A Saúde Mental Relacionada Ao Trabalho e Os Desafios Aos Profissionais Da Saúde

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Rev. bras. saúde ocup. vol.36 no.123 São Paulo jan./jun.

2011
http://dx.doi.org/10.1590/S0303-76572011000100011

DOSSIÊ TEMÁTICO
ENSAIO

A saúde mental relacionada ao trabalho e os desafios


aos profissionais da saúde

Work-related mental health and challenges for healthcare


personnel

Renata PaparelliI; Leny SatoII; Fábio de OliveiraIII

I
Assistente mestre do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Ciências
Humanas e Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil
II
Professora titular do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo, SP, Brasil
III
Assistente doutor do Departamento de Psicologia Social da Faculdade de Ciências
Humanas e Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência

RESUMO

Este artigo de caráter reflexivo discute a Saúde Mental relacionada ao trabalho no


contexto atual. Para isso, aponta para a persistência das ideias que negam o nexo
entre o trabalho e a saúde mental e critica sua lógica simplificadora e
culpabilizante. Prossegue retomando os conceitos fundamentais do campo da saúde
do trabalhador e a contribuição da abordagem do processo saúde-doença da
Medicina Social Latino-Americana. Ressalta, em seguida, a relevância e a
atualidade do conceito de desgaste mental. Conclui com o delineamento dos
desafios para os profissionais da saúde para a compreensão da relação entre saúde
e trabalho e os novos horizontes abertos pela legislação que estabelece o Nexo
Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP) e o Fator Acidentário de Prevenção
(FAP).

Palavras-chave: saúde mental; trabalho; psicologia social; profissionais de saúde.

ABSTRACT

This reflective essay discusses work-related mental health in the current context,
pointing to the persistence of ideas denying the nexus between work and mental
health, and criticizing their simplistic and blaming logic. It goes on by resuming the
fundamental concepts in the field of Occupational Health and the contributions of
the Latin American social medicine health-disease approach. Then it highlights the
relevance and contemporaneity of the concept of mental wearing down. It
concludes by outlining health professionals' challenges to understand the
relationship between health and work, and the new horizons opened by Brazilian
Social Security legislation with the introduction of Technical Epidemiological Nexus
(NTEP) and Accident Prevention Factor (FAP).

Keywords: mental health; work; social psychology; healthcare personnel.

Introdução

A relação entre saúde mental e trabalho é um tema muito em voga no Brasil nos
últimos anos e constitui um campo de estudos que poderíamos melhor nomear
como "Saúde Mental Relacionada ao Trabalho" (SMRT). Essa discussão pode ser
apreendida pela variedade de tipos de publicações que apresentam o tema: artigos
em periódicos científicos, livros, materiais sindicais, apresentações em congressos,
além de ser comumente tema de semanas internas de prevenção de acidentes de
trabalho (SIPATs). Atualmente, essa relação também é objeto de normas técnicas e
de protocolos para orientar os profissionais de saúde. Além disso, os problemas de
adoecimento mental continuam a demandar atendimento em serviços públicos e
têm motivado o afastamento do trabalho e a aposentadoria por invalidez de muitos
trabalhadores do setor formal de trabalho (JACQUES, 2007; SAMPAIO; MESSIAS,
2002).

O próprio fato de ter havido a iniciativa de editar-se um número especial da Revista


Brasileira de Saúde Ocupacional sobre o tema também revela que ele continua a
solicitar espaço como objeto de reflexão. Esse fato parece indicar que a divulgação,
o debate e a discussão sobre o assunto não têm sido suficientes para mudar o
quadro dos problemas de saúde mental relacionados ao trabalho. Mais ainda,
constata-se um movimento contraditório: ao mesmo tempo em que se apontam e
discutem os contextos de trabalho que explicam a ocorrência desses problemas,
testemunha-se não apenas o surgimento de ocupações e profissões que preservam
características pouco recomendáveis sob a ótica do campo da SMRT – exemplar é o
caso do trabalho em telework, que já motivou a realização de diversos estudos no
Brasil, como, por exemplo, o de Ramalho et al. (2008) –, como também se
constata que ainda há quem duvide da existência do nexo entre saúde mental e
trabalho!

Por que ainda precisamos falar sobre o tema?

Diante dessa situação, nós, autores deste artigo, fomos levados a interrogar sobre
o porquê de ainda haver a necessidade de informar e afirmar que a saúde mental
pode ser afetada pelo trabalho, o que gerou as reflexões reunidas no presente
artigo, o qual não pretende ser exaustivo na revisão das diferentes posições sobre
o tema.

Temos presenciado situações nas quais as pessoas, muitas delas profissionais de


saúde, demonstram descrença na existência de tais relações. Por vezes, temos
visto fortes reações de oposição à leitura que incorpora os contextos de trabalho
como determinantes dos problemas de saúde mental da população trabalhadora.

E quando referimo-nos à população trabalhadora, estamos falando da maioria das


pessoas na idade adulta, ou seja, daqueles que vendem sua força de trabalho e
também dos que estão em busca de oportunidades para vendê-la.1

Não raramente, em nossa atuação como docentes, deparamo-nos com a


contrariedade de alguns estudantes, muitos deles da área da saúde, quando
apontamos o processo saúde-doença como socialmente influenciado, como já fora,
de algum modo, mostrado por Bernardino Ramazzini no século XVIII em seu
famoso livro As doenças dos trabalhadores (RAMAZZINI, 2000).

