GARRAFA. v. 15, N.O 42, P. 101-113. Jan./jun. 2017 UMA BUSCA SEM FIM E O SILÊNCIO COMO RESPOSTA NA POESIA DE ANA HATHERLY E JOSÉ LUÍS PEIXOTO
GARRAFA. v. 15, N.O 42, P. 101-113. Jan./jun. 2017 UMA BUSCA SEM FIM E O SILÊNCIO COMO RESPOSTA NA POESIA DE ANA HATHERLY E JOSÉ LUÍS PEIXOTO
GARRAFA. v. 15, N.O 42, P. 101-113. Jan./jun. 2017 UMA BUSCA SEM FIM E O SILÊNCIO COMO RESPOSTA NA POESIA DE ANA HATHERLY E JOSÉ LUÍS PEIXOTO
RESUMO
Este artigo objetiva aproximar a poesia de Ana Hatherly, especificamente no que concerne a releituras
em torno da poesia de Rainer Maria Rilke, e a poesia de José Luís Peixoto, com o livro A criança em
ruínas (2012). Vemos que o encontro dessas escritas do abismo é marcado pela Revolução dos Cravos, em
Portugal, e que existe uma tentativa de preenchimento de uma falta, seja pelas marcas do luto, seja pela
impossibilidade de ir ao encontro do outro, o que configura a impossibilidade das relações na contempo-
raneidade.
This article aims to approach the works of Ana Hatherly concerning Rainer Maria Rilke to that of José
Luis Peixoto, with A criança em ruínas (2012). These works are marked by the Revolução dos Cravos, in
Portugal, and they try to fulfill absences through the marks of mourning or the impossibility of reaching
other, what configures the impossibilities of contemporary relations.
José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, e licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas
(Inglês e Alemão) pela Universidade Nova de Lisboa. No decorrer de sua trajetória literária, recebeu di-
versos prêmios, como o Prémio Literário José Saramago, Prémio Cálamo Otra Mirada, Prémio de Poesia
Daniel Faria e o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores. Peixoto carrega as marcas de uma tradição
portuguesa ditatorial. É possível notar que a luta contra a ditadura, a postura artística transgressora que
perdurou até o fim domínio de Salazar em Portugal, possibilitou que a temática do desejo passasse por um
processo de libertação e se tornasse mais acentuada após esse período. Anna Maria de Lourdes Rocha Alves
Hatherly foi licenciada pela Universidade Clássica de Lisboa, em Filologia Germânica, com formação
também pela Universidade de Berkeley e pelo International London Film School. Tais aspectos bibliográfi-
cos são relevantes neste primeiro momento do encontro entre Ana e Peixoto, pois a formação de ambos os
autores foi crucial para as suas escritas de poesia. No que se refere à influência da cinematografia sobre suas
escritas, podemos observar o romance Nenhum Olhar (2000), de Peixoto, e as Tisanas, de Ana Hatherly,
sendo que estas foram publicadas separadamente ao longo de sua carreira. A formação em literaturas ger-
mânicas, principal dado a ser utilizado a propósito deste estudo, contribuiu para que ambos os autores
recebessem a influência da poesia de Rainer Maria Rilke. A respeito dessa influência rilkiana sobre Hather-
ly, a autora relata na Carta a Elfriede Engelmeyer sobre a génese de Rilkeana, datada de 9 de julho de 1999:
O primeiro contacto que me lembro de ter tido com a poesia de Rilke foi através de um
programa de rádio da então Emissora Nacional em que foram lidas algumas <<Elegias
de Duíno>> em tradução portuguesa, muito provavelmente de Paulo Quintela. Isso foi
ainda nos anos 50. A impressão que me causaram esses poemas foi imensa. Anteriormente
(nos primeiros anos da minha adolescência) só a poesia de Fernando Pessoa me causara
um impacto semelhante. Por essa altura eu também lera A Montanha Mágica, de Thomas
Mann, outro marco decisivo na minha formação. Nos anos 60, o contato com Hermann
Hesse foi também muito importante. Outras obras da literatura em língua alemã me
causaram uma funda impressão, como por exemplo, o Fausto de Goethe, ou O homem
sem Qualidades, de Musil, mas nada que se comparasse a Rilke ou Mann ou Kafka. Kafka
é outro assunto. (HATHERLY, 2004, p. 125)
É contemplar o não-acontecer
O lugar onde tudo já não é
Onde tudo se transforma
No recinto
De onde tudo se mudou
Ao dizer ao leitor o que é o amor, Peixoto trata esse sentimento como sendo acessível, mas lançan-
do mão da ironia. Nos poemas de ambos os escritores, vemos que existe o descentramento de si, o des-
pertencer a si mesmo em favor do ser amado, no entanto, em Hatherly e em Peixoto, há o sentimento de
solidão pela “parte de nós que deixou de nos pertencer” ou por saber que “nunca se tem ninguém / Além
de nós próprios / E nem isso se tem”. O poema em prosa de Peixoto ainda possui um valor de entrega e
encontra-se em conformidade ao poema Dar-se, de Ana Hatherly, em que a entrega amorosa pressupõe “o
querer no outro transformar-se” (HATHERLY, 2005, p. 55), da mesma forma com que Peixoto escreve.
