem violência, cavalheiros… Sem violência, eu imploro a vocês! Pensem na
mobília! Deve estar bem claro para vocês que estão em uma situação impossível. A
polícia está esperando lá embaixo.
A perplexidade do Conde dominou a fúria e o medo.
— Mas como diabos…? — suspirou ele.
— Sua surpresa é bastante natural. Você não está ciente de que uma segunda
porta do meu quarto leva para trás daquela cortina. Eu temia que você pudesse me ouvir
quando substituí a figura, mas a sorte estava do meu lado. Isso me deu a chance de
escutar sua vigorosa conversa, que seria dolorosamente limitada se tivesse consciência
de minha presença.
O Conde fez um gesto de resignação.
— Você tem meu reconhecimento, Holmes. Creio que seja o próprio diabo.
— Não estou tão longe dele, de qualquer forma — respondeu Holmes com um
sorriso respeitoso.
O vagaroso intelecto de Sam Merton ia gradualmente apreciando a situação.
Agora, com o som de passos pesados vindo das escadas lá fora, ele por fim quebrou o
silêncio.
— Um tira justo! — disse ele. — Mas, digo, e quanto àquele crescente tocar de
violino! Eu ainda o escuto.
— Tsc, Tsc! — respondeu Holmes. — Você está perfeitamente certo! Deixe-o
tocar! Esses gramofones modernos são uma invenção notável.
Houve uma entrada súbita da polícia, o clique das algemas, e os criminosos foram
levados para o carro. Watson permaneceu com Holmes, parabenizando-o por mais uma
conquista para sua coleção. Uma vez mais, a conversa foi interrompida pelo inabalável
Billy com sua bandeja e um cartão.
— Lorde Cantlemere, senhor.
— Traga-o, Billy. Esse é o proeminente nobre que representa os mais altos
interesses — disse Holmes. — Ele é uma pessoa excelente e leal, mas adepto ao velho
regime. Deveríamos endireitá-lo? Nós nos atreveríamos a tomar uma pequena
liberdade? Ele não sabe, podemos supor, de nada do que ocorreu.
A porta se abriu para permitir a entrada de uma figura magra e séria, com um rosto
desagradável e costeletas pendentes, de estilo vitoriano e um preto brilhante, que mal
correspondia aos ombros curvados e o andar debilitado. Holmes avançou
amigavelmente e apertou uma mão indiferente.
— Como você está, Lorde Cantlemere? Está frio para esta época do ano, mas um
tanto quente dentro de casa. Posso pendurar seu sobretudo?
— Não, eu agradeço. Não irei tirá-lo.
Holmes colocou suas mãos insistentemente na manga.
— Por favor, permita-me! Meu amigo, Dr. Watson, asseguraria a você que essas
mudanças de temperatura são traiçoeiras.
Sua Senhoria se esquivou com um pouco de impaciência.
— Estou bem confortável, senhor. Não tenho razões para ficar. Eu apenas passei
para saber como seu autonomeado trabalho estava progredindo.
— Está difícil… muito difícil.
— Eu temia que você achasse isso.
Havia um distinto desdém nas palavras e modos do velho cortesão.
— Todo homem tem suas limitações, Sr. Holmes, mas pelo menos ela nos cura
da fraqueza da satisfação pessoal.
— Sim, senhor, eu fiquei bastante confuso.
— Sem dúvidas.
— Especialmente em um ponto. Talvez você pudesse me ajudar nessa questão?
— Você solicita meu conselho um tanto tarde do dia. Pensei que tivesse seus
próprios métodos autossuficientes. Ainda assim, estou pronto para ajudá-lo.
— Veja, Lorde Cantlemere, podemos, sem dúvida, construir o caso contra os
atuais ladrões.
— Quando você os tiver pegado.
— Exatamente. Mas a questão é… Como devemos proceder contra o receptor?
— Isso não é um tanto prematuro?
— É bom já termos nossos planos prontos. Agora, o que você consideraria como
uma evidência final contra o receptor?
— A atual posse da pedra.
— Você o prenderia com isso?
— Indubitavelmente.
Holmes quase riu, mas ele ficou tão próximo de rir quanto seu velho amigo Watson
poderia lembrar.
— Nesse caso, meu caro senhor, estou sob a pesarosa necessidade de dar-lhe
voz de prisão.
Lorde Cantlemere estava muito furioso. Uma antiga chama se acendeu em suas
bochechas amareladas.
— Você tomou uma grande liberdade, Sr. Holmes. Em cinquenta anos na vida de
oficial, não me recordo de tal caso. Sou um homem ocupado, envolvido em negócios
importantes, e não tenho tempo nem aptidão para piadas tolas. Devo dizer-lhe
francamente, senhor, que nunca acreditei em seus poderes e sempre fui da opinião de
que esse assunto estaria bem mais seguro nas mãos da força policial convencional. Sua
conduta confirma todas as minhas conclusões. Tenho a honra, senhor, de lhe desejar
uma boa-noite.
Holmes rapidamente mudou de posição e estava entre o nobre e a porta.
— Um momento, senhor — disse ele. — Sair de fato com a pedra Mazarin seria
uma ofensa mais séria do que ser encontrado em posse temporária dela.
— Senhor, isso é intolerável! Deixe-me passar.
— Coloque sua mão no bolso direito do seu sobretudo.
— O que quer dizer com isso, senhor?
— Vamos… Vamos, faça o que eu peço.
Um instante depois, o pasmo nobre estava parado, piscando e gaguejando com
a grande pedra amarela na palma de suas mãos trêmulas.
— O quê! O quê! Como é possível, Sr. Holmes?
— Lamentável, Lorde Cantlemere, lamentável! — gritou Holmes. — Meu velho
amigo aqui lhe dirá que eu tenho um endiabrado hábito de fazer pegadinhas. E também
que eu nunca resisto a uma situação dramática. Eu tomei a liberdade… uma grande
liberdade, admito… de colocar a pedra no seu bolso no começo de nossa entrevista.
O velho nobre olhou da pedra para o rosto sorridente em sua frente.
— Senhor, eu estou confuso. Mas… Sim… É realmente a pedra Mazarin. Estamos
em uma grande dívida com você, Sr. Holmes. Seu senso de humor pode, como admitiu,
ser um tanto perverso, e sua exibição notavelmente inoportuna, mas ao menos eu retiro
qualquer reflexão que fiz sobre seus excelentes poderes profissionais. Mas como…
— O caso está quase finalizado. Os detalhes podem esperar. Sem dúvida, Lorde
Cantlemere, seu prazer em contar desse resultado bem-sucedido no nobre círculo para
qual retornará será uma pequena reparação para a minha pegadinha. Billy, acompanhe
Sua Senhoria até a saída e diga à Sra. Hudson que eu ficaria contente se ela pudesse
enviar um jantar para dois logo que possível.
Tradutoras: Larissa Silva Leitão Daroda e Carolina Alves Magaldi
Revisor: Eduardo Lisovski Schmidt

Paratexto

O conto “A aventura das três empenas” integra a coletânea O livro de casos de


Sherlock Holmes e é narrado, como de costume, pelo Dr. Watson. Apresenta a história
da Sra. Mary Maberley, que busca a ajuda de Sherlock Holmes para resolver uma
sucessão de eventos estranhos em sua casa, denominada As Três Empenas.
Os maiores desafios tradutórios para este conto foram a presença de um registro
de discurso informal e distante da norma culta — como, por exemplo, no trecho “Good-
mornin’, Masser Holmes. I hope there ain’t no hard feelin’s about this ’ere visit?”, traduzido
por “Bom dia, Sinhô Holmes. Não ficou sentido comigo por essa visita, né?” — e a
presença de falas de cunho racial, de difícil tradução para o leitor contemporâneo, como
no trecho “The door had flown open and a huge negro had burst into the room.”, traduzido
como “A porta se escancarou e um enorme negro irrompeu na sala.” e outras, como o
uso do termo Masser para se referir a Master, representando o registro da comunidade
negra, especialmente na época da escravidão, e que hoje pode ser vista com cunho
racista, mas que era comum para a época.
Outra peculiaridade desafio foi o emprego de termos que mudaram de sentido
com o passar dos anos, como terrific, que até as primeiras décadas do século
XX, significava "terror-inducing", ou seja, "assustador, aterrorizante" e, apenas após
esse período começou a ter sentido positivo. Mais um exemplo é o uso de expressões
que não têm um correspondente definido em português, como compound a felony, que
representa um tipo de delito cometido quando a vítima retira a queixa em troca de favores
ou de compensações.

Perfil das tradutoras

Larissa Silva Leitão Daroda é tradutora, bacharel em Letras-Tradução


Inglês/Português pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Educação e
doutoranda em Estudos Literários na mesma instituição, onde pesquisa a estilística de
escritores que também são tradutores. É também tradutora literária e técnica, em
especial na área médica, sua segunda área de formação, já tendo publicado diversos
artigos na área.
Carolina Alves Magaldi é tradutora, escritora e professora de tradução literária e
estudos literários na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF) no âmbito da graduação, mestrado e doutorado. Organizou os livros Alter Mundos
– uma jornada ao coração do insólito (Paratexto, 2021), com contos góticos estrangeiros
traduzidos para o português e contos brasileiros versados para o inglês e Clube dos
Traidores – pequena enciclopédia do universo tradutório (Editora da UFJF, 2021).
A AVENTURA DAS TRÊS EMPENAS

Creio que nenhuma de minhas aventuras com o Sr. Sherlock Holmes tenha
começado de forma tão abrupta, ou tão dramática, quanto a que eu denomino As Três
Empenas. Eu não via Holmes há alguns dias e não tinha ideia do novo rumo que suas
atividades tinham tomado. No entanto, ele estava tagarela naquela manhã e havia
acabado de me fazer sentar na poltrona gasta ao lado do fogo, enquanto se aconchegava
com seu cachimbo na boca na cadeira oposta, quando nosso visitante chegou. Se eu
dissesse que um touro furioso havia chegado, daria uma impressão mais exata do que
ocorreu.
A porta se escancarou e um enorme negro irrompeu na sala. Ele teria sido uma
figura cômica se não fosse tão aterrorizante, pois vestia um terno xadrez cinza berrante
com uma gravata esvoaçante cor de salmão. Seu rosto largo e nariz achatado foram
projetados para a frente, enquanto seus olhos escuros e soturnos, com um brilho latente
de malícia neles, se alternavam entre nós dois.
— Quem dos senhores é Sinhô Holmes?
Holmes ergueu seu cachimbo com um sorriso lânguido.
— Ah, é você, não é? disse nosso visitante, se aproximando com um passo
desagradável e dissimulado. — Veja bem, Sinhô Holmes, fique longe dos negócios de
outras pessoas. Deixe as pessoas cuidarem de seus próprios assuntos. Entendeu, Sinhô
Holmes?
— Continue — disse Holmes. — Está indo bem.
— Ah! está bem, não é mesmo? — grunhiu o selvagem. — Não vai estar tão bem
se eu tiver que cortar um pouco de você. Já lidei com gente do seu tipo antes, e eles não
pareciam tão bem quando eu terminei com eles. O que acha disso, Sinhô Holmes?
Ele balançou os nós de um grande punho fechado debaixo do nariz de meu amigo.
Holmes examinou atentamente com um ar de grande interesse. — Você nasceu assim?
— perguntou. — Ou foi ficando assim com o tempo?
Pode ter sido a gelada frieza de meu amigo, ou pode ter sido o leve barulho que
fiz ao pegar o atiçador. De qualquer forma, os modos de nosso visitante tornaram-se
menos extravagantes.
— Bem, já dei o aviso — disse ele. — Tenho um amigo que tem interesse lá para
os lados de Harrow, sabe o que quero dizer, e ele não quer que você se intrometa.
Entendeu? Você não é a lei, eu também não sou a lei, e se você vier para cima eu vou
estar pronto. Não se esqueça.
— Há tempos queria conhecê-lo — disse Holmes. — Não vou lhe pedir para se
sentar, porque não gosto de seu cheiro, mas você não é Steve Dixie, o brutamontes?
— É meu nome, Sinhô Holmes, e você vai se ver comigo se vier falar grosso.
— Definitivamente, é a última coisa de que você precisa — disse Holmes,
encarando a boca horrenda de nosso visitante. — Mas sobre o assassinato do jovem
Perkins perto do Holborn Bar... O que foi? Você não está indo embora, está?
O negro havia se jogado para trás e sua face estava lívida. — Não vou escutar
essa conversa — disse ele. — O que eu tenho a ver com esse Perkins, Sinhô Holmes?
Eu estava treinando no Bull Ring em Birmingham quando esse garoto se meteu em
encrenca.
— Sim, você informe ao juiz sobre isso, Steve — disse Holmes. — Tenho
observado você e o Barney Stockdale...
— Que Deus me ajude! Sinhô Holmes...
— Agora chega. Vá embora. Eu o chamarei quando precisar de você.
— Bom dia, Sinhô Holmes. Não ficou sentido comigo por essa visita, né?
— Ficarei a não ser que você me diga quem o mandou vir.
— Ora, não é segredo para ninguém não senhor. Foi o mesmo cavalheiro que o
senhor mencionou.
— E quem o mandou?
— Alguém me ajude. Eu não sei, Sinhô Holmes. Ele só falou: “Steve, vai lá ver o
Sr. Holmes e diga a ele que a vida dele estará em risco se ele for para os lados de
Harrow.” Juro que é a verdade. — Sem esperar por mais questionamentos, nosso
visitante disparou para fora da sala quase tão subitamente quanto havia entrado. Holmes
bateu as cinzas do cachimbo com um risinho silencioso.
— Fico feliz em saber que você não foi obrigado a quebrar a cabeça confusa dele,
Watson. Observei seus movimentos com o atiçador. Mas na verdade ele é um sujeito
bem inofensivo, um bebezão tolo, arrogante e facilmente influenciável, como você pôde
ver. Ele faz parte da gangue de Spencer John e participou de alguns trabalhos sujos
ultimamente, que pretendo esclarecer quando tiver tempo. Seu chefe imediato, Barney,
é um tipo mais astuto. Eles são especializados em assaltos, intimidação e coisas do tipo.
O que eu quero saber é: quem está por trás deles nesta ocasião em especial?
— Mas por que eles querem intimidá-lo?
— É esse caso do bosque de Harrow Weald. Tomei a decisão de investigar o
assunto, pois se vale a pena alguém se preocupar tanto, deve haver algo nisso.
— Mas o que é isso?
— Eu estava para lhe contar quando tivemos esse interlúdio cômico. Aqui está o
bilhete da Sra. Maberley. Se você se dispuser a ver comigo nós a avisaremos e sairemos
imediatamente.

Prezado Sr. Sherlock Holmes [Eu li]:


Uma sucessão de incidentes estranhos me ocorreram em relação a esta casa, e
sua opinião seria de grande valia. Você me encontrará em casa a qualquer hora
amanhã. A casa fica a uma pequena caminhada da estação de Weald. Acredito que
meu falecido marido, Mortimer Maberley, foi um de seus primeiros clientes.

Atenciosamente,
Mary Maberley

O endereço era “As Três Empenas, Harrow Weald”.


— Então é isso — disse Holmes. — E agora, se você tiver tempo, Watson, vamos
seguir nosso caminho.
Uma curta viagem de trem e uma viagem mais curta de carro nos levaram até a
casa, uma casa de campo de tijolos e madeira, situada em seu próprio acre de pastagens
inexploradas. Três pequenas projeções acima das janelas superiores eram uma tentativa
débil de justificar seu nome. Atrás havia um bosque de pinheiros melancólicos, meio
crescidos, e todo o aspecto do lugar era pobre e deprimente. Apesar disso, achamos a
casa bem mobiliada, e a senhora que nos recebeu era uma idosa muito simpática, que
ostentava todas as marcas de refinamento e cultura.
— Eu me lembro bem de seu marido, senhora — disse Holmes —, apesar de já
se irem alguns anos desde que ele usou meus serviços para algum assunto trivial.
— É provável que o nome de meu filho, Douglas, lhe pareça mais familiar.
Holmes olhou para ela com grande interesse.
— Meu Deus! A senhora é mãe de Douglas Maberley? Eu o conhecia
superficialmente. Mas é claro que toda Londres o conhecia. Que magnífica criatura ele
era! Onde ele está agora?
— Morto, Sr. Holmes, morto! Ele era adido diplomático em Roma, onde faleceu de
pneumonia mês passado.
— Sinto muito. Ninguém associaria a morte a tal homem. Eu nunca havia
conhecido alguém com tanta vitalidade. Ele viveu intensamente — cada fibra dele!
— Intensamente demais, Sr. Holmes. Isso foi sua ruína. O senhor lembra dele
como ele era: elegante e esplêndido. Não viu a criatura melancólica, sombria e taciturna
que ele se tornou. Seu coração estava partido. Em um mês, vi meu menino galante se
transformar em um homem cínico e desgastado.
— Um caso de amor... uma mulher?
— Ou um inimigo. Bem, mas não foi para falar de meu pobre rapaz que eu lhe
pedi que viesse, Sr. Holmes.
— Dr. Watson e eu estamos a seu dispor.
— Alguns fatos estranhos têm acontecido. Moro nessa casa há mais de um ano
e, como desejava levar uma vida mais recatada, pouco vejo meus vizinhos. Há três dias,
recebi uma ligação de um homem dizendo ser corretor imobiliário. Disse que esta casa
serviria perfeitamente para um cliente dele e que, se eu abrisse mão dela, o dinheiro não
seria problema. Pareceu-me muito estranho, pois existem várias casas vazias no
mercado que parecem ser igualmente adequadas, mas naturalmente fiquei interessada
no que ele disse. Sendo assim, dei um preço de quinhentas libras maior do que eu
paguei. Ele aceitou a oferta na hora, mas acrescentou que seu cliente queria os móveis
também, e que eu deveria colocar preço neles. Alguns desses móveis são da minha casa
antiga e, como pode ver, são de muito boa qualidade, então pedi uma boa soma por eles.
Ele também concordou com isso. Eu sempre quis viajar, e a negociação foi tão boa que
parecia mesmo que eu poderia ser senhora do meu próprio destino para o resto da minha
vida.
“Ontem, o homem chegou com o acordo já redigido. Por sorte, mostrei ao Sr.
Sutro, meu advogado, que vive em Harrow. Ele me disse: ‘Este documento é muito
estranho. A senhora está ciente de que, assinando isso, a senhora não pode legalmente
retirar nada da casa — nem mesmo seus bens pessoais?’ Quando o homem retornou à
noite, mostrei-lhe isso e disse que eu me referia a vender apenas os móveis.
— Não, não, tudo — disse ele.
— Mas minhas roupas? Minhas joias?
— Bem, alguma concessão pode ser feita para pertences pessoais. Porém nada
deve sair da casa sem ser examinado. Meu cliente é um homem muito liberal, mas ele
tem seus costumes e seu jeito próprio de fazer as coisas. Com ele é tudo ou nada.
— Então vai ser nada, eu disse. E o assunto foi deixado assim, mas a situação
toda me pareceu tão pouco usual que eu pensei...
Aqui houve uma interrupção deveras extraordinária.
Holmes ergueu sua mão, pedindo silêncio. Então atravessou a sala, escancarou
a porta e arrastou para dentro uma grande e magra mulher que trouxe pelo ombro. Ela
entrou com uma luta desajeitada como uma enorme galinha desajeitada, rasgada,
grasnando, fora do galinheiro.
— Me larga! O que que o senhor está fazendo? — guinchou ela.
— Ora, Susan, o que é isto?
— Senhora, eu vim perguntar se as visitas vão ficar para o almoço quando esse
homem pulou na minha frente.
— Eu a venho escutando nos últimos cinco minutos, mas não quis interromper
sua interessante narrativa. Sua asma está um pouquinho atacada, não é, Susan? Você
tem uma respiração muito ofegante para esse tipo de trabalho.
Susan virou um rosto amuado, mas surpreso, para seu captor. — Quem é o
senhor, afinal, e que direito tem de me puxar desse jeito?
— Eu apenas gostaria de fazer uma pergunta na sua presença. Sra. Maberley, a
senhora mencionou a alguém que me escreveu para uma consulta?
— Não, Sr. Holmes, eu não.
— Quem enviou sua carta?
— Foi a Susan.
— Exatamente. Então, Susan, para quem você escreveu ou mandou mensagem
para informar que sua patroa estava me pedindo conselho?
— É mentira. Não mandei mensagem nenhuma.
— Bem, Susan, pessoas asmáticas podem ter vida curta, você sabe. Não é uma
boa coisa contar mentiras. Para quem você contou?
— Susan! — exclamou sua patroa. — Acho que você é uma mulher má e
traiçoeira. Lembro de vê-la conversando com alguém por cima da sebe.
— Aquilo era assunto meu — disse a mulher, irritada.
— E se eu disser que foi com Barney Stockdale que você falou?
— Se sabe, porque está perguntando?
— Eu não tinha certeza, mas agora tenho. Agora, Susan, eu lhe darei dez libras
se você me disser quem está por trás de Barney.
— Alguém que poderia pagar mil libras para cada dez que o senhor tem no mundo.
— Então um homem rico? Não; você sorriu... uma mulher rica. Agora que
chegamos tão longe, você pode me dizer o nome e ganhar os dez.
— Primeiro eu o encontro no inferno.
— Susan! Que linguajar!
— Estou indo embora daqui. Cansei de todos vocês. Mandarei buscar minha caixa
amanhã — Precipitou-se para a porta.
— Adeus, Susan. Um paregórico lhe fará bem... Agora — continuou ele,
subitamente passando de jovial a severo quando a porta se fechou atrás da mulher
enrubescida e raivosa —, essa gangue trabalha sério. Veja como eles agem rápido. Sua
carta para mim tinha o timbre de 10 horas da noite. Susan ainda consegue passar o
recado para Barney. Barney tem tempo de ir a seu empregador e obter instruções; ele
ou ela — estou inclinado à segunda, considerando o sorrisinho de Susan quando ela
pensou que eu estava enganado — elabora um plano. O Preto Steve é chamado, e eu
sou alertado às 11 horas da manhã seguinte. Isso é trabalho rápido, sabe.
— Mas o que eles querem?
— Essa é a pergunta. Quem era o proprietário da casa antes da senhora?
— Um capitão do mar aposentado chamado Ferguson.
— Alguma coisa relevante sobre ele?
— Não que eu saiba.
— Eu estava pensando se ele poderia ter enterrado alguma coisa. Obviamente,
quando as pessoas enterram tesouros hoje em dia o fazem no banco. Mas sempre há
alguns lunáticos por aí. O mundo não teria graça sem eles. A princípio, pensei em algo
de valor enterrado. Mas por que, neste caso, eles iriam querer sua mobília? A senhora
por acaso teria um Rafael ou uma primeira edição de Shakespeare sem saber?
— Não, acho que não tenho nada mais raro que um jogo de chá de Crown Derby.
— Isso dificilmente justificaria todo esse mistério. Além disso, por que eles não
falam abertamente o que querem? Se eles quisessem seu aparelho de chá, poderiam
certamente oferecer um preço por ele sem tentar comprá-la por completo. Não, eu penso
que há algo que a senhora não sabe que possui, e que a senhora não entregaria se
soubesse.
— Também penso assim — eu disse.
— O Dr. Watson concorda, então estamos decididos.
— Bem, o que poderia ser, Sr. Holmes?
— Vamos ver se através de pura análise mental conseguimos chegar a um ponto
mais definido. A senhora está na casa há um ano.
— Quase dois.
— Melhor ainda. Durante esse longo período ninguém quis nada da senhora.
Agora, repentinamente, no período de três ou quatro dias a senhora tem demandas
urgentes. O que podemos extrair disso?
— Só pode significar que o objeto, seja lá qual for, acabou de chegar à casa — eu
disse.
— Decidido novamente — disse Holmes. — Agora, Sra. Maberley, algum objeto
chegou há pouco tempo?
— Não, eu não comprei nada novo este ano.
— É mesmo? Isso é muito considerável. Bem, acho melhor deixarmos as coisas
se desenvolverem um pouco mais até termos dados mais claros. Aquele seu advogado
é um homem capaz?
— O Sr. Sutro é bastante capaz.
— A senhora tem alguma outra empregada, ou somente a bela Susan, que acabou
de bater a porta da frente?
— Tenho uma mocinha.
— Tente conseguir que Sutro passe uma noite ou duas na casa. A senhora pode
precisar de proteção.
— Contra quem?
— Quem sabe? O assunto certamente é obscuro. Se eu não consigo achar aquilo
de que estão atrás, devo abordar a questão a partir da outra ponta e tentar chegar ao
mandante. Esse corretor imobiliário lhe deu algum endereço?
— Apenas seu cartão e ocupação. Haines-Johnson, Leiloeiro e Avaliador.
— Não creio que o encontraremos na lista telefônica. Homens de negócio
honestos não escondem seu local de trabalho. Bem, me avise de qualquer novidade.
Assumi seu caso, e você pode confiar que irei até o final.
Enquanto passávamos pelo hall, os olhos de Holmes, que não perdiam nada, se
iluminaram ao verem vários baús e caixas empilhados em um canto. Suas etiquetas se
destacavam.
— Milão. Lucerna. Estes são da Itália.
— Essas são as coisas do pobre Douglas.
— A senhora não as desempacotou? Há quanto tempo estão aqui?
— Chegaram na semana passada.
— Mas a senhora disse... ora, este certamente é o elo que faltava. Como
saberíamos se há ou não algo de valor ali dentro?
— Não poderia haver, Sr. Holmes. O pobre Douglas tinha apenas seu salário e
uma pequena anuidade. O que ele poderia ter de valioso?
Holmes estava perdido em pensamentos.
— Não perca mais tempo, Sra. Maberley — disse ele finalmente. — Mande levar
essas coisas para seu quarto lá em cima. Examine-as assim que possível e veja o que
contêm. Virei amanhã e ouvirei seu relato.
Estava bastante evidente que As Três Empenas estava sob estreita vigilância,
porque, quando nos aproximamos da alta sebe ao final do caminho, havia um pugilista
negro parado na sombra. Nós o encontramos de repente, e ele parecia uma figura
sombria e ameaçadora naquele lugar solitário. Holmes levou a mão ao bolso.
— Procurando sua arma, Sinhô Holmes?
— Não, por meus sais, Steve.
— O senhor é engraçado, né, Sinhô Holmes?
— Não será engraçado para você, Steve, se eu o pegar. Eu lhe dei um aviso bem
claro esta manhã.
— Bem, Sinhô Holmes, eu pensei sobre o que o senhor falou e não quero mais
falar daquele assunto do Sinhô Perkins. Acho que posso ajudar o senhor, Sinhô Holmes,
eu vou sim.
— Bom, então me diga quem está por trás deste trabalho.
— Pelo amor de Deus! Sinhô Holmes, eu falei a verdade antes. Eu não sei. Meu
chefe, Barney, me dá ordens, e só.
— Bem, tenha em mente, Steve, que a senhora naquela casa, e tudo sob seu teto,
está sob minha proteção. Não se esqueça disso.
— Tudo bem, Sinhô Holmes. Vou lembrar.
— Já o assustei por inteiro, Watson — lembrou Holmes enquanto caminhávamos.
— Acho que ele entregaria seu mandante se ele soubesse quem é. Foi sorte que eu
tinha algum conhecimento da turma de Spencer John e que Steve era um deles. Agora,
Watson, esse é um caso para Langdale Pike, e irei vê-lo agora. Quando voltar, devo ter
mais clareza sobre o assunto.
Não vi mais Holmes ao longo do dia, mas posso bem imaginar como ele o passou,
pois Langdale Pike era uma enciclopédia humana de todos os assuntos envolvendo
escândalos sociais. Essa criatura estranha e lânguida passava suas horas na janela de
sacada de um clube na St. James Street e era recebedora e transmissora de todas as
fofocas da metrópole. Diziam que ele tinha uma renda de quatro dígitos dos parágrafos
que ele escrevia toda semana para os jornais sensacionalistas que atendiam a um
público curioso. Se houvesse, no turvo submundo da vida londrina, algum redemoinho
ou turbilhão, era marcado com precisão automática na superfície por este mostrador
humano. Holmes ajudava discretamente Langdale a obter informações e, às vezes,
recebia ajuda de volta.
Quando encontrei meu amigo em seu quarto cedo na manhã seguinte, eu já sabia,
pelo seu jeito, que tudo tinha ido bem, mas, ainda assim, uma surpresa muito
desagradável nos esperava, na forma do seguinte telegrama:
Por favor, venha imediatamente. A casa da cliente foi assaltada à
noite. A polícia assumiu o caso.
— Sutro

Holmes assoviou. — O drama se tornou uma crise, e mais rápido do que eu


esperava. Há uma grande força motriz por trás deste negócio, Watson, o que não me
surpreende depois do que ouvi. Este Sutro, é claro, é o advogado dela. Receio que tenha
cometido um erro ao não pedir que você passasse a noite em guarda. Este sujeito provou
claramente ser um caniço quebrado. Bem, não há nada a fazer a não ser outra jornada
para Harrow Weald.
Encontramos n’As Três Empenas um ambiente muito diferente do lar ordeiro do
dia anterior. Um pequeno grupo de desocupados estava reunido no portão do jardim,
enquanto alguns policiais examinavam as janelas e as jardineiras de gerânio. Lá dentro,
encontramos um velho cavalheiro grisalho, que se apresentou como advogado, junto
com um inspetor vermelho e agitado, que cumprimentou Holmes como um velho amigo.
— Bem, Sr. Holmes, temo não haver nada para o senhor neste caso. Apenas um
roubo comum e ordinário e bem dentro da capacidade da pobre e velha polícia. Não há
necessidade de especialistas.
— Estou certo de que o caso está em muito boas mãos — disse Holmes. —
Apenas um roubo comum, você disse?
— Sem dúvida. Sabemos bem quem são os homens e onde encontrá-los. É
aquela gangue de Barney Stockdale, que tem o grande negro — eles foram vistos por
aqui.
— Excelente! O que eles pegaram?
— Bem, não parece ter sido muita coisa. A Sra. Maberley foi adormecida com
clorofórmio e a casa estava... Ah! Aqui está a senhora em pessoa.
Nossa amiga de ontem, parecendo muito pálida e doente, entrou na sala,
apoiando-se na pequena empregada.
— O senhor me deu bons conselhos, Sr. Holmes — disse ela, sorrindo com pesar.
— Ai de mim que não os segui! Não quis incomodar o Sr. Sutro, então fiquei
desprotegida.
— Só fiquei sabendo nesta manhã — explicou o advogado.
— O Sr. Holmes havia me recomendado ter um amigo em casa. Eu negligenciei
seu conselho e paguei por isso.
— A senhora me parece terrivelmente doente — disse Holmes. — Talvez não seja
capaz de me contar o que aconteceu.
— Está tudo aqui — disse o inspetor, dando batidinhas em um volumoso caderno.
— Mesmo assim, se a senhora não estiver muito exausta...
— Há muito pouco o que contar. Não tenho dúvidas de que a perversa Susan
planejou a entrada deles. Eles pareciam conhecer cada centímetro da casa. Por um
momento, estava consciente do pano com clorofórmio forçado na minha boca, mas não
tenho noção de por quanto tempo fiquei inconsciente. Quando acordei, um homem
estava ao lado da minha cama e outro levantava um embrulho na mão de dentro da
bagagem de meu filho, que foi parcialmente aberta e espalhada pelo chão. Antes que
ele pudesse sair, dei um salto e o segurei.
— A senhora correu um grande risco — disse o inspetor.
— Eu me agarrei a ele, mas ele me sacudiu, e o outro deve ter me dado uma
pancada, porque não me lembro de mais nada. Mary, a empregada, ouviu o barulho e
começou a gritar na janela. Isso atraiu a polícia, mas os cafajestes haviam fugido.
— O que eles levaram?
— Bem, não creio algo de valor tenha sumido. Tenho certeza de que não havia
nada nos baús de meu filho.
— Os homens não deixaram nenhuma pista?
— Havia uma folha de papel que devo ter rasgado do homem que segurei. Estava
toda amassada no chão. É a letra do meu filho.
— O que significa que não é muito útil — disse o inspetor. — Agora, se tivesse
sido dos assaltantes...
— Exatamente — disse Holmes. — Que senso comum robusto! Ainda assim,
estou curioso para vê-la.
O inspetor retirou uma folha de papel ofício dobrada de dentro de sua caderneta.
— Nunca deixo nada passar, por menor que seja — disse com alguma pompa. —
Este é meu conselho para o senhor, Sr. Holmes. Em vinte e cinco anos de experiência,
aprendi minha lição. Sempre há uma chance de impressões digitais ou algo do tipo.
Holmes inspecionou a folha de papel.
— Qual é sua opinião sobre ela, inspetor?
— Parece ser o final de um romance estranho, pelo que posso ver.
— Certamente pode ser o final de uma história esquisita — disse Holmes. — Você
notou o número no topo da página. São duzentos e quarenta e cinco. Onde estão as
outras duzentas e quarenta e quatro páginas?
— Bem, suponho que os ladrões as pegaram. Façam bom proveito!
— Parece estranho invadir uma casa para roubar papéis como esses. Isso sugere
algo ao senhor, inspetor?
— Sim, senhor, sugere que os patifes, na pressa, pegaram a primeira coisa à mão.
Espero que se divirtam com o que pegaram.
— Por que eles tinham que mexer nas coisas do meu filho? — perguntou a Sra.
Maberley.
— Bem, eles não encontraram nada de valor no andar de baixo, então tentaram a
sorte no de cima. É como eu vejo a situação. O que você acha, Sr. Holmes?
— Preciso repensar, inspetor. Venha até a janela, Watson. Então, enquanto
estávamos juntos de pé, ele leu novamente o fragmento de papel. Começava no meio
de uma sentença e seguia dessa forma:

“... o rosto sangrava consideravelmente com os cortes e golpes, mas não era
nada, comparado ao sangramento de seu coração quando ele viu aquele rosto
adorável, o rosto pelo qual ele estava preparado para sacrificar sua própria vida,
olhando para sua agonia e humilhação. Ela sorriu — sim, por Deus! ela sorriu, como o
demônio sem coração que era, quando ele olhou para ela. Foi nesse momento que o
amor morreu e o ódio nasceu. O homem deve viver para alguma coisa. Se não for por
seu abraço, minha senhora, certamente será por sua ruína e minha completa
vingança.”

— Que gramática estranha! — disse Holmes com um sorriso, enquanto devolvia


o papel ao inspetor. — Notou como o “ele” de repente se tornou “minha”? O escritor
estava tão imerso em sua própria história que se imaginou no momento supremo ser o
herói.
— Parece coisa mal feita — disse o inspetor enquanto guardava de volta na
caderneta. — Ora, já vai, Sr. Holmes?
— Não acho que haja nada mais para eu fazer aqui, já que o caso está agora em
mãos competentes. Por falar nisso, Sra. Maberley, a senhora falou que gostaria de
viajar?
— Sempre foi meu sonho, Sr. Holmes.
— Onde gostaria de ir... Cairo, Madeira, a Riviera?
— Ah, se eu tivesse dinheiro, daria a volta ao mundo.
— Precisamente. Volta ao mundo. Bem, tenham um bom dia. Talvez eu envie um
telegrama à noite. — Enquanto passávamos na janela, tive um vislumbre de um sorriso
do inspetor e uma sacudida de cabeça. “Esses sujeitos espertos sempre têm um quê de
loucura.” Foi o que eu pude ler no sorriso do inspetor.
— Agora, Watson, estamos no último trecho de nossa pequena jornada — disse
Holmes quando retornamos ao burburinho do centro de Londres. — Acho melhor
esclarecermos o assunto de uma vez, e seria bom que você viesse comigo, pois é mais
seguro ter uma testemunha quando você está lidando com uma dama como Isadora
Klein.
Havíamos tomado um táxi e estávamos indo rápido a algum endereço na
Grosvenor Square. Holmes estava imerso em seus pensamentos, mas se levantou de
repente.
— A propósito, Watson, suponho que você esteja vendo tudo claramente?
— Não, não posso dizer que estou. Apenas que deduzo que vamos ver a dama
que está por trás de toda essa confusão.
— Exatamente! Porém o nome Isadora Klein não lhe diz nada? Ela era, é claro, a
beldade célebre. Nunca houve uma mulher que a alcançasse. Ela é espanhola pura,
sangue verdadeiro dos Conquistadores excepcionais, e seu povo vem sendo líder em
Pernambuco há gerações. Ela se casou com um idoso alemão rei do açúcar, Klein, e
logo se tornou a viúva mais rica e adorável do mundo. Depois houve um intervalo de
aventura em que ela agradou a seus próprios gostos. Teve vários amantes, e Douglas
Maberley, um dos homens mais notáveis de Londres, era um deles. Foi, sem dúvida,
mais do que uma aventura com ele. Ele não era frívolo e sociável, mas um homem forte
e orgulhoso que dava e esperava tudo. Mas ela era a 'belle dame sans merci' da ficção.
Quando seu capricho é satisfeito, o assunto está encerrado, e se a outra parte no assunto
não pode acreditar em sua palavra, ela sabe como fazê-la entender.
— Então essa era a história dele...
— Ah, você está juntando as peças agora. Ouvi dizer que ela está para se casar
com o jovem Duque de Lomond, que poderia ser seu filho. A mãe de Sua Graça pode
ignorar a idade, mas um grande escândalo seria uma questão diferente, então é
imperativo... Ah! aqui estamos.
Era uma das mais finas casas de esquina de West End. Um lacaio parecido com
uma máquina pegou nossos cartões e voltou com a notícia de que a senhora não estava
em casa. — Então vamos esperar até que ela esteja — disse Holmes alegremente.
A máquina se entregou.
— Não estar em casa significa não estar em casa para você — disse o lacaio.
— Ótimo, respondeu Holmes. Isso significa que não teremos que esperar. Por
favor, dê este bilhete para sua senhora.
Ele rabiscou três ou quatro palavras em uma folha de caderno, dobrou e entregou
ao homem.
— O que você escreveu, Holmes? — perguntei.
— Só escrevi: “Vai ser a polícia, então?” Acho que isso nos garantirá a entrada.
Foi o que aconteceu — com uma incrível celeridade. Um minuto depois,
estávamos em uma sala de estar das Mil e Uma Noites, vasta e maravilhosa, à meia
penumbra, realçada por uma ocasional luz elétrica rosa. Senti que a senhora havia
chegado àquela época da vida em que até mesmo a mais orgulhosa beleza vê a meia
luz como bem vinda. Quando entramos, ela se levantou de um sofá: alta, majestosa, uma
figura perfeita, um adorável rosto parecido com uma máscara, com dois maravilhosos
olhos espanhóis que pareciam querer nos matar.
— O que é essa invasão e esta mensagem insultante? — perguntou ela,
segurando o pedaço de papel.
— Não preciso explicar, madame. Respeito muito sua inteligência para fazê-
lo, apesar de que, confesso, essa inteligência tem faltado ultimamente.
— Como assim, senhor?
— Por supor que contratar valentões poderia me intimidar no meu trabalho. É claro
que nenhum homem poderia atuar na minha área se não fosse atraído pelo perigo. Foi
a senhora, portanto, que me forçou a examinar o caso do jovem Maberley.
— Não faço ideia do que você está falando. O que eu tenho a ver com valentões
contratados?
Farto daquilo, Holmes lhe deu as costas.
— Sim, eu subestimei sua inteligência. Bem, boa tarde!
— Pare! Aonde está indo?
— À Scotland Yard.
Não havíamos chegado à metade do caminho até a porta antes que ela nos
alcançasse e segurasse o braço dele. Ela passou de aço a veludo em um minuto.
— Venham e se sentem, cavalheiros. Vamos discutir o assunto. Sinto que preciso
ser honesta com o senhor, Sr. Holmes. O senhor tem os sentimentos de um cavalheiro.
Como é rápido é o instinto de uma mulher para perceber! Eu o tratarei como um amigo.
— Não posso dizer que farei o mesmo, madame. Não sou a lei, mas represento a
justiça até onde meus débeis poderes vão. Estou pronto para ouvir e, só então, direi
como agirei.
— Sem dúvida foi tolo da minha parte ameaçar um homem corajoso como o
senhor.
— O que foi realmente tolo, madame, é que a senhora se colocou nas mãos de
um bando de patifes que podem tanto chantageá-la quanto traí-la.
— Não, não! Não sou tão simplória. Uma vez que prometi ser franca, devo dizer
que ninguém além de Barney Stockdale e Susan, sua esposa, tem a mínima ideia de
quem é seu empregador. Quanto a eles, bem, não é a primeira... — Ela sorriu e assentiu
com uma intimidade charmosa e sedutora.
— Entendi. A senhora já os testou antes.
— Eles são bons cães, que correm em silêncio.
— Tais cães têm por hábito, mais cedo ou mais tarde, de morder a mão de quem
os alimenta. Eles serão presos por assalto. A polícia já está atrás deles.
— Eles terão o que merecem. É para isso que são pagos. Não vou aparecer no
caso.
— A não ser que eu traga seu nome à baila.
— Não, não, o senhor não faria isso. O senhor é um cavalheiro. É um segredo de
uma dama.
— Em primeiro lugar, a senhora deve devolver o manuscrito.
Ela caiu na gargalhada e caminhou até a lareira. Havia uma massa de cinzas que
ela quebrou com o atiçador. — Devo devolver isso? — ela perguntou. Ela parecia tão
maliciosa e requintada enquanto estava parada diante de nós com um sorriso desafiador,
que eu senti que, de todos os criminosos de Holmes, este era o que ele acharia mais
difícil de enfrentar. No entanto, ele era imune ao sentimento.
— Isso sela seu destino — disse ele friamente. — A senhora é muito segura em
suas ações, madame, mas, nesta ocasião, passou dos limites.
Ela jogou o atiçador no chão com um tinido.
— Como o senhor é inflexível! — queixou-se ela. — Posso lhe contar toda a
história?
— Prefiro eu mesmo contá-la.
— Mas o senhor precisa vê-la com meus olhos, Sr. Holmes. O senhor precisa
compreender do ponto de vista de uma mulher que vê toda a ambição de sua vida prestes
a ser arruinada no último momento. Essa mulher pode ser punida por se proteger?
— O pecado original foi seu.
— Sim, sim! Eu admito. Ele era um rapaz encantador, Douglas, mas aconteceu
de ele não se encaixar nos meus planos. Ele queria se casar — se casar, Sr. Holmes —
com uma plebeia sem um tostão. Nada mais serviria para ele. Então se tornou obstinado.
Por eu ter dado, ele parecia pensar que eu ainda deveria dar, e apenas a ele. Era
intolerável. Por fim, tive que fazê-lo perceber isso.
— Contratando malfeitores para espancá-lo sob sua própria janela.
— O senhor parece mesmo saber de tudo. Bem, é verdade. Barney e os rapazes
o levaram daqui e, admito, foram um pouco rudes. Mas então o que ele fez? Poderia eu
acreditar que um cavalheiro praticaria tal ato? Escreveu um livro em que descrevia sua
própria história. Obviamente, eu era o lobo; ele, o cordeiro. Estava tudo lá, sob nomes
diferentes, é claro, mas quem em Londres não reconheceria? O que o senhor diz disso,
Sr. Holmes?
— Bem, ele estava no direito dele.
— Foi como se os ares da Itália tivessem entrado em seu sangue e o tivessem
contaminado com o velho e cruel espírito italiano. Ele me escreveu e mandou uma cópia
de seu livro para que eu sofresse a tortura da expectativa. Havia duas cópias, disse ele
— uma para mim, uma para seu editor.
— Como sabe que o editor não o contactou?
— Eu sabia quem era o editor. Não era só o romance dele, sabe. Descobri que
ele não havia tido notícias da Itália. Depois veio a morte repentina de Douglas. Enquanto
o outro manuscrito estivesse perdido no mundo, eu não estaria segura. É claro que
estaria entre seus pertences, e que estes seriam devolvidos à sua mãe. Pus a gangue
para agir. Um deles entrou na casa como serviçal. Eu queria fazer as coisas
honestamente. Realmente queria, de verdade. Estava pronta para adquirir a casa e tudo
que estava nela. Ofereci qualquer preço que ela quisesse. Apenas fui por outro caminho
quando tudo o mais falhou. Agora, Sr. Holmes, admitindo que fui muito dura com Douglas
— e Deus sabe que sinto muito! — o que mais eu poderia fazer quando todo meu futuro
estava em jogo?
Sherlock Holmes sacudiu os ombros.
— Bem, bem — disse ele. — Suponho que terei que cometer um pequeno delito
com esse acordo, como de costume. Quanto custa dar a volta ao mundo de primeira
classe?
A senhora olhou espantada.
— Poderia ser feito com cinco mil libras?
— Bem, eu acho que sim, de fato!
— Muito bom. Creio que a senhora vai assinar um cheque deste valor, e vou
providenciar para que chegue à Sra. Maberley. Você deve a ela uma pequena mudança
de ares. Enquanto isso, senhora — Ele apontou um dedo indicador de advertência. —
Tenha cuidado! Tenha cuidado! Você não pode brincar com ferramentas afiadas para
sempre sem cortar essas mãos delicadas.
Tradutoras: Larissa Silva Leitão Daroda e Luísa Arantes Bahia
Revisora: Carolina Alves Magaldi

Paratexto

“A Aventura do Vampiro de Sussex” é um conto narrado pelo Dr. Watson e que


conta a história de Robert Ferguson, antigo amigo de Watson e jogador de rúgbi, que
está tendo problemas com a esposa, que acredita ser uma vampira.
O maior desafio tradutório foi a adequação das pessoas do discurso a um grau de
formalidade compatível com a língua portuguesa, especialmente a dificuldade em
selecionar a tradução de “you” como “senhor” ou como “você”, na dependência de quem
era o interlocutor de Sherlock Holmes, para encontrar o grau correto de formalidade para
cada diálogo. Por exemplo, no diálogo com Watson “What do you make of it, Watson?”,
“you” se tornou “você” em “O que você acha disso, Watson?”. Por outro lado, na fala de
Ferguson dirigia a Holmes, “There is an excellent train at two from Victoria if you could
come.”, “you” virou “senhores” em: “Há um trem excelente às duas saindo de Victoria, se
os senhores puderem vir.”
Outro desafio foi o registro distante da norma culta representado na fala da
personagem Dolores, como no exemplo “She will see them. She will leesten,” said she.”,
traduzido como “Ela vai ver eles. Ela vai ouvir — disse ela.”