Essa reação dos estudantes parece ser motivada por, pelo menos, duas posições
em relação à compreensão da relação saúde-doença e trabalho. A primeira é a de
que a causa última para explicar o adoecimento de trabalhadores e trabalhadoras
deveria ser buscada sempre no indivíduo: em suas peculiaridades em termos
físicos, fisiológicos, psicossociais e em sua história de vida no núcleo familiar
anterior à vida de trabalho. A segunda posição é a adoção da naturalização da ideia
de que o trabalho produz sofrimento e não pode ser mudado, como se isso fosse
um destino, uma determinação inquestionável e intransponível, cujo curso seria
impossível de ser modificado.

Ao mesmo tempo em que cresce a constatação, por meio de estudos e dos relatos
das vivências de trabalhadores e trabalhadoras, de que o trabalho (tal qual se
configura em suas condições e organização) frequentemente produz adoecimentos,
desvaloriza-se a força dessa determinação, como se fosse possível reduzi-la às
características dos que adoecem, corroborando um processo conhecido como
"culpabilização da vítima" (LIMA; OLIVEIRA, 1995; OLIVEIRA, 2007). Desse modo,é
comum ouvirmos diferentes versões da mesma pergunta, "mas porque alguns
adoecem e outros não?", pergunta que revela o sofisma acima descrito.

É como se os trabalhadores tivessem que ser idênticos uns aos outros e como se o
trabalho que realizam fosse homogêneo. Pesquisas que analisam o cotidiano laboral
e as diferenças entre o trabalho prescrito e o trabalho real (DANIELLOU; LAVILLE;
TEIGER, 1989) apontam a existência de uma série de diferenças entre postos de
trabalho que parecem, em um primeiro momento, idênticos. Como exemplo,
podemos falar da atividade de caixa de banco cujos ritmos, pressões, cargas
afetivas, responsabilidades são muito diferentes, quer se trate da empresa A ou B,
quer se trate de agências localizadas em grandes centros urbanos, em bairros com
alta densidade populacional ou em bairros pequenos, onde todo mundo se conhece,
quer seja realizada no momento de uma fusão entre bancos ou de uma grande
crise financeira.

E, quando se fala que a diversidade interpessoal e a variabilidade intrapessoal


deveriam ser respeitadas sob pena de o sofrimento, o incômodo e o adoecimento
se expressarem, alguns alunos e ouvintes ficam revoltados! Pois lhes parece
impossível conceber que é o trabalho (construído socialmente) que deva ser
modificado, e não as pessoas.

Esse reducionismo explicativo exemplifica uma reação relativamente generalizada,


que também se manifesta quando são discutidos, no dia a dia, fenômenos do
mundo do trabalho que demandariam, na verdade, a compreensão das relações
indivíduo e sociedade, indivíduo e contexto de vida. Assim, é frequente que, nas
interações cotidianas, sejam buscadas explicações apressadas para os acidentes de
trabalho ou para o desemprego, explicações calcadas em características pessoais
dos trabalhadores. Isso é analisado por Oliveira (2007), no caso dos acidentados, e
por Farina e Neves (2007), no caso dos desempregados. 2

A lógica que acaba por culpabilizar a vítima ou por naturalizar as condições e a


organização do trabalho está presente também na noção de ato inseguro como
explicação dos acidentes de trabalho. Oliveira (2007) aponta a persistência desse
modelo explicativo nos contextos de trabalho. Segundo o autor:
A principal conclusão a se tirar é que a teoria dos dominós de Heinrich [promotora
da ideologia do ato inseguro], difundida durante o "milagre econômico" por órgãos
oficiais e por outros meios, estrutura o pensamento e as ações relacionados aos
acidentes de trabalho na fábrica estudada. As explicações baseadas nos atos
inseguros predominam em função da naturalização dos riscos e de mecanismos
institucionais que as reafirmam cotidianamente. (p. 26)

Um fenômeno que tem sido negligenciado e que diz respeito diretamente à SMRT é
o alcoolismo induzido pelo trabalho. Basta realizar um breve levantamento
bibliográfico para verificar que a maioria dos textos que abordam a relação entre
alcoolismo e trabalho o faz em nome da necessidade de erradicar comportamentos
improdutivos decorrentes do consumo abusivo de álcool.3 Nesse contexto,
raramente se cogita a participação da organização do trabalho na produção do
transtorno, atribuindo-se maior valor a características supostamente
predisponentes presentes no indivíduo, traços de personalidade, problemas
psicológicos. Assim, mesmo profissionais que atuam em instituições públicas
especialmente dedicadas a essa população, muitas vezes não consideram
importante sequer saber o tipo de trabalho que aquelas pessoas realizavam antes
do adoecimento e tampouco investigar a participação da atividade laboral no
processo de cronificação do agravo à saúde.

