OLIVEIRA, Maria Emília M C - 2021 - Os Mashco e Seus Vizinhos - Políticas Indígenas e Povos Isolados Na Fronteira Brasil-Peru - UNB PPGCS-ELA Disser

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Universidade de Brasília

Instituto de Ciências Sociais


Departamento de Estudos Latino-americanos
Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados sobre as Américas

Os Mashco e seus vizinhos: políticas indígenas e povos "isolados" na


fronteira Brasil-Peru

Maria Emília Machado Coelho de Oliveira

Brasília, Distrito Federal


2021
MARIA EMÍLIA MACHADO COELHO DE OLIVEIRA

Os Mashco e seus vizinhos: políticas indígenas e povos "isolados" na


fronteira Brasil-Peru

Trabalho de Dissertação de Mestrado


apresentado ao Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais – Estudos
Comparados sobre as América, do
Departamento de Estudos Latino-
americanos, como exigência parcial para
a obtenção do Título de Mestre em
Ciências Sociais - Estudos Comparados
sobre as Américas.

Orientador: Cristhian Teófilo da Silva

Brasília, Distrito Federal


2021

2
Os Mashco e seus vizinhos: políticas indígenas e povos "isolados" na
fronteira Brasil-Peru

MARIA EMÍLIA MACHADO COELHO DE OLIVEIRA

Apresentada e Aprovada em: 30 de julho de 2021.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________
Cristhian Teófilo da Silva (orientador)
Universidade de Brasília – UnB

_____________________________________
José Pimenta (avaliador)
Universidade de Brasília – UnB

_____________________________________
Beatriz Almeida Matos (avaliador)
Universidade Federal do Pará – UFPA

_____________________________________
Elaine Moreira (suplente)
Universidade de Brasília – UnB

3
Aos meus pais, Maria de Lourdes e Geraldo (in memoriam)

4
Agradecimentos

Aos Manxineru do Brasil e aos interlecutores desta pesquisa, Otavio, Mateus,


Mila, Mailson, Jaime, José Sebastião, Alberico, Edvaldo, Roy, Artur, Carlos, Célio,
Magno, Franço, Osmar, Deuzimar, entre outros entrevistados e entrevistadas, e
especialmente à Lucas Manchineri, sua esposa Mariana e à toda sua família, pela
confiança, ensinamentos e conversas nesses mais de 10 anos de amizade.
Aos Yine do Peru e aos agentes de proteção e lideranças das Comunidade Nativa
Monte Salvado, à Romel e Ronal Ponciano e à Teodoro Sebastian, pelos seus valiosos
depoimentos para este estudo. Aos dirigentes e lideranças indígenas da FENAMAD, pelo
interesse e apoio nesses 13 anos de parceria e colaboração, Julio Cusurichi, Victor
Kameno, Antonio Iviche, Jaime Corisepa e, em especial, à Jorge Payaba e Marlene Racua
(in memorian).
Ao meu orientador e querido professor Cristhian Teófilo da Silva, pelo incentivo
que sempre deu ao meu trabalho e à minha pesquisa, e pelas importantes contribuições
nesta dissertação.
Aos amigos eternos que fiz no Peru, Fernando Valdívia, Gigi Feldman, Maru de
Aliaga, Chantelle Murtagh, Beatriz Huertas, Luiza Envira Belaunde, Ernesto Raez,
Alfredo Garcia, Renata Leite, Pierina, Mirko e toda família “Kapievi” e “Amarumayo”,
Gina Vela e Julio, Ramon Delucci, Mishari e Julia, Daniel Rodrigues, Ramon Rivero,
Kike Basurto, Cristhian Quispe, Cecília e tantas outras pessoas que não mediram esforços
em me apoiar durante os anos em que vivi e trabalhei do outro lado da fronteira.
À minha família acreana da comunidade Carapanã Irado, Malu, Valéria,
Marquinhos, Camila, Irene, Tutuco, Hilda, Maiara, Amanda, Frank, Flávia, Tupi, Luna,
Maitê, Patrícia, Kaman, Luan e ao Marco (in memorian). Agradeço ainda à Heleno,
Daniel Maninho e Miranda, entre outros amigos que passaram e deixaram suas histórias
na nossa “aldeia” de resistência e amor em Rio Branco. À Cecília, nossa professora de
ioga, que me ajudou a buscar o equilíbrio necessário nos momentos de estresse.
Aos companheiros da Comissão Pró-Índio do Acre e do indigenismo acreano, que
me ensinaram o caminho das pedras no trabalho com os povos indígenas, José Carlos
Meirelles, Txai Terri, Marcelo Piedrafita, Malu Ochoa, Vera Olinda, Renato Gavazzi,
Gleyson Teixeira, Billy, Mara Vanessa, Ingrid, Paulinha, Ana Luiza, entre outros
companheiros de luta que passaram pela instituição. Agradeço especialmente ao Frank
pela importante contribuição na elaboração dos mapas desta dissertação.
Às lideranças indígenas do Acre pelos inúmeros aprendizados nesses mais de 10
anos de labor indigenista em Rio Branco e nas aldeias, José de Lima, Joaquim Maná, Txai
Ibã, Joaquim Tashka, Txai Jocemir, Francisca Arara, Toya Manchineri, à toda família
Pyãko, entre tantos outros que não caberia aqui.
Aos amigos do Centro de Trabalho Indigenista, Kiko Nascimento, Conrado
Octavio, Helena Ladeira, Gilberto Azanha, Maria Elisa Ladeira, Aloísio Azanha, Ju
Noleto, Priscila Chianca, Jaime Siqueira, Guta Assirati, entre outros, pela amizade e
parceria nesses vários anos de trabalho em colaboração.
Aos colegas e amigos da FUNAI no Acre (CR Alto Purus e FPEE), Juliana Fortes,
Willian, Tiago, Jefferson, Pâmela, Marquinhos, Lucas, Wagner, entre outros que atuam
e/ou atuaram no órgão indigenista, e que forneceram importantes informações ao longo
da minha pesquisa sobre os Mashco. Aos amigos que trabalharam na CGIIRC em Brasília
em anos anteriores, Antenor Vaz, Carlos Travassos, Leonardo Lenin, Clarisse Jabur e
Bruno Pereira, pela confiança e apoio ao meu trabalho.
Às amigas e amigos que me acompanharam neste desafio em Brasília, Andreia
Bavaresco, Marcela Menezes, Adriana Ramos, Henyo Barreto Ailton Dias, Cloude

5
Correa, Luciene Pohl, Sara Gaia, Janaína Oliveira, Carolina Boccato, Ester Oliveira, Sília
Moan. Agradeço especialmente à Luana Almeida e pelas inúmeras trocas ao longo desta
pesquisa, e à Ivanise Rodrigues, quem me apresentou ao Cristhian, meu orientador, e ao
CEPPAC (atual ELA/UnB).
Aos professores, colegas e amigos do Departamento de Estudos Latino-
Americanos, pelo acolhimento no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais -
Estudos Comparados sobre as Américas (PPGECsA), e à CAPES, por possibilitar os
recursos desta pesquisa.
Às professoras e professores que gentilmente aceitaram fazer parte dessa banca,
Beatriz Almeida Matos e Elaine Moreira, e ao José Pimenta, que agradeço ainda pelos
seus precisos comentários na banca de qualificação.
Aos colegas do LAEPI (Laboratório de Estudos e Pesquisas em Movimentos
Indígenas, Políticas Indigenistas e Indigenismo) e do OBIND (Observatório dos Direitos
e Políticas Indigenistas), pelas inúmeras trocas e aprendizados nesses anos na UnB, em
especial à companheira Mariana Castilho. Aos colegas do LABINTER (Laboratório de
Interculturalidade) da Universidade Federal do Acre (UFAC), em especial à sua
coordenadora e amiga, Maria Inês de Almeida.
Às lideranças indígenas e equipe da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), em especial à Angela Kaxuyana e à Nara Baré, pela
oportunidade e confiança neste mais de um ano de colaboração intensa. À Talita Oliveira,
grande parceira nesta empreitada com o movimento indígena, e à equipe da Gerência de
Povos Isolados e de Recente Contato, Luciano Pohl, Fabrício Amorim e Luiz Fernandes,
parceiros de luta diária.
Aos companheiros guerreiros do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos
Indígenas e de Isolados e de Recente Contato (Opi) pelo companheirismo e energia nessa
batalha contra o atual desmonte da política indigenista brasileira.
Por fim, agradeço imensamente à minha família, eterno esteio do meu caminhar,
Maria de Lourdes, Maria Claudia, Tia Lúcia, Tio Adolfo, Paulinho, Cristiane, Carol, Bia,
Ricardo, e à Tia Tereza e Geraldo (in memorian). À minha família judia, Dorothy, Walter
e Laura. Ao meu companheiro de vida, Daniel Belik, meu maior apoio e inspiração neste
desafio acadêmico, e à nossa filha Manuela, principal razão do meu viver.

6
“A maior das conquistas históricas tem sido o de
transformar os povos indígenas de vítimas e de
objetos da história, para protagonistas e sujeitos da
própria história e é isso que se conseguiu nesses
curtos, mas ricos anos, de muitas lutas, de perdas e
ganhos, mas sobretudo de ousadia, coragem e
persistência”.

Gersem dos Santos Luciano Baniwa

7
Resumo

Esta pesquisa aborda as concepções e políticas indígenas em relação aos povos


“isolados”, a partir do estudo de caso de duas comunidades amazônicas vizinhas às
populações denominadas Mashco ou Mashco-Piro. Desde 2011, os Yine da Comunidade
Nativa Monte Salvado, no médio rio Las Piedras, no Peru, e os Manxineru da aldeia
Extrema, no alto rio Iaco, no Brasil, populações que compartilham língua, histórias e
práticas culturais, estão construindo uma aliança política transfronteiriça em defesa dos
seus territórios e dos seus “parentes desconfiados” que vivem na mata. Suas lideranças e
organizações de representação estão debatendo problemas e desafios comuns em suas
terras na região da fronteira internacional, como a pressão madeireira, o narcotráfico e os
projetos de estradas, e também realizando um importante trabalho de monitoramento e
vigilância territorial, impedindo que invasores coloquem em risco a vida dos Mashco.
Discutem ainda o porquê de os isolados estarem cada vez mais aproximando das suas
aldeias, além de como devem lidar com situações que possam resultar em contatos
e confrontos com esses povos. Ao descrever as políticas que pautam suas relações
históricas de parentesco, aliança e intercâmbio, a pesquisa analisa como um tipo de
conhecimento e o protagonismo político dos povos indígenas emergem nas duas aldeias
da Amazônia. Por fim, revela o papel estratégico das comunidades indígenas e suas
organizações de representação na construção de políticas públicas para a garantia dos
direitos dos povos que rejeitam o contato com as sociedades nacionais, como também na
intermediação entre esses dois “mundos”, e entre os “limites” de Brasil e o Peru.

Palavras-Chave: Mashco; Mashco-Piro; Yine; Manxineru; Povos Indígenas Isolados;


Políticas Indígenas; Brasil; Peru

8
Abstract

This research looks at the indigenous political conceptions in relation to their "isolated"
neighbors, taking as an example the case study of two amazonian communities close to
the Mashco or Mashco-Piro. Since 2011, the Yine indigenous people from the Monte
Salvado Native Community at the middle Las Piedras River, in Peru and the Manxineru
indigenous people from the Extrema village, at the upper Iaco River, in Brazil, are
collaborating across national borders in an alliance in defense of their territories and of
their isolated relatives. They share the same language, history and cultural practices. Their
leaders discussing common challenges affecting the land such as illegal logging, drug
trafficking and infrastructure projects besides monitoring and surveilling the territory in
order to avoid invasions that could put Mashco lives at risk. They discuss, also, the
reasons why the isolated Indians are getting closer to their villages and how to minimize
possible conflicts with them. Describing the politics that underline their relations of
kinship, trade and alliance, the research analyzes how a specific type of knowledge is
being produced in Amazonia. This thesis reveals the strategic role of the indigenous
communities and their organizations in building non-contact public policies that respect
the rights of the indigenous people in isolation as well as reflecting on the mediation
between "worlds" and "limits" between Brazil and Peru.

Key Words: Mashco; Mashco-Piro; Yine; Manxineru, Isolated Indigenous People;


Indigenous Politics; Brazil; Peru

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Resumen

Esta investigación aborda las concepciones y políticas indígenas en relación con los
pueblos “aislados”, a partir del estudio de caso de dos comunidades amazónicas vecinas
a las poblaciones denominadas Mashco o Mashco-Piro. Desde 2011, el Yine de la
Comunidad Nativa Monte Salvado, en el medio del río Las Piedras, en Perú, y el
Manxineru del pueblo de Extrema, en el alto río Iaco, en Brasil, son poblaciones que
comparten lengua, historia y prácticas culturales. construyendo una alianza política
fronteriza en defensa de sus territorios y de sus “parientes” que viven en la selva. Sus
líderes y organizaciones representativas están debatiendo problemas y desafíos comunes
en sus tierras en la región fronteriza internacional, como la presión maderera, el
narcotráfico y los proyectos viales, además de realizar importantes labores de monitoreo
y vigilancia territorial, evitando que los invasores pongan en riesgo a los vidas de los
Mashco. También discuten por qué las personas aisladas se acercan cada vez más a sus
comunidades, así como cómo deben lidiar con situaciones que podrían resultar en
contactos y enfrentamientos con estos pueblos. Al describir las políticas que orientan sus
relaciones históricas de parentesco, alianza e intercambio, la investigación analiza cómo
un tipo de conocimiento y el protagonismo político de los pueblos indígenas emergen en
los dos pueblos amazónicos. Finalmente, revela el rol estratégico de las comunidades
indígenas y sus organizaciones representativas en la construcción de políticas públicas
para garantizar los derechos de las personas que rechazan el contacto con las sociedades
nacionales, así como en la intermediación entre estos dos "mundos", entre los "límites”
de Brasil y Perú.

Palabras llave: Mashco; Mashco-Piro; Yin; Manxineru; Pueblos Indígenas Aislados;


Políticas Indígenas; Brasil; Perú

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Listas de Siglas

AI: Área Indígena


AIDESEP: Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana
CEDI: Centro Ecumênico de Documentação e Informação
CIDH: Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CIMI: Conselho indigenista Missionário
CIPIACI: Comitê Indígena Internacional para a Proteção dos Povos em Isolamento e
em Contato Inicial da Amazônia, Gran Chaco e da Região Oriental do Paraguai
CGII: Coordenação Geral de Índios Isolados
CGIIRC: Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato
CN: Comunidade Nativa
COIAB: Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira
CPI-Acre: Comissão Pró-Índio do Acre
DACI: Dirección de los Pueblos en Situación de Aislamiento y Contacto Inicial
CTI: Centro de Trabalho Indigenista
FENAMAD: Federação Nativa del Rio Madre de Dios e Afluentes
FPEE: Frente de Proteção Etnoambiental Envira
FUNAI: Fundação Nacional do Índio
IIRSA: Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana
INRENA: Instituto Nacional de Recursos Naturales do Peru
ISA: Instituto Socioambiental
MINCU: Ministério da Cultura do Perú
ONG: Organização Não Governamental
ONU: Organização das Nações Unidas
OPAN: Operação Mata Nativa
PE: Parque Estadual
PN: Parque Nacional
RT: Reserva Territorial
RESEX: Reserva Extrativista
SEMA-AC: Secretaria do Meio Ambiente do Estado do Acre
SESAI: Secretaria de Saúde Indígena
PI: Posto Indígena
PCV: Posto de Controle e Vigilância
TI: Terra indígena
UC: Unidade de Conservação
UNI: União das Nações Indígenas

11
Listas de Mapas e Fotos

Mapa 1: Hidrografia da Fronteira Acre-Madre de Dios-Ucayali (Brasil-Peru).............17

Mapa 2: Mapa “Navegabilidad de los rios”, extraído e adaptado do livro “Los ríos de la
Amazonía peruana: estudio histórico, geográfico, político y militar de la Amazonía
peruana y de su porvenir en el desarrollo socio-económico del Perú” de Guillermo S.
Faura-Gaig (1964)............................................................................................................50

Mapa 3: Área binacional com destaque para a Terra Indígena Mamoadate, no Brasil, a
Comunidade Nativa Monte Salvado, no Peru...................................................................60

Foto 1: Acampamento Mashco-Piro encontrado em sobrevoo da equipe do SERNAMP


no alto Rio Las Piedras, em 2007. (Foto: Heinz Plenge) .................................................55

Foto 2 e 3: Colares Mashco-Piro encontrado durante conflito com índios Ashaninka do


Peru. Um deles está no acervo da Biblioteca da Floresta , em Rio Branco (Fotos: Acervo
CPI-Acre)............................................................................................................83

Foto 4: Intercâmbio binacional sobre proteção dos povos isolados, realizado em 2011, na
aldeia Extrema, na TI Mamoadate, no Acre, no Brasil (Fotos: Acervo CPI-Acre).........103

Foto 5: Lucas Manchineri em intercâmbio na CN Monte Salvado, onde vive população


Yine, no rio Las Piedras, Peru, em 2012. (Foto: Acervo Fenamad)…………………. 105

Foto 6 e 7: Grupos Mashco-Piro em encontros nas comunidades no médio rio Las


Piedras, no departamento Madre de Dios, no Peru. (Fotos: Acervo Fenamad)...............111

Foto 8: Deuzimar Manchineri mostra altura do arco dos Mashco encontrado na beira do
rio Acre, em junho de 2017, quando caçava na TI Cabeceira do Rio Acre. (Foto: Maria
Emília Coelho)...............................................................................................................119

Foto 9: Grupo Mashco-Piro do alto Madre de Dios, em 2012, três anos antes do primeiro
contato com os agentes do Estado peruano. (Foto: Jean-Paul Van Belle).......................123

Fotos 10 e 11: Oficina para a elaboração de Plano de Monitoramento e Vigilância da TI


Mamoadate, realizada na aldeia Betel, em 2016, com a participação de Ronal Ponciano,
agente de proteção Yine de Monte Salvado, e Marlene Racua, dirigente da Fenamad.
(Fotos: Acervo da CPI-Acre)........................................................................................ 126

Foto 12: Otávio Manchineri identificando rota e vestígios dos indígenas isolados, no Alto
Iaco, no Brasil, em 2017. (Foto: Jeferson Lima/FUNAI................................................130

Foto 13: Posto de vigilância na aldeia Extrema, construído no final de 2020 e denominado
de Pantshi Hoshahajane Yine Hislahikolwaka (Foto: Grupo de monitoramento
Manxineru)....................................................................................................................132

Fotos 14 e 15: Tapiris dos Mashco encontrados pelos Manxineru da aldeia Extrema, em
janeiro de 2021. (Fotos: Grupo de monitoramento
Manxineru......................................133

12
Sumário

1. INTRODUÇÃO 14

1.1. PERCURSO E RELEVÂNCIA DA PESQUISA 18


1.2. ESTRUTURA DA DISSERTAÇÃO 23
1.3. ALGUMAS TERMINOLOGIAS E CONCEITOS 25

2. PANORAMA ETNOHISTÓRICO 27

2.1. ANTES DA INVASÃO NA AMÉRICA 29


2.2. REDES DE INTERCÂMBIO E ZONA DE REFÚGIO 31
2.3. OS PRIMEIROS COLONIZADORES E A CONFUSÃO DOS ETNÔNIMOS 34
2.4. A FEBRE DA BORRACHA: OCUPAÇÃO E "CORRERIAS" 39
2.5. FITZCARRALD E O MASSACRE DOS MASHCO 42
2.6. ENTRE ANTIGAS E NOVAS ROTAS NA FLORESTA 46
2.7. CAMINHOS DO "ISOLAMENTO": UMA ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA 51

3. RELAÇÕES, ESTRATÉGIAS E CONHECIMENTOS 56

3.1. ALTO IACO: MEMÓRIAS E NARRATIVAS DO CONTATO COM BRANCO 61


3.2. CHEGADA DA FUNAI: REGISTROS DE VESTÍGIOS, ENCONTROS E CONFLITOS 68
3.3. MOVIMENTO INDÍGENA E POLÍTICA DO "NÃO CONTATO" NO "TEMPO DOS DIREITOS" 72
3.4. LAS PIEDRAS: OS YINE DE MONTE SALVADO E SUAS RELAÇÕES COM OS “ISOLADOS” 76
3.5. O BOOM MADEIREIRO NO PERU E A PROTEÇÃO BINACIONAL DOS MASHCO 80
3.6. ESTRATÉGIAS YINE: RELATO DE UM AGENTE DE PROTEÇÃO DE MONTE SALVADO 84
3.7. DINÂMICAS TRANSFRONTEIRIÇAS: NOVAS PRESSÕES E AMEAÇAS NO ALTO IACO 87

4. POLÍTICAS TRANSFRONTEIRIÇAS 93

4.1. PESQUISANDO OS POVOS “ISOLADOS” NA FRONTEIRA BRASIL-PERU 98


4.2. ALIANÇA INDÍGENA EM DEFESA DOS MASHCO 101
4.3. EMERGÊNCIAS E INTERCÂMBIOS NO RIO LAS PIEDRAS 105
4.4. POLÍTICAS INDIGENISTAS: AGENDA REGIONAL E COOPERAÇÃO BINACIONAL 112
4.5. O CERCO SE FECHA: DINÂMICAS TERRITORIAIS, CONFLITOS E CONTATOS 116
4.6. DIÁLOGOS E DILEMAS DO CONTATO MASHCO-PIRO NO ALTO MADRE DE DIOS 120
4.7. TERRITÓRIOS TRANSFRONTEIRIÇOS E GESTÃO COMPARTILHADA 123
4.8. PROTAGONISMO MANXINERU NA PROTEÇÃO DOS "PARENTES DESCONFIADOS" 129

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 137

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 143

13
1. Introdução

Esta pesquisa se debruça sobre as concepções e políticas indígenas em relação aos


povos “isolados”, tomando como foco de análise duas comunidades vizinhas aos grupos
“isolados” conhecidos como Mashco ou Mashco-Piro: Os Yine da Comunidade Nativa
Monte Salvado, localizada no médio rio Las Piedras, no departamento Madre de Dios, no
Peru; e os Manxineru da aldeia Extrema, localizada no alto rio Iaco, na Terra Indígena
Mamoadate, no estado do Acre, no Brasil.
Na atualidade, as duas comunidades da Amazônia Sul Ocidental estão
empreendendo um trabalho de monitoramento e vigilância dos seus territórios próximos
à fronteira entre os dois países, e impedindo que invasores coloquem em risco a vida dos
“isolados”. Em encontros e intercâmbios, discutem problemáticas e desafios comuns em
seus territórios, como a pressão da exploração madeireira, do narcotráfico e dos grandes
projetos de infraestrutura viária na região fronteiriça. Debatem ainda sobre suas
experiências, dilemas e preocupações com a aproximação cada vez mais frequente de
indígenas “isolados” em suas aldeias. Há uma década, as lideranças dessas duas
comunidades, que compartilham língua, histórias e práticas culturais, estão construindo
uma aliança política transfronteiriça em defesa dos seus territórios e dos seus “parentes
que vivem na mata”.
A Amazônia entre a fronteira Brasil-Peru abriga o maior número de povos
indígenas "isolados" conhecidos atualmente no planeta1. Povos, ou segmentos de
determinado povo, que ao longo do processo de colonização e exploração da América,
adotaram diferentes estratégias de resistência e re-existência em resposta à violência e às
transformações em seus territórios e redes de relação nas quais estavam inseridos. Hoje,
todos têm em comum um alto grau de autonomia e seletividade nas trocas que
estabelecem com outros coletivos (Octavio el al, 2020: 16), e o termo “isolado” não
representa a complexidade das estratégias utilizadas por esses povos e grupos assim
classificados, como veremos adiante.
Os grupos indígenas “isolados” denominados atualmente como Mashco ou
Mashco-Piro vivem entre os territórios brasileiros e peruanos, em uma extensa área de
cabeceiras de rios, no divisor de águas das bacias do Juruá, Madre de Dios/Madeira, Purus

1
Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), existem atualmente 114 registros da presença
de indígenas isolados no Brasil, sendo 28 deles confirmados. Já o Ministério da Cultura do Peru registra a
existência de 20 povos em situação de "isolamento voluntário'' (Octavio et aI, 2020).
14
e Ucayali (mapa na pág. 17). São os sobreviventes dos massacres ocorridos no auge da
exploração do caucho, na virada dos séculos XIX e XX, que se refugiaram nas áreas de
difícil acesso da floresta, fugindo das perseguições. Hoje, já se sabe que os Mashco-Piro
falam uma língua Arawak, muito próxima do idioma do povo Yine, do Peru, como dos
seus parentes Manxineru, do Brasil. Desde 2015, os Yine das Comunidades Nativas
Monte Salvado e Diamante atuam como intérpretes nos diálogos estabelecidos entre
grupos de “isolados” e agentes do Estado peruano, nos rios Las Piedras e alto Madre de
Dios. Tanto os Yine, como os Manxineru, afirmam que os Mashco são grupos ligados
aos seus ancestrais, em uma relação histórica de parentesco, aliança e intercâmbio entre
eles (Gow, 2011). Referem-se aos Mashco-Piro, em sua língua, com a palavra nomole,
que significa meu parente (Torres Espinoza, 2018: 97). Os relatos sobre sua existência e
modo de vida são fornecidos, sobretudo, por esses indígenas que vivem no entorno dos
seus territórios, e que narram sobre seus encontros, vestígios e caminhos na mata.
Os Mashco e seus vizinhos estão cada vez mais ameaçados pelas crescentes
pressões em seus territórios, como o avanço da exploração madeireira, do garimpo, da
exploração de gás e petróleo, do tráfico de drogas e dos projetos de estradas. Na pandemia
da Covid19, os povos dito isolados encontram-se ainda mais vulneráveis, existindo grave
risco de extermínio se medidas eficazes não forem implementadas para controlar a
presença de invasores e o desenvolvimento dessas atividades em suas áreas de uso e
deslocamento na fronteira internacional.
Nas Amazônia. existem hoje diversas iniciativas voltadas à proteção territorial e
à defesa dos direitos dos povos isolados desenvolvidas por comunidades indígenas
vizinhas aos seus territórios e suas organizações de representação. Tanto no Brasil, como
no Peru, algumas comunidades têm buscado seus próprios acordos e alianças para evitar
invasões em seus territórios e situações que possam resultar em contatos e confrontos
com esses povos. Suas estratégias, informadas pelas políticas indígenas e relações
históricas que mantêm com esses grupos, têm trazido soluções criativas para novos e
velhos desafios relacionados às pressões externas e às transformações nas dinâmicas
territoriais em áreas compartilhadas com povos isolados. Essas iniciativas constituem-se
em importantes contribuições para o aprimoramento das políticas públicas (Octavio el al,
2020: 371), como também se configuram em um campo fértil para o estudo sobre as
concepções e políticas indígenas em relação a esses povos na atualidade.
Assim, esta dissertação explora a perspectiva destas duas comunidades indígenas
vizinhas aos “isolados”, para revelar as motivações pelas quais seus moradores estão
15
empreendendo iniciativas voltadas à defesa das suas vidas e dos seus territórios. A partir
dos depoimentos de moradores e líderes Yine e Manxineru, apreendi suas histórias e
narrativas e suas estratégias e ações comunitárias. Neste caminho, surgiram algumas
perguntas: o que as representações indígenas sobre os povos isolados têm a dizer nas duas
comunidades? Quais são as relações nessa convivência indireta e intermitente? Quais são
as implicações dos seus encontros, trocas e conflitos? Porque estão realizando um
trabalho em defesa desses povos? E como as políticas indígenas afetam a política
indigenista?
Ao descrever e analisar as políticas que pautam as relações entre povos que
compartilham histórias, territórios e recursos, observei como o protagonismo dos povos
indígenas emerge nessas duas comunidades. Entre as reivindicações atuais dos Yine de
Monte Salvado, e dos Manxineru da aldeia Extrema, está o reconhecimento das suas
atuações como sujeitos políticos locais na proteção dos seus "parentes" isolados.
Considerados subalternos na política macro, os vizinhos dos Mashco são estratégicos na
luta pelos seus direitos, pois seus conhecimentos e ações impactam diretamente na
garantia dos seus territórios e modos de vida.
A discussão sobre processos atuais de mobilização política dos povos indígenas e
suas reivindicações de reconhecimento, autonomia e defesa territorial, em um contexto
de fronteiras internacionais amazônicas, nos leva a refletir sobre o papel estratégico das
comunidades indígenas e suas organizações de representação na construção de políticas
públicas multilaterais voltadas à proteção de povos indígenas que negam a se relacionar
com as sociedades nacionais, como também na intermediação entre esses dois “mundos”,
cada vez mais ameaçados entre os “limites” dos Estados.