Perfil das Tradutoras


Larissa Silva Leitão Daroda é tradutora, bacharel em Letras-Tradução
Inglês/Português pela Universidade Federal de Juiz de Fora, mestre em Educação e
doutoranda em Estudos Literários na mesma instituição, onde pesquisa a estilística de
escritores que também são tradutores. É também tradutora literária e técnica, em
especial na área médica, sua segunda área de formação, já tendo publicado diversos
artigos na área.
Luísa Arantes Bahia é licenciada em Letras-Inglês e bacharel em Letras-Tradução
Inglês/Português pela Universidade Federal de Juiz de Fora. É mestre e, atualmente,
doutoranda no Programa de Pós Graduação em Estudos Literários na mesma instituição
e estuda a renomada escritora brasileira Carolina Maria de Jesus em versão para o
inglês. Atualmente cursa, ainda, o bacharelado de tradução Espanhol/Português. É
tradutora literária e técnica, tendo publicado vários trabalhos na área.
A AVENTURA DO VAMPIRO DE SUSSEX

Holmes leu atentamente a mensagem que o último correio lhe trouxera. Então,
com uma risadinha seca que era o que mais se aproximava de uma risada, ele jogou-a
para mim.
𑁋 Para uma mistura do moderno e do medieval, do prático e do extremamente

fantasioso, penso que este é certamente o limite 𑁋 disse ele. 𑁋 O que você acha disso,
Watson?
Li o seguinte:

Old Jewry, 46
19 de novembro.
Assunto: vampiros
Senhor:

Nosso cliente, Sr. Robert Ferguson, de Ferguson e Muirhead, comerciantes de chá, de


Mincing Lane, nos fez algumas perguntas, em uma mensagem recente, a respeito de
vampiros. Como nossa empresa é exclusivamente especializada na avaliação de
máquinas, o assunto dificilmente é da nossa alçada e, portanto, recomendamos ao Sr.
Ferguson que o visite e apresente o assunto ao senhor. Não esquecemos a sua ação
bem sucedida no caso de Matilda Briggs.
Com os melhores cumprimentos,
MORRISON, MORRISON, E DODD.
por E. J. C.

𑁋 Matilda Briggs não era o nome de uma jovem, Watson 𑁋 disse Holmes com
uma voz reminiscente. 𑁋 Era uma embarcação associada ao rato gigante de Sumatra,
uma história para a qual o mundo ainda não está preparado. Mas o que sabemos sobre
vampiros? Isso também está dentro da nossa alçada? Qualquer coisa é melhor do que
a estagnação, mas na verdade parece que fomos jogados em um conto dos Irmãos
Grimm. Estenda o braço, Watson, e veja o que o V tem a dizer.

Recostei-me e peguei o grande volume de índice remissivo ao qual ele se referia.


Holmes equilibrou-o sobre os joelhos e seus olhos percorreram de forma lenta e afável
o registro de casos antigos, misturados com as informações acumuladas durante uma
vida inteira.
𑁋 Viagem do Gloria Scott 𑁋 leu ele. 𑁋 Esse foi um mau negócio. Lembro-me
de que você fez um registro disso, Watson, embora não tenha podido parabenizá-lo pelo
resultado. Victor Lynch, o falsificador. Lagarto peçonhento ou monstro-de-gila. Caso
notável, esse! Vittoria, a bela do circo. Vanderbilt e o Arrombador. Víboras. Vigor, a
maravilha de Hammersmith. Sim! Sim! O bom e velho índice. Nada pode superá-lo. Ouça
isso, Watson. Vampirismo na Hungria. E novamente, Vampiros na Transilvânia. 𑁋 Ele
virou as páginas com entusiasmo, mas depois de uma breve leitura atenta, jogou o
grande livro no chão com um grunhido de decepção.
𑁋 Tolices, Watson, tolices! O que temos nós a ver com cadáveres ambulantes
que só podem ser mantidos em seus túmulos por meio de estacas cravadas em seus
corações? É pura loucura.
𑁋 Mas claro 𑁋 eu disse 𑁋 o vampiro não era necessariamente um homem
morto? Uma pessoa viva pode ter o hábito. Li, por exemplo, sobre velhos sugando o
sangue dos jovens para conservar a juventude.
𑁋 Você está certo, Watson. Menciona a lenda em uma dessas referências. Mas
devemos dar muita atenção a essas coisas? Nossa agência tem os pés no chão e assim
deve permanecer. O mundo é grande o suficiente para nós. Nenhum fantasma precisa
se apresentar. Receio que não possamos levar muito a sério o Sr. Robert Ferguson. É
possível que essa mensagem seja dele e talvez lance alguma luz sobre o que o
preocupa.
Ele pegou uma segunda carta que havia permanecido despercebida sobre a mesa
enquanto ele estava absorto na primeira. Começou a lê-la com um sorriso divertido no
rosto, que gradualmente desapareceu em uma expressão de intenso interesse e
concentração. Quando terminou, ficou sentado por algum tempo, perdido em
pensamentos, com a carta pendurada nos dedos. Finalmente, em um sobressalto, ele
despertou de seu devaneio.
𑁋 Cheeseman, Lamberley. Onde é Lamberley, Watson?

𑁋 Fica em Sussex, ao sul de Horsham.


𑁋 Não muito longe, não é? E Cheeseman?

𑁋 Eu conheço esse país, Holmes. Está repleto de casas antigas que têm os
nomes dos homens que as construíram há séculos. Tem Odley, Harvey e Carriton, as
pessoas são esquecidas, mas seus nomes vivem em suas casas.
𑁋 Exato 𑁋 disse Holmes friamente. Uma das peculiaridades de sua natureza
orgulhosa e reservada era que, embora registrasse qualquer informação nova com muita
calma e precisão em seu cérebro, ele raramente deixava transparecer ao interlocutor. 𑁋
Imagino que saberemos muito mais sobre Cheeseman, Lamberley, antes de
terminarmos. A carta é, como eu esperava, de Robert Ferguson. A propósito, ele afirma
conhecê-lo.
𑁋 A mim!
𑁋 É melhor você ler.
Ele me entregou a carta. Tinha por cabeçalho o endereço citado.
Caro Sr. Holmes [dizia]:
Fui recomendado ao senhor por meus advogados, mas na verdade o assunto é
tão extraordinariamente delicado que é muito difícil discuti-lo. Trata-se de um amigo
que estou representando. Este cavalheiro casou-se há cerca de cinco anos com uma
moça peruana, filha de um comerciante peruano, que conheceu por ocasião da
importação de nitratos. A moça era muito bonita, mas a sua nacionalidade estrangeira
e sua religião estranha sempre causaram uma divergência de interesses e de
sentimentos entre marido e mulher, de modo que depois de um tempo o amor dele por
ela pode ter esfriado e ele pode ter chegado a considerar que sua união foi um erro.
Ele sentiu que havia lados da personalidade dela que ele nunca poderia explorar ou
compreender. Isso era ainda mais doloroso porque ela era uma esposa tão amorosa
quanto um homem poderia desejar ter, para todas as aparências, absolutamente
devota.
Agora vamos ao ponto que deixarei mais claro quando nos encontrarmos. Na
verdade, esta mensagem serve apenas para lhe dar uma ideia geral da situação e para
verificar se o senhor se interessaria pelo assunto. A moça começou a mostrar alguns
traços curiosos, bastante estranhos ao seu temperamento doce e gentil. O cavalheiro
fora casado duas vezes e teve um filho com a primeira esposa. Esse menino agora
com quinze anos, era um jovem muito encantador e afetuoso, embora infelizmente
tivesse se ferido em um acidente na infância. Por duas vezes, a esposa foi pega em
flagrante agredindo esse pobre rapaz absolutamente sem motivo. Uma vez ela bateu
nele com um pedaço de pau e deixou uma grande marca em seu braço.
Contudo, isto era um fato pequeno, comparado com a sua conduta para com o
seu próprio filho, um menininho com pouco menos de um ano de idade. Certa ocasião,
há cerca de um mês, essa criança foi deixada por sua babá por alguns minutos. Um
grito alto do bebê, como se fosse de dor, chamou a babá de volta. Ao entrar correndo
na sala, ela viu sua patroa, a moça, inclinada sobre o bebê aparentemente mordendo
seu pescoço. Havia um pequeno ferimento no pescoço, de onde havia escapado um
fluxo de sangue. A babá ficou tão horrorizada que quis ligar para o marido, mas a moça
implorou-lhe que não o fizesse e chegou a dar-lhe cinco libras para pagar pelo seu
silêncio. Nenhuma explicação jamais foi dada e, por algum tempo, o assunto foi
deixado de lado.
Aquilo deixou, no entanto, uma impressão terrível na mente da babá, e a partir
desse momento ela começou a observar atentamente sua patroa e a vigiar mais de
perto o bebê, a quem ela amava ternamente. Parecia-lhe que, ao mesmo tempo que
observava a mãe, a mãe também a observava, e que sempre que era obrigada a deixar
o bebé sozinho, a mãe estava à espera para que ela o fizesse. Dia e noite, a babá
cobria a criança, e dia e noite a mãe silenciosa e vigilante parecia estar à espreita
como um lobo à espera de um cordeiro. Isso deve parecer muito inacreditável para o
senhor, mas peço-lhe que leve a sério, pois a vida de uma criança e a sanidade de um
homem podem depender disso.
Por fim chegou o dia terrível em que os fatos não puderam mais ser ocultados
do marido. A coragem da babá cedeu; ela não aguentou mais a tensão e confessou
tudo ao homem. Para ele, parecia uma história tão louca quanto pode parecer agora
para o senhor. Ele sabia que sua esposa era uma esposa amorosa e, exceto pelas
agressões ao enteado, uma mãe amorosa. Por que, então, ela iria ferir seu querido
bebezinho? Ele disse à babá que ela estava sonhando, que suas suspeitas eram de
uma lunática e que tais calúnias contra sua esposa não seriam toleradas. Enquanto
conversavam, ouviu-se um súbito grito de dor. A babá e o patrão correram juntos para
o berçário. Imagine o que ele sentiu, Sr. Holmes, ao ver sua esposa se levantar de uma
posição ajoelhada ao lado da cama e ver sangue no pescoço exposto da criança e no
lençol. Com um grito de horror, ele virou o rosto da esposa para a luz e viu sangue em
volta de seus lábios. Foi ela — ela, sem sombra de dúvida — quem bebeu o sangue do
pobre bebê.
Então o problema permanece. Ela agora está confinada em seu quarto. Não
houve explicação. O marido está semi enlouquecido. Ele sabe, e eu sei, pouco sobre
vampirismo além do nome. Pensávamos que fosse alguma história louca de terras
estrangeiras. E, no entanto, aqui no coração do Sussex Inglês — bem, tudo isso pode
ser discutido com o senhor pela manhã. O senhor poderia me encontrar? O senhor
usará seus grandes poderes para ajudar um homem perturbado? Se sim, por favor,
mande um telegrama para Ferguson, Cheeseman, Lamberley, e estarei em seu
escritório às dez horas.
— Com os melhores cumprimentos,
Robert Ferguson.

P. S. Acredito que seu amigo Watson jogou rugby no Blackheath quando eu era três-
quartos no Richmond. É a única introdução pessoal que posso dar.

— É claro que me lembrei dele — disse enquanto colocava a carta na mesa. —


Grande Bob Ferguson, o melhor três-quartos que o Richmond já teve. Ele sempre foi um
cara bem-humorado. É típico dele ficar tão preocupado com o caso de um amigo.
Holmes me olhou pensativo e balançou a cabeça.
— Nunca entendo seus limites, Watson — disse ele. — Existem possibilidades
inexploradas sobre você. Envie o telegrama, como um bom rapaz. "Examinarei seu caso
com prazer."
— Seu caso!
— Não devemos deixá-lo pensar que esta agência é um lar para os fracos de
espírito. Claro que o caso é dele. Envie-lhe aquele telegrama e deixe o assunto
descansar até de manhã.
Pontualmente às dez horas da manhã seguinte, Ferguson entrou em nosso
escritório. Eu me lembrava dele como um homem alto, de flancos grossos, membros
soltos e uma excelente velocidade que o fez ultrapassar muitos adversários. Certamente
não há nada mais doloroso na vida do que encontrar a ruína de um excelente atleta que
conhecemos no seu auge. Seu grande corpo estava caído, seu cabelo loiro estava ralo
e seus ombros estavam curvados. Temo ter despertado nele emoções correspondentes.
— Olá, Watson — disse ele, e sua voz ainda era profunda e calorosa. — Você
não parece com o homem que joguei por cima das cordas no meio da multidão no Old
Deer Park. Suponho ter mudado um pouco também. Mas foram estes últimos dois dias
que me envelheceram. Vejo pelo seu telegrama, Sr. Holmes, que não adianta fingir ser
representante de ninguém.
— É mais simples negociar diretamente — disse Holmes.
— Claro que é. Mas o senhor pode imaginar como é difícil falar da única mulher a
qual você é destinado a proteger e ajudar. O que posso fazer? Como vou à polícia com
uma história dessas? E, ainda assim, as crianças precisam ser protegidas. É loucura, Sr.
Holmes? É algo no sangue? O senhor tem algum caso semelhante em sua experiência?
Pelo amor de Deus, me dê algum conselho, pois estou perdendo o juízo.
— Naturalmente, Sr. Ferguson. Agora sente-se aqui, acalme-se e me dê algumas
respostas claras. Posso assegurar que estou muito longe de perder o juízo e que estou
confiante de que encontraremos alguma solução. Em primeiro lugar, diga-me quais
medidas o senhor tomou. Sua esposa ainda está perto dos filhos?
— Tivemos uma cena terrível. Ela é uma mulher muito amorosa, Sr. Holmes. Se
alguma vez uma mulher amou um homem de todo o coração e alma, ela me ama. Ela
ficou profundamente magoada por eu ter descoberto esse horrível e inacreditável
segredo. Ela nem falava. Ela não respondeu às minhas repreensões, a não ser pelo olhar
que dirigiu a mim, com uma espécie de expressão selvagem e desesperada. Então ela
correu para seu quarto e se trancou. Desde então ela se recusou a me ver. Ela tem uma
empregada que estava com ela antes do casamento, chamada Dolores, mais uma amiga
do que uma criada. Ela é quem leva a comida para ela.
— Então a criança não corre perigo iminente?
— A Sra. Mason, a babá, jurou que não sairá daqui nem de dia nem de noite.
Tenho plena confiança nela. Estou mais preocupado com o pobre Jack, pois, como lhe
contei em minha mensagem, ele foi agredido duas vezes por ela.
— Mas nunca foi ferido?
— Não, ela o atacou selvagemente. É ainda mais terrível porque ele é um pobre
aleijado inofensivo. — As feições esqueléticas de Ferguson suavizaram-se enquanto
falava de seu filho. — O senhor poderia pensar que a condição do amado rapaz
amoleceria o coração de qualquer pessoa. Uma queda na infância e uma torção na
coluna, Sr. Holmes. Mas com o coração mais querido e amoroso dentro de si.
Holmes pegou a carta do dia anterior e a estava lendo. — Que outras pessoas há
na sua casa, Sr. Ferguson?
— Dois empregados que não estão conosco há muito tempo. Um cavalariço,
Michael, que dorme na casa. Minha esposa, eu, meu filho Jack, o bebê, Dolores e a Sra.
Mason. Isso é tudo.
— Presumo que o senhor não conhecia bem sua esposa na época do seu
casamento?
— Eu a conhecia há apenas algumas semanas.
— Há quanto tempo essa empregada Dolores estava com ela?
— Há alguns anos.
— Então a personalidade da sua esposa seria realmente mais conhecida por
Dolores do que pelo senhor?
— Sim, isso é verdade.
Holmes fez uma anotação.
— Imagino — disse ele — que posso ser mais útil em Lamberley do que aqui. É
eminentemente um caso para investigação pessoal. Se a senhora permanecer no quarto,
a nossa presença para a investigação não poderá aborrecê-la ou incomodá-la. Claro,
ficaríamos na pousada.
Ferguson fez um gesto de alívio.
— Era o que eu esperava, Sr. Holmes. Há um trem excelente às duas saindo de
Victoria, se os senhores puderem vir.
— Claro que podemos ir. Há uma calmaria no momento. Posso lhe dar minhas
energias indivisas. Watson, é claro, vem conosco. Mas há um ou dois pontos sobre os
quais desejo ter certeza antes de começar. Essa infeliz moça, pelo que entendi, parece
ter agredido as crianças, o seu próprio bebê e o seu filho pequeno?
— Correto.
—Mas as agressões assumem formas diferentes, não é? Ela bateu no seu filho.
— Uma vez com um pedaço de pau e outra vez de forma muito selvagem com as
mãos.
— Ela não deu nenhuma explicação de por que bateu nele?
— Nenhuma, exceto que ela o odiava. Ela disse isso várias e várias vezes.
— Bem, isso não é um fato desconhecido entre as madrastas. Um ciúme póstumo,
diremos. A moça é ciumenta por natureza?
— Sim, ela é muito ciumenta, ciumenta com toda a força de seu ardente amor
tropical.
— Mas o menino, ele tem quinze anos, pelo que entendi, e provavelmente tem a
mente muito desenvolvida, já que seu corpo foi circunscrito em ação. Ele não lhe deu
nenhuma explicação sobre essas agressões?
— Não, ele declarou que não havia motivo.
— Eles eram bons amigos em outras ocasiões?
— Não, nunca houve amor entre eles.
— Mesmo assim o senhor diz que ele é carinhoso?
— Nunca no mundo poderia haver um filho tão dedicado. Minha vida é a vida dele.
Ele incorpora tudo o que eu digo ou faço.
Mais uma vez Holmes fez uma anotação. Por algum tempo, ele ficou perdido em
pensamentos.
— Sem dúvida, o senhor e o menino eram grandes companheiros antes desse
segundo casamento. Vocês eram muito próximos, não?
— Sim, muito.
— E o menino, tendo uma natureza carinhosa, era devotado, sem dúvida, à
memória da mãe dele?
— Muito devotado.
— Ele certamente parece ser um rapaz muito interessante. Há um outro ponto
sobre esses ataques. As estranhas agressões ao bebê e as agressões ao seu filho foram
na mesma época?
— No primeiro caso, sim. Era como se alguma loucura tivesse tomado conta dela
e ela descontou sua fúria em ambos. No segundo caso, apenas Jack sofreu. A Sra.
Mason não teve queixa quanto ao bebê.
— Isso certamente complica a questão.
— Não o compreendo, Sr. Holmes.
— É possível que não. A pessoa formula teorias provisórias e espera que o tempo
ou conhecimento mais profundo as façam irromper. Um hábito ruim, Sr, Ferguson, mas
a natureza humana é fraca. Temo que seu velho amigo aqui tenha tido uma amostra
exagerada de meu método científico. Entretanto, apenas posso dizer na atual situação
que seu problema não me parece insolúvel, e que o senhor pode esperar nos encontrar
em Victoria às duas horas.
Era noite de um dia sombrio e enevoado de novembro quando, depois de
deixarmos nossas malas em Chequers, Lamberley, atravessamos Sussex por uma
barrenta estrada longa e sinuosa e finalmente chegamos à isolada e antiga casa de
fazenda onde Ferguson morava. Era uma edificação grande e irregular, muito antiga no
centro, muito nova nas alas, com imponentes chaminés estilo Tudor e um telhado alto
de lajes Horsham com manchas de líquen. As soleiras das portas eram curvadas pelo
uso e os azulejos antigos que revestiam a varanda estavam marcados com o mosaico
de um queijo e de um homem em homenagem ao construtor original. No interior, os tetos
eram ondulados com pesadas vigas de carvalho e os pisos irregulares envergavam-se
em curvas acentuadas. Um odor de envelhecimento e decadência impregnava todo o
edifício em ruínas.
Havia um grande cômodo central ao qual Ferguson nos direcionou. Lá, em uma
grande e antiquada lareira com uma tela de ferro por trás datada de 1670, ardia e
crepitava um esplêndido fogo de lenha.
A sala, conforme olhei ao redor, era uma mistura singular de datas e lugares. As
paredes com meio painel em madeira podem muito bem ter pertencido ao fazendeiro
original do século XVII. Contudo, eram ornamentadas na parte inferior por uma fileira de
bem escolhidas e modernas aquarelas; enquanto acima, onde o gesso amarelo tomava
o lugar do carvalho, havia uma elegante coleção de utensílios e armas sul-americanas
penduradas, as quais foram trazidas, sem dúvida, pela senhora peruana do andar de
cima. Holmes se levantou, com aquela curiosidade rápida que brotava de sua mente
ávida, e examinou-os com algum cuidado. Voltou com os olhos cheios de pensamentos.
— Olá!, gritou. Olá!
Um spaniel estava deitado em uma cesta no canto. Avançou lentamente em
direção ao seu mestre, caminhando com dificuldade. Suas patas traseiras moviam-se
irregularmente e sua cauda estava no chão. Lambeu a mão de Ferguson.
— O que foi, Sr. Holmes?
— O cachorro. Qual o problema com ele?
— Isso é o que intrigou o veterinário. Uma espécie de paralisia. Meningite
espinhal, pensou. Mas está passando. Ele logo ficará bom, não é, Carlo?
Um tremor de aprovação passou pela cauda caída. Os olhos tristes do cachorro
passaram de um de nós para o outro. Ele sabia que estávamos discutindo seu caso.
— Apareceu de repente?
— Da noite para o dia.
— Há quanto tempo?
— Talvez há uns quatro meses.
— Muito notável. Muito sugestivo.
— O que o senhor pensa sobre isso, Sr. Holmes?
— Uma confirmação do que eu já havia pensado.
— Pelo amor de Deus, o que o senhor está pensando, Sr. Holmes? Pode lhe
parecer apenas um quebra-cabeças intelectual, mas é vida ou morte para mim! Minha
esposa, uma potencial assassina, meu filho em perigo constante! Não brinque comigo,
Sr Holmes. É terrivelmente sério demais.
O grande três-quartos do Rugby estava tremendo todo. Holmes colocou
suavemente a mão em seu braço.
— Temo que seja doloroso para o senhor, Sr. Ferguson, qualquer que seja a
solução, — disse ele. — Eu o pouparia de tudo o que pudesse. Não posso dizer mais
neste momento, mas, antes de deixar esta casa, espero ter algo definitivo.
— Por Deus, que tenha! Se vocês me derem licença, senhores, irei ao quarto da
minha esposa e verei se houve alguma mudança.
Ele esteve ausente por alguns minutos, durante os quais Holmes retomou o
exame das curiosidades penduradas na parede. Quando nosso anfitrião voltou, ficou
claro pelo seu rosto abatido que ele não havia feito nenhum progresso. Ele trouxe
consigo uma garota alta, magra e de rosto moreno.
— O chá está pronto, Dolores — disse Ferguson. — Certifique-se de que sua
patroa tenha tudo o que possa desejar.
— Ela muita doente — lamentou a garota, com olhos indignados para seu mestre.
— Ela não pedir comida. Ela muita doente. Ela precisar médico. Eu com medo de ficar
sozinha com ela sem médico.
Ferguson me olhou com uma pergunta nos olhos.
— Ficaria muito feliz se pudesse ser útil.
— Sua patroa aceitaria ver o Dr. Watson?
— Eu levar ele. Eu não pedir para sair. Ela precisar médico.
— Então vou agora com você.
Segui a garota, que tremia com a emoção intensa, escada acima e corredor
adentro. No final do corredor, havia uma porta enorme com presilha de ferro. Ocorreu-
me que, se Ferguson tentasse forçar o caminho até sua esposa, não seria tarefa fácil. A
garota tirou uma chave de seu bolso, e as pesadas tábuas de carvalho rangeram em
suas velhas dobradiças. Entrei e ela me seguiu rapidamente, fechando a porta atrás de
si.
Deitada na cama, havia uma mulher claramente febril. Estava apenas
semiconsciente, porém, quando entrei, ergueu um par de olhos assustados, mas lindos,
e olhou para mim apreensiva. Ao ver um estranho, ela pareceu aliviada e recostou-se no
travesseiro com um suspiro. Aproximei-me dela com algumas palavras tranquilizadoras,
e ela ficou imóvel enquanto eu media seu pulso e sua temperatura. Ambos estavam altos,
mas minha impressão foi que a condição era mais de excitação mental e nervosa do que
qualquer convulsão real.
— Ela fica deitada desse jeito, um dia, dois dia. Tenho medo dela] morrer, — disse
a garota. A mulher virou sua bela e enrubescida face para mim.
— Onde está meu marido?
— Ele está lá embaixo e gostaria de vê-la.
— Eu não o verei. Não o verei. — Então ela parecia entrar em delírio. — Um
monstro! Um monstro! O que farei com esse demônio?
— Posso ajudá-la de alguma forma?
— Não. Ninguém pode. Está acabado. Tudo está destruído. Faça o que fizer, tudo
está destruído.
A mulher deve estar em alguma alucinação estranha. Eu não conseguia ver Bob
Ferguson no papel de monstro ou demônio.
— Senhora — disse eu — seu marido a ama ternamente. Está profundamente
consternado com os acontecimentos. — Ela virou novamente aqueles olhos gloriosos
para mim.
— Ele me ama. Sim. Mas eu o amo? Não o amo a ponto de me sacrificar, em vez
de partir seu terno coração? Isso é como eu o amo. E ainda assim ele pode pensar em
mim — até mesmo falar de mim.
— Ele está cheio de tristeza, mas não consegue entender.
— Não, ele não consegue. Mas deveria confiar.
— A senhora não gostaria de vê-lo? Sugeri.
— Não, não consigo esquecer aquelas palavras terríveis ou olhar no seu rosto.
Não quero vê-lo. Vá agora. O senhor não pode fazer nada por mim. Diga apenas uma
coisa a ele. Eu quero meu filho. Tenho direito ao meu filho. É a única mensagem que
posso lhe enviar. Ela virou o rosto para a parede e não disse mais nada.
Retornei à sala no andar de baixo, onde Ferguson e Holmes ainda estavam
sentados perto do fogo. Ferguson escutou melancolicamente o meu relato da conversa.
— Como posso lhe mandar a criança? — disse — Como saberei qual estranho
impulso pode tomar conta dela? Como posso esquecer como ela se levantou do seu lado
com sangue nos lábios? — Ele estremeceu com a lembrança. — A criança está segura
com a Sra. Mason e lá deve permanecer.
Uma empregada elegante, a única coisa moderna que havíamos visto na casa,
trouxera um pouco de chá. Enquanto ela servia, a porta se abriu e um jovem entrou na
sala. Ele era um rapaz notável, de rosto pálido e cabelos louros, com olhos azuis claros
inquietos que brilharam em uma súbita chama de emoção e alegria quando pousaram
sobre seu pai. Ele correu e jogou os braços em volta do seu pescoço como a entrega de
uma garota amorosa.
— Ah, papai — exclamou — Não sabia que o senhor já estava de volta. Eu deveria
ter vindo encontrá-lo. Ah, estou tão feliz de vê-lo!
Ferguson gentilmente se desvencilhou do abraço com um certo constrangimento.
— Meu caro rapaz, disse ele — acariciando a cabeça loira com uma mão muito
terna. — Cheguei mais cedo porque meus amigos, o Sr. Holmes e o Dr. Watson, foram
persuadidos a vir e passar uma noite conosco.
— Esse é o Sr. Holmes, o detetive?
— Sim.
O jovem olhou para nós com um olhar muito penetrante e, como me pareceu, um
olhar hostil.
— E o seu outro filho, Sr. Ferguson? — perguntou Holmes. — Podemos conhecer
o bebê?
— Peça à Sra. Mason para descer com o bebê — disse Ferguson. O menino saiu
com uma marcha curiosa e cambaleante que disse aos meus olhos cirúrgicos que ele
sofria de uma coluna fraca. Logo ele voltou, e atrás dele veio uma mulher alta e magra
carregando nos braços uma criança muito bonita, de olhos escuros e cabelos dourados,
uma mistura maravilhosa do saxão e do latino. Ferguson era evidentemente zeloso com
ele, pois o pegou nos braços e o acariciou com muita ternura.
— Imagine alguém ter coragem de machucá-lo — murmurou enquanto olhava
para o pequeno e irritado franzido vermelho na garganta do querubim.
Foi nesse momento que olhei para Holmes e vi uma intensidade singular em sua
expressão. Seu rosto estava tão firme como se tivesse sido esculpido em marfim antigo,
e seus olhos, que por um momento haviam se voltado para pai e filho, estavam agora
fixos com ávida curiosidade em algo do outro lado da sala. Seguindo seu olhar, só pude
adivinhar que ele estava olhando pela janela para o jardim melancólico e úmido. É
verdade que uma veneziana estava meio fechada do lado de fora e obstruía a visão,
mas, mesmo assim, era certamente na janela que Holmes fixava sua atenção
concentrada. Então ele sorriu e seus olhos se voltaram para o bebê. No pescoço
rechonchudo havia uma pequena marca enrugada. Sem falar, Holmes examinou-o com
cuidado. Finalmente ele sacudiu um dos punhos com covinhas que acenavam à sua
frente.
— Adeus, rapazinho. Você fez uma estranha estreia na vida. Babá, eu gostaria de
lhe falar em particular.
Ele a levou para um lado e falou francamente por alguns minutos. Só ouvi as
últimas palavras, que eram: — Espero que, em breve, sua ansiedade seja acalmada. —
A mulher, que parecia ser uma criatura azeda e silenciosa, saiu com a criança.
— Que tal é a Sra. Mason? perguntou Holmes.
— Não muito atraente externamente, como o senhor pode ver, mas um coração
de ouro, e dedicada à criança.
— Você gosta dela, Jack? — Holmes virou-se de repente para o menino. Seu
rosto expressivo e móvel ficou sombreado e ele balançou a cabeça.
— Jacky tem gostos e desgostos muito fortes — disse Ferguson, passando o
braço em volta do garoto. — Felizmente eu sou um dos gostos dele.
O menino arrulhou e aninhou a cabeça no peito do pai. Ferguson gentilmente se
soltou dele.
— Pode ir, pequeno Jacky — disse ele e observou seu filho com olhos amorosos
até ele desaparecer.
— Agora, Sr. Holmes, — continuou ele quando o menino se foi, — eu realmente
sinto que o trouxe em uma empreitada infrutífera, pois o que o senhor pode fazer a não
ser se solidarizar comigo? Deve ser um assunto extremamente delicado e complexo do
seu ponto de vista.
— Certamente é delicado, — disse meu amigo com um sorriso divertido, — mas
ainda não fiquei impressionado com sua complexidade. Tem sido um caso para dedução
intelectual, mas quando esta dedução intelectual original é confirmada ponto por ponto
por um grande número de incidentes independentes, então o subjetivo torna-se objetivo
e podemos dizer com segurança que atingimos nossa meta. Na verdade, atingi antes de
sairmos de Baker Street, e o resto foi apenas observação e confirmação.
Ferguson colocou a mão grande na testa franzida.
— Pelo amor de Deus, Holmes, — disse ele com voz rouca. — Se o senhor
consegue ver a verdade neste assunto, não me deixe em suspense. Como fico? O que
devo fazer? Não me importa como o senhor descobriu os fatos, desde que realmente os
tenha obtido.
— Certamente lhe devo uma explicação, e o senhor a terá. Mas me permitirá lidar
com o assunto à minha maneira? A senhora é capaz de nos ver, Watson?
— Ela está doente, mas é bastante racional.
— Muito bom. É somente na presença dela que podemos esclarecer o assunto.
Vamos até ela.
— Ela não vai me ver — gritou Ferguson.
— Ah, sim, ela vai — disse Holmes. Ele rabiscou algumas linhas em uma folha de
papel. — Você pelo menos tem a entrada, Watson. Teria a bondade de entregar este
bilhete à senhora?
Subi novamente e entreguei o bilhete a Dolores, que abriu a porta cautelosamente.
Um minuto depois ouvi um grito vindo de dentro, um grito em que a alegria e a surpresa
pareciam se misturar. Dolores olhou para fora.
— Ela vai ver eles. Ela vai ouvir — disse ela.
Ao meu chamado, Ferguson e Holmes apareceram. Ao entrarmos no quarto,
Ferguson deu um ou dois passos em direção à esposa, que havia se levantado na cama,
mas ela estendeu a mão para repeli-lo. Afundou-se numa poltrona, enquanto Holmes
sentou-se ao seu lado, depois de fazer uma reverência à senhora, que o olhou arregalada
de espanto.
— Acho que podemos dispensar Dolores — disse Holmes. — Oh, muito bem,
senhora, se preferir que ela fique, não vejo objeção. Agora, Sr. Ferguson, sou um homem
ocupado, com muitos chamados e meus métodos têm que ser curtos e diretos. A cirurgia
mais rápida é a menos dolorosa. Deixe-me primeiro dizer o que irá aliviar sua mente.
Sua esposa é uma mulher muito boa, muito amorosa e muito maltratada.
Ferguson sentou-se com um grito de alegria.
— Prove isso, Sr. Holmes, e eu estarei para sempre em débito com o senhor.
— Eu farei isso, mas ao fazê-lo devo feri-lo profundamente em outra direção.
— Eu não me importo com nada, desde que o senhor libere minha esposa. Tudo
na terra é insignificante comparado a isso.
— Deixe-me contar-lhe, então, a linha de raciocínio que passou pela minha mente
em Baker Street. A ideia de um vampiro era para mim absurda. Tais coisas não
acontecem na prática criminosa na Inglaterra. E ainda assim sua observação foi precisa.
O senhor viu a senhora levantar-se ao lado do berço da criança com sangue nos lábios.
— Eu vi.
— Não lhe ocorreu que uma ferida sangrando pode ser sugada para algum outro
propósito que não seja tirar o sangue dela? Não havia uma rainha na História da
Inglaterra, que sugou tal ferida para extrair veneno dela?
— Veneno!
— Um lar sulamericano. Meus instintos sentiram a presença daquelas armas na
parede antes mesmo de meus olhos as verem. Pode ter sido outro veneno, mas aquilo
foi o que me ocorreu. Quando eu vi aquela pequena aljava vazia ao lado do pequeno
arco, era exatamente o que eu esperava ver. Se a criança fosse furada com uma
daquelas flechas embebidas em curare ou alguma outra droga diabólica, isso significaria
a morte se o veneno não fosse sugado.
— E o cachorro! Se alguém usasse tal veneno, não o experimentaria primeiro para
ver se não havia perdido seu poder? Não previ o cachorro, mas pelo menos o entendo e
ele se encaixou na minha reconstrução.
— Agora o senhor entende? Sua esposa temia tal ataque. Ela o viu e salvou a
vida da criança, mas se esquivou de lhe contar a verdade, pois ela sabia o quanto o
senhor amava o menino e temia que isso partisse seu coração.
— Jacky!
— Eu o observei enquanto o senhor acariciava a criança agora há pouco. Seu
rosto estava claramente refletido no vidro da janela onde a veneziana formava o fundo.
Vi tanto ciúme, tanto ódio cruel, como raramente vi num rosto humano.
— Meu Jacky!
— O senhor tem que encarar isto, Sr. Ferguson. É doloroso porque é um amor
distorcido, um amor maníaco exagerado direcionado ao senhor, e, possivelmente, à
falecida mãe, que provocou suas ações. Sua própria alma é consumida por ódio por esta
esplêndida criança, cuja saúde e beleza são um contraste com a própria fraqueza dele.
— Por Deus! É inacreditável!
— Eu falei a verdade, madame?
A senhora estava em prantos, com a face enterrada dos travesseiros. Nesse
momento, voltou-se para seu marido.
— Como eu poderia lhe contar, Bob? Senti o golpe que seria para você. Foi melhor
que eu tenha esperado e que tenha vindo de outros lábios que não os meus. Quando
este cavalheiro, que parece ter poderes mágicos, escreveu que já sabia de tudo, eu fiquei
feliz.
— Acredito que um ano no mar seria minha prescrição para o Senhor Jacky —
disse Holmes, levantando-se da cadeira. — Apenas uma coisa ainda está nebulosa,
madame. Podemos entender seus ataques contra o Senhor Jacky, há um limite para a
paciência de uma mãe. Mas como a senhora conseguiu deixar a criança nestes últimos
dias?
— Eu tinha contado para a Sra. Mason. Ela sabia.
— Exatamente. Assim imaginei.
Ferguson estava parado ao lado da cama, engasgado, as mãos estendidas e
trêmulas.
— Imagino que esta seja a hora de nossa partida, Watson — disse Holmes num
sussurro. — Se você pegar um braço da fiel Dolores, eu pegarei o outro. Pronto, agora
— acrescentou enquanto fechava a porta atrás de si — acho que podemos deixá-los
resolver o resto entre si.
Tenho apenas mais uma observação sobre este caso. É a carta que Holmes
escreveu em resposta final àquela com que a narrativa começa. Decorreu da seguinte
forma:

Baker Street
21 de novembro.
Assunto: vampiros
Senhor:
Referindo-me à sua carta do dia 19, afirmo-lhe que examinei o inquérito do seu cliente,
Sr. Robert Ferguson, de Ferguson e Muirhead, comerciantes de chá, de Mincing Lane,
e que o assunto foi levado a uma conclusão satisfatória.
Com agradecimentos pela sua recomendação,
— Com os melhores cumprimentos,
Sherlock Holmes.
Tradutora: Luiza Maia Amaral
Revisora: Naara Bittencourt Ramalho

Paratexto

O conto "The Adventure of the Three Garridebs" foi traduzido para o português
como “A Aventura dos Três Garridebs”. Neste conto, o famoso detetive está em busca
da verdade acerca de um homem misterioso que pede sua ajuda para encontrar outros
dois homônimos. Durante o relato do caso feito por Watson, fiel companheiro de
Sherlock, uma verdade cheia de perigos começa a aparecer.
O conto foi traduzido para um público geral e a linguagem visou respeitar o estilo
policial e jornalístico. O conto também possui títulos específicos da cultura-fonte, como
"knighthood", que foi traduzido como "cavaleiro" para português; além de apresentar
muitos desafios tradutórios como a repetição de frases e palavras como em "It may have
been a comedy, or it may have been a tragedy" que foi traduzido como "Pode ter sido
uma comédia ou pode ter sido uma tragédia".

Perfil da tradutora

Luiza Maia Amaral é tradutora generalista, com formação em Bacharelado em


Tradução de Inglês-Português pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
A AVENTURA DOS TRÊS GARRIDEBS