Tivemos a oportunidade de supervisionar um estágio em uma dessas instituições


que consistiu na realização de oficinas de discussão do tema trabalho com
alcoolistas.4 Um dos participantes da oficina relatou sua história, que revela
claramente o nexo entre alcoolismo e trabalho. Podemos sintetizá-la do seguinte
modo: ele operava uma máquina que não contava com dispositivos de segurança e
que já havia ocasionado vários acidentes, incluindo amputações de partes de
membros superiores; com o ritmo intenso de produção, o risco de acidentes
aumentava significativamente. Para dar conta do ritmo e do medo gerado pelo
risco, o trabalhador passou a recorrer aos efeitos do álcool, saindo do posto de
trabalho para consumir a bebida. Com o tempo, ele passou a levar a cachaça em
uma garrafa de água mineral e consumi-la durante a execução do trabalho. Esse
fato era de conhecimento de todos, tanto que o seu supervisor indicava
disfarçadamente que ele fosse beber um "cafezinho" (a cachaça) quando caía o seu
ritmo de produção, sabendo que o consumo de álcool viabilizaria a alta velocidade
com que ele conseguia produzir. Certa vez, uma colega de trabalho passou com os
cabelos soltos perto da máquina e sofreu um escalpo; o trabalhador foi demitido
por ter "causado" o acidente que quase custou a vida da colega e por consumir
álcool durante a jornada de trabalho! O mais interessante é que, mesmo nesse caso
em que o diagnóstico de "alcoolismo crônico relacionado ao trabalho" 5 praticamente
se constrói sozinho, a psicóloga da instituição pública especializada em tratamento
de usuários de álcool e drogas manteve intacto o seu raciocínio culpabilizante:
atribuiu ao inconsciente do trabalhador a escolha de uma atividade profissional que
o levaria ao consumo de álcool, como se houvesse uma predisposição individual a
desenvolver o transtorno. Argumentamos no sentido de explicitar que, no trabalho
desse operador de máquinas, não havia nada que pudesse indicar, nem de longe, a
facilitação do consumo de álcool, como seria de se esperar da atividade de alguém
que trabalhasse servindo bebidas alcoólicas ou fazendo a segurança de casas
noturnas. Mesmo assim, a tese da "escolha inconsciente do trabalho" foi mantida.
Ela, ainda, perguntando-se por que o trabalhador não havia mudado de emprego
ao perceber que aquele o estava prejudicando, concluiu pela predisposição
endógena ao consumo.

Vários outros exemplos poderiam ser apresentados. Diante dessa recorrente


reação, pensamos que seria importante tratar do modo como compreendemos
fenômenos que envolvem a contextualização das pessoas na vida material e social,
compreensão que é essencial no campo da SMRT, área que implica o diálogo
constante com outras disciplinas do conhecimento. 6 Além disso, é necessária a
articulação de vários territórios para a compreensão da SMRT (SELIGMANN-SILVA,
1994), que incluem:

- patamar internacional: é preciso considerar a divisão internacional da riqueza, do


poder e do trabalho (como exemplo, podemos citar a exportação, dos países ricos
para os pobres, de processos e substâncias químicas que oferecem riscos à saúde e
que foram recusados pelos trabalhadores dos países de origem);

- contextos nacionais: determinações estruturais, conjunturais, políticas


econômicas e de desenvolvimento social, legislação trabalhista e garantia de
direitos aos trabalhadores, existência de proteção ao emprego e à saúde, promoção
de qualificação social etc.;

- condições gerais de vida: moradia, saneamento básico, alimentação, transporte


são fatores que podem elevar o desgaste dos trabalhadores;

- empresas: relações de trabalho, políticas de recursos humanos, tipos de gestão e


possibilidades de controle dos trabalhadores;

- espaço microssocial do local de trabalho: aspectos coletivos, dinâmicas


intersubjetivas;

- individualidade: espaço no qual o indivíduo singular, em sua trajetória pessoal, irá


se "confrontar ativamente com as forças emanadas dos demais territórios
examinados e penetrar na malha de suas interações" (p. 71).

Desse modo, os estudos no campo da SMRT representam um desafio aos


pesquisadores:

Um desafio para os pesquisadores do novo é, portanto, o de integrar, de forma


compreensiva, as contribuições dos autores que têm se preocupado em analisar as
instâncias "macro" às daqueles que têm estudado fenômenos microssociais, nas
equipes e nos/dos locais de trabalho e, ainda, às dos que detectam a complexidade
da dinâmica intrapsíquica decorrente da vida e da experiência laboral.
(SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 71)

Colaborando para enfrentar a lógica simplificadora e


culpabilizante em saúde

A crítica realizada pelo campo teórico-prático da Saúde e Trabalho e pela


abordagem da Medicina Social Latino-Americana às concepções hegemônicas de
saúde e das determinações do processo saúde-doença permitem-nos questionar a
simplificação ideológica que atribui apenas aos indivíduos e às suas características
pessoais as causas de seus problemas de saúde, em geral, e os relacionados ao
trabalho, em particular. Essa crítica também possibilitou a construção dos pilares de
uma outra concepção acerca da gênese e da constituição do sofrimento psíquico
humano, a teoria do Desgaste Mental (SELIGMANN-SILVA, 1986). Vejamos agora
os elementos básicos da crítica para posteriormente conhecermos a teoria do
Desgaste Mental.

a) SMRT e a Saúde do Trabalhador, alguns conceitos fundamentais7

O campo da Saúde do Trabalhador emerge como um discurso contra-hegemônico –


campo de práticas teóricas (geração de conhecimentos) e práticas político-
ideológicas (visando à superação das relações de poder) – no contexto do
ressurgimento do movimento sindical no Brasil, no final da década de 1970.
Constituído pelos vetores da produção acadêmica, da programação em saúde na
rede pública e pelo movimento dos trabalhadores, busca compreender a
determinação do processo saúde-doença, privilegiando o trabalho (SATO;
BERNARDO, 2005; LACAZ, 2007). Nesse modo de entender a relação saúde-doença
e trabalho, o trabalhador comparece como sujeito, ao lado de saberes acadêmicos e
de profissionais da saúde, na luta pela transformação dos processos de trabalho,
"visando a resgatar o real ethos do trabalho: libertário e emancipador" (LACAZ,
2007, p. 760). Esse lugar ocupado pelos trabalhadores nas práticas do campo da
Saúde do Trabalhador configura-se como premissa metodológica, sendo o trabalho
do psicólogo Ivar Oddone (ODDONE et al., 1986) paradigmático nesse sentido,
conforme vemos em Minayo-Gomez e Thedim-Costa (1997):