16
1.1. Percurso e relevância da pesquisa

Escutei pela primeira vez sobre povos “aislados” quando me mudei de São Paulo
para a região da fronteira Brasil-Peru, onde vivo até hoje. Em julho de 2007, cheguei em
Puerto Maldonado, capital do departamento peruano Madre de Dios, a 228 quilômetros
da divisa entre os municípios de Iñapari, no Peru, e Assis Brasil, no estado brasileiro do
Acre. O lugar se tornou minha nova morada e a base para a produção de um filme,
realizado por mim quatro anos depois, sobre os impactos da construção da estrada
Interoceânica Sul2. “Povos sem comunicação com o resto do mundo vivem aqui perto, a
dois dias de barco subindo o rio Tahuamanu”, me contou José Honorato Pita, durante
uma entrevista para a pesquisa do documentário, em Ibéria, um vilarejo escolhido para
filiar um dos acampamentos da obra. O professor e líder comunitário quis me
impressionar com as histórias sobre os índios isolados da região, mas também me alertar
sobre os riscos que os Mashco-Piro corriam com a construção da estrada.
Desde então venho escrevendo sobre as ameaças e vulnerabilidades a que estão
expostos os povos isolados na fronteira Brasil-Peru. Além de ter produzido diversas
entrevistas, reportagens, artigos e documentários para veículos da imprensa brasileira e
internacional e para diversas publicações sobre o tema, passei a colaborar na produção e
sistematização de conteúdo para organizações indígenas e indigenistas e órgãos
governamentais de ambos os países, que atuam nesta região da Amazônia.
Durante os três anos que morei em Puerto Maldonado realizei inúmeras
entrevistas com os dirigentes da Federação Nativa do Rio Madre de Dios e Afluentes
(FENAMAD). Na época, seu presidente era Antônio Iviche Quique, liderança Harakmbut
e também coordenador do Comité Indígena Internacional para la Protección de los
Pueblos en Aislamiento y en Contacto Inicial de la Amazonía, el Gran Chaco y la Región
Oriental del Paraguay (CIPIACI). Antônio me concedeu uma entrevista sobre o tema, e
depois me convidou para uma viagem pelo alto rio Madre de Dios, acompanhando o
trabalho da FENAMAD em comunidades repletas de histórias sobre os Mashco-Piro.
Em 2010, mudei-me para Rio Branco, capital do Acre, e passei a colaborar para
Comissão Pró-Índio do Acre (atualmente faço parte do seu Conselho). Meu primeiro

2
O documentário “Me Voy”, lançado em 2011, aborda os impactos provocados pela construção da
rodovia Interoceânica, que une Brasil ao Peru, e a Amazônia aos Andes, através dos encontros da
documentarista com pessoas que vivem na região e que viajam pela estrada. Cada personagem do filme
enxerga a obra da sua maneira, mas todos compartilham o sentimento de terem suas vidas transformadas
com a chegada do asfalto. Disponível no endereço: https://vimeo.com/71538413
trabalho foi o registro audiovisual das “Oficinas de Informação e Sensibilização sobre
Povos Isolados” realizadas nas Terras Indígenas Kaxinawá do Rio Jordão e Seringal
Independência, em uma parceria entre CPI-Acre e FUNAI. Neste ano, também conheci
Lucas Artur Brasil Manchineri, liderança e professor da aldeia Extrema. Ele estava
iniciando seus estudos sobre os “parentes desconfiados”, conversando com o seu pai e
outros Manxineru mais velhos, mas também com seus parentes Yine do lado peruano da
fronteira. Eles lhe contavam como os "isolados" estavam cada vez mais se aproximando
da comunidade. Lucas me explicava que nesses encontros e diálogos, os conhecimentos
e práticas do seu povo são fundamentais para o trabalho de proteção dos “isolados”. Ao
longo dos anos, Lucas se tornou um porta-voz na defesa desses povos e, além de meu
amigo, o principal interlocutor desta pesquisa.
Assim, essas primeiras experiências sobre o tema foram ampliando o meu
entendimento sobre ao trabalho em defesa dos direitos dos povos isolados, considerando
não somente as obrigações dos Estados, mas também as relações e políticas entre povos
“isolados” e “contatados” que vivem no entorno dos seus territórios de uso e ocupação.
Como colaboradora da CPI-Acre, também tive a oportunidade de moderar e
registar reuniões e encontros cujo objetivo foi promover a consolidação de uma base de
dados binacional sobre as evidências de povos isolados na fronteira Brasil-Peru. Além de
espaços de troca de informações e experiências sobre seus territórios e ameaças, esses
encontros propiciaram que eu participasse de uma discussão sobre a necessidade de
estratégias e ações de proteção binacionais para a garantia dos direitos desses povos.
Destaco também minha partipação, em setembro de 2016, do planejamento e
realização de uma oficina na aldeia Betel, na Terra Indígena Mamoadate, no Brasil, onde
manxinerus e jaminawas, em uma aliança estratégica com lideranças indígenas peruanas,
formularam uma declaração se posicionando contrários à abertura de uma estrada
próxima à fronteira, ligando Puerto Esperanza à Iñapari, no Peru, e cortando ao meio a
área habitado pelos Mashco. Nesta oficina, pude vivenciar e registar um dos intercâmbios
entre os agentes de proteção Yine de Monte Salvado, no Peru, e os Manxineru da TI
Mamoadate, no Brasil.
Porém, um trabalho como consultora para a elaboração do “Diagnóstico de
caracterização das dinâmicas territoriais da população indígena isolada Mashco na

19
fronteira Brasil-Peru”3 foi determinante para o desenvolvimento desta pesquisa. O seu
objetivo foi qualificar informações sobre os territórios de ocupação e deslocamento
desses grupos isolados em território brasileiro, recomendando estratégias e ações para a
FUNAI, e subsidiando um plano de trabalho entre o órgão indigenista brasileiro e o
Ministério da Cultura do Peru.
Durante a elaboração do diagnóstico, realizei viagens à diferentes municípios da
região e às comunidades dos altos rios Acre e Chandless, além de entrevistas
semiestruturadas, conversas e encontros informais com cerca de 80 pessoas, entre
funcionários e ex-funcionários de órgãos públicos federais e estaduais, representantes de
organizações indígenas e da sociedade civil e com lideranças e moradores de
comunidades indígenas e ribeirinhas do entorno dos territórios habitados pelos Mashco.
Neste trabalho, além de realizar uma primeira revisão bibliográfica sobre o tema,
consegui reunir inúmeros depoimentos sobre suas rotas de deslocamento na fronteira,
como também informações sobre o contexto local e as dinâmicas socioeconômicas que
os afetam. O percurso deste trabalho técnico suscitou o desejo do seu aprofundamento
em uma análise mais teórica e crítica, transformando-o em um objeto de estudo
acadêmico, a partir de referências em estudos que tratam das relações interétnicas, da
perspectiva indígena sobre os fatos e efeitos do contato com o branco, e dos processos
atuais de mobilização política dos povos indígenas.
Já ingressada no curso deste Mestrado, viajei com Lucas e outras lideranças
Manxineru dos altos rios Iaco e Acre para participar do “Primero Encontro Yine”,
realizado na Comunidade Nativa Santa Teresita, no baixo rio Las Piedras, no Peru. Nessa
assembleia, pude realizar diversas entrevistas com moradores de Monte Salvado e de
outras comunidades Yine, vizinhas aos territórios dos Mashco. Não posso deixar de
mencionar que nem todo o material coletado no encontro pode ser aproveitado nesta
pesquisa, ficando como indicativo para futuros estudos e publicações.
Também iniciei o processo de consulta e autorização para o trabalho de campo
nas duas comunidades em estudo, porém, diante da pandemia da Covid-19, e da
consequente impossibilidade de realizar viagens de campo, tive que abandonar minha
ideia inicial de visitar a aldeia Extrema, e depois Monte Salvado na companhia de Lucas

3
Consultoria realizada entre abril de 2017 e setembro de 2018, no âmbito do Projeto “Proteção
Etnoambiental de Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato na Amazônia Brasileira”, em uma
cooperação técnica entre CTI e FUNAI.
20
Manchineri. Meu desafio metodológico então foi delimitar todo o meu material empírico
acumulado ao longo da minha experiência profissional nos últimos 14 anos.
Assim, nesta pesquisa me aprofundei no campo intersocietário ou relacional de
uma população indígena “isolada” respeitando, antes de tudo, os princípios éticos e as
diretrizes da política do “não-contato”4, e lançando mão de uma abordagem a partir do
ponto de vista dos povos indígenas vizinhos aos grupos isolados Mashco.
Primeiro, revisei a bibliografia localizando historicamente e etnograficamente as
populações Mashco e Mashco-Piro, Yine e Manxineru, a partir da literatura histórica,
documental e antropológica produzida. Foram analisados documentos de expedições dos
primeiros exploradores desta região da fronteira Brasil-Peru, além de publicações de
missionários dominicanos que atuavam na região de Madre de Dios, no Peru. Também
foram consultadas monografias, dissertações, teses e artigos que tratam sobre os povos
indígenas dessa região amazônica, e uma bibliografia mais especifica sobre os povos
isolados e sobre os Mashco-Piro, produzida sobretudo por pesquisadores que atuam na
Amazônia peruana.
Publicações e relatórios de antropólogos, indigenistas e sertanistas brasileiros, que
atuam há décadas em organizações governamentais e da sociedade civil do Acre, e que
abordam questões relativas às dinâmicas territoriais e vulnerabilidades dos povos isolados
na fronteira, também foram revisados. Consultei ainda produções de autores indígenas
significativas sobre o tema, além de manifestos e documentos políticos produzidos em
reuniões, encontros e assembleias indígenas, que trazem informações sobre acordos e
estratégias comunitárias, bem como suas reivindicações perante as políticas dos Estados.
Muitos desses documentos e publicações ainda não tinham sido objeto de estudo
acadêmico.
Diversos mapas que demonstram a ocupação e o deslocamento das populações
indígenas isoladas na região, elaborados por organizações indígenas e indigenistas
também foram consultados, além dos diversos registros em foto e vídeo que mostram a
interação entre os Mashco-Piro e diferentes agentes externos nos rios Madre de Dios e

4
No Brasil, por meio da Portaria nº 1.900/87, que estabelece as diretrizes para a atuação da então
Coordenadoria de Índios Isolados da FUNAI, e da Portaria Nº 1.901/87, que estabelece o Sistema de
Proteção ao Índio Isolado e seus subsistemas de localização, vigilância e contato, ficou instituído que o
contato só poderia ser feito por iniciativa do próprio grupo “isolado” ou quando estes estivessem em
situação de risco iminente. Estabeleceu-se, assim, uma nova política do “não-contato” e do respeito à
autodeterminação desses povos, norteada pela Constituição Federal de 1988. Esse tema será abordado mais
adiante da dissertação.

21
Las Piedras, no Peru. Essas imagens foram amplamente divulgadas nas redes sociais e
mídias nacionais e estão disponíveis na internet desde 2012.
Neste período do mestrado (2019-2021), também realizei inúmeras conversas por
telefone com os moradores da aldeia Extrema, bem como trocas de mensagens pelas redes
sociais com os agentes de proteção de Monte Salvado. Vale ressaltar que as entrevistas e
conversas que realizei ao longo desses anos com diversos indígenas que vivem no entorno
dos povos isolados foram pautadas a investigar suas histórias e relações com esses povos
e suas concepções sobre eles. Neste percurso, pude acompanhar e registrar as trajetórias
de alguns líderes mobilizados em alianças em prol desses povos em suas comunidades.
Diante da relevância, mas também da invisilidade dos seus conhecimentos e iniciativas,
me senti motivada a realizar esta pesquisa, com o intuito de contribuir também para os
estudos sobre as perspectivas e políticas indígenas em relação aos povos “isolados”.
Existe uma extensa bibliografia sobre o contato interétnico entre povos indígenas
e sociedades nacionais, e suas relações de assimetria, dependência e autonomia, e também
sobre as perspectivas indígenas sobre esse processo. Mais recentemente encontramos
pesquisas que abordam especificamente a relação entre povos indígenas contatados e seus
vizinhos em isolamento. Assim, existe um campo de estudo a ser explorado que diz
respeito ao significado que esses grupos sem contato com o branco têm para os povos
indígenas que residem em seu entorno, bem como às implicações das relações e políticas
nessa convivência indireta e intermitente.
No Brasil, a produção bibliográfica acerca das populações indígenas isoladas, e
suas ameaças e vulnerabilidades, vem sendo produzida, sobretudo, por antropólogos e
indigenistas que fazem e/ou fizeram parte do quadro de servidores da FUNAI e/ou que
atuam em organizações da sociedade civil que apoiam a luta pelos direitos desses povos,
gerando um conhecimento qualificado para garantir a realização de ações para protegê-
los (Aquino e Iglesias, 1996; Azanha e Octavio, 2009; Nascimento, 2011; Vaz, 2011 e
2019; Amorim e Yamada, 2016; Alves, 2019; Gangussu, 2021; Almeida, 2021).
Nos últimos anos, o tema vem sendo cada vez mais debatido em seminários e
simpósios de universidades do Brasil e Peru, reunindo pesquisadores, representantes de
ONGs, lideranças indígenas, técnicos e servidores de governos, e outros interessados. À
medida que setores acadêmicos, governamentais e da sociedade civil e organizações
indígenas promovem fóruns temáticos, suas reflexões contribuem para um debate teórico
sobre a história e realidade desses povos.

22
Nesse contexto de engajamento, mobilização, debate e produção foram lançadas
publicações mais recentes5 reunindo estudos e artigos de indígenas e não indígenas das
mais diversas áreas de atuação profissional (antropólogos, linguistas, indigenistas,
jornalistas etc.), para apresentar um panorama atual dos contextos enfrentado por esses
povos, e destacando o aumento das invasões de madeireiros, garimpeiros, pecuaristas,
grileiros e posseiros nas áreas onde há registros da presença de povos e grupos isolados.
O tema vem chamando a atenção da opinião pública e ampliando cada vez mais o campo
de debate para outras áreas da Ciência, como Geografia (Gallo, 2016), Comunicação
(Alvarenga, 2017), Relações Internacionais (Silva, 2017) e Linguística (Falchi, 2019), e
que até então estava restrito às discussões mais clássicas da Antropologia e do
Indigenismo.

1.2. Estrutura da dissertação

Esta dissertação é composta por três capítulos. No capítulo intitulado “Panorama


etnohistórico”, contextualizo a pesquisa, revisando a literatura sobre os processos de
configuração dos conjuntos étnicos denominados como Mashco ou Mashco-Piro, Yine
ou Piro, e Manxineru ou Manchineri, e trazendo as dinâmicas econômicas, sociais e
políticas convergentes nessa região, ao longo da história de colonização e exploração da
Amazônia. Este caminho foi escolhido para possibilitar a reflexão sobre os possíveis
sentidos etnológicos da situação de "isolamento” de populações indígenas.
Assim, apresento a literatura produzida por diferentes viajantes, exploradores,
cronistas, missionários e científicos sobre a ocupação desta região nos últimos séculos, e
a profusão de nomes equivocados que foram sendo produzidos com a chegada dos
europeus para se referir às populações nativas e, especialmente, àquelas que se opunham
a se integrar nas novas dinâmicas econômicas, sociais e políticas. O boom da extração da
borracha, na virada dos séculos XIX e XX, ganha destaque para revelar os seus efeitos
para os povos indígenas e para as populações ditas hoje "isoladas". Ao descrever com
detalhes o massacre dos Mashco no rio Manu, no Peru, tento explicar as possíveis causas
do seu "isolamento".

5
“Cercos e Resistências: Povos Indígenas Isolados na Amazônia” (Instituto Socioambiental, 2019) e
“Proteção e Isolamento em Perspectiva – Experiências do Projeto de Proteção Etnoambiental de Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato na Amazônia (Centro de Trabalho Indigenista, 2020)
23
Neste capítulo, explico ainda como esse acontecimento, e diversos outros ao longo
da história de invasão dos seus territórios, determinaram o retiro de populações indígenas
emparentadas com os Yine e outros povos que se relacionavam, às regiões de difícil
acesso, após experiências traumáticas do seu povo, e como uma “estratégia de
sobrevivência”. Com este panorama, pude ainda apresentar os yines e manxinerus como
os seus principais interlocutores na atualidade, pois além de falarem a mesma língua
Arawak, compartilham territórios, recursos e relações históricas de parentesco, aliança e
intercâmbio com esses “isolados”.
No capítulo “Relações, estratégias e conhecimentos”, priorizo a história contada
pelos povos indígenas, explorando os relatos dos moradores e líderes das comunidades
Yine e Manxineru sobre os seus vizinhos “isolados”, e suas memórias e narrativas do
contato com o branco. Coloco em primeiro plano o ponto de vista das populações que
vivem no seu entorno e que mantêm relações intermitentes com os Mashco. Ao trazer as
suas perspectivas e estratégias, analiso como e porquê estão propondo outros nomes e
conceitos para se referir aos povos “isolados”. Ao apreender as relações entre povos
"isolados" e seus vizinhos "contatados", busco revelar os conhecimentos, práticas e
políticas produzidas a partir das concepções e narrativas indígenas sobre essas populações
que se negam a interagir com as sociedades nacionais.
Neste capítulo, também descrevo a história de fundação das duas comunidades no
século XX, e suas interações com os grupos “isolados”, mas também com vários atores
locais, como outras comunidades e organizações indígenas e instituições governamentais
e da sociedade civil, trazendo o contexto do início da atuação indigenista nos rios Iaco,
no Brasil, e no rio Las Piedras, no Peru. Em uma conjuntura marcada por diversos
processos que convergiram para uma maior abertura política para os povos indígenas nos
dois países, trago ainda as primeiras discussões sobre a situação de risco e vulnerabilidade
dos povos sem “contato”, e a falência do modelo da “atração” como forma de integração
dos povos indígenas à sociedade nacional.
Destaco ainda o protagonismo da organização indígena peruana FENAMAD, no
trabalho em defesa dos direitos territoriais e do modo de vida dos povos isolados. Sua
mobilização contra as atividades madeireiras no Peru, iniciada no final da década de 1990,
e sua iniciativa em promover intercâmbio e colaboração com organizações indigenistas e
indígenas brasileiras, evidenciou o caráter transfronteiriço dos Mashco e a necessidade
de políticas específicas para a sua proteção.

24
No último capítulo denominado “Políticas indígenas transfronteiriças”, adentro no
processo de construção de uma aliança estratégica entre os Yine de Monte Salvado, e os
Manxineru da aldeia Extrema, explorando a sua subjetividade política, a partir da
descrição de diversos acontecimentos ocorridos nas duas comunidades na última década:
aproximações dos isolados em suas aldeias, com algumas situações de encontros e
diálogos, além de reuniões, encontros e intercâmbios de debate e posicionamento público
sobre as ameaças em seus territórios na fronteira internacional. Apresento também as
trajetórias de lideranças, intérpretes, pesquisadores e agentes de proteção indígenas das
duas comunidades. A partir dos seus conhecimentos e práticas, eles atuam, não somente
como porta-vozes e interlocutores-chaves dos povos indígenas isolados, mas também
como agentes qualificados no trabalho de identificação e comprovação da sua existência.
Neste último capítulo, abordo ainda o papel dos povos indígenas e suas
organizações na proposição de espaços de debate, formação e articulação política sobre
o tema a nível regional e binacional, além de iniciativas construídas a partir das suas
cosmovisões, experiências e estudos. Assim, evidencio o protagonismo político de
comunidades indígenas da região da fronteira Brasil-Peru na construção de estratégias e
ações para a promoção dos direitos dos povos indígenas isolados na atualidade.

1.3. Algumas terminologias e conceitos

Os termos “isolado” (“aislados” em espanhol), “isolamento voluntário” e “recente


contato”, usados pelas políticas públicas no Brasil e no Peru, e em outros países da
América do Sul, não representam plenamente as complexas e distintas estratégias dos
povos assim classificados. Atualmente, existe um consenso entre indígenas, indigenistas,
antropólogos e estudiosos do tema sobre a insuficiência e inadequação dessas categorias
para designar grupos ou indivíduos amalgamados por processos que os tornam peculiares.
A discussão engloba questões relativas à impossibilidade de existir sociedades humanas
que nunca estabeleceram relações. A reflexão aponta a necessidade de se agregar à
discussão parâmetros que relativizem a situação de “isolamento” (Vaz, 2011:17).
Para Lévi-Strauss, as sociedades humanas jamais se encontram sós; quando
parecem mais separadas, ainda o é sob formas de feixes. Muitos costumes nascem, não
de qualquer necessidade interna ou acidente favorável, mas apenas da vontade de não
permanecerem atrasados em relação a um grupo vizinho que submetia a um uso preciso
25
um domínio em que nem sequer havia sonhado. A diversidade de culturas humanas não
nos deve induzir a uma visão fragmentária ou fragmentada. Ela é menos em função do
isolamento que das relações que os unem (1993 [1952]: 332-333).
Gallois (1994: 121-122) trouxe para o debate alguns dos impasses conceituais e
ambiguidades nos quais a política estatal brasileira para povos isolados e de recente
contato enfrenta, e questões referentes aos preconceitos associados à situação de
isolamento e sua perenidade no discurso protecionista - oficial ou não. A antropóloga
explicou que praticamente todos os grupos indígenas que vivem hoje, independentes da
relação de dominação que nossa sociedade lhes reserva, não apenas mantêm, mas
reconstroem continuamente sua posição de isolamento, a partir de experiências anteriores
de contato, direto ou indireto. Essas situações devem ser analisadas à luz de múltiplos
fatores - internos e externos - que podem explicar a opção pelo isolamento de um povo:
a história própria do grupo e de suas relações com outros povos indígenas, a história das
frentes de ocupação e os condicionantes geográficos que, de modo articulado ou não,
garantiram a continuidade desta situação.
Dessa forma, as terminologias oficiais aplicadas para caracterizar e denominar
essas populações indígenas apresentam uma visão simplista e não refletem as realidades
desses povos que, em sua maioria, são segmentos remanescentes destes que, como
consequência dos processos regionais, assumiram o isolamento como um tipo de
relacionamento com o entorno (Huertas, 2002; Amorim e Yamada, 2018). Assim, não
devem ser vistas ou usadas para encobrir as complexas relações de contato e rejeição que
esses povos estabelecem com as populações vizinhas (Octavio e Azanha 2009).
Portanto, diante do exposto, estou ciente que o termo “isolado” é pouco descritivo
dos processos de convivência dos povos e grupos referidos, mas será usado nesta
dissertação como uma categoria operacional usada pelo indigenismo e pelos indígenas
em sua política interétnica. O mesmo vale para o termo Mashco que, apesar de
problemático e provisório, por hora confere reconhecimento político para este povo.
Como explica o professor e pesquisador Gersem José dos Santos Luciano (2006),
do povo Baniwa, o uso de categorias nas relações intra e interétnicas, além de outros
termos e conceitos dos próprios indígenas, nos ajuda entender as novas formas de relações
sociais, políticas e econômicas dos povos indígenas. Assim, somando-se ao esforço de
contribuir para a superação das confusões mais gerais, o que se pretende a seguir é
relativizar as denominações e interpretações muitas vezes tomadas como absolutas.

