Reino de Ilusões - Tahereh Mafi

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All this twisted glory

Copyright © 2024 by Tahereh Mafi

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de 19/02/1998.
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escrito da editora, poderá ser reproduzida ou transmitida
sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos,
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Diretor editorial Revisão


Luis Matos Marina Constantino
Tássia Carvalho
Gerente editorial
Marcia Batista Arte
Renato Klisman
Produção editorial
Letícia Nakamura Arte da capa original
Raquel F. Abranches Alexis Franklin

Tradução Design da capa original


Cynthia Costa Jenna Stempel-Lobell

Preparação
Monique D'Orazio
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Angélica Ilacqua CRB-8/7057

M161r
Mafi, Tahereh
Reino de ilusões / Tahereh Mafi ;
tradução de Cynthia Costa.
–– São Paulo : Universo dos Livros, 2024.
336 p. (Série This Woven Kingdom ;
Vol. 3)

e-ISBN 978-65-5609-675-9
Título original: All this twisted glory

1. Ficção norte-americana 2.
Literatura fantástica 3. Mitologia
persa
I. Título II. Costa, Cynthia III. Série

24-1578 CDD 813

Universo dos Livros Editora Ltda.


Avenida Ordem e Progresso, 157 — 8º andar — Conj. 803
CEP 01141-030 — Barra Funda — São Paulo/SP
Telefone: (11) 3392-3336
www.universodoslivros.com.br
e-mail: [email protected]
Para Ransom
Mas, minha senhora, jurei à lua pintar a terra de
escarlate com o sangue dele.

— Abolghasem Ferdowsi, Shahnameh


Fale seu nome e diga-me: quem chorará sobre seu corpo
decapitado?

Não durarás por tempo suficiente para saber meu nome.


Mas, se precisas saber, minha mãe me nomeou “ Tua
Morte” .

— Abolghasem Ferdowsi, Shahnameh


PARTE UM
NO INÍCIO

A barra de seu manto negro ia serrando o mato alto


conforme ele caminhava, seu ritmo frenético incitando
pequenos sons revoltosos que lhe retumbavam entre os
ouvidos a cada passo. Mãos de calor o agarravam, e a
vestimenta pesada o sufocava. Cyrus de Nara ouvia o
coração palpitar no peito — pânico gerando mais pânico
à medida que ele lutava contra o impulso de correr.
Sentia-se como a chuva em busca do rio, tentando em
vão encontrar o caminho de casa. Às vezes, congelava
no lugar, e sua cabeça fazia movimentos rígidos de
pássaro, recuperando o fôlego como se tivesse visto um
fantasma.
Não. Não um fantasma.
Algo muito pior.
Era inútil se desesperar, lembrou a si mesmo. Não
adiantaria perder a cabeça. Se servisse de algo, Cyrus a
teria entregado de boa vontade ao palácio, onde ela teria
vivido para sempre com seu pai, o rei, e sua miríade de
opressões. Mas o jovem príncipe tomara a decisão mais
acertada em meio à crise, aventurando-se por plantações
próximas.
Sua respiração tremulava.
Ele se forçou a desacelerar para conseguir pensar com
calma. O mato alto era pontilhado com tocas de esquilos
camufladas por ervas daninhas e flores selvagens. Já
torcera o pé várias vezes, e, apesar do desespero da
fuga, Cyrus sabia que não podia se dar ao luxo de se
machucar.
O caminho que percorria continha os resquícios de uma
antiga linha de trem, hoje quase invisível, não fosse
pelos frisos de ferro corroído no chão, em meio à
anarquia floral que se espalhava ao redor. Entre outras
criaturas, sabia-se que serpentes neon cochilavam sobre
a grama quente, com um apetite feroz que poderia ser
facilmente desperto. Quantas vezes em sua infância
Cyrus não saíra mancando em agonia, com o veneno
transbordando nas veias… Havia perdido a conta.
Quando criança, achava emocionantes tais aventuras;
aprendera com o tempo a agarrar a serpente pela cabeça
com um único movimento do punho e a soltar fumaça
entre os dedos para que a cobra rastejasse para longe.
Costumava adorar estes campos: desafiar árvores para
duelar, cavar em busca de tesouros que ele mesmo havia
enterrado. Cada manobra era um novo desafio, uma
nova fera, uma nova ânsia de vencer. A jornada agora
não era nada mais do que necessária. E nada menos do
que devastadora.
A vida, ele temia, jamais seria a mesma.
Seu coração bateu mais forte quando se aproximou da
entrada do antigo túnel do trem, cujo interior em ruínas
era sufocado por uma tapeçaria de trepadeiras e pelo
cheiro de vida, tão perfumado que irritava a mente. Raios
de sol e pássaros de asas azuis atravessavam as
rachaduras da estrutura apodrecida, enquanto flores
sonolentas desabrochavam e partículas de poeira
suspensas no ar dançavam sob seu brilho. O túnel era
como um portal para outro mundo — um mundo no qual,
um dia, ele sonhara viver para sempre.
Um gafanhoto verde agarrou-se ao ombro do jovem
assim que ele entrou no túnel. O contraste entre o brilho
e a escuridão parecia um grito no vazio. Cyrus puxou o
manto sobre o corpo, sentindo a dor do luto entre as
costelas.
A uma distância cada vez menor, a visão de tantas
formas verdes transformou-se em uma explosão de
branco. Um emaranhado de nuvens na altura da cintura
ergueu-se do chão. Ele atravessou esse estranho trecho
com cuidado, pois a experiência não era diferente de
cruzar a geada. Suas pernas já estavam começando a
congelar quando o caminho de nuvens se dissipou sob
seus pés. Cyrus reprimiu um arrepio.
Um véu palpável de magia sempre pairava sobre os
muitos hectares que cercavam as Residências dos
Profetas de Tulan, envolvendo o templo central e suas
muitas dependências. Na verdade, eram poucos os que
sabiam que o antigo túnel ferroviário levava àquela
antiga propriedade, e menos ainda os que tinham
permissão para percorrer aquele caminho.
O príncipe tulaniano tinha três anos na primeira vez em
que visitara o território sagrado. Desde seu nascimento,
ele se mostrara uma criança irritadiça: chorava com
facilidade, fazia birra e, mesmo consciente de que sabia
falar, recusava-se a pronunciar meia palavra. No dia em
que sua babá lhe acariciou a cabeça e disse que ele era
lindo apesar de idiota, ele atirou um bloco de madeira no
rosto dela. Só quando a mulher respondeu com fúria foi
que Cyrus se lembrou de que a violência era
desaprovada e, quando ela se virou, o menino correu em
direção a uma janela aberta, registrando o grito
horrorizado da babá quando a atravessou, rolando como
uma batata. Quicou três vezes no telhado íngreme antes
de aterrissar no chão, onde saltou uma última e
inesperada vez.
O menino arranhara com gravidade as mãos e os
joelhos; hematomas formaram-se no dorso de um braço
e em sua bochecha. Mas ele não chorou. Como um tatu
se desenrolando, Cyrus levantou-se devagar, tirando as
mechas acobreadas de cabelo do rosto com suas
mãozinhas sujas e, surpreso, descobriu-se no centro de
um halo.
Nunca vira Profetas de perto.
Eles o olhavam de rosto semicoberto, vestindo mantos
pretos tão escuros que pareciam abrir buracos no
mundo.
Aí está você, pequenino, ele ouviu alguém dizer.
A criança coçou a cabeça, maravilhada, em dúvida com
aquela voz em sua cabeça. Cyrus riu e, encantado,
pronunciou suas primeiras palavras em voz alta:
— Isso é mágica! — disse.
A babá ainda estava gritando quando chegou correndo
ao jardim, com metade da criadagem do palácio atrás
dela, todos histéricos. Seus serviços, ela mais tarde
ficaria sabendo, não seriam mais necessários.
Foi naquele fatídico dia que Cyrus decidiu quem
gostaria de ser, e essa convicção enraizou-se cada vez
mais nele com o passar dos anos. O rei e a rainha
consideraram aquela uma feliz descoberta, já que o
menino não nascera para ascender ao trono e precisaria
de uma ocupação menos importante, embora igualmente
digna.
Cyrus de Nara era, claro, o segundo filho; não o
herdeiro.
Seu irmão mais velho é quem seguira os passos de seu
pai desde a primeira infância. Seu irmão mais velho é
que fora preparado para uma vida de luxo e poder.
Cyrus, por sua vez, passara todo o tempo livre de sua
infância brincando no túnel secreto ao seu bel-prazer,
com flores desabrochando entre os cabelos conforme
atravessava as nuvens em direção aos braços dos
Profetas. Ao longo dos anos, ele se dedicara ao estudo
das profecias e dos feitiços, preferindo as maravilhas
misteriosas do etéreo à concretude do mundo material —
e, por isso, tinha de aturar a zombaria de sua família
real. Aprender o básico da magia eles até podiam
entender, mas ninguém acreditava que um príncipe
estaria disposto a renunciar ao seu título e recusar uma
fortuna de herança para se juntar aos Profetas sem
nome.
Cyrus não se importava.
Guardara seu ouro e suas joias, cortara o cabelo e
resumira seu guarda-roupa a simples trajes pretos. Fizera
os primeiros votos em seu aniversário de dezoito anos e
passara o ano e meio seguinte vivendo no templo,
raramente saindo da propriedade enquanto se preparava
para a cerimônia final. Ele era um dos alunos mais jovens
autorizados a avançar ao primeiro grau de sacerdócio e,
agora, ao se aproximar de seu vigésimo aniversário,
estava a apenas algumas semanas de receber suas
vestes oficiais e ter seus lábios selados por uma magia
que para sempre o deixaria…
Pare.
Cyrus congelou, perdendo o fôlego. O caminho envolto
em geada o levara ao telhado de um chalé de pedra, um
dos muitos na meia-lua de casas que pertenciam ao
território dos Profetas. O jovem príncipe estava agora
sobre uma dessas casas, com uma camada esponjosa de
musgo sob as botas. Seus medos intensificaram-se
quando ele ergueu a cabeça; nunca lhe fora proibida a
entrada naquele território.
Lentamente, ele encarou seu velho professor.
O homem deslizou adiante, com suas vestes escuras
como que sombreando o movimento. Os Profetas de
Tulan distinguiam-se por seus mantos pretos; o curioso
tecido, carregado de segredos, brilhava como metal
líquido. O homem então puxou o capuz um pouco para
trás, expondo parte de seu rosto à luz. Sua pele morena,
apesar da idade avançada, era lisa, mas seus olhos
estavam leitosos de catarata. Sua atitude não era de
censura, porém. Uma compaixão parecia emanar do
âmago daquele homem. Cyrus entendeu de imediato.
Vocês já sabem, ele disse de modo inaudível.
O Profeta assentiu. Sempre soubemos, mas não
deveríamos interferir.
O jovem príncipe sentiu o coração contrair pela
revelação. As palavras soaram como uma traição,
mesmo que, de modo racional, ele compreendesse.
Profetas eram condenados a carregar conhecimentos e,
ao mesmo tempo, restritos a limites rígidos. Por mais
poderosos que fossem, sacerdotes e sacerdotisas não
podiam obstruir o livre-arbítrio alheio, e não lhes era
permitido oferecer orientação, exceto se fossem
consultados. Cyrus entendia tudo isso melhor do que a
maioria das pessoas.
Ainda assim, um calor encheu seus olhos, pois agora
ele sabia, com uma certeza categórica, que seus sonhos
estavam acabados; seu propósito de vida nunca mais
seria o mesmo. Nunca se tornaria um Profeta. Tudo que
ele sempre quisera, tudo pelo que tinha se esforçado.
Sua vida, seu futuro…
O professor acenou com a cabeça mais uma vez, de
forma lenta, fazendo Cyrus cair no chão, de onde pôde
ver as paredes violáceas do templo atrás deles
erguendo-se às alturas. Com o coração recém-partido, o
príncipe testemunhou a barreira sendo erguida entre os
dois corpos: a magia o excluía daquele mundo.
Aquele território sagrado jamais seria seu lar.
Por favor, ele implorou. Vim em busca de seu
aconselhamento.
O Profeta abanou a cabeça devagar. Há apenas duas
escolhas, meu pequeno.
Cyrus prontificou-se a falar, com uma frágil esperança
formando-se em seu peito, mas o velho professor ergueu
a mão para impedi-lo de continuar. Foi com inconfundível
pesar que o homem o encarou e disse:
Alguns poderão morrer. Ou muitos.
UM

— O que você… Você está comendo uma laranja?


Ao dizer isso, Kamran virou o rosto tenso de
consternação, observando a jovem sentada sob o céu
noturno ao lado dele. Fazia horas que voavam pelos céus
e, enquanto ele só ficava mais e mais gelado e inquieto,
ali estava a srta. Huda, meio inclinada sobre o pássaro
mágico, maravilhando-se com as estrelas e devorando
uma fruta como se fosse a heroína de um romance.
— Sim, por quê? — Ela estava prestes a levar mais um
gomo à boca, mas parou, parecendo assustada. — Ah!
Perdoe-me, Alteza. Quer um pedaço? — Estendeu a mão
grudenta, sobre a qual repousava um gomo melado, e
Kamran recuou.
Ela lhe oferecera o gomo que estava levando à boca. A
moça parecia desconhecer as boas maneiras.
— Não — ele respondeu de modo cortante.
Como a srta. Huda encontrara a fruta cítrica, ou como
ela pensara em pegá-la em meio ao caos, ele nunca
saberia, pois não tinha intenção de…
— Consegui surrupiar algumas frutas de uma bandeja
que estava passando quando fugimos do palácio — ela
explicou, pausando para mastigar e engolir. O brilho das
estrelas iluminou seus movimentos grosseiros e seus
olhos vidrados, que o encaravam com uma admiração
mal disfarçada. — Espero que não se importe. Fico um
pouco fraca entre uma refeição e outra.
Kamran exalou um som indiferente e virou-se de volta.
Ele não queria iniciar uma conversa. Por um bom tempo,
aquela improvável caravana não pôde se comunicar, pois
o barulho constante e as turbulências da viagem
tornavam as conversas impossíveis, mas o vento por fim
se acalmara, e o alívio entre o quinteto tornara-se quase
palpável. As impressionantes feras aladas que os
carregavam se uniram em uma formação compacta ao
iniciarem sua lenta descida para Tulan. Não faltava muito
para aterrissarem.
A mente de Kamran estava inundada de medo e
exaustão. Por mais grato que estivesse pelas
circunstâncias extraordinárias de sua fuga, o brilho
daquela jornada começava a diminuir sob a constante
agitação de seus pensamentos. Ele não queria papo com
ninguém.
— Ah, será que eu posso comer um pedaço? — Omid
interrompeu, ansioso, falando na língua feshtoon. —
Estou com tanta fome!
O menino estava decidido a só se comunicar em
feshtoon, enquanto os outros respondiam em ardanz.
Aquele novo sistema conferia às conversas uma textura
interessante, tendo sido criado após a descoberta, para a
extrema alegria de Omid, de que todos ali eram fluentes
em feshtoon.
Até mesmo a srta. Huda.
Kamran surpreendera-se quando soube que a moça,
filha ilegítima que era, fora educada como uma dama.
Ele sabia que isso o tornava cruel, mas não podia se
condenar pelo pensamento; era de fato surpreendente
que alguém de origem incerta como ela tivesse sido
criada sob os cuidados de uma governanta. Se bem que
o pai dela era mesmo conhecido por sua excentricidade.
— Também gostaria de um pedaço, se ainda houver —
acrescentou Deen, o boticário. — O aroma está divino.
Era verdade.
O ar ao redor deles parecia perfumado por essência de
laranja. Mas, enquanto a srta. Huda partia os gomos para
compartilhar com os outros, as vozes e trocas animadas
apenas provocaram ainda mais o príncipe. Ele mal
tolerava a maioria dos membros daquele improvável
grupo quando estava de ótimo humor, e agora, sentindo-
se cansado e inquieto, sua paciência estava curtíssima.
— Deixe-a em paz — sussurrou Hazan, com seu tom
familiar de censura. — Ela não tem a intenção de irritá-lo.
— Quem?
— A srta. Huda.
Kamran assimilou essas palavras com surpresa,
virando-se para encarar o velho amigo como se tivesse
sido insultado.
— A srta. Huda? Acha que eu me preocupo com o que
passa pela cabeça da srta. Huda?
Hazan não sorriu, embora seus olhos parecessem se
divertir com alguma piada particular.
— Ah, não?
— Penso sobre ela, se é que penso, apenas quando me
choco com a deselegância de sua mente.
Hazan fez uma careta.
— Isso não me parece justo.
— Você viu quando ela tentou devorar uma nuvem? —
ele continuou, em tom ainda mais baixo. — Com aquela
mandíbula, dá para imaginar? — Ele imitou as mordidas
com a mão. — Virando a cabeça como louca, fazendo
uma voz ridícula, apenas para divertir o menino. Ela não
parece ter nenhum senso de etiqueta.
O rosto de Hazan permaneceu impassível quando ele
disse:
— Acho que ela chamou de voz do monstro comedor
de nuvens.
— Ah, e você aprova esse comportamento?
— Nem todos se levam tão a sério quanto o senhor.
Não têm a energia para tanto, tampouco o interesse.
— Está insinuando que sou vaidoso?
— Não estou insinuando, Kamran. Estou afirmando com
todas as letras.
— Você é um palhaço.
— Que bom então que não fico me olhando no espelho
por muito tempo, contemplando os contornos do meu
rosto.
Com relutância, Kamran abriu um meio-sorriso.
— Nunca lhe foi permitido renunciar ao peso
esmagador de suas expectativas imperiais — Hazan
falou, baixinho, olhando ao longe. — Outros não
carregam tal fardo. E isso não os torna inferiores.
Kamran balançou um pouco a cabeça, avaliando mais
uma vez a srta. Huda à distância. Quando se forçava a
ignorar aquele vestido horroroso, era capaz de distinguir
seus traços mais graciosos. Ela não era uma moça feia;
ele apenas julgava que lhe faltava refinamento. Ela era
escandalosa, indelicada e infantil, e ficar perto dela o
deixava desconfortável, como se suas roupas fossem
dois tamanhos menores do que deveriam.
Ela riu, então, riu até seu corpo chacoalhar, e ele se
virou com tudo para o outro lado, como se aquele som
alegre arranhasse seus nervos.
— Se ao menos eu pudesse me dar ao luxo de ser tão
relaxado — murmurou. — Seria como uma brisa fresca no
inferno.
Hazan dirigiu-lhe um olhar triste de compreensão, e
Kamran, decidindo que merecia um pouco de descanso
de suas punições mentais, permitiu-se acomodar-se
melhor no assento.
Ele estava montado sobre Simorgh, o lendário pássaro
fêmea que lhe oferecera uma chance de fuga em seu
momento de maior desespero. Os outros estavam
distribuídos sobre as costas dos quatro filhotes de
Simorgh. O príncipe arduniano não sabia o que esperar
ao montar naquela imponente e magnífica criatura, com
uma envergadura do tamanho de um salão de baile. Ele
ficara tão impressionado e grato pelo privilégio de sua
companhia que não lhe ocorrera questionar se a longa
jornada entre Ardunia e Tulan seria fácil. Já era ruim o
bastante que tivesse sido unido à força àquelas almas
perdidas — a única ligação entre todos ali era uma
enigmática jovem que cruzara a vida deles —, mas,
somando-se isso à exaustão, à fome, ao medo e ao luto
mal digerido, a própria existência de seu corpo parecia
agora intolerável.
Kamran queria Alizeh — Alizeh e nada mais — e, por
isso, fora forçado a unir-se a um órfão, uma bastarda e
um misantropo; como se sua vida fosse um jogo de
tabuleiro e ele não tivesse escolha a não ser jogar com
as cartas que tinha à mão. Considerando-se como Alizeh
era reservada com relação à própria vida, aqueles eram
figuras de fato peculiares. A verdade era que, caso não
houvesse sido tão obstinado em sua busca pela jovem,
talvez tivesse experimentado a felicidade de não
conhecer nenhuma daquelas pessoas.
Para agravar ainda mais seu mau humor, o calor que
acometia o corpo do príncipe estava mal distribuído.
Apesar da quentura do pássaro, suas extremidades
estavam quase dormentes de frio, o arco e aljava de
flechas pendurados nas costas pareciam cravar sua
carne e, embora ele não fosse admitir isso em voz alta, já
fazia uma hora que tentava ignorar sua necessidade de ir
ao banheiro.
Apesar de tudo isso, Simorgh provou ser uma montaria
certeira e confortável, e as penas sedosas e iridescentes
eram como uma almofada para o corpo cansado de
Kamran. Fazia dias que ele mal dormia, tão abalada
estava sua vida. Se ao menos pudesse se certificar de
que não cairia, Kamran poderia ter cochilado apoiado no
pescoço da ave. Agora, à medida que os movimentos
suaves e constantes do voo o embalavam, ele lutava
para manter os olhos abertos. Em silêncio, agradecia a
bofetada estimulante que o vento frio às vezes dava em
seu rosto.
— Você continua com fome?
Kamran virou-se, uma brisa despenteando seu cabelo,
mas logo percebeu que a pergunta não fora dirigida a
ele. A srta. Huda havia conseguido uma banana em
algum bolso secreto nas dobras ondulantes de seu
vestido horroroso e agora tentava, sob a imensidão
escura do céu, entregá-la a Omid, cujos olhos brilhavam,
embora sua boca ainda estivesse cheia. Ele se esforçou
para pegar a fruta e, em um momento que fez Kamran
enrijecer em seu lugar, os dois trombaram a cabeça e
quase despencaram em queda livre.
Omid e a srta. Huda caíram na gargalhada na mesma
hora, encantados por quase terem se matado de tanta
estupidez. Até Deen, o mais rabugento dos quatro
viajantes, conseguiu sorrir.
Aquilo despertou em Kamran uma fúria irracional.
Não entendia que o que sentia ao observá-los não era
bem raiva, mas uma mistura de inveja e ressentimento.
Omid, a srta. Huda e Deen acompanhavam-no naquela
jornada apenas por um pouco de aventura, por um toque
de magia. Não estavam ali como ele: em uma luta
desesperada pela própria vida, seu trono e seu legado.
Que pudessem cair tão facilmente na risada e
compartilhar um lanche enquanto trocavam gracinhas —
tudo aquilo lhe causava uma profunda indignação
ardente. No fundo, ele desejava a mesma alegria; mas,
incapaz de expressar esse sentimento até para si
mesmo, embarcava em sua irritação, permitindo que os
braços tão bem conhecidos da raiva o envolvessem ali,
sentado sob o céu, deixando-se devorar aos poucos por
desconhecidos.
Os pensamentos sobre Alizeh, é claro, agigantavam-se
ainda mais.
DOIS

Alizeh tocou um dedo no chão e pôs-se a desenhar


formas no solo irregular. A textura esfolava um pouco sua
pele. Ela estava sozinha sob a escuridão gelada, bem no
centro de uma vasta planície de depósitos de sal que
parecia se estender rumo ao infinito em todas as
direções. Os cristais brancos amontoavam-se no solo,
formando uma crosta dura, reluzindo um brilho de
diamantes triturados ao luar.
De modo distraído, ela lambeu um pouco do sal do
polegar, fazendo uma careta ao sentir o calor difuso
aquecer sua língua. Seus pensamentos agitaram-se ao
olhar ao longe, observando a espessura da noite
salpicada de estrelas. Alizeh sabia que havia também
vaga-lumes na atmosfera de Tulan, e o brilho do céu
estava tão denso que ficava leitoso em alguns pontos.
Era como se uma criança tivesse pressionado a mão nos
céus e espalhado todo seu lume.
Mas nem toda aquela maravilha conseguia distrair sua
mente.
Cenas das últimas horas continuavam a assombrá-la,
com sons tamborilando sem parar contra seus ossos, as
lembranças das sensações arrepiando sua pele. Mesmo
ali, rodeada de quietude, ela não conseguia encontrar
silêncio algum. Horas antes, fizera o impensável. Após
dezoito anos escondida, Alizeh enfim saíra das sombras.
Expusera-se como a rainha perdida de Arya, em uma
atitude perigosa por vários motivos, e o principal deles
era que não estava preparada para desempenhar tal
papel. Não possuía nenhum trono, nenhum exército,
nenhum plano e nem um grama da magia poderosa que
lhe fora prometida para que conseguisse reinar. Naquele
momento, era mais provável que fosse assassinada do
que venerada, mas ela sabia que não tinha escolha a não
ser emergir, mesmo que ainda inacabada, sob os
holofotes.
Após rumores de sua chegada a Tulan correrem pela
cidade real, milhares de jinns invadiram o castelo a sua
procura, exigindo provas de sua existência. A multidão
mostrara-se selvagem e frenética, clamando por uma
espiada na lendária rainha, ameaçando responder com
violência caso ela fosse ferida. Era bom, então, que o
corte em sua garganta fosse discreto demais para ser
percebido por uma multidão à distância.
Infelizmente, o rebuliço atraíra de imediato a atenção
de Sarra.
A rainha-mãe passara pelo choque e pelo horror de
avistar Alizeh momentos antes de se apresentar às
massas, saindo do quarto de Cyrus com um vestido curto
e ensanguentado, o pescoço sangrando e toda a
dignidade que fora capaz de reunir.
Sarra observara o ferimento e o estado de
constrangimento de Alizeh, depois passara aos olhos
enlouquecidos e ao torso nu de seu filho, e então o
semblante dela pareceu transmitir algo como uma
aversão assassina. Alizeh arrumara, nervosa, o vestido
sujo, sacudindo toda a saia para que chegasse até os pés
antes de se apressar para explicar a situação, mas Cyrus
lhe dirigira um olhar tão severo que o nosta enfiado
dentro de seu espartilho se acendeu, e a queimadura
suave a fizera permanecer em silêncio. Sarra apenas
dera uma risada zombeteira, ainda que o assunto não
tivesse sido abertamente discutido, pois parecia agitada
demais pela urgência da multidão lá fora — os milhares
de jinns tumultuosos atrás dos muros do palácio. Sua
única indulgência fora lançar um olhar penetrante para o
outro lado do corredor, onde quatro jovens snodas
boquiabertas haviam caído uma sobre a outra em um
estado de choque quase cômico, antes de dirigir um
sorriso sombrio para Alizeh.
— Clareie sua mente, menina — ela disse com um
suave tom ameaçador. — Se a multidão não a matar esta
noite, a fofoca que virá depois talvez a mate.
Alizeh apertou os olhos ao se lembrar disso, e sua pele
se aqueceu com o resquício de constrangimento. Em
grande parte, a verdade estava muito longe de ser
escandalosa, é claro. Aliás, Sarra se alegraria ao saber
que ela e Cyrus estavam apenas tentando se matar.
A noite deles fora atordoante.
Depois de horas cuidando de Cyrus após o ataque
brutal do diabo, o rei semidelirante conseguira
transportá-los de volta aos seus aposentos, onde, pouco
depois, os dois tiveram uma briga explosiva. Ela e Cyrus
haviam se enfrentado em um duelo de espada, trocado
golpes e palavras acaloradas. No final, ele a derrotou não
com uma arma, mas com uma sequência de declarações
apaixonadas que a deixaram arrasada.
Ela tocou o pescoço de forma distraída, fazendo uma
careta ao sentir o sal em seus dedos sobre a ferida
aberta. Trouxe então os joelhos para junto do peito e se
abraçou com força, mordendo a bochecha por dentro
para que seus dentes não tiritassem de frio.
Como ela poderia ordenar seus pensamentos em meio
a tantas sensações malcompreendidas? Tantos desejos
para administrar?
Nunca soube o que a esperaria quando enfim
ascendesse ao trono jinn, embora já lhe tivesse passado
pela cabeça que qualquer tentativa disso fosse ser
recebida com suspeita e fúria. Ela havia se preparado
para se defender contra as acusações de fraude;
presumira que seria forçada a provar, de alguma
maneira, que era a legítima herdeira do trono.
No momento em que ela pisara sobre a balaustrada,
porém, a multidão parecera se encolher, como se tivesse
sido atingida por uma força desconhecida. Seus clamores
ensurdecedores cessaram de repente, e o silêncio
tornara-se tão completo que Alizeh pôde ouvir a própria
respiração. Os momentos iniciais foram os mais
aterrorizantes; os segundos arrastaram-se enquanto o
coração batia contra suas costelas e o pânico a tomava.
Ela não tivera tempo para pensar ou se preparar, e
preocupara-se em falar algo grandioso ou, ao menos,
inspirador. Suas primeiras palavras públicas seriam sem
dúvida lembradas ao longo da história, repetidas pelas
ruas. Ela queria discursar para eles.
Mas, então, ela os encarara com mais atenção.
O que viu foram jinns exaustos após longas horas em
pé, gritando. Só se podia ouvir o choro abafado dos
bebês nos colos cansados de seus pais, enquanto
crianças maiores dormiam aos seus pés. Os mais velhos
apoiavam-se sobre suas bengalas, e os mais jovens
encaravam-na com olhos tensos e fervorosos. Cada rosto
expressava fadiga e uma esperança trêmula… E uma
sede causada pela simples desidratação.
De modo gentil, ela então dissera:
— Meu querido povo, deixe-me primeiro lhes trazer
água.
O resultado fora um caos devastador.
Como estavam tão certos de sua identidade, ela não
sabia; não era algo que pudesse questionar sem
prejudicar sua credibilidade. Mas, ao ouvir suas palavras,
eles pareceram obter a prova necessária e assim
tornaram-se ainda mais histéricos, alguns chorando de
forma descontrolada, outros desmaiando nos braços de
familiares ou até de estranhos.
Alizeh fizera menção de ir ao seu encontro, decidida a
nutrir e hidratar aqueles milhares de pessoas, mas Cyrus
interviera, saindo das sombras, interrompendo seu
movimento com um olhar já conhecido de fúria.
— Você não se colocará em risco — dissera.
Ela mal assimilara sua irritação, mal abrira a boca para
protestar antes que ele se virasse para um criado
próximo e desse ordens que ela não pudera ouvir. Cyrus,
rei de Tulan, não estava mais com o peito descoberto;
vestira-se com um suéter básico, um sobretudo e um
chapéu de pele que lhe cobria a testa. Seu cabelo cor de
cobre era seu único luxo.
Tudo da cor preta.
Ela não conseguira desviar o olhar ao vê-lo
desempenhar essa pequena tarefa, fascinada por sua
postura inabalável. Havia apenas horas que ele fora
torturado pelo diabo e quase morrera. Depois foi atacado
pela própria Alizeh, depois por sua mãe, e tudo isso em
meio à ameaça de violência contra seu lar. Um golpe
atrás do outro sem pausa nem descanso e, ainda assim,
ele permanecera composto. Sorria um pouco ao se dirigir
ao criado, com maneirismos gentis, mas firmes.
Ele não havia hesitado.
Após resolver a questão prática, Cyrus virou-se, atraído
pela força do olhar dirigido a ele. Ela também havia se
trocado antes de se dirigir à multidão, usando agora um
dos mantos de Cyrus, que ele insistira que serviria de
proteção contra o frio e como um modo de cobrir o
vestido manchado. Mas ela logo pôde sentir o calor do
olhar dele em outro lugar, demorando-se primeiro em
seu pescoço, depois sobre as linhas ocultas de seu corpo.
Ele mediu as dobras do traje emprestado, as mangas
demasiado longas, os muitos centímetros da barra
arrastados ao redor dos pés dela.
O olhar dele continha toda a inconstância de um
eclipse: a raiva quase sobrepondo-se ao desejo.
Alizeh tinha ficado zonza sob aquela inspeção, sentindo
a pele picar nos locais tocados pelo olhar dele. Não
saberia descrever tal sensação; era como uma languidez
ofegante. Ninguém nunca a olhara da forma como ele a
olhava, como se a simples visão dela pudesse ser fatal.
Ela abriu os lábios sob o peso de seu desejo silencioso, o
som do nome dele pesando em sua boca em um impulso
desesperado e tolo de sussurrá-lo contra a pele de seu
corpo.
Para sua felicidade, gritos de espanto e confusão
vindos da multidão a arrancaram de seu transe. Alizeh
virou-se, assustada, para testemunhar os criados do
palácio percorrendo a multidão de jinns com bandejas
douradas, cada qual cheia de canecas e jarras d’água.
Naquele instante, Alizeh respirava o ar frio que
entorpecia suas narinas, fechando os olhos com força
contra o vertiginoso céu noturno. A cena era linda, sem
dúvida… Mas nem sua cabeça nem seu coração estavam
preparados para apreciar o presente.
Além disso, ela não sabia onde estava.
Chegara àquele local perseguindo Cyrus em sua ronda
da meia-noite pela cidade real. Após dispersarem a
multidão — uma vez que as pessoas aceitaram que ela
estava bem; que acabara de chegar a Tulan e que não
havia tomado nenhuma decisão definitiva sobre o
casamento; e que se dirigiria a elas de modo oficial
assim que tivesse descansado um pouco —, voltaram
para dentro do palácio. Sarra parecia querer berrar, tal
era a expressão em seu rosto, enquanto Alizeh não
queria nada além de dormir, mas o jovem rei pronunciara
três palavras eficientes, olhando na direção do muro do
palácio:
— Infelizmente, preciso ir.
Sem mais explicações, Cyrus a deixara sob a custódia
de sua mãe; esta, por sua vez, estava mortificada.
Sarra emitira um arquejo antes de encarar Alizeh com
olhos arregalados, piscando, e, por um momento, Alizeh
teve dó da mulher. Em uma mudança chocante de
atitude, Sarra, antes uma adversária astuta e complexa,
parecera desencorajada. Após testemunhar o poder
silencioso de Alizeh diante da multidão, a mulher agora
tinha medo até de respirar ao lado da garota. Talvez a
rainha-mãe temesse ter cometido um erro perigoso ao
pedir a Alizeh que assassinasse seu filho.
Se pudesse, Alizeh daria risada do absurdo da situação.
Mas ela somente desejara boa-noite a uma Sarra ainda
trêmula e, uma vez que ficara sozinha no corredor,
tornara-se invisível e saíra para perseguir Cyrus com uma
velocidade sobre-humana, tomando cuidado para não ser
vista, com medo de que algum criado jinn a descobrisse.
Não demorou muito para que o alcançasse fora dos
muros do palácio, com paisagens estrangeiras
derretendo em escuridão ao atravessarem a noite
gelada.
Alizeh suspirou.
Havia florestas peculiares ali: árvores brancas com
galhos brancos que brilhavam por dentro em uma
pequena área na borda da salina. Chegara até ali em sua
perseguição, pois Cyrus logo se evaporara em uma
nuvem literal de fumaça ao se aproximar da floresta
iluminada, e assim ela se vira ali, solitária e perdida,
xingando-se pela própria estupidez.
Puxou o manto emprestado com mais força sobre os
ombros, lutando contra a vontade de inalar a fragrância
de seu dono. Conhecia a colônia dele, as notas florais de
rosa infundidas com o tempero masculino de sua pele,
embora ela não tivesse muita certeza de como chegara a
conhecer. Talvez tivessem sido as horas que ela passara
segurando o corpo de Cyrus, respirando-o enquanto
chorava. Ela ainda podia sentir o cabelo sedoso dele
deslizando entre seus dedos, o rosto em suas mãos. Por
seus esforços, fora recompensada com uma queimação
implacável sob o esterno, uma onda de sentimento tão
poderosa que se espasmava sem alívio, recusando-se a
se acalmar mesmo quando seus pensamentos se
voltavam para qualquer outra coisa ou outra pessoa. Seu
corpo nunca se sentira tão vivo, tão eletrificado.
Quando foi que tinha permitido que Cyrus ocupasse
tanto espaço dentro dela?
Nada havia acontecido entre eles.
A confusão de sentimentos que ela experimentava
agora, os destroços emocionais que era forçada a
vasculhar, tudo isso após um não acontecimento…
Não fazia sentido.
Pior: Cyrus estava sob o comando do diabo.
Uma afirmação dessas deveria ser conclusiva o
suficiente para condená-lo; mas, além dessa, os céus
sabiam que ela tinha muitas outras razões. Entre outros
crimes horríveis, ele roubara seu precioso Livro de Arya e
se recusava a devolvê-lo, mantendo-o refém sob a
proteção da magia. Ele matara os Profetas de Ardunia,
assassinara o rei Zaal e o próprio pai e tinha se
apresentado como seu inimigo, quisesse ela ou não.
Então, quando ele se esgueirara para fora do palácio de
forma misteriosa — e, provavelmente, nefasta —, ela se
sentira compelida a segui-lo.
Que tolice a sua.
TRÊS

É claro que Cyrus sabia que estava sendo seguido.


Ela tinha a sutileza de um dragão sonâmbulo. Como se
ela pudesse se aproximar dele sem seu conhecimento…
Como se ele não pudesse ouvir a barra de seu manto
arrastando-se atrás dela. Já era tortura suficiente
imaginá-la usando suas roupas, e um tormento ainda
maior sentir seus passos determinados e vislumbrar seu
semblante preocupado, o leve bico em seus lábios que só
aparecia quando ela pensava demais. A firmeza com que
o perseguia — como se tivesse noção do que estava
fazendo — era tão adorável que o enfurecia. Receava
que acabaria reconhecendo o cheiro dela, o som dos
passos em sua direção pelo resto de seus dias. Que tolice
a dela não se dar conta disso.
E que tolice a dele pensar sobre ela.
Cyrus suspirou e seguiu em frente, o vapor frio
escapando de seus lábios em meio à noite gelada. Altos
e imponentes pinheiros brilhavam ao longo do caminho,
os feixes de luar por entre seus galhos tal qual dedos
fantasmagóricos, como se quisessem agarrá-lo. Os
pássaros noturnos piavam; parecia haver uma ameaça
de esquecimento enquanto a fragrância fresca de pinho
lhe enchia a cabeça. A hora era tardia e estranhamente
gélida.
Se ao menos ela parasse de segui-lo.
Havia uma terrível jornada pela frente e, depois de
tudo pelo que tinha passado naquela noite, Cyrus
esperava um único alento: a solidão. Desejava um
momento para se recompor — firmar-se antes de encarar
a próxima fase de tortura.
A sombra dela à espreita tornava tal esperança
impossível.
Ele já a ouvira repetidas vezes tropeçando na barra do
manto e tivera de cerrar os dentes para não se virar para
ajudá-la.
O jovem rei não precisava percorrer aquela odisseia
glacial; ele pretendia chegar ao seu destino com um
truque de mágica. Apenas estava conduzindo Alizeh em
uma caminhada sem rumo de propósito, esperando que
ela acabasse se cansando do frio, ou pelo menos cedesse
à própria exaustão, e voltasse para o palácio.
Mas ela não tinha como conhecer esse seu dilema: não
sabia que sua sombra inexperiente o estava enfurecendo
e, ao mesmo tempo, acalmando; que ele queria
desaparecer mesmo que não pudesse suportar a ideia de
abandoná-la ali, na escuridão gelada. Ele a queria mais
perto do que poderia expressar em palavras, queria-a
nua e trêmula em seus braços… Mas também queria
arrancar essas sensações de sua pele. Decepar a própria
cabeça e jogá-la no rio.
Queria gritar com ela.
Houve então uma súbita rajada de vento, o farfalhar
intenso de folhas. Cyrus baixou a cabeça para se
proteger do frio e ouviu o som quase imperceptível de
uma fungada, que só lhe provocou ainda mais a fúria.
Ele sabia que sua raiva era irracional, mas ainda assim
teve o impulso de se virar e acusá-la de ser
estupidamente teimosa; ela morreria congelada sem
motivo, torturando-o para além dos limites da
humanidade. A princípio, ele ficara surpreso ao percebê-
la seguindo-o, desarmada, pela escuridão gelada. Seu
primeiro impulso, claro, foi de impedi-la. E ele quase o
fez, quase deu meia-volta e ordenou que ela retornasse
aos seus aposentos.
Mas ela não lhe daria ouvidos.
Ele tinha certeza de que ela apenas responderia com
mais descontentamento. Faria pirraça como uma criança
pega fazendo arte. Ela se recusaria a ir embora e o
acusaria de usar magia contra ela — de que outra forma
poderia ter percebido a presença de uma espiã tão
magistral? E quando, inevitavelmente, ele a abandonasse
de qualquer maneira, ela proferiria insultos, primeiro
exigindo que ele devolvesse seu livro, depois acusando-o
de ser um tirano e, ainda por cima, um babaca.
Não, uma pequena correção: ela não usaria palavras
tão vulgares.
O mais provável é que ela o chamasse de canalha,
charlatão, patife. Esse pensamento quase o fez sorrir.
Mas, então, a barragem estilhaçou.
A dor formou um cerco brutal ao seu redor, irradiando
de seu âmago até que sua mente fosse forçada a se
submeter a uma invasão de memórias. Ele foi
bombardeado por cenas das últimas horas, cenas que
desejava, mas não podia, banir para sempre de sua
história. Cyrus não conseguia pensar em nada além da
mão delicada em sua testa, no próprio corpo aninhado
nos braços dela, na deliciosa agonia da pele feminina
contra seu rosto. Sentia a garganta latejar com a
lembrança de como ele a tinha tocado em seu delírio, e o
perfume inebriante dela encheu de novo sua cabeça, e
ali viveria para sempre, junto com o sussurro de sua voz
de choro. Ela havia derramado lágrimas sobre seu rosto
enquanto dizia seu nome, repetidas vezes, implorando
para que ele acordasse.
Ele cerrou os punhos.
Não conseguia acreditar que havia lhe contado a
verdade.
Era inconcebível que tivesse confessado que sonhava
com ela noite após noite; que, por oito meses
angustiantes, conhecera o gosto, o calor, a seda de sua
pele em seu sono. Nada mais do que um ataque de
loucura poderia tê-lo levado àquele estado. Ele estivera
dolorosamente exausto, ainda sob a influência da magia
das sombras; sua mente e seu corpo ainda não tinham se
recuperado dos outros ataques recentes do diabo. Essa
era a única desculpa que ele conseguia encontrar, de
que estava acabado… De que suas defesas estavam
baixas devido ao choque, seu corpo fraco levado ao
extremo pelo carinho dela. Em qualquer outro momento
de sua vida, ele teria sido mais forte. Teria se esquivado,
teria morrido antes de se desonrar daquela forma,
exibindo seu desejo como um tolo.
Pelos infernos, ele teria se comportado melhor.
Oito meses antes, Iblees plantara Alizeh em sua cabeça
de propósito, construindo em sua mente uma narrativa
que o tornava submisso a ela. Sem dúvida, o plano do
diabo era usá-la para destruí-lo… E Cyrus caíra nessa
armadilha tão óbvia.
Lutava para respirar.
Algo havia mudado nele de maneira irrevocável
naquela noite, e ele temia quem se tornaria a partir de
agora. Haviam caído sua máscara, seu verniz de
indiferença, sua capacidade cada vez mais fraca de
resistir à proximidade dela com um humor amargo e uma
atitude de desprezo. Desde o primeiro encontro, Cyrus
atribuíra os inúmeros buracos em seu peito à maldade
dela; afinal, ela era a noiva escolhida pelo diabo, o que
devia ser motivo suficiente para acreditar que era
corrupta e desonrosa. Ele presumira que ela era de fato
amiga do diabo, cúmplice do plano de roubar seu
império. E mantivera essa convicção no peito, mesmo
quando suas dúvidas foram logo refutadas; cada
evidência da inocência dela parecendo abrir rachaduras
em sua armadura. Evidências de que seu caráter era
impecável, de que ela não havia feito acordo nenhum
com o diabo, de que ela era tão assombrada por Iblees
quanto ele…
A verdade era pior, infinitamente pior.
Sua última demonstração de compaixão por ele o tinha
derrubado, pois, somada a tudo o mais, provava que ela
era mesmo a figura angelical que ele acalentava em seus
sonhos. Não só estivera terrivelmente errado sobre ela,
como a tratara de modo cruel. Sabia agora que ela era
tão superior que nem mesmo era digno de ficar ao seu
lado. Com toda certeza, ele não tinha o direito de desejar
nada dela.
Ele parou de repente, seu coração batendo forte contra
as costelas.
Por todo aquele tempo ele fora capaz de suportar a
agonia da presença dela apenas porque sentia ódio;
sabendo agora a profundidade de seu erro, como poderia
suportar ficar perto dela? Como suportaria olhar para ela,
quando já não tinha as defesas necessárias para
proteger seu coração patético?
Passou as mãos congeladas pelo rosto, lembrando-se
de manter a compostura, pois ela ainda podia vê-lo.
Sentiu que poderia entrar em combustão caso não se
acalmasse; mas, ainda assim… Como poderia se acalmar
sob o olhar dela?
Ele mal prestara atenção aos arredores nos últimos
minutos e só então percebeu, ao olhar para cima, que
estava diante de um bosque iluminado na fronteira da
maior planície de sal de Tulan. Tratava-se de uma vasta e
assustadora extensão, e ele ficou mais ciente do que
nunca de que ele e Alizeh estavam sozinhos sob aquela
cúpula de escuridão, com seus movimentos seguidos
apenas pelas estrelas. Uma parte febril de si ousou
imaginá-la ali no escuro, observando-o.
Ele a queria tanto.
Ele a queria com uma sede avassaladora, com o
desespero de um homem à espera da morte. Sem
dúvida, o diabo ficaria encantado ao vê-lo tão degradado.
Foi esse pensamento preocupante que afastou de
imediato o calor de sua cabeça, e Cyrus sentiu-se frio e
estúpido.
Entorpecido.
Se ao menos pudesse voltar a odiá-la, a desconfiar
dela, tudo ficaria mais fácil. Se, por outro lado, ele se
permitisse continuar movido por este desespero, o Livro
de Arya se tornaria o menor de seus problemas. Poderia
ser levado a matar um homem apenas para que ela
pudesse apreciar melhor a paisagem. Ele poderia
renegar todo o acordo, exatamente como o diabo
desejava.
Ah, ele se arrependeria.
Cyrus corria o risco de perder o controle. Alizeh tivera
compaixão dele ao se afastar, ao pôr fim a algo que
poderia tê-lo destruído. Ele nunca mais poderia se
permitir chegar tão perto dela. Era ridículo até mesmo
cogitar a ideia de que ela poderia sentir algo por ele.
Mesmo agora ela o seguia apenas porque não confiava
nele; não tinha ideia de que o estava seguindo em uma
jornada ao inferno, onde o mestre das trevas aguardava
ansiosamente por sua chegada.
Não. Ele era uma alma arruinada.
Observá-la discursar para uma multidão desesperada e
devota de milhares de pessoas, todas prontas e
dispostas a morrer por ela, fora o golpe final.
Ele sempre seria o vilão da história.
Havia meses que fizera as pazes com o sacrifício que
sua vida deveria ser, pois era a única maneira de cumprir
as tarefas que lhe tinham sido impostas. Para Cyrus,
esperar algo além da morte era um jogo traiçoeiro que só
terminaria em tragédia. Ele não tinha escolha senão
relegar seus sonhos irrealizáveis às memórias
empoeiradas da infância.
Além disso, o diabo o aguardava.
Com esse pensamento final e amargo, ele
desapareceu.
QUATRO

DERRETA O GELO NO SAL UNA OS TRONOS NO MAR


NESTE REINO DE INTRIGAS HAVERÁ FOGO E ARGILA

As palavras retumbavam na cabeça de Kamran, que


estava pensando no livro misterioso que descobrira na
bolsa de tapeçaria de Alizeh. Desde então, a inscrição
enigmática ficara gravada em sua memória. Os dois
últimos versos o perturbavam…
Neste reino de intrigas, haverá Fogo e Argila…
Apesar de tudo, Hazan conseguira plantar uma
semente perigosa em sua mente: Alizeh talvez ainda
estivesse destinada a se casar com ele. Kamran tinha
muitas dúvidas com relação a Alizeh. Havia muito que ele
ainda não conseguia entender; pois ela deixara nós em
seu coração e em sua cabeça para ele desatar. Ainda
assim… As memórias que tinha dela permaneciam tão
ardentes que ele precisava lutar para pensar de forma
racional. Apesar de suas dúvidas, a ideia de tê-la como
rainha ainda era tão tentadora que ele não conseguia
evitar tal fantasia. Nunca conhecera uma jovem como
ela, do ponto de vista da beleza e da compostura, da
elegância e da inteligência. Kamran não ficara tão
surpreso ao descobrir que a snoda discreta e
encantadora era, na verdade, a herdeira perdida de um
antigo trono. Sempre percebera algo nobre em seu
jeito… Uma dignidade em sua presença…
Um bufo divertido interrompeu os pensamentos de
Kamran, que se virou, irritado, em direção ao som. Seu
humor azedou ao ver a srta. Huda e sua incapacidade de
autocontrole. A moça batia as mãos no peito ao
gargalhar, com a boca ainda meio cheia, dizendo,
engasgada:
— Oh, céus, estou morta de cansada!
Era impossível não as comparar. A srta. Huda era a
antítese de Alizeh, desajeitada e espalhafatosa. Uma fora
criada para ser rainha, e a outra para ser tolerada; ainda
assim, Alizeh vivera em relativa pobreza, e a srta. Huda
em um lar aristocrático. As diferenças entre elas eram
enormes e, embora ambas as jovens tivessem sofrido
negligência, apenas uma conseguira desenvolver
autodomínio e graciosidade. Kamran estremeceu ao som
de outro bufo, sua expressão agora cada vez mais
sombria.
— Pois eu acho que Tulan deve ser um lugar horrível —
ela anunciou. — Duvido que algum lugar do mundo
esteja à altura da beleza de Ardunia…
Havia algo no som da voz dela que o incomodava, que
fazia sua pele se arrepiar. Ele chacoalhou a cabeça, como
que para tirá-la de dentro de si. Não queria se concentrar
nas muitas irritações provocadas pela srta. Huda.
Então mergulhou a cabeça na plumagem sedosa e
densa de Simorgh. O pássaro lendário viera ao seu
resgate em deferência a Zaal, que deixara para o neto
uma única pluma encantada em seu testamento. A pena
servia para invocar a criatura mágica apenas em
momentos de extrema necessidade, e Kamran — tendo
quase perdido sua coroa para Zahhak, o ministro da
defesa, depois sido preso na torre pelos Profetas —, de
fato, estava em um momento extremo. Será que Simorgh
permaneceria com ele por tempo indeterminado? Ou ela
o levaria até Tulan e iria embora assim que o colocasse
em terra firme?
Mais uma vez, seus pensamentos caíram em
incertezas.
Kamran devia usar a viagem para se provar como
herdeiro merecedor de seu próprio trono, conforme
haviam orientado os Profetas. Porém, não esclareceram
como poderia alcançar tal objetivo. Ele se perguntou
sobre o que Zahhak estaria planejando em sua ausência,
e o que os Profetas estariam fazendo e dizendo. A menos
que os sacerdotes e as sacerdotisas quisessem impedir o
ministro da defesa de se coroar como rei, não havia
muito tempo antes que Zahhak tomasse o controle de
Ardunia.
— Na verdade, já ouvi que Tulan é um lugar muito belo
— Deen objetou, sem alarde. — Muitos dos meus
fornecedores vêm do império do Sul e só têm elogios a
fazer…
— Mas é claro — interrompeu a srta. Huda. — Eles
devem ter medo demais para falar mal de sua terra, e
quem poderia culpá-los, quando são governados por
aquele rei bestial…
Kamran enrijeceu-se ao ouvir isso; os estilhaços de
raiva reunindo-se em uma única e cortante lâmina de
ódio.
Apesar de toda a desordem de sua mente, de uma
coisa ele não tinha dúvida: mataria Cyrus.
Enquanto a expectativa de rever Alizeh o deixava
inseguro, a ideia de encarar de novo o rei bastardo do sul
lhe enchia de adrenalina. Entre os muitos horrores que se
repetiam em sua cabeça sem parar, a imagem mais
macabra era a da morte do rei Zaal. A cena ficaria
marcada para sempre em sua memória. Com frequência,
ele retornava àquele som de embrulhar o estômago: a
espada sendo enterrada no coração de seu avô. Kamran
nunca se esqueceria do choque, do horror, do caos que
se seguiu.
Do assassino.
O príncipe arduniano tinha agora como missão, acima
de qualquer coisa, retribuir o que tinha sido feito. Ou se
vingaria da morte de seu avô, ou morreria tentando. O
violento rei de Tulan enfim pagaria pelo que havia feito.
De preferência, picado aos pedacinhos, com os órgãos
internos expostos ao bel-prazer dos abutres.
— Kamran.
Ao ouvir seu nome, o príncipe quase saltou. Lutou para
aquietar o coração sedento de sangue, virando-se para
seu antigo ministro.
— Não quis interromper — Hazan prosseguiu —, pois
vejo que está refletindo. O sol parece estar despontando
no horizonte, e consigo ouvir o barulho de água ao longe,
o que só pode indicar que…
— Sim.
Por ar ou por terra, a chegada a Tulan era caracterizada
pelo estrondo das cachoeiras. Kamran, que já navegara
muitas vezes por aquela parte do mundo, era mais do
que familiarizado com o som — tratava-se de um
detestável lembrete de que Ardunia tinha no máximo
mais dois anos antes de precisar racionar o uso de água,
e três anos antes que uma crise hídrica se instalasse em
todo o império. A neve e as chuvas recentes haviam
trazido um pequeno alívio, mas Ardunia precisaria de
muito mais do que alguns dias de precipitação para não
sofrer com a seca. Dezenas de milhões de pessoas logo
recorreriam a ele para obter proteção. E, um dia, sob sua
liderança, poderiam morrer de sede.
Era outro problema esmagador que demandava uma
solução de Kamran; outra lâmina de medo pressionada
ao pescoço. Seu avô, o rei Zaal, havia escondido a
ameaça de seu povo, insistindo que não havia motivo
para pânico e que haveria tempo para contornar a
questão. Apenas agora, com o fardo sobre seus ombros,
Kamran entendia tal silêncio pelo que de fato era:
covardia.
As falhas do avô continuavam a pesar sobre ele.
— Estimo que aterrissaremos em cerca de trinta
minutos — Hazan disse. — Gostaria de conversar com
você sobre os resultados da minha última expedição
antes de chegarmos. Agora, se preferir esperar…
— Não. — Kamran enrijeceu no lugar, com as costas
eretas. Por tantas horas ele se sentira incapaz de
encontrar calma e quietude em meio ao tumulto do voo,
e aquela conversa fora tão adiada que quase se
esquecera dela. No dia anterior, vivendo sob a ameaça
de ser expulso do castelo, Kamran enviara Hazan para o
norte de Ardunia, munido da tarefa de encontrar um
lugar seguro no qual pudessem se refugiar caso fosse
necessário. — Conversemos agora sobre suas
descobertas. Você mencionou ter visto minha mãe? No
interior?
— Sim.
— E falou com ela?
— Sim — Hazan confirmou, assentindo ao mesmo
tempo com a cabeça.
— Onde ela estava? E estava bem?
— Sim.
— E você me forçará a arrancar as palavras de
explicação da sua boca, como se fossem espinhos? O que
há com você?
— Sua mãe é uma mulher estranha — Hazan
respondeu, lutando contra um sorriso. — Viajei para o
norte, sob seu comando, diretamente para o maior
município da região. Imaginei que a taverna local seria o
melhor lugar para conhecer um camponês desavisado
que aceitasse trocar sua terra por uma pequena fortuna
em ouro…
— Sim, muito bem, Hazan, você foi a uma taverna e
encontrou um camponês. Depois foi a um açougue
comprar carne?
Hazan semicerrou os olhos.
— Se seu mau humor não lhe permitir ter uma simples
conversa, fale logo e me poupe do desejo de dar um soco
na sua cara para depois só observar a gravidade cumprir
com seu nobre trabalho de arrebentar seu pescoço lá
embaixo.
Por razões inexplicáveis, essas palavras alegraram um
pouco Kamran.
— Meu humor é sempre tão óbvio para você?
— Seu humor é óbvio até para um cadáver.
O príncipe virou-se para lutar contra um sorriso,
dizendo:
— Continue, então. Você foi a uma taverna e encontrou
um camponês.
— Não, eu encontrei sua mãe.
Kamran ergueu a cabeça com um movimento brusco.
— E, pelo que entendi, ela estava à minha espera —
prosseguiu Hazan. — Quando abri a porta, dei de cara
com ela. Se bem que, para ser justo, ela não fez o
mínimo esforço para ocultar sua presença. Estava tão
coberta de joias que não sei como não fora assaltada em
plena luz do dia.
— Minha mãe sempre foi a rainha da discrição.
Hazan deu uma risada seca.
— De toda forma, ela me observava quando entrei, e
acenou de imediato para que eu me sentasse com ela à
sua mesa. Ela então me falou que já tinha encontrado
um esconderijo para nós.
— O quê?
Hazan assentiu. Kamran então falou:
— Minha mãe, a minha mãe, a lânguida princesa de
Ardunia, incumbiu-se de fazer negócio com um simples
camponês plebeu? Para me proteger? Não me diga que
ela se hospedou na taverna.
Mais uma vez, Hazan assentiu.
— Não — Kamran arfou.
— Confirmei com o dono do lugar.
— Mas como ela sabia que eu precisaria de um
esconderijo?
Hazan pareceu preocupado de repente.
— Não sei. Como disse, ela é uma mulher estranha.
Não pareceu surpresa de me ver vivo; não me perguntou
se você tinha sobrevivido à adaga que enfiou em seu
ombro; não parecia incomodada com a morte do seu avô.
Apenas me perguntou se tínhamos planos de ir a Tulan.
Quando falei que sim, ela me pediu para não
compartilhar os detalhes sórdidos.
Kamran virou-se, passando a mão no rosto enquanto
uma brisa gelada percorria seu corpo. Não havia
amanhecido ainda, e a escuridão parecia persistir,
teimosa. Azul e cinza misturavam-se no horizonte, com a
promessa de que a luz dourada despontaria a qualquer
momento. O príncipe respirou fundo, saboreando a
bruma ao tentar entender aquelas revelações.
Hazan hesitou antes de acrescentar:
— Ela também me perguntou se o diabo já o tinha
visitado.
Kamran virou-se de novo, com todos os músculos do
corpo tensionados.
— O diabo?
— Eu lhe falei que não fazia ideia, pois não tínhamos
conversado sobre isso.
O príncipe balançou a cabeça. Ele sempre tivera o bom
senso de sentir aversão pelo diabo, mas depois de
testemunhar a ruína trazida pela barganha que seu avô
fizera com Iblees, a ideia de encontrar tal criatura o
revoltava até o fundo de sua alma.
— Por que ele me visitaria? Não fui coroado rei ainda.
— Não sei — disse Hazan, franzindo o cenho. — Ela não
falou mais sobre o assunto. Apenas me instruiu a avisá-lo
que estará à nossa espera quando retornarmos, que
tinha resolvido a questão do esconderijo e que eu
deveria enviar a ela guardas da milícia, para trabalharem
sob suas ordens. — Hazan hesitou. — Ela também enviou
isto aqui para você.
Hazan enfiou a mão no bolso do casaco e retirou um
envelope rosa-claro, que entregou ao príncipe. Este
recebeu o estranho presente, um pouco atordoado. Virou
o papel delicado em suas mãos, notando que a aba do
envelope estava aberta. Não lacrada.
— Você leu? — Kamran olhou para o amigo.
— Acho que devo avisá-lo que não se trata de uma
carta. — Hazan suspirou com tristeza.
CINCO

Alizeh caminhava com cuidado para não tropeçar na


longa barra do manto. Suas extremidades estavam
amortecidas pelo frio. Ela enfim admitira a derrota e
iniciara o retorno ao palácio. As estrelas haviam se
retirado para que um novo dia começasse, e os céus
antes negros agora pareciam cobertos de cinza. Apesar
da promessa de luz, a viagem parecia mais ameaçadora
agora que ela a fazia sozinha, e era estranho pensar que
tinha se sentido mais segura na presença de Cyrus. Não
fazia sentido esperar que ele reaparecesse; ele era
esperto demais, ela percebeu, para refazer seus passos
ao voltar para casa, e ela se recusava a perder mais um
minuto que fosse esperando por ele.
Na verdade, toda a empreitada a deixara se sentindo
furiosa e tola.
Era difícil aceitar que seus esforços para rastrear Cyrus
não tinham levado a nada; fora um grave erro pensar
que ela poderia decifrar o enigma que era o rei de Tulan,
pois ele possuía habilidades com as quais Alizeh não
conseguiria concorrer. Ela o seguira, e ele simplesmente
desaparecera. O uso que ele fazia da magia, ela concluiu,
era muito injusto.
Com um suspiro, seguiu em frente, alisando o manto
distraidamente com as mãos enquanto caminhava,
tirando o sal remanescente de sua roupa. Suas palmas
estavam formigando, e ela as sacudiu um pouco antes de
puxar o pesado capuz sobre a cabeça, escondendo o
rosto tanto quanto possível. Avançou em direção ao
palácio, com suas torres magníficas erguendo-se sob o
luar, e se perguntou o que mais a esperaria ali, naquela
terra estrangeira.
Tanto o rei como seu país a deixavam perplexa.
Tulan era um império muito menor que Ardunia, mas
sua geografia ainda a impressionava. Alizeh não sabia se
era a abundância de magia que tornava aquela região
assim, mas o fato é que Tulan abrigava diversos
microclimas e variações topográficas. Do meio do
depósito de sal, ela podia contar os picos de uma cadeia
de montanhas distante, saborear os aromas das flores
noturnas, ouvir o barulho abafado das cachoeiras,
encolher-se diante dos chamados misteriosos dos
chacais. Diante da paisagem dinâmica e irregular, Alizeh
começava a entender como era preciosa aquela terra
situada à beira do rio Mashti e paralela ao mar.
Não era de se admirar que Ardunia desejasse possuí-la.
Ainda assim, ela lutava para compreender como um
império tão poderoso quanto Ardunia poderia ter falhado
em conquistar uma humilde nação. Sem dúvida, muitos
haviam tentado em vão ocupar aquela terra fértil. Tulan
parecia um lugar ao mesmo tempo acessível e
insondável; diminuto, mas vasto. Era o tipo de
contradição que ela via em si mesma: inútil e poderosa
ao mesmo tempo; sem nenhuma importância e, por
outro lado, essencial.
Se ao menos pudesse conciliar todos esses
sentimentos…
Sua vida mudara de forma tão dramática em tão pouco
tempo que era fácil imaginar por que ela se sentia
insegura. Na verdade, se concordasse com a oferta de
Cyrus de ocupar o trono tulaniano, talvez nunca mais
regressasse a Ardunia. Já tinha aceitado que nunca mais
veria Kamran, cuja própria vida havia sido eviscerada…
Ao pensar nele, ela então parou de repente, quase
tropeçando no manto. Perguntou como Kamran estaria se
saindo depois de tanta ruína. E se um dia ele se
lembraria do período em que suas vidas se cruzaram de
forma tão fortuita, e como — ou se — ele se lembraria
dela.
De todo o coração, desejava-lhe boa sorte. Desejava-
lhe paz, onde quer que estivesse. Sempre seria grata por
sua gentileza. Por enxergá-la de fato quando ninguém
mais era capaz.
Alizeh estremeceu, curvando-se quando um vento
gelado soprou e atingiu suas costas. Os pensamentos
iam pesando sobre o coração, tornando seu corpo mais
difícil de carregar. Nunca mais ela veria seu trio de
amigos improváveis. Nunca mais veria Hazan, que sem
dúvida estava enterrado em alguma vala como
indigente. Perdeu o ar com esse último pensamento, seu
peito se contraindo enquanto ela sentia a dor da perda,
da solidão.
E, ainda assim, de alguma forma, ela não estava mais
sozinha.
Horas atrás, ela se dirigira a uma multidão de milhares
de pessoas que a tratavam como sua rainha.
Ainda assim, considerando-se a cena indecente com o
rei do Sul e o jeito como ela se comportara na sequência
diante da massa de jinns, Alizeh começou a temer que,
ao retornar ao palácio, pudesse descobrir-se no centro de
um escândalo. Não gostava da ideia de se tornar objeto
de fofocas. Além disso, não tinha interesse em lidar com
Sarra, cuja insistência para que Alizeh assassinasse
Cyrus permanecia uma questão a ser resolvida. Céus,
como aquela mulher era estranha.
Com um suspiro final, Alizeh convocou o que lhe
restava de forças para se impulsionar com velocidade
sobrenatural de volta ao palácio. Praticamente voava em
sua corrida, vendo a paisagem ao seu redor como um
borrão, e logo estava de volta aos terrenos do palácio,
ofegando enquanto o rugido ensurdecedor da água a
inundava com todo seu clamor.
Parou por um momento, apoiando seu corpo trêmulo
contra o tronco de uma árvore imponente. Tinham sido
semanas infernais, e ela não sabia se conseguiria
continuar daquela forma, naquele ritmo. Desejava tanto
dormir, mas precisava de mais um minuto antes de
embarcar na tarefa final e impossível de encontrar seus
aposentos no enorme palácio.
Cerrou os dentes lutando contra as rajadas de ar
gelado que subiam das cachoeiras, apalpando
distraidamente as dobras do manto em busca de bolsos.
Até então, levava os punhos fechados protegidos pelo
comprimento extra das mangas, mas o frio intenso
mostrava-se invencível, e foi com grande alívio que ela
enfiou as mãos congeladas nos bolsos forrados de lã,
abrindo e fechando os punhos para aquecê-los. Foi então
que ela sentiu algo parecido com um choque — um calor
elétrico percorrendo dolorosamente a ponta de seus
dedos.
Alizeh congelou.
Com o coração batendo forte no peito, ela retirou uma
das mãos, erguendo os dedos doloridos para o luar.
Tinha a ponta dos dedos azuis.
Na mesma hora, ela as esfregou, grata por descobrir
uma estranha poeira espalhando-se por sua pele. Ainda
assim, não houve alívio. A fricção fez com que mais
faíscas percorressem seus dedos; uma sensação não
muito diferente de uma pederneira triturando pedras, até
que a dor aumentou e ela gritou, quase se curvando ao
ouvir o sussurro de uma voz familiar, sentindo um
estrangulamento de um terror já conhecido…
A dor explodiu atrás de seus olhos, queimando sua
garganta. Ela quase desmaiou pela intensidade, o suor
escorrendo pela testa enquanto seu corpo chacoalhava
com terríveis tremores. Um grito crescia em seu peito, o
medo serpenteava por suas veias.
Era o diabo.
Ela conhecia aquele sentimento, conhecia o terror
escorregadio, os horrores, e ainda assim nunca lhe
ocorreram daquele jeito antes, nunca tinham invadido
sua mente com tanta violência…
Alizeh não soube quando caiu, apenas que sentia a
terra fria e úmida sob seu rosto, e fios de musgo faziam
cócegas em suas narinas a cada inspiração. Poeira e
líquen cutucavam as bordas de seus lábios, mas sua
cabeça estava pesada, imóvel. Ela logo percebeu que
havia se machucado na queda — havia uma camada fria
e pedregosa sob sua bochecha, onde outra dor começava
a florescer. Ainda assim, aquilo parecia fugaz, como um
sonho. Mais concreta era aquela voz desencarnada,
gritando coisas sem nexo e indistinguíveis enquanto sua
mente girava. Faíscas percorriam sua pele, e a dor se
expandia de modo implacável dentro dela. Ela apenas
emitiu um lamento ao sentir-se presa ao chão por uma
gravidade inconcebível. Foi então que uma única palavra
se destacou em meio ao barulho. Não havia dúvida de
que a voz pertencia ao diabo… mas o som estava
distorcido, ecoado, como se o resto da frase tivesse se
perdido ao vento.
Olhos
Olhos
Olhos
Olhos
SEIS

Cyrus materializou-se na boca decrépita de uma caverna


mofada e foi saudado com o cheiro de terra úmida e o ar
gélido atingindo-o com a força contundente de uma
clava. Ele sentiu o fedor do mofo ao saltar sobre uma
poça rasa, com o lodo rangendo sob suas botas.
Abaixando-se para passar sob uma saliência de rocha,
teve o cuidado de não tocar em nada ao endireitar o
corpo depois, em uma antecâmara, conforme os olhos se
adaptavam aos poucos à escuridão. A passagem abria-se
para câmaras de alturas vertiginosas, como pequenos
espaços divididos apenas por colunas calcárias. Moedas
de luar caíam através de fendas no teto distante,
lançando globos espectrais de iluminação sobre
estalactites gotejantes e sobre uma escadaria
malformada que subia, sem fim, até uma mancha negra.
Cyrus permaneceu absolutamente imóvel.
Já não temia mais essas visitas — não como antes —,
mas o medo podia ser traiçoeiro… Ainda muito jovem,
ele se surpreendera ao descobrir as múltiplas maneiras
pelas quais uma pessoa podia experimentar o terror; a
criatividade com a qual o pavor e o horror podiam ser
provocados em uma alma. Ele superava um pesadelo e
logo enfrentava outro, ultrapassava mais um e se
deparava com outro igual. Não importavam seus
esforços: ele não conseguia dominar o que não
conseguia prever, e seu único conforto ao olhar para a
sinistra escadaria era um tanto frio.
Ele faria ou não faria aquilo.
Não viveria pela metade.
Cyrus aprendera essa dura lição em sua primeira visita
àquele nível específico do inferno. Era imaturo e
insensível naquela época, tão tomado pelo medo que
começara a suar frio antes mesmo de entrar no abismo.
Vacilou ao pé da imponente escadaria por quase uma
hora, intimidado não apenas pela indecisão, mas pelas
hostilidades da própria caverna. Com a pele pálida e os
membros travados, Cyrus não queria nada além de fugir
daquele covil de horrores; era seu único pensamento ao
subir devagar os degraus, cada avanço mais hesitante
que o anterior. Ele olhava por cima do ombro para
calcular uma possível fuga, nunca se comprometendo
com seus passos, e quase havia chegado ao topo quando
sua vacilação enfim lhe custou muito caro.
Cyrus caíra do precipício em desgraça, sem nenhuma
piedade.
Uma queda de quinze metros, ao longo da qual foi
batendo o corpo em cada borda irregular da descida de
pedra, aterrissando com um impacto tão forte que
quebrara a coluna.
O jovem príncipe ficara ali, sangrando, no chão frio e
úmido, suportando uma agonia de intensidades
incalculáveis. Percebera que havia quebrado dois ossos
de uma perna e que uma protuberância de costela
perfurara sua camisa. Sua visão ficara turva; o sangue
acumulando-se em sua boca aberta; seu peito
contraindo-se devido a algum dano desconhecido. E,
ainda assim, ele sorrira, pois o que sentira naquele
momento não foi nada diferente de alegria.
Tinha acabado.
Ele não teria mais de enfrentar o terror, pois a Morte
havia chegado. Tentara fazer a coisa certa, mas seus
esforços de nada haviam adiantado, e agora ele poderia
ficar ali até que seu sangue esfriasse e ele não
precisasse mais viver com a culpa. Seu mundo
desmoronaria, incontáveis inocentes morreriam… Mas
ele já teria partido e não seria responsabilizado pelas
tragédias.
Em silêncio, chorou lágrimas de alívio.
O que Cyrus não sabia é que Iblees reanimaria seu
corpo despedaçado com a habilidade de um
marionetista, articulando seus membros quebrados em
uma incrível demonstração de crueldade que o jovem
jamais teria podido imaginar. O diabo, Cyrus logo
descobriu, não permitia que seus devedores deixassem
de cumprir com sua parte no contrato.
Centímetro por centímetro, um mais angustiante do
que o outro, Cyrus fora obrigado a subir as escadas com
a ajuda da magia das sombras, sufocando com o sangue
na garganta. Ele estava meio cego, e seus ossos como
que se raspavam entre si, perfurando órgãos e rasgando
a carne. Era um estado de sofrimento tão insuportável
que ele perdera a consciência repetidas vezes, sempre
acordando sobre o chão escorregadio, em uma poça rasa
do próprio sangue, sendo obrigado a prosseguir a
escalada.
Naquele dia, Cyrus aprendera que a covardia era um
luxo.
Apenas uns poucos privilegiados podiam se dar ao luxo
de fugir, trancar as portas e fechar os olhos diante da
feiura. O restante das pessoas vivia em casas sem portas
para trancar, enxergava por olhos sem pálpebras para
fechar. Enfrentavam a escuridão mesmo enquanto o
coração tremia e a alma se dilacerava — mesmo
estranguladas pelo medo, não havia outra escolha a não
ser suportar.
Ninguém as ajudaria a matar seus demônios.
Quando pisara pela primeira vez naquela caverna,
Cyrus não passava de um inexperiente membro da
realeza e pagara um preço alto pela timidez de seu
coração.
Teria o cuidado de nunca mais cometer tal erro.
Agora ele respirava fundo e, cauteloso, deu o primeiro
passo na antecâmara. Olhou para cima.
Foi como ativar um alarme.
Um enxame de sons o envolveu, e ele notou a
presença de milhares de morcegos pendurados como
pingentes no pescoço da escuridão. Os olhos
fantasmagóricos observavam-no atentamente enquanto
as bocas gritavam, compondo uma estranha cacofonia
que logo foi superada pelo áspero e ecoante deslizar de
perninhas duras correndo em sua direção. Cyrus, que já
vivenciara esse fenômeno arrepiante muitas vezes, sabia
que estava cercado de três lados por aracnídeos.
Procurou manter a calma. Um sussurro ao longo de sua
espinha o alertou para a presença crescente de uma
aranha em particular e, devagar, ele se virou para
encarar a anfitriã.
Uma aranha mais ou menos do tamanho de seu rosto
olhava para ele de seu poleiro no ar, pendurada no brilho
de um fio de seda quase invisível. Suas longas pernas se
contorciam de forma ávida e desesperada, e vários olhos
vidrados reluziam na direção de Cyrus enquanto ela o
avaliava. Ela falou quase sem querer, relatando seus
pensamentos em uma comunicação fragmentada que
nunca deveria ser analisada por humanos.
Você é? Você é?
Não há perigo para você, disse Cyrus, em silêncio.
A aranha apenas o encarou.
Ele estendeu a mão, com a palma voltada para baixo,
e, após uma breve hesitação, o enorme aracnídeo subiu
em seu corpo com um movimento ansioso de pernas. Ela
investigou seus dedos antes de subir até seu antebraço,
parando em seu cotovelo para lhe examinar o rosto mais
de perto.
Você é? Antes?
Sim. Já estive aqui antes. Você não corre nenhum
perigo comigo, eu juro.
Em resposta, a aranha escalou a inclinação do seu
ombro, depois o pescoço, provocando nele um
formigamento. As pernas dela eram como alfinetes
levemente peludos. Cyrus venceu o impulso de recuar
diante da sensação enervante, mantendo-se imóvel
enquanto ela encostava com cuidado em seu rosto,
erguendo ligeiramente as patas dianteiras para estudar
melhor seus olhos.
Foi preciso um longo e torturante tempo antes que
dissesse…
Você é? Triste. Triste. Triste.
Cyrus engoliu em seco.
— Sim — ele sussurrou.
A aranha olhou para ele por mais um momento antes
de sair correndo para o lugar de onde viera. Desceu do
braço dele e rumou para o desconhecido com um
julgamento final:
Sem perigo.
O jovem rei se livrou do desconforto persistente
enquanto esperava que os aracnídeos abrissem caminho
à sua frente. Ser psicanalisado por aranhas era sempre
perturbador. Ele não queria pensar que a criatura fosse
mesmo capaz de descrevê-lo com três palavras após
uma observação perspicaz; nem queria se perguntar de
que outra forma poderia sobreviver a essas provações se
não tivesse sido treinado por tantos anos como Profeta.
Se não conseguisse se comunicar com criaturas vivas, se
não conseguisse usar magia para lutar por sua vida.
Incomodava-o pensar que tudo aquilo talvez não fosse
uma mera coincidência; ele não gostava de imaginar que
havia nascido para cumprir aquele papel, trazido ao
mundo apenas para suportar tanto sofrimento.
O destino, pensou ele com amargura, só era romântico
quando se estava destinado a ser o herói.
Depois que a passagem segura foi concedida, Cyrus
não se demorou; pôs-se a escalar a escadaria íngreme e
interminável, subindo os degraus de dois em dois. Estava
ansioso para acabar com aquela noite odiosamente
infinita. Raciocinou que, quanto mais cedo o novo inferno
começasse, mais cedo terminaria… E, em pouco tempo,
seu destino apareceria diante de seus olhos.
Elevando-se acima dele, havia um colossal arco preto
suspenso no ar, a estrutura tão alta quanto a de um
castelo e com metade da largura. Na base da passagem
ornamentada, espalhavam-se sinistras nuvens cinzentas,
dentro das quais Cyrus conseguia distinguir apenas a
faísca de uma já conhecida luz alaranjada. Ele seguiu em
direção a essa névoa espessa, subindo os últimos
degraus antes de se lançar, como um pássaro, no
abismo.
SETE

O vento batia em seu rosto, os sons berravam em seus


ouvidos. Cyrus girou até sentir a carne espremida contra
os ossos, o rosto fissurado pelas correntes de ar, as
bochechas em chamas. Caiu de pé com um baque
pesado que fez tremer seus dentes, antes de se
endireitar devagar, recuperando aos poucos o equilíbrio.
O fedor de matéria podre logo o invadiu, e ele lutou
contra o impulso de vomitar, quase se curvando
enquanto seus olhos ardiam.
Diante dele erguia-se uma cortina de carne
carbonizada.
Iblees nunca se apresentava ao jovem rei como nada
além de um sussurro — uma força transmissível,
proveniente de qualquer parte — e, ainda assim, Cyrus
era convocado com muita frequência àquele lugar. Ali era
o cenário de todas as grandes missivas e de todos os
grandes castigos, um conjunto de câmaras em
decomposição, separadas apenas por véus de retalhos
de pele humana chamuscada. O ponto de encontro
preferido do diabo.
Para Cyrus, era o purgatório.
Ele fechou os olhos e se preparou, lutando para não
inalar o ar pútrido enquanto o sussurro familiar o atingia
como um sopro, uma voz como fumaça acumulando-se
nas cavidades de seu corpo, enrolando-se em torno de
suas articulações e puxando-o para baixo; uma sugestão
de que deveria cair de joelhos. Cyrus lutou contra essa
imposição, quebrando a conexão com um solavanco
violento e endireitando-se em toda sua altura. Sentiu a
impressão assustadora de uma risada, e então…

O Rei de Argila foi um dia


Um garotinho bem chorão
Leite e brinquedo, tudo pedia
Além de música e atenção
Agora já é homem crescido
Mas que ainda chora!
Por seu coração partido
Que nunca melhora
MORRER é sua glória!