(...) uma premissa metodológica é a interlocução com os próprios trabalhadores,


depositários de um saber emanado da experiência e sujeitos essenciais quando se
visa a uma ação transformadora. O reconhecimento desse saber/poder foi o
sustentáculo do "Modelo Operário Italiano" (ODDONE et al., 1986), que emergiu no
bojo do dinamismo dos movimentos sociais, em finais dos anos 70, tendo como
foco particular a mudança e o controle das condições de trabalho nas unidades
produtivas. A não-delegação, expressa pela recusa em transferir para técnicos ou
representantes sindicais a tarefa de sistematizar o conhecimento obtido pelos
grupos submetidos às mesmas condições de trabalho – grupos homogêneos – e a
validação consensual, resultante da discussão coletiva das avaliações que
pautariam os processos reivindicatórios, constituíram-se nos pressupostos básicos
desse modelo. (p. 29)

Os elementos básicos da perspectiva da Saúde do Trabalhador são os seguintes


(SATO, 1995):

- o trabalho não pode ser reduzido ao ambiente de trabalho. As regras que definem
a convivência entre patrões e empregados, as hierarquias, o ritmo, as formas de
avaliação, a possibilidade de controle do trabalho, ou seja, a divisão do poder
(divisão entre quem pensa e quem executa, quem manda e quem só deve
obedecer) define as condições de trabalho. A categoria teórica ampliada que inclui
esses aspectos é a "organização do trabalho";

- a consideração da presença de sofrimento ou desgaste mental relacionado ao


trabalho como indícios de sua penosidade, ainda que não se configurem como
doenças propriamente ditas;

- o questionamento quanto à definição de saúde preconizada pela Organização


Mundial de Saúde (OMS) como um "estado de bem-estar biopsicossocial".

Quanto a esse último aspecto, Canguilhem (1995) traz elementos para o


questionamento do conceito de saúde tal como definido pela OMS. Segundo Neves,
Seligmann-Silva e Athayde (2004), Canguilhem:

[...] aponta a saúde e a doença como dimensões constitutivas do processo


dinâmico que é a vida, estando cada uma dessas dimensões contida na outra [...]
afirma que saúde diz respeito à capacidade de o ser vivo estabelecer normas, de
tolerar e enfrentar as infidelidades e as agressões do meio (na medida em que o
normal se constitui das variabilidades e flutuações desse meio), o que é mais do
que adaptar-se. Ser saudável significa, então, ser capaz de detectar, interpretar e
reagir – enfim, é a capacidade de cair enfermo (ficar doente) e poder recuperar-se.
[...] A normalidade e a anormalidade fazem parte do campo da saúde, o que não
implica a doença. Dessa forma, segundo o autor, os conceitos de saúde e
enfermidade devem ser pensados a partir da correlação que se estabelece entre
determinações sociais e limites ou capacidades vitais. A capacidade de tolerância
para enfrentar as dificuldades está, portanto, diretamente associada a valores
biológicos e sociais. (p. 44-45)

Dejours (1986), seguindo o mesmo raciocínio, critica o conceito a partir da


dificuldade de definir o que seria um perfeito "estado de bem-estar biopsicossocial",
da impossibilidade de alcançá-lo e da natureza mutante e conflituosa da vida
humana. Se o que caracteriza o humano é justamente o movimento, o transformar-
se, o diferenciar-se de si mesmo durante a vida, como pode a saúde definir-se pela
noção de estabilidade? Se o que leva ao movimento são os conflitos vividos e seus
afetos correlatos, como pode a saúde caracterizar-se pela noção de harmonioso
bem-estar?

Desse modo, para Dejours (1986):

[...] a saúde para cada homem, mulher ou criança é ter meios de traçar um
caminho pessoal e original, em direção ao bem-estar físico, psíquico e social. A
saúde, portanto, é possuir esses meios. [...] O que significa possuir esses meios e o
que é esse bem-estar? Creio que para o bem-estar físico é preciso a liberdade de
regular as variações que aparecem no estado do organismo; temos o direito de ter
um corpo que tem vontade de dormir, temos o direito de ter um corpo que está
cansado (o que não é forçosamente anormal) e que tem vontade de repousar. A
saúde é a liberdade de dar a esse corpo a possibilidade de repousar, é a liberdade
de lhe dar de comer quando ele tem fome, de fazê-lo dormir quando ele tem sono,
de fornecer-lhe açúcar quando baixa a glicemia. É, portanto, a liberdade de
adaptação. Não é anormal estar cansado, estar com sono. Não é, talvez, anormal
ter uma gripe, e aí vê-se que isso vai longe. Pode ser até que seja normal ter
algumas doenças. O que não é normal é não poder cuidar dessa doença, não poder
ir para a cama, deixar-se levar pela doença, deixar que as coisas sejam feitas por
outro durante algum tempo, parar de trabalhar durante a gripe e depois voltar.
Bem-estar psíquico, em nosso entender, é, simplesmente, a liberdade que é
deixada ao desejo de cada um na organização de sua vida. E por bem-estar social,
cremos que aí também se deve entender a liberdade, é a liberdade de se agir
individual e coletivamente sobre a organização do trabalho, ou seja, sobre o
conteúdo do trabalho, a divisão das tarefas, a divisão dos homens e as relações que
mantêm entre si. (p. 11)