26
2. Panorama etnohistórico

A fronteira entre Brasil e Peru abriga atualmente a maior diversidade de


populações indígenas que vivem de forma autônoma, evitando por gerações o contato
sistemático com as sociedades ocidentais. Entre elas, estão os Mashco ou Mashco-Piro,
como foram sendo denominados ao longo dos processos de colonização e exploração dos
recursos naturais desta região amazônica nos últimos cinco séculos. A invasão europeia
do continente americano não somente perpetrou o maior genocídio6 da história da
humanidade como também destruiu sistemas sociais indígenas que de forma alguma
estavam isolados. “No início do século XVI, os índios da América estão ali, bem
presentes” (Todorov, 1993: 4-5), compondo populosas e múltiplas sociedades, e
articulando local e regionalmente relações de comércio, guerra, alianças e influências
(Fausto, 2000: 8).
Evidências fornecidas pela arqueologia, linguística histórica, etnohistória e
etnologia indicam a existência de vastas e intensas redes de intercâmbio que conectavam
povos da Amazônia e habitantes das terras baixas e dos Andes (Lathrap, 1970; Renard-
Casevitz, 1992). Às vésperas da colonização, havia uma configuração étnica e cultural
diferente da atual. Taylor (1992: 216) explica que a "homogeneização" promovida com a
chegada do europeu provocou um duplo e paradoxal movimento entre os povos
originários: perda da diversidade cultural e acentuação das microdiferenças que definem
a identidade étnica. Na interpretação de Cunha (1992: 12) é provável que as unidades
sociais que conhecemos hoje sejam o resultado de um processo de “atomização”, e de
reagrupamentos de grupos linguisticamente diversos em unidades, ao mesmo tempo,
culturalmente semelhantes e etnicamente diversas. Epidemias, massacres e escravização
exterminaram populações inteiras e esgarçaram até quase por completo as redes
interétnicas pré-existentes, isolando seus componentes (Viveiros de Castro, 2019: 10). O
encontro entre “Antigo” e “Novo” Mundo gerou a criação de uma nova fronteira, a partir

6
O termo “genocídio” veio à luz pela primeira vez em 1943, quando foi publicada a obra “Axis Rule in
Occupied Europe: Laws of Occupation, Analysis of Government, Proposals for Redress”. No volume, o o
advogado polonês Raphael Lemkin analisa o processo da ocupação nazista sobre o continente europeu,
examinando centenas de documentos e evidenciando as intenções da Alemanha do III Reich não como
políticas de guerra, mas de extermínio (Palmquist, 2018: 40-41). “Se a palavra genocídio foi alguma vez
aplicada com precisão a um caso, então é esse. É um recorde, parece-me, não somente em termos relativos
(uma destruição da ordem de 90% e mais), mas também absolutos, já que estamos falando de uma
diminuição da população estimada em 70 milhões de seres humanos. Nenhum dos grandes massacres do
século XX pode comparar-se a esta hecatombe” (Todorov, 1993: 74).
27
da guerra dos “civilizados” contra os nativos, modificando profundamente as antigas
fronteiras territoriais, políticas e socioculturais que separavam os povos (Valcuende,
2009: 28-30).
Durante séculos a Amazônia ficou à margem da história colonial. As narrativas
dos viajantes pioneiros formaram as primeiras representações da região sob a ótica
estrangeira: O “El dorado”, com seus tesouros e paisagens exuberantes, ou o “Inferno
verde”, repleto de enfermidades e animais peçonhentos. Um lugar cheio de obstáculos ao
desenvolvimento, onde não chegavam as atividades mineradoras, nem os monocultivos
escravagistas. Foi sem dúvida a “nova” economia extrativista da borracha, na virada dos
séculos XIX e XX - impulsionada pela lógica econômica-capitalista da época (Valcuende,
2009: 55), e pela audácia insana de homens, cuja aventura foi “entremeada de violências
e atrocidades sobre os corpos dos índios”, que instalou “em seus piores excessos uma
modernidade ocidental nos confins mais remotos da Amazônia” (Renard-Casevitz,
1992:197)7.
A dinâmica da ocupação do branco na Amazônia Sul Ocidental, e na região de
interflúvio dos grandes rios Madre de Dios/Madeira, Purus, Juruá e Ucayali, foi
especialmente aguda no boom da extração do látex, e suas consequências para os povos
indígenas são evidentes até a atualidade. Para muitos autores, os efeitos foram ainda mais
drásticos para as populações ditas hoje "isoladas" ou em “isolamento voluntário”. Ao se
refugiarem nas regiões de difícil acesso da floresta, nas cabeceiras de igarapés e rios onde
não havia borracha, aspectos da sua vida social e fundamentos cosmológicos da sua
economia foram severamente abalados (Shepard, 1996 e 2017; Huertas, 2002 e 2015;
Gow, 2011, Viveiros de Castro, 2019).
Assim, antes de dissertar sobre as estratégias e políticas indígenas atuais, frente às
sucessivas invasões de seus territórios, cabe aqui adensar sobre o contexto histórico e
etnográfico, revisando a literatura sobre os processos de configuração dos conjuntos
étnicos denominados atualmente como Mashco ou Mashco-Piro, Yine ou Piro8, e
Manxineru ou Manchineri, bem como sobre as dinâmicas econômicas, sociais e políticas
convergentes nessa região de fronteiras internacionais da Amazônia. Nesse percurso
etnohistórico, é possível refletir sobre os sentidos etnológicos possíveis da situação de

7
O rio Madre de Dios nasce nos Andes e une-se ao Beni, na Bolívia, dando origem ao Mamoré que, em
território brasileiro, recebe o nome de Madeira, grande tributário do Amazonas (Pando, 2014: 60).
8
Designação histórica e pejorativa das populações que hoje se autodenominam Yine. O etnônimo será
reproduzido aqui somente quando aparecer no texto dos autores citados.
28
"isolamento” de populações indígenas na floresta, observando que as estratégias dos
Mashco, podem ser traduzidas como “estratégias de relacionamento" (Amorim e
Yamada: 2018), que se originam a partir da gestão consciente e seletiva das relações com
o outro, e após a sua opção por não sucumbir à guerra e à escravidão. Uma expressão da
sua autodeterminação.

2.1. Antes da invasão na América

Os relatos de diferentes viajantes, exploradores, cronistas, missionários e


pesquisadores, ao longo dos processos de ocupação da Amazônia entre as fronteiras de
Brasil e Peru nos últimos séculos, mencionam que suas populações originárias eram
formadas por diversos povos, em sua maioria de filiação linguística-cultural Arawak e
Pano. Os grupos Arawak-falantes (dos quais os atuais Yine, Manxineru e Mashco-Piro
são parte) ocupavam principalmente a bacia do rio Purus, e os de filiação linguística Pano
se distribuíam majoritariamente pela bacia do rio Juruá. Entretanto, essa distribuição não
era tão uniforme assim, e se insere numa dinâmica histórica milenar de deslocamentos,
aproximações e afastamentos agudizando-se na época do boom da borracha e que se
processa ainda hoje (Arruda, 2010: 27). Apesar desta pesquisa se concentrar na região do
alto rio Iaco, afluente do Purus, e no alto rio Las Piedras, afluente do Madre de Dios, é
importante revisarmos as fontes que tratam sobre a história das sociedades humanas em
seu entorno maior, reconstruindo minimamente a antiga paisagem étnica do lugar, antes
da invasão dos europeus na América.
Em publicação recente, o antropólogo Thomas Moore fez uma rigorosa revisão
das pesquisas de diversas disciplinas que tratam sobre a antiguidade na Amazônia Sul
Ocidental. Através de estudos da arqueologia, linguística histórica, etnohistória e
etnologia, seu objetivo foi examinar as relações entre as antigas populações da bacia do
Madre de Dios, especialmente em suas terras baixas - região pouco estudada pelos
arqueólogos -, e outros povos amazônicos e andinos mais próximos. A partir da análise
de pesquisas realizadas em 2012 por paleoecologistas, sabe-se que existiam populações
humanas que cultivavam milho e mandioca há pelo menos 4.000 anos (2020: 26)9.

9
Para Moore, também há muitos indícios de que os Harakbut seriam as populações mais antigas da bacia
do rio Madre de Dios (2020: 74).
29
A região da Amazônia peruana melhor documentada, e que se constitui como a
principal referência sobre a sua pré-história amazônica, é a bacia do rio Ucayali, vizinha
às do Purus e Madre de Dios. Ali, o arqueólogo norte-americano Donald Lathrap (1970)
realizou escavações que fundamentaram teorias sobre ondas migratórias de grandes
grupos linguísticos na planície amazônica. A partir da combinação de dados
arqueológicos com informação derivada da linguística histórica e comparativa, propôs
migrações de Arawak-falantes desde o Amazonas central rumo ao rio Ucayali há cerca
de 3.000 anos, assim como de Pano-falantes há 1.200 anos. Ainda que suas pesquisas
sobre migrações humanas na Amazônia sejam atualmente contestadas, a presença dos
proto-Arawak no médio e alto Ucayali está comprovada há 4,5 mil anos, pelo menos.
Seus estudos apontaram ainda a existência de vastas redes de intercâmbios entre grupos
amazônicos e andinos.
Para Moore (2020: 36-38), a relação entre os povos que habitavam as bacias do
Ucayali e do Madre de Dios, provavelmente, limitava-se a movimentos de grupos de elite
que se dedicavam à troca de bens de prestígio entre eles. Aparentemente, a rota de
interação entre o Ucayali e o resto do sudoeste da Amazônia foi ao longo do rio Purus e
também pelo rio Las Piedras. Citando vários autores, afirma que, ao menos, partes da
bacia do Madre de Dios foram ocupadas por diversos povos de organização
socioeconômica simples e igualitária, enquanto o rio Purus, e áreas como o Acre10 e os
Llanos de Mojos11, incluíam sociedades humanas com densas populações e organizadas
de forma mais complexa e desigual (ibid: 74). Segundo a hipótese de Moore:

Entre aproximadamente 1000 y 1300 d.C., después del colapso de Tiwanaku y la


cultura poderosa de los Llanos de Mojos, otra avanzada de intercambio habría
penetrado a la cuenca de Madre de Dios desde los Llanos de Mojos y del Acre en
Brasil, al mismo tiempo que pueblos Tupí - o posiblemente Arawak-hablantes -
consolidaron su presencia más al norte entre Brasil y la cuenca del Ucayali por el
río Purús, formando así otra cuña entre los pueblos proyectados como de habla
Pano, con los Pano del suroriente separados de los del Ucayali y el noroeste de

10
Nas bacias do Acre e do Alto Purus, no Brasil, estudos recentes de Pärssinen, Denise Schaan e Alceu
Ranzi documentam 281 montes de terra em formas geométricas, que eles chamam de geoglifos e que
mostram a presença de sociedades complexas com algum nível de estratificação social e ocupação entre 1
e 1300 D.C., com uma população de aproximadamente 100.000 pessoas (Moore, 2020: 42).
11
As “paisagens domesticadas” dos Llanos de Mojos têm sido o foco de extensas pesquisas e discussões
nas últimas décadas. Ficou claramente demonstrado que os habitantes de uma vasta área de savana inundada
no norte da Bolívia transformaram a paisagem com a construção de um conjunto de obras complexas que
permitiram uma grande concentração de população em uma área muito extensa, e indicando uma sociedade
com pelo menos os primórdios de estratificação social e do poder centralizado que poderia mobilizá-la
(Moore, 2020: 40).
30
Brasil. Los pueblos Arawak-hablantes, ancestros de los Yine, Iñapari, Manchineri
y Mashko-Piro, habrían ocupado espacios en el alto Beni, colindantes con los
Pukina en Carabaya y los Kallawaya, además de los ríos Madre de Dios, Manu y
Las Piedras. (ibid: 75).

Essas rotas interfluviais poderiam ter sido usadas por milênios por povos
supostamente associados às famílias linguísticas Arawak, Pano e Tupi, que assumiram
em diferentes momentos históricos, o papel de liderança na articulação das redes de
intercâmbio. Essa dinâmica passou por momentos diversos até a chegada dos brancos,
cuja influência marcante na ocupação da região determinou gradativamente a atual
condição e a localização dos povos indígenas na atualidade (Moore, 2020; Arruda, 2010).

2.2. Redes de intercâmbio e zona de refúgio

A existência de conexões entre as populações da Amazônia e dos Andes nos


tempos pré-colombinos vem sendo estudada por pesquisadores de diversas disciplinas ao
longo das últimas décadas. Já temos evidências que, desde o Horizonte Chavín (1.300 a
600 a.C)12 até o Império Inca no século XV, existiam diferentes formas de interação e
influências mútuas entre grupos amazônicos e andinos (Pimenta, 2020; 1-2)13
A antropóloga e etno-historiadora francesa Marie-France Renard-Casevitz explica
que a fronteira entre terras altas e baixas envolvia três conjuntos regionais: os andinos, os
Arawak e, a leste, os Pano das margens do Ucayali que vinham a ela comerciar ou auxiliar
os Arawak a defendê-la. As fronteiras amazônicas entre os Arawak e Pano continham
várias sobreposições criadas por sistemas de integração comercial, política e matrimonial
que iam progressivamente unindo todos os componentes do conjunto Arawak, e alguns
deles a seus vizinhos Pano. O território dos Arawak sub-andinos14 era fronteiriço ao
centro do Império Inca, de tal modo que esses grupos atuavam como intermediários entre

12
O arqueólogo e antropólogo peruano Julio C. Tello (1923) foi o pioneiro em propor um vínculo entre
Andes e Amazônia através do estudo da iconografia amazônica na cultura Chavín de Huantar. Ao estudar
o fenômeno religioso em relação a Wiracocha, o autor demonstrou que o personagem representado pela
Estela de Raimondi era uma onça amazônica. O pesquisador encontrou a explicação para esta relação nos
mitos cosmogônicos de diferentes povos da Amazônia (Paucar, 2013: 23-24).
13
Trabalho apresentado na 32 Reunião Brasileira de Antropologia (2020)
14
Embora não exista consenso entre acadêmicos, os Arawak sub-andinos reagrupam, geralmente, os
Ashaninka, Matsiguenga, Nomatsiguenga, Yanesha, Piro (Yine) e alguns povos menores. e os Piro (Yine)
ocupam uma posição marginal no conjunto (Pimenta, 2020:3).
31
os Andes e a Amazônia. A área Pano nas terras baixas era composta por grupos
ribeirinhos que, junto com os Arawak, formavam um sistema de produção de objetos que
circulavam por redes de comércio e cooperação (1998: 202-203).
Santos-Granero (1992: 8-9) também escreveu sobre as vastas redes de intercâmbio
e comércio indígena na Amazônia, antes e depois da conquista europeia, e também sobre
as relações entre povos amazônicos e andinos. Ele explica que existem evidências
arqueológicas suficientes para confirmar que essas redes de troca são muito antigas na
Amazônia. A descoberta de restos de machados de pedra em áreas onde não existem a
matéria-prima para sua fabricação, como nos assentamentos ribeirinhos de Ucayali,
indicam que existiam ligações comerciais entre as etnias ribeirinhas e os habitantes das
áreas interfluviais. Além disso, machados de cobre encontrados em diferentes pontos do
alto e médio Ucayali constituem outra evidência da existência de redes de intercâmbio
que ligavam as regiões andinas e a selva peruana desde os tempos do Império Wari (600
a 1200 d.C).
O antropólogo peruano destaca ainda o papel dos Yine (Piro) e dos Conibo, (povo
de filiação linguística Pano) como articuladores das redes de troca ao longo do alto
Ucayali e do baixo Urubamba, durante os períodos pré e pós-colonial. Quando os
primeiros espanhóis entraram nesta região, na segunda metade do século XVI,
encontraram dois povos distintos e belicosos vivendo em grandes assentamentos sob o
domínio de poderosos líderes guerreiros. Quando os missionários franciscanos e jesuítas
iniciaram suas atividades na região, na segunda metade do século XVII, os Conibo e os
Piro monopolizavam o comércio ao longo do eixo Ucayali-Urubamba (Santos-Granero e
Ozorio de Almeida, 2020 [2002]: 139)
Para o missionário dominicano Ricardo Álvarez Lobo, que produziu ao longo de
décadas diversos escritos em torno da etnografia Yine (Piro), “os dados mais positivos
sobre as relações entre os Nativos da Selva e os Incas são obtidos nas tradições orais dos
Piro e dos Campas”15. Seus relatos testemunham a existência de uma organização social,
política e econômica que unia os povos amazônicos entre si e com o Império Inca, e que
funcionava por meio do intercâmbio de diversos objetos (2016 [1980]: 63-66). Os Piro
trocavam objetos com indígenas de diferentes grupos linguísticos. Esses produtos eram

15
Termo muito utilizado por missionários, cronistas, funcionários governamentais, historiadores e
antropólogos até a década de 1980 para designar diferentes grupos Arawak dessa região que se
assemelhavam pelo idioma, adereços, vestimenta, ou simplesmente pelo modo de vida. Em função dos
autores, o termo pode se referir ao povo Ashaninka de forma genérica, a alguns Arawak subandinos em
específico ou até ao conjunto etnolinguístico como um todo (Pimenta, 2018: 181).
32
levados para as colinas de intercâmbio da Ceja de Selva para serem trocados com os
povos andinos, como a sociedade Inca. Da Cordilheira dos Andes, outros objetos
baixavam por estrada e rio para serem trocados no alto rio Ucayali. Desta forma, o
intercâmbio com os Incas colocava em movimento diferentes chefias de povos e
combinava as relações econômicas com as sociais e políticas dentro dos povoados dos
rios por onde se realizavam (Ibid: 68-69)16.
Um desses produtos que articulavam uma vasta rede de trocas de povos indígenas,
andinos e amazônicos, eram os blocos de sal procedentes do Cerro de la Sal17, e que
serviam como referência monetária no comércio inter-amazônico e, parcialmente, no
comércio com os povos andinos (Pimenta, 2020). Nas mãos dos Amuesha e Campa desde
os séculos XVI ao XX e certamente antes, o lugar foi um importante centro de
intercâmbio e relações interétnicas pré-colombianas na Amazônia peruana, onde
compareciam povos das bacias do Ucayali, Urubamba e Apurímac para intercambiar sal
e outras mercadorias (Casevitz, Saignes e Taylor, 1998: 61). Através de seu destacado
papel nas redes comerciais no rio Urubamba, formador do Ucayali, os Piro chegaram a
controlar as principais vias de acesso ao Cerro pelo rio, bem como os acessos secundários
à mina de sal pelos varadouros (Matos, 2018: 285).
Moore afirma que, apesar de existirem evidências abundantes de trocas entre os
Incas e os povos da bacia do Madre de Dios, ao menos na época colonial e até o século
XX, nem povos, nem territórios aparecem nessas redes de intercâmbios (2020:73).
Emprestando o conceito de Gonzalo Aguirre Beltrán (1967), classificou a bacia do Madre
de Dios, no Peru, com a sua vizinha Beni, na Bolívia, como área de "refúgio de povos
originários", por seu isolamento do resto da Amazônia e dos Andes por barreiras
geográficas, e pela incapacidade das sociedades externas de dominar esse espaço, ao
menos durante os períodos colonial e republicano, e possivelmente antes (Ibid: 25-26).

16
Segundo Hassel (1905), os Piros viviam no Alto Urubamba e tinham relações com os Incas antes da
chegada dos espanhóis. Lá ajudaram os incas a construir a fortaleza de Tonquini, onde existia um sítio que
costumavam chamar de Ayahuanca com muitas múmias, e uma pedra que escondia o tesouro dos Incas.
17
O Cerro de Sal é uma montanha que está localizada no distrito de Villa Rica da província de Oxapampa
no departamento de Pasco, no Peru. Nos documentos históricos aparecem diversos relatos sobre o lugar,
como este a seguir: “Este Cerro de la Sal es muy famoso por el grande concurso de indios infieles, que de
las naciones más remotas de la montaña acuden á él por sal; porque como dentro de la montaña no hay
salinas, les es forzoso venir á este cerro á buscarla, los unos para su uso y consumo, y otros para comerciar
con ella otras cosas que necesitan de las otras naciones; siendo tan varias las que suben á este cerro por la
comodidad que tienen de muchos ríos navegables, que algunas tardan dos meses en llegar á este cerro, cuyo
temperamento es muy templado porque aunque es montaña real, el; calor es moderado por la elevación del
cerro y su cercanía a la Cordillera. Está habitado de indios Amagas, y de algunos de las otras naciones que
se quedan en él cuando suben por sal” (Amich, 2012 [1854]: 19).
33
Para o antropólogo, por milhares de anos os habitantes das terras baixas da bacia
do Madre de Dios não teriam se submetido ao domínio de sociedades complexas com
participação apenas indireta em redes de intercâmbio de longa distância18. A exceção
seriam os povos falantes de língua Arawak e Pano que ocupavam áreas no norte da bacia
do Madre de Dios e que se deslocavam de oeste para leste e vice-versa ao longo dos rios
Purus e Las Piedras, e as estradas interfluviais que as interligam com o Ucayali. A região
serviu de refúgio para povos que fugiam dos conflitos e do domínio econômico e político
das regiões mais a leste e norte. Segundo o autor, “os povos indígenas em isolamento
voluntário no norte e oeste de Madre de Dios fazem parte desse quadro como os últimos
resquícios da opção de evitar o contato com a sociedade nacional, como fizeram com os
invasores pré-colombinos de seus territórios" (Moore, 2020: 75-76, tradução livre).

2.3. Os primeiros colonizadores e a confusão dos etnônimos

Até meados do século XIX, as florestas que hoje constituem o departamento de


Madre de Dios, ao sul da Amazônia peruana, e o território ocidental do Estado de Acre,
no Brasil, eram uma das áreas mais “inexploradas” de todo o continente. A partir das
terras altas, alguns poucos desbravadores, como os espanhóis Pedro de Candia (1538),
Pedro de Anzures (1939) e Alvarez Maldonado (1566), tentaram penetrar na região em
busca do "Paititi" ou do "Eldorado", nomes dados à lendária cidade perdida amazônica
cheia de tesouros. Porém, fracassaram diante do terreno inóspito e dos constantes ataques
dos povos nativos. Para o antropólogo peruano Óscar Paredes Pando, uma das
consequências da chegada dos primeiros colonizadores, com a imposição de um novo
sistema político, econômico e cultural, foi a retirada das populações étnicas.

(...) posiblemente, se trató de tiempos de reestructuración o reorganización de la


vida, sin más vecinos, sin más conflictos, sin metales, sin reconocimiento desde
afuera, sin presentes, cada vez más lejos de los de arriba; y como de los recién
llegados - españoles - se conocía poco o nada, era preferible alejarse. La

18
No final dos tempos pré-hispânicos, o império inca pretendeu estender seu domínio, a vertente oriental
da cordilheira, dando o nome de “Antisuyo” a essa seção inexplorada de seu território. É depois do ano
1430 que da cronologia do Incanato que o homem da serra inicia uma lenta infiltração desde Paucartambo
rumo a oeste, ou seja, a bacia de Madre de Dios. Chuncho foi um termo quíchua ainda utilizado para referir-
se genérico aos indígenas da selva (Califano, 1982: 19).
34
advertencia de alejarse más, tuvo un claro mensajero: contagio de enfermedades
jamás conocidas. (Pando, 2014: 109)

Durante o período colonial, a região permaneceu praticamente isolada das frentes


de expansão colonial e extrativista, com pequenos avanços e retrocessos, seguindo os
ciclos econômicos da coca, do ouro e das denominadas "drogas do sertão" (Huertas, 2020:
32). Dessa forma, o caminho foi se abrindo não somente para a exploração dos seus
recursos, como também para a apropriação dos territórios e conhecimentos indígenas.
Neste processo, o contato com as populações originárias foi de extrema importância para
os aventureiros (Pando, 2013: 23)
Em toda a Amazônia, diversas expedições de ingleses, franceses, holandeses
foram exitosas, encontrando diversidade de frutas, sementes, raízes e plantas, como o
cacau, o cravo-da-índia, o guaraná, o achiote e a baunilha, todos produtos inexistentes na
Europa. Nesse processo, os portugueses, que inicialmente não se interessaram pela região,
tiveram que se impor para garantir territórios e incorporar sua jurisdição. Jesuítas,
carmelitas, franciscanos e capuchinhos assumiram a tarefa de aproveitar as "novas"
especiarias que só eram possíveis com os nativos, conhecedores da floresta e mão de obra
gratuita (Ibid: 24).
Na colônia espanhola, os missionários iniciaram suas expedições, contudo, muitas
delas tiveram que ser interrompidas pela resistência dos povos nativos de seus territórios.
Em seus escritos etnohistóricos, o padre dominicano Ricardo Álvarez Lobo, que atuou na
missão de Sepahua com os Yine, resgatou a história das sangrentas expedições de
expansão do evangelho nas "tribus infieles" e guerreiras do Ucayali, citando os primeiros
encontros com índios chamados pelos estrangeiros de "piros" e "machobos".

La intención de los piros había sido dar muerte a los religiosos y a los que les
acompañaran. El organizador de la comisión fue un curaca cristiano llamado
Fernando Torote. (...) Estaba allí con los piros el curaca Torote, quién dirigía las
operaciones, y un grupo de indios machobos, enemigos de los piros, pero amigos
en las causas satánicas, Cerquita de la orilla, ocultaban sumidas bajo a una
palizada su flota de canoas para desplegarse por el río en caso de necesidad.
(Álvarez Lobo, 2016 [1955]: 18)

A partir de pesquisa documental, o missionário narrou o episódio da fundação da


primeira missão entre os Yine, em 11 de março de 1724, como o "Día de sangre". Às

35
margens do Tambo, afluente do Ucayali, Padre Fernando Torote foi flechado no peito
pelos Piro, e outros dois franciscanos e 35 cristãos atacados por "machobos enfurecidos":

Al fin de la jornada quedó triunfante la causa de los piros y vencida y abatida la


causa del evangelio. (...). El último dato de la historia, y el más consolador, es que
desde este momento quedó abierto el paso al Ucayali y que los piros y machobos
que realizaran esa mortandad se convirtieron y se bautizaron tan pronto como
hubo un misionero que sustituyera al P. Fernando. (Álvarez Lobo, 2016 [1955]:
20)

Tentar relacionar o nome machobo, usado pelos missionários séculos atrás, a


possíveis grupos ancestrais dos atuais Mashco é um exercício meramente especulativo,
pois possivelmente o termo Mashco não é uma autodenominação para esse povo. Para o
antropólogo Peter Gow, um dos maiores problemas para entender os Mashco está
justamente em seu nome e na relação recente entre as onomásticas dos antropólogos e
dos índios (2011: 18). Na tentativa de restaurar esse povo à literatura etnográfica de forma
menos problemática possível19, Gow “refina e amplia” uma afirmação de Álvarez Lobo,
que disse que é possível reconstruir a história dos Mashco desde o fim do século XVII. O
dominicano registra que o franciscano Manuel Biedma menciona os Mashco ainda em
1686, quando "um grupo de soldados espanhóis e um exército de Conibo subiu o rio
Ucayali para vingar a morte do padre jesuíta Richter, morto pelos Piro". Enquanto
surcavam o rio, Don Felipe Cayá-bay, chefe Conibo, contou a Biedma que a três dias rio
acima, em um tributário oriental do Ucayali, morava a muito numerosa nação dos
Mashcos (2011: 19). Essa história também pode ser encontrada nos registros históricos
do missionário espanhol e historiador franciscano José Amich:

Salió la armada de la playa de San Miguel el día 22 de octubre del año de 1686,
al sonido de muchas bociñas y tiros de fusil de los Españoles, y navegaron por el
Paro arriba cosa de tres leguas sin novedad especial. El día 23 al amanecer
Cayampay hizo señal con su bocina, a la cual respondieron luego las demás
canoas, y tomaron la maicha, y aquel día caminaron sin detenerse cuatro leguas y
media, y á iguales distancias encontraron tres ríos en la parte oriental. El primero
se llama Senonia. El segundo Charataya: estos dos no tenían gente. El tercero se
llama: Manípaboro; y dijo Cayampay que á tres jornadas río adentro estaba la

19
Ver artigo “Me deixe em paz!" - Relato etnográfico preliminar sobre o isolamento voluntário dos Mashco
(Gow, 2011).
36
nación de los Maspos muy numerosa. Aquella noche durmieron en la boca de
dicho río. (Amich, 2012 [1854]: 107)

Já o antropólogo Andrew Gray resgatou os relatos dos padres franciscanos


Busquets e Rocamora que, "em 1807, mencionam a existência dos Guirineris, que
presumidamente são os Sinirineri como membros da nação ‘Mashcos'”. Gray também
afirma que este é um termo usado pela primeira vez por Biedma, em 1687, que escrevia
"Maschos" provavelmente em referência a um grupo de piros do rio Mishagua, afluente
do rio Urubamba que desagua no Ucayali, ao norte do rio Manu, afluente do rio Madre
de Dios (Gray, 1999: 11). Para Gow, o relato de Busquets e Rocamora localiza, portanto,
os Mashco muitos mais ao sul do que Biedma (2011: 20). No entanto, em uma leitura
mais atenta das fontes, o relato do Padre Rocamora, registrado por Maúrtua (1906) fala
que os Guirineris não eram os grupos dos "Mascos", mas sim haviam sido reduzidos por
eles em guerras:

(...) aún no alumbraba la aurora, quando nos embarcamos, y a poco trecho


hallamos á la derecha un rrío algo caudaloso, y á los tres días de suvida
por él se halla la nación de los Guirineris, y según la notícia que dió el
Padre Rocamora, que habló con ellos el año pasado, son muy pocos,
respecto á que la nación de los Mascos les han acabado con sus continuas
guerras. Carecen de herramientas por el poco trato con los demás, y para
sus rozas y demás necesidades usan hachas de piedras. (Rocamora apud
Maúrtua, 1906: 215)

No diário das expedições dos padres Busquets e Rocamora pelo Urubamba


(chamado de Santa Ana), na parte superior do rio Ucayali, os "Mascos" também são
localizados no alto rio Misagua “… a la misma mano se llara el rrío Ascuya, y á otro
trecho á la derecha entra el rrío Misagua, en que viven Chontaquiros, ya más arriba
Mascos…” (Maúrtua, 1906: 216).
Para Patrícia J. Lyon, que realizou estudos sobre as classificações linguísticas
dos povos indígenas do alto Madre de Dios, em uma minuciosa revisão bibliográfica das
fontes históricas da região, desde aproximadamente a primeira metade do século XX, o
nome Mashco (com algumas variantes) foi aplicado de forma “promíscua" a vários
grupos falantes do Harakmbut, e especialmente aos que resistiram às incursões dos
brancos. A palavra foi usada com conotação pejorativa, significando “selvagem, maligno,
incivilizado, belicoso”, e substituindo o termo "chuncho" (Lyon, 2003 [1975]: 37-38).