Neste caso, amar é perdoar a si mesmo, por estar projetado em outro ser.
Na poesia de José Luís Peixoto e Ana Hatherly, as imagens do luto também são frequentes e apa-
recem juntamente com as marcas do amor. Vejamos no poema a seguir:
Nos primeiros versos da primeira estrofe, “a morte é esta caneta que não é os meus dedos”, já po-
demos definir a morte como traço marcante da poesia de Peixoto, como vimos anteriormente. Ao defini-la
como uma “caneta”, podemos por em evidência o próprio ato de escrita, e o principal utensílio do ofício
da escrita, por apresentar a forma fálica, revela o desejo da escrita. Aqui temos a poesia tomando uma
forma que sobrepuja a figura do “homem / invisível numa seara”. Nos versos que seguem no poema: “ex-
plodiram corpos de pássaros em pleno voo, / as palavras calaram-se dentro dos gritos, / e também isso é a
Neste poema, Ana Hatherly deixa explícito na primeira estrofe, um dos principais aspectos que
permeiam a sua escrita, que é a ironia, da mesma forma que a morte é o ponto de partida para a leitura
da obra de José Luís Peixoto. Os versos da primeira estrofe do poema de Peixoto, “explodiram corpos de
pássaros em pleno voo, / as palavras calaram-se dentro dos gritos...”, nos levam ao voo também retratado
por Ana Hatherly, ao dizer que “...o voo não termina com a juventude / e o mágico engenho do desejo /
continua / enchendo a esperança / o bater de asas do juvenil orgulho”. As vozes silenciadas, percebidas no
poema de A criança em ruínas, assemelha-se ao êxtase juvenil presente no poema de Hatherly, no entanto,
existe nesses versos uma crítica à própria cultura portuguesa, conforme o faz Cesário Verde em O senti-
mento dum ocidental: “E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!... Vêm sacudindo as ancas opulentas! /
Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que
depois naufragam nas tormentas.” (VERDE, p. 94-95) O olhar do sujeito poético é de inconformidade, e
podemos ler no próprio poema, na segunda estrofe: “É como se fosse Domingo / ao fim da tarde / quando
II-B
No seu abismo
o segredo
o ideal do outro
Extravagante fantasma
a memória
a divindade do sentido
No estreito círculo
dentro
dentro
uma indizível esperança
Nesta subvariação elegíaca, existe o abismo interior, onde se encontra “o segredo” e o “ideal do
outro”. Neste estágio da paixão do sujeito poético e do estado de ânsia pela materialização do objeto de
desejo, o Anjo, é revelada a dimensão fantasmagórica da figura alada e uma resistência, por “não querer
mais procurar / a linha tênue” do humano e do divino. A idealização revelada neste poema, é identificada
pela “indizível esperança”. Apesar de o eu lírico ter a plena consciência da impossibilidade de satisfazer o
seu desejo, aqui percebemos a sua insistência. A interiorização da voz que clama pelo Anjo também é per-
cebida pela relação que se efetiva de fato no interior do eu lírico. Isso é constatado pelo “estreito círculo”
em que essa relação é revelada. Ainda que não seja implícita, existe uma idealização de uma relação em
circularidade com o ser divino. A respeito do “extravagante fantasma”, que é a “memória”, a “divindade
do sentido”, Giorgio Agamben nos diz que
...se poderia dizer que a retração da libido melancólica não visa senão tornar possível
uma apropriação em uma situação em que posse alguma é, realmente, possível. Sob essa
perspectiva, a melancolia não seria tanto a reação regressiva diante da perda do objeto
de amor, quanto a capacidade fantasmática de fazer aparecer como perdido um objeto
inapreensível. (AGAMBEN, 2012, p. 45)
Assim, a partir do tom elegíaco que permeia a poesa de José Luís Peixoto e, certamente, a poesia
de Ana Hatherly, já que a plagiotropia que a autora faz dos poemas rilkeanos se trata de uma operação
tradutora, podemos verificar que a melancolia, própria desse gênero, não é uma regressão de um amor
sentido, mas uma necessidade de torná-lo um fantasma ou um simulacro. “Fazer aparecer como perdido
Na melancolia, o objeto não é nem apropriado nem perdido, mas as duas coisas acon-
tecem ao mesmo tempo. E asism como o fetiche é, ao mesmo tempo, o sinal de algo, o
sinal de algo e da sua ausência, e deve a tal contradição o próprio estatuto fantasmático,
assim o objeto da intenção melancólica é, contemporaneamente, real e irreal, incorporado
e perdido, afirmado e negado.” (AGAMBEN, 2012, p. 46)
Este filósofo nos apresenta a busca pelo objeto de desejo como “objeto da intenção melancólica”.