Os olhos de Cyrus abriram-se. Seus punhos cerraram-


se de modo espontâneo, mas não havia ninguém com
quem lutar; nada para ver.
— Você me trouxe aqui para zombar de mim? —
indagou ele, baixinho, virando-se para olhar o ambiente.
— O que quer de mim esta noite?

Como é triste o palhaço


Apesar das piadas que cria
Nunca ganha um abraço
Do burro e ganancioso Argila

Cyrus enrijeceu. Pediu calma a si mesmo, apesar de


sentir um instinto arrepiante de pânico. Com uma
compostura forçada, perguntou:
— O que isso significa?
Meninas e meninos,
meus brinquedos tão queridos!
Briguentos, sem graça nenhuma
Ela escolherá, você perderá…
Para um tolo com uma pluma!

Um músculo saltou na mandíbula de Cyrus.


— Eu não entendo seus enigmas irritantes, mas tenho
motivos para acreditar que Alizeh aceitará meu pedido.
Ela me disse que…

Que tola a mente do Argila


Nem uma charada entende
Que tolo o coração do Argila
À dor para sempre se rende

— Basta — proferiu o jovem rei, furioso, procurando


inutilmente por um rosto. — Deixei você recitar suas
rimas sem sentido para mim por horas a fio sem
reclamar, mas você já me forçou a suportar sua presença
repugnante uma vez nesta noite interminável, e, a
menos que pretenda me torturar de novo, irei embora.
Além disso, ainda não perdi nada. Tenho tempo suficiente
para cumprir minha parte no acordo.

Ambos desaparecem devagar


O tempo e o gelo…
O rei não admite fracassar
Mas pressinto seu medo

Cyrus sentiu uma onda de raiva.


— Foi por isso que me convocou, então? Para
comemorar por antecipação? — Ele balançou a cabeça.
— Você é o mais vil dos monstros!

Com medo do sono fascinante


Com medo de ver o rosto dela!
Exceto por um abraço delirante
Não dormiu uma só piscadela

Ao ouvir isso, Cyrus deu uma risada zombeteira e


desequilibrada. Sentia-se como um animal enjaulado.
— Como se atreve a me insultar por meus esforços,
quando foi você quem plantou a imagem dela em meus
sonhos? Você joga de forma desonrosa, recorrendo a
manipulações além dos termos do nosso acordo. Que
escolha eu tenho senão me proteger?

Que tola a mente do Argila


Nem uma charada entende
Que tolo o coração do Argila
À dor para sempre se rende

— Por que está se repetindo? Pare de me falar


bobagens e me explique logo o que quer dizer!

Pelas estrelas, eu juro:


Nunca perdi uma partida
Você não terá a menina
Pois é minha sua sina
Acha que pode jogar sem medo
O jogo que eu mesmo criei
Espera roubar meu brinquedo
Sem pagar o preço, jovem rei?

De tão furioso, triste e arrasado, Cyrus mal conseguia


falar. De todas as formas que o diabo tinha concebido
para miná-lo, essa era de longe a pior. Cyrus podia ver
como ele mesmo abria o caminho para a própria
destruição tão facilmente. Iblees já tentara muitas vezes
arruiná-lo com violência, mas seus esforços macabros
apenas o haviam fortalecido.
Mas apelar para seu coração partido?
Entregando-lhe não apenas a visão de um anjo, mas a
tentação do anjo em carne e osso? Ele, que fora
descartado por todos — rejeitado pelos Profetas, caçado
por sua mãe, traído por seu pai, abandonado por seu
irmão, mergulhado no isolamento e odiado em todo o
mundo? Ele, cujo coração partido se despedaçara diante
da ternura dela?
Alizeh era a realização de um desejo secreto e
desesperado. De aplacar a dor constante e torturante de
dentro dele, uma necessidade que se tornava mais
intensa a cada escuridão que o devorava.
Ansiava por seu calor, por seu brilho. Ela tinha sido,
desde o primeiro momento em que aparecera em seus
sonhos, uma chama duradoura em meio à noite
interminável, seu único refúgio na loucura que o engolia.
Essa era a sua verdadeira fraqueza, e o diabo a
localizara com facilidade.

O palhaço fica feliz da vida


Ao ver toda a sua desolação
Por esse prazer, ele o convida
A uma pequenina solicitação

— Não quero nada, exceto o que me é devido! — Cyrus


gritou, virando-se bruscamente. Havia perdido a
paciência agora, olhando com fúria para o ambiente
vazio. — Se acha que eu pediria alguma coisa, é muito
mais estúpido do que parece.

Por vê-lo tão angustiado


O palhaço fica deleitado!
Em troca, lhe será dado
Um esplêndido regalo!

— Não… — Cyrus tentou interrompê-lo, o pavor


subindo por sua espinha. — Não quero nada de você…
Não pedi nada…
De repente, a cortina de carne evaporou. Cyrus vacilou
de descrença. Sua raiva mudou, e emoções mais dóceis
se entrelaçaram em seu peito. Ele avistou a conhecida
luz alaranjada ao longe, seu brilho bruxuleante como um
farol enquanto ele avançava com firmeza, o coração
batendo loucamente contra as costelas.
Ouviu um barulho abafado de correntes, uma
respiração irregular. Cyrus avançou na direção dos sons,
seguindo uma longa parede iluminada por uma
interminável procissão de tochas acesas. Um calor
abafado agarrou-se à sua pele e ali permaneceu, fazendo
com que gotas de suor escorressem por seu pescoço. Ao
virar uma esquina, uma cena formou-se subitamente
diante dele.
Havia correntes pesadas presas a uma parede cheia de
crateras. Um homem idoso pairava no ar de maneira não
natural, com o corpo emaciado e torturado, preso a
algemas.
— Quem está aí? — Ouviu-se uma voz rouca e trêmula.
— Quem veio?
Raramente Iblees permitia a Cyrus um momento como
aquele, e o som daquela voz abatida provocou uma
pontada no nariz do jovem. Seus olhos de repente
esquentaram. Não importava quantas vezes fosse até ali,
a cena nunca se tornava mais fácil de suportar.
Outro tilintar desesperado de correntes. Outra vez a
voz rouca e aterrorizada:
— Quem está aí? Exijo que se apresente!
Se fosse capaz de ter algum humor naquele momento,
Cyrus poderia ter sorrido diante do comando arrogante,
pois lhe dava motivos para ter esperança. O rei ainda
não havia perdido o senso de superioridade. Ainda não
estava tão arrasado a ponto de se render de vez.
Cyrus então se aproximou do pai com uma compostura
que não conseguiria explicar. O jovem não se sentia tão
calmo quanto parecia, mas não conhecia outra maneira
de enfrentar aqueles horrores.
— Pai — ele disse com suavidade. — Sou eu.
— NÃO! — O verdadeiro rei de Tulan lutou inutilmente
contra suas correntes, o rosto se contorcendo de terror,
os olhos fechados com força. — Saia daqui agora! Eu já
implorei… Já pedi para nunca mais voltar…
— Ele arrancou seu outro olho, não foi? — Cyrus
perguntou em voz baixa, a dor fazendo o peito latejar. —
Esta noite.
Seu pai enrijeceu, depois cedeu, com a tristeza
estampada no rosto. Ele não abriu os olhos. Não
respondeu à pergunta.
— Nunca mais pense em mim — implorou o homem,
com a voz rouca, os últimos resquícios de energia
deixando seu corpo. — Imagine-me morto e
desaparecido, minha criança. Esta dívida não é sua.
— Como pode dizer isso — Cyrus respondeu de forma
calma — quando foi o senhor quem me pediu para
suportar tudo?
Um silêncio tenso instalou-se na câmara imunda. Cyrus
xingou a si mesmo. Não pretendia fazer aquela acusação
em voz alta, não pretendia desperdiçar aquele momento
precioso desferindo golpes emocionais que seu pai
torturado já não poderia suportar. O jovem não havia
parado para pensar nas palavras porque sua mente
estava fragmentada. O diabo não havia exagerado: Cyrus
não dormia desde que vira Alizeh pela primeira vez.
Não ousava dormir.
Nunca esqueceria a primeira vez em que a vira
naquela noite calamitosa, a maneira como ela saíra de
trás do biombo. Ela havia aparecido à luz dourada do
quarto da srta. Huda como o vislumbre de um milagre.
Só quando ela ergueu os olhos para o rosto dele e a visão
quase o matou foi que Cyrus percebeu quão habilmente
ele havia sido enganado. Ele absorveu o golpe com uma
calma exterior imaculada, deixando a bomba explodir por
dentro, liquefazendo seu âmago. Aquela destruição
interior dera origem a uma raiva espantosa e aterradora
que ele quase não conseguiu esconder. Sentiu que tinha
enlouquecido, oscilando em total desgoverno entre o
desejo e a fúria, a repulsa e o medo, mal conseguindo
controlar a si mesmo ou suas reações a ela. Soube de
imediato que havia sido enganado; soube que ela era um
instrumento do diabo, enviada para arruiná-lo. E, ainda
assim, enfraquecia a cada vez que ela olhava em sua
direção. E a ânsia ficava ainda mais explosiva à medida
que ela se consolidava para ele como alguém real. Ele
sempre desejava outro olhar, outro toque acidental de
sua pele…
Tinha pavor de sonhar com ela de novo.
Cyrus estava usando magia para se manter acordado
havia dois dias. A sonolência entorpecida imposta pelo
diabo enfraquecera sua mente ao mesmo tempo que
revivera seu corpo despedaçado, e, ao acordar daquele
sono perigoso, apenas se traíra de maneira vergonhosa.
A exaustão daquele momento enfraquecia as amarras da
magia que o mantinham de pé, e o jovem rei não era
mais si mesmo. Aquela não era a primeira vez que seu
pai, Reza, fazia uma declaração tão ridícula, e Cyrus
deveria ter mordido a língua. Uma onda de aversão
contra si mesmo o invadiu e soluços silenciosos logo
tomaram conta do corpo inerte de seu pai. Lágrimas
rolaram dos olhos fechados do homem, escorrendo por
seu rosto encovado. Sim, Cyrus odiava-se por aquilo.
— Perdoe-me. — Foi a resposta vacilante do homem
mais velho. — Eu fui um tolo, eu não sabia… Nossa
imaginação fraca e protegida não consegue compreender
tais corrupções das trevas… Nunca pensei que seria
assim… Nunca…
Cyrus contraiu a mandíbula.
— Vou providenciar que este assunto seja resolvido e,
quando terminar, o senhor retornará à minha mãe. Os
Profetas criarão para o senhor um novo par de olhos…
— Este assunto nunca será resolvido! — gritou Reza,
agora histérico. — Você não vê? É uma armadilha… É
sempre uma armadilha…
— Isso não é verdade — disse Cyrus, determinado. — Já
concluí a maioria das tarefas. Tenho mais quatro meses…
Reza não parava de balançar a cabeça, com
indisfarçável tormento, e seu temperamento soava tão
repentino e mutável quanto o vento.
— Meu filho, você não entende…
— Explique-me, então… — disse Cyrus, com o peito
arfando com uma emoção malcontida. Ele quase se
destruíra na tentativa de corrigir seus erros; mas, ainda
assim, o pai sempre duvidava dele. — Por que o senhor
não deposita sua fé em mim? O que é que eu não
entendo?
Finalmente, Reza abriu os olhos, mostrando a carne
rosada das órbitas vazias ainda molhadas de lágrimas.
— Nunca ninguém conseguiu — sussurrou. — Nenhum
homem jamais apostou contra o diabo e ganhou.
OITO

A princípio, Alizeh pensou que estivesse sonhando. Sua


cabeça parecia pesada, como se ela estivesse
hipnotizada pelos sons e aromas melosos do amanhecer.
Parecia haver pessoas falando com ela, mas era difícil
distinguir as vozes em meio aos trinados dos pássaros e
ao rugido distante da água corrente. Além disso, estava
muito distraída, sentindo a deliciosa luz do sol aquecer a
lã de seu manto, enquanto uma brisa fresca fazia seu
capuz levantar e cair sobre o rosto. Seus lábios se
curvaram em um sorriso enquanto seus olhos se abriam.
Um borrão de silhuetas amorfas cristalizou-se acima
dela: as folhas vivas das árvores altas pareciam bordadas
como uma renda em um céu sem nuvens. Um trio de
tentilhões vermelhos disparava por todo lado como fogos
de artifício. Alizeh exalou um som suave de
contentamento antes de fechar os olhos de novo.
— Não, senhorita, por favor, fique acordada…
— Ela parece estar sorrindo. — Uma voz feminina
familiar soou. — Talvez tenha escolhido dormir aqui fora?
— Se isso for verdade, por que ela parece incapaz de
acordar?
Alizeh deu uma risadinha. Parecia quase como se seus
amigos ardunianos estivessem ali — Omid, a srta. Huda e
até Deen. No entanto, era uma possibilidade tão absurda
que parecia um exagero até mesmo para um sonho. Ela
rolou para o lado, com a grama fazendo cócegas em seu
nariz quando seu enorme capuz caiu para a frente e
obscureceu seu rosto por completo, mergulhando-lhe as
costas em uma escuridão faiscante. Inspirou
profundamente o solo úmido e o ar doce, deliciando-se
com a magia inefável do orvalho. Ah, que divina aquela
sensação, onde quer que estivesse. O sonho também era
generoso, a confluência de tantas coisas que ela amava
— a serenidade da natureza, as paisagens sonoras do
início da manhã, os tons exuberantes da vida — sem
nenhuma das sombras sinistras que tantas vezes a
dominavam durante o sono. Alizeh achava que poderia
dormir indefinidamente se pudesse permanecer ali.
— Majestade.
Alizeh assustou-se com o timbre forte da voz. Sua
mente, que ainda não havia despertado, estava um
passo atrás do coração, agora batendo forte contra o
peito. A intuição avassaladora exigia que ela prestasse
atenção, mas Alizeh não conseguia identificar quem
estava falando, mesmo aceitando que se tratava de
alguém importante.
— Majestade. — De novo, porém mais suave. — Por
que está deitada no chão? — O peso surpreendente de
uma mão pousou sobre sua cabeça coberta. — Está em
perigo? Está ferida?
Então, como uma chave girando uma fechadura, ela
relacionou a voz a um nome.
Com um suspiro, Alizeh abriu os olhos, o que resultou
em uma visão ampliada da grama, das folhas adornadas
por pérolas de orvalho. Sentiu-se punida não apenas pelo
ardor atrás das pálpebras, mas também pela triste
compreensão de que não estava sonhando. Com o pulso
acelerado, ela percebeu na mesma hora que aquela não
era uma paisagem de fantasia, mas o chão duro da
realidade, sobre o qual ela jazia inerte e desorientada.
Uma sombra moveu-se, encobrindo o calor do sol, e ela
estremeceu, sentindo o despertar das dores do corpo.
Quanto mais mantinha os olhos abertos, mais a cabeça
latejava e o pescoço doía; até mesmo alguma parte de
seu rosto pesava de dor. Logo as sensações a oprimiram,
e seus olhos se fecharam mais uma vez. Foi quando
sentiu a mão quente tocar em sua cabeça que ela entrou
em pânico, receosa de ter entendido errado, de aquele
ser na verdade um estranho, de suas esperanças serem
loucas demais para serem realizadas. Reuniu as forças,
lambeu os lábios ressecados e se obrigou a sussurrar o
nome dele.
— Hazan?
Seu coração bateu uma vez.
Então, ele respondeu com gentileza:
— Sim, Majestade.
Alizeh pensou ter sentido o coração parar.
— É possível? — sussurrou. — Você está mesmo aqui?
Ela mal apreendeu a ternura, a leve surpresa em sua
voz quando ele disse:
— Estou mesmo aqui.
O nosta ganhou vida contra seu esterno. O medo e a
culpa pelo destino de Hazan estiveram presos em um
emaranhado de sentimentos dentro dela, e a súbita
compressão de seu peito arrebentou a emoção contida,
arrancando um soluço terrível de sua garganta. Ela se
forçou a se virar, deitando-se de costas enquanto tapava
a boca com a mão trêmula, lágrimas quentes escorrendo
em direção às têmporas. Desesperada por uma prova
visual, forçou os olhos a se abrirem, as mãos se
atrapalhando pelo chão. Quando se virou um centímetro
e o viu ajoelhado na grama ao lado dela, foi arrebatada.
Caiu de costas e balançou a cabeça repetidas vezes.
Não conseguia acreditar que ele estivesse vivo. Hazan,
incomparável em sua lealdade a ela, que a presenteara
com o raro nosta que a salvara do perigo de mil
maneiras, que arriscara sua vida tantas vezes pela
segurança dela.
Ela pensara que ele estivesse morto.
E agora ele estava ali? Viera resgatá-la mais uma vez?
Após todos aqueles anos desde a morte de seus pais,
anos de profunda solidão, ela perdera a esperança de
encontrar outra alma confiável. No entanto, Hazan viera
até ela sem exigências ou expectativas, abrindo os véus
da noite e caindo de joelhos diante dela, dando início ao
que poderia ter sido a grande fuga de sua vida. Não
havia ninguém com quem ela se sentisse mais segura, e
ela não fizera nada para merecer sua gentileza.
Ele simplesmente depositava nela sua fé.
Desorientada, ela agarrou a mão dele e apertou-a entre
as palmas, mal conseguindo ver através das próprias
lágrimas a emoção refletida nos olhos dele. Com grande
esforço, engoliu em seco, soltando-o apenas para
enxugar o rosto com os dedos trêmulos. Ela se sentou
com dificuldade. Ele a ajudou.
O capuz caiu para trás quando ela ergueu a cabeça. Ele
enrijeceu diante da revelação de seu rosto, e arregalou
os olhos ao examiná-la. Alizeh sentiu um tremor
inexplicável percorrer o corpo dele, mas não o entendeu.
Sua mente ainda estava tão turva que ela só conseguia
se concentrar em uma coisa de cada vez e, naquele
momento, tinha dificuldade em acreditar no que via.
Hazan parecia o mesmo.
Um pouco cansado, mas o mesmo: saudável, ileso.
Seus olhos cor de mel estavam mais castanhos do que
verdes sob aquela luz, e uma mecha rebelde de seu
cabelo louro-acinzentado deslizava sobre a testa,
roçando a curva de seu nariz torto. Alizeh nunca o tinha
visto de tão perto e ficou impressionada com a
lembrança de que ele era quase inteiramente sardento —
uma característica que, se não fosse pela firmeza de
seus olhos, o faria parecer bastante jovem. Hazan não
era tradicionalmente bonito, mas tinha feições
singulares, e seu olhar era sempre repleto de
sentimento, com um ar de autoconfiança tão potente que
se movia com ele como uma segunda sombra.
Ela levantou as mãos até o rosto dele, tocando suas
bochechas levemente enrugadas com as palmas. Ele se
assustou com o contato, mas o movimento repentino do
peito expressou sua reação mais do que os olhos, que
permaneceram firmes enquanto ela o estudava. Ela não
conseguia explicar a necessidade de tocá-lo, de se
certificar de que ele era real.
Uma única lágrima, a última delas, deslizou por seu
rosto.
— Hazan — ela falou, baixinho. — Como veio parar
aqui? Achei que o tivessem matado.
Em resposta, Hazan apenas balançou a cabeça, os
olhos brilhando de pânico.
— Majestade — ele sussurrou. — Vossa Majestade está
gravemente ferida.
Essa declaração a surpreendeu.
De maneira distraída, Alizeh se apalpou como se
quisesse localizar a origem do ferimento, primeiro
levando a mão ao cabelo, que há horas havia se soltado
dos grampos e adornos. A massa brilhante de seus
cachos estava presa sob o peso do manto, com mechas
mais curtas dançando sobre seus olhos. Alizeh franziu a
testa enquanto olhava ao redor, tentando descobrir onde
estava e como chegara até ali, mas as memórias do dia e
da noite anteriores voltavam a ela confusas e fora de
ordem. Com cuidado, ela passou os dedos pela face,
estremecendo quando sentiu o vergão de algum
ferimento recente ao longo da maçã do rosto.
— Ah. — Ela arfou, lutando contra uma careta. — Você
quer dizer isto? Não sei de onde…
As palavras ficaram presas em sua garganta, e os olhos
se arregalaram em choque quando ela percebeu, pela
primeira vez, as quatro figuras iminentes em pé atrás de
Hazan.
Alizeh não sabia se deveria recuar ou se alegrar.
Sua mente havia despertado o suficiente, pelo menos,
para perceber que a cena não parecia certa. Por mais
encantada que estivesse ao ver a srta. Huda, Omid e
Deen — todos os três levantando as mãos e
pronunciando “olás” abafados —, a presença deles ali
não fazia sentido.
Por fim, voltou seu olhar para o último deles, o mais
ameaçador dos quatro, afastado dos outros. O príncipe
herdeiro de Ardunia era impressionante mesmo imóvel,
com o cabelo negro e brilhante e a pele cor de mel — ao
mesmo tempo novos e familiares para ela.
Alizeh sentiu um aperto no estômago ao encontrar os
olhos dele, surpresa ao descobrir quanto havia se
esquecido dele em tão pouco tempo. Ele parecia
majestoso sob o brilho do sol matinal, a expressão
inescrutável enquanto a estudava, com sua boca
formando uma linha sombria. Ela não tinha certeza se
era o cansaço mental, mas o rosto de Kamran lhe
pareceu diferente, com um de seus olhos brilhando
dourado sob a luz, e o outro tão escuro como sempre
tinha sido.
Céus, ele tinha uma beleza devastadora.
Ele não fez nenhum movimento, nenhum esforço para
se aproximar dela. Apenas a estudava silenciosamente
de longe, com uma mão apoiada de leve no punho da
espada, a outra segurando uma alça sobre o peito, que
se conectava à aljava de flechas despontando por trás do
ombro. Alizeh levou mais tempo do que o normal para
juntar as peças enquanto olhava para ele; mas, em
segundos, conseguiu reunir os fios de uma explicação
para sua chegada — e para a expressão estoica e
inabalável em seu rosto. Ela se sentiu subitamente
desperta e alarmada.
Poucos dias haviam-se passado desde que o rei Zaal
fora assassinado por Cyrus, poucos dias desde o
massacre dos Profetas. Kamran estava lidando com um
caos de proporções extraordinárias em Ardunia. Apenas
um motivo o traria ao palácio tulaniano sem ser
convidado.
Vingança.
Alizeh respirou fundo, e os olhos de Kamran se
estreitaram. Foi como se tivessem comunicado tudo
nesses dois gestos. Ela percebeu que ele não estava
propriamente feliz em vê-la. Em sua cabeça, ela revirou o
tumulto das últimas trinta e seis horas, relembrando os
detalhes de sua separação, a dor da traição estampada
em seu rosto no último relance que teve dele antes de
partir.
Mas ainda assim…
Sem dúvida, tudo já devia estar esclarecido, não?
Kamran devia ter perdoado os esforços secretos de
Hazan para ajudá-la a escapar de Ardunia, já que os dois
estavam juntos ali. Por que outro motivo Hazan ainda
estaria vivo?
Com a mente borbulhando, ela voltou os olhos para
Hazan, que a fitava com algo parecido com compaixão.
— Não tema, Alteza. Não permitirei que nada de mal
lhe aconteça.
Alizeh recuou.
— Nada de mal? O príncipe veio me fazer algum mal?
— Na verdade — disse Hazan depois de um momento
—, não acredito que ele seja capaz disso.
Não parecia uma garantia.
Alizeh sentiu-se perturbada, tão confusa que teve
dificuldade de falar.
— Eu não… Não entendo… Por que motivo ele iria…
Ela foi distraída por um movimento ao longe e, quando
ergueu a cabeça, descobriu Kamran vindo em direção a
eles com passos rápidos e o rosto impassível de sempre.
Alizeh recuou ao vê-lo daquela forma.
Não, seus olhos não a haviam enganado: o rosto dele
estava de fato alterado.
Algo parecido com um raio cortava agora seu olho
esquerdo, abrindo um veio dourado em sua pele, como
uma cicatriz cintilando sob o sol. Sua íris afetada agora
tinha uma cor inumana, mas a transformação apenas
realçara sua beleza, tornando-o etéreo e nem um pouco
aterrorizante.
— Majestade. — Ouviu-se a voz baixa e urgente de
Hazan. Alizeh voltou-se para ele, seu pulso recusando-se
a se acalmar. — Perdoe-me, mas devo perguntar-lhe
rapidamente: Vossa Majestade aceitou se casar com o rei
de Tulan?
NOVE

Alizeh quase caiu para trás. Não conseguia imaginar


como a notícia do pedido de casamento de Cyrus tinha
chegado tão rapidamente a Ardunia. Não sabia como o
rumor teria alcançado os ouvidos de Hazan.
— Não — ela murmurou com os olhos ainda
arregalados de admiração. — Eu não aceitei me casar
com ele.
— Inferno — disse Hazan exalando, a palavra
incompatível com seu óbvio alívio. — Não consigo
descrever como fico aliviado ao ouvir isso.
— Mas, Hazan, devo lhe dizer… — Ela colocou a mão
em seu braço, e ele enrijeceu. — Tenho pensado
seriamente em sua proposta… Cyrus me ofereceu seu
reino em troca…
— Não — disse ele, alarmado, lançando um olhar
furtivo para a figura de Kamran, que se aproximava. —
Eu imploro, nem pense nisso. Seria um erro, Majestade…
— O que seria um erro?
Alizeh virou-se lentamente em direção à voz, firmando-
se sob o olhar imponente do príncipe. Ela se encolheu
diante da incerteza; não sabia o que esperar dele, não
agora que estava ciente de que ele nutria algum desejo
de machucá-la. Ele, por outro lado, permaneceu
implacável, examinando o rosto dela em estado de
choque. Quando voltou a falar, sua voz foi ainda mais
letal por sua suavidade:
— Seu pescoço — disse ele. — Seu rosto… Você está
machucada.
— Estou muito bem — ela rebateu, sem entender o
próprio impulso de mentir.
Sua cabeça estava tão confusa, e o humor dele parecia
tão imprevisível, que ela se sentiu em grande
desvantagem. Alizeh não gostava da maneira como ele
se inclinava sobre ela e queria se afastar de seus olhos
abrasados, queria um momento a sós com seus
pensamentos após aquelas revelações perturbadoras. Ela
tentou se levantar, mas perdeu o fôlego no esforço, e a
ação inacabada fez com que as abas desabotoadas do
manto se abrissem.
Hazan soltou um palavrão em voz alta pela revelação
do vestido ensanguentado, o que a chocou. Mas foi
Kamran quem falou, chocando-a ainda mais com sua
fúria:
— O que aconteceu? O que aquele canalha fez com
você?
Aquilo, infelizmente, não contribuiu para a calma de
Hazan.
— É por isso que estava no chão? — questionou ele. —
Estava de fato inconsciente?
— Eu não… — ela tentou dizer.
— Por que parece ter sido atacada?
Alizeh balançou a cabeça, e uma dor aguda se
manifestou na base de seu crânio. Estava zonza e
desidratada, e seus membros tremiam, ela percebeu, por
muito mais do que desconforto.
— Por favor, não se aborreçam. — Ela pediu sem fôlego
ao olhar em volta, avaliando a situação com novos olhos.
— Céus, eu me pergunto por que ainda não fomos
cercados por funcionários do palácio. Ou interceptados
pela própria rainha-mãe.
— Ah, os criados estão todos nos observando,
senhorita — Omid a interrompeu, vindo de longe. —
Estão pressionando o rosto contra todas as janelas. — Ele
acenou para alguém ao longe, e um leve coro de risadas
foi emitido em resposta.
— Que maravilha — disse Alizeh, forçando um sorriso.
— Mais fofocas.
Os olhos de Kamran se intensificaram.
— O que você quer dizer?
Ela foi poupada de responder, porque Hazan
interrompeu:
— Majestade — disse ele —, onde está o rei?
— Não tenho a menor ideia — disse ela, pressionando
as costas da mão na testa, que começava a suar frio. Ela
sentia náuseas. — Mas eu juro que a situação não é o
que parece ser. Ele não representa perigo para mim…
— Eu imploro que não o acoberte apenas para nos
proteger. É generoso de sua parte demonstrar
preocupação para com o nosso bem-estar, mas não deve
se importar se tivermos de enfrentar um bruto como ele.
— O que vocês precisam entender… — disse Alizeh,
cansada. — Ainda mais você, Hazan… É que este — ela
apontou para seu vestido manchado — sangue não é
meu.
— Não, é claro. — Foi a resposta pronta de Hazan, que
examinava as intermináveis manchas vermelhas. — Mas
o corte em seu pescoço…
— Eu sei… — Ela suspirou, pressionando a palma das
mãos nos olhos. — Parece bem ruim, não é?
— Parece que Vossa Majestade foi fisicamente ferida
pelo rei tulaniano — disse Hazan, que agora lutava para
moderar a voz. — É verdade?
Alizeh estremeceu.
— Para todos os efeitos, sim.
Novamente, Hazan praguejou em voz alta.
— Mas não foi tão ruim quanto parece… — ela
começou a dizer, antes de pensar melhor. — Para ser
justa, nós dois machucamos um ao outro… Na verdade,
eu poderia ter feito pior com ele se tivesse tido a
oportunidade.
— Quer dizer que esteve envolvida em uma briga? —
Kamran foi quem disse. — Com o rei do Sul?
— E pretendia matá-lo, Majestade? Estava tentando
fugir?
— Não — disse Alizeh, depois hesitou. A pulsação na
base do crânio dificultava pensar. — Bem, sim… Quero
dizer, naturalmente, no início, tentei matá-lo várias
vezes…
— Espere.
Ao som torturado da voz de Kamran, Alizeh ergueu os
olhos. Ela o viu observando-a com uma expressão de dor,
algo entre raiva e angústia.
— Perdoe-me — ele prosseguiu —, mas é só que
preciso entender… Se tentou matá-lo… Está dizendo que
é possível não ter partido com ele de forma voluntária?
A pergunta foi tão estranha que Alizeh ficou em
silêncio.
— Partido com ele de forma voluntária? — ela repetiu,
enfim, franzindo as sobrancelhas. — Quer dizer que
achou que deixei Ardunia, por vontade própria, na
companhia do rei de Tulan?
Kamran assentiu.
— Claro que não — disse ela, encolhendo-se como se
tivesse sido golpeada. A acusação era tão insultuosa que
explodiu como fogos de artifício em sua cabeça,
desencadeando uma onda de adrenalina muito bem-
vinda. — Como pôde fazer tal pergunta? Eu nem sabia
quem ele era… Ele me enganou para me trazer até
aqui…
— Eu disse! — Soou uma voz animada. A srta. Huda
estava na ponta dos pés, com a mão no ar como uma
aluna ansiosa pedindo para falar. — Eu lhes disse que ela
não sabia quem ele era!
— Quieta. — Ouviu-se o sussurro alto de Deen,
silenciando a jovem enquanto ele puxava sua mão. —
Este lhe parece um momento adequado para se
vangloriar?
— Sim, bem, eu disse, não disse? — A srta. Huda
cruzou os braços. — Tentei avisar todos vocês…
— Eu acreditei em você, senhorita — disse Omid com
urgência. — Nunca duvidei.
— Nunca mesmo. — Foi a resposta
surpreendentemente carinhosa da srta. Huda. — Você é
um garotinho muito querido.
Os pensamentos de Alizeh viraram um caos. Nunca lhe
ocorrera que pudessem questionar seus motivos para
fugir noite adentro nas costas de um dragão tulaniano.
Ela estava sob o domínio de uma magia poderosa,
gritando de pavor como se sua vida dependesse disso,
em frente a todos. Era desconcertante que qualquer
pessoa razoável atribuísse uma explicação maliciosa às
suas ações. Ela defendera Kamran de Cyrus, arriscara
sua vida para protegê-lo do golpe fatal do rei do Sul… E
ele ainda assim duvidava de suas intenções?
Conhecendo o próprio coração como conhecia, parecia-
lhe que suas boas ações tivessem sido tão rapidamente
desacreditadas, que Kamran tivesse aproveitado a
primeira oportunidade de retratá-la de forma negativa.
Isso a fez perceber como ela e Kamran conheciam pouco
um ao outro de fato, como era tênue o vínculo entre eles.
Somente alguém com uma compreensão superficial de
seu caráter poderia ser tão facilmente persuadido a
difamá-la. Foi uma sorte, então, que o choque inocente
agora impresso em seu rosto fosse bastante claro para
todos.
— Eu nunca duvidei, Majestade — declarou Hazan,
baixinho.
Ela respirou fundo, lançando a Hazan um olhar de afeto
antes de se virar para Kamran.
— Mas você… — ela disse ao príncipe. — Pensou que
eu fugiria com ele depois… Depois de tudo que ele fez?
Você me considerou capaz de desempenhar um papel
nas atrocidades daquela noite?
Apesar de seus próprios sentimentos feridos, porém, o
coração de Alizeh não pôde deixar de se suavizar diante
do horror nos olhos de Kamran. Depois de tudo que ele
suportara… E o que pensara sobre ela. Como devia ter
sofrido.
— Ah, Kamran… — disse ela. — Como pôde pensar
uma coisa dessas? — E, depois, mais baixinho: — Como
você deve ter se sentido torturado pensando assim.
Ele absorveu as palavras dela com uma quietude tão
completa que a preocupou, abandonando a imobilidade
para fechar os olhos e engolir em seco. Ele ficou de
repente pálido de vergonha. Permaneceu quieto por um
longo momento, imóvel, exceto pela rápida subida e
descida de seu peito. E, quando ele abriu os olhos de
novo, havia uma raiva queimando nas profundezas de
seu olhar, um inferno de fúria que ameaçava incendiá-lo
por inteiro.
— Vou matá-lo — ele proferiu com uma calma resoluta.
— Vou estripá-lo e arrancar seus órgãos, e garantir que
ele viva por tempo suficiente para suportar a tortura. Ele
implorará pela morte. Morrerá de tanta agonia. —
Kamran estendeu a mão trêmula para tocá-la, seus
dedos roçando o ferimento em seu rosto. — Pode ter
certeza disso.
Alizeh balançou a cabeça com um movimento brusco.
— Não — disse, atordoada. — Kamran, você não pode
matá-lo…
— É o que ele merece.
— Não… Bem, sim. — Ela franziu a testa. — Suponho
que haja um argumento nesse sentido…
Alizeh parou com um suspiro. Os cabelos finos de sua
nuca se arrepiaram, e sua pele parecia estar se
retesando. Ela sabia que ele havia chegado antes mesmo
de vê-lo e, no tempo que levou para virar a cabeça em
sua direção, Kamran já havia posicionado uma flecha em
seu arco.
— Não — ela murmurou.
Alizeh enfim avistou Cyrus ao longe, com seus
contornos ágeis parecendo uma assombração através de
um véu de neblina. Pareceu-lhe quase irreal; ondas da
névoa matinal se acumulando ao seu redor, e seu cabelo
acobreado brilhava como um halo perverso na escuridão.
Ele vinha por uma trilha estreita de pedras à beira do
penhasco, tendo deixado para trás um baú de aço
fechado, que lembrava o baú de sua chegada a Tulan,
quando Cyrus tirara um tempo para alimentar e dar água
ao seu dragão. Ela se perguntou o que ele estaria
fazendo, onde estivera a noite toda, se havia dormido —
mas suas perguntas foram silenciadas quando seus
olhares se encontraram. Ele estava longe demais para
perceber com clareza; não poderia ter enxergado o
inferno e a agitação presos em seus olhos, suas feições
tensas de exaustão; mas ela viu a mudança no corpo
dele quando ele percebeu, em tempo real, que algo
estava errado.
Ele pareceu eletrificado.
Cyrus moveu-se com rapidez, indiferente à presença de
seus indesejados agressores, e, se notou a flecha
apontada em sua direção, não deu nenhuma indicação
disso. À medida que se aproximava, ficou óbvio que ele
se concentrava em Alizeh, ignorando todo o resto, com o
corpo tenso e contido, mesmo enquanto se movia de
modo resoluto em direção a ela. Ele tentou esconder
uma onda de pânico enquanto estudava a posição
anormal de seus membros no chão, mas ela soube o
momento em que ele percebeu o hematoma em seu
rosto, pois seus olhos se arregalaram pelo choque
indisfarçável e ele quase correu até ela, disparando pelo
caminho estreito a uma velocidade perigosa.
— Afaste-se! — Soou a voz ríspida de Hazan, cortando
a névoa de sua mente. — Este não é o momento.
Alizeh virou-se na direção dele, com o coração na
garganta, e percebeu que ele estava falando com
Kamran. Este estava ajustando sua mira, seguindo os
movimentos de Cyrus.
— Isso não cabe a você decidir — disse o príncipe.
— Se matá-lo agora — respondeu Hazan com raiva —,
você se comprometerá com uma guerra entre nossos
impérios, o que sabe que seria um erro. Há inúmeras
testemunhas nas janelas, e é quase certo que um dos
criados já alertou a guarda real… Sem dúvida estamos a
poucos minutos de sermos interceptados, e seremos
todos condenados à morte. Você terá pouca esperança
de socorro do lado arduniano, sobretudo porque Zahhak
está tentando destruí-lo. Imploro que pense bem sobre
isso…
— Basta — o príncipe retrucou, lançando apenas um
olhar violento para seu amigo. — Se acha que vou perder
uma oportunidade como esta de me vingar, não me
conhece.
— Só estou pedindo que espere, seu idiota! Suas ações
incriminariam a todos nós… Colocariam a criança em
risco… A jovem senhorita…
— Eu os avisei para não virem. — Foi a resposta
sombria de Kamran. — Disse a eles que não seria
responsável caso morressem…
Ah, aquilo não poderia estar acontecendo.
Alizeh lutou para ficar de pé. Sentiu como se o mundo
estivesse derretendo ao seu redor, como se estivesse
presa em um pesadelo. Ela viu o horror triplicado
expresso nos rostos de Deen, da srta. Huda e de Omid; a
fúria inabalável nos olhos de Kamran, a resignação na
postura da mandíbula de Hazan. Estava errado, tudo
errado. Cyrus não podia morrer. Agora, não. Ainda não.
Pelos céus, ela pensou.
Nunca.
De repente, sentiu como se fosse gritar diante daquela
possibilidade, com sentimentos confusos emaranhando-
se em seu peito. Apesar do caos emocional, Alizeh
também tinha todos os motivos práticos para querer a
sobrevivência de Cyrus. Nem tinha percebido quanto
passara a confiar nele até aquele momento. Apesar de
seus muitos protestos, Alizeh tinha começado a imaginar
um casamento com o rei do Sul — e como seria assumir
Tulan. Apenas algumas horas antes, ela enfim se
apresentara ao mundo, tendo conversado com milhares
de jinns que esperavam que ela se dirigisse a eles
novamente em breve. Se Kamran matasse seu rei, se
gerasse tumulto em Tulan e consolidasse a perspectiva
de uma guerra…
O que seria de seu povo?
Sem império, sem coroa e sem recursos, Alizeh não
teria escolha senão fugir, mais uma vez, abandonando
seu rebanho poucas horas depois de ter prometido
liderá-lo. Tudo isso passou por sua cabeça com incrível
rapidez; ela sabia que seria inútil até mesmo tentar
transmitir tais pensamentos a Kamran, que tinha todo o
direito de querer Cyrus morto. Tinha consciência disso;
reconhecia os crimes imperdoáveis de Cyrus contra
Ardunia. Sabia que ele merecia vingança. Sabia que suas
razões para o manter vivo eram egoístas. Mas não fazia
diferença.
Ela não queria que ele morresse.
Se ao menos tivesse uma terra para chamar de sua, se
pudesse encontrar sua magia… Ela deixaria aqueles dois
impérios e seus herdeiros para trás, pois Kamran e Cyrus
tinham provado não ser nada além de problemas. Mas,
sem recursos, sem cavalos nem mantimentos, a viagem
que precisaria fazer a pé até as montanhas de Arya
poderia levar meses. E, mesmo que ela sobrevivesse à
jornada, não poderia fazê-la sozinha. Cinco pessoas
deveriam estar dispostas a morrer por ela antes que as
montanhas se separassem da magia que possuíam.
Sentindo-se pressionada, Alizeh notou lágrimas
brotando em seus olhos.
Depois de todos aqueles anos, e de todo o caos
recente que se instaurara em sua vida, as peças enfim
tinham começado a se encaixar. No entanto, agora tudo
parecia impossível mais uma vez.
Ela tinha de impedir Kamran de matar Cyrus.
Por mais que entendesse a dor dele, não podia ficar ali
parada, deixando-o matar Cyrus e implicar os outros em
seu assassinato. Mas havia algo de errado com ela…
Com sua cabeça, seus pulmões, seus ossos. Não
conseguia entender por que estava tão cansada e
desajeitada e, quando tentou se mexer rápido demais,
cambaleou, como se o chão estivesse se movendo sob
seus pés. Sentiu o apoio dos braços de Hazan envolvê-la
enquanto ela se afastava cegamente. Não tinha nenhum
plano; só sabia que tinha de ir até ele, colocar-se entre
eles de alguma forma…
— Alizeh!
Sua cabeça ergueu-se ao som da voz de Cyrus. Ele
ainda estava a cerca de quatro metros de distância,
ainda vindo pela trilha à beira do penhasco, mas agora
estava perto o suficiente para que pudessem se ver. Ela
encontrou seus olhos selvagens de pânico, assimilando
sua angústia bem a tempo de testemunhar a primeira
flecha perfurando a perna dele.
Ela gritou.
DEZ

Cyrus arfou ao sentir a flecha atravessar um músculo, e


o impacto quase o derrubou do penhasco, mas ele
permaneceu ali, em pé. Felizmente, a flechada tinha sido
tão forte que a ponta da seta saiu limpa pela parte de
trás da perna, um fato que viria a ser útil para ele. Por
enquanto ele respirava, fechando os olhos com força
enquanto ouvia o clamor de seu coração, a ondulação da
água próxima, o barulho das cataratas.
Estava cansado demais para aquilo.
Com movimentos rápidos e experientes, ele arrancou a
pena da flecha, colocou os dedos logo abaixo da ponta e,
sem se permitir considerar as repercussões, arrancou a
haste da coxa. Engasgou-se de dor, piscando enquanto
sua visão se transformava temporariamente num clarão.
Ainda assim, vislumbrou a arma: uma ponta larga com
três lâminas farpadas. Se a flecha não tivesse passado
perfeitamente pela perna, ele não teria sido capaz de
tirá-la sem rasgar sua carne. Mesmo assim, a dor era tão
extraordinária que foi um milagre, até para ele, não
gritar. Para distrair sua mente, Cyrus voltou-se para o
episódio enlouquecedor que se desenrolava diante dele;
afinal, aquele caos fora criado por ele mesmo.
Ele merecia a flechada.
Na noite anterior, suspendera os encantamentos de
proteção do palácio para que Alizeh pudesse retornar aos
seus aposentos sem obstáculos. Ela o seguira para fora
do terreno sem saber que os escudos expulsivos eram
erguidos após o anoitecer; não que ela tivesse motivos
para saber: as defesas eram tecnicamente ilegais. Os
Tratados de Nix, elaborados muito tempo atrás, tornavam
crime colocar fronteiras mágicas entre terras, e Cyrus,
que sempre selava a magia até a escarpa, não dava a
mínima atenção a eles. Além disso, ele acabara de matar
um soberano de terras fronteiriças; tinha todas as razões
para esperar uma visita assassina de seu vizinho e
nenhuma razão para agir com cautela.
No entanto, seu estômago revirara-se ao pensar em
Alizeh sendo repelida de sua casa à força. O diabo, ele
raciocinou, não teria gostado que ela fosse abandonada
no frio, vulnerável e exposta. Assim, Cyrus calculara mal,
convencendo-se de que a possibilidade de um ataque ao
seu império durante as poucas horas restantes da noite
era bastante baixa.
Esse otimismo, é claro, nascera da negação.
Ele mentira para si mesmo apenas para não ter de se
virar, pegá-la pelo braço e levá-la de volta ao palácio.
Seria tentação demais: os dois sozinhos no escuro, o
corpo dela resplandecendo ao luar. Tivera medo de se
aproximar; não estava pronto para ouvir sua voz, para
olhar em seus olhos. Tivera medo de que ela fizesse algo
brutal, como sorrir para ele.
Agora, suportando outra contração de dor, sentindo o
calor do sangue fresco que jorrava de seu ferimento,
soube que aquele era seu castigo. Se a situação não
fosse tão desagradável, até que seria divertida. Cyrus
tivera tanta certeza de que havia vencido a covardia, de
que enfrentar o diabo seria o maior confronto de sua
vida. Ele nunca imaginara que temeria ainda mais o
poder sutil de uma jovem.
Sua terra agora estava cheia de tolos, suas mãos
escorregadias com seu próprio sangue… Tudo porque
tivera medo de tocar em uma garota.
Queria enfiar a flecha de volta em sua perna.
No entanto, Cyrus previra tais desagrados vindos do
norte. Seu único erro de cálculo fora pensar que teria
mais tempo. O fato de o príncipe invadir suas terras sem
qualquer plano aparente ou apoio imperial,
acompanhado não pelo poder de seu exército, mas por
aquele bizarro grupo de aliados, era desconcertante. E,
mais desconcertante ainda: não havia sinal de como
tinham chegado ali. Embora ele pudesse ver que os
idiotas estavam circulando livremente por suas terras,
não conseguia entender como haviam aterrissado, já que
os encantamentos ao redor do palácio eram reforçados
por inúmeras outras proteções. Sua equipe de dragões
não permitia que criaturas aladas passassem pelas
cataratas, e não havia chance de os ardunianos terem
sobrevivido ao batalhão que protegia a frente do palácio.
Como, então, tinham vindo de tão longe?
Cyrus sentia-se perseguido pela dúvida, no entanto, o
que mais o preocupava era o desejo de ir até Alizeh, de
perguntar sobre seus ferimentos, de descobrir o que
tinha acontecido em sua ausência.
Suas muitas perguntas teriam de esperar. Era um
milagre que Cyrus ainda conseguisse pensar, no estado
em que se encontrava. Inalou de novo, preenchendo a
cabeça com a névoa da manhã, e tentou se concentrar.
Restos de magia pulsavam em suas veias; magia que
ele destinara, em sua maior parte, para se manter
acordado, e que agora seria forçado a gastar para se
manter vivo. Sua perna estava tão gravemente ferida
que ele começou a tremer, e com grande esforço lançou
um encantamento de cura por todo o corpo. A ardência
repentina era um sinal reconfortante de que a carne
estava se revitalizando. Mesmo assim, o tormento foi
agudo a ponto de deixá-lo inconsciente. Ele sentiu uma
onda de náusea crescer dentro de si e forçou-se a
reprimi-la quando ouviu os gritos distantes e insistentes
de uma voz familiar.
Não precisou se virar para vê-la, pois Alizeh sempre
vivia em seu olhar. Apesar disso, ele se virou, porque o
ato de alinhar seu corpo com o dela era sempre
acompanhado por um estranho alívio. Cyrus não havia
parado para pensar sobre a razão pela qual o boticário, a
criança de rua e a repugnante senhorita haviam invadido
seu território; afinal, sua presença não tinha impacto
nenhum. Os motivos dos outros dois eram óbvios. Como
se o buraco em sua perna não fosse indicação suficiente,
Cyrus observou através de uma névoa de sofrimento
controlado o príncipe arduniano disparar outra flecha em
sua direção. Ele e Hazan estavam ali, é claro, pelo
simples prazer de matá-lo. Mas Alizeh…
Alizeh ele não conseguia entender. Ela o estava
defendendo.
Trêmula, falando de modo desesperado com o príncipe,
ela ainda assim brilhava na luz difusa da manhã. Por
mais que fosse torturante olhar para ela, torturava-o
ainda mais desviar o olhar. Ela era diferente de qualquer
pessoa que ele já tivesse encontrado. Sua beleza era
incontestável, sim; mas bastava contemplá-la em
movimento para compreender de fato seu poder. Ela era
como um anjo vingador que ganhara vida, doce e
magnânima, serena até quando lhe cortava o pescoço.
E ele não fizera nada para merecer sua piedade.
O príncipe arduniano ainda não havia disparado outra
flecha apenas porque ela detivera sua mão. Restos de
suas palavras foram levados pelo vento; ela estava
visivelmente agitada, movimentando-se de forma
instável. Cerrou o punho em volta do arco, girando
suavemente a arma para baixo.
Cyrus contraiu o rosto.
Estimou que tinha poucos segundos preciosos antes
que os esforços de pacificação de Alizeh falhassem e o
príncipe disparasse outra vez. Se ao menos conseguisse
mover a perna, poderia ir até ela, aconselhá-la a não
gastar energia discutindo com uma parede. O estúpido
arduniano tinha todo o direito de tentar matá-lo; Cyrus
nunca seria antidesportivo a ponto de negar ao jovem
real uma chance de vingança. Na verdade, era melhor
que ela se afastasse e permitisse que Kamran
exorcizasse um pouco sua raiva; o humor do príncipe
provavelmente só melhoraria depois que ele arrancasse
alguns litros do sangue de Cyrus. Talvez, então, eles
pudessem ter uma conversa e, depois dela, ele ficaria
feliz em esfaquear o herdeiro do trono bem no olho.
De qualquer forma, Cyrus já tinha sofrido ferimentos
muito piores do que aquele e sobrevivido. Precisava
apenas de um momento para…
Outro grito de alerta, outra flecha lançada em sua
direção.
Com uma rapidez perversa, Cyrus surpreendeu até a si
mesmo ao agarrá-la com a mão. Ele cerrou os dentes em
meio a uma onda aguda de dor, e um suspiro
angustiante escapou de seus lábios quando a ponta de
lâmina tripla rasgou sua palma como se fossem as
páginas de um livro. O derramamento de sangue foi
considerável e, ao observar a pequena inundação
escarlate derramar-se sobre as bordas do seu punho, ele
quase riu, embora fosse de frieza.
Pelo menos agora entendia por que o diabo ficara tão
encantado.
Aquele canalha.

Meninas e meninos,
meus brinquedos tão queridos!
Briguentos, sem graça nenhuma
Ela escolherá, você perderá…
Para um tolo com uma pluma!

Aquele grande idiota era o tolo do verso, então?


