GARRAFA. v. 15, N.O 42, P. 101-113. Jan./jun. 2017 UMA BUSCA SEM FIM E O SILÊNCIO COMO RESPOSTA NA POESIA DE ANA HATHERLY E JOSÉ LUÍS PEIXOTO

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UMA BUSCA SEM FIM E O SILÊNCIO COMO

RESPOSTA NA POESIA DE ANA HATHERLY E JOSÉ


LUÍS PEIXOTO
Matthews Cirne (Mestrando em Literatura Portuguesa, UFRJ)

RESUMO

Este artigo objetiva aproximar a poesia de Ana Hatherly, especificamente no que concerne a releituras
em torno da poesia de Rainer Maria Rilke, e a poesia de José Luís Peixoto, com o livro A criança em
ruínas (2012). Vemos que o encontro dessas escritas do abismo é marcado pela Revolução dos Cravos, em
Portugal, e que existe uma tentativa de preenchimento de uma falta, seja pelas marcas do luto, seja pela
impossibilidade de ir ao encontro do outro, o que configura a impossibilidade das relações na contempo-
raneidade.

Palavras-chave: Plagiotropia; Impossibilidade; Angelismo; Silenciamento; Revolução dos cravos.

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ABSTRACT

This article aims to approach the works of Ana Hatherly concerning Rainer Maria Rilke to that of José
Luis Peixoto, with A criança em ruínas (2012). These works are marked by the Revolução dos Cravos, in
Portugal, and they try to fulfill absences through the marks of mourning or the impossibility of reaching
other, what configures the impossibilities of contemporary relations.

Keywords: Plagiotropia; Impossibility; Angelism; Silent; Revolução dos Cravos.

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É uma longa caminhada
no sentido do outro
buscando
a esquiva consonância do encontro...

Ana Hatherly, O Pavão Negro, 2003.

O anjo anuncia-nos a morte – e que outra coisa


faz a linguagem? - mas é precisamente este anún-
cio que torna a morte tão difícil para nós. Desde
tempos imemoriais, desde que tem história, a hu-
manidade conta com o anjo para lhe arrancar o
segredo que ele se limita a anunciar.

Giorgio Agamben, A ideia da prosa, 1999.

José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, e licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas
(Inglês e Alemão) pela Universidade Nova de Lisboa. No decorrer de sua trajetória literária, recebeu di-
versos prêmios, como o Prémio Literário José Saramago, Prémio Cálamo Otra Mirada, Prémio de Poesia
Daniel Faria e o Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores. Peixoto carrega as marcas de uma tradição
portuguesa ditatorial. É possível notar que a luta contra a ditadura, a postura artística transgressora que
perdurou até o fim domínio de Salazar em Portugal, possibilitou que a temática do desejo passasse por um
processo de libertação e se tornasse mais acentuada após esse período. Anna Maria de Lourdes Rocha Alves
Hatherly foi licenciada pela Universidade Clássica de Lisboa, em Filologia Germânica, com formação
também pela Universidade de Berkeley e pelo International London Film School. Tais aspectos bibliográfi-
cos são relevantes neste primeiro momento do encontro entre Ana e Peixoto, pois a formação de ambos os
autores foi crucial para as suas escritas de poesia. No que se refere à influência da cinematografia sobre suas
escritas, podemos observar o romance Nenhum Olhar (2000), de Peixoto, e as Tisanas, de Ana Hatherly,
sendo que estas foram publicadas separadamente ao longo de sua carreira. A formação em literaturas ger-
mânicas, principal dado a ser utilizado a propósito deste estudo, contribuiu para que ambos os autores
recebessem a influência da poesia de Rainer Maria Rilke. A respeito dessa influência rilkiana sobre Hather-
ly, a autora relata na Carta a Elfriede Engelmeyer sobre a génese de Rilkeana, datada de 9 de julho de 1999:

