Concepà à o de Crianà A, Infà Ncia e Educaà à o

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A C R I A N Ç A N O C I C L O D E A L FA B E T I Z A Ç Ã O

Claudinéia Maria Vischi Avanzini (Pedagoga da Secretaria de Estado da Educação do Município de


Araucária)
Lisandra Ogg Gomes (Professora da Universidade do Rio de Janeiro)

O que é ser criança? O que significa a infância? As respostas para essas perguntas
podem parecer simples, até mesmo nos dias de hoje, se pensarmos na quantidade
de imagens, discursos, práticas, teorias e pesquisas acerca desses indivíduos e
dessa geração ao longo da História. Podemos iniciar essa incursão considerando
três perspectivas: a criança, enquanto um ser genérico; a infância, como uma
geração ou fase da vida; e as crianças, a partir do modo como vivem suas infâncias.
O que queremos pontuar é que não podemos conceber como sinônimos “infância” e
“criança”, e também não podemos idealizar uma única infância ou criança, pois são
diversas as infâncias que as crianças vivem. Assim, apresentaremos concepções de
determinadas épocas acerca de “infância”, “criança” e “educação”, para que o leitor
perceba a continuidade no tempo de determinadas ideias e práticas.
Há de se considerar que, por um lado, infância é uma construção sócio-histórica,
ou seja, a infância é produzida pelo conjunto da sociedade a partir de ideias, práticas
e valores, que se referem, sobretudo, às crianças, sendo que esses elementos são
estabelecidos, difundidos e reproduzidos social e culturalmente. Infância não é
natural, mas um fato social, ou seja, é uma construção coletiva que assume uma
forma, tem um sentido e um conteúdo, os quais são estabelecidos a partir das formas
de agir, pensar e/ou sentir de uma coletividade. Portanto, independentemente das
manifestações individuais, quando as crianças nascem são inseridas nessa geração
e em um contexto sócio-histórico, quer elas queiram ou não. Ademais, a infância não
termina quando as crianças crescem. Essa geração continua a existir e a receber
novas crianças. Infância é uma geração, pois compõe a estrutura da sociedade,
tem uma função, uma posição e está sujeita aos mesmos parâmetros – econômico,
tecnológico e cultural, por exemplo – que as demais gerações (QVORTRUP, 2010).
Por outro lado, há uma representação social – ideal e universal – de criança,
pautada em fases apropriadas de desenvolvimento infantil e formas de socialização
que a caracterizam pela imaturidade e dependência, orientando práticas e ideias
que a levem à maturidade e independência – aspectos que serão analisados no
decorrer deste texto.
Ainda assim, na atualidade, já se reconhece que as crianças têm suas
necessidades, têm seus processos físicos, cognitivos, emocionais e características
individuais – sexo, idade, etnia, raça e classe social – e têm seus direitos e deveres.
Portanto, suas infâncias são diversas, pois elas atuam e participam nos espaços
socioculturais, e de seus tempos.