Excelente. Cyrus o enfurecia ao se recusar a cair.
Com um grito furioso, Kamran disparou uma saraivada
de flechas na direção dele — uma após a outra, em uma
sucessão tão rápida que todas pareceram atingi-lo de
uma só vez. Cyrus era capaz de apreciar a habilidade de
seu inimigo; o arduniano era um arqueiro talentoso. Mas
ele enfrentou a nova onda de tormento levantando o
braço saudável para usar um pouco de magia em sua
própria defesa, desviando as flechas enquanto ainda
curava os ferimentos já infligidos. Estava ocupado com
isso, mantendo-se firme diante das muitas pequenas
mortes que vinham em sua direção, e por isso não
percebeu, não de imediato, que agora ela corria em
direção a ele.
Quando notou, quase perdeu a cabeça.
Ele a observou se aproximar, lívido de fúria. Mal
conseguia respirar pela sensação, tão extraordinária era
sua raiva. Alizeh gastava suas últimas forças, usando a
pouca energia que lhe restava para avançar em direção a
ele com grande velocidade. Porém, o que quer que ela
pensasse que poderia conseguir, calculou mal, pois não
estava no controle de seus movimentos. Ele não queria
nada além de gritar com ela por fazer algo tão estúpido.
Não conseguia imaginar que ela achasse que ele valia
tanto esforço, que arriscaria a própria segurança para
poupar a vida dele. Dava-lhe vontade de fazer coisas
imperdoáveis.
A raiva era a única coisa que ele e o idiota do príncipe
tinham em comum, pois o grito ensurdecedor de terror
de Kamran veio ao mesmo tempo em que Hazan e os
outros explodiram em uma barulheira frenética. Cyrus
conseguiu soltar um grito sufocado antes que o corpo
suave dela colidisse com o dele, impulsionando os dois
em direção à beira do penhasco. Se ao menos houvesse
tempo, ele a teria empurrado para fora do perigo, a teria
girado em seus braços…
Com um só golpe, a última flechada atingiu as
omoplatas de Alizeh, que estremeceu sob a força do
impacto. Seu suspiro assustado deixou Cyrus absoluta e
desumanamente imóvel.
O pânico tomou conta dele.
Ele se sentiu cego de loucura. Alizeh sussurrou algo
incompreensível contra seu pescoço e ele fechou os
olhos brigando com uma onda destrutiva de emoção,
desejando nunca ter nascido. Não percebeu em nenhum
momento que havia tropeçado, que havia perdido o
equilíbrio e que estavam caindo… Não até sentir o vento,
como uma mão pesada, amparando-os no ar.
E, então, despencaram.
ONZE

Cyrus permitiu-se apenas um segundo de dor antes de


endireitar a coluna como se ela tivesse sido esticada,
como que puxada por fios. O vento formou quase um
casulo ao redor dos dois, açoitando o corpo deles, e os
cantos dos pássaros matinais colidia com o barulho
estrondoso das cataratas. Uma névoa pesada os
envolveu enquanto despencavam e, embora Alizeh
tremesse, Cyrus não conseguia sentir o frio, pois o medo
e a fúria pareciam queimá-lo vivo. Ele tinha acabado de
tomar uma decisão e agora iria até o fim.
Alizeh não morreria.
— Olhe para mim — ele disse com aflição, puxando-a
para perto enquanto sua mão rasgada tremia de agonia.
Parecia uma estranha reviravolta do destino que ele
continuasse a sangrar sobre ela e, se tivesse mais tempo
para refletir a respeito, poderia ter gritado de ódio. —
Alizeh, por favor. Levante a cabeça. Olhe para mim.
Com muito esforço, ela o fez.
Seus olhos estavam vidrados, brilhando em tons
prateados e castanhos sob a luz crescente. Ela o estudou
como se ele fosse um sonho.
— Por quê? Por que você é tão lindo?
— Não seja engraçadinha — disse ele, respirando com
dificuldade. — Não é hora.
Ela piscou, a cabeça pendendo um pouco para o lado.
— Não consigo sentir minhas pernas.
O coração dele disparou no peito. O fato de ela ter
perdido a sensibilidade na parte inferior do corpo
significava que a ponta da flecha havia empalado sua
coluna. Por um instante, o rei do Sul voltou seu olhar
para o mar agitado. Estavam caindo a uma velocidade
vertiginosa, mas a queda era tão tortuosa e longa que
teriam quase um minuto antes de atingirem a água. Se
Cyrus tivesse alguma esperança de salvá-la, teria de
realizar uma magia complicada antes de sofrerem o
impacto… Mas ele não estava conseguindo enxergar, a
visão ofuscada por clarões. Pior, estava perdendo a
sensibilidade na mão esquerda.
— Kaveh! — ele chamou.
A resposta foi quase imediata. Cyrus ouviu o clamor
das ondas quebrando antes que elas se abrissem e
revelassem a forma de um dragão cintilante, cuja pele de
fogo emergiu das profundezas como uma chama em voo.
Os dragões de Cyrus eram preciosos para ele, mas havia
três em particular que ele amava como se fossem da
família.
Kaveh era um deles.
De longe o mais sarcástico da frota, Kaveh também era
um de seus dragões mais antigos, e Cyrus sabia que
precisaria da habilidade cuidadosa do animal naquele
momento, talvez mais do que nunca.
— Cyrus — disse Alizeh, de repente, meio ofegante ao
pronunciar a palavra. — Onde você está?
Seu corpo tremia abraçado ao dele, e ele percebeu que
se sentia grato por ela ter se virado de novo, por não
poder ver seu rosto.
— Estou aqui — ele disse, de modo áspero. — Estou
bem aqui.
— Eu só… Acabei de me lembrar — disse ela. — Que
não sei nadar.
Não havia medo em sua voz, apenas uma leve
surpresa… Como se tudo aquilo não passasse de um
golpe de azar, apenas um inconveniente. Cyrus não
apontou que ela não conseguiria nadar de qualquer
maneira, visto que havia perdido a sensibilidade nas
pernas. Apenas fechou os olhos no cabelo dela e lutou
contra o aperto desesperado de seu peito, contra a
violência de seu afeto por ela. Como ela havia
conseguido desarmá-lo mesmo naquele momento, à
beira da morte, ele não conseguia entender. Ela já tinha
chorado por sua dor, enxugado o sangue de seus olhos,
levado uma flechada nas costas por ele. Tinha lhe
mostrado mais lealdade e ternura em dois dias do que
ele jamais havia recebido na vida. Cyrus soube, então,
com uma força que tirou o ar de seus pulmões, que
nunca sobreviveria a ela.
— Não se preocupe, meu anjo. — Ele a tranquilizou. —
Você não precisará.
Kaveh deu um pequeno rugido, exalando faíscas ao se
aproximar. Cyrus sentiu a confusão e depois a
preocupação do dragão e comunicou-se sem falar, como
costumava fazer com os animais.
Explicarei mais tarde.
Kaveh emitiu outro som em resposta, um bufo que
quase chamuscou o cabelo do rei. O bater das enormes
asas da fera foi suficiente para chicotear os cachos de
Alizeh no rosto de Cyrus, e, enquanto ele tentava tirar as
mechas dos olhos, o animal mergulhou suavemente sob
os dois, amortecendo a queda com uma completa falta
de sutileza. Cyrus se atrapalhou com a mão machucada,
agarrando a pele do dragão para estabilizá-los enquanto
puxava Alizeh para o seu colo, na esperança de absorver
o impacto. No entanto, dada a tremenda velocidade de
sua queda, isso se revelou quase impossível.
Alizeh deu um grito agudo quando pousaram, enquanto
Cyrus, que não emitiu nenhum som, quase desmaiou de
dor.
Sentiu Kaveh rindo dele.
O senhor está bem?
Cyrus não dignificou tal pergunta com uma resposta.
Com todos os músculos tensos e contidos, demorou
alguns momentos até que o rei do Sul pudesse voltar a
respirar, até a névoa desaparecer de seus olhos. À
medida que subiam suavemente através da neblina e
das cascatas, Cyrus foi capaz de discernir gritos vindos
de cima. Quando esticou o pescoço, quase conseguiu
distinguir as formas dos idiotas gritando, silhuetas
nebulosas que se inclinavam precariamente sobre o
penhasco e emitiam sons agudos e incompreensíveis,
exceto por um:
— Dragão!
Kaveh estava se movendo lentamente por causa dos
ferimentos de ambos e, quanto mais alto eles voavam,
mais Cyrus experimentava um alívio avassalador. A
sensação se esvaiu, porém, quando ele percebeu que
Alizeh havia desfalecido, mesmo enquanto ainda tremia
de forma violenta em seus braços.
— Alizeh — ele sussurrou. — Por favor, acorde.
Ela não respondeu.
Sabia que deveria inspecionar seu ferimento para
avaliar os danos, mas ele próprio encontrava-se em um
horrível estado de degradação. Sua mão ferida estava
agora encharcada de sangue, e o braço afetado
convulsionava enquanto os dedos pareciam dormentes.
Sua perna, pelo menos, havia reagido a alguns cuidados
mágicos; mas, embora a ferida tivesse parado de
sangrar, ainda estava aberta, um perfeito buraco
perfurado no músculo que irradiava dor. Ainda assim, ele
não poderia fazer mais nada por si; precisava poupar a
magia que restava para Alizeh.
Sua respiração era tensa quando ele a virou um pouco
em seus braços, sacudindo o ferimento dela apesar do
cuidado do movimento. Ele esperava que ela ofegasse ou
pelo menos se encolhesse em resposta, mas Alizeh
permaneceu imóvel, com seus olhos fechados, com seu
rosto cansado e pálido. Até mesmo seu tremor começou
a diminuir.
Cyrus lutou para esconder o pânico.
Sussurrou em desespero o nome dela, desejando que
ela falasse, que abrisse os olhos. Queria que ela gritasse
com ele, que o ameaçasse, que o incomodasse com suas
intermináveis perguntas. Não havia indagações da parte
dela sobre o que estava acontecendo; nenhuma piada
inteligente sobre o dragão; nenhuma ameaça de se jogar
na água só para ficar longe dele. Foi como um soco no
estômago de Cyrus. Quando ele enfim avistou o
ferimento, recebeu outro golpe: a ponta da flecha estava
perdida nas dobras do manto emprestado, pelo menos
sete centímetros incrustada em suas costas. Dadas as
complexidades da ponta farpada, não seria simples
remover o ferrolho… E ele não estava em condições de
oferecer-lhe os devidos cuidados cirúrgicos e mágicos.
Só havia uma alternativa… E Cyrus esperava que ela o
perdoasse por isso mais tarde.
— Kaveh — disse ele. — Ela precisa ser levada aos
Profetas.
De imediato, Cyrus sentiu a desaprovação do dragão.
Com todo o respeito, mas o senhor não tem mais
permissão para ir lá. Sabe disso.
— Claro que sei — disse Cyrus, mal-humorado. Como
se ele precisasse de tal lembrete. — Você vai me deixar
no penhasco antes de levá-la sozinha.
Houve um silêncio frio do animal. Estavam pairando no
ar agora, parados.
Por favor, Cyrus acrescentou em silêncio.
Mas por quê, senhor? Yaasi contou que o senhor e a
garota quase se mataram no voo de volta de Ardunia.
Não seria melhor que ela morresse? O senhor falou que
ela era a noiva do diabo.
— Muita coisa mudou desde a última vez em que nos
falamos — disse o rei, estremecendo ao sentir um
espasmo na perna. — Eu estava errado sobre ela. Ela não
é aliada de Iblees e foi ferida tentando salvar a minha
vida.
Kaveh não respondeu, embora sua surpresa fosse
grande.
— Eu sei… — disse Cyrus, com calma. — Também não
entendo. Não dei a ela nada além de motivos para me
assassinar.
Mais surpresa.
E ela não sabe? Sobre seu pai?
As pálpebras de Alizeh tremeram por um instante;
Cyrus hesitou. O hematoma na maçã do rosto dela
parecia inchado e sensível, e a visão era ao mesmo
tempo devastadora e confusa para ele. Não sabia por
que ela estivera deitada no chão naquela manhã, nem
como havia se machucado. Além disso, dada a resposta
coletiva ao drama, parecia improvável que ela houvesse
sido ferida por seus amigos. Isto é, o mistério não parecia
ter uma solução óbvia. Era mais um enigma que ele teria
de esperar para desvendar.
Cyrus, sentindo-se ao mesmo tempo fraco e
desamparado, enfim se permitiu olhar para ela. Estudou
as belas feições de seu rosto, a plenitude de seus lábios,
os cílios macios e escuros contra sua pele pálida. Era
perigoso permitir-se ficar ali, memorizando os detalhes;
pois, quanto mais gostava dela, mais insuportável se
tornava observá-la.
Cyrus desviou os olhos, com uma nova amargura
afetando ainda mais sua disposição.
— Não — disse, por fim. — Ela não sabe.
Ela nunca saberia.
Iblees proibira Cyrus de falar a verdade a outra pessoa,
mas o rei do Sul não era impedido de confiar em
criaturas não humanas. A exceção só era possível, é
claro, porque o jovem possuía a rara habilidade de se
comunicar usando apenas a mente. Enquanto quase
todos os outros dotados dessa habilidade eram
comprometidos com o sacerdócio, Cyrus — cujo acordo
com o diabo lhe valera a expulsão do templo dos Profetas
— não conseguira completar sua formação, o que o
tornava um leigo com uma habilidade extraordinária.
Ainda assim, poucos animais estavam interessados em
conversar com humanos, e menos ainda eram capazes
de transmitir mais do que informações básicas. Isso
significava que seus dragões, cuja inteligência emocional
abrangia uma gama surpreendente de sentimentos,
eram seus únicos confidentes no mundo.
Senhor, disse Kaveh, com seu tom inescrutável, temo
que o senhor esteja perdendo o foco.
— Como se eu não soubesse disso — Cyrus murmurou.
Dias atrás o senhor teria considerado esta situação
uma oportunidade. O senhor não foi o responsável por
ela ter se colocado em perigo. Deixe-a morrer e acabe
com ela, ou condicione a sobrevivência dela a ela aceitar
sua mão. O senhor precisa se casar com a garota, e esta
é sua chance…
— Acha que isso não me ocorreu? — retrucou Cyrus. —
Eu simplesmente não consigo fazer isso, Kaveh. Já tive
de arrastá-la até aqui porque pensava que ela estava
conspirando com o diabo para usurpar meu trono. Agora
que sei que isso não é verdade, como poderia usar
tamanha crueldade contra ela? Você não consegue ver a
dificuldade…
O senhor assassinou os Profetas do Norte sem pensar
duas vezes.
— Você sabe que foi diferente — rebateu Cyrus, brusco.
— Quando Zaal nasceu, os Profetas já sabiam como a
profecia terminaria… E eles concordaram que tinha de
ser feito, por isso estabeleceram os termos…
Eles estavam de acordo, mas foi o senhor que lançou a
maldição que os matou, assim como foi o senhor que
matou Zaal. Tudo isso por nada?Tudo que o senhor
suportou? Arriscaria tudo, simplesmente para agradar
uma garota?
Cyrus fechou os olhos com força, odiando-se de
repente. Não importava que escolha fizesse: ele perderia.
O diabo tinha razão.
Não, veio a voz de Kaveh. A resposta é não. Ela não
vale esse preço.
Cyrus ficou em silêncio e logo foi poupado de
responder. Kaveh se pusera a voar de novo, e agora eles
estavam se aproximando do topo do precipício, onde os
gritos furiosos de Hazan soavam nítidos e claros. Eles
voaram para o centro de uma discussão.
— … um acordo! — ele estava gritando. — Eu avisei
você… Que, se algum mal acontecesse com ela…
— Você não consegue imaginar minha agonia? —
Ouviu-se a resposta acalorada do príncipe. — Como
consegue me acusar quando sabe que foi um acidente,
que eu nunca poderia ter desejado…
— Nunca poderia? — Hazan riu, sombriamente. — Tem
certeza? Depois de me confessar ontem que pretendia
matá-la?
Cyrus enrijeceu. Como se já não tivesse razão
suficiente para assassinar o idiota.
— O quê? — gritou a garota barulhenta. — Isso é
verdade?
— Ah, não — disse o garoto desengonçado na mesma
hora. — Não, senhorita, não pode ser verdade.
— Eu tinha todo o direito de não saber — rebateu
Kamran. — Eu tinha todo o direito de duvidar. Nunca
ficou claro para mim se ela era ou não confiável. As
circunstâncias foram desastrosas… Até vocês devem
reconhecer que…
— Tudo bem, suponho que seja verdade — murmurou
Omid. — Mas tenho certeza de que ele não estava
falando sério.
— Tenho certeza de que estava, sim — acrescentou o
mais velho e magro.
— Tenha certeza de uma coisa — disse Hazan, com
uma ameaça silenciosa. — Se ela não sobreviver, você
conhecerá toda a extensão da minha raiva. Vou arrancar
todos os ossos do seu corpo antes de decepar a porra da
sua cabeça.
A última parte ele quase gritou, e as palavras ecoaram
ao ar livre.
Fascinado por aquela troca de farpas absurda — entre
um príncipe herdeiro e seu súdito —, Cyrus quase sorriu.
— Você está exagerando… — Kamran tentou mais uma
vez.
— E você não está fazendo nada!
Prepare-se para a descida, senhor. Não consigo
imaginar como espera que ela se mantenha sobre as
minhas costas na sua ausência.
Estavam quase no mesmo nível do penhasco agora.
Kaveh pairava com cuidado, e toda aquela cena
desagradável entrou em foco. Hazan e Kamran estavam
brigando, tão preocupados com sua própria raiva que
notaram sua presença um pouco mais tarde que os
outros três — estes, boquiabertos de horror com Cyrus,
depois com Alizeh, que permanecia imóvel em seus
braços.
A garota barulhenta berrou, estridente:
— Ela está morta! Que os céus nos ajudem, ela está
morta… Nós a matamos… Ela está morta…
Cyrus afastou-se daquele caos.
Ele ouviu tudo, é claro — o choque coletivo, as
perguntas gritadas, as brigas internas —, mas deu as
costas, sentindo-se agora certo de que Hazan impediria o
príncipe de quaisquer novas tentativas de assassinato.
Utilizando sua magia, Cyrus precisava colocar Alizeh
sentada para que ela sobrevivesse ao percurso até os
Profetas e, como sua mente estava se fragmentando com
a dor acumulada de uma série de ferimentos, ele
precisava de um momento para se concentrar.
Havia grandes riscos envolvidos.
Esvaziar seu estoque de magia o deixaria vulnerável a
novos ataques… E, pior, iria lançá-lo em uma espiral de
fadiga. Ele não dormia há mais de quarenta e oito horas;
entre a privação de sono e a perda de sangue, ele se
perguntava como manteria suas habilidades motoras
básicas. Precisaria chegar aos seus aposentos o mais
rápido possível depois de realizar o último feitiço em
Alizeh; mas, como conseguiria isso tendo que enfrentar
aquela trupe de palhaços, ele não sabia.
Cyrus respirou fundo, com um tremor chacoalhando
seu corpo enquanto ele exalava. Segurou Alizeh com
cuidado contra seu peito, pressionou sua mão saudável o
mais próximo que pôde do ferimento dela e, com grande
esforço, transferiu a magia restante de seu corpo
diretamente para o dela.
Ele sentiu a mudança nela, a pulsação de energia
retornando aos seus membros, e ela gritou em resposta,
um som ofegante que revitalizou o caos entre sua
pequena plateia:
— Ela não está morta! Ela não está morta!
Seu grito, porém, logo se transformou em um gemido.
Ele não poderia curá-la, não com a flecha ainda fincada
em suas costas; mas pelo menos lhe dera algum alívio e
tinha certeza de que ela permaneceria sentada até
chegar ao seu destino. Por enquanto, era o suficiente —
tinha de ser —, porque, assim que os olhos dela se
abriram, Cyrus quase cambaleou. Sem magia para
mantê-lo acordado, de repente ficou tão cansado que
sentiu que havia perdido o controle dos membros. Cyrus,
que nunca havia tocado em bebidas alcoólicas, imaginou
ser essa a sensação de estar bêbado.
De forma milagrosa, ele a ergueu de seu colo e a
sentou no dragão, satisfeito porque ela não caiu para o
lado. Ainda assim, seus pensamentos pareciam confusos.
— Vá — ele soprou, buscando os resquícios de
adrenalina nas profundezas de seu ser. — Prometa-me…
Prometa que cuidará dela.
— O quê? — Alizeh semicerrou os olhos para ele.
Cyrus assustou-se. Ele não esperava que ela falasse e
não queria ter dito aquilo em voz alta. Ainda assim, ela
parecia apenas meio acordada, com a cabeça inclinada
para o lado enquanto o corpo permanecia ereto.
De um modo turvo, ela disse:
— Com quem você está falando?
Seu coração batia mais rápido agora.
— Meu dragão — disse ele.
— Ah. — Uma pequena linha se formou entre as
sobrancelhas dela. — Você tem um dragão?
— Eu… Sim.
— Como daquela outra vez… — Ela reprimiu um
bocejo, fechando os olhos. — Eu também vou ganhar um
dragão?
Cyrus franziu a testa.
— Isso… Seria do seu agrado?
— Acho que sim.
— Certo. — Ele piscou devagar. — Você pode ter um
dragão.
A cabeça de Kaveh moveu-se de modo abrupto, com
fumaça escapando de suas narinas.
O senhor perdeu o juízo? Não dará à garota um dragão.
Cyrus irritou-se.
Você vive sob minha proteção, a serviço da coroa. Eu
darei a ela um dragão se assim quiser.
Bem, não serei eu.
— Cyrus?
— Sim?
— Por que as pessoas estão gritando?
Com esforço, Cyrus olhou para os outros. Kamran
ameaçava estripá-lo de longe; seus três companheiros
apresentavam variados estados de histeria; e Hazan
parecia estar pensando em saltar do penhasco até as
costas do dragão. O que seria uma péssima ideia.
— Às vezes, as pessoas gritam — ele disse, virando-se
para ela.
— Cyrus?
Sentiu-se delirante. Ele a encarava com tal admiração
que parecia um idiota olhando o sol pela primeira vez.
Quase tocou seu rosto. Quase beijou seu pescoço. Quase
se ajeitou nela e caiu em um sono profundo.
— Sim, meu anjo?
— Nós morremos, não morremos?
A pergunta foi tão surpreendente que ele despertou de
repente. Estava prestes a negar, mas ela falou de novo.
— Nós morremos e estamos juntos… E não estamos no
inferno — ela balbuciou, quase se desequilibrando e
caindo, mas a magia a manteve no lugar. — E você tem
um dragão. Talvez eu ganhe um dragão também.
Ele engoliu em seco.
Ela acariciou o braço dele de forma distraída.
— Deve significar que você não é tão mau.
Para Cyrus, ouvir isso foi como engolir veneno; ele não
conseguiria responder.
Aquele jinn idiota vai pular, disse Kaveh. O senhor
precisa se apressar. Receberá um recado assim que ela
estiver segura.
Era verdade. Havia determinação no olhar de Hazan.
Ele estava tentando afastar a criança, cujo apelo para
afastá-lo da beirada era quase comovente.
Vou confiá-la aos seus cuidados, disse Cyrus. Por favor.
Proteja-a a qualquer custo.
Como desejar. Só gostaria de declarar a minha
desaprovação.
Ele suspirou.
Com um último olhar para Alizeh, o rei desmontou com
cuidado do dragão. Kaveh havia estendido uma asa em
direção ao penhasco, fazendo assim uma ponte que o
levaria à incerteza. Cyrus percorreu a distância o mais
rápido que sua cabeça e suas pernas feridas lhe
permitiram e, uma vez que atravessou, foi recompensado
por sua agonia com os dramáticos clamores dos
convidados indesejados.
— Seu doente, o que fez com ela?
— … grave o ferimento? Foi profundo…?
— Tire-a de cima do dragão, seu louco idiota!
— Ela está morta? Por favor, diga-me se ela está
morta. Não ficou claro…
Cyrus olhou de volta para Kaveh, e este rugiu e
decolou sob a luz da manhã, rumo a uma paisagem linda
demais para um momento como aquele. Ele sabia que
ela ficaria bem. Sabia que os Profetas cuidariam dela.
Não era medo pela vida dela que o atingia agora; era
medo pela própria vida. Não deveria se importar tanto
com ela. Não podia. Isso o mataria antes que estivesse
pronto para morrer, e então… Então toda aquela tortura
teria sido em vão.
Com a cabeça pesada, ele encarou os visitantes. Dos
cinco que estavam diante dele, era Kamran que o fitava
de forma impossível de ignorar. Fúria e ódio faiscavam
com tanta intensidade nos olhos do príncipe, que
pareciam forjar uma alma separada da dele.
Foi a última coisa que ele viu antes de cair no chão.
DOZE

— Pelos céus — murmurou Deen.


— Ele está morto? — perguntou a srta. Huda, espiando
o rei pelo canto do olho, como se tivesse medo de
encará-lo.
Omid aventurou-se um pouco mais perto, inclinando-se
para inspecionar a cara do cretino.
— Não sei — falou, baixinho.
— E Alizeh? — questionou a srta. Huda com um
gritinho. — Ao ouvir o nome dela, Kamran experimentou
um choque já conhecido de dor. — O que aconteceu com
ela? — continuou a garota. — Para onde vocês acham
que ela foi? Esse louco deve tê-la mandado para uma
masmorra em algum lugar…
— Parece improvável. — O rosto de Hazan era
impassível. — O dragão rumou para oeste.
— E-E...? — gaguejou a srta. Huda. — Não há
masmorras a oeste?
— Não se preocupe, senhorita — disse Omid, de forma
tranquilizadora. — Vai ficar tudo bem. Tenho certeza de
que a encontraremos. Não tenho certeza de como… —
Ele esmaeceu. — Já que o rei está morto. E ele deve ser o
único que sabe para onde ela foi.
Deen passou as duas mãos pelo rosto.
— Acha mesmo que ele está morto? Sinto-me péssimo
pela pobre menina, mas talvez devêssemos fugir para
salvar nossas vidas? Certamente seremos executados
por isso, não?
— Executados? — Omid virou-se para o príncipe com os
olhos arregalados de medo. — Senhor?
Todos se viraram para encará-lo e, enfim, Kamran
falou.
— Não chegaremos a esse ponto — disse ele, irritado.
— Como pode ter certeza, senhor? — Deen falou de
novo. — Porque, historicamente…
— Oh! — exclamou o menino. — Acho que ele está
respirando!
Deen relaxou.
— Graças aos céus.
— Não é curioso — disse a srta. Huda — que, apesar
dos muitos rostos pressionados contra as janelas,
nenhuma alma tenha saído do palácio? Acho que, se
fosse para sermos jogados nas masmorras, isso já teria
acontecido.
Hazan observou as janelas do palácio, com seus muitos
olhos arregalados que os vigiavam lá de dentro.
— Sim, muito curioso — ele disse, calmamente. —
Onde diabos está a guarda real para defender seu rei?
Ele caminhou até o corpo caído de Cyrus, agachando-
se para ver melhor. Depois de um momento, disse com
seriedade:
— Ele não está morto, embora sua saúde tenha se
deteriorado com uma velocidade surpreendente. Aliás,
isso é estranho, já que seus ferimentos não são tão
graves. Sua perna parou de sangrar, e o ferimento da
mão, embora grotesco, não é suficiente para matá-lo.
Não consigo imaginar por que perdeu a consciência.
— Talvez tenha desmaiado de nervoso — opinou Omid.
— Duvido — disse Kamran, de modo sombrio. — Ele
não parece o tipo de pessoa que perde a cabeça por
causa de uma pequena mutilação.
— Perda de sangue, talvez? — sugeriu Deen.
Hazan, que ainda estava inspecionando Cyrus, disse:
— Não houve perda de sangue suficiente, eu diria.
Embora seja possível.
— Vocês viram como ele usou magia? — perguntou a
srta. Huda, aproximando-se com cautela do rei. — Como
ele fez algumas daquelas flechas… Desaparecerem? —
Uma pausa enquanto franzia a testa. — E, por falar nisso,
alguém mais notou que ele parece ser assustadoramente
mágico? Como acham que ele é capaz de lançar feitiços
com tanta facilidade?
— O diabo… — disse Kamran. — Sem dúvida ele e
Iblees são grandes amigos. Tenho certeza de que o poder
dele é consequência da venda de sua alma às trevas.
A jovem contraiu o rosto.
— Se isso fosse verdade, eu gostaria de saber por que
ele não usaria magia para se poupar neste momento. Ele
se colocou em uma posição muito vulnerável. Pensem só:
qualquer um pode aparecer e… — Ela fez um movimento
dramático de corte com uma das mãos. — Decepar sua
cabeça.
Omid riu disso, e ela riu também, como se fosse
adequado fazer piadas naquele momento. Kamran
afastou-se dos dois com uma careta, sentindo a pontada
afiada de uma nova dor de cabeça.
— É possível que ele tenha levado uma pancada na
cabeça durante a descida — disse Hazan, sem perder a
calma. — Se ele tiver sofrido uma lesão interna, precisará
de ajuda imediata. Sua situação está ficando mais incerta
a cada momento.
— Devemos deixá-lo morrer naturalmente, então? —
Era mais da insuportável srta. Huda. — Ou o senhor
ainda pretende matá-lo? — perguntou, virando-se para
Kamran.
Três outros pares de olhos voltaram-se na direção dele.
— Não se atreva. — Foi o aviso baixo de Hazan.
Kamran lançou um olhar de ódio para seu velho amigo.
O insípido rei estava no chão, a seus pés, quase como
se estivesse se oferecendo em sacrifício. Como teria sido
fácil enfiar uma adaga em sua garganta. Na verdade,
Kamran deveria estar feliz. E, ainda assim, ele só estava
furioso. Queria que o canalha se levantasse e lutasse.
Afinal, que satisfação poderia haver em empalar um
cadáver? A manhã inteira, aliás, não passara de uma
decepção trágica. Primeiro, Simorgh os abandonara logo
após desembarcarem; depois, Alizeh fora descoberta
inconsciente. Kamran acabava de digerir a revelação de
que ela não o havia traído quando Cyrus apareceu, o que
seria a oportunidade perfeita para a vingança. Ele estava
a centímetros da vitória. A centímetros de se vingar da
pessoa responsável pelo pesadelo que sua vida se
tornara.
Que Alizeh tivesse tentado salvar aquele rei vil já era
bastante difícil de entender, mas que ele mesmo
houvesse atirado nela…
Por um terrível momento, pensou que a tinha matado.
Teria sido uma tragédia — ele sabia disso, sabia disso do
fundo da alma —, mas também nutria uma raiva
silenciosa por ela. Raiva por ela ter se intrometido em um
assunto privado, raiva por ela ter ficado do lado de seu
opressor, raiva por ela ter frustrado seus planos. Para
piorar a situação, ela agora complicava mais ainda as
coisas: estava ferida e desaparecida e precisaria de um
segundo resgate. Só os céus sabiam o que Cyrus tinha
feito com ela, ao enviá-la nas costas de mais um maldito
dragão para algum lugar amaldiçoado.
— Por que eu não deveria matá-lo? — indagou o
príncipe, em tom ameaçador.
— A resposta simples é que Alizeh implorou para que
você não fizesse isso — disse Hazan.
A expressão de Kamran ficou ainda mais tempestuosa.
— E isso é tudo? Acha que eu deveria deixá-lo viver
simplesmente porque ela quer?
— Não é suficiente? Você fez o que bem quis e quase a
matou por conta disso…
— Um terrível acidente!
— E onde está o seu remorso? — questionou Hazan. —
Por que não expressa nenhuma preocupação com o bem-
estar dela? Por que permanece preocupado apenas com
suas próprias decepções, quando viemos aqui com o
propósito expresso de salvá-la…?
— Eu vim aqui com um único propósito — Kamran o
interrompeu, seus olhos brilhando. — O de vingar meu
avô.
Hazan ficou em silêncio por um momento.
— Mesmo agora? — perguntou. — Mesmo depois de
descobrir que seu avô estava errado sobre ela? Não
consegue abandonar sua raiva por tempo suficiente para
perceber que Alizeh precisa de nossa ajuda…
Kamran encolheu-se.
— Pare de dizer o nome dela!
— Minha humilde opinião? — Deen limpou a garganta e
levantou um dedo. — Vossa Alteza poderia matar o rei
agora. Parece uma boa oportunidade. Poderia pôr um
ponto-final em tudo isso, e então poderíamos voar direto
para casa. — Ele pegou uma flecha caída e a ofereceu a
Kamran, como se ele precisasse dela, como se não
tivesse muitas armas escondidas em seu corpo. — Se
agirmos depressa, poderemos até voltar a tempo do
jantar.
— Mas Simorgh e seus filhotes se foram — observou a
srta. Huda. — E suponho que não tenhamos como saber
se retornarão…
— Alizeh não o traiu! — insistiu Hazan, ignorando a
todos. — Ela foi injustamente acusada por você e seu
avô. Você teve a prova disso hoje e ainda persiste nessa
atitude. Nosso foco agora deveria ser encontrá-la, salvá-
la… não chafurdar em vinganças pessoais. Como pode
não enxergar o dano que está causando? — Ele balançou
a cabeça. — Sua sede de vingança o está cegando,
Kamran.
O príncipe cerrou a mandíbula, e a escuridão se
instalou dentro dele.
— Lamento que ela tenha se machucado. Lamento
mais ainda ter sido quem lhe causou este mal, mas ela
não deveria interferir, e não tenho mais certeza se ela
precisa ser salva.
— Ela foi embora carregada nas costas de um dragão!
— Ela escolheu protegê-lo! — revidou Kamran. — Levou
uma flechada nas costas pelo desgraçado que quase me
matou! Talvez você possa imaginar por que estou com
dificuldade de sentir compaixão.
— Acredito que ela tenha tido bons motivos para agir
daquela forma.
— Sua fé cega há de matá-lo.
— Tenha cuidado. — Os olhos de Hazan endureceram.
— Você fala como se ela não passasse de uma garotinha
mimada, não aquela que foi profetizada como salvadora
do meu povo. Se ela não queria que você o matasse,
tenho certeza de que tinha uma justificativa. Ela
implorou a você… Afastou seu arco e, ainda assim, você
desafiou os desejos dela…
— Desejos dela? — Kamran quase explodiu. — E os
meus? E quanto ao meu avô morto, meus Profetas
mortos, meu império destruído, meu rosto desfigurado…
— Ah, não está tão ruim assim, senhor — Deen
assegurou-lhe. — Já vi muitas desfigurações, e a sua…
— … não diminui em nada sua beleza — concluiu a
srta. Huda, balançando a cabeça de forma ansiosa. — Na
verdade, acho que combina muito com o senhor…
— Bem, acho que ele ficou feio — rebateu Omid. — E
não acho que seja bom mentir para ele…
— Seu bando de idiotas delirantes, vocês são incapazes
de calar a boca por um único e maldito segundo? —
gritou Kamran, arfando de fúria. Tanto ele quanto Hazan
se viraram para olhar para os outros, que baixaram a
cabeça, exceto a srta. Huda, que olhava de queixo caído
para Kamran com uma decepção tão severa que
lembrava a de um coração partido.
Ela não se movia, exceto para piscar os olhos
devastados para ele e, no silêncio que se seguiu, Kamran
percebeu que ela estava esperando um pedido de
desculpas — uma expectativa tão absurda que cimentou
em seu cérebro o medo enervante de que a jovem
senhorita estivesse, de fato, delirando. Ele testemunhou
o momento em que a luz dela se apagou, quando sua
esperança ingênua se extinguiu, antes que ela enfim
falasse.
— Venha, Omid — disse, com firmeza, pegando o
menino pela mão. — Estou começando a perceber que os
príncipes não são tão charmosos quanto fui levada a
acreditar. — Depois, mais calmamente, acrescentou: —
Este, em particular, ficou muito aquém das minhas
expectativas, que, temo, eram altas demais.
Kamran vacilou ao ouvir isso, seu peito aquecendo
mais uma vez de indignação. Ele estava no meio de uma
desgraça que abrangia até sua alma. E aquela garota
ridícula tinha a audácia de se concentrar apenas em seus
próprios sentimentos e a ousadia de acusá-lo de
incivilidade? Se ela soubesse quantas vezes a honra o
impedira de reconhecer em voz alta as muitas
indignidades do caráter dela… A srta. Huda não fazia
ideia do autocontrole que ele já havia empregado na
presença dela. E, por seus esforços, não lhe era
concedido nenhum crédito, apenas crítica.
— Está claro que não somos bem-vindos aqui —
acrescentou ela, arqueando a sobrancelha. — Talvez
devêssemos procurar um café da manhã.
Omid franziu a testa, mesmo permitindo que a jovem o
levasse.
— Não entendo o que você quer dizer, senhorita. Tenho
certeza de que o príncipe não quer a nossa partida. Mas
um café da manhã seria ótimo, para ser honesto. Estou
morrendo de fome.
— Eu adoraria uma xícara de café — disse Deen,
ansioso, juntando-se a eles.
— Você foi duro demais — disse Hazan, recomposto, ao
príncipe. — Eles não mereciam receber o peso de sua
raiva mal direcionada…
— Deveriam era aprender a segurar a língua —
retrucou Kamran. — Falam demais. Todos eles.
Hazan, razoável demais para negar um fato
comprovado, apenas suspirou em resposta.
Uma brisa fresca soprou então pelo terreno. O sol da
manhã lançou nova luz à cena sombria com um clarão
ofuscante. Kamran virou o rosto para o céu, e a exaustão
e a incerteza atormentaram-no em igual medida. Ele não
sentiu remorso pelo que falara. Não permitiria que os
sentimentos injustificados da srta. Huda afetassem sua
consciência. Na verdade, se os idiotas enfim o
abandonassem, ele ficaria aliviado. Virou a cabeça para
testemunhar os três caminhando com grande convicção
em nenhuma direção específica. A voz de Deen ressoou
quando ele disse:
— Acham que está tudo bem largar o rei ali deitado?
— Eu não sei e não me importo! — declarou a srta.
Huda. — Não estou mais interessada na vida, na morte e
nas vaidades da realeza. Já aguentei esnobismo o
suficiente na minha vida e acabei de decidir que estou
farta. Além disso, não vim até aqui para controlar os
acessos de raiva de uma criança crescida, vim para
ajudar Alizeh, que, apesar de talvez ser uma rainha,
nunca falou comigo de maneira tão insultante. — Ela se
virou para seus companheiros. — Alizeh alguma vez falou
com algum de vocês de maneira tão ofensiva?
Kamran estremeceu à repetição do nome de Alizeh,
mesmo enquanto ouvia a conversa com um espanto
mudo.
— Não, senhorita — disse Omid, balançando a cabeça
com vigor.
— Não, senhorita — ajuntou Deen, com um olhar
incerto para o príncipe.
Não conseguia acreditar no atrevimento dela. Nunca
tolerara tal insolência de ninguém, muito menos de uma
moça com mau temperamento, ilegítima e sem nenhuma
distinção. Até mesmo Omid, que já havia testado sua
paciência ao máximo, aprendera a ter deferência. Que
ela ousasse insultá-lo e falar dele com tanta
condescendência, como se ele estivesse abaixo dela…
Ele, o príncipe herdeiro do maior império da terra… Que
inferno! Estava no direito de bani-la de Ardunia para
sempre, caso decidisse fazê-lo; mas, de alguma forma,
sua perplexidade foi tão completa que ele se mostrou
incapaz de formular as palavras necessárias para
expressar tal ultraje.
Muito bem.
Seus olhos se estreitaram. Se era assim que ela queria
proceder, ele iria mais do que corresponder à sua ira.
Kamran era magistral na derrota de seus rivais.
— Ah, há uma bela senhora vindo em nossa direção
agora — anunciou Huda. — Talvez ela saiba onde
poderemos encontrar algo para comer.
De imediato, Hazan aproveitou o estupor de Kamran
para dar um passo à frente, protegendo o corpo de Cyrus
da vista de quem se aproximasse.
— Um aviso final, Kamran — disse ele, com calma. —
Eu não recebo mais ordens suas. Minha rainha emitiu
uma ordem para manter esse tolo vivo e eu a honrarei,
mesmo que você não entenda por quê. Tente matá-lo e
terá de passar por cima de mim.
Demorou um momento até Kamran se recuperar,
desviando sua mente dos horrores de Huda para essa
catástrofe mais premente, e, quando o fez, a decepção
diminuiu seu fervor.
— De todos os cenários que eu poderia ter imaginado
— disse, por fim —, nunca pensei que você ficaria contra
mim. Que você defenderia a ele.
— Eu também nunca imaginei que faria isso — disse
Hazan com um suspiro sofrido. Ele passou a mão pelos
cabelos antes de olhar novamente para o corpo caído do
rei do Sul. — No mínimo, preciso dele vivo por tempo o
suficiente para descobrir o que aconteceu com Alizeh… E
o que ele fez com ela. Até lá, ele permanecerá sob minha
proteção.
— Você de fato duelaria comigo? — disse Kamran,
recuperando um pouco de seu comportamento agressivo
anterior. — Se eu o desafiasse agora, estaria disposto a
morrer por ele?
— Por ela — Hazan corrigiu. — Sem nenhuma
hesitação. Embora você se iluda se acha que poderia me
vencer em uma luta. Você nunca me conheceu de
verdade, Kamran, e eu odiaria que isso apenas
acontecesse quando desse seu último suspiro.
O príncipe arqueou as sobrancelhas.
Foi a maneira como Hazan pronunciara as palavras,
sem arrogância nem vaidade, que o fez hesitar. Hazan
parecia estar falando sério, como se de fato fosse se
arrepender de dar à sua amizade um fim sangrento.
Exceto que…
— Se isso for verdade — disse o príncipe —, por que
não revidou quando os guardas o arrastaram para fora
do baile? Se fosse tão capaz quanto afirma, talvez
tivesse salvado sua rainha.
Hazan desviou o olhar.
— Eu deveria ter feito isso.
— E por que não fez?
— Meu maior erro naquela noite — disse ele, em tom
sério — foi não prever Cyrus. Eu não tinha ideia de que
havia outro plano para ela paralelo ao meu. Que inferno,
eu nem sabia que Cyrus estava em posse do nome dela,
muito menos que tinha um esquema para tirá-la dali!
Meus planos para aquela noite estavam comprometidos;
tudo o que eu queria era a segurança e o anonimato
dela, e esperava que a distração da minha traição desse
a ela a oportunidade de fugir. Nunca imaginei que, na
minha ausência, ela seria levada através da muralha do
palácio, nas costas de um dragão tulaniano. Nunca
imaginei que ela acabaria aqui, neste maldito lugar —
acrescentou ele, com raiva, encontrando os olhos do
príncipe. — Já pensei nisso dezenas de vezes, odiando-
me cada vez mais por ter falhado com ela. Entenda-me
agora: recuso-me a falhar com ela mais uma vez.
O príncipe ficou em silêncio enquanto avaliava Hazan
por mais um momento: a rigidez em sua mandíbula, a
determinação sombria em seu olhar.
— Vejo que você está obstinado — disse ele, enfim. —
E eu lhe farei uma concessão, Hazan, mas nunca mais.
Pode mantê-lo vivo até que sua rainha seja encontrada;
mas, quando chegar a hora de ele morrer, tenha certeza
de que sou eu quem estabelecerá os termos.
— Então é isso?
Todos se viraram ao som da nova voz. Kamran ficou
surpreso ao descobrir uma mulher mais velha e
majestosa aproximando-se devagar. O cabelo cor de fogo
e o diadema brilhante deixavam poucas dúvidas quanto
à sua identidade e, embora Kamran soubesse que
deveria se curvar, ou pelo menos inclinar a cabeça,
recusou-se a fazer isso.
Ele apenas a fitou.
Ela acenou com a cabeça para ele, sem se incomodar
com seu desrespeito silencioso, e depois para os outros,
que haviam retornado da busca pelo café da manhã,
agora congelados no lugar, todos sentindo-se
humilhados. Omid arriscou uma reverência.
— Sou a rainha Sarra — disse ela, com um estranho
sorriso. — E você deve ser o príncipe Kamran, de
Ardunia. — Ela observou com atenção a cicatriz recente
no rosto dele, o veio dourado e reluzente que
atravessava seu olho esquerdo. — Ouvi falar muito sobre
você, é claro. Minhas condolências.
Kamran manteve o silêncio, embora estivesse
resistindo ao impulso de destruir alguma coisa. Que ela
pudesse ficar ali e oferecer-lhe condolências como se
estivesse comentando sobre o tempo, sendo seu filho o
responsável…
— Tem certeza — disse ela, então, com delicadeza —
de que não matará meu filho?
— Houve um sério mal-entendido, Majestade — disse
Hazan, dando um passo à frente. — O rei não parece
estar bem.
Ela olhou para o corpo desmaiado e ensanguentado de
Cyrus.
— Posso ver.
Diante daquela reação fria, até Kamran franziu a testa.
O filho dela estava moribundo no chão, e ela o
examinava como se ele estivesse meramente adoentado.
Ou ela era louca, ou era perigosamente má; Kamran
ainda não havia decidido. Quando ela continuou a sorrir,
ele tendeu à segunda opção.
— Bem — disse ela, respirando fundo. — Suponho que
todos vocês devam estar cansados da viagem. Entrem. O
café da manhã está bem encaminhado.
— Café da manhã? — Hazan ecoou.
— Café da manhã — repetiu Omid, animado, depois
hesitou. — Espere… — Ele recuou. — A senhora não vai
nos jogar nas masmorras, vai?
Sarra inclinou a cabeça para o menino e depois
respondeu em sua língua nativa.
— Você fala feshtoon. Que adorável. E de onde você é?
Omid endireitou-se todo.
— Sou de Yent, da província de Fesht, minha senhora.
Quero dizer, Vossa Senhoria. — Huda deu-lhe uma
cotovelada, e ele guinchou. — Quero dizer… Majestade.
Os olhos da mulher suavizaram-se.
— Minha mãe era de Fesht — disse ela. — Não volto
para lá desde que era garotinha.
— Perdoe-me — Hazan interrompeu —, mas o rei
requer atenção médica urgente. Talvez devêssemos
chamar um cirurgião ou um Profeta…
— Seus pais ainda estão em Fesht? — Sarra continuou.
— Ou você se mudou para a cidade real com sua família?
Omid lançou um olhar nervoso para Hazan antes de
responder à pergunta da mulher.
— Meus pais morreram — disse e, como um gesto de
respeito aos falecidos, tocou dois dedos na testa e depois
no ar. — Inta sana zorgana le pav wi saam. “Que suas
almas sejam elevadas à mais alta paz.”
— Assim como os meus — ela disse, suavemente,
espelhando o movimento. — Inta ghama spekana le luc
nipaam. “Que suas tristezas sejam enviadas para um
lugar desconhecido.”
— O-Obrigado, senhorita. — Omid abaixou a cabeça em
reconhecimento e, depois de outra cutucada de Huda,
acrescentou: — Quero dizer… Alteza.
Sarra avaliou Omid por mais um momento, e sua
expressão não foi cruel. Depois estudou cada um deles
com uma astúcia que colocou os instintos de Kamran em
alerta máximo.
— Bem-vindos, todos vocês — disse. — Que surpresa
inesperada, mas agradabilíssima. Por favor, juntem-se a
mim…
— Receio que devamos recusar — disse Kamran,
proferindo suas primeiras palavras à mulher.
Ele agora tinha certeza, sem sombra de dúvida, de que
ela estava louca; não havia chance de ele acompanhá-la
a qualquer lugar que fosse.
— Mas, senhor — pediu Omid —, ela disse que haverá
café da manhã…
— Eu sei que esta é uma situação incomum — disse
Sarra, com os olhos penetrantes ao se virar para Kamran,
o sorriso em seu rosto desmentindo as palavras
seguintes. — Mas, se não me acompanharem até lá
dentro, terão de pagar muito caro. Como devem se
lembrar, vieram aqui esta manhã com a intenção de
assassinar meu filho…
— Não, Majestade — disse Deen, nervoso. — A maioria
de nós não tinha intenção de fazer mal…
— … e, não tendo obtido sucesso, acham que podem
voltar para casa. Não percebem que estão aqui agora
graças a mim, graças à anistia que estou disposta a
oferecer? Não é preciso entender minhas motivações,
mas entendam o seguinte: suas ações foram
testemunhadas por todos no palácio. Acharam mesmo
que ninguém notaria o aparecimento de cinco pássaros
lendários em nosso céu? Que ninguém os observaria
pousando em nossas terras?
Deen emitiu um som estrangulado.
— Muito inteligente da sua parte, devo dizer —
acrescentou ela, sem se exaltar. — Há apenas uma
criatura viva a quem os dragões demonstram tal
deferência; caso contrário, nunca teriam sobrevivido à
sua descida aos terrenos do palácio. Como o príncipe
conseguiu garantir a proteção de Simorgh é um mistério
que eu gostaria muito de solucionar. — Ela estreitou os
olhos para Kamran. — Presumo que tenha algo a ver com
a lendária história de seu avô.
— Ah, sim, senhorita — disse Omid. — É realmente
uma história incrível…
Cinco cabeças viraram-se ao mesmo tempo na direção
de Omid, e Huda, sem demora, tapou a boca do menino
com a mão. Kamran quase o xingou em voz alta.
— Entendo — disse Sarra, cuja raiva pareceu aumentar
no silêncio que se seguiu. — Vocês pretendem guardar
segredinhos até o terrível fim. Quanta imprudência…
Mas, então, suspeito de que não tenham ideia do caos
que se abateu sobre nossa casa ontem à noite, nem da
devastação que poderá atingir a todos nós se a notícia
de que o príncipe arduniano invadiu nosso palácio em
uma tentativa de matar o rei se espalhar.
— Falando dessa forma — Huda sussurrou, tirando a
mão do rosto de Omid —, parece mesmo horrível.
— Infernos — Deen suspirou. — E eu só queria
conhecer Simorgh.
— Por mais odiado que seja em Ardunia — insistiu
Sarra —, o rei tulaniano é bastante querido em casa.
Portanto, a menos que você espere que nossos impérios
entrem em guerra, ou deseje ser assassinado no meio da
rua, irá se juntar a mim — disse ela a Kamran com os
dentes cerrados — para o café da manhã.
Kamran ainda estava contemplando aquele discurso
chocante — e ainda pensando em uma resposta —
quando Hazan interrompeu, com raiva:
— Como pode ficar aí, fazendo um monólogo, enquanto
seu filho está sangrando no chão? Suas ações são tão
desconcertantes que confundem a mente! Senhora, o rei
está morrendo. Imploro-lhe que peça ajuda imediata,
antes que seja tarde demais.
Sarra não mostrou nenhuma reação à explosão, nem
mesmo olhou para Hazan. Em vez disso, manteve os
olhos fixos no príncipe, seu estranho sorriso agora
beirando o maníaco. Ao encontrar o olhar dela, Kamran
sentiu uma onda de pavor o percorrer.
Era verdade: ele não tinha ideia do contexto em que se
encontravam. Não tinha ideia do que Alizeh havia
experimentado durante seu tempo ali; não sabia quem
era aquela mulher, quais eram suas intenções ou para
onde a bendita Simorgh havia ido. Céus, ele precisava
muito dela agora.
Mais do que isso, ele precisava do avô. Até se
contentaria com uma palavra gentil de sua mãe.
Sobressaltado, Kamran lembrou-se do envelope em seu
bolso, aquele que Hazan havia colocado em sua mão. De
repente, pareceu mais importante do que nunca que ele
entendesse a comunicação de sua mãe, e ele resolveu
encontrar uma desculpa para ficar sozinho assim que
tivesse oportunidade.
— Muito bem — disse ele, olhando discretamente para
Hazan. Foi necessário um único olhar para confirmar o
que ambos sabiam: havia algo profundamente errado
com Sarra, e deviam agir com cautela com relação a ela.
— Ficaríamos honrados em acompanhá-la para o café da
manhã.
— Que maravilha! — ela exclamou, batendo palmas.
Depois, voltando-se para Huda: — Algumas coisas
deveriam ser ilegais por ofenderem o olho humano,
querida. Se for entrar em minha casa, temo que terá de
queimar esse vestido. — Ela avaliou a garota por mais
um momento, franzindo a testa com desgosto. — Se usar
essa abominação no jantar de hoje à noite, eu mesma
sou capaz de botar fogo no vestido, com você ainda
dentro dele.
— Jantar? — disse Kamran, alarmado. — Quando ainda
nem tomamos o café da manhã?
— Mas eu não… Este é o único vestido que tenho… —
gaguejou Huda, ruborizada.
— Majestade, por favor… — Hazan tentou de novo.
— Acho que você está muito bonita, senhorita —
insistiu Omid, aproximando-se da garota como se
pudesse protegê-la. — Não dê ouvidos a ela…
— Jantar, é claro — disse Sarra, mostrando os dentes
para Kamran com um sorriso artificial. — Nem é preciso
dizer que todos vocês se hospedarão no palácio durante
a visita de vocês. Que belo espetáculo você acabou de
fazer, que presente luxuoso foi para a família real
vislumbrar a gloriosa Simorgh e seus filhotes! Foi uma
oportunidade única, algo que até os membros mais
jovens da nossa criadagem guardarão para sempre.
Gostaria de lhe agradecer por aquela performance
espetacular… E por este inconfundível início de amizade.
Quanta imprudência a de meu filho ao tentar pegar uma
flecha cerimonial com a mão! E pensar que a maioria dos
nossos visitantes apenas nos oferece joias.
— Ah, pelo amor de… — Hazan engoliu em seco para
não praguejar.
Ele lançou um último olhar enojado para a rainha-mãe,
aproximou-se de Cyrus, pegou o corpo do rei e o colocou
sobre os ombros.
Kamran assistiu a isso com grande espanto. Cyrus era
mais alto e mais largo do que ele mesmo — o peso morto
de um homem como aquele devia ser extraordinário. Ele
sabia que Hazan, como jinn, possuía imensa força, mas
aquela ainda era uma revelação relativamente nova.
Kamran ficou maravilhado com a facilidade com que seu
antigo ministro carregava Cyrus. Hazan passou pela
pequena multidão, contornando Sarra e se apressando
em direção à entrada mais próxima. Ele experimentou a
maçaneta e, descobrindo que estava trancada, gritou um
breve aviso antes de derrubar a porta com um chute.
A porta desabou com um estrondo ensurdecedor.
Omid e Huda gritaram. Deen murmurou um “ó, céus”
baixinho. Até Kamran ficou atordoado. Ele olhou para
Sarra em busca de uma reação, e ela não revelou nada
além de irritação.
— Seu rei está ferido! — Hazan gritou ao passar pela
soleira. Foi de imediato cercado por criados
desesperados. — Ele precisa de atenção médica
urgente…
— Rei Cyrus! — uma snoda gritou.
— Achei que ela tivesse dito que era tudo um
espetáculo…
— Você acha que…?
— … foi ferido por acidente…
— Mas o rei nunca se machuca…
— Onde está o cirurgião?
— Alguém chame um Profeta!
— … disse para nunca chamar os Profetas…
— Depressa! Depressa!
Kamran e os outros correram em direção ao local, e o
príncipe observou, paralisado, enquanto Hazan era
cercado e muitas mãos se erguiam para aliviá-lo do peso
do rei. Eles transferiram com cuidado o corpo de Cyrus
para seus próprios braços antes de correrem para o
interior do palácio. Uma mulher, que parecia ser a
governanta, estava prestes a explodir em lágrimas.
Kamran não pôde deixar de comparar aquele momento
com um dos seus: na noite em que seu avô fora
assassinado, quando ele fora derrotado por Cyrus e ficara
arrasado, agonizando… Quando sua mãe enfim o
libertara das amarras da paralisia mágica, antes de
desaparecer… Deixando-o caído no chão… Nem mesmo
um único criado mostrou-se disposto a sair das sombras
para ajudá-lo. No fim, apenas Omid viera até ele. De
alguma forma, como que por milagre, apesar de não
receber nada além de crueldade do príncipe, o ex-
menino de rua salvara sua vida. Fora como um presente
dos céus, um presente pelo qual ele lutava para ser
grato, mas não se parecera em nada com a recepção que
Cyrus recebia agora. Os criados do odioso rei pareciam
de fato se importar com ele, um conceito tão estranho
para Kamran que era difícil aceitá-lo como um fato.
Também estava em total desacordo com a reação da
própria mãe do jovem, Sarra.
Kamran estava estudando a mulher agora, avaliando-a
como faria com um oponente em um campo de batalha.
Ela observava a cena se desenrolando como se fosse
uma grande decepção. A mãe de Kamran, apesar de
todos os seus defeitos, pelo menos tentara ajudá-lo de
sua estranha maneira; a mãe de Cyrus, entretanto, tinha
feito de tudo para evitar ajudar o próprio filho. Ela
balançou a cabeça, oferecendo um sorriso fugaz ao
príncipe e disse:
— Bem, sempre há o amanhã.
E entrou no palácio.
Kamran permaneceu congelado na porta.
De fato, ele não sabia quais novos horrores o
aguardavam ali dentro.
TREZE

Em um gesto coordenado de tecidos, os seis sentaram-


se. As pernas as cadeiras estremeceram sobre um tapete
macio, enquanto lacaios empurravam para mais perto da
mesa os ali convidados para o café da manhã no palácio.
Então, houve silêncio. Um silêncio constrangedor que
pairou sobre a sala luxuosa. Snodas curiosos espiavam
pelo vão da porta, inclinando a cabeça para dentro e
para fora como galinhas bicando. Sarra sentava-se à
cabeceira da mesa, de onde observava todos com seu
sorriso perturbador. Ela parecia prestes a falar quando
ouviu um súbito tilintar de prata. Omid havia juntado os
talheres com uma das mãos, inspecionando-os como se
fossem um buquê de flores.
— Coloque isso no lugar — Deen soprou do outro lado
da mesa.
Sentada ao lado do menino, Huda cutucou seu braço, e
Omid deixou cair os utensílios sobre a mesa, causando
um estrondo.
Kamran fechou os olhos, irritado.
— Por que há tantas colheres? — Ele ouviu a criança
dizer. — E onde está a comida?
Hazan balançou a cabeça para o menino com firmeza.
— Mas não como desde ontem — ele sussurrou alto. —
E ela disse que haveria café da manhã.
— Que seleção interessante de companheiros você tem
— disse Sarra, submetendo Kamran a outra inspeção
desconfortável. — Era de se imaginar que traria a melhor
das comitivas para esta… Importante viagem. Mas estes
devem ser o melhor que Ardunia tem a oferecer.
O príncipe cerrou a mandíbula. Não conseguia nem
olhar para os membros daquele grupo ridículo. Estava
cheio de tristeza e medo quando tomou a péssima
decisão de permitir que eles entrassem em sua vida, e
agora pagava caro por esse descuido.
— De fato — respondeu com frieza.
— O senhor fala sério? — perguntou Omid, erguendo a
cabeça. — Porque pensei que o senhor não…
Kamran lançou-lhe um olhar ameaçador, e o menino
recostou-se, fechando a boca. Que inferno! Era como
arrebanhar vacas.
Sarra voltou seu olhar para Omid.
— Como você se chama, querido?
A criança assustou-se, mexendo de novo nos talheres.
— Omid Shekarzadeh, senhora. Sou da província de
Fesht.
— Sim, foi o que me disse.
Ele assentiu.
— Quantos anos você tem, Omid?
— Doze anos, senhora.
— E qual é a sua ligação com o príncipe herdeiro de
Ardunia?
Kamran estremeceu visivelmente.
— Ah… — soltou Omid, estufando o peito. — Eu sou o
ministro do interior, senhora. É meu trabalho manter o
príncipe em segurança.
Sarra iluminou-se como se tivesse sido atingida por um
raio, e seus olhos brilharam de prazer. Ela então projetou
toda a força desse prazer para Kamran, que, naquele
momento, não queria nada além de explodir em chamas.
— É mesmo? — ela murmurou, encarando os olhos do
príncipe. — Doze anos… acha que há colheres demais…
e seu trabalho é manter o governante seguro. De todos
os candidatos que o grande império de Ardunia poderia
ter considerado para tal posição… — Ela voltou-se
novamente para Omid. — O cargo foi dado a você. Meu
Deus, você deve estar muito orgulhoso.
— Ah, eu estou. — Ele assentiu com vigor. — Muito
orgulhoso, senhora.
Kamran beliscou a ponta do nariz e quase gemeu.
— Isso é o que acontece quando você não me escuta —
Hazan murmurou baixinho. — Idiota.
O príncipe olhou para ele.
— E qual é o seu papel aqui? — Sarra voltou o sorriso
enjoativo para Deen, que pareceu encolher-se sob seu
olhar.
— Eu sou… Sou um boticário, Majestade.
Como ela sustentou o olhar, ele ficou nervoso e pôs-se
a divagar.
— Eu possuo uma botica na praça real. Em Setar. Isto
é, em Ardunia. Aprendi o ofício com a minha mãe quando
ainda era menino. Sou altamente recomendado. Recebo
excelentes críticas. Os clientes ficam satisfeitos.
Sarra recuou, emitindo um “hum” ao refletir sobre isso,
e pareceu decidir que ele era, de fato, uma escolha
sensata para uma comitiva real.
— E você? — ela disse, voltando-se para Huda. — Qual
é o seu propósito?
Huda empalideceu.
Espiou ao redor, incerta, com seus olhos castanhos
arregalados de medo e, pela primeira vez, Kamran a
estudou com atenção. Seu horrível vestido amarelo
estava gasto e empoeirado, com marcas de sujeira
visíveis ao longo das mangas, nos babados e na gola
alta, que naquele momento parecia sufocar sua
garganta. Ela parecia não ter pescoço. Não usava joias,
exceto um brinco pequeno de brilhantes, e apenas em
uma orelha. Seu cabelo estava penteado para trás em
um coque sem adornos que não a favorecia em nada e,
na verdade, dava à sua cabeça a infeliz aparência de um
ovo. Kamran nunca passara muito tempo pensando em
Huda, pois nunca sentira que houvesse muito a
considerar. Não se surpreendeu, entretanto, ao se ver
observando-a agora, pois era seu hábito fazer uma
avaliação completa de seus adversários… E era seguro
dizer que aquela garota irritante o transformara em seu
inimigo.
Ela tinha alguns encantos, porém.
Em outra ocasião, ele notara sua elegante estrutura
óssea, mas agora via também que ela tinha olhos
profundos e escuros sempre lânguidos, como se
estivessem prontos para dormir. Era o tipo de olhar
semicerrado que o lembrava, com uma pontada de
consciência, que a mãe biológica dela era uma cortesã.
— E então? — Sarra insistiu.
Huda encolheu-se.
Foi um gesto mínimo — a maneira como ela se
contraiu, apertando um pouco os olhos — e Kamran não
teria percebido se não a estivesse fitando. Ele franziu a
testa ao testemunhá-lo, pois parecia a reação
involuntária de alguém que se prepara para a violência.
Isso o fez se perguntar se ela havia apanhado quando
criança, e ficou chocado com a faísca de raiva que sentiu
ao cogitar tal ideia. Huda apertou as mãos trêmulas
antes de escondê-las; ele a observou respirar fundo
antes de sorrir, como se estivesse reunindo coragem.
— Eu… Bem, isto é… Não sei se uma pessoa deva ser
reduzida a um único propósito — disse ela —, pois o
coração humano é conhecido por conter uma diversidade
de sentimentos e expressões…
— Ela está aqui pela rainha — Hazan anunciou,
categoricamente. Kamran olhou para ele. — A srta. Huda
é a dama de companhia de Alizeh.
Huda afundou-se na cadeira com alívio, olhando com
gratidão para Hazan.
— Dama de companhia da rainha? — Sarra repetiu,
intrigada. Ela se endireitou, depois apoiou o queixo sobre
as mãos. — É ela quem exige que você use roupas tão
horríveis, querida? Que você diminua sua beleza na
presença dela?
Kamran quase engasgou-se. Como se a beleza
sobrenatural de Alizeh pudesse ser ameaçada por Huda,
que continuava a parecer um ovo envolto na implausível
mistura de sua própria gema. Esforçou-se como nunca
para reprimir uma risada, mas Huda dirigiu-lhe um olhar
tão assassino que era praticamente uma traição contra o
futuro rei. Porque, pelos anjos, Kamran seria nada menos
que o rei.
Homens já tinham sido executados por ofensas
menores.
Ele lhe retribuiu o olhar furioso, brevemente cego por
um desejo ultrajante de jogá-la por cima do ombro, atirá-
la em um barco e soltá-la no mar.
— Uma terrível pena — Sarra continuou. — Sua
aparência está tão ridícula quanto a de um bobo da
corte. Esse tom medonho de amarelo não combina com
sua tez! É quase um crime. Mas… — Ela sorriu. — A
realeza pode ser odiosamente presunçosa. Sei bem
disso.
— Perdoe-me, mas a senhora está completamente
enganada — disse Huda, o rosto pegando fogo. — Este
vestido foi escolhido por minha mãe.
— Sua mãe? — Sarra a encarou. — Pelos céus. A
mulher deve odiar você.
Huda ignorou a observação e falou, com um leve
sorriso:
— Alizeh… Isto é, a rainha Alizeh… — Kamran
estremeceu. — É extremamente gentil. Não consigo
imaginá-la me forçando a usar uma roupa feia. Aliás —
continuou Huda, entusiasmada com a ideia —, ela
mesma é uma costureira excepcional. Há poucos dias eu
a contratei para fazer um vestido muito bonito, mas
infelizmente não houve tempo para terminar o trabalho,
e não tive escolha a não ser usar um dos meus vestidos
mais antigos nesta viagem.
Hazan praguejou baixinho e Kamran ficou tentado a
fazer o mesmo. Sarra permaneceu imóvel, olhando para
Huda como se a garota tivesse enlouquecido.
— Você a contratou? — retomou a mulher. — Você
contratou uma rainha para fazer um vestido para você?
Está maluca, garota? Diga-me que não está falando sério.
Huda olhou em volta, nervosa, e mordeu o lábio.
— Não? — Ao olhar de advertência de Hazan, ela
pigarreou. — N-Não. Certamente que não — ela disse
com calma. — Eu não estava falando sério.
Sarra perdeu então a paciência.
— Você — ladrou, virando-se para Hazan. — Você
parece ser a peça com maior probabilidade de terminar
este quebra-cabeça. Diga-me o que sabe sobre a garota.
— O que eu sei sobre ela não é da sua conta.
Omid engasgou-se; Deen empalideceu. Kamran quase
abriu um sorriso. A rainha-mãe endireitou-se na cadeira,
avaliando Hazan agora como se pudesse devorá-lo.
Lançou um olhar fugaz para os lacaios alinhados na
parede dos fundos, fazendo um gesto com os dedos, e
eles se dispersaram de imediato. Ouviu-se o barulho de
uma porta se fechando antes que ela lhes dirigisse um
sorriso irritado.
— Não é da minha conta? — repetiu, com os olhos
faiscando de fúria. — Não sei nada sobre suas origens,
nada sobre seus pais… A menina será minha nora, e só
recentemente descobri seu título…
— Sua nora? — Kamran a interrompeu, alarmado. Ele
quase se levantou da mesa. Pelos infernos, ele quase
perdeu de vez a cabeça. — Quer dizer… Que é verdade?
Eles irão se casar…
— Não — Hazan disse bruscamente. — Não é verdade.
— Claro que é verdade — rebateu Sarra. — E é por isso
que vocês estão aqui, é claro. Para presenciar as núpcias
como convidados da noiva de meu filho. Para forjar a paz
entre os nossos impérios depois de toda aquela feiura
recente. Para evitar a guerra. — Ela lançou um olhar
carregado para Kamran. — Certamente, não por qualquer
outro motivo.
O coração do príncipe disparou.
— Isso é intolerável — disse, virando-se para Hazan. —
Ela vai se casar com ele? Você sabia disso?
— Ela consentiu em se casar com aquele homem
imundo? — disse Huda, como se fosse passar mal. — Não
pode ser verdade.
— Não. — Omid estava balançando a cabeça. — Alizeh
é uma boa senhora, e ele é um horrível, horrível,
assassino… Ai! — O garoto franziu a testa para Deen. —
Por que me chutou?
— Você não pode insultar o rei em seu próprio palácio,
garoto…
— Kamran, escute-me. Não é verdade, ela ainda não o
aceitou…
— Ainda?! — ele explodiu. — O que você quer dizer
com ela ainda não o aceitou?
Por um momento, Kamran poderia jurar ter ouvido
Sarra rindo; mas, quando a espiou, ela parecia
totalmente composta.
— Cá estava eu pensando ter entendido as motivações
de sua visita… — Ela se dirigiu a ele, com um sorriso
ainda maior. — Mas agora entendo por que de fato veio.
— A senhora espalha mentiras infundadas — protestou
Hazan.
— Mentiras? — Os olhos de Sarra arregalaram-se. —
Pergunte a qualquer criado do palácio o que tem
ocupado seu tempo no momento. Eles lhe dirão que
estão se preparando para a chegada da noiva do rei.
— Não significa que ela vá se casar com ele…
— Então por quê, diga-me, eu a interceptei saindo do
quarto de meu filho ontem à noite?
Ao som dessas palavras, uma dor percorreu o peito de
Kamran, irradiando por sua garganta. Ele sentiu como se
não conseguisse respirar.
— A senhora parece se divertir plantando sementes de
discórdia — disse Hazan, com raiva. — Minha rainha não
está noiva do rei de Tulan. Entrar em um quarto não
prova nada.
— É bastante contundente — disse Huda, mordendo o
lábio. — Por mais que eu odeie admitir. Que outra razão
ela poderia…
— Você se rebaixaria a ponto de presumir o pior sobre
Alizeh com base em uma afirmação sem fundamento de
uma mulher claramente deleitada com nossa destruição?
— Hazan estava furioso. — Onde está o seu bom senso?
— Eu não quis dizer isso… — Huda apressou-se a dizer,
balançando a cabeça. — Na verdade, eu não… Eu só…
Ora, por favor, estou muito cansada…
— Ela está mentindo, Kamran. Perguntei a Alizeh esta
manhã se ela estava noiva do rei tulaniano, e ela me
disse enfaticamente que não. Apesar de ter recebido
uma oferta de casamento, ela ainda está considerando
suas opções…
— Considerando suas opções? Que ela chegue a
considerar a possibilidade de se casar com o homem que
matou meu avô… Que quase me matou… Que
assassinou nossos Profetas…
— E quem é você — Sarra disse a Hazan, com os olhos
endurecidos — para me chamar de mentirosa? Que
propósito você tem aqui, em meio a esta corte real de
desajustados? — Ela ergueu um dedo. — Não, espere,
deixe-me adivinhar. As coisas estão ficando mais claras…
A princípio pensei que você, o mais ousado desses
simplórios…
— Simplórios? — Deen recuou, ofendido. — Estudei na
Academia Real… Minha botica já foi elogiada no Daftar
inúmeras vezes…
— … tinha viajado para cá a serviço do príncipe. O
único companheiro capaz, o único com um cérebro
funcional…
— Se me permite…
— Tomei você por um cavaleiro. Só agora percebo que
sua lealdade é, de fato, para com a garota… E adoraria
saber por quê. Quem é você? — Ela inclinou a cabeça
para Hazan. — Tão ferozmente apaixonado. Tão leal. Não
me diga que também está apaixonado por ela?
Huda respirou fundo.
— Céus — Deen disse, baixinho, depois olhou para
Omid, que balançava a cabeça, horrorizado.
Kamran, que nunca havia considerado tal possibilidade,
ficou visivelmente abalado. Ele se virou devagar para
encarar o amigo. Passou-se um longo e torturante
momento antes de Hazan responder, com um sussurro
letal:
— Como ousa…
Com isso, toda a sala prendeu a respiração, enquanto
Sarra pareceu florescer.
— Ora, acho que gosto de você — declarou. — Suponho
que deixarei sua trupe viver o suficiente para ver a noiva
em toda a sua glória.
— Mas eu pensei… — Huda estava boquiaberta. —
Pensei que a senhora já tivesse decidido nos deixar viver.
Na verdade, pensei que viríamos aqui para tomar café da
manhã.
— Tenho tendência a mudar de ideia — disse Sarra com
desdém, antes de olhar para o príncipe. — Acho que
pode ser interessante ver como todo esse drama
terminará. Eu adoro uma história de amor trágica.
Com uma raiva controlada, Kamran disse:
— Não estou apaixonado por ela.
Hazan virou-se bruscamente em seu assento.
— O quê?
Aquilo vinha incomodando o príncipe: as alfinetadas
casuais, as sugestões grosseiras de que ele havia
percorrido toda aquela distância por uma mulher que não
o queria. O orgulho de Kamran não suportava mais tais
insinuações de fraqueza. Ainda era verdade que ele se
importava com ela; era verdade que ela o comovia
profundamente…
Aliás, como poderia não se comover com ela?
Ela personificava a eminência, atravessava um mundo
cruel com graciosidade e era possuidora de uma beleza
de tirar o fôlego. Alizeh inspirava nele uma riqueza de
sentimentos que ele nunca imaginou que pudesse
experimentar. Se ela retribuísse seu afeto, Kamran
poderia conhecer a verdadeira felicidade. A despeito
disso, nunca imporia suas atenções sobre uma mulher, e
Alizeh o recusara duas vezes, afastando-se dele em
ambas as ocasiões em que implorara para que ela
ficasse. Além disso, suas doces lembranças dela haviam
perdido o brilho sob a mancha das desilusões recentes e,
pior, Kamran nem tinha certeza se podia confiar nela…
Afinal, ela havia arriscado a vida tentando salvar seu
inimigo.
Dadas essas incertezas, Kamran teria de ser um total
idiota para se declarar apaixonado por ela.
Ele não faria isso.
Suas próximas palavras foram dirigidas a Sarra.
— Parece ter a impressão de que vim aqui em uma
missão de amor não correspondido. Isso simplesmente
não é verdade.
— Kamran…
— Só quero deixar claro — ele continuou, erguendo a
mão — que, embora eu a admire muito, não estou
apaixonado por ela.
De alguma forma, a honestidade pareceu irritar Hazan.
— Você me disse que queria se casar com ela!
— O quê? — Huda congelou em um estado de choque
quase cômico. — Queria se casar com ela?
— Sim — disse Kamran a Hazan, ignorando a explosão.
— Acho que ainda quero. Mas cada minuto que passa
parece trazer ainda mais confusão, e cada revelação
torna o caráter dela mais complexo. Estou percebendo
que não tenho a menor ideia de quem ela seja. Foi um
vínculo muito fraco que nos uniu se ela já está
considerando uma aliança com a pessoa responsável por
destruir minha vida.
— Mas… O livro… A inscrição…
— Preciso vê-la de novo — disse o príncipe, balançando
a cabeça. — Muita coisa aconteceu durante o tempo em
que estivemos separados. Não estou mais familiarizado
com minha própria mente. Nem com a dela.
— Não posso acreditar… — Huda ainda estava
piscando. — Eu não tinha ideia de que pretendia torná-la
sua rainha…
Kamran voltou-se brevemente para ela, pois estava
resistindo ao impulso de fazer algo tão mal-educado
quanto revirar os olhos. Temia que, caso se permitisse a
indulgência de revirar os olhos para Huda, eles
acabariam se soltando da cabeça devido ao uso
excessivo.
Ela se virou para Omid.
— Você sabia que ele queria se casar com ela?
Omid abanou a cabeça de forma determinada.
Então, para Deen:
— E você, sabia?
— Certamente, não. — Foi a resposta seca de Deen. —
O príncipe não tem o hábito de me envolver nas
reviravoltas emocionais de seu coração. Embora precise
admitir que essa é uma reviravolta interessante do
destino, considerando a maneira como ela falou dele
uma vez na minha loja.
— Ela falou de mim? — Kamran o encarou
imediatamente. — Quando? O que ela disse?
Sarra riu.
— Ainda assim, ele afirma que não está apaixonado por
ela.
Kamran encarou a mulher.
— A senhora presume conhecer meus sentimentos
melhor do que eu?
— Não foi de todo lisonjeiro, senhor — disse Deen,
confuso. — Nem deveria ter mencionado…
— O que ela disse sobre mim? — Kamran insistiu.
O boticário enrijeceu em sua cadeira, seus pequenos
olhos escuros movendo-se.
— Ela… Bem, ela parecia questionar, senhor, se sua
falta de envolvimento com o povo demonstrava uma
arrogância, ou presunção, em seu caráter…
— Arrogância?
Huda soltou uma risada aguda e horrível antes de
tapar a boca com a mão.
— Sinto muito. — Ela ofegou. — Eu só… Céus, eu já
sabia que a adorava, mas agora…
— É claro que discordo disso com veemência — Deen
logo acrescentou. — Para ser justo com a jovem, não
acredito que ela o conhecesse quando fez esse discurso,
pois falou do senhor como se fosse um desconhecido…
— Eu o avisei… — Foi Hazan quem falou agora. —
Avisei que era um erro ignorar seus deveres públicos.
Cada evento a que faltava, cada cerimônia que evitava…
Eu lhe disse que isso refletiria mal em seu caráter. Era
preciso aparecer de vez em quando para acalmar o
coração e os medos das pessoas comuns…
— Já chega — disse Kamran em tom ameaçador.
Ele nunca se considerara arrogante, e o fato de Alizeh
ter escolhido, em algum momento, defini-lo como tal foi
um golpe inesperado. Kamran não fazia nenhum esforço
intencional para ser presunçoso em seus deveres;
simplesmente abominava as funções ridículas que eram
exigidas da coroa. Detestava a aristocracia e os chefes
pomposos das sete casas; estava cansado dos plebeus
atônitos e desesperados para vê-lo de relance; ele se
ressentia dos espetáculos que o exibiam como se fosse
um cavalo em uma feira. Aliás, nunca entendia o que
queriam dizer. Como um jovem príncipe na linha de
sucessão ao trono, Kamran fora ensinado a se considerar
muito superior e raramente encorajado a olhar para além
da própria gaiola de ouro. Tinha sido somente com a
interferência de Alizeh que ele se vira inspirado a
examinar as estruturas podres que causavam o
sofrimento de tantas pessoas. Ela fora a razão pela qual
ele questionara, pela primeira vez, as ações e
motivações de seu avô, o rei Zaal. Fora também a razão
pela qual questionara, pela primeira vez, os salários e
benefícios insuficientes dos funcionários. Fora a razão
pela qual seus olhos tinham sido abertos para a miséria
das crianças de rua em seu império. A perspectiva dela
— seu olhar atencioso para com a angústia dos outros —
tinha voltado sua perspectiva para os menos
afortunados, inspirando-o a ver não só as fraturas sociais
de seu reino, como também as formas com as quais
poderia enfrentá-las.
No entanto, a triste verdade é que Kamran nunca tinha
pensado em examinar os próprios preconceitos até que
sua vida desmoronasse à sua volta. Nunca lhe ocorrera
que uma crença inabalável em sua própria grandeza
pudesse revelar-se uma fraqueza. Na verdade, nunca lhe
ocorrera perder um único privilégio.
Talvez, pensou ele com angústia, essa fosse a própria
definição de arrogância.
Kamran sufocou um suspiro.
Alizeh conseguira dar-lhe uma lição brutal. Sem alarde,
ela caíra dos céus nas águas tranquilas de sua vida, e ele
se perguntou, inquieto, se sentiria as reverberações de
seu impacto para sempre.
— Quanto mais descubro sobre aquela jovem — disse
Sarra —, mais desejo recebê-la em minha família.
— Então ficará terrivelmente desapontada — disse
Hazan. — O casamento não acontecerá.
— Acontecerá, sim — rebateu Sarra.
— Por que a senhora se importa com quem ela se
casará? — Kamran perguntou, com os olhos escurecidos
ao se virar para ela. — Que interesse tem na união dela
com seu filho?
— Não sei se tenho interesse — ela declarou,
calmamente. — Mas apenas suponho que uma garota
desejada tão ardentemente pelos governantes de dois
reinos poderosos, uma garota capaz de comandar uma
multidão de seus iguais… Bem, ela deve valer de alguma
coisa, e agora estou curiosa para saber o quê. Afinal,
gosto de cuidar dos meus interesses.
— Comandar uma multidão? A que a senhora…
— Ela não é mágica nem nada — disse Omid, confuso.
— Nós simplesmente gostamos muito dela.
— Um endosso retumbante — ironizou Sarra.
— Na verdade… — disse Deen, inclinando-se para a
frente. — O corpo dela tem uma capacidade de cura
natural…
— Estou falando sério — insistiu Omid. — Não há no
mundo pessoa mais gentil. Uma vez tentei matá-la na
rua e, em vez de me entregar aos magistrados, ela me
ofereceu pão. Aposto que a senhora nunca tentou matar
alguém e depois ganhou um pão.
Os lábios de Sarra entreabriram-se, em um espanto
silencioso. Ela piscou rápido, primeiro para Omid, depois
para Kamran e, parecendo um pouco sem fôlego, disse:
— Receio que você tenha levantado mais perguntas do
que respostas, criança.
— Ela pode não ser mágica agora — interrompeu
Hazan —, mas ela terá magia. E, quando ela a possuir, o
mundo inteiro reconhecerá seu poder.
— É mesmo? — Uma centelha de desconforto
perpassou os olhos de Sarra. — E que tipo de magia ela
possuirá?
— Eu não… Ainda não sei.
— Entendo — disse ela, ironicamente. — Parece
formidável.
Hazan dirigiu-lhe um olhar sombrio, mas Sarra virou-se,
estudando o príncipe com um interesse renovado.
— Então o príncipe veio porque busca o suposto poder
dela, não o coração?
— Vim aqui para matar seu filho — declarou Kamran,
categoricamente. — Pouca coisa além disso desperta
meu interesse no momento.
Sarra bateu palmas.
— Nesse caso, você deve ficar até o final da
temporada, no mínimo. Embora, caso consiga matar
Cyrus, imploro que faça com que pareça um acidente,
pois detesto guerras e não desejo derramamento de
sangue entre nossas terras.
Todos os cinco olharam para ela.
Com gentileza, Huda perguntou:
— Está brincando, Majestade?
— A qual parte se refere, querida?
Escolhendo ignorar aquilo, o príncipe olhou para Hazan
antes de anunciar, com grande resignação:
— Ficaremos apenas tempo suficiente para descobrir
onde ela está. Sabe-se lá o que ele fez com ela. — Ele se
sentiu atordoado de repente; exausto. — Pelos infernos,
ela pode nem estar viva.
Sarra enrijeceu, a cor desaparecendo de seu rosto.
— O quê?
— Ah, não diga isso — disse Huda. — Não devemos
perder a esperança…
— Ela se feriu — explicou Omid. — Hoje cedo, senhora.
Sarra agarrou-se à mesa, em busca de apoio.
— Feriu-se? O que quer dizer com isso?
— Perdoe-me — disse Deen. — Mas a senhora não viu o
momento em que ela e Cyrus caíram do penhasco?
Quando estávamos lá fora?
— Seu tolo! — Sarra retrucou, levantando-se tão rápido
que a cadeira caiu com um baque surdo. — Se eu tivesse
visto algo assim, acha que teria perdido meu tempo com
vocês? O que aconteceu com ela?
Hazan, que parecia tão desconcertado diante daquela
erupção quanto Kamran, falou com cautela:
— Ela foi pega por uma flecha perdida.
Sarra emitiu um som gutural e triste.
— Atirada por quem?
— Por que isso é importante?
— É de extrema importância! — ela gritou. — Se Cyrus
tiver algo a ver com isso… — Ela balançou a cabeça. —
Ah, eu vou matá-lo, desta vez vou mesmo matá-lo. Pelos
anjos, eles irão se revoltar! Atearão fogo ao palácio…
— Quem? — Deen perguntou, correndo os olhos ao
redor. — Quem ateará fogo ao palácio?
— Quando estou chateado — disse Omid, solícito —,
gosto de dar um passeio e procurar moedas extras nas
ruas…
Huda apertou a mão do menino.
— Agora não, querido.
— Fui eu — disse Kamran em voz baixa. — Eu atirei
nela por acidente.
— Você. — Sarra endireitou-se com óbvio alívio,
pressionando a mão contra o peito. — Foi você. Sim,
diremos a eles que foi você que fez isso. Seu império
assumirá a culpa. Foi tudo culpa sua…
— Do que a senhora está falando? — questionou
Hazan. — A quem está se referindo?
— Aos jinns! — ela exclamou. — Milhares e milhares
deles! Eu juro que eles matariam todos nós!
— Jinns? — repetiu Kamran, baixinho, atordoado.
Hazan levantou-se devagar da mesa, com o semblante
visivelmente alterado. O velho amigo de Kamran parecia
abalado, os olhos ardendo de sentimento.
— Que jinns? — perguntou.
— Ontem à noite, eles invadiram o palácio — ofegou
Sarra. — Nossa população jinn costuma ser muito gentil,
pois, ao contrário da maioria dos impérios, permitimos
aos jinns certa liberdade para exercerem suas
habilidades sem penalidade. Mas ontem… Ontem eles
foram aterrorizantes e violentos. Ameaçaram incendiar o
palácio. Ameaçaram destruir a cidade. Queriam uma
prova de que ela estava viva, de que estava ilesa…
— Preciso que seja mais clara — disse Hazan a Sarra,
com um leve tremor na voz. — Quer dizer que ela foi
descoberta? Que ela foi revelada publicamente como a
herdeira há muito perdida do reino jinn?
O estômago de Kamran revirou-se.
— Então é isso que ela é?! — Huda exclamou. — Eu
sabia que ela era membro de uma realeza esquecida,
mas ela nunca me contou sua verdadeira identidade,
apenas que estava fugindo para se salvar…
— Não é apenas um título de cortesia? — Deen
perguntou. — Ela é uma verdadeira rainha, então? Todo
esse tempo eu pensei que ela era uma criada… E aquela
governanta horrível, a maneira como foi tratada…
— Criada? — Sarra congelou. — Criada? O que diabos
quer dizer com isso?
— Minha rainha esteve escondida por quase duas
décadas — explicou Hazan. — Ela usou um disfarce
desde a morte prematura de seus pais — ele tocou dois
dedos na testa e depois no ar —, fazendo o que podia
para permanecer viva.
— Como esse dramalhão se desenrola… — Sarra
respirou, levando a mão ao pescoço. — Mas por que ela
precisaria se esconder?
— O trono arduniano está ameaçado por sua existência
há algum tempo — disse Hazan, friamente. — Seus pais,
assim como quase todos os outros que a conheceram na
infância, morreram em uma série de incidentes
misteriosos e calculados. Ela vive escondida desde então.
Kamran sentiu uma onda de vergonha à menção. Foi
Zaal, seu falecido avô, quem caçara Alizeh quando
criança. Os Profetas previram a morte de Zaal, previram
que seu fim seria orquestrado por um inimigo formidável
com gelo nas veias. E Zaal, que rastreava qualquer boato
sobre tal inimigo, localizara-a havia muito tempo e
passou os anos seguintes pensando tê-la assassinado.
Kamran não tinha dificuldade de imaginar que Zaal
também desempenhara um papel na morte de outras
pessoas em sua vida. Havia coisas sobre seu avô que ele
não conseguia conciliar nem tolerar.
— Então ela viveu como snoda? — perguntou Sarra.
Recolhera a cadeira caída e estava se sentando quando
olhou para Huda. — E costureira?
— Sim — ela e Hazan disseram juntos.
— E agora ela é rainha — a mulher disse em voz mais
baixa, com olhos sonhadores. — E tem os soberanos de
dois impérios disputando sua mão. Agora ela… Espere…
— Sarra virou-se bruscamente para o príncipe. — Se o
trono arduniano estava ameaçado por sua existência —
raciocinou ela —, significa que foi seu avô quem
assassinou a família dela?
Todas as cabeças se viraram para encará-lo.
— Teoricamente… — ele confirmou. — Embora não haja
provas.
Sarra riu.
— Você espera se casar com a jovem cuja família foi
inteira massacrada por seu avô?
— Como disse, não é uma certeza…
— Majestade — Hazan interveio, com uma voz urgente
—, temo estarmos desviando o assunto. A senhora pode
confirmar que a identidade dela foi revelada?
Sarra encontrou o rosto de Hazan e, nas profundezas
febris de seus olhos, pareceu encontrar um foco.
— Sim — disse, enfim. — Não sei como ela foi
descoberta. Só sei que vieram buscá-la ontem. Milhares
deles. Gritando por horas. E só se acalmaram depois que
eu implorei para que ela se dirigisse a eles…
— Ela apareceu diante deles? — Hazan perguntou,
empalidecendo. — Ela reconheceu, em voz alta, ser a
rainha deles?
Sarra hesitou.
— Foi a coisa errada a se fazer?
— Não. — Hazan piscou. — Não, se ela sentiu que era a
hora certa, então, é claro… Mas, pelos anjos, agora isso
não tem como ser desfeito. As consequências… — Ele
ergueu a cabeça, parecendo de repente nervoso. — A
senhora deve se preparar. A esta altura, a notícia já deve
ter se espalhado por metade do globo. Jinns virão atrás
dela de todos os cantos do mundo. Provavelmente, já
começaram suas peregrinações…
— O quê? — Sarra disse, aterrorizada. — Quantos
virão?
Hazan balançou a cabeça.
— Não será de uma vez só… Terão de atravessar as
fronteiras em revezamento…
— Quantos? — ela gritou.
— Milhões — Hazan sussurrou.
CATORZE