O primeiro contacto que me lembro de ter tido com a poesia de Rilke foi através de um
programa de rádio da então Emissora Nacional em que foram lidas algumas <<Elegias
de Duíno>> em tradução portuguesa, muito provavelmente de Paulo Quintela. Isso foi
ainda nos anos 50. A impressão que me causaram esses poemas foi imensa. Anteriormente
(nos primeiros anos da minha adolescência) só a poesia de Fernando Pessoa me causara
um impacto semelhante. Por essa altura eu também lera A Montanha Mágica, de Thomas
Mann, outro marco decisivo na minha formação. Nos anos 60, o contato com Hermann
Hesse foi também muito importante. Outras obras da literatura em língua alemã me
causaram uma funda impressão, como por exemplo, o Fausto de Goethe, ou O homem
sem Qualidades, de Musil, mas nada que se comparasse a Rilke ou Mann ou Kafka. Kafka
é outro assunto. (HATHERLY, 2004, p. 125)

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Diante das palavras de Hatherly, vemos que do período em que ocorreu o seu primeiro contato
com as obras de Rilke, até o ano de 1999, quando o livro Rilkeana é publicado, existe, sobretudo, um
período de maturação dentro dos textos do poeta que a inspirou a compor as suas variações e subvariações
de Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. Ana Hatherly, trazendo sua releitura para os tempos atuais, possi-
bilita o encontro com a poesia de José Luís Peixoto, no que diz respeito à temática que aborda, e que vai
ao encontro do que Peixoto explicita no livro A casa, a escuridão (2014), que é a impossibilidade amorosa,
todavia, no diálogo que aqui se realiza, iremos nos aprofundar no livro A criança em ruínas (2001).
Um aspecto motivador da obra de José Luís Peixoto é a morte do pai. É esse acontecimento marca
e distingue sua escrita, tanto em Morreste-me, como em Nenhum Olhar e A criança em ruínas, pois são
livros inaugurais de uma poética e de uma prosa traçadas pelas marcas do luto. Assim, podemos comparar
os seus poemas com os de Ana Hatherly, pois ambos têm a mesma visão sobre as relações amorosas: elas
são impossíveis. De antemão, temos o poema Sem amor, de Hatherly, inserido em A Neo-Penélope, seu
último livro de poesia:

Viver sem amor


É como não ter para onde ir
Em nenhum lugar
Encontrar casa ou mundo

É contemplar o não-acontecer
O lugar onde tudo já não é
Onde tudo se transforma
No recinto
De onde tudo se mudou

Sem amor andamos errantes


De nós mesmos desconhecidos

Descobrimos que nunca se tem ninguém


Além de nós próprios
E nem isso se tem

(HATHERLY, 2007, p. 26)

Neste poema de Hatherly, as referências camonianas são visíveis, ao identificarmos a tentativa de


definição para o amor, através das conjugações verbais no tempo presente. Se Camões nos diz como é viver
com o sentimento do amor, “amor é fogo que arde sem se ver”, Ana Hatherly diz o inverso, o que acontece
àquele que vive sem amor, tomando Camões como ponto de partida para o desenvolvimento da temática
amorosa na atualidade, mostrando o deslocamento causado nas relações modernas: “Sem amor andamos
errantes / de nós mesmos desconhecidos”. Na obra A criança em ruínas, José Luís Peixoto também mostra
a sua visão de amor:

fico admirado quando alguém, por acaso e quase sempre


sem motivo, me diz que não sabe o que é o amor.
Eu sei exactamente o que é o amor. o amor é saber
que existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o amor é saber que vamos perdoar tudo a essa parte

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de nós que não é nossa. o amor é sermos fracos.
o amor é termos medo e querer morrer.