Pode ter sido uma comédia ou pode ter sido uma tragédia. Custou a um homem
sua razão, custou a mim um derramamento de sangue e custou a outro homem as
penalidades da lei. No entanto, houve, certamente, um elemento de comédia. Bem, os
senhores julgarão por si mesmos.
Lembro-me da data muito bem, pois foi no mesmo mês em que Holmes recusou
um título de cavaleiro por serviços que talvez um dia possam ser descritos. Refiro-me ao
assunto apenas de passagem, pois, em minha posição de sócio e confidente, sou
obrigado a ser particularmente cuidadoso, para evitar qualquer indiscrição. Torno a dizer,
no entanto, que esse fato me permite memorar a data, que foi no final de junho, em 1902,
logo após o término da Guerra da África do Sul. Holmes havia passado vários dias
deitado na cama, como costumava fazer de tempos em tempos, mas surgiu, naquela
manhã, com um longo documento em papel almaço na mão e com um brilho de diversão
em seus austeros olhos cinzentos.
— Há uma chance de você fazer um dinheiro, meu amigo Watson — disse ele.
— Você já ouviu o nome Garrideb?
Admiti que não.
— Bem, se você puder colocar suas mãos em um Garrideb, há dinheiro envolvido.
— Por quê?
— Ah, é uma longa história – um tanto excêntrica, também. Penso que, em todas
as nossas explorações das complexidades humanas, nunca encontramos algo tão
singular. O sujeito estará aqui em breve para um interrogatório. Portanto, não tocarei no
assunto até que ele chegue. Mas, enquanto isso, esse é o nome que queremos.
A lista telefônica estava sobre a mesa ao meu lado. Folheei as páginas em uma
busca sem esperança. Mas, para minha surpresa, lá estava esse estranho nome em seu
devido lugar. Dei um grito de triunfo.
— Aqui está, Holmes! Aqui está!
Holmes pegou o livro de minha mão.
— “’Garrideb, N.” — ele leu, — “136 Little Ryder Street, W.” Lamento desapontá-
lo, meu caro Watson, mas este é o próprio homem. Este é o endereço que consta em
sua carta. Queremos outro igual a ele.
A Sra. Hudson entrou com um cartão em uma bandeja. Peguei-o e dei uma olhada
nele.
— Ora, aqui está! —gritei com espanto. — Esta é uma inicial diferente. John
Garrideb, Advogado, Moorville, Kansas, E.U.A.
Holmes sorriu ao olhar para o cartão. — Receio que tenha de fazer mais um
esforço, Watson, — disse ele. — Este senhor também já está na trama, embora eu
certamente não esperasse vê-lo nesta manhã. No entanto, ele está em posição de nos
contar muitas coisas que quero saber.
Um momento depois, ele estava na sala. O Sr. John Garrideb, Advogado, era um
homem baixo, poderoso, com o rosto redondo, fresco e barbeado, característico de
muitos homens de negócios americanos. O efeito geral era rechonchudo e um tanto
infantil, de modo que se tinha a impressão de um homem bastante jovem com um largo
sorriso no rosto. Seus olhos, no entanto, eram impressionantes. Raramente, em qualquer
cabeça humana, vi olhos que denotassem uma vida interior mais intensa, tão brilhante,
tão alerta, tão sensível a cada mudança de pensamento. Seu sotaque era americano,
mas não era acompanhado de nenhuma excentricidade na fala.
— Sr. Holmes? — perguntou ele, olhando de um para o outro. — Ah, sim! Seus
retratos não são muito diferentes do senhor, se me permite dizer. Acredito que o senhor
tenha recebido uma carta do meu homônimo, o Sr. Nathan Garrideb, não é mesmo?
— Sente-se, por favor. — disse Sherlock Holmes. — Imagino que teremos muito
o que conversar. — ele pegou suas folhas de papel almaço. — O senhor é,
evidentemente, o Sr. John Garrideb mencionado neste documento. Mas certamente já
está na Inglaterra há algum tempo?
— Por que diz isso, Sr. Holmes? — identifiquei uma súbita suspeita em seus olhos
expressivos.
— Todo o seu traje é inglês.
O Sr. Garrideb forçou uma risada. — Já li sobre seus truques, Sr. Holmes, mas
nunca pensei que seria alvo deles. Como percebeu isso?
— O corte do ombro de seu casaco, o bico de suas botas. Alguém poderia duvidar
disso?
— Ora, ora, não tinha ideia de que eu era um britânico tão óbvio. Mas os negócios
trouxeram-me para cá há algum tempo e, como você disse, meu traje é quase todo
londrino. No entanto, creio que seu tempo é valioso, e não nos encontramos para falar
sobre o corte das minhas meias. Que tal irmos direto ao papel que você tem nas mãos?
Holmes havia incomodado de alguma forma o nosso visitante, cujo rosto
rechonchudo assumiu uma expressão bem menos amável.
— Paciência! Paciência, Sr. Garrideb! — disse meu amigo com uma voz suave.
— O Dr. Watson diria que às vezes essas minhas pequenas digressões acabam tendo
alguma importância para o assunto. Mas por que o Sr. Nathan Garrideb não veio com o
senhor?
— Por que ele o envolveu nisso? — perguntou nosso visitante com uma súbita
chama de raiva. — O que raios você tem a ver com isso? Tratava-se de um negócio
profissional entre dois cavalheiros, e um deles precisava chamar um detetive! Eu o vi
hoje de manhã e ele me contou a peça que me pregou, e é por isso que estou aqui. Mas
me sinto mal mesmo assim.
— Não houve nenhuma reflexão sobre o senhor, Sr. Garrideb. Foi simplesmente
zelo da parte dele para atingir seu objetivo – um objetivo que, pelo que sei, é igualmente
vital para vocês dois. Ele sabia que eu tinha meios de obter informações e, portanto, era
muito natural que ele me procurasse.
O rosto irritado de nosso visitante foi se dissipando aos poucos.
– Bem, isso é diferente — disse ele. — Quando fui vê-lo nesta manhã, ele me
disse que havia mandado chamar um detetive, pedi seu endereço e vim imediatamente.
Não quero que a polícia se meta em um assunto particular. Mas se você quiser apenas
nos ajudar a encontrar o homem, não há nenhum mal nisso.
– Bem, é exatamente isso — disse Holmes. — E agora, senhor, já que está aqui,
é melhor termos um relato claro de sua própria boca. Meu amigo aqui não sabe nada
sobre os detalhes.
O Sr. Garrideb me examinou com um olhar não muito amigável.
— Ele precisa de saber? — perguntou.
— Normalmente trabalhamos juntos.
— Bem, não há razão para que isso seja mantido em segredo. Vou lhe contar os
fatos da forma mais resumida possível. Se fosse do Kansas, eu não precisaria lhe
explicar quem foi Alexander Hamilton Garrideb. Ele ganhou dinheiro com imóveis e,
posteriormente, com o comércio de trigo em Chicago, mas gastou comprando a maior
quantidade de terras possível para formar um de seus condados, localizado ao longo do
rio Arkansas, a oeste de Fort Dodge. São terras de pastagem, terras de madeira, terras
cultiváveis e terras mineralizadas, e todo tipo de terra que rende dólares ao proprietário.
— Ele não tinha parentes – ou, se tinha, nunca ouvi falar. Mas ele se orgulhava
da estranheza de seu nome. Foi isso que nos uniu. Eu era advogado em Topeka e, um
dia, recebi sua visita e ele ficou muito feliz em conhecer outro homem com seu próprio
nome. Era seu hobby preferido, e ele estava decidido a descobrir se havia mais Garridebs
no mundo. “Encontre outro!”, disse ele. Eu lhe disse que era um homem ocupado e que
não poderia passar minha vida caminhando pelo mundo em busca de Garridebs. “No
entanto”, disse ele, “é exatamente isso que você fará se as coisas saírem como
planejei”. Achei que ele estava brincando, mas havia um grande significado em suas
palavras, como eu descobriria logo.
“Pois ele morreu um ano depois de dizê-las e deixou um testamento. Foi o
testamento mais estranho já registrado no Estado do Kansas. Sua propriedade foi
dividida em três partes, e eu ficaria com uma, desde que encontrasse dois Garridebs que
dividissem o restante. São cinco milhões de dólares para cada um, mas não podemos
encostar um dedo nele até que nós três estejamos um ao lado do outro.
“Era uma chance tão grande que deixei de lado minha prática jurídica e saí em
busca dos Garridebs. Não há nenhum nos Estados Unidos. Procurei todos, senhor,
passei um pente fino e nunca consegui encontrar um Garrideb. Então, tentei no antigo
país. Com certeza, o nome estava na lista telefônica de Londres. Fui atrás dele há dois
dias e lhe expliquei todo o assunto. Mas ele é um homem solitário, como eu, com
algumas parentes mulheres, mas nenhum homem. O testamento diz que são três
homens adultos. Como vê, ainda temos uma vaga e, se puder ajudar a preenchê-la,
estaremos dispostos a pagar seus honorários. — concluiu.
— Bem, Watson —, disse Holmes com um sorriso, — eu disse que era um tanto
excêntrico, não é? Eu teria pensado, senhor, que sua maneira óbvia de anunciar seria
nas colunas dos jornais.
–Já fiz isso, Sr. Holmes. Sem respostas.
— Meu Deus! Esse é certamente um pequeno problema muito curioso. Posso dar
uma olhada nisso quando tiver tempo. A propósito, é curioso que você tenha vindo de
Topeka. Eu costumava ter um correspondente – ele já morreu –, o velho Dr. Lysander
Starr, que foi prefeito em 1890.
— O bom e velho Dr. Starr! — disse nosso visitante. — Seu nome ainda é honrado.
Bem, Sr. Holmes, suponho que tudo o que podemos fazer é nos reportar ao senhor e
informá-lo sobre o nosso progresso. Acho que o senhor terá notícias dentro de um ou
dois dias. Com essa garantia, nosso visitante americano fez uma reverência e partiu.
Holmes acendeu o cachimbo e ficou sentado durante algum tempo com um sorriso
curioso no rosto.
— Então? – perguntei por fim.
— Estou me perguntando, Watson – apenas me perguntando!
— O quê?
Holmes tirou o cachimbo da boca.
— Eu estava me perguntando, Watson, qual poderia ser o objetivo desse homem
nos contando esse monte de mentiras. Quase perguntei a ele – há momentos em que
um ataque frontal brutal é a melhor política – mas achei melhor deixá-lo pensar que havia
nos enganado. Aqui está um homem usando um casaco inglês desgastado no cotovelo
e calças puídas no joelho com um ano de uso e, no entanto, segundo este documento e
segundo seu próprio relato, ele é um americano provinciano que desembarcou
recentemente em Londres. Não havia anúncios nas colunas. Você sabe que não perco
uma sequer. Elas são meu esconderijo favorito para colocar um pássaro, e eu nunca
teria ignorado um faisão como aquele. Nunca conheci um Dr. Lysander Starr, de Topeka.
Toque-o onde quiser, ele era falso. Acho que o sujeito é realmente americano, mas seu
sotaque foi suavizado por anos em Londres. Qual é o jogo dele, então, e que motivo está
por trás dessa busca absurda por Garridebs? Isso merece nossa atenção, pois, embora
o homem seja um malandro, ele certamente é complexo e engenhoso. Agora precisamos
descobrir se nosso outro correspondente também é uma fraude. Basta ligar para ele,
Watson.
Liguei e ouvi uma voz fina e trêmula do outro lado da linha.
— Sim, sim, eu sou o Sr. Nathan Garrideb. O Sr. Holmes está aí? Eu gostaria
muito de dar uma palavra com o Sr. Holmes.
Meu amigo pegou o telefone e eu ouvi o diálogo sincopado de sempre.
— Sim, ele esteve aqui. Entendo que o senhor não o conhece... Há quanto tempo?
... Apenas dois dias!... Sim, sim, é claro, é uma perspectiva muito cativante. Você estará
em casa esta noite? Suponho que seu homônimo não estará lá?... Muito bem, iremos
então, pois prefiro conversar sem ele... O Dr. Watson virá comigo... Pelo que entendi de
seu bilhete, você não saía com frequência... Bem, chegaremos por volta das seis. Não
precisa mencionar isso ao advogado americano... Muito bem. Adeus!
Era um lindo anoitecer de primavera, e até a Little Ryder Street, um dos menores
desdobramentos da Edgware Road, a uma distância de uma pedra da velha Tyburn Tree
de má memória, parecia dourada e maravilhosa sob os raios inclinados do sol poente. A
casa para a qual fomos direcionados era um grande edifício georgiano antigo, com uma
fachada plana de tijolos, interrompida apenas por duas janelas profundas no andar
térreo. Era neste andar térreo que nosso cliente morava e, de fato, as janelas baixas se
mostraram ser a frente do enorme quarto no qual ele passava suas horas de vigília. Ao
passarmos, Holmes apontou para a pequena placa de latão que trazia o curioso nome.
— Já está aqui há alguns anos, Watson, — observou ele, indicando sua superfície
descolorida. — De qualquer forma, é seu nome verdadeiro, e isso é algo a se notar.
A casa tinha uma escada comum, e havia vários nomes pintados no saguão,
alguns indicando escritórios e outros aposentos particulares. Não era um conjunto de
apartamentos residenciais, mas sim a residência de solteiros boêmios. Nosso cliente
abriu a porta para nós e se desculpou dizendo que a mulher responsável saiu às quatro
horas. O Sr. Nathan Garrideb revelou-se uma pessoa muito alta, desconjuntado,
corcunda, magro e careca, com cerca de sessenta e tantos anos de idade. Ele tinha um
rosto cadavérico, com a pele morta e sem brilho de um homem que desconhecia
exercícios. Seus óculos grandes e redondos e sua pequena e saliente cavanhaque
combinavam com a atitude condescendente e davam-lhe dar uma expressão de
curiosidade. O efeito geral, entretanto, era amável, embora excêntrico.
A sala era tão curiosa quanto seu ocupante. Parecia um pequeno museu. Era
ampla e profunda, com armários e gabinetes por toda parte, repletos de espécimes
geológicos e anatômicos. Cada lado da entrada era ladeado por caixas de borboletas e
mariposas. Uma grande mesa no centro estava repleta de todos os tipos de detritos,
enquanto o comprido tubo de metal de um poderoso microscópio se eriçava entre eles.
Enquanto olhava em volta, me surpreendi com a universalidade dos interesses do
homem. Aqui estava uma caixa de moedas antigas. Ali estava um armário de
instrumentos de pedra. Atrás de sua mesa central havia um grande armário com ossos
fósseis. Acima, havia uma linha de crânios de gesso com nomes como "Neandertal",
"Heidelberg", "Cro-Magnon" impressos abaixo deles. Estava claro que ele era um
estudioso de muitos assuntos. Enquanto estava diante de nós, ele segurava um pedaço
de couro de camurça na mão direita, com o qual estava polindo uma moeda.
— Siracusano, o melhor período, — explicou ele, segurando-a. — Eles se
degeneraram muito no final. Em seu melhor momento, eu os considero supremos,
embora alguns prefiram a escola de Alexandria. O senhor encontrará uma cadeira aqui,
Sr. Holmes. Por favor, permita-me limpar esses ossos. E o senhor – sim, Dr. Watson –
se tiver a bondade de deixar o vaso japonês de lado. Os senhores veem ao meu redor
meus pequenos interesses na vida. Meu médico me ensinou a nunca sair, mas por que
eu sairia quando tenho tanto para me manter aqui? Posso lhe garantir que a catalogação
adequada de um desses armários me levaria uns bons três meses.
Holmes olhou ao seu redor com curiosidade.
— Mas, me diga, o senhor nunca sai? — disse ele.
— De vez em quando vou até a Sotheby's ou a Christie's. Mas raramente saio do
meu quarto. Não sou muito forte, e minhas pesquisas me absorvem muito. Mas pode
imaginar, Sr. Holmes, que choque terrível – agradável, mas terrível – foi para mim quando
soube dessa boa sorte sem igual. Só é preciso mais um Garrideb para completar e
certamente podemos encontrar um. Eu tinha um irmão, mas ele já morreu, e parentes de
sexo feminino são desqualificados. Mas certamente deve haver outros no mundo. Ouvi
dizer que você lida com casos estranhos, e foi por isso que o procurei. É claro que esse
senhor americano tem toda a razão, e eu deveria ter seguido seu conselho primeiro, mas
agi pelo melhor.
— Acho que o senhor agiu com muita sabedoria, — disse Holmes. — Mas está
realmente ansioso para adquirir uma propriedade na América?
— Certamente não, senhor. Nada me faria deixar minha coleção. Mas esse senhor
me garantiu que me comprará assim que tivermos estabelecido nossa reivindicação. A
soma mencionada foi de cinco milhões de dólares. No momento, há uma dúzia de
espécimes no mercado que preenchem lacunas em minha coleção e que não posso
comprar por falta de algumas centenas de libras. Pense no que eu poderia fazer com
cinco milhões de dólares. Ora, eu tenho o núcleo de uma coleção nacional. Serei o Hans
Sloane da minha época.
Seus olhos brilhavam por trás de seus grandes óculos. Ficou muito claro que o
Sr. Nathan Garrideb não pouparia esforços para encontrar um homônimo.
— Liguei apenas para conhecê-lo, e não há motivo para interromper seus estudos
—, disse Holmes. — Prefiro estabelecer contato pessoal com aqueles com quem faço
negócios. Há poucas perguntas que preciso fazer, pois tenho sua narrativa muito clara
em meu bolso e preenchi as lacunas quando o cavalheiro americano ligou. Sei que, até
esta semana, você não sabia da existência dele.
— É verdade. Ele ligou na última terça-feira.
— Ele lhe contou sobre nossa entrevista de hoje?
— Sim, ele voltou direto para mim. Esteve muito irritado.
— Por que ele estaria com raiva?
— Ele parecia pensar que isso era um reflexo de sua honra. Mas ele estava
bastante alegre novamente quando voltou.
— Ele sugeriu algo?
— Não, senhor, ele não fez isso.
— Ele recebeu algum dinheiro de você ou pediu algum?
— Não, senhor, nunca!
— Você não vê nenhum objetivo possível que ele tenha em vista?"
— Nenhum, exceto o que ele afirma.
— Você contou a ele sobre nosso encontro por telefone?
— Sim, senhor, eu contei.
Holmes estava perdido em seus pensamentos. Eu podia ver que ele estava
confuso.
— Você tem algum artigo de grande valor em sua coleção?
— Não, senhor. Não sou um homem rico. É uma boa coleção, mas não muito
valiosa.
— Não tem medo de ladrões?
— Nem um pouco.
— Há quanto tempo está aqui?
— Há quase cinco anos.
O interrogatório de Holmes foi interrompido por uma batida na porta. Assim que
nosso cliente a abriu, o advogado americano entrou animado na sala.
— Aqui está você!, – gritou ele, acenando com um papel sobre sua cabeça. —
Achei que chegaria a tempo de pegá-lo. Sr. Nathan Garrideb, meus parabéns! Você é
um homem rico, senhor. Nosso negócio está felizmente concluído e tudo está bem.
Quanto ao senhor, Sr. Holmes, só podemos dizer que sentimos muito se lhe causamos
algum problema inútil.
Ele entregou o jornal ao nosso cliente, que ficou olhando para um anúncio
marcado. Holmes e eu nos inclinamos para frente e lemos o anúncio por cima de seu
ombro. Estava escrito:

Howard Garrideb Construtor de Maquinário Agrícola Encadernadoras,


ceifadeiras, arados manuais e a vapor, perfuratrizes, grades, carrinhos de fazendeiros,
carroças e todos os outros equipamentos. Estimativas para instalar poços artesianos
Edifícios Grosvenor, Aston
— Glorioso! — , exclamou nosso anfitrião. — Este é o nosso terceiro homem.
— Eu abri consultas em Birmingham —, disse o americano, — e meu agente de
lá me enviou este anúncio de um jornal local. Temos que nos apressar e levar a coisa
adiante. Escrevi para esse homem e disse que você o verá em seu escritório amanhã à
tarde, às quatro horas.
— Você quer que eu o veja?
— O que acha, Sr. Holmes? Não acha que seria mais sensato? Aqui estou eu, um
americano errante com uma história maravilhosa. Por que ele deveria acreditar no que
eu digo a ele? Mas o senhor é um britânico com referências sólidas, e ele deve prestar
atenção no que o senhor diz. Eu iria com o senhor se quisesse, mas tenho um dia muito
cheio amanhã, e sempre posso encontrá-lo se tiver algum problema.
— Bem, não faço uma viagem dessas há anos.
— Não é nada, Sr. Garrideb. Descobri nossas conexões. Se sair ao meio-dia, deve
chegar lá pouco depois das duas. Então, você poderá voltar na mesma noite. Tudo o que
precisa fazer é ver esse homem, explicar o assunto e obter uma declaração juramentada
de sua existência. Pelo amor de Deus, — acrescentou ele com veemência, —
considerando que vim do centro da América, certamente é pouco que você percorra cem
milhas para resolver o assunto.
— É verdade, — disse Holmes. — Acho que o que esse senhor diz é muito
verdadeiro.
O Sr. Nathan Garrideb encolheu os ombros com um ar desconsolado. — Bem, se
você insiste, eu irei —, disse ele. — É certamente difícil para mim recusar-lhe qualquer
coisa, considerando a glória da esperança que você trouxe para minha vida.
— Então está combinado, — disse Holmes — e sem dúvida você me dará um
relatório assim que puder.
— Vou me certificar disso, — disse o americano. — Bem, — acrescentou ele,
olhando para o relógio, — tenho que ir andando. Ligarei amanhã, Sr. Nathan, e lhe
acompanho até Birmingham. Me acompanha, Sr. Holmes? Bem, então, adeus, e talvez
tenhamos boas notícias para você amanhã à noite.
Notei que o rosto do meu amigo se iluminou quando o americano saiu da sala, e
o olhar de perplexidade desapareceu.
— Gostaria de dar uma olhada em sua coleção, Sr. Garrideb, — disse ele. — Em
minha profissão, todos os tipos de conhecimentos estranhos são úteis, e este seu quarto
é um depósito deles.
Nosso cliente brilhava de prazer e seus olhos brilhavam por trás de seus grandes
óculos.
— Sempre ouvi dizer que o senhor era um homem muito inteligente — disse ele.
— Eu poderia levá-lo para uma visita agora, se tiver tempo.
— Infelizmente, não o tenho. Mas esses espécimes estão tão bem etiquetados e
classificados que dificilmente precisam de sua explicação. Se eu puder dar uma olhada
amanhã, presumo que não haverá objeção?
— Nenhuma. O senhor é muito bem-vindo. A casa estará, é claro, fechada, mas
a Sra. Saunders fica no porão até às quatro horas e o deixaria entrar com a chave dela.
— Bem, estarei livre amanhã à tarde. Se o senhor puder dar uma palavrinha à
Sra. Saunders, seria muito bom. A propósito, quem é seu corretor de imóveis?
Nosso cliente ficou surpreso com a pergunta repentina.
— Holloway e Steele, na Edgware Road. Mas por quê?
— Eu também sou um pouco arqueólogo quando se trata de casas — disse
Holmes, rindo. — Eu estava me perguntando se pertence à era da rainha Anne ou
Georgiana.
— Georgiana, sem dúvida.
— De fato. Eu deveria ter pensado um pouco antes. No entanto, isso é fácil de
verificar. Bem, adeus, Sr. Garrideb, e que o senhor tenha muito sucesso em sua viagem
a Birmingham.
A corretora de imóveis era próxima, mas descobrimos que estava fechada, então
voltamos para Baker Street. Foi só depois do jantar que Holmes voltou ao assunto.
— Nosso pequeno caso está chegando ao fim — disse ele. — Sem dúvida, você
já delineou a solução em sua própria mente.
— Não consigo entender isso nem de perto nem de longe.
— Não notou nada de curioso neste anúncio?
— Eu vi que a palavra 'arado' estava mal escrita.
— Oh, você notou isso, não notou? Vamos, Watson, você está sempre
melhorando. Sim, era um mau inglês, mas um bom americano. O tipógrafo o havia
configurado como recebido. Depois, a carroça. Isso também é americano. E os poços
artesianos são mais comuns entre eles do que entre nós. Era um anúncio tipicamente
americano, mas que parecia ser de uma empresa Inglesa. O que você acha disso?
— Só posso supor que esse advogado americano tenha colocado isso ele mesmo.
Não consigo entender qual era seu objetivo.
— Bem, há explicações alternativas. De qualquer forma, ele queria levar esse bom
e velho fóssil para Birmingham. Isso é muito claro. Eu poderia ter dito a ele que estava
claramente indo atrás de um ganso selvagem, mas, pensando bem, pareceu melhor
deixar o campo livre e deixá-lo ir. Amanhã, Watson — bem, amanhã falará por si mesmo.
Holmes levantou e saiu cedo. Quando ele voltou, na hora do almoço, notei que
seu rosto estava muito sério.
— Este é um assunto mais sério do que eu esperava, Watson — disse ele. — É
justo lhe dizer isso, embora eu saiba que será apenas mais um motivo para você correr
perigo. Eu já deveria conhecer meu caro amigo Watson. Mas há perigo, e você deve
saber disso.
— Bem, não é a primeira vez, Holmes. Espero que não seja a última. Qual é o
perigo específico desta vez?
— Estamos enfrentando um caso muito difícil. Identifiquei o Sr. John Garrideb,
advogado. Ele é ninguém menos que o "Assassino" Evans, de reputação sinistra e
assassina.
— Receio que eu não seja o mais sábio.
— Ah, não faz parte de sua profissão andar com um calendário portátil de Newgate
na memória. Estive com meu amigo Lestrade na Yard. Pode haver uma ocasional falta
de intuição imaginativa por lá, mas eles lideram o mundo em termos de meticulosidade
e método. Tive a ideia de que poderíamos encontrar a pista do nosso amigo americano
nos registros deles. Com certeza, encontrei seu rosto rechonchudo sorrindo para mim na
galeria de retratos de bandidos. "James Winter, vulgo Morecroft, vulgo Killer Evans", era
a inscrição abaixo — Holmes tirou um envelope do bolso. — Rabisquei alguns pontos de
seu dossiê. Idade, 44 anos. Natural de Chicago. Conhecido por ter matado três homens
nos Estados Unidos. Fugiu da penitenciária por influência política. Veio para Londres em
1893. Matou um homem por causa de jogo de cartas em um clube noturno na Waterloo
Road em janeiro de 1895. O homem morreu, mas foi comprovado que ele havia sido o
agressor na briga. A vítima foi identificada como Rodger Prescott, famoso como
falsificador e cunhador de moedas em Chicago. O assassino Evans foi solto em 1901.
Está sob supervisão policial desde então, mas, até onde se sabe, tem levado uma vida
honesta. É um homem muito perigoso, geralmente anda com armas e está preparado
para usá-las. Esse é o nosso pássaro, Watson — um pássaro esportivo, como você deve
admitir.
— Mas qual é o jogo dele?
— Bem, começa a se definir. Estive na casa do corretor de imóveis. Nosso cliente,
como ele nos disse, está lá há cinco anos. Antes disso, ficou sem alugar por um ano. O
inquilino anterior era um senhor chamado Waldron. A aparência de Waldron era bem
lembrada no escritório. Havia desaparecido de repente e não se ouviu mais falar dele.
Era um homem alto, barbudo, com feições muito escuras. Agora, Prescott, o homem em
quem o assassino Evans atirou, era, de acordo com a Scotland Yard, um homem alto,
moreno e com barba. Como hipótese de trabalho, acho que podemos supor que Prescott,
o criminoso americano, morava no mesmo cômodo que nosso amigo inocente agora
dedica ao seu museu. Então, finalmente, temos um elo.
— E o próximo elo?
— Bem, temos que ir agora e procurar por isso.
Ele tirou um revólver da gaveta e o entregou a mim.
— Tenho meu velho revólver favorito comigo. Se o nosso amigo do Oeste
Selvagem tentar fazer jus ao seu apelido, precisamos estar prontos para ele. Vou lhe dar
uma hora para a sesta, Watson, e depois acho que será a hora da nossa aventura na
Ryder Street.
Eram apenas quatro horas quando chegamos ao curioso apartamento de Nathan
Garrideb. A Sra. Saunders, a zeladora, estava prestes a sair, mas não hesitou em nos
receber, pois a porta se fechou com uma trava de mola e Holmes prometeu verificar se
tudo estava seguro antes de sairmos. Pouco depois, a porta externa se fechou, seu
chapéu passou pela janela de arco e soubemos que estávamos sozinhos no andar
inferior da casa. Holmes examinou rapidamente o local. Havia um armário em um canto
escuro que se destacava um pouco da parede. Foi atrás dele que acabamos nos
agachando, enquanto Holmes, em um sussurro, descrevia suas intenções.
— Ele queria tirar nosso amável amigo de seu quarto — isso é muito claro e, como
o colecionador nunca saía, foi necessário algum planejamento para fazer isso.
Aparentemente, toda essa invenção de Garrideb não tinha outro objetivo. Devo dizer,
Watson, que há uma certa engenhosidade diabólica nisso, mesmo que o nome estranho
do inquilino tenha lhe dado uma abertura que ele dificilmente poderia ter esperado. Ele
teceu sua trama com uma astúcia notável.
— Mas o que ele queria?
— Bem, é isso que estamos aqui para descobrir. Não tem nada a ver com nosso
cliente, pelo que entendi da situação. É algo relacionado ao homem que ele assassinou
— o homem que pode ter sido seu cúmplice no crime. Há algum segredo de culpa na
sala. É assim que eu vejo a situação. A princípio, pensei que nosso amigo pudesse ter
algo em sua coleção mais valioso do que ele sabia — algo que merecesse a atenção de
um grande criminoso. Mas o fato de Rodger Prescott, de péssima memória, ter habitado
essas salas aponta para uma razão mais profunda. Bem, Watson, só nos resta ter
paciência e ver o que o tempo pode nos trazer.
Esse tempo não demorou a chegar. Nós nos agachamos mais perto da sombra
quando ouvimos a porta externa abrir e fechar. Em seguida, veio o estalo agudo e
metálico de uma chave e o americano estava no quarto. Ele fechou a porta suavemente
atrás de si, deu uma olhada rápida ao seu redor para ver se tudo estava seguro, tirou o
sobretudo e se dirigiu à mesa central com a rapidez de quem sabe exatamente o que
tem de fazer e como fazê-lo. Ele empurrou a mesa para um lado, empurrou a mesa para
o outro e se aproximou. Rasgou o quadrado de carpete onde a mesa estava apoiada,
enrolou-o completamente e, em seguida, sacou um pé de cabra do bolso interno,
ajoelhou-se e trabalhou vigorosamente no chão. Em pouco tempo, ouvimos o som de
tábuas deslizando e, um instante depois, um buraco se abriu nas tábuas. Assassino
Evans acendeu um fósforo, acendeu um toco de vela e desapareceu de nossa vista.
Claramente, nosso momento havia chegado. Holmes tocou meu pulso como um
sinal e, juntos, fomos até o alçapão aberto. No entanto, enquanto nos movíamos
suavemente, o piso antigo deve ter rangido sob nossos pés, pois a cabeça do americano,
olhando ansiosamente ao redor, emergiu repentinamente. Seu rosto voltou para nós com
um olhar de raiva desconcertante, que gradualmente se transformou em um sorriso
envergonhado quando ele percebeu que duas pistolas estavam apontadas para sua
cabeça.
— Ora, ora! — disse ele com frieza ao subir à superfície. — Acho que o senhor foi
um homem a mais para mim, Sr. Holmes. Suponho que tenha percebido meu jogo e me
fez de bobo desde o início. Bem, senhor, eu lhe dou a mão à palmatória; você me venceu
e...
Em um instante, ele tirou um revólver do peito e disparou dois tiros. Senti uma
súbita ardência como se um ferro em brasa tivesse sido pressionado contra minha coxa.
Houve um estrondo quando a pistola de Holmes caiu sobre a cabeça do homem. Tive
uma visão dele esparramado no chão, com sangue escorrendo pelo rosto, enquanto
Holmes procurava por armas nele. Em seguida, os braços fortes do meu amigo estavam
ao meu redor e ele me levou até uma cadeira.
— Você não está machucado, Watson? Pelo amor de Deus, diga que não está
machucado!
Valeu a pena uma ferida — valeu a pena muitas feridas — para conhecer a
profundidade da lealdade e do amor que havia por trás daquela máscara fria. Os olhos
claros e duros se obscureceram por um momento, e os lábios firmes tremiam. Pela
primeira e única vez, tive um vislumbre de um grande coração e de um grande cérebro.
Todos os meus anos de serviço humilde, mas obstinado, culminaram naquele momento
de revelação.
— Não é nada, Holmes. É um mero arranhão.
Ele havia rasgado minha calça com seu canivete.
— Você tem razão, — disse ele com um imenso suspiro de alívio. — É muito
superficial. — Seu rosto ficou duro como pedra enquanto ele olhava para o prisioneiro,
que estava sentado com o rosto atordoado. — Por Deus, você teve sorte. Se você tivesse
matado Watson, não teria saído vivo desta sala. Agora, senhor, o que tem a dizer em
sua defesa?
Ele não tinha nada a dizer em sua defesa. Apenas se sentou e fez uma careta.
Eu me apoiei no braço de Holmes e, juntos, olhamos para o pequeno porão que havia
sido revelado pela aba secreta. Ela ainda estava iluminada pela vela que Evans havia
levado consigo. Nossos olhos se depararam com uma grande quantidade de máquinas
enferrujadas, grandes rolos de papel, um monte de garrafas e, ordenadamente
organizados em uma pequena mesa, vários pacotes pequenos.
— Uma prensa de impressão — um equipamento de falsificação — , disse
Holmes.
— Sim, senhor, — disse nosso prisioneiro, cambaleando lentamente até se
levantar e depois afundando na cadeira. — O maior falsificador que Londres já viu. Essa
é a máquina de Prescott, e esses maços sobre a mesa são duas mil notas de Prescott
que valem cem cada uma e podem ser passadas em qualquer lugar. Sirvam-se,
senhores. Façamos um acordo.
Holmes riu.
— Não fazemos coisas assim, Sr. Evans. Não há nenhum buraco para você neste
país. Você atirou nesse homem, Prescott, não foi?
— Sim, senhor, e peguei cinco anos por isso, embora tenha sido ele quem me
puxou. Cinco anos — quando eu deveria ter recebido uma medalha do tamanho de um
prato de sopa. Ninguém sabia diferenciar um Prescott de um Bank of England e, se eu
não o tivesse expulsado, ele teria inundado Londres com eles. Eu era a única pessoa no
mundo que sabia onde ele as fabricava. Você pode imaginar que eu queria chegar ao
local? E você pode imaginar que, quando encontrei esse louco caçador de insetos com
um nome esquisito, agachado bem em cima dele e que nunca saía de seu quarto, tive
que fazer o melhor que pude para tirá-lo? Talvez eu tivesse sido mais sábio se o tivesse
prendido. Teria sido bastante fácil, mas sou um homem de coração mole que não
consegue começar a atirar a menos que o outro homem também tenha uma arma. Mas
diga, Sr. Holmes, o que eu fiz de errado, afinal? Eu não usei essa planta. Eu não
machuquei esse velho. Aonde você quer chegar?
— Apenas tentativa de homicídio, pelo que vejo —, disse Holmes. — Mas esse
não é o nosso trabalho. Eles cuidam disso na próxima etapa. O que queríamos no
momento era apenas a sua pessoa. Por favor, ligue para a Yard, Watson. Não será algo
totalmente inesperado.
Esses foram os fatos sobre Assassino Evans e sua notável invenção dos três
Garridebs. Soubemos mais tarde que nosso pobre amigo nunca superou o choque de
seus sonhos dissipados. Quando seu castelo voador caiu, ele foi enterrado sob as ruínas.
A última vez que ouvimos falar dele foi em uma casa de repouso, em Brixton. Foi um dia
feliz em Yard quando Prescott foi descoberto, pois, embora soubessem que ele existia,
nunca haviam conseguido, após a morte do homem, descobrir onde ele estava. Evans,
de fato, prestou um grande serviço e fez com que vários homens dignos do
Departamento de Investigação Criminal dormissem mais tranquilos, pois o falsificador
está em uma classe à parte como um perigo público. Eles teriam dado de bom grado
condecoração do tamanho de um prato de sopa da qual o criminoso havia falado, mas
uma bancada pouco apreciativa teve uma visão menos favorável, e o assassino voltou
para as sombras das quais havia acabado de sair.
Tradutora: Carolina Couto
Revisoras: Daniele Reis Salles e Luísa Arantes Bahia

Paratexto

O conto “O problema da Thor Bridge” narra a morte misteriosa da esposa de um


magnata americano. A vítima do caso, Maria Pinto, era uma brasileira de temperamento
descrito como explosivo e ciumento, o que parecia levar o casamento a maus caminhos.
A primeira pessoa a ser acusada foi a governanta da família, Senhorita Dunbar, que,
supostamente, teria um relacionamento com o patrão, o que se tornava uma boa
motivação. Apesar de envolver o formato clássico de um funcionário da família ser
acusado, Conan Doyle reinventa a fórmula.
No processo da tradução, alguns termos foram alterados visando a fluência de
leitura. No cenário jurídico, a Senhorita Dunbar se vê guardando a defesa para Assizes
que foi traduzido como “tribunal”. Na Inglaterra e no País de Gales, Assizes eram
sessões, normalmente realizadas quatro vezes ao ano, do tribunal principal de cada
condado, exercendo jurisdição civil e criminal, com a presença de juízes itinerantes,
substituídos em 1971 por tribunais da coroa.
Outro exemplo relevante para o caso foi o sixpence, uma pequena moeda de prata
usada na Grã-Bretanha antes da introdução do sistema monetário decimal em 1971. Era
o equivalente a 2,5 pence. Foi traduzido como “pequena moeda” demonstrando o
tamanho da mancha branca encontrada na pedra.

Perfil da tradutora
Carolina Couto é formanda do Bacharelado em Tradução Inglês-português com
formação pela Universidade Federal de Juiz de Fora, voltada para tradução literária.
O PROBLEMA DA THOR BRIDGE

Em algum lugar nos cofres do banco da Cox and Co., na Charing Cross, há uma
caixa de despacho de latão, desgastada devido a tantas viagens, com meu nome, John
H. Watson, M.D., Exército Indiano, marcado na tampa. A caixa está abarrotada de
papéis, praticamente todos sendo registros de casos que ilustram os curiosos problemas
que o Sr. Sherlock Holmes precisou examinar em vários momentos. Alguns, não menos
interessantes, foram completos fracassos e, como tal, não merecem ser narrados, uma
vez que não foram completamente solucionados. Um problema sem uma solução pode
interessar o aluno, mas dificilmente deixará de aborrecer seu leitor casual. Junto a estes
contos inacabados está o do Sr. James Phillimore que, ao retornar até a própria casa e
pegar seu guarda-chuva, nunca mais foi visto neste mundo. Não menos notável, há o
caso do veleiro Alicia, que navegou em uma manhã de primavera em direção a um
pequeno nevoeiro de onde nunca mais saiu, nem nunca mais se ouviu falar dele ou de
sua tripulação. Um terceiro caso digno de nota é o de Isadora Persano, eminente
jornalista e duelista, que se encontrou em estado de completa insanidade com uma caixa
de fósforos à sua frente, contendo um verme singular que se dizia ser desconhecido da
ciência. Para além destes casos insondáveis, há alguns envolvendo segredos de
famílias, que a simples ideia de serem conhecidos pela imprensa causaria consternação
nos mais elevados distritos. Não preciso dizer que uma quebra de confiança como essa
é impensável e que estes registros serão separados e destruídos, agora que meu amigo
tem tempo de voltar suas energias para o assunto. Resta ainda um conjunto considerável
de casos de maior ou menor relevância que eu poderia ter publicado antes, se não
receasse enjoar o público com o excesso, passível de afetar a reputação do homem que,
acima de todos os outros, eu admiro. Em alguns, eu mesmo estive envolvido e posso
relatar como testemunha ocular, enquanto, em outros, não estive presente, ou contribuí
com uma participação tão pequena que poderia ser relatada por uma terceira pessoa. A
narrativa que se segue vem de minha própria experiência.
Era uma manhã agitada de outubro e, enquanto me vestia, eu observava as
últimas folhas alaranjadas se desprenderem da solitária árvore que decorava o quintal
nos fundos de nossa casa. Desci para a refeição matinal, preparado para encontrar meu
companheiro em seu espírito melancólico, visto que, como todos os grandes artistas, era
facilmente impressionado pelo ambiente a sua volta. Pelo contrário, descobri que ele já
estava para acabar sua refeição e que seu humor estava particularmente radiante, com
aquela alegria um pouco sinistra que era característica dos seus momentos mais
despreocupados.
— Tem um novo caso, Holmes? — comentei.
— A arte da dedução é certamente contagiosa, Watson, — ele respondeu. — Ela
permitiu que sondasse o meu segredo. Sim, tenho um novo caso. Depois de um mês de
trivialidades e de estagnação, as engrenagens tornam a rodar.
— Pode dividi-lo comigo?
— Há pouco para se dizer sobre ele, mas podemos discutir depois que você tiver
consumido dois ovos cozidos que nosso novo cozinheiro preparou. Pode ser que o
estado destes ovos esteja conectado com o exemplar do Family Herald que notei ontem
em cima da mesa do hall de entrada. Mesmo uma questão tão trivial quanto cozinhar um
ovo demanda a consciência da passagem do tempo e é incompatível com o romance
nesse excelente periódico.
Quinze minutos depois, a mesa havia sido limpa e estávamos frente a frente. Ele
retirou uma carta de seu bolso.
— Alguma vez ouviu falar sobre Neil Gibson, o Rei do Ouro? — ele disse.
— Refere-se ao senador americano?
— Bem, ele foi senador de algum estado do Oeste, porém é mais conhecido como
o maior magnata da extração de ouro do mundo.
— Sim, já ouvi falar sobre ele. Tenho certeza de que morou na Inglaterra por um
tempo. O nome me é muito familiar.
— Sim, ele comprou uma propriedade considerável em Hampshire há cerca de
cinco anos. Você provavelmente ouviu sobre o final trágico da esposa?
— Naturalmente. Eu me lembro agora. Por isso que o nome me é familiar.
Entretanto não sei nada sobre os detalhes.
Holmes acenou, indicando alguns papéis sobre uma cadeira.
— Eu não fazia ideia de que o caso acabaria nas minhas mãos, ou já teria feito
minhas anotações, — ele disse. — O fato é que o problema, apesar de excessivamente
sensacionalista, não parecia apresentar qualquer dificuldade. A interessante
personalidade da acusada não obscurece a clareza das evidências. Esse foi o ponto de
vista tomado pelo julgamento do médico-legista e, também, pela ata do tribunal de
justiça. O processo está agora remetido para o Tribunal de Justiça de Winchester. Temo
que esta seja uma tarefa ingrata. Eu posso descobrir os fatos, Watson, mas não posso
mudá-los. A menos que algo inteiramente novo e inesperado venha à luz, não vejo como
meu cliente possa nutrir qualquer esperança.
— Seu cliente?
— Ah, esqueci-me de que não lhe contei. Estou pegando seu hábito de contar a
história de trás para frente, Watson. É melhor que leia isso, primeiro.
A carta que me foi entregue, escrita em letra firme, por uma mão habilidosa, dizia
o seguinte:

Claridge's Hotel
3 de outubro
Prezado Sr. Sherlock Holmes: Sou incapaz de assistir à melhor mulher já criada
por Deus morrer sem fazer tudo a meu alcance para tentar salvá-la. Não posso explicar
as coisas... Sequer posso tentar explicá-las, entretanto, sei, além de qualquer dúvida,
que a Senhorita Dunbar é inocente. O senhor conhece os fatos, quem não? Tem sido o
assunto de fofoca por todo o país. E nenhuma voz foi levantada a favor dela! É a
maldita injustiça, acima de tudo, que me deixa maluco. Aquela mulher possui um
coração tão bom que seria incapaz de fazer mal a uma mosca. Bem, irei amanhã às
onze horas e descobrirei se você consegue encontrar um raio de luz em meio a essa
escuridão. Talvez eu tenha uma pista que ainda não tenha percebido. De qualquer
modo, tudo o que eu sei, assim como tudo o que eu tiver a meu alcance e tudo o que
sou, estarão a seu dispor caso possa salvá-la. Se em algum momento de sua vida, o
senhor mostrou seus poderes, coloque-os agora nesse caso.
— Cordialmente,
J. Neil Gibson.