37
(...) hay que notar que este nombre se aplico originalmente a un grupo ubicado en
las cabeceras de los ríos Camisea y Mishagua, y quizá del Río Manu.
Aparentemente era una banda de los Piro, y se llamaba diversamente Masco, Piro-
Mashco, Mashco e Mashco-Piro (...) (Ibid.).

Lyon explicou ainda não estar claro como o nome foi transferido para diversos
grupos Harakmbut da região de Madre de Dios. Parece ter começado nos primeiros anos
do século XX, durante as expedições de exploração encomendadas pelo governo peruano,
como as da Junta de Vías Fluviales, no Peru, e aplicada a vários grupos distintos. No
entanto, a difusão mais notável do uso da palavra Mashco parece vir dos padres
dominicanos que atuaram na região de Madre de Dios (Ibid.). Nas diversas publicações
dos diários das missões dominicanas no Peru ficam evidentes as distorções do termo e
que se trata de um nome comum para diversos grupos Harakmbut do Alto Madre de Dios.
No livro “Los Mashcos, hijos del Huanamei”, os missionários definem esses índios como
grupos de “guerreiros sanguinários”, e explicam que a origem da palavra vem dos
seringalistas brasileiros.

A finales del siglo pasado, entre los caucheros que poblaban el Madre de Dios,
durante la fiebre del “oro negro”, es cuando aparece el nombre de Mashco.
Muchos de estos "colonizadores" eran procedentes del Brasil y para ellos el
cuchillo con que se sangraba el árbol del caucho era llamado “mashchadiño".
Cuando los indígenas efectuaban por sorpresa ataques sangrientos a los
campamentos gomeros victimaban a cuantos encontraban a su alcance en forma
despiadada, descuartizando a las víctimas con los mashadiños, por lo que es fácil
suponer que tal palabra pasará a representar a quienes inferían tantos cortes: los
Mashcos. Hoy día emplean los mismos indígenas la palabra “mashco” para indicar
que algún grupo es belicoso, fiero, guerrero o sanguinario, pero nunca para
designar su grupo familiar, ni el de los vecinos. (Barriales, 1970: 4).

Ao que tudo indica os missionários dominicanos resignificaram o nome usado


pelos patrões da borracha (Gow, 2011), mas também pelos indígenas da região que
também assumiam o papel de intérpretes nas relações de troca e conflito que aconteciam
nos acampamentos de exploração da borracha, quando essa área da Amazônia foi
violentamente incorporada ao sistema capitalista mundial.

38
2.4. A febre da borracha: ocupação e "correrias"

A região entre o divortium aquarum20 dos rios Madre de Dios, Purus, Ucayali e
Juruá se manteve autônoma nos primeiros quatro séculos da colonização europeia. Sem
dúvida, foi a revolução industrial com suas demandas por certos recursos que promoveu
um novo ciclo entre as florestas tropicais das cabeceiras dos quatro afluentes da margem
direita do Amazonas. Na segunda metade do século XIX, a exploração da borracha,
através da coagulação das seivas das espécies nativas Castilla elástica (caucho) e Hevea
brasiliensis (seringueira), inaugurou a etapa extrativo-mercantil, bem como de
territorialidade das jovens repúblicas com espaços amazônicos, particularmente, na
Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador e Peru (Pando, 2013: 28).
Esses países começaram a exportar o látex para Europa e Estados Unidos,
iniciando assim um período de intensas migrações21, que não só acabou com o isolamento
que havia caracterizado a região, como também produziu, em um espaço curto de tempo,
as mais drásticas mudanças sociais, políticas e culturais da história dos povos indígenas
(Huertas, 2002: 32-33). Alavancada pela ambição de homens ávidos em obter a
valorizada matéria prima na floresta amazônica, a febre da borracha provocou uma
devastação de lugares, corpos e cultura sem precedentes. Muitos não mediram esforços
para promover a matança daqueles que se encontravam em seu caminho ou se opunham
a sua presença (Huertas, 2010: 54).
Governos de Brasil, Bolívia e Peru ocuparam a floresta com caucheiros e
seringalistas financiados por bancos internacionais. A penetração se dava ao longo dos
rios e varadouros interfluviais usados pelos indígenas. Estradas de seringa eram abertas e
acampamentos caucheiros instaurados. Uma nova espécie de fronteira extrativista, cuja
principal característica era a combinação de assentamentos de temporalidade e
permanência, dependendo do tipo de borracha explorada22 (Pando, 2013: 31-36).

20
Divortium aquarum é uma expressão latina que significa divisória de águas, linha imaginária que traça a
separação entre duas vertentes ou bacias fluviais limítrofes no ponto mais alto entre estas.
21
Para trabalhar nas zonas de extração de látex na Amazônia, o governo brasileiro incentivou a migração
de milhares de nordestinos, especialmente do Ceará, que sofriam com as grandes secas, com a de 1877.
Entre janeiro e junho de 1878, 35.000 cearenses deixaram seu estado natal rumo à Amazônia. Milhares
deles com destino ao Acre (Valcuende, 2009: 57-58).
22
"Nos grandes seringais do Acre, Madre de Dios e Pando, a coleta da seringa por meio da técnica de
estradas era predominante; enquanto o sistema predatório e itinerante caracterizava as explorações
caucheiras que se estendiam ao Juruá, Purus, Chandless, Iaco, Ucayali (Pando, 2013: 49).
39
A ocupação das terras que hoje constituem o estado do Acre, e nesta região em
estudo, teve início nos anos 1860. Manuel Urbano da Encarnação prático de embarcações
residente na Província do Amazonas23 realizou as primeiras incursões ao Alto Purus,
navegando por diversos rios da sua bacia, e abrindo caminho para os primeiros
exploradores na região. A partir de 1890, vários seringais são criados. Alguns deles se
estendiam até o Alto Iaco, afluente do Purus. João Câncio Fernandes fez, em 1888, uma
viagem de exploração, chegando ao igarapé Abismo, próximo à atual fronteira com o
Peru. No mesmo ano, Avelino Medeiros Chaves24 iniciou a exploração do Iaco em
território brasileiro (Arruda, 2010: 57-59).
O relatório da viagem de exploração do Rio Purus (1862), encomendada pela
Província do Amazonas, e realizada pelo engenheiro João Martins da Silva Coutinho, traz
informações sobre as características e as dinâmicas territoriais das populações indígenas
que encontrou na região. Guiado por Manoel Urbano, Coutinho descreve que os
Manetenerys vestiam "grandes camisolas de algodão", e usavam contas vermelhas nos
pulsos, obtidas de outros povos com quem intercambiavam entre as cabeceiras dos rios.
Afirma ainda que as populações indígenas do Vale do Purus usavam muito facilmente as
diversas conexões terrestres dessa região de interflúvios, ou por escassez de meios de
subsistência ou pela perseguição de inimigos poderosos (Coutinho, 1862: 77).
O geógrafo inglês William Chandless, correspondente da Royal Geographical
Society de Londres, também explorou o Alto Purus (1863-1865), e descreveu sobre o
complexo sistema de troca dos povos de língua piro e sua articulação com a florescente
indústria de extração de borracha. Na boca do rio Araçá (renomeado Chandless em sua
homenagem), a expedição encontrou os Manitineri, que estavam claramente
comercializando rio abaixo ao longo do Purus, pois falavam ao menos uma palavra da
língua geral, assim como algo de portuguêss (Gow, 2006: 453-454).

Mesmo se conhecendo a existência desses índios, e se sabendo de sua relativa


civilização, não se pode evitar ficar impressionado, depois de viajar por tantas
semanas entre selvagens nus e suspeitos, com esses índios ainda mais
embrenhados no interior e desligados de seu canal de comunicação natural com o

23
O prático Manoel Urbano da Encarnação participou ativamente de incursões de reconhecimento do rio
Purus, sendo um dos primeiros navegadores dos rios Acre, Purus, Iaco e mais tarde Juruá. Como guia de
viajantes e exploradores da região, ganhou destaque em relatos de viagem e relatórios de expedições.
24
Avelino de Medeiros Chaves, sergipano, partiu em 1898 para o alto rio Iaco, com auxílio de capital inglês
conseguido junto à companhia de navegação The Amazon River Steam Navigation. Junto a João Câncio
Fernandes, fundou a empresa A. Chaves & Cia., que instituiria os últimos seringais do rio Iaco: Brasil,
Guanabara, Arvoredo e Peri (Matos, 2018: 2015).
40
mundo exterior; e que, no entanto, usam roupas e plantam algodão e fiam e tecem,
tanto para seu uso como para comércio, e que não demonstram sombra alguma de
medo mas grande alegria quando vêem estrangeiros. (...). É provável que os
Manetenerys [Manitineri] tenham por muito tempo comercializado no Juruá, e
talvez diretamente com os brancos, aos quais, no entanto, sejam conhecidos por
um nome diferente; e a parte superior da tribo se comunica, ou se comunicou, com
o Ucayali. (Chandless, 1866: 101 apud Gow, 2006: 453-454)

Em sua expedição, Chandless buscava um canal de ligação com o rio Madeira


(formador do Madre de Dios) de modo a evitar seu trecho encachoeirado e, assim,
possibilitar a circulação entre as Províncias do Amazonas e Mato Grosso e a Bolívia
(Ishii, 2011: 31). Desvendar comunicações entre rios estava presente entre os objetivos
dos primeiros exploradores da região. A necessidade econômica de interligação e
navegabilidade pelos rios dependiam do conhecimento das populações nativas sobre
essas rotas, e não emanava apenas do governo brasileiro
No outro lado da fronteira, no departamento peruano de Madre de Dios, a
atividade de exploração da borracha se iniciou em 1894, com o descobrimento de grandes
concentrações de caucho nos rios Manu, Las Piedras e Tahuamanu. Desde Ucayali, os
caucheiros ingressaram pelos varadouros utilizados pelos indígenas, e realizando as
expedições armadas promovidas pelos patrões, sobre os povos indígena, chamadas de
"correrias" (Iglesias, 2008). A imposição do novo sistema econômico através da
instauração de sangrentos mecanismos de captura de mão de obra indígena provocou
distintas reações entre as populações nativas, como rebeliões, fugas, conflitos e traumas
internos que a depopulação e os deslocamentos forçados poderiam originar. Os
caucheiros se instalaram nos rios Manu, Los Amigos, Las Piedras, Purus e Tahuamanu,
entre outros onde era encontrada a borracha. Os assentamentos reuniam numerosos
indígenas de diferentes povos, entre eles os Yine, que constituía a força de trabalho para
a extração do látex (Huertas, 2002: 33).
Segundo Oscar Paredes Pando (2013: 55-57), os efeitos do extrativismo mercantil
"impiedoso e escravista" foram desastrosos. Epidemias, agressões, massacres e trabalho
forçado fizeram com que muitos povos desaparecessem da região, como os Iñapari. Para
o antropólogo, as populações que escaparam em face da perseguição são as chamadas
“sociedades compulsivamente isoladas", que abandonaram suas comunidades e
territórios, fugindo para igarapés e lugares mais remotos, evitando a escravidão. Nos

41
casos de resistência, como foi com os Mashco do Manu contra Fitzcarrald, "a luta foi
desigual: arcos e flechas contra carabinas e espingardas" (ibid: 69).

2.5. Fitzcarrald e o massacre dos Mashco

Um dos protagonistas das histórias de atrocidades cometidas contra povos


indígenas no boom da borracha na Amazônia foi o peruano Carlos Fermín Fitzcarrald,
batizado Isaías Fermín Fitzcarrald, e que ficou conhecido como o "Rei do caucho". Em
1892, o caucheiro estabeleceu uma base de operações comerciais na boca do rio
Mishagua, afluente do Urubamba, formador do Ucayali, iniciando nos anos seguintes
uma série de expedições arriscadas a regiões ainda "inexploradas" da floresta, e buscando
um estratégico acesso às bacias do rio Purus e Madre de Dios (Reyna, 1942).
Em sua primeira viagem, Fitzcarrald chegou até o rio Tacuatimanu, batizado por
ele com o nome de Rio de Las Piedras, e teve encontros, inicialmente em troca de
mercadorias, mas depois violento, com os Huarayos. Um dos seus homens, Antonio Urí,
relatou à Reyna que navegou de canoa por mais de 500 quilômetros, encontrando
inúmeras "tribos de Mashcos-Piros". Compreendendo a importância comercial deste
afluente, o caucheiro peruano ordenou seu povoamento para a construção de trilhas
estratégicas, bem como o estudo de um varadouro até o rio Purus (Ibid.)
Em outra dessas expedições25 que contavam com a mão de obra dos indígenas,
conhecedores das rotas interfluviais da região, Fitzcarrald descobriu um varadouro
utilizado pelos Piro, ligando os rios Serjali, afluente do rio Mishagua, ao Cumerjali,
afluente do Manu. Imediatamente chamado de Istmo Fitzcarrald26, o caminho permitiu a
rápida conexão entre as bacias do Ucayali e Madre de Dios, desencadeando um intenso
comércio entre elas, e dando impulso à ocupação do território de Madre de Dios
(Califano, 1982: 50-51).

25
Explorações anteriores realizadas entre o rio Camisea e afluentes do Alto Manu, afluentes da margem
esquerda do Mishagua e as nascentes do Alto Manu, deram a Fitzcarrald confiança para encontrar novas
rotas mais diretas de acesso direto ao rio Amazonas e, assim, reduzir os tempos nas viagens para obter
maiores lucros (Pando, 2013: 171). alturas de até 469 metros (Reyna, 1942: 43). Essa história ficou mais
conhecida nas décadas recentes pelo filme "Fitzcarraldo" (1982) do cineasta alemão Werner Herzog.
26
O Istmo Fitzcarrald está a oeste do departamento Madre de Dios, nas áreas de nascente do rio Manu,
existem morros de baixa altitude que formam um divisor de águas entre os rios Madre de Dios e Urubamba.
Neste morro, e separando as cabeceiras do rio Caspajali, afluente do Manu, das do rio Serjali, afluente do
Urubamba. Fitzcarrald fez seu barco denominado "Contamana" ser transportado por mil trabalhadores,
entre homens Piro, Campa e não-indígenas por um caminho de 10 quilômetros de extensão, escalando
42
Fitzcarrald é também personagem fundamental para se especular sobre o passado
dos conjuntos indígenas denominados atualmente como Mashco ou Mashco-Piro, bem
como as possíveis causas do seu "isolamento", pois protagonizou um dos episódios mais
violentos da história da região, narrado por Ernesto Reyna, biógrafo do caucheiro
peruano, que reconstituiu com detalhes, ainda que um tanto distorcidos, a "Batalla con
los Mashcos".
Reyna descreveu que os Mashco ficaram alarmados quando encontraram pela
primeira vez com uma multidão de homens de “Ucayali", pedindo para que não seguirem
adiante no rio Manu, porque "les espantarían la caza de monos y les traerían el contagio
del catarro”. Como Fitzcarrald não estava disposto a recuar, os Mashcos se retiraram para
mobilizar os seus aliados de outros povos no baixo Manu e alto Madre de Dios. Por outro
lado, Fitzcarrald organizou diversas matanças, reunindo cerca de 1500 homens, entre
Campas, Piros e mestiços em muitas canoas sob o comando de seus principais “tenientes”.
Assim, começou a guerra travada entre esses indígenas "señores de la parte oriental del
Istmo" e os homens do poderoso caucheiro. Para exterminar os Mashco, diversas correrias
foram realizadas nos afluentes do Manu (Sahuinto, Sotlija, Fierro, Cumerjali), tirando a
vida de centenas de homens desse grupo e capturando suas mulheres e crianças como
escravas (1942:45-49).
Em seu livro, Reyna interpretou as histórias daqueles que acompanharam o
caucheiro peruano em parte de suas viagens nos rios Urubamba e Madre de Dios.
Segundo o relato de Valdez Lozano, registrado por Reyna (1942: 83-84), na boca do
Caspajali, eles encontraram uma população de Piros-Mashcos, que os recebeu
amistosamente. Esses índios disseram a Fitzcarrald que mais abaixo havia um igarapé
com o nome de Sotlija, onde haviam muitos mashcos pacíficos. Fitzcarrald os chamou e
lhes deu machados, facas e vários bens que foram recebidos com "curiosidade”. Um mês
depois, os Mashco atacaram os caucheiros no rio Cumarjali e uma série de conflitos
violentos se seguiu até o trágico massacre dos Mashco:

A un día de bajada del río Manú se levantaban las barracas de los Infieles, con
una población que contenía más de quinientas familias, que por su importancia
podría llamarse la capital de la tribu. En este pueblo se habían reunido más de dos
mil guerreros mashcos, preparados para una lucha a muerte. (...). Fitzcarrald llegó
a una vuelta del poblado como a las cuatro de la tarde, y, después de detener a los
centinelas indios, no dejando pasar ningún aviso, ordenó que la poderosa flota de
canoas y balsas, al mando de cincuenta caucheros, navegare muy despacio en

43
espera de la señal convenida, mientras el grueso de sus fuerzas se fue por tierra, a
rodear el poblado. A las cinco de la tarde una descarga cerrada anunció que
Fitzcarrald y los suyos atacaban la capital de los Mashcos. Fue una guerra de
sorpresa y tan violenta y feroz que cuando las canoas llegaron al puerto ya el
poblacho estaba en manos de Fitzcarrald. Los Mashcos, desalojados de sus
posesiones, se batían bravamente a la orilla del río, pretendiendo ganar a nado la
orilla opuesta, o sus canoas; más los cristianos arremetieron contra ellos por agua
y tierra, y tanto, que el Manú se cubrió de cadáveres. (Reyna, 1942: 85-86).

Ainda segundo Reyna (1942: 86), depois da correria de Fitzcarrald, “ya no se


podía tomar agua en el río, porqué se encontraba sembrado de cadáveres de mashcos y
caucheros, porque la guerra era a muerte". Ao final, o poderoso caucheiro ordenou que
os cadáveres dos Mashcos fossem queimados junto com suas casas. Devido a este ato
fúnebre, os índios batizaram o local com o nome de "Mashco-Rurana", que significa
“donde fueron los Mashcos” ou “Mashcos, habremos sid”27.
Gow (2011) e Moore (2020) citam os escritos de Valdez Lozano28, publicados em
dois livros raros, aos quais ainda não tive acesso, como fonte mais confiável dos fatos,
pois foi testemunha visual desses eventos, já Reyna nunca se encontrou com Fitzcarrald,
construindo uma narrativa baseada em registros de terceiros, e cheia de distorções e mal-
entendidos. De acordo com Valdez Lozano (1942 apud Gow: 2011: 20-21), quando eles
primeiro viajaram desde Camisea até o Manú em 1891, encontraram uma aldeia piro nas
cabeceiras desse rio, cujos habitantes eram amigáveis e lhes contaram que a três dias rio
abaixo se encontrava um assentamento de Piro-Mashco, assim chamados por causa da
“conjunção de duas tribos”. Fitzcarrald para lá se dirigiu com “uma força de 1500
homens”. Os Piro-Mashco receberam os visitantes amistosamente e contaram a
Fitzcarrald que rio abaixo havia um rio chamado Sutlija habitado por muitos Mashco que
eram pacíficos. Sobre os Mashco, Valdez Lozano escreveu assim:

Os índios Mashco, dos mais beligerantes que existem atualmente, vivem ao longo
do rio Colorado e foram encontrados espalhados nos bancos do Madre de Dios e
do Manú; mas em face aos ataques do pessoal de Fitzcarrald tiveram que recuar
mais para o interior do Colorado e às suas terras originais das cabeceiras dos rios

27
O escritor brasileiro Euclides da Cunha também deu a sua releitura à história do confronto sangrento no
Cumarjali com o caucheiro peruano. Ele escreveu que “o lugar onde jaziam cerca de cem corpos foi
denominado Playamashcos” (Cunha, 1909).
28
"El verdadero Fitzcarrald ante la historia" (Iquitos, Imprenta El Oriente, 1944) e "La exploración del Río
Madre de Dios por Carlos Fermín Fitzcarrald” (Iquitos, Reategui, 1942). .
44
que eles chamam em sua língua Pinquene, Panahua, Cumarjali e Sutilija e que são
afluentes do Manú. (Valdez Lozano, 1942 apud Gow, 2011: 21)

Gow observa que os relatos de Valdez Lozano confrontam aos dados históricos
apresentados por Lyon (2003 [1975]) em um ponto: Os falantes de Piro da região das
cabeceiras do Mishahua-Manú eram os Piro, e os Mashco viviam rio abaixo, no Manu
propriamente. Também nomeia três populações: os Piro, os Piro-Mashco misturados, e
os Mashco. No entanto, a referência aos rios Madre de Dios e Colorado sugere que seu
uso de Mashco inclui dois povos distintos, mas igualmente hostis, os Mashco
propriamente ditos e os vários povos de língua Haramkbut. Para o antropólogo, os patrões
da borracha, pouco curiosos em questões linguísticas, assumiram que a categoria piro de
mashco se referia a um único grupo hostil: "É muito provável que os Piro chamassem a
todos os povos da região do Manu de mashco, e assim eles vieram a se unificar nos relatos
dos não-índios. Depois que os Mashco recuaram e se esconderam, os únicos contatos e
conflitos que os caucheiros tiveram foram com os “Mashco” falantes de Haramkbut, de
modo que o nome lhes foi transferido" (2011: 21-22).
Analisando as informações contidas nas publicações de Reyna e Lozano, Moore
(2020: 136-137) defende a seguinte hipótese: os Mashco ou Piro-Mashco do Rio Manu,
acima do Panagua, eram um agrupamento local de um povo de língua Arawak, agora
chamado Yine, provavelmente ancestrais dos Mashco-Piro contemporâneos que se
encontram em isolamento nas mesmas áreas. Águas abaixo do rio Pinkén, o território
pertencia aos grupos Haramkbut, denominados de Toyeri, que também participaram da
resistência com um alto custo em vidas. O antropólogo destaca ainda uma afirmação de
Valdez Lozano:

Los indios Mashcos, gigantes y barbudos, que residían en el río Colorado que en
nombre de ellos se denomina Gimninquelgelere o Pinquene, Panahua, Cumerjali
y Sutileja, que son afluentes del río Manu, hace muchos años que estos ríos se
encuentran completamente despoblados de gente civilizada… (Lozano, 1942:
apud Moore, 2020: 137)

Moore (2020: 137) explica ainda que o termo Gimninquelgelere é topônimo Yine,
não Haramkbut e, portanto, os Mashcos massacrados pelos homens de Fitzcarrald eram,
pelo menos em sua maioria, de outro grupo étnico, não Haramkbut. Entretanto, isso não
nega a provável aliança dos Haramkbut com eles, pois viviam no baixo Manu e também
sofreram com os abusos do poderoso caucheiro e seus homens.

45
Em 1897, Fitzcarrald pagou tragicamente o preço pelo seu "atrevimento",
afogando-se nas águas do rio Urubamba, com 35 anos de idade, devido ao naufrágio do
seu barco. Outro caucheiro peruano, Carlos Scharff assumiu o controle de seu "império"
nas cabeceiras dos rios Madre de Dios e Ucayali, e avançando para o Alto Purus. Em
1905, "descobriu" a passagem do rio Cujar, formador do Purus, ao rio Las Piedras,
afluente do Madre de Dios, chamado antigamente de Tacuatimanu, e possibilitando a
almejada união por terra entre as duas bacias, ao mesmo tempo em que se reconfiguraram
as fronteiras nacionais.

2.6. Entre antigas e novas rotas na floresta

Las leyendas que corrían sobre el río Tacuatimanu ó Piedras, que se llamaba
antiguamente la "quebrada de los salvajes" han sido ya olvidadas por completo,
siendo un río francamente abierto al progreso y la civilización. (...) El
Tacuatimanu resulta con un curso mucho mayor del que pudiera calcularse. Esto
le permite pasos, al Amigos, al Manu, sin cruzar el primero que muere más abajo,
al Mishagua, al Manuripe, al Tahuamanu y probablemente al Acre, ya que conecta
con el Purús. Esto le dará vida menos efímera á la comarca que cruza, no
sucediendo como con otros ríos, alarmantemente faltos de actividad y población.
(Delboy, 1912: 36).

No início do século XX, a mobilização dos caucheiros, exploradores, viajantes e


missionários pela floresta se deu com a orientação dos indígenas e por meio de picadas
no interior da mata e seguindo o curso de igarapés e rios que podiam ser percorridos a pé
durante a estação seca (mapa na pág. 50). A "descoberta" de diversos varadouros e istmos
pelos colonizadores, aproveitando os caminhos usados há muito tempo pelos nativos,
constituiu-se em uma etapa importante nas explorações da Amazônia Sul Ocidental
(Califano, 1982: 42-51). Em meio à corrida da borracha, a ganância dos Estados em
possuir territórios maiores e com abundância do produto, além de desencadear a série de
conflitos que determinou os limites territoriais entre Brasil e Peru29, inaugurou uma nova
etapa de produção e registro de informações sobre o ambiente e as populações indígenas.