(PEIXOTO, 2012, p. 57)

Ao dizer ao leitor o que é o amor, Peixoto trata esse sentimento como sendo acessível, mas lançan-
do mão da ironia. Nos poemas de ambos os escritores, vemos que existe o descentramento de si, o des-
pertencer a si mesmo em favor do ser amado, no entanto, em Hatherly e em Peixoto, há o sentimento de
solidão pela “parte de nós que deixou de nos pertencer” ou por saber que “nunca se tem ninguém / Além
de nós próprios / E nem isso se tem”. O poema em prosa de Peixoto ainda possui um valor de entrega e
encontra-se em conformidade ao poema Dar-se, de Ana Hatherly, em que a entrega amorosa pressupõe “o
querer no outro transformar-se” (HATHERLY, 2005, p. 55), da mesma forma com que Peixoto escreve.
Neste caso, amar é perdoar a si mesmo, por estar projetado em outro ser.
Na poesia de José Luís Peixoto e Ana Hatherly, as imagens do luto também são frequentes e apa-
recem juntamente com as marcas do amor. Vejamos no poema a seguir:

a morte é esta caneta que não é os meus dedos.


lâmina, de encontro às paredes, a explodir.
um homem
invisível numa seara.
explodiram corpos de pássaros em pleno voo,
as palavras calaram-se dentro dos gritos,
e também isso é a morte.

mesmo que a primavera e as crianças,


os livros chorarão piedosamente lágrimas resolutas
e outros cardos que nunca serão os meus olhos.
e se houver nuvens, sim haverão,
ressuscitará nos meus braços um abismo que
não será o abismo dos meus braços,
e será isso a morte.

a morte: escritos, os troncos das árvores


impossíveis de ler.
um homem
invisível numa seara.
um dia maior que um mês, um ano,
a agitar tempestades dentro das sombras,
como um mistério.

(PEIXOTO, 2012, p. 27)

Nos primeiros versos da primeira estrofe, “a morte é esta caneta que não é os meus dedos”, já po-
demos definir a morte como traço marcante da poesia de Peixoto, como vimos anteriormente. Ao defini-la
como uma “caneta”, podemos por em evidência o próprio ato de escrita, e o principal utensílio do ofício
da escrita, por apresentar a forma fálica, revela o desejo da escrita. Aqui temos a poesia tomando uma
forma que sobrepuja a figura do “homem / invisível numa seara”. Nos versos que seguem no poema: “ex-
plodiram corpos de pássaros em pleno voo, / as palavras calaram-se dentro dos gritos, / e também isso é a

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morte”, temos outra definição para a morte. As vozes que se calam no poema nos remetem à Revolução
dos Cravos, no que se refere especificamente às formas de censura. Assim, a palavra escrita, nesse poema,
torna-se arma também para o poeta, detentor da palavra. Na segunda estrofe, o poeta constrói um jogo
nos versos “e se houver nuvens, sim haverão, / ressuscitará nos meus braços um abismo que / não será o
abismo dos meus braços, / e isso será a morte”. Ora, o que ressuscitará nos braços do eu lírico que não
seja os seus próprios braços, é o abismo da escrita, que por sua vez, também é a morte. O gesto escritural,
por fim, é hermético, impossível de ler, como “os troncos de árvores”, e misterioso, como a própria morte.
Leiamos agora o poema Sob os silêncios do céu, de Ana Hatherly:

Sob os silêncios do céu


caminho solitária
apoiada só na minha ironia

É como se fosse Domingo


ao fim da tarde
quando as viúvas
caminham devagar
olhando as vitrines
com seus olhos cansados

Mas o voo não termina com a juventude


e o mágico engenho do desejo
continua
enchendo a esperança
o bater de asas do juvenil orgulho

Sob os silêncios do céu


neste novo Inferno
a cada um só resta
mas resta ainda
o seu próprio voo solitário

(HATHERLY, 1999, p. 88)

Neste poema, Ana Hatherly deixa explícito na primeira estrofe, um dos principais aspectos que
permeiam a sua escrita, que é a ironia, da mesma forma que a morte é o ponto de partida para a leitura
da obra de José Luís Peixoto. Os versos da primeira estrofe do poema de Peixoto, “explodiram corpos de
pássaros em pleno voo, / as palavras calaram-se dentro dos gritos...”, nos levam ao voo também retratado
por Ana Hatherly, ao dizer que “...o voo não termina com a juventude / e o mágico engenho do desejo /
continua / enchendo a esperança / o bater de asas do juvenil orgulho”. As vozes silenciadas, percebidas no
poema de A criança em ruínas, assemelha-se ao êxtase juvenil presente no poema de Hatherly, no entanto,
existe nesses versos uma crítica à própria cultura portuguesa, conforme o faz Cesário Verde em O senti-
mento dum ocidental: “E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!... Vêm sacudindo as ancas opulentas! /
Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que
depois naufragam nas tormentas.” (VERDE, p. 94-95) O olhar do sujeito poético é de inconformidade, e
podemos ler no próprio poema, na segunda estrofe: “É como se fosse Domingo / ao fim da tarde / quando