Sato (1995) aprofunda a discussão sobre a saúde-doença e sua relação com a


organização do trabalho. Essa categoria conceitual chave na Saúde do Trabalhador
tem como núcleo as questões do poder e do controle do trabalhador sobre o próprio
trabalho. Em pesquisa sobre a penosidade do trabalho de condutores de ônibus
urbanos, a autora verifica que, para que se possa afirmar a presença de controle
efetivo por parte dos trabalhadores, ou seja, para que se possa afirmar que uma
determinada atividade não seja penosa, geradora de desgaste mental, três
requisitos devem estar presentes simultaneamente:

- o poder, que diz respeito à possibilidade de o trabalhador interferir no


planejamento do trabalho de modo a modificar os contextos que geram incômodo,
sofrimento e esforço em demasia;

- a familiaridade, que se refere à experiência do trabalhador no desempenho da


tarefa;
- o limite subjetivo, que deve nortear o quando, o quanto e o como o trabalhador
suporta as demandas do trabalho.

Em síntese, a perspectiva da Saúde do Trabalhador parte da concepção de que a


saúde configura-se como um processo e não um estado, sendo que o mais
importante nesse processo é o ser humano ali comparecer como sujeito, como
alguém com condições e instrumentos para interferir naquilo que lhe causa
sofrimento. Essa perspectiva considera os indivíduos em sua diversidade (são
diferentes uns dos outros) e variabilidade (são variáveis com relação a si mesmos
conforme os diversos momentos pelos quais passam no decorrer de sua
existência). As possibilidades de ação no mundo, de intervenção na realidade
remetem aos contextos de vida, especialmente ao trabalho e, no interior dessa
esfera, à organização do trabalho, divisão das pessoas e das tarefas, divisão do
poder de intervir nos contextos de trabalho de modo a torná-los articulados ao
processo de saúde.

b) A contribuição da abordagem do processo saúde-doença da Medicina


Social Latino-Americana

A Medicina Social Latino-Americana representa um marco dentre as abordagens da


medicina construídas no início dos anos 1970, constituindo um modelo de
investigação do processo saúde-doença que afirma sua historicidade e busca
compreender a multiplicidade de suas determinações. O processo de trabalho
emerge como uma das mais importantes dentre essas determinações.

Laurell e Noriega (1989), no livro Processo de produção e saúde: trabalho e


desgaste operário, apresentam essa abordagem, que, tomando por base a teoria
marxista, coloca no centro de análise o trabalho compreendido no interior das
relações de produção capitalistas. Embora a questão principal de sua obra não seja
a saúde mental relacionada ao trabalho, mas sim a compreensão dos padrões de
desgaste vividos pelas distintas categorias de trabalhadores, sua proposta traz
relevantes contribuições ao estudo dos agravos à saúde mental relacionados ao
trabalho, especialmente no que se refere à sua inclusão no bojo dos conflitos entre
capital e trabalho.

O método utilizado para dimensionar o desgaste da força de trabalho consiste na


decomposição e posterior recomposição do processo de trabalho, definido como
"materialização do processo de valorização e divisão do trabalho, somente
decifrável a partir dele" (p. 105). Deve-se decompor o processo de trabalho em
seus elementos constituintes (ou seja, o objeto de trabalho, os instrumentos de
trabalho e o próprio trabalho), em seus aspectos técnicos (características físicas,
químicas e mecânicas) e sociais (a organização e a divisão do trabalho, bem como
seu desenvolvimento histórico). Deve-se reconstituir o processo de trabalho,
propiciando "[...] a integração cada vez mais complexa dos elementos, no marco de
uma dinâmica global que imprime uma nova qualidade ao conjunto" (p. 109). Ou
seja, o processo de trabalho deve ser reconstituído como "processo global" na
busca da "lógica que ordena as partes e lhes dá integridade". Desse modo, a
reconstituição não pode ser confundida com uma "síntese meramente somatória"
das partes decompostas, com a busca de relações de causa e efeito mecanicistas
(mono ou multicausais) ou de fatores de risco, sob pena de se perder nesse
procedimento a compreensão das formas através das quais interagem os elementos
entre si e com os trabalhadores. Daí é que se pode falar em relações de
determinação dos agravos à saúde pelo processo de trabalho, em contraposição às
noções de "determinismo" ou "causalidade".8
O desgaste operário assume diversas formas de acordo com o processo de
trabalho. Laurell e Noriega (1989) fazem uma revisão dos reflexos de diferentes
processos de produção sobre a saúde dos trabalhadores e verificam que, no interior
das transformações que levam do trabalho artesanal ao taylorismo, passando pelo
fordismo e a automação, a dominação e o controle do capital sobre o trabalho
intensificam-se e diminuem as possibilidades de o trabalhador ter controle sobre
seu próprio trabalho. Essas formas de organização do trabalho, que representam a
separação entre concepção e execução e a apropriação capitalista do saber-fazer
dos trabalhadores, procuram converter o sujeito-trabalhador em objeto, em fator
objetivo do processo de produção, em coisa sem subjetividade. Essas
características do processo de trabalho são traduzidas em cargas de trabalho.9

Os mesmos autores questionam a noção de risco ocupacional (que estabelece


relações de causalidade simples entre os agentes/fatores de risco e as patologias
do trabalho), propondo a categoria "carga de trabalho", que diz respeito às
exigências da organização do trabalho e da atividade do trabalhador. Há as "cargas
com materialidade externa" (físicas, químicas, biológicas etc.) e as "com
materialidade interna" (ritmo, controle, tensão psíquica etc.). Essas cargas
interagem dinamicamente entre si e com o corpo do trabalhador, do que decorre o
possível desgaste dos trabalhadores, desgaste esse que resulta dos processos
adaptativos que ocorrem em cada trabalhador e é definido como perda da
capacidade biopsíquica efetiva ou potencial, não se configurando necessariamente
como doença instalada. O padrão de desgaste de um determinado grupo de
trabalhadores pode ser identificado na relação entre processo de valorização,
processo de trabalho, cargas de trabalho e processo de desgaste.

