Fiori & Sangenis, 40rn, 2021

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ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação

8982 - Resumo Expandido - Trabalho - 40ª Reunião Nacional da ANPEd (2021)


ISSN: 2447-2808
GT21 - Educação e Relações Étnico-Raciais

SECULARIZAÇÃO À BRASILEIRA: RELAÇÕES ENTRE CULTURA POPULAR,


RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA DE TRADIÇÃO NAGÔ-YORUBÁ E
LAICIDADE DA ESCOLA PÚBLICA
Eneida da Silva Fiori - FACULDADE DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES DA UERJ
Luiz Fernando Conde Sangenis - UERJ - FFP - Universidade do Estado do Rio de Janeiro

SECULARIZAÇÃO À BRASILEIRA: RELAÇÕES ENTRE CULTURA POPULAR,


RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA DE TRADIÇÃO NAGÔ-YORUBÁ E
LAICIDADE DA ESCOLA PÚBLICA

Resumo

As investigações em torno da laicidade do estado e da escola pública criaram o consenso de


que a sociedade brasileira apresenta dificuldades para atomizar-se estritamente ao campo
político sem a interveniência da esfera da religião. Importa, agora, pensar as causas que
podem explicar as razões para que o processo de secularização/desencantamento, no contexto
brasileiro, se configure diferenciado. Argumentamos que a teoria da secularização, elaborada
em sociedades cristãs europeias, não tem a mesma eficácia teórica para explicar outros
processos de secularização em sociedades não europeias. A cultura brasileira, além do
cristianismo, formou-se a partir de diversas matrizes religiosas, a indígena e a africana, num
imbricado processo de sincretização. Destacamos a influência africana, particularmente a
tradição religiosa nagô-yorubá, que permeou o complexo cultural brasileiro. Mesmo em
ambientes católicos, ainda hegemônicos, vigora uma compreensão mágica e sacral da
realidade. Ao contrário do que se esperaria, o mundo continua encantado e permeado por
forças sobrenaturais que inibem a potência secularizante do cristianismo.

Palavras-chave: Laicidade. Teoria da Secularização. Cultura Brasileira. Sincretismo.

Os estudos que tematizam a secularização voltaram a ocupar o interesse dos


pesquisadores sociais brasileiros. Ainda que mais propriamente concernentes à esfera da
sociologia da religião, a laicidade do estado ganhou relevo nas reflexões dos educadores e
também passou a ser um problema emergente das pesquisas no campo da educação.

Desejamos, todavia, ir além da tematização de questões que versam sobre o aspecto


empírico e factual de que o estado brasileiro e suas instituições públicas – dentre elas a escola
pública – apresentam dificuldades para atomizar-se estritamente ao campo político sem a
interveniência da esfera da religião. Importa pensar as causas que podem explicar as razões
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determinantes para que o processo de laicidade, no contexto brasileiro, se configure demorado
e mesmo pareça ora avançar e ora recuar (CUNHA, 2016).

A complexidade da questão envolve o tratamento da fenomenologia política e social


da temática, mas, sobretudo, implica o seu aprofundamento no âmbito cultural. Razão pela
qual se torna necessário revisitar a teoria da secularização. O conceito de secularização,
apesar de polissêmico e bastante disputado no campo das ciências sociais, recobre processos
de múltiplos níveis e dimensões, referindo-se a distintos fenômenos sociais e culturais que
precisam ser melhor investigados, no contexto social brasileiro.

Há que se tomar distância crítica das contribuições teórico-conceituais que provêm da


sociologia europeia das religiões, reconhecendo seus valores e suas contribuições, porém
fazendo um esforço de reelaboração de conceitos que sejam mais coerentes com os
fenômenos específicos da América Latina e do Brasil. Parker (2006, 2018) afirma que Marx,
Weber, Durkheim, Troeltsch, Mauss, Simmel, James escrevem em contextos Ocidentais e
trabalham com definições de religião que exibem um viés institucional historicamente
enraizado nas igrejas católica e protestantes europeias, assim como manejam os tipos
normativos de organização religiosa que refletem o padrão e o odor da cultura Ocidental.

Propusemos o argumento de que a teoria da secularização, elaborada em sociedades


cristãs europeias, não tenha a mesma eficácia teórica para explicar outros processos de
secularização em sociedades não europeias, a exemplo da brasileira.