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as viúvas / caminham devagar / olhando as vitrines / com seus olhos cansados”. Notamos que existe uma
lassidão e estagnação que permeia este poema, e podemos sugerir, portanto, que o “mágico engenho do
desejo” seja a própria magia da palavra poética.
Octavio Paz, em O arco e a lira, afirma que “uma das formas da magia consiste no domínio de si
mesmo para depois dominar os outros.” (PAZ, 2012, p. 61) Ora, tal pensamento entra em consonância
com os dizeres de Gérard Lebrun, em O conceito de paixão, inserido na compilação de ensaios intitulada
Os sentidos da paixão, de Adauto Novaes. Para este estudioso do tema, as paixões, no sentido aristotélico,
pressupõem o domínio do homem sobre as mesmas, não como forma de repressão, mas o conduzimento
do homem ao seu bom uso, já que a paixão é “um obstáculo a ser transposto, uma força que deve ser
vencida” (LEBRUN, 2009, p. 18), e dessa maneira, “nasce a tendência irracional, ou pathos, que submete
minha conduta ao meu sentimento de prazer ou de dor. Ela não é uma força estranha que me obriga,
mas o sintoma de uma fraqueza da alma.” (LEBRUN, 2009, p. 22) Assim, podemos inferir que para que
o sujeito poético da poesia hatherliana consiga chegar ao objetivo de materialização do Anjo, é preciso
dominar a si mesmo, o que nos remete às palavras de Eduardo Lourenço, ao afirmar que o anjo na poesia é
sinônimo da própria impotência do homem, é “a sua própria palavra incapaz de se falar, tornada gloriosa”
(LOURENÇO, 2003, p. 123).
A narratividade presente na segunda estrofe da variação de Hatherly, nos remete também aos ver-
sos de José Luís Peixoto: “mesmo que a primavera e as crianças, / os livros chorarão piedosamente lágrimas
resolutas / e outros cardos que nunca serão os meus olhos.” Dessa forma, a negatividade que surge de for-
ma intrínseca ao desejo de escrita na poesia de Hatherly também se faz presente na poesia de Peixoto. No
“Domingo ao fim da tarde”, (como lemos anteriormente na variação rilkeana), e na presença de crianças
no período da primavera, como constatamos nos versos de Peixoto, não poderíamos esperar nada mais
do que a subversão do lugar-comum, o que provoca no leitor o efeito sinestésico do tom elegíaco propa-
gado por esses versos que acabamos de ler. A solidão também é firmada nos versos de ambos os poetas,
temos um “homem invisível numa seara” e a concepção de que “a cada um só resta / mas resta ainda / o
seu próprio voo solitário”, e enquanto nos versos da terceira estrofe do poema de Hatherly nos apontam
para uma esperança, ainda que a negatividade se faça presente, no poema de José Luís Peixoto, a mesma
se prolonga, pois “um dia maior que um mês, um ano, / a agitar tempestades dentro das sombras, / como
um mistério”. Podemos sugerir aqui, que a solidão é valoroso fator, por sinalizar o rigor de escrita trazido
por estes poetas em estudo, e as progressões temporais evidenciadas pelos versos, nada mais é do que a
duração do processo criativo. Assim sendo, podemos verificar os ecos da poesia de Rainer Maria Rilke
tanto na poética hatherliana, como nos versos de Peixoto.
Da impotência humana à palavra gloriosa tomada pelos poetas, falaremos acerca dos abismos da
escrita de Ana Hatherly e José Luís Peixoto. No poema de Peixoto analisado anteriormente, a morte não
é esta caneta que não é os meus dedos..., vimos que parecem existir dois abismos, o dos braços do eu lírico
e o da morte. Notamos também que ambos convergem para o abismo da própria poesia, permeada pelo
tom elegíaco. Na obra Rilkeana, de Ana Hatherly, podemos verificar outro tipo de abismo que a autora
destaca ao dialogar criticamente com a obra de Rilke. Diferentemente dos braços que lemos no poema de
Peixoto, que são abismos, na poesia de Hatherly podemos ler, na Variação I, “lançando de meus braços