— Aí está, — disse Sherlock Holmes, ao retirar as cinzas de seu cachimbo para


fumar depois do café e, lentamente, enchê-lo com um novo tabaco. — É esse o
cavalheiro que espero. Quanto à história, você não tem o tempo necessário para analisar
todos esses papéis, portanto eu posso lhe resumir, se tem interesse em ter um
envolvimento racional no desenrolar do processo. Esse é o homem de maior poder
financeiro no mundo e, um homem, pelo que posso entender, do mais violento e
formidável caráter. Casou-se com uma mulher, a vítima desta tragédia, sobre quem eu
não sei nada, salvo que ela já havia passado da flor da idade, o que se torna um fato
ainda mais lamentável quando uma governanta muito atraente passa a ser responsável
pela educação dos dois filhos pequenos. Essas são as três pessoas em questão e o
cenário é uma grande e antiga mansão senhorial no centro de uma propriedade inglesa
histórica. Quanto à tragédia, então. A esposa foi encontrada no terreno a oitocentos
metros da casa, tarde da noite, em seu vestido noturno, com um xale sobre os ombros e
uma bala de revólver em seu cérebro. Nenhuma arma foi encontrada próxima a ela, e no
local não havia pista alguma sobre o assassinato. Nenhuma arma foi encontrada perto
dela, Watson... Lembre-se disso! O crime parece ter sido cometido tarde da noite e o
corpo foi encontrado por um guarda-caça perto das onze horas, quando foi examinado
pela polícia e por um médico antes de ser levado para casa. Está muito condensado, ou
consegue acompanhar com clareza?
— Está tudo muito claro. Mas por que suspeitar da governanta?
— Bem, em primeiro lugar há algumas evidências diretas. Um revólver, com um
tambor descarregado e o calibre correspondente ao projétil, foi encontrado no fundo do
guarda-roupa dela. — Os olhos dele estavam fixos e repetiu lentamente. — No... Fundo...
Do... Guarda... Roupa... Dela. — Então ele se afundou no silêncio e percebi que uma
linha de pensamento havia sido iniciada, eu seria um tolo se a interrompesse.
Subitamente, com um sobressalto, ele retornou à vida. — Sim, Watson, foi encontrado.
Bastante condenatório, não é? Assim pensaram os dois júris. Então, a mulher morta tinha
com ela um bilhete assinado pela governanta que marcava um encontro naquele mesmo
local. Como é que isto é possível? Por fim, há o motivo. O senador Gibson é uma pessoa
atraente. Se sua esposa morresse, quem mais poderia sucedê-la do que a jovem que,
ao que tudo indica, já tinha sido alvo de atenções persistentes por parte do seu patrão?
Amor, fortuna, poder, tudo dependendo de uma vida de meia-idade. Desagradável,
Watson... Muito desagradável!
— Sim, de fato, Holmes.
— Ela tampouco pôde apresentar um álibi. Pelo contrário, ela teve de admitir que
estava próxima da Thor Bridge — foi esse o cenário da tragédia — por volta daquela
hora. Ela não podia negar, pois algum transeunte a tinha visto ali.
— Isso parece mesmo definitivo.
— E, no entanto, Watson... No entanto! Essa ponte, um único vão largo de pedra
com balaústras laterais, conduz o caminho sobre a parte mais estreita de um longo e
profundo lençol de água cercado de junco. É chamado de Thor Mere. Na entrada da
ponte, jazia a mulher morta. Estes são os principais fatos. Mas aqui, se não me engano,
está o nosso cliente, muito antes do que era suposto.
A porta foi aberta por Billy, entretanto o nome que nos foi anunciado não era o
esperado. O Sr. Marlow Bates era um estranho para nós dois. Era um homem magro em
uma onda de nervosismo, com olhar assustado e palpitante, e um comportamento
hesitante, um homem que o meu olhar clínico julgaria estar à beira de um colapso mental.
— Parece agitado, Sr. Bates, — disse Holmes. — Por favor, sente-se. Temo que
posso conceder-lhe apenas um curto espaço de tempo, pois tenho um compromisso às
onze.
— Sei que o senhor tem, — nosso visitante arquejou, disparando frases curtas
como um homem que está sem fôlego. — Sr. Gibson está a caminho. O Sr. Gibson é
meu patrão. Eu sou o gestor de seu patrimônio. Sr. Holmes, ele é um vilão... Um vilão
infernal.
— É uma linguagem pesada, Sr. Bates.
— Tenho de ser enfático, Sr. Holmes, pelo tempo tão limitado. Não quero que ele
me encontre aqui, por nada deste mundo. Ele está quase chegando. Mas eu estava tão
ocupado que não pude vir mais cedo. O secretário dele, Sr. Ferguson, só me falou esta
manhã que ele tinha hora marcada com o senhor.
— E você é o gestor dele?
— Dei-lhe um aviso prévio. Dentro de algumas semanas, terei me livrado de sua
maldita escravatura. Um homem severo, Sr. Holmes, severo com todos os que o
conhecem. Essas instituições de caridade públicas são um tapete para cobrir as suas
iniquidades privadas. Mas a esposa foi a sua principal vítima. Ele foi cruel com ela... Sim,
senhor, cruel! Não sei como ela morreu, mas tenho a certeza de que ele fez com que a
vida fosse miserável para ela. Ela era uma criatura dos trópicos, uma brasileira por
nascimento, como o senhor, sem dúvidas, sabe.
— Não, isso havia me escapado.
— Tropical por nascimento e tropical por natureza. Uma filha do sol e da paixão.
Ela o amou, tanto quanto uma mulher pode amar, mas, quando seus próprios encantos
físicos tinham se desvanecido e eu soube uma vez que eles eram excepcionais, não
havia nada capaz de segurá-lo. Todos nós gostávamos dela e sentimos muito por ela,
nós o odiamos pela maneira como ele a tratou. Contudo ele é plausível e astuto. E isso
é tudo o que eu tinha para lhe dizer. Não confie nele de olhos fechados. Há muito mais
por trás disso. Agora, irei me retirar. Não, não me detenha! Ele já está quase a chegar.
Com um olhar assustado direcionado para o relógio, nosso estranho visitante,
literalmente, correu para a porta e desapareceu.
—Ora, ora! —disse Holmes após um intervalo silencioso. — Sr. Gibson parece ter
um gestor muito bom e leal. Entretanto o aviso nos é útil, e agora apenas nos resta
esperar pela chegada do homem.
À hora marcada, ouvimos os passos pesados nas escadas e o famoso milionário
foi conduzido à sala. No momento em que o olhei, entendi não apenas os temores e
desgosto de seu gestor, mas também as execrações que tantos rivais de negócios
lançaram sobre ele. Caso eu fosse um escultor, e desejasse idealizar o homem de
negócios bem-sucedido, nervos de aço e consciência implacável, eu escolheria o Sr. Neil
Gibson como meu modelo. Sua figura alta, esguia e atlética sugeria ganância e anseio.
Uma espécie de Abraham Lincoln criado para funções básicas, ao invés das mais
complexas, pode dar a ideia de como é o homem. Seu rosto poderia ter sido esculpido
em granito, rígido, sulcado, desprovido de remorso, com linhas profundas, as cicatrizes
de muitas crises. Gélidos olhos acinzentados, que nos observavam com perspicácia por
baixo das sobrancelhas eriçadas, examinavam-nos um a um. Fez uma saudação cortês
quando Holmes mencionou o meu nome e, depois, com um ar magistral de posse, puxou
uma cadeira para junto do meu companheiro e sentou-se com os joelhos ossudos quase
a tocar nos dele.
— Permita-me dizer aqui mesmo, Sr. Holmes, — ele começou, — que, neste caso,
o dinheiro não é nada para mim. Pode queimá-lo se isso servir para que alcance a luz
da verdade. Essa mulher é inocente e tem de ser absolvida, e cabe a você fazê-lo. Diga
o seu preço!
— Meu honorários profissionais possuem uma tabela fixa, — Holmes respondeu,
friamente. — Eu não a altero, exceto quando a anulo completamente.
— Ora, se os dólares não fazem diferença para o senhor, pense a respeito da
reputação. Se for capaz de fazê-lo, todos os jornais da Inglaterra e da América irão torná-
lo famoso. Irá se tornar assunto de dois continentes.
— Muito obrigado, Sr. Gibson, entretanto não acredito ter a necessidade de me
tornar famoso. Pode ser uma surpresa para o senhor saber que prefiro trabalhar
anonimamente e que é o problema por si só o que me atrai, de fato. Contudo, estamos
perdendo tempo. Vamos direto aos fatos.
— Acredito que encontrará os mais importantes nas reportagens da imprensa.
Não sei o que posso oferecer de acréscimo que será de útil para você. Mas se houver
algo a mais que queira saber, pois bem, estou aqui para elucidá-lo.
— Pois bem, há apenas um ponto.
— E qual seria?
— Qual era, mais precisamente, a relação entre você e a Senhorita Dunbar?
O Rei do Ouro teve um violento sobressalto, parcialmente se levantando da
cadeira na qual estava sentado. Então retornou a seu estado de calmaria profunda.
— Suponho que esteja no seu direito, e talvez, cumprindo o seu dever, ao fazer
tal pergunta, Sr. Holmes.
— Concordamos em supor que sim, — disse Holmes.
— Portanto, posso assegurar a você que nossa relação era inteiramente e sempre
aquela relativa a um empregador diante a uma jovem com quem nunca conversou, nem
nunca viu, a não ser quando ela estava na companhia dos seus filhos.
Holmes levantou-se da cadeira.
— Sou um homem deveras ocupado, Sr. Gibson, — ele disse, — e não tenho
tempo ou gosto por conversas a esmo. Desejo-lhe um bom dia.
O nosso visitante também se levantou, sua grande figura esguia se sobressaía
sobre Holmes. Havia um lampejo de raiva por baixo daquelas sobrancelhas eriçadas e
um tom de cor nas bochechas, anteriormente pálidas.
— E que diabos quer dizer com isto, Sr. Holmes? Está a dispensar o meu caso?
— Ora, Sr. Gibson, dispenso o senhor, ao menos. Devo ter imaginado que minhas
palavras eram claras.
— Claras o suficiente, mas o que há por detrás disso? Está aumentando o preço
para mim, tem medo de resolvê-lo, ou o quê? Tenho direito a uma resposta clara.
— Bem, talvez você tenha, — disse Holmes. — E eu lhe darei uma. Para começar,
este caso já é suficientemente complicado, sem contar com a dificuldade adicional de
informações falsas.
— Está dizendo que eu menti.
— Ora, eu estava tentando expressar isso da forma mais delicada que me fosse
possível, mas se insiste em usar a palavra, não irei contradizê-lo.
Levantei-me, porque a expressão no rosto do milionário era maligna em sua total
intensidade, e ele tinha levantado o seu grande punho fechado. Holmes sorriu
languidamente e estendeu a mão para o cachimbo.
— Não faça estardalhaço, Sr. Gibson. Depois do café da manhã, sinto que até a
menor das discussões é desagradável. Sugiro um passeio pelo ar matinal e um pouco
de reflexão, serão muito vantajosos para o senhor.
Com um grande esforço, o Rei do Ouro controlou sua fúria. Não pude deixar de
admirá-lo, pois, através de um autodomínio extremo, tinha passado, em um minuto, de
uma fúria ardente a uma indiferença frígida e desdenhosa.
— Bem, é uma escolha sua. Acredito que saiba como administrar o seu próprio
negócio. Não posso obrigá-lo a trabalhar no caso contra a sua vontade. Não fez bem a
si mesmo esta manhã, Sr. Holmes, pois já parti homens mais fortes do que você. Homem
algum que se colocou no meu caminho, saiu por cima.
— Muitos já me disseram isso, ainda assim aqui estou, — disse Holmes, sorrindo.
— Bem, tenha um bom dia, Sr. Gibson. Ainda tem muito o que aprender.
Nosso visitante fez uma saída barulhenta, porém Holmes fumou em um silêncio
imperturbável, com olhar onírico fixo ao teto.
— Alguma opinião, Watson? — ele perguntou ao final.
— Bem, Holmes, devo confessar que, quando considero que este é um homem
que certamente eliminaria qualquer obstáculo de seu caminho, e quando me lembro que
a sua esposa pode ter sido um obstáculo e um objeto de aversão, como aquele homem,
Bates, nos disse claramente, parece-me...
— Precisamente. Para mim também.
— No entanto, qual era seu relacionamento com a governanta e como você o
descobriu?
— Blefe, Watson, blefe! Quando considerei o tom passional, inconvencional e
pouco profissional da carta dele e o contrastei com seus modos de agir e aspecto contido,
tornou-se muito claro que houve uma profunda emoção concentrada na mulher acusada
e não na vítima. Devemos entender a relação real entre essas três pessoas, se
quisermos alcançar a verdade. Viu o ataque direto que desferi contra ele, e como ele o
recebeu imperturbavelmente. Depois, blefei, dando-lhe a impressão de que tinha a
certeza absoluta, quando, na realidade, estava apenas extremamente desconfiado.
— Talvez ele retorne?
— É certo que irá retornar. Ele precisa retornar. Não pode deixar isto como está.
Rá! Isto não é a campainha? Sim, aqui estão os sons das passadas. Ora, Sr. Gibson, eu
acabava de dizer ao Dr. Watson que o senhor estava um pouco atrasado.
O Rei do Ouro havia retornado para a sala com uma postura mais tranquila do
que aquela com a qual havia se retirado. O seu orgulho ferido ainda se manifestava nos
olhos ressentidos, mas o seu bom senso tinha lhe mostrado que devia ceder se quisesse
atingir o seu objetivo.
— Estive pensando sobre, Sr. Holmes, e sinto que fui precipitado ao interpretar
mal as suas observações. Tem toda a razão em ir ao fundo dos fatos, sejam eles quais
forem, e tenho ainda mais consideração pelo senhor. Posso assegurar-lhe, no entanto,
que a relação entre a Senhorita Dunbar e eu não tem nada a ver com este caso.
— Isso é algo que cabe a mim decidir, não acha?
— Sim, acredito que seja. É como um cirurgião que quer saber cada um dos
sintomas antes de dar seu diagnóstico.
— Precisamente. É um bom ponto de vista. E apenas um paciente que quer
enganar seu cirurgião esconderia os mínimos fatos de seu caso.
— Pode até ser, mas deve admitir, Sr. Holmes, que a maioria dos homens ficaria
receosa se perguntada, sem rodeios, quais as suas relações com uma mulher, se é que
há realmente algum sentimento sério no caso. Acredito que a maior parte dos homens
tende a manter privados alguns cantos de suas almas, onde não recebem bem os
intrusos. E, de repente, o senhor irrompeu nela. Entretanto o objetivo lhe justifica, afinal
tentava salvá-la. Bem, as porteiras foram baixadas e a reserva aberta, pode explorar
onde quiser. O que é que deseja?
— A verdade.
O Rei do Ouro parou por um momento, como quem organiza os pensamentos. O
seu rosto sombrio e vincado tinha se tornado ainda mais triste e lúgubre.
— Posso dá-la a você em poucas palavras, Sr. Holmes, — ele disse, ao final. —
Há algumas coisas que são tão dolorosas quanto são difíceis de se dizer, portanto não
irei mais profundo do que se faz necessário. Conheci minha esposa quando estava à
procura de ouro no Brasil. Maria Pinto era filha de um funcionário do governo de Manaus
e era muito bonita. Eu era jovem e fervoroso naquela época, mas, mesmo agora, quando
olho para trás com sangue frio e um olhar mais crítico, posso ver que ela era rara e
maravilhosa em sua beleza. Era também de uma natureza profundamente rica,
apaixonada, sincera, tropical, desequilibrada, muito diferente das mulheres americanas
que eu havia conhecido. Bem, para resumir a história, eu a amava e me casei com ela.
Foi apenas quando o romance passou, e isso durou anos, que eu percebi que não
tínhamos nada, absolutamente nada, em comum. Meu amor desvaneceu. Se o dela
também houvesse desvanecido, talvez fosse mais fácil. Mas você conhece o maravilhoso
jeito feminino! Eu poderia fazer o que quisesse, entretanto nada a fazia se virar contra
mim. Se eu fui mais duro com ela, mesmo cruel, como alguns podem ter relatado, foi
porque eu sabia que isso poderia matar seu amor, ou transformá-lo em ódio, o que seria
mais fácil para nós dois. Mas nada a fez mudar. Ela me adorou naqueles bosques
ingleses, tal como me adorou nas margens do Amazonas, há vinte anos.
Independentemente do que eu fizesse, ela estava mais devota do que nunca.
“Então chegamos à Senhorita Grace Dunbar. Ela respondeu ao nosso anúncio de
emprego e se tornou a governanta dos nossos dois filhos. Talvez tenha visto o retrato
dela nos jornais. O mundo todo proclamou que ela é também uma mulher muito bonita.
Agora, não pretendendo ser mais moralista do que os meus vizinhos, admito a você que
eu não fui capaz de viver sob o mesmo teto que uma mulher como ela, em contato diário,
sem sentir uma estima passional. O senhor poderia me culpar, Sr. Holmes?”
— Não culpo o senhor por sentir isto. Eu o culparia se expressasse isso, afinal
essa jovem, de certa forma, estava sob sua proteção.
— Bem, talvez sim, — disse o milionário, e, por um momento, a reprovação trouxe
o brilho raivoso de volta a seus olhos. — Não tenho pretensão de ser nem um pouco
melhor do que já sou. Imagino que por toda a minha vida fui um homem que tinha tudo
o que queria na palma de minhas mãos, e nunca desejei algo além do amor e da posse
daquela mulher. E eu disse isso a ela.
— Ah, você fez isso, não foi?
Holmes podia se mostrar como alguém muito formidável enquanto se movia.
— Eu lhe disse que, seu eu pudesse me casar com ela, eu o faria, mas era algo
que estava fora do meu alcance. Disse que o dinheiro não seria um obstáculo e que,
tudo o que eu pudesse fazer para torná-la feliz e confortável, seria feito.
— Muito generoso, tenho certeza, — disse Holmes em tom desdenhoso.
— Veja, Sr. Holmes. Eu vim até o senhor devido às evidências, e não devido às
questões morais. Não estou pedindo por seu criticismo.
— É apenas pelo bem da jovem que eu entrei nesse caso, — disse Holmes com
firmeza. — Não sei se alguma das coisas pelas quais ela é acusada é realmente pior do
que você mesmo admitiu, que tentou arruinar uma garota indefesa que estava sob seu
teto. Alguns de vocês, homens ricos, precisam aprender que o mundo inteiro não pode
ser subornado para tolerar suas ofensas.
Para minha surpresa, o Rei do Ouro recebeu a reprovação com equanimidade.
— É dessa forma que me sinto em relação a isso, agora. Agradeço a Deus que
meus planos não ocorreram como eu pretendia. Ela não quis saber de nada disso e,
imediatamente, quis sair da casa.
— Por que ela não o fez?
— Bem, em primeiro lugar, outras pessoas dependiam dela e não era fácil para
ela decepcionar a todos sacrificando sua vida. Quando jurei, como eu fiz, que ela nunca
mais seria molestada, concordou em ficar. Entretanto, havia outro motivo. Ela sabia
sobre a influência que tinha sobre mim, e que era maior do que qualquer outra no mundo.
E quis usá-la para o bem.
— Como?
— Bem, ela sabia de algumas coisas sobre meus negócios. Eles são grandiosos,
Sr. Holmes... Grandiosos além da capacidade de imaginação de um homem comum. Eu
posso fazer ou desfazer... E geralmente é desfazer. Não se resumia a indivíduos. Eram
comunidades, cidades, mesmo nações. Os negócios constituem um jogo difícil, e os
fracos vão à falência. Joguei o jogo até o fim. Eu mesmo nunca me acovardei e nunca
me importei com o fato de outro colega ter se acovardado. Porém ela viu isso de uma
forma diferente. Acredito que ela estava certa. Ela acreditava e dizia que a minha fortuna
era muito mais do que um homem precisava e não deveria ser construída sobre dez mil
homens arruinados que ficaram sem os meios de subsistência. Foi assim que ela viu, e
acho que ela conseguiu enxergar, além dos dólares algo mais duradouro. Ela descobriu
que eu dei ouvidos ao que ela disse, e acreditou que estava servindo ao mundo ao
influenciar as minhas ações. Por isso, ela ficou e isso aconteceu.
— Você pode nos esclarecer mais a respeito disso?
O Rei do Ouro parou por um minuto ou mais, a cabeça afundando em suas mãos,
perdido em pensamentos profundos.
— É algo muito sujo contra ela. Não posso negar isso. E as mulheres levam uma
vida muito íntima e podem fazer coisas que estão além do julgamento de um homem. A
princípio, fiquei tão abalado e surpreso que estava pronto para pensar que ela havia se
deixado levar para longe de si mesma, de alguma forma extraordinária e totalmente
contrária à sua natureza habitual. Uma explicação me ocorreu. E a divido com você, Sr.
Holmes, se for de alguma ajuda. Não há dúvida sobre o quanto a minha esposa era
amargamente ciumenta. Há um ciúme da alma que pode ser tão frenético quanto
qualquer ciúme do corpo e, embora minha esposa não tivesse motivos, e acho que ela
entendia isso, para esse último, ela sabia que essa inglesa exercia uma influência sobre
minha mente e meus atos, que ela mesma nunca teve. Era uma influência para o bem,
mas isso não resolveu a questão. Ela estava enlouquecida pelo ódio e o calor da
Amazônia estava sempre em seu sangue. Ela pode ter planejado assassinar a Srta.
Dunbar... ou, digamos, ameaçá-la com uma arma e assim assustá-la para que nos
deixasse. Então, pode ter acontecido uma briga, a arma disparou e atingiu a mulher que
a segurava.
— Essa possibilidade já me ocorreu, — disse Holmes. — De fato, é a única
alternativa óbvia ao assassinato consumado.
— Porém ela a nega totalmente.
— Bem, este não é o fim, é? É compreensível que uma mulher colocada em uma
situação tão terrível possa voltar para casa correndo, ainda com o revólver na mão. Ela
poderia até mesmo jogá-lo no meio de suas roupas, sem saber o que estava fazendo e,
quando fosse encontrado, ela poderia tentar mentir para se safar em completa negação,
já que toda a explicação era impossível. O que há contra essa suposição?
— A própria Senhorita Dunbar.
— Bem, talvez. — Holmes olhou para seu relógio. — Não tenho dúvida de que
podemos obter as permissões necessárias nesta manhã e chegar a Winchester no trem
da noite. Quando tiver me encontrado com essa jovem dama, é bem provável que eu
possa ser mais útil para você nesse assunto, embora eu não possa prometer que minhas
conclusões serão, necessariamente, as que você deseja.
Houve um problema no bilhete de passagem e, em vez de chegarmos a
Winchester naquele dia, fomos até Thor Place, a propriedade de Hampshire do Sr. Neil
Gibson. Ele não nos acompanhou, mas tínhamos o endereço do Sargento Coventry, da
polícia local, que havia investigado o caso na primeira vez. Ele era um homem alto e
magro, cadavérico, com um jeito reservado e misterioso que transmitia a ideia de que
sabia ou suspeitava de muito mais do que ousava dizer. Ele também tinha a
característica peculiar de abaixar a voz, repentinamente, para um sussurro, como se
tivesse descoberto algo de importância vital, embora a informação fosse bastante
comum. Para além dessas peculiaridades, ele logo se mostrou um sujeito decente e
honesto, que não era orgulhoso demais para admitir que algo estava fora de seu alcance
e que gostaria de receber qualquer ajuda.
— De qualquer modo, prefiro ter a ajuda do senhor a ter a da Scotland Yard,
senhor Holmes, — ele disse. — Quando a Yard é chamada para um caso, a polícia local
perde todo o crédito do sucesso e, ainda, pode ser culpada pelo fracasso. Já o senhor
joga limpo, pelo que ouvi dizer.
— Não preciso, de forma alguma, ter destaque no caso, — disse Holmes, para o
alívio evidente de nosso conhecido melancólico. — Se eu puder esclarecer o que de fato
aconteceu, não precisará sequer mencionar o meu nome.
— Bem, é muito generoso de sua parte, tenho certeza. E seu amigo, Dr. Watson,
é confiável, eu sei. Agora, Sr. Holmes, enquanto nos encaminhamos para o local, há uma
pergunta que eu gostaria de fazer ao senhor. E eu não a faria para mais ninguém, fora o
senhor. — Ele olhou em volta, como se sequer pudesse dizer as palavras em voz alta.
— Não acredita na possibilidade de ser um caso contra o próprio Sr. Neil Gibson?
— Eu venho considerando esse fato.
— Ainda não viu a Senhorita Dunbar. É uma mulher maravilhosa em todos os
sentidos. Ele pode ter desejado tirar a esposa do caminho. E esses americanos são mais
propensos a usar as pistolas do que nós. E era a pistola dele, sabe?
— Isso era de fácil discernimento?
— Sim, senhor. Fazia parte de um par que ele tinha.
— Uma do par? Onde está a outra?
— Ora, o cavalheiro possui muitas armas de fogo, de vários tipos. Nunca
chegamos a encontrar uma correspondência com essa pistola em particular, mas a caixa
foi feita para duas.
— Se era parte de um par, você deveria ser capaz de fazer a identificação.
— Bem, todas foram dispostas pela casa, caso se interesse em inspecioná-las.
— Mais tarde, talvez. Acredito que devemos ir andando juntos e observar o
cenário da tragédia.
Essa conversa aconteceu na pequena sala da frente do humilde chalé do
Sargento Coventry, o qual servia como o posto policial local. Uma caminhada de cerca
de oitocentos metros por uma planície varrida pelo vento, toda dourada e bronzeada com
as samambaias desbotadas, nos levou a um portão lateral que dava acesso ao terreno
da propriedade Thor Place. Um caminho nos conduziu pelas reservas de faisões, e, de
uma clareira, vimos a ampla casa de madeira, metade Tudor e metade Georgiana, no
topo da colina. Ao nosso lado, havia um grande lago com juncos, estreito no centro, onde
o caminho principal das carruagens passava por uma ponte de pedra, mas que se
expandia em pequenas lagoas de cada lado. Nosso guia deteve-se na entrada dessa
ponte e apontou para o chão.
— Era ali que estava o corpo da Sra. Gibson. Eu me lembro por causa dessa
pedra.
— Entendo, então, que esteve aqui antes de o corpo ser transferido?
— Sim, eles me chamaram imediatamente.
— Quem chamou?
— O próprio Sr. Gibson. No momento em que o alarme foi dado, ele desceu
correndo com os outros da casa, insistindo que nada deveria ser movido até que a polícia
chegasse.
— Isso foi sensato. De acordo com a reportagem do jornal, percebi que o tiro foi
disparado de perto.
— Sim, senhor, de muito perto.
— Próximo à têmpora direita?
— Um pouco atrás dela, senhor.
— E como estava o corpo, quando encontrado?
— Deitado de costas, senhor. Sem nenhum traço de luta. Sem marcas. Sem
nenhuma arma. O recado da Senhorita Dunbar era agarrado por sua mão esquerda.
— Agarrado, você diz?
— Sim, senhor, mal fomos capazes de abrir seus dedos.
— Isso é de muita importância. Descarta a ideia de que alguém poderia ter
plantado o bilhete lá após a morte para fornecer uma pista falsa. Oh, céus! O bilhete,
como bem me lembro, era um tanto curto: “Estarei na Thor Bridge às nove em ponto. -
G. Dunbar.”
— Não foi assim?
— Sim, senhor.
— E a Senhorita Dunbar admitiu escrevê-lo?
— Sim, senhor.
— Qual foi sua explicação?
— Sua defesa foi reservada para o tribunal. Ela não disse nada.
— O problema é, certamente, muito interessante. O objetivo da carta é muito vago,
não é mesmo?
— Bem, senhor, — disse o guia, — pareceu-me, se posso ter a ousadia de dizer,
o único ponto realmente claro em todo o caso.
Holmes balançou a cabeça.
— Se considerarmos a legitimidade da carta e se realmente fora escrita, ela
certamente foi recebida algum tempo antes, digamos, uma ou duas horas. Por que,
então, essa senhora ainda a segurava com tanto afinco na mão esquerda? Por que ela
a carregava com tanto cuidado? Ela não precisou mencioná-la na audiência. Isso não
parece notável?
— Bem, senhor, da forma como coloca isso, talvez seja.
— Acho que gostaria de me sentar em silêncio por alguns minutos e refletir sobre
isso. — Ele se sentou sobre a borda da ponte de pedra, e eu podia ver seus ágeis olhos
cinzentos lançando olhares questionadores em todas as direções. Repentinamente, ele
se reergueu e atravessou até o parapeito oposto, tirou a lupa do bolso e começou a
examinar as pedras.
— Isso é curioso, — ele disse.
— Sim, senhor, vimos a lasca no parapeito. Imaginei que isso tenha sido feito por
algum transeunte.
A estrutura de pedra era cinza, mas, naquele ponto, ela se mostrou branca em
um espaço não maior do que uma pequena moeda. Quando examinada de perto, pode-
se ver que a superfície estava lascada como se tivesse sido atingida por um golpe forte.
— Foi preciso de violência para fazer isso, — disse Holmes, pensativo. Com sua
bengala, ele bateu na borda várias vezes sem deixar nenhuma marca. — Sim, foi uma
batida forte. Em um local curioso, além disso. Não foi de cima para baixo, mas de baixo
para cima, pois você vê que está na borda inferior do guarda corpo.
— Mas está a, ao menos, quatro metros do corpo.
— Sim, está a quatro metros do corpo. Isso pode não ter nada a ver com o
assunto, mas é um ponto que vale a pena observar. Não creio que tenhamos mais nada
a descobrir aqui. Você disse que não havia pegadas?
— O chão é duro como ferro, senhor. Não havia nenhum rastro.
— Então podemos ir. Iremos primeiro até a casa e daremos uma olhada nessas
armas de que você está falando. Depois seguiremos para Winchester, pois gostaria de
ver a Srta. Dunbar antes de irmos mais longe.
O Sr. Neil Gibson não havia retornado da cidade, mas fomos ver a casa do
neurótico Sr. Bates, que havia nos encontrado pela manhã. Ele nos mostrou, com um
prazer sinistro, a formidável variedade de armas de fogo de vários formatos e tamanhos
que seu empregador havia acumulado no decorrer de uma vida de aventuras.
— O Sr. Gibson tem seus inimigos, como é de se esperar de quem conhece a ele
e a seus métodos, — disse ele. — Dorme com um revólver carregado na cômoda ao lado
de sua cama. É um homem violento, senhor, e há momentos em que todos nós sentimos
medo dele. Tenho certeza de que a pobre falecida, frequentemente, ficava aterrorizada.
— Alguma vez testemunhou violência física contra ela?
— Não, não posso alegar isso. Mas ouvi palavras que foram quase tão ruins,
palavras de desprezo frio e cortante, mesmo diante dos criados.
— Nosso milionário não parece se destacar na vida privada, — comentou Holmes
enquanto nos dirigíamos à estação. — Bem, Watson, chegamos a alguns fatos
interessantes, alguns deles são novos, e, ainda assim, parece que estou longe de minha
conclusão. Apesar da evidente aversão que o Sr. Bates tem por seu empregador, deduzo
que, quando o alarme foi dado, ele estava, sem dúvida, em sua biblioteca. O jantar
terminou às oito e meia e tudo estava normal até então. É verdade que o alarme foi dado
um pouco tarde da noite, mas a tragédia certamente ocorreu por volta da hora
mencionada na nota. Não há nenhuma evidência de que o Sr. Gibson tenha saído de
casa desde que voltou da cidade às cinco horas. Por outro lado, a senhorita Dunbar, pelo
que entendi, admitiu que tinha um encontro marcado com a senhora Gibson na ponte.
Além disso, ela não diria nada, pois seu advogado a havia aconselhado a guardar sua
defesa. Temos várias perguntas de grande importância a fazer a essa jovem, e minha
mente não ficará tranquila até que a vejamos. Devo confessar que o caso me pareceria
muito desfavorável a ela se não fosse por uma coisa.
— E o que seria, Holmes?
— Encontrarem a pistola no guarda-roupa dela.
— Oh, céus, Holmes! — Lamentei-me. — Esse me pareceu ser o incidente mais
condenável de todos.
— Não tanto, Watson. Isso me pareceu muito estranho, mesmo em minha primeira
leitura superficial, e agora que estou em contato mais próximo com o caso, é minha única
base firme de esperança. Devemos buscar por consistência. Quando há falta dela,
devemos suspeitar de uma possível ilusão.
— Quase não o acompanho.
— Bem, agora, Watson, suponha por um momento que nós visualizamos você
no papel de uma mulher que, de forma fria e premeditada, está prestes a se livrar de
uma rival. Você planejou tudo. Um bilhete foi escrito. A vítima chegou. Você está com
sua arma. O crime está consumado. Foi um trabalho bem-feito e completo. Está me
dizendo que, depois de cometer um crime tão astuto, você agora arruinaria sua
reputação de criminoso se esquecendo de jogar a arma no manguezal mais próximo,
que a cobriria para sempre, e a levaria, cuidadosamente, para casa e a guardaria em
seu próprio guarda-roupa, o primeiro lugar que seria revistado? Seus melhores amigos
dificilmente o chamariam de planejador, Watson, e mesmo assim não consigo imaginá-
lo fazendo algo tão grosseiro quanto isso.
— Na excitação do momento...
— Não, não, Watson, não irei admitir que isso seja possível. Quando um crime é
friamente premeditado, então significa que o encobrimento também será friamente
premeditada. Espero, portanto, que estejamos diante de um grave equívoco.
— Mas há muito a ser explicado.
— Bem, vamos começar a explicar isso. Quando seu ponto de vista é alterado,
aquilo que era tão condenável se torna uma pista para a verdade. Por exemplo, há esse
revólver. A Srta. Dunbar nega ter qualquer conhecimento sobre isso. Em nossa nova
teoria, ela fala a verdade quando diz isso. Consequentemente, ele foi plantado em seu
guarda-roupa. Quem o colocou ali? Alguém que desejava incriminá-la. Não teria sido,
então, essa pessoa o verdadeiro criminoso? Você vê como chegamos imediatamente a
uma linha de investigação muito frutífera.
Fomos forçados a passar a noite em Winchester, pois as formalidades ainda não
haviam sido concluídas, mas, na manhã seguinte, na companhia do Sr. Joyce
Cummings, o advogado em ascensão a quem foi confiada a defesa, fomos autorizados
a ver a jovem em sua cela. Por tudo o que tínhamos ouvido, eu esperava ver uma mulher
bonita, mas nunca me esquecerei do efeito que a Srta. Dunbar causou em mim. Não era
de se admirar que até mesmo o milionário habilidoso tivesse encontrado nela algo mais
poderoso do que ele mesmo, algo que poderia controlá-lo e guiá-lo. Sentia, também, ao
olhar para o rosto forte, claro, e, ao mesmo tempo, sensível, que, mesmo que ela fosse
capaz de alguma ação impetuosa, havia uma nobreza de caráter inata que faria com que
sua tendência fosse sempre para o bem. Ela era morena, alta, com uma figura nobre e
presença imponente, mas seus olhos escuros tinham a expressão atraente e
desamparada de uma criatura caçada que se sente cercada por armadilhas, mas não
consegue ver nenhuma saída. Agora, quando ela percebeu a presença e a ajuda de meu
famoso amigo, suas bochechas pálidas ganharam um toque de cor e uma luz de
esperança começou a brilhar no olhar que ela dirigiu a nós.
— Por acaso o Sr. Neil Gibson já lhe contou algo sobre o que aconteceu entre
nós? — ela perguntou em uma voz cautelosa e agitada.
— Sim, — Holmes respondeu, — você não precisa se preocupar em entrar nessa
parte da história. Depois de vê-la, estou preparado para aceitar a declaração do Sr.
Gibson quanto à influência que você exerceu sobre ele e quanto à inocência do
relacionamento entre vocês. Mas por que a situação completa não foi apresentada no
tribunal?
— Pareceu-me incredível que tal acusação pudesse ser sustentada. Achei que,
se esperássemos, tudo se esclareceria sem que fôssemos obrigados a entrar em
detalhes dolorosos da vida íntima da família. Mas entendo que, longe de ser resolvido, o
problema se tornou ainda mais sério.
— Minha querida jovem, — disse Holmes com seriedade, — peço que não tenha
ilusões sobre o assunto. O Sr. Cummings gostaria de lhe assegurar que todas as cartas
estão contra nós no momento e que devemos fazer todo o possível se quisermos vencer.
Seria um engano cruel fingir que você não está correndo um grande perigo. Então, dê-
me toda a ajuda que puder para chegarmos à verdade.
— Não esconderei nada.
— Diga-nos, então, seu verdadeiro relacionamento com a esposa do Sr. Gibson.
— Ela me odiava, Sr. Holmes. Ela me odiava com todo o fervor de sua natureza
tropical. Ela era uma mulher que não fazia nada pela metade, e a medida de seu amor
pelo marido era a mesma de seu ódio por mim. É provável que ela tenha entendido mal
nossa relação. Eu não gostaria de prejudicá-la, mas ela amava tão vividamente em um
sentido físico que mal conseguia entender o laço mental, até mesmo espiritual, que
prendia seu marido a mim, ou imaginar que era apenas meu desejo de influenciar seu
poder para bons fins que me mantinha sob seu teto. Posso ver agora o quanto eu estava
errada. Nada poderia justificar minha permanência em um lugar onde eu era a causa da
infelicidade, mas é certo que a infelicidade teria permanecido mesmo se eu tivesse saído
da casa.
— Agora, senhorita Dunbar, — disse Holmes, — peço que nos diga, exatamente,
o que aconteceu naquela noite.
— Posso lhe dizer a verdade até onde sei, Sr. Holmes, mas não estou em posição
de provar nada, e há pontos, os pontos mais vitais, que não posso explicar, nem imaginar
qualquer explicação.
— Se você encontrar os fatos, talvez outros possam encontrar a explicação.
— Com relação à minha presença na Thor Bridge naquela noite, recebi um bilhete
da Sra. Gibson pela manhã. Ele estava sobre a mesa da sala de aula e pode ter sido
deixado lá por ela mesma. Implorou que eu a encontrasse lá depois do jantar, disse que
tinha algo importante a me dizer e pediu que eu deixasse uma resposta no relógio de sol
no jardim, pois ela não queria que ninguém estivesse em meio à nossa privacidade. Não
vi motivo para tanto sigilo, mas fiz o que ela pediu, aceitando o compromisso. Ela me
pediu para destruir seu bilhete e eu o queimei na lareira da sala de aula. Ela tinha muito
medo do marido, que a tratava com uma severidade pela qual eu o censurava com
frequência, e eu só podia imaginar que ela agia dessa forma porque não queria que ele
soubesse de nossa conversa.
— Ainda assim, ela guardou sua resposta com muito cuidado?
— Sim. Fiquei surpresa em saber que ela a segurava quando morreu.
— Bem, e o que aconteceu, então?
— Eu cheguei lá, como prometido. Quando cheguei à ponte, ela estava esperando
por mim. Não havia percebido, até aquele momento, o quanto aquela pobre criatura me
odiava. Ela parecia uma mulher louca, de fato, acho que ela era uma mulher louca,
sutilmente louca com o profundo poder de engano que as pessoas enlouquecidas podem
ter. De que outra forma ela poderia ter me encontrado sem preocupação todos os dias
e, ainda assim, ter um ódio tão intenso por mim em seu coração? Eu não repetirei o que
ela disse. Ela derramou toda a sua fúria selvagem em palavras ardentes e horríveis. Eu
sequer respondi, não consegui. Era terrível vê-la. Coloquei as mãos nos ouvidos e saí
correndo. Quando a deixei, ela estava de pé, ainda gritando suas maldições para mim,
no início da ponte.
— Onde, mais tarde, ela foi encontrada?
— A alguns quilômetros do lugar.
— Ainda assim, presumindo que ela tenha morrido logo depois que você a deixou,
não ouviu nenhum tiro?
— Não, eu não ouvi nada. Mas, de fato, Sr. Holmes, eu estava tão abalada e
horrorizada por esse terrível surto, que corri para voltar à paz do meu quarto e fui incapaz
de perceber qualquer coisa que tivesse acontecido.
— Você diz que retornou para o seu quarto. Você o deixou, mais alguma vez,
antes da manhã seguinte?
— Sim, quando chegou o anúncio de que a pobre criatura havia morrido, saí
correndo com os outros.
— Você viu o Sr. Gibson?
— Sim, ele acabara de retornar da ponte quando o vi. Ele havia mandado chamar
o médico e a polícia.
— Ele lhe parecia muito perturbado?
— O Sr. Gibson é um homem muito forte e autossuficiente. Acho que ele jamais
demonstraria suas emoções de forma tão explícita. Mas eu, que o conheço tão bem,
podia ver que ele estava profundamente preocupado.
— Chegamos então ao ponto mais importante. Essa pistola foi encontrada em seu
quarto. Você já a havia visto?
— Nunca, eu lhe juro.
— Quando foi encontrada?
— Na manhã seguinte, quando a polícia realizou as buscas.
— Junto a suas roupas?
— Sim, no fundo do meu guarda-roupa, sob os meus vestidos.
— Você não consegue imaginar há quanto tempo estava lá?
— Não estava na manhã anterior.
— Como você sabe?
— Porque eu arrumei o guarda-roupa.
— E ponto final. Então, alguém entrou em seu quarto e colocou a pistola lá para
incriminá-la.
— Pode ter sido, então.
— E quando?
— Só pode ter sido na hora das refeições, ou então enquanto eu estava na sala
de aula com as crianças.
— Como estava quando recebeu o bilhete?
— Sim, a partir desse momento, fiquei durante toda a manhã.
— Obrigado, Senhorita Dunbar. Há algum outro ponto que possa me ajudar na
investigação?
— Não sou capaz de pensar em mais nenhum.
— Havia um sinal de violência na pedra da ponte, uma lasca muito recente bem
na direção do corpo. Pode sugerir qualquer explicação para isso?
— Certamente isso deve ser uma mera coincidência.
— Curioso, senhorita Dunbar, muito curioso. Por que surgiria no exato momento
da tragédia e no exato lugar?
— Mas o que pode ter causado isso? Somente uma grande quantidade de
violência poderia ter esse efeito.
Holmes não respondeu. Sua face pálida e ansiosa de repente assumiu aquela
expressão tensa e distante que eu aprendi a associar às manifestações supremas de
seu gênio. Tão evidente era a crise em sua mente que nenhum de nós ousou falar,
ficamos sentados, o advogado, a prisioneira e eu, observando-o em um silêncio
concentrado e absorto. De repente, ele se levantou da cadeira, vibrando com ansiedade
e a necessidade urgente de agir.
— Vamos, Watson, vamos! — ele exclamou.
— O que foi, Sr. Holmes?
— Não se preocupe, minha cara senhorita. Terá notícias minhas, Sr. Cummings.
Com a ajuda do Senhor da Justiça, eu lhe darei um caso que fará a Inglaterra vibrar.
Receberá notícias até amanhã, Srta. Dunbar, e, enquanto isso, tenha a certeza de que
as nuvens estão se dissipando e que eu tenho toda a esperança de que a luz da verdade
esteja surgindo.
Não era uma viagem longa de Winchester a Thor Place, mas foi longa para mim
em minha impaciência, enquanto para Holmes era evidente que parecia interminável.
Pois, em sua inquietação, não conseguia ficar parado, mas andava de um lado para o
outro na carruagem ou tamborilava com seus dedos longos e sensíveis nas almofadas
ao seu lado. De repente, porém, quando nos aproximamos do nosso destino, ele se
sentou à minha frente — tínhamos uma carruagem de primeira classe só para nós — e,
colocando uma mão em cada um dos meus joelhos, olhou-me nos olhos com o olhar
peculiarmente malicioso que era característico de seus estados de espírito mais
malignos.
— Watson, — ele disse, — tenho a lembrança de que você anda armado nessas
nossas excursões.
Era em prol do próprio bem dele que eu o fazia, pois não se preocupava muito
com sua própria segurança quando sua mente estava absorvida por um problema, de
modo que, mais de uma vez, meu revólver foi um bom amigo em momentos de
necessidades. Eu o recordei do fato.
— Sim, sim, sou um tanto indiferente em relação a esses assuntos. Mas tem o
seu revólver com você?
Eu o tirei do bolso da calça, uma arma curta, prática, mas muito útil. Ele abriu a
trava, sacudiu os cartuchos e examinou-o com cuidado.
— É pesado, notavelmente pesado, — ele disse.
—Sim, é um trabalho robusto.
Ele refletiu sobre isso por um minuto.
— Sabe, Watson, — ele disse, — creio que seu revólver terá uma conexão muito
íntima com o mistério que estamos investigando.
— Meu caro Holmes, você está brincando.
— Não, Watson, falo muito sério. Há um teste diante de nós. Quando o teste for
concluído, tudo ficará claro. E o teste dependerá da conduta dessa pequena arma. Um
cartucho de fora. Agora, substituiremos os outros cinco e colocaremos a trava de
segurança. Então! Isso aumentará o peso e o tornará uma réplica melhor.
Eu não tinha ideia do que se passava em sua mente, e ele também não me
esclareceu, mas ficou sentado, perdido em seus pensamentos, até pararmos na pequena
estação de Hampshire. Conseguimos uma carroça precária e, em quinze minutos,
estávamos na casa de nosso companheiro reservado, o sargento.
— Uma pista, Sr. Holmes? E qual seria?
— Tudo depende do comportamento do revólver do Dr. Watson, — disse meu
amigo. — Aqui está. Agora, oficial, pode me dar cem metros de barbante?
A mercearia do vilarejo forneceu um novelo de barbante bem resistente.
— Acho que isso é tudo de que precisaremos, — disse Holmes. — Agora, por
favor, vamos partir para o que espero que seja a última etapa de nossa jornada.
O sol estava se pondo e transformando a planície de Hampshire em um
maravilhoso cenário de outono. O sargento, com muitos olhares críticos e incrédulos que
mostravam suas profundas dúvidas sobre a sanidade mental de meu companheiro,
seguia ao nosso lado. Ao nos aproximarmos da cena do crime, pude ver que meu amigo,
apesar de toda a sua frieza habitual, estava, na verdade, profundamente agitado.
— Sim, — disse ele em resposta ao meu comentário, — você já me viu errar o
alvo antes, Watson. Tenho um pressentimento sobre essas coisas e, no entanto, às
vezes ele me engana. Parecia uma certeza quando passou pela minha mente pela
primeira vez na cela em Winchester, mas a desvantagem de uma mente ativa é que
sempre é possível conceber explicações alternativas que tornariam nosso
pressentimento falso. E ainda assim, e ainda assim... Bem, Watson, só podemos tentar.
Enquanto caminhava, amarrou firmemente uma ponta da corda ao cabo do
revólver. Chegamos ao local da tragédia. Com muito cuidado, ele marcou, sob a
orientação do policial, o local exato onde o corpo estava deitado. Ele então caçou, entre
as urzes e as samambaias, até encontrar uma pedra de tamanho considerável. Ele
prendeu a corda na outra extremidade e a pendurou sobre o parapeito da ponte, de modo
que ela ficasse bem acima da água. Ele então parou no local fatídico, a alguma distância
da borda da ponte, com meu revólver na mão, a linha esticada entre a arma e a pedra
pesada do outro lado.
— Agora vamos lá! —ele exclamou.
Ao proferir essas palavras, ele ergueu a pistola até a cabeça e depois a soltou.
Em um instante, ela foi levada pelo peso da pedra, bateu com um forte estalo no guarda
corpo e desapareceu na água. Mal havia desaparecido e Holmes já estava ajoelhado ao
lado da pedra, um grito de alegria mostrou que ele havia encontrado o que esperava.
— Já houve alguma vez uma demonstração mais precisa? — ele clamou. — Veja,
Watson, seu revólver resolveu o problema!
Enquanto falava, ele apontou para uma segunda lasca do mesmo tamanho e
formato da primeira que havia aparecido na borda inferior da balaustrada de pedra.
— Ficaremos na pousada esta noite, — continuou ele, levantando-se e encarando
o sargento que estava atônito. — É claro que você encontrará um gancho e poderá
recuperar facilmente o revólver do meu amigo. Você também encontrará ao lado dele o
revólver, a corda e o peso com os quais essa mulher vingativa tentou disfarçar seu
próprio crime e lançar uma acusação de assassinato sobre uma vítima inocente. Pode
avisar ao Sr. Gibson que o verei pela manhã, quando poderão ser tomadas medidas para
a defesa da Srta. Dunbar.
No final daquela noite, quando estávamos sentados juntos, fumando nossos
cachimbos na pousada da vila, Holmes me fez uma breve revisão do que havia
acontecido.
— Temo, Watson, — ele disse, — que o caso do mistério da Ponte de Thor não
melhorará a reputação que eu possa ter adquirido se for acrescentado aos seus relatos.
Estou com a mente preguiçosa e com falta daquela mistura de imaginação e realidade
que é a base da minha arte. Confesso que a lasca na pedra foi uma pista suficiente para
sugerir a verdadeira solução e que me culpo por não a ter encontrado antes.
— Deve-se admitir que o funcionamento da mente dessa infeliz mulher era
profundo e sutil, de modo que não foi uma tarefa nada simples desvendar sua trama.
Acho que, em nossas aventuras, nunca encontramos um exemplo mais estranho do que
o amor desvirtuado pode causar. O fato de a Srta. Dunbar ser sua rival em um sentido
físico ou meramente mental parece ter sido igualmente imperdoável aos seus olhos. Não
há dúvidas de que ela culpava essa inocente senhorita por todas as atitudes duras e
palavras indelicadas com as quais o marido tentava repelir sua afeição excessivamente
demonstrativa. Sua primeira decisão foi acabar com a própria vida. A segunda foi fazer
isso de modo a envolver a vítima em um destino muito pior do que qualquer morte súbita
poderia ser capaz de envolver.
— Podemos seguir as várias etapas com bastante clareza, e elas mostram uma
notável sofisticação mental. Um bilhete foi extraído de forma muito inteligente da Srta.
Dunbar, dando a entender que ela havia escolhido a cena do crime. Em sua ânsia de
que fosse descoberto, ela exagerou um pouco, segurando-o na mão até o fim. Esse fato,
por si só, deveria ter levantado minhas suspeitas mais cedo do que o fez.
— Em seguida, ela pegou um dos revólveres do marido, havia, como você viu, um
arsenal na casa, e o guardou para uso próprio. Ela escondeu um similar naquela manhã
no guarda-roupa da Srta. Dunbar depois de descarregar um tambor da arma, o que ela
poderia fazer facilmente na floresta sem chamar a atenção. Ela então desceu até a ponte,
onde havia inventado esse método extremamente engenhoso para se livrar de sua arma.
Quando a Srta. Dunbar apareceu, ela usou seu último fôlego para derramar seu ódio e,
depois, quando já não estava mais sendo ouvida, executou seu terrível propósito. Cada
elo está agora em seu lugar e a corrente está completa. Os jornais podem perguntar por
que o lago não foi dragado em primeira instância, mas é fácil ser sensato depois do
evento e, de qualquer forma, não é fácil arrastar a extensão de um lago cheio de juncos,
a menos que você tenha uma percepção clara do que está procurando e onde. Bem,
Watson, nós ajudamos uma mulher extraordinária e um homem formidável. Se, no futuro,
eles unirem suas forças, o que não parece improvável, o mundo financeiro poderá
descobrir que o Sr. Neil Gibson aprendeu algo na sala de aula da tristeza, onde nossas
lições terrenas são ensinadas — concluiu.
Tradutor: Eduardo Lisovski Schmidt
Revisora: Júlia Baltar de Brito

Paratexto

“A Aventura do Homem Rastejante” trata a respeito de um homem que tenta


desafiar a natureza impondo um ritmo ao próprio rejuvenescimento sem mensurar as
consequências. Durante o processo tradutório do presente conto, o mais significativo dos
desafios foi a mudança de sentido que as palavras sofreram ao longo dos anos — afinal,
transcorreu-se um século desde a escrita e a publicação do compilado em que este
episódio se insere. Aqui, “passion” e seu correlato “passionate” colecionam
correspondências diversas que vão desde a esperada “paixão” e ao habitual
“apaixonado” até se tornar “selvagem”, sendo este último o significado mais comum na
Inglaterra da época de Conan Doyle segundo o dicionário Collins. Outros termos, como
“shag” e “horny”, que, hoje em dia, estão unidos a conotações sexuais, foram usados
pelo autor com sentidos bastante diferentes. “Shag” caracteriza o tabaco grosseiro de
Holmes nas primeiras linhas desta aventura, enquanto “horny” se refere aos dedos
repletos de calos do professor Presbury. A presente tradução foi confeccionada com
especial atenção a estes detalhes, portanto.