Cyrus caiu em um poço de escuridão sem fim, em um


sono tão intenso que a princípio nem teve certeza de
estar sonhando. Pareceu despencar de uma grande
altura durante séculos, com faixas de fumaça o
envolvendo como se fossem de aço. Seu peito se
contraía enquanto ele se lançava em direção a um
horrível infinito, experimentando um terror tão opressor
que mal conseguia respirar ao atravessar as rendas da
noite. A grotesca tapeçaria desfez-se apenas para
enredá-lo, tornando seu corpo uma bobina enquanto fios
escuros como alcatrão o prendiam pela cabeça, pelas
pernas, pelo torso. Então, quando parecia que morreria
asfixiado, ele conseguiu libertar os braços e arrancar a
membrana gordurosa do rosto, ofegando freneticamente
antes de despencar no chão com um estalo medonho.
Seu crânio fraturou-se ao atingir a pedra, e a dor
explodiu por todo seu corpo. Cyrus emitiu um som de
angústia quando o esmalte esmagado de seus dentes
encontrou a língua, formando uma areia viscosa
enquanto o sangue se acumulava em sua boca. Era difícil
determinar a extensão total dos danos, mas ele
suspeitava de que suas costelas estavam quebradas e,
ofegando, percebeu que um pulmão havia sido
perfurado. Um dos braços estava quebrado, pois uma
protuberância de osso atravessava a lã escura de seu
suéter, e suas pernas… Suas pernas pareciam erradas de
uma forma que ele não conseguia decifrar.
Mas nada daquilo era novidade.
Por oito meses seus pesadelos seguiam a mesma
sequência, as mesmas regras. Sempre se iniciavam com
a escuridão, que era sempre seguida de agonia. A tortura
imaginada lhe era tão real quanto o ódio de sua mãe, e o
sofrimento continuava ecoando mesmo quando estava
acordado, com uma verossimilhança assombrosa.
Como um animal ferido, Cyrus arrastou seu corpo pelo
chão daquele inferno desconhecido, procurando em vão
por uma saída. O cheiro de enxofre invadia sua cabeça, e
ele cuspiu, com dificuldade, o estranho coquetel de
sangue e areia de sua boca, sobressaltado então pelo
ruído de um molar caindo no chão. Sentiu a mandíbula
quebrada. Um de seus joelhos estava rasgado. Respirava
com dor, a cabeça lutando em busca de oxigênio. De
alguma forma, sabia que estava sonhando; de alguma
forma, sua consciência era capaz de quebrar a quarta
parede enquanto tentava içar seu corpo das profundezas
assombradas de sua imaginação. Saber que estava
sonhando não lhe dava nenhum conforto, pois ele nunca
podia ter certeza de que um pesadelo não seria capaz de
matá-lo.
Por fim, encontrou um obstáculo.
Com a mão que ainda estava inteira, ele agarrou o que
parecia ser uma barreira oleosa, e seus dedos enfiaram-
se na substância espessa e gelatinosa que se recusava a
ceder. Em desespero, ele se livrou da gosma, com o
coração batendo forte e a cabeça latejando. Cyrus
respirava em arquejos frenéticos, com uma tontura
imobilizadora que não lhe deixava outra escolha a não
ser se render. Despencou de costas, com tudo. Estava se
afogando — seus pulmões iam se enchendo de líquido
enquanto ele olhava para a escura turbidez —, quando,
então, a Morte o pegou pelo pescoço, agarrando sua
alma. E, depois…
Ela apareceu como o amanhecer: um brilho lento, que
logo se encheu de cor e quase o cegou. A visão dela era
sempre milagrosa. O corpo de Cyrus sempre tremia de
antecipação.
Desta vez, ele já sabia.
Ele sabia quem ela era; sabia seu nome; sabia, acima
de tudo, que aquelas visões tinham sido projetadas para
arruiná-lo… Aliás, já estava arruinado. Cyrus não podia
mais ceder à doçura dela, nem mesmo ali, na
privacidade de sua mente. Em meio a toda aquela
incoerência, ele lutou para desviar o olhar, recolhendo-se
sobre si como se pudesse apagá-la de sua imaginação.
Foi inútil.
Ela veio até ele como sempre fazia, sem medo.
— Cyrus — sussurrou, vinda das profundezas da
escuridão. — Onde você está?
— Não… — Ofegou, chutando o chão para se afastar
dela. Com os dentes quebrados, mal conseguia formular
palavras, saboreando o sangue em sua boca ao tentar
falar. — Não, por favor, fique longe de mim…
Ela se aproximou e o tocou… Uma simples carícia em
seu braço. E ele gritou, sentindo a onda de euforia
percorrê-lo inteiro, revigorando seu corpo com um alívio
tão intoxicante que quase o fazia chorar.
— Por favor — ele implorou. — Por favor, não faça isso
comigo… Não agora, nem nunca…
— Não tenha medo — ela disse, inclinando-se para
olhá-lo nos olhos. — Só quero ajudá-lo.
— Não… Não…
— Olhe para você — ela sussurrou. — Olhe como está
sofrendo.
— Por favor, não se aproxime de mim — ele implorou,
odiando a rouquidão patética de sua voz. — Não
demonstre compaixão… Deixe-me aqui para morrer…
— Abandonado — ela disse baixinho. — Rejeitado.
Desprezado…
— Não…
— Quanta injustiça.
Ela caiu de joelhos diante dele, e pegou as mãos
ensanguentadas nas suas. Ele gritou, e sua cabeça
pendeu para trás quando a euforia elétrica tomou conta
de seus pulmões, permitindo-lhe respirar fundo pela
primeira vez. Com o peito palpitando e o corpo
tremendo, entregue à sensação, o alívio foi tão
extraordinário que ele se esforçava para lembrar por que
era errado. Ela beijou suas têmporas com uma
delicadeza excruciante, e depois sua testa. Lágrimas
quentes escorreram dos olhos dele, fechados, enquanto
soluços silenciosos chacoalhavam seu corpo.
Ela sempre o curava com o seu toque; seus dedos
eram capazes de remendar ossos e lacerações e de
apagar toda a dor. Ele gritava a cada vez, um sentimento
inexplicável preenchendo seu coração e sua mente. A
proximidade dela o lançava em uma espiral de desejo tão
desesperado que ele mal conseguia se reconhecer. Cyrus
logo se entregou por completo ao toque dela, inclinando-
se sobre suas mãos conforme ela as arrastava devagar
por seu corpo. As sensações eram tão maravilhosamente
torturantes que ele se perguntou, por um momento
delirante, se teria morrido.
— Anjo — ele murmurou. — Meu anjo.
Com cuidado, ela retirou os restos da roupa
ensanguentada dele, jogando-os para longe antes de
plantar um beijo gelado sobre seu peito febril. O corpo
dele sacudiu como se voltasse à vida e, quando voltou a
se dar conta, descobriu, chocado, que estava nu e todo
curado. Seus dentes se recompuseram, o osso do braço
voltara ao lugar. Não havia mais dor. Porém, em sua
ausência, ele se sentia fraco, imundo e
desesperadamente sedento.
Ela puxou o corpo frágil em seus braços e, com
cuidado, posicionou a cabeça dele contra o peito dela,
retirando o cabelo de sua testa e sentindo-o tremer junto
de si.
Ele engoliu em seco repetidas vezes, sentindo sua
garganta áspera como areia, e, quando ele achou que
fosse de fato morrer de sede, ela tocou em seu pescoço.
Aquele pequeno gesto pareceu aplacar de vez sua sede,
e o poder extraordinário dela o deixou maravilhado. De
repente, ela começou a passar um pano limpo e úmido
em seus braços e pernas, removendo a imundície com
uma delicadeza quase inacreditável. Onde ela arranjara a
água, ele não sabia. Queria lhe perguntar, queria
entender, mas estava perdendo a batalha com sua
consciência… Sua mente precisava de descanso. Logo,
ele já estava restaurado por inteiro; seu corpo reluzia sob
o olhar dela como se ela fosse a lua sobre sua
interminável escuridão.
Ela acariciou-lhe o cabelo com dedos parecendo tão
delicados e frios em seu couro cabeludo febril.
— Conte-me o que aconteceu — ela falou, baixinho. —
Quem fez isso com você?
Cyrus lutou para manter os olhos abertos.
— O diabo — disse ele. — Sempre o diabo.
— Descanse — ela sussurrou, beijando-lhe a testa. — E
deixe que eu cuido do diabo. Vou me certificar de que ele
nunca o machuque de novo.
Cyrus exalou audivelmente, aliviando a tensão que
sentira por tanto tempo. Partia seu coração saber que ela
entendia a profundidade de seu sofrimento e que dera
fim à sua dor.
Ninguém nunca se importara com ele assim.
Por fim, seus olhos fecharam-se. Ele foi tomado por
uma onda de tranquilidade, o que lhe permitiu descansar
como nunca conseguiria na ausência dela. Ele estava
seguro ali. Com ela, estava seguro.
Quando abriu os olhos de novo, eles estavam na cama.
Ela estava nua em seus braços, e o toque sedoso de
suas curvas exuberantes suavizava os músculos rijos do
corpo dele. Ela sorria, traçando o formato de sua
clavícula. O coração de Cyrus doeu ao vê-la. Que ela
existisse já era um milagre; que ela se importasse com
ele parecia impossível. O que ele fizera para ganhar o
amor e o carinho de um anjo?
Quando ele expressava esses sentimentos em voz alta,
ela com frequência ria, aceitando sua adoração como um
terno exagero. Ela não tinha ideia de quanto na verdade
ele se continha, de quanto mais ele gostaria de dizer. A
verdade é que ele estava tão encantado por ela que
perdia o fôlego com sua presença. Quando ela cutucou
seu queixo com o nariz, de modo brincalhão, plantando
então um beijo sob sua mandíbula, ele pensou que um
buraco se abriria em seu peito.
— Você está acordado — disse ela, recuando para olhar
para ele.
— Você está aqui — ele sussurrou.
Ela riu disso, depois mordeu o lábio, e seus olhos
estavam tão lindos e alegres que vê-los causava dor
física a ele. Ela notou essa mudança nele, e sua
felicidade diminuiu.
— O que há de errado? — ela perguntou.
— Nada — disse ele, mesmo sentindo a ascensão de
algo febril dentro de si, como se o coração ameaçasse
pular para fora do peito.
Com muito cuidado, ele pegou o rosto dela em suas
mãos e se maravilhou ao senti-la, ao vê-la em toda sua
glória. Tudo nela o encantava: não apenas seus olhos
profundos e límpidos, mas os arcos delicados de suas
sobrancelhas, o formato bem-feito de seu nariz, seus
lábios um pouco carnudos. E o mais extraordinário é que
sua beleza era apenas um veículo, uma manifestação
física forjada para uma alma tão delicada que desafiava
qualquer tentativa de descrição.
— Quando você está aqui — ele disse —, nunca há
nada de errado.
O sorriso seco dela indicava que não acreditava nele,
mas foi piedosa o suficiente para não questionar.
Devagar, ela virou a cabeça, beijando a palma da mão
dele, o que lhe provocou um prazer tão agudo como uma
alfinetada.
— Menino triste — ela murmurou. — O que devo fazer
com você?
Ele fitou sua boca, a linha delicada de sua mandíbula,
seus seios contra o peito dele. A proximidade dela
despertava-lhe uma euforia tão profunda que ele se
sentia zonzo. Ele ergueu o olhar para encontrar os olhos
dela sentindo um desejo que lhe despertava medo.
— O que quiser.
Ela quase riu.
Mas Cyrus estava abalado, observando-a com uma
voracidade que não conseguiria colocar em palavras.
— Você poderia me matar que eu agradeceria.
Ela enrijeceu e recuou.
— Não diga isso — pediu com firmeza. — Não é
engraçado.
— Não estou brincando.
— Cyrus…
— Eu quero tudo, meu anjo. Não apenas a sua alegria,
mas a sua tristeza. Não apenas a sua esperança, mas o
seu medo. Quero sua raiva e seu desdém, sua irritação e
seu desprezo…
Ela exalou um ofego.
— Eu nunca o trataria com desprezo.
— Eu sei — ele disse, passando o polegar pela maçã de
seu rosto, e seus olhos seguiram o gesto. Ele mal
conseguia controlar o tremor de seus dedos e sua voz. —
Mas sei também que fará o que for justo. Não me
desprezaria a menos que eu merecesse e, caso eu seja
tolo o suficiente para despertar sua raiva, também ficarei
honrado em recebê-la.
Ela ficou imóvel, e seus lábios se abriram um pouco de
surpresa.
Pareceu de repente vulnerável ao balançar a cabeça,
os olhos brilhando ao evidenciar um sentimento que
poderia cavar um buraco nele.
— Eu amo você — ela sussurrou.
Como sempre, isso o deixava sem palavras.
Por fim ela sorriu, primeiro um pouco, depois com
malícia, e logo se posicionou por cima dele, sobre seus
quadris. Ele gemeu do fundo da garganta e fechou os
olhos ao sentir o peso dela sobre ele. Em seguida, ela
passou as mãos ao longo de seu peito e ele prendeu a
respiração com um prazer tão agudo que beirava a
agonia.
Ela se inclinou para beijar sua testa, e ele fechou os
olhos. Ela passou a ponta do dedo por seu nariz, e ele
abriu os olhos a tempo de ver que ela estava corada.
— Tão lindo — ela falou, baixinho.
As palavras não causaram nada nele além de angústia.
Ele a observou, e sua mente foi se tornando irracional
conforme ele assimilava a visão do corpo nu dela. Ele
queria morar ali, com o rosto pressionado contra ela,
respirando apenas na sua atmosfera. Ele percorreu as
costas dela com as mãos trêmulas, aterrorizado pela
tempestade de emoções que se formavam dentro dele.
Ele se sentia louco.
Ela se ajustou sobre ele e ele enrijeceu, cerrando os
dentes ao soltar um palavrão. Ela riu, mas ele podia
senti-la, podia sentir o desejo dela se acumulando entre
eles. Ele estava incrivelmente tenso, com medo de se
mover um centímetro que fosse em sua direção, e ela
ofegou, de repente, quando ele a virou sobre a cama,
posicionando seu corpo lânguido debaixo do dele. Ela era
pura suavidade por toda parte, com sua pele sedosa
pressionada contra as bordas duras do corpo dele, e ele
ajeitou-se, tomando cuidado para não a esmagar com
seu peso. Seus lábios ainda estavam entreabertos, seus
olhos escurecidos de desejo ao fitá-lo. Ele sentiu o calor
do olhar dela ao longo de seu corpo, depois o som que
ela fazia quando ele a tocava, roçando sua pele sensível
com uma carícia leve. O gemido baixo dela incendiou
suas veias.
Ele a amava por inteiro: o formato de seus lábios, dos
quadris, as mãos delicadas e a sarda na base de seu
pescoço. Ele beijara aquela sarda milhares de vezes;
passara inúmeras horas observando-a, amando-a,
descobrindo os desejos de seu corpo. Não importava
quantas noites passasse em seus braços. Sempre, na
presença dela, ele se sentia sucumbir, tomado por uma
necessidade muito próxima da loucura.
Ele se dedicou então a beijar seu pescoço, depois
rumou para baixo, passando por suas curvas
pronunciadas, primeiro com as mãos, depois com a boca.
O corpo dela tremeu sob a atenção cuidadosa e
concentrada até que ela gritou, e o som de seu prazer
ilimitado produziu faíscas dentro dele, levando-o à beira
da perda total de controle. Ele pressionou o rosto no
pescoço dela, lutando para se conter enquanto seu
coração batia, violento, contra as costelas.
Ele podia sentir o desespero crescente dela, seu
próprio desejo insaciável. Mal se reconhecia daquela
forma, tão embriagado, que pensava que poderia morrer
se não a provasse por completo.
— Cyrus — ela arfou.
Ela estendeu a mão entre eles, tentou segurá-lo, e ele
emitiu um som estrangulado, tomado demais para se
importar com o tremor de seu corpo.
— Por favor — ela disse sem fôlego.
Seu coração ainda batia em ritmo perigoso, e sua
própria aflição física abafava a capacidade de formar
pensamentos coerentes. Ainda assim, ele se forçou a se
mover lentamente, passando as mãos pelas pernas dela
com uma reverência silenciosa, deixando beijos ao longo
de suas panturrilhas e tornozelos enquanto gentilmente
as afastava. Ele deslizou as mãos sob as coxas e depois
colocou as pernas dela sobre seus ombros.
A visão dela assim, vulnerável e trêmula… Pronta para
ele…
Seus olhos estavam radiantes, seus seios se erguiam
enquanto ela lutava para respirar. Ela era tão linda que
ele mal suportava olhar para ela.
— Cyrus…
— Ainda não — disse ele.
Ele abaixou a cabeça para o calor dela, e ela quase
gritou, agarrando os lençóis enquanto ele a saboreava,
seus gritos suaves rasgando o silêncio repetidamente.
Ela o tinha escolhido, confiava nele o bastante para que
ele a conhecesse assim, para proteger e dar prazer para
seu coração e seu corpo, e essa ideia o enchia de um
êxtase ofuscante. Ele adorava vê-la desmoronar, adorava
o modo como ela se entregava a ele por inteiro. Ele
adorava poder senti-la entregue, quase enlouquecida…
— Eu quero você — disse ela, estendendo a mão para
ele. — Por favor, eu quero você agora, quero sentir
você…
Ele recuou com um cuidado torturante, dando um beijo
final em seu ventre aquecido enquanto se afastava, sua
voracidade só se intensificando enquanto seus olhos
devoravam as linhas sensuais de seu corpo flexível.
Ele a tocou onde a havia provado, sentiu a evidência
de seu desejo e gemeu, enterrando o rosto em seu
ombro.
Ela tinha muito poder sobre ele. Era assustador o modo
como ela possuía sua alma. Quando ele enfim conseguiu
encontrar o olhar dela, seu coração pareceu detonar no
peito. E então os olhos dela, pesados de desejo,
brilharam brevemente com diversão.
— Você está… — Ela mordeu o lábio, lutando contra um
sorriso. — Cyrus, você está evitando me olhar?
Ele respondeu sem fôlego.
— Sim.
— Por quê? — Seu sorriso se alargou.
— Você já sabe por quê.
Ela riu abertamente desta vez, e ele inclinou a cabeça
para o corpo dela e a beijou, em todos os lugares, até
que seus olhos já não estivessem achando mais graça.
Sua respiração ficou rápida e superficial à medida que
seu desespero atingia o pico, e ela estendeu a mão para
o ponto em que ele mais precisava, a sensação de seu
toque oferecendo um alívio que só multiplicava a
angústia. De repente — com urgência — ela disse seu
nome, e ele ergueu os olhos, imobilizado, preso no fogo
cruzado.
— Sabe o que eu mais amo em você? — ela sussurrou.
Ela ainda o tocava, e ele foi embalado por um leve
tremor.
— Não — murmurou.
Ele nunca conseguia acreditar que aquilo estava
acontecendo. Que ela olharia para ele assim, que o
desejaria desta maneira. Ela era a rara combinação de
coração e beleza que só era encontrada em sonhos. E
aquilo… Ele piscou, depois hesitou, parecendo tomado
por uma confusão mental… Aquilo…
Sem aviso, sua cabeça se anuviou; seus pulmões se
contraíram no peito. Ele sentiu como se estivesse caindo
para a frente, caindo para fora de seu corpo. Não
entendia, não conseguia organizar seus pensamentos…
Do que estava se lembrando? Ofegante agora,
recordou…
Isto era um sonho.
Sim, um sonho, mas ele sabia disso, não sabia? Ele
sabia que estava sonhando, sabia que ela era uma
invenção de sua imaginação, uma manipulação de sua
mente, uma corrupção instalada em sua cabeça…
— Não — arquejou. — Não…
Ele ia vomitar. Sua perna gritava de dor, sua mão ardia,
sua cabeça latejava, ele não conseguia respirar, ele não
conseguia respirar e ele sabia… É claro que ele sabia que
ela não era real, sabia que ela não o amava de verdade,
que ela nunca… nunca…
— Cyrus…
— não — ele gritou, afastando-se dela. — Não… não…
— Cyrus… — Ela estendeu a mão para ele, alarmada,
mas ele a afastou, seus membros emaranhados nas
roupas de cama.
— Não… Por favor… — Ele baixou a cabeça entre as
mãos. — Oh, Deus… de novo não… não posso, não vou
conseguir sobreviver a isso…
— O que está acontecendo? — ela disse, em pânico. —
O que há de errado…?
— Não… não… não! — ele gritou, caindo da cama. —
Isto não é real, não é real… Acorde, seu idiota! Acorde,
acorde, acorde, acorde!...
QUINZE

— Milhões — Hazan repetiu, ele mesmo perplexo.


Kamran processou essa revelação como se fosse algo
distante, ao mesmo tempo impressionado e horrorizado.
Seu avô talvez não estivesse certo sobre Alizeh — não
exatamente —, mas também não estava de todo errado.
Como um vento frio, ele sentiu a voz de Zaal. As
palavras dos últimos dias do homem foram ganhando
vida em sua mente…
Se não acha que há outros à procura dela neste
momento, você não está prestando atenção o suficiente
ao que se passa. Há comunidades de jinns que
continuam a perturbar nosso império. Entre eles, há
muitos iludidos o suficiente para pensar que a
ressurreição de um mundo antigo é o futuro.
Kamran engoliu em seco.
Durante todo esse tempo, ele considerara o título real
dela algo simbólico; nunca pensara que ela seria de fato
reconhecida como uma rainha. Mas agora — agora que
milhares de pessoas tinham invadido o castelo para vê-
la, e outros milhões poderiam em breve jurar lealdade a
ela…
Ele percebeu, em choque, que não conhecia Alizeh.
Tinha se apaixonado pela miragem de uma garota. Uma
versão dela que nunca existira de verdade.
Sarra estava atordoada e sem palavras, e Kamran
sentia o mesmo.
— Quantos milhões? — Deen perguntou, piscando.
— Eu não sei — disse Hazan sem perder a calma. — É
apenas uma estimativa. Existem muito poucos impérios
que vivem em paz com o meu povo. Muitos jinns vivem e
morrem sem documentos, forçados a viver em campos
de prisioneiros. Outros continuam a viver escondidos.
Somos um povo sem nação, expulsos da própria terra,
que foi roubada pelos reis de Argila. Há muito tempo
esperamos pela herdeira de nosso império, aquela que
irá proteger e unificar nosso povo. Não tenho como saber
com certeza quantos virão — ele balançou a cabeça —,
mas, acreditem, aqueles que puderem, virão. A pé, de
caravana, de navio ou de dragão. Se tiverem que se
arrastar a cada centímetro por terra para chegar a ela,
eles o farão.
Sarra emitiu um som frenético, a pele agora exangue
de medo. Ela murmurou palavras entrecortadas e
bobagens, algo sobre como a cidade não tinha sido feita
para acomodar tantas pessoas ao mesmo tempo, que
não havia banheiros suficientes, “e onde elas irão
dormir?”.
Omid começou a chorar.
— Eu não queria a machucar — deixou escapar com
um arquejo. — Honestamente, eu nunca a teria matado…
Eu só estava… Estava com tanta fome que não
conseguia pensar com clareza…
A srta. Huda aproximou a cadeira em que estava o
menino e puxou-o contra si, alisando seu cabelo e
acalmando-o enquanto ele chorava.
— Está tudo bem, querido — sussurrou. — Ela já o
perdoou, não foi?
— Ela demonstrou misericórdia, senhorita… — Ele
ergueu a cabeça, os olhos injetados enquanto fungava.
— Mas eu não merecia…
— Controle-se — Deen sussurrou, parecendo
desconfortável. — Você está passando vergonha.
— Não seja tão severo…
Kamran observou essa estranha cena com uma
distância fria; ele se sentiu congelado em seu assento,
surpreso com seu próprio medo, o pulso acelerado,
quando de repente foi atingido por outro golpe de
memória.
Seu avô tentara avisá-lo.
Se a garota reivindicasse seu lugar como a rainha de
seu povo, é possível, mesmo com os limites dos Tratados
de Fogo, que uma raça inteira lhe jurasse aliança com
base apenas em uma antiga lealdade. Os Tratados
seriam esquecidos tão rápido quanto o acender de uma
tocha. Os jinns de Ardunia formariam um exército; o
restante dos civis se revoltaria. Um levante iria causar
estragos por toda a nação. A paz e a segurança seriam
arruinadas por meses, anos, até, na busca de um sonho
impossível.
Quando conhecera Alizeh, ela era apenas uma humilde
snoda, esfregando o chão do casarão de sua tia e
apanhando de uma governanta cruel. Era vulnerável e
franzina. Kamran não conseguia imaginá-la como algo
além da criada impotente que de início parecera ser. Mas
descobriu, mais tarde, quando ela conseguiu derrotar os
agressores que seu avô havia enviado para matá-la, que
ela era perfeitamente capaz de se defender. Ainda assim,
não possuía contatos importantes, nem riqueza, nem
tinha interesse em ser reconhecida. Ela vivia nas
sombras.
Que alguém na posição dela tivesse recusado o que ele
lhe oferecera — seu poder, sua riqueza, sua coroa — e
que ela continuasse a se recusar mesmo depois de eles
terem estabelecido uma clara ligação física, cujas brasas
ainda queimavam dentro dele…
Não fazia sentido.
Não existe ponte entre as nossas vidas, ela dissera.
Nenhum caminho que conecte os nossos mundos.
Ele fora um tolo.
Em questão de dias, ela encontrara um reino para
coroá-la, um povo para apoiá-la. Sua ascensão já havia
inspirado a morte do avô dele e devastado sua própria
vida. Enquanto ele era destruído, ela se fortalecia, e
agora também abalaria as fundações de seu império.
O que aconteceria ao seu reino, aos seus exércitos, se
os jinns ardunianos jurassem lealdade a uma soberana
estrangeira?
Ele deslizou a mão pela boca. Seriam arruinados.
Tudo isso passou por sua mente em instantes, e foi
arrastado de volta ao presente pelo som de um gemido
terrível. Sarra pôs-se a andar.
— Que os céus nos ajudem! — gritou. — Se eles
descobrirem que ela foi ferida…
— Sim… — Hazan estava bastante sóbrio. — É de fato
um problema.
— E vocês disseram nem saber onde ela está? Ela
partiu ferida? Se ela morrer…
— Ela não morrerá — interrompeu Hazan, com dureza.
— Cyrus a mandou embora nas costas de um dragão —
disse Kamran. — O rei é o único que sabe para onde ela
foi e, como ele se encontra indisposto no momento, não
temos como saber o que ele fez com ela.
Com isso, Sarra teve um lampejo de seu nervosismo,
sua raiva.
— Então ela não caiu de um penhasco e desapareceu.
Meu filho mandou embora a garota ferida.
Kamran semicerrou os olhos ao ouvir o tom dela.
— De fato.
— E ainda assim vocês dizem que não tem como saber
o que ele fez com ela? A sua imaginação é mesmo tão
fraca?
— Eu não sou um leitor de mentes, senhora.
— E você? — ela se dirigiu a Hazan. — Não consegue
imaginar nenhuma explicação para as ações dele?
Hazan olhou para ela com mais preocupação.
— Acha que ele usou magia das sombras nela? Ou que
talvez a tenha envenenado?
Sarra pareceu quase desapontada com Hazan,
balançando a cabeça enquanto dizia:
— Todas as suas teorias presumem que ele quer
machucá-la. Você fez uma péssima avaliação do caráter
do meu filho.
— Discordo — respondeu Hazan, sua preocupação
substituída por raiva. — O rei Cyrus só provou ser
violento, agressivo, assassino e manipulador. Em uma
única noite, exterminou o rei e todos os Profetas de
Ardunia, sem mencionar a destruição que causou a um
dos palácios mais antigos da história, ao permitir que um
dragão…
— Sim, está certo — disse ela, com um suspiro. —
Suponho que não esteja errado em tirar tais conclusões.
Confesso que a princípio pensei que ele pretendia
machucar a garota também. Mas não acredito mais que
ele causaria sofrimento a ela. Pelo menos não de
propósito.
— O que a senhora quer dizer? — Kamran retrucou. —
Como pode ter certeza?
Sarra abriu a boca para responder, mas depois pareceu
pensar melhor, dizendo apenas:
— Não percebeu o jeito com que ele olha para ela?
— Não — ele rebateu, seu humor piorando. — Não
percebi.
Ela lhe dirigiu um sorriso fraco.
— Bem. Imagino que verá por si mesmo em breve.
— O que quer dizer com isso?
Sarra olhou então para Kamran como se ele não fosse
o herdeiro iminente do maior império do planeta, mas
uma criança bobinha.
— Eu apostaria minha vida — ela disse, voltando os
olhos para Hazan — que ele apelou a um de seus
malditos dragões para que a ajudasse. Se a garota
estava gravemente ferida, só há um lugar para onde
ele…
— Os Profetas… — disse Hazan.
— Claro.
— É mesmo? — A srta. Huda franziu a testa. — Acha
que ele estava tentando ajudá-la?
Omid esfregou as bochechas manchadas de lágrimas.
— Eu estava me perguntando, senhorita, por que ele a
abraçava tanto. Pareciam abraços demais para pessoas
que nem se gostam.
— Ele a abraçou? — Os olhos da srta. Huda se
arregalaram.
— Ele a estava segurando — corrigiu Deen. —
Provavelmente para evitar que ela caísse do dragão.
Embora… — Ele hesitou. — Imagino que, se quisesse
matá-la, poderia simplesmente tê-la deixado cair no
oceano.
Kamran sentiu-se cada vez mais irritado, sem
conseguir articular o porquê. Não percebeu que o que
sentia era um ciúme distorcido. Sua mente se recusava a
admitir que fora ele quem a machucara e que Cyrus
poderia tê-la salvado. Foi com puro veneno que disse:
— Se a intenção era ajudá-la, por que mandá-la
embora sozinha? Por que não a entregar pessoalmente
aos Profetas?
Omid fez uma careta:
— E por que ele a pediu em casamento, se tudo o que
ele queria era matá-la?
— Bem, eu não sei — disse Huda —, mas meus pais
são casados há quase trinta anos, e minha mãe fica o
tempo todo falando sobre como gostaria de matar meu
pai, e às vezes me preocupo, porque ele não parece levá-
la a sério…
Kamran inclinou-se para a frente, insistindo:
— Isso não faz sentido. O rei também foi ferido… Se
eles tivessem ido juntos aos Profetas, ele poderia ter
recebido cuidados para seus ferimentos. Faz mais sentido
que ele a tenha amaldiçoado, ligando-a ao dragão antes
de enviá-la para o desconhecido, tudo para que nunca a
encontremos…
— Ele não tem permissão para colocar os pés no
templo — disse Sarra, com palavras banhadas em
condescendência. — Cyrus está proibido até de andar
pelo terreno sagrado dos Profetas. Desde que ele
assassinou meu marido, sua entrada está vetada.
Kamran enrijeceu.
Foi a maneira casual com que ela descrevia algo tão
horrível que fez um breve silêncio mortal pairar sobre a
sala. Era o lembrete de que todos precisavam: a verdade
sobre quem o rei Cyrus de fato era, de como sua alma
era corrompida. Kamran não conseguia acreditar que
Alizeh consideraria a possibilidade de se casar com um
criminoso desses. Se ela estava tão desesperada por
uma coroa, por que não aceitara a dele? Ele
praticamente havia se oferecido a ela… E, ainda assim,
ela escolhera se aliar àquele monstro?
Mesmo naquele momento, mesmo com a cabeça e o
coração confusos para além da razão, Kamran sentiu
uma emoção dolorosa ao pensar em apelar para ela,
convencê-la a unir forças com ele. Na verdade, quanto
mais sabia sobre a influência dela, mais percebia que um
entendimento entre eles daria fim a seus receios de um
levante no império arduniano; se uma rainha Jinn e um
rei Argila pudessem se unir pacificamente, talvez o povo
também pudesse viver em harmonia.
A ideia criou raízes dentro dele.
Seu interesse por ela não seria mais considerado
impraticável ou sentimental; casar-se com ela seria
apenas a proteção perfeita contra a rebelião popular. Ele
tinha certeza de que até seu avô concordaria, pois não
seria um casamento nascido de um desejo instintivo,
mas uma aliança feita pelo bem do povo.
Algo parecido com alívio começou a se espalhar por
seu peito.
Talvez fosse isso que os Profetas o tinham orientado a
fazer.Talvez, provar seu valor como rei estivesse
vinculado à busca por sua rainha. Talvez a magia em seu
corpo tivesse se transformado porque ele não deveria ser
o único governante de Ardunia.
Ele sentiu então uma clareza purificadora, uma
sensação de tranquilidade livrando-se de semanas de
tensão. Kamran estava perdido e confuso,
experimentando um emaranhado de dor, um receio pelas
maquinações de Zahhak e uma pressão pelas exigências
dos Profetas.
Mas, enfim, tinha entendido.
Sua presença ali, naquele maldito império, tornou-se
de súbito tolerável. Ele encontraria uma maneira de
permanecer. Precisava conversar com Alizeh na primeira
oportunidade que tivesse e deixar claras suas intenções.
Afinal, ele nunca lhe fizera nenhum pedido formal. Por
certo, o pedido a atrairia agora; ela veria as vantagens
de uma união daquelas e seria sensata o suficiente para
abandonar ao seu lado aquela paisagem infernal,
juntando-se a ele rumo a um futuro em que ambos
pudessem ter exatamente o que queriam.
— Mas… Ele é o rei — disse Huda, quebrando o silêncio
e o devaneio de Kamran. — Os Profetas são obrigados a
servir o legítimo soberano. — Ela olhou em volta. — Não
são?
— Eles fazem o que querem.
Kamran sentiu um arrepio penetrar na sala, seus
instintos despertando como uma onda de desprezo por
aquela voz. Aquele rosto.
Omid gritou baixinho.
O rei Cyrus posicionou-se em frente à porta fechada.
Sua aparência abatida e ensanguentada não prejudicava
em nada o brilho azul de seus olhos. Como ele havia se
recuperado com tanta rapidez, Kamran não conseguia
nem imaginar; talvez tivesse algo a ver com o diabo. A
magia das sombras corria pelas veias daquele ser
perverso. Talvez ele não pudesse ser morto enquanto
fosse aliado de Iblees. Talvez fosse esse o acordo entre
eles.
— O que quer que esteja pensando — disse Cyrus,
calmamente —, está equivocado. Agora saia da minha
casa antes que eu o mate com minhas próprias mãos.
DEZESSEIS

— Isso não é maneira de falar com nossos convidados —


disse sua mãe, perdendo a compostura. Ela olhava de
um lado para o outro, revezando-se entre ele e o príncipe
desagradável, e pôs-se a caminhar depressa para o outro
lado da sala, para longe dele.
Como se ele fosse machucá-la.
Não importava quanto ela tentasse disfarçar, sempre
ficava claro para Cyrus que sua mãe tinha medo dele.
Medo do próprio filho. Quando a consciência disso não
estava partindo seu coração ao meio, ele tinha vontade
de bater a cabeça contra a parede. Entendia os motivos
dela, é claro, mas essa compreensão não diminuía a dor.
Não era tarefa fácil separar os sentimentos, viver todos
os dias sabendo que sua mãe o queria morto.
— Eles vieram para o casamento — ela falou. — Você
deve convidá-los para ficar pelo menos para o Festival
Wintrose.
— Vocês celebram Wintrose aqui também? — Deen
animou-se. — Quando eu era menino, era minha época
favorita do ano.
— Eles não vão ficar — esbravejou Cyrus. — Não
haverá festival…
— Quando meus pais eram vivos, dormíamos ao ar
livre, entre as rosas — acrescentou Omid, sonhador. — As
pétalas formavam pilhas de metros de altura! Era como o
aroma do paraíso.
— Oh, sim! — ajuntou Huda. — Minhas irmãs e eu
viajávamos aos campos de rosas na terceira semana do
festival, quando as flores ficam ainda mais perfumadas.
Roubávamos uma cesta da mamãe, e elas eram legais
comigo…
— O que há de errado com vocês? — perguntou Cyrus,
com raiva. Seu peito estava arfando. Suas mãos
tremiam. — Fora daqui!
— Perdoe-me. — Ouviu-se uma voz solene. — Mas
deixarei estas instalações apenas sob duas condições:
com minha rainha ou com sua cabeça, e nem um minuto
antes.
O pronunciamento descarado veio do jovem ao lado do
príncipe, que se levantou para lançar um olhar
ameaçador para Cyrus. Em resposta, o rei semicerrou os
olhos.
Aquele, claro, era Hazan. O que Alizeh considerava um
amigo. Cyrus dedicou um instante para olhar com
atenção o visitante indesejado, percebendo agora que se
tratava de um personagem mais importante do que
imaginara. O rosto sardento; o trio de adagas de cristal
penduradas em um cinto em sua cintura. Sua postura
também era interessante: ele fingia simplicidade, mas
Cyrus não se deixou enganar. Era como uma pantera à
espreita; se provocado, o jovem certamente tentaria
matá-lo.
— Direto ao ponto: como é que o senhor já se
recuperou? — Hazan continuou. — Estava praticamente
morto quando eu o trouxe para dentro, e isso foi somente
há pouco mais de uma hora.
— E nos prometeram um café da manhã — acrescentou
a criança.
— Sim. — Cyrus engoliu em seco, odiando a lembrança
de ter sido levado ao palácio por um daqueles imbecis. —
Ouvi dizer que lhe devo minha gratidão.
Hazan o encarou.
Cyrus o encarou de volta.
O jinn então cruzou os braços.
— Não vai me agradecer, então?
— Não.
Hazan não riu, embora uma sombra de sorriso tenha
cruzado seus lábios. Sem alarde, Cyrus disse:
— Agora saia da minha vista.
— Não sem minha rainha.
— Ela não lhe deve nada — respondeu Cyrus. — E você
não é bem-vindo aqui.
— Sua criatura vil. — O príncipe levantou-se devagar.
— Você a manteria aqui contra a vontade dela?
Um lampejo de diversão animou por um momento os
olhos de Cyrus, e ele se virou, com prazer, para encarar o
idiota.
— Ela não está aqui contra sua vontade. Ela escolheu
ficar.
— Mentira! — Kamran gritou.
— Acredite no que quiser — disse Cyrus, sentindo de
repente o peito palpitar enquanto falava. Procurou a
parede atrás de si e, encontrando apoio, recostou-se.
Estava lutando para permanecer acordado, odiando a
fraqueza de seus membros, a emoção torturada que lhe
revirava as entranhas. Como se fossem eletrocussões
intermitentes, ele experimentava lampejos das
sensações de seu pesadelo: os sons que ela fazia; a visão
dela limpando o corpo dele; o gosto dela… Deus, o gosto
dela…
Era surpreendente que ele estivesse de pé, vivo e
desperto. Nunca fora capaz de acordar a si mesmo de
seus pesadelos. Se soubesse que seria possível, poderia
ter tentado antes. O fato de ter acordado em sua cama,
com um sobressalto violento — a visão de tantos rostos
fervilhando ao seu redor, como fantasmas amorfos —,
era nada menos que um milagre.
Era ao mesmo tempo comovente e desconcertante ver
membros preocupados de sua equipe reunidos ao seu
redor e, embora o rei estivesse perplexo com as atenções
recebidas, agradeceu-lhes por seu cuidado e se levantou,
com o corpo ainda instável. Houve um breve clamor ao
insistirem que ele voltasse para a cama; mas, quando ele
recusou — mentindo que sua saúde estava em perfeitas
condições —, eles tomaram aquilo como uma permissão
para bombardeá-lo com perguntas. Queriam saber o que
se passara com ele, o que estava acontecendo no
palácio, quem eram os convidados e…
— Tudo não passou de um espetáculo, senhor? Foi uma
manhã tão estranha…
— … tentou pegar uma flecha com a mão, senhor?
Posso ter a ousadia de perguntar por quê?
— Certa vez ouvi falar de um rei que tentou pegar uma
adaga entre os dentes! Ele nunca mais disse uma
palavra depois disso…
— É uma pena que tenha se machucado, senhor, um
terrível azar…
— … durante toda a minha vida. Nunca sonhei que
veria Simorgh…
— Céus, o príncipe deles é bem bonito, não é? Vai dar
trabalho evitar que as criadas desmaiem ao vê-lo…
— Devemos começar a preparar os quartos, senhor?
— O cozinheiro vai querer saber se…
— Que espetáculo foi aquele! Estamos muito gratos!
— … vão disputar pela chance de servi-lo, com certeza!
— Os filhotes de Simorgh também! Ainda estou
arrepiado, senhor, olhe…
— Se me permite… Para onde foi sua noiva, senhor?
Ela saiu ainda mais cedo do que os criados esta manhã…
— É verdade que eles vieram para negociações de paz?
Será que as coisas serão diferentes…
— … então eles simplesmente voaram para longe! Os
cinco, como um raio de luz!
— Senhor?
— Senhor?
— Aonde está indo, senhor?
— Oh, o senhor não deveria…
Foi um grande esforço driblar de maneira educada
tantas perguntas, ao mesmo tempo que sintetizava
algumas revelações pertinentes. Como a indigna
comitiva de Kamran conseguira a lendária Simorgh e sua
família como meio de transporte era de fato algo
fabuloso. E saber disso tinha um lado bom: era
reconfortante saber que apenas um milagre fora capaz
de permitir que os ardunianos violassem suas fronteiras.
Cyrus agradeceu mais uma vez aos criados,
prometendo respostas antes do final do dia. Sua mão e
perna machucadas, ele notou, haviam sido lavadas e
recebido ataduras; a pomada fria sob as bandagens lhe
oferecia um alívio considerável. Ele pretendia tratar os
ferimentos com magia; mas, quando o mordomo lhe
informou que sua mãe estava tomando café da manhã
com os estrangeiros na sala de jantar, ele soube que
seus ferimentos teriam de esperar.
Agora Cyrus sentia-se cedendo um pouco mais contra a
parede forrada com um tecido de ouro e seda de lótus,
um presente recebido havia quase cem anos do império
Shon. Ele se sentia como se seu cérebro estivesse
balançando dentro do crânio e como se estivesse
sobrevivendo a uma sucessão de pequenos ataques
cardíacos.
— Se não saírem daqui por vontade própria — disse
ele, com dificuldade —, mandarei remover todos vocês à
força. Caso algum se recuse, será jogado nas masmorras
para ser executado logo em seguida. Terá, no entanto,
permissão para escolher seu método preferido de
execução…
— Você é covarde a ponto de deixar minha morte para
os outros? — interrompeu o príncipe. — Tem medo de
lutar comigo?
A srta. Huda engasgou-se. Os olhos de Sarra
arregalaram-se.
Cyrus não teve o bom senso. Sabia que não deveria,
mas acabou mordendo aquela isca boba, empurrando-se
furiosamente para longe da parede enquanto uma
explosão de adrenalina turvava sua capacidade de
raciocínio.
— Não, você está certo — disse Cyrus, tocando a
bainha ainda pendurada na cintura. — Seria melhor
matá-lo agora, não é? Melhor fazer o que deveria ter
feito naquela noite e poupar este mundo de seu peso
inútil e patético.
Outra onda de lembranças, de sensações… Alizeh
rindo, sorrindo para ele… Cyrus se encolheu, erguendo
os olhos a tempo de ver Kamran se afastar pulando de
seu lugar. Hazan se esticou para segurar o príncipe e o
conteve pelo peito com uma força dolorosa, mas Kamran
o afastou, respirando com dificuldade. Olhou de modo
furioso para Cyrus.
— Que motivação alega para tal ataque flagrante? Age
como se já nos conhecêssemos, como se tivesse algum
motivo para nutrir tanto ódio por mim, quando foi você
quem assassinou meu avô…
— Eu tenho meus motivos! — explodiu Cyrus.
Kamran tentou atacá-lo de novo e, mais uma vez,
Hazan agarrou o príncipe, puxando-o para trás.
— Você é incapaz de pensar por conta própria —
Kamran praticamente rugiu. — Não passa de um joguete
do diabo…
— Não preciso de um motivo para detestar você —
disse Cyrus, esforçando-se para conter a raiva. — Nem
preciso de um motivo para matá-lo, pois já é provocação
suficiente que você exista. Mesmo assim, basta
relembrar os acontecimentos desta manhã para reavivar
as chamas do meu desprezo…
— Você me negaria o direito à vingança? Depois de
tudo que você…
— Eu falo de suas ações em relação a Alizeh! — Cyrus
gritou. — Refiro-me à sua absoluta arrogância! Você
espera ser o rei do maior império do planeta, responsável
pelas tantas necessidades de seus muitos cidadãos, e
ainda assim exibe de forma imperiosa um cérebro que só
funciona a serviço de si mesmo, colocando a vida de
súditos inocentes em risco, tudo para saciar a sede da
sua vingança. Você só precisava perguntar se eu o
enfrentaria em um duelo, e eu teria prontamente
aceitado…
— E quem é você — trovejou Kamran —, além de um
rei assassino e bárbaro, para me ensinar a cuidar da vida
de inocentes?
Cyrus parou, a fúria já bem conhecida queimando-o por
dentro.
— O rei Zaal não era inocente.
Kamran começou a falar antes de refletir, com a
mandíbula visivelmente cerrada enquanto lançava um
olhar furtivo para o ex-menino de rua. Omid permanecia
imóvel em seu assento, com seus grandes olhos
arregalados de medo. Quantos jovens órfãos o falecido
rei assassinara para manter-se vivo? Quantos crânios
quebrara para obter a matéria cerebral que havia dentro
deles? Quantos anos aquele homem passara
alimentando as serpentes em seus ombros em troca de
mais tempo para governar aquela nação decadente?
Matar Zaal fora a única tarefa que Cyrus tinha realizado
com prazer.
— Você admirava muito seu avô — Cyrus disse, enfim,
sem se exaltar —, apesar dos horrores de sua alma. Se
recebeu orientações deste homem, sem dúvida poderá
ouvir um conselho meu. — Cyrus olhou-o nos olhos. —
Seu comportamento estúpido e hipócrita é incompatível
com o trono. Se você não aprender a se colocar de lado e
servir aos outros, nunca merecerá sua coroa.
Kamran recuou ao ouvir aquilo, e a raiva em seus olhos
se dissolveu em algo parecido com choque. Ele olhou
rapidamente para Hazan antes de dizer com urgência:
— Por que você diz isso?
Cyrus franziu a testa.
— Achei que tinha deixado meus motivos claros.
— Quem lhe disse para falar isso? — insistiu o príncipe.
— O que você sabe sobre minha coroa…
— Kamran. — Hazan balançou a cabeça bruscamente.
O rei do Sul encarou os dois, vendo os olhos selvagens
do príncipe e o aviso tácito de Hazan, mas não entendeu.
Kamran parecia perturbado, com uma confusão genuína
desmascarada em sua expressão, quando por fim se
virou para Cyrus e disse:
— Por que você não me matou? Na noite do baile, teve
todas as oportunidades de se livrar de mim. Por que se
deixar vulnerável às consequências de suas ações e à
retribuição que enfrentaria no futuro?
Em resposta, Cyrus apenas se virou.
De tempos em tempos, voltava a ter vislumbres de
Alizeh; e a resposta verdadeira à pergunta do príncipe
estava enredada naquela fraqueza. Pior ainda, as
acusações anteriores do príncipe não eram infundadas:
Cyrus tinha motivos para não gostar do príncipe, sim,
mas havia pouca lógica para apoiar o seu ódio
desenfreado pelo arduniano.
Na verdade, as informações que ele reunira sobre
Kamran eram, em geral, favoráveis; segundo todos os
relatos, tratava-se de um membro da realeza decente e
um soldado formidável. Além disso, quando Cyrus
encontrou o jovem pela primeira vez no baile, não sentiu
nenhuma animosidade em relação a ele. Foi só quando
percebeu que Kamran havia conquistado o afeto de
Alizeh — que eles se conheciam com alguma intimidade,
que ela se importava com ele o suficiente para protegê-
lo…
Foi só então que passou a odiar o príncipe.
De alguma forma, não importava que Alizeh não
passasse de uma personagem de sua imaginação. Não
importava que nunca tivessem se conhecido fora das
ilusões de sua mente. Não importava que ela não lhe
devesse nada.
Ele a amava.
Eram alucinações, fantasias. Ele sabia disso, mas suas
emoções não lhe permitiam raciocinar. Ficção ou não, ela
se incorporara a ele, substituindo o ar em seus pulmões.
O fato de ela ser real, e ainda mais requintada do que ele
sonhara, e desconhecer quem ele era, parecia mais do
que ele podia suportar. Descobrir, então, que ela havia
entregado seu coração a outro… Saber que ele a
conhecia de uma forma que Cyrus nunca a conheceria…
Era quase impossível sobreviver àquilo. E, no entanto,
era a única razão pela qual ele não matara Kamran
naquela noite.
Porque suspeitou de que ela gostava dele.
Em resposta ao silêncio prolongado de Cyrus, o
príncipe emitiu um som de descrença.
— Sabe, estou começando a pensar que você pode
estar perturbado — disse. — Devia estar trancado em
uma torre, com os olhos devorados por escaravelhos…
Sem alarde, Cyrus desembainhou a espada, o som
cortante do aço interrompendo o discurso do príncipe
enquanto toda a sala prendia a respiração. Deen soltou
um suspiro fraco e fulminante, e o rei do Sul, que sentia
seu coração atrofiando dentro do peito, não conseguia se
importar com mais nada além daquele momento.
— Insulte-me assim novamente — sussurrou ele de
forma sinistra — e não serei misericordioso.
Os olhos de Kamran brilharam de fúria, e Cyrus quase
o respeitou por se manter firme. O príncipe recorria à
própria arma quando Hazan o empurrou com força contra
a parede.
— Basta! — ele gritou. — Já estou farto de vocês, seus
dois idiotas!
Então, virando-se, concentrou sua ira em Cyrus:
— Não entendo por que arrastou Alizeh até aqui, nem
entendo sua aparente necessidade de se casar com ela,
mas sei que fez um grande esforço para orquestrar todo
esse caos. O fato de ter lhe permitido uma escolha em
matéria de casamento indica que o senhor deve se
importar, no mínimo, com a vontade dela de fazer esses
votos. Assim, permita-me deixar uma coisa bem clara,
seu tolo: se Alizeh descobrir que o senhor assassinou
seus amigos, pode ter certeza de que ela se recusará a
se casar.
Cyrus parou; o fato óbvio neutralizou sua raiva em um
instante. Ele piscou, embainhou a espada e, com o peito
arfando, estendeu a mão mais uma vez para a parede
atrás de si.
Ele não estava, na verdade, em condições de
assassinar ninguém. E então ele a ouviu de novo, sua voz
sem fôlego de tanto desejo…
Sabe o que eu mais amo em você?
Cyrus sentiu os joelhos cederem antes de se recompor.
Ele não conseguia se lembrar se a experiência já fora tão
ruim assim antes; talvez fosse pior agora que ele a
conhecia, depois que ela estivera em seu quarto na noite
anterior, depois que ele houvesse vislumbrado algo
parecido com afeto em seus olhos.
Talvez este último episódio o levasse, enfim, à loucura.
— Como você é facilmente controlado — Kamran disse
em tom ácido. — Como deve estar desesperado.
Devagar, Cyrus ergueu a cabeça.
— Você não tem ideia.
Essa admissão pareceu surpreender o príncipe, cujo
olhar foi escurecendo aos poucos.
— Por quê?
— Por que o quê?
— Por que você deve se casar com ela?
— Uma pergunta perspicaz — Cyrus refletiu. — Eu não
tinha percebido que você era capaz de pensamentos
inteligentes.
O olhar furioso voltou ao seu rosto. O príncipe abriu a
boca, e ia fazer um comentário mordaz, quando a mãe
de Cyrus os interrompeu.
— Devo contar a eles? — indagou ela, com um sorriso
açucarado. — Ou você gostaria de explicar tudo sozinho?
Cyrus fechou os olhos e fez uma careta.
— Ele afirma que está sendo forçado a se casar com
ela — anunciou sua mãe, dirigindo-se à sala. — Ele diz
que Iblees exige isso dele.
Ele ouviu o menino ofegar, depois abriu os olhos e viu
que a moça havia tapado a boca com as duas mãos,
enquanto o boticário se recostava na cadeira, surpreso. O
horror de Kamran foi tão completo que ele pareceu de
fato doente. A visão desse desconforto geral foi tão
agradável que Cyrus quase não percebeu a fúria no rosto
de Hazan.
— Como isso pode ser verdade? — Hazan questionou.
— Muitas coisas terríveis são verdade.
— Mas por quê? Por que ele ia querer que ela se
casasse com você…
— Então foi isso que você quis dizer — o príncipe falou
devagar, a tensão em seus olhos substituída pela
compreensão. — Na noite do baile. Ouvi você lhe dizer
que Iblees queria que ela governasse. Você disse: “Uma
rainha Jinn para governar o mundo. A vingança perfeita”.
— Você não me contou isso. — Hazan virou-se para o
príncipe, alarmado. — Por que não me falou sobre isso?
— Esqueci. — Kamran balançou a cabeça, como se
estivesse atordoado. — Em todo o caos daquela noite…
Tanta coisa aconteceu que foi difícil manter o controle…
— Então ela tem de se casar com o senhor? — a
criança perguntou. — Ela tem de se casar com o senhor
porque o diabo quer que ela se case? Mas por que ela
tem que fazer o que o diabo quer? Eu não entendo.
— Nem eu — Huda e Deen falaram ao mesmo tempo.
— Ela não precisa fazer o que o diabo quer — disse
Cyrus, irritado. — Sou eu que preciso.
— Mas por quê? — insistiu o menino.
— Porque tenho uma dívida com o diabo.
— Então você, de fato, fez um acordo com Iblees —
disse Hazan, calmamente, olhando para o rei com
renovada suspeita. — E é isso que ele quer em troca?
— Em parte.
— E o que ele tem a ganhar com o reinado dela? Ela
nunca agiria em favor do interesse dele, nem concordaria
com suas exigências.
A expressão de Cyrus ganhou um ar sombrio.
— Não sei. Iblees, como você pode imaginar, não me
confidenciou suas esperanças e seus sonhos.
— Então ela poderia estar se colocando em perigo ao
se casar com o senhor — apontou Hazan.
— E que incentivo ela teria para fazer um acordo
desses — acrescentou Huda —, quando a única pessoa
que pode ganhar alguma coisa com isso é o senhor?
— Uma excelente pergunta — disse Deen, acenando
para ela.
— Pelos céus. — Cyrus suspirou com raiva e encarou
todos. — Basta disso. Levantem as mãos os aqui
presentes que me querem morto.
— Se isso é algum tipo de piada para você… — Kamran
começou a praguejar, interrompendo-se quando o
menino, a moça e o homem mais velho começaram a
levantar as mãos devagar.
— Você — disse Cyrus, acenando para o príncipe — não
precisa votar, visto que já tentou me matar duas vezes
hoje. — Depois, para a mãe: — E seus sentimentos sobre
o assunto nunca foram velados.
Sarra pareceu chocada.
— Mas e você — disse Cyrus, virando-se para Hazan —,
que motivo teve para me ajudar?
— Quer dizer por que salvei sua vida?
— Você não salvou minha vida — Cyrus retrucou. — Eu
teria resolvido as coisas de uma forma ou de outra.
O olhar de Hazan era duro.
— Você está iludido.
— E você não respondeu à minha pergunta.
— Alizeh não queria que você morresse. — Foi sua
resposta fria.
Ao se lembrar do sacrifício que Alizeh fizera por ele,
Cyrus sentiu uma cratera dolorosa no peito e cerrou os
dentes.
— Excelente — disse ele a Hazan. — Essa é a sua única
razão?
— Sim.
— E você não lamentaria a minha perda se eu caísse
morto sem cerimônia a seus pés?
Hazan lançou-lhe um olhar de desdém.
— Sem dúvida, não.
— Então todos vocês têm motivos para se alegrar. —
Cyrus respirou fundo antes de se dirigir a eles. — Não
temam uma união entre mim e sua rainha. A razão
subjacente pela qual ela se dignou a considerar a minha
proposta é que, como incentivo para que ela aceite,
ofereci a ela o meu reino.
— Isso não é novidade — disse Kamran, irritado. — Ao
assumir o trono, ela naturalmente teria influência no
império…
— Quero dizer que ofereci a ela meu reino sem o meu
envolvimento — disse Cyrus. — Ela seria a única
governante.
— O quê? — Sarra quase gritou.
— O quê? — ecoou o príncipe, que não conseguiu
esconder o choque.
— Oh, meu Deus! — exclamou Huda, piscando sem
parar.
— Mas como? — perguntou o boticário. — O senhor não
pode simplesmente renunciar. Na melhor das hipóteses,
seria expulso da sociedade, destituído de seus títulos…
Na pior, poderia ser julgado por traição…
— Pelos anjos — Hazan disse, baixinho, com faíscas de
choque e admiração no olhar —, o senhor está disposto a
morrer.
— Uma vez que minha dívida com o diabo estiver paga
— Cyrus disse sem emoção —, Alizeh pode se livrar de
mim quando desejar. Meu império será dela, para que
governe como desejar.
— Então é por isso que ela o quer vivo — disse o jinn,
de modo discreto. — Foi por isso que ela tentou salvá-lo.
— Cyrus. — Sua mãe arfava, encarando-o com algo
que parecia ser um sentimento real. — O que é que está
pensando? Você simplesmente passaria o império para
essa garota? Perdeu de vez a cabeça?
— Eu ainda não entendo — continuou Hazan, franzindo
o cenho. — O que o motivaria a agir de forma tão
irresponsável…
Cyrus virou-se para longe de todo aquele barulho. A
reação do príncipe, que o observava em silêncio, era a
que mais lhe interessava.
— Não se pode confiar em você — declarou Kamran,
por fim. — O que o impediria de quebrar o acordo após o
casamento?
— Eu ofereci um pacto de sangue.
Todos, exceto a criança, prenderam a respiração.
— Cyrus! — sua mãe gritou mais uma vez. — Você não
pode estar falando sério!
— Que nojo — Omid murmurou.
— Sim, é nojento — disse Hazan, parecendo
perturbado. — Pactos de sangue foram proibidos em
Ardunia há séculos.
— Por quê? — perguntou o menino.
Foi o príncipe que falou sem grande alarde:
— Trata-se de uma magia violenta e perigosa.
— Enquanto tiver uma dívida com ela — Hazan
explicou, sem tirar os olhos de Cyrus —, ele não poderá
se afastar fisicamente. Quase não disporá de livre-
arbítrio. Pactos de sangue foram responsáveis por
períodos sombrios em nossa história. — Ele hesitou. —
São inquebráveis. Não podem ser desfeitos.
— Está mesmo tão desesperado? — Kamran também
estava examinando Cyrus, embora não parecesse
incomodado com o radicalismo do pacto. — Você
passaria o seu legado, ao qual tem direito por
nascimento, por uma única noite como marido dela?
— Não — disse Cyrus. — Não por uma única noite. Ela
não poderá me descartar até que o diabo considere
minha dívida paga.
— Isso é absurdo — gritou Hazan. — Kamran, não pode
achar que… Isso não passa de um golpe, e ele com
certeza a forçaria a consumar o casamento…
— Eu nunca faria isso — Cyrus o interrompeu com
grosseria. — Pense o que mais quiser de mim, mas nem
eu sou tão baixo assim. Ela não corre nenhum risco.
— O senhor colocaria isso no pacto? — Hazan estava
pasmo. — Que não colocaria um dedo nela?
Cyrus controlou a raiva. Condenado como estava, ele
sabia que não podia esperar que outros presumissem
alguma decência de sua parte, mas tal acusação o
insultava.
— Sim, deixarei claro que não a tocarei, a menos que
ela assim deseje.
Hazan expressou aversão.
— Como se essa possibilidade existisse.
— Senhorita — sussurrou o menino. — O que significa
consumar?
— Ah… — Huda corou. — É melhor não se preocupar
com isso agora. Eu explico depois.
— Mas…
Enquanto isso, Kamran ainda estudava Cyrus de
maneira calculista.
— Que barganha foi essa que você fez com o diabo?
Cyrus apenas o encarou.
— Ele se recusa a dizer — Sarra esclareceu. — Já lhe
perguntei mil vezes, e ele nunca revelou a verdade.
— Entendo. — Kamran não desviou o olhar. — E quanto
tempo levaria para você pagar a dívida?
— Não tenho como saber — Cyrus respondeu. —
Meses, talvez.
O príncipe inspirou fundo e exalou devagar,
processando essa última declaração.
— Interessante.
— Não. — Hazan balançou a cabeça. — De jeito
nenhum. Esse é um plano vago e traiçoeiro…
— Eu discordo — disse o príncipe, com tranquilidade. —
Aliás, acho que será uma boa vingança. — Ele encarou
Cyrus. — Você morrerá, ela herdará o seu império, e aí…
Eu me casarei com ela.
Hazan recuou, tão forte foi seu estranhamento. Os
outros também bufaram de choque, mas Cyrus manteve-
se, de alguma forma, indiferente a essas reações,
concentrado apenas no caos que borbulhava dentro de
seu corpo. Aquela declaração o atingiu como um chicote.
Foi preciso todo o seu autocontrole para permanecer
impassível, sem demonstrar seu horror. Ele não esperava
uma tática manipuladora por parte do príncipe, mas
deveria.
— Isso exigirá muita paciência da minha parte —
prosseguiu Kamran, com os olhos brilhantes de triunfo
enquanto encarava o rei. — Mas sou capaz de uma
tolerância extraordinária, sobretudo em nome de uma
recompensa tão grande.
Uma grande recompensa, de fato.
Que golpe de mestre para os ardunianos seria, que
vitória herdarem o império tulaniano. Os reinos do norte
e do sul haviam travado muitas guerras históricas pelo
acesso aos recursos; em particular, ao rio Mashti. Cyrus
sabia como Ardunia estava desesperada pelo acesso
direto à água doce, e o plano de Kamran resolveria a
maior fraqueza do império com um único movimento
pacífico. Não haveria necessidade de perder vidas nem
de travar guerras; Kamran se casaria com Alizeh e,
assim, casaria as duas nações, herdando todos os
recursos naturais valiosos de Tulan, incluindo as riquezas
de suas montanhas repletas de recursos mágicos.
Isso tornaria Ardunia um império quase invencível.
Com o coração palpitando no peito, Cyrus não conseguia
acreditar que havia cometido tal passo em falso e não
sabia como consertar a situação. O fato é que Alizeh não
se comprometera ainda a se casar com ele. Se ele
retirasse sua promessa de lhe entregar Tulan, ela
certamente o recusaria. Era um risco que ele não podia
correr. Por mais horrível que fosse pensar em perder seu
império, Cyrus consolava-se com a ideia de que o
entregaria a alguém como Alizeh; ele tinha certeza de
que, em sua ausência, ela cuidaria de seu povo com
incontestáveis compaixão e senso de justiça. Mas pensar
que os ardunianos poderiam se beneficiar disso, que
poderiam ocupar as suas terras e saqueá-las, usando os
seus preciosos recursos para expandir o império deles…
— O que o faz ter tanta certeza de que ela se casará
com você? — Cyrus ergueu os olhos bruscamente,
chocado ao descobrir que, de todas as pessoas ali, foi
sua mãe quem veio em sua defesa. — Por que a garota
escolheria compartilhar uma coroa, quando poderia
liderar sua própria nação sozinha? — Sarra questionou
Kamran. — Que necessidade ela teria de se casar com
você?
Kamran estreitou os olhos, preparando-se para
responder, mas foi Hazan quem falou, parecendo ao
mesmo tempo angustiado e confuso. Ele balançou a
cabeça.
— A necessidade não a motivaria — disse ele. — O
dever, talvez. Pelo bem da profecia, pelo bem do povo…
Sim, acredito que ela poderia ser convencida de que uma
união com o império arduniano…
— Que profecia? — disse Huda, olhando em volta. —
Há uma profecia?
— Afinal, ela é arduniana — acrescentou Deen. —
Talvez ela queira ir para casa…
— Que profecia? — insistiu Huda.
Kamran observava Cyrus ao responder de forma
sombria:
— Derreta o gelo no sal, una os tronos no mar. Neste
reino de intrigas, haverá Fogo e Argila.
Cyrus enrijeceu.
Aquilo já era demais. Ele estendeu a mão mais uma
vez para a parede atrás dele, com seu estado físico
piorando a cada segundo. Kamran citara a inscrição do
Livro de Arya, um volume antigo conhecido por manter o
mapa do mundo atualizado graças a um poder
extraordinário. Ele vinha lutando havia dias para
convencer o livro a revelar seus segredos, mas sem
sucesso.
Ninguém além de Alizeh deveria saber do livro. Cyrus
só tinha ouvido falar de sua existência por Iblees. Assim,
uma de suas tarefas era descobrir a natureza da suposta
magia de Alizeh, e ele recebera a ordem de roubar a
relíquia do pequeno quarto dela na Casa Baz.
— Como ficou sabendo disso? — Cyrus perguntou,
lutando para reprimir o pânico.
Kamran apenas sorriu.
— Ela já deve suspeitar que seu império será unido a
outro… E sabemos que não será o seu — disse ele de
modo implacável. — Na verdade, ficou claro para mim
agora, mais do que nunca, que eu e ela estamos fadados
a ficar juntos. Foi praticamente previsto.
— Como ficou sabendo disso? — Cyrus repetiu, desta
vez perdendo o autocontrole. Sentiu que poderia sufocar
com a própria fúria, tão confusa estava sua mente. O
diabo o convocara naquela manhã para celebrar sua
derrota, e agora parecia óbvio que tudo desmoronaria…
Ele estava demasiado fraco, demasiado ferido,
demasiado exausto para suportar aquilo.
— É do Livro de Arya — disse Hazan, que agora olhava
para o rei com alguma preocupação. — Encontramos
entre os pertences de Alizeh.
— Pelos infernos — exalou Cyrus. Ele fechou os olhos,
seu corpo deslizando lentamente pela parede. Por fim,
jogou-se sentado sobre o tapete grosso e passou as
mãos pelo rosto. — Você encontrou a isca.
— Isca? — Kamran questionou. — Que isca?
— O que você encontrou foi uma imitação — disse
Cyrus, levantando a cabeça. — Trata-se de um livro
fisicamente idêntico, pelo menos por fora, ao original.
— Onde está o original? — Hazan perguntou com
urgência.
— Comigo.
— O quê? Por quê? Como…
— Não — disse Cyrus com veemência, balançando a
cabeça. — Não vou suportar mais nada disso. Comecei
minha manhã sendo alvejado quase até a morte, então,
se me derem licença, acho que preciso me afastar dos
muitos deleites da sua companhia. — Ele os examinou.
Então, com um suspiro: — Se não posso matá-los e todos
vocês se recusarem a ir embora…
— Enfim tomaremos o café da manhã? — Omid
animou-se.
— Vou acomodá-los todos em quartos! — Sarra bateu
palmas. — Oh, não recebemos convidados há séculos!
Será muito bom sair da rotina. — Ela sorria com tanto
carinho que, por um momento, Cyrus se perguntou se o
entusiasmo da mãe era genuíno. — Vocês ficarão
bastante confortáveis; eu cuidarei disso pessoalmente.
Omid abriu a boca para falar de novo, e Cyrus
murmurou um palavrão antes de dizer:
— Sim, pelo amor de Deus, vamos lhe dar o café da
manhã…
Neste mesmo instante, houve uma batida forte na
porta da sala de jantar.
— Entre — Cyrus ordenou com raiva.
O mordomo, Nima, entrou e curvou-se
apressadamente.
— Majestade — disse ele. — Um trio de Profetas
chegou para vê-lo.
A cabeça de Cyrus ergueu-se, e sua adrenalina
disparou.
— O quê?
— Eles solicitaram uma reunião imediata, senhor.
Cyrus levantou-se do chão. Sentiu-se atordoado; havia
meses que os Profetas se recusavam a falar com ele. Na
verdade, já fazia tanto tempo que ele não se comunicava
com um de seus antigos professores, que seu coração se
encheu de alegria e medo ao mesmo tempo. Se eles
próprios tinham vindo entregá-la, a notícia devia ser
terrível. Cyrus estava paralisado, lutando para processar
aquilo, quando ergueu os olhos e encontrou Hazan
parado ao seu lado.
— Se for sobre minha rainha — disse —, eu o
acompanharei.
PARTE DOIS
NO INÍCIO