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Dessa forma, para entender a história e as concepções, tanto a respeito da infância
como da criança, das crianças e suas infâncias, tomamos as Ciências Sociais, a
partir dos campos da História, Psicologia, Filosofia, Sociologia e Educação.
A compreensão histórica das ideias acerca das crianças e da infância exige
entender duas questões: a) em qualquer época, a preocupação com elas e a educação
delas sempre existiu, mas nem sempre foi da mesma forma; b) o conhecimento
social construído acerca das crianças não se deu apenas na sociedade europeia.
Portanto, a importância atribuída às crianças se relaciona tanto à esperança de vida
como de continuidade das sociedades e da participação social.
No entanto, nas sociedades ocidentais, conforme as relações sociais foram se
tornando cada vez mais próximas e as interdependências mais extensas e menos
controláveis, o indivíduo surge como um ser único, específico e responsável por suas
próprias ações. É reconhecido o indivíduo singular em um espaço social diverso,
amplo e complexo, que tem expectativas em relação a ele mesmo e que deve adaptar-
se à normativa social. Assim, três elementos são essenciais para compreender
esse percurso acerca da infância e das crianças: Primeiramente, a individualidade
surge como elemento essencial na contemporaneidade; em segundo lugar, a
institucionalização familiar e escolar se tornaram os ancoradouros da infância e
para as crianças; e, por fim, nos dias atuais a infância passou a ser reconhecida como
uma geração que é parte da estrutura social, e as crianças, como atores sociais. De
todo modo, essa forma como hoje entendemos as crianças e a infância e lidamos
com elas faz parte de uma gradual e intricada construção sócio-histórica.
Os estudos de Becchi e Julia (1996) e de Ariès (1981, 1999) mostram que tanto
na Antiguidade como na Idade Média o cuidado com as crianças e a educação
delas sempre existiram, mas certamente foram diferentes dos das épocas seguintes.
Ocorre que, diante de determinados contextos e circunstâncias, era grande a
mortalidade infantil, comumente em decorrência do pós-natal e das péssimas
condições sanitárias e de higiene de toda a população. Além disso, é necessário
pontuar que, na época medieval, predominava uma ordem socioeconômica
estratificada e uma estrutura familiar alargada e interacional. Nessa ampla estrutura
familiar coletiva, as interações entre os indivíduos eram de consanguinidade, união
e filiação, e o que estava em pauta, nesse contexto público, eram os preceitos de
lealdade e reciprocidade. Portanto, cada indivíduo – crianças, jovens, adultos e
velhos – desempenhava certo papel vinculado às normas, aos costumes sociais
e às exigências futuras, pois era reconhecido o processo de dependência cultural
(SGRITTA, 1994; SGRITTA e SAPORITI, 1989; MAUSS, 2003).
Nesse contexto, a escola, de responsabilidade da Igreja, era dirigida a uma
minoria, em geral, destinada aos eclesiásticos ou religiosos, e para famílias que
podiam pagar por um professor, o qual ensinava a partir de situações organizadas.
Para os outros, os mais pobres e mesmo para as meninas de famílias de classe
economicamente dotada, a educação era doméstica, não havia uma instrução
organizada, aprendiam coisas diversas – ofícios manuais e regras sociais – em
ambientes informais, como, por exemplo, nas ruas, na família ou no trabalho, mas
não aprendiam a escrever e, quase nunca, a ler (BECCHI, 2010).

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É preciso considerar que as relações entre crianças, jovens, adultos e velhos se


davam a partir de uma hierarquia fundamentada em grupos de idade, o que nos
leva à questão da classificação das idades da vida. Essas classificações variaram
ao longo dos séculos, pois eram estabelecidas a partir dos ciclos da natureza e da
organização da sociedade, portanto correspondiam às etapas biológicas e funções
sociais (ARIÈS, 1999). Hoje em dia, termos específicos, como, por exemplo, “recém-
nascido”, “bebê”, “criança” e “jovem” revelam a historicidade e variabilidade que se
manifestam nas representações, nas teorias, nos discursos e nas políticas sociais,
isto é, tanto no nível do objeto quanto do olhar que é dirigido para a infância (SIROTA,
2007).
Dessa forma, quando se diz que a infância é uma construção social, significa
que em determinados períodos ela ainda não se revelava através das perspectivas e
realidades que lhe garantissem a autonomia e diferenciação enquanto uma geração
– com funções e posições na sociedade, e práticas e ideias acerca dela. Além
disso, as crianças, na medida das suas capacidades, participavam da vida social
misturadas aos adultos, expostas aos perigos e às violências da época (BECCHI,
2010; QVORTRUP, 2005).
Gélis (1991) revela que, a partir do século XV, passou a existir na sociedade uma
crescente vontade de salvar as crianças, o que desencadeou novos sentimentos e uma
nova atenção, mas esses novos sentimentos e atenção não podem ser considerados
melhores ou maiores em comparação às épocas passadas. Porém, não é apenas um
novo sentimento de infância que nasce, mas um processo de grandes transformações
na sociedade, com a moralização dos comportamentos, o nascimento da família
moderna e a ampliação nas formas de comunicação. Contudo, é preciso ter claro
que participavam do mesmo espaço temporal crianças de diferentes estratos
sociais, como, por exemplo, aquelas que viviam em famílias com comportamentos
de violência e ternura entre pais e filhos, as crianças deixadas aos cuidados da
Igreja, as que vagueavam pelas ruas, e ainda aquelas da burguesia e aristocracia,
enclausuradas nos espaços domésticos (JULIA, 1996).
Também, a partir do século XV, nas sociedades europeias, com as transformações
sociopolíticas, começa a se concretizar e difundir a ideia de uma escola para todos, e
esse é mais um fato que vem a reforçar a construção social de infância. As instituições
de educação se abrem para um número crescente de laicos, nobres e burgueses
e, mesmo que posteriormente, para as famílias socialmente mais modestas. Essa
escola é constituída por um corpo de professores – formados nas ordens religiosas
–, por uma disciplina rígida, classes numerosas e normas que são diversas daquelas
dos adultos (ARIÈS, 1999).
James, Jenks e Prout (2002) elaboraram alguns conceitos – denominados de “pré-
sociológicos” – a respeito da criança que, de alguma forma, influenciaram, e ainda
influenciam, o nosso modo de educá-la, cuidar dela e compreendê-la. Uma dessas
concepções é a da criança má. Conquanto na atualidade não seja fácil considerar-se
essa concepção, ela já teve seu valor em diferentes contextos históricos. A teoria da
criança que tem disposição para a maldade, corrupção e mesquinharia teria seus
fundamentos em mitos e teorias filosóficas acerca do homem, por exemplo, por ser