Perfil do tradutor
Eduardo Lisovski Schmidt é tradutor pela Universidade Federal de Juiz de Fora,
tem como língua de trabalho o inglês e possui interesse na área de tradução literária.
A AVENTURA DO HOMEM RASTEJANTE

O Sr. Sherlock Holmes sempre foi a favor de que eu publicasse os fatos singulares
conectados ao professor Presbury, se somente se dissipassem, de uma vez por todas,
os rumores pravos os quais, cerca de vinte anos atrás, agitaram a universidade e
ecoaram pela sociedade intelectual de Londres. Existiam, no entanto, certos obstáculos
pelo caminho, e a verdadeira história desse curioso caso permaneceu sepultada no
fundo da caixa de latão onde se encontram muitos registros das aventuras de meu amigo.
Apenas agora, nós recebemos permissão para ventilar os acontecimentos que
constituíram um dos últimos casos investigados por Holmes antes de sua aposentadoria
do ofício. Mesmo neste momento, reserva e discrição devem ser tomadas antes de
explicar o caso para o público.
Foi em um anoitecer de domingo no começo de setembro do ano de 1903 que
recebi uma das mensagens lacônicas de Holmes:
“Venha num pé se for conveniente… se inconveniente, venha no mesmo”.
— S.H.
A relação entre nós ultimamente estava peculiar. Ele era um homem de manias,
estreitas e concentradas manias, e eu havia me tornado uma delas. Como uma
instituição, eu era como o violino, o tabaco grosseiro, o velho cachimbo preto, o livro
índice e outros menos justificáveis. Quando era um caso de trabalho ativo e um
camarada em cuja coragem ele poderia depositar certa confiança era necessário, meu
papel era óbvio. Mas, além disso, eu era útil. Eu era a pedra de amolar para a mente
dele. Eu o estimulava. Ele gostava de pensar em voz alta em minha presença.
Dificilmente se poderia dizer que suas observações poderiam ter sido feitas para mim —
muitas delas teriam sido feitas de maneira mais apropriada para a cabeceira de sua cama
— mas, de qualquer forma, formado o hábito, tornou-se, de alguma forma, útil que eu
devesse registrar e interromper. Se eu o irritasse por certa lentidão metódica em minha
mentalidade, a irritação servia apenas para fazer suas flamejantes intuições e
impressões fumegarem de modo mais vívido e veloz. Esse era meu singelo papel em
nossa aliança.
Quando cheguei à Baker Street, eu o encontrei acomodado em sua poltrona com
os joelhos para cima, o cachimbo na boca e o cenho franzido pelo pensamento. Estava
claro que ele estava nas entranhas de algum problema complicado. Com um aceno de
mão, ele indicou a minha própria poltrona, mas, apesar disso, por meia hora, ele não deu
nenhum sinal de que havia percebido minha presença. Então, com um sobressalto, ele
pareceu sair de seu devaneio, e com seu habitual sorriso excêntrico, recebeu-me de
volta para o lugar onde um dia havia sido minha casa.
— Desculpe-me a abstração pontual da mente, caro Watson — disse ele. —
Certos fatos curiosos chegaram até mim nas últimas vinte e quatro horas, e eles, por sua
vez, originaram certas especulações de caráter mais geral. Considero seriamente
escrever um pequeno estudo a respeito do uso de cães no trabalho de investigação.
— Mas, decerto, Holmes, isso foi explorado — disse eu. — Sabujos, cães
farejadores...
— Não, não, Watson. Este lado do assunto é, evidentemente, óbvio. Todavia,
existe outro, que é muito mais sutil. Você talvez lembre que, no caso em que você, à sua
maneira excepcional, uniu-se às Faias Cor de Cobre, eu fui capaz de, ao observar a
mente de uma criança, formular uma dedução a respeito dos costumes criminosos do
muito convencido e respeitável pai.
— Sim, lembro-me bem.
— Minha linha de raciocínio sobre cães é análoga. Um cão reflete a vida da
família. Quem vê um cachorro espirituoso em uma família melancólica, ou um triste em
uma casa feliz? Pessoas que rosnam possuem cães que rosnam, pessoas perigosas
possuem animais perigosos. E os humores instáveis deles podem refletir os humores
instáveis dos donos.
Eu balancei a cabeça.
— Sem dúvida, Holmes, isso é um pouco absurdo — disse eu.
Ele colocou mais tabaco no cachimbo e retomou seu assento, sem tomar nota de
meu comentário.
— A aplicação prática do que eu disse é muito similar ao caso que estou
investigando. É um novelo emaranhado, você vê, e eu estou procurando por uma ponta
solta. Uma possível ponta solta reside na pergunta: por que o lébrel do professor
Presbury, Roy, tentou mordê-lo?
Eu afundei em minha cadeira, um pouco desapontado. Seria uma pergunta tão
trivial como aquela o motivo pelo qual eu havia sido tirado de meu trabalho? O olhar de
Holmes me trespassou.
— O velho Watson de sempre! — disse ele. — Você nunca aprende que os
problemas mais graves podem ser causados pelas menores das intercorrências. Mas
não lhe parece estranho que um filósofo sério, de idade avançada... você já ouviu a
respeito de Presbury, é claro, o fisiologista famoso de Camford?... um homem cujo único
amigo foi seu devotado lébrel, agora ter sido atacado duas vezes pelo próprio cão? O
que você pensa sobre isso?
— O cachorro está doente.
— Bem, podemos considerar. Mas ele não ataca ninguém e nem importuna seu
dono, apenas em ocasiões muito específicas. Curioso, Watson... muito curioso. Mas o
jovem Sr. Bennett chegou antes da hora se for ele quem tocou a campainha. Eu esperava
ter uma conversa mais duradoura com você antes que ele chegasse.
Houve passos velozes nas escadas, batidas afiadas à porta e, um momento
depois, o novo cliente se apresentou. Ele era um homem jovem e alto, belo e próximo
dos trinta anos, bem vestido e elegante, mas com algo em seu comportamento que
sugeria mais a timidez do estudante do que a assertividade de um homem bem-vivido.
Ele apertou a mão de Holmes e então, com certa surpresa, olhou para mim.
— Essa questão é muito delicada, Sr. Holmes — ponderou ele. — Considere a
relação que possuo com o professor Presbury, tanto de maneira privada quanto pública.
Realmente não posso me perdoar se eu falar diante de qualquer terceira pessoa.
— Não tenha medo, Sr. Bennett. Dr. Watson é a alma da discrição, e eu posso
assegurar a você que esse é um caso em que é muito provável a minha necessidade de
um assistente.
— Como preferir, Sr. Holmes. Você vai, creio eu, entender as minhas reservas
com essa questão.
— Você vai gostar, Watson, quando eu lhe contar que este cavalheiro, Sr. Trevor
Bennett, é o assistente do grande cientista, mora sob o teto dele e é noivo de sua única
filha. É certo que devemos concordar que o professor sustenta todas as alegações a
respeito de sua lealdade e devoção. Mas isso pode ser demonstrado melhor se
tomarmos os passos necessários para esclarecer esse estranho mistério.
— Espero que sim, Sr. Holmes. Esta é minha pergunta. O Dr. Watson tem
conhecimento da situação?
— Não tive tempo para explicá-la.
— Então, talvez seja melhor que eu recupere tudo, mais uma vez, antes de
explicar alguns acontecimentos mais frescos.
— Eu mesmo o farei — disse Holmes — para mostrar que tenho os eventos em
sua devida ordem. O professor, Watson, é um homem de reputação europeia. A vida
dele era acadêmica até então. Nunca existiu nenhum suspiro de escândalo. Ele é viúvo
com uma única filha, Edith. Ele é, lembro-me, um homem de caráter muito viril e positivo,
alguns podem até dizer combativo. O problema começou cerca de alguns meses atrás.
“Então, a corrente de sua vida foi interrompida. Ele tem sessenta e um anos de
idade, mas se tornou noivo da filha do professor Morphy, seu colega no gabinete de
anatomia comparativa. Não foi, como eu compreendo, a decisão racional de um homem
com mais idade, mas sim o furor apaixonado da juventude, pois ninguém poderia tê-lo
apresentado uma amante mais devotada. A dama, Alice Morphy, era uma moça perfeita
tanto de corpo quanto de mente, então ali estavam todas as desculpas a favor da
enfatuação do professor. De qualquer forma, isso não foi aprovado totalmente na família
dele.”
— Achamos um tanto excessivo — disse nosso visitante.
— Exato. Excessivo e um pouco violento e não natural. O professor Presbury era
rico, no entanto, e não houve objeção partida da parte do pai. A filha, no entanto, tinha
outra visão, e já existiam diversos candidatos para a mão da moça, os quais, caso fossem
menos aceitáveis sob um ponto de vista mais mundano, possuíam, ao menos, mais
idade. A jovem parecia gostar do professor apesar das excentricidades dele. Era apenas
a idade que se colocava no caminho.
“Por volta dessa época, um pequeno mistério, de repente, enevoou a rotina normal
da vida do professor. Ele fez o que nunca havia feito antes. Saiu de casa e não deu
qualquer informação a respeito de onde estava indo. Ele ficou longe por uma quinzena
e retornou um tanto cansado da viagem. Não fez alusão ao lugar onde esteve, embora
fosse, normalmente, a honestidade em pessoa. Aconteceu, entretanto, que nosso cliente
aqui, o Sr. Bennett, recebeu uma carta de um colega de Praga, que disse estar grato por
ter visto o professor Presbury ali, embora não tivesse conseguido falar com ele. Foi
apenas dessa maneira que a família soube onde ele havia estado.
“Aqui está o ponto. Daquela vez em diante, uma mudança curiosa se apossou do
professor. Ele se tornou furtivo e ladino. Aqueles próximos dele sempre tinham a
sensação de que ele não era o homem que haviam conhecido, e sim que ele estava sob
alguma sombra, a qual havia escurecido suas maiores qualidades. Seu intelecto não foi
afetado. Suas aulas estavam tão brilhantes como sempre. Mas sempre havia algo novo,
algo sinistro e inesperado. Sua filha, que era devotada a ele, tentou de novo e de novo
retomar a relação antiga e penetrar a máscara a qual o pai dela parecia ter colocado.
Você, senhor, como eu entendo, fez o mesmo... mas foi tudo em vão. E, agora, Sr.
Bennett, conte em suas próprias palavras o incidente das cartas — solicitou Holmes.
— Você deve compreender, Dr. Watson, que o professor não guardava segredos
de mim. Se eu fosse filho ou irmão mais novo dele, eu não poderia ter aproveitado por
completo sua confiança. Como secretário, eu entregava cada documento que chegava
até ele, e eu abria e separava suas cartas. Pouco tempo depois de seu retorno, tudo isso
mudou. Ele me contou que certas cartas poderiam chegar para ele de Londres, as quais
estariam marcadas por uma cruz sob do selo. Essas deviam ser reservadas para seus
próprios olhos, apenas. Posso dizer que várias dessas passaram pelas minhas mãos,
elas possuíam a marca E.C. e estavam escritas em uma caligrafia iletrada. Se ele
respondeu a todas elas, as respostas não passaram por mim e nem pela cesta de cartas
da qual nossa correspondência era coletada.
— E a caixa — disse Holmes.
— Ah, sim, a caixa. O professor trouxe uma pequena caixa de madeira de suas
viagens. Era a única pista que sugeriu uma rota continental, pois era uma daquelas
coisas pitorescas entalhadas que se associa à Alemanha. Ele a guardou em seu armário
de instrumentos. Um dia, na procura por uma cânula, eu peguei a caixa. Para a minha
surpresa, ele ficou muito bravo e me reprovou em palavras que foram um tanto brutais
para a minha curiosidade. Foi a primeira vez que algo assim aconteceu, e eu fiquei
profundamente magoado. Esforcei-me para explicar que foi apenas um acidente eu ter
tocado a caixa, mas durante toda a noite eu percebia de que ele me olhava com dureza,
e que o acontecimento supurava em sua mente — O Sr. Bennett tirou um pequeno diário
de dentro do bolso. — Isso foi no dia 2 de julho — disse ele.
— Você é de fato uma testemunha admirável — observou Holmes. — Eu posso
precisar de algumas dessas datas que você anotou.
— Eu aprendi métodos, dentre outras coisas, com meu grande professor. Desde
o momento em que observei anormalidade no comportamento dele, senti que era meu
dever estudar seu caso. Deste modo, eu tenho aqui que foi naquele exato dia, 2 de julho,
que Roy atacou o professor quando ele saía de sua sala de estudos para o corredor.
Novamente, no dia 11 de julho, houve uma cena da mesma espécie, e, então, tenho uma
nota de outro ataque no dia 20. Depois disso, nós tivemos que exilar Roy para os
estábulos. Ele era um animal querido e carinhoso... mas temo estar entediando você.
Sr. Bennett falou em tom de desaprovação, porque estava bastante claro que
Holmes não estava ouvindo. Seu rosto estava rígido e seus olhos fitavam o teto de
maneira abstrata. Com esforço, ele se recuperou.
— Singular! Que singular! — ele murmurou. — Esses detalhes eram novos para
mim, Sr. Bennett. Acho que, agora, já recordamos toda a história, não é mesmo? Mas
você comentou de alguns acontecimentos recentes.
O rosto ingênuo e agradável de nosso visitante se enevoou, coberto por alguma
recordação obscura.
— Aquilo de que falo se deu na noite anterior do último acontecimento — disse
ele. — Eu estava acordado por volta das duas da manhã quando percebi um som fraco
e abafado vindo do corredor. Abri minha porta e espiei para fora. Devo explicar que o
professor dorme ao final do corredor...
— E qual a data…? — quis saber Holmes.
Nosso visitante estava claramente incomodado diante de uma interrupção tão
irrelevante.
— Eu disse, senhor, foi na noite anterior à última... isto é, 4 de setembro.
Holmes assentiu e sorriu.
— Por favor, continue — disse ele.
— Ele dorme ao final do corredor e teria de passar pela minha porta para chegar
até as escadas. Foi uma experiência de fato aterrorizante, Sr. Holmes. Eu acho que tenho
nervos de aço tais quais os dos meus vizinhos, mas fiquei perplexo com o que vi. O
corredor estava escuro, exceto por uma janela logo no meio, que lançava ali um feixe de
luz. Eu podia ver que algo estava atravessando corredor, algo escuro e agachado. Então,
aquilo de repente mergulhou na luz, e eu vi que era ele. Ele estava rastejando, Sr.
Holmes, rastejando! Ele não estava exatamente apoiado nas mãos e nos joelhos. Devo
dizer, ao invés disso, nas mãos e nos pés, com o rosto afundado entre as mãos. Ainda
assim, ele parecia se mover com facilidade. Eu fiquei tão paralisado pela visão que foi
apenas quando ele chegou até a minha porta que fui capaz de dar um passo à frente e
perguntar se poderia ajudá-lo. A resposta dele foi extraordinária. Ele se endireitou, cuspiu
alguma palavra cruel para mim e passou correndo pela minha porta e desceu as escadas.
Eu esperei por cerca de uma hora, mas ele não voltou. O dia deve ter amanhecido antes
que ele retornasse para o quarto.
— Bem, Watson, o que acha disso? — perguntou Holmes com o ar de um
patologista que apresenta um espécime raro.
— Lumbago, possivelmente. Eu sei que uma crise intensa pode fazer um homem
andar dessa exata maneira, e nada seria mais irritante para humor.
— Ótimo, Watson! Você sempre nos mantém com os pés no chão. Mas é difícil
que aceitemos lumbago, uma vez que ele era capaz de ficar de pé no momento seguinte.
— Ele nunca esteve tão bem de saúde — disse Bennett. — Na verdade, ele está
mais forte do que me lembro há anos. Mas eis os fatos, Sr. Holmes. Esse não é um caso
em que podemos consultar a polícia, mas nós estamos totalmente sem direções quanto
ao que fazer, e sentimos, de uma maneira estranha, que estamos nos movendo na
direção de um desastre. Edith... A Senhorita Presbury se sente da mesma forma que eu,
nós não podemos mais esperar sem fazer nada.
— É decerto um caso muito curioso e sugestivo. O que acha, Watson?
— Falando como um homem da medicina — disse eu —, parece ser o caso para
um alienista. Os processos cerebrais do velho cavalheiro foram perturbados pela
aventura amorosa. Ele fez uma jornada para o exterior na esperança de se romper da
paixão. As cartas dele e a caixa podem estar conectadas com outra transação privada...
um empréstimo, talvez, ou certificados de ações, que estão dentro da caixa.
— E o lébrel, sem dúvida, desaprovou o negócio financeiro. Não, não, Watson,
existe algo a mais. Agora, posso apenas sugerir...
Nunca se saberá o que Sherlock Holmes estava prestes a sugerir, pois naquele
momento a porta se abriu e uma jovem adentrou a sala. Quando ela apareceu, o Sr.
Bennett se levantou com uma exclamação e correu em sua direção com as mãos
estendidas a fim de encontrar aquelas que ela mesma estendia.
— Edith, querida! Não há nada de errado, assim espero?
— Eu senti que devia seguir você. Oh, Jack, fiquei tão apavorada! É horrível estar
lá sozinha.
— Sr. Holmes, esta é a moça de quem falei. Esta é minha noiva.
— Nós estávamos chegando a essa conclusão, não é, Watson? — Holmes
respondeu com um sorriso. — Acredito, Senhorita Presbury, que há desenvolvimentos
frescos no caso, e você pensou que devêssemos saber?
Nossa nova visitante, uma radiante, bela moça de tipo tradicional inglês, sorriu de
volta para Holmes enquanto se sentava ao lado do Sr. Bennett.
— Quando eu soube que o Sr. Bennett deixou o hotel, acreditei que seria provável
encontrá-lo aqui. É claro, ele me contou que iria consultar o senhor. Mas, oh, Sr. Holmes,
não há nada que possa fazer pelo meu pobre pai?
— Tenho esperanças, Srta. Presbury, mas o caso ainda permanece obscuro.
Talvez o que você tenha a dizer possa iluminá-lo com uma nova luz.
— Foi na noite passada, Sr. Holmes. Ele esteve muito estranho o dia todo. Tenho
certeza de que há vezes nas quais ele não se lembra do que faz. Ele vive como se fosse
um sonho estranho. Ontem foi um desses dias. Aquele não é o pai com quem vivi. A
casca dele estava lá, mas não era ele de fato.
— Conte-me o que houve.
— Eu fui acordada à noite pelo cachorro latindo, furioso. Pobre Roy, ele está
acorrentado agora próximo aos estábulos. Posso dizer que sempre durmo com a minha
porta trancada; porque, como Jack... como o Sr. Bennett irá contar a você, temos todos
o sentimento de perigo iminente. Meu quarto fica no segundo andar. As cortinas estavam
suspensas em minha janela, e havia a luz brilhante da lua lá fora. Enquanto eu me
deitava com meus olhos fixos no quadrado luminoso, escutando os latidos enfurecidos
do cachorro, eu fiquei surpresa ao ver o rosto do meu pai olhando para dentro em minha
direção. Sr. Holmes, quase morri de susto e de horror. Lá estava, pressionado contra a
vidraça, e uma mão pareceu se erguer como que para empurrar a janela. Se aquela
janela tivesse aberto, acho que eu teria perdido a cabeça. Não foi um delírio, Sr. Holmes.
Estará enganado ao pensar assim. Ouso dizer que foi por cerca de vinte segundos que
fiquei deitada paralisada e fitei o rosto. Então, ele desapareceu, mas eu não consegui...
eu não consegui me levantar e ir ajudá-lo. Deitada, senti frio e arrepios até amanhecer.
No café da manhã, ele estava com o comportamento amargo e feroz e não fez alusão à
aventura da noite. Eu também não fiz, mas dei uma desculpa para vir à cidade... e aqui
estou eu.
Holmes pareceu profundamente surpreso diante da narrativa da Senhorita
Presbury.
— Minha cara jovem, você diz que seu quarto é no segundo andar. Há uma
escada longa no jardim?
— Não, Sr. Holmes, essa é a parte impressionante. Não há nenhuma maneira
possível de chegar até a janela... mesmo assim, ele estava lá.
— A data é dia 5 de setembro — disse Holmes. — Isso decerto agrava a situação.
Foi a vez da jovem de demonstrar surpresa.
— Essa é a segunda vez que você faz alusão à data, Sr. Holmes — disse Bennett.
— É possível que exista alguma relação com o caso?
— É provável, muito provável, porém não tenho meu material completo no
momento.
— Por acaso você está pensando na conexão entre a insanidade e as fases da
lua?
— Não, eu lhe asseguro. Foi uma linha bem diferente de pensamento. Talvez você
possa deixar seu caderno comigo, e eu irei conferir as datas. Agora, eu acredito, Watson,
que nossa linha de ação está perfeitamente clara. Essa jovem nos informou, e eu
deposito grande confiança na intuição dela, que o pai se lembra de muito pouco ou nada
do que ocorre em certas datas. Nós iremos, portanto, telefoná-lo como se ele tivesse
marcado um compromisso conosco em tal data. Ele irá atribuir isso à sua própria falta de
memória. Então, nós iremos começar nossa campanha após examiná-lo mais de perto.
— Excelente — disse o Sr. Bennett. — Devo alertá-lo, entretanto, que o professor
é irascível e violento às vezes.
Holmes sorriu.
— Há razões pelas quais devemos ir de uma vez... razões muito convincentes, se
minhas teorias estiverem corretas. Amanhã, Sr. Bennett, certamente nos verá em
Camford. Lá existe, se me lembro bem, uma hospedaria chamada Chequers onde o porto
costumava ser melhor do que a mediocridade e a roupa de cama era acima do impecável.
Creio, Watson, que nossa sorte pode estar em lugares menos agradáveis pelos próximos
dias.
A manhã de segunda-feira nos encontrou em nosso caminho até a famosa cidade
universitária — um esforço fácil da parte de Holmes, que não possuía raízes para
arrancar, mas que envolveu pressa e um planejamento frenético vindo de mim, uma vez
que minha prática era, nessa época, escassa. Holmes não fez nenhuma alusão ao caso
até depois de termos deixado nossas malas na antiga hospedaria da qual ele havia
falado.
— Acredito, Watson, que podemos pegar o professor logo antes do almoço. Ele
dá aula às onze e deve fazer um intervalo em casa.
— Qual a possível desculpa que teríamos para telefoná-lo?
Holmes checou seu caderno.
— Houve um período de agitação em 26 de agosto. Vamos supor que ele esteja
um pouco confuso sobre o que faz nesses momentos. Se insistirmos que estamos lá pelo
compromisso marcado, acredito ser difícil que ele ouse nos contradizer. Você tem o
descaramento necessário para levar isso adiante?
— Podemos ao menos tentar.
— Excelente, Watson! Uma mistura de Busy Bee e Excelsior. “Podemos ao menos
tentar”, o lema da empresa. Um morador local amigável certamente nos guiará.
Um desses locais, no banco de trás de uma condução elegante, levou-nos
velozmente por uma fileira de faculdades antigas e, por fim, virou em uma avenida
arborizada e parou em frente a uma encantadora casa, cingida por gramados e coberta
por glicínias roxas. O professor Presbury estava de fato cercado por todos os elementos
não apenas de conforto, como também de luxo. Enquanto nós estacionávamos, uma
cabeça grisalha apareceu na janela frontal, e percebemos um par de olhos afiados sob
sobrancelhas desgrenhadas, que nos esquadrinhavam através de grandes óculos de
chifre. Um momento depois, estávamos em seu escritório, e o misterioso cientista, cujos
caprichos nos trouxeram de Londres, estava diante de nós. Não havia sinal algum de
excentricidade, fosse em seu comportamento, fosse em sua aparência, pois ele era um
homem corpulento, de traços marcantes, sério, alto e de sobrecasaca, com a dignidade
na postura que um lecionador precisa ter. Seus olhos eram sua característica mais
notável, afiados, observadores e espertos até o limite da astúcia.
Ele olhou para os nossos cartões.
— Por favor, sentem-se, cavalheiros. O que posso fazer por vocês?
O Sr. Holmes sorriu amigavelmente.
— Era exatamente a pergunta que eu estava prestes a lhe fazer, Professor.
— Para mim, senhor?
— É possível que haja algum engano. Eu soube por meio de uma segunda pessoa
que o professor Presbury de Camford precisava dos meus serviços.
— Ah, é claro! — Pareceu-me que havia um brilho malicioso nos intensos olhos
cinzentos. — Você ouviu isso, não ouviu? Posso perguntar o nome do seu informante?
— Desculpe-me, professor, mas o assunto era confidencial. Se cometi um erro,
nenhum dano foi causado. Só posso expressar meu arrependimento.
— De forma alguma. Eu gostaria de investigar mais a fundo esse assunto. Ele me
interessa. Você tem alguma declaração escrita, alguma carta ou telegrama para
comprovar sua afirmação?
— Não, não tenho.
— Presumo que você não vá tão longe a ponto de afirmar que eu o convoquei?
— Eu prefiro não responder perguntas — disse Holmes.
— Não, temo que não — disse o professor com aspereza. — No entanto, essa em
particular pode ser facilmente respondida sem a sua ajuda.
Ele atravessou a sala em direção à campainha. Nosso amigo de Londres, o Sr.
Bennett, atendeu ao chamado.
— Entre, Sr. Bennett. Esses dois cavalheiros vieram de Londres sob a impressão
de que foram convocados. Você cuida de toda a minha correspondência. Teria qualquer
registro de algo enviado a uma pessoa chamada Holmes?
— Não, senhor — respondeu Bennett, ruborizado.
— Assim se conclui — disse o professor, olhando furiosamente para o meu
companheiro. — Agora, senhor — ele se inclinou para frente, com as duas mãos sobre
a mesa —, me parece que sua posição é uma bastante questionável.
Holmes deu de ombros.
— Posso apenas repetir que sinto muito por termos feito uma intrusão
desnecessária.
— Já basta, Sr. Holmes! — o velho homem gritou com uma voz alta e estridente,
com uma malignidade extraordinária em seu rosto. Ele se colocou entre nós e a porta
enquanto falava, e sacudiu suas duas mãos para nós com uma paixão furiosa. — Você
não poderá escapar tão fácil assim.
Seu rosto estava torcido, ele sorria e balbuciava para nós em sua raiva insensata.
Eu estava convencido de que teríamos de lutar para sair da sala se o Sr. Bennett não
tivesse interferido.
— Caro professor! — ele gritou. — Pense em sua posição! Pense no escândalo
na universidade! O Sr. Holmes é um homem conhecido. Você não pode tratá-lo com
tamanha descortesia.
Carrancudo, nosso anfitrião, se é posso chamá-lo assim, abriu caminho até a
porta. Ficamos aliviados ao estar fora da casa e na tranquilidade da avenida arborizada.
Holmes parecia bastante impressionado pelo episódio.
— Os nervos de nosso amigo erudito estão um tanto fora do prumo — disse ele.
— Talvez nossa intrusão tenha sido pouco refinada, no entanto nós conseguimos o
contato pessoal que eu desejava. Mas, meu Deus, Watson, ele certamente está no nosso
encalço. O vilão ainda nos persegue.
Houve sons de pés apressados atrás de nós, mas, para meu alívio, não era o
formidável professor que apareceu contornando a curva da avenida, mas sim seu
assistente. Ele chegou ofegante até nós.
— Eu sinto muito mesmo, Sr. Holmes. Queria lhe pedir desculpas.
— Meu caro senhor, não é necessário. Faz parte da experiência profissional.
— Nunca o tinha visto em um humor tão perigoso. Mas ele pode ficar mais sinistro.
Você pode entender, agora, por que a Srta. Presbury e eu estamos alarmados. E ainda
assim, sua mente continua perfeitamente lúcida.
— Muito lúcida! — disse Holmes. — Esse foi o meu erro de cálculo. É evidente
que sua memória é muito mais confiável do que eu havia pensado. A propósito, antes de
irmos, podemos ver a janela do quarto da Srta. Presbury?
O Sr. Bennett abriu caminho por alguns arbustos, e tivemos uma visão da lateral
da casa.
— Fica ali. A segunda à esquerda.
— Espantoso, parece quase inacessível. No entanto, você vai observar que há
uma trepadeira abaixo e um cano de água acima que oferecem algum apoio.
— Eu mesmo não conseguiria escalar — disse o Sr. Bennett.
— É provável que não. Seria de fato uma empreitada perigosa para qualquer
homem comum.
— Havia outra coisa que eu queria lhe contar, Sr. Holmes. Tenho o endereço do
homem em Londres para quem o professor escreve. Parece que ele escreveu esta
manhã, e consegui isso no papel de carta borrado. É uma posição ignóbil para um
secretário de confiança, mas o que mais posso fazer?
Holmes fitou o papel e o colocou em seu bolso.
— Dorak... um nome curioso. Tem origem eslava, eu suponho. Bem, é um elo
importante na corrente. Voltaremos a Londres esta tarde, Sr. Bennett. Não vejo nenhum
propósito em nossa permanência aqui. Nós não podemos prender o professor, porque
ele não cometeu nenhum crime, nem podemos detê-lo, pois não há como provar que ele
está louco. Não é possível tomar nenhuma medida por enquanto.
— Então, o que diabos devemos fazer?
— Um pouco de paciência, Sr. Bennett. As coisas logo se desenvolverão. A
menos que eu esteja enganado, na próxima terça-feira pode estar marcada uma crise.
Certamente estaremos em Camford nesse dia. Enquanto isso, é indiscutível que a
situação geral é desagradável, e se a Srta. Presbury puder prolongar sua visita...
— Isso é fácil.
— Então, deixe-a ficar até conseguirmos assegurá-la de que todo o perigo já
passou. Enquanto isso, deixe-o estar e não se coloque no caminho dele. Contanto que
ele esteja de bom humor.
— Lá está ele! — disse Bennett num sussurro sobressaltado. Ao olharmos entre
os galhos, nós vimos a figura alta e de boa postura surgir da porta do salão e olhar em
volta dele. Ele ficou inclinado para frente, as mãos pendendo retas à sua frente, a cabeça
virando de um lado para o outro. O secretário, com um último aceno, esgueirou-se por
entre as árvores, e nós o vimos se apresentar, sem demora, para seu empregador; os
dois adentraram a casa juntos no que pareceu ser uma conversa animada e até mesmo
empolgada.
— Eu espero que o velho cavalheiro esteja somando dois mais dois — dizia
Holmes conforme andávamos em direção ao hotel. — Ele me soou como se tivesse um
cérebro particularmente afiado e lógico pelo pouco que vi de sua pessoa. Explosivo, sem
dúvida, mas, em contrapartida, do ponto de vista dele, ele possui algo que o faça explodir
se detetives são colocados em seus calcanhares e ele suspeita de que sua própria
família esteja por trás de tudo. Eu acredito que o ilustre amigo Bennett está passando
por maus bocados.
Holmes parou nos correios e enviou um telegrama em nosso caminho. A resposta
chegou até nós ao anoitecer, e ele a lançou para mim.
Visitei a Commercial Road e vi Dorak. Sujeito suave, boêmio, idoso. Possui um grande
armazém.
MERCER

— Mercer é do seu tempo — disse Holmes. — Ele é meu ajudante geral


responsável por assuntos rotineiros. Foi importante saber algo sobre o homem com
quem nosso professor estava trocando correspondências secretas. Sua nacionalidade
se conecta com a visita à Praga.
— Graças a Deus algo se conecta com algo — disse eu. — No momento,
parecemos estar de fronte a uma longa série de incidentes inexplicáveis sem conexão
uns com os outros. Por exemplo, que possível conexão pode haver entre um lébrel bravo
e uma visita à Boêmia, ou qualquer um desses com um homem rastejando por um
corredor à noite? Quanto às suas datas, isso é a maior mistificação de todas.
Holmes sorriu e esfregou as mãos. Nós estávamos, posso dizer, sentados na
antiga sala de estar do velho hotel, com uma garrafa do famoso vinho do qual Holmes
havia falado sobre a mesa entre nós.
— Bem, agora, vamos analisar as datas primeiro — disse ele, unindo as pontas
dos dedos e gesticulando como se estivesse dirigindo uma aula. — O diário deste
excelente jovem mostra que houve problemas em 2 de julho e, a partir daí, parece ter
ocorrido em intervalos de nove dias, com, segundo o que me lembro, apenas uma
exceção. Assim, o último surto partindo da sexta-feira foi em 3 de setembro, que também
se encaixa na sequência, assim como 26 de agosto, que precedeu esse evento. A coisa
vai além de uma coincidência.
Fui obrigado a concordar.
— Vamos, então, formular a teoria provisória de que, a cada nove dias, o professor
toma uma forte droga que tem um efeito fugaz, mas altamente venenoso. Sua natureza
violenta é intensificada por ela. Ele aprendeu a tomar essa droga enquanto estava em
Praga, e que agora lhe é fornecida por um intermediário boêmio em Londres. Tudo isso
se encaixa, Watson!
— Mas o cão, o rosto na janela, o homem rastejando no corredor?
— Bem, temos um começo. Eu não esperaria nenhum desdobramento novo até
a próxima terça-feira. Nesse meio tempo, podemos apenas manter contato com o nosso
amigo Bennett e desfrutar das amenidades desta encantadora cidade.
Pela manhã, o Sr. Bennett apareceu, discreto, para nos trazer o relatório mais
recente. Conforme Holmes havia imaginado, ele estava mesmo passando por maus
bocados. Sem acusá-lo exatamente de ser responsável por nossa presença, o professor
havia sido muito rude e grosseiro em suas palavras e decerto havia sentido um forte
ressentimento. Nesta manhã, ele havia voltado ao normal novamente e havia ministrado
sua habitual aula brilhante para uma turma lotada.
— Fora seus ataques estranhos — disse Bennett —, ele possui mais energia e
mais vitalidade do que consigo me lembrar, e nem mesmo seu cérebro já esteve tão claro
antes. Mas não é ele... não é, nunca, o homem que nós conhecemos.
— Eu acredito que você não tenha nada a temer por pelo menos uma semana —
respondeu Holmes. — Eu sou um homem ocupado, e o Dr. Watson tem seus pacientes
para atender. Vamos concordar em nos encontrarmos aqui, nesta mesma hora, na
próxima terça-feira, e eu ficarei surpreso se antes de o deixarmos novamente não
conseguirmos explicar, mesmo que não possamos talvez resolver, os seus problemas.
Enquanto isso, mantenha-nos informados sobre o que acontecer.
Não vi mais nada de meu amigo pelos próximos dias, mas, na noite da segunda-
feira seguinte, recebi um bilhete curto que me pedia para encontrá-lo no dia seguinte no
trem. De acordo com o que ele me contou enquanto viajávamos para Camford, tudo
estava bem, a paz na casa do professor não havia sido perturbada, e o comportamento
dele estava perfeitamente normal. Esse também foi o relatório que nos foi dado pelo
próprio Sr. Bennett quando ele nos visitou naquela noite em nosso antigo alojamento na
Chequers.
— Ele soube de seu correspondente em Londres hoje. Havia uma carta e havia
um pequeno pacote, ambos com uma cruz sob o selo que me advertia para não tocá-
los. Não houve mais nada.
— Isso pode ser o suficiente — disse Holmes de uma maneira sombria. — Agora,
Sr. Bennett, creio que, esta noite, chegaremos a uma conclusão. Se minhas deduções
estiverem corretas, teremos a oportunidade de resolver a situação. A fim de fazê-lo, será
necessário manter o professor sob observação. Eu sugeriria, portanto, que você ficasse
acordado e atento. Caso o escute passar por sua porta, não o intercepte, mas o siga o
mais discretamente que conseguir. O Dr. Watson e eu estaremos por perto. A propósito,
onde está a chave daquela caixa da qual você falou?
— Na corrente de relógio dele.
— Suponho que nossas investigações devem tomar essa direção. Na pior das
situações, a fechadura não deve ser muito complexa. Você teria algum outro homem
fisicamente apto nas dependências?
— Há o cocheiro, Macphail.
— Onde ele dorme?
— Próximo aos estábulos.
— Nós podemos, possivelmente, precisar dele. Bem, não podemos fazer mais
nada até vermos como as coisas se desenvolvem. Adeus... mas acho que vamos nos
ver antes da manhã.
A meia-noite se aproximava quando tomamos nossa posição entre alguns
arbustos, quase em frente à porta principal da casa do professor. Era uma noite bonita,
mas fria, e estávamos contentes por termos nossos sobretudos quentes. Havia brisa, e
nuvens corriam pelo céu, ocultando vez ou outra a meia-lua. Seria uma vigília deprimente
se não fosse pela expectativa e pela empolgação que nos impulsionavam, e a certeza
do meu companheiro de que provavelmente tínhamos chegado ao fim da estranha
sequência de eventos que haviam capturado nossa atenção.
— Se o ciclo de nove dias se mantiver, teremos o professor no seu pior esta noite
— disse Holmes. — O fato de esses sintomas estranhos terem começado após sua visita
à Praga, de ele estar trocando correspondências secretas com um negociante boêmio
em Londres, que presumivelmente representa alguém em Praga, e de ele ter recebido
um pacote hoje mesmo, tudo aponta em uma direção. O que ele toma e por que ele toma
ainda estão além do nosso entendimento, mas está claro o suficiente que isso emana de
Praga de alguma forma. Ele toma seguindo instruções precisas, as quais regulam esse
sistema de nove dias, o que foi o primeiro ponto a atrair minha atenção. Mas os sintomas
dele são os mais notáveis. Você observou os nós dos dedos dele?
Tive de confessar que não.
— Espessos e calosos de uma maneira completamente nova segundo minha
experiência. Sempre olhe as mãos primeiro, Watson. Depois os punhos das camisas, os
joelhos das calças e as botas. Nós dos dedos muito curiosos que só podem ser
explicados pelo modo de progressão observado por... — Holmes fez uma pausa e, de
repente, levou a mão à testa. — Oh, Watson, Watson, que tolo eu fui! Parece incrível, e
ainda assim deve ser verdade. Todos os pontos apontam para uma direção. Como eu
pude deixar de ver a conexão de ideias? Esses nós dos dedos... Como eu pude ignorar
esses nós dos dedos? E o cachorro! E a hera! Certamente é hora de eu desaparecer
para aquela pequena fazenda dos meus sonhos. Cuidado, Watson! Lá está ele! Teremos
a chance de ver com nossos próprios olhos.
A porta da frente se abriu devagar, e, contra o fundo iluminado pela lâmpada, nós
vimos a figura alta do professor Presbury. Ele estava vestido com seu roupão. Enquanto
ele permanecia delineado pela porta, ele estava de pé, mas inclinado para a frente com
os braços pendurados, como quando nós o vimos da última vez.
Então, ele deu um passo à frente em direção à entrada e uma mudança
extraordinária tomou conta dele. Ele afundou para baixo em uma posição agachada e se
moveu com as mãos e os pés, saltando de vez em quando como se estivesse
transbordando de energia e vitalidade. Ele se movia pela frente da casa e depois
contornava o canto. Logo que ele se afastou, Bennett se esgueirou pela porta e o seguiu
em silêncio.
— Venha, Watson, venha! — exclamou Holmes, e nós seguimos o mais
silenciosamente possível por entre os arbustos até encontrarmos um local de onde
podíamos ver o outro lado da casa, banhado pela luz da meia-lua. O professor estava
claramente visível, agachado ao pé da parede coberta de hera. Enquanto nós o
observávamos, ele, de repente, começou a escalá-la com uma agilidade incrível. De
galho em galho ele saltava, com os pés seguros e com as mãos firmes, escalando, a
princípio, apenas pela alegria de seu próprio poder, sem um objetivo definido. Com seu
roupão batendo em seus flancos, ele lembrava um gigantesco morcego grudado ao lado
de sua própria casa, uma grande mancha quadrada e escura na parede acesa pela lua.
Logo mais, cansou-se da brincadeira e, descendo de galho em galho, agachou-se na
antiga postura e se dirigiu aos estábulos, rastejando da mesma maneira estranha de
antes. O lébrel por perto àquela altura, latindo furioso e mais eufórico do que nunca
quando enfim avistou seu tutor. Ele forçava sua corrente e estremecia, tamanhas eram
a raiva e a ansiedade. O professor agachou-se de maneira precisa de modo que pudesse
ficar fora do alcance do cão, e começou a provocá-lo de todas as formas possíveis.
Apanhava punhados de pedrinhas do chão do caminho da entrada e jogava-as no rosto
do cão, cutucava-o com um pedaço de pau que havia encontrado, sacudia as mãos a
poucos centímetros da boca escancarada e fazia de tudo para aumentar a fúria do
animal, que já estava além de qualquer controle. Em todas as nossas aventuras, eu não
me recordo de já ter presenciado algo tão estranho quanto aquela figura impassível, mas
ainda assim digna, agachada como um sapo no chão e provocando, de forma calculada
e cruel, uma exibição mais selvagem de cólera no cão enfurecido, que se erguia e rugia
diante dele.
E então, num momento, aconteceu! Não foi a corrente que se rompeu, mas a
coleira que escorregou, pois havia sido feita para um terra-nova de pescoço mais grosso.
Ouvimos o sacolejo do metal caindo e, no instante seguinte, cão e homem estavam
rolando no chão juntos, um rugindo em fúria e o outro gritando em um estranho falsete
estridente de terror. Era uma situação muito perigosa para a vida do professor. O animal
cheio de cólera o tinha preso firmemente pela garganta, seus dentes haviam mordido
fundo, e ele estava inconsciente antes que pudéssemos alcançá-los e separá-los.
Poderia ter sido uma tarefa perigosa para nós, mas a voz e a presença de Bennett
fizeram com que o grandioso lébrel se acalmasse de imediato. A comoção havia trazido
o cocheiro sonolento e atordoado de seu quarto acima dos estábulos.
— Não estou surpreso — disse ele, balançando a cabeça. — Já o vi fazer isso
antes. Sabia que o cachorro o pegaria mais cedo ou mais tarde.
O cão foi contido, e juntos nós carregamos o professor até o quarto dele, onde
Bennett, que tinha grau em medicina, ajudou-me a fazer um curativo na garganta
dilacerada. As presas haviam passado perigosamente perto da artéria carótida, e a
hemorragia era grave. Após meia hora que o perigo havia passado, dei ao paciente uma
injeção de morfina, e ele caiu num sono profundo. Naquele momento, apenas naquele
momento, foi quando conseguimos trocar olhares e ponderar a situação.
— Acho que um cirurgião especializado deveria vê-lo — disse eu.
— Pelo amor de Deus, não! — implorou Bennett. — Agora, o escândalo está
confinado em nossa própria casa. Está seguro conosco. Caso ultrapasse essas paredes,
isso nunca vai acabar. Considere a posição dele na universidade, a reputação europeia,
os sentimentos da filha dele.
— Precisamente — disse Holmes. — Acredito que seja possível manter o
problema entre nós, e também prevenir a recorrência dele uma vez que temos o controle
da situação. A chave da corrente do relógio, Sr. Bennett. Macphail irá supervisionar o
paciente e nos avisar se houver alguma mudança. Deixe-nos ver o que podemos
encontrar na caixa misteriosa do professor.
Não havia muito, mas era o bastante: um fraco vazio, outro quase cheio, uma
seringa hipodérmica, muitas cartas ininteligíveis em uma língua estrangeira. As marcas
nos envelopes mostravam que eram aquelas as quais haviam perturbado a rotina do
secretário, e cada uma possuía a marca da Commercial Road e era assinada por “A.
Dorak”. Elas eram apenas faturas para informar que um novo frasco estava em processo
de envio para o professor Presbury, ou recibos para reconhecer o pagamento. No
entanto, havia outro envelope, com uma caligrafia mais educada, o selo austríaco e o
carimbo postal de Praga.
— Aqui temos nosso material! — exclamou Holmes ao arrancar o conteúdo do
envelope.

HONRÁVEL COLEGA [dizia a carta]:


Desde sua estimada visita, refleti muito a respeito de seu caso, e embora em suas
circunstâncias existam algumas razões especiais para o tratamento, eu não deixaria de
enfatizar a cautela, pois meus resultados mostraram que não é isento de perigos de
nenhum tipo.
É provável que o sérum de antropoide seja melhor. Usei, conforme expliquei a
você, o langur-cinzento, porque um espécime estava em meu alcance. Esse macaco é,
é claro, um rastejador e um escalador, enquanto o antropoide anda ereto e está mais
próximo em todos os aspectos.
Peço-lhe que tome todas as precauções possíveis para que não haja revelação
prematura do processo. Tenho outro cliente na Inglaterra, e Dorak é meu agente para
ambos. Relatórios semanais serão obrigatórios. Com estima e consideração,
H. LOWENSTEIN.

Lowenstein! O nome me trouxe de volta a memória de alguma notícia de jornal


que falava de um cientista obscuro que estava lutando, de alguma maneira
desconhecida, pelo segredo do rejuvenescimento e pelo elixir da vida. Lowenstein de
Praga! Lowenstein com o maravilhoso sérum revigorante, proibido pela profissão, porque
ele se recusou a revelar sua origem. Em poucas palavras, contei o que lembrava. Bennett
pegou um manual de zoologia nas prateleiras.
— "Langur" — ele leu —, "o grande macaco de face preta das encostas do
Himalaia, o maior e mais humano dos macacos escaladores.” Há muitos detalhes em
seguida. Bem, graças a você, Sr. Holmes, está muito claro que rastreamos o mal até sua
fonte.
— A verdadeira fonte — disse Holmes — está, é claro, nesse caso de amor
inoportuno que fez com que nosso impetuoso professor acreditasse que só poderia
realizar seu desejo caso se transformasse em um homem mais jovem. Quando alguém
tenta superar a Natureza, corre o risco de ser superado por ela. Os mais elevados dos
homens podem retroceder ao animal caso abandone o caminho certo do destino. — Ele
ficou pensativo por um momento, segurando o frasco em sua mão, observando o líquido
claro contido nele. — Quando eu escrever para esse homem e lhe disser que o tenho
como responsável criminalmente pelos venenos que ele distribui, não teremos mais
problemas. Mas isso pode acontecer novamente. Outros podem encontrar um caminho
melhor. Existe um perigo, um perigo muito real para a humanidade. Considere, Watson,
os materiais, os depravados, os mundanos, todos prolongariam suas vidas inúteis. O
espiritual não evitaria recorrer para algo mais elevado. Seria a sobrevivência dos menos
aptos. Que tipo de esgoto nosso pobre mundo poderia se tornar?
De repente, o sonhador desapareceu, e Holmes, o homem de ação, saltou de sua
cadeira.
— Acho que não há nada mais a dizer, Sr. Bennett. Os vários incidentes, agora,
se encaixam facilmente no esquema geral. O cachorro, é claro, percebeu a mudança
muito mais rápido do que você. Seu olfato garantiu este feito. Foi o macaco, e não o
professor, que Roy atacou, assim como foi o macaco que provocou Roy. Escalar era
uma alegria para a criatura, e foi apenas uma coincidência, suponho, que esse
passatempo o trouxe até a janela da jovem moça. Há um trem cedo para a cidade,
Watson, mas acho que teremos tempo suficiente para tomar uma xícara de chá no
Chequers antes de pegá-lo.
Tradutor: Thiago Montes
Revisora: Beatriz Corrêa
Paratexto

“A Aventura da Juba-de-Leão” é, na organização deste volume traduzido, o nono


conto em doze. Entretanto, se fôssemos traçar uma linha cronológica das aventuras de
Sherlock Holmes, esta seria sua última história. Sherlock já se encontra em uma idade
mais avançada, pensando apenas em caminhadas pela praia e em suas abelhas. Mesmo
assim, se depara com um caso que é tão desafiador quanto qualquer outro que já cruzou
seu caminho. Defrontando-se com um mistério difícil de solucionar, a escolha da
tradução por “Juba-de-Leão”, em vez de “Juba do Leão”, foi feita para se manter a
referência à espécie citada no conto “A Lion’s Mane”. Então, assim como Sherlock é um
grande entusiasta das artes naturais, preferi manter sua referência ao fazer uma, eu
mesmo, à espécie que é tão cara a este conto.