29
A exploração da borracha foi o grande motivo das possessões territoriais e determinação de soberanias
por parte do Brasil e do Peru, na medida em que eclodiram confrontos armados nos postos militares de Alto
Juruá e Purus. Todas essas divergências culminaram no Tratado assinado em 1909 no Rio de Janeiro
46
Em 1901, quando a notícia da descoberta do Istmo Fitzcarrald chegou a Lima, o
governo peruano, com o desejo de obter dados exatos sobre as áreas de divisória de águas
dos grandes afluentes do rio Amazonas e garantir a livre posse aos caucheiros, decretou
a formação de uma Junta de Vias Fluviales, para o envio de comissões científicas de
exploração à selva (Faura-Gaig, 1964: 279). No ano 1902 é fundada a cidade de Puerto
Maldonado com a chegada das missões dominicanas na bacia de Madre de Dios, que
também se institui como base para as tentativas de catequização dos povos nativos.
Iniciou-se, assim, uma série de expedições rumo às regiões fronteiriças de Brasil
e Peru, resultando em diversos informes e relatórios com estudos hidrográficos,
cartográficos e demográficos das bacias amazônicas e suas rotas de acesso, bem como
sobre as populações indígenas que habitavam a região. O informe do alemão Jorge M.
Von Hassel sobre a expedição ao Istmo Fitzcarrald, chefiada pelo Coronel Ernesto de La
Combe, trouxe informações sobre a localização dos Mashcos, descrevendo as correrias
contra com essas populações, no posto do caucheiro instaurado em frente ao igarapé
Cumarjali, afluente do rio Manu:

La región del Manu – con excepción de las cabeceras del mismo, del Surterlija,
Cumerjali y Penquene - está habitada por los indios Mashcos, tribu que también
habita el Madre de Dios, hasta el cerca el río de Los Amigos. Los Mashcos son
numerosos y guerreros, usan como armas arcos y flechas; cultivan grandes
chacras, y hablan un dialecto del Piro (Junta de Vías Fluviales, 1904: 85).

(...)

El 15 en la tarde encontramos un puesto de caucheros, frente á una quebrada del


nombre de "Cumarjali"; ese puesto pertenecía á un tal Perdiz de Sepahua, y lo
mandaba un joven español Leopoldo Alvarez, quién me contó que, habiendo
hecho una correría en la quebrada de Cumarjali trajo varias mujeres Machcos, las
que se habían evadido y que, como temían que internase los caucheiros, y él,
quedarse con dos ó tres hombres en el puesto, estaba asareado: le reproche su
conducta de violentar a los indígenas en lugar de atraerlos, manifestándole que en
sus temores, debían ver las consecuencias de su mal proceder (Junta de Vías
Fluviales, 1904: 39).

(Pando, 2013: 312). Para descrições detalhadas dos conflitos, bem como das negociações diplomáticos e
acordos estabelecidos entre os governos do Brasil e do Peru, consultar Castello Branco (1959).
47
Em outra publicação de 1905, Hassel30 estimou que a população de "Mashcos"
ou "Sirineris" eram de 6000 a 7000 indivíduos, e classificou os Mashco-Piros, com
relações no idioma e nos costumes com os Piros e Moenos, como alguns de seus diversos
subgrupos (Hassel, 1905: 642-653).
Nos informes das "Últimas exploraciones ordenadas por la Junta de Vías Fluviales
a los ríos Ucayali, Madre de Dios, Paucartambo y Urubamba", Germán Stiglich apresenta
uma lista extensa das "tribus selvajes" de Ucayali e Madre de Dios, descrevendo
Guachipaires, Maneteneris ou Mashco-piros, como índios que habitam o Tacuatimanu
(Las Piedras) e o Purús e seus afluentes: "Son poco hostiles a los blancos. Debe
considerárseles como los verdaderos descubridores de los varaderos que ponen en
comunicación el Puris, Madre de Dios i Manu" (Stiglich, 1907: 77). Em outro trecho,
Stiglich denomina os maneteneris, manecheneris, inaparis ou mashco-piros, como "índios
de riachuelo i que pasan la mayor parte de su vida en el monte". Também afirma que são
muito ambiciosos por ferramentas civilizadas, e habitam o Purús até o Yuruá, a frente do
Arasa (Chandless), Tacuatimanu (Las Piedras) e Amigo. Explica que os mashcos (sem o
"piro"), é um nome dado aos sirinairis, puca-pacuris, quirinairis ou machigangas, que
"son feroces y habitan los afluentes derechos del Urubamba i el Pilcopata" (ibid.: 78-79).
Os relatos dos informes afirmam ainda que os Mashco habitavam o rio Colorado
(provavelmente se referia aqui aos Haramkbut) onde costumavam sair para atacar os
caucheiros. Indicam que ainda que o governo peruano deveria iniciar com empenho uma
expedição de atração dessas "tribos de bárbaros para a civilização", ou de extermínio
completo das mesmas, e assim evitar mais "vítimas" entre os viajantes da região. Também
indica que se use o "camino de los salvajes mashcos" nessa expedição para traçar uma
rota preliminar de conexão entre Andes e Amazônia (ibid.: 423-424).
O antropólogo norte-americano William Curtis Farabee foi um dos primeiros a
realizar etnografia nessa região amazônica. Em uma publicação de 1922, informou ter
encontrado os Piro vivendo em 1907 na região das cabeceiras do Mishahua-Manu. Para
Gow (2011: 22-23), presume-se que eram os mesmos que Valdez Lozano (1942)
descreveu poucos anos antes. Farabee (1922: 77-78) também reportou os Mashco como
um grupo vivendo ao sul do rio Manú entre o rio Sutlija e alto Madre de Dios - exatamente
onde Lozano mencionou sua localização -, denominando-os também como Moeno ou

30
O alemão Jorge M. Von Hassel foi um dos mais destacados engenheiros dessas equipes exploradoras do
início do século passado, percorrendo milhares de quilômetros pelos rios, igarapés e varadouros da
Amazônia peruana.
48
Sirineri, e como emparentados dos Piros. Suas informações sobre os Mashco foram
obtidas do caucheiro espanhol Baldomero Rodríguez, que explorou borracha no Manu
com mão de obra de indígenas Yine e Mashco misturados com Haramkbut da parcialidade
Toyeri (Moore, 2020: 64).
Farabee publicou ainda um vocabulário "Mashco" (1922:78) composto de
palavras de origem yine com outras de origem haramkbut, gerando uma série de
confusões na literatura antropológica e linguística, como a ilusão de que as línguas arawak
e haramkbút eram intimamente relacionadas, e a persistente suspeita de que a língua
mashco é uma fusão piro-haramkbút (Gow, 2011: 24). Quando o antropólogo esteve no
acampamento de Baldomero Rodrigues, os Mashco tinham partido e ninguém sabia para
onde. Tudo indica que já estavam respondendo à violência de Fitzcarrald e de tantos
outros caucheiros, refugiando-se nas zonas mais remotas da floresta, onde não havia
borracha, e utilizando antigas e “novas” rotas interfluviais de deslocamento na região.

49
Mapa “Navegabilidad de los rios” extraído e adaptado do livro “Los ríos de la Amazonía peruana: estudio
histórico, geográfico, político y militar de la Amazonía peruana y de su porvenir en el desarrollo socio-
económico del Perú” de Guillermo S. Faura-Gaig (1964).

50
2.7. Caminhos do "isolamento": uma estratégia de sobrevivência

Em sua análise da literatura documental, Beatriz Huertas observou que diferentes


exploradores, viajantes e científicos que percorreram a região do rio Manu, logo após o
boom do caucho31, mencionaram o retiro dessas populações indígenas às regiões de difícil
acesso, nos interflúvios das cabeceiras de igarapés e rios. Para a antropóloga peruana, que
produziu boa parte das publicações sobre povos isolados no Peru, os Mashco-Piro são
provavelmente descendentes dos Yine e de outros povos relacionados, que sobreviveram
aos abusos da exploração do caucho na virada dos séculos XIX e XX (Huertas, 2002,
2015 e 2020).
Huertas (2020: 391) afirma que, atualmente, os Mashco-Piro estão organizados
em grupos residenciais constituídos por famílias extensas. Com uma alta mobilidade
pelas florestas que compõem seu extenso território que abarca o Brasil e o Peru, vivem
principalmente da caça de animais silvestres e aves, e da coleta de ovos de tartaruga, além
de uma diversidade de produtos florestais. Durante seus deslocamentos no verão
amazônico (abril-outubro), podem se aproximar de uma comunidade próxima e consumir
os produtos dos seus roçados. Seu idioma é entendido pelos membros do povo Yine,
estabelecidos em comunidades do entorno de seus territórios, com alguns dos quais
tiveram encontros e diálogos.
Alejandro Smith Bisso, educador que viveu em décadas passadas entre os Yine
durante anos apreendendo o seu idioma, escreveu recentemente sobre o pensamento desse
povo sobre os Mashco-Piro, trazendo elementos para a discussão sobre as causas do seu
"isolamento" e seu modo de vida atual, e caracterizando-os assim:

Constituyen una etnia cercana a los Yine, en general, y al parecer, a los


Manchineri en particular. Es evidente que el origen del aislamiento de
comunidades Mashco-Piro se ha dado a partir de las correrías que los mismos
indígenas han propiciado o que otros pueblos realizaban bajo el mando de los
patrones caucheros para conseguir mano de obra barata o esclava en la extraccióń
de la resina del caucho. Aunque las correrías tambiéń podrían haberse dado para
escapar de la peste, como la viruela y el sarampión. Los Mashco-Piro huyeron del
maltrato y de las enfermedades internándose en el bosque, ocupando

31
A febre da borracha na Amazônia vai de 1870 até os anos 1912. A crise do setor gomífero veio
acompanhada pelo desenvolvimento de novos setores produtivos e por uma presença mais efetiva dos
Estados nacionais em toda a área de fronteira.
51
silenciosamente por lo menos durante 100 años una extensa área que recorren de
manera itinerante, recolectando y cazando (Bisso, 2020: 294).

Gow (2011: 40) acredita que a atual situação de "isolamento" dos Mashco,
negando o contato sistemático com outras populações, é uma estratégia adotada por esses
grupos, uma mudança coletiva, levada por transformações dramáticas do seu povo, e
como forma de sobrevivência à violência que sofreram. Por conta da perseguição dos
caucheiros no rio Manu, os Mashco se deslocaram, primeiro, para os rios Las Piedras e
Tahuamanu, e depois para as cabeceiras do Purus. O antropólogo observou que os
documentos históricos trazem poucas indicações sobre suas atividades nas primeiras
décadas do século XX32. Também sugere hipóteses sobre possíveis casamentos
Amahuaca-Mashco terem originado os grupos que vivem hoje no interflúvio Purus-
Piedras, e mais próximos da linha de fronteira Brasil-Peru. Ainda segundo Gow, no final
dos anos 1940 aproximadamente, um grupo Mashco teria se mudado da região do Manu
ao rio Cujar, formador do Purus, em razão da retomada da extração da borracha causada
pela Segunda Guerra Mundial. Essa mudança provavelmente estava ligada a contatos
com os Amahuaca, talvez com homens que haviam ido trabalhar com borracha no Manu.
Pesquisadores com atuação no Alto Purus, no Peru, também afirmaram que os
Mashco-Piro do Manu se deslocaram para os rios Las Piedras e Tahuamanu - território
que parece ter se convertido em sua zona principal e que, provavelmente, mais tarde,
foram para a região das cabeceiras do Purus. A política Mashco de evitar encontros com
outros grupos também foi explicada pelos linguistas. A situação muda com o aumento da
exploração madeireira nos anos 1990, quando em 2001, os Mashco atacam com flechas
na boca de um igarapé do rio Manu (Clark et al, 2005: 9-10)33. Para Lev Michael e
Christine Beier, a opinião generalizada de que os Mashco são um grupo “nômade”, que
não pratica atividades agrícolas, baseou-se na informação coletada nas comunidades

32
Há uma referência aos Mashco no Handbook of South American Indians (1948, Vol. 3, pag. 540): Masco.
- Fejos (ms.) - places the modern Masco (Mashco, Moeno) between the Madre de Dios, Inambari, and Alto
Madre de Dios Rivers and the Cordillera of Caravaya, a flattish, densely jungled area; the Siglich map gives
the Inapari (Inamabi) as a Masco division around the headwaters of Río de Pejes and the left side of the
Madre de Dios to the Tacantimanu Rivers, with the Masco between the Chilive and Abulijá Rivers.
Subtribes listed are the Careneri on the Colorado River, the Puquiri, the Toyeri, and others (Fejos ms.)
Fejos' report: The Masco proper numbered 1.800 and lived on the Manu, Madre de Dios, Colorado,
Iueaneari, and Blanco Rivers.
33
Os madeireiros de Sepahua ampliaram suas atividades para os rios Purus, Sepahua e Las Piedras, e
construíram uma estrada para transportar madeira do Purus e Las Piedras até Sepahua. Nesse período, são
registrados relatos de várias interações entre madeireiros de Sepahua e Mashco-Piro. Em 2000, também se
intensifica a presença de narcotraficantes na região do Purus. Antes disso, em 1998, a Pioneer Mission,
iniciou tentativas de contatar esses índios na região do alto Purus (Clark, Michael e Beier, 2005: 19).
52
vizinhas, acerca de seus movimentos, uso da terra e atividades de subsistência. Até o
início dos anos 2000, em seus acampamentos não havia sido encontrada nenhuma
evidência de produtos agrícolas, e nem seus roçados (2003: 152)34.
Glenn Shepard (1996: 5) cunhou o termo "isolamento voluntário" defendendo que
essa população indígena passou por um processo de “adaptação migratória”,
abandonando o cultivo de produtos agrícolas e seu território ancestral por causa de
situações traumáticas durante a época do caucho. Para Shepard (2017: 558) os povos
isolados quase sempre escolheram o isolamento de forma consciente em tempos recentes,
e como estratégia de sobrevivência. Como os Mashco falam um idioma Arawak, falado
por outros povos que praticam a agricultura sedentária, “fica evidente que a condição de
caçador e coletor é uma adaptação muito recente entre eles”.
Para Torres Espinoza (2018: 94-95), a associação dos Mashco-Piro a uma
economia de caçadores-coletores levou a uma construção popular equivocada sobre essa
população como uma sociedade de autênticos remanescentes do Paleolítico, formada por
povos pejorativamente chamados de primitivos. Propõe pensar a sua decisão pelo
isolamento em função da liberdade, como uma expressão da sua livre determinação, e
como uma estratégica para viverem de forma autônoma, ao invés de sociedades
caçadoras-coletoras baseadas em suas carências.
Muitos povos ou grupos isolados dominam a técnica do uso de instrumentos de
corte metálicos para a derrubada de roçados, dentre outros usos, observam Amorim e
Yamada, em um artigo que discute as expressões de autonomia desses povos. Eles
explicam que a apropriação dessa tecnologia não é recente e demonstra que existiram (e
existem) momentos de “relações” para obtenção dessas ferramentas, apesar do rechaço a
qualquer tentativa de contato físico e direto com a nossa sociedade. Afirmam ainda existir
uma diversidade de formas e gradações que nos ajudam a traduzir muitos tipos de relações
que os isolados estabelecem com a nossa sociedade, denominadas de “estratégias de
isolamento” (2016: 51). Portanto, o que ocorre, não é simplesmente uma decisão de não
relação, mas estratégias conscientes, que se originam a partir de relações com o outro,
cujo objetivo é exatamente ter maior seletividade, controle ou gestão dessas interações
sociais, físicas ou até espirituais. Nesses casos, os “isolados” nos transmitem mensagens,

34
O artigo dos pesquisadores do Alto Purus traz ainda relatos de Sharanawa e Amahuaca que encontraram,
no rio Tahuamanu, construções dos Mashco de caráter mais permanente. Segundo esses índios, há um
grande número de tapiris nesta zona que resistiriam a temporada de chuvas, e construídos para durar muito
mais tempo que seus acampamentos típicos, feitos de tapiris de folha de palmeiras (Clark, Michael e Beier:
2005: 14).
53
que podemos traduzir ou compreender - dentro das limitações colocadas pelos nossos
próprios códigos - como manifestações de autonomia no que diz respeito a seus direitos
territoriais e sobre os recursos naturais de que prescindem (Amorim e Yamada, 2016: 52).
A partir da observação de alguns casos, Amorim e Yamada concluíram que, na
verdade, as estratégias de “isolamento” são melhor traduzidas como “estratégias de
relação”, do que como de não relação. Há casos em que esses grupos evitam
constantemente qualquer tipo de contato, sendo o controle das relações por eles mais
rígido, há outros em que a intensidade varia conforme os contextos e os agentes de
interlocução (2016: 44-51).
Em sua dissertação, Arisi estudou as relações que o povo Matis, contatado na
década de 1970, têm com grupos isolados Korubo, ambos pertencentes à família
linguística pano que vivem na TI Vale do Javari. Sua pesquisa colocou em primeiro plano
as vozes que contam suas histórias e memórias do contato e seu relacionamento atual com
os grupos isolados e de recente contato. Jovens assistiram ao primeiro encontro dos Matis
com os agentes de Estado no rio Ituí. Trinta anos mais tarde, participaram, desta vez do
lado do governo, do contato com os Korubo em isolamento que viviam mais abaixo no
mesmo rio. Arisi explica que o isolamento foi uma estratégia encontrada pelos Korubo e
pelos Matis para reagir à ocupação de seu território. Eles não estavam isolados por
desconhecimento dos demais grupos, ao contrário, antes das terras serem ocupadas por
povos vindos de outras paragens, os índios participavam de um sistema de povos que
mantinham entre si diferentes tipos e graus de relacionamento. A proximidade que os
povos em isolamento e os já contatados é anterior ao contato oficial e revela muito das
relações que se estabelecem entre eles durante e após este novo encontro” (2007: 15-16).
Gow (2011: 11) explica as estratégias dos grupos indígenas em isolamento
voluntário na atualidade como uma recusa a um certo tipo de relação social, uma ação
intencional, e seu sentido é dado na interlocução com outros povos. No caso dos Mashco
ou Mashco-Piro, seus principais interlocutores são as comunidades indígenas Yine e
Manxineru, vizinhas aos seus territórios, e que estão construindo uma política de
representação e proteção desses povos isolados, a partir das relações estabelecidas entre
eles ao longo das suas histórias, e no decorrer de processos de resistência à colonização
e ao contato com o branco.
Citando a frase de Maurice Bloch (1977), que diz que “a pesquisa etnográfica é
uma longa conversa”, Gow (2011: 11) lançou um “desafio” para os antropólogos ao
problematizar a experiência etnográfica junto aos povos em isolamento: “Podemos ter
54
uma conversa assim longa com um povo como os Mashco?” A resposta é sim. Pois,
“apesar de não poder ser feita com o que eles nos contam, os Mashco já́ estão em um
longo diálogo com outros; ouvindo esse diálogo, entramos nessa conversa”. Para Gow,
quem melhor pode nos contar sobre os Mashco são os Yine, pois falam dialetos de uma
mesma língua.
Durante esta pesquisa, observei que yines e manxinerus têm suas histórias e
narrativas sobre quem são esses isolados, além de suas próprias denominações, categorias
e interpretações sobre suas territorialidades e estratégias de “isolamento”. Partindo dessa
situação epistemológica, busco adiante compreender discursos, ações e estratégias dentro
das relações de alteridade, parentesco, aliança e intercâmbio entre yines, manxinerus e
mashcos, considerando que os mesmos desenvolvem suas próprias concepções e políticas
entre eles. A seguir, veremos como a invasão dos territórios tradicionais dessas
populações, iniciada no final do século XIX com as “correrias” organizadas pelos
caucheiros e seringalistas, tem continuidade hoje com novos atores e a intensificação de
novas atividades extrativistas e ilícitas e de projetos desenvolvimentistas incentivados
pelos Estados Nacionais.

Acampamento Mashco-Piro encontrado em sobrevoo da equipe do


SERNAMP no alto Rio Las Piedras, em 2007. (Foto: Heinz Plenge)

55
3. Relações, estratégias e conhecimentos

O conhecimento que os povos indígenas têm sobre a floresta e seus seres, o uso
dos seus recursos, e acerca do comportamento de outras populações em suas atividades
culturais e de subsistência, é o que torna possível a identificação de povos e grupos ditos
“isolados” na atualidade. Na fronteira Brasil-Peru, os Manxinerus e os Yine, e outras
populações indígenas que vivem no entorno dos seus territórios, contam sobre seus
vestígios e caminhos usados desde os tempos de seus antepassados e sobre os seus
encontros, trocas e conflitos com esses indígenas.
As narrativas indígenas sobre aqueles que conseguiram escapar das correrias de
caucheiros e seringalistas, resistindo até hoje à novas perseguições e massacres
promovidos por missionários, madeireiros, garimpeiros, narcotraficantes e outros tipos
de invasores em seus territórios, trazem suas memórias dos processos de contato com os
brancos, bem como reflexões sobre as estratégias de resistência e re-existência dos povos
indígenas, frente às ameaças aos seus territórios e modos de vida.
Como bem observou antropólogo Bruce Albert (2002: 9-10), para se estudar o
pensamento indígena sobre os fatos e efeitos das situações de contato nos processos de
colonização da Amazônia é necessário abrir o foco da observação etnográfica à
diversidade de regimes expressivos (palavras, narrativas e discursos) e dimensões sociais
(ritos, trocas e conflitos) pelos quais as sociedades indígenas constroem sua articulação
com a fronteira envolvente e com a atuação de seus protagonistas. Ou seja, salientar o
trabalho e a criatividade simbólica e política dos povos indígenas, bem como a complexa
dialética entre transformação e reprodução, entre convenção e invenção, mobilizada em
seus projetos de continuidade social e cultural, e na busca da sua resolução.
“As diferentes formas de registro indígena de uma memória do contato, por meio
de narrativas cosmo-históricas, cruzando relatos do encontro colonial com teorias
simbólicas da alteridade, e com modelos de atuação interétnica, é um desafio ao nosso
cronologismo e objetivismo totalizante”, provoca Albert. Para os autores de "Pacificando
o Branco", as construções indígenas sobre o passado não podem ser reduzidas às suas
eventuais traduções estratégicas em termos do nosso próprio regime de historicidade, que
são impostas aos índios pelo modelo de justificação identitária dos seus direitos na arena
interétnica (2002: 15-16).

56
Essa crítica à uma visão etnocêntrica da história das sociedades humanas já havia
sido problematizada por Lévi-Strauss, quando se propôs a entender os inúmeros sentidos
da história e sua complexa diversidade de culturas e civilizações. Para o antropólogo, a
diversidade intelectual, estética e sociológica não deve ser concebida de uma maneira
estática. Em um trabalho etnográfico, devemos nos atentar, primeiro, na presença de
sociedades justapostas, umas ao lado das outras, umas próximas, outras mais afastadas,
mas, afinal, contemporâneas. Depois, levar em conta as formas de vida social que se
sucederam no tempo, e que não podemos conhecer por experiência direta (1993 [1952]:
330-332).
Gow (2006: 200) observou em seu trabalho de campo com os Yine no rio
Urubamba, no Peru, que as narrativas históricas dos nativos envolvem uma constante
referência ao parentesco e à posição de quem fala em relação ao passado. Questionando
a prioridade analítica da história, afirmou que a riqueza comparativa da documentação
histórica é ilusória num certo sentido. "Tanto missionários quanto viajantes nos proveram
de breves relatos sobre os povos nativos da área ao longo dos quatro últimos séculos, mas
em muitas áreas vitais a documentação é precária e enigmática".
Assim, minha abordagem neste capítulo explora o significado da história para os
povos indígenas, investigando como os processos de contato com a sociedade ocidental
são elaborados e ressignificados pelas populações indígenas vizinhas aos povos
"isolados" na atualidade. Alcida Rita Ramos (1990), explica que "para as sociedades
indígenas, o branco é um marco tão forte que sua imagem e influência precipitaram todo
um acervo de elaborações simbólicas, de mitos e movimentos milenaristas, a entidades
políticas, passando por cosmologia e tantas outras dimensões culturais. Sua imagem,
transformada em inúmeras versões locais, pervade os modos de pensar e de ser da maioria
dos povos indígenas e, assim, ao penetrar na vida dos índios, o contato interétnico tem
contribuído para a renovação de suas tradições" (Ramos, 1990: 139). Como bem destacou
Alvarenga (2016: 23), o que está em jogo, desde a atuação das frentes de expansão
colonial até as políticas indigenistas empreendidas pelos Estados, é a intensa produção de
significados que reverberam em decorrência do controvertido encontro entre a sociedade
nacional e a população indígena.
Assim, é possível recontar a história dos Mashco a partir das narrativas dos povos
indígenas, colocando em primeiro plano o ponto de vista das populações de seu entorno
e que mantêm relações intermitentes com esses índios. A partir das histórias e narrativas
dos moradores de duas comunidades, analiso como e porquê estão propondo outros
57
nomes e conceitos para se referir a esses povos sem contato com as sociedades nacionais,
como também desenvolvendo estratégias e ações concretas para proteção dos seus
territórios e modos de vida.
Os Manxineru da aldeia Extrema, no alto rio Iaco (Brasil), e os Yine da
Comunidade Nativa Monte Salvado, no médio rio Las Piedras (Peru), são populações que
compartilham a língua Arawak e seu sistema sócio-cosmológico, sendo considerados
conjuntos étnicos que fazem ou já fizeram parte de um mesmo povo que hoje habita uma
região de fronteiras internacionais. Também são vizinhos aos indígenas isolados
conhecidos como Mashco ou Mashco-Piro, com quem dividem recursos naturais dos seus
territórios demarcados. Além de falarem a mesma língua com seus diferentes dialetos,
essas populações possuem relações históricas de encontros, trocas e conflitos. Nas duas
comunidades também surgiram iniciativas pioneiras de monitoramento e vigilância
comunitária para a proteção desses povos e suas terras. Suas lideranças e organizações de
representação também estão construindo uma aliança política transfronteiriça em defesa
dos direitos dos seus "parentes" isolados.
Em território brasileiro e acreano, os Manxineru habitam hoje as Terras Indígenas
Mamoadate, Cabeceiras do Rio Acre, Riozinho do Iaco, esta última ainda não demarcada
e reconhecida pelo Estado. Existem ainda famílias vivendo em antigos seringais,
sobretudo no interior da Reserva Extrativista Chico Mendes, e em cidades acreanas. A
aldeia Extrema é a última aldeia do alto rio Iaco, afluente da margem direita do rio Purus,
e está localizada na Terra Indígena Mamoadate35 (mapa na pág. 60). Ocupada pelos povos
Manxineru e Jaminawa e indígenas isolados, a área foi identificada em 1977, demarcada
em 1986 e homologada em 1991. Com 314.647 hectares, está situada nos municípios de
Assis Brasil e Sena Madureira, fazendo limite a oeste com o departamento peruano Madre
de Dios.
No Peru, os Yine estão atualmente localizados em Comunidades Nativas nos
departamentos de Cusco, Loreto, Madre de Dios e Ucayali, e também vivendo em cidades
peruanas. Segundo os dados do Ministério da Cultura, sua população é estimada em 8.871
pessoas36. A Comunidade Nativa Monte Salvado (mapa na pág. 60) está localizada no