O sol de verão brilhava, inclemente, no céu azul. O calor


estava tão forte que parecia atravessar a pele e agarrar-
se aos ossos. Uma mistura de zumbidos enchia o ar, e os
insetos voavam em frenesi. Havia o cheiro de grama, o
bater ocasional de asas e o farfalhar de tecido quando
Cyrus se mexia na grama alta. Pelo menos uma dúzia de
vezes ele vira mosquitos pousarem em várias partes do
seu corpo, e pelo menos uma dúzia de vezes ele lutara
para se lembrar de que não deveria matá-los, apenas
afastá-los com delicadeza. O método não era infalível.
Coçando distraidamente uma picada no braço, ele
olhou para o sol e depois para o horizonte. Encontrava-se
no centro de uma campina, com extensões de grama
saliente ao redor, interrompidas apenas por uma
variedade selvagem de papoulas vermelhas, cujos caules
às vezes se curvavam com a brisa fraca e bem-vinda.
Cyrus encostou-se na borda de um favo de mel em
escala humana; tratava-se de uma enorme recriação em
madeira das icônicas câmaras hexagonais, uma das
várias situadas no extenso campo traseiro das terras dos
Profetas. Cyrus não sabia bem quando os outros
retornariam e já começava a perder a compostura.
Tamborilou de modo impaciente os dedos na coxa e
depois puxou a gola da pesada capa preta.
— Inquieto demais. — Ele ouviu uma voz firme e
profunda.
Cyrus parou e depois virou-se com cuidado para
encarar seu professor.
O homem mais velho, Rostam, permanecia inabalável
sob aquele calor de derreter, com o capuz puxado para
trás revelando a cabeça raspada, a pele bronzeada e a
calma imperturbável de alguém que parecia estar parado
na sombra. Rostam não se perturbava. Nem se mexia.
Cyrus, entretanto, não sabia quanto mais poderia
suportar. Havia pouco tempo que o segundo filho da
realeza tulaniana tinha comemorado seu décimo quarto
aniversário, e ainda não se sentia totalmente à vontade
em seu corpo. Também ainda não controlava sua mente
e não dominava a arte da comunicação silenciosa; por
isso, sua voz era uma das poucas que ressoavam pelo
campo.
— Estamos esperando há três horas — disse Cyrus,
tomando cuidado para que seu tom não registrasse a
declaração como uma reclamação.
Rostam inclinou a cabeça.
— Três horas — repetiu ele. — E tudo que você fez foi
esperar?
Cyrus sentiu uma pontada de desconforto.
— O que você estava esperando, pequenino?
Mesmo sabendo que a pergunta devia significar mais
alguma coisa, ciente de que havia algo que ele não
estava entendendo, Cyrus sentiu-se compelido a
responder com honestidade.
— Estou esperando os outros chegarem.
Isso não provocou nenhuma resposta por parte de seu
professor, por isso ele acrescentou:
— Eles devem retornar das montanhas com uma nova
produção de cristais. Devemos limpar e separar a
colheita antes de extrair a magia.
Rostam fixou no jovem príncipe um olhar penetrante, e
Cyrus ficou cada vez mais apreensivo. O professor
repetiu, de novo em voz baixa:
— O que você estava esperando?
Desta vez, Cyrus não respondeu de imediato.
Ele já estava no templo havia tempo suficiente para
saber quando estava sendo desafiado e, embora tivesse
murchado sob o olhar implacável de Rostam, não tirou os
cachos crescidos do rosto, molhados do suor que escorria
pela linha do cabelo. Ele não vacilou, apesar da criatura
zumbidora que pousara em sua mão. Canalizou toda a
sua energia para manter o fingimento de calma quando,
mais do que tudo, Cyrus queria arrancar sua capa e jogá-
la no chão. Queria correr para casa e mergulhar nas
cataratas, queria nadar com seus dragões até a lua subir
alto no céu.
Cyrus queria voar naquela noite.
Queria adormecer nas costas de Kaveh, abrir os olhos e
admirar as estrelas. Queria que já fosse o dia seguinte,
quando aquela tarefa infernal estivesse concluída, e os
cristais estivessem prontos para extração, pois assim ele
poderia tentar de novo libertar a magia e colocá-la em
suas mãos e… E, então, ele entendeu. Como uma
lâmpada bruxuleante, ele se iluminou e depois ajustou a
claridade.
— Eu estava esperando — disse Cyrus — que isso
acabasse.
Uma centelha de aprovação acendeu-se nos olhos de
Rostam.
— E onde você estava nessa espera?
Com toda calma, ele disse:
— No futuro.
— Três horas de sua vida perdidas.
— Perdoe-me — disse o jovem príncipe, abaixando a
cabeça. — Fui consumido por pensamentos sobre meus
desejos e meu conforto, quando vim aqui hoje para estar
presente para os outros.
Houve um momento de silêncio antes de Rostam
erguer o queixo do menino. Cyrus aos poucos encarou o
olhar de seu professor.
— Você não precisa de perdão. Precisa de perspectiva.
Cyrus piscou para ele, sem fazer a pergunta.
Rostam recuou e abriu as mãos, deixando as palmas
paralelas ao chão. Lentamente, ele fechou uma das
mãos, e uma brisa suave soprou em direção a eles. Cyrus
sentiu a lufada de ar fresco envolvendo seu pescoço,
levantando seus cabelos úmidos, deslizando sob seu
manto queimado de sol. O prazer foi tão instantâneo que
cambaleou um pouco quando Rostam ergueu a outra
mão, virando a palma para o céu, onde uma nuvem
apareceu, lançando-os de repente sob a sombra.
O jovem príncipe aproveitou essa pausa por vários
segundos antes que Rostam dissesse gentilmente:
— Você não deve resistir à vida quando ela se torna
inconveniente. Não pode fugir do medo. Não deve
ignorar a dor. Você não sobreviverá à morte.
Cyrus teve uma estranha sensação de mau
pressentimento.
— O que quer dizer com isso?
— Você passou três horas em estado de angústia,
focado apenas em uma emoção, na esperança de
descartar essas horas de sua vida como se seus
desconfortos pudessem desaparecer com elas. Mas a
vida não pode ser experimentada com uma emoção de
cada vez. É uma tapeçaria de sensações, uma corda
trançada de sentimentos. Devemos permitir a reflexão
mesmo quando sofremos. Devemos buscar a compaixão
mesmo quando triunfamos. Se você passar os dias
esperando pelo fim de suas tristezas para que você
possa finalmente viver… — Ele balançou a cabeça. —
Você morrerá sendo um homem impaciente.
Cyrus apenas olhou para ele com o coração batendo
forte. Rostam estalou os dedos e a brisa desapareceu; a
sombra evaporou. Mais uma vez, Cyrus sentiu o sol
impiedoso recair sobre ele, um calor tão opressivo que
ele começou a transpirar na mesma hora. Mas, em vez
de lutar contra o sentimento, ele se rendeu.
Fechou os olhos e procurou a brisa. Gotas de suor
escorriam por suas costas. Exalava com quietude,
liberando a tensão de seu corpo. Enfim, sentiu a carícia
suave de uma corrente, a grama alta balançando contra
suas pernas. Ouviu o zumbido áspero de uma vespa. O ar
estava abafado, seu manto era sufocante. Ele abriu as
mãos para pegar mais vento nas palmas e ouviu o
borbulhar de uma pequena fonte ao longe. Havia
pássaros, o suave bater das asas de uma borboleta.
Aos poucos, o mundo ao seu redor pareceu se acalmar,
e seus espinhos se retraíram. Embora estivesse
queimado de sol e sedento, Cyrus enfim se sentiu
presente. Quando, depois de um tempo, abriu os olhos,
descobriu Rostam observando-o com curiosidade e um
odre de água na mão estendida. O príncipe aceitou essa
oferta com profunda gratidão antes de dar um longo
gole.
— Você não está pronto para suportar o calor sem água
— disse seu professor. — Mas demonstra grande
coragem para alguém tão jovem.
Cyrus prendeu a respiração, abaixando um pouco a
cabeça enquanto limpava a boca.
— Obrigado, senhor — disse. — Estou muito
agradecido.
Rostam desviou o olhar enquanto Cyrus tomava outro
gole e, quando olhou para trás, disse:
— Você sabe por que precisamos nos dominar primeiro,
antes de dominar a magia?
— Sim, senhor.
Cyrus devolveu o odre vazio e, como um aluno ansioso,
repetiu a antiga frase Fesht:
— Bel nekan nostad, nektoon bidad.
Se não confiar, não virá.
— A magia não será liberada para uma pessoa de
coração e mente doentios — explicou o príncipe. — Os
Profetas atuam como intermediários entre o reino
extraordinário e o comum, liberando a magia de seus
cristais para que seu poder possa existir com segurança
em nosso mundo.
— O que você disse está correto — afirmou Rostam,
cujo semblante não mudara. — Mas você ainda não
respondeu à minha pergunta. Mais uma vez: por que
precisamos nos dominar primeiro, antes de dominar a
magia?
Cyrus, que tinha certeza de ter dado uma resposta
suficiente, nesse momento vacilou.
— Eu não… Não tenho certeza, senhor.
— Você ainda não viu como um homem pode ser
destruído pela fraqueza da carne — disse Rostam, seu
timbre baixo e firme. — Desejo, poder, riquezas,
imortalidade. Você ainda é jovem e puro de coração, e o
mundo ainda não lhe parece um lugar disforme. Mas
saiba disto: a magia deixou em seu rastro uma galáxia de
estrelas mortas. Nem mesmo os Profetas são imunes ao
fascínio do poder.
Como que em resposta a isso, houve uma onda de
comoção ao longe, e uma tempestade de patas de
dragão atingiu o chão provocando uma série de
pequenos tremores. Cyrus foi brevemente distraído pela
visão de duas dúzias de Profetas sujos, que acabavam de
voltar das minas. Desmontaram das feras em perfeito
silêncio, com a estática da magia ainda não refinada
estalando ao redor deles enquanto descarregavam suas
colheitas. Seu coração disparou com essa visão. Ele só
queria poder correr até eles. Rostam pousou as mãos
pesadas nos ombros de Cyrus, trazendo o menino de
volta ao momento presente. Os olhos de seu professor
eram urgentes e, quando ele falou, as palavras
trovejaram no silêncio entre eles.
— Domine a si mesmo para que nunca seja dominado.
Conheça a si mesmo para poder viver com convicção.
Viva com convicção para que seus passos nunca vacilem.
— Ele fez uma pausa. — O domínio de si significa nunca
temer as consequências de fazer o que é certo.
Rostam soltou seus ombros, e Cyrus sentiu-se estranho
ao dar um passo para trás, como se o mundo ao seu
redor tivesse ficado embaçado.
Ele piscou repetidamente, com o coração batendo forte
em seu peito enquanto um dragão distante soltava um
rugido cansado. O príncipe era autoconsciente o bastante
para compreender, mesmo naquele momento, mesmo
quando não conseguia compreender a magnitude do que
seu professor estava dizendo, que precisava prestar
atenção.
— Diante do sofrimento — continuou Rostam —, você
pode escolher entre suportar ou superar. — Ele
gesticulou para o entorno, para a vasta extensão da
campina. — Aqui, mesmo em meio ao seu desconforto,
existiam elementos de alívio, se você tivesse se dado ao
trabalho de procurar.
DEZESSETE

A princípio, havia só perfume.


A fragrância inebriante de flores impregnava o ar e
invadia sua mente, e Alizeh, desorientada demais até
para saber que estava dormindo, aspirava
profundamente o aroma exuberante. Ela lambeu os
lábios para sentir o gosto da ambrosia na pele, como se
fosse um elixir para seu espírito adormecido. Mesmo
durante o sono, sua cabeça estava pesada; seus
pensamentos, turvos. Ela não sabia há quanto tempo
seus olhos estavam fechados, nem conseguia se
perguntar sobre seu paradeiro. Na verdade, Alizeh tinha
consciência de pouca coisa além do perfume que a havia
despertado de seu estupor; tanto que ela até se
esqueceu de ter medo.
Na verdade, era a primeira vez em muito tempo que
ela se mexia, esticando os dedos, procurando algo,
voltando devagar à consciência. Sentiu o colchão ceder
um pouco com o movimento de seu corpo. Então fez uma
pausa, pois percebeu o veludo das pétalas sob suas
mãos e, ao virar a cabeça com cuidado, seu rosto
experimentou a mesma sensação.
Estranho.
Em todos os lugares, seu corpo parecia tocar em flores.
Flores roçavam sua nuca, adornavam seus seios, torso e
pernas, por toda parte. Com um sobressalto, Alizeh
tomou consciência de sua própria nudez, do toque
escorregadio e sedoso das pétalas em sua pele,
pequenos montes se acumulando nas curvas de seu
corpo. Seus sentidos pareciam indicar que ela estava
toda submersa em um leito de flores, uma possibilidade
tão absurda que só podia significar uma percepção
equivocada. Ela então passou a mão pelo corpo e ficou
aliviada ao descobrir que não estava tão exposta quanto
temia, ainda que mais vulnerável do que gostaria,
vestindo uma simples camisola de seda e nada mais. O
material delicado, solto e esvoaçante, era o suficiente
para que as pétalas encontrassem uma maneira de se
juntar, como uma segunda peça de roupa, sobre sua
pele.
Foi a descrença que enfim forçou seus olhos a se
abrirem.
Uma queimação de lágrimas seguiu-se a essa simples
ação e, conforme piscava com a visão embaçada, uma
névoa cor-de-rosa tomou conta de sua vista. Cada
movimento de seus olhos ia trazendo ao foco uma visão
tão surreal que agora tinha certeza de que só podia estar
sonhando.
Virou-se para assimilar a situação e engasgou-se.
Alizeh estava em uma sala circular de uma altura
tremenda, com paredes envelhecidas cor de creme
quase obscurecidas por cascatas de grossas e gloriosas
rosas cor-de-rosa. O teto distante também era repleto de
adornos pesados: mais flores, mais vinhas, mais beleza.
Grandes flores voltavam-se para a luz iridescente que
penetrava através de par de vitrais antigos. Esses eixos
oblongos de cor etérea destacavam, em particular, uma
parede curva na qual havia sido construída uma série de
estantes do chão ao teto. As estantes desgastadas
ostentavam apenas alguns volumes esfarrapados, e,
embora em outra situação uma biblioteca tão mal
abastecida pudesse ter inspirado alguma melancolia, ali
era mais uma fonte de deleite, pois as estantes estavam
repletas de flores exuberantes, tão encantadoras que ver
tudo aquilo fez o coração de Alizeh disparar.
Ela se forçou a sentar-se, mesmo com a cabeça
girando. Pétalas soltas choviam lentamente, fazendo
piruetas enquanto caíam, trazendo consigo aquela
fragrância deliciosa. Uma pousou sobre seu nariz, e ela
pegou a coisinha acetinada, esfregando-a distraidamente
entre o polegar e o indicador, maravilhada com tudo ao
seu redor.
Nuvens de rosas cor-de-rosa se estendiam pelo chão e
desciam por uma escadaria de pedra rústica, que se
estendia em direção a uma imponente porta de madeira
desgastada. Tudo indicava que ali era a saída. Havia
poucas outras pistas sobre sua localização; a cama que
ela ocupava era o único artigo independente no quarto.
Velha e entalhada, seu acabamento estava desbotado
em alguns lugares, desgastado em outros. E a roupa de
cama estava, como ela suspeitava, inteiramente coberta
de pétalas de rosa. Ela mesma estava inteiramente
coberta de pétalas de rosa.
Por toda parte. Onipresentes.
Há quanto tempo ela estava deitada ali, sob aquela
suave chuva de beleza? Tinha de ser magia, um exímio
encantamento, pois não havia espinhos nas videiras,
nem sinais de decomposição entre as flores caídas. Ora,
mas que magia peculiar era aquela? Para que servia? Ela
notou que as cobertas da cama tinham pelo menos dois
centímetros de espessura de pétalas caídas; dada a
agitação lenta lá de cima, ela suspeitava que devia estar
ali, naquele curioso lugar, há pelo menos alguns dias. O
mais estranho de tudo: Alizeh percebeu, em choque, que
não sentia frio.
A sensação gélida em seu corpo era sempre tão forte
que ela só conhecia a existência com o incômodo físico.
Estava sempre tensa, com frequência rígida. Em algum
grau, tal dor persistira nela desde seu nascimento; na
infância, ela lutara contra o frio, mas ainda não tinha
experimentado a agonia completa até seus pais
morrerem e o gelo tomar conta dela. Levara muito tempo
para aprender a viver com aquele sofrimento constante,
e Alizeh nunca se atrevera a esperar que um dia se
livraria dele. Mas, agora, ela se sentia confortável no
próprio corpo pela primeira vez desde a morte de seus
pais. Nunca imaginara que sentiria de novo o calor
morno correndo em suas veias.
Ela tentou, então, reunir suas memórias; precisava
entender como tinha chegado ali. Porém, a mente de
Alizeh parecia confusa e empoeirada; irregulares, seus
pensamentos custavam a ganhar forma. Ela tentou
organizar as informações, mas sua cabeça, desordenada
como estava, apenas fez emergir um golpe doloroso e
impiedoso de emoção. Em uma rápida sequência,
vislumbrou sua mãe em vários estágios de tristeza, com
os sons e as sensações tão vívidos que ela quase se
curvou de dor. As cenas iam se modificando, mas agonia
aumentava em um crescendo:
Alizeh aos seis anos, descobrindo sua mãe chorando no
chão da cozinha com uma carta amassada entre os
dedos;
aos oito anos, acordada no meio da noite por batidas
na porta, Alizeh andando na ponta dos pés até o
corredor, onde vira a mãe chorando nos braços de seu
pai;
aos onze anos, depois da descoberta do corpo de seu
pai no fundo de um poço, e a dor do luto persistindo em
seus corpos independentemente de quanto chorassem;
aos doze anos, com tudo em chamas, sufocando por
fumaça, sua mãe gritando, e ela conseguia sentir o
cheiro; o cheiro da carne chamuscada de sua mãe,
pegando fogo ainda viva em seus braços…
Alizeh emitiu um som como se tivesse sido atingida,
como se o ar tivesse sido arrancado de seus pulmões. A
dor era tão extraordinária que a chocou. Lágrimas
haviam corrido de forma silenciosa por seu rosto, e ela as
enxugou com os dedos trêmulos enquanto tentava
respirar. Essas memórias involuntárias do luto eram
cruéis e reconfortantes ao mesmo tempo, porque Alizeh
não queria esquecer. Às vezes ela sentia como se seus
pais tivessem desaparecido para todos, exceto para ela.
É verdade que não podia mais vê-los, mas parecia
carregar seus ossos em suas costas, sua dor em seus
ombros, sua esperança em seu coração.
Com frequência, ainda pensava ouvi-los sussurrando.
Ali mesmo, naquele momento, ela achou ter ouvido sua
mãe, as palavras dela como uma carícia em sua face…
Não tema, minha querida, a queda
… e foi aí que as janelas se abriram de repente.
Rangeram, depois bateram na esquadria com violência,
fazendo com que flores caíssem por todos os lados.
Outra rajada de vento fechou de novo as janelas com um
estranho ranger, e um instinto faiscou dentro de Alizeh.
Trêmula, ela saiu da cama com uma energia que não
tinha.
Pétalas de flores rodopiavam ao redor dela como em
um pequeno ciclone enquanto ela se firmava sobre o
chão de pedra. Depois, apoiou-se na cabeceira da cama
para estabilizar o corpo. Mesmo em meio à confusão, não
estava cega à beleza do momento, ao fluxo etéreo de
rosas que a envolviam, à rajada de vento que havia
deixado tudo em frenesi. Ela ficou ali, presa naquele
redemoinho que se instalava lentamente, quando sua
mente enfim sacudiu uma camada de poeira. Com o
coração batendo forte no peito, ela foi bombardeada pela
clareza.
Hazan.
Seus primeiros pensamentos se voltaram para ele. Ela
sabia que havia mais a lembrar, mais para desvendar em
sua mente; mas, por enquanto, a imagem de Hazan
serviria como sua Estrela do Norte. Ele viera atrás dela,
ela se lembrou. O que significava que ele devia estar em
algum lugar por perto, em Tulan… Mas… Onde estava
ela?
Ainda estava em Tulan?
Ela se virou, procurando mais uma vez qualquer
indicação de seu paradeiro. As janelas eram altas
demais; mesmo que ela movesse a cama, não alcançaria
o parapeito. Ela mordeu o lábio, refletindo. Se subisse
nas estantes, poderia pegar um daqueles livros, e o
conteúdo talvez lhe desse alguma pista. Ela semicerrou
os olhos para ver as poucas lombadas legíveis, mas
pareciam ser tomos antigos, escritos em um idioma que
ela não reconheceu. Franzindo a testa, estudou suas
óbvias rotas de fuga mais uma vez: havia uma porta e
uma janela.
Mas para onde ela iria? Como poderia encontrar
Hazan? E havia outros, não havia? Os amigos dela, sim…
Onde eles…
Ela levou a mão à boca.
Ela se lembrou, com uma pontada de medo, da raiva
nos olhos de Kamran. Ela se lembrou do terror que havia
nos de Cyrus, ela se lembrou… Céus, ela se lembrou de
tudo. Do caos. Do horror.
Da dor.
Kamran a havia atingido com uma flecha destinada a
Cyrus. Ela a sentira perfurar suas costas, sentira o ardor
insuportável, a paralisia na parte inferior do corpo, a
queda para uma morte certa.
Não tinha morrido?
Desse evento final ela não tinha nenhuma lembrança
forte, nem conseguia se lembrar do que viera depois.
Mas, de repente, ficou desesperada por respostas.
O que acontecera depois de ela despencar pelos céus?
O sol, ela notou, parecia ter mergulhado na tarde, mas
ainda havia luz no céu suficiente para meio dia de
viagem. Poderia abrir a porta ou escalar a parede;
qualquer um dos caminhos poderia se mostrar
terrivelmente complicado. Ela ainda estava tentando
decidir entre os dois, quando, de repente, ouviu uma
batida delicada na porta.
Alizeh congelou; seu coração batendo ainda mais forte.
Muito lentamente, ela se virou para encarar o barulho.
Sempre esperava pela paz, mas nunca temera a batalha.
Mesmo naquela camisola leve, ela lutaria se necessário.
Alizeh plantou os pés descalços firmemente no chão e
ergueu o queixo. Quando falou, sua voz soou suave e
clara na sala cavernosa.
— Pode entrar — disse.
DEZOITO

Houve um rangido de madeira e metal quando a porta foi


aberta, e através da fresta estreita apareceu primeiro
uma mão delicada, depois um pé calçado e, enfim, um
rosto familiar.
— Aliz… Quero dizer, Vossa Majestade! Está acordada?
Disseram-nos que estava, e, ah, espero sinceramente…
— Srta. Huda? — perguntou Alizeh, assustada. — É
você?
A jovem deu um gritinho estranho, semelhante ao de
um pássaro, bateu a porta atrás de si, tapou a boca com
as duas mãos, depois subiu correndo as escadas de
pedra e praticamente atacou Alizeh, finalizando a série
de comportamentos nada refinados. Alizeh riu daquilo,
depois enrijeceu ao ser abraçada com força, pois não
estava usando nenhuma roupa íntima e não sabia como
se desvencilhar do abraço sem ferir os sentimentos da
jovem.
Por fim, a srta. Huda recuou, com o rosto brilhando de
emoção.
— Você está acordada! — exclamou. — Não tem ideia
de como estávamos preocupados! E você não deve mais
me chamar de senhorita, apenas Huda está ótimo, e, de
qualquer forma, somos amigas agora, não somos?
— Sim — balbuciou Alizeh. — Sim, claro que somos
amigas.
A mente de Alizeh estava tumultuada. Seus medos
eram tão emaranhados, e sua confusão tão grande, que
ela mal conseguia escolher qual pergunta fazer primeiro.
Mas então algo a distraiu. Havia algo diferente em Huda,
algo vívido e belo, e Alizeh se viu observando a amiga,
tentando entender aquela transformação antes de
perceber que a explicação era bastante clara e direta.
— Huda — ela disse, suspirando —, você está
encantadora!
O rosto da jovem ruborizou-se enquanto ela
pressionava, nervosa, as mãos contra a barriga. Huda
estava radiante em um deslumbrante vestido de veludo,
cuja costura Alizeh não pôde deixar de admirar. O tecido
azul-escuro era do mais alto calibre, com detalhes
requintados e pontos indetectáveis. A peça acentuava
suas curvas de uma maneira tão elegante que Huda
parecia ser da realeza. Era exatamente o tipo de roupa
que Alizeh poderia ter desenhado para ela se tivesse tido
oportunidade. Huda possuía uma silhueta escultural
demais para ser sobrecarregada com as últimas modas,
e agora, liberta das amarras dos estilos atuais, ela era
uma nova pessoa. Até mesmo seu cabelo escuro, muitas
vezes preso para trás em um coque severo, estava agora
penteado em um coque baixo e mais solto, com mechas
habilmente escolhidas emoldurando as feições graciosas
de seu rosto. Seus olhos pareciam maiores, e sua tez
bronzeada mais viçosa.Tudo em seu conjunto permitia
que suas melhores características se destacassem,
mas…
Mais do que isso, Huda parecia feliz.
— Você acha mesmo? — ela disse, passando a mão
pela saia. — Sarra diz que o vestido combina comigo,
embora eu não esteja inteiramente… Meu Deus, veja só
como me desconcentro facilmente! — Ela balançou a
cabeça e pegou as mãos de Alizeh. — É a sua cara, não é
mesmo, superar uma horrível dificuldade e ser tão
bondosa comigo. — Huda sorriu. — Por mais que eu
adore discutir questões do meu guarda-roupa com você,
querida, devo primeiro dizer-lhe quanto estou contente
de vê-la acordada. Não acreditei quando me disseram
que você tinha despertado, não no começo, já que
esperamos semanas e semanas sem nenhuma palavra, e
estávamos todos terrivelmente angustiados, e os
Profetas, sabe, não facilitaram as coisas, sempre nos
mandando avisos com aquele jeito estranho, dizendo que
só conseguiriam manter a paz por certo tempo…
— Semanas? — Alizeh empalideceu. — Quantas
semanas? E o que você quer dizer com “Profetas”? E
Sarra… — Ela franziu a testa. — O que você sabe sobre
Sarra?
Foi a vez de Huda empalidecer.
— Oh, céus. Eu a mencionei, não foi? Por favor, não me
diga que sou a primeira a ver você?
Alizeh mal conseguia respirar devido à confusão em
seu peito.
— Sim — ela disse. — Você é a primeira.
— Ah, querida… — Huda sussurrou.
— O que está acontecendo? — Alizeh perguntou,
recuando. — Onde estou? Onde está Hazan? Onde
estão… Todos os outros?
Huda ficou imóvel, com os lábios hesitantes. Ela então
contorceu as mãos, olhando ao redor, nervosa, e saltou
quase trinta centímetros no ar quando ouviu uma batida
repentina na porta. Houve o ranger da madeira velha,
então…
— Senhorita… Podemos entrar também? Eles disseram
que ela está…
— Ainda não! — Huda girou rápido demais, falando
muito alto. — Preciso de mais um momento a sós com
ela; mas, depois disso, vocês podem aparecer para dizer
olá…
— Mas… Senhorita… Deen e eu realmente…
— Feche a porta, Omid! — ela praticamente gritou.
Ouviu-se o som de um suspiro sofrido, depois outro
ranger antes que a porta se fechasse de modo pesado.
Huda olhou para Alizeh e, então, com um terrível
sorriso, disse:
— Talvez você devesse se sentar.
— Eu prefiro não fazer isso.
— Sim, bem, então talvez eu deva me sentar — disse,
largando-se pesadamente sobre a cama. Huda fechou os
olhos, respirou fundo e depois tossiu, o rosto azedando
quando os olhos se abriram. — Meu Deus, como você
consegue respirar aqui dentro? Mal consigo pensar
direito com todo esse perfume.
De todas as coisas que Huda poderia ter dito, aquela
foi a observação mais indesejável.
— Acho tão gostoso — disse Alizeh, franzindo as
sobrancelhas. — Você não gosta do cheiro de rosas?
— Um pouco, talvez, desde que não seja tão ofensivo
para os sentidos — respondeu Huda, olhando ao redor da
sala com repulsa. — Mas temo que este seja forte
demais.
— Eu gosto — disse Alizeh, que se sentia
estranhamente na defensiva. Ela balançou a cabeça. —
Por que estamos falando das flores?
— Não sei, querida — disse Huda, magoada. — Estou
tão nervosa.
— E como você imagina que estou me sentindo?
— Melhor, espero? — Huda ergueu as sobrancelhas. —
Melhor que com a flechada nas costas, com certeza. Não
consigo imaginar que tenha sido muito confortável.
Ela riu; Alizeh, não.
— Sim, bem… — Huda apressou-se. — Não conheço
todos os detalhes, é claro, pois não costumo ser
convidada para as reuniões importantes, sabe… — Ela
ergueu o queixo. — Todo mundo é tão odiosamente
metido por aqui, como se eu não fosse confiável! Como
se eu fosse revelar todos os segredos do império!
Alizeh lançou-lhe um olhar significativo. Huda cruzou os
braços.
— E daí se eu às vezes divulgo minhas descobertas?
Um pequeno segredo compartilhado entre amigos não é
algo tão horrível, é? Se compartilhassem mais comigo, eu
não ficaria tão inclinada a bisbilhotar!
— Você esteve bisbilhotando?
Ela deixou cair os braços.
— Só um pouquinho, de forma totalmente inocente!
— Huda…
— Talvez mais tarde possamos conversar sobre todas
as cartas discretas que o príncipe Kamran tem escrito…
— Ela arqueou as sobrancelhas. — E sobre todas as
viagens misteriosas que o rei Cyrus tem feito…
— Você tem mesmo bisbilhotado.
Os olhos de Alizeh se arregalaram. Huda deu um
sorriso reluzente.
— Eu não sou tão inútil, sou? Não me importo com o
que mamãe diga sobre mim. De qualquer forma, para
responder a uma pergunta importante: estamos na
Residência dos Profetas de Tulan. Acontece que a razão
pela qual você estava se sentindo tão mal naquela
manhã… — ela fez aspas no ar — … “desagradável” era
porque você estava envenenada por uma magia das
sombras. — Huda mordeu a unha. — E é por isso que
você demorou tanto para se curar. Você está aqui no
templo há quase quatro semanas…
— Quatro semanas? — Alizeh gritou. — Estive
dormindo por quase um mês?
— Oh, tem sido uma tortura para todos nós, posso
garantir! Certamente não mais torturante do que foi para
você… — Ela se apressou para acrescentar. — Não quero
dizer que tenhamos sofrido mais do que você! Quero
apenas dizer que sofremos bastante, pois, mesmo com a
intercessão dos Profetas, não foi um tratamento simples.
Ninguém tinha certeza de quanto tempo sua cura levaria,
e essa incerteza tornou tudo ainda mais difícil. Eles
tiveram que, hum… — Ela mordeu mais uma cutícula. —
Sangrar a magia ruim do seu corpo…
Alizeh respirou fundo.
— Sim, é nojento! Grotesco, até! Embora eu não saiba
se eles de fato a fizeram sangrar, na verdade… Mas
parece horrível, simplesmente horrível… E, de qualquer
maneira, querida, ninguém consegue descobrir por que
você estava com aquele veneno no corpo e, bem… — Ela
se encolheu. — Naturalmente, todos têm brigado por
causa disso…
— Entendi… — O coração de Alizeh tinha disparado.
Huda suspirou, tirou os dedos da boca e olhou para
Alizeh.
— Os meninos têm sido horríveis. Eu os odeio agora!
Não Deen e Omid, é claro, mas os outros vivem brigando,
confabulando, resmungando e sendo ridículos. E pensar
que quase desmaiei quando vi Kamran pela primeira vez!
— Ela apertou o peito. — A maneira como ele se
comportou diante da multidão naquele baile horroroso!
Pensei que morreria ali, naquele círculo de fogo e, de
repente, lá estava ele… Caminhando em minha direção
como um herói, chamando-me de dama! Pelos céus,
Alizeh, pensei que nunca tivesse visto ninguém mais
magnífico em toda a minha vida. — Huda baixou a mão e
fez uma cara de nojo. — Acredita que, como fui criada na
cidade real, sempre sonhei em conhecê-lo?
Alizeh ergueu as sobrancelhas. Ela ainda estava
tentando digerir o fato de que estivera meio morta por
um mês quando disse, fracamente:
— Sim, acredito que seja bastante comum ser
apaixonada pela realeza.
Huda riu.
— É generoso da sua parte pensar dessa maneira. Meu
estômago revira-se quando me lembro dos sonhos bobos
da minha adolescência… Toda vez que minha mãe era
horrível comigo, ou quando minhas irmãs eram cruéis, ou
eu descobria que meus travesseiros estavam cheios de
entranhas de rato…
— Entranhas de rato?
— Sim, entranhas de ratos era o truque menos original
— disse ela, franzindo os lábios. — De qualquer forma,
toda vez que alguma coisa terrível acontecia, eu me
trancava no meu quarto, depois no meu armário e depois
na minha cabeça, onde morava o mais estúpido de todos
os meus sonhos… Eu imaginava que um dia conheceria o
magnífico príncipe, e ele seria tudo de bom e de glorioso
e… — Ela hesitou, parecendo de repente assombrada
pela memória. — Bem, suponho que pensei que ele seria
diferente. Mais gentil do que todos os outros.
Ela ficou quieta por um momento, lutando contra uma
explosão de emoção antes de voltar seu olhar para
Alizeh.
— Que bom que está tudo resolvido, não é? — ela disse
com um sorriso forçado. — Aliás, você se lembra de ter
sido envenenada? Acho que resolveria muitos dos nossos
problemas se você conseguisse se lembrar se alguém a
envenenou.
Alizeh piscou para a jovem e depois se sentou na
cama, ao lado dela. Sentia-se atordoada; sua mente
estava agitada, sem rumo. Tinha sido envenenada? Não
sabia. Não conseguia lembrar. Estivera mesmo dormindo
por quatro semanas? O que acontecera ao mundo em
sua ausência? E quanto ao seu povo, ao qual tinha feito
promessas?
Seu coração estava acelerado, seu pânico se
multiplicava. Sem pensar a respeito, Alizeh colocou um
braço em volta do ombro de Huda e a apertou,
mantendo-se firme enquanto a jovem senhorita cedia a
esse conforto. Alizeh ouviu Huda fungar profundamente,
retraindo os sentimentos que haviam escapado. As duas
estavam olhando para a janela em silêncio quando Alizeh
disse, baixinho:
— Se alguém colocar entranhas de rato em seus
travesseiros de novo, eu o mato.
Huda sufocou uma risada chocada e solta. Alizeh sabia
que não tinha sido fácil para Huda ser criada na alta
sociedade como a filha indesejada de uma mulher
malvista; não ajudava em nada o fato de Huda ter
herdado as curvas de sua mãe, o que a distinguia com
facilidade de suas irmãs. A silhueta de Huda era
voluptuosa de uma forma que poderia deliciar os piores
abutres predadores, ao mesmo tempo que levava sua
madrasta à loucura e à crueldade. Alizeh prestava
atenção suficiente a Huda para saber que sua fachada
barulhenta e irritante escondia uma dor esmagadora… E
também uma profunda ternura inexplorada.
Por que outro motivo a garota a teria seguido até ali?
— Nunca a agradeci por ter vindo me salvar — disse
Alizeh, com um sorriso fraco. — Considere isso um
reembolso por sua gentileza.
Huda riu de novo, desta vez mais alto. Ela enxugou os
olhos e disse:
— Meu Deus, não sei por que me transformei em um
regador. Tudo isso é um pouco demais para mim,
suponho. Um mês de preocupação, depois um grande
alívio, e agora uma oferta generosa de assassinato…
— Para que servem as amigas, senão para matar
nossos inimigos?
Huda teve um ataque de riso.
— Oh, não seria ótimo se pudéssemos escolher nossas
irmãs? Eu trocaria todas as minhas cinco por apenas uma
de você.
Alizeh recuou.
— Você tem cinco irmãs?
Huda assentiu enquanto seus ombros tremiam e sua
risada diminuía lentamente.
— Eu sou a caçula, acredita? As filhas mais novas
deveriam ser muito mimadas, não é? Mas mamãe diz que
nasci podre e não precisei de nenhum mimo para acabar
assim.
Huda ainda sorria enquanto falava, mas Alizeh
enrijeceu. Ela se virou com cuidado para encarar a
amiga, pois estava se lembrando de uma conversa
alarmante que tinham tido uma vez… De algo que Huda
havia lhe dito…
Se mamãe descobrir que eu a contratei para fazer um
vestido, serei reduzida a pouco mais do que um saco
ensanguentado e contorcido na rua, pois ela literalmente
arrancará todos os membros do meu corpo.
O nosta não tinha ficado nem quente nem frio diante
daquela horrível declaração, levando Alizeh a acreditar
que Huda não sabia de fato se sua mãe poderia agir com
tamanha violência. Alizeh estava começando a se
preocupar com o fato de a vida doméstica de Huda ser
muito pior do que sua língua afiada e seu ar
imperturbável levavam os outros a acreditar. Ela pensou
em testar o nosta de novo agora, em fazer a Huda uma
pergunta direta sobre sua mãe. Mas então percebeu,
com uma nova onda de pânico, que não tinha mais nada
em seu corpo além da camisola de seda. Todos os
pertences de Alizeh haviam desaparecido: o manto, o
vestido, as botas, o espartilho…
O nosta.
Será que teria caído de suas roupas naquela queda
mortal? Ou será que os Profetas o tinham confiscado
enquanto cuidavam de seus ferimentos? Como ela
poderia saber? Talvez pudesse perguntar a um dos
sacerdotes? Sua mente espiralava, e suas incertezas
aumentavam…
— De qualquer forma, querida, seria ótimo se você
pudesse tentar se lembrar. Você ao menos acha possível
que alguém a tenha envenenado?
A cabeça de Alizeh disparou ao ouvir isso. Ela mal
conseguia pensar direito, muito menos lembrar de algo
útil. Aquela conversa havia lhe causado tantos desafios
emocionais que agora se esforçava até mesmo para
passar de um pensamento a outro, e, ainda assim… Por
mais triste que fosse… Um possível atentado contra sua
vida era a menos chocante das preocupações de Alizeh.
Ela quase fora assassinada tantas vezes que um evento
desses não era mais motivo de surpresa. Na verdade,
estava se tornando bastante rotineiro.
— Sim — ela disse, piscando. — Sim, suponho que seja
possível.
— Nesse caso, devo dizer, por mais relutante que eu
esteja em concordar com o terrível humor de Kamran,
que Cyrus parece ser o suspeito mais provável de tal
crime, não importa quantas demonstrações dramáticas
ele tenha feito por toda a cidade. — Huda gesticulou com
desdém.
Alizeh tornou-se lentamente eletrificada.
Ela sentiu o tremor da consciência primeiro em seus
dedos, depois em seu peito e em outros lugares, seu
corpo ganhando vida com uma vibração aterrorizante de
sentimentos. Seu coração batia rápido enquanto ela
olhava ao redor, para as flores infinitas; a beleza
imensurável e devastadora. Suas palavras saíram
suspiradas quando ela disse:
— Cyrus fez isso?
DEZENOVE

Cyrus sentava-se no topo do velho telhado coberto de


musgo de um anexo bem no limite da fronteira com a
Residência dos Profetas, e a umidade da esponja
embaixo dele ia lentamente penetrando em seu manto.
Ele puxou os joelhos até o peito, reprimindo um arrepio
sob o sol fraco lá em cima. Enormes nuvens pairavam
sobre Cyrus, circundando o terreno com tamanha
densidade esbranquiçada que ele mal conseguia ver o
templo lá embaixo — embora pouco importasse. Ele
conhecia aquela propriedade melhor do que sua própria
casa. Bastava-lhe fechar os olhos para imaginar o quarto
em que ela se encontrava, para imaginar
detalhadamente suas dimensões e contornos. Quantos
anos ele vivera ali em sua adolescência? Quantas vezes
— incontáveis — correra livremente para os braços de
seus professores? Antigamente, sua vida não passava de
orações e mágica, silêncio e contemplação.
Agora…
Agora ele era apenas uma sombra atormentada do que
tinha sido um dia. Sua alma estava desfigurada; suas
mãos, chamuscadas pela escuridão.
Ele olhou para o jornal que segurava, de onde a
manchete parecia gritar para ele:

ALERTA EM TODO O MUNDO COM A IMINENTE


REVOLUÇÃO JINN

Era um exemplar do Daftar, o jornal mais importante


de Ardunia. Cyrus vinha recebendo cópias dessa e de
outras publicações havia meses, pois era seu costume
manter-se atualizado sobre as notícias internacionais.
Nutria um interesse particular nas manchetes do norte,
pois Ardunia era há muito tempo sua maior ameaça, mas
o próprio Cyrus não fora o foco do interesse estrangeiro
até seu primeiro e tenebroso mês como rei, um período
de sua vida tão sombrio que quase seria capaz de
eclipsar a era atual.
Quase.
Em quatro semanas, cerca de setenta mil jinns já
haviam se reunido em Mesti, a cidade real, e nas
províncias próximas. A cada dia, esse número crescia.
Apesar dos temores justificados de sua mãe, os jinns
vinham em missão de paz, pois não sabiam do estado de
saúde de sua rainha. Que Cyrus tivesse conseguido
esconder esse fato era nada menos que um milagre. Os
Profetas haviam consentido em permanecer em silêncio
no que dizia respeito a Alizeh, pois isso garantiria a paz.
Mesmo assim, não deixava de ser um risco, pois
sacerdotes e sacerdotisas eram incapazes de falar
mentiras e não mentiriam se lhes fizessem uma pergunta
direta. A magia que ligava os Profetas à verdade era a
mesma que lhes permitia detectar uma falsidade. Este
último era um talento que Cyrus também possuía até
certo ponto, embora sua educação no sacerdócio tivesse
sido incompleta e, por isso, suas habilidades fossem
imperfeitas.
Ainda assim, ele sabia que não deveria tentar enganar
um Profeta. Eles o interrogaram naquela terrível manhã.
Com Hazan à espreita, encontrara o trio de Profetas em
uma sala de recepção, e a visão de suas lendárias capas
pretas e líquidas despertou ondas de pavor e de saudade
nele. Em outra vida, ele teria sido um deles, teria
abandonado a posição e o prestígio para ocupar os
espaços liminares da existência, em que o ego era
negligenciado em favor da alquimia e da profecia. Era o
que ele sempre havia desejado: dedicar a vida à
destilação do ser.
Ele olhara para eles, para o rosto encapuzado deles,
sua quietude perfeita. Eles emanavam uma energia
calma e fortemente blindada, com um pulso constante
de magia pulsando dentro deles como um segundo
coração. Poderosos e sem nome, os Profetas eram um
enigma para a maioria das pessoas; muitos os julgavam
assustadores. No entanto, Cyrus sabia que aqueles que
eram atraídos pelas profecias eram muitas vezes
reservados e apaixonados, satisfeitos em passar a vida
fazendo perguntas sobre a terra e o céu. Mesmo assim,
já fazia tanto tempo que ele não se via na presença de
um Profeta que ficara nervoso.
O rei do Sul os cumprimentou como antes, baixando a
cabeça enquanto pressionava as mãos contra o peito.
Mas, embora eles tivessem retribuído o gesto, sua
desaprovação era palpável.
Ele não era mais um deles.
Mesmo naquele momento, Cyrus não desejava nada
além de raspar a cabeça e fugir do mundo; ansiava pela
liberdade dos Profetas. Ansiava pelas horas que antes
passava em um silêncio sociável, pelas manhãs
cansativas escavando magia nas montanhas, pelas
noites ensolaradas de verão limpando e separando a
colheita de cristais.
Cyrus havia aprendido anos atrás como refinar o
material precioso, como conjurar suavemente a magia da
pedra, sussurrando encantamentos quando era ainda
inexperiente demais para fazer isso em silêncio. Milhares
de vezes ele se machucara, quase decepando o braço
direito ao invocar o poder rápido demais. Convencer a
magia a deixar seu cristal e entrar neste mundo caótico
era como domar um dragão selvagem, algo brutal e
aterrorizante, e exigia não apenas um autocontrole
incomensurável, mas também um coração imenso, pois o
poder era sábio e não se deixaria libertar pacificamente
nas mãos de uma pessoa que considerasse indigna.
Bel nekan nostad, nektoon bidad.
Uma vez liberada, a magia provava ser uma presença
gentil. Tinha a energia de um gato em repouso, o peso de
uma rajada de vento que se enrolava no pescoço do seu
tratador, cantarolando de prazer.
Cyrus era um raro rei na terra que havia conhecido
aquela sensação.
A maioria dos membros da realeza passava a vida
como soldado, ou então envolvida em diversão e
frivolidades. Tradicionalmente, os nobres recebiam doses
de magia dos Profetas como presente, muitas vezes na
forma de alimentos, armamento reforçado ou roupas
encantadas. Os anos de Cyrus no sacerdócio lhe haviam
rendido uma rara autoridade e independência como
soberano. Ele tinha acesso a grandes estoques de magia
sem precisar da intercessão de um Profeta; por isso, não
havia quem interrogasse as formas como ele usava o seu
poder. Na verdade, ele era tão habilidoso no manuseio da
matéria preciosa, que vivia como os Profetas: sempre
pronto para lançar um feitiço.
E ainda havia estoques de magia intocados.
Os cristais mais poderosos eram tão voláteis que eram
quase impossíveis de manusear; quanto mais potente o
núcleo, mais difícil era extrair a pedra. Algumas
variedades eram tão temperamentais que explodiriam se
fossem tocadas pela pessoa errada, causando o colapso
de uma mina inteira. Ao longo dos anos, milhares de
pessoas tinham morrido tentando escavar as veneradas
minas… E Cyrus suspeitava, havia já algum tempo, de
que a magia de Alizeh era dessa origem intocável.
Mesmo os maiores Profetas de Ardunia não conseguiam
acessar os cristais das montanhas Arya, e, caso as
histórias fossem verdadeiras, se Alizeh fosse de fato
capaz de desenterrar tal poder, ela seria reconhecida por
todas as ordens sagradas da Terra como a maior Profeta
de seu tempo. Sua supremacia seria incomparável.
O mundo se curvaria a ela.
A cada dia, essa teoria improvável ganhava força. Jinns
de todos os lugares iniciaram um êxodo em massa.
Aqueles que podiam deixavam seus lares, percorrendo
grandes distâncias para chegar até sua rainha. Cyrus já
havia recebido avisos velados de aliados vizinhos e
ameaças diretas de ataque de nações distantes…
Simplesmente por abrigá-la.
A existência de uma rainha jinn era praticamente uma
promessa de revolução. Alizeh era uma ameaça para os
sistemas de opressão em vigor, para a exploração da
mão de obra barata de jinns que os impérios mantinham
encarcerados, para a ordem social estabelecida na Terra
durante milênios. Poucos outros reinos concediam aos
seus jinns alguma forma de liberdade. A maioria deles
era terrivelmente perseguida, caçada nas ruas, sujeita a
sistemas de castas que lhes negavam direitos humanos
básicos, ou, então, forçada a trabalhar em campos de
prisioneiros onde seus poderes eram controlados por
algemas mágicas e um estado sistemático de
desidratação. Assim, eles eram explorados para se obter
lucro; ali, eles viviam, morriam e tinham seus filhos.
Os impérios do mundo não poderiam permitir que
alguém como Alizeh ascendesse ao poder. E, embora o
rei do Sul soubesse que a sua trégua com Ardunia era
pouco mais do que uma farsa, o resto do mundo a via
como uma manobra política. O casamento iminente de
Cyrus com uma líder insurgente somada a sua recente
aliança com uma força tão poderosa quanto Ardunia,
tornavam seu humilde reino um alvo para todo tipo de
maldade e ganância.
Ele não sabia por quanto tempo poderia evitar o
ataque de algum império enfurecido, mas o pacto entre
Tulan e Ardunia provara ser um problema e uma
proteção. Afinal, embora a aliança tivesse causado
tremores de desconforto em todo o mundo, também era
o poder silencioso do lendário exército de Ardunia que
atualmente mantinha Alizeh segura em Tulan.
Tornara-se mais claro para ele, naquelas semanas
angustiantes, por que os pais dela a mantiveram
escondida e por que o diabo tinha sido tão inflexível em
relação ao casamento. Desde o nascimento, ela estivera
marcada. Sem um aliado, sem um exército, sem um
império e recursos — em forma de magia ou água —,
Alizeh não resistiria sozinha àquelas forças externas.
Grandes e necessárias mudanças sempre nasciam da
calamidade.
Sua vida estaria sempre em perigo enquanto ela
vivesse. Ele estava ruminando sobre esse fato naquela
triste manhã, imaginando o alvo real e figurativo nas
costas dela enquanto se apresentava diante dos Profetas,
com seu corpo vibrando de apreensão.
Por que ele está aqui?
Cyrus ouvira a voz em sua cabeça com um sobressalto,
pois ele a reconhecia. O sacerdócio exigia a renúncia à
vida material e aos seus títulos mortais — com o tempo,
até os nomes próprios eram perdidos —, mas um homem
que ele conhecia como Mozafer adiantou-se para falar.
— Ele insistiu em me acompanhar — explicou Cyrus.
Ele se virou para Hazan, cujo olhar foi quase violento. —
Ele está preocupado com sua rainha.
Não há tempo para isso foi a resposta.
De súbito, a sala de recepção desapareceu. Eles se
viram submersos em uma escuridão enfumaçada, na
qual nada além de quatro formas eram iluminadas por
uma fonte de luz invisível. Hazan não teve permissão
para se juntar a eles.
Mozafer não se prendeu a delongas.
A situação é grave, ele disse em silêncio. A menina não
está sarando.
Cyrus, que já esperava notícias terríveis, ainda assim
sentiu uma dor lancinante ao ouvir aquelas palavras.
— O que quer dizer com isso?
O sacerdote avançou e, depois, abriu a mão pálida,
sobre a qual brilhava uma camada de pó azulado.
Cyrus ficou visivelmente rígido.
A magia das sombras era a única que deixava resíduo.
Esse era o custo de se apelar à escuridão, de agir por
egoísmo: os restos tóxicos eram um subproduto da
substância impura filtrada para o mundo na forma de um
leve veneno. Cada ataque que Cyrus já recebera do
diabo fora desferido por meio desse tipo de magia, mas
seus restos sempre evaporavam; nunca antes haviam
manchado suas roupas.
Encontramos isto no bolso interior do manto dela.
Mozafer puxou seu capuz alguns centímetros para trás,
revelando a pele muito pálida, para estudar melhor os
olhos de Cyrus. Trata-se de um manto emprestado.
— É meu — ele confirmou, com o coração disparado. —
Mas eu não entendo… Não deveria ter sobrado nenhum
vestígio…
Você infligiu a ela um ferimento grave.
— Eu preferiria morrer a machucá-la!
Não importa se você quis fazer mal a ela ou não.
Mozafer puxou totalmente o capuz para trás, expondo a
cabeça raspada. Seus olhos castanhos eram inabaláveis,
mas não cruéis. O gelo em suas veias a impede de
absorver tal veneno. Enquanto em outros seu efeito é
leve, nela desencadeia uma reação incomum. Parece que
seu corpo prefere se destruir a metabolizar uma magia
contaminada.
Outro golpe de dor, direto no peito.
— O que vai acontecer com ela?
— Não sabemos. Nunca tratamos alguém como ela
antes.
— Mas ela vai viver? — Cyrus perguntou, em
desespero.
Mozafer hesitou. Seu corpo parece ter um mecanismo
natural de cura, que acreditamos que irá acelerar sua
recuperação. A exposição foi mínima. Ela tem grandes
chances de reabilitação. Mas pode levar algum tempo.
— Quanto tempo?
Mozafer balançou a cabeça. Semanas. Talvez meses.
Cyrus entrou em uma espiral.
Perdeu a compostura como não perdia desde que era
garoto. Ele se curvou, lutando para respirar, e emitiu um
som de angústia tão grave que até mesmo os Profetas,
que não tinham permissão para tocá-lo, avançaram, em
um gesto de solidariedade.
Havia tanta coisa para arruiná-lo. Sua culpa, sua
vergonha, seu medo. Saber que o mal em sua vida havia
se espalhado e a atingido; que, como resultado, ele com
certeza deixaria de cumprir as suas obrigações para com
o diabo; que esse fracasso destruiria tudo. Sua vida
estava se desfazendo ao seu redor, os tendões de seu
corpo cedendo a cada dia, esfarrapando-o aos poucos,
deixando pouco mais que carne e osso.
— O que irá acontecer, Mozafer? — Ele caiu de joelhos
e apoiou a cabeça nas mãos. — O que acontecerá
quando eu falhar?
Não temos permissão para falar sobre isso, foi sua
resposta gentil.
— Os Profetas continuarão a me evitar?
Sim.
— Será que algum dia poderei voltar ao templo?
Não enquanto você estiver amarrado a ele.
Cyrus ergueu a cabeça, lutando contra as lágrimas.
— E vocês não podem me oferecer uma única palavra
de orientação, quando estou tão desesperado por seu
conselho?
Mozafer ajoelhou-se diante dele, e o coração de Cyrus
apertou-se ao ver isso, ao sentir o calor nos olhos do
homem mais velho. Ele disse:
Durma.
E, então, eles desapareceram.
A fumaça se dissipou. Cyrus foi devolvido à sala de
recepção de joelhos, quase cego com a luz brilhante do
meio-dia. Ele foi imediatamente atingido pela
intensidade dos protestos furiosos de Hazan, mas voltou
o olhar para o chão, ignorando a explosão enquanto sua
mente rodopiava e seu coração disparava. Ele precisava
se recompor.
Precisava fazer planos.
Logo foi até a mãe, informando-a em voz alta que sua
futura noiva havia solicitado um período de calma e
reflexão antes do casamento, durante o qual ficaria na
companhia dos Profetas e não deveria ser incomodada.
Essa fofoca, prontamente captada pelos funcionários do
palácio, espalhou-se de forma rápida e eficiente por todo
o país, reforçando o mistério em torno da chegada da
rainha jinn.
Quanto aos peregrinos, estes começaram a chegar no
mesmo dia.
A princípio, alguns poucos, depois em massa, mas não
pediam nem água nem abrigo. Não queriam nada além
de espaço, e os Profetas então abriram seus vastos
terrenos para eles. Ali eles se reuniam em grupos bem-
organizados, enquanto o excedente se espalhava pelas
ruas, pelos parques, pelas colinas e pelas montanhas.
Dormiam onde estavam, independentemente do clima.
Em resposta aos muitos pedidos para vê-la, os Profetas
emitiram uma única palavra, uma declaração
excepcionalmente rara:
Paciência. E, então, os jinns esperaram.
Cyrus os estudava todos os dias. Observava-os crescer
em número, via-os ficarem inquietos e irritados e, enfim,
conformados, e logo o ciclo se repetia todo de novo. Em
pouco tempo, eles nomearam uma líder: uma mulher
pequena e idosa que, depois de dias assumindo a
responsabilidade de apaziguar brigas e resolver
discussões, tornou-se sua intermediária. O nome dela era
Dija, de Sorral.
Cyrus a estava observando agora. Com o rosto
enrugado coberto por finas camadas de cabelo branco
como leite, Dija estava em pé em um galho alto de uma
imponente árvore de magnólia, seu corpo tão franzino
que quase era levado pelo vento. Com um físico fraco,
mas um espírito feroz, ela se agarrava a um galho
próximo para se apoiar e, de seu posto, conduzia o coro
de vozes. Com os olhos fechados, Dija colocou a mão
livre sobre a cabeça enquanto gritava:

Pela terra que já foi nossa


Pelos milhões de corpos
Por nosso sangue em poça
Pelos séculos mortos
Justiça!
Justiça!
Pelos povos sem nações
Pelos pais sem esperança
Por doces mãos e corações
De nossas falecidas crianças
Justiça!
Justiça!
A multidão seguia seu exemplo, com as mãos postas
sobre a cabeça e os olhos fechados enquanto entoavam.
As vozes começaram a assombrá-lo ao longo do dia. Se
antes o tamanho da multidão tinha sido uma fonte de
preocupação, agora ele não sentia nada além de
espanto.
Era tudo por ela.
E ela, ainda assim, não abria os olhos.
No curso geral das coisas, Cyrus não era do tipo que se
entregava às suas mágoas. Mas ele fora autorizado a
ocupar aquele espaço nos limites da propriedade dos
Profetas precisamente porque seus ataques piegas de
emoção vinham se mostrando lamentáveis. Contanto que
seus pés nunca tocassem o solo sagrado, ele tinha
permissão para se sentar ali e observá-la de longe.
Durante o tempo que estivera ali — exatamente uma
hora —, ele se deixava abater pela melancolia.
Era um comportamento tão diferente de seu usual que
ele passou a se ressentir dele.
Ele se mexeu um pouco, erguendo a cabeça para olhar
mais uma vez para a massa de pessoas, quando um
gafanhoto se materializou como se viesse do nada, uma
faísca verde brilhante pousando levemente em sua mão.
O inseto firmou as asas e olhou para ele com seus olhos
misteriosos.
Olá, amigo, Cyrus disse silenciosamente.
O gafanhoto saltou em resposta, pousando em seu
ombro. Eram criaturas fascinantes, conhecidas por
ouvirem profundamente e falarem quase nada como
resposta.
Você a viu?, Cyrus perguntou.
O gafanhoto apenas ajustou as pernas e mexeu a
cabeça.
Você pode ir verificar? Depois me contar se tiver
havido alguma mudança?
Mais um movimento de cabeça, e o gafanhoto saiu
voando e desapareceu nas nuvens.
Cyrus observou-o partir enquanto guardava o jornal
amassado que ainda segurava na mão. Todas as noites,
durante quase quatro semanas, ele sonhou com Alizeh.
Com o corpo forte, mas com o espírito fraturado, Cyrus
estava tão embriagado com as experiências estonteantes
e sensoriais que tinha com ela que mal conseguia ver,
através da névoa de sua própria mente, o que era ou não
real. Contra seus próprios instintos, fez o que Mozafer
havia instruído: dormiu. Foi um bom conselho, pois
nenhuma magia poderia substituir as propriedades
curativas do sono, e Cyrus logo sentiu a diferença, pois
seu corpo ficou mais estável. Ainda assim, a agonia e a
felicidade daqueles estranhos pesadelos eram um preço
alto a pagar por um aumento na resistência física. Ele
acordava todos os dias dolorido e sem fôlego, o corpo
tenso de desejo, o coração batendo tão forte que o
assustava. Cyrus se sentia como um viciado em ópio,
desesperado por aqueles sabores de êxtase, mesmo
sabendo que eram venenosos. Ele parara de resistir.
Afogava-se de bom grado na sensação, intoxicado pelo
gosto dela. Era uma tortura que achava difícil definir.
Todas as noites, dormia com o rosto pressionado na pele
dela. Todas as noites, uma nova faceta de sua alma
morria por ela.
Ele se sentia mal o tempo todo.
Ficava elétrico de impaciência, de ansiedade. Às vezes
era como se tivesse engolido o sol, como se estivesse
lutando para conter um fogo que o mataria antes mesmo
de se apagar.
Enfim, Cyrus esticou o pescoço e balançou a cabeça.
— Já se passaram dias e dias disso — falou. — Já estou
farto. Certamente você deve estar também.
Houve silêncio a princípio; depois, por fim, o lento
esmagamento da vegetação sob um calçado. Passaram-
se vários segundos até que o jovem enfim se mostrasse,
embora Cyrus não tivesse se virado para encará-lo. Uma
rajada de vento empurrou um monte de nuvens em sua
direção, e ele gentilmente pressionou os dedos na massa
branca.
— Você sabia — disse Hazan, com cuidado.
— Que você estava me seguindo? — Cyrus quase riu.
— Claro que sabia.
— Então por que não disse algo antes?
Cyrus não respondeu de imediato. Estava ajuntando os
dedos através do vapor das nuvens quando por fim
disse:
— Suponho que estivesse curioso.
Hazan pairou sobre ele por mais um momento, depois
se acomodou no telhado a uma pequena distância,
estudando o rei do Sul.
— Curioso sobre o quê? — perguntou.
— Você.
O jovem se irritou.
— Por quê?
Cyrus enfiou a mão no bolso e depois abriu a palma,
onde estava o nosta que os Profetas haviam encontrado
escondido no corpo de Alizeh. Semanas antes eles
tinham entregado aquele objeto mágico a Cyrus e,
embora a descoberta tivesse sido um choque, também o
confortara saber que, de posse dele, ela saberia que ele
era confiável.
Ele enfim olhou para Hazan.
— Ela ganhou isto de você, não foi?
Hazan ficou imóvel, embora o pânico cruzasse seus
olhos.
— Onde conseguiu isto?
— Posso fazer a mesma pergunta — disse Cyrus. —
Considerando-se que isto é meu.
VINTE

Alizeh ainda estava observando a visão surreal em cor-


de-rosa ao seu redor o choque ainda atravessando seu
coração como um trovão.
— Cyrus fez isso — ela repetiu, desta vez sem emoção.
Pronunciar o nome dele já a deixava com uma
sensação estranha, como se estivesse fora de seu corpo.
Alizeh sentiu-se de repente desesperada para vê-lo, um
desejo dentro de si como uma dor física.
É claro que tinha sido ele.
Como ela não tinha chegado logo a essa conclusão?
— Como eu disse, considero um exagero — disse Huda.
— Ele está agindo como uma criancinha magoada…
Enchendo a cidade de flores, como se estivesse
planejando um funeral…
— Onde ele está?
— Quem? — Huda assustou-se. — Cyrus? Ah, não tenho
a menor ideia. Ninguém tem, na verdade, e ele nunca
contaria a mim quais são seus planos. Só sei que não se
pode confiar nele.
— Por quê? — perguntou Alizeh, arregalando os olhos.
— O que foi que ele fez?
— Você quer dizer além de todos os seus pecados
explícitos e declarados? — Huda riu. — Ele não matou
ninguém ainda, se é isso que quer saber. Mas ele é
muito, muito misterioso e esquisito. Imagina que eu já o
flagrei, várias vezes, conversando com todo carinho com
um dragão?
Alizeh fez uma careta.
— Mas isso não é assim tão esquisito, é? Pessoas
conversam com animais o tempo todo.
— Sim, mas quem fala com dragões? — ela disse,
exasperada. — Suas orelhas ficam a um quilômetro do
topo da cabeça, que, por sua vez, fica a um quilômetro
do chão! Imagine uma pessoa falar com um dragão
achando que ele consegue ouvir. Só pode estar louca.
A careta de Alizeh só se intensificou.
— Certamente você deve ter outra razão para não
gostar dele, não? Essa parece um pouco injusta.
— Ah, eu tenho muitas razões para achar que ele é
louco, não se preocupe. — Huda fez um gesto com a
mão. — Não preciso listar todas.
Ao ouvir isso, Alizeh sentiu como se algo tivesse se
apagado dentro dela, carregando toda a sua energia
consigo.
— Não — disse, baixinho. — Não precisa listar todas.
— De toda forma, como eu estava dizendo, deve ter
sido Cyrus que a envenenou, se ao menos você
conseguisse lembrar…
— Huda — ela pediu, olhando para as suas mãos,
tentando desesperadamente canalizar um pouco de
calma.
— Sim, querida?
— Eu gostaria de sair deste quarto… De encontrar
Hazan… Estou me sentindo um pouco fraca e acho que
um pouco de ar fresco me faria bem. Talvez possamos
terminar esta conversa mais tarde, de preferência
quando eu estiver vestida.
Huda emitiu outro gritinho de pássaro, depois deu um
salto da cama como se esta a estivesse queimando. Ela
olhou ao redor e disse:
— Sim! Claro, eles me disseram para lhe trazer
roupas… Já volto!
— O quê? Quem são eles?
Huda estava na metade da escadaria quando olhou
sobre o ombro:
— Os Profetas, é claro! Eles tiveram de botar fogo nas
roupas que você estava usando, sabe… — Ela pegou a
maçaneta. — Por causa da contaminação. Mas eu não
lamentaria muito a perda, porque estavam cobertas de
sangue…
— Huda… Espere…
Mas Huda já havia aberto a porta e chamado Omid,
trocando com ele algumas palavras apressadas, pegando
algo e depois voltando para dentro, batendo a porta com
o quadril. A madeira pesada fechou com tudo às costas
de Huda, que sorriu para Alizeh com grande alegria. Em
seus braços, ela estava carregando uma linda mala de
couro nobre e macio, azul com abotoaduras e
cantoneiras de metal.
Admirada, Alizeh apenas a encarava.
— Dá para imaginar a minha alegria? — Huda disse,
correndo pelas escadas. — Agora é a minha vez de vestir
você!
Alizeh sentiu a luz se apagando de seus olhos.
— Ah, não tema! Se não confiar no meu gosto, confie
no de Sarra. Eu e ela temos mais ou menos o mesmo
tamanho, então ela tem me deixado emprestar seus
trajes. — Huda inclinou a cabeça para trás e riu. — Estou
usando as roupas descartadas de uma rainha! Se mamãe
pudesse me ver!
— Sua mãe… — Alizeh repetiu baixinho, percebendo
que tinha negligenciado um detalhe importante. — Huda,
se você está aqui há quatro semanas, onde sua mãe
acha que você está? Sua família deve estar preocupada.
Huda arregalou os olhos.
— Ah, não! Na verdade, é tudo meio inacreditável.
Papai está loucamente orgulhoso… Ele disse que sempre
soube que sangue de embaixadores corria por minhas
veias! E agora mamãe não tem outra escolha além de
me elogiar para todos, agora que estamos praticamente
famosos…
— Famosos? O que você quer dizer?
— Sim, certo, é melhor começar do início, não? — Huda
colocou a mala no chão. — Bem, a notícia vinda de
Ardunia é de que os Profetas apoiaram Zahhak…
— Quem é Zahhak?
— Ah. — As sobrancelhas de Huda uniram-se. — Você
pode me lembrar onde parou em tudo isso? Foram
semanas frenéticas, e já não me lembro de quanto você
sabe.
Alizeh fitou a garota.
— Na última vez em que a vi, você estava tentando
bater na cabeça de Cyrus com um candelabro.
Huda ficou vermelha, depois riu de modo nervoso e,
antes que Alizeh pudesse questionar sua reação, a jovem
lhe transmitiu uma torrente louca de informações. Elas
passaram alguns minutos assim, com Alizeh
questionando e Huda a atualizando. Huda descreveu
tudo o que ocorrera depois que Alizeh fora levada
embora nas costas de um dragão, e como Zahhak — o
asqueroso ministro da defesa de Ardunia — tentara
roubar o trono do príncipe Kamran, “que foi preso em
uma torre pelos Profetas…”.
Alizeh arquejou.
— … mas então foi salvo por Simorgh…
Mais uma vez, Alizeh engasgou-se.
Além disso, Huda explicou sua presença durante
aquele período difícil no palácio:
— E, então, todos nós, incluindo eu, Deen e Omid,
voamos para Tulan, embora Kamran não quisesse que
viéssemos com ele. Ele foi inflexível ao dizer que não se
importava se algum de nós acabasse morto, porque ele
só queria assassinar Cyrus…
Só que ele não assassinou Cyrus e, em vez disso, os
dois chegaram a uma trégua impossível, que resultou em
um convite aberto para que o grupo permanecesse no
palácio. Quando Alizeh pediu para conhecer os termos
daquele improvável acordo de paz, Huda corou de
repente e se recusou a se aprofundar no assunto, exceto
para explicar que o príncipe, em uma virada inesperada,
estava agora sendo elogiado pelo povo de Ardunia por
ser um pacificador compassivo, já que era de
conhecimento geral que ele havia viajado até ali —
contra os interesses de Zahhak — na esperança de evitar
a guerra.
— E agora — disse Huda, ansiosa — todos nós ficamos
célebres por forjar a amizade entre os dois impérios!
— Céus! — exclamou Alizeh baixinho.
— Incrível, não é? — Huda estava balançando a
cabeça. — Nossos reinos nunca coexistiram tão
pacificamente. Já se passava mais de uma década desde
que um soberano arduniano era convidado a se hospedar
em Tulan. Na verdade — acrescentou ela, em voz baixa
—, descobri pelos criados (que, aliás, são estranhamente
calados quando se trata de fofocas sobre o rei) que Cyrus
nunca tinha hospedado um único convidado no palácio
durante seu governo, o que torna a nossa estadia ainda
mais excepcional.
— E ninguém acha isso estranho? — Alizeh perguntou.
— Que o príncipe arduniano tenha escolhido ser gentil
com a pessoa responsável pelo assassinato do rei de seu
império?
Huda pensou um pouco, inclinando a cabeça ao dizer:
— Na verdade, agora que penso em como tudo se
desenrolou, acho que teria sido muito pior se Kamran
tivesse, de fato, matado Cyrus. Sabia que uma multidão
tentou invadir o palácio antes de deixarmos Ardunia?
Alizeh balançou a cabeça, horrorizada.
— Bem… — Huda assentiu. — As pessoas ficaram tão
enojadas com Zaal depois que ele foi desmascarado no
baile que se revoltaram por cerca de uma semana. Até
mesmo a realeza estava lutando para se distanciar do
falecido rei… Alguns chegando ao ponto de elogiar as
ações de Cyrus, se é que é possível acreditar. Alguns até
participaram dos protestos.
— Contra o que protestavam? A possibilidade de
guerra?
Mais uma vez, Huda assentiu.
— A maioria se recusava a morrer em defesa de um rei
desonrado. Mas eles também estavam condenando
Kamran por associação, alegando que não queriam outro
soberano corrupto que fizesse um acordo com Iblees…
— Mas isso é terrivelmente injusto…
— Sim, terrivelmente injusto, mas os tumultos foram
reprimidos quando se espalhou a notícia de que o
príncipe já havia fugido de Ardunia, logo após a morte de
Zaal, para tentar fazer as pazes com o império do Sul. O
consenso foi de que ele foi maravilhosamente altruísta
por ter poupado o seu povo de um derramamento de
sangue desnecessário, mesmo enquanto estava de luto
pelo seu avô. — Ela riu e depois sacudiu a cabeça. — Não
é de todo verdade, claro, mas o que quero dizer é que, se
ele tivesse assassinado Cyrus, nossos impérios
certamente teriam entrado em guerra, o que teria
provocado uma péssima reação da população. Kamran
poderia ter enfrentado uma verdadeira insurreição. É
claro que… — Ela se inclinou para Alizeh. — Somos os
únicos que sabemos a verdadeira razão pela qual tudo
acabou dando certo para ele, e foi graças a você, não é?
— Ela se afastou e sorriu. — Cyrus queria muito que
todos nós fôssemos executados, mas Hazan ressaltou
que você ficaria terrivelmente zangada caso ele
assassinasse seus amigos, e ele não mencionou mais
esse desejo. E, agora, aqui estamos! Em trégua! O
melhor de tudo é que Zahhak acabou parecendo um
idiota, e Kamran um príncipe grandioso…
— E você, Omid e Deen são celebrados — Alizeh
terminou por ela, sentindo-se atordoada.
Era coisa demais para assimilar.
— Sim! — Huda gritou, mas logo ficou sóbria. — Apesar
de estar morrendo de preocupação com você, é claro, foi
o momento mais emocionante da minha vida. Estou
recebendo cartas de fãs! Dá para imaginar! As pessoas
me amam. — Ela hesitou. — Bem, são principalmente
crianças. Alguns velhos também, creio, embora às vezes
seja difícil dizer…
— Huda?
— Sim?
— Como Hazan se sente sobre tudo isso?
Ela se acalmou, seu sorriso congelado.
— Não sei.
— Mas pode arriscar um palpite?
Huda desviou o olhar, mordendo o interior de sua
bochecha.
— Acho que o melhor seria você conversar com Hazan
sobre como ele se sente. — Ela olhou para trás. — Ele
não compartilha seus sentimentos comigo.
Alizeh suavizou-se.
— Ele está bem, pelo menos?
— Suponho que sim… Ele tem estado terrivelmente
sombrio. Não tão mal quanto os outros; ainda assim, bem
sombrio.
— Entendo. — Alizeh desviou os olhos, parando um
momento para estudar a forma de uma rosa
particularmente delicada. Respirou fundo antes de dizer:
— E Cyrus?
— O que tem ele?
Alizeh lutou para encontrar os olhos de Huda. Era
quase impossível esconder seu interesse pelo rei do Sul,
embora ela se esforçasse para parecer indiferente.
— Como ele está?
— Como ele está? — Huda repetiu, surpresa. — Você
quer dizer, além de estar lelé da cuca?
Alizeh suprimiu uma hesitação. Não sabia explicar o
porquê, mas cada insulto que Huda dirigia a Cyrus
parecia atingi-la em sua dor. E, no entanto, ela não tinha
bons motivos para defendê-lo.
— Bem… — Huda continuou. — Suponho que você
deva saber: ele não age como um rei. Ele usa as mesmas
roupas sombrias todos os dias, sem qualquer pompa.
Fica obscenamente quieto; nunca se senta; nunca o vi
comer; e executa uma quantidade chocante de magia.
Desaparece ou aparece, por exemplo, quando menos se
espera. Eu vi mais magia dele neste último mês do que
em toda a minha vida… E estou inclinada a concordar
com Kamran que ele deve obter seu poder do diabo, pois
de que outra forma poderia lançar tantos feitiços? E
ninguém sabe para onde ele vai quando desaparece!
Muito suspeito. — Ela baixou a voz. — Embora eu tenha
ouvido Kamran furioso um dia, contando a Hazan que
tinha testemunhado Cyrus em um estado ímpio na noite
anterior… Algo sobre ele estar encharcado de sangue…
Alizeh respirou fundo.
— Eu sei! Horrível! Por outro lado, quando vi Cyrus
mais tarde naquele mesmo dia, ele parecia
perfeitamente normal, então temo que Kamran possa
estar exagerando. — Huda exalou, murchando com a
mesma rapidez com que se animava. — De toda forma,
ele é sempre grosseiro e horrível, e desperdiça toda a
sua magia maligna em demonstrações ridículas de culpa.
Céus, se ele se sente tão mal com o que aconteceu com
você, talvez nunca devesse tê-la sequestrado, para
começar! — gritou, tirando as pétalas da cama com
raiva. — Eu juro, é insuportável. Ele encantou cada
centímetro da cidade com as mesmas rosas cor-de-rosa e
se recusa a dizer uma palavra a respeito… Ele nem
mesmo admitiu que foi ele quem fez isso! Os cidadãos,
claro, pensam que são todas exibições elaboradas para o
Festival Wintrose, mas eu sei que não. Eu o peguei uma
vez cultivando rosas com as próprias mãos…
— Entendo — disse Alizeh com calma, para concluir. Ela
não suportava ouvir mais sobre as flores; seu coração já
estava vulnerável demais em relação ao notório rei do
Sul. — Presumo que ele tenha tratado todos vocês mal?
Huda hesitou.
— Não — ela disse. — Na verdade, fomos bem
tratados. Omid come por dez, e Deen está se deliciando
com os estoques de medicamentos disponíveis no
castelo. Deen diz que, em Ardunia, ele recebia apenas
uma pequena quantidade de magia da coroa para a sua
botica, mas aqui eles têm acesso a muito mais. Ele
perguntou ao rei um dia se poderia tentar misturar
poções, e Cyrus não lhe negou acesso. — Ela encolheu os
ombros. — Em suma, Omid come muito, eu bisbilhoto
muito, Kamran fica escondido, Hazan medita e Deen
passa a maior parte de seus dias trabalhando com o
alquimista do palácio. Todos nós nos reunimos para as
refeições, embora na maioria das vezes nem vejamos
Cyrus. Suponho que ele tenha muitas coisas secretas
para fazer como rei e tal.
Enfim, o pequeno discurso de Huda terminou, e Alizeh
virou-se para encará-la.
Mais mil perguntas estavam na ponta da sua língua,
mas ela foi impedida de perguntar, pois Huda lhe dirigia
um olhar curioso.
— Você vai mesmo se casar com ele? — ela perguntou.
Alizeh congelou. Sentiu-se estranhamente sem fôlego,
então apenas respondeu baixinho:
— Talvez.
Surpreendentemente, Huda não a condenou por isso.
Apenas inclinou a cabeça e disse:
— A princípio, eu não entendi, é claro. Mas agora
consigo ver a razão, eu acho.
Os lábios de Alizeh se separaram de espanto.
— Consegue?
— Claro. — Huda riu e depois franziu a testa. — Eu
poderia me casar com ele também, se isso significasse
matá-lo logo depois e tomar seu império.
No mesmo momento, Alizeh sentiu como se todo o
sangue tivesse se esvaído de sua cabeça.
— Como você… Como você…
— Oh, minha querida, não fique com tanto medo!
Ninguém está chateado com você! Isto é, Kamran ficou
angustiado no início, o que é compreensível, mas só até
Cyrus nos contar sobre Iblees tê-lo forçado a se casar
com você. — Ela fez um gesto com a mão. — Não se
preocupe; ele esclareceu os termos do seu acordo. Até
nos disse que se ofereceu para fazer um pacto de
sangue, o que, aliás, acho uma ideia muito boa, não
importa quão brutal Hazan afirme que o processo seja. —
Ela ergueu uma sobrancelha. — Eu não arriscaria me
casar com um homem daqueles sem um pacto de
sangue para garantir meu futuro.
Alizeh piscou, perplexa.
— Então, todo mundo sabe? E ninguém se opõe ao
meu casamento com Cyrus?
— Bem. — Huda roeu a unha. — Talvez você devesse
falar com Hazan antes de tomar sua decisão final. Temo
que ele tenha muito a lhe dizer sobre o assunto.
Mais uma vez, Alizeh piscou.
— Entendo.
— De qualquer forma — disse Huda, toda alegre,
batendo na mala. — O vestido que escolhi para você é
sublime. Sarra me mostrou o enxoval que ela preparou
em sua homenagem. Juntas examinamos os muitos
artigos que ela selecionou para o seu guarda-roupa. A
propósito, a maioria das coisas tem de ser refeita de
acordo com as suas medidas… O que achei chocante,
considerando-se como aquele vestido lilás caiu bem em
você na noite do baile. Mas Sarra explicou que os
presentes de Cyrus foram encantados para se ajustar a
quem os usava, enquanto as roupas que ela escolheu são
encomendas comuns…
— Huda — disse Alizeh, lutando para se concentrar —,
não quero ofendê-la, mas fiquei um pouco abalada
depois de tantas revelações. Acho que preferiria voltar ao
palácio e escolher minhas roupas. Há muitas conversas
importantes pela frente, e tudo que preciso agora é de
algo decente e sensato…
Huda zombou:
— Como se você pudesse usar algo decente e sensato
para enfrentar tamanha multidão! Você é a rainha deles,
querida, e tem de ter uma aparência adequada,
sobretudo porque todos eles tiveram tanta paciência
para esperá-la…
— O quê?
Huda, que estava destrancando a mala, parou um
pouco.
— Verdade… — ela disse, estremecendo. — Acho que
me esqueci de mencionar essa parte…
VINTE E UM

— Não é possível — disse Hazan, sem disfarçar sua


apreensão. Ambos observavam o nosta na mão
estendida de Cyrus. — Como poderia pertencer a você?
Minha mãe o deixou para mim em seu testamento.
Uma onda de calor do nosta confirmou as palavras,
embora Cyrus não precisasse de tal auxílio, já que era
hábil na detecção de mentiras.
— Quem era sua mãe?
Hazan cerrou a mandíbula.
— Não vim aqui para ser interrogado.
— Não — Cyrus disse, encarando-o. — Você veio aqui
para me interrogar.
— Não será um choque ouvir que eu não confio em
você — continuou Hazan, lívido de raiva.
Cyrus quase sorriu.
— E você espera que eu apazigue os seus medos?
— Eu quero saber os termos do seu acordo com o
diabo.
— Não.
— Quero saber o que você ganha com esse arranjo…
— Não.
— E quero saber se ela estará segura como sua
esposa.
Cyrus enrijeceu ao ouvir as palavras sua esposa. A
profundidade de sentimento que ele experimentou ao
ouvir o som do possessivo sua o distraiu por um
momento. Era absurdo, claro; mesmo que ela aceitasse
se casar com ele, ela não seria sua de fato. Ele sabia
disso; ainda assim, seu coração se recusava a
desacelerar.
Lentamente, ele encarou os olhos de Hazan.
— Sempre — disse. — Ela sempre estará segura
comigo.
O nosta ardeu em sua mão, e Hazan testemunhou a
mudança de cor com um misto de admiração e receio.
— Agora é minha vez — disse Cyrus, mexendo a
pequena peça de mármore entre os dedos. — Você sabia
que esta é uma relíquia de família? Tem sido passada há
muitas gerações. É por isso que os Profetas a devolveram
para mim. Meu pai pensou tê-la perdido muito tempo
atrás.
Os olhos de Hazan endureceram.
— Como eu disse, foi uma herança da minha mãe.
— Mas você deve ter algum conhecimento de sua
história.
Hazan não falou nada.
— Você não é um jinn qualquer, é?
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que deve ser difícil mentir o tempo todo
sobre quem se é.
Hazan ficou quieto por tanto tempo que o silêncio
pareceu se acumular entre eles como uma fumaça
sufocante. Foi sem esconder sua raiva que enfim disse:
— Você não sabe nada sobre mim.
O nosta emitiu um brilho branco e frio.
— Sua mãe era cortesã — disse Cyrus, virando os olhos
para as nuvens. — De acordo com as minhas fontes, ela
passava boa parte do tempo na corte arduniana e era
uma amada dama de companhia da falecida rainha. Sua
destreza ao esconder a identidade de jinn e espiã foi
admirável, e por isso ela recebeu muitos presentes
preciosos como pagamento por seus serviços. Alguns
deles… — ele inclinou a cabeça para Hazan — … foram
roubados. — Ele pausou. — Mas quem, então, teria sido
seu pai?
Hazan estava trêmulo de ódio.
— Não responderei às suas perguntas até que você
responda às minhas.
— Pois faça-as — disse Cyrus.
— Para começar, quem diabos é você?
— Talvez deva ser mais preciso.
— Você não é um homem comum — afirmou Hazan, de
modo acalorado. — Não é um rei comum. Tenho o
observado de perto nestas últimas semanas, e nada a
seu respeito faz sentido…
— Nada? — Ele arqueou as sobrancelhas. — De fato?
— Você nunca usa joias.
Cyrus encarou Hazan e disse:
— Isso é um crime?
— Para um rei? Está louco?
— Estou vendo que tem reclamações sobre a minha
forma de vestir.
— Você nunca usa nada colorido. Com frequência, usa
um chapéu. Possui apenas roupas simples e lisas. Nada
de ouro, nenhum acessório nem ornamento, nenhuma
coroa sobre sua cabeça. Aliás, na maior parte do tempo,
você anda de cabeça baixa…
— Esta conversa está me entediando. — Cyrus olhou
para as suas mãos, depois para suas botas, que tinham
escurecido com a umidade. — E não sei o que mais você
quer saber de mim. Já revelei meus segredos.
— Mentiroso.
Cyrus ergueu a cabeça.
— Você reconheceria outro mentiroso, não é mesmo?
— Eu vivi em Ardunia minha vida inteira… Tenho
trabalhado a serviço da coroa desde que era criança… E
você… Você não age como um rei. Não tem comitiva,
nem criado particular, nem comidas prediletas. Você se
reporta diretamente à criadagem…
— Basta — interrompeu Cyrus. — Não sei aonde você
pretende chegar com essas acusações.
Mas Hazan havia encontrado um caminho certeiro, e
seus olhos se tornaram mais argutos.
— O povo é leal a você apesar da maneira violenta
como ascendeu ao trono. Os criados recusam-se a falar
alguma coisa de ruim sobre você. Você dá a sua mãe
controle demais sobre o palácio e paga aos funcionários
dez vezes mais do que o preço de mercado…
— Eu disse que já basta…
— Você a ama, não ama?
Cyrus não foi rápido o suficiente para rebater e estava
chocado demais para zombar da insinuação. Pior: ele
parecia ter sido atravessado por uma cimitarra.
Hazan, por sua vez, ficou perplexo.
— É verdade, então? — Ele respirou. — Você de fato a
ama?
Cyrus não disse nada. Nem precisava. A seriedade de
seu sentimento por ela não tinha como ser contida, e
ambos assistiram, horrorizados, o nosta ardendo em
vermelho sobre sua mão. Cyrus fechou o punho. Porém
era tarde demais.
O silêncio pesou entre eles, mas logo, de alguma
forma, cedeu. Pela primeira vez em semanas, Hazan
pareceu relaxar, como se aquela terrível confissão
tivesse lhe oferecido algum conforto.
— É possível? — ele disse, menos raivoso. — Como
pode amá-la se nem a conhece? — Hazan virou-se para
encará-lo, para olhá-lo nos olhos. — Você a conhece?
Cyrus já não podia suportar aquilo. Ele se levantou,
ansioso para desaparecer… E, assim que ficou em pé,
avistou os terrenos amplos, a grande multidão de
pessoas e, em seguida, através de uma abertura nas
nuvens, um enxame crescente de gafanhotos. Era como
um espetáculo de terror, como confetes surreais
dispersos no céu.
Cyrus respirou fundo.
— O que foi? — perguntou Hazan. — O que está
acontecendo?
Ele se levantou, olhando ao longe enquanto os
gafanhotos se dispersavam lentamente.
A mensagem fora recebida.
— Ela acordou — Cyrus sussurrou.
VINTE E DOIS

— Não quis dizer que você precisa falar com eles — disse
Huda, que estava perseguindo Alizeh pelo corredor com
uma ansiedade perceptível. — Só quis dizer que eles vão
vê-la quando você deixar o templo, e só pensei que
gostaria de estar em sua melhor forma…
— Quase quatro semanas! — exclamou Alizeh. — Eles
estão esperando por mim há quase um mês, Huda, como
eu poderia passar por eles sem dizer uma palavra? Devo
falar com eles. Qualquer coisa menos que isso seria
cruel…
— Eu… Perdoe-me, mas não sei se essa é uma boa
ideia… — disse Deen, que, junto com Omid, se apressou
para acompanhá-la. — Não acho que Kamran aprovaria…
Alizeh parou, fazendo com que Huda trombasse com
ela. Ela se desculpou antes de endireitar a amiga e
depois se virou para o boticário.
— Por que Cyrus não aprovaria? — perguntou.
Alizeh deveria se constranger por estar tão ansiosa por
qualquer oportunidade de discutir Cyrus; ainda assim,
não conseguia entender seu desejo de ouvir alguém
dizer o nome dele.
— Eu não disse… — Deen piscou. — Perdoe-me, eu
disse Cyrus? Quis dizer Kamran.
— Não, você falou certo — disse Huda, ao mesmo
tempo que lançava um olhar estranho para Alizeh. —
Você disse Kamran.
— Oh. — Alizeh desviou o olhar, tentando esconder sua
decepção. Ela começou a andar de novo, o farfalhar de
suas saias ecoando no corredor de pedra. — Devo ter
ouvido mal.
— A propósito, mandamos uma mensagem para ele —
disse Deen, acompanhando-a. — Da última vez em que
tive notícias, ele estava ocupado com alguns negócios,
mas deve chegar aqui em breve.
— Quem? O rei?
— Não, Kamran — disse Huda, que parecia preocupada.
— Você está bem, querida?
— Sim — disse Alizeh, tocando a garganta com a mão.
Estava olhando ao redor cegamente, procurando a saída.
— Sim, estou bem. Como saímos daqui?
— Como você pode se mover tão rapidamente com
esse vestido? — observou Huda, recolhendo a bainha
enquanto se movia. — Só a cauda tem mais de um
metro!
— Não que você não esteja adorável — acrescentou
Deen, apressadamente. — Está lindíssima.
Alizeh olhou para ele, sua ansiedade por um instante
dominada pela gratidão.
— Obrigada — ela disse, sendo sincera. — Nunca usei
uma roupa tão requintada em minha vida.
Era uma obra-prima de seda de um tom rosa-pálido,
com renda e tule cravejado de diamantes. Cada
centímetro do material era decorado com intrincados
bordados dourados, pontos finos brilhando com ainda
mais pedras preciosas. O tecido do corpete, com gola
alta e mangas compridas justas, era resplandecente,
habilmente bordado em tecido brilhante e pedras cor-de-
rosa. No topo da cabeça, ela usava um véu transparente
combinando, sustentado por uma tiara dourada que
brilhava como uma coroa. Ainda não tinha vislumbrado
seu próprio reflexo, pois não tivera tempo, mas só
precisava baixar os olhos para ficar maravilhada consigo
mesma.
Depois de todos os anos como criada, Alizeh ainda
resistia ao esplendor. Não acreditava que uma pessoa se
tornasse melhor usando roupas elegantes, mas não
podia negar o poder de uma vestimenta. Era um dos
motivos pelos quais gostava de ser costureira: pedaços
de tecido podiam ser transformados em armadura. Uma
roupa podia ser usada para engrandecer uma pessoa ou
destruí-la. Apenas aquele vestido opulento já a tinha
ajudado a mudar sua mentalidade.
Ela se sentia como uma rainha.
— Há uma porta para um pátio mais à frente — dizia
Huda — e, de lá, você pode acessar uma das varandas…
— Esta é uma má ideia. — O ex-menino de rua
balançava a cabeça, suas longas pernas ajudando-o a
manter o ritmo com facilidade. — Eu não acho que
deveria fazer isso… Há um milhão de pessoas por aí,
senhorita.
Huda bateu em seu braço, e ele se encolheu.
— Quero dizer, Majestade…
— Huda me garantiu que eram menos de cem mil —
disse Alizeh. — E você não precisa me chamar de
Majestade.
— Eu não sei quantas pessoas há lá fora… — Omid
respondeu, ansioso. — Só não quero que a senhorita se
machuque.
Alizeh parou no lugar, de tão surpresa que ficou.
Lentamente, ela se virou para encarar o garoto,
descobrindo medo em seus olhos. Rir de sua dor, ela
sabia, só o magoaria. Ela também havia perdido os pais
em tenra idade; sabia como o terror e a solidão se
propagavam junto com a dor tal qual ervas daninhas
invasoras. Nunca haveria outro abraço caloroso. Nunca
mais haveria uma mão amorosa para acariciar seus
cabelos. Não houve mais um dia em que ela não tivesse
lutado com a impermanência da alegria. Em questão de
meses, aquele pobre garoto perdera os pais, passara a
viver nas ruas, vira seus amigos serem assassinados por
Zaal e, depois, perdera também os Profetas que o
haviam acolhido.
Ele estava com medo de perdê-la também.
Alizeh observou Omid engolir um nó de emoção antes
de avançar, abrindo os braços para ele. Ele tinha pelo
menos trinta centímetros a mais que ela, mas ela sabia
que ele era apenas uma criança… Uma criança como
tantas outras que precisavam de conforto. A princípio,
ele empalideceu diante da oferta; mas, então, parecendo
prestes a chorar, agarrou-se a ela, ganhando um tom de
vermelho tão brilhante que contrastava com seus cachos
ruivos.
— Não quero desarrumar seu vestido — ele murmurou.
Ela apenas o abraçou com mais força.
— Não se preocupe comigo — ela disse, enfim, dando-
lhe um aperto antes de segurá-lo com o braço estendido.
— Eu ficarei bem.
Ele olhou para o chão, com o rosto ainda corado.
— Eu me preocupo, senhorita. Eu me preocupo. Você já
quase morreu… E eu sei como é estar em grandes
multidões… Eu e os meninos costumávamos praticar
nossos melhores golpes em espetáculos assim. Ladrões e
bandidos adoram se infiltrar em grandes multidões…
— Odeio dizer isso, mas a criança está certa — disse
Deen. — Você não deve se colocar em perigo. Além
disso, acabou de acordar… Talvez devesse tirar um
tempo para se recuperar um pouco mais. Eu poderia
preparar um chá medicinal para reavivar seu ânimo…
— Agradeço a preocupação de vocês — disse Alizeh,
olhando para os amigos. — Agradeço mesmo. Mas devo
falar com meu povo, mesmo que isso me coloque em
perigo.
Eles apenas olharam para ela, suas expressões
transmitindo níveis variados de pânico e resignação.
— Há algo mais que desejam me dizer… — Alizeh
adivinhou, com suas sobrancelhas se juntando. — O que
é?
— Os rumores ao longo das rotas comerciais têm sido
preocupantes. Alguns… — Deen falou calmamente,
embora não mais olhasse para ela. — Muitos
comerciantes que conheço me escreveram perguntando
sobre a senhora, e as histórias que compartilharam… —
Ele balançou a cabeça. — Majestade, é imperativo que
saiba quantos querem lhe fazer mal.
— É verdade — acrescentou Huda, seus olhos indo dela
para Deen e vice-versa. — Perdoe-me, querida, mas
muita coisa mudou desde que você adoeceu. Mesmo
aqui em Tulan há muitos contra você. O grande afluxo de
migrantes tem sido terrivelmente perturbador… Tem
irritado os cidadãos, por mais pacíficas que as multidões
sejam. Eles não querem você aqui…
— É pior do que isso — disse Omid com raiva, tirando
um jornal dobrado de dentro da jaqueta e o entregando a
Alizeh. — Eles querem que a senhorita morra.
— Omid! — Huda engasgou-se, tentando arrancar o
jornal de sua mão. — Você não deveria ter trazido isto!
Com a mandíbula cerrada com determinação, Omid
desviou com facilidade e entregou o jornal a Alizeh, que o
pegou com cuidado. Ela sabia, pelas páginas verdes
empoeiradas, que havia recebido um exemplar do Daftar,
o jornal mais famoso de Ardunia, embora não soubesse
como eles tinham conseguido um exemplar tão longe de
casa. Ela olhou mais uma vez para os rostos preocupados
e zangados de seus amigos antes de dirigir seu olhar
para a publicação, abrindo-a para ler a manchete.

ALERTA EM TODO O MUNDO COM A IMINENTE


REVOLUÇÃO JINN

Príncipe Kamran tenta semear a paz,


aumentam as ameaças de violência, Tulan é
alvo

MESTI — Em um feito histórico, sem


precedentes, dezenas de milhares de jinns
invadiram a capital do reino do Sul. Muitos
ainda devem chegar. Os migrantes indesejados,
vindos de todo o mundo, são a primeira onda a
invadir Tulan com um propósito: jurar lealdade
àquela que acreditam ser sua rainha. A
tradição jinn há muito prevê a chegada de uma
salvadora, embora muitos tenham motivos
para duvidar da ascensão vertiginosa de uma
jovem que, de acordo com numerosos relatos,
ainda não reivindicou a liderança de seu povo.
Vista brevemente perante uma multidão muito
menor, a suposta rainha recusou-se a oferecer
qualquer prova material de sua identidade,
evitando perguntas diretas e oferecendo vagas
promessas de explicação em uma data
posterior, até agora incerta. Há quase um mês
ela tem se mantido escondida, alegando
necessidade de calma e reflexão, enquanto
seus seguidores atravessam as fronteiras de
Tulan e os cidadãos do império vivem em
turbulência. Já foi amplamente divulgado o fato
de o rei tulaniano ter escolhido a misteriosa
jovem como sua noiva, uma decisão política
incendiária que pode lançar Tulan em um caos
ainda maior. Resta saber se tal união ocorrerá.
O rei tulaniano, Cyrus, recusou-se a
comentar.
Um aumento na atividade criminosa nas
comunidades jinns já foi observado em todo o
mundo. Na semana passada, o império de
Zeldan lutou para conter uma série de levantes
em um de seus maiores campos, enquanto dois
guardas prisionais em Sheffat teriam sido
assassinados em confronto com um prisioneiro.
Uma revolução jinn, de acordo com a dra.
Amira de Reinan, aclamada professora de
estudos jinns na Universidade de Setar,
“poderia resultar em uma das guerras
mundiais mais sangrentas da história”.
Ardunia, que faz fronteira com Tulan, foi quem
sofreu o maior êxodo jinn até agora, o que tem
gerado receio em muitas comunidades de todo
o império. A província de Gomol, localizada no
norte, na base das montanhas Arya, foi
praticamente esvaziada, e muitas casas e lojas
foram abandonadas. Os comerciantes locais
expressaram insegurança quanto ao futuro de
seus negócios, com a pouca saída da safra
recente de cereais e de outros produtos.
Ainda assim, o apoio popular permanece com
o príncipe Kamran, a quem muitos expressam
uma enorme gratidão. Muitos ardunianos
esperam que o príncipe, como raro líder de um
reino misto, seja capaz de semear a paz para
além de Tulan, ajudando a guiar o mundo em
direção a uma maneira equilibrada de lidar com
os cidadãos jinns de todos os lugares. Ainda
não se sabe quando ele retornará para a tão
esperada coroação, embora novas informações
tenham levado a realeza a especular se o seu
atraso se deve a um interesse bem diferente.
Alguns dizem que a suposta rainha jinn é na
verdade a mesma jovem que poucos
conseguiram identificar na noite do baile real…

Deen arrancou o jornal das mãos de Alizeh, que se


assustou, piscando de modo nervoso para o boticário e
recuando um pouco.
— Como profissional da medicina, Majestade, não
posso recomendar a leitura de tais notícias…
— Deen…
— Devolva para ela! — Omid gritou, tentando arrancar
o jornal das mãos de Deen. — Ela tem de saber o que
estão dizendo…
— Omid — disse Huda, com paciência. — Ela não
precisa saber tanto.
— Ela deveria saber! Você nem a deixou ler a pior
parte…
— Tudo bem… — disse Alizeh, sem perder a calma. — É
o bastante.
Omid ofegou bruscamente, cerrando a mandíbula
enquanto olhava para o chão. Sua raiva era palpável, e
Alizeh ficou tocada ao vê-lo tão preocupado por ela.
Ainda assim, ela precisava se sentar.
Alizeh estaria mentindo se dissesse que não fora
afetada pelo que tinha lido. Estava mais do que afetada.
Estava perturbada, assustada e sentindo-se oprimida.
Ela fora ingênua.
Não esperava tamanha raiva do resto do mundo; nunca
imaginara como Cyrus e Kamran se envolveriam em seu
destino; e havia se mostrado cega quanto aos perigos de
seu papel como rainha jinn. Ainda assim, ficara menos
ofendida pelas ameaças contra a sua vida do que pela
insinuação de que tinha abandonado seu povo. Há quase
um mês eles esperavam por ela. Famílias. Crianças.
Enfermos e idosos. Ela não tinha ideia das dificuldades
que eles enfrentaram.
Ela nunca os deixaria assim por tanto tempo.
Fechou os olhos com um suspiro, depois olhou em volta
com uma agitação cuidadosamente contida, sentindo-se
trêmula e inquieta, mas não havia como descansar.
Como tudo o mais que ela vira no templo, o salão de
pedra onde se encontravam estava desgastado, em
ruínas, mas as paredes esburacadas eram interrompidas
por uma série de janelas estreitas que davam para um
pátio interno, pelas quais uma luz intensa e sinais de
vida floresciam em direção a eles.
Huda, que parecia ler a mente de Alizeh, fez menção
de conduzi-la em direção ao pátio quando Omid se
colocou rapidamente entre elas, bloqueando a porta.
— Não — disse ele, com os olhos brilhando de fúria.
Huda colocou as mãos na cintura.
— Eu sei que você está com medo, Omid, mas está
sendo ridículo…
— Não estou sendo ridículo — ele rebateu. — Se for lá
fora, ela vai ouvi-los, e então nunca vai…
— Ouvi-los? — Alizeh disse, espiando pela janela como
se pudesse ver um som. Só quando se concentrou é que
enfim ouviu um zumbido suave, uma vibração do que
poderia ser um coro de vozes. — O que estão dizendo?
Deen balançou a cabeça para Huda.
— Não acredito no que direi, mas concordo com a
criança. É perigoso para ela ir até lá, e não devemos
encorajar tal atitude…
— Isso não depende de nós! — Huda gritou. — Eu
também não concordo, mas também não acho que tenha
o direito de forçá-la…
— Então você a deixará ser morta? — Omid quase
gritou de volta.
— Omid…
Deen balançou a cabeça de novo, desta vez com mais
vigor.
— Se Hazan descobrir que a deixamos sair
desprotegida diante de cem mil pessoas, ele nos matará
na mesma hora…
— São menos de cem mil…
— Por favor, não sou tão frágil quanto vocês parecem
pensar — objetou Alizeh. — Sempre fui capaz de me
proteger…
— Ninguém pensa que a senhorita é frágil — disse
Omid, com a voz grave. Ela nunca o tinha visto tão sério.
— Só porque queremos protegê-la não significa que seja
fraca… Significa que é importante.
Alizeh aproximou-se dele, e Omid ficou em silêncio,
suas palavras morrendo com um suspiro. Ela pegou nas
mãos dele quando encontrou seu olhar febril.
O corredor também ficou estranhamente silencioso.
Omid amadurecera em sua ausência, ela podia ver em
seu rosto. Considerava-o velho demais para um garoto
de doze anos, alto demais, sofrido demais. Ainda assim,
as refeições regulares haviam preenchido as lacunas do
corpo. Seus olhos castanhos não estavam mais
arregalados e fundos; ele não era mais arisco; não mais
castigado pela fome. Parecia agora maior, mais
completo, mais concreto. Era assustador imaginar que
aquele jovem forte uma vez enfiara uma adaga grosseira
no próprio pescoço, que uma vez tentara se matar no
meio de uma praça da cidade real. Alizeh relembrou esse
fato chocante com um espasmo doloroso, mas sua
preocupação foi se apaziguando quando ela ouviu o leve
tremor da respiração dele e viu a tensão
sobrecarregando seus ombros.
— Você — ela disse baixinho, encarando-o — sempre
será uma pessoa querida para mim. Por sua bondade,
sua lealdade… Por sua coragem diante das crueldades do
mundo. Eu gostaria que você nunca tivesse sofrido,
desejo a você uma vida inteira de tranquilidade. Desejo
que você enxergue sua própria força, que veja cada
escolha difícil que fez para transformar sua dor em uma
armadura de resiliência e compaixão, quando poderia tê-
la usado para se entregar à escuridão. Se quiser um
lugar na minha vida, você o terá. Mas, agora, neste
momento, deve me deixar ir. Eu voltarei para você,
Omid. Eu juro.
O menino a encarou por um longo tempo, com os olhos
cheios de sentimento contido, depois voltou o olhar para
o chão.
— Tudo bem, senhorita — ele sussurrou. — Se a
senhorita for, eu vou junto.
— Não — disse ela, afastando-se dele. — É muito
perigoso… Você mesmo disse…
— Eu também vou — disse Huda, endireitando os
ombros.
— E eu — ajuntou Deen, parecendo cabisbaixo ao dar
um passo à frente.
— Mas… — Alizeh olhou para eles. — Vocês acabaram
de gastar os últimos minutos tentando me convencer a
ficar longe da multidão…
Foi Huda quem falou primeiro:
— Mesmo assim, você não tem medo.
— Claro que tenho medo! — disse Alizeh, rindo
enquanto seus olhos lacrimejavam. — Mas vocês não
veem? Se eu deixar o medo me impedir de fazer o que é
certo, sempre estarei errada.
— Falou como uma verdadeira rainha — disse Huda.
Foi Deen, então, quem disse calmamente:
— “Esperemos pelo dia em que todos possamos
remover as nossas máscaras e viver na luz sem medo.”
Alizeh enrijeceu, virando-se para encará-lo. Deen
recitara em voz alta algo que uma vez ela havia lhe
falado. Ela mal sabia o que dizer.
— Essas palavras estão gravadas em meu coração frio
e enrugado — disse ele, com um leve sorriso. — Eu
gostaria muito de viver em um mundo onde a senhora
fosse a rainha.
— Obrigada — disse ela. — Sou muito grata por sua
amizade.
— E eu, pela sua. — O sorriso dele se alargou. — Devo
dizer que sempre suspeitei de que a senhora não era
uma snoda comum. Mas nunca imaginei que…
— Ah! — exclamou Huda. — Nem eu.
Omid balançou a cabeça, enxugando discretamente os
olhos.
— Não — disse, falando em ardanz com sotaque. —
Você sempre foi uma rainha para mim, senhorita.
Alizeh olhou para os amigos, e uma alegria intensa se
desenrolou dentro dela. Ela então se lembrou de algo
que seus pais costumavam dizer um ao outro — quando
deixavam cair objetos; quando se perdiam em uma
discussão; quando se esbarravam na cozinha; quando
cometiam erros bobos. Eles riam, trocavam olhares e…
— Shuk pazir ke manam, manam — disse Alizeh.
Obrigada por me aceitar como sou.
Os olhos de Omid se arregalaram, e ele riu alto.
— Eu não ouvia isso desde antes de meus pais
morrerem.
— Ah, eu conheço essa! — disse Huda. — Shuk nosti ke
tanam, tanam.
Obrigada por confiar a mim quem você é.
Era uma resposta amável ao provérbio.
Alizeh examinou o rosto dos amigos uma última vez.
— Eu irei sozinha. Fiquem aqui. Sem mais discussão.
Ela viu o choque em seus olhos, a fração de segundo
antes de as palavras de protesto se formarem na boca
dos amigos. Era a sua deixa para sair dali, e ela teria
feito isso caso uma dúzia de homens e mulheres
encapuzados não tivessem aparecido sem emitir um só
som, como que materializados à sua frente.
Os Profetas agora se espalhavam pelo corredor, tão
imóveis que Alizeh se perguntou se de fato estavam ali
ou se era sua imaginação. Ficou perplexa. Não devia ficar
surpresa ao encontrar Profetas em seu próprio templo,
em especial depois de a terem tratado com tanta
devoção por semanas, mas Alizeh nunca vira Profetas ao
vivo. Experimentou uma estranha emoção em sua
presença, uma espécie de atração que não era capaz de
nomear. E, o mais estranho de tudo: não conseguia ver
seus olhos, mas sabia que eles a estavam encarando.
— Olá — ela falou baixinho.
Em resposta, os sacerdotes e as sacerdotisas
curvaram-se a ela em harmonia, com seus mantos
reluzindo como aço derretido. Todos juntos, pressionaram
as mãos contra o peito e baixaram a cabeça.
Omid respirou fundo.
Alizeh olhou para ele, percebendo o medo em seus
olhos antes de notar uma agitação similar em Deen e
Huda. Ela mesma sentiu uma pontada de ansiedade
diante da inimaginável reação sincronizada dos Profetas
a ela.
Sem saber como mais saudar tais figuras, Alizeh optou
por espelhar seu gesto, curvando a cabeça e levando as
mãos ao peito.
— Obrigada — disse com sinceridade. — Por tudo.
Desta vez, os Profetas apenas desapareceram.
Houve um silêncio enervante entre eles, durante o qual
Alizeh lutou para organizar seus pensamentos. Os
Profetas a haviam curado e cuidado dela; ela não
conseguia entender por que não tinham falado nada.
Pior: pretendia perguntar onde estava seu nosta, e agora
já não sabia se haveria outra chance. No fim, foi Omid
que quebrou a tensão:
— Pelos anjos — ele sussurrou. — Não sabia que você
era uma Profeta.
— Nem eu — disse Deen, sem fôlego.
— Era para ser um segredo? — perguntou Huda, que
parecia quase temer Alizeh agora. — Não era para
sabermos?
Alizeh deu um passo para trás, assustada.
— Não… Deve ser um mal-entendido. Não sou uma
Profeta — ela enfatizou. — Nunca nem toquei em magia.
Eles estavam apenas sendo educados…
Omid balançou a cabeça.
— Quando morei com os Profetas, senhorita, vi que
eles não se curvavam para ninguém a não ser entre eles
mesmos.
— Isso não pode ser verdade…
— É verdade, sim — confirmou Deen, observando-a
com cuidado. — Profetas não demonstram esse tipo de
deferência a ninguém de fora do sacerdócio. Não se
curvam nem diante do rei.
VINTE E TRÊS

Alizeh não sabia como processar aquela última


revelação. A experiência limitada de Omid com os
Profetas de Ardunia não explicava a maneira de ser de
todos os Profetas de todos os lugares, mas a
corroboração do fato por Deen a fizera hesitar. A despeito
de qualquer coisa, não tinha certeza de que fosse o
momento certo para discutir o assunto. Sua mente já
lutava para processar o dilúvio de declarações do dia;
parecia impossível adicionar a esse turbilhão a
possibilidade de que os Profetas pudessem reconhecer
alguém como ela como uma igual… Ela, que nunca havia
tocado em magia…
Alizeh mordeu o lábio, pois aquilo não era bem
verdade.
Nunca pensara em suas habilidades como mágicas,
mas era forçada a admitir que o gelo que corria em suas
veias era, sem dúvida, uma espécie de magia. Na
verdade, Alizeh sempre fora diferente dos outros jinns
que ela conhecera, ou seja, ela era estranha mesmo
entre seu próprio povo. Era apenas o sangue dela que
corria limpo; apenas o corpo dela que se curava; apenas
ela podia resistir ao fogo. Seu Livro de Arya também era
um objeto encantado, que só ganhava vida em suas
mãos.
Alizeh olhou para os amigos; todos a estudavam com
cautela.
Desta vez, ela realmente precisava se sentar.
Ela desceu, cambaleante, pelo corredor de pedra e
empurrou a pesada porta de madeira do pátio, cuja
entrada se abria para ladrilhos de travertino rachados.
Ela ouviu os outros seguirem-na, seus passos atrás dela.
Assim que saiu, encheu os pulmões de ar fresco, e suas
pernas quase cederam enquanto seu corpo suportava o
último choque.
Os altos muros do pátio, ela percebeu, estavam
repletos de flores, entre as quais havia jasmins maduros
que exalavam uma fragrância de mel trazida pela brisa e
que lhe proporcionava grande conforto. No centro do
jardim, havia um grande espelho d’água circular, em
torno do qual havia uma série de bancos de pedra em
formato de meia-lua, representando diversas fases do
astro.
Sem pensar, Alizeh sentou-se em um dos bancos. Huda
sentou-se ao lado dela. Deen e Omid sentaram-se nas
proximidades.
Ela fechou os olhos e respirou mais profundamente. À
medida que os trovejos de seu coração diminuíam, as
vozes abafadas da multidão se tornavam mais altas. Lá
fora, no pátio, o som era mais nítido. Alizeh ouviu
atentamente as vozes se erguendo e se afastando como
as ondas do oceano. Gradativamente, a tristeza em suas
canções foi dando lugar à esperança e atingiu um
crescendo tão épico que, de repente, ela podia ouvir as
palavras com clareza.

Choramos até nos cegar


Perdemos nossa vontade
Dormimos sem nos levantar
Esperando nossa Majestade

Alizeh enrijeceu, esquecendo-se de si.

Justiça!
Justiça!

Pela terra que já foi nossa


Pelos milhões de corpos
Por nosso sangue em poça
Pelos séculos mortos

Devagar, ela ficou em pé.

Pelos povos sem nações


Pelos pais sem esperança
Por doces mãos e corações
De nossas falecidas crianças

Seu peito oscilou. Ela sentiu como se seus pais


tivessem se levantado dentro dela e gritado.

Justiça!
Justiça!

Choramos até nos cegar


Perdemos nossa vontade
Dormimos sem nos levantar
Esperando nossa Majestade

A esperança é nossa brasa


A verdade, nossa artilharia
Dormimos em valas rasas
Por fé em nossa rainha
Alizeh levou a mão trêmula à boca, lutando contra as
lágrimas. Houve um estrondo quando o canto terminou,
gritos e gritos de júbilo. Ela enxugou os olhos, em
desespero.
— Preciso ir — anunciou ela, virando-se para Omid. —
Perdoe-me, mas devo ir até eles agora…
— Espere… Senhorita…
— Mas…
— O que você vai dizer?
Alizeh recolheu as saias e saiu correndo pelo pátio, que
envolvia parcialmente a lateral do edifício central. Ela
procurou a sacada. Encontrou-a tão de repente que se
engasgou assim que alguém gritou, recuando um passo
quando o tamanho da multidão se revelou diante dela.
Alizeh nunca tinha visto tantas pessoas em um só lugar
em toda a sua vida, e a ideia de que estavam ali por ela,
que vieram ali para vê-la, a fazia se sentir tão
pressionada que ela mal conseguia respirar. Jinns de
todas as raças, idades e classes; dezenas de homens e
mulheres com crianças nos braços ou nas costas; jovens
cochilando na grama; grupos de moços e moças em
estado de choque, enquanto idosos esforçavam-se para
se levantar e ver melhor. A massa parecia se estender
indefinidamente. Houve gritos mais agudos, dedos
apontando em sua direção, mas demorou um momento
até que a multidão de fato a visse. Então, seus gritos se
acalmaram até pairar um silêncio tão completo que
chegava a ser assustador. Eles se voltaram para ela em
um movimento único; o foco ofegante voltado em sua
direção mostrando, pela primeira vez, a magnitude de
sua responsabilidade. Alizeh nunca tinha visto jinns
reunidos assim, nunca soubera com certeza se alguém a
aceitaria como líder.
Ela respirou fundo, tentando recuperar a voz e, quando
se aproximou da balaustrada, o silêncio foi quebrado. As
pessoas começaram a gritar
— Minha rainha!
— É mesmo ela?
— Majestade!
— Ela está aqui!
Só então, ao separar os lábios para falar, percebeu a
enormidade de seu erro.
Ela ainda não era uma rainha coroada.
Não tinha trono, nem reino, nem autoridade, nem
magia real. Até suas roupas eram emprestadas. Na
última vez em que estivera diante de seu povo, tinha
bons motivos para adiar a resposta às perguntas deles.
Mas agora…
— Quando assumirá o trono, Majestade?
— Vai se casar com o rei Cyrus?
— Iremos para a guerra?
— Iremos para a guerra!
Outro rugido do povo, punhos erguendo-se no ar. Com
o coração batendo loucamente no peito e uma mente
emaranhada, Alizeh queria responder às perguntas,
queria…
Ela viu a adaga antes de entender completamente o
que era, o brilho prateado ao longe parecendo um
pássaro brilhante antes de formar uma lâmina, apontada
diretamente para sua garganta.
Alizeh congelou.
Talvez, se sua cabeça não estivesse tão fragmentada,
se seu coração não tivesse sido afligido por tantas dores,
se não tivesse ficado tão surpresa com suas próprias
deficiências como líder… Talvez, se tivesse melhor
controle de si mesma, ela poderia ter se recomposto,
aproveitado suas forças sobrenaturais e simplesmente
saído do caminho. Em vez disso, recorreu a velhos
instintos, fazendo o que lhe era natural quando atacada:
ela revidou.
Alizeh estendeu o braço com uma velocidade
inimaginável, a adrenalina aumentando seu foco
enquanto observava a adaga, como se estivesse em
câmera lenta, girando com uma mira excepcional em
direção à sua garganta. Ela pegou a arma em um ângulo
não natural, e o cabo atingiu sua palma com um golpe
tão forte que o impacto a fez perder o equilíbrio antes de
ser cruelmente jogada contra a parede. O ar saiu de seus
pulmões, e ela emitiu um som suave de dor ao ouvir a
multidão gritar, suas vozes frenéticas clamando. Já
estavam se voltando uns contra os outros, procurando
pelo culpado e, mesmo em meio àquela provação, Alizeh
sabia que precisava acalmá-los — sabia que, se não o
fizesse, a violência poderia explodir. Mas ela não
conseguia se separar da parede. Ela sabia que, sem
dúvida, a arma havia sido encantada, pois a adaga
continuava a tremer em sua mão, com um poder tão
sobrenatural quanto o seu.
Enquanto ela lutava contra a arma, a lâmina torcia-se
em seu punho, centímetro por centímetro, logo
apontando de novo para sua garganta. Alizeh fechou os
olhos, invocou sua força e, com um grito violento,
conseguiu se afastar da parede, usando o impulso
acumulado para girar e enterrar a lâmina na pedra atrás
de si. A adaga alojou-se, para seu grande alívio, com um
terrível ruído.
Alizeh cambaleou para trás, enfrentando a multidão
atordoada. Seus braços cansados tremiam e seu coração
estava disparado. Ela não conseguia focar os olhos
enquanto ouvia os gritos estridentes; estava tentando
recuperar o fôlego quando… Pronto, de novo…
Como um déjà vu, viu outro brilho prateado.
Ela piscou, certa de que devia estar imaginando aquilo,
e o momento que aproveitou para acalmar a mente lhe
custou a única oportunidade que poderia ter tido para
reagir. Ela ouviu um grito horripilante quando registrou,
tarde demais, a necessidade de recuar.
De repente, foi atirada no chão.
Alizeh tombou contra a pedra com um grito abafado, e
o peso de outro corpo caiu pesadamente em cima dela.
Ela ouviu o alvoroço das massas, o caos explodindo.
Tentou se levantar e foi imediatamente empurrada para
baixo. Pelo canto do olho, vislumbrou o perfil familiar e
sardento de Hazan e, então, logo acima de sua cabeça,
enterrados na parede atrás dela: dois punhais. Tinha
escapado do segundo por centímetros.
— Hazan? — murmurou surpresa.
Em resposta, ele os tornou invisíveis, ergueu-a nos
braços e levou-a na velocidade da luz de volta ao pátio
murado, onde a colocou no chão. Mesmo assim, ele teve
o cuidado de não desarrumar seu vestido enquanto a
ajudava a recuperar o equilíbrio, embora o véu e a coroa
que a acompanhavam estivessem tombando de sua
cabeça, e ela os segurara antes que caíssem no chão.
— Hazan…
— Perdoe-me, Majestade — ele a interrompeu,
cerrando os punhos enquanto evitava os olhos dela. —
Estou furioso demais agora para falar com a senhora da
maneira que merece.
Alizeh sentiu uma onda de mortificação. Nunca pensou
que Hazan pudesse ficar tão zangado com ela.
— Seus idiotas! — ele gritou sem aviso, afastando-se
dela. — Não posso acreditar que a deixaram ir até lá!
Alizeh virou-se e viu seu trio de amigos aparecer
correndo.
— Ela insistiu! — disse Deen, avançando. — Não
conseguimos impedi-la fisicamente…
— Eu tentei contar a ela! — Omid gritou, com o rosto
vermelho. — Eu tentei ir com ela! Disse que era uma má
ideia. Eu até queria que ela lesse o jornal, mas ninguém
me escuta…
— Você está bem, querida? — Huda correu em sua
direção e agarrou seu braço, guiando-a até um banco.
Então, para Hazan: — Existe alguma chance de vermos
as armas? E, Omid, você pode pedir aos Profetas um
copo de água com açúcar?
Hazan olhou para Huda e saiu para recuperar as
lâminas; embora Omid tivesse cerrado a mandíbula em
resposta, assentiu antes de sair.
Alizeh observou-os se separarem enquanto o frio do
banco penetrava em suas roupas. De repente, ela estava
congelando de novo e não entendia a mudança. Estava
cansada devido à adrenalina, e suas costas doíam onde
tinham batido contra a parede. O braço direito estava tão
cansado que ela mal conseguia levantá-lo para ajustar o
véu, que ainda escorregava de sua cabeça. Nem
percebeu que estava tremendo até ver suas mãos
trêmulas. Levaria um momento para assimilar o fato de
que alguém havia tentado matá-la. Duas vezes.
Céus. Desde que se lembrava, sempre havia alguém
tentando matá-la. Ela estava, francamente, cansada
daquilo.
Hazan voltou um momento depois, erguendo as adagas
assassinas para que todos vissem. Eram idênticas,
embora parecessem bastante simples: lâminas de aço,
empunhaduras de ouro.
— São um par encantado — disse ele. — Estão
vibrando desde o momento em que as arranquei da
parede.
— Vibrando? — Huda perguntou.
— Tentando terminar o serviço. — Ele manteve os
punhos firmes enquanto caminhava até a porta. —
Preciso entregá-las aos Profetas imediatamente.
— Tentando terminar o serviço… — repetiu Alizeh,
baixinho, quase para si mesma.
Ela estremeceu quando a porta se fechou. Ao erguer os
olhos, descobriu que Deen a estava observando
atentamente.
— Acho que precisa de algo mais forte do que água
com açúcar — disse ele. — Vou preparar um chá forte
para a senhora. Quero dizer, Majestade…
— Por favor, chamem-me de Alizeh — disse ela,
controlando-se para evitar que os dentes tiritassem. — E
um chá seria maravilhoso. Obrigada.
Então, com outro aceno de cabeça, Deen também se
foi.
Huda sentou-se ao lado dela, pegou sua mão e
apertou-a.
— Como você está se sentindo?
— Como uma tola. — Alizeh suprimiu um suspiro ao
remover a tiara, depois o véu, colocando os dois no
banco ao lado dela. Ela deixou cair a cabeça entre as
mãos instáveis. — Hazan está bravo comigo. Hazan
nunca fica bravo comigo…
— Ele estava assustado. Imagine, ele soube que você
enfim estava acordada, correu até aqui para vê-la… E aí
descobriu que alguém estava tentando matá-la. Você
quase morreu, querida. De novo. — Huda estalou a
língua. — Os pobres nervos dele. Seus pobres nervos.
Alizeh ergueu os olhos.
— Foi tudo em vão — disse ela. — Eu nem abri a boca.
Na verdade, não tenho nada a dizer…
— Eu não diria que foi de todo infrutífero — Huda
rebateu, com gentileza. — Pelo menos eles viram você
fazer um esforço. Certamente, ninguém pode culpá-la
pelo que aconteceu. Eles entenderão se você demorar
para ficar diante de uma multidão. — Ela inclinou a
cabeça. — Talvez daqui para a frente possamos
comunicar quaisquer mensagens por meio de Dija.
— Quem é Dija?
— Ela é uma espécie de líder das massas. Ela e alguns
outros ajudam a manter a multidão em ordem. Que eu
saiba, Cyrus já conversou com ela várias vezes.
Ao som do nome dele, Alizeh desviou os olhos.
— Eu tomei uma decisão, Huda. Eu sei que pode não
ser uma decisão popular, mas…
A porta se abriu com um gemido, e Huda, que abrira a
boca para falar, de repente se levantou.
Hazan havia retornado.
— Eu vou, hum… Por falar em Dija, vou dar uma
passada para vê-la, certo? É melhor ter uma ideia do que
está acontecendo lá fora.
— Você vai até a multidão? — disse Alizeh, alarmada.
— Mas… Não é perigoso?
— Ah, não para mim! Ninguém se importa comigo! —
Huda disse antes de sair correndo.
A porta se fechou pela quarta vez e, de novo, Alizeh se
encolheu. Ela e Hazan estavam sozinhos.
Ele ficou de lado, passando uma das mãos pelo cabelo
enquanto olhava fixamente para a parede. Os sons da
multidão ainda eram ouvidos ao longe.
— Hazan — ela falou, baixinho.
— Sim, Majestade?
— Você acha que ficará bravo comigo por muito
tempo?
Ela o ouviu suspirar.
— Não estou bravo com a senhora — disse ele, com a
voz dura. — O que me deixa bravo é que alguém tenha
tentado matá-la. Simplesmente não entendo por que a
senhora se colocou em uma situação tão perigosa…
— Por favor — ela pediu, em desespero. — Por favor,
entenda, eu tinha de falar com eles. Não apenas porque
era meu dever tentar, mas porque precisava aprender
que nunca, jamais, quero estar naquela posição
novamente.
Hazan virou-se para encará-la.
— O que a senhora quer dizer?
— Na próxima vez em que estiver diante do meu povo
— disse ela —, será com uma coroa e um plano. Não terei
nada a dizer a eles até garantir ambos. Preciso encontrar
minha magia, Hazan… Preciso ir até Arya
imediatamente…
— Nós iremos — ele disse, movendo-se rapidamente
em direção a ela. — Voltaremos para Ardunia amanhã, se
quiser. Iremos assim que tomar a decisão.
— Eu gostaria que fosse assim tão fácil — disse ela,
tentando sorrir. — Será uma jornada longa e difícil…
— Não se viajarmos de dragão…
— … e preciso recuperar meu livro, que está com
Cyrus. Ele se recusou a me devolver.
Hazan balançou a cabeça.
— Eu vou matá-lo.
Alizeh riu, seu coração aquecendo-se de carinho.
— Você não pode matá-lo. Eu preciso dele.
Hazan agora estava diante dela, alto e imponente.
— Com todo o respeito, Majestade, a senhora não
precisa dele. Tem a mim.
Ela olhou nos olhos dele e sorriu.
— Se você tivesse um império…
Hazan suspirou profundamente e depois se virou.
— Se tivesse…
Ela pegou a mão dele, com a intenção de apertá-la em
sinal de amizade, mas ele recuou. Ela se lembrou, então,
de que ele já havia recuado quando ela tentara tocá-lo.
— Perdoe-me — pediu ela, envergonhada. — Não
queria deixá-lo desconfortável.
— Não estou desconfortável — respondeu ele, embora
sua voz fosse áspera. — Só não estou acostumado a ser
tocado.
Alizeh ergueu o olhar, mas ele não olhou nos olhos
dela.
— Hazan — sussurrou. — Não vai olhar para mim?
Ela o viu engolir em seco, hesitando antes de se
abaixar lentamente sobre um joelho diante dela. Ele
ergueu a cabeça, e seus olhos se encontraram. Ele
parecia encantado com a visão dela; temor e afeição
pareciam em guerra em seu olhar.
— Hazan — ela falou de novo. — Estou preocupada que
talvez você não esteja dormindo bem.
Isso o desarmou tão completamente que ele quase riu,
e a intensidade em seus olhos se transformou em algo
mais gentil. Seu peito cedeu quando ele exalou e abaixou
a cabeça mais uma vez.
— Tentarei fazer o meu melhor nesse sentido,
Majestade.
— Obrigada — ela disse com suavidade. — Por salvar a
minha vida.
— Não precisa me agradecer pelas ações que pratiquei
— disse ele. — Foram em meu próprio interesse.
Ela riu, e eles compartilharam um momento tranquilo e
fugaz de silêncio.
— Sinto que você deveria saber… — ela disse, sua voz
praticamente um sussurro — … que tomei minha
decisão.
Ele olhou para cima, bruscamente.
— Eu direi sim. À proposta dele. — Alizeh entrelaçou as
mãos com força no colo. — Irei me casar com Cyrus.
Hazan pareceu parar de respirar.
— Eu sei que você é contra a ideia — ela continuou — e
sei que ele não é confiável… Mas espero que possa
entender o porquê, sobretudo depois de hoje…
A porta abriu-se sem aviso, e os dois se viraram em
direção ao som. Alizeh reprimiu um suspiro.
Era Kamran.
VINTE E QUATRO