Em nosso ponto de vista, o cristianismo é portador do que caracterizamos de gérmen


ou potência secularizante, presente na revelação bíblica e na ulterior constituição da religião
cristã, quando incorpora a filosofia grega e pagã, utilizando-a como ferramenta teórica
fundamental para erguer o seu edifício teológico. Para este fim, utilizamos, como inspiração
e roteiro da nossa análise, o texto seminal de Boaventura Kloppenburg (1970), intitulado O
cristão secularizado. O autor, a partir das escrituras judaico-cristãs, destaca a radical intenção
dessacralizante dos autores bíblicos, desde o Gênsesis, com a ideia da criação ex-nihilo, às
cartas do Novo Testamento.

Mas coube-nos considerar, antes de tudo, que o Brasil é um país de composição


cultural afro-luso-americano. Conforme destacou Elbein dos Santos (1993), somos
americanos, evidentemente, por uma situação geográfica e nossa população indígena;
lusitanos em razão da colonização portuguesa; e africanos, porque a nação brasileira foi
formada pelo trabalho dos negros escravos. A autora, no entanto, enfatiza que os negros,
historicamente, constituíram o componente populacional de maior densidade nas cidades
brasileiras, fossem elas grandes ou pequenas, assim como nas plantações e nos setores de
extração mineral. Os negros africanos foram “elemento base a partir do qual se multiplicou a
população do Brasil, profundamente marcada por seus costumes, sua religião e suas
tradições” (ELBEIN DOS SANTOS, 1993, p. 26).

Destacamos, particularmente, a influência das concepções religiosas da tradição nagô-


yorubá que permearam o complexo cultural brasileiro. Tal cosmovisão africana transplantada
para o Brasil influenciou sobremaneira a religiosidade popular. Mesmo em ambientes
católicos, ainda hegemônicos, vigora uma compreensão mágica e sacral da realidade. Ao
contrário do que se esperaria, o mundo continua encantado e permeado por forças
sobrenaturais que inibem a potência secularizante do cristianismo.

No Brasil, em razão de nossa própria história e formação cultural, é preciso que


reflitamos sobre as peculiaridades que vem tomando o processo de
secularização/desencantamento, de modo que propusemos identificar tal processo com a
expressão “secularização à brasileira”. Segundo Parker (1993, 1994), o processo de
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secularização/desencantamento na América Latina não significou o incremento linear e
ascendente da não-crença, mas sim, fundamentalmente, do pluralismo religioso.

Berger (2017), ao desenvolver a ideia de “modernidades múltiplas” de Eisenstadt


(2001), colabora em fundamentar uma atitude crítica ante uma pretensa lei sociológica fixa
que liga religião e modernização. Conforme Baum (1983, p. 1179), “em cada parte do mundo
é necessário realizar pesquisas independentes sobre o impacto da modernização sobre a
religião.

As manifestações religiosas não cristãs, em geral, são menos visíveis e sobrevivem em


esferas culturais mais recônditas e subterrâneas, bastando que reconheçamos a sua história de
sobrevivências, a partir de estratégias de dissimulação e de ocultação, ainda tão presentes nas
religiões afro-brasileiras. Na atualidade, continuam a sofrer perseguições violentas (PRANDI;
JÁCOMO; BERNARDO, 2019).

A questão pode ser posta da seguinte maneira: até que ponto, a teoria tradicional da
secularização, iniciada por Weber (2004), e que, empiricamente, utilizou como referentes as
sociedades cristãs em estado “puro”, pode servir de base conceitual válida para teorizar
processos de secularização em curso em sociedades que, além do cristianismo, se
constituíram a partir de outras matrizes e tradições religiosas, entre elas a africana?

No ambiente religioso brasileiro, marcado pelo sincretismo, traço fundamental do


catolicismo popular, bem como das religiões afro-brasileiras, a exemplo dos candomblés e
das umbandas, e do espiritismo de diversos matizes e doutrinas, a potência secularizante se
inibe ante os aspectos mágicos e encantados da cultura brasileira. A influência africana no
catolicismo popular é marcante. Vive-se ainda num mundo caracteristicamente sacral. O
mesmo se pode dizer da religiosidade popular, até nos ambientes mais católicos e praticantes,
inclusive no interior de igrejas e, sobretudo, de santuários (PEREIRA, 2004). Em ambientes
culturais não cristãos ou de cristianismo sincrético ou “impuro” como o nosso, a teoria da
secularização não consegue dar conta de explicar a idiossincrática secularização à brasileira.