As cargas psíquicas são aquelas que deixam mais clara a submissão de todas as
cargas à lógica da produção capitalista, só podendo ser entendidas no interior dela:

No caso das cargas psíquicas, ressalta com particular clareza que são socialmente
produzidas e que não podem ser compreendidas como "riscos" isolados, ou
abstratos, à margem das condições que as geram. Todavia, isso é também certo
para o restante das cargas, incluindo aquelas que têm materialidade externa à
corporeidade humana. Ou seja, se bem o ruído seja ruído, e como tal origina
transformações no processo biopsíquico, não é irrelevante perguntar por que se
produz e porque se mantém num determinado nível. Ao tentar responder a essas
perguntas com relação a qualquer carga, aparecem invariavelmente dois fatos. Um
é que surge como expressão particular da forma específica de produzir (das
características da base técnica e dos objetos empregados, mas também da
organização e divisão do trabalho). Outro é que a intensidade, e ainda a presença
ou não das cargas não é alheia às relações de força entre capital e trabalho num
centro de trabalho concreto e na sociedade. (LAURELL; NORIEGA, 1989, p. 113)

Ainda sobre essas cargas psíquicas presentes nos processos de trabalho, pode-se
dizer que, segundo Laurell e Noriega (1989), dividem-se em dois tipos: a
sobrecarga psíquica, decorrente de situações de tensão prolongada (exemplos:
atenção permanente, supervisão com pressão, consciência da periculosidade do
trabalho, altos ritmos de trabalho); a subcarga psíquica, relacionada a situações em
que o trabalhador é impossibilitado de fazer uso de suas capacidades psíquicas no
trabalho (exemplos: perda do controle sobre o trabalho ao estar o trabalhador
subordinado ao movimento da máquina; desqualificação do trabalho, resultado da
separação entre concepção e execução; a parcelização do trabalho, que redunda
em monotonia e repetitividade).

Lacaz (2007) sintetiza as principais características da Medicina Social Latino-


Americana:
A Medicina Social Latino-Americana apreende-o [o trabalho] através do processo de
trabalho, categoria explicativa que se inscreve nas relações sociais de produção
estabelecidas entre capital e trabalho. E, conforme a acepção marxista, aqui o
trabalho é, ontologicamente, a ação do homem sobre a natureza para modificá-la e
transformá-la e a si mesmo, não sendo, portanto, externa ao homem. Tal ação vai
ocorrer sobre o objeto de trabalho, mediante os instrumentos de trabalho,
configurando o próprio trabalho e suas diferentes formas de organização, divisão,
valorização, características de cada formação social e modo de produção, o que
imprime um caráter histórico ao estudo das relações trabalho-saúde e,
conseqüentemente, do adoecimento pelo trabalho. Importa, então, desvendar a
nocividade do processo de trabalho sob o capitalismo e suas implicações:
alienação; sobrecarga e/ou subcarga; pela interação dinâmica de "cargas" sobre os
corpos que trabalham, conformando um nexo biopsíquico que expressa o desgaste
impeditivo da fluição das potencialidades e da criatividade. (p. 759-760, grifos do
autor)

c) O desgaste mental: afirmando a compreensão marxista da SMRT

Nessa perspectiva, os elementos presentes na organização e no ambiente do


trabalho (divisão do trabalho, conteúdo das tarefas, ritmo de trabalho, relações de
poder, condições ambientais, formas de avaliação e controle, hierarquias etc.) são
entendidos como "fontes laborais de tensão", que provocam o desgaste que se
manifesta por diferentes configurações. Esse conceito, por sua abrangência,
propicia o avanço dos estudos do campo SMRT e permite:

[...] instrumentar o necessário estudo da gênese da tensão que vai se tornar em


sofrimento e sem que este sofrimento deixe de ser examinado em suas diferentes
configurações: fadiga, depressão, distúrbios psicossomáticos, síndromes neuróticas,
reações psicóticas, alcoolismo etc. (SELIGMANN-SILVA, 1986, p. 66)

Muitos processos de desgaste orgânico determinados pelo trabalho são bem


conhecidos, assim como a existência de danos decorrentes de processos de
trabalho que atingem o substrato orgânico do psiquismo, como no caso de
determinados acidentes de trabalho e de intoxicações que exercem efeitos
destrutivos ou prejudiciais aos processos bioquímicos do sistema nervoso,
ocasionando déficits intelectuais ou transtornos de ordem psicoafetiva (exposição a
chumbo, mercúrio ou a outros metais pesados). Há também agentes biológicos e
físicos capazes de agredir o sistema nervoso.