35
O limite oeste da TI Mamoadate é contíguo à fronteira com o Peru. A parte sul limita-se com a Estação
Ecológica do Rio Acre e a sudeste está localizada a Terra Indígena Cabeceira do Rio Acre. Ao norte, está
situado o Parque Estadual do Chandless. Segundo o censo demográfico do Distrito Sanitário Especial
Indígena do Alto Purus (DSEI-Alto Purus) de 2016, na TI Mamoadate vive uma população de 1165 pessoas
do povo Manxineru, em 12 aldeias, e 327 indivíduos do povo Jaminawa, em quatro aldeias.
36
De acordo com os resultados dos censos nacionais de 2017, 2.821 pessoas se identificaram como parte
do povo Yine em nível nacional devido a seus costumes e ancestrais; e quanto à língua ou língua materna
58
médio rio Las Piedras, na província de Tambopata, em Madre de Dios. Foi titulada em
2002 e é uma das portas de entrada da Reserva Territorial Madre de Dios para povos
indígenas em isolamento voluntário. Existem ainda populações Yine no departamento
Pando, na Bolívia.
Assim, busco nas próximas páginas adentrar na perspetiva dos moradores da
aldeia Extrema, como dos de Monte Salvado, que compartilham diversas histórias sobre
os seus "parentes que ainda vivem na mata". Nas últimas duas décadas, são cada vez mais
frequentes seus testemunhos sobre avistamentos, encontros fortuitos e evidências da sua
presença, como tapiris, flechas, restos de animais e outros objetos achados nos varadouros
da região. As informações dos indígenas vizinhos aos isolados são importantes, não
somente para confirmar a existência desses povos e suas "relações" com as sociedades
envolventes, mostrando como a sua situação de "isolamento" é relativa, como também
para subsidiar denúncias e minimizar os impactos das crescentes ameaças e
vulnerabilidades a que estão submetidos esses povos na atualidade.
Como parte do meu processo de pesquisa ao longo de mais de 10 anos, venho
colhendo diversas informações e depoimentos com as populações indígenas que vivem
no entorno dos territórios dos povos e grupos isolados na fronteira Brasil-Peru. Parte
desse material é apresentado a seguir com a pretensão de contribuir com novos elementos
para a discussão sobre as concepções e políticas indígenas sobre os povos "isolados" na
Amazônia. Hoje, o que sabemos sobre essas populações se deve, sobretudo, ao conjunto
de informações narradas pelos indígenas que vivem no seu entorno. Suas relações de
alteridade, troca e vizinhança com esses "povos sem contato" produzem um tipo de
conhecimento, não somente relevante, como estratégico para o desenvolvimento de
políticas de proteção para esses povos, em ambos lados da fronteira.

com que aprenderam a falar na infância, 2.680 pessoas afirmaram falar a língua Yine, o que corresponde a
0,05% do total de línguas nativas a nível nacional. (Fonte: https://bdpi.cultura.gob.pe/pueblos/yine).
59
60
3.1. Alto Iaco: memórias e narrativas do contato com branco

As histórias sobre os Mashco e suas andanças pelas florestas, rios e igarapés da


região fronteiriça são parte do imaginário e da memória coletiva das aldeias Manxineru e
Jaminawa do alto rio Iaco, na Terra Indígena Mamoadate. Seus moradores afirmam que
essas populações transitam pelos antigos varadouros utilizados pelos seus antepassados,
e pelos homens da borracha. Os mais velhos contam que seus pais e avós se encontravam
com esses grupos que andavam até o local onde é a aldeia Extrema hoje. Também
explicam que os violentos processos de contato com os brancos foram empurrando esses
índios para áreas menos habitadas da floresta, nas cabeceiras dos rios da região da
fronteira internacional.
Hoje, conversar com os Manxineru sobre os povos isolados com quem
compartilham seu território demarcado implica rememorar histórias do passado, dos
tempos das invasões dos europeus, das "correrias" dos caucheiros peruanos e bolivianos,
do trabalho escravo nos seringais e fazendas. Também os fazem refletir sobre os efeitos
dos encontros com o branco. Um dos moradores mais antigos da aldeia Extrema hoje é
Otávio Brasil Manchineri. Em uma entrevista37, ele me contou algumas histórias da sua
família sobre as situações de massacre e escravização vividas pelo seu povo no contato
com caucheiros e seringalistas no Iaco, nos séculos XIX e XX:

Entramos em contato com os brancos na época do caucho. Os peruanos


começaram a trabalhar com os indígenas, fazendo eles tirarem caucho do centro
das matas e usando as mulheres dos Manxineru. Uma tia minha que me contava
essas histórias. E ela contava que foi judiada mesmo pelos peruanos. Houve muito
massacre. Os caucheiros peruanos e bolivianos mataram muitos Manxineru. (...)
Eles varavam do Tahuamanu para o Abismo. Os Manxineru viviam na correria.
Nessa época houve uma guerra no Acre e muitos Manxineru foram embora para
o Peru. Então, esse foi o massacre que nós tivemos. Tem até o navio velho ainda,
está por lá pela boca do Abismo. Tem bananal, tem tudo. Isso foi em 1910, 1905
por aí. Essa história é velha. Depois, nós fomos para o seringal, para o rumo dos
patrões para cortar seringa e viver nessa vida com os brancos. Em 1975, 76,
chegou a FUNAI, e começou a nos juntar para morar na Extrema. (Otávio Brasil
Manchineri, entrevista em setembro de 2016).

37
Entrevista realizada em setembro de 2016, como parte do meu trabalho como assessora da Comissão Pró
Índio do Acre, na aldeia Betel, na Terra Indígena Mamoadate, durante uma oficina sobre monitoramento e
vigilância territorial com os povos Manxineru e Jaminawa.
Seu Otávio também me contou sobre a história do encontro dos Manxineru com
o seringalista Avelino Chaves, entre os igarapés Samarrã e Balseirão. "Nós vivemos aqui
à beira do Iaco a vida toda, somos daqui da beira do rio", explicou, recordando que seus
pais moraram no Seringal Petrópolis, e por isso nasceu e se criou lá. "Estive uns tempos
vivendo com os brancos, mas tornei a viver pro meu povo".
Os Manxineru, assim como outros povos indígenas do Acre, contam que no
"tempo das correrias”, muitos grupos resistiram lutando contra os invasores, ou fugindo
para áreas mais isoladas. Outros foram gradualmente incorporados à empresa seringalista
e suas redes de aviamentos. A partir de 1910, com a crise na economia da borracha, e a
diversificação produtiva ocorrida nos seringais, foram associados à categoria genérica de
"caboclo", passando a produzir borracha e a desempenhar uma ampla gama de atividades
nas terras dos seringalistas e fazendeiros, como também a se endividar pelo preço
inflacionado dos produtos fornecidos pelos patrões38. Essa situação perdurou até final dos
anos 1970, configurando um período histórico categorizado atualmente pelos índios e
indigenistas acreanos como "o tempo do cativeiro" (Aquino e Iglesias, 2005: 2).
As histórias dos tempos passados também foram registradas por pesquisadores
indígenas na língua manchineri, e traduzidas para o português em livros editados pela
Comissão Pró-Índio do Acre39. Em uma dessas publicações, o professor Jaime Llullu
Sebastião Prischico Manchineri, a partir de sua pesquisa em duas aldeias dos seus
parentes do rio Urubamba, no Peru, escreveu sobre os massacres que seu povo sofreu no
encontro com os brancos.

(...) quando os invasores europeus chegaram pela primeira vez aqui na América
do Sul, mais ou menos no século XVI, naquela época os nossos ancestrais
habitavam um rio atualmente conhecido pelo nome de rio Apurimac, situado no
rio Tambo no Peru. Foi nesse lugar que o meu povo sofreu massacre pela primeira
vez com os europeus, espanhóis, ameaçando-o com armas de fogo que nem em
sonho se conhecia. Aí que o meu povo começou a se espalhar em todos os lugares
dos rios e outros vararam na mata a procura de outros rios para que lá pudessem
sobreviver sem nenhum conflito e preocupação. Antes de terem contato, estes

38
Sobre processos de organização social entre os Manxineru do Alto rio Iaco, desde a invasão das
cabeceiras dos rios pelos exploradores da borracha, passando pela fixação das pessoas às margens dos
seringais e fazendas, até o momento em que se demarca a Terra Indígena Mamoadate, ver etnografia de
Marcos Almeida Matos (2018)
39
No projeto de educação da CPI-Acre, a “pesquisa indígena”, na proposta curricular, “é um espaço de
interação entre as diversas áreas curriculares do conhecimento e um facilitador na capacitação dos
professores indígenas”. Esta área foi iniciada através da sistematização do conhecimento produzido nas
várias etapas de formação dos professores ao longo do curso de magistério indígena (Manxineru,
2010:136).
62
povos, que atualmente são conhecidos com dois nomes diferentes: Manchineri e
Piro, chamavam-se Yine, que quer dizer “gente ou pessoa”. (Manxineru, 2010:31)

Em outro trecho do texto, Jaime descreveu a confusão de nomes geradas a partir


das situações de contato interétnico:

Quando os brancos perguntaram de qual povo eles eram, como ainda não tinham
conhecimento nem domínio da outra linguagem, eles responderam Manxineru,
querendo se expressar que, nós, somos do grupo Manxineru. A partir daí somos
identificados até agora como Manchineri. “Manxi” é uma árvore conhecida em
língua portuguesa - “inharé”, e “neru” quer dizer povo. Portanto, agora somos
conhecidos como Povo de Inharé". A mesma coisa aconteceu com as pessoas que
ficaram no Peru, quando tiveram primeiro contato com os caucheiros peruanos.
Os brancos espanhóis diziam para eles que esta terra será chamada Peru, portanto
quando já tiveram vários encontros com os brancos começaram a entender um
pouco a língua espanhola. Um dia chegaram umas pessoas que eram chamadas de
viajantes. Quando lhes perguntaram de qual povo eles eram, quiseram se
expressar “Somos do Peru”, mas por falta de entendimento e prática em língua
espanhola, disseram “Somos do Piro”. A partir daí os pesquisadores os
registraram com esse nome. Mas, na realidade, somos um único povo e não há
nenhuma diferença. Agora, a diferença é só pela divisão do território em que
habitamos atualmente. (Manxineru, 2010: 33-34)

Ainda na mesma publicação, os Manxineru do alto Iaco contam que no tempo de


"antigamente" existiam vários grupos com diferentes nomes: “Manxineru, Natshineru,
Koshitshineru, Kiruneru, Hahamluneru, Jiwutaneru, Heteneneru, Himnuneru,
Poleroneru, Wenejeneru e outros". Após ataques e perseguições dos europeus, tiveram
que fugir para todos os lugares. Outros não conseguiram, e foram dizimados. Um desses
grupos varou pela mata e depois de muito tempo de caminhada chegou a um rio que
atualmente é conhecido como Purus. Outros grupos de famílias fugiram pelo rio abaixo,
entraram em outros rios, para poderem se livrar da morte provocada pelos invasores,
foram morar nas cabeceiras dos igarapés, onde era muito difícil o acesso (Manxineru,
2010: 33-34).
Em outra publicação de 2015, explicam que, depois das guerras entre espanhóis e
Incas, eles vieram descendo os rios e ocupando o Purus e o Iaco, e os igarapés Abismo,
Mutum e Jurimagua. Após os contatos com caucheiros e seringalistas, começaram o
trabalho no corte de seringa e nas fazendas. Trabalhando para os patrões peruanos, os
Manxineru varavam do Iaco para Tahuamanu. Existiam muitos caminhos e barracões dos

63
caucheiros na boca do Abismo e nos igarapés Buenos Aires e Jurimagua. Até hoje há
sinais das marcas de corte nas árvores. Os Catiana que moravam no outro lado do seringal
Guanabara foram mortos por Avelino Chaves. Eles se espalharam e parte deles deu
origem a esses parentes que vivem hoje na floresta. (Manxineru, 2016a:11).
Em março de 2018, em uma de suas passagens por Rio Branco, capital do Acre,
Otávio Manchineri me contou histórias sobre os seus "parentes" que vivem na mata. Em
uma tarde de conversa, ele e seu filho, o professor e pesquisador Lucas Artur Brasil
Manchineri, me ajudaram a mapear os territórios de ocupação e deslocamento desses
isolados na TI Mamoadate para um diagnóstico que eu realizava para a FUNAI na época.
Seu Otávio me falou que começou a ouvir as histórias sobre os índios "arredios" por volta
dos anos 1960, quando ainda era jovem e os brancos ainda chamavam esses índios de
"caboclo brabo". Recordou que, em 1957, um "caçador da Fazenda Petrópolis subiu o
Iaco atrás de ovo de tracajá e encontrou paneiros e flechas desses índios, três voltas abaixo
do igarapé Abismo". No ano seguinte, dois Manchineri (Miguel e Antonio Salomão)
encontraram um grupo Mashco e seu acampamento próximo a boca do igarapé Moa.
Também afirmou que, em 1960, a equipe da Petrobras teve seu batelão e outros barcos e
motores afundados pelos isolados próximo a boca do igarapé Paulo Ramos, quando sua
equipe realizava prospeção no alto Iaco, abrindo uma picada até o Chandless40.
Durante a conversa, Otávio e Lucas recordaram ainda das histórias da vovó
Clotilde, que dizia que esses índios eram seus "parentes". Otávio relatou que uma vez ela
lhe contou que, por volta de 1940, uma família Manxineru se juntou ao Mashco na mata
e nunca mais voltou:

Tinha um homem que tinha duas mulheres, aí uma delas desgostou do marido. Ela
tinha três filhos (dois homens e uma mulher) e a mãe. Aí todos fugiram do marido.
Aí passou muito tempo, e o cunhado dela achou eles, no Iaco mesmo. Ele chamou
o sobrinho para ir até onde eles estavam. Eles disseram que iam acompanhar o tio.
O sobrinho disse “não, tio, vai andando que nós vamos atrás”. Aí o tio foi embora,
besta, foi embora, e eles não foram mais atrás do tio. Daí ele foi embora. Essa
família sumiu e até hoje eu acho que essa que viraram Mashco também. (Otávio
Brasil Manchineri, entrevista em março de 2018).

40
José Sebastião Manchineri e Alberto Nunes Pacaya, finado morador do alto Chandless, também contam
a história sobre as "andanças" da equipe da Petrobras nos caminhos usados pelos indígenas na região
(comunicação pessoal, 2018).
64
Lucas Manchineri contou também uma história que ouviu do seu tio Chico,
reafirmando a hipótese de que "alguns parentes se juntaram ao grupo grande" que não
havia sido contatado pelos seringalistas:

Teve um grupo de manxinerus que fizeram uma caiçumada de despedida deles.


Aí fizeram a festa do urubu. Começaram a dançar a noite toda. Aí esse grupo foi
embora, não ficou mais com os Manxineru que estavam contatados. Então,
provavelmente, são eles, que hoje já estão misturados com Mashco. Eles fizeram
a festa lá na Extrema com esses parentes mais antigos, que já tinham contato.
Vieram e fizeram festa e foram embora. Depois disso, aconteceu de novo com
essa mulher que desgostou do marido e foi embora também, não quis o contato.
Os mais velhos já tinham contato com o branco. (Lucas Artur Brasil Manchineri,
entrevista em março de 2018).

O velho José Sebastião Manchineri, conhecido também como Zé Barrão, um dos


mais antigos moradores da Extrema, também me contou que seu pai, quem lhe ensinou a
trabalhar no seringal, sempre falava histórias sobre esses índios: "Já ouvi muito, do tempo
que ele vivia, do tempo que a mãe dele vivia, do tempo que a vó dele vivia, do tempo que
a minha mãe também sempre contava histórias de gente mais velha". Explicou ainda que
o nome desses índios, "na tradição é Yine Hosha Hajene, gente que vive na mata". Esta
denominação para os grupos isolados que “desciam pelo Abismo e subiam o Iaco, ou
desciam o Iaco e subiam o igarapé Abismo", apareceu também nas publicações do
Etnomapeamento e do Plano de Gestão da Terra Indígena Mamoadate (2016). Lucas
Manchineri, que vem se dedicando a pesquisar "seus parentes isolados” há mais de 10
anos, afirmou em entrevista:

Os Mashco-Piro têm uma relação forte no alto Iaco. Desde 1960, 1970, quando
os Manxineru mais velhos andavam lá, já tinha esse contato, esse encontro com
eles. Desde aquela época, eles sempre aparecem. O pai sempre me conta, e minha
mãe também, que naquela época que eles subiam encontravam os tapiris dos
parentes. Alguns se encontravam com eles e escutavam eles falando. Então, a
gente já tem esse contato há muito tempo, só não conversamos pessoalmente para
evitar problemas. (...). Um dia eu estava perguntando ao vovô Luiz Brasil, de onde
é que veio esse nome, Mashco, Mashco-Piro? E ele disse: não, Mashco não
existia, não sei quem colocou o nome, na nossa língua Mashco-Piro quer dizer
mulher nua. O certo é Yine Hosha Hajene, que na língua manchineri significa
gente que ainda vive na mata. (Lucas Artur Brasil Manchineri, entrevista em junho
de 2017)

65
Mais recentemente, Lucas também cunhou o termo “povo desconfiado” para se
referir a todos os indígenas que decidiram não acreditar nas pessoas estranhas.
Problematizando termos e categorias oficiais que denominam esses indígenas de
“isolados” ou em “isolamento voluntário”, como também de Mashco ou Mashco Piro,
Lucas afirma que esses povos, na verdade, não sabem o objetivo daqueles que vêm ao seu
encontro e, por isso, são “desconfiados”. “Há muito tempo os povos indígenas sofrem
com os nomes errados dados pelos brancos, desde o começo dos contatos dos
colonizadores da América” (Brasil Manchineri, 2019: 170).
Em dois artigos recentes, Lucas discorre sobre a perspetiva Manxineru sobre os
índios isolados. Em um deles, escrito com mais duas autoras, discute como a
territorialidade dos Yine Hosha Hajene foi criada na TI Mamoadate por vários motivos e
pelas interações de vários atores, como outras comunidades indígenas, organizações
governamentais e não governamentais, que atuam na promoção dos direitos desses povos.
O texto aborda as interpretações Manxineru a respeito do isolamento desses grupos,
trazendo a argumentação de que suas escolhas políticas em relação à proteção dos
isolados são baseadas fundamentalmente na memória do contato do seu povo com o
branco (Brasil Manchineri et al, 2018: 43).
Os autores do artigo explicam que, para os Manxineru, os vestígios identificados
e os encontros físicos na região da fronteira Brasil-Peru são evidências de que os Yine
Manxinerune Hosha Hajene vivem hoje segundo seus valores e casamentos tradicionais.
Apesar da vida deles ter mudado ao longo dos anos, os isolados possuem conhecimentos
ecológicos tradicionais, saberes alimentares e medicinais valiosos necessários para o bem
viver na floresta. A cultura material e imaterial interessa aos Manxineru, pois lamentam
terem perdido muitos conhecimentos durante o processo de colonização (ibid.).
Ainda segundo o artigo, os isolados vivem no território que pertenceu aos seus
ancestrais antes dos colonizadores quando os diversos grupos Yine tiveram autonomia
administrativa de seus territórios e possuíam conhecimentos mais profundos da floresta.
Assim, os Manxineru falam que se preocupam com o futuro de seus parentes, pois não
querem que aconteça o mesmo que aconteceu com eles, e porque são os detentores de
conhecimentos ancestrais perdidos por eles no contato com os brancos. (Brasil
Manchineri et al, 2018: 49).
Em sua etnografia sobre os Manxineru do alto Iaco, Matos (2018: 286) observa
que a ausência do sal, juntamente com a das roupas, é um diacrítico sempre presente para
apontar o que distingue os Yine Hosha Hajene de outros conjuntos indígenas. Explica
66
ainda que “essa ausência conota também o fato de que esses povos que vivem na floresta
- isto é, que não “saíram” (rijpaka) para as margens dos rios, onde estão todas as aldeias
indígenas hoje em dia - estão alijados das redes comerciais capitalistas”.
“Não queremos mais massacres!”, respondeu a Mateus Manchineri, que vive na
aldeia Extrema, quando perguntei sobre sua motivação no trabalho em defesa dos povos
isolados na atualidade. Na entrevista, realizada em janeiro de 2021, ele me explicou:

Na época dos nossos avós, dos nossos pais, das correrias, sofríamos muito nas
mãos de patrão. A gente não quer mais que ninguém sofra. Tem muita história da
minha avó contando o que a gente sofria. Como a gente conversa muito com o
Lucas, um dia falei para ele que tinha muita vontade de trabalhar com esses
parentes para ninguém mais ameaçar eles. Eu nunca os vi, mas já vi seus tapiris
e digo que estão chegando perto porque estão imprensados. Nós sabemos qual é
o nosso território e onde buscar solução e ajuda. A gente tem que proteger para
eles não saírem para todo canto. Na verdade, eu me sinto muito nesses parentes
que ficam no mato. Ficam falando por aí que a gente quer muita terra. Mas não é
só para nós que queremos esse território. Mas também para esses parentes que
vivem na mata. Essa terra é nossa antes dos portugueses chegarem. Como a gente
vai deixar isso? A gente sempre protege o território e a mata também. Nós somos
espíritos da mata, somos espíritos de uma árvore. Na verdade, hoje a gente não
sabe mais como antigamente, como é o espírito mesmo. A gente está estudando,
eles [isolados] não. Eles não precisam de bússola e GPS para andar na mata, pois
são guiados por espíritos. Então, é por isso que a gente quer proteger eles”.
(Mateus Manchineri, entrevista em janeiro de 2021)

A partir desses depoimentos e produções dos próprios indígenas, fica claro que,
ao recordar as suas próprias experiências de contato com o branco, e os tempos que seus
antepassados sofreram nas mãos de caucheiros e seringalistas, os Manxineru são
instigados a defender os seus territórios e modos de vida, bem como o conhecimento dos
seus "parentes desconfiados", agora ameaçados em novas "correrias" promovidas por
madeireiros, narcotraficantes e outros invasores na fronteira Brasil-Peru. Além disso,
criam novas categorias para identificar essas populações, baseadas em suas relações,
conhecimentos e estratégias.

67
3.2. Chegada da FUNAI: registros de vestígios, encontros e conflitos

Os relatos sobre a existência de indígenas sem contato com a sociedade nacional,


no alto rio Iaco, começaram a ser registrados de forma sistemática na segunda metade da
década 1970, a partir da chegada da FUNAI no Acre41, e da instalação do Posto Indígena
(PI) Mamoadate e da aldeia Extrema, assentando indígenas Manxineru e Jaminawa que
se encontravam trabalhando nas fazendas Guanabara e Petrópolis, e em outros antigos
seringais, nos dois lados da fronteira internacional. Em uma conjuntura marcada pelo
surgimento de conflitos de terras e pela compra dos seringais pelos migrantes do sul e
sudeste do país, inaugurou-se a atuação de órgão indigenista federal no território acreano.
No alto Iaco, por volta de 1975, instalou-se entre eles a Missão Novas Tribos do
Brasil, que já havia realizado contato com os Jaminawa do Betel anos antes (Acre,
2006:28). Em julho de 1976, chegam os sertanistas da FUNAI para iniciar o processo de
demarcação de uma Área Indígena (AI), junto com as famílias indígenas. A escolha do
local do PI, a um dia rio acima da Fazenda Petrópolis, deu-se por se tratar de uma antiga
maloca Manxineru, e de um lugar com maior fartura de caça e pesca (Aquino e Iglesias,
2008: 3). Os chefes de família decidiram junto com os funcionários da Funai demarcar a
terra desde o igarapé Mamoadate até a faixa de fronteira com o Peru (Matos, 2018: 293).
No relatório da FUNAI, intitulado “Jaminaua e Machineri do Alto Rio Iaco”,
Noraldino Vieira Cruvinel e José Porfírio de Carvalho registraram a presença de “índios
arredios possivelmente aparentados dos Manchineri” e de conflitos entre indígenas na
região. Também observaram que na bibliografia consultada era frequente as referências
de indígenas “não conhecidos” no divisor de águas dos rios Iaco, Acre, Chandless e
Tahuamanu:

Mais recentemente pululam notícias sobre um grupo arredio possivelmente


aparentado dos Manchineri, habitando as cabeceiras do rio Iaco, mais
especificamente acima do igarapé Abismo. Em nossas conversas com os
Manchineri, estes nos informaram que a cerca (sic) de quatro anos atrás, dois
índios do grupo Manchineri ainda vivos atualmente, mataram dois homens e uma
mulher indígenas no referido local, por serem bravos, e por temer que avisassem

41
A sujeição das famílias indígenas na empresa seringalista começou a se modificar a partir de meados dos
anos 1970, quando o órgão indigenista oficial promoveu os primeiros levantamentos na região e instalou
uma Ajudância na cidade de Rio Branco, passando verificar a situação dos indígenas no Estado do Acre,
que até então eram dados como extintos e/ou vivendo como escravizados nos seringais. (Aquino e Iglesias,
2005:2).
68
aos outros e viessem atacar espaçadamente, os Machineri e Jaminaua (FUNAI,
1977).

O informe dos indigenistas e antropólogos da FUNAI descreveu ainda sobre


vestígios encontrados no verão de 1976, na margem do Iaco, acima do igarapé Abismo,
pelo sertanista José Carlos dos Reis Meireles, que trabalhou durante 10 anos como chefe
do PI Mamoadate, e um índio que o acompanhava: “um tapiri construído com folhas de
coqueiro, erguido recentemente, além de pontas e pedaços de flechas, feitos com material
abundante na área e sem o uso de instrumento de ferro” (FUNAI, 1977).
Na época, Meireles observou que esses "bandos de índios arredios e nômades",
chamados de "Masko" pelos Jaminawa mais velhos, “seus inimigos tradicionais",
habitavam as cabeceiras dos rios Iaco, Chandlees, Purus e Tahuamanu na região
fronteiriça. Em 1984, Meirelles relatou informações sobre os caminhos percorridos pelos
isolados entre os limites peruanos e brasileiros, destacando que seus deslocamentos
aconteciam, sobretudo, no verão amazônico, quando descem igarapés e rios para a coleta
de ovos de tracajá (FUNAI, 1984):

Eu mesmo já encontrei acampamentos desses índios do igarapé Abismo para cima


no ano passado. Este igarapé e suas redondezas, poderíamos chamar de "grande
supermercado de abastecimentos" dos Jaminaua e Machineri do PI Mamoadate,
que frequentemente sobem o Rio Iaco para se abastecerem de caça e peixe,
abundantes na área deste igarapé até o limite oeste da reserva do PI Mamoadate,
coincidente com o limite Brasil-Peru. Os Masko aparecem nesta região, sem
regularidade previsível, e quando o fazem, no início de junho, época em que nós
do PI Mamoadate ainda estamos nos preparando para subir o rio a procura de caça,
peixe e ovos de tracajá, os últimos do dia 15 de junho em diante, tempo em que
os Masko normalmente já se encontravam subindo o Iaco, dentro do território
peruano (FUNAI, 1984).

Os antigos relatórios do sertanista, hoje aposentado da FUNAI, falam dos


"encontros esporádicos que aconteciam entre os Jaminawa e os Mashco, resultando
sempre com mortes de ambos lados: "Acham os Jaminawa, que matando um Masko, toda
'marupiara' (sorte para matar caça), do morto passa ao matador, cumprida uma série de
dietas e resguardos". Meirelles relatou ainda que "há sete, oito anos atrás, alguns
Jaminawa mataram de tiro de arma de fogo, alguns Masko, dentro do Igarapé Moa, na
Área Indígena Mamoadate" (FUNAI, 1984). José Correia da Silva, ou Tunumã, cacique
do povo Jaminawa, e uma das lideranças mais destacadas do movimento indígena do Acre

69
nas últimas décadas, me contou que “há muitos anos atrás, para o povo Jaminawa, dentro
da sua cultura, quem não mata, não é respeitado dentro da comunidade”. Também
comentou, em entrevista, que:

Antigamente, o povo Jaminawa ia atrás de matar os coitados dos Mashco.