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o desejo” (HATHERLY, 1999, p. 29-31), apensar de estes serem “vazios / cheios só de vozes / inaudíveis”
(HATHERLY, 1999, p. 29-31), configurando, em sua poesia, o abismo do outro, completamente ideal-
izado:

II-B

No seu abismo
o segredo
o ideal do outro

Extravagante fantasma
a memória
a divindade do sentido

Não querer mais procurar


a linha tênue

No estreito círculo
dentro
dentro
uma indizível esperança

(HATHERLY, 1999, p. 39)

Nesta subvariação elegíaca, existe o abismo interior, onde se encontra “o segredo” e o “ideal do
outro”. Neste estágio da paixão do sujeito poético e do estado de ânsia pela materialização do objeto de
desejo, o Anjo, é revelada a dimensão fantasmagórica da figura alada e uma resistência, por “não querer
mais procurar / a linha tênue” do humano e do divino. A idealização revelada neste poema, é identificada
pela “indizível esperança”. Apesar de o eu lírico ter a plena consciência da impossibilidade de satisfazer o
seu desejo, aqui percebemos a sua insistência. A interiorização da voz que clama pelo Anjo também é per-
cebida pela relação que se efetiva de fato no interior do eu lírico. Isso é constatado pelo “estreito círculo”
em que essa relação é revelada. Ainda que não seja implícita, existe uma idealização de uma relação em
circularidade com o ser divino. A respeito do “extravagante fantasma”, que é a “memória”, a “divindade
do sentido”, Giorgio Agamben nos diz que

...se poderia dizer que a retração da libido melancólica não visa senão tornar possível
uma apropriação em uma situação em que posse alguma é, realmente, possível. Sob essa
perspectiva, a melancolia não seria tanto a reação regressiva diante da perda do objeto
de amor, quanto a capacidade fantasmática de fazer aparecer como perdido um objeto
inapreensível. (AGAMBEN, 2012, p. 45)

Assim, a partir do tom elegíaco que permeia a poesa de José Luís Peixoto e, certamente, a poesia
de Ana Hatherly, já que a plagiotropia que a autora faz dos poemas rilkeanos se trata de uma operação
tradutora, podemos verificar que a melancolia, própria desse gênero, não é uma regressão de um amor
sentido, mas uma necessidade de torná-lo um fantasma ou um simulacro. “Fazer aparecer como perdido

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um objeto inapreensível”, em ambos os poetas, parece ser uma atitude poética intencional, enquadrada no
fazer criativo que é peculiar a cada um deles. Agamben ainda prossegue:

Na melancolia, o objeto não é nem apropriado nem perdido, mas as duas coisas acon-
tecem ao mesmo tempo. E asism como o fetiche é, ao mesmo tempo, o sinal de algo, o
sinal de algo e da sua ausência, e deve a tal contradição o próprio estatuto fantasmático,
assim o objeto da intenção melancólica é, contemporaneamente, real e irreal, incorporado
e perdido, afirmado e negado.” (AGAMBEN, 2012, p. 46)