Mas o que se pode dizer quando não há acometimento desse substrato orgânico?
Seligmann-Silva (1994) coloca-se a seguinte questão:

Será possível reconhecer um desgaste das capacidades mentais-(cognitivas e psico-


afetivas) determinado pelo trabalho, de forma independente da ocorrência de
"desgaste" ou da destruição de estruturas do sistema nervoso central? (p. 78)

Para respondê-la, a autora emprega a noção de "perda" ou "expropriação"


subjetivas vividas pelos trabalhadores em processos de trabalho nos quais eles
devem comparecer como coisas sem subjetividade, ou seja, em contextos de
intensa sujeição. Em suas palavras:

Temos, assim, uma outra vertente de análise, quando consideramos a forma pela
qual a situação de trabalho dominado/explorado atua sobre a subjetividade, que
modula relações e usos pessoais do tempo, do espaço, dos próprios gestos e
pensamentos. Este seria o "trabalhador por inteiro", que estaria exposto a ser
expropriado de componentes importantes de sua subjetividade, no interior daquelas
situações onde a sujeição é intensa [...]. (p. 79, grifo da autora)

Fortalecendo o argumento de que os agravos mentais decorrentes do trabalho


podem ser explicados por meio da noção de desgaste mental, a autora, partindo do
referencial teórico do materialismo histórico, resgata a definição de desgaste
proposta por Laurell e Noriega (1989), que implica "perda de capacidade potencial
e/ou efetiva, corporal e psíquica" e a afirmação desses mesmos autores, bem como
de Doray (1981), sobre a utilização deformada e deformante das potencialidades
psíquicas e do próprio corpo do trabalhador no trabalho alienado. Se há perda e
deformação, ou seja, se há transformações negativas de um estado anterior mais
satisfatório, pode-se entender o desgaste mental como processo constituído de
"experiências que se constroem diacronicamente, ao longo das experiências de vida
laboral e extralaboral dos indivíduos" (SELIGMANN-SILVA, 1994, p. 80).

Seligmann-Silva (1986) também deixa claro o seu entendimento sobre a


participação do trabalho na produção de transtornos mentais, considerando
possíveis tanto o papel desencadeador, quanto o de produtor dos agravos. Em
pesquisa que realizou com trabalhadores do setor siderúrgico nos anos 1980,
verificou o seguinte:

A discussão referente ao tipo de ação – predisponente ou desencadeante –


assumida pelas condições ambientais e organizacionais do trabalho, tem
permanecido acesa, como já vimos. Para os trabalhadores do setor siderúrgico que
haviam estado por longos anos expostos a condições de trabalho extremamente
penosas, a análise de seus históricos de vida, trabalho e saúde conduziu-nos,
muitas vezes, a perceber que o acúmulo dessas experiências se constitui em
verdade um processo preparatório e predisponente à instalação das manifestações
psicopatológicas. E que este processo gradualmente foi minando a vitalidade, as
resistências da personalidade e, muitas vezes, também a esperança. Foi assim que
concluímos, para os casos estudados, que pôde ser verificado que as condições
laborais tanto tiveram ações predisponentes, como exerceram efeitos
desencadeantes de quadros psicopatológicos diversos. E ainda, que a agudização
das exigências laborais, em circunstâncias muitas vezes decorrentes da crise
econômica, para pessoas já anteriormente em estado de fadiga crônica,
representou clara ação desencadeante de crises mentais, que, em vários dos casos
estudados, conduziu à hospitalização psiquiátrica. (p. 86, grifos da autora)

Entendemos que a definição do "desgaste mental" como "a presença de perda ou


de transformações negativas na subjetividade, nas capacidades e faculdades
humanas" traz uma aparente simplicidade, que potencializa a interlocução com os
diversos profissionais envolvidos com SMRT. Os significados do verbete "desgaste"
(HOUAISS, 2001) – "ação ou efeito de desgastar(-se); desgasto", "alteração ou
redução da forma, por fricção ou atrito; corrosão", "consumição pelo tempo, pelo
esforço; destruição, envelhecimento, ruína" ou ainda "redução da capacidade, do
poder; abatimento, enfraquecimento" – convidam a pensá-lo como um processo no
qual estão presentes pelo menos dois elementos, o que é desgastado e o que
produz o desgaste, o que remete a interrogações sobre os elementos desse
processo e as determinações do sofrimento mental.

Ao mesmo tempo em que é uma noção aparentemente simples, o conceito de


desgaste guarda a complexidade na compreensão dos agravos à saúde mental
relacionados ao trabalho, uma vez que permite superar os limites e os contornos
dos diferentes objetos estudados a partir de diferentes leituras teórico-
metodológicas. Além disso, é coerente com a perspectiva da Saúde do Trabalhador,
trazendo uma visão ampliada do processo saúde-doença e a categoria "organização
do trabalho" como norteadora da análise.

Os desafios dos profissionais de saúde

Entendemos que os desafios a serem enfrentados pelos profissionais de saúde são


grandes e urgentes. Há que se compreender melhor, no dia a dia de trabalho das
equipes dos Cerests (Centros de Referência em Saúde do Trabalhador), do PSF
(Programa de Saúde da Família, Atenção Básica à Saúde), das UBSs (Unidades
Básicas de Saúde), dos CAPSs (Centros de Atenção Psicossociais), dos consultórios
particulares etc., a imbricação entre as questões de saúde e a vida dos usuários,
vida essa que inclui sua trajetória pessoal, as questões familiares, educacionais,
subjetivas e também aquelas relacionadas ao trabalho ou à ausência dele. Além de
compreender, é preciso incluir essas dimensões na assistência e no trabalho
preventivo, guardadas as devidas especificidades de programas e instituições.