Não é forçoso dizer que a cosmovisão religiosa do complexo cultural nagô-yorubá


penetrou fundamente nos alicerces da cultura brasileira (BASTIDE, 2001). Esta tradição
muito complexa e não uniforme – porque há um sem número de suas variantes sem que haja
instância que possa impor uma opinião dominante – foi suficiente, no entanto, para
estabelecer uma concepção unitária básica do mundo, bem diversa do modo com que os
cristãos compreenderam o cosmos.

A cosmologia nagô-yorubá tem como fundamento diversos mitos genéticos colhidos


da tradição oral (WOOTMANN, 1978; ELBEIN DOS SANTOS, 1993; BENISTE, 2020). As
versões diversas do mito yorubano da criação enriquecem e abrem múltiplas possibilidades de
entendimento e de interpretação.

Fica bastante patente, no mito de criação, que o mundo e os orixás surgem a partir do
movimento de emanação de Olórun. A emanação é um processo cosmogônico no qual o ser
superior produz o inferior pela sua própria superabundância sem que o primeiro perca nada
nesse processo. A emanação é, pois, distinta da criação ex-nihilo ou a partir do nada. Olórun
produziu o mundo, todavia, tirando-o de sua própria substância inesgotável. Todos os seres,
portanto, são apenas fluxo ou uma expansão da essência divina. O Ser divino, em sendo o
criador do mundo, não é absolutamente separado de sua obra criada.

Na concepção nagô-yorubá, o universo existe em dois níveis de existência: o àiyé, o


mundo natural ou físico, e o òrun, o mundo sobrenatural e imaterial. Aiyé designa a vida na
terra e o tempo de vida, e, mais amplamente, a dimensão cosmológica da existência
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individualizada, em contraste a òrun, dimensão da existência genérica e mundo habitado
pelos orixás, e povoado, ainda, pelos espíritos dos antepassados naturais e humanos, das
pessoas que morreram no àiyé, designados de egúns.

De imediato, é necessário um esforço para compreender os dois planos, o àiyé e o


òrun, livre de analogias com a concepção judaico-cristã do mundo. Não obstante ao fato de
que muitos autores traduzem òrun por céu (sky) ou paraíso (heaven), Elbein dos Santos (1993,
p. 54) assevera que tais traduções induzem o leitor ao erro e deformam o conceito, além de ser
“o fruto de uma concepção insuficiente e de tendência forânea”.

O àiyé e o òrun não são apenas mundos paralelos, no sentido de apartados ou que não
se encontram. Ao contrário, o òrun engloba todo o aiyé. “O òrun engloba tudo e todos. Ou
dito de outra forma, o Aiye não é um nível de existência fora do Orum, mas – para usarmos
uma imagem – é como um útero limitado dentro de um corpo sem limites”
(BERKENBROCK, 2012, p. 181).

Mas o cerne de nossa questão é demonstrar que a concepção cosmológica nagô-


yorubá, à diferença da concepção cosmológica cristã, baseada na ideia de criação ex-nihilo,
não possui uma potência secularizante. Aliás, bem ao contrário, conforme deixaremos
patente, não há como afastar a dimensão sacral do àiyé, que, circunstancialmente separado do
òrun, após uma violação, conforme as narrativas míticas, jamais poderá se tornar secular.

Para a tradição religiosa africana o visível constitui manifestação do invisível. O


sagrado permeia de tal modo todos os setores da vida, que se torna impossível realizar uma
distinção formal entre o sagrado e o secular, entre o espiritual e o material nas atividades do
cotidiano. Essa mesma vivência é compartilhada pelas demais religiões de matriz africana. A
cosmologia afro-brasileira, apoiada no seu pensamento mítico, insiste em manter juntos e
intercomunicáveis domínios que o pensamento científico, com sistemática obstinação, veio a
dividir, segregar, classificar e compartimentar (VOGEL; MELLO; BARROS, 1993).

Não há secularização possível em tal forma de conceber o mundo. Toda a criação


participa da mesma dimensão trágica da existência, porque está irmanada na separação que
afastou o mundo das criaturas do mundo dos deuses.

Referências

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