Este filósofo nos apresenta a busca pelo objeto de desejo como “objeto da intenção melancólica”.
Isto é compreensível, tendo em vista que o que existe de fato é uma intenção, e como esta não é satisfeita
enquanto desejo, é perpassada pela melancolia. Entretanto, na fala de Giorgio Agamben, as características
desse objeto é “real e irreal, incorporado e perdido, afirmado e negado”. Todos esses traços são visíveis
nos poemas de Ana e Peixoto. É real e irreal, porque na poesia de Ana, o Anjo já faz parte da realidade do
sujeito poético, portanto, está incorporado a ele. A figura do Anjo, na poesia de Peixoto, se faz ausente, no
entanto, o poeta procura dar sentido ao silêncio que permeia toda a sua poética, e isso também faz parte
de uma busca pela satisfação do desejo, todavia, como diz Octavio Paz: “...todo silêncio humano contém
uma fala... O silêncio humano é um calar, e portanto, é comunicação implícita, sentido latente. (PAZ,
2012, p. 63) Suprir a ausência do pai se transmuta em uma busca desejante pela satisfação, e como vimos
anteriormente, esta se efetiva na própria palavra poética. A afirmação e negação do objeto de desejo, o ob-
jeto da intenção melancólica, na perspectiva agambiana, podemos verificar nos próprios versos dos poetas:

não te pergunto de onde chegas?,


porque sei para onde vais.
hoje é a hora exacta em que até o vento
até os pássaros desistem.
e a noite a teus pés é um instante
e um destino.

não te pergunto onde está o teu rosto,


tantas vezes ocluso e pisado sob os ramos,
onde está o teu rosto?
nem te peço que incendeies o teu nome
numa nuvem nocturna,
nem te procuro.

és tu que me encontras
ficas no rio que passa,
nada de um tempo que não existe,
nem correntes, nem pedra, nem musgo.
nem silêncio.

(PEIXOTO, 2012, p. 28)

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Na poesia de José Luís Peixoto existe o completo conhecimento dos gestos do objeto de intenção
melancólica, vemos isto nos versos “não te pergunto de onde chegas?, / porque sei para onde vais”. Mais
do que os gestos que não são procurados, existe uma recusa na busca por uma face já desconhecida da
voz que fala no poema, e podemos constatar isto no segundo questionamento: “onde está o teu rosto? /
nem te peço que incendeies o teu nome / numa nuvem nocturna / nem te procuro.” Além dos gestos que
são deixados de lado por total conhecimento do outro, não vemos mais aqui uma procura pelo objeto de
desejo, que já sabemos, é a presentificação do pai, que está intencionamente no próprio poema como “a
memória”, a “divindade do sentido”, retomando o poema de Hatherly. Neste poema de Peixoto a busca se
dá a partir do outro e a voz que fala se torna uma voz lassa. As buscas incessantes são reduzidas ao nada:
“és tu que me encontras / ficas no rio que passa, / nada de um tempo que não existe, / nem correntes, nem
pedra, nem musgo. / nem silêncio.” A falta do objeto desejado também está presente no poema A ausência,
de Ana Hatherly, do livro A idade da escrita (1998), onde vemos que “a face do amor é ausência de rosto”
(HATHERLY, 2005, p. 72)
Nos poemas de José Luís Peixoto, especialmente no livro A criança em ruínas, diante da morte do
seu pai, vemos que a todo momento, seus versos apontam para uma busca de sentido para o silêncio à sua
volta. Leiamos o poema:

há o silêncio circunscrito à tua volta


e no entanto a tua pele é o silêncio
há a noite que entrou dentro de ti
e no entanto o interior não é onde
adormecem as crianças é onde se perdem
os cegos não é onde há lua e estrelas
é onde o negro não quer ser tão negro
existes e só és o teu absoluto vazio
um homem são os homens que o acompanham

(PEIXOTO, 2012, p. 19)

A relação implícita e circular que pudemos ler anteriormente nos poemas de Ana Hatherly, tam-
bém são presentes nos poemas de Peixoto. Vemos que o “silêncio circunscrito à tua volta” não nos aponta
para um estado de êxtase místico, mas é visto de uma forma negativa, todavia, não deixa de ser valorizado
por esse escritor. Outro poeta, E. M. de Melo e Castro, também precursor da Poesia Experimental Portu-
guesa juntamente com Ana Hatherly, discorre sobre a valorização estética do silêncio no livro O próprio
poético: ensaio de revisão da poesia portuguesa atual (1973):