Mataram muito. Eu tenho 62 anos. Eu tinha uns 15, 16 anos. Faz muito tempo.
Eles subiam o Iaco. O tio Alcides matou duas mulheres, o véio Paraíba também.
Nós não víamos eles como pessoa, não sei nem como explicar. Quem dirigia eram
os outros, vovô Clementino, vovô Napoleão, esses mais velhos que dirigiam essas
coisas. Quando entrei como liderança, com 16 anos de idade, comecei a perceber
que tinha alguma coisa errada. A primeira coisa que fiz foi suspender e dizer que
ninguém mais podia mexer com esse pessoal (José Correia Jaminawa, entrevista
em junho de 2017).

O líder Jaminawa, que também é um dos mais antigos servidores FUNAI no Acre
em atividade, afirmou que seu povo usa a palavra "Masko" para se referir ao grupo de
isolados que anda nas cabeceiras dos rios: “Mashco-Piro é no Peru. Eu não sei como
inventaram isso, mas desde que me conheço por gente é “Masko". Zé Correia, como é
mais conhecido, também conversou sobre os isolados, em décadas passadas, com o
antropólogo e indigenista Terri Vale do Aquino, atualmente aposentado da FUNAI. Em
uma entrevista, publicada em 9 de outubro de 1988, na Coluna Papo de Índio, do Jornal
A Gazeta do Acre, Tunumã contou a Terri que:

Os nossos parentes mais velhos já fizeram muitas correrias contra esses bandos
nômades de Mashco brabos. E quando matavam um deles faziam uma dieta
danada, porque eles acreditavam, e ainda hoje acreditam, que com isso vão ter
muita sorte nas caçadas e vão ser respeitados pelos nossos próprios parentes. Isso
faz parte da nossa cultura Jaminawa. Nós chamamos esses índios brabos de
Mashco porque eles são nômades, e não têm canto certo para viver. Não são iguais
a outros parentes brabos que plantam roçados e fazem suas malocas. Esses brabos
vivem em bandos grandes de 80 a pouco mais de 10 índios brabos. Vivem
andando de um rio para o outro, que nem queixada, sem canto certo (Aquino, 2012
[1988]: 133)

Uma das histórias mais comentadas no alto Iaco envolvendo conflitos com os
Mashco ocorreu na foz do igarapé Moa, em 1984. Otávio Manchineri, Meirelles e seu
sogro, Antônio Figueiredo, subiram o rio para caçar e pescar e foram surpreendidos e
ameaçados por um grupo grande de índios Mashco. Em seu relatório, arquivado como

70
confidencial pela FUNAI42, o sertanista descreveu com detalhes o histórico conflito que
resultou na morte de um isolado.
Os três saíram da aldeia Extrema subindo o Iaco, no dia 14 de julho, como faziam
todos os anos nessa época. Quatro dias depois, chegaram à foz do Moa e fizeram um
acampamento na praia. No dia 21, Otávio saiu do acampamento de madrugada e subiu o
rio em busca de covas com ovos de tracajá. Quando voltou disse que havia atirado em
uma anta. Meirelles e Otávio foram então “rastejar” a anta, mas ela já tinha ido embora.
Meirelles voltou para o acampamento, e Otávio subiu novamente o rio “praiando”
(FUNAI, 1984). Em entrevista, Otávio me contou que, quando estavam perto da fronteira,
onde tem o marco da divisa Brasil-Peru, começou a sentir os sinais da presença dos
Mashco, quando viu garças voando pertinho, “riscando tudo”, e os tracajás caindo na
água. Depois, escutou assobios suspeitos.

Quando cheguei na metade da praia, do estirão, ouvi alguém assoviar. Tornei a


marchar para frente, e tornaram a assoviar. Aí já botei o rifle aqui para não levar
nas costas. Rapaz, não andei 50 metros e lá vem o cara. Era um Mashco. Era um
deles. Fiquei parado lá um pouquinho. Ele se assustou, e eu me assustei. Falei
com ele na gíria, não entendeu nada. Foi chegando e chamando os outros com a
mão olhando para mim. Não demorou nada, encheu de Mashco a praia todinha.
Ainda tinha uma fila por cima da praia. Eram muitos. Nem podia contar, não dava
tempo. Com medo corri, não queria fazer mal a eles (Otávio Brasil Manchineri,
entrevista em março de 2018).

Quando Otávio chegou ao acampamento na boca do Moa para avisar aos outros,
já era tarde. Os Mashco cercaram os três enquanto ajeitavam o barco para fugir. Meirelles
acenou para os índios na tentativa de convencê-los a irem embora, mas a resposta foi uma
chuva de flechas. “O ataque começou”. No momento tenso de fuga, enquanto tentavam
correr e ao mesmo tempo desviar das flechas, um dos Mashco esticou o arco em direção
ao seu sogro, a uns 10, 15 metros de distância. Em seu relatório, Meirelles narrou sua
reação de legítima defesa: "Atirei e o índio caiu. Os outros correram para cima da gente
flechando e gritando. Corremos só com a roupa do corpo, duas praias e um estirão".
Depois do incidente, os três desceram a pé o rio Iaco, até a Boca do Igarapé
Abismo. No final do dia, encontraram alguns Jaminawa que estavam subindo o rio e

42
Relatório obtido com o jornalista Rubens Valente, que realizou uma pesquisa nos arquivos sigilosos da
SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e da FUNAI, na época da ditadura militar no Brasil, e que foi publicado
no livro “Os Fuzis e as flechas: histórias de sangue e resistência indígena na ditadura” (São Paulo:
Companhia das Letras/2017).
71
contaram o ocorrido. Meirelles relatou ainda que eles viajaram a noite toda, e quando
chegaram ao acampamento encontraram as coisas deles jogadas no chão, a maioria
intacta, e que o índio em que teve que atirar estava enterrado, coberto com pouca areia e
palhas (FUNAI, 1984). Em entrevista, Assis Mendes Jaminawa me disse que participou
da busca pelos Mashco em 1984, relatando o que viu e o que o motivou a ir atrás desses
índios na época:

Deixaram as coisas deles tudinho, motor, rede. Depois nós fomos atrás. Nós
queríamos matar os Mashco. Fomos até com espingarda, chegamos de noite.
Vimos um bocado de onça na praia, rapaz. Chegou de manhãzinha encontramos
uma flecha e, depois, o índio enterrado. (...). Nós queríamos também matar, diz
que é para ficar valente. Quando a gente vai atrás deles é para nós ficar valente.
Eles queriam atirar, mas aí meu pai disse: Não, não atira não. Não vale atirar assim
porque já está morto (Assis Mendes Jaminawa, entrevista em agosto de 2017).

Otávio Manchineri relembrou ainda que, um ano após o conflito no Moa, em 1985,
seu Francisco Benjamim Manchineri encontrou um acampamento com 16 tapiris dos
Mashco, nos afluentes do igarapé Jurimagua no alto Iaco, e durante uma expedição da
FUNAI para demarcação física da Terra Indígena Mamoadate. Nesse momento, algumas
lideranças, como Zé Correia e Zé Urias Manchineri estavam mobilizadas na luta pelo
reconhecimento do seu território pelo Estado brasileiro.

3.3. Movimento indígena e política do "não contato" no "tempo dos


direitos"

No Brasil, a partir da década de 1970, diversos processos convergiram para uma


maior abertura política para os povos indígenas, enquanto a ditadura militar, instaurada
em 1964, produzia novos massacres. Com suas políticas de desenvolvimento para a
Amazônia, o governo começava a rasgar a floresta com rodovias. Em distintas regiões,
muitos povos foram tragicamente atingidos por doenças e mortandades, após as
expedições de contato das "Frentes de Atração" do órgão indigenista, com sua orientação
integracionista e tutelar. Por outro lado, lideranças indígenas de diferentes povos e regiões
do país começavam a se mobilizar para exigir o reconhecimento dos seus direitos,
sobretudo, os territoriais.

72
As graves denúncias de violências praticadas contra os povos indígenas pelo
governo militar sensibilizaram a comunidade internacional e diversos setores da
sociedade brasileira, dentre eles a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, (CNBB),
que criou, em 1972, o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), imprimindo um novo
estilo no trabalho da Igreja Católica com os povos indígenas, baseado, principalmente, na
defesa da terra. No final dos anos 1970, a repercussão da realidade indígena pela
imprensa, em meio à atmosfera densa da pré-anistia, contribuiu para o surgimento de
diversas organizações civis de apoio à causa. Entres elas, as chamadas Comissões Pró-
Índio.
A Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) foi fundada em 1979, "enquanto meio
para viabilizar alternativas concretas para que os povos indígenas assegurassem a posse
de seus territórios e pudessem gerenciá-los com autonomia". Inaugurando o chamado
"tempo dos direitos” do indigenismo acreano, a CPI-Acre fomentou, paralelamente ao
processo de criação das terras indígenas, a implementação de cooperativas e de escolas
indígenas com o intuito de substituir o esquema vigente nos seringais43.
Com o apoio dos parceiros da sociedade civil e da opinião pública, diversas
organizações indígenas foram criadas nos 1980 em todo o país, protagonizando a luta
pela garantia das suas terras e de seus direitos históricos. Em 1988, finalmente foi
promulgada a Constituição Federal, reconhecendo aos povos indígenas “sua organização
política, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam”.
Nesse contexto, as organizações da sociedade civil iniciaram as discussões sobre
a situação de risco dos povos isolados e de recente contato. Em outubro de 1986,
aconteceu um encontro, organizado pelo CIMI e OPAN (na época Operação Anchieta,
hoje Operação Mata Nativa) onde participaram representantes de organizações como
União das Nações Indígenas (UNI), Centro Ecumênico de Documentação e Informação
(CEDI), Centro de Trabalho Indigenista, Comissão Pró-Índio de São Paulo, entre outras.
O comunicado final do encontro alertou sobre a gravidade da situação, criticando a
atuação da FUNAI, e seu plano para atração de grupos indígenas isolados, com o objetivo

43
Com a saída dos patrões seringalistas, a ideia era que os índios passassem a administrar a sua produção
de borracha e suas relações com a sociedade envolvente. Para isto, fazia-se necessária a capacitação de
alguns deles, o que incluía a alfabetização e o domínio de operações matemáticas. Informações coletadas
na página da Comissão Pró-Índio do Acre. Disponível no endereço: https://cpiacre.org.br
73
de facilitar a implantação de projetos governamentais de infraestrutura e exploração
mineral em seus territórios44.
Em junho de 1987, ocorreu o “I Encontro de Sertanistas” da FUNAI para discutir
a questão dos povos isolados e avaliar a situação dos recém-contatados. Passados 20 anos
de criação do órgão indigenista (herdeiro do Serviço de Proteção ao Índio - SPI), os
sertanistas refletiram sobre as trágicas consequências da política de atração do Estado
brasileiro propondo uma mudança do paradigma do “contato” para o “não contato”,
enquanto premissa de ação indigenista. Neste momento, os sertanistas refletiram
conjuntamente sobre a realidade vivida junto aos povos indígenas em diversas regiões do
país, notando a situação de penúria em que se encontravam e a falência do modelo da
atração como forma de integração dos povos indígenas à sociedade nacional.
Considerando o histórico das atrações nas décadas anteriores, a territorialidade indígena
e a evolução do direito internacional sobre a autodeterminação desses povos, propõem
que o enfoque da proteção de isolados passe a ser a interdição e o controle de acesso às
áreas onde vivem esses povos (Alves, 2019: 67).
Para desenvolver a nova política, e implementar o “Sistema de Proteção ao Índio
Isolado”, a FUNAI instituiu um departamento específico para planejar, supervisionar e
normatizar as atividades relacionadas à localização e à proteção dos índios isolados (Vaz,
2011:12). A partir desse momento, as políticas desenvolvidas pelo Estado para esses
povos passaram a ser pautadas pelo respeito à sua autonomia e autodeterminação, e à sua
opção pelo "isolamento". Na época, o Departamento de Índios Isolados (DII), atual
Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC), foi organizada
por Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), com o objetivo de monitorar e proteger o
entorno as áreas habitadas pelos povos isolados, além de viabilizar estudos de
identificação e demarcação das suas terras.
No Acre, em 1987, devido ao acirramento dos conflitos entre indígenas isolados,
Ashaninka, Kaxinawá e seringueiros, nas bacias dos rios Envira e Jordão, que resultaram
em mortes de ambos lados, foi criada a Frente de Atração Rio Jordão. O sertanista
Meirelles, que chefiava o Posto Indígena Mamoadate, foi designado a coordenar a Frente,
que teve sua base estabelecida na margem direita do Rio Envira, em frente à foz do
igarapé Xinane, próximo à fronteira com o Peru. No ano seguinte passou a se chamar
Frente de Contato Envira (FCE), denominação que seria alterada em 2000, para Frente

44
Informações coletadas na página do Instituto Socioambiental (ISA). Disponível no endereço:
https://www.povosindigenas.org.br/pt/Isolados:_historico
74
de Proteção Etnoambiental Envira (FPEE). A unidade descentralizada do órgão
indigenista45 passou a trabalhar na proteção territorial e na promoção dos direitos dos
indígenas isolados no Acre, desenvolvendo, dentre outras ações, atividades de localização
e monitoramento dos registros sobre sua presença, e de vigilância dos seus territórios.
Em décadas passadas, a FPEE considerou a existência de, ao menos, quatro povos
indígenas isolados diferentes no estado do Acre, conhecidos como “Isolados do Humaitá,
“Isolados do Riozinho”, Isolados do Xinane” e "Mashco-Piro”. Hoje, após o trabalho de
qualificação dessas informações, a FUNAI identifica em sua base de dados oito
registros46 da presença de índios isolados no Acre, seis deles confirmados e dois em
estudo. Três delas se referem ao povo Mashco ou Mashco-Piro. Além do trabalho de
localização e monitoramento desses registros, a FPEE é responsável pela pesquisa dos
relatos sobre a presença de isolados entre as populações do seu entorno.
Das 36 Terras Indígenas no estado do Acre, 11 são habitadas permanente ou
sazonalmente por povos indígenas isolados. A maioria delas se situa nos altos cursos de
afluentes das bacias do Purus e Juruá, na fronteira com o Peru. Esses territórios também
são ocupados tradicionalmente pelos povos Ashaninka, Jaminawa, Kaxinawá (Huni
Kuin), Kulina (Madiha) e Manxineru. Além disso, a presença de isolados é verificada em
unidades de conservação e em áreas próxima de comunidades ribeirinhas da região
(Octávio el al, 2020).
O reconhecimento e a regularização fundiária de terras indígenas, fruto da
mobilização dos povos indígenas na luta pelos seus direitos, além do trabalho iniciado
pela Frente de Proteção Etnoambiental Envira, no final dos anos 1980, foram
determinantes para o aumento populacional de alguns povos e grupos indígenas isolados
e a reocupação de partes de seus territórios tradicionais. Por outro lado, a partir dos anos
2000 houve um aumento expressivo da atividade madeireira e do narcotráfico no Peru,
acarretando novas pressões sobre os territórios indígenas em ambos os lados da fronteira.

45
A Frente de Proteção Etnoambiental Envira (FPEE) atua hoje em uma extensa área de mais de dois
milhões de hectares, abrangendo terras indígenas e unidades de conservação nos municípios de Feijó,
Tarauacá, Jordão, Cruzeiro do Sul, Assis Brasil, Sena Madureira, Rodrigues Alves, Mâncio Lima e Manoel
Urbano. A FPEE tem como ponto de apoio duas Bases de Proteção Etnoambiental: a Base Xinane,
localizada na TI Kampa e Isolados do Rio Envira, e a Base D’ouro, na TI Alto Tarauacá (Octavio et al,
2020: 51)
46
Registro é a unidade básica utilizada pela FUNAI no processo de investigação e sistematização de dados
sobre a presença (comprovada ou não) de indígenas isolados. Tendo em vista que o principal critério de
organização dos registros é a localização geográfica desses dados, diferentes registros podem se referir a
grupos de um mesmo povo. A metodologia utilizada envolve atividades como pesquisa documental e
bibliográfica, levantamento de relatos junto a populações indígenas e não indígenas, análise de imagens de
satélite, sobrevoos e expedições em campo. (Octavio et al, 2020: 29).
75
Desde então, vêm acontecendo reordenamentos territoriais de grupos isolados na região
fronteiriça, além da redefinição das suas áreas de uso e deslocamento. São cada vez mais
recorrentes as "visitas" e saques dos isolados em aldeias e acampamentos de indígenas e
ribeirinhos, gerando apreensão e risco de situações de contato com povos isolados (CPI-
Acre et al, 2016).

3.4. Las Piedras: os Yine de Monte Salvado e suas relações com os


“isolados”

A Comunidade Nativa Monte Salvado47, localizada no médio rio Las Piedras é


atualmente um dos lugares mais emblemáticos para se analisar a relação entre indígenas
“isolados” e seus vizinhos “contatados" pelo Estado. Nas últimas décadas ocorreram
diversos encontros e diálogos entre seus moradores e grupos Mashco-Piro. Além disso,
ao focalizá-la adentramos no contexto das diversas pressões sobre os seus territórios ao
longo da história, bem como nas narrativas indígenas sobre o porquê do seu “isolamento".
Monte Salvado foi fundada na confluência do igarapé Lídia com o rio Las Piedras,
afluente do Madre de Dios, em 1996, por indígenas Yine vindos do rio Urubamba, que
estavam reocupando antigos territórios onde viveram seus antepassados quando
trabalhavam nos acampamentos de caucheiros, como Carlos Scharff, no início do século
XX. Em uma entrevista realizada em 201948, Teodoro Sebastian Monte, um dos
fundadores da comunidade, contou que, após a invasão dos seus territórios na época da
borracha, os Yine tiveram diversos conflitos com os caucheiros, dispersando-se para
diferentes sítios e, consequentemente, sendo separados pelas fronteiras nacionais que se
constituíram. Em outro depoimento, registrado em 201649, Teodoro explicou que aqueles
que fugiram das correrias são chamados hoje de Mashco-Piro:

47
A "Ley de Comunidades Nativas y Desarrollo Agrario de las Regiones de Selva y Ceja de Selva"
(Decreto No. 22175) foi promulgada em 1974, e substituída em 1978 pela Lei das Comunidades Nativas e
Desenvolvimento Agrário de La Selva e Ceja de Selva, Lei nº 22175). Estas normativas formalizaram o
início do processo da titulação das terras ocupadas pelos indígenas de todo o Peru. Se por um lado, foram
fundamentais para proteger da ocupação colonial espaços de vida consideráveis a favor dos povos
indígenas, na prática dividiram os vastos territórios indígenas em reduzidos espaços reconhecidos para o
usufruto de pequenas associações e mantido em mãos do Estado a propriedade dos recursos naturais da
floresta e do subsolo (Torres, Opas e Shepard, 2021: 68)
48
Entrevista realizada em janeiro de 2019, durante “I Encuentro Yine”, realizado na Comunidade Nativa
Santa Teresita, no baixo rio Las Piedras, no Peru.
49
Publicação do Povo Manxineru “Shima Sima Mwajnutu Tshijne Wtshijne Mayawle: Etnomapeamento
da Terra Indígena Mamoadate”. Rio Branco: MAPKAHA, 2016. Comissão Pró-Índio do Acre (org.)
76
Tem uma história que meu avô contava, que quando ele tinha 18 anos, em 1908,
no mês de agosto, houve uma matança dos Yine por parte dos caucheiros peruanos
e de seus patrões, que muito os exploravam. Não só exploravam os Yine, mas
quase todas as tribos da Amazônia, como Amahuaca, Jaminawa, Ashaninka,
Matsiguenga, menos Harakbut, porque não havia. Então, como meus avós viviam
ali no Rio De Las Piedras, eles pensaram: “estão nos matando e assim não
vivemos mais tranquilos na floresta”. Primeiramente mataram Yine no rio Manu,
depois no Rio de Las Piedras, em Boca Curiaco. Quem matou muitos Yine foi
Carlos Charf, um famoso caucheiro peruano. No Rio de Las Piedras havia mais
ou menos cinco mil Yine, que eram explorados por esse caucheiro Carlos Charf.
Quando não os matavam, aqueles que sobreviviam, diziam: “vamos escapar e se
esconder”. Começaram a procurar lugares mais tranquilos para se esconder.
Muitos foram para o rio Urubamba e Ucayali e outros seguiram para o Amazonas.
Meus avós foram para o Amazonas, depois regressaram novamente. Eu já nasci
próximo de Pucallpa. Meu pai fez um acordo com os seus filhos, para voltarmos
novamente ao Rio de Las Piedras, para resgatar o lugar onde viveram nossos
antepassados, nossos avós. Os parentes que fugiram dessas correrias e se
esconderam nas matas das nascentes de rios e igarapés são chamados Mashco
Piro. Mas, na verdade, eles são mesmo Manchineri. Por causa dessas matanças,
eles novamente se esconderam. Não queriam saber de encontrar com pessoas
mestiças, pois para os Mashco, essas pessoas entravam na floresta e os matavam,
ou iriam capturar e levá-los embora. (Manxineru, 2016a: 17).

Paralelamente à exploração da borracha, a atividade missionária se iniciou em


Madre de Dios no início do século XX, assentando primeiramente as populações
indígenas mais acessíveis, e estabelecendo o que eles próprios chamaram de “correrias
apostólicas”. Os missionários em várias ocasiões tinham o apoio do governo para
empreender a “civilização” dos nativos. O Padre Pio Aza realizou explorações pelos rios
Las Piedras e Purus, em 1911, e o Padre José Álvares pelos rios Tahuamanu, Acre, Iaco
e Purus, em 1921. As missões foram sendo criadas à medida que os missionários faziam
contato e reduziam a população indígena. Entre 1908 e 1957, foram estabelecidas diversas
delas na região (Huertas: 2010: 56:57), incluindo a de "San Jacinto de Puerto
Maldonado", que originou a atual capital do departamento peruano Madre de Dios.
Em 1946, o Summer Institute of Linguistics (SIL), ou Instituto Lingüístico de
Verano (ILV), instituição religiosa norte-americana dedicada à evangelização e tradução
da Bíblia para as línguas indígenas, iniciou seus trabalhos no Peru, o qual foi formalizado
com o governo (ibid.). Suas ações também implicavam em recrutar populações indígenas
contatadas da Amazônia para buscar povos isolados. Em entrevista, Teodoro afirmou que

77
participou das tentativas de ILV de contatar os Mashco-Piro, no início dos anos 1990, a
partir de sobrevoos no rio Las Piedras, e que sua intenção naquela época foi protegê-los
de outros grupos com quem estavam em conflito na região da bacia do Purus:

Primeramente, nosotros hemos querido civilizarlos con el ILV. En los 1990, 92,
hemos hecho sobrevuelo por aviones todo. Hemos venido un grupo para ver si
estaban acá. Hemos ido a Purús, fuimos a la cabecera del Manu, pero aquí había
más, en el río de las Piedras, y porque allá, en Purús, los Amahuaca Yaminahua y
Kulina los mataban. De esa manera, para no estar peleando con ellos, los que
mataban esos indígenas, mejor acá donde no hay otro grupo que los mataban. Por
eso hemos venido acá. Pero después, el ILV se liquidó del Perú. Terminó el
contrato, se quitaron a África y nosotros hemos venido. Yo he venido
personalmente con mi propio interés, con mi propio dinero, independiente
(Teodoro Sebastian, entrevista em janeiro de 2019).

Seu Teodoro contou que, desde 1992, começou a "mirarlos" e a encontrar seus
vestígios desses isolados chamados também na língua yine com a palavra nomole, que
significa meu parente (Torres Espinoza, 2018: 97). A partir de 1994, começou a falar
com eles a cada ano, até 2000, quando os Mashco se aproximaram da comunidade Monte
Salvado pela primeira vez. Teodoro recordou que no seu primeiro diálogo, eles lhe
contaram que optaram viver "isolados" porque suas memórias ainda estão marcadas pela
violência da época da borracha. Explicou que compreende os que eles falam, mas que sua
língua é mais parecida com a dos Manxineru:

Ellos tienen sus historias de la explotación de caucho. Esa idea llevan. Cuando
salen nosotros les preguntamos: ¿Por qué no salen? Dicen: “De repente ustedes
nos van a explotar, de esa manera no queremos salir”. Pero eso ya pasó hace
tiempo, la explotación de caucho. Pero están en esa idea, está en la memoria. Ellos
tienen esa memoria, por eso no quieren salir. (...). Nosotros hablamos con ellos,
comprendemos ellos, así como nosotros, los Yine acá peruano, comprendemos a
los Manchineri, así está. Pero más del 80% hablan Manchineri. Los Mashco
hablan más Manchineri. Por eso le digo a Lucas, ellos son Manchineri. Es un
grupo. Nosotros, yine, somos el pueblo todo, pero hay Manxineru, Koshitshineru,
Heteneneru, Natshineru, entre otros… (Teodoro Sebastian Monte, entrevista em
janeiro de 2019)

Romel Ponciano Sebastian chegou ao Las Piedras em 1995, quando ainda era
“jovencito”, migrando com sua família da Comunidade Nativa Miaria, no baixo

78
Urubamba. Filho de Daniel Ponciano, outro fundador de Monte Salvado, também traz
diversas histórias sobre os Mashco em sua memória. Em uma entrevista, ele me contou
que, além do ILV, outros missionários buscaram contatar os isolados na região nos anos
1990, usando inclusive equipamentos sofisticados como hidroaviões, mas não tiveram
sucesso50. Também afirmou que atualmente a comunidade não permite mais que os
missionários façam contato com os isolados: "Varios misioneros ingresaran y no han
tenido 'suerte'. Pero ahora los misioneros tienen que pasar por la comunidad. Se quieren
visitar Monte Salvado, bienvenido, visiten, pero decir que quieren ir adelante para ver a
los Mashco-Piro, ya no".
Romel contou ainda que, na década de 1990, sua família e outros moradores de
Monte Salvado testemunharam a presença desses povos na região em diversas ocasiões.
Em viagens, encontravam acampamentos abandonados nas praias do rio Las Piedras,
desde suas cabeceiras. Seu pai, seu irmão e seus tios, entre outros da comunidade,
trabalharam como guias e tradutores para a empresa que realizou as explorações sísmicas
no Lote 77, concedido pelo governo peruano para a empresa petrolífera Mobil.
Alguns desses eventos foram registrados pelo antropólogo Glenn Shepard, em um
informe produzido em 1996, com o objetivo de chamar a atenção da opinião pública sobre
os riscos à integridade dos povos isolados da região. Os encontros que aconteciam entre
os Yine de Monte Salvado e os Mashco-Piro também foram registrados neste informe:

Además de haber visto muchas evidencias como huellas, campamientos


abandonados, fogatas, y restos de comida por todo el Río de las Piedras, Teodoro
Sebastian y Daniel Ponciano, Yine (Piro) de Monte Salvado, relatan haberse
encontrado directamente en una ocasión con cuatro personas que pertenecían al
grupo Mashco-Piro. El encuentro fue en las cabeceras del Río Piedras en el año
1994. Han tratado de dialogar con el grupo de Mashco-Piro, ofreciéndoles
implementos o ropas que podrían querer. Los Mashco-Piro no han mostrado
mayor interés en acercarse mucho, expresando su determinación de vivir en paz
y aislamiento de gente foránea (Shepard: 1996: 9-10).