Perfil do tradutor

Tradutor generalista com formação pela UFJF no âmbito do Bacharelado em


Tradução Português - Inglês. Além disso, possui ampla experiência em tradução
comercial. Traduziu o conto “As Bruxas”, de Fagundes Varela, que compõem o volume
“Alter Mundos”, da editora Paratexto. Também realizou o trabalho de curadoria do
segundo volume da série, o “Alter Feminae”, tendo atuado como transcritor de vários
contos que compõem este volume.
A AVENTURA DA JUBA-DE-LEÃO

É extremamente singular como um problema que foi certamente tão difícil de ser
compreendido e incomum quanto qualquer um que eu tenha encarado na minha longa
carreira profissional tenha chegado até mim depois de minha aposentadoria e ter batido,
por assim dizer, à minha porta. Aconteceu após eu ter me retirado à minha pequena casa
em Sussex, quando havia me entregado completamente àquela suave vida na Natureza
que tanto ansiei nos longos anos que passei entre o desânimo de Londres. Nessa época
da minha vida, o caro Watson já havia me deixado para além da minha compreensão.
Uma ocasional visita de final de semana era o máximo que eu conseguia ter dele.
Portanto, devo ser meu próprio cronista. Ah! Mas se ele estivesse comigo, como poderia
ter feito de tão maravilhoso acontecimento meu definitivo triunfo contra cada dificuldade!
Assim como está, porém, devo contar minha história do meu jeito simples, mostrando
através de minhas palavras cada passo na estrada dificultosa que se estendeu à minha
frente enquanto eu investigava o mistério da Juba-de-Leão.
Minha casa de campo está situada sob as encostas de South Downs, imperando
uma vista incrível do Canal. Neste ponto, a linha costeira é inteiramente marcada por
falésias de calcário, que só podem ser descidas por um único caminho longo, tortuoso,
íngreme e escorregadio. Ao final do caminho, encontram-se umas cem jardas de pedras
e cascalho, mesmo quando a maré está alta. Em alguns pontos, porém, curvas e buracos
criam piscinas maravilhosas, renovadas a cada vazão. Esta admirável praia se estende
por algumas milhas em cada direção, salvo apenas em um ponto onde a pequena baía
e a vila de Fulworth despontam.
Minha moradia é solitária. Eu, minha arrumadeira e minhas abelhas temos a
propriedade toda para nós. Meia milha abaixo, porém, está o famoso estabelecimento
de tutoria de Harold Stackhurst, o Gables, bem grande o lugar, com uma contagem alta
de jovens membros se preparando para várias profissões e com uma equipe de muitos
mestres. O próprio Stackhurst foi um campeão de canoagem nos idos tempos e um
acadêmico versátil. Ele e eu sempre fomos amigáveis, desde o dia em que cheguei à
costa e ele era o único homem com quem tinha intimidade o suficiente para que
pudéssemos nos visitar durante as tardes sem um convite.
Próximo ao fim de julho de 1907, houve uma severa ventania, o vento soprava o
canal, amontoando o mar na base das falésias e deixando uma lagoa na virada da maré.
Na manhã da qual falo, o vento havia diminuído, e toda a Natureza estava limpa e
renovada. Era impossível trabalhar em um dia tão agradável, então passeei um pouco
antes do café da manhã para aproveitar o tão primoroso ar. Caminhei pelo caminho da
falésia que levava à descida para a praia. Enquanto andava, escutei um grito às minhas
costas e lá estava Harold Stackhurst balançando as mãos em um caloroso cumprimento.
— Que manhã, Sr. Holmes! Achei que o veria caminhando andando.
— Vejo que está indo nadar.
— Você e seus velhos truques novamente. — Riu ele, dando tapinhas em seu
bolso saliente. — Sim. McPherson começou cedo, e espero o encontrar lá.
Fitzroy McPherson era um mestre da ciência, um íntegro e jeitoso jovem que teve
a vida prejudicada por um problema de coração seguido de febre reumática. Porém, ele
era um atleta natural e se sobressaía em qualquer jogo que não o pressionasse muito.
No verão e no inverno ele ia nadar, e, como também sou nadador, por diversas vezes o
acompanhei.
Naquele momento vimos o homem, sua cabeça aparecendo na beira da falésia,
onde o caminho acabava. Depois, todo seu corpo apareceu no topo, cambaleando como
um bêbado. No instante seguinte, ele jogou as mãos para cima e, com um brado horrível,
caiu por sobre o rosto. Stackhurst e eu nos apressamos à frente — talvez umas cinquenta
jardas — e o viramos de costas. Ele obviamente estava morrendo. Aqueles olhos fundos
e vidrados e as bochechas de um pálido pavoroso não poderiam significar outra coisa.
Um feixe de vida passou por seu rosto por um instante, e ele proferiu duas ou três
palavras como um anseio de aviso. Elas eram distorcidas e indistintas, mas aos meus
ouvidos, as últimas, que saíram como um grito de seus lábios, eram “a Juba-de- Leão”.
Era absolutamente irrelevante e ininteligível e, ainda assim, eu não conseguia torcer o
som em nenhum outro sentido. Então, ele se levantou do chão pela metade, jogou os
braços no ar e caiu de lado. Estava morto.
Meu companheiro estava paralisado pelo súbito horror, mas eu, como muitos
poderiam bem imaginar, estava com todos os sentidos em alerta. E eu precisava estar,
visto que rapidamente se tornou evidente que estávamos na presença de um caso
extraordinário. O homem estava vestido apenas em seu sobretudo Burberry, calças e um
par de sapatos de tecidos desamarrados. Quando ele caiu, seu Burberry, que havia sido
simplesmente jogado ao redor de seus ombros, escorregou, expondo seu torso. Nós
olhamos aquilo com espanto. Suas costas estavam cobertas com linhas vermelho-escuro
como se ele tivesse sido açoitado por um flagelo de arame. O instrumento com que essa
punição havia sido infringida era claramente flexível, já que as longas e raivosas curvas
se estendiam arredondadas por seus ombros e costelas. Havia sangue escorrendo por
sobre seu queixo, pois ele havia mordido seu lábio inferior no paroxismo de sua agonia.
Sua face exaurida e distorcida dizia o quão horrível aquela agonia havia sido.
Eu estava ajoelhado e Stackhurst estava de pé perto do corpo quando uma
sombra se lançou por nós e descobrimos que Ian Murdoch estava ao nosso lado.
Murdoch era o tutor de matemática no estabelecimento, um homem alto, escuro e magro,
tão taciturno e distante que não se pode dizer que alguém já foi seu amigo. Parecia viver
em uma região elevada, onde absurdos matemáticos e seções cônicas pouco o
conectavam à vida cotidiana. Os estudantes o achavam bizarro, e ele até teria sido alvo
de piadas, não fosse o estranho sangue do homem, que se mostrava não apenas em
seus olhos de carvão e seu rosto escuro, mas também nos estouros ocasionais de
temperamento, que só podiam ser descritos como ferozes. Em certa ocasião, tendo sido
atormentado por um pequeno cachorro que pertencia a McPherson, capturou a criatura
e a atirou pela janela de vidro, ação pela qual certamente Stackhurst teria lhe dado uma
carta de dispensa se ele não fosse um professor valioso. Tão estranho e complexo era
o homem que agora aparecia ao nosso lado. Ele parecia estar honestamente chocado
com o acontecimento, embora o incidente com o cachorro pudesse mostrar que não
existia muita simpatia entre ele e o defunto.
— Pobre homem! Pobre homem! O que posso fazer? Como posso ajudar?
— Você estava com ele? Consegue nos dizer o que aconteceu?
— Não, não, eu estava atrasado esta manhã. Não estava nem na praia. Venho
direto do Gables. O que posso fazer?
— Você pode correr até a estação de polícia em Fulworth. Relate o ocorrido.
Sem dizer uma palavra ele fugiu a toda velocidade e eu continuei a lidar com a
situação, enquanto Stackhurst, aturdido pela tragédia, ficou perto do corpo. Minha
primeira tarefa era, naturalmente, notar quem estava na praia. Do alto do caminho eu
conseguia realizar uma varredura completa, e a praia estava completamente deserta,
salvo aquelas duas ou três figuras escuras que podiam ser vistas se movendo em direção
à vila de Fulworth. Tendo me satisfeito com este ponto, desci devagar o caminho. Havia
argila ou marga mole misturada ao calcário e aqui e ali eu vi as mesmas pegadas, ambas
subindo e descendo. Ninguém havia ido à praia por este percurso naquela manhã. Em
dado lugar, observei a marca de uma mão aberta com os dedos em direção ao declive.
Isso só poderia significar que o pobre McPherson havia caído enquanto subia. Também
havia buracos arredondados, que sugeriam que ele havia caído de joelhos mais de uma
vez. Ao final do caminho estava a grande lagoa, deixada pelo recuo da maré. Próximo
ao local, McPherson havia se despido, pois lá estava sua toalha em uma pedra. Estava
dobrada e seca, parecendo então, afinal, que ele nunca havia entrado na água. Uma ou
duas vezes, enquanto eu caçava ao redor do cascalho endurecido, passei por pequenos
amontoados de areia onde a marca de seu sapato de tecido, e também de seu pé,
podiam ser vistos. Este último fato provou que ele estava com tudo pronto para o banho,
embora a toalha indicasse que nunca o havia feito.
E ali estava o problema claramente definido — tão estranho quanto qualquer outro
que já havia me confrontado. O homem não havia estado na praia por mais de um quarto
de hora. Stackhurst havia o seguido vindo do Gables, então não havia dúvidas quanto a
isso. Ele havia saído para um banho e havia se despido, como as pegadas sem sapato
indicavam. Então, ele de repente correu de volta para as roupas — todas desarrumadas
e soltas — e retornou sem se banhar ou sem se secar de forma alguma. E teria sido a
razão para essa mudança de intenção ele ter sido açoitado de uma forma selvagem e
inumana, torturado até que mordeu seus lábios em agonia e só ter tido força suficiente
para rastejar e morrer. Quem teria feito essa barbárie? Havia, por certo, pequenas grutas
e cavernas na base da falésia, mas o sol baixo brilhava diretamente sobre elas, e não
havia lugar algum para se esconder. Também havia aquelas figuras distantes na praia.
Elas pareciam muito longínquas para estarem conectadas com o crime e a grande lagoa
na qual McPherson tinha intenção de nadar estava entre eles, cercada por pedras. No
mar, dois ou três barcos pesqueiros não estavam muito longe. Seus ocupantes poderiam
ser examinados se quiséssemos. Havia vários caminhos a serem seguidos, mas nenhum
que levasse a um objetivo óbvio.
Quando, por fim, retornei ao corpo, vi que um pequeno grupo de transeuntes
curiosos havia se amontado ao seu redor. Stackhurst de certo ainda estava lá, e Ian
Murdoch tinha acabado de chegar com Anderson, o policial da vila, um homem grande,
de bigode ruivo e da raça lenta e sólida de Sussex — uma raça que cobre muito bom
senso com um exterior pesado e silencioso. Ele escutou tudo, tomou nota de tudo o que
dissemos e, finalmente, me chamou.
— Ficaria feliz com um conselho seu, Sr. Holmes. Isso tudo é muito para eu
lidarque eu lide, e serei repreendido por Lewes se eu errar.
Aconselhei-o a contactar seu superior imediato e também um médico; assim como
a não deixar que nada fosse movido e que o menor número possível de novas pegadas
fosse feito até que eles chegassem. No meio tempo, vasculhei os bolsos do morto. Lá
estavam seu lenço, uma larga faca e uma pequena carteira dobrável. Dela, um pedaço
de papel se projetava. Desdobrei-o e entreguei ao policial. Havia escrito, em um rabisco
de uma mão feminina:

Estarei lá, pode ter certeza.


— Maudie.

Parecia um caso amoroso, com uma assinatura, porém o onde e o quando


faltavam. O policial o devolveu à carteira e a retornou junto dos outros objetos para os
bolsos do Burberry. Então, com nada mais a fazer, caminhei de volta à minha casa para
o café da manhã, antes me certificando que a base das falésias seria cuidadosamente
vasculhada.
Stackhurst estava de volta em uma hora ou duas para me dizer que o corpo havia
sido removido para o Gables, onde o inquérito seria feito. Trouxe com ele notícias sérias
e definitivas. Como eu esperava, nada havia sido encontrado nas pequenas cavernas
sob a falésia, mas ele havia examinado os papéis na mesa de McPherson e havia vários
que mostravam uma correspondência íntima com uma certa Srta. Maud Bellamy, de
Fulworth. Tínhamos, então, estabelecido a identidade da escritora da nota.
— A polícia tem as cartas, — ele explicou — eu não as pude trazer. Mas não há
dúvidas de que era um caso amoroso sério. Porém, não vejo nenhuma razão para
conectar isso com aquele acontecimento horrível, salvo, de fato, que a dama havia
marcado um encontro com ele.
— Mas dificilmente em uma piscina que todos têm o hábito de usar. — Comentei.
— É uma coincidência — disse ele — que vários estudantes não estavam com
McPherson.
— Apenas uma coincidência?
Stackhurst serrou as sobrancelhas, pensando.
— Ian Murdoch os segurou. — Disse — Ele insistiu em alguma demonstração
algébrica antes do café da manhã. Pobre homem, ele está terrivelmente agitado com
tudo isso.
— Ainda assim, ouvi que eles não eram amigos.
— Em dado momento eles não eram. Mas por um ano ou mais, Murdoch estava
mais próximo de McPherson do que ele poderia estar de qualquer outra pessoa. Ele não
é das disposições mais simpáticas por natureza.
— Então entendo. Acho que lembro de você me contar sobre uma briga causada
pelos maus tratos a um cachorro.
— Aquilo foi explosão a noite toda.
— Mas deixou sentimentos de vingança, talvez.
— Não, não, tenho certeza de que eles eram amigos de verdade.
— Bem, então temos que explorar a questão da garota. Você a conhece?
— Todo mundo a conhece. Ela é a beldade da vizinhança — uma verdadeira
beleza, que chamaria atenção em qualquer lugar. Eu sabia que McPherson se sentia
atraído por ela, mas não tinha noção de que tinha ido tão longe quanto essas cartas
parecem indicar.
— Mas quem é ela?
— Ela é a filha do velho Tom Bellamy, que é dono de todos os barcos e máquinas
de nado em Fulworth. Ele começou como pescador, mas agora é um homem de certa
estabilidade. Ele e o filho William dirigem os negócios.
— Devemos ir a Fulworth vê-los?
— Com qual pretexto?
— Ah, facilmente conseguimos achar um pretexto. Afinal, esse pobre homem não
se maltratou desta forma ultrajante. Alguma mão humana estava no controle daquele
flagelo, se realmente foi um flagelo que infringiu aquelas lesões. O círculo de conhecidos
dele neste local solitário certamente era limitado. Nos deixe seguir em todas as direções
e dificilmente não acharemos um motivo, o que nos levaria ao criminoso.
Teria sido uma caminhada agradável pelos Downs perfumados com tomilho se
nossas cabeças não estivessem envenenadas pela tragédia que presenciamos. A vila
de Fulworth ficava em um semicírculo oco que circundava a baía. Por detrás da
tradicional aldeia, várias casas modernas tinham sido construídas sobre a elevação do
chão. Era para uma dessas que Stackhurst me guiou.
— Esta é a Haven, como Bellamy a chama. É a casa com a torre na esquina e o
telhado de ardósia. Nada mal para um homem que começou com nada, mas — Por
Júpiter, olhe aquilo!
O portão do jardim da Haven se abriu e um homem apareceu. Não tinha como
confundir aquela figura alta, angular e desalinhada. Era Ian Murdoch, o matemático. Um
instante depois, o confrontamos na estrada.
—Olá! — disse Stackhurst. O homem acenou com a cabeça, nos lançou um olhar
de canto com seus curiosos olhos negros e teria passado por nós se o diretor não o
puxasse.
— O que você está fazendo aqui? — perguntou.
O rosto de Murdoch esquentou com raiva.
— Sou seu subordinado, senhor, sobre o seu teto. Não estou ciente de que te
devo nenhuma explicação sobre minha vida pessoal.
Os nervos de Stackhurst estavam à flor da pele depois de tudo pelo que passou.
Caso contrário, ele teria esperado. Mas tinha perdido completamente a paciência.
— Nestas circunstâncias sua resposta é pura impertinência, Sr. Murdoch.
— Sua pergunta talvez passe pelo mesmo problema.
— Esta não é a primeira vez que eu tenho que fazer vista grossa para seus modos
insubordinados. Certamente será a última. Você, por obséquio, arrumará outros projetos
para seu futuro o mais rápido que puder.
— É o que eu queria fazer. Perdi hoje a única pessoa que fazia o Gables habitável.
Ele saiu marchando, seguindo seu caminho, enquanto Stackhurst, com olhos
raivosos, ficou lhe encarando.
— Não é ele um homem impossível e intolerável? — lamentou.
A única coisa que ficou forçadamente gravada em minha mente foi que o Sr. Ian
Murdoch estava aproveitando a primeira abertura que conseguiu achar para escapar da
cena do crime. Suspeito, vago e nebuloso, estava agora começando a tomar forma em
minha mente. Talvez a visita aos Bellamys esclarecesse o assunto. Stackhurst se
controlou e fomos em frente até a casa.
O Sr. Bellamy se mostrou um homem de meia-idade com uma barba vermelho-
flamejante. Ele parecia estar em um terrível mau humor, e seu rosto rapidamente ficou
da cor de seu cabelo.
— Não, senhor, não quero saber de conversa particular. Meu filho — indicando
um jovem forte, com um rosto pesado e rabugento, parado ao canto da sala de estar —
está de acordo comigo que a atenção do Sr. McPherson dada à filha era um insulto. Sim,
senhor, a palavra “casamento” nunca foi mencionada, e ainda assim eles trocavam
cartas e se encontravam e muito mais que nenhum de nós poderia aceitar. Ela não tem
mãe e nós somos seus únicos guardiões. Estamos determinados —
Mas as palavras sumiram de sua boca quando a dama apareceu. Não havia como
contradizer que ela agraciava o mundo com sua presença. Quem poderia imaginar que
tão rara flor poderia desabrochar em um ambiente como aquele? Raramente mulheres
me atraíam, pois meu cérebro sempre governou meu coração, mas eu não poderia olhar
seu rosto perfeitamente desenhado, com todo o frescor dos Downs na coloração delicada
de sua face, sem me dar conta de que nenhum jovem rapaz cruzaria seu caminho
incólume. Essa era a garota que havia empurrado a porta e parava, com olhos bem
abertos e intensos, em frente a Harold Stackhurst.
— Eu já sei que Fitzroy está morto — disse ela. — Não tenha medo de me contar
os detalhes.
— Este outro cavalheiro nos contou as novidades — explicou o pai.
— Não há nenhuma razão para trazer minha irmã a este assunto. — Grunhiu o
filho.
A irmã lançou um olhar afiado, feroz, em sua direção.
— Isso é problema meu, William. Por obséquio me deixe cuidar dele da minha
maneira. De todo jeito, um crime foi cometido. Se eu puder ajudar a expor quem o fez, é
o mínimo que posso fazer por ele, que agora já se foi.
Ela escutou um breve resumo de meu companheiro, com uma serena
concentração que me mostrou que ela possuía grande caráter assim como grande
beleza.
Maud Bellamy sempre ficará na minha memória como a mais completa e extraordinária
mulher. Parecia que ela já me conhecia de vista, pois se virou para mim no final.
— Leve-os à justiça, Sr. Holmes. Você tem minha simpatia e minha ajuda, seja
quem eles forem.
Me pareceu que ela, de relance, olhou desafiadoramente para seu pai e irmão
enquanto falava.
— Muito obrigado — eu disse — Valorizo o instinto de uma mulher nestas
questões. Você usou a palavra “eles”. Acha que mais de um pode estar envolvido?
— Eu conhecia o Sr. McPherson bem o suficiente para saber que ele era um
homem forte e corajoso. Nenhuma única pessoa poderia jamais infringir tamanho ultraje
sobre ele.
— Podemos trocar uma palavra, a sós?
— Estou lhe dizendo, Maud, não se misture neste assunto. — Clamou seu pai,
raivosamente.
Ela me olhou desamparada.
— O que eu posso fazer?
— O mundo inteiro saberá dos presentes fatos, então não há mal algum discuti-
los aqui. — Eu disse. — Eu preferiria privacidade, mas se seu pai não permitirá, ele deve
compartilhar da deliberação. — Então falei da nota que havia sido achada nos bolsos do
morto — Certamente será apresentado no inquérito. Posso lhe pedir para elucidar da
forma que puder?
— Não vejo razão para mistério. — Respondeu ela. — Estávamos noivos, e só
mantivemos em segredo pois o tio de Fitzroy, que é muito velho e dizem estar para
morrer, poderia o ter deserdado se ele tivesse casado contra a vontade do tio. Não tinha
nenhuma outra razão.
— Você poderia ter nos contado. — Grunhiu o Sr. Bellamy.
— E eu teria, pai, se você algum dia tivesse mostrado empatia.
— Me oponho à minha garota ficar de papo com homens que não são da sua
classe social.
— Foi o seu preconceito contra ele que nos impediu de contarmos para você. E
sobre esse encontro — ela vasculhou em seu vestido e pegou uma nota amassada —
era em resposta a isso.

QUERIDA [segue a mensagem]:


O antigo local na praia logo após o pôr do sol na terça. É o único horário que consigo
fugir.
— F. M.

— Terça era hoje, e eu pretendia encontrá-lo à noite.


Virei o papel às avessas.
— Isso nunca foi enviado pelo correio. Como conseguiu?
— Eu preferiria não responder esta pergunta. De verdade, não tem nada a ver
com o assunto que você está investigando. Mas qualquer outra coisa que tenha a ver,
responderei sem rodeios.
Ela era tão boa quanto suas palavras, mas não possuía nada de útil para a
investigação. Não tinha nenhum motivo para achar que seu noivo cultivava inimigos
ocultos, mas ela admitiu que teve inúmeros admiradores acalorados.
— Posso perguntar se o Sr. Ian Murdoch era um deles?
Ela corou e pareceu confusa.
— Houve uma época em que achei que fosse. Mas tudo mudou quando ele
entendeu meu relacionamento com Fitzroy.
Novamente, a sombra que rondava esse estranho homem parecia assumir uma
forma mais definida para mim. Seu histórico deveria ser examinado. Seu quarto deveria
ser secretamente vasculhado. Stackhurst estava disposto a colaborar, pois também
começava a desconfiar. Retornamos da nossa visita ao Haven com a esperança de que
alguma ponta solta desse novelo já estivesse em nossas mãos.
Uma semana passou. O inquérito não havia esclarecido a questão e fora adiado
na espera de mais evidências. Stackhurst realizou um inquérito discreto sobre seu
subordinado, e houve uma busca inicial em seu quarto, mas sem resultado.
Pessoalmente, eu revisitei todo o cenário, tanto física quanto mentalmente, mas sem
novas conclusões. Em nenhuma de minhas crônicas o leitor vai achar um caso que me
levou tão completamente ao limite de meus poderes. Nem minha imaginação conseguia
conceber uma solução ao mistério. E então aconteceu o incidente do cachorro.
Foi minha velha arrumadeira que ouviu primeiro, do estranho telefone sem fio no
qual estas pessoas coletam informações no campo.
— História triste essa, senhor, sobre o cachorro do Sr. McPherson. — Disse ela,
numa tarde.
Eu não encorajo tais conversas, mas as palavras chamaram minha atenção.
— O que, sobre o cachorro do Sr. McPherson?
— Morto, senhor. Morreu de pesar pelo seu dono.
— Quem te disse isso?
— Ora, senhor, todos estão falando disso. Estava terrível e não comia nada há
uma semana. Então hoje, dois cavalheiros do Gables o encontraram morto na praia,
senhor, no mesmo exato lugar onde seu mestre encontrou o fim.
“No exato lugar”. As palavras soaram claras em minha memória. Uma percepção
nublada de que este assunto era vital começava a crescer em minha mente. Que o
cachorro deveria morrer era apenas a bela e leal natureza dos cães. Mas “no exato
lugar”! Por que essa praia solitária era fatal? Seria possível que ele havia sido sacrificado
em uma rixa vingativa? Seria possível?— Sim, a percepção era nublada, mas algo já se
construía em minha mente. Em poucos minutos eu já estava a caminho do Gables, onde
encontrei Stackhurst em seu escritório. A meu pedido, ele mandou buscar Sudbury e
Blount, os dois alunos que haviam encontrado o cachorro.
— Sim, estava caído bem na beirada da piscina — disse um deles. — Deve ter
seguido o rastro do seu mestre morto.
Vi a pequena e leal criatura, um Airedale Terrier, colocado em um tapete no
corredor. O corpo estava duro e rígido, os olhos saltados e os membros contorcidos.
Havia agonia em cada linha dele.
Do Gables, caminhei até a piscina. O sol havia se posto e a sombra da grande
falésia se projetava escura por cima da água, que brilhava tediosamente como uma folha
de mercúrio. O lugar estava deserto e não havia sinal de vida, salvo por duas aves
marinhas circulando e berrando em cima de minha cabeça. Na luz desvanecente, eu
conseguia nebulosamente construir o rastro da areia até a mesma pedra que a toalha de
seu mestre havia sido colocada. Parei em meditação por um longo tempo, enquanto as
sombras cresciam mais densas ao meu redor. Minha mente estava inundada de rápidos
pensamentos. Você saberia como é estar em um pesadelo no qual você sente que há
algo de suma importância pela qual você procura e você sabe que está lá, porém
permanece para sempre fora de seu alcance. Assim eu me sentia naquela tarde,
enquanto ficava sozinho parado ao lado do lugar da morte. Então, por fim, me virei e
caminhei vagarosamente até minha casa.
Eu havia chegado ao topo do caminho quando veio até mim. Como um flash,
lembrei da coisa pela qual eu, com entusiasmo, havia me agarrado em vão. Você saberá,
ou Watson escreveu em vão, que eu possuo um vasto arsenal de conhecimento de todas
as áreas sem um sistema científico, mas muito disponível para as necessidades de meu
trabalho. Minha mente é como um armazém superlotado de pacotes de todas as formas
arrumados nele — tantos que eu talvez tenha uma vaga percepção do que está lá. Eu
sabia que havia algo com relação ao caso. Ainda era vago, mas pelo menos eu sabia
como esclarecê-lo. Era monstruoso, incrível, e ainda assim era sempre uma
possibilidade. Eu testaria até o final.
Possuo uma grande torre em minha pequena casa que é estufada de livros. Foi
nisso que eu mergulhei e revirei por uma hora. No final desse tempo, emergi com um
pequeno volume prata e chocolate. Avidamente achei o capítulo do qual eu tinha uma
lembrança nublada. Sim, era de fato uma proposição rebuscada e improvável, e, mesmo
assim, eu não poderia descansar até ter certeza de que poderia, de fato, ser verdade.
Estava tarde quando me recolhi, com minha mente ávida esperando o trabalho de
amanhã.
Mas este trabalho veio com uma irritante interrupção. Eu mal havia terminado de
engolir minha xícara de chá matinal e estava indo à praia quando recebi uma ligação do
Inspetor Bardle da polícia de Sussex — um homem firme, robusto, com a compleição de
um touro e olhos gentis, que agora mirava-me com uma expressão muito atribulada.
— Conheço sua imensa experiência, senhor — disse. — Isso é parcialmente não
oficial, claro, e não precisa ir mais longe. Mas estou particularmente inclinado neste caso
do McPherson. A questão é: devo eu efetuar a prisão ou não?
— Você diz do Sr. Ian Murdoch?
— Sim, senhor. Não há mais ninguém quando paramos para pensar. Essa é a
vantagem desta solitude. Reduzimos a lista a um pequeno compasso. Se não foi ele,
quem foi?
— O que você tem contra ele?
Ele havia colhido os mesmos sulcos que eu. Havia o caráter de Murdoch e o
mistério que parecia pairar ao redor do homem. Os estouros furiosos de seu
temperamento, como o incidente do cão demonstrava. O fato dele ter brigado com
McPherson no passado, e havia motivos para achar que ele havia resignado sua atenção
à Srta. Bellamy. Ele compartilhava dos mesmos fatos que eu, mas não possuía nenhum
novo, apenas que Murdoch parecia estar fazendo todos os preparativos para sua partida.
— Como eu ficaria se o deixasse fugir com toda essa evidência contra ele? — O
homem corpulento e fleumático estava com a mente dolorosamente perturbada.
— Considere — eu disse — todos os buracos essenciais em seu caso. Na manhã
do crime, ele certamente pode comprovar um álibi. estava com seus alunos até o último
instante, e depois de alguns minutos de McPherson aparecer, ele veio até nós por trás.
Então lembre da absoluta impossibilidade de sozinho infringir este ultraje em um homem
tão forte quanto ele. Finalmente, há a questão do instrumento que infringiu esses
ferimentos.
— O que poderia ser senão um flagelo ou um chicote flexível de algum tipo?
— Você examinou as marcas? — perguntei.
— Eu as vi. Bem como o médico.
— Mas eu as examinei cuidadosamente com uma lente. Elas têm certas
particularidades.
— Quais, Sr. Holmes?
Fui ao meu escritório e voltei com uma fotografia aumentada.
— Este é meu método em casos como este. — Expliquei.
— Você certamente faz as coisas cuidadosamente, Sr. Holmes.
— Eu dificilmente seria quem sou se não o fizesse. Agora, consideremos esta
marca que se estende ao redor do ombro direito. Você não vê nada de extraordinário?
— Não consigo dizer. Você consegue?
— Certamente é evidente que são diferentes em intensidade. Há uma gota de
sangue extravasado aqui, e outra ali. Há outras indicações neste machucado aqui
embaixo. O que isso pode significar?
— Não faço ideia. Você sabe?
— Talvez sim. Talvez não. Poderei dizer mais em breve. Qualquer coisa que
possa definir o que fez aquelas marcas nos levará direto ao criminoso.
— É, claro, uma ideia absurda — disse o policial — mas se um arame escaldado
tivesse sido batido nas costas, então estes pontos mais definidos representariam onde
as linhas se cruzaram.
— Uma comparação muito engenhosa. Ou digamos um chicote gato-de-nove-
caudas muito rígido com pequenos nós duros sobre ele?
— Por Júpiter, Sr. Holmes, acho que você acertou.
— Ou talvez tenha sido algo completamente diferente, Sr. Bardle. Mas seu caso
é demasiado fraco para uma prisão. Além disso, temos aquelas últimas palavras — a
“Juba- de- Leão”.
— Fiquei me perguntando o que Ian…
— Sim, eu considerei isso. Se a segunda palavra tivesse tido alguma semelhança
com Murdoch — mas não teve. Foi quase em num grito. Tenho certeza de que foi “Juba”.
— Você não tem alternativas, Sr. Holmes?
— Talvez eu tenha. Mas não quero discutir sobre isso até que eu tenha algo mais
sólido para discutir.
— E isso será quando?
— Em uma hora, possivelmente menos.
O inspetor esfregou seu queixo e me olhou duvidosamente.
— Eu gostaria de poder ver o que se passava em sua mente, Sr. Holmes. Talvez
sejam aqueles barcos de pesca.
— Não, não, eles estavam muito longe.
— Bem, então é Bellamy e aquele filho grandalhão dele? Eles não eram muito
amigáveis com o Sr. McPherson. poderiam ter lhe causado algum mal?
— Não, não, você não me convencerá até que eu esteja pronto — disse eu com
um sorriso. — Agora, inspetor, cada um de nós tem seu próprio trabalho a fazer. Talvez
se você se encontrasse comigo aqui ao meio-dia…
Havíamos chegado até esse ponto quando ocorreu a tremenda interrupção que
foi o começo do fim.
Minha porta externa foi arreganhada e aberta, havia passos desajeitados no
corredor, e Ian Murdoch entrou cambaleante no quarto, pálido, desgrenhado, suas
roupas em completa desordem, agarrando-se aos móveis com suas mãos ossudas para
se manter em pé.
— Conhaque! Conhaque! — ele ofegou e caiu gemendo no sofá. não estava
sozinho. Atrás dele veio Stackhurst, sem chapéu e ofegante, quase tão desorientado
quanto seu companheiro.
— Sim, sim, conhaque! — ele gritou. — O homem está nas últimas. Foi tudo o que
consegui fazer, trazê-lo até aqui. Ele desmaiou duas vezes no caminho.
Meio copo de aguardente bruta provocou uma mudança incrível. Ele se apoiou em
um braço e retirou o casaco dos ombros.
— Pelo amor de Deus, óleo, ópio, morfina! — ele exclamou. — Qualquer coisa
para aliviar esta agonia infernal!
O inspetor e eu gritamos ao ver aquilo. Ali, entrelaçado no ombro nu do homem,
estava o mesmo estranho padrão reticulado de linhas vermelhas inflamadas que havia
sido a marca da morte de Fitzroy McPherson.
A dor era evidentemente terrível e não se limitava apenas a uma área específica,
pois a respiração do sofredor parava por um tempo, seu rosto ficava negro e, então, com
suspiros altos, ele colocava a mão no peito, enquanto a testa pingava gotas de suor. A
qualquer momento, ele poderia morrer. Mais e mais conhaque foi despejado em sua
garganta, cada nova dose o trazendo de volta à vida. Chumaços de algodão embebidos
em azeite pareciam aliviar a agonia das estranhas feridas. Por fim, sua cabeça caiu
pesadamente sobre a almofada. A Natureza exausta havia buscado refúgio em seu
último depósito de vitalidade. Era meio sono e meio desmaio, mas pelo menos era um
alívio da dor.
Questioná-lo havia sido impossível, mas assim que tivemos certeza de sua
condição, Stackhurst se voltou para mim.
— Meu Deus! — ele exclamou — o que é isso, Holmes? O que é isso?
— Onde você o encontrou?
— Na praia. Exatamente onde o pobre McPherson encontrou seu fim. Se o
coração deste homem fosse tão fraco quanto o de McPherson, ele não estaria aqui
agora. Mais de uma vez pensei que tivesse falecido quando o levava para cima. Era
muito longe até o Gables, então vim procurar você.
— Você o viu na praia?
— Eu estava caminhando no penhasco quando ouvi o grito dele. Ele estava na
beira da água, cambaleando como um homem bêbado. Desci correndo, joguei algumas
roupas sobre ele e o trouxe para cima. Pelo amor de Deus, Holmes, use todos os poderes
que você tem e não poupe esforços para livrar esse lugar dessa maldição, pois a vida
está se tornando insuportável. Você, com toda a sua reputação mundial, não pode fazer
nada por nós?
— Acredito que posso, Stackhurst. Venha comigo agora! E você, inspetor, venha
junto! Veremos se não podemos colocar este assassino em suas mãos.
Deixando o homem inconsciente sob os cuidados da minha arrumadeira, nós três
descemos até a lagoa mortal. Na praia, havia um pequeno monte de toalhas e roupas
deixadas pelo homem aflito. Lentamente, caminhei em volta da água, meus camaradas
em fila indiana atrás de mim. A maior parte da piscina era rasa, mas sob o penhasco,
onde a praia era escavada, tinha quatro ou cinco pés de profundidade. Era para essa
parte que um nadador naturalmente iria, pois formava uma bela piscina verde pelúcida,
clara como cristal. Uma linha de rochas ficava acima dela, na base do penhasco, e por
ali eu segui, espiando ansiosamente as profundezas abaixo de mim. Eu tinha alcançado
a piscina mais profunda e tranquila quando meus olhos encontraram o que estavam
procurando, e eu soltei um grito de triunfo.
— Cyanea! — eu exclamei. — Cyanea! Veja a Juba-de-Leão!
O estranho objeto ao qual apontei realmente parecia uma massa emaranhada
arrancada da juba de um leão. Repousava em uma prateleira rochosa a cerca de três
pés abaixo da água, uma criatura cabeluda curiosa, ondulante e vibrante, com estrias
prateadas entre suas mechas amarelas. Pulsava com uma dilatação e contração lenta e
pesada.
— Já causou estragos suficientes. Seu dia acabou! — eu exclamei. — Ajude-me,
Stackhurst! Vamos acabar com o assassino de uma vez por todas.
Havia uma grande pedra logo acima do parapeito, e a empurramos até que caísse
com um estrondo tremendo na água. Quando as ondulações se dissiparam, vimos que
ela tinha se assentado no parapeito abaixo. Uma borda flácida de membrana amarela
mostrava que nossa vítima estava embaixo dela. Uma espessa espuma oleosa vazava
por baixo da pedra e manchava a água ao redor, subindo lentamente à superfície.
— Bem, isso me surpreende! — exclamou o inspetor. — O que era isso, Sr.
Holmes? Sou nascido e criado por aqui, mas nunca vi algo assim. Isso não pertence a
Sussex.
— E que bom para Sussex — comentei. — Pode ter sido o vendaval do sudoeste
que o trouxe à tona. Voltem para minha casa, os dois, e vou lhes contar a terrível
experiência de alguém que tem boas razões para lembrar seu próprio encontro com o
mesmo perigo dos mares.
Quando chegamos ao meu escritório, constatamos que Murdoch estava se
recuperando o suficiente para ficar sentado. Sua mente estava confusa e, de tempos em
tempos, era sacudido por uma crise de dor. Em palavras entrecortadas, ele explicou que
não tinha ideia do que lhe tinha acontecido, exceto que dores terríveis o atingiram
subitamente e que foi preciso toda a sua coragem para chegar à margem.
— Aqui está um livro — disse eu, pegando o pequeno volume — que esclareceu
o que poderia ter sido eternamente obscuro. É Out of Doors, do famoso observador J.
G. Wood. Ele quase pereceu em contato com essa criatura repugnante, então escreveu
com um conhecimento muito amplo. Cyanea capillata é o nome completo do malfeitor, e
ele pode ser tão perigoso para a vida quanto, e muito mais doloroso do que, a mordida
de cobra. Deixe-me dar um resumo deste trecho.

Se o banhista avistar uma massa solta e arredondada de membranas e fibras


alaranjadas, algo parecido com grandes punhados de juba-de-leão e papel prateado,
que ele tenha cuidado, pois este é o temível aguilhão, Cyanea capillata.

Poderia nosso sinistro conhecido ser descrito de maneira mais clara?


— Ele continua a contar sobre seu próprio encontro com um deles ao nadar na
costa de Kent. descobriu que a criatura irradiava filamentos quase invisíveis a uma
distância de cinquenta pés, e qualquer pessoa dentro dessa circunferência a partir do
centro mortal estava em perigo de morte. Mesmo a uma certa distância, o efeito sobre
Wood foi quase fatal.
“Os inúmeros fios causavam linhas escarlates claras na pele, que, ao serem
examinadas de perto, se transformavam em pontos minúsculos ou pústulas, sendo que
cada ponto parecia carregado de uma agulha incandescente abrindo caminho pelos
nervos.”

— A dor local era, como ele explica, a parte menos significativa do tormento
esquisito.

"Pontadas percorriam o peito, fazendo-me cair como se atingido por uma bala. A
pulsação cessaria e, em seguida, o coração daria seis ou sete saltos, como se
quisesse romper o peito.

— Isso quase o matou, embora ele só tenha sido exposto a isso no oceano
agitado, e não nas águas calmas e estreitas de uma piscina. Ele diz que mal conseguia
se reconhecer depois, com o rosto pálido, enrugado e encolhido. Bebeu conhaque, uma
garrafa inteira, e parece que isso salvou sua vida. Aqui está o livro, inspetor. Deixo-o com
você, e não pode duvidar que ele contém uma explicação completa da tragédia do pobre
McPherson.
— E coincidentemente me exonera — observou Ian Murdoch com um sorriso
irônico. — Não culpo você, inspetor, nem você, Sr. Holmes, suas suspeitas eram
naturais. Sinto que, na véspera de minha prisão, só me livrei ao compartilhar o destino
de meu pobre amigo.
— Não, Sr. Murdoch. Eu já estava no rastro e, se tivesse saído tão cedo quanto
pretendia, poderia muito bem tê-lo salvado dessa experiência terrível.
— Mas como você sabia, Sr. Holmes?
— Sou um leitor onívoro com uma memória estranhamente retentiva para detalhes
insignificantes. Aquela frase, “a Juba-de-Leão”, assombrava minha mente. Eu sabia que
a tinha visto em algum lugar, em um contexto inesperado. Você viu que ela descreve a
criatura. Não tenho dúvidas de que ela estava flutuando na água quando McPherson a
viu, e que essa frase era a única pela qual ele poderia nos transmitir um aviso sobre a
criatura que foi a causa de sua morte.
— Então, pelo menos, estou inocentado — disse Murdoch, levantando-se
lentamente. — Há algumas palavras de explicação que devo dar, pois sei em que direção
suas investigações se dirigiram. É verdade que eu amava a dama, mas, desde o dia em
que ela escolheu meu amigo McPherson, meu único desejo era ajudá-la a ser feliz. Eu
estava completamente satisfeito em me afastar e agir como intermediário entre eles.
Muitas vezes eu levava as mensagens deles, e era porque eu estava em sua
confiança e porque ela era tão querida para mim que me apressei em contar a ela sobre
a morte do meu amigo, para que ninguém me antecipasse de maneira mais repentina e
insensível. Ela não contaria a você, senhor, sobre nossas relações, para não desaprovar
e me fazer sofrer. Mas, com sua permissão, devo tentar voltar para o Gables, pois minha
cama será muito bem-vinda.
Stackhurst estendeu a mão.
— Nossos nervos estavam todos aflorados — disse ele. — Perdoe o que passou,
Murdoch. Nos entenderemos melhor no futuro. — Eles saíram juntos, com os braços
entrelaçados de maneira amigável. O inspetor permaneceu, me encarando em silêncio,
com seus olhos de boi.
— Bem, você conseguiu! — ele exclamou por fim. — Eu já tinha ouvido falar de
você, mas nunca acreditei. É maravilhoso!
Fui obrigado a balançar a cabeça. Aceitar elogios assim seria diminuir meus próprios
padrões.
— Fui lento no começo, culposamente lento. Se o corpo tivesse sido encontrado
na água, dificilmente eu teria perdido. Foi a toalha que me enganou. O pobre homem
nunca pensou em se secar, e assim, por sua vez, fui levado a acreditar que ele nunca
havia estado na água. Por que, então, o ataque de qualquer criatura aquática me
ocorreria? Foi aí que me equivoquei. Ora, ora, inspetor, muitas vezes me atrevi a fazer
brincadeiras com vocês, senhores da polícia, mas Cyanea capillata quase vingou a
Scotland Yard.
Tradutora: Júlia Baltar de Brito
Revisor: Eduardo Lisovski Schmidt

Paratexto

Em “A Aventura da Inquilina de Rosto Velado”, Watson narra o caso de uma


mulher que possui a face desfigurada, e os motivos que levaram a tal tragédia. A Sra.
Merrilow, uma mulher que aluga um quarto de sua casa para a Sra. Ronder, procura o
detetive pois está preocupada com a saúde mental de sua inquilina, cujo passado é, até
então, desconhecido a ela. Ao longo do conto, Sherlock e Watson tentam reconstruir um
antigo caso que poderia estar relacionado à queixa da mulher. Durante o encontro com
a inquilina, suas reminiscências revelam ao leitor a solução do mistério.
Nesta tradução, optou-se por preservar o estilo literário de Sir Arthur Conan Doyle,
mantendo, tanto quanto possível, as reincidências de certos termos, a disposição das
frases e as escolhas literárias como no conto em língua inglesa — evidenciadas no trecho
“Como mantinha animais enjaulados, a mulher parecia, por uma punição do destino, ter
se tornado ela mesma um animal enjaulado”.

Perfil da tradutora

Julia Baltar de Brito possui formação em tradução pelo Curso de Bacharelado da


Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e prática
profissional em revisão literária e tradução generalista. Ao longo de sua trajetória
acadêmica, adquiriu experiência docente ao atuar em escolas de ensino básico, área de
interesse à qual se dedica, além da tradução literária.
A AVENTURA DA INQUILINA DE ROSTO VELADO