A rigor o silêncio é ausência de palavras, porém enquanto houver palavras podem dizer-se
coisas, coisas que criam o silêncio. Existe pois uma margem limitada entre o que se pode
dizer, e o que se não pode dizer com as palavras, pois as palavras servem também para diz-
er o que se não pode dizer com elas (palavras), sendo assim as palavras a substância física
do silêncio, e também do não-silêncio, que é o dizer. (CASTRO, 1973, p. 9)

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Na poesia de José Luís Peixoto, falar da morte é incontornável, visto que este é o tema central da
sua poesia, no entanto, vemos uma busca por um sentido existencial através da valorização estética do
silêncio na sua escrita. Por outro lado, temos a memória como aspecto fundamental nesta poesia, então,
podemos sugerir que a “margem limitada entre o que se pode dizer, e o que não se pode dizer com as
palavras”, nos aponta também para o peso da Revolução dos Cravos, ocorrida no ano de seu nascimento
e vivenciada pelo seu pai. O silêncio, que também nos possibilita diversas leituras acerca da poesia de
Peixoto, nos lembram novamente que o silêncio também é a “verificação física do provável” (CASTRO,
1973, p. 9). A propósito da ausência de seu pai e da importância dada à família, sua escrita nos remete
imediatamente aos versos de Álvaro de Campos: Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. / Quanto
quiz, quanto não quiz, tudo isso me fórma. / Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
(PESSOA, 2016, p. 265) Vemos que na poética de Luís, o poeta é o reflexo do pai, no que concerne a
tudo o que lhe forma enquanto indivíduo. A palavra poética, produto da memória, é formativa, a partir
da qual e na qual o poeta se reconhece. Também no poema de Ana Hatherly, A alta pirâmide da fala, do
livro O pavão negro (2003), temos a revelação da busca do sujeito poético, não pela figura do Anjo, como
em Rilkeana, mas pelo sentido do silêncio enquanto parte integrante do poema: “Uma efêmera aliança /
se esconde no enigma do sentido / no mistério do acidente / Tudo são zonas de silêncio / e intervalo / Um
emaranhado só” (HATHERLY, 2005, p. 92).
Na ausência do rosto, tempos também a ausência da voz e a busca dos poetas por darem sentido
a um silêncio exterior e interior, já que não há resposta ao monólogo que ilustra essa busca. Ao final des-
sa “longa caminhada” (retomando os versos de Hatherly na epígrafe), o que resta é o grito. Na primeira
variação elegíaca de Rilkeana, Ana Hatherly escreve: “Se eu gritar / alguém me ouve / em todas as coisas?
/ Nenhum anjo / escruta o meu grito / que não penetra a noite / e só encontra eco de nenhum desejo”
(HATHERLY, 1999, p. 29-31) Para estes versos, em que o grito desesperador do eu lírico se faz presente,
temos a leitura psicanalítica de J. D. Nasio, em O livro da dor e do amor:

Mas o que é um grito, senão a expressão mais fiel da nossa impotência? Nossos gritos
sempre uivam a nossa ira por estarmos submetidos aos nossos limites e a nossa fraqueza
para superá-los. Assim, podemos dizer que, se o grito exprime a impotência original do ser
humano, também exprime a fonte primeira de todos os motivos morais. Na psicanálise,
eles têm um nome preciso: o supereu... Com o grito, estamos na própria raiz do supereu.
O nascimento do supereu só é possível no seio da relação com outrem, qualificada por
Freud na compreensão mútua. (NASIO, 1997, p. 151-152)

Vemos que psicanaliticamente, tanto o grito como a presença do Anjo em poesia, como vimos na
leitura de Eduardo Lourenço, nos sinalizam a impotência do homem diante das suas próprias fraquezas,
fazendo-nos perceber que tais poetas nos mostram o olhar que o homem deve ter sobre si mesmo. A busca
pelo objeto de desejo é uma projeção do olhar que o ser humano precisa ter sobre si mesmo, e isso se dá
poeticamente e de forma simultânea, tanto em Ana Hatherly como em José Luís Peixoto. A fala de J. D.
Nasio também nos leva à apreciação do quadro Angelus Novus, de Paul Klee, pois a única forma de mate-
rialização do Anjo é na arte, e isso pode se efetivar de forma crítica, como faz esse pintor.