Alizeh sentiu-se enrijecer, impressionada com a própria


reação diante dele. Kamran estava lindo como sempre. O
veio de ouro que atravessava seu rosto dava-lhe um ar
mágico e misterioso. Sua presença sempre fora
marcante, mas as lembranças lhe faziam uma injustiça.
Seu porte era impressionante, seus olhos reluziam.
Kamran irradiava o tipo de glória que só podia ser
cultivada em uma vida inteira de poder e privilégios. O
jovem que estava diante dela agora era maravilhoso de
se ver e, ainda assim, a ideia de falar com ele a enchia
de pavor. Na última vez em que vira o príncipe, ele
estava furioso e irracional. Recusara-se a ouvi-la,
recusara-se a pensar e, então, atirara nela com uma
flecha, quase a matando.
Kamran manteve os olhos em Alizeh enquanto
avançava lentamente, como se tivesse medo de assustá-
la. Ainda assim, havia algo mais gentil em seu semblante
desta vez, o fogo em seus olhos parecia menos furioso, e
ela se sentiu relaxar quando ele se aproximou, mesmo
permanecendo cautelosa.
— Perdoem-me — disse ele, olhando dela para Hazan.
— Mal sei o que dizer. Ouvi as boas notícias, depois as
más. Estou muito aliviado em ver que está ilesa.
— Sim — ela disse, sentindo-se estranhamente rígida.
— Tive sorte de um amigo ter chegado a tempo de me
poupar de um destino muito mais sombrio. — Ela se
suavizou, sorrindo para Hazan de maneira calorosa. —
Devo minha vida a ele, mais uma vez.
Hazan apenas baixou a cabeça.
— De fato. — Kamran assentiu, olhando para seu
antigo ministro antes de voltar o foco para ela. —
Como… Como você está?
Uma série de respostas floresceu em sua mente, mas
Alizeh apenas o avaliou antes de dizer, educada:
— Estou bem, obrigada. Como vai você?
— Estou… Bem. — Kamran hesitou, depois riu com um
encantador constrangimento. — Céus, tudo isso é
horrível, não é?
— Sim — ela disse, suspirando.
Kamran balançou a cabeça e parou de sorrir.
— Você algum dia será capaz de me perdoar?
Ela o encarou, surpresa.
— Eu já o perdoei.
— Perdoou? — Ele arqueou as sobrancelhas. — No
entanto não parece nada contente em me ver.
Alizeh desviou o olhar. Ela sabia que as ações dele
naquela tenebrosa manhã tinham sido involuntárias…
Sabia que ele não tivera a intenção de lhe fazer mal…
Mas a conduta de Kamran era indicativa de um homem
incapaz de deixar de lado os próprios desejos. Ela tentara
argumentar com ele, implorara para que ele refletisse
sobre a situação de forma mais complexa, para que
enxergasse como matar Cyrus teria consequências de
longo prazo… E ele apenas a afastara sem cuidado nem
consideração.
Aquilo a incomodara quase mais do que o ferimento
em si.
Ela vinha tentando entender suas crescentes
hesitações em relação a Kamran e, quanto mais
interrogava seus sentimentos, mais se perguntava se
era, enfim, menos por ele ter ferido a vaidade dela e
mais por não ter respeitado sua mente. Sem dúvida, ela
não esperava que ele trocasse todos os seus
pensamentos e opiniões pelos dela, mas seus medos e
preocupações deveriam ter importado para ele.
Deveriam ter peso suficiente para fazê-lo parar. Para que
houvesse, ao menos, uma conversa.
Incomodava-a o fato de que isso não aconteceu.
— Não estou descontente em ver você — disse ela,
com honestidade. — Na verdade, estou feliz em ver que
está bem. Sei quanto sofreu nas últimas semanas e
posso imaginar que não tenha sido fácil. — Ela hesitou.
— É só que… Suspeito que nossa história tenha sido
concluída, Kamran.
Ele pareceu atordoado com a resposta, seu peito
erguendo-se ligeiramente enquanto respirava.
— Entendo — disse.
Alizeh olhou para as mãos sobre o colo e depois para
Hazan, cuja expressão era inescrutável. Ela percebeu,
então, que não tinha vontade de continuar aquela
conversa, pois não só era intoleravelmente estranha,
como havia milhares de coisas que ela ainda precisava
fazer.
Ela se levantou.
Kamran apressou-se para ajudá-la, pegando sua mão
enquanto ela tentava não tropeçar na cauda do vestido.
Alizeh se firmou com a ajuda dele e, depois, olhou para
as suas mãos entrelaçadas em um momento vertiginoso
de desconexão. Não sentia repulsa de Kamran, nem um
pouco… Na verdade, ele irradiava calor e força, e
cheirava a algo exuberante, como mel, o que a atraía. Só
que lhe pareceu estranho que um dia o tivesse beijado,
quase desmaiado em seus braços. A lembrança daquele
momento parecia pertencer a outra mulher, a outra vida.
Seria possível que tivesse sido apenas uma criada? E,
agora, era uma rainha?
Ela retirou a mão, sacudindo as saias antes de recolher
a coroa e o véu.
— Hazan, como posso voltar ao palácio?
Ele deu um passo à frente.
— Chamarei a carruagem, Majestade. Não deve
demorar mais que um momento.
Ele se moveu rapidamente em direção à porta; mas,
então, olhando para Kamran, fez uma pausa.
— A menos que queira me acompanhar?
— Sim — ela disse, iluminando-se. — Gostaria disso.
— Por favor, Alizeh — disse Kamran, avançando. —
Posso ter um momento a sós com você?
Alizeh hesitou. Ela estava abrindo a boca para falar
quando a cabeça de Huda apareceu pela fresta da porta.
— Oh! Podemos entrar? — Suas palavras morreram
quando ela avistou Kamran, o que a fez parar de sorrir. —
Ah. Vejo que o príncipe chegou.
Kamran enrijeceu ao som da voz dela, e seu humor
piorou como se tivessem derramado um balde de água
fria sobre ele. Ele se virou para ela lentamente, seus
olhos brilhando com hostilidade. Alizeh ficou chocada
com aquela troca breve e intensa, perguntando-se o que
exatamente teria acontecido entre eles na sua ausência.
Huda não fora específica a esse respeito.
— O príncipe está aqui? — A voz de Omid precedeu seu
corpo ao voltar para o pátio, seus olhos brilhando quando
avistou Kamran. — O senhor voltou! Teve algum
problema com o…
— O que eu lhe disse — Kamran o cortou bruscamente
— sobre manter a boca fechada?
— Certo — o menino apressou-se a emendar, suas
orelhas ficando vermelhas. E, então: — Ah, e desculpe
pela água, senhorita — disse a Alizeh. — A srta. Huda me
disse para não interromper sua conversa com Hazan,
então eu não a trouxe; mas, se ainda quiser…
— Não é necessário — disse Deen, entrando no pátio
com uma reverência. Ele trazia um frasco de metal, que
colocou nas mãos de Alizeh. — Isto irá funcionar muito
bem.
— Obrigada — disse ela, desatarraxando a tampa. Com
delicadeza, ela cheirou o conteúdo, então lutou contra
um estremecimento. — Você disse que isto é chá?
— Uma maneira de falar. — Deen sorriu, triunfante, e
Alizeh percebeu que, no pouco tempo que o conhecia,
nunca tinha visto Deen sorrir tanto. — É uma mistura
quente de raiz de lótus, safira esmagada, água do rio,
um pouco de açafrão e apenas um toque de geada.
— Geada? — Ela olhou para o frasco. — Você quer dizer
gelo?
— Um tipo específico de magia — disse ele, balançando
a cabeça. — Vou poupá-la dos detalhes tediosos, mas
tenho trabalhado com o alquimista do palácio em vários
novos elixires. Devo dizer que nunca estudei na
companhia de tamanho talento, e a experiência tem sido
esclarecedora. Espero publicar minhas descobertas
quando voltarmos para casa.
— Que maravilha — disse ela, abrindo um sorriso. —
Fico feliz por você.
— Vá em frente, então, tome um gole. — Ele sorriu. —
Em geral, recomendo como remédio para dormir, mas
acho que resolverá seu problema de nervos. Os efeitos
são bastante imediatos.
— Ah… — ela disse, apertando o frasco contra o peito.
— Tudo bem se eu o guardar, então? Estou ansiosa para
voltar ao palácio e preciso conservar meu bom senso,
mas dormir em paz será ótimo mais tarde.
Ele inclinou ligeiramente a cabeça.
— Como quiser. Apenas certifique-se de me dizer, pela
manhã, se funcionou.
— Sim, claro, eu…
Ela se assustou, então, com a pressão de uma mão
contra sua cintura. Ela se virou. Era Kamran.
— Você me permitiria acompanhá-la de volta ao
palácio? — indagou ele, olhando para ela de modo
intenso. Seus olhos, um dourado, outro castanho, eram
de uma beleza desnorteadora. — Poderíamos
compartilhar uma carruagem.
Alizeh hesitou.
Não queria ficar presa em outra conversa
desconfortável, mas queria lhe contar sobre sua decisão
de se casar e, dados os sentimentos dele em relação a
Cyrus, ela não sabia como ele receberia a notícia. Em
última análise, a opinião de Kamran sobre o assunto não
a comoveria, mas Alizeh não era indiferente ao fato de
Cyrus ter assassinado o avô dele. Sentiu que deveria ser
ela a lhe dar a notícia; sentia que devia isso a ele.
Refletiu sobre tudo isso em questão de segundos e
estava se preparando para responder quando Huda
emitiu um som engasgado, algo parecido com uma
risada terrível. Kamran virou-se para encará-la, de forma
mordaz, e disse:
— Minha pergunta foi engraçada para você?
Ela balançou a cabeça com um movimento exagerado,
arregalando os olhos em sinal de falsa inocência.
— De jeito nenhum, Alteza. Nada no senhor é
engraçado. É um príncipe muito sério. Tudo o que o
senhor diz é da maior seriedade.
— Interessante. — Um músculo saltou em sua
mandíbula. — Eu não imaginava que você sabia o que
seriedade significava.
Ela engasgou-se e depois caiu dramaticamente contra
a parede.
— Oh, suas palavras me ferem! Estou sangrando!
Em uma ação chocantemente pouco refinada, Kamran
revirou os olhos, afastando-se dela ao murmurar:
— Você é insuportável.
Ela se afastou da parede e cruzou os braços.
— O senhor é que é insuportável.
— A senhorita não deveria falar com ele assim — Omid
sussurrou, puxando seu braço. — Ele será o rei do maior
império do mundo…
— Sim — ela disse, parecendo entediada. — Acho que
todos nós já fomos lembrados desse fato um milhão de
vezes.
Kamran virou-se, com raiva.
— O que quer dizer com isso?
— O quê? Não consigo ouvi-lo — disse ela, levando a
mão ao ouvido. — Talvez, se o senhor descesse do seu
cavalo, eu poderia…
Ele caminhou na direção de Huda na velocidade da luz,
parecendo que poderia amarrá-la a uma árvore e deixá-la
lá.
— Sua delinquente descarada e incontrolável…
— Delinquente? — ela gritou, rapidamente afastando-
se dele com o rosto corado. — Que crimes cometi?
Nenhum! O senhor, por outro lado, quase matou a
profetizada rainha jinn e agora espera que ela o
acompanhe em um passeio de carruagem…
Ele congelou.
— Eu já me desculpei!
— Minhas condolências! — ela alfinetou de volta. —
Deve ter sido dificílimo para o senhor!
— Céus — disse Alizeh, sem conseguir mais conter o
riso. — Quando esse doce relacionamento começou?
Todos se viraram para ela.
O feitiço se quebrou. Kamran pareceu assustado com o
som de sua voz, libertando-se do momento de fúria antes
de interpor toda a extensão do pátio entre ele e Huda,
que, por sua vez, olhava para a porta, parecendo quase
envergonhada.
— Tem sido assim desde antes de partirmos de Ardunia
— disse Hazan, com divertimento nos olhos. — Embora
nas últimas semanas tenha piorado muito.
Huda abriu a boca para protestar, e Kamran lançou-lhe
um olhar fulminante. Ela o encarou de volta.
— Sim, tudo bem. — Alizeh dirigiu-se a Kamran, ainda
sorrindo. — Vamos voltar juntos. Talvez você possa me
contar mais sobre tudo o que aconteceu na minha
ausência.
VINTE E CINCO

Alizeh puxou as cortinas da carruagem para abri-las um


pouco, na esperança de vislumbrar a paisagem pela
janela. Sabia que a viagem de volta ao palácio não seria
longa e havia perdido tantos acontecimentos no último
mês que estava desesperada para apreciar a vista antes
de o sol baixar. O dia estava aos poucos se
transformando em noite, como uma nebulosa floração
colorida lançando à cidade real uma luz surreal,
enquanto uma chuva suave e breve lhe conferia um
brilho líquido. Huda, ela logo descobriu, não havia
exagerado.
Tudo estava coberto de rosas.
Floresciam em quase todos os lugares; botões rosados
nos telhados e nas portas resplandecendo à luz do
entardecer; trepadeiras enormes e floridas subindo pelas
laterais dos prédios, serpenteando pelas calçadas,
envolvendo postes de iluminação e latas de lixo,
embelezando tudo.
Quanto mais ela via, mais seu coração doía.
Cyrus havia deixado uma marca em todos os lugares.
Restos dele viviam em flores eternas no mundo exterior e
dentro de suas veias. Ao pensar nele, ela sentiu uma dor
implacável que não entendia, o que a assustou.
Houve um grito, depois o som de risadas abafadas, e
Alizeh espiou mais uma vez pela janela. As ruas estavam
tão cheias de pétalas que as crianças pulavam sobre os
montes, jogando punhados para o alto enquanto seus
pais pediam desculpas aos que tentavam passar. O
trânsito era intenso e lento, e Alizeh, cuja vida havia sido
quase destruída, ficou maravilhada com o fato de o
mundo poder continuar girando como se nada tivesse
acontecido. Havia algo de reconfortante nos sons dos
pedestres apressados; no relincho dos cavalos; nos gritos
furiosos dos condutores de carruagens culpando-se
mutuamente pelo congestionamento. Ela seguiu
observando, com uma pontada no coração, enquanto
grupos de jovens permitiam-se rir. Os homens baixavam
os chapéus, franzindo a testa para o céu; as crianças
riam e corriam, depois gritavam; os comerciantes
trancavam as portas, semicerravam os olhos para a rua e
voltavam para casa.
Apesar dos horrores recentes, Alizeh sorriu.
Sentia-se esperançosa. Finalmente, depois de tanto
tempo, tinha um plano concreto. Seu sorriso diminuiu,
porém, diante da perspectiva de falar com Cyrus.
Seus sentimentos complicados por ele pareciam uma
terrível falha em seu bom senso. Só precisava imaginá-lo
tocando-a para desencadear uma tempestade em seu
coração. Quando se lembrou dele, com seu corpo
poderoso e resplandecente, o desejo feroz em seus
olhos, ela não apenas precisou parar para respirar como
foi possuída por um impulso mortificante de emitir um
som indelicado, e teve de morder o lábio para manter o
gemido torturado preso em sua garganta. Doía além da
razão lembrar a atração entre seus corpos, a febre dele
tão perto dela; sua confissão desesperada e a
devastação resultante. Não tinha ideia do que
aconteceria quando o visse. Certa vez, ele lhe dissera
que, se ela se casasse com ele apenas pelo título, ela o
tornaria o homem mais infeliz do mundo. Se isso fosse
verdade, ela estava prestes a destruí-lo.
Alizeh inspirou, tentando manter a respiração
constante.
À medida que o céu escurecia pouco a pouco, vaga-
lumes iluminavam o mundo, pontilhando tudo como joias
brilhantes. A visão foi particularmente surpreendente
quando deixaram o templo, onde dezenas de milhares de
insetos brilhantes piscavam em meio à multidão como
um mapa das estrelas.
— É tão lindo aqui — sussurrou, forçando-se a se
afastar da janela. Ela fechou a cortina, decidindo quebrar
ela mesma o silêncio. — Até o aroma é adorável.
Kamran apenas olhou para ela de onde estava sentado,
no banco oposto dentro da carruagem. Ela sentira os
olhos dele sobre ela nos últimos minutos; a energia entre
eles era estranha e tensa. Apesar de sua insistência para
que tivessem um momento a sós, ele não dissera nada.
Mesmo então, enquanto ela o estudava, ele não falou
nada; era como se nem a tivesse ouvido. Mas não fez
nenhum esforço para esconder seu interesse evidente.
Ele também parecia não perceber que estava batendo as
luvas na coxa, e a vibração de tensão no corpo do
príncipe a colocou em alerta.
Fora necessária alguma organização para levá-la até
uma carruagem simples e sem identificação, mas o
transporte tinha de ser reforçado por camadas de magia
defensiva, incluindo um encantamento que repelia os
olhares dos transeuntes. Tanto Kamran quanto Hazan lhe
garantiram que viajavam de um lado para outro daquela
maneira há semanas, com guardas do palácio à paisana
cavalgando sempre ao lado deles. Mas, talvez, a situação
fosse mais precária do que ela imaginava.
— O que foi? — indagou ela, recostando-se em sua
cadeira. — Há algo de errado?
— Sim — ele disse rapidamente, depois hesitou. —
Quero dizer, não, não há nada de errado. Não sei por que
disse isso.
Ela olhou para ele por um instante.
— Você está bem?
— Perdoe-me — disse ele, e suspirou. Enfim, largou as
luvas e olhou fixamente para uma janela coberta pela
cortina. — Nunca fiz isso antes e tenho medo de estragar
tudo.
— Estragar o quê?
Ele respirou fundo e disse:
— Quero me casar com você.
As palavras saíram em um ímpeto nervoso tão
diferente do que se esperava do príncipe seguro e polido
que ele era que o espanto de Alizeh foi duplicado. Aliás,
ela ficou tão atordoada que não disse nada por vários
longos e dolorosos segundos antes de perceber que
deveria dizer alguma coisa, e depressa.
— Você está… — Ela piscou. — Você está brincando?
Ele recuou.
— Claro que não.
— Perdoe-me — disse. — Eu só… Receio não estar
entendendo.
Kamran abriu os lábios para falar, depois franziu a
testa.
— Como você pode não entender? — disse ele. — Eu
desejo me casar com você. Quero me casar com você.
— Mas… Por quê?
Ele congelou, com as feições ainda mais fechadas. Em
seguida, voltou a franzir a testa para a janela enquanto
dizia, baixinho:
— Não pensei que precisaria fornecer um motivo, para
ser honesto.
Ela levou a mão ao pescoço, sentindo-se um pouco
enjoada. Podia ouvir um mascate vendendo seus
produtos na rua.
— Você pode tentar pensar em um motivo?
— Você é… Bem, você é tudo que eu sempre procurei
em uma rainha — disse, relaxando um pouco enquanto
as palavras eram formuladas. — Você é linda, inteligente,
equilibrada e elegante…
— Você me ama?
Ele ergueu os olhos e hesitou ao dizer:
— Eu… Eu a admiro profundamente… Tenho certeza de
que, com o tempo, passaremos a nos amar. A verdade é
que tenho pensado em você quase constantemente
desde que nos conhecemos. Nunca senti por ninguém o
que sinto por você e ficaria honrado em passar minha
vida ao seu lado. — Ele fez uma pausa, seu olhar caindo
brevemente para os lábios dela. — Já provamos que
somos compatíveis de várias maneiras. Acredito que
seria uma excelente combinação.
— Entendo — disse ela, o frio em seus ossos superando
a onda de calor que se movia por seu corpo. — Obrigada.
Ele hesitou e disse:
— Obrigada?
— Pela explicação — disse ela, distraída. — Isso ajuda.
— Ah.
Houve então outro silêncio tenso antes que ele
dissesse:
— Poderia me dar uma resposta?
Ela apertou e desapertou as mãos, com uma sensação
de mal-estar. A culpa retorcia seu coração.
— Sim, eu estou…
A carruagem sacudiu.
— Sim?
— … estou profundamente, profundamente lisonjeada
— continuou ela, segurando o assento para se firmar. —
Mas não, eu… Isto é, eu acho…
— Inferno — ele murmurou. — Você está me
recusando.
Ela ergueu a cabeça, e em sua voz havia dor.
— Não é você, Kamran. Não é, de verdade. Por mais
honrada que esteja com seu pedido, não posso ser sua
esposa. Devo colocar meu povo em primeiro lugar. Tenho
uma responsabilidade… Um papel que devo cumprir…
— Você seria muito mais do que um prêmio para mim
— disse ele, inclinando-se para pegar suas mãos. — Você
governaria ao meu lado. Poderia cuidar do seu povo
apoiada pelo poder de Ardunia…
— Mas não desejo compartilhar uma coroa. Quero meu
próprio reino — disse ela, odiando as palavras que sabia
que pronunciaria em seguida. Ela se preparou e respirou
fundo. — Decidi me casar com Cyrus.
Ele a surpreendeu ao dizer, com ar confuso:
— Sim, imaginei que você faria isso. Eu quis dizer que
gostaria de me casar com você depois disso.
Ela recolheu as mãos, recostando-se de volta no banco,
em choque.
— Depois disso?
— Sim. Depois que você o matar.
— Depois… Depois que eu o matar… — ela repetiu, as
palavras pouco mais que um sussurro. Alizeh olhou
cegamente para o chão da carruagem, o brilho de suas
longas saias cintilando na penumbra. — Claro… Você
sabe sobre a proposta dele.
— É uma boa proposta — disse. — Você deveria aceitar.
Ela levantou a cabeça tão rápido que quase repuxou o
pescoço.
— Acha que eu deveria me casar com Cyrus?
— Claro que deveria. — A incerteza nos olhos de
Kamran desapareceu, substituída por um brilho de
falcão. — Faça-o firmar um pacto de sangue, depois se
torne rainha, tome seu império, mate-o e reine,
soberana.
Ela olhou para ele com espanto.
— Você diz isso como se eu achasse fácil ser tão
implacável.
— Você tem uma escalada difícil pela frente — disse ele
com certa indiferença, a compostura retornando à
medida que sua mente se voltava para a política. —
Receio que deva aprender a ser implacável. Tulan é um
dos impérios mais ricos do mundo; qualquer soberano na
terra morreria por tal oportunidade. Você seria louca se
não aceitasse.
Alizeh inclinou a cabeça para ele, fascinada, apesar de
tudo. Ela nunca havia interagido com aquele lado
metódico e intelectual de Kamran. Deu-se conta de que
ele poderia ser de grande ajuda, já que ela entendia
pouco de geopolítica. Poderia aprender muito com ele.
— Por que seria louca se não aceitasse? — perguntou.
Ele contou as razões nos dedos.
— Solo vulcânico, potencial hídrico, grandes reservas
de magia. Há tantos microclimas que o reino é
praticamente autossustentável. É capaz de cultivar
quase tudo de que precisa; Tulan importa poucas
mercadorias e não tem dívidas. Seu exército é pequeno,
mas robusto e bem treinado. Historicamente, esta foi
uma terra muito sitiada, sob constante invasão e
opressão de forças externas, mas a dinastia Nara, a
linhagem da família de Cyrus, foi a primeira a resistir e
vencer. Tem conseguido driblar invasões estrangeiras por
quase cem anos, o que garante ao reino estabilidade
suficiente para enriquecer, construir armamentos
complexos e avançar sistemas mágicos de defesa. Há
pouco desemprego, alta taxa de letramento e saúde
pública acessível em toda a nação. Como um todo, o
império é uma proeza extraordinária não apenas pela
riqueza de seu solo e pela abundância de recursos
naturais, mas porque vivem nele cidadãos educados,
felizes e produtivos. Há uma razão pela qual Ardunia
tenta ocupá-lo há tanto tempo. E, se Cyrus o está
oferecendo, você deve agarrar a oportunidade. — Ele
balançou a cabeça com vigor. — Sem dúvida nenhuma.
Os lábios de Alizeh fizeram menção de falar, mas sua
surpresa a deixou muda.
— É esse, não é? — Ela piscou para ele. — O motivo da
trégua. Foi por isso que você e Cyrus firmaram um
acordo de paz.
Ele se moveu em seu assento, um pouco
desconfortável.
— Sim.
— E você não me quer — ela disse, com um leve
sorriso. — Você quer Tulan.
— Quero ambos.
Ela então riu.
— Admiro sua honestidade… Realmente, admiro. Mas
você acabou de listar as razões pelas quais Tulan é uma
nação notável. O que me motivaria a compartilhar essas
riquezas, quando posso ficar com todas elas para mim?
— Neste reino de intrigas, haverá Fogo e Argila.
O sorriso de Alizeh se enfraqueceu. Olhou para ele,
depois, com uma pontada no peito, e seu corpo
enrijeceu, alarmado.
— Você viu meu livro — ela sussurrou.
— Eu o encontrei em sua bolsa de tapeçaria — ele
disse —, a que você largou em Ardunia.
— Sim, eu a deixei na casa de Huda.
Kamran tirou um lenço do bolso e o estendeu a ela,
que o pegou.
— Obrigada — ela disse, com o coração palpitando. Ela
acariciou o bordado de vaga-lume com o polegar,
lembrando-se de sua mãe, seu pai, seu destino. — Nunca
pensei que o veria de novo.
Eles de repente pararam com tudo, de forma tão
brusca que caíram um nos braços do outro. Kamran a
segurou antes que as cabeças colidissem, puxando-a
para mais perto de si do que haviam estado pelo que
parecia um longo tempo. Ela sentiu o calor de suas mãos
no corpete fino, a força de seu corpo através das roupas.
Ele era forte e seguro e, por um momento, ela se
lembrou por que o beijara um dia.
— Case-se comigo — ele sussurrou com a voz ardente.
— Case-se comigo depois de o enterrar, e poderemos
unir dois dos maiores impérios da Terra. Juntos, seríamos
uma força indomável. Podemos trabalhar juntos para
mudar o destino do povo jinn em todo o mundo.
Ela engoliu em seco, atordoada pela proximidade. Era
coisa demais para assimilar.
— Kamran, eu não…
A porta da carruagem foi então aberta com uma
reverência. O lacaio do palácio estava em pé lá fora,
exibindo um belo sorriso de boas-vindas. Na mesma
hora, Alizeh libertou-se dos braços de Kamran, mas não
antes de avistar cabelos cor de cobre ao longe — que
logo desapareceram.
VINTE E SEIS

Cyrus cometera um terrível erro. Estava agora imóvel, no


meio de seus aposentos, com a cabeça baixa como se
tivesse sido abatido pela própria estupidez. Ele ouvia um
leve zumbido nos ouvidos, e seu corpo foi ficando tenso
enquanto absorvia ondas de dor. Havia se materializado
naquela sala por instinto, pois era para lá que ele se
retirava quando precisava escapar de sua vida.
Entretanto, naquele momento, mal conseguia perceber o
ambiente. Se antes o calor daquele espaço o acalmava,
agora não conseguia se concentrar nos objetos tangíveis
ao seu alcance. Estava muito consciente de suas roupas,
pesadas contra o corpo; a gola do suéter sufocando-o; a
resistência de seus ossos contra a pele; o peso de seus
pés, concreto dentro das botas. Seus dentes duros, sua
língua granulada, o peso do cabelo na cabeça. Seu
coração batia tão forte que ele queria enfiar a mão
dentro do peito e arrancá-lo. Era mesmo tentador,
pensou ele, usar magia para poupar a mente de
momentos como aquele.
Não deveria ter ido.
Sabia que não deveria tentar vê-la; mas, no fim,
decepcionou até a si mesmo, mostrando-se incapaz de
exercer o autocontrole. Por quase um mês ele fora
impedido de ver o rosto dela enquanto ela sofria, forçado
a permanecer no extremo mais distante da propriedade
dos Profetas enquanto os outros iam e vinham à vontade.
Já fora difícil o suficiente suportar aquela separação
quando ele sabia que ela estava segura, no processo de
se curar. No entanto, quando soubera do atentado contra
a vida dela, quase perdera a cabeça. Tudo que ele podia
fazer era esperar — esperar por um sinal de que ela
estava bem, esperar pela notícia de que ela estava
saindo do templo, esperar na porta até que ela
chegasse…
Era aniquilador o poder que ela exercia sobre ele.
Ele enfim exalou, seu corpo tremendo um pouco. Ela
estivera ali uma vez, tinha derrubado sua porta,
quebrado suas coisas. Desde então, tudo havia sido
consertado, mas os ecos daquela noite persistiam. Ele
piscou enquanto olhava ao redor, os detalhes começando
a entrar em foco. As estantes imponentes; os sofás de
veludo; a prodigiosa lareira. Sua mesa era uma bagunça
desorganizada de manuscritos soltos, tinteiros
destampados e cristais desordenados, e esse caos só
aumentava sua ansiedade. Quando não estava sendo
torturado por Iblees, muitas vezes se enterrava no
trabalho como forma de ocupar a mente. Tulan era um
império pequeno o bastante para que ele não precisasse
governar por meio de um comitê, mas se reunia toda
semana com os chefes das casas nobres e levava muito
a sério sua responsabilidade para com o povo, de
soldados a agricultores. Naquele momento, todos
expressavam as mesmas preocupações sobre o
crescimento constante das multidões de migrantes e o
aumento das ameaças externas.
A questão de seu casamento vindouro.
Cyrus sentou-se às cegas no sofá mais próximo,
mexendo em um maço de papéis enquanto afundava nas
almofadas. Havia uma pequena tigela de cristal com
damascos na mesa baixa diante dele, na qual ele se
concentrou então. Ele os havia colhido de manhã. Havia
uma árvore solitária ao longo do caminho coberto de
mato que conduzia à Residência dos Profetas; estava ali
desde que ele era criança, e ele colhia seus frutos desde
sempre, pois ela nunca parava de florescer.
Pegou um dos damascos agora, envolvendo o formato
pequeno e macio em sua mão enquanto os pensamentos
se intensificavam. Sua mente voltava sem cessar para
Alizeh e Kamran, para a imagem de seu abraço na
carruagem. A maneira como ela olhava para ele; a
maneira como ele a segurava. Cyrus abandonou o
damasco, que rolou para o chão, depois deixou cair a
cabeça entre as mãos, o peito desmoronando enquanto
exalava.
Eles tinham se reconciliado, então.
Sem dúvida o arduniano lhe contara tudo, conversara
sobre tudo. A qualquer minuto, Alizeh chegaria para
trazer a Cyrus a boa notícia de que ela aceitaria sua
proposta de casamento. Ela provavelmente o pouparia
do resto, misericordiosa demais para anunciar que se
casaria com ele enquanto estaria discretamente noiva de
outro, os dois conspirando para matá-lo e unir seus
impérios.
Cyrus sabia que não era digno de ser seu marido, sabia
que não tinha o direito de esperar mais do que os termos
que havia oferecido, e ainda assim não conseguia
acalmar a comoção em seu peito. Seu coração batia tão
forte que ele quase não ouviu a gentil batida na porta.
Ele se virou em direção ao som como uma pedra sendo
desenterrada. Levantou-se devagar, como se estivesse
encharcado de água, e andou de cômodo em cômodo,
atordoado, chegando à porta principal sem lembrar
como.
Parou diante do painel fechado, com a mão na
maçaneta. Recuou um pouco quando ouviu mais uma
batida.
— Cyrus — ela chamou, baixinho. — Você está aí?
O som da voz quase o desequilibrou. Durante semanas
ele vivera sonhando com ela; tinha memorizado sua
risada, havia a segurado nua em seus braços, conhecido
seus suspiros e gritos de prazer. Ela o curava e o amava.
Tocava nele. Provava seu gosto.
Merda. Aquilo havia de matá-lo.
Ele respirou fundo e abriu a porta.
VINTE E SETE

Alizeh perdeu sua força ao ver o rosto dele.


Sua pele dourada e seus singulares olhos azuis, o brilho
de seus cabelos cor de cobre, seus traços luminosos
contrastando com o traje preto. Ela se esqueceu de como
ele era alto, de como era atraente. Não conseguia
lembrar se já o tinha encarado assim, livre para mapear
o corte das maçãs de seu rosto, as linhas afiadas de sua
mandíbula. Ele parecia mais descansado do que ela
lembrava… E mais radiante.
Céus, ele era de tirar o fôlego.
Ela o via observando seu vestido elaborado, detendo-
se de maneira quase imperceptível nos detalhes do
corpete, nos cristais bordados de modo tão artístico. Ela
deixara a coroa e o véu para trás, e seu penteado, com
os cabelos puxados para o alto de forma simples,
começava a se desfazer. Ele se concentrou nas mechas
soltas com seu rosto reluzindo dourado pelo brilho
quente da luz vizinha.
Seus lábios pareciam macios, e eles se separaram
quando ele engoliu em seco, o movimento atraindo os
olhos dele para sua garganta.
— Olá — ela o saudou em voz baixa.
Em resposta, ele só exalou, virando os olhos para a
porta. Ela esperou que ele falasse algo por um momento;
mas, quando ele não disse nada, ela ficou surpresa.
Percebeu com grande vergonha que esperava que Cyrus
transmitisse grande emoção ao vê-la. Esperava que ele
perguntasse sobre sua saúde, expressasse alegria pela
sua recuperação, demonstrasse preocupação com o
recente atentado contra sua vida. Em vez de tudo isso,
porém, ele irradiava uma tensão que parecia indicar
apenas uma impaciência crescente. Aquilo a intrigava.
Após suas confissões devastadoras, suas ações com
relação a ela; depois de ter salvado sua vida e enchido a
cidade de flores em sua homenagem…
— Precisa de algo? — ele perguntou com frieza. — É
bem tarde.
— Eu… Perdoe-me — disse ela. — Não quis incomodá-
lo.
Ele olhou para algo fora de vista e logo devolveu os
olhos para a porta.
— Suponho que tenha acabado de chegar — disse. —
Seja lá do que precisar, pode ser providenciado. Basta
pedir; os criados vão atendê-la. Se precisar de uma
criada particular…
— Não — disse ela, enervada. — Não é isso…
— Muito bem. Por favor, deixe-me saber em que posso
ser útil.
Ele se retirou com um aceno respeitoso, e Alizeh, com
sua mente enfim alcançando o corpo, ergueu a mão para
manter a porta aberta.
— Cyrus — disse ela, alarmada. — Não vai olhar para
mim?
Ele congelou brevemente antes de encontrar os olhos
dela e, quando o fez, foi com uma polidez tão distante
que ela se impressionou.
— Sim? — ele disse. — Há algo mais?
Ela ouviu o burburinho de snodas passando e se
aproximou da porta.
— Posso entrar? Falar com você em particular?
Houve um vislumbre de medo no olhar dele, tão fugaz
que se foi antes que ela estivesse convencida de que
havia existido. Ela o procurou de novo em sua expressão,
mas Cyrus lhe dirigia um olhar estável, com a
compostura inabalável.
— Claro.
Ele se afastou para deixá-la passar.
Alizeh costumava se preocupar com a impropriedade
de visitar Cyrus em seus aposentos, mas agora que sabia
que se casaria com ele, as fofocas em potencial não a
incomodavam mais. Olhando mais uma vez para uma
snoda que passava, ela cruzou a porta e entrou. Assim
que ouviu a batida atrás de si, seu coração disparou.
Ela não ficava sozinha com ele desde aquela noite. A
noite em que tudo e nada acontecera entre eles.
Cyrus movimentou-se com destreza, passando para a
luxuosa antecâmara. Havia assentos exuberantes
reunidos em torno de um par de mesas baixas, e Cyrus
ficou atrás de uma poltrona enquanto gesticulou de
forma educada para outra. Ele estava esperando que ela
se sentasse antes de se sentar, e essa atitude atenciosa
era tão diferente da de um rei imperioso que a chocou.
Pouco antes, Kamran havia embarcado na carruagem
antes dela, e Alizeh não pensara nada na hora, pois não
esperava nada de diferente. Cyrus sempre a confundia, e
ela ficou tão ansiosa graças a esse simples gesto que
balançou a cabeça para ele, nervosa demais para se
sentar.
— Prefere ficar em pé? — Ele pareceu surpreso. — Será
breve, então.
— Eu… Sim… — O coração dela não desacelerava. Ela
se sentia febril em sua presença, que parecia destruir
sua capacidade de manter-se calma. — Sim, eu vim lhe
dizer… Isto é, eu só queria que você soubesse que aceito
seu pedido — ela declarou, enfim. — De casamento.
Ele a encarou.
— Excelente.
— É isso? — indagou Alizeh, tentando sorrir. Ela
apertou as mãos contra a própria cintura, sem saber para
onde olhar. — Pensei que ficaria mais feliz ao ouvir a
notícia.
— Não quero ofendê-la — ele disse, baixando a cabeça.
— Mas acho difícil celebrar as ordens do diabo.
Alizeh quase estremeceu; ela se sentiu tão estúpida.
Claro que ele não se alegraria com a notícia; era uma
barganha terrível para ele, que culminaria, teoricamente,
em seu assassinato. Ela supôs que só esperava ver
alguma reação dele, já que tinha se mostrado tão
apaixonado na última vez… Mas, pelos céus, isso
também era injusto, pois ele não lhe devia emoção
nenhuma. Ela deixara claro que se casaria apenas por
seu império, e esperar que ele se jogaria a seus pés não
era nada menos que sádico.
Pelos anjos lá em cima, ela se decepcionou consigo
mesma.
— Perdoe-me — disse, seus olhos dirigidos ao brilho
suave de um vaso. — Foi tolo de minha parte dizer isso.
— Não há nada a perdoar — disse ele em voz baixa. —
Obrigado por me informar sobre sua decisão.
Alizeh assentiu, mesmo sentindo um desejo
perturbador de gritar. Não entendia aquela frieza entre
eles, pois nunca fora assim, nem mesmo quando o
odiava. Ela evitou seus olhos, sabendo que deveria sair
mesmo quando parte dela desejava ficar.
— Devo lhe desejar uma boa noite, então — ela disse
baixinho, dirigindo-se à porta.
— Quando?
Ela se virou, atordoada, pois aquela única palavra foi
mais carregada de sentimento do que qualquer outra que
ouvira dele naquela noite.
— Perdão?
— Quando você estará pronta para fazer seus votos?
Alizeh empalideceu. Nunca pensara naquilo daquela
maneira: teria de jurar que iria se casar com aquele
homem. Prometeria em voz alta honrar, amar e cuidar
dele pelo resto de sua vida. Para todo o mundo, dali em
diante, ele seria conhecido como seu marido.
E ela, como sua mulher.
A ideia deveria ser ofensiva para ela… Mas Alizeh era
atraída, inexoravelmente, pela ideia de estar com ele.
Ele, que não era confiável. Ele, cuja vida era traçada pelo
diabo. Ela nunca pensara em si mesma como alguém
com instintos tão fracos, mas não podia imaginar
nenhuma outra explicação para a atração inefável que
sentia na presença dele, o alcance que tinha em sua
alma. Era perigoso como seu coração batia ao vê-lo. Ela
sabia que não deveria se permitir sentir aquelas coisas
quando seu casamento estava destinado a terminar em
assassinato. Mas ainda assim… Quando mais ela sentira
tal desejo?
— O mais rápido possível — ela sussurrou.
— Amanhã?
— Sim… Não — ela corrigiu, tentando se concentrar. —
Os criados precisarão de pelo menos alguns dias para se
preparar, eu acho.
Ele a estudou com algo que se aproximava da
perplexidade.
— Preparar o quê? Precisamos apenas de um par de
testemunhas e de um Profeta para nos unir.
Ela hesitou.
— Certamente alguns arranjos precisarão ser feitos. Sei
que pode ser difícil casar-se publicamente… Pois não
consigo imaginar como poderíamos garantir a segurança
de um evento como esse… Mas, se possível, desejo que
meu povo testemunhe. E talvez possamos servir um
bolinho? Acho que Omid gostaria disso. E sua criadagem
também…
— Não.
Ela olhou para ele, surpresa.
— Não? Você não quer bolo?
— Não — ele disse com raiva. — Eu não quero bolo.
— Muito bem — disse ela, baixando os olhos. — Eu
mesma nunca comi bolo, não sei se é bom, mas é
tradicional nos casamentos entre Argilas, então
presumi…
— Você nunca comeu bolo? — ele disse, soando de
repente distante.
— Meus pais não sabiam cozinhar. E depois, é claro…
— Ela desviou o olhar. — Tais luxos não estavam ao meu
alcance. — Ela respirou fundo, forçando-se a se animar,
quando encontrou de novo os olhos dele. — De qualquer
maneira, talvez você possa consentir em vestir outra
coisa que não este uniforme preto…
— Não.
— Cyrus…
— Não.
— Eu não entendo — disse ela. — Esta foi uma ideia
sua… Você é que queria se casar…
— Está tentando me punir? — disse ele, sua voz se
erguendo em um tom angustiado. — Você me acha
mesmo capaz de fingir que o dia do nosso casamento é o
mais feliz da minha vida?
Ela tentou manter a compostura, endurecendo-se ao
dizer:
— Você me desonraria na frente do mundo, fazendo
parecer que se casar comigo é um sacrifício? Vai passar o
dia de mau humor e roupas fúnebres? Faria sua casa
acreditar que me detesta, negando-lhes um simples bolo
em celebração a mim?
Ela viu a energia de lutar deixando o corpo dele, ouviu
sua expiração instável.
— Tudo bem — disse ele, tão baixo que foi quase um
sussurro. — Faça como quiser.
— Obrigada.
Mais uma vez, ele exalou, desta vez se afastando dela
e passando as mãos pelo rosto. Seu autocontrole parecia
estar desmoronando, pois ele tremia agora; mas, a cada
segundo que passava, Alizeh também se sentia mais
fraca diante dele. Havia um calor inegável entre eles,
uma atração elétrica à qual ela não tinha força para
resistir. Ela nem percebeu que se aproximou dele até que
ele de repente se afastou, seus olhos a devorando
quando a viu se aproximar, escurecendo-se com um
desejo tão palpável que ela sentiu como se ele a
estivesse vendo nua.
Enfim, ela viu uma nuance de verdade em seu olhar,
que quase a fez perder o fôlego.
— Cyrus…
— Não — ele disse, bruscamente. — Não faça isso.
Ela parou no lugar, apenas centímetros separando-os
agora.
— Não faça o quê?
— Alizeh — disse ele. Seu peito estava arquejando, seu
corpo rígido. — Tenha compaixão.
Essas palavras acenderam um fogo perigoso dentro
dela.
Ela disse a si mesma para se retirar; mas, naquele
momento, não conseguia sair do lugar. Estava em sua
órbita agora, tão perto que podia ver nítidos os cílios de
cobre dele, a cabeça dela úmida com a memória
sensorial. Queria tocá-lo, conhecer o calor de sua pele.
Sabia como era o corpo dele sob aquelas roupas, quanto
poder e paixão ele mantinha bem presos dentro de si.
Era uma revelação que ela tinha demorado a desvendar
sobre Cyrus: ele possuía um autocontrole tão cuidadoso,
uma disciplina extraordinária sobre seu próprio corpo. O
desejo de Cyrus por ela era tão escaldante quanto o calor
de verão. Ela já se desesperara sob o peso daquele
desejo, mas ele nunca tocara um dedo nela. Nunca a
beijara, nunca simplesmente reivindicara o que queria,
como Kamran tinha feito.
Aquela era uma descoberta fascinante… A realeza,
saturada em seu excesso de indulgências, raramente
negava algo para si. Tendo trabalhado em várias casas
de nobres, Alizeh sabia em primeira mão que os ricos e
aristocratas eram glutões da pior espécie. Ao se envolver
pela primeira vez com Cyrus, ela ficara tão distraída com
sua suposta monstruosidade que não conseguira notar as
inconsistências de seu caráter de rei. Sua modéstia era
desconcertante: roupas simples, a ausência de joias e
adornos… Mesmo a maneira comum com que ele
cuidava de seus dragões. O mais interessante era que
ele não tinha assistentes, nem uma comitiva que o
seguia, nem snodas limpando seus calcanhares. Talvez, o
mais inexplicável era que os criados não se curvavam
diante dele; não caíam de joelhos em sua presença.
Ela se maravilhou com essas percepções e, com muito
cuidado, deu um passo para trás, interpondo pelo menos
meio metro entre eles.
O distanciamento foi inútil.
Uma barragem havia estourado e não havia como
repará-la. O exterior de Cyrus já não estava mais gélido;
seus olhos faiscavam dor e desejo. Quanto mais ela
olhava para ele, mais instável ela se sentia. Logo a febre
entre eles alcançou um nível perigoso, e seu tormento se
aguçou de tal forma que ela precisou se sentar. Ela
queria um alívio que não conseguia entender, queria algo
dele que não conseguia nomear. Cada sentimento seu
estava tão realçado que ela pensou que gritaria ao
menor gesto dele em sua direção.
— Cyrus…
— Devemos realizar o pacto de sangue esta noite —
disse ele, afastando o corpo.
— O quê? — Ela piscou, sentindo a cabeça girar.
— Se vamos nos casar tão rápido, não devemos adiar.
— A voz dele estava rouca, e ele fez uma pausa para
limpar a garganta. — Prefiro ter alguns dias para me
recuperar antes da cerimônia.
A declaração chocante produziu com precisão o efeito
de resfriamento de que Alizeh precisava. Era um banho
de gelo da realidade, da qual ela quase tinha se
esquecido.
Pactos de sangue eram moralmente repreensíveis e, no
entanto, não conseguia ver uma maneira de contornar a
resolução em tais circunstâncias. Era a única maneira de
ter certeza de que Cyrus cumpriria sua parte no acordo.
— Eu nunca vi um pacto como esse — disse ela,
recuperando a seriedade. — Apenas ouvi histórias. Será
muito ruim para você?
Ele manteve os olhos no chão quando disse, em voz
baixa:
— Entendo que, no começo, haverá grande dor.
— Mas irá melhorar?
— Depende.
— De quê?
Ele balançou a cabeça, ainda evitando os olhos dela.
— Esses detalhes são de pouca importância. Se for
conveniente para você, gostaria de fazer o pacto esta
noite.
Ela tentou se ajustar à ideia.
— Vamos precisar de um Profeta, não vamos? Não é
tarde demais?
Mais uma vez, ele balançou a cabeça.
— Consigo fazer sozinho.
Outra revelação chocante. Pactos de sangue exigiam
um feitiço avançado, e Alizeh nunca ouvira falar de um
pacto que fora feito por alguém de fora do sacerdócio.
— É mesmo?
— É.
Ela ficou quieta por um longo momento antes de dizer:
— Cyrus, você nunca me dirá a verdade?
Ele se assustou, erguendo a cabeça e revelando um
medo desprotegido.
— A verdade sobre o quê?
— Sobre quem você de fato é. Há tanta coisa que você
não me fala…Tanta coisa que não faz sentido.Toda vez
que converso com você, saio com mais perguntas.
— Acha que tenho mentido para você?
— Sim — disse ela, e fez uma pausa. — Mas tenho um
estranho pressentimento de que pode estar mentindo
sobre como você é horrível.
Cyrus quase sorriu, embora a ação tenha sido cortada
por uma tristeza tácita.
— Dê-me vinte minutos — ele disse. — Preciso preparar
algumas coisas.
— Você vai ignorar o que eu acabei de dizer?
Ele caminhou até a porta, abrindo-a com um
movimento fluido, ficando de lado para que ela pudesse
sair.
Ela olhou para ele.
— Você quer que eu vá embora?
Havia uma fraqueza em seus olhos quando ele disse:
— Não.
— Cyrus…
— Precisamos de pelo menos três testemunhas — disse
ele, baixando a cabeça. — Embora eu tenha certeza de
que você não terá problemas para convencer seus
amigos a me verem sofrer.
Alizeh franziu a testa e depois se moveu em direção à
porta como se estivesse sonâmbula, as saias farfalhando
pelo chão. Ela parou em frente a ele, a apenas um palmo
de distância, e examinou seu peito, depois seu pescoço,
sua mandíbula e, por fim, a curva de seus lábios. A voz
dela soou sem fôlego quando ela disse:
— Você não pode simplesmente ignorar as coisas que
eu digo e esperar que elas desapareçam.
— Eu a encontrarei na biblioteca, no andar de baixo.
O que ela fez a seguir foi inconsciente. Não quis tocá-
lo, não exatamente… Na verdade, ela não era capaz de
se lembrar de como ergueu a mão até o corpo dele. Só
se lembrava da maciez do suéter, do calor e da firmeza
do torso sob o tecido… E depois do alívio, o alívio
intoxicante quando ele enfim a tocou, quando ele
arrastou as mãos por seu corpo emitindo um som
torturado. Suas palmas a mapearam através do tecido
fino de seu vestido, antes de agarrá-la pelo quadril, com
força. Isso a fez reprimir um grito, ao se assustar então
com a batida da porta, e se descobrir, com um choque,
pressionada contra ela, presa pelo corpo quente dele. O
peito de Cyrus palpitava tão forte que parecia espelhar o
redemoinho de dentro dela. Ele parecia ensandecido e
selvagem, como se o esforço para se manter imóvel o
estivesse matando.
— Você não sabe o que está fazendo — disse ele, sua
voz tão áspera que era quase irreconhecível. — Você não
sabe o que eu quero de você, meu anjo. Nem consegue
imaginar.
— O que você quer dizer? — Ela olhou para ele, seu
coração martelando no peito. — O que é que você quer?
Seus olhos pareciam faiscar, o azul de suas íris
invadido pelo preto da pupila. Ele baixou a cabeça, quase
tocando os lábios dela ao exalar, com o corpo trêmulo.
— Tudo — sussurrou, libertando-a de repente, recuando
como se ela o tivesse esfaqueado. — Eu quero tudo.
Alizeh sentiu-se liquefazer. Apesar de toda a geada em
suas veias, ela experimentou pela primeira vez um tipo
de calidez, um desespero febril. E ele nunca nem a
beijara.
Ela exalou um som sem fôlego e angustiado.
— Vejo você no andar de baixo — disse ele, olhando
para o chão. — Vinte minutos.
Desta vez, ela saiu sem uma palavra.
VINTE E OITO

— Eentão? — Huda a estava esperando ao pé da escada.


— Como foi? Alizeh desviou o olhar e continuou andando,
mesmo com Huda no seu encalço. Ela se sentia abalada.
Indisposta. Ainda não estava pronta para falar e não
sabia o que fazer com o coração, que batia em suas
costelas com tanta força que ela pensou que se
machucaria.
— Tudo bem — disse. — Tudo correu bem.
— Bem? O que você… Céus, olhe para o seu rosto. —
Huda ofegou. Ela parou Alizeh no lugar, segurando-a com
os braços esticados para fazer uma inspeção. — O que
ele fez com você?
— O quê? — Alizeh, irritadíssima com a pergunta, olhou
firme nos olhos castanhos de Huda. — O que quer dizer?
— Ele tentou machucá-la? — Mais uma vez, ela ofegou.
— Ele foi horrível? Ah, eu sabia que você não deveria ter
entrado sozinha… Tentei falar isso…
— Não, ele não tentou me machucar — disse ela,
pronunciando as palavras com mais veemência do que
pretendia e arrependendo-se quando viu o espanto no
rosto de Huda. — Perdoe-me — disse. — Eu não queria
canalizar a raiva para você. Foi um dia difícil.
Huda acalmou-se de imediato, os olhos cheios de
compreensão.
— É claro, querida. Eu entendo.
Alizeh nunca estivera de tão mau humor. Ela se afastou
de Huda, embalando-se com os próprios braços. Sentia-
se frustrada e confusa. Queria que o mundo ao seu redor
fizesse sentido, mas não fazia. Cyrus deveria ser mau.
Ela queria que ele agisse com maldade. Ele não deveria
ser gentil, respeitoso e atencioso. Ele era o personagem
que ela deveria matar sem crise de consciência. Não
deveria perder a cabeça. Não deveria se sentir assim,
como se houvesse uma ferida aberta dentro dela, como
se ela só quisesse se sentar e chorar.
O sentimento aproximou-se perigosamente da tristeza.
Ela avançou cegamente pelo corredor, sem saber para
onde estava indo. Não queria que ele morresse. Não
queria fazer um pacto de sangue. Não queria matá-lo. A
biblioteca. Onde ficava a biblioteca? Era necessário que
ela o matasse? Sim, ela pensou; pois, se não o matasse,
estaria casada com um homem ligado a Iblees, o que
significava que nunca poderia confiar totalmente nele.
Ele poderia um dia machucá-la apenas para agradar ao
diabo… O próprio Cyrus não negava tal possibilidade.
Mas… Kamran tinha expressado seu desejo de se casar
com ela, não tinha? Aquela era uma alternativa
interessante; mas, então, ela teria de permanecer casada
para sempre com Kamran… O que, embora não fosse
uma perspectiva tão terrível, fazia com que ela se
sentisse um pouco claustrofóbica. No entanto, se ela se
casasse com Kamran, talvez Cyrus não morresse. Não,
não funcionaria, porque o diabo o mataria de qualquer
maneira, não? E será que Kamran ainda ia querer se
casar com ela sem a possibilidade de conquistar Tulan?
Ela exalou um lamento.
Onde diabos ficava a biblioteca? Só a tinha visto uma
vez, de passagem, em seu primeiro dia no palácio.
Poderia perguntar a um criado, mas não queria chamar a
atenção para aqueles planos noturnos. Se pudesse se
lembrar…
— Vocês marcaram uma data, então?
— Uma data? — Alizeh repetiu, distraída.
Huda a estava acompanhando, a expressão de
preocupação em seus olhos cada vez mais intensa.
— Para o casamento. — Huda franziu a testa. — Tem
certeza de que está bem?
— Ah — disse Alizeh, piscando. — Sim, claro. Huda,
você sabe onde fica a biblioteca?
— A biblioteca? — ela repetiu. — Siga direto pelo
corredor e vire duas vezes à direita, depois à esquerda;
mas, espere… — Ela puxou com cuidado o braço de
Alizeh. — O que ele disse? Quando é que você vai se
casar?
— Em dois dias.
— Dois dias? — Huda quase gritou. — Não é muito
cedo?
Alizeh ficou tensa. Havia criados por toda parte,
supostamente realizando suas tarefas. Quando ela
trabalhava como snoda, sempre a surpreendera o que as
pessoas diziam em sua presença. Simplesmente não
pensavam nela como uma pessoa. Prestavam tanta
atenção a ela quanto ao papel de parede… E, ainda
assim, ela estava sempre, sempre ouvindo.
— Reúna os outros — disse, seu tom calmo — e me
encontre na biblioteca o mais rápido possível. Tenho
muita coisa para contar.
Huda deu um sorriso brilhante.
— Excelente! Devo pedir chá? Devo acordar Omid? Ele
foi para cama, mas eu…
— Não — cortou Alizeh. — É melhor que ele esteja
dormindo. E nada de chá. Nenhum criado. Não será esse
tipo de reunião.
— Por que não? — O sorriso de Huda diminuiu. — Não
vamos nos reunir para fofocar?
— Não — disse Alizeh, apertando o braço da jovem. —
Não exatamente.
— Majestade… — Ouviu-se uma voz familiar e agitada,
e Alizeh se virou, encontrando Hazan quase correndo em
sua direção. Ele a alcançou em instantes, demorando um
pouco para estudá-la antes de dizer: — A senhora está
bem?
— Por que não estaria? — indagou ela, surpresa com a
preocupação. — Aconteceu mais alguma coisa?
— Fui informado de que a senhora subiu sozinha até os
aposentos dele… Não sabia que estaria em uma sala
fechada quando falasse com ele… Eu juro, se ele
encostasse um dedo na senhora.
O humor de Alizeh azedou-se de novo.
— Por que todo mundo está tão preocupado que ele
possa me machucar? Antes da chegada de vocês, passei
muito tempo sozinha com Cyrus e nunca me machuquei.
— Respeitosamente, Majestade — disse Hazan com
uma calma forçada —, quando a encontramos, a senhora
estava inconsciente, com um corte no pescoço e um
ferimento na cabeça, e estava coberta de sangue…
— Devemos falar assim na frente dos criados? — ela
disse com aspereza.
Ele baixou a voz.
— Os Profetas disseram que encontraram mordidas de
dragão parcialmente cicatrizadas ao longo de sua perna
e torso…
— E, então, você acordou — acrescentou Huda em um
sussurro dramático — apenas para levar uma flechada
nas costas e ser jogada de um penhasco…
— Isso foi obra de Kamran!
— O que foi obra minha?
Alizeh virou-se e viu Kamran aproximando-se do grupo.
Ele sorriu para ela com prazer genuíno, depois avistou
Huda e fez uma careta.
— O que está fazendo aqui? — ele perguntou, voltando
os olhos para Hazan. — Você deveria me encontrar na
sala. Por que vocês estão todos parados no corredor
trocando palavras acaloradas?
— Que interessante pergunta — disse Huda,
docemente. — Alizeh estava apenas relembrando-se de
quando o senhor quase a matou.
A expressão de Kamran ficou sombria.
— Duvido disso.
— Na verdade, não estava mesmo — disse Alizeh,
franzindo a testa para Huda. — Por favor, não briguem
esta noite. Há muito pela frente.
— À nossa frente? — Hazan ficou, de súbito, alerta. —
Aconteceu alguma coisa?
— Sim. Eu…
Kamran colocou-se ao lado dela, tocando de leve a
parte inferior de suas costas, em um movimento quase
possessivo. Ela olhou para ele, surpresa. Não que ela se
sentisse exatamente desconfortável; gostava de Kamran
e se sentia bastante segura com ele. Mas queria deixar
claro que, naquele momento, ela não o considerava nada
mais do que um amigo. Pensou em dizer alguma coisa,
mas não conseguiu decidir se estaria reagindo de forma
exagerada a um gesto tão pequeno, por isso resolveu
ignorá-lo. Sua mente já estava cheia o suficiente.
— Hazan — voltou a dizer. — Você poderia nos levar
até a biblioteca? Explicarei tudo quando tivermos alguma
privacidade…
Então ela ouviu um grito; ela se virou em direção ao
som e descobriu que uma snoda havia se assustado ao
vê-la. Quando Alizeh olhou para a garota, ela deu um
gritinho sufocado e desabou no meio do corredor. Alizeh
entrou em pânico, lembrando, então, que um punhado
de criados jinn trabalhavam no palácio. Fez menção de ir
até ela, mas Hazan a impediu.
— A senhora não pode…
— Por que não? Ela pode ter se machucado…
— Ainda não encontramos o assassino… Não aceitarei
que a senhora corra nenhum risco.
— Ela é uma criada…
— Pode ser um disfarce conveniente — disse ele,
dirigindo-lhe um olhar conhecedor.
— Mas, Hazan, não podemos simplesmente deixá-la
ali…
Com a comoção, um grupo de snodas correu para o
corredor, só que mais duas delas avistaram Alizeh e se
sobressaltaram. Uma tapou a boca com a mão, contendo
um soluço, enquanto a outra lutou para falar e depois
desmaiou. As criadas restantes, que aparentemente não
eram jinns, permaneceram paradas fitando Alizeh
boquiabertas de espanto, sua atenção ainda mais
enervantes pelo fato de ela não poder ver seus olhos.
Hazan balançou a cabeça.
— Vou tirá-la daqui. A senhora não pode mais vagar
por esses corredores sozinha. — Olhando para Huda e
Kamran, ele disse: — Encontrem-nos na biblioteca. — E,
depois: — E tentem não se matar antes de chegar lá.
— Mas, Hazan, espere, alguém tem de ajudar as
snodas…
— Eu farei isso. — Soou uma voz familiar e açucarada.
Alizeh virou-se, nervosa, e avistou Sarra caminhando em
direção ao grupo em um ritmo lento.
Sarra balançou a cabeça, com os olhos fixos em Alizeh
enquanto dizia:
— Que surpresa estranha e fascinante você acabou
sendo. Ultimamente, para onde quer que eu vá, parece
haver algum drama, e você, minha querida, está sempre
no centro de tudo.
Alizeh não respondeu, apenas observou Sarra com
cautela enquanto a mulher passava por eles em direção
às snodas caídas, estalando os dedos para que alguém
fosse buscar “aquele boticário arduniano”. Alizeh ainda
não tinha ideia do que fazer com relação àquela mulher e
temia que qualquer coisa que ela dissesse fosse
meticulosamente examinada, pois estavam na presença
de pelo menos vinte criados no momento, uma dúzia dos
quais havia entrado no corredor nos últimos segundos.
Quanto mais tempo ficassem ali, maior seria o
espetáculo. Sussurros se acumulavam ao redor deles
como uma tempestade.
— Vamos — disse Hazan, colocando a mão em seu
ombro.
— Sim — disse Alizeh, distraída. — Sim, devemos ir.
Vamos nos atrasar.
— Atrasar? — Kamran e Huda se viraram para ela ao
mesmo tempo.
Ao lado dela, Hazan enrijeceu.
— Nos atrasar para quê, Majestade?
VINTE E NOVE