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um pecador nato e por ter uma natureza de má índole. Para o filósofo Thomas Hobbes
(1588-1679), os homens são maus por natureza, ou segundo sua frase célebre: “o
homem é o lobo do homem” (HOBBES, 1979). Portanto, por ser fruto do pecado
original, os instintos infantis deveriam ser reprimidos e uma boa educação era ter a
criança nas mãos. A criança, por sua natureza frágil e vulnerável, pode ser facilmente
desviada e corrompida, logo, precisa ser educada e controlada. Essa proposta de
educação vincula-se a uma tradição puritana e valoriza o princípio da boa conduta
(JAMES, JENKS e PROUT, 2002). O que está em evidência nessa concepção é a
moralização e civilização da criança, como uma forma de proteger a sociedade. Para
isso, são efetivadas práticas pedagógicas de correção, adestramento, controle e
aprimoramento do corpo e da mente infantis.
Ainda que tardia, essa concepção esteve em evidência no Brasil, entre os séculos
XIX e XX, e a ideia de periculosidade aparece na literatura da época, principalmente,
quando se faz referência às camadas sociais desfavorecidas. A criança que mais
aparecia nesses documentos – aos olhos da elite – era aquela que carecia de proteção
do Estado e precisava ser “corrigida” e “reeducada”. A criança era representada como
potencialmente perigosa ou personificava o perigo, enquanto viciosa, pervertida,
criminosa (RIZZINI, 2011). Para ilustrar essa afirmação, destacamos, do estudo de
Rizzini (2011), um trecho do discurso do Dr. Alfredo Ferreira de Magalhães, proferido
na sessão inaugural do I Congresso Brasileiro de Protecção à Infância, em 1922.
Quando recolhemos um pequeno ser atirado sosinho nas tumultuosas marêtas dos refolhos
sociais, victima de paes indignos ou de taras profundas,
; quando tentamos chamar ou fazer voltar
á saúde physica ou moral seres decadentes e fracos, ameaçados pela contaminação do
crime, contra agressões das quais, para ella
mesma, o abandono das crianças constittue uma ameaça ou um presságio (Dr. Alfredo
Ferreira de Magalhães, 1922, apud RIZZINI, 2011, p. 84 – grifos de acordo com o texto).