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O produto artístico dessas escritas do abismo é certamente o luto que está marcado pela elegia a
partir do qual esta leitura dos poemas de Hatherly e de Peixoto foi feita. Walter Benjamin discorre sobre
essa temática na Origem do drama barroco alemão:

O luto é o estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma
de uma máscara enigmática. Cada sentimento está vinculado a um objeto apriorístico, e a
representação desse objeto é a sua fenomenologia. A teoria do luto, que emergiu inequiv-
ocadamente como uma contrapartida da teoria da tragédia, só pode em consequência
ser desenvolvida por meio da descrição do mundo que se abre ao olhar do melancólico.
Pois os sentimentos, por mais vagos que eles pareçam na ótica da autopercepção, reagem,
como num reflexo motor, à constituição objetiva do mundo. (BENJAMIN, 1984, p.
162-163)

Diante da leitura de Rilkeana e de A criança em ruínas, percebemos que no percurso de leitura,


o leitor como participante ativo recebe as sensações próprias do luto, pela densidade dos poemas, pelas
repetições e pelo caráter enigmático das escritas de Hatherly e Peixoto. O reânimo pelo enigma se dá pelo
luto, inevitável, dessa maneira, esperar uma saída para essas escritas de circularidade, seja pela excessiva
busca dos sujeitos poéticos, seja pela forma, que no caso de Rilkeana, é o conjunto de variações e subva-
riações dos sonetos e elegias de Rilke.
Temos aqui, portanto, a releitura crítica da tradição feita por Ana Hatherly, ao retomar Rainer
Maria Rilke e temos as referências à elegia e o diálogo com Ana Hatherly, realizados por José Luís Peixoto.
Diante de dois poetas de duas épocas distintas, Octavio Paz nos alerta que “a tradição moderna apaga as
oposições entre o antigo e o contemporâneo, entre o distante e o próximo” (PAZ, 2014, p. 18). Inseridos
em uma tradição do moderno, que se renova incessantemente, temos escritas poéticas que dialogam entre
si e que traduzem com excelência as vivências de suas épocas, rompendo as barreiras entre passado e o
presente, e trazendo a revelação do segredo do anjo, o poema.

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. A ideia da prosa. Lisboa: Edições Cotovia, 1999.


AGAMBEN, Giorgio. O objeto perdido. In: Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura oci-
dental. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012.
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
CASTRO, Ernesto Manuel de Melo e. O próprio poético: ensaio de revisão da poesia portugue-
sa atual. Quíron: São Paulo, 1973.
HATHERLY, Ana. A idade da escrita e outros poemas. São Paulo: Escrituras Editora, 2005.
______. Rilkeana. Lisboa: Assírio e Alvim, 1999.
______. Carta a Elfried Engelmeyer sobre a gênese de Rilkeana. In: Interfaces do Olhar – Uma
antologia crítica, uma antologia poética. Lisboa: Roma Editora, 2004.

[112] GARRAFA. v. 15, n.o 42, p. 101-113. jan./jun. 2017


LEBRUN, Gérard. O conceito de paixão. In: Os sentidos da paixão. Adauto Novaes (Org.). 2ª ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
LOURENÇO, Eduardo. Angelismo e poesia. In: Tempo e Poesia. Lisboa: Gradiva, 2003.
NASIO, J. D. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1997.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
______. A tradição da ruptura. In: Os filhos do barro. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2014.
PEIXOTO, José Luís. A criança em ruínas. Lisboa: Quetzal Editores, 2012.
PESSOA, Fernando. Obra completa de Álvaro de Campos. Edição de Jerónimo Pizarro. Rio de
Janeiro: Tinta-da-china Brasil, 2015.
VERDE, Cesário. O livro de Cesário Verde seguido de algumas poesias dispersas. 14ª ed. Lis-
boa: Editorial Minerva, s.d.

Submetido à publicação em 04 de março de 2017.


Aprovado em 11 de maio de 2017.

[113] GARRAFA. v. 15, n.o 42, p. 101-113. jan./jun. 2017

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