Ao considerar-se que o Sr. Sherlock Holmes praticou a profissão por vinte e três
anos, e que durante dezessete deles eu pude colaborar com ele e fazer anotações de
seus feitos, fica evidente que eu possuo um vasto material à minha disposição. O
problema nunca foi encontrar, mas escolher. Há a extensa fileira de anuários que ocupa
uma prateleira, e há as maletas repletas de documentos, uma mina de ouro para aquele
que estuda não apenas o crime, como também os escândalos sociais e oficiais do fim da
Era Vitoriana. A respeito desses últimos, posso dizer que aqueles que escrevem cartas
angustiadas, que imploram que a honra de suas famílias ou que a reputação de seus
antepassados não sejam feridas, não têm nada a temer. A discrição e o profundo senso
de honra profissional que sempre representaram meu amigo ainda estão presentes na
escolha dessas memórias, e não haverá abuso de confiança. Eu condeno fortemente,
no entanto, as tentativas que têm sido feitas recentemente de conseguir acessar e
destruir esses documentos. A origem desses ultrajes é conhecida e, se eles se repetirem,
eu tenho a permissão do Sr. Holmes para dizer que toda a história a respeito do político,
do farol e do corvo-marinho treinado será revelada ao público. Há, pelo menos, um leitor
que irá entender.
Não é plausível supor que cada um desses casos deu a Holmes a oportunidade
de mostrar os curiosos dons de instinto e observação que eu me empenhei para
demonstrar nestas memórias. Às vezes, ele tinha que se esforçar muito para colher os
frutos, às vezes eles caíam do céu. Contudo, as mais terríveis tragédias humanas
estavam frequentemente presentes nos casos que lhe surtiam menos oportunidades
pessoais, e é um desses que eu desejo registrar agora. Ao narrá-lo, fiz uma pequena
alteração dos nomes e locais, mas, tirando isso, os acontecimentos são exatamente
como descritos.
Certa manhã — no final de 1896 — eu recebi um bilhete urgente de Holmes
solicitando minha presença. Ao chegar, encontrei-o sentado em uma atmosfera nublada
por fumaça e acompanhado de uma mulher mais velha, robusta e de ar maternal, do tipo
proprietária, sentada na cadeira à sua frente.
— Essa é a Sra. Merrilow, de South Brixton — disse meu amigo com um aceno
de mão. — A Sra. Merrilow não tem objeções ao tabaco, Watson, se você quiser se
satisfazer com seus hábitos repulsivos. Ela tem uma história interessante para contar,
que pode muito bem levar a outros desdobramentos em que sua presença pode ser útil.
— Como eu puder ajudar...
— Entenda, Sra. Merrilow, que se eu for até a Sra. Ronder, prefiro ter uma
testemunha. Faça com que ela compreenda isso antes de chegarmos.
— Que o Senhor o abençoe, Sr. Holmes — disse a nossa convidada —, ela está
tão ansiosa para encontrá-lo que você poderia levar uma legião consigo.
— Então chegaremos no início da tarde. Vamos nos certificar de que as nossas
informações estão corretas antes de começarmos. Se repassarmos os fatos, ajudamos
o Dr. Watson a entender a situação. A senhora disse que a Sra. Ronder é sua inquilina
há sete anos, e que viu o rosto dela apenas uma vez.
— E, por Deus, não queria ter visto! — disse a Sra. Merrilow.
— Estava, pelo que eu entendi, terrivelmente mutilado.
— Bem, Sr. Holmes, dificilmente se diria que é um rosto. É assim se que parecia.
Nosso leiteiro a viu de relance uma vez, enquanto ela espiava pela parte de cima da
janela, e derrubou sua lata de leite no jardim inteiro. É esse o tipo de rosto que ela tem.
Quando a vi — peguei-a de surpresa — ela se cobriu rapidamente e disse: “Agora, Sra.
Merrilow, você finalmente sabe o porquê de eu nunca levantar o meu véu”.
— A senhora sabe alguma coisa sobre a história dela?
— Nada.
— Ela deu referências quando chegou?
— Não, senhor, mas ela deu dinheiro vivo, e muito. Um quarto do valor do aluguel
na mesa, adiantado e sem questionar as condições. Nestes tempos, uma mulher pobre
como eu não pode se dar ao luxo de recusar uma chance como essa.
— Ela apresentou algum motivo para ter escolhido a sua casa?
— A minha casa fica bem afastada da estrada e é mais reservada que a maioria.
Além disso, eu só acomodo uma pessoa e não tenho família. Acredito que ela tenha visto
outras e achou que a minha era a mais adequada para ela. É privacidade que ela busca,
e ela está disposta a pagar por isso.
— A senhora diz que ela nunca mostrou seu rosto, desde o começo, exceto por
esse incidente. Bem, é uma história muito interessante, e não me surpreende que a
senhora queira que seja analisada.
— Eu, não, Sr. Holmes. Estou muito satisfeita, contanto que eu receba o meu
aluguel. Não se poderia ter uma inquilina mais silenciosa, ou que dê menos trabalho.
— Então como as coisas chegaram a esse ponto?
— A saúde dela, Sr. Holmes. Ela parece estar definhando. E tem algo terrível
dentro de sua mente. “Assassino!”, ela grita. “Assassino!”. E uma vez eu a ouvi: “Sua
criatura cruel! Seu monstro!”, ela gritou. Foi durante a noite, e o barulho ecoou pela casa
e me deu arrepios. Então eu fui até ela pela manhã. “Sra. Ronder”, eu disse, “se tiver
algo atormentando a sua alma, tem a igreja”, eu disse, “e tem a polícia. Você deve
conseguir ajuda entre eles”. “Pelo amor de Deus, a polícia não”, disse ela, “e a igreja não
pode mudar o que já aconteceu. No entanto”, ela disse, “eu ficaria mais tranquila se
alguém soubesse a verdade antes de eu morrer”. “Bem”, disse eu, “se você não quiser
os policiais tradicionais, tem esse detetive sobre o qual lemos”... perdão, Sr. Holmes. E
ela, ela se entusiasmou com a ideia. “É ele”, ela disse. “Eu me admiro não ter pensado
nisso antes. Traga-o aqui, Sra. Merrilow, e se ele não vier, diga a ele que eu sou a esposa
do Ronder, do espetáculo de animais selvagens. Diga isso, e dê a ele o nome ‘Abbas
Parva’”. Aqui está como ela escreveu: “Abbas Parva”. “Isso o trará aqui, se ele for o
homem que eu acredito que seja”.
— E isso também acontecerá — comentou Holmes. — Muito bem, Sra. Merrilow.
Eu gostaria de ter uma palavrinha com o Dr. Watson. Isso vai nos ocupar até a hora do
almoço. Por volta das três da tarde, aguarde nossa visita na sua casa, em Brixton.
Nossa convidada mal havia saído requebrando do recinto — nenhum outro verbo
descreveria a forma de andar da Sra. Merrilow — e Sherlock Holmes se atirou
determinadamente na pilha de livros banais que estava no canto. Por alguns minutos,
houve um folhear de páginas constante, e então, com um grunhido de satisfação, ele
encontrou o que buscava. Tão empolgado ele estava que não se levantou, mas sentou-
se no chão como um Buda estranho, com as pernas cruzadas, a enorme pilha de livros
ao seu redor, e um deles aberto sobre seus joelhos.
— O caso me inquietou na época, Watson. Aqui estão minhas anotações para
comprovar. Admito que não pude descobrir nada. Mas, ainda assim, eu estava
convencido de que o legista estava errado. Você não se lembra da tragédia de Abbas
Parva?
— Não, Holmes.
— No entanto, você estava comigo naquela época. Mas, sem dúvidas, a minha
própria interpretação foi muito superficial, pois não havia nada para se comprovar, e
nenhuma das partes havia contratado meus serviços. Se importaria de ler os escritos?
— Não poderia me informar os detalhes?
— Isso pode ser feito facilmente. Acredito que você irá se recordar enquanto eu
falo. Ronder, é claro, era um nome conhecido. Ele era rival de Wombwell e Sanger, dois
dos maiores produtores de espetáculos da época. Há indícios, no entanto, de que ele
começou a beber e que tanto ele quanto seu espetáculo estavam em crise na ocasião
da grave tragédia. A caravana havia parado em Abbas Parva, um pequeno vilarejo em
Berkshire, para passar a noite quando esse terrível episódio aconteceu. Eles estavam a
caminho de Wimbledon, viajando pela estrada, e estavam somente acampando, sem
fazer apresentações, uma vez que o local é tão pequeno que não valeria a pena abrir.
“Eles tinham entre suas exibições um belíssimo leão-da-barbária. Sahara King era
seu nome, e era habitual que, tanto Ronder quanto sua esposa, fizessem exibições
dentro de sua jaula. Aqui, veja, tem uma imagem de uma performance com a qual você
irá perceber que Ronder era um homem enorme e porcino, e que sua esposa era uma
mulher magnífica. Foi declarado no inquérito que havia alguns sinais de que o leão era
perigoso, mas, como de costume, santo de casa não faz milagre, e o fato não foi levado
em consideração.
“Era normal que tanto Ronder quanto sua esposa alimentassem o leão à noite. Às
vezes um, às vezes os dois, mas eles nunca permitiam que outra pessoa o fizesse, pois
acreditavam que enquanto eles fossem os responsáveis pela alimentação, o animal
consideraria que eram amigos e nunca os atacaria. Nessa noite específica, há sete anos,
os dois foram, e, em seguida, ocorreu algo extremamente devastador, cujos detalhes
nunca foram esclarecidos.
“Ao que parece, todos no acampamento foram despertados por volta da meia-
noite pelos rugidos do animal e os gritos da mulher. Os vários tratadores e funcionários
saíram correndo de suas tendas carregando lanternas e, sob a luz delas, uma imagem
terrível foi revelada. Ronder estava caído, com a parte de trás da cabeça esmagada e
marcas profundas de garras no couro cabeludo, a cerca de dez jardas da gaiola, que
estava aberta. Próxima à porta da gaiola, estava deitada de costas a Sra. Ronder, com
a criatura abaixada e rosnando sobre ela. O leão havia dilacerado seu rosto de tal forma
que nunca se acreditou que ela pudesse viver. Diversos homens do circo, liderados por
Leonardo, o homem forte, e Griggs, o palhaço, afastaram a criatura com varas, e ela
voltou para a gaiola onde foi imediatamente trancada. Como o animal se soltou era um
mistério. Acreditava-se que o casal pretendia entrar na gaiola, mas quando a porta foi
aberta, a criatura saltou sobre eles. Não havia nenhum outro elemento de interesse nas
evidências, exceto o fato de que a mulher, em um delírio de agonia, não parava de gritar:
'Covarde! Covarde!' enquanto era carregada de volta para a van em que moravam. Levou
seis meses até que ela estivesse apta a prestar depoimento, mas o inquérito foi
devidamente conduzido, com o veredicto óbvio de morte acidental — informou Sherlock.
— Que outra alternativa poderia ser concebida? — eu disse.
— Pode-se dizer isso. E, no entanto, havia algumas questões que preocupavam
o jovem Edmunds, da Polícia de Berkshire. Um rapaz inteligente! Ele foi enviado para
Allahabad posteriormente. Foi assim que me inteirei do caso, pois ele foi até lá e fumou
um cachimbo ou dois refletindo sobre o assunto.
— Um homem magro, de cabelos loiros?
— Exatamente. Eu sabia que agora você iria pegar o fio da meada.
— Mas o que o inquietava?
— Bem, inquietava a nós dois. Foi muito difícil reconstruir o caso. Observe a
situação do ponto de vista do leão. Ele está solto. O que ele faz? Dá meia dúzia de
passos à frente, o que o leva até Ronder. Ronder se vira para fugir — as marcas das
garras estavam em sua nuca —, mas o leão o derruba. Em seguida, em vez de fugir, ele
volta até a mulher, que estava perto da gaiola, a derruba e mastiga seu rosto. Então,
novamente, aqueles gritos dela parecem sugerir que o marido a havia desamparado de
alguma forma. O que o pobre coitado poderia ter feito para ajudá-la? Percebe a
complexidade?
— Perfeitamente.
— E tem mais uma coisa. Isso me veio à memória agora que estou refletindo sobre
o assunto. Havia algumas evidências de que, no momento em que o leão rugiu e a mulher
gritou, um homem começou a gritar de pânico.
— Sem dúvidas, esse homem era o Ronder.
— Bem, se seu crânio foi esmagado, dificilmente você esperaria ouvi-lo outra vez.
Houve pelo menos duas testemunhas que disseram que os gritos de um homem se
misturaram aos de uma mulher.
— Acredito que, a essa altura, todo o acampamento estava gritando. Com relação
aos outros pontos, acho que posso sugerir uma solução.
— Terei prazer em considerá-la.
— Os dois estavam juntos, a dez jardas da jaula, quando o leão se soltou. O
homem se virou e foi derrubado. A mulher teve a ideia de entrar na jaula e fechar a porta.
Esse era seu único refúgio. Ela foi em direção à gaiola e, assim que entrou, a criatura
correu atrás dela e a derrubou. Ela estava com raiva do marido por ter incentivado a fúria
da fera ao se virar. Se eles tivessem enfrentado o animal, poderiam tê-lo acalmado. Daí
seus gritos de “Covarde!”.
— Brilhante, Watson! Há apenas uma falha na sua interpretação.
— Que falha, Holmes?
— Se ambos estavam a dez jardas da jaula, como a fera pode ter se soltado?
— É possível que eles tivessem algum inimigo que a tenha soltado?
— E por que ela os atacaria com tamanha crueldade se tinha o hábito de brincar
e fazer truques com eles dentro da jaula?
— Possivelmente, o mesmo inimigo fez algo para provocá-la.
Holmes parecia pensativo e permaneceu em silêncio por alguns instantes.
— Bem, Watson, tem um ponto favorável à sua teoria. Ronder era um homem de
muitos inimigos. Edmunds me disse que, quando bebia, ele era horrível. Um homem
enorme e agressivo, ele xingava e batia em todos que entravam em seu caminho.
Acredito que aqueles gritos sobre um monstro, sobre os quais nossa visitante falou, eram
reminiscências noturnas do querido falecido. No entanto, nossas especulações são
inúteis enquanto não dispusermos de todos os fatos. Tem uma travessa de perdiz de
inverno no aparador, Watson, e uma garrafa de Montrachet. Vamos renovar nossas
energias antes de fazer um novo contato com eles.
Quando nossa condução nos deixou na casa da Sra. Merrilow, encontramos
aquela senhora robusta bloqueando a porta aberta de sua humilde, mas reformada
residência. Estava nítido que sua principal preocupação era não perder uma inquilina
valiosa, e ela nos implorou, antes de nos mostrar a porta, que não disséssemos ou
fizéssemos nada que pudesse levar a um fim tão indesejável. Então, depois de
tranquilizá-la, a seguimos pela escada reta e mal-acarpetada e fomos levados ao quarto
da inquilina misteriosa.
Era um ambiente fechado, com mofo e mal ventilado, como era de se esperar,
uma vez que sua moradora raramente saía. Como mantinha animais enjaulados, a
mulher parecia, por uma punição do destino, ter se tornado ela mesma um animal
enjaulado. Ela estava sentada em uma poltrona quebrada, no canto mais escuro da sala.
Longos anos de inércia haviam tornado grosseiras as linhas de sua silhueta, mas, em
algum momento, ela deve ter sido bela, e ainda era grande e voluptuosa. Um denso véu
escuro cobria seu rosto, mas foi cortado perto do lábio superior e revelou uma boca de
formato perfeito e um queixo delicadamente arredondado. Eu poderia muito bem
imaginar que ela havia sido, de fato, uma mulher admirável. Sua voz também era suave
e agradável.
— Meu nome não é desconhecido para você, Sr. Holmes — disse ela. — Imaginei
que isso o traria aqui.
— É verdade, senhora, embora eu não saiba como descobriu que eu estava
interessado no seu caso.
— Eu descobri quando recuperei minha saúde e fui interrogada pelo Sr. Edmunds,
o detetive do condado. Receio ter mentido para ele. Talvez tivesse sido mais prudente
que eu dissesse a verdade.
— Normalmente é mais prudente dizer a verdade. Mas por que a senhora mentiu
para ele?
— Porque o destino de outra pessoa dependia disso. Eu sei que ele era um ser
desprezível, mas, ainda assim, não queria que sua ruína pesasse em minha consciência.
Nós éramos tão próximos... tão próximos.
— Mas esse impedimento foi resolvido?
— Sim, senhor. A pessoa a quem me refiro está morta.
— Então, por que não contar à polícia tudo o que a senhora sabe?
— Porque há outra pessoa que deve ser considerada. Essa outra pessoa sou eu
mesma. Eu não suportaria o escândalo e a exposição pública que resultariam de um
inquérito policial. Não tenho muito tempo de vida, mas desejo morrer sem ser
importunada. Ainda assim, queria encontrar um homem de caráter para quem pudesse
contar minha terrível história, de modo que, quando eu morresse, tudo pudesse ser
esclarecido.
— Agradeço o elogio, senhora. Por outro lado, sou uma pessoa responsável. Não
posso prometer-lhe que, depois que você contar sua história, não julgarei que é meu
dever encaminhar o caso à polícia.
— Acredito que não, Sr. Holmes. Conheço muito bem o seu caráter e os métodos
que utiliza, pois tenho acompanhado o seu trabalho há alguns anos. Ler é o único prazer
que o destino não me tirou, e eu me informo sobre quase tudo o que acontece no mundo.
Porém, de qualquer forma, vou me arriscar quanto ao uso que o senhor fará da minha
tragédia. Contá-la aliviará a minha mente.
— Meu amigo e eu ficaremos felizes em ouvi-la.
A mulher se levantou e tirou de uma gaveta a fotografia de um homem. Ele era
claramente um acrobata profissional, um homem de físico magnífico, fotografado com
seus enormes braços cruzados sobre o peito inflado e um sorriso que despontava sob
seu pesado bigode — o sorriso de autossatisfação de um homem de muitas conquistas.
— Esse é Leonardo — ela disse.
— Leonardo, o homem forte, que prestou depoimento?
— Ele mesmo. E esse... esse é o meu marido.
Era um rosto assustador — um porco humano, ou melhor, um javali humano, pois
era formidável em sua bestialidade. Era possível imaginar aquela boca vil, mordendo e
espumando de raiva, e era possível visualizar aqueles olhos pequenos e cruéis lançando
um olhar de pura maldade ao olhar para o mundo. Desagradável, valentão, bestial —
tudo isso estava escrito naquele rosto flácido.
— Essas duas fotos os ajudarão, senhores, a entender a história. Eu era uma
pobre garota de circo, criada na serragem fazendo saltos no aro antes mesmo de
completar dez anos. Quando me tornei uma mulher, esse homem me amou, se é que
uma luxúria como a dele pode ser chamada de amor, e, em um momento de infelicidade,
eu me tornei sua esposa. Desde aquele dia, eu passei a viver em um inferno, e ele era
o demônio que me atormentava. Não havia ninguém no espetáculo que não soubesse
de seu comportamento. Ele me trocou por outras. Ele me amarrou e me bateu com seu
chicote quando eu me queixei. Todos tinham pena de mim e o odiavam, mas o que
podiam fazer? Todos eles o temiam. Pois ele era terrível o tempo todo, e assassino
quando estava bêbado. Ele foi preso diversas vezes por agressão e por crueldade com
os animais, mas tinha muito dinheiro e as multas não eram nada para ele. Todos os
melhores profissionais nos deixaram, e o espetáculo começou a decair. Somente
Leonardo e eu continuamos, junto com o pequeno Jimmy Griggs, o palhaço. Coitado, ele
não tinha muita palhaçada a fazer, mas fez o que pôde para manter as coisas sob
controle.
“Então Leonardo entrou cada vez mais em minha vida. Veja como ele era. Agora
sei o espírito fraco que estava escondido naquele corpo esplêndido, mas, comparado ao
meu marido, ele parecia o anjo Gabriel. Ele tinha compaixão e me ajudava, até que, por
fim, nossa intimidade se transformou em amor... amor profundo, profundo e apaixonado,
um amor com o qual eu sonhava, mas que nunca esperei sentir. Meu marido suspeitava,
mas acho que ele era tão valentão quanto covarde, e que Leonardo era o único homem
de quem ele tinha medo. Ele se vingou de seu próprio modo, torturando-me mais do que
nunca. Uma noite, meus gritos levaram Leonardo à porta de nossa van. Quase
aconteceu uma tragédia naquela noite, e logo meu amante e eu entendemos que isso
não poderia ser evitado. Meu marido não podia continuar vivo. Decidimos que ele deveria
morrer.
“Leonardo tinha um cérebro astucioso e calculista. Foi ele quem planejou tudo.
Não digo isso para responsabilizá-lo, pois eu estava disposta a acompanhá-lo em cada
trecho do caminho. Fizemos uma clava — Leonardo o fez — e na ponta de chumbo ele
fixou cinco longos pregos de aço, com as pontas para fora, com uma disposição similar
à da pata do leão. Isso serviria para desferir o golpe mortal em meu marido, deixando
evidências de que foi o leão, o qual iríamos soltar, que havia cometido o ato.
“Era uma noite escura como breu quando meu marido e eu descemos, como era
nosso costume, para alimentar o animal. Levamos conosco a carne crua em um balde
de metal. Leonardo estava esperando na lateral da grande van pela qual deveríamos
passar antes de chegarmos à gaiola. Ele era muito lento e passamos por ele antes que
conseguisse atacar, mas ele nos seguiu na ponta dos pés e ouvi o estrondo quando a
clava esmagou o crânio de meu marido. Meu coração vibrou de alegria com aquele som.
Dei um salto para frente e soltei a trava que segurava a porta da jaula do grande leão.
“E então o fato terrível aconteceu. Vocês já devem ter ouvido falar do quão rápido
essas criaturas sentem o cheiro de sangue humano, e do quanto isso as instiga. Algum
instinto estranho disse à criatura em apenas um instante que um ser humano havia sido
morto. Quando deslizei as barras, ela se soltou e veio para cima de mim em um instante.
Leonardo poderia ter me salvado. Se ele tivesse corrido para a frente e golpeado a fera
com sua clava, poderia tê-la assustado. Mas o homem perdeu a coragem. Eu o ouvi
gritar de medo e então o vi se virar e fugir. No mesmo instante, os dentes do leão se
chocaram contra meu rosto. Seu hálito quente e fétido já havia me intoxicado e eu mal
tinha consciência da dor. Com as palmas das mãos, tentei empurrar as grandes
mandíbulas úmidas e manchadas de sangue para longe de mim e gritei por socorro. Eu
estava consciente de que o acampamento estava se alvoroçando, e então me lembrei
vagamente de um grupo de homens. Leonardo, Griggs e outros, arrastando-me para fora
das patas da criatura. Essa foi minha última lembrança, Sr. Holmes, por um longo mês.
Quando voltei a mim e me vi no espelho, praguejei aquele leão... oh, como eu o
praguejei!... não porque ele havia arrancado minha beleza, mas porque não havia
arrancado minha vida. Eu só tinha um desejo, Sr. Holmes, e tinha dinheiro suficiente para
satisfazê-lo. Era me cobrir para que meu pobre rosto não fosse visto por ninguém, e
morar em um lugar onde ninguém que eu conhecesse pudesse me encontrar. Isso era
tudo o que me restava fazer... e foi o que fiz. Uma pobre criatura ferida que se arrastou
para seu buraco para morrer... esse é o fim de Eugenia Ronder — concluiu ela.
Ficamos sentados em silêncio por algum tempo depois que a infeliz mulher contou
sua história. Então, Holmes esticou seu longo braço e deu um tapinha na mão dela com
uma demonstração de simpatia como poucas vezes eu o vi fazer.
— Pobre garota! — disse ele. — Pobre garota! Os rumos do destino são realmente
difíceis de compreender. Se não houver alguma forma de compensação no futuro, então
o mundo é uma piada de mau gosto. Mas e esse homem, Leonardo?
— Nunca mais o vi ou tive notícias dele. Talvez eu tenha me enganado ao me
sentir tão amargurada com relação a ele. Ele tanto poderia ter amado uma das
aberrações que carregamos pelo país quanto a coisa que o leão havia deixado. Mas o
amor de uma mulher não é descartado tão facilmente. Ele me deixou sob as garras da
fera, me abandonou quando eu mais precisava e, ainda assim, não consegui entregá-lo
à forca. Quanto a mim, não me importava com o que aconteceria comigo. O que poderia
ser mais terrível do que minha própria vida? Mas eu estava entre Leonardo e seu destino.
— E ele está morto?
— Ele se afogou no mês passado quando se banhava próximo a Margate. Li sobre
a sua morte no jornal.
— E o que ele fez com essa clava de cinco garras, que é a parte mais singular e
engenhosa de toda a sua história?
— Não sei dizer, Sr. Holmes. Há uma pedreira de calcário perto do acampamento,
com um lago verde e fundo na base. Talvez nas profundezas desse lago...
— Bem, isso não tem muita importância agora. O caso está encerrado.
— Sim — disse a mulher —, o caso está encerrado.
Tínhamos nos levantado para ir embora, mas havia algo na voz da mulher que
despertou a atenção de Holmes. Ele se virou rapidamente para ela.
— Sua vida não lhe pertence — disse ele. — Mantenha-se fora disso.
— Qual é a importância dela para alguém?
— Como é possível saber? O exemplo do sofrimento paciente é, por si só, a mais
preciosa de todas as lições para um mundo impaciente.
A resposta da mulher foi terrível. Ela levantou o véu e deu um passo à frente, em
direção à luz.
— Gostaria de saber se o senhor suportaria isto — disse ela.
Era horrível. Não há palavras para descrever a aparência de um rosto quando o
próprio rosto não existe mais. Dois belos olhos castanhos, vivos, olhando tristemente a
partir daquela ruína aterradora, apenas tornaram a visão ainda mais terrível. Holmes
ergueu a mão em um sinal de apoio e compaixão, e juntos saímos da sala.
Dois dias depois, quando encontrei meu amigo, ele apontou com certo orgulho
para um pequeno frasco azul sobre sua lareira. Eu o peguei. Havia um rótulo vermelho
de veneno. Um agradável aroma de amêndoas tomou o ar quando o abri.
— Ácido cianídrico? — eu disse.
— Exatamente. Chegou pelo correio. "Envio-lhe minha tentação. Vou seguir seu
conselho". Essa era a mensagem. Creio, Watson, que podemos supor o nome da
corajosa mulher que a enviou.
Tradutor: Charlie Milo Bergo
Revisora: Larissa Silva Leitão Daroda

Paratexto

O conto “A aventura do casarão Shoscombe” é narrado em primeira pessoa pelo


Dr. John Watson, colega e amigo do Detetive Sherlock Holmes, e tem como ponto central
a investigação dos estranhos comportamentos do barão Sir Robert Norberton e da sua
irmã Lady Beatrice Falder, residentes do casarão Shoscombe. Afundado em dívidas, Sir
Robert Norberton depende das rendas da irmã e das corridas de cavalos para não perder
tudo para os credores. Após estranhos acontecimentos, John Mason, o adestrador de
Shoscombe, solicita os serviços de Holmes, que, ao lado do seu fiel colega Dr. Watson,
explora os métodos investigativos, que fascinam as mais diversas gerações, ao seguir
uma trilha de pistas e ossos para tecer as tramas desse mistério.
A tradução do conto teve por fio condutor um leitor-modelo vasto que engloba as
mais diversas gerações, desde aquelas que, pela primeira vez, entram em contato com
o famoso detetive londrino, até aquelas que já vivenciaram muitas de suas aventuras.
Assim, buscou-se um equilíbrio nos níveis de formalidade, de modo que a narração e o
diálogo não soassem demasiadamente antiquados, nem demasiadamente
contemporâneos, desta forma mantendo aspectos que caracterizam a obra em sua
historicidade, e optou-se por escolhas lexicais já familiares a leitores do gênero e que,
ao mesmo tempo, permitissem maior fluidez na leitura.

Perfil do tradutor
Tradutor, revisor e pesquisador. Bacharel em Tradução Português-Inglês e
licenciando em Português-Francês pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
Mestrando do PPG Estudos Literários, na linha 3 – Criação Literária (escrita criativa,
tradução e ensino) e membro do grupo de pesquisa Prisma – Interculturalidade e
Tradução, também pela Universidade Federal de Juiz de Fora.
A AVENTURA DO CASARÃO SHOSCOMBE

Sherlock Holmes se encontrava debruçado há um bom tempo sobre o microscópio


de baixa ampliação, até que se endireitou e olhou para mim triunfante.
— É cola, Watson — disse ele. — Não há dúvidas de que seja cola. Dê uma olhada
nesses resíduos espalhados na lâmina!
Eu me inclinei sobre as lentes oculares e focalizei para ver melhor.
— Esses fios são de um casaco de lã. Os acúmulos cinzentos irregulares são de
poeira. À esquerda, há tecido epitelial. E essas gotas marrons no centro são
definitivamente cola.
— Ora — disse, rindo —, estou disposto a acreditar na sua palavra. Algo depende
disso?
— É uma prova muito refinada — respondeu ele. — Você deve se lembrar do caso
da estação de St. Pancras, em que um chapéu foi encontrado ao lado de um policial
morto. O homem acusado nega que seja dele. Mas ele faz molduras e sempre usa cola.
— É um dos seus casos?
— Não. Um amigo meu, o Merivale, da Yard, pediu que eu desse uma olhada no
caso. Desde que capturei aquele falsário de moedas por causa das limalhas de zinco e
de cobre no punho do casaco, eles começaram a se dar conta da importância do
microscópio. — Holmes olhou impacientemente para o relógio. — Um novo cliente
solicitou os meus serviços, mas está atrasado. A propósito, Watson, você entende de
corridas de cavalos?
— Eu deveria. Afinal, gasto com isso quase metade da minha pensão.
— Então você será o meu “Guia Prático do Turfe”. O que sabe sobre Sir Robert
Norberton? Esse nome soa familiar?
— Devo dizer que sim. Ele vive no casarão Shoscombe, e disso eu sei bem, pois
já passei um verão lá. Norberton quase entrou na sua jurisdição uma vez.
— Como aconteceu?
— Foi quando ele chicoteou o Sam Brewer, um famoso agiota da Curzon Street,
em Newmarket Heath. Ele quase matou o homem.
— Ah, ele me parece interessante! Ele é sempre assim tão indulgente?
— Ele é conhecido por ser um homem perigoso. Provavelmente o corredor mais
audacioso da Inglaterra… segundo lugar na Grande Corrida Nacional há alguns anos. É
um daqueles homens que ultrapassaram a sua verdadeira geração. O Sir Norberton deve
ter sido um fanfarrão no período regencial… Boxeador, atleta, corredor de turfe, amante
de belas moças e, para todos os efeitos, tão afundado em dívidas que pode nunca mais
encontrar o caminho de volta à superfície.
— Excelente, Watson! Um belo esboço. É como se eu já conhecesse o homem.
Agora, o que poderia me dizer sobre o casarão Shoscombe?
— Apenas que fica no centro do parque Shoscombe e que o garanhão de
Shoscombe e as pistas de treino da região podem ser encontrados lá.
— E o adestrador principal — disse Holmes — é o John Mason. Não precisa ficar
surpreso por eu saber disso, Watson, pois esta carta que estou abrindo me foi enviada
por ele. Mas, antes, falemos um pouco mais de Shoscombe. Parece que estou na direção
certa.
— Há os spaniels de Shoscombe — falei. — Sempre se ouve falar deles em
exposições caninas. A raça mais exclusiva na Inglaterra. Eles são a principal fonte de
orgulho da lady do casarão Shoscombe.
— A esposa de Sir Robert Norberton, eu presumo!
— Sir Robert nunca se casou. Ainda bem, eu acho, considerando as suas
condições. Ele mora com a irmã viúva, Lady Beatrice Falder.
— Você quer dizer que ela mora com ele?
— Não, não. O lugar pertencia ao falecido marido dela, o Sir James. Norberton não
tem direito algum na propriedade. É apenas uma questão de usufruto e será retomada
pelo irmão do marido. Enquanto isso, ela recebe as rendas anualmente.
— E, presumo, que o irmão Robert gaste essa renda?
— É o que parece. Ele é um sujeito diabólico e deve tornar a vida dela ainda mais
difícil. Embora eu tenha escutado que ela é devotada a ele. Mas o que há de errado em
Shoscombe?
— Ah, é precisamente isso que eu quero descobrir. E aqui está, espero, o homem
que pode nos dizer.
A porta foi aberta e o mensageiro fez entrar um homem alto, de barba feita, com
uma expressão firme e austera, que é vista somente naqueles que têm controle sobre
cavalos e meninos. O Sr. John Mason tinha muitos de ambos sob o seu domínio, e
parecia à altura para a tarefa. Fez uma reverência com um autocontrole impassível e se
sentou na poltrona que Holmes indicou para ele.
— Recebeu a minha carta, Sr. Holmes?
— Sim, mas não explica nada.
— Era um assunto deveras delicado para eu detalhar na carta. E complicado
também. Apenas frente a frente eu poderia fazê-lo.
— Bom, estamos à sua disposição.
— Antes de mais nada, Sr. Holmes, acredito que o meu patrão, Sir Robert,
enlouqueceu.
Holmes ergueu as sobrancelhas.
— Aqui é Baker Street, não Harley Street — disse ele. — Mas por que diz isso?
— Quando um homem faz uma coisa estranha, ou duas, deve ter um motivo para
tal, mas quando tudo o que faz é estranho, então começamos a questionar, senhor. Eu
acredito que o Príncipe de Schoscombe e a corrida de cavalos desvirtuaram a mente
dele.
— Esse é o potro que você está treinando?
— O melhor na Inglaterra, Sr. Holmes. Eu deveria saber, mais do que qualquer um.
Agora serei honesto, pois sei que o senhor é um homem de honra e que o que dissermos
não sairá destas paredes. Sir Robert precisa ganhar essa corrida. Ele está por um triz, e
é a última chance dele. Qualquer coisa que possa ganhar ou pedir emprestado depende
do cavalo, e da sorte, também! Dá para conseguir uns quarenta agora, mas dava para
conseguir quase cem antes de Sir Robert recuar com ele.
— Mas como poderia se o cavalo é assim tão bom?
— O público não sabe o quão bom ele é. Sir Robert foi muito esperto para os
negócios. Ele colocou o meio-irmão do Príncipe nas rodadas. Não se consegue
diferenciá-los. Mas há uma grande distância entre eles quando se trata de galopar. Sir
Robert não pensa em nada a não ser no cavalo e na corrida. A vida dele inteira está
nisso. Ele está enrolando os Judeus até conseguir. Se o Príncipe falhar com ele, será o
fim.
— Parece uma aposta bastante desesperada, mas como a loucura se encaixa
nisso?
— Primeiro, basta o senhor olhar para ele. Não acho que ele durma à noite. Ele fica
nos estábulos o tempo todo. Os olhos dele estão ferozes. Tudo tem sido demais para
ele. E ainda há os comportamentos dele com Lady Beatrice!
— O que quer dizer com isso?
— Eles sempre foram bons amigos. Tinham os mesmos gostos, os dois, e ela
amava cavalos tanto quanto ele. Todo dia, no mesmo horário, ela ia de carruagem para
vê-los, e, acima de tudo, ela amava o Príncipe. Ele levantava as orelhas quando ouvia
as rodas no cascalho e trotava toda manhã até a carruagem para ganhar um torrão de
açúcar. Mas está tudo acabado agora.
— Por quê?
— Lady Beatrice parece ter perdido todo o interesse em cavalos. Há uma semana
ela tem passado pelos estábulos sem sequer um “Bom dia”!
— Você acredita que houve uma briga?
— Uma das mais acirradas, perversas e violentas. Por que mais ele daria o spaniel
que ela amava como se fosse um filho? Sir Robert deu o cachorro alguns dias atrás para
o velho Barnes, que administra o Green Dragon, a uns cinco quilômetros, em Crendall.
— Isso parece indubitavelmente suspeito.
— Sem dúvida, com o coração fraco e o edema ninguém pensaria que ela pudesse
lidar com ele, mas Sir Robert passava duas horas toda tarde no quarto dela. Ele poderia
muito bem ter feito o que pudesse, pois ela tem sido uma amiga excepcional para ele.
Mas isso acabou, também. Ele nunca mais vai vê-la. E ela leva a sério. Lady Beatrice
está cismada, rabugenta e bebendo, Sr. Holmes… bebendo como um gambá.
— Ela bebia antes dessa desavença?
— Ela tomava uma taça, mas agora costuma beber uma garrafa em uma noite. Foi
o que me disse Stephens, o mordomo. Tudo mudou, Sr. Holmes, e alguma coisa não me
cheira bem. E, ainda por cima, o que o patrão estaria fazendo na cripta da velha igreja à
noite? E quem era o homem que se encontra com ele lá?
Holmes esfregou as mãos.
— Prossiga, Sr. Mason. Você fica cada vez mais interessante.
— Foi o mordomo quem o viu sair. Era meia noite e a chuva estava forte. Então, na
noite seguinte, eu estava acordado e, de fato, o patrão tinha saído mais uma vez. Eu e
Stephens fomos atrás dele, mas foi uma empreitada arriscada, pois haveria terríveis
consequências caso ele nos visse. Sir Robert é um homem terrível com os punhos
quando acuado, e sem qualquer respeito pelos outros. Estávamos com medo de nos
aproximarmos demais, mas o seguimos a noite toda. Ele estava indo para a cripta mal-
assombrada, e lá havia um homem esperando por ele.
— O que é essa cripta mal-assombrada?
— Há uma velha capela em ruínas no parque, senhor. É tão velha que ninguém s
sabe dizer quando foi construída. Debaixo dela, há uma cripta com má fama entre a
gente. É um lugar tenebroso, úmido e deserto durante o dia, e poucos na região teriam
coragem de chegar perto dela à noite. Mas o patrão não tem medo. Ele nunca temeu
nada na vida. Mas o que ele estaria fazendo lá à noite?
— Um momento! — disse Holmes. — Você disse que havia outro homem lá. Devia
ser um dos seus cavalariços ou alguém da casa! Certamente você só precisa identificar
quem era e interrogá-lo, não?
— Não é ninguém que eu conheça.
— Como você pode afirmar isso?
— Porque eu o vi, Sr. Holmes. Foi naquela segunda noite. Sir Robert se virou e
passou por nós… eu e Stephens, tremendo nos arbustos como dois coelhos, pois havia
um pouco de claridade por causa da lua naquela noite. Mas nós conseguimos ouvir o
outro se movendo lá trás. Não estávamos com medo dele. Então nos levantamos quando
Sir Robert foi embora e fingimos que estávamos apenas caminhando sob a luz do luar,
indo de encontro com o homem, tão casual e inocentemente quanto imaginar. “Boa noite,
companheiro. Quem vem lá?”, perguntei. Acho que ele não ouviu a nossa aproximação,
pois olhou por sobre o ombro com a expressão de quem viu um fantasma. Ele soltou um
berro e saiu correndo o mais rápido que podia na escuridão da noite. E como corria!
Admito. Em um minuto ele estava fora de vista, e quem ele era, ou o que ele era, nunca
descobrimos.
— Mas você o viu nitidamente sob a luz da lua?
— Sim, posso jurar pela cara amarela dele… de cachorro bravo, eu diria. O que ele
poderia ter a ver com Sir Robert?
Holmes permaneceu sentado por um momento, perdido em pensamentos.
— Quem faz companhia a Lady Beatrice Falder? — perguntou, por fim.
— Há uma empregada, Carrie Evans. Ela tem estado com Lady Beatrice nos
últimos cinco anos.
— E, decerto, ela é devotada?
O Sr. Mason se remexeu, desconfortável.
— Ela é devotada o suficiente — ele, enfim, respondeu. — Mas não direi a quem.
— Oh! — exclamou Holmes.
— Não posso dar com a língua nos dentes.
— Entendo perfeitamente, Sr. Mason. A situação é, certamente bem clara. A partir
da descrição que o Dr. Watson fez de Sir Robert, entendo que nenhuma mulher esteja a
salvo dele. Você não acha que a briga entre irmãos reside aí?
— O escândalo está bem claro já há algum tempo.
— Mas Lady Beatrice não deve ter se dado conta antes. Suponhamos que ela de
repente tenha descoberto. Ela quer se livrar da mulher. O irmão dela não permitiria. A
enferma, com o coração fraco e incapaz de se impor, não tem como fazer valer a sua
vontade. A empregada odiada permanece atada a ela. A lady se recusa a falar, fica
rabugenta e começa a beber. Sir Robert em cólera leva embora o spaniel dela. Tudo isso
não se encaixa?
— Bom, pode ser… até onde se sabe.
— Precisamente! Até onde se sabe. Como isso se conecta com as visitas à velha
cripta à noite? Não conseguimos entrelaçar isso à nossa trama.
— Não, senhor, e tem mais uma coisa que não consigo ligar a tudo isso. Por que
Sir Robert iria querer desenterrar um cadáver?
Holmes se sentou abruptamente.
— Nós só descobrimos isso ontem… depois que escrevi ao senhor. Ontem, Sir
Robert foi para Londres, então eu e Stephens fomos à cripta. Estava tudo em ordem,
senhor, exceto que em um canto havia partes de um corpo humano.
— Imagino que você tenha notificado a polícia, não?
O visitante sorriu, sombrio.
— Bom, tenho minhas dúvidas de que isso os interessaria, senhor. Eram apenas a
cabeça e alguns ossos de uma múmia. Poderiam ter mil anos. Mas não estavam lá antes.
Dou a minha palavra, e o Stephens também. Tinham sido escondidos em um canto e
cobertos por uma tábua, mas o canto antes sempre esteve vazio.
— E o que você fez?
— Bom, apenas deixamos lá.
— Isso foi sagaz. Você disse que Sir Robert estava fora ontem. Ele já voltou de
viagem?
— Acreditamos que ele volta hoje.
— Quando Sir Robert deu o cachorro da irmã?
— Foi exatamente há uma semana. O animal estava uivando do lado de fora da
velha casa do poço, e Sir Robert estava tendo um de seus acessos de raiva naquela
manhã. Ele pegou o cachorro, e eu pensei que o teria matado. Então, deu o bicho para
o Sandy Bain, o jóquei, e disse ao homem para levá-lo para o velho Barnes do Green
Dragon, pois nunca mais queria vê-lo de novo.
Holmes se sentou, por um momento, em silêncio, pensativo. Acendeu o mais velho
e sujo dos seus cachimbos.
— Ainda não tenho certeza do que você quer que eu faça a respeito, Sr. Mason —
disse, por fim. — Você poderia definir melhor?
— Talvez isso deixe tudo mais definido, Sr. Holmes — respondeu o visitante.
Ele tirou um papel do bolso e, removendo-o cuidadosamente, expôs o pedaço
carbonizado de um osso.
Holmes o examinou, interessado.
— Onde o conseguiu?
— Há uma fornalha de aquecimento central no porão abaixo do quarto de Lady
Beatrice. Esteve apagada por um bom tempo, mas Sir Robert reclamou do frio e a
acendeu novamente. O Harvey cuida dela… um dos meus homens. Esta manhã ele veio
a mim com isso, que encontrou ao remexer as brasas. O rapaz não gostou do que viu.
— Nem eu — completou Holmes. — O que você acha disso, Watson?
Estava carbonizado, mas não havia dúvidas quanto à sua significância anatômica.
— É o côndilo superior de um fêmur humano — eu disse.
— Precisamente! — Holmes ficou bastante sério. — Quando esse rapaz foi à
fornalha?
— Ele faz isso todas as noites e então vai embora.
— Então qualquer um poderia fazer-lhe uma visita durante à noite?
— Poderia, sim, senhor.
— É possível entrar pelo lado de fora?
— Há uma porta que dá para o exterior. Tem também uma outra que leva por uma
escada até o corredor em que fica o quarto de Lady Beatrice.
— Este terreno é mais pantanoso, Sr. Mason; pantanoso e bem sujo. Você disse
que Sir Robert não estava em casa noite passada?
— Ele não estava, senhor.
— Então, quem quer que estivesse queimando os ossos, não era ele.
— Tem razão, senhor.
— Qual era o nome daquela estalagem de que você falou?
— Green Dragon, senhor.
— Há um bom pesqueiro naquela parte de Berkshire? O adestrador franco
demonstrou claramente pela sua expressão que estava convencido de que outro lunático
entrara em sua vida atormentada.
— Ouvi dizer que tem truta no riacho e lúcio no lago Hall, senhor.
— Já é bom o bastante. Eu e Watson somos exímios pescadores… não somos,
Watson? Você deve nos contactar futuramente no Green Dragon. Iremos para lá esta
noite. Não é preciso dizer que não queremos vê-lo, Sr. Mason, mas uma carta vai chegar
até nós, e decerto eu poderia encontrá-lo se quisesse. Quando nos aprofundarmos um
pouco mais na questão, darei ao senhor uma opinião mais ponderada.
Então, em um luminoso entardecer de maio, eu e Holmes nos encontramos
sozinhos em uma cabine de primeira classe rumo à pequena “parada sob demanda” na
estação de Shoscombe. O bagageiro acima de nós estava abarrotado por um formidável
amontoado de varas, molinetes e cestas. Ao chegarmos ao nosso destino, uma rua curta
nos levou a uma estalagem antiquada, onde um anfitrião esportivo, Josiah Barnes,
participou entusiasmado dos nossos planos de extinguir os peixes das redondezas.
— O que me diz do lago Hall e da probabilidade de pescar um lúcio? — perguntou
Holmes.
O rosto do estaleiro ficou sombrio.
— Isso é impossível. O senhor pode acabar encontrando a si mesmo no lago antes
de se dar conta.
— O que quer dizer?
— É Sir Robert, senhor. Ele é muito enciumado com os negócios. Se dois estranhos
se aproximarem das pistas de treino assim, ele com certeza vai atrás dos senhores. Para
Sir Robert, é melhor prevenir do que remediar.
— Ouvi dizer que ele tem um cavalo na corrida.
— Tem, sim, e um bom potro, também. Ele leva todo o nosso dinheiro para a
corrida, e todo o dinheiro de Sir Robert no negócio. Aliás… — Ele nos olhou atentamente.
— Suponho que vocês mesmos não estejam no turfe?
— De fato, não estamos. Somos apenas dois londrinos cansados que precisam
desesperadamente de um pouco do ar fresco de Berkshire.
— Então, estão no lugar certo. Há bastante disso por aqui. Mas lembre-se do que
eu disse aos senhores sobre Sir Robert. Ele é do tipo que golpeia primeiro e conversa
depois. Fiquem longe do parque.
— Com certeza, Sr. Barnes! Com certeza vamos. A propósito, aquele era um belo
de um spaniel choramingando na entrada.
— Devo dizer que era. A verdadeira raça de Shoscombe. Não há melhor na
Inglaterra.
— Eu mesmo sou um apreciador de cães — disse Holmes. — Agora, se me permite,
quanto custaria um cão premiado como aquele?
— Mais do que eu poderia pagar, senhor. Foi o próprio Sir Robert quem me deu. É
por isso que tenho que mantê-lo na coleira. Ele fugiria do Hall em um piscar de olhos se
eu o libertasse.
— Já temos algumas cartas na mão, Watson — disse Holmes quando o senhorio
nos deixou. — Não é um jogo fácil de se jogar, mas talvez consigamos dar a nossa
cartada em um ou dois dias. Por falar nisso, Sir Robert ainda está em Londres, pelo que
ouvi. Talvez possamos entrar no domínio sagrado hoje à noite sem o risco de um
confronto. Há uma ou duas questões das quais eu gostaria de me certificar.
— Você tem alguma teoria, Holmes?
— Apenas isso, Watson: há uma semana ou mais aconteceu alguma coisa que
causou uma ferida profunda na vida dos residentes de Shoscombe. O que foi essa coisa?
Só podemos supor a partir de seus efeitos. Curiosamente, eles parecem ser de natureza
confusa. Mas isso com certeza nos deve ser útil. Somente em um caso transparente e
rotineiro é que não há esperança.
“Consideremos as informações de que dispomos. O irmão não visita mais a amada
irmã enferma. Ele dá o cachorro favorito dela. O cachorro, Watson! Isso não lhe sugere
nada?”
— Nada além do ódio do irmão.
— É provável. Ou… bom, há uma alternativa. Agora para continuar a nossa revisão
da situação a partir do momento em que a briga, se houve uma, começou: a lady
permanece no quarto, muda os hábitos, não é vista exceto quando está na carruagem
com a empregada, recusa-se a parar nos estábulos para ver o cavalo favorito, e
aparentemente começa a beber. Isso dá conta de todo o caso, não acha?
— Exceto pelas atividades na cripta.
— Essa é uma outra linha de pensamento. Há duas, e peço que não as embole. A
linha A, que diz respeito a Lady Beatrice, tem uma aura um pouco sinistra, não tem?
— Não consigo pensar em nada.
— Agora, peguemos a linha B, que diz respeito a Sir Robert. Ele está muito
interessado em ganhar a corrida. Está nas mãos dos Judeus, e pode a qualquer
momento vender tudo e ter os estábulos das corridas tomados pelos credores. Ele é um
homem ousado e desesperado. Sua renda provém da irmã. A empregada dela é a
marionete dele. Por ora, parece que caminhamos em um terreno seguro, não concorda?
— Mas, e a cripta?
— Sim, a cripta! Suponhamos, Watson… o que é meramente uma suposição
descarada, uma hipótese formulada para efeito argumentativo… que Sir Robert tenha
eliminado a irmã.
— Caro Holmes, isso está fora de questão.
— Muito provavelmente, Watson. Sir Robert é um homem de ações honrosas. Mas
ocasionalmente encontra-se uma maçã podre dentre as demais. Argumentemos por um
momento sobre tal suposição. Ele não poderia deixar o país até receber sua fortuna, e
essa fortuna só poderia ser recebida levando a cabo o golpe com o Príncipe de
Shoscombe. Portanto, ele ainda teria de permanecer firme. Para isso, precisaria se livrar
do corpo da vítima, e também encontrar um substituto para se passar por ela. Com a
empregada como confidente, isso não seria impossível. O corpo da mulher deve ter sido
escondido na cripta, um lugar que quase nunca é visitado, e secretamente destruído à
noite na fornalha, deixando para trás a evidência, como vimos antes. O que me diz,
Watson?
— Bom, tudo é possível se você admitir a monstruosa suposição original.
— Acredito que podemos colocar em prática um pequeno experimento amanhã a
fim de elucidar um pouco mais o caso, Watson. Enquanto isso, se quisermos manter as
nossas personagens, sugiro que convidemos o nosso anfitrião para tomar do próprio
vinho e mantenhamos uma conversa engajada sobre enguias e carpas, que parecem ser
certeiras para conquistar as afeições dele. Durante o processo, pode ser que consigamos
descobrir rumores locais que nos sejam de grande proveito.
De manhã, Holmes descobriu que esquecemos nossa isca para peixe, o que nos
isentou da pescaria pelo resto do dia. Cerca de onze horas, começamos um passeio, e
ele conseguiu permissão para levarmos o spaniel preto conosco.
— Este é o lugar — disse ele, assim que chegamos aos dois portões altos do
parque, com grifos heráldicos imponentes sobre eles. — Por volta do meio-dia, o Sr.
Barnes me contou, que a lady dá um passeio, e a carruagem deve parar enquanto os
portões forem abertos. Quando chegar o momento, e antes de ganhar velocidade, quero
que você, Watson, pare o cocheiro com alguma pergunta. Não me importa qual. Devo
ficar escondido atrás desse arbusto e ver o que consigo descobrir.
Não foi uma longa vigília. Em um quarto de hora, vimos uma grande barouche
amarela descendo a longa avenida, puxada por dois cavalos cinzas esplêndidos e
elegantes. Holmes se agachou atrás do arbusto com o cachorro. Eu me mantive
despreocupado balançando a bengala na via. Um porteiro correu para fora, e os portões
foram abertos.
A carruagem tinha reduzido a velocidade, e consegui dar uma boa olhada nos
ocupantes. Uma jovem extremamente corada com cabelo loiro e olhos insolentes estava
sentada à esquerda. À direita dela, estava uma idosa com as costas curvadas e um
amontoado de xales cobrindo o rosto e os ombros, o que preconizava a enfermidade.
Quando os cavalos chegaram à estrada principal, levantei a mão com um gesto
autoritário, e assim que o cocheiro parou, perguntei se Sir Robert se encontrava no
casarão Shoscombe.
Ao mesmo tempo, Holmes saiu do esconderijo e soltou o spaniel. Com um latido
de alegria, ele disparou para a carruagem e saltou sobre o degrau. Então, em um piscar
de olhos o cumprimento ávido se transformou em fúria, e o cão abocanhou a saia preta
acima dele.
— Em frente! Em frente! — berrou uma voz áspera. O cocheiro chicoteou os
cavalos, e fomos deixados em pé na estrada.
— Ora, Watson, está concluído — disse Holmes, enquanto prendia a coleira no
pescoço do spaniel agitado. — Ele pensou que era a dona dele e descobriu que era um
estranho. Cães não se deixam enganar.
— Mas era a voz de um homem! — gritei.
— Precisamente! Temos mais uma carta em nossas mãos, Watson, mas, ainda
assim, é preciso ser prudente ao dar a cartada final.
Meu colega não parecia ter mais planos para o dia, de modo que acabamos fazendo
uso do nosso equipamento de pesca no riacho e, como resultado, tivemos truta para o
jantar. Foi apenas depois da refeição que Holmes mostrou sinais de atividade renovada.
Mais uma vez nos encontramos na mesma estrada em que estivemos de manhã, a qual
nos levou aos portões do parque. Uma figura sombria e alta estava nos esperando lá,
que provou ser nosso conhecido londrino, Sr. John Mason, o adestrador.
— Boa noite, cavalheiros — disse ele. — Recebi a sua carta, Sr. Holmes. Sir Robert
ainda não voltou, mas ouvi dizer que a chegada dele é esperada esta noite.
— Quão distante fica a cripta da casa? — perguntou Holmes.
— Uns bons quinhentos metros.
— Então, creio que possamos ignorá-lo completamente.
— Não posso me dar ao luxo de fazê-lo, Sr. Holmes. Assim que ele chegar,
desejará me ver para saber as últimas notícias do Príncipe de Shoscombe.
— Entendo perfeitamente. Nesse caso, devemos trabalhar sem a sua ajuda, Sr.
Mason. Você pode nos mostrar a cripta e então voltar aos seus afazeres.
Estava escuro como breu e sem lua, mas Mason nos levou pelos prados até uma
massa sombria agigantar-se à nossa frente, revelando-se como a antiga capela.
Entramos por uma abertura destruída que antes era o alpendre, e o nosso guia, vacilante
por entre os amontoados de alvenaria soltas, abriu caminho até o canto da construção,
em que uma escada íngreme conduzia até a cripta. Riscando um fósforo, ele iluminou o
lugar melancólico — com um cheiro horrível e lúgubre, antigas paredes de pedra rústica
desmoronando, e pilhas de caixões, alguns de chumbo, outros de pedra, estendendo-se
sobre um lado diretamente até o teto em abóbada com arestas, que se perdiam nas
sombras sobre as nossas cabeças. Holmes acendeu a lanterna, que lançou um pequeno
raio de luz amarela vívida sobre a cena funesta. Os raios foram refletidos pelas placas
nos caixões, muitas adornadas com grifos e diademas da velha família que levava os
títulos até mesmo aos portões da Morte.
— Você comentou sobre alguns ossos, Sr. Mason. Poderia nos mostrá-los antes
de ir?
— Eles estão aqui nesse canto. — O adestrador andou a passos largos e então
parou, surpreso, em silêncio, assim que a luz iluminou o lugar. — Eles sumiram.
— Como esperado — disse Holmes, rindo. — Imagino que as cinzas devam estar
agora mesmo naquela fornalha que já havia consumido uma parte da ossada.
— Mas por que raios alguém queimaria os ossos de um homem morto há mil anos?
— perguntou John Mason.
— É isso que viemos descobrir — respondeu Holmes. — Pode ser uma
investigação demorada, então não precisamos detê-lo conosco. Acredito que
encontraremos a resposta antes do amanhecer.
Quando John Mason partiu, Holmes colocou as mãos na massa com uma
investigação minuciosa das sepulturas, começando por uma muito antiga, que parecia
ser saxônica, no centro, passando por uma longa linhagem de Hugos e Odos normandos,
até chegarmos a Sir William e a Sir Denis Falder do século dezoito. Passou-se uma hora
ou mais antes de Holmes ir até um caixão de chumbo em pé localizado um pouco antes
da entrada para a câmara. Ouvi quando ele soltou uma pequena exclamação de
satisfação e percebi por seus movimentos apressados, mas propositais, que ele havia
atingido o seu objetivo. Com a lupa, Holmes examinava, animado, as bordas da tampa
pesada. Então retirou do bolso um pé de cabra curto, um abridor de caixas, e o inseriu
em uma fresta, alavancando toda a frente, que parecia fixada apenas por alguns poucos
grampos. Houve um som brusco e estridente quando ela se rompeu, mas ela mal tinha
se aberto e revelado parcialmente o seu conteúdo antes que tivéssemos uma inesperada
interrupção.
Alguém andava na capela acima. Era o passo rápido e firme de quem veio com um
objetivo bem definido e conhecia bem o suficiente chão em que pisava. Uma luz jorrou
escada abaixo, e logo em seguida o homem que a carregava se enquadrou na arcada
gótica. Era uma figura terrível, grande em estatura e de comportamento feroz. A larga
lanterna que segurava diante de si iluminou um rosto barbudo e robusto de olhos
furiosos, que vasculharam ao redor em cada cavidade da câmara, finalmente se fixando
com um olhar mortal sob o meu colega e eu.
— Quem diabos é você? — bradou ele. — E o que faz na minha propriedade? —
Então, como Holmes não respondeu, ele deu alguns passos para a frente e ergueu a
bengala pesada que carregava. — Você me ouviu? — gritou. — Quem é você? O que
faz aqui? — A bengala estremecia no ar.
Mas em vez de se retrair, Holmes avançou para encontrá-lo.
— Também tenho uma pergunta para o senhor, Sir Robert — ele disse, com um
tom severo. — Quem é este? E o que está fazendo aqui?
Ele se virou e arrancou a tampa do caixão atrás dele. Sob o brilho da lanterna, vi
um corpo enrolado em um lençol da cabeça aos pés, com traços bruxescos terríveis,
todo o nariz e o queixo projetados numa ponta, os olhos vidrados e escuros fixos no rosto
sem cor e em decomposição.
O barão cambaleou para trás com um berro e se apoiou contra um sarcófago de
pedra.
— Como descobriu? — gritou. E então, devolveu de forma truculenta: — Em que
isso lhe diz respeito?
— Meu nome é Sherlock Holmes — disse o meu colega. — Pode-lhe soar familiar.
Em todo caso, isso me diz respeito como a qualquer outro bom cidadão que respeita a
lei. Parece que o senhor tem muito pelo que responder.
Sir Robert encarou por um momento, mas a voz calma de Holmes e o modo
indiferente e seguro surtiram efeito.
— Por Deus, Sr. Holmes, eu confesso — disse ele. — As provas estão contra mim,
admito, mas não tive escolha.
— Gostaria de acreditar nisso, mas temo que suas explicações devam ser dadas
perante a polícia.
Sir Robert encolheu os ombros largos.
— Bom, se tiver de ser, será. Acompanhem-me até a casa e os senhores poderão
julgar por si mesmos como se dão os fatos.
Um quarto de hora depois, nós nos encontramos no que julgaria, pelas fileiras de
barris polidos atrás de tampas de vidro, ser a sala de armas da velha casa. Era mobiliada
de forma aconchegante, e ali Sir Robert nos deixou por um breve momento. Quando
retornou, tinha dois acompanhantes consigo; um, a jovem corada que tínhamos visto na
carruagem; o outro, um homem pequeno com cara de rato e modos fugitivos
desagradáveis. Eles aparentavam estar totalmente perplexos, o que indicava que o
barão não havia tido tempo de explicar o rumo que os eventos tomaram.
— Aqueles — disse Sir Robert com um aceno de mão — são o Sr. e a Sra. Norlett,
conhecida pelo nome Evans, que há alguns anos tem sido a empregada e confidente da
minha irmã. Eu os trouxe aqui porque acredito que o melhor a fazer é explicar a
verdadeira situação para os senhores, e eles são as duas únicas pessoas na face da
terra que podem confirmar o que eu disser.
— Isso é mesmo necessário, Sir Robert? O senhor pensou no que está fazendo?
— suplicou a mulher.
— Da minha parte, eu me eximo completamente de qualquer responsabilidade —
disse o marido dela.
Sir Robert olhou para ele com desprezo.
— Assumirei toda a responsabilidade — disse ele. — Agora, Sr. Holmes, escute o
meu sincero testemunho dos fatos.
“O senhor claramente foi bem a fundo nos meus negócios ou eu não o teria
encontrado onde encontrei. Portanto, você já sabe, segundo todas as probabilidades,
que estou com um azarão na corrida e que tudo depende do meu sucesso. Se eu ganhar,
é simples. Se eu perder… prefiro nem pensar nisso!”
— Entendo a posição em que se encontra — disse Holmes.
— Dependo da minha irmã, Lady Beatrice, para tudo. Mas é de conhecimento geral
que os interesses dela em bens dizem respeito apenas à sua própria vida. Quanto a mim,
estou nas mãos dos judeus. Sempre soube que se a minha irmã morresse, os meus
credores viriam atrás dos meus bens como um bando de abutres. Tudo seria tomado…
meus estábulos, meus cavalos… tudo. Ora, Sr. Holmes, a minha irmã morreu há uma
semana.
— E você não contou para ninguém!
— O que eu podia fazer? Estaria arruinado. Se eu pudesse protelar as coisas por
três semanas, tudo ficaria bem. O marido da empregada dela, este homem aqui, é um
ator. Tivemos a ideia… eu tive a ideia… de que ele pudesse por um breve período se
passar pela minha irmã. Bastava aparecer diariamente na carruagem, pois ninguém
precisava entrar no quarto dela exceto a empregada. Não era difícil de botar em prática.
A minha irmã morreu do edema que há muito a afligia.
— Isso é o que o legista vai nos dizer.
— O médico dela confirmaria que por meses os sintomas dela prenunciavam tal
fim.
— Bom, e o que você fez?
— O corpo não podia permanecer aqui. Na primeira noite, eu e Norlett o carregamos
para a velha casa do poço, que não está mais em uso. No entanto, fomos seguidos pelo
spaniel da minha irmã, que latia o tempo todo para a porta, então senti que precisávamos
de um lugar mais seguro. Eu me livrei do spaniel, e nós carregamos o corpo para a cripta
da igreja. Não houve ultraje ou irreverência, Sr. Holmes. Não acredito que tenha ofendido
os mortos.
— A sua conduta me parece imperdoável, Sir Robert.
O barão balançou a cabeça, impaciente.
— É fácil julgar — disse ele. — Talvez o senhor tivesse uma opinião diferente se
estivesse no meu lugar. Não se vê todas as esperanças e planos de um homem se
despedaçarem no último minuto sem estender-lhe a mão. A mim pareceu que não seria
um lugar de descanso indigno se a deixássemos, por ora, em uma das sepulturas dos
ancestrais do marido dela, deitada no que continua sendo solo sagrado. Abrimos a
sepultura, removemos o conteúdo, e a colocamos onde o senhor a encontrou. Quanto
às velhas relíquias que retiramos da sepultura, não podíamos deixá-las no chão da cripta.
Então, eu e Norlett as removemos, e à noite ele desceu ao porão e as queimou na
fornalha central. Essa é a minha história, Sr. Holmes, tal como o senhor me forçou a
contá-la, mais até do que eu posso dizer.
Holmes sentou-se por um momento, perdido em pensamentos.
— Há uma coisa que não se encaixa na sua narrativa, Sir Robert — disse ele, por
fim. — Suas apostas na corrida, e consequentemente suas expectativas para o futuro,
seriam mantidas mesmo se os credores tivessem tomado os seus bens.
— O cavalo faria parte dos bens. Em que eles se importariam com as minhas
apostas? O mais provável é que eles não o colocariam para correr de forma alguma. O
meu principal credor é, infelizmente, o meu pior inimigo… um sujeito vil, o Sam Brewer,
que eu uma vez chicoteei em Newmarket Heath. Você realmente acredita que ele me
ajudaria?
— Ora, Sir Robert — disse Holmes, levantando-se —, essa questão deve,
naturalmente, ser reportada à polícia. Era o meu dever esclarecer os fatos, e é desse
mérito que eu me encarrego. Quanto à moralidade ou à decência da sua conduta, não
cabe a mim julgar. Já é quase meia-noite, Watson, e acho que devemos tomar rumo para
a nossa humilde moradia.
É de conhecimento geral que esse episódio particular tenha terminado bem melhor
do que as ações de Sir Robert mereciam. O Príncipe de Shoscombe venceu a corrida, o
proprietário esportivo lucrou oitenta mil libras em apostas. Os credores o mantiveram nas
mãos até o fim da corrida, quando foram pagos na íntegra, e ainda sobrou o suficiente
para que Sir Robert se reestabelecesse em uma condição boa de vida. Tanto a polícia,
quanto o legista, tiveram um olhar indulgente sobre a situação, e depois de uma
reprimenda suave pelo atraso no registro do falecimento da irmã, o proprietário sortudo
saiu ileso desse estranho incidente em uma trajetória que, agora, ultrapassa tempos
sombrios e ruma para terminar em uma velhice honrosa.
Tradutor: Thales Nascimento Buzan
Revisor: Thiago Montes