Ocorreram mudanças significativas nas sociedades ocidentais, entre os


séculos XVII e XVIII, que influenciaram as concepções posteriores. Entre elas, a
constituição familiar tornou-se, sobretudo, nuclear e privada, e despontaram as
ideias de Jan Amos Comenius (1592-1670), que defendia a universalização da
escola e reconhecia que todos os homens têm direito ao conhecimento (COMENIUS,
2006). A institucionalização definiu as funções da escola e da família na formação
e orientação das crianças, agora com base em representações e expectativas do
que é ser criança e considerando a infância como uma fase na vida das crianças. É,
portanto, com a moderna família nuclear e privada que a criança, sobretudo da Europa
burguesa, passou a ser considerada por um conjunto de características próprias e
por sua fragilidade e vulnerabilidade, distintas das dos adultos. A individualização
e a institucionalização da criança favoreceram a constituição da ideia de infância
de modo semelhante ao que hoje se conhece (BÜHLER-NIEDERBERGER, 2010;
BARALDI, 1997).
Esse processo foi ampliado às outras classes e são propagadas as ideias de John
Locke (1632-1704) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) para “criança” e “infância”:
o primeiro, por considerar que as crianças são seres passivos e que a aprendizagem

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ocorre pelas vivências adquiridas com os objetos; o segundo, por considerar que as
crianças não são adultos em miniatura, mas simplesmente crianças que devem ser
educadas com liberdade, em um meio natural, e respeitadas, por serem naturalmente
boas. Decerto, essas ideias produziram uma verdadeira revolução pedagógica, que
pôs ao centro a criança, com seu processo de desenvolvimento e sua socialização
moral. Além disso, exalta-se a infância como a idade genuína do homem e, ainda,
determina-se o valor social da educação por seu poder de mudar a sociedade,
devendo começar desde a criança, e utilizando itinerários, estratégias didáticas e
modos de ensinar mais adaptados a elas (BECCHI, 1996; CAMBI, 2012).
Essas ideias colocam em evidência duas concepções de criança: A primeira,
de Rousseau, é a criança inocente, a qual nasceria boa, com um coração puro e
ainda não corrompido pela sociedade. Por sua bondade natural e uma visão pura do
mundo, a criança deveria ser considerada por seus próprios valores e sua educação
deveria estar pautada na sua inocência, para que não fosse atingida pela violência
e maldade que a cercam (JAMES, JENKS e PROUT, 2002). Essa teoria confronta, em
primeiro lugar, a ideia entre indivíduo e sociedade, ou seja, evidencia uma imagem
romântica de criança e se propõe que espontaneamente esse indivíduo terno e puro
é capaz de construir um mundo melhor. Em segundo lugar, essa concepção trata
das questões entre natureza e cultura, ao reconhecer que a inocência da infância é
nata, portanto a sociedade deve responsabilizar-se pelas crianças. Rousseau é quem
promove as crianças à condição de indivíduos, pois as considera virtuosas, dotadas
de uma atividade intelectual autônoma e sujeitas a um processo de desenvolvimento
equilibrado. A educação deve ser de estímulo, cuidado, segurança e simplicidade,
através de jogos, objetos e ambientes que permitam uma formação por meio da
experiência, manipulação e ação. O relato a seguir ilustra como fragmentos dessa
concepção estão presentes na escola dos dias de hoje.

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Por sua vez, John Locke, predecessor de Rousseau, questiona a ideia de que a
Jogos de infância é o paraíso da bondade e reciprocidade ou brutalidade (JAMES, JENKS e
alfabetização
distribuídos pelo PROUT, 2002). A criança imanente – algo que é próprio do ser – seria por natureza
MEC às escolas.
diferente em comparação ao adulto, portanto não possuiria a compreensão e
a facilidade para desenvolver um pensamento, pois sua mente ainda seria como
uma carta branca, que deveria ser preenchida a partir das experiências. As crianças
seriam seres humanos em potencial, seres humanos em devir.
No capítulo 2
deste Caderno, Ambas as concepções definem o papel fundamental da educação a partir de
são apresentadas
reflexões sobre a um ambiente apropriado, que possa garantir o desenvolvimento dos processos
ludicidade.
mentais, das percepções e, inclusive, da razão. Certamente, essas ideias foram
bem aceitas e adotadas, tanto no âmbito escolar como no familiar, pois a criança
passou a ser reconhecida por seu potencial, sua naturalidade, sua imanência e pelas
Nos Cadernos dos
anos 1, 2 e 3, na
predisposições dos seus processos mentais. Os processos de conhecimento,
unidade 4 (2012),
o tema ludicidade
desenvolvimento e socialização seriam concretizados com a formação de adultos
na sala de aula é
abordado.
virtuosos.
No Brasil, em fins do século XIX, vimos ressoar essas concepções, pois o
país vivia um momento de sua formação política e social, de materialização de sua
nacionalidade. “Por um lado, a criança simbolizava a esperança – o futuro da nação.
[…]. Descobre-se, pois, na infância, o potencial que se tinha em mãos. Identifica-se
na criança a possibilidade de moldá-la para o bem (virtuosa) ou para o mal (viciosa)”.
(RIZZINI, 2011, p. 25-27).
E, no século XXI, diante das dificuldades socioeconômicas que ainda afetam
parte da população brasileira, a educação tem um papel fundamental para garantir
as potencialidades das crianças – como ilustra o relato abaixo.