É necessário enfrentar as falsas perguntas que surgem, muitas vezes, de modo


automático, quando os profissionais se veem diante de alguém em situação de
adoecimento, perguntas tais como: por que ele adoeceu e não outras pessoas? Por
que ele não procurou outro trabalho? O que há de singular que explique o
adoecimento? Ampliar essas questões é se perguntar: será que não há outras
pessoas no mesmo trabalho ou categoria profissional que apresentam esse mesmo
quadro? Seria possível desconsiderar os anos de dedicação e empenho a uma
determinada atividade e procurar outro trabalho, ainda mais em tempos de
desemprego? O que esse quadro me diz desse sujeito e de seu contexto maior de
vida e trabalho? Como se produziu esse agravo no decorrer e no interior de sua
vida? Enfim, é necessário que se possa partir do questionamento da ideia de que o
indivíduo possa construir a si mesmo sozinho e que, desse modo solitário, também
possa enfrentar e superar as dificuldades vividas.

O enfrentamento desses desafios é especialmente importante no contexto atual,


em que passa a vigorar o Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (BRASIL,
2006). Trata-se de lei que permite à previdência social conceder benefício
acidentário ao trabalhador incapacitado para o trabalho que seja acometido por
doença cujo risco de adquiri-la seja maior no ramo econômico ao qual pertence a
empresa em que trabalha, ou seja, com base em critério epidemiológico. Também
inverte o ônus da prova, instituindo que cabe ao empregador provar que os
trabalhadores acometidos por agravos à saúde com alta prevalência no ramo
econômico considerado não adoeceram por causa do trabalho, diferentemente da
lógica anterior, em que o trabalhador é quem tinha que provar que seu problema
estava relacionado ao trabalho que realizava. Além disso, o Fator Acidentário de
Prevenção (FAP) permite taxar mais as empresas que mais acidentaram e
adoeceram num determinado período de tempo, tendo como referência a alíquota
do ramo econômico a que pertence.

Essa nova legislação, que representa uma conquista dos trabalhadores e estimula a
prevenção, coloca em destaque o tema da construção do nexo entre SMRT e os
desafios presentes nessa empreitada.10

Contribuições de autoria

Os três autores contribuíram igualmente para a realização da revisão teórica


apresentada e para a elaboração do manuscrito cuja versão final recebeu
aprovação de todos.
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dos benefícios da previdência social; e revoga a Medida Provisória nº 316, de 11 de
agosto de 2006; disposotivos das Leis nos 8.213, de 24 de julho de 1991, 8.444, de
20 de julho de 1992, e da Medida Provisória nº2.187-13, de 24 de agosto de 2001;
e a Lei nº10.699, de 9 de julho de 2003. Disponível em:
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Contato:
Renata Paparelli
Rua Monte Alegre , 984, sala T-52 – Perdizes, São Paulo-SP
CEP 05014-901
E-mail: [email protected]

Recebido: 18/02/2010
Revisado: 13/10/2010
Aprovado: 20/10/2010

1 De acordo com Ricardo Antunes (1999), a "classe-que-vive-do-trabalho" exclui


apenas "os gestores do capital, seus altos funcionários, que detêm papel de
controle no processo de trabalho, de valorização e reprodução do capital no interior
das empresas e que recebem rendimentos elevados" (p. 104), os que vivem da
especulação e dos juros, os pequenos empresários, a pequena burguesia
proprietária rural e urbana.
2 Ver também Neves et al. (1998).
3 Uma das exceções que não afirmam essa lógica é o artigo de Halpern, Ferreira e
Silva Filho (2008).
4 Estagiárias envolvidas: Flávia Thomé Alvarez e Natália Degaki.
5 Para maiores informações, ver Dias et al. (2001).
6 Segundo Seligmann-Silva (1994), são exemplos dessas disciplinas: Medicina do
Trabalho, Psicologia do Trabalho, Psicopatologia do Trabalho, Toxicologia,
Ergonomia, Psicanálise, Fisiologia, Neurologia, Psiquiatria, Medicina Psicossomática,
Economia Política, Estudos sobre Organização do Trabalho, Ciências Sociais,
Filosofia.
7 Esse tópico, bem como os dois seguintes, caracterizam-se como uma
reformulação de texto contido na tese de doutorado de Paparelli (2009).
8 Esse método remete ao empregado por Marx, em O Capital, na análise do modo
de produção capitalista, entendido como uma totalidade complexa, síntese de
múltiplas determinações categoriais (sendo as categorias expressões de relações
sociais complexas, propriedades essenciais do concreto). As categorias analisadas
por Marx para que a totalidade concreta "capitalismo" seja compreendida são a
mercadoria, o dinheiro, o capital e o salário.
9 Laurell e Noriega (1989) referem-se ao taylorismo-fordismo e não ao toyotismo.
Bernardo (2009) revela que, apesar das afirmações de que a empresa toyotista
superou os problemas do modelo taylorista-fordista – devolvendo o controle do
trabalho ao trabalhador a partir de sua inserção em "equipes de trabalho", de seu
desempenho estar associado à "participação", à "autonomia" e à "competência" –,
não é isso o que se verifica quando os próprios trabalhadores se põem a falar sobre
seu trabalho. Na vivência dos trabalhadores que ela entrevistou, aparecem com
maior frequência o sofrimento e a dor intimamente relacionados ao excesso de
responsabilidades, à humilhação cotidiana e à imposição de ritmo de trabalho,
responsáveis pelo adoecimento dos trabalhadores.
10 Dentre os pesquisadores brasileiros empenhados nessa tarefa, destaca-se Lima
(2002, 2003, 2005).
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