Isto é compreensível, tendo em vista que o que existe de fato é uma intenção, e como esta não é satisfeita
enquanto desejo, é perpassada pela melancolia. Entretanto, na fala de Giorgio Agamben, as características
desse objeto é “real e irreal, incorporado e perdido, afirmado e negado”. Todos esses traços são visíveis
nos poemas de Ana e Peixoto. É real e irreal, porque na poesia de Ana, o Anjo já faz parte da realidade do
sujeito poético, portanto, está incorporado a ele. A figura do Anjo, na poesia de Peixoto, se faz ausente, no
entanto, o poeta procura dar sentido ao silêncio que permeia toda a sua poética, e isso também faz parte
de uma busca pela satisfação do desejo, todavia, como diz Octavio Paz: “...todo silêncio humano contém
uma fala... O silêncio humano é um calar, e portanto, é comunicação implícita, sentido latente. (PAZ,
2012, p. 63) Suprir a ausência do pai se transmuta em uma busca desejante pela satisfação, e como vimos
anteriormente, esta se efetiva na própria palavra poética. A afirmação e negação do objeto de desejo, o ob-
jeto da intenção melancólica, na perspectiva agambiana, podemos verificar nos próprios versos dos poetas:
és tu que me encontras
ficas no rio que passa,
nada de um tempo que não existe,
nem correntes, nem pedra, nem musgo.
nem silêncio.
A relação implícita e circular que pudemos ler anteriormente nos poemas de Ana Hatherly, tam-
bém são presentes nos poemas de Peixoto. Vemos que o “silêncio circunscrito à tua volta” não nos aponta
para um estado de êxtase místico, mas é visto de uma forma negativa, todavia, não deixa de ser valorizado
por esse escritor. Outro poeta, E. M. de Melo e Castro, também precursor da Poesia Experimental Portu-
guesa juntamente com Ana Hatherly, discorre sobre a valorização estética do silêncio no livro O próprio
poético: ensaio de revisão da poesia portuguesa atual (1973):
A rigor o silêncio é ausência de palavras, porém enquanto houver palavras podem dizer-se
coisas, coisas que criam o silêncio. Existe pois uma margem limitada entre o que se pode
dizer, e o que se não pode dizer com as palavras, pois as palavras servem também para diz-
er o que se não pode dizer com elas (palavras), sendo assim as palavras a substância física
do silêncio, e também do não-silêncio, que é o dizer. (CASTRO, 1973, p. 9)
Mas o que é um grito, senão a expressão mais fiel da nossa impotência? Nossos gritos
sempre uivam a nossa ira por estarmos submetidos aos nossos limites e a nossa fraqueza
para superá-los. Assim, podemos dizer que, se o grito exprime a impotência original do ser
humano, também exprime a fonte primeira de todos os motivos morais. Na psicanálise,
eles têm um nome preciso: o supereu... Com o grito, estamos na própria raiz do supereu.
O nascimento do supereu só é possível no seio da relação com outrem, qualificada por
Freud na compreensão mútua. (NASIO, 1997, p. 151-152)
Vemos que psicanaliticamente, tanto o grito como a presença do Anjo em poesia, como vimos na
leitura de Eduardo Lourenço, nos sinalizam a impotência do homem diante das suas próprias fraquezas,
fazendo-nos perceber que tais poetas nos mostram o olhar que o homem deve ter sobre si mesmo. A busca
pelo objeto de desejo é uma projeção do olhar que o ser humano precisa ter sobre si mesmo, e isso se dá
poeticamente e de forma simultânea, tanto em Ana Hatherly como em José Luís Peixoto. A fala de J. D.
Nasio também nos leva à apreciação do quadro Angelus Novus, de Paul Klee, pois a única forma de mate-
rialização do Anjo é na arte, e isso pode se efetivar de forma crítica, como faz esse pintor.
O luto é o estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma
de uma máscara enigmática. Cada sentimento está vinculado a um objeto apriorístico, e a
representação desse objeto é a sua fenomenologia. A teoria do luto, que emergiu inequiv-
ocadamente como uma contrapartida da teoria da tragédia, só pode em consequência
ser desenvolvida por meio da descrição do mundo que se abre ao olhar do melancólico.
Pois os sentimentos, por mais vagos que eles pareçam na ótica da autopercepção, reagem,
como num reflexo motor, à constituição objetiva do mundo. (BENJAMIN, 1984, p.
162-163)
REFERÊNCIAS