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Na Seção
Esse reconhecimento da infância já ocorria no século XIX, quando ela passou Compartilhando, o
texto “Afetividade,
a ser estudada por diferentes áreas do conhecimento, as quais construíram sim!” reflete sobre o
imagens e discursos acerca dessa fase da vida, por exemplo, como portadora de papel da afetividade
no processo
mensagens e valores. pedagógico.

Na ótica sociológica desse período, a criança é um ser individual – com suas


disposições mentais – que deve se tornar social. Considerada como uma tábula rasa,
a criança precisa ser preparada para garantir as condições essenciais de existência
da sociedade. Portanto, a escola e a família são as instituições fundamentais que
asseguram a socialização da infância. As crianças são um projeto pré-social e a
educação, compreendida como socialização, deve prepará-las para a vida social e
formar as disposições físicas, intelectuais e morais de que elas necessitam para
viver em sociedade (DURKHEIM, 1955).
O campo da Psicologia aponta a necessidade de acompanhar o crescimento
da criança e, para isso, orienta a ação educativa a partir de uma teoria geral do
desenvolvimento humano e um modelo padrão de aprendizagem. Desse modo,
o processo de construção da escola moderna é influenciado pela Psicologia da
Educação e da Criança (CRAHAY, 2011). Os estudos realizados no campo da Psicologia
transformam o modo de compreender a criança e influenciam a constituição da
infância como uma fase da vida. Certamente, Jean Piaget (1896-1980) e Lev Vygotsky
(1896-1934) são os grandes teóricos da Psicologia da Criança, que a estudam como
construtora do seu crescimento e como um ser singular de dimensões diversas. Para
Piaget, a criança adapta-se sempre de modo mais sólido e complexo. À medida que
se desenvolve, ela aprende, portanto o conhecimento se dá de dentro para fora. Já

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para Vygotsky, a criança é um indivíduo que aprende a se desenvolver na interação
com outros mais experientes do seu meio sociocultural.
No plano pedagógico, as teorias de Piaget são evidentes e bem definidas: o
efeito de qualquer prática educativa é dependente do processo de equilibração, ou
seja, de um processo intrínseco de estruturação dos conhecimentos, no decorrer do
qual o indivíduo se esforça para assimilar o exterior a partir do seu conhecimento
interior. Por sua vez, Vygotsky elabora o conceito de “zona de desenvolvimento
proximal”, ou seja, a distância entre o desenvolvimento real e o potencial. Dessa
forma, a aprendizagem impulsiona o desenvolvimento ao estimular na criança uma
série de processos cognitivos que são ativados nas interações com os adultos e/ou
em colaboração com outras crianças. Uma vez interiorizado, esse processo converte-
se em uma conquista da própria criança (CRAHAY, 2011).
O campo da Psicanálise produz um conjunto de princípios acerca da infância, ao
revelar que a construção psíquica de cada indivíduo depende do contexto histórico,
dos acontecimentos vivenciados, das ideologias, enfim, de diversas influências
sociais. Essas ideias modificam o modo como os adultos educam as crianças, ao
questionar o autoritarismo e a violência dos gestos educativos, compreender a
educação sexual e os traumas na infância e analisar o afeto e a cognição, o sentimento
e a razão (CIFALI, 2011). Há um forte impacto das teorias de Sigmund Freud (1856-
1939) sobre a infância, ao considerá-la como o passado do adulto. É a criança
inconsciente, um recurso para compreender os desvios, delitos e as anormalidades
do adulto (JAMES, JENKS e PROUT, 2002).
De outro modo, a classificação das idades da vida das crianças variou ao longo
da História, as quais passaram a ser associadas às etapas biológicas e funções
sociais. Ao abordarem os modos como as idades foram classificadas, Gondra e
Garcia (2004) afirmam que o higienista Hallé categorizou as idades da vida e propôs
subdivisões e variações conforme o sexo: a 1.a infância seria de 1 a 7 anos de idade,
a 2ª infância, ou puerícia, dos 7 aos 15 anos para os meninos e de 7 a 13 anos para
as meninas; e o médico francês Becquerel, partindo do arranjo de Hallé, aprimorou
essas subdivisões: a 1.a fase seria a época do nascimento (recém-nascido); a 2.a fase
(primeira infância), dos 0 aos 2 anos; a 3.a fase (segunda infância), dos 2 aos 12-15
anos (Id.). O debate sobre essa questão atravessou o Atlântico e foi apropriado por
professores da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que produziram estudos
acerca da infância pobre e rica. Entre o final do século XIX e início do XX, a infância
era caracterizada como “um período da vida humana em que a criança é incapaz
de falar de si mesma e de discernir, encontrando-se totalmente dependente do
adulto” (MONARCA, 2001, p. 1). Portanto, em diferentes períodos históricos foram
fixadas determinadas faixas etárias para a aplicação da noção de discernimento. No
Brasil, essa noção de discernimento, sustentada pela prática jurídica que aplicava
a lei, era utilizada quando se constatava que a criança tinha consciência do crime