Quando abriram a pesada porta da biblioteca, Alizeh logo


soube que ele já estava lá dentro. Podia senti-lo de
alguma forma, como se fosse magnetizada por sua
presença. Avançou com confiança pelo espaço
desconhecido, suas dimensões cavernosas iluminadas
por focos quentes de luz.
— Por aqui — ela sussurrou.
— Tem certeza? — Huda sussurrou de volta. — Meu
Deus, este cômodo parece assombrado à noite.
— Talvez seja porque você está aqui — disse Kamran
em voz baixa.
Huda arfou.
— Ou o senhor.
— Chega — cortou Hazan. — Engulam a estupidez esta
noite, ou jogarei os dois nas masmorras.
— Você não tem autoridade para fazer isso — protestou
Huda.
— Acha que Cyrus me negaria tal pedido?
Huda pareceu ofendida; Alizeh não pôde deixar de
sorrir. No fim, os quatro caminharam pela biblioteca
juntos, pois, quando Alizeh explicou, sem detalhes, que
Cyrus estava esperando por ela, Hazan ficou
inexplicavelmente zangado; Kamran recusou-se a sair do
lado dela; e Huda disse:
— Devo trazer minhas estrelas de arremesso?
As prateleiras imponentes erguiam-se sobre eles,
enquanto o cheiro de livros antigos e couro envelhecido
enchia suas narinas. Era um cômodo muito usado, um
lugar destinado a mais do que simples exibição, repleto
de poltronas e tapetes gastos. À medida que avançava,
Alizeh descobriu o cerne de tudo: nos fundos, havia um
espaço discreto, ao lado de uma lareira gigantesca e
apagada, em torno da qual havia uma coleção de sofás
macios e mesas baixas iluminadas pela luz dourada de
luminárias próximas. A parede dos fundos, porém, era
uma obra-prima de vidro: janelas e portas maciças
davam para uma charneca coroada por uma lua
brilhante, cujo brilho lançava um holofote etéreo sobre
uma única figura.
Encostado na lareira, estava Cyrus.
Como um palito de fósforo aceso, seu cabelo reluzia
contra a escuridão de suas roupas. Ele irradiava poder e
elegância mesmo em repouso. Seu olhar era quase
lânguido enquanto os observava entrar. Ele olhou
primeiro para Alizeh, mas fitou Kamran por mais tempo.
Os dois homens compartilharam algo que se aproximava
muito do ódio, mesmo trocando saudações silenciosas.
Alizeh teve de se forçar a recuar, a manter distância de
Cyrus. Era melhor para ela quando havia distância entre
eles, quando sua mente conseguia ir além do espaço que
ele ocupava dentro dela. Mesmo ali ela teria de lutar
para ter um mínimo de autodomínio. O calor se
acumulara dentro de seu corpo frio como nunca em sua
vida. Um desejo arrebatador crescia dentro dela,
percorrendo sua pele. Alizeh lutou para não olhar para a
boca dele, que sempre atraía seus olhos; lutou para
deixar de lado a memória de suas palavras ainda não
processadas.
Tudo, ele dissera.
Eu quero tudo.
Ela se assustou, de repente, ao sentir uma mão em
suas costas, e quando ergueu os olhos encontrou Kamran
parado ao seu lado mais uma vez. Aquilo já havia
acontecido duas vezes e ficara registrado em sua mente
turva como preocupante, pois ele parecia pensar que ela
recebia de boa vontade esses gestos possessivos, apesar
de não haver nenhum compromisso entre eles. Precisaria
chamá-lo de lado e deixar claro que ainda não havia
tomado uma decisão sobre sua oferta. Na verdade, ela
não achava que seria capaz de pensar mais no assunto
até que primeiro lidasse com as questões urgentes que
tinha diante de si.
— Estão atrasados — disse Cyrus, sem preâmbulos,
afastando-se da lareira. Ele se aproximou como se fosse
uma aparição, com movimentos lentos e líquidos. Os
olhos dele, ela pensou, estavam quase zangados…
Exceto que, em um piscar de olhos, viu que agora ele
parecia inabalavelmente calmo.
— Majestade — disse Hazan, virando-se para ela. —
Talvez agora possa nos dizer por que estamos reunidos
aqui.
Cyrus parou.
— Não contou a eles?
— Eu não queria que os criados nos ouvissem —
explicou Alizeh, olhando para os outros. Ela respirou
fundo. — Muito bem, então. Eu os trouxe aqui porque
decidimos firmar o pacto de sangue esta noite.
Huda abafou um gritinho.
— Seu filho da puta — disse Hazan, caminhando em
direção a Cyrus como se pudesse matá-lo. — Como você
se atreve… Ela acabou de acordar… Mal teve chance de
se recuperar, de passar algum tempo com os próprios
pensamentos…
— Hazan, por favor, a escolha foi minha. Eu
concordei…
— Ela não será afetada pelo pacto — disse Cyrus, com
a voz entrecortada. — Eu é que enfrentarei o fardo da
dor.
Hazan parou.
— O senhor já testemunhou, em primeira mão, as
consequências de um pacto de sangue? — Ele gesticulou
para a sala. — Ou só leu a respeito em seus preciosos
livros?
Cyrus encarou Hazan.
— Li muito a respeito. Ouvi relatos pessoais dos
Profetas… Sou perfeitamente capaz…
— Pois eu já vi com meus próprios olhos! — Hazan
explodiu. — Acha que é uma questão simples?
Renunciará a um pedaço de sua alma, de seu livre-
arbítrio…
— Estou bem ciente…
Hazan voltou-se mais uma vez para Alizeh, implorando-
lhe.
— Majestade, entenda… O custo de tal magia é muito
alto. Uma vez feita, a senhora praticamente possuirá um
pedaço dele. Terá de carregá-lo como um peso morto; ele
será fisicamente incapaz de ficar longe da senhora…
— E ela terá de matá-lo para acabar com isso. — Foi
Kamran que falou, aproximando-se dela. — Não vejo isso
como uma coisa ruim, Hazan.
— O que você quer dizer — disse Alizeh, com os
pensamentos em frenesi — com “ele será fisicamente
incapaz de ficar longe” de mim? Eu sabia que havia uma
amarra, mas não que ela se manifestasse de forma tão
literal.
— Sim, Majestade — disse Hazan, que parecia aliviado
com o choque dela. — Trata-se de um vínculo impiedoso,
usado ao longo da história apenas pelas criaturas mais
desesperadas, com resultados sombrios para ambas as
partes envolvidas…
— Ele está exagerando — Cyrus interrompeu. — No
início, sim, será difícil, por isso pedi para fazer isso o
mais rápido possível…
— Para sempre! — Hazan gritou. — Sempre será difícil!
É pior no início, é verdade… No início, a dor da separação
será insuportável. E, talvez, em questão de dias, o
senhor consiga ficar a três metros de distância dela sem
querer enfiar uma adaga no crânio. Em meses, se tiver
sorte, poderá suportar a distância de um campo de
trigo… Mas nunca conseguirá se separar dela por muito
tempo. Até que sua dívida seja paga, nunca mais terá
independência. É da própria natureza de um pacto de
sangue manter o devedor acorrentado ao seu credor, e
estou chocado que tenha se comprometido com tal
magia sem conhecer os fatos.
— Eu conheço os fatos — declarou Cyrus, em tom
sombrio. — Mas simplesmente não tenho escolha. Minha
dívida com ela é minha morte. Quando terminar, eu
também estarei terminado.
— Cyrus — ela sussurrou. — Tem certeza…
— É a única maneira — disse Kamran. — Não podemos
confiar nele sem o pacto. Você não pode se casar com
ele sem a garantia…
— Então, talvez, ela não deva se casar com ele! —
Hazan exclamou, furioso. Ele lutou para manter a
compostura, depois se virou para Alizeh e disse: — É
mesmo tão imperativo que se case com ele, Majestade?
Não pode, em vez disso, aceitar a mão de Kamran, já que
ele já lhe ofereceu…
— Como sabia disso? — Alizeh olhou para Cyrus, cujo
corpo estava rígido enquanto ele olhava para o chão. —
Eu não… Não contei a ninguém…
— Ah, minha querida, já sabemos das intenções dele
há algum tempo — disse Huda, colocando um braço em
volta do ombro dela. — O príncipe só fala nisso há
semanas.
Alizeh olhou para Kamran, para a expressão firme em
seus olhos, e sua mente ficou em branco.
— Perdoe-me — ela lhe disse. — Mas eu… Eu não tomei
uma decisão em relação a… Isto é, só sei que, se não me
casar com Cyrus, o diabo vai matá-lo de qualquer
maneira. — Seu coração se apertou no peito, e sua voz
baixou até virar um sussurro. — Ele está condenado a
morrer de uma forma ou de outra.
— Precisamente — disse Kamran, impassível. Ele se
virou para os outros. — Se ele vai morrer de qualquer
maneira, por que ela não deveria sair disso com um
prêmio? Eu já a aconselhei a aceitar a oferta…
— Você a aconselhou? — Cyrus disse de modo
carregado, seus olhos brilhando com um ódio
desenfreado. — Quer dizer que a aconselhou a se casar
comigo? — Foi a primeira vez que Cyrus se dirigiu a
Kamran, sua voz tão repleta de raiva que irradiava
tensão por toda a sala.
— Sim — zombou Kamran. — Eu a encorajei a não
perder a oportunidade de colher a recompensa por matar
você.
— Pelo menos tenho algo para oferecer a ela. Enquanto
isso, você se atreve a prometer um reino que ainda não
herdou. Promessas vazias de um príncipe deposto que
talvez nunca seja rei.
Kamran enrijeceu.
Cyrus estudou-o, e sua voz foi suave e letal quando
disse:
— Você achou que eu não descobriria o que de fato
aconteceu quando você deixou Ardunia? Não me importa
o que os jornais digam sobre sua popularidade entre as
massas. Seus Profetas não o consideram digno do trono.
— O quê? — questionou Alizeh. — Isso é verdade?
Kamran deu um passo à frente, parecendo um
assassino.
— Não sabia que iríamos compartilhar segredos — ele
disse a Cyrus. — Talvez você queira explicar a todos por
que uma vez o encontrei desmaiado no chão, na calada
da noite, cada centímetro de seu corpo tão coberto de
sangue que mal conseguia abrir os olhos?
Cyrus ficou tenso, e Alizeh respirou fundo.
— Quantos outros inimigos você tem? — Kamran
continuou. — Quantos outros vícios revoltantes? Você
passa suas noites jogando? Nos braços de prostitutas? É
tão depravado que não tem proteção contra a violência
dos bandidos, mesmo sendo rei…
— Já chega — disse Alizeh, experimentando uma rara
onda de raiva. Ela, que sabia exatamente como aquilo
acontecera a Cyrus, não pôde mais ouvir aquela calúnia.
— Você lança calúnias sobre o caráter dele sem ter
conhecimento dos fatos…
— Caráter? — Kamran ficou boquiaberto. — Que
caráter? O homem assassinou o próprio pai por uma
coroa! E assassinou meu avô. Exterminou nossos
Profetas! Tenho motivos para suspeitar que ele tem
enviado espiões a Ardunia há meses… Será que ele
mencionou isso? Ofereceu alguma explicação para essas
missões secretas em nosso império? Por quebrar os
Tratados de Nix ao traçar fronteiras mágicas entre as
nossas terras? Cada ação sua é uma manipulação! Cada
palavra sua é motivada por seu próprio interesse. Só os
céus sabem o que mais ele fez ao longo de sua vida
devassa!
Alizeh assimilou aqueles horrores, odiando não poder
negá-los, já que Cyrus se negava a falar de seu pai e a
explicar suas ações. Ela não sabia sobre os espiões e,
quando olhou para Cyrus em busca de uma reação a
essa nova acusação, encontrou-o olhando de modo
impassível para a parede. Ele não fizera nenhum gesto
para refutá-la, mas aquelas afirmações pareciam estar
em desacordo com tudo o que ela sabia sobre ele. Na
verdade, ele não lhe parecia o tipo de pessoa que agia
apenas em interesse próprio. O momento tenso inspirou
uma lembrança que lhe serviu de evidência: quando
chegara a Tulan, ela pressionara Cyrus para obter
informações sobre seu acordo com o diabo, e ele tinha
dito:
Preciso viver tempo suficiente para cumprir uma tarefa
crucial. Para além disso, não importa se o meu coração
baterá ou não. Você não faz ideia do que está em jogo. A
minha vida é o de menos.
O nosta confirmara suas palavras como verdadeiras.
Alizeh não conseguia decidir se era burra ou perspicaz
por pensar que havia mais coisa por trás das ações de
Cyrus. Ela descobrira que ele era muito inteligente, muito
sensato. Era reservado e atencioso, e havia deixado
escapar muita coisa sobre si nos pequenos momentos
humanos que compartilharam. Alguém que possuísse um
autocontrole tão cuidadoso, ela raciocinou, nunca
perderia a cabeça por tempo suficiente para cometer
uma violência impensada. Na verdade, agora lhe parecia
bizarro que ele tivesse feito um acordo com o diabo, pois
Cyrus parecia não ter desejos materiais, nenhum
interesse nos lucros do mundo… E, pior, ele parecia não
receber nada além de tormento de Iblees. Onde estavam
as recompensas de sua barganha? Não entender isso a
enlouquecia.
— De toda forma — ela enfim disse —, a tortura dele
foi infligida pelo diabo… Sei disso porque eu mesma vi
acontecer…
— Não precisamos falar disso — disse Cyrus, dirigindo
a ela um olhar inescrutável. — A opinião de um membro
da realeza inútil não significa nada para mim.
— Você realmente o defende? — Kamran disse,
ignorando Cyrus ao se virar para ela. — Sua capacidade
de compaixão deve ser mesmo grande se você tem pena
de alguém tão corrompido quanto ele, mas eu imploro
que não pense mais em sua alma suja. Eu não me
importo se Iblees o assa no espeto todas as noites. Ele se
colocou nesta situação: ele se vendeu ao diabo, vendeu-
se às trevas. — Kamran gesticulou amplamente. — Essas
são as consequências. Ele perderá Tulan, e ficaremos
felizes em reivindicar este império após sua morte.
Recuso-me a me lamentar por capitalizar graças à
estupidez de outro homem.
— Bem — disse Cyrus, respirando fundo —, por mais
que eu goste de ouvir seus planos de festejos sobre o
meu cadáver, estou cansado desta conversa.
Alizeh estava balançando a cabeça.
— Cyrus, por favor… Eu não compartilho dos
sentimentos dele…
— E eu não quero discutir isso — disse ele
calmamente, virando-se. — Está ficando tarde, e prefiro
voltar à tarefa que tenho em mãos.
— Sim — ela disse, hesitante. — Claro.
— Majestade — disse Hazan —, esse ato medonho
deve ser mesmo realizado esta noite, quando a senhora
acabou de voltar para nós? Não poderíamos dedicar mais
tempo refletindo sobre as alternativas?
Alizeh suspirou de forma pesada, fechando os olhos por
um momento antes de voltar-se ao amigo.
— Quais opções, Hazan? Que outras opções tenho eu?
Já estou desaparecida há um mês. Já houve um atentado
contra a minha vida. Hoje temos setenta mil jinns
reunidos; mas, em breve, esse número dobrará, e depois
dobrará de novo. E, então? — Ela balançou a cabeça. —
Devo permanecer em silêncio para sempre? Devo
assombrar os corredores deste palácio, deixando meu
povo definhar sem liderança, sem respostas… Sem
esperança? E quanto às pressões externas enfrentadas
por Tulan? E quanto às necessidades de Ardunia? Não
podemos permanecer assim nesse meio-termo para
sempre. É evidente que Kamran precisa regressar para
casa para resolver a turbulência que deixou para trás;
Huda e Deen têm famílias esperando por eles…
— Oh, por favor, não apresse as coisas por nossa conta
— Huda interrompeu. — Não tenho absolutamente
nenhum desejo de ver minha família, e Deen está
passando por algum processo… Aliás, embora tenha sido
vago sobre os detalhes, ele não parece ter pressa de…
— Sim, obrigado, Huda — disse Hazan, com calma.
Mais uma vez, Alizeh suspirou.
— Está me matando saber que ainda não estou pronta
para liderar. Que não tenho nada a dizer, que só posso
oferecer promessas vazias. Preciso de uma coroa, Hazan,
e preciso dela agora. Eu e Cyrus conversamos sobre isso,
e nos casaremos dentro de dois dias.
— Dois dias? — Hazan empalideceu, com os olhos
arregalados de choque.
Até Kamran virou-se bruscamente para olhar para ela.
— Sim — ela disse com firmeza. — Dois dias. Quero
voltar para Ardunia logo após o casamento.
— O quê? — disse Cyrus, endireitando-se. — Você não
mencionou…
— Isso significa que ele terá de vir conosco — disse
Huda. — Certo? Se o pacto de sangue fizer com que ele
não possa se separar dela, ele será forçado a voltar para
Ardunia conosco, não será?
— Sim — Kamran disse em tom de lamento.
— Majestade — disse Hazan, que ainda não estava
convencido —, podemos embarcar de imediato em uma
missão para as montanhas de Arya… A senhora não
precisa se casar primeiro. Podemos partir para Ardunia
amanhã…
— Não — ela disse. — Devo garantir minha coroa antes
de partir de Tulan. Preciso saber quem sou e onde será
minha casa. Não posso deixar meu povo sem uma
demonstração de fé; preciso que confiem que voltarei,
que não os abandonarei. Este é o caminho.
Hazan parou diante dela, o espanto deixando-o
absolutamente imóvel, e Alizeh sabia que havia vencido
a luta quando ele respondeu apenas com uma respiração
instável. Ele enfim recuou, afundando-se na poltrona
mais próxima.
— Entendo — sussurrou. — Odeio tudo isso, mas
entendo.
— Excelente — disse Cyrus, a palavra carregada de
calor. — Finalmente terminamos? Ou há mais debates a
serem travados? Por favor, me avisem agora para que eu
possa agendar um horário para perder o que me resta da
cabeça.
— Não — disse Alizeh com gentileza. — Está resolvido.
Ele olhou para ela então, enfim olhou para ela por mais
de uma fração de segundo, e ela ficou surpresa ao
descobrir em seu olhar algo que se parecia muito com
medo. Seu coração se partiu ao ver isso, e ela se moveu
instintivamente em direção a ele, mas ele de repente se
virou e se afastou. Ela observou em silenciosa confusão
quando Cyrus foi até uma porta na parede dos fundos,
abrindo-a para deixar entrar o ar da noite.
Alizeh enrijeceu e, depois, estremeceu.
— O que está fazendo? — perguntou Hazan, que se
levantou. — Não realizará a cerimônia aqui?
— Não — disse Cyrus, com a voz baixa e sombria. —
Não quero sangue perto dos meus livros.
E saiu.
TRINTA

Cyrus caminhou pela escuridão infinita, com vaga-lumes


pairando no ar como enfeites ao seu redor. A grama
firme estalava sob suas botas. O céu era pesado com o
som dos grilos e com o ruído das cachoeiras distantes.
Ele não conseguia nomear a tempestade dentro de seu
peito; não havia palavras para descrever o tumulto de
sentimentos que lutava para domar. Só sabia que se
sentia enlouquecido, ferido e aterrorizado, e que cada
minuto exigia dele um autocontrole aterrador que ele se
esforçava para manter.
Ele odiava aquelas pessoas. Odiava ter de mostrar
moderação diante delas, odiava não poder simplesmente
matar o odioso príncipe; cada fôlego dele era uma
afronta. Mesmo enquanto caminhava pela antiga trilha
até uma velha cabana para lançar as bases que o
conduziriam ao seu lamentável fim, ele queria se virar e
cortar o pescoço do idiota.
Mais do que isso, ele queria cair de joelhos.
Aquele tremor dentro dele, a loucura em seu coração,
era tudo por ela. Tudo por ela. Mal conseguia olhar para
Alizeh sem perder a cabeça. Por quase quatro semanas,
ele a vira apenas em sonhos e quase se esquecera de
como ela era melhor na vida real, de como seus traços
eram delicados, de como eram suaves as curvas das
maçãs de seu rosto. Ele ganhava vida quando ela sorria,
respirava quando seus olhos brilhavam, morria quando
ela saía de um quarto.
Ela cheirava a rosas.
Suas rosas.
E se casaria com ele, se tornaria sua esposa perante o
mundo, mas ele nunca a teria. Nunca a tocaria.
Observaria em silêncio enquanto outro homem colocava
as mãos sobre ela, os dois contando os dias até que
pudessem matá-lo.
Ele exalou, trêmulo, o ar fresco cortando sua pele.
Causava-lhe dor física lembrar como faltara pouco para
perder sua força de vontade. Ela quase pressionara a
mão em seu torso e, como um homem sem amarras, ele
quis rasgar seu vestido ao meio, cair de joelhos e
saboreá-la. Ele queria sentir as pernas dela tremerem ao
seu redor, queria ouvi-la gritar, queria vê-la
desmoronar… Queria coisas que provavelmente a
aterrorizariam só de imaginar.
Uma rajada de vento o atingiu, e ele olhou para as
estrelas, seu corpo ainda tão denso de calor que mal
conseguia sentir o frio. Cyrus estava fora de si, e ela…
Ela era uma visão moldada por um criador generoso. Era
totalmente doce, e todos os seus instintos eram
bondosos. Até sua raiva era extraordinária. Saber que ele
morreria pelas mãos dela tornava a realidade quase
suportável.
Ouviu passos apressados quando alguém se aproximou
dele, movimentos pesados o suficiente para indicar certa
altura e massa. Cyrus virou-se um pouco e viu que Hazan
havia surgido à sua esquerda.
— Quanto mais isso vai demorar? — disse o jinn,
impaciente. — Eu não sabia que seríamos obrigados a
caminhar sob um frio congelante, caso contrário eu teria
trazido um casaco.
— Eu não sabia que você se cansava tão facilmente —
disse Cyrus. — Admito que estou decepcionado. Achei
que fosse mais resistente.
— Alizeh está quase azul de frio — disse ele com raiva.
— Seu vestido é leve. Ela já se sente congelada em geral,
agora ainda mais isso…
Cyrus parou e virou-se para olhar para ela. Na pressa
de sair daquela conversa abominável, ele foi imprudente;
Alizeh estava visivelmente sofrendo, com os braços
apertados sobre o peito, lutando contra o impulso de
tremer enquanto caminhava. Kamran, ele notou, estava
por perto, parecendo envergonhado. Cyrus se perguntou
se suas ofertas de ajuda haviam sido rejeitadas.
Aquilo pouco importava.
Ele foi até ela em poucos passos, tirou o casaco sem
dizer uma palavra e colocou-lhe suavemente sobre os
ombros. Fez tudo isso tão depressa que ela só olhou para
ele quando ele se virou para ir embora. Ela então pegou
seu braço antes que ele pudesse prosseguir. Sentiu a
mão dela pressionando sua manga como um ferro em
brasa, seu coração acelerando. Ele parou. Ela gesticulou
para Huda e Kamran seguirem em frente. Só quando
ficaram sozinhos ela o soltou, e ele se sentiu quase como
se tivesse sido enganado.
— Cyrus… — ela disse.
Ele estava com medo de olhar para o rosto dela. Não
olharia nos seus olhos.
— Sim? — ele falou para a escuridão.
— Obrigada — ela falou baixinho. — Seu casaco é tão
quente que temo adormecer dentro dele.
Ele engoliu em seco, odiando o modo como isso o
gratificava.
— De nada.
— Posso fazer-lhe uma pergunta?
— Não.
Ela riu, e ele quis se dissolver ali mesmo.
— Aqui vai a minha pergunta… — continuou ela. — Se
você não suporta ficar perto de mim agora, como
sobreviverá ao que ainda está por vir?
Ele então a encarou, prendendo a respiração, fitando
seus olhos, suaves e brilhantes sob o luar. Ele pareceu
afundar na grama enquanto a observava, o mundo
perdendo os contornos além do espaço que ela ocupava.
Havia algo tão gentil na presença dela, algo que
lembrava a magia: só curvas, sem arestas. Ele queria
pressionar o rosto contra seu pescoço, queria respirar a
fragrância de sua pele, o perfume das flores que ele
mesmo havia cultivado. Queria fazê-la rir. Queria segurar
a mão dela. Queria levar-lhe chá e passear com ela nas
diferentes estações. Queria vê-la conquistar a terra.
Queria deslizar a mão por suas costas nuas, queria
provar do seu sal, queria morder seu lábio inferior e se
perder dentro dela.
Deus, as coisas que ele queria.
Quanto mais ele olhava para ela, pior ele se sentia, e
mais instável ela parecia. A respiração dela havia ficado
mais superficial; seus olhos, mais profundos, mais
escuros.
— Cyrus… — ela sussurrou.
Ele balançou a cabeça, inspirando profundamente
antes de enfim se afastar.
— Não vou sobreviver — disse. — É sua função garantir
que eu não sobreviva.
TRINTA E UM

Depois que ele a deixou, não demorou muito para que


uma mimosa casa de campo aparecesse. Aninhada entre
duas árvores imponentes em um canto reservado dos
terrenos do palácio, o edifício de pedra ficava
praticamente enterrado sob trepadeiras de damas-da-
noite, cujas flores brancas e circulares exalavam uma
fragrância suave e doce que aumentava à medida que se
aproximavam. Uma luz quente brilhava nas janelas
empenadas, e uma espiral de fumaça escapava da
chaminé. Cyrus tinha se preparado para a chegada deles.
Os cinco tinham caído em um silêncio tenso nos
últimos minutos. Até mesmo Huda, que havia retornado
para o lado de Alizeh, estava exercendo uma rara
discrição ao não exigir saber os detalhes de sua conversa
com Cyrus. Em vez disso, a jovem apenas lhe dirigiu
olhares significativos e questionadores, que Alizeh
reconhecera apenas uma vez, com um sorriso cauteloso.
Havia muito a dizer e nada a conversar.
O que Alizeh sentia por Cyrus começava a assustá-la, e
ela precisava aceitar que seu afeto por ele era perigoso e
inútil. Estava fazendo a escolha, a cada passo que dava
naquele exato momento, de realizar um pacto
irreversível que mudaria a vida de ambos para sempre.
Estariam fadados a um final mórbido que nunca poderia
ser desfeito. Qual era o sentido de continuar assim,
torturando-se por vislumbres de seu coração, por
pedaços dele que ele nunca estaria livre para lhe dar?
Para confiar em Cyrus, ela precisaria de respostas que
ele nunca poderia fornecer, pois o diabo o proibira de
falar a verdade.
Não importava que ela quisesse confiar nele a qualquer
custo.
Não importava que ele tivesse lhe dado o casaco que
vestia, que estivesse aquecida pelo calor dele, com a
cabeça zonza com o cheiro persistente de sua pele. Não
importava que ela o observasse agora com um desejo
que lhe era tão doloroso quanto confuso.
Alizeh havia tomado uma decisão e não se desviaria do
caminho que se abria diante dela. Nascera para guiar seu
povo rumo à liberdade, para protegê-lo da crueldade de
um mundo que não o compreendia e o destruía. Nada
mais poderia importar. Tinha de aceitar como fato
consumado que, às vezes, a revolução exigia escuridão
em troca de luz.
Aquela noite era prova disso.
Cyrus parou em frente à porta da cabana, estendendo
a mão para a maçaneta quando de repente hesitou,
depois se virou para o pequeno grupo.
— Algum de vocês já experimentou magia antes?
— Magia? — repetiu Huda, secamente. — Você quer
dizer como aquele truque desagradável que fez para que
eu perdesse a voz?
— Ou quando você deixou o príncipe paralisado e
semivivo em seu próprio castelo? — acrescentou Hazan.
— Canalha — Kamran murmurou.
— Estou me referindo à magia orgânica — disse Cyrus,
impassível. — Já a experimentaram em sua forma pura,
inalterada?
— Não — disse Alizeh, sentindo uma pontada de
desconforto. — Por quê?
Ele balançou a cabeça, voltando-se para a cabana.
— Pode ser um pouco perturbador para quem não
estiver preparado. Não se assustem.
Ele girou a maçaneta, abriu a porta, e uma onda de luz
quente e marmorizada se derramou na escuridão,
lançando um brilho delicado sobre todos eles. Cyrus
afastou-se para deixar Alizeh passar à sua frente e,
quando ela atravessou a soleira, ficou sem fôlego,
maravilhada.
Haviam adentrado uma sala com tetos altos
sustentados por pesadas vigas de madeira, e ele logo
sentiu o cheiro de terra e perfume enchendo suas
narinas. A natureza havia entrado ali, com trepadeiras
que se espalhavam pelas rachaduras nos cantos das
pedras e rastejavam pelo chão coberto por um tapete
enorme e ricamente colorido, puído em alguns lugares,
chamuscado em outros. Um fogo crepitante ardia em
uma lareira tão grande que Alizeh poderia ficar de pé ali
dentro. Ela se assustou com o estalo repentino da lenha,
desviando para o lado a tempo de evitar que suas saias
fossem atingidas por uma brasa perdida. O ar ficava mais
denso à medida que ela explorava o espaço, como se
estivesse adentrando águas mais agitadas. Não era
desagradável, apenas desorientador e, depois de lutar
contra um arrepio de desconforto, ela relaxou com a
sensação. Curiosa, pressionou um dedo no ar e sentiu um
arrepio de resistência, tão suave que lembrava as
bochechas rechonchudas de um bebê. Alizeh olhou em
volta, atordoada, possuída por uma sensação peculiar de
que, caso se deixasse cair, poderia flutuar.
As paredes estavam ladeadas por armários
descombinados e prateleiras de madeira repletas de
livros empoeirados. Também havia velas, uma variedade
de peças de barro e dezenas de potes lacrados de vários
tamanhos, cujo conteúdo brilhante e desconhecido
lembrava o estoque de um boticário.
Hazan pegou um desses potes da prateleira, virando-o
em suas mãos enquanto dizia baixinho:
— Faz anos que não vejo cinzas prateadas. — Ele olhou
para Cyrus. — O que é este lugar? É tudo seu?
Cyrus apenas desviou os olhos e disse:
— Estarei pronto em um minuto.
Ele permitiu que explorassem a cabana sem mais
comentários, embora Alizeh o observasse com atenção.
Seus olhos estavam ilegíveis quando ele atravessou a
sala até um armário fechado, depois pressionou a mão
contra a madeira e recuou quando uma série de
fechaduras se destrancaram de forma audível. A
portinhola abriu-se com um rangido, e ele rapidamente
retirou algo de seu interior, guardou o item no bolso e
fechou o compartimento. Ele pressionou a mão mais uma
vez sobre a madeira, trancando o armário.
Alizeh o observou com admiração, pois percebeu, ao
examinar o ambiente, que continuava a subestimá-lo. Ela
achava que já tinha dado a Cyrus mais crédito do que ele
merecia, mas agora via que ainda não o compreendia
profundamente. Na verdade, quanto mais ela descobria
sobre Cyrus, menos ela o entendia; ele era como um
destino que ficava cada vez mais distante à medida que
ela se aproximava. Sem dúvida, nenhuma pessoa comum
conhecia magia como aquela.
— Uau — sussurrou Huda, que estava diante de uma
enorme mesa de trabalho que ocupava toda a extensão
da sala.
Sobre seu tampo desgastado, havia ferramentas e
objetos variados, entre eles um almofariz e um pilão
rachados, uma pilha de livros comidos pelas traças, um
maço de papéis esfarelados e depósitos de tinta
ressecados. Alizeh aproximou-se da mesa e soprou uma
camada de poeira de uma prateleira de frascos de vidro;
os líquidos reluzentes em tons de gemas preciosas se
agitaram dentro de seus recipientes.
— Ah — disse Kamran, que havia pegado um livro de
contos infantis de uma estante. Ele virou o velho volume
de couro nas mãos com um sorriso relutante. — Meu pai
costumava ler essas histórias para mim.
— É mesmo? — Huda foi até lá, ficando na ponta dos
pés para espiar por cima do ombro dele. — Mas, Kamran,
essas ilustrações são assustadoras.
— É por isso que ele gostava — disse ele, rindo ao virar
a página.
Huda vislumbrou a próxima imagem e engasgou-se,
afastando-se dele e cruzando os braços.
— Eu nunca leria livros tão horríveis para os meus
filhos.
Kamran fechou o livro com mau humor, virando-se
para encará-la.
— Está criticando meu falecido pai?
— Suponho que sim.
— E devo tolerar sua impertinência, como se tivesse
algum interesse em como você poderia criar seus
hipotéticos filhos… Cuja aquisição, devo observar,
exigiria primeiro que você convencesse um homem a
abrir mão da própria cabeça por tempo suficiente para
passar seus dias na sua irritante e intolerável
companhia…
— Acha que eu sou irritante? Bem, para quem nunca
desconectou seus ouvidos aristocráticos por tempo
suficiente para ouvir as opiniões dos outros, só o som
odioso de sua própria voz…
— Vocês dois, por favor, calem a boca — disse Hazan,
de forma preguiçosa, pegando outro pote da prateleira.
Ele alisou a etiqueta descascada, semicerrando os olhos
para ver o que estava escrito. — Este não é o momento
nem o lugar.
Huda e Kamran trocaram um olhar irritadiço antes de
seguirem em direções opostas. A tensão entre eles era
tão fascinante que Alizeh se distraiu brevemente do peso
em seu peito.
Ela experimentava uma apreensão crescente à medida
que os minutos se passavam, sabendo que deveria
perguntar sobre a tarefa que tinham pela frente, mesmo
que preferisse vagar por aquele espaço misterioso. Cyrus
poderia não querer admitir, mas estava bastante claro
para ela que todos aqueles instrumentos e ingredientes
mágicos haviam pertencido a ele — ainda pertenciam, na
verdade — mesmo sendo evidente que a cabana andava
abandonada. Algo o impedira de voltar a ela.
Mais mistérios.
Ainda assim, era uma rara oportunidade de espiar o
interior de uma fortaleza mágica como aquela, pois ela
não sabia quando teria outra oportunidade dessas. Havia
tanta coisa ali que ela precisaria de semanas para
analisar tudo, e tudo o que via inspirava tantas
perguntas que ela mal sabia por onde começar.
O mais surpreendente, é claro, eram os cristais.
Estavam por toda parte, todos classificados por
tamanho, cor e formação: alguns amontoados em tigelas
trincadas como se fossem balas, outros expostos
cuidadosamente sob redomas de vidro. Um prodigioso
aglomerado de cristais azuis encontrava-se diretamente
sobre o chão, tão vastas eram suas dimensões, e Alizeh
se moveu em direção ao espécime, estendendo a mão
com cautela para tocar suas bordas.
— Está vazio — disse uma voz logo atrás dela.
Alizeh virou-se e descobriu Cyrus passando por ela. Ele,
então, retirou um pedaço quebradiço do cristal e o
ergueu para a luz.
— Estes são muito antigos.
— O que você quer dizer com “está vazio”?
— Sua magia já foi extraída. Agora é apenas uma
casca.
Ele lhe ofereceu o pedaço oco de cristal. Quando ela o
pegou, seus dedos roçaram os dele; esse breve contato
disparou um arrepio por seu corpo. Ela pensou ter
imaginado a respiração silenciosa dele naquele
momento, a maneira como fechou o punho e colocou as
mãos nos bolsos.
— Meu Deus, como diabos você conseguiu tanto
coração em pó? — disse Hazan, de repente, virando-se
para procurar Cyrus. Ele segurava uma jarra de vidro
cheia de algo que se parecia com uma areia escarlate. —
Isto é ilegal em Ardunia.
Cyrus apenas o observou em resposta, depois sacudiu
o punho como se estivesse espantando uma mosca, e o
conteúdo da sala desapareceu. Com o fogo na lareira
ainda aceso, eles agora estavam em uma cabana vazia,
sem nenhum móvel à vista. Tudo, todos os artefatos
mágicos, havia desaparecido.
Hazan espantou-se com suas mãos, agora vazias.
Cyrus aproximou-se do centro da sala com uma
estranha calma.
— Se você estiver pronta — disse ele, com um aceno
de cabeça para Alizeh —, gostaria de começar.
Alizeh sentiu um choque de nervosismo, deixando cair
o pequeno pedaço de cristal na pressa de se equilibrar, o
tilintar surdo ecoando no espaço recém-deserto. Ela se
abaixou para recuperá-lo, percebendo que era o único
item na sala que não havia desaparecido. Alizeh olhou
nos olhos quentes de Cyrus e logo percebeu, sem saber o
porquê, que ele havia permitido que ela ficasse com ele.
— Muito bem — ela disse baixinho, guardando
discretamente o pedaço de cristal em sua bota antes de
se endireitar. — O que eu preciso fazer?
— Nada — disse Hazan, que caminhava em direção a
Cyrus. — Ainda não. A primeira parte afetará apenas o
devedor.
Cyrus olhou para ele.
— Você veio como acompanhante?
— Brinque se quiser — disse Hazan, muito sério —,
mas estarei aqui para garantir que você não morra no
processo.
— Morra? — disse Alizeh, bruscamente. — Isso já
aconteceu antes?
— Sim — ambos disseram ao mesmo tempo.
— Mas…
— Não haverá nada a fazer se chegarmos a esse ponto
— Cyrus explicou. — Uma vez que o pacto for feito em
voz alta, a magia não pode ser interrompida.
— Se a sua pele se soltar do corpo, talvez não, mas
você só precisará falar mais tarde. Se houver algum sinal
de perigo, intercederei. — Hazan hesitou por um
instante. — Você tem certeza de que será capaz de
administrar o encantamento durante a tortura?
Tradicionalmente, o feitiço é conduzido por um Profeta, já
que a maioria das pessoas não seria capaz de suportar a
dor por tempo suficiente para completar o pacto…
Cyrus parecia irritado.
— Ficarei bem.
— Espere — disse Alizeh, tentando manter a calma. —
Eu só… Cyrus, é comum que as pessoas em Tulan sejam
tão mágicas?
Ele hesitou antes de dizer:
— Não. Não exatamente.
— Então é seguro, isso que você está prestes a fazer?
Se há tantos riscos envolvidos, não deveríamos esperar,
talvez, por um Profeta? Alguém treinado
profissionalmente?
Ele voltou os olhos para o chão.
— Tenho formação profissional.
— Mas você não é um Profeta…
— Não — disse ele, levantando a cabeça. — Não sou.
— Então…
— Ele treinou no templo por quase dezessete anos —
informou Hazan, antes de olhar para Cyrus, que
enrijeceu. — Ele foi matriculado no templo aos três anos
de idade e fez os votos preliminares para ingressar no
sacerdócio quando completou dezoito anos. Ele é o mais
próximo de um Profeta que uma pessoa comum pode ser.
Alizeh sentiu uma dor aguda no esterno. Estava tão
chocada que mal conseguia encontrar as palavras.
— O quê?
— Um Profeta? — disse Kamran, pasmo. — Ele?
— Deve ter havido alguma desonra, imagino —
murmurou Huda.
— Você queria se tornar Profeta? — Alizeh sacudiu a
cabeça. Ela se sentiu inexplicavelmente triste. — Céus…
Sua mãe uma vez me disse que você estudava magia
desde criança. Não acredito que não entendi na hora o
que ela quis dizer.
Cyrus voltou seu olhar para o chão. Ele parecia
zangado quando disse:
— Não quero falar sobre isso.
— Mas é claro que devemos falar disso — insistiu Huda.
— Que revelação fascinante. Ah, como eu gostaria de
tomar uma xícara de chá…
— Não entendo sua reticência ao falar no assunto —
disse Hazan. — Você guarda esse fato como se fosse um
segredo, quando na verdade é uma informação bastante
difundida. Há pouco perguntei à sua mãe se ela sabia por
que você nunca usava uma coroa, e ela me disse que
você tem recusado o adorno desde o dia em que decidiu
fazer os votos. Demorou pouco para eu descobrir outros
detalhes. Caramba, até sua criadagem me ofereceu
informações em primeira mão! Ouvi relatos de gente que
trabalha em sua casa desde que você era menino. Eles
nos escutaram conversando sobre seu passado e se
ofereceram para me contar a história de sua antiga babá,
de como você uma vez quicou do telhado…
— Já basta.
— Quicou do telhado? — disse Huda, encantada. —
Quem contou isso? A governanta?
— Não — disse Hazan —, embora eu tenha perguntado
se algum deles sabia por que ele usava preto o tempo
todo, e a governanta disse que uma vez ele revelou a ela
que estava de luto.
— O quê? — Alizeh olhou para Cyrus. — De luto pelo
quê?
— Céus! — Cyrus passou as duas mãos pelos cabelos.
— Espere um momento… Isso não faz sentido — disse
Kamran. — Você era o herdeiro do trono. Como seus pais
poderiam permitir que você seguisse o caminho do
sacerdócio? Nenhum reino respeitável permitiria que seu
primogênito renunciasse a um dever para com o
império…
— Ah, isso também. — Huda ergueu um dedo. —
Perdoem-me por ser tão direta… Mas, se o senhor não
queria ser rei, por que matou seu pai? Poderia tê-lo
deixado ficar com a coroa se não estava interessado em
seguir seus passos.
— Ele não é o primogênito, na verdade — acrescentou
Hazan. — Ele é o segundo filho. Acontece que ele tem um
irmão mais velho, embora, curiosamente, esse tenha
sido o único assunto em que todos se recusaram a
tocar…
— Eu disse que já basta. — Cyrus estava furioso agora.
— É por isso que não falo sobre nada disso. É por isso
que detesto falar com pessoas. É por isso que nunca
recebo convidados no palácio. Não tenho interesse em
explicar minha vida ou minhas escolhas a ninguém. Não
serei interrogado! — gritou ele. — E não responderei às
suas perguntas. Deixem-me em paz.
Todos caíram em um silêncio mortal de repente.
A raiva de Cyrus era tão palpável quanto o peso da
magia no ar, e Alizeh ficou perturbada ao olhar para ele.
Saber aquelas coisas não mudava nada e, ainda assim,
de alguma forma, mudava tudo. Ela ansiava por saber o
que havia acontecido… O que havia mudado em sua vida
a ponto de conduzi-lo àquele momento?
Como ele passara da vida de Profeta para um conluio
com o diabo?
Cyrus estava lutando para recuperar a compostura.
— Estou farto de falar. Estou cansado do atraso. Quero
que esta noite horrível acabe. Agora.
Hazan, que parecia estranhamente incomodado, disse
com calma:
— Vamos prosseguir, então.
Mas Alizeh não conseguia ficar calma. Como ela viveria
assim, sempre à beira de um precipício? Precisava de
mais informações, precisava entender, mas Cyrus não
queria revelar seus segredos, e ela não poderia forçá-lo a
falar. Ela apenas sentia, com maior convicção a cada
minuto, uma suspeita ardente de que ele não era o vilão
que queria que o mundo pensasse que era, e isso era o
suficiente para enlouquecê-la.
— Cyrus — ela disse, em desespero —, eu sinto muito.
Ele olhou para ela e depois desviou o olhar, com a voz
rouca ao dizer:
— Pelo quê?
— Não sei. — Por alguma razão incompreensível, ela se
percebeu à beira das lágrimas. — Simplesmente sei que
sinto.
Ele ergueu a cabeça, encontrando os olhos dela por um
momento com uma angústia desprotegida, e ela
vislumbrou dentro dele o que já tinha visto antes: uma
dor excruciante.
Um momento de verdade, ali mesmo — e, então,
desapareceu.
O coração de Alizeh se partiu quando ele desviou o
olhar dela. Ela o observou, fascinada, puxando as
mangas da camisa e revelando antebraços fortes, sua
pele dourada polvilhada por pelos finos acobreados. Ele
fechou os olhos e estendeu as mãos, com as palmas para
cima, e logo se ouviu um som arrepiante, como o
movimento de insetos. Uma camada de escuridão
formou-se lentamente ao longo do teto.
— Espere, o que você está fazendo? — Kamran
perguntou, alarmado.
Cyrus ergueu o braço e, com um gesto que parecia
exigir pura força física, arrastou a sombra negra e
pesada pela parede. O esforço que fazia era evidente nas
linhas de seu rosto e nas veias de seu pescoço. Ele puxou
a massa até que ela enfim se encaixou sob seus pés e,
quando isso aconteceu, Alizeh sentiu o mundo sair dos
eixos.
Então, ela ouviu o grito de Cyrus.
TRINTA E DOIS

A princípio, Alizeh pensou que estava cega. A escuridão


consumia seus olhos, sua boca, enchia suas narinas e
sua garganta e queimava seus pulmões. Ela estava se
afogando, não conseguia respirar, mal conseguia
encontrar forças para emitir algum som diferente de um
gemido. Ela tentou dizer a si mesma que era um truque,
que seu medo do escuro vivia apenas em sua mente,
mas não havia raciocínio suficiente para lidar com o
ilógico. Alizeh logo se convenceu de que morreria ali,
comprimida pelo peso do universo, assim como seus
ancestrais, deixados para definhar sem luz, sem calor…
Respirou fundo, desesperada e ofegante. A escuridão
de súbito começou a recuar, e a cabana a retornar ao
lugar, com o fogo crepitando na lareira. Alizeh estava
curvada, com a mão pressionada contra o peito enquanto
tentava acalmar o clamor de seu coração, quando ouviu
Huda dizer, em um sussurro horrorizado:
— Esta é a magia das sombras?
Muito lentamente, Alizeh ergueu os olhos.
Cyrus pairava no ar sem roupa, nu, exceto por um
tecido fino enrolado em torno de seu corpo como uma
fita, tão escuro que parecia quase cortá-lo em pedaços,
sufocando seu pescoço, seus braços, parte de seu torso e
de seus quadris… A magia poupava-lhe um mínimo de
privacidade.
Alizeh caiu para trás, horrorizada.
— Não — respondeu Hazan, com a voz grave. — Não é
magia das sombras. É simplesmente bárbaro.
Assustou-a vê-lo tão indefeso; mas, mesmo naquela
cena de pesadelo, Cyrus parecia ser de outro mundo. Seu
corpo poderoso e musculoso estava banhado pela luz do
fogo, e o brilho dourado de sua pele contrastava com a
triste espiral que o restringia. Ela sentiu quase como se
não devesse olhar para Cyrus, exposto como estava,
embora também não conseguisse desviar o olhar — ele
era de tirar o fôlego mesmo em agonia, com seu peito
largo lutando contra as amarras, sôfrego.
Era óbvio que ele sofria.
A dor estava impressa em seu rosto, embora ele a
suportasse bem, com os olhos bem fechados enquanto
cerrava os dentes ao resistir aos ataques de uma força
invisível. Às vezes, ele ofegava, emitindo sons curtos e
sufocados de angústia, depois ficava tão rígido de
tormento que até o simples fato de testemunhar aquilo a
matava.
— Hazan — Alizeh disse, ansiosa. — O que está
acontecendo?
Hazan parecia cansado. Ele olhou para ela antes de
voltar os olhos para Cyrus.
— Suponho que Vossa Majestade deva primeiro
entender que apenas uma pessoa muito desesperada
pode fazer um pacto de sangue, pois as correntes que
prendem um devedor só podem ser tecidas a partir da
escuridão de dentro dele. Quanto mais desesperado o
devedor, mais escura será a espiral. — Ele exalou de
modo pesado. — Vossa Majestade deve se preparar. Isso
será brutal para ele quando acabar. Se ele sobreviver à
primeira noite, cada dia ficará mais fácil. Se não…
Cyrus gritou, jogando a cabeça para trás com violência.
Alizeh arquejou, tapando a boca com a mão ao ver a
maré de cor subindo à superfície de sua pele. O corpo de
Cyrus logo estava brilhando com o sangue à flor da pele,
o tom escarlate ficando mais espesso à medida que se
entrelaçava, tecendo o que parecia ser quase um traje
horrível em torno de sua figura nua. Ele emitiu outro som
sufocado e gutural enquanto o sangue escorria
continuamente do ponto onde ele estava pendurado,
formando uma poça escorregadia nas tábuas do piso sob
seus pés. Logo, ele foi envolto em um manto líquido de
seu próprio sangue e então, sem aviso, o manto caiu no
chão.
Alizeh observou com terror mudo a substância, que se
transformou em algo real e concreto. Cyrus ainda estava
suspenso no ar, a fita preta ainda amarrada ao seu
corpo; e, embora a tensão da angústia tivesse
desaparecido de seu rosto, ele estava pálido e trêmulo,
enfraquecido pelo esforço.
— Majestade — disse Hazan, sem alarde.
Ela se virou para ele, não querendo ouvir o que ele
diria em seguida, pois já suspeitava do que deveria fazer.
— Não — ela murmurou.
Hazan acenou com a cabeça para o chão.
— Quando vestir a capa, absorverá o sangue dele em
seu corpo. Esse pedaço dele pertencerá à senhora até
que sua dívida seja paga.
Alizeh olhou para a peça grotesca, a bile subindo por
sua garganta. A capa havia se solidificado em algo que
quase parecia couro, e seu brilho a deixava de estômago
revirado.
— Devo colocá-la agora?
— Não — disse Hazan. — Ainda não. — Ele olhou então
para cima, sua voz imbuída de uma surpreendente
compaixão quando disse: — Cyrus, consegue falar?
Cyrus não abriu os olhos, embora tenha feito um
esforço para engolir em seco, depois assentiu com a
cabeça. Alizeh olhou para Hazan e para Cyrus, com o
coração martelando no peito. As realidades daquela noite
perturbadora estavam se tornando monstruosas demais,
e ela foi de repente tomada pelo medo.
Quando Cyrus enfim falou, sua voz estava devastada.

De livre e espontânea vontade


Meu sangue eu ofereço
Também minha liberdade
Até pagar tudo que devo

— Agora — disse Hazan em voz baixa —, ele falará em


voz alta suas promessas.
Cyrus parecia quase destruído, com o peito tenso
enquanto lutava para respirar.
— Eu lhe ofereço meu reino — disse ele, com a voz
rouca irreconhecível — em troca de sua mão em
casamento. E prometo nunca tocá-la, a menos que você
deseje que eu o faça. Assim que estiver isento de minha
dívida com o diabo, ofereço-lhe minha vida. Você estará
livre para me matar a seu critério, pois morrerei
voluntariamente em suas mãos.
Hazan respirou, trêmulo, ao lado dela, parecendo
estranhamente angustiado. Pelo canto do olho, Alizeh
também vislumbrou Kamran e Huda, que estavam tão
calados que ela quase esquecera que eles ainda estavam
ali. Todos pareciam abalados e sombrios, embora
ninguém estivesse tão perturbado quanto ela. Mais uma
vez, Cyrus falou:

Se aceitar este juramento


Meu sangue poderá reivindicar
Este pacto garante o pagamento
Basta meu nome pronunciar
Alizeh estava respirando com dificuldade agora, seus
olhos selvagens quando ela se virou para Hazan, que lhe
ofereceu um aceno de confirmação. Com as mãos
trêmulas, ela pegou a capa, que era quente e
escorregadia. Uma poderosa onda de repulsa quase a
desequilibrou, e ela temeu que pudesse realmente
vomitar.
— Majestade — disse Hazan —, a senhora está bem?
Ela balançou a cabeça, olhando para o pano de sangue
que segurava.
— Hazan, isto é… Percebo que tomei a decisão de fazer
isto contra o seu conselho, mas tudo é muito mais
sombrio do que eu pensei que seria… Muito pior…
— Eu tentei avisar vocês — disse ele, com os olhos
pesados.
— Eu sei… Eu sei que tentou…
— A senhora ainda pode desistir. Ainda não aceitou o
juramento. Ele ainda sofrerá por um tempo, mas não no
mesmo grau. — Hazan desviou o olhar. — Mas é cruel
deixá-lo em agonia assim. Até alguém como ele. Seja
qual for a sua escolha, tome sua decisão agora.
Não houve decisão a tomar.
Alizeh não conseguiria ir embora; ela já havia feito sua
escolha. Já havia prometido a si mesma que manteria
sua resolução, que faria o que fosse melhor para seu
povo. O que fosse necessário para garantir seu futuro,
sua segurança. Já havia refletido sobre tal decisão até o
fim e sabia o que precisava fazer.
Só queria que não fosse necessário.
Trêmula, ela sacudiu a capa pesada e depois a jogou
sobre os ombros. A capa se acomodou em seus ombros e
aderiu a ela como uma segunda pele, moldando-se ao
formato de suas costas. Seu coração estava frenético
agora, batendo tão forte que quase a deixava tonta. Ela
respirou fundo para se acalmar, depois voltou os olhos
para o homem com quem logo se casaria.
— Cyrus — ela sussurrou.
Ele ofegou, e seu corpo se contraiu quando uma nova
dor o assaltou, e, então, com uma rapidez que chocou
seus membros congelados, a capa derreteu em seu
corpo, inundando suas veias com um fluxo de sangue tão
potente que ela recuou de medo.
A sensação logo se transformou em algo prazeroso,
deixando-a zonza e fumegante, quase sem equilíbrio. Foi
com um alívio delicioso que Alizeh sentiu como se tivesse
sido incendiada. Suas bochechas estavam quentes, e ela
sentia a cabeça sonolenta e pesada. Era muito íntima a
sensação do sangue dele em suas veias, a febre dele
agora vivendo dentro dela. Ela se perguntou se aquele
calor permaneceria para sempre, pois a mudança no seu
interior ocorrera com uma velocidade surpreendente. Era
como se algo tivesse sido fisgado dentro de sua alma,
prendendo-a a um coração cujas batidas ela quase
conseguia sentir. Ela sabia, sem levantar a cabeça,
exatamente onde Cyrus pairava no ar acima dela. Ela
sabia que, não importava aonde ele fosse, ela poderia
trilhar um caminho até ele.
— Majestade? — perguntou Hazan, observando-a de
perto. — A senhora está…
Houve um som violento, como uma rajada de vento e,
sem aviso prévio, Cyrus foi liberto de suas amarras. Seu
corpo inerte tombou no chão ensanguentado com tanta
força que um estalo horrível ecoou ao redor deles. Como
uma mariposa desesperada, sua mortalha negra
tremulou ao cair com ele, cobrindo sua figura nua.
Alizeh respirou fundo.
Ela sentiu a pulsação dele dentro dela, o calor de seu
sangue bombeando em suas veias. Aproximou-se dele
com medo crescente, sem saber quem seria quando ele
abrisse os olhos.
Hazan, Huda e Kamran puseram-se atrás dela, os
quatro aproximando-se com cautela do corpo caído.
Apenas o rosto e parte de um ombro eram visíveis, o
restante ainda estava coberto por um véu preto. Cyrus se
mexeu, as mechas metálicas de seu cabelo brilhando à
luz do fogo, seu rosto tenso e pálido. Ele emitiu um som
baixo e angustiado, cuja dor parecia reverberar nos ossos
de Alizeh.
— Por que não o ajuda o fato de eu estar perto? — ela
disse, virando-se para Hazan. — Achei que ele só sofreria
na minha ausência.
— O vínculo é muito recente. — Hazan balançou a
cabeça. — Receio que, no momento, a senhora só possa
apaziguar um pouco a dor dele. De toda forma, ele terá
de suportar a agonia; é apenas uma questão de quanto.
Alizeh absorveu a informação com pesar, depois caiu
de joelhos ao lado dele, afundando em uma poça rasa do
sangue de Cyrus. Ela apertou as mãos para evitar
acariciar seu cabelo, sua testa franzida.
— Cyrus — ela sussurrou.
Ele lutou para abrir os olhos e, quando o fez, o coração
dela apertou no peito. Seus olhos estavam injetados e
avermelhados, suas pupilas estouradas, dilatadas em um
grau perturbador. Ele ainda parecia estar sofrendo apesar
da proximidade dela, o corpo rígido pela tensão.
— Dói muito, mesmo comigo aqui? — ela perguntou a
ele, examinando seu rosto.
Ele apenas piscou para ela, a ação lenta e cansada,
antes de fechar os olhos mais uma vez.
— Cyrus? — Ela estava em pânico agora. — Cyrus,
você consegue falar?
— É melhor não o forçar — disse Hazan. — Para ele, o
inferno desta noite apenas começou.
TRINTA E TRÊS

Cyrus despertou com um sobressalto.


Seu primeiro pensamento concentrou-se no vazio de
sua mente, pois era a primeira vez em meses que ele
não acordava de um pesadelo. Só esse já era um fato
estranho o suficiente para ocupar seus medos por dias.
Porém, ao sentir a forma das coisas ao seu redor, ele
percebeu que estava deitado em uma cama
desconhecida, em um espaço desconhecido. O cômodo
era grande e escuro, com detalhes vagos revelando-se
sob o brilho leitoso de um sol ainda não nascido no
horizonte. A luz crescente passava por um par de janelas
cujas cortinas não haviam sido fechadas, algo que lhe
pareceu incomum, mesmo com a dor palpitando ainda
em todo o seu corpo. Sua cabeça estava pesada, tão
desarticulada que ele se sentia como se estivesse
drogado e, ao piscar devagar contra uma maré crescente
de pavor, ele percebeu que não tinha ideia de onde se
encontrava. Seu rosto estava pressionado sobre um
travesseiro estranho; seu corpo, enfiado entre os lençóis
de uma cama que ele não reconhecia.
As imagens da noite anterior voltaram a ele
lentamente, provocando um incêndio de sentimentos
com a lembrança dos acontecimentos recentes de sua
vida. Pouco a pouco, ele se tornou ciente do fato de que,
sob as roupas de cama, ele estava meio coberto por um
pano — sob o qual estava totalmente nu.
Ele ficou como que horrorizado.
Alguém o havia entregado àquele lugar como se ele
fosse um bebê recém-nascido, envolto em um pano
escuro. O que acontecera com ele? Não deveria ter
ficado tão imobilizado; deveria ter tido força suficiente
para voltar aos próprios aposentos. Ele havia se
planejado para isso. Mesmo agora ainda sentia latente
dentro de si a vibração da magia que estocava quase
sempre em suas veias.
Ele havia se planejado…
Pretendia se recolher à privacidade de seus aposentos,
onde sofreria o tormento daquela primeira noite na
companhia da própria mente. Quando estava se
preparando para a chegada de Alizeh — muito antes de
saber quem ela era —, ele pedira à mãe que desse à
noiva do diabo um quarto o mais longe possível do seu.
Parecia uma escolha sábia na época. Apesar disso, no dia
anterior, percebera que fora um terrível erro. O tamanho
do palácio fazia com que seus quartos ficassem
perigosamente distantes, e Cyrus se preocupou com o
fato de que, após o pacto de sangue, ele tivesse de
suportar um grau doloroso de separação de Alizeh, pois
não havia mágica que acalmasse a dor de tal cerimônia.
Esperava passar aquelas horas infernais acordado,
vomitando em uma bacia. Nunca pensou que
adormeceria. Também não imaginou que conseguiria
administrar tão bem a agonia. Doía, sim, em todos os
lugares, mas não era tão intolerável a ponto de ele se
prostrar.
Queria comemorar esse fato, exceto que não se sentia
à vontade naquele espaço estranho. Tinha certeza de
que estava no palácio, pois havia aspectos do cômodo
que lhe pareciam familiares, mas precisava saber onde,
precisamente, estava… E se estava sozinho.
Teve uma sensação estranha de que não estava.
Com grande esforço, alavancou-se para se erguer,
apoiando-se sobre os cotovelos para olhar em volta. Os
lençóis caíram até a sua cintura, expondo a parte
superior de seu corpo ao ar frio, um bálsamo bem-vindo
para a pele superaquecida. Metade do cômodo
encontrava-se em uma sombra profunda, enquanto o
resto era tocado por luz suficiente para que ele pudesse
distinguir impressões gerais de móveis. Todas as suítes
no palácio eram bem decoradas, mas aquela lhe pareceu
um tanto inespecífica. Não havia objetos pessoais à vista,
nem itens sobre a mesa de cabeceira, nem sapatos,
copos d’água ou roupas espalhadas.
Parecia que ninguém morava ali.
Com um alívio, Cyrus percebeu que havia sido
entregue a um dos muitos quartos do palácio. Não
quiseram, é provável, chamar a atenção de algum snoda,
pois um criado teria de abrir a porta de seus aposentos.
Ele quase sorriu ao pensar nisso enquanto esticava o
pescoço, fechando os olhos enquanto inspirava fundo.
Enfim, ele pôde simplesmente expirar.
Horrorizado por ter sido levado àquele cômodo
desconhecido como uma criança, ele ficou mais aliviado
do que esperava ao descobrir que o desconforto
resultante era razoável. Os protestos de Hazan haviam
sido tão teatrais que Cyrus quase acreditara que as
pressões do pacto o matariam. No entanto, ele havia
acordado como uma pessoa comum de um sono comum;
de algum modo, sem aquela dor indescritível.
Essa era uma boa razão para a gratidão.
Devagar, ele desembaraçou as pernas do tecido,
depois, com muito cuidado, agarrou-se à cabeceira da
cama enquanto se endireitava. Seu corpo ainda estava
um pouco trêmulo, e demorou um momento para ele
administrar, piscando, uma repentina tontura, mas logo
se sentiu bem o suficiente para colocar o peso nas
pernas.
Mesmo em particular, ele se sentiu desconfortável tão
exposto em um espaço estranho, então pegou a manta
de caxemira do pé da cama e com ela cobriu os quadris
antes de dar um passo exploratório em frente.
Sua primeira ideia foi usar magia para se transportar
aos seus aposentos, mas logo hesitou com um
pensamento alarmante: sua teoria anterior poderia estar
errada, e talvez ele tivesse sido trazido à suíte de
hóspedes por compaixão, não conveniência.
Não tinha certeza de onde, dentro do palácio, ele
estava posicionado, mas havia uma chance de sua dor
estar tolerável graças à sua proximidade dos aposentos
de Alizeh; nesse caso, ele não queria perturbar o
equilíbrio.
Pensou em explorar um pouco mais o espaço, na
esperança de encontrar uma pilha de roupas
descartadas, ou, pelo menos, um roupão. Assim que
chegou ao hall de entrada, sentiu um estalo por dentro,
uma onda tão elétrica que espasmou violentamente em
seu peito. Ele ofegou, estrangulando um grito de uma dor
que o cegava, que irradiava em seus olhos, sua língua,
sua espinha. Cambaleou para a frente, apoiando-se tarde
demais contra uma parede oposta, sentindo o chicote do
que parecia ser um raio rachá-lo por dentro, desta vez
tão forte que o fez emitir um gemido angustiado ao cair
de joelhos.
Ele estava ofegando, seu corpo tremendo com tanta
violência que ele mal conseguia reunir forças para voltar
para a cama. A dor era ao mesmo tempo estranha e
sufocante, uma tortura única quando comparada às
outras experiências que ele conhecia, pois, uma vez
iniciada, não cessara mais nem por um segundo. Ele
ficou impressionado com a força explosiva daquela corda
invisível, como se alguém estivesse tentando amarrar
sua alma, arrastá-lo de volta ao seu possuidor.
Cyrus percebeu que devia estar no lugar errado, longe
da segurança do início. Ele conseguiu, em sua agonia,
arrastar-se alguns centímetros para mais perto da cama,
antes de ser derrubado por um golpe que o levou a gritar
em desespero. Ele quase desmaiou, caindo de joelhos e
perdendo a visão.
Teve, então, uma visão repentina de seus pesadelos: as
faixas escuras de fumaça ao redor de seu corpo, a queda
de uma grande altura, a tortura sem fim; o rastejar no
escuro como um animal em fuga. Pelo menos, durante
aqueles terrores, havia a promessa de alívio, a visão de
um anjo que sempre chegava…
Pelo canto do olho, ele vislumbrou um movimento;
esforçou-se para levantar a cabeça e então testemunhou
os primeiros raios do amanhecer, feixes dourados
passando pelas janelas, banhando todo o cômodo com
um brilho etéreo. Ele soube, então, que tinha ficado louco
quando a viu, quando ela veio em sua direção, brilhando,
assim como sempre fazia em seus sonhos.
Enfim, aconteceu o esperado: ele estava louco.
— Cyrus — ela sussurrou, aproximando-se. — Onde
você está?
A descrença o paralisou completamente. Sua mente foi
devastada pela impossibilidade daquela visão, pela
sensação desorientadora de déjà vu.
Cyrus. Onde você está?
As palavras que ela dizia, a maneira como se movia, os
raios de luz. Estaria ele, de fato, sonhando? Do chão, ele
notou então, pela primeira vez, uma mesa lateral sobre a
qual havia um vaso com uma orquídea, uma tigela e um
prato dourado. No interior deste, estavam empilhadas
toalhas manchadas de sangue.
Ela tinha limpado o sangue do corpo dele?
Se ele fosse capaz de se mover, poderia inspecionar…
Poderia passar uma mão por seu corpo para confirmar a
teoria. Mas, em vez disso, precisou cerrar os dentes para
não gritar enquanto a dor se debatia no seu interior. Seus
instintos insistiam que algo estava errado, ainda que a
violência da tortura diminuísse conforme ela se
aproximava. Aquilo só podia ser uma ilusão, ele sabia
que era… Sabia que tinha de ser, mesmo que se sentisse
muito acordado, com seu coração batendo forte no peito.
Ela o viu no chão e se moveu em sua direção como um
anjo, a silhueta de seu corpo gracioso iluminada pelo sol
nascente.
Era impossível.
— Não, não…
— Cyrus — disse ela de novo, agachando-se agora para
olhá-lo nos olhos, franzindo a testa de preocupação. —
Eu só quero ajudá-lo.
Eu só quero ajudá-lo.
Ouviu a voz dela como se viesse de longe, suas
palavras ecoando em sua mente repetidas vezes,
despertando um clamor dentro dele e fazendo sua
cabeça quase explodir.
— Não… Não… Não… — ele gritou, caindo para trás,
saindo de seu alcance.
Mais das mesmas palavras que ela falava em seus
sonhos, exceto que ele nunca tivera um pesadelo como
aquele; sempre estavam no mesmo local, sempre
começavam precisamente da mesma maneira. Talvez
fossem as pequenas inconsistências que o
desequilibravam agora, pois ele se sentira confiante de
que estava acordado antes de ela aparecer. Só que,
agora, já não podia ter certeza. Ele entrou em desespero,
pois não sabia se esse era um novo jogo que o diabo
estava tentando jogar.
— Isto não é real — ele disse. — Isto não é real…
Ela se aproximou e o tocou — uma única carícia em
seu braço — e a sensação da pele dela contra seu corpo
torturado foi tão sublime que ele lutou contra um
gemido, seu peito arqueando de sofrimento.
— Por favor — disse ele, implorando a si mesmo. — Por
favor, acorde…
— Veja como você está sofrendo — disse ela, com uma
voz pesada de tristeza. Ela balançou a cabeça. — Eu não
me dei conta de que seria tão horrível.
Veja como você está sofrendo.
Veja como você está sofrendo.
Ela ficou de joelhos diante dele, pegou seu rosto nas
mãos, e ele gritou ao se sentir pegando fogo. Ela sempre
o curava quando o tocava, mas desta vez o toque de sua
pele parecia tão real que era aterrorizante. O coração
dele batia contra suas costelas conforme os dedos
delicados de Alizeh passavam pelas linhas de sua
mandíbula, o polegar acariciando a maçã de seu rosto.
Ele emitiu um som gutural e torturado, seus olhos se
fechando quando o alívio inundou suas veias. Ele sentiu
como se pudesse morrer daquele simples prazer, da
felicidade despertada dentro dele que abafava quaisquer
vestígios de dor.
Ele queria morar ali. Cavar seu túmulo e morrer ali.
— Anjo — ele murmurou com um suspiro. — Meu anjo.
— Venha comigo — ela falou, baixinho, afastando-se,
mas puxando-o pela mão.
Aquele pequeno gesto o assustou, porque não
constava em sua memória. Nunca em seus sonhos ela
fizera algo tão mundano quanto segurá-lo pela mão. A
pressão de seus dedos pequenos e delicados era tão
gentil, tão íntima, que ele quase acreditou que ela estava
de fato ali.
Com o máximo de doçura, ela o ajudou a ficar em pé,
largando sua mão para pegar a manta que ia caindo de
seu quadril, ajustando-a com cuidado para não o expor.
Ele sentiu como se tivesse se separado do próprio corpo,
como se estivesse meio-vivo, reduzido a nada além de
calor e sensação. Ele a observou, perplexo, cuidando
dele com uma benevolência que ele não merecia. Então,
seguiu-a cegamente, de mãos dadas outra vez, conforme
ela o guiava de volta para a cama. Ocorreu-lhe então,
com um vago pânico, que ele a seguiria até a beira de
um penhasco se ela assim o guiasse.
Ela o ajudou a se acomodar de novo sobre o colchão,
puxando as cobertas até sua cintura. Este era, de longe,
o sonho mais estranho que ele já tivera, uma jornada
com ela nunca antes percorrida.
Ele teve medo de que ela o deixasse, mas então ela se
sentou na beirada da cama e olhou para ele, sorrindo. Ele
sentiu como se estivesse despencando dentro do próprio
corpo, encarando-a de volta, olhando em seus olhos com
a liberdade de um homem enlouquecido. Ele se
surpreendeu com o leve tremor de seus dedos quando
ela tirou uma mecha de cabelo dos olhos dele, pois ela
nunca parecera nervosa em sua presença.
— O que foi? — ele disse.
Ela só balançou a cabeça e disse, baixinho:
— Você é tão lindo.
As palavras detonaram dentro dele, causando um
tormento tal que ele se encolheu.
— O que há de errado? — perguntou ela, alarmada. —
A dor voltou?
— Não — ele disse. — Sim… Eu não sei.
Ela o estudou por mais um momento, refletindo
enquanto examinava seu rosto.
— Eu fiquei logo ali — ela disse, apontando para uma
poltrona em um canto sombreado, agora iluminado pelo
espetáculo de cores que invadia o cômodo. — Devo ter
caído no sono, mas prometo que não vou a lugar
nenhum. Certo?
— Certo — ele disse.
— Você precisa descansar.
Ele engoliu em seco, ainda a encarando, perguntando-
se se ela tinha alguma ideia do que ele faria por ela, dos
mundos que destruiria por ela.
— Certo.
— Ótimo — ela disse, quase sorrindo, e então
acariciou-lhe a testa, o que o deixou sem fôlego. — Se
precisar de qualquer coisa que seja, estarei ali.
Ela se levantou, e ele entrou em pânico.
— Não — ele se apressou a dizer. — Por favor, fique.
— Vou ficar — respondeu ela, agora com um sorriso
aberto. Ela apontou para a poltrona. — Estarei logo ali…
— Não — ele disse, chacoalhando a cabeça. — Quero
você perto de mim.
Ela congelou, e seu sorriso se transformou em uma
careta… Como se estivesse se lembrando de algo.
Com cuidado, ela se sentou ao lado dele.
— Cyrus — ela disse, passando as costas da mão pelo
rosto dele, acalmando-o de imediato. — Você acha que
está sonhando?
Ele estava se sentindo fora de si.
— Eu não sei.
— Menino sonolento — ela disse. — Isto não é um
sonho. Estou mesmo aqui. E prometo que não vou a
lugar nenhum.
Cyrus refletiu, tentando assimilar as palavras dela, mas
não estava convencido, já que, nos sonhos, as pessoas
sempre pensavam ser reais. Além disso, ele estava
intoxicado com a proximidade dela, e sobrecarregado por
algum peso que ele não conseguia explicar. Ela ainda o
tocava, muito de leve, já não mais no rosto, mas em seu
peito, dentro do qual seu coração palpitava a uma
velocidade perigosa. A cada inspiração trêmula, seu peito
arqueava, pressionando de novo os dedos dela contra
sua pele, provocando nele um prazer tão agudo que
parecia queimá-lo vivo.
Pelos céus, ele a desejava.
Ele notou, então, que ela estava usando um robe macio
sobre o que parecia ser uma camisola, seus cabelos meio
presos para trás. Os cachos soltos e sedosos roçaram sua
pele quando ela se inclinou sobre ele, e ele queria puxá-
la para cima de si, queria sentir mais dela, em todos os
lugares. Se aquilo não era um sonho, e ela de fato
estivera ali a noite toda ao lado dele, quando ela tinha
tirado seu vestido opulento?
Ele arquejou quando ela retirou a mão, mas ele agarrou
seus dedos sem pensar, depois fechou os olhos e os
pressionou contra os lábios, beijando-os de leve.
Ela exalou, o que o fez abrir os olhos de novo. Ele a viu
ali, observando-o, parecendo fraca e inquieta.
— O que foi?
— Nada — ela disse depressa, depois hesitou. — Tudo.
Com alguma dificuldade, ele se apoiou sobre os
cotovelos, depois se sentou. Sua cabeça girava, e uma
dor contínua percorria seu corpo, mas ele precisava olhar
bem para ela. Cyrus pegou seu rosto entre as mãos, e ela
suspirou, seu corpo tremendo ao se inclinar para ele,
seus olhos fechados enquanto ela ofegava.
— Diga-me o que há de errado — pediu ele. — Diga-me
do que precisa.
— Preciso que você saiba — ela disse, recuperando a
voz — que isto não é um sonho.
O pulso dele disparou.
Cyrus sentiu-se congelado de medo e indecisão,
fragmentos de memória e sensação desordenados em
sua cabeça. Ele já não sabia o que era real. A pele dela
lhe parecia tão macia, tão macia que o impressionava.
Ele já a havia tocado mil vezes daquela forma, mas as
memórias empalideciam em comparação àquilo, àquilo…
Alguma vez fora assim, a sensação dela tão vívida que o
queimava? Ele segurou seu rosto e maravilhou-se com
ela, com suas feições elegantes, com a curva exuberante
de seus lábios. Ele se inclinou, roçando seu nariz no rosto
dela, e ela ofegou; ele observou o movimento de sua
garganta, suas mãos trêmulas em direção ao corpo dele,
os dedos finos pressionados contra suas costelas, depois
escorregando até suas costas. Ele foi tragado pela
doçura de seu toque, pelo calor que o curava, cada
carícia envolvendo-o em uma sensação de segurança,
como se tivesse encontrado seu lar.
Ele estava seguro ali. Com ela.
Ele piscou devagar, sentindo o peso denso da exaustão
retornar ao seu corpo, derrubando-o. Sua cabeça tombou
sobre o travesseiro. Ele queria dormir, mas tinha medo
de fechar os olhos, e não se dera conta de que tinha
falado aquilo em voz alta até ela dizer, baixinho:
— Por que você está com medo?
Ele balançou a cabeça, seus olhos fechando contra sua
vontade.
— Porque — ele disse, suspirando — você nunca está
aqui quando eu acordo.
Ele sentiu o hálito dela em sua testa, depois a pressão
de seus lábios, tão delicados contra a sua pele, e então
teve certeza de que só podia estar sonhando.
— Eu estarei aqui — ela disse. — Não vou a lugar
nenhum. — Depois, sussurrando, com seus lábios quase
tocando a orelha dele: — Você não pode mentir para mim
para sempre, Cyrus. Descobrirei a verdade e, quando
descobrir, prometo a você: vou destruí-lo. Farei o diabo
se arrepender do dia em que nasceu.

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