Paratexto

O conto “A aventura do colorista aposentado” fecha o volume dos últimos contos


de Sherlock Holmes. Foi publicado, pela primeira vez, em dezembro de 1926 e incluído
posteriormente, em junho de 1927, no volume “The Case-Book of Sherlock Holmes”.
O registro formal foi mantido em todas as falas, já que os personagens são de posição
social semelhante. Algumas particularidades tradutórias são: (i) há menção de uma
história não contada, a dos Coptic Patriarchs, traduzido por “Patriarcas Coptas”; (ii) há
menção do Crockford, que foi mantido em inglês e explicado com uma nota; (iii) a
expressão “gay Lothario” foi traduzida para “alegre sedutor” por entender o uso do termo
“gay” à época e a referência ao personagem de filme Lothario ser um sedutor de
mulheres. Por fim, o termo “old”, quando se referiu a algum homem, variou entre “senhor”
e “velho”, a depender do contexto e intenção. Como em:
“O velho colorista tinha a força de um leão em seu grande tronco, mas estava indefeso
nas mãos dos dois experientes lidar com homens.”
“Você se refere ao senhor que acabou de sair?”

Perfil do tradutor

É tradutor generalista com formação pela UFJF, além de ser licenciado em inglês
e português pela mesma instituição. É pesquisador em linguística, em nível de
doutorado, na área de aquisição de L2. Publicou, enquanto tradutor, o artigo “Chronic
Traumatic Encephalopathy in Sports Practice: A Literature Review”, pela Thieme, nos
Arquivos Brasileiros de Neurocirurgia.
AS AVENTURAS DO COLORISTA APOSENTADO

Sherlock Holmes estava com um humor melancólico e filosófico naquela manhã.


Sua natureza prática e alerta estava sujeita a tais reações.
— Você o viu? — perguntou.
— Você se refere ao senhor que acabou de sair?
— Exatamente.
— Sim, eu o encontrei na porta.
— O que achou dele?
— Uma criatura patética, inútil e arruinada.
— Exatamente, Watson. Patético e inútil. Mas toda vida não é patética e inútil?
Sua história não seria um microcosmo do todo? Nós alcançamos. Nós compreendemos.
O que resta em nossas mãos no fim? Uma sombra. Ou pior do que uma sombra –
miséria.
— Ele é um de seus clientes?
— Bom, suponho que eu o possa chamar assim. Ele foi enviado pela Yard. Como
um médico ocasionalmente envia seus pacientes incuráveis a um charlatão. Eles
argumentam que não há nada mais a fazer e o que quer que aconteça ao paciente não
pode piorar como ele já está.
— Qual o problema?
Holmes pegou um cartão sujo de terra da mesa.
— Josiah Amberley. Ele diz que foi um sócio minoritário da Brickfall e Amberley,
que são produtoras de materiais artísticos. Você vai ver o nome deles em caixas de tinta.
Ele fez uma singela economia, se aposentou aos sessenta e um anos de idade, comprou
uma casa em Lewisham e se acomodou para descansar depois de uma vida de trabalho
incessante. É de se pensar que seu futuro estava razoavelmente garantido.
— Sim, com certeza.
Holmes deu uma olhada para algumas anotações que ele tinha rabiscado no verso
de um envelope.
— Aposentado em 1896, Watson. No começo de 1897, ele se casou com uma
mulher vinte anos mais jovem que ele — bonita também, se a foto não faz jus a ela. Uma
competência, uma esposa, lazer — parece um caminho estável que se apresentou a ele.
E, num intervalo de dois anos, ele está, como você viu, péssimo e arruinado como uma
criatura que se arrasta sob o sol.
— Mas o que aconteceu?
— A velha história, Watson. Um amigo traidor e uma esposa volúvel. Parece que
Amberley tem um hobby na vida, e é xadrez. Não distante dele em Lewisham, vive um
jovem médico que também é jogador de xadrez. Eu anotei seu nome como Dr. Ray
Ernerst. Ernest estava frequentemente na casa e uma intimidade entre ele e a Sra.
Amberley foi uma sequência natural, já que você deve admitir que nosso desafortunado
cliente possui poucas qualidades externas, quaisquer sejam suas virtudes internas. O
casal partiu junto na semana passada — destino não identificado. Além disso, a esposa
infiel levou o cofre de escrituras do marido como sua bagagem pessoal, com boa parte
das economias da vida dele dentro. Podemos encontrar a esposa? Podemos salvar o
dinheiro? Um problema corriqueiro até onde se desenvolveu e, ainda assim, vital para
Josiah Amberley.
— O que você vai fazer sobre isso?
— Bom, a pergunta imediata, meu caro Watson, é: "O que você fará?" – se você
tiver a bondade de me substituir. Você sabe que estou preocupado com esse caso dos
dois Patriarcas Coptas, que deve terminar hoje. Eu realmente não tenho tempo para ir a
Lewisham, mas ainda assim as provas obtidas no local têm um valor especial. O senhor
insistiu muito para que eu fosse, mas expliquei minha dificuldade. Ele está preparado
para se encontrar com um representante.
— Com toda certeza — respondi. — Confesso que não vejo como eu possa ser
muito útil, mas estou disposto a fazer o meu melhor. — E foi assim que, em uma tarde
de verão, parti para Lewisham, sem sonhar que, em uma semana, o assunto no qual eu
estava envolvido seria o debate mais ávido de toda a Inglaterra.
Já era tarde naquela noite quando retornei à Baker Street e relatei minha missão.
Holmes estava deitado com sua figura magra esticada em sua cadeira profunda, com
seu cachimbo soltando lentas nuvens de tabaco acre, enquanto suas pálpebras caíam
sobre os olhos tão preguiçosamente que era quase como se estivesse dormindo, não
fosse o fato de que, em qualquer parada ou passagem duvidosa de minha narrativa, elas
se levantavam pela metade, e dois olhos cinzentos, brilhantes e afiados como lanças,
me fixavam com seu olhar investigador.
— The Haven é o nome da casa do Sr. Josiah Amberley — expliquei. — Acho que
isso lhe interessaria, Holmes. É como um aristocrata mesquinho que se afundou na
companhia de seus inferiores. Você conhece esse bairro em particular, as monótonas
ruas de tijolos, as fatigantes rodovias suburbanas. Bem no meio delas, uma pequena ilha
de antiga cultura e conforto, está essa velha casa, cercada por um muro alto e queimado
pelo sol, manchado de líquens e coberto de musgo, o tipo de muro que o senhor
conhece...
— Chega de poesia, Watson — disse Holmes severamente. — Notei que era um
muro alto de tijolos.
— Exatamente. Eu não saberia qual era a The Haven se não tivesse perguntado
a um preguiçoso que estava fumando na rua. Tenho um motivo para mencioná-lo. Ele
era um homem alto, escuro, de bigode farto e com aparência militar. Ele acenou com a
cabeça em resposta à minha pergunta e me lançou um olhar curioso e questionador, que
voltou à minha memória um pouco mais tarde. Eu mal acabara de entrar pelo portão e vi
o Sr. Amberley vindo da garagem. Eu só o vi de relance esta manhã e ele certamente
me deu a impressão de uma criatura estranha, mas, quando o vi em plena luz, sua
aparência era ainda mais anormal.
— Eu, claro, analisei isso, mas ainda assim estou interessado em ter sua opinião
— disse Holmes.
— Ele me pareceu um homem que estava literalmente curvado por conta dos
cuidados. Suas costas estavam arqueadas como se ele carregasse um pesado fardo.
No entanto, ele não era o fracote que eu havia imaginado a princípio, pois seus ombros
e peito tinham a estrutura de um gigante, embora sua figura se afunilasse em um par de
pernas tortas.
— Sapato esquerdo amassado, direito liso.
— Eu não observei isso.
— Não, você não observaria. Eu identifiquei seu membro artificial. Mas prossiga.
— Fiquei impressionado com as mechas de cabelo grisalho que se enrolavam sob
seu velho chapéu de palha e seu rosto de traços profundos com uma expressão feroz e
ávida.
— Muito bom, Watson. O que ele disse?
— Ele começou a contar a história de suas queixas. Saímos juntos da garagem
e, é claro, dei uma boa olhada. Nunca vi um lugar tão mal cuidado. O jardim estava todo
cheio de sementes, dando-me a impressão de uma negligência selvagem, na qual as
plantas haviam sido deixadas seguir o caminho da Natureza e não o da arte. Como uma
mulher decente poderia ter tolerado tal estado de coisas, eu não sei. A casa também
estava desleixada até o último grau, mas o pobre homem parecia estar ciente disso e
tentando remediar a situação, já que um grande pote de tinta verde estava no centro do
saguão e ele carregava um pincel grosso na mão esquerda. Ele estava trabalhando na
carpintaria.
— Ele me levou para seu santuário sombrio e tivemos uma longa conversa. É
claro que ele ficou desapontado por você não ter vindo. "Eu dificilmente esperava”, disse
ele, “que um indivíduo tão humilde como eu, especialmente depois de minha pesada
perda financeira, pudesse obter a atenção completa de um homem tão famoso como o
Sr. Sherlock Holmes.”
— Eu lhe assegurei que a questão financeira não estava em jogo. “Não, é claro,
para ele é arte pela arte”, disse ele, “mas mesmo no lado artístico do crime ele poderia
ter encontrado algo aqui para estudar. E a natureza humana, Dr. Watson – a profunda
ingratidão de tudo isso! Quando foi que eu recusei um de seus pedidos? Alguma vez
uma mulher foi tão mimada? E aquele jovem – ele poderia ter sido meu próprio filho. Ele
tinha o controle da minha casa. E, no entanto, veja como eles me trataram! Oh, Dr.
Watson, este é um mundo terrível, terrível!”. Esse foi o fardo de sua cantiga por uma hora
ou mais. Ele não tinha, ao que parece, nenhuma suspeita de intriga. Eles viviam
sozinhos, exceto por uma mulher que chegava durante o dia e saía todas as noites às
seis. Naquela noite em particular, o senhor Amberley, desejando presentear sua esposa
com um agrado, havia reservado dois assentos no círculo superior do Haymarket
Theatre. De última hora, ela reclamou de uma dor de cabeça e se recusou a ir. Ele foi
sozinho. Parecia não haver dúvidas sobre o fato, já que ele mostrou o ingresso não
utilizado que havia comprado para a esposa.
— Isso é extraordinário – muito extraordinário — disse Holmes, cujo interesse no
caso parecia estar aumentando. — Por favor, continue, Watson. Acho sua narrativa muito
interessante. Você examinou pessoalmente esse bilhete? Por acaso, você não anotou o
número?
— Por acaso, sim — respondi com certo orgulho. — Por coincidência, era o
número da minha antiga escola, trinta e um, então ficou na minha cabeça.
— Excelente, Watson! O assento dele, então, era ou trinta, ou trinta e dois.
— Precisamente — respondi com certa mistificação. — E na fileira B.
— Que maravilha. O que mais ele te disse?
— Ele me mostrou seu quarto-forte, como ele o chamou. Realmente é um quarto-
forte – como um banco – com uma porta e trava de ferro – à prova de ladrões, como ele
afirmou. No entanto, parece que a mulher possuíra uma chave reserva e, entre eles,
levaram cerca de sete mil libras em dinheiro e títulos.
— Títulos! Como eles poderiam se desfazer desses?
— Ele disse que havia dado uma lista à polícia e que esperava que eles não
pudessem ser vendidos. Ele retornou do teatro por volta da meia-noite e encontrou o
local saqueado, a porta e a janela abertas e os fugitivos desaparecidos. Não havia
nenhuma carta ou mensagem, e ele não ouviu nenhuma notícia desde então. Ele
imediatamente deu o alerta para a polícia.
Holmes refletiu por alguns minutos.
— Você diz que ele estava pintando. O que ele estava pintando?
— Bom, ele estava pintando o corredor. Mas ele já havia pintado a porta e a
carpintaria do quarto que falei.
— Não lhe parece uma ocupação estranha diante das circunstâncias?
— “É preciso fazer alguma coisa para aliviar um coração ferido” — essa foi a
explicação dele. Foi excêntrico, sem dúvidas, mas ele é, claramente, um homem
excêntrico. Ele rasgou uma das fotografias de sua esposa na minha presença – rasgou-
a furiosamente em uma tempestade de paixão. "Nunca mais quero ver o maldito rosto
dela", gritou ele.
— Algo mais, Watson?
— Sim, uma coisa me impactou mais que qualquer outra. Eu dirigira para
Blackheath Station e pegara meu trem lá quando, logo quando ele começara a andar, eu
vi um homem disparar para o vagão ao lado do meu. Você sabe que eu tenho um olho
rápido para rostos, Holmes. Sem sombra de dúvidas, era o homem alto, escuro, com o
qual eu encontrara na rua. Eu o vi mais uma vez na London Bridge e depois o perdi na
multidão. Porém estou convencido de que ele estava me seguindo.
— Sem dúvida! Sem dúvida! — disse Holmes. — Você diz, um homem alto,
escuro, de bigode farto, com óculos escuros cinza?
— Holmes, você é um mago. Eu não disse isso, mas ele tinha óculos escuros
cinza.
— E um broche de gravata maçônico?
— Holmes!
— Muito simples, meu caro Watson. Mas vamos ao que é prático. Devo admitir
que o caso, que me parecia tão absurdamente simples a ponto de não merecer minha
atenção, está rapidamente assumindo um aspecto muito diferente. É verdade que, no
entanto, tudo de importante tenha passado despercebido por você em sua missão, mas
até mesmo as coisas que se intrometeram em sua atenção dão margem a uma reflexão
séria.
— O que eu não percebi?
— Não fique magoado, meu caro amigo. Você sabe que sou bastante impessoal.
Ninguém mais teria se saído melhor. Alguns possivelmente nem tão bem. Porém é
evidente que você deixou passar alguns pontos cruciais. Qual é a opinião dos vizinhos
sobre esse homem, Amberley, e sua esposa? Isso certamente é importante. E quanto
ao Dr. Ernest? Ele era o alegre sedutor que se poderia esperar? Com suas vantagens
naturais, Watson, toda mulher é sua ajudante e cúmplice. E a moça do correio, ou a
esposa do verdureiro? Posso imaginá-lo sussurrando elogios com a jovem do Blue
Anchor e recebendo ofensas em troca. Tudo isso você deixou de fazer.
— Ainda podem ser feitas.
— Já foram feitas. Graças ao telefone e à ajuda da Yard, eu normalmente consigo
minhas informações essenciais sem sair desse quarto. Na verdade, minha informação
confirma a história do homem. Ele tem a reputação local de ser um avarento, bem como
um marido severo e exigente. É certo que ele tinha uma alta quantia de dinheiro naquele
quarto-forte dele. Também é verdade que o jovem Dr. Ernest, um homem solteiro, jogou
xadrez com Amberley e provavelmente fez papel de bobo com sua esposa. Tudo isso
parece um passeio no parque e alguém poderia pensar que não há mais nada a ser dito
– e ainda assim! – e ainda assim!
— Onde está a dificuldade?
— Na minha imaginação, talvez. Bom, vamos encerrar por aqui, Watson. Vamos
escapar desse exaustivo dia com um mundo de trabalho pela via da música. Carina vai
cantar hoje à noite no Albert Hall e ainda temos tempo de nos arrumar, jantar e aproveitar.
De manhã, levantei-me cedo, mas algumas migalhas de torrada e duas cascas de
ovos vazias me disseram que meu companheiro se levantou mais cedo ainda. Encontrei
um bilhete rabiscado sobre a mesa.

Caro Watson:
Há alguns pontos de contato que eu gostaria de estabelecer com o Sr. Josiah
Amberley. Quando eu tiver feito isso, poderemos encerrar o caso – ou não. Peço-lhe
apenas que esteja disponível por volta das três horas, pois acho possível que eu
precise de você.
– S. H.

Não soube do Holmes o dia todo, mas ele retornou na hora combinada, sério,
preocupado e distante. Nessas horas era mais sábio deixá-lo com seus pensamentos.
— Amberly já esteve aqui?
— Não.
— Ah! Estou esperando por ele.
Ele não ficou desapontado, pois logo o senhor chegou com uma expressão muito
preocupada e intrigada em seu rosto austero.
— Recebi um telegrama, Sr. Holmes. Não consegui compreender — ele o
entregou o telegrama e Holmes o leu em voz alta.
— “Venha de imediato. Posso lhe dar informações sobre sua perda recente. –
Elman. – O Vicariato.”
— Enviado às 2h10 de Little Purlington — disse Holmes. — Little Purlington fica
em Essex, creio eu, não muito longe de Frinton. Bem, é claro que você vai começar
imediatamente. Isso é evidentemente de uma pessoa responsável, o vigário do lugar.
Onde está meu Crockford? Sim, aqui está ele: “J. C. Elman, M.A., morador de Moosmoor
com Little Purlington”. Procure os trens, Watson.
— Há um às 5:20 saindo da Liverpool Street.
— Excelente. É melhor você ir com ele, Watson. Ele pode precisar de ajuda ou de
algum conselho. Claramente temos uma crise nesse caso.
Entretanto, nosso cliente não parecia estar nem um pouco preparado para
começar.
— Isso é completamente absurdo, Sr. Holmes — disse ele. — O que esse homem
pode, possivelmente, saber sobre o que ocorreu? É um desperdício de tempo e dinheiro.
— Ele não o teria enviado um telegrama se não soubesse de alguma coisa.
Comunique imediatamente que você está a caminho.
— Não acho que eu deva ir.
Holmes assumiu seu aspecto mais severo.
— Seria a pior impressão possível, tanto para a polícia quanto para mim, Sr.
Amberley, se, ao surgir uma pista tão óbvia, o senhor se recusasse a segui-la.
Sentiríamos que o senhor não estava realmente empenhado nessa investigação.
Nosso cliente pareceu horrorizado com a sugestão.
— Mas é claro que eu irei, se você coloca as coisas nessa perspectiva — disse.
— À primeira vista, parece absurdo supor que essa pessoa saiba alguma coisa, mas se
você acha...
— Sim, eu acho — disse Holmes com ênfase. E, assim, nós começamos nossa
viagem. Holmes me puxou para o lado antes de sairmos do quarto para me dar um
conselho, o que mostrou que ele considerou a questão como importante. — Faça o que
fizer, certifique-se de que ele realmente vá — disse ele. — Se ele fugir ou voltar, vá até
a central telefônica mais próxima e envie a única palavra "preso". Eu providenciarei aqui
para que ela chegue até mim, onde quer que eu esteja.
Little Purlington não é um lugar fácil de chegar, pois fica em uma ramificação. A
lembrança que tenho da viagem não é agradável, pois o tempo estava quente, o trem
era lento e meu companheiro era rabugento e silencioso, quase não falava, a não ser
para fazer um ocasional comentário sardônico sobre a futilidade de nossos
procedimentos. Quando finalmente chegamos à pequena estação, foram dois
quilômetros de viagem até chegarmos ao Vicariato, onde um clérigo grande, solene e
bastante pomposo nos recebeu em seu escritório. Nosso telegrama estava diante dele.
— Bom, senhores — ele perguntou — em que posso lhes ajudar?
— Nós viemos — expliquei — em resposta ao seu telegrama.
— Meu telegrama! Eu não enviei nenhum telegrama.
— Me refiro ao telegrama que você enviou ao Sr. Josiah Amberley acerca de sua
mulher e seu dinheiro.
— Se isso é uma piada, é uma de muito mal gosto — disse o vigário com raiva.
— Eu nunca ouvi falar do senhor ao que você se refere e não enviei nem um telegrama
a ninguém.
Nosso cliente e eu olhamos um para o outro com espanto.
— Talvez haja algum engano — disse eu. — Será que existem dois vicariatos?
Aqui está o próprio telegrama, assinado por Elman e datado do Vicariato.
— Há apenas um vicariato, senhor, e apenas um vigário, e esse telegrama é uma
falsificação escandalosa, cuja origem certamente será investigada pela polícia. Enquanto
isso, não vejo nenhum objetivo possível em prolongar essa conversa.
Assim, o Sr. Amberley e eu nos encontramos na beira da estrada, no que me
pareceu ser o vilarejo mais primitivo da Inglaterra. Fomos até o escritório do telégrafo,
mas já estava fechado. No entanto, havia um telefone no pequeno Railway Arms e, por
meio dele, entrei em contato com Holmes, que compartilhou de nosso espanto com o
resultado de nossa viagem.
— Muito peculiar! — disse a voz distante. — Extraordinário! Temo, meu caro
Watson, que não haja trem de volta hoje à noite. Sem querer, eu os condenei aos
horrores de uma pousada no interior. No entanto, há sempre a Natureza, Watson – a
Natureza e Josiah Amberley – você pode estar em estreita comunhão com ambos. —
Ouvi sua risada seca enquanto ele se afastava.
Logo ficou claro para mim que a reputação de avarento do meu companheiro não
era infundada. Ele havia reclamado das despesas da viagem, insistido em viajar na
terceira classe e agora estava reclamando da conta do hotel. Na manhã seguinte,
quando finalmente chegamos a Londres, era difícil dizer qual de nós estava com o pior
humor.
— É melhor você ir à Baker Street — disse eu. — O Sr. Holmes pode ter algumas
instruções novas.
— Se elas não valerem mais do que as últimas, não serão de muita utilidade —
disse Amberley com uma careta malévola. Mesmo assim, ele me manteve informado. Eu
já havia avisado Holmes por telegrama sobre a hora de nossa chegada, mas
encontramos uma mensagem dizendo que ele estava em Lewisham e nos esperaria lá.
Isso foi uma surpresa, mas uma surpresa ainda maior foi descobrir que ele não estava
sozinho na sala de estar de nosso cliente. Um homem de aparência severa e impassível
estava sentado ao lado dele, um homem moreno com óculos de grau e um grande broche
maçônico saindo da gravata.
— Este é o Sr. Barker, meu amigo — disse Holmes. — Ele também tem se
interessado pelos seus negócios, Sr. Josiah Amberley, porém temos trabalhado de forma
independente. No entanto, ambos temos a mesma pergunta a lhe fazer!
O Sr. Amberley se sentou pesadamente. Ele pressentia um perigo iminente.
Percebi isso em seus olhos tensos e em suas feições contorcidas.
— Qual é a pergunta, Sr. Holmes?
— Somente essa: O que você fez com os corpos?
O homem se levantou com um grito rouco. Ele se agarrou ao ar com suas mãos
ossudas. Sua boca estava aberta e, por um instante, ele se parecia com uma horrível
ave de rapina. Naquele breve instante, tivemos um vislumbre do verdadeiro Josiah
Amberley, um demônio desfigurado com uma alma tão distorcida quanto seu corpo. Ao
cair de volta em sua cadeira, ele levou a mão aos lábios como se quisesse abafar uma
tosse. Holmes agarrou sua garganta como um tigre e virou seu rosto para o chão. Uma
bolinha branca caiu de entre seus lábios ofegantes.
— Sem atalhos, Josiah Amberley. As coisas devem ser feitas de forma decente e
em ordem. O que acha disso, Barker?
— Tenho um carro nos esperando na porta — disse nossa taciturna companhia.
— São somente algumas centenas de jardas até a estação. Iremos juntos. Você
pode ficar aqui, Watson. Devo estar de volta em meia hora.
O velho colorista tinha a força de um leão em seu grande tronco, mas estava
indefeso nas mãos dos dois experientes em lidar com homens. Contorcendo-se e
resistindo, ele foi arrastado até o carro que o esperava, e eu fui deixado em minha vigília
solitária na casa de maus presságios. Em menos tempo do que ele havia dito, entretanto,
Holmes estava de volta, em companhia de um jovem e inteligente inspetor de polícia.
— Deixei Barker para cuidar das formalidades — disse Holmes. — Você ainda
não conheceu o Barker, Watson. Ele é meu odiado rival na costa de Surrey. Quando
você disse um homem alto e moreno, não foi difícil para mim completar a imagem. Ele
tem vários casos bons em seu crédito, não tem, inspetor?
— Certamente ele interferiu algumas vezes — respondeu o inspetor
reservadamente.
— Os métodos dele são irregulares, sem dúvidas, como os meus. Os irregulares
são úteis às vezes, sabe. O senhor, por exemplo, com sua advertência obrigatória de
que tudo o que ele dissesse seria usado contra ele, jamais poderia ter enganado esse
patife, levando-o ao que é praticamente uma confissão.
— Talvez não. Porém chegaremos lá mesmo assim, Sr. Holmes. Não imagine que
não tenhamos nossas próprias opiniões sobre esse caso e que não teríamos colocado
nossas mãos em nosso homem. O senhor vai nos desculpar por nos sentirmos ofendidos
quando o senhor faz uso de métodos que não podemos usar e, assim, nos rouba todo o
crédito.
— Não haverá roubo algum, MacKinnon. Eu lhe asseguro que vou me retirar de
agora em diante e, quanto a Barker, ele não fez nada além do que eu já o disse.
O inspetor pareceu consideravelmente aliviado.
— Isso é muito bonito de sua parte, Sr. Holmes. Elogios ou acusações pouco
importam para o senhor, mas, para nós, é muito diferente quando os jornais começam a
fazer perguntas.
— Precisamente. Mas, de qualquer forma, é certo que eles farão perguntas e,
portanto, seria bom ter respostas. O que você dirá, por exemplo, quando o repórter
inteligente e empreendedor lhe perguntar quais foram os pontos exatos que despertaram
sua suspeita e finalmente lhe deram uma convicção certeira sobre os fatos?
O inspetor pareceu perplexo.
— Ainda não temos fatos muito concretos, Sr. Holmes. Você diz que o prisioneiro,
na presença de três testemunhas, praticamente tendo confessado por tentar cometer
suicídio, que ele matou sua mulher e sua amante. Que outros fatos você tem?
— Você providenciou uma busca?
— Há três policiais a caminho.
— Então você logo terá o fato mais claro de todos. Os corpos não podem estar
muito longe. Tente os porões e o jardim. Não deve demorar muito para escavar os
lugares prováveis. Esta casa é mais velha do que os canos de água. Deve haver um
poço abandonado em algum lugar. Tente sua sorte lá.
— Mas como você soube disso e como foi feito?
— Primeiro, mostrarei como foi feito e, depois, darei a explicação que lhe é devida
e muito mais ao meu amigo sofrido que tem sido inestimável. Mas, primeiro, eu gostaria
de lhe dar uma visão da mentalidade desse homem. É uma mentalidade muito incomum
– tanto que acho mais provável que seu destino seja Broadmoor do que o cadafalso. Ele
tem, em grande parte, o tipo de mente que se associa mais à natureza italiana medieval
do que ao britânico moderno. Ele era um avarento miserável que, com suas atitudes
mesquinhas, tornou sua esposa tão miserável que ela era uma presa fácil para qualquer
aventureiro. Esse tipo de pessoa entrou em cena na figura do médico que jogava xadrez.
Amberley era excelente no xadrez – uma característica, Watson, de uma mente ardilosa.
Como todos os malfeitores, ele era um homem ciumento, e seu ciúme se tornou uma
mania frenética. Com ou sem fundamento, ele suspeitava de uma intriga. Decidiu se
vingar e planejou tudo com uma esperteza diabólica. Venha cá!
Holmes nos conduziu pelo corredor com tanta certeza como se já tivesse vivido
naquela casa e parou na porta aberta do quarto-forte.
— Argh! Que cheiro de tinta horroroso! — gritou o inspetor.
— Essa foi nossa primeira pista — disse Holmes. — Você pode agradecer à
observação do Dr. Watson por isso, apesar de não ter conseguido fazer a inferência.
Isso me colocou na trilha. Por que esse homem, em um momento como esse, estaria
enchendo sua casa de odores fortes? Obviamente, para encobrir algum outro cheiro que
ele desejava esconder – algum cheiro de culpa que sugerisse suspeitas. Então surgiu a
ideia de um cômodo como o que você vê aqui, com porta e grade de ferro – um cômodo
hermeticamente fechado. Juntando esses dois fatos, para onde eles levam? Eu só
poderia determinar isso examinando a casa pessoalmente. Eu já tinha certeza de que o
caso era sério, pois havia examinado a tabela de bilheteria do Haymarket Theatre – outro
feito dos olhos de lince do Dr. Watson – e tinha certeza de que nem o B30 nem o B32 do
círculo superior haviam sido ocupados naquela noite. Portanto, Amberley não tinha ido
ao teatro e seu álibi caiu por terra. Ele cometeu um deslize grave ao permitir que meu
astuto amigo notasse o número do assento ocupado por sua esposa. Agora surgiu a
questão de como eu poderia examinar a casa. Enviei um agente ao vilarejo mais
impossível que pude imaginar e enviei meu homem para lá em um horário em que ele
não poderia voltar. Para evitar qualquer erro, o Dr. Watson o acompanhou. O nome do
bom vigário eu tirei, é claro, do meu Crockford. Clareei as coisas para você?
— Quanta maestria — disse o inspetor em um tom admirado.
— Sem medo de interrupções, comecei a arrombar a casa. O arrombamento
sempre foi uma profissão alternativa, caso eu quisesse adotá-la, e tenho poucas dúvidas
de que eu teria saído na frente. Observe o que encontrei. Você está vendo o tubo de gás
ao longo do rodapé por aqui. Muito bem. Ele sobe no ângulo da parede e há uma torneira
aqui no canto. O cano vai até ao quarto-forte, como você pode ver, e termina naquela
rosa de gesso no centro do teto, onde foi ocultado pela ornamentação. Essa extremidade
está totalmente aberta. A qualquer momento, ao abrir a torneira externa, o cômodo pode
ser inundado com gás. Com a porta e a trava fechadas e a torneira aberta, eu não daria
dois minutos de consciência a ninguém que estivesse trancado naquela pequena
câmara. Não sei com que artifício diabólico ele os atraiu para lá, mas, uma vez dentro da
porta, eles ficaram à sua mercê.
O inspetor examinou o cano com interesse.
— Um de nossos policiais mencionou o cheiro de gás — disse ele. — Mas é claro
que a janela e a porta estavam abertas na ocasião e a tinta – ou parte dela – já estava
por aqui. Ele havia começado o trabalho de pintura no dia anterior, de acordo com sua
história. Mas e agora, Sr. Holmes?
— Bem, então ocorreu um incidente que foi bastante inesperado para mim. Eu
estava entrando pela janela da despensa no início da madrugada quando senti uma mão
dentro do meu colarinho e uma voz disse: "Agora, seu malandro, o que você está fazendo
aí?”. Quando consegui virar a cabeça, olhei para os óculos coloridos do meu amigo e
rival, o Sr. Barker. Foi uma reunião curiosa que nos fez sorrir. Parece que ele havia sido
contratado pela família do Dr. Ray Ernest para fazer algumas investigações e havia
chegado à mesma conclusão sobre a autoria do crime. Ele observou a casa por alguns
dias e identificou o Dr. Watson como uma das pessoas obviamente suspeitas que haviam
visitado o local. Ele dificilmente conseguiria prender Watson, mas quando viu um homem
de fato saindo pela janela da despensa, ele não conseguiu mais se segurar. É claro que
eu lhe contei como as coisas estavam e continuamos o caso juntos.
— Por que ele? Por que não nós?
— Porque estava em minha mente fazer aquele pequeno teste que deu
admiravelmente muito certo. Receio que você não teria ido tão longe.
O inspetor sorriu.
— Bem, talvez não. Entendo que tenho a sua palavra, Sr. Holmes, de que o senhor
sairá do caso agora e que nos confiará todos os seus resultados.
— Com certeza, esse é sempre o meu costume.
— Bem, em nome da força policial, eu lhe agradeço. Parece um caso claro, como
o senhor disse, e não deve haver muita dificuldade com os corpos.
— Vou lhe mostrar uma pequena e sombria evidência — disse Holmes — tenho
certeza de que o próprio Amberley nunca a observou. Você obterá resultados, inspetor,
se sempre se colocar no lugar do outro e pensar no que você mesmo faria. Isso requer
um pouco de imaginação, mas compensa. Agora, vamos supor que você estivesse
trancado neste pequeno quarto, não tivesse dois minutos de vida, mas quisesse se
vingar do demônio que provavelmente estava zombando de você do outro lado da porta.
O que você faria?
— Escreveria uma mensagem.
— Exatamente. Você gostaria de contar às pessoas como você morreu. Escrever
em um papel não adianta. Isso daria para ver. Se você escrevesse na parede, alguém
poderia se apoiar nela. Agora, olhe aqui! Logo acima do rodapé está rabiscado com um
lápis roxo permanente: “Nós fo...” Isso é tudo.
— O que você acha que é?
— Bem, está a apenas um pé acima do chão. O pobre coitado estava no chão
morrendo quando a escreveu. Ele perdeu os sentidos antes de terminar.
— Ele estava escrevendo: “Nós fomos assassinados”.
— Foi assim que eu entendi. Se você encontrar um marcador permanente no
corpo...
— Vamos procurar, pode ter certeza. Mas esses títulos? É evidente que não houve
roubo algum. E, no entanto, ele possuía esses títulos. Nós verificamos isso.
— Pode ter certeza de que ele os tem escondidas em um lugar seguro. Quando
toda a fuga tivesse se tornado história, ele os descobriria de repente e anunciaria que o
casal culpado se arrependeu e devolveu o que foi saqueado ou o deixou cair no caminho.
— Você certamente parece ter solucionado todas as dificuldades — disse o
inspetor. — É claro que ele tinha a obrigação de nos chamar, mas não consigo entender
por que ele procurou você.
— Pura arrogância! — respondeu Holmes. — Ele se sentia tão inteligente e tão
seguro de si que imaginava que ninguém poderia pegá-lo. Ele podia dizer a qualquer
vizinho desconfiado: “Veja as medidas que tomei. Consultei não apenas a polícia, mas
até mesmo Sherlock Holmes”.
O inspetor riu.
— Vamos perdoá-lo por seu “até mesmo”, Sr. Holmes — disse ele, — é um
trabalho tão profissional quanto me lembro.
Alguns dias depois, meu amigo me entregou um exemplar do jornal quinzenal
North Surrey Observer. Sob uma série de manchetes chamativas, que começavam com
“O horror de Haven” e terminavam com “Brilhante Investigação Policial”, havia uma
coluna cheia de texto que apresentava o primeiro relato consecutivo do caso. O
parágrafo final é típico de todo o caso. Ele dizia o seguinte:

A notável perspicácia com a qual o inspetor MacKinnon deduziu, a partir do


cheiro de tinta, que algum outro cheiro, como o de gás, poderia estar escondido; a
ousada dedução de que o quarto-forte também poderia ser o quarto da morte e a
subsequente investigação que levou à descoberta dos corpos em um poço desativado,
habilmente escondido por um canil, devem permanecer na história do crime como um
exemplo permanente da inteligência de nossos profissionais detetives.

— Ora, ora, Mackinnon é um bom sujeito — disse Holmes com um sorriso bem-
humorado. — Pode arquivar isso em nossos arquivos, Watson. Algum dia a história
verdadeira poderá ser contada.
Organização e Supervisão:
Carolina Alves Magaldi e Larissa Leitão Daroda

Capa e diagramação:
Jady Forte D.signer

ISBN:
978-65-00-86827-2

Juiz de Fora, 2023

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