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cometido (RIZZINI, 2011). Com os avanços da nossa sociedade, hoje, o Estatuto da


Criança e do Adolescente (ECA) dispõe a respeito da proteção integral à criança e
ao adolescente, considerando criança a pessoa de até 12 anos de idade incompletos,
e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade (BRASIL, 1990).
Aliás, devemos compreender que o reconhecimento da criança sempre foi muito
mais dela como objeto do que como sujeito. O que realmente era considerado eram
as formas propostas para seu desenvolvimento e educação, estabelecidos pela
família e escola, sem, no entanto, reconhecer os interesses, as vontades e ações das
crianças. Houve, portanto, uma menor preocupação com as necessidades reais das
crianças, e maior preocupação com o ofício de aluno, isto é, uma boa integração
e desenvolvimento delas na sociedade a partir das instituições e da estruturação
de parâmetros adequados para alcançar esses propósitos. Em outras palavras, as
crianças eram comparadas e categorizadas a partir de um modelo universal de
criança e de infância, e era desconsiderado que as crianças tinham vidas diferentes
em razão de fatores sociais, econômicos, culturais, físicos, psíquicos e políticos.
Se a descoberta da infância – segundo Ariès (1981) – ocorre na Modernidade,
fundada em um novo sentimento de cuidado, proteção e educação, é apenas no
século XX que a infância se torna uma realidade de fato – um fenômeno social. A
imagem da infância torna-se tanto mais rica e complexa com a definição de saberes,
direitos e deveres a respeito das crianças. Trata-se de ideias e ações utópicas que
ilustram o reconhecimento e difundem que esse é o século da criança, mas em um
mundo avançado e utópico, oscilante e aberto (CAMBI, 2012).
Na primeira metade do século XX, pesquisadores das Ciências Sociais,
especialmente europeus e americanos, concederam à infância e às crianças
um lugar de distinção em seus estudos. Em grande medida, depois da Segunda
Guerra Mundial, houve um movimento pelos direitos das crianças, o qual ganhou
importância com a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança (1990) –
tratado que assegura a criança como a titular de direitos. É, com razão, uma evolução
do pensamento e das práticas, pois se anteriormente predominou a ideia de criança
guiada, posteriormente ela passou a ser reconhecida como criança-sujeito e, na
atualidade, tornou-se pessoa, interlocutora (DELALANDE, 2011; MAYALL, 2007).
As novas concepções desse período questionam o modelo de criança universal
– postulado anteriormente pela Psicologia da Criança –, pois se reconhece que as
crianças são plurais e pertencem a diferentes culturas. Também é contestada a
ideia de a socialização ser apenas horizontal – do adulto para a criança –, uma
vez que, nas relações sociais entre as crianças, elas se apropriam, difundem e (re)
produzem, a partir de suas interpretações criativas, os códigos sociais e culturais
dos grupos dos quais participam; portanto, as crianças são coconstrutoras ativas em
seus mundo sociais (CORSARO, 2003; QVORTRUP, 2011). O relato a seguir procura
ilustrar essa relação.

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Dessa forma, reconhece-se que as crianças um dia virão a ser adultos, mas, Nos Cadernos dos
antes disso, elas são seres que vivem o presente, elas são crianças hoje – no seu anos 1, 2 e 3, na
unidade 6 (2012),
tempo. De acordo com a Sociologia da Infância, isso significa que qualquer fato no Caderno 8 (2013)
e no Caderno 3
ocorrido na sociedade afeta profundamente a infância e a vida das crianças, interdisciplinaridade
(2015), o tema

como, por exemplo, as eleições supracitadas. Essas novas concepções – originais é abordado.
tanto no sentido teórico como no prático – consagram as crianças como atores
sociais, agentes em seus processos de aprendizagem; e a infância é reconhecida
como uma categoria geracional essencial para a estrutura da sociedade. Isso significa
que, como as crianças participam da estrutura social, suas ações influenciam as
relações com os outros, e elas são influenciadas por pais, professores e diferentes
pessoas com quem têm contato. Por sua vez, a infância é uma geração que é parte
da sociedade, ocupa um espaço na divisão de trabalho, principalmente em termos
de trabalho escolar, e influencia fortemente os planos e projetos, tanto das famílias,
da educação, como do mundo social e econômico (QVORTRUP, 2011).
As crianças do mundo atual ganham cada vez mais reconhecimento na esfera
social, como sujeitos de direito, deveres e atores sociais, com suas identidades e
atuações. De todo modo, as imagens e práticas construídas ao longo dos séculos
– criança má, imanente, inocente, inconsciente – continuam presentes na forma
como, em geral, os adultos tratam a infância e as crianças. A educação continua a
ser uma questão pungente, mas já sabemos que não se faz apenas sobre as bases
do ofício de aluno/aluna ou de filho/filha. Portanto, aos poucos, o processo de
educação da infância está sendo desescolarizado. Em outras palavras, “[…] trata-

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se de compreender aquilo que a criança faz de si e aquilo que se faz dela, e não
simplesmente aquilo que as instituições inventam para ela.” (SIROTA, 2001, p. 28)
O relato a seguir exemplifica essa mudança no ambiente escolar.

As práticas e ideias sobre a infância e as crianças continuam em processo de


transformação, uma vez que são construções históricas socioculturais. Alguns
temas passaram a ser tratados na escola, na família e, em geral, pela sociedade, e,
aqui, elencamos quatro deles. Primeiramente, reconhece-se que, em seus processos
de socialização, as crianças sofrem diversas influências – família, escola, mídia,
igreja e grupo de pares, por exemplo –, os quais se fazem e desfazem, são sucessivos
e contínuos, portanto não terminam quando as crianças deixam a infância. Em
segundo lugar, o mundo da infância é feito daquilo que se cria para ele e daquilo
que as crianças fazem dele, portanto é fundamental conhecer as interações que
as crianças estabelecem em seus espaços e tempos sociais, e a cultura delas. Em
terceiro lugar, as instituições criadas para as crianças não só efetivam a infância

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e esse espaço como sendo delas, como, – e em quarto lugar –, reconhecem as Nos cadernos dos
anos 1, 2 e 3, na
crianças como um grupo social. unidade 7 (2012) é
discutido o tema
heterogeneidade
Esse apanhado histórico nos mostra a diversidade e as dimensões de e os direitos de
aprendizagem
sentimentos, valores, práticas e das ideias construídas a respeito das crianças no Ciclo de
Alfabetização.
e da infância ao longo do tempo, os quais, de modos diferentes ainda se fazem
presentes. O que temos, por certo, é que em todas as épocas as crianças foram
cuidadas, educadas, participaram, atuaram e se pronunciaram nos seus espaços
sociais, mas de maneiras diversas, as quais se relacionam à estrutura e às ações
sociais de cada período histórico.

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