Segundo os relatos que colheu na época, Shepard afirmou que os trabalhadores da


exploração sísmica encontraram diversas evidências da presença de isolados, como
fogueiras abandonadas, ossos de animais, pegadas e uma trilha de galhos quebrado na

50
Em uma entrevista realizada em 2017, Romel afirmou que, no ano 1997, chegou um norte-americano
chamado Ronald Cooper, que queria encontrar com os Mashco Piro, e indo diversas vezes à Monte Salvado:
“Él vía huellas y choza, y fabricó un peque que no tenía sonido, pero nunca ha tenido oportunidad”.
79
mata. Além disso, os funcionários de petroleira avistaram os Mashco-Piro em três
ocasiões diferentes. No informe, Sheppard ressaltou ainda que, apesar de não ter
acontecido nenhum contato violento com a equipe da Mobil, estava claro que a empresa
estava atuando sob esse risco, em um território comprovadamente habitado por indígenas
isolados (1996: 11)51. Esta presença estava sendo cada vez mais testemunhada pelos
moradores Yine do rio Las Piedras, em um processo de construção de relações de
vizinhança com esses índios não contatados pelo Estado, e em um contexto de intensa
exploração madeireira na Amazônia peruana.

3.5. O boom madeireiro no Peru e a proteção binacional dos Mashco

No auge da extração das madeiras nobres nas florestas de Madre de Dios, entre os
anos 1999 e 2006, ocorreram constantes enfrentamentos entre madeireiros e indígenas
isolados. A situação começou a ser denunciada pela Federação Nativa do Rio Madre de
Dios e Afluentes (FENAMAD), fundada pelo movimento indígena da região em 1982,
que também lutava contra o avanço dos garimpos de ouro em seus territórios52. Inúmeros
pedidos urgentes de proteção foram apresentados pela organização indígena perante o
Estado peruano, para garantir os seus direitos humanos e territoriais, e o respeito à sua
decisão de viver em isolamento. Empresas madeireiras adentravam ao rio Las Piedras e
Tahuamanu e outros rios, pressionando os territórios dos Mashco, e dando lugar a uma
série de incidentes (Huertas, 2010 e2002)53.
Em uma entrevista realizada em 2017, Romel Ponciano Sebastian me contou que,
no início, alguns moradores de Monte Salvado, como outros indígenas da região, foram

51
Desde a década de 1980, a Amazônia peruana foi aberta pelo governo à exploração de petróleo, gás e
outras riquezas do subsolo. As atividades petrolíferas na Amazônia peruana têm uma história trágica em
termos sociais e ecológicos, como os contatos do grupo Yora (Nahua) promovidos pela em decorrência da
exploração Shell no rio Mishagua, em 1983. Em 1986, durante o seu trabalho de campo no rio Manu, o
antropólogo Glenn Shepard registrou o sofrimento de dezenas de pessoas desse povo Yora descendo o rio
"doentes e famintos" como resultado de destes contatos de 30% a 50% do grupo não resistiu e morreu.
(Shepard, 1996: 2)
52
Em 18 de janeiro de 1982, teve início o Primeiro Congresso da FENAMAD na comunidade indígena
Boca Karene, com a presença de delegados de diversos e comunidades de Diamante, da região mobilizados
em defesa dos direitos indígenas no Peru e frente à invasão dos seus territórios. Informações coletadas na
página da FENAMAD. Disponível no endereço: https://www.fenamad.com.pe/)
53
O ingresso de madeireiros não se produz unicamente desde a bacia baixa do rio Las Piedras. Desde o
ano 1994 se tem referência do ingresso de madeireiros provenientes do rio Sepahua desde a suas
cabeceiras, e que estariam causando pressão sobre o território dos isolados. (Huertas, 2002, 95)
80
atraídos com a possibilidade da exploração comercial da caoba e do cedro, espécies
madeireiras fartas no rio Las Piedras, até encontrarem e falarem com os "isolados". Romel
afirmou que, depois de um encontro em julho de 2000, onde pode se comunicar e
identificar que esses índios eram "seus parentes" pois falavam a mesma língua, os
moradores de Monte Salvado foram mudando de opinião, sobretudo, por conta dos riscos
que a atividade representava para esses indígenas: “La comunidad empezó a decir ‘no’ a
los madereros, que ya no pasen. ¡Hay aislados!”. Sobre esse encontro com os Mashco,
na foz do igarapé Lídia com o rio Las Piedras, Romel relatou:

Ahí fue donde yo ya he podido visualizar y hablar con ellos. Ahí estábamos
Ashaninka, Machiguenga y Yine. Primero hablarán los Machiguenga, después
Ashaninka, por último, he hablado, y ahí nos han entendido. Cuando yo pregunto:
¿de dónde han venido? Ellos dicen: "por esa quebrada". la quebrada Lídia, pero
ellos no saben el nombre. Y ellos dicen: Así como nos han hecho sufrir, nosotros
igualito vamos a sufrir ustedes también. Yo pregunto: ¿en qué momento nos
hemos hecho sufrir ustedes? Ese fue el primer encuentro, el 16 de julio de 2000.
Entonces me dicen: ¡bajan! Y ahí me han disparado 16 flechas, estaban a 25, 30
metros. Yo estaba ahí parado. Vinieron también 16 hombres que querían
alcanzarme. Yo esquivaba las flechas. Y ahí se van, en dos horas entran en la
comunidad. Se van como se estuvieran despidiendo, dan la vuelta y regresan dos
horas después. Han llevado platos, oyas, hasta cuchara. También han llevado
porcelano. No se adonde han dejado. Después de dos años, han encontrado los
platos, que no les servían. Eso fue en 2000, y nadie nos ha creído. (Romel
Ponciano Sebastian, entrevista realizada em junho de 2017)

Romel também fez uma cronologia dos conflitos entre os isolados e os


madeireiros, que mesmo depois do encontro em 2000, continuaram ingressando ao rio
Las Piedras, pois não acreditavam nas histórias que os Yine contavam para eles.

En lo años 2001, 2002 ha habido mucho fuerte ese impacto. En 2003, hubo ya un
maderero muerto, flechado por Mashco Piro. En 2004, igualito, otro más. No
sabemos cuántos habrán muerto de los Mashco Piro. En 2005, hubo un ataque,
murieron 3 madereros en Las Piedras, 2, 3 días arriba de Monte Salvado, lejos. En
2005, después de esa matanza, los madereros bajaron, y el precio de la caoba y
del cedro bajó totalmente, llegó a un sol creó, el pie. En 2006, ya no hubo
madereros.

A frente madeireira também avançou sobre os recém-criados territórios


reservados para povos em isolamento na Amazônia peruana. As Reservas Territoriais

81
Murunahua (1995) e Mashco-Piro (1996) se encontravam invadidas, resultando em
contatos violentos entre isolados e madeireiros, e em mudanças nas dinâmicas de uso e
deslocamento desses povos em seus territórios (Huertas, 2015:179) As fronteiras, sob
fiscalização precária, também foram alvo de invasões de madeireiros54.
Em 1999, um grupo com cerca de 50 homens Mashco-Piro apareceu na praia em
frente à Base da FUNAI, na foz do Igarapé Xinane, confirmando a presença desses índios
isolados no alto rio Envira, e levantando questões relativas às mudanças nas suas
dinâmicas territoriais devido à intensa exploração madeireira no lado peruano da
fronteira. O incidente aconteceu no dia 26 de outubro, provocando a evacuação imediata
da equipe da base para a aldeia Sete Voltas do povo Ashaninka. Dias após o ocorrido, na
verificação dos vestígios, constatou-se que era um grupo bem maior, cerca de 200
pessoas, entre homens, mulheres e crianças (Coelho, 2019: 177).
Em maio de 2003, foram registrados encontros violentos entre os Ashaninka da
Comunidade Nativa Dulce Glória, no Peru, e os isolados, nas cabeceiras do rio Juruá. O
conflito resultou em diversas mortes - três índios Ashaninka, entre eles uma mulher
grávida, e dezenas de Mashco Em entrevista, Francisco Pyãko, liderança Ashaninka da
aldeia Apiwtxa, no Brasil, que na época ocupava o cargo de Secretário do Estado dos
Povos Indígenas do Acre, disse que precisou intervir como liderança do seu povo para
não ocorrer desdobramentos mais drásticos ainda. Ele foi informado que os Ashaninka
do Peru haviam sido mortos pelos “brabos” e que estavam se preparando para uma guerra
a revanche. Também recordou com detalhes a história que ouviu, quando ele e sua família
subiram o rio Juruá encontrando seus parentes do outro lado da fronteira. Os Ashaninka
peruanos entregaram para Francisco os objetos que haviam pegado dos Mashco
(bordunas, flechas e dois colares de dentes) durante o conflito.
Mais de uma década depois do ocorrido, em 2015, Beatriz Huertas escreveu acerca
das consequências do conflito sobre as dinâmicas territoriais dos grupos Mashco que
andam na região das cabeceiras dos rios Juruá e Envira: “Las graves dimensiones que
tuvo el enfrentamiento sobre todo para los Mashco-Piro, por el número de integrantes que
perdieron, los llevó a limitar sus recorridos, evitando las zonas próximas a asentamientos
indígenas en el Yurúa por diez años. Su ausencia en este río después de la matanza

54
Inúmeras denúncias sobre a presença de madeireiros no PN Serra do Divisor, na Reserva Extrativista
Alto Juruá, e na TI Kampa do Rio Amônia, no Acre, foram feitas pelos Ashaninka da aldeia Apiwtxa, que
encabeçaram uma luta contra os invasores na imprensa nacional e internacional. O governo brasileiro
realizou operações na área de fronteira, e o problema foi levado às esferas diplomáticas, sendo tratada pelo
Ministério das Relações Exteriores brasileiro juntamente à Chancelaria peruana (CPI-Acre, 2016).
82
contrasta con una mayor afluencia de un grupo Mashco-Piro por el río Envira durante los
meses de verano, a lo largo de la última década” (Huertas, 2015: 70).

Colares Mashco Piro encontrado durante conflito com índios Ashaninka do Peru. Um deles se encontra
no acervo da Biblioteca da Floresta, em Rio Branco (direita). (Foto: CPI-Acre)

Como resposta ao avanço indiscriminado das atividades madeireiras, e diante do


risco de extermínio de populações inteiras de indígenas isolados, em 1999, a FENAMAD
iniciou os estudos para a criação da Reserva Territorial (RT) Madre de Dios, "a favor dos
povos em isolamento voluntário" no norte do departamento peruano. Segundo Beatriz
Huertas, responsável pelos estudos antropológicos, o conhecimento sobre sua presença e
seus deslocamentos em ambos lados da fronteira derivou no início de um intercâmbio de
informações e da colaboração entre a organização indígena peruana e a FUNAI.
A equipe da FENAMAD realizou visitas às aldeias nos altos rios Acre e Iaco,
reunindo depoimentos sobre as dinâmicas territoriais dos isolados na fronteira. Essas
informações fizeram parte da sustentação técnica para a criação da Reserva, evidenciando
o caráter transfronteiriço dos Mashco-Piro para pressionar os Estados a trabalharem
conjuntamente pela sua proteção. A colaboração interinstitucional revelou a necessidade
de uma proteção a nível binacional e essa ideia passou a ser abordada e difundida pelas
organizações envolvidas nessa aliança (Huertas, 2015:179; Palacios, 2019: 190).
A RT Madre de Dios foi criada em 2002 para proteger uma área de
aproximadamente 830 mil hectares, nos cursos médio e alto dos rios Los Amigos,
Pariamanu, Las Piedras, Tahuamanu e Acre. Monte Salvado é uma das portas de entrada
da Reserva, que faz fronteira com o Acre e o departamento peruano Ucayali. Porém, parte
83
das áreas que constavam em sua proposta original, contíguas à Reserva atual, e onde
existe a comprovação documentada do seu uso por povos isolados, não foi incorporada
ao seu decreto final, sendo outorgadas pelo Estado peruano como concessões para
exploração madeireira de empresas privadas por um período de 40 anos55. Ou seja, uma
parte dos seus territórios ficou desprotegida, trazendo diversos riscos para esses povos.
Em 2007, em decorrência da pressão madeireira sobre o seu território, que abriga
as últimas concentrações de madeira nobre da Amazônia Sul do Peru, a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) outorgou medidas cautelares a favor dos
Mashco-Piro, ainda vigentes56. As medidas cautelares são usadas pela FENAMAD até
hoje57 para pressionar a Comissão a solicitar ao Estado peruano que adote as medidas
necessárias para garantir a integridade dos povos indígenas em isolamento da região,
evitando irreparáveis danos resultantes da atividade de terceiros em seus territórios.
Outro resultado da mobilização da FENAMAD contra as atividades madeireiras
foi a construção, em 2006, em Monte Salvado, do primeiro posto de controle e vigilância
com o objetivo de proteger povos indígenas isolados no Peru. A parceria estabelecida
com os moradores Yine rendeu a titularidade da área comunal, em 2002, e a instalação
de uma estrutura com equipamentos que permitissem a comunicação permanente com a
federação em qualquer situação de risco. Os moradores da comunidade encontraram
ainda no trabalho de proteção dos isolados uma alternativa à exploração madeireira.

3.6. Estratégias Yine: relato de um agente de proteção de Monte Salvado

Ronal Ponciano Sebastian, irmão de Romel e genro de Teodoro, é atualmente uma


das lideranças de Monte Salvado mais envolvidas no trabalho de proteção aos povos
isolados, empreendido pela comunidade desde a instalação do Posto de Controle e

55
Em 2001, o governo peruano instituiu uma nova Lei Florestal e de Fauna Silvestre, que criou os Bosques
de Produção Permanente, destinando extensas áreas da Amazônia para o manejo florestal. Com a política
de concessões, instalou-se uma corrida madeireira nos departamentos de Madre de Dios e Ucayali, na
fronteira com o Brasil, por titularidade de terras e associações com comunidades proprietárias, incluindo
as indígenas. Sem fiscalização, a medida contribuiu para a atuação de ilegais, que começaram a abrir
caminhos clandestinos para a retirada de mogno e outras madeiras nobres da floresta.
56
“El 12 de octubre de 2007, la CIDH celebró una audiencia pública en la cual recibió información del
Estado y de los representantes de los beneficiarios sobre la implementación de las medidas cautelares
dictadas”. Disponível no endereço: http://www.cidh.org/medidas/2007.sp.htm
57
Ver Comunicado da FENAMAD publicado em 6 de abril de 2021 solicitando intervenção urgente da
CIDH diante dos riscos à vida e à integridade dos Mashco Piro no processo de categorização da Reserva
Indígena Madre de Dios. Disponível no endereço: https://www.fenamad.com.pe/comunicado/
84
Vigilancia (PCV) com o apoio das organizações indígenas e da sociedade civil. Ele me
contou que, no auge da exploração da caoba no rio Las Piedras, em 2002, haviam muitos
madeireiros invadindo a Reserva Territorial Madre de Dios, e encontrando com os
"calatos", que ainda não apareciam próximos à comunidade, e ficavam mais "arriba", em
suas cabeceiras. Havia muita corrupção e o órgão de fiscalização, o Instituto Nacional de
Recursos Naturales (INRENA) não podia ou não queria, controlar a situação58. Ronal
explicou que, nesse momento, os moradores da comunidade começaram se organizar para
deter as invasões e possíveis conflitos com os isolados, mas foram ameaçados:

Estaba lleno de madereros por todas las partes, y invadían a la Reserva Territorial
Madre de Dios por el río Las Piedras. INRENA no controlaba a los madereros. En
2002, había 10 mil madereros trabajando en el río Las Piedras. Los madereros
pagaban al INRENA, y a los oficiales de la policía. Hubo mucha corrupción. (...)
Pagaban mil soles para pasar un bote, 5 mil por una balsa que bajaba. Entonces la
comunidad reaccionó, en 2002. Muchos madereros estaban entrando y la caoba
de la reserva ya se estaba acabando. Y ahí la gente de Monte Salvado puso un
cable en el río para evitar que los madereros y los invasores pasaran. En ese
momento, los madereros nos amenazaron, querían matarnos, quemar nuestras
casas, porque no los dejábamos pasar. Eran ilegales y peligrosos. (Ronal
Ponciano, entrevista em setembro de 2016)

Ao longo dos anos, Monte Salvado foi se constituindo com uma barreira aos
madeireiros, impedindo que avançassem sobre os territórios dos Mashco-Piro. Seus
moradores, ao mesmo tempo que sabiam dos riscos, construíam relações de vizinhança
com os isolados. Essas relações também produziam conhecimentos acerca desses povos
“sem contato”.
Durante a entrevista, Ronal relembrou que, em 2002, Teodoro começou a
mobilizar aliados para conseguir uma estrutura que viabilizasse o trabalho de
monitoramento e vigilância que estavam realizando na área dos isolados. Nessa época,
quem coordenava o Programa Nacional de Povos Indígenas em isolamento Voluntário e
Contato Inicial da Associação Interétnica de Desenvolvimento da Selva Peruana
(AIDESEP)59, era o falecido Jorge Payaba Cachique, do povo Shipibo. Ao longo da sua

58
"Jefe del INRENA confiesa: la corrupción y tala ilegal está institucionalizada" (Servindi, 11 de dezembro
de 2008). Ver notícia veiculada em: http://www.servindi.org/actualidad/6015)
59
O contexto sociopolítico dos anos 1970 foi favorável ao desenvolvimento da organização política dos
povos indígenas no Peru. Como parte desse processo, em 1980, lideranças de organizações indígenas da
Amazônia fundaram a Associação Interétnica para o Desenvolvimento da Selva Peruana (AIDESEP). Após
várias denúncias sobre situação dos povos isolados, em dezembro de 2003, foi criado, no seu XIX
85
trajetória como liderança do movimento indígena de Madre de Dios, Payaba não poupou
esforços para sensibilizar os funcionários do Estado peruano sobre a situação de risco e
vulnerabilidade a que estavam submetidos esses povos. Ele acreditava que "solamente los
indígenas, como nosotros, podemos entender el verdadero peligro que enfrentan nuestros
hermanos aislados. Me duele reconocer que hasta hoy los indígenas no podemos vivir en
paz en nuestro propio territorio".60
Como resultado da articulação entre AIDESEP, FENAMAD e outras
organizações não governamentais, foi construída a estrutura física do Posto de Controle
e Vigilância de Monte Salvado em 2006. Nos anos seguintes, os agentes de proteção
começaram a trabalhar contratados pela FENAMAD. Em 2007, Romel assumiu a
coordenação do posto, sendo responsável pelo registro dos vestígios. No ano seguinte,
Ronal se incorporou à equipe, com 21 anos de idade, e entusiasmado a aprender com o
conhecimento adquirido pelo seu irmão mais velho: "Romel sabía más. Desde 2000, había
visto y hablado con ellos. Yo todavía no los había visto". Ele recorda também que em
2007, 2008 e 2009 foram registradas diversos vestígios dos isolados, como tapiris,
pegadas, restos de caça, cascos de jabuti e couro de anta, comprovando mais uma vez a
presença permanente dos Mashco-Piro na região.

En ese momento trabajamos duro y hasta el día de hoy seguimos trabajando en el


tema de la protección de los aislados. La comunidad ya no trabaja con madera. Ya
no vamos río arriba. Fenamad nos dio esta otra alternativa. Hoy ganamos nuestro
sueldo. Con este trabajo mantenemos a nuestra familia. Actualmente son 10
familias las que se benefician de este trabajo. (Ronal Ponciano, entrevista em
setembro de 2016)

Ronal contou ainda que a estratégia dos Yine foi colocar o PCV na própria
comunidade, ao invés de instalá-lo na linha 343, no limite com a Reserva Territorial
Madre de Dios, mais acima do rio. "Arriba solo tendríamos pocas personas para defender
a los aislados, y hay más riesgo para los agentes. Mejor estar en la propia comunidad,
para protegerlos con todos los vecinos, niños, hombres y mujeres. Recibirlos si es
necesario y hablar con ellos. Esa es la estratégia de Monte Salvado". A ideia é que o posto
também traga benefícios para a comunidade, como acesso ao sistema de comunicação

Congresso Nacional, o Programa Nacional dos Povos em Isolamento Voluntário e Contato Inicial da
Amazônia Peruana, como órgão técnico e responsável pela implementação das políticas da organização
indígena nacional, e suas linhas de ação em relação à proteção desses povos (Cachique e Tuesta, 2006: 73)
60
Depoimento registrado em notícia veiculada pelo Servindi, em 10 de abril de 2007. Disponível no
endereço: https://www.servindi.org/actualidad/1904)
86
(rádio, telefone e internet), em qualquer situação de emergência. A partir de 2010, Ronal
começou a ver os Mashco e a compreender o que falavam: "Entendemos lo que dicen,
como a los manchineri, que se entiende el 95% de lo que dicen. El Mashco Piro lo
entiendo al 80%. Los consideramos de la misma familia, hablamos el mismo idioma".
Em outubro de 2010, um grave incidente com os Mashco foi registrado em Monte
Salvado. Um menino Yine de 14 anos de idade foi atingido na barriga por uma flecha
dirigida por um Mashco-Piro, quando estava com um grupo que se preparava para
regressar para a comunidade, após a construção de uma canoa. Imediatamente, o jovem
foi atendido no posto de saúde de Monte Salvado. Em seguida, desceu o Las Piedras rumo
à cidade de Puerto Maldonado, para ser hospitalizado, e conseguindo sair vivo do
ocorrido. Na época, o presidente da FENAMAD, a liderança Haramkbut Jaime Corisepa,
comentou comigo que o incidente se originou porque os isolados estavam se sentindo
cada vez mais pressionados em seus territórios, e reocupando antigas e novas áreas para
sobreviver (comunicação pessoal, 2010).

3.7. Dinâmicas transfronteiriças: novas pressões e ameaças no Alto Iaco

Desde o início dos anos 2000, os Manxineru do alto Iaco começaram a sentir a
pressão das atividades extrativistas e ilícitas em seus territórios próximos a fronteira
internacional. Além da exploração madeireira, outra ameaça é o crescente narcotráfico.
O Peru é atualmente o maior produtor de cocaína do mundo, e a sua fronteira terrestre
com o Acre se tornou uma das rotas preferenciais para o escoamento da produção nas
últimas décadas. Os caminhos utilizados pelos homens "mulas" transportadores de coca
cruzam, ou coincidem, com varadouros utilizados pelos povos isolados, atravessando
seus territórios, e das populações indígenas do seu entorno.
Os Manxineru começaram a registrar diversas invasões de traficantes de drogas
na TI Mamoadate. Em julho de 2002, informaram ter encontrado uma clareira nas
cabeceiras do laco, onde havia gasolina, óleo diesel e queimado, várias motosserras e uma
bateria de fabricação colombiana. Após denúncias feitas em Rio Branco, a Polícia Federal
abriu investigação e a FUNAI enviou uma equipe ao local, confirmando os ilícitos. Em
janeiro de 2004, dois peruanos e um brasileiro foram presos e amarrados pelos Manxineru
na aldeia Alves Rodrigues. Carregando 13,5 quilos de pasta base, tentavam atravessar a

87
terra Indígena, para descer o laco até Sena Madureira e chegar a Rio Branco pela BR-
364. A denúncia, feita pelos Manxineru, mobilizou novamente a PF, que se deslocou à
aldeia com um helicóptero para retirar os invasores (Acre, 2005: 49).
Neste processo, os indígenas refletiram sobre como essas ameaças também
afetavam os seus "isolados” com quem compartilham territórios, recursos e relações
históricas. Desde a ausência permanente da FUNAI na TI Mamoadate, no final da década
de 1980, com a instalação da base da FPEE no rio Envira, os Manxineru vêm pedindo
apoio do órgão indigenista brasileiro para a fiscalização da fronteira internacional.
Em entrevista realizada em junho de 2017, Lucas Manchineri explicou que desde
a década 1990, quando aconteceu a expedição com os sertanistas Meirelles e Rieli, os
Manxineru reivindicam um posto na aldeia Extrema para o trabalho de monitoramento e
vigilância na área habitada pelos isolados, além da formação em uso de equipamentos e
metodologias61. Sobre os seus deslocamentos na Terra Indígena, afirmou: “quando teve
aquela guerra com o Meirelles [conflito de 1984] eles desapareceram um pouquinho de
novo, e passaram a ficar mais nas cabeceiras do Iaco, no lado peruano. Depois,
começaram a andar novamente no lado brasileiro, a partir de 1990, 92, 95. Eles têm um
calendário. Tem ano que eles andam e tem ano que não andam por aqui”.
Em 2001, os Manxineru do Alto Iaco participaram do projeto “Manejo
Participativo de Quelônios”, promovido pelo Governo do Estado do Acre62, iniciando um
trabalho de capacitação e levantando mais registros sobre os deslocamentos e
comportamentos desses isolados na região. Nos três primeiros anos do projeto, a equipe
subiu o Iaco até a boca do igarapé Abismo e não encontraram nenhum vestígio dos
Mashco. Porém, entre 2004 e 2007, todos os anos aconteceram eventos relacionados aos
isolados durante os meses de julho e agosto, na época da desova dos tracajás. Em 2005,
a equipe do projeto contabilizou 20 tapiris em um acampamento na praia no alto Iaco,
acima da boca do Abismo. Também constatou que haviam assado e quebrado cascos de
jabuti, além do uso de instrumentos de corte nas palhas de suas casas temporárias. Em

61
Em 1993, a administração regional da FUNAI no Acre sugeriu a criação de uma base de operações na
Mamoadate para o recém-criado Departamento de Índio Isolados (DII), em Brasília. Um ano depois, em
julho de 1994, o DII promoveu uma expedição com uma equipe composta por Meirelles, nesta época chefe
da Frente e Contato Envira, dois índios Manchineri, Dionizio e Otávio, e pelo sertanista Rieli Franciscato,
então chefe da Frente de Contato Rio Purus, com a missão de “constatar ou não a presença de índios isolados
no alto rio Iaco”. O relatório concluiu que os "Maskos" ocuparam, ou deixaram de ocupar regiões, em
função das mudanças dos Manchineri e Jaminawa. Nesta dinâmica, utilizavam o território brasileiro por
curto período do ano, e em anos alternados.
62
Implementado pela Secretaria de Estado de Extensão Agroflorestal e Produção (SEAPROF), através do
Projeto Demonstrativo de Povos Indígenas (PDPI), conectado ao processo de apoio à proteção de florestas
tropicais brasileiras pelo Programa Piloto para a Proteção das Florestas Tropicais do Brasil (PPG7).
88
outro episódio, os Manxineru, a aproximadamente três horas adentro do Abismo,
escutaram o som deles vindo da mata. Todos se assustaram e fugiram63. Sobre esses
eventos, Lucas relatou:

Eles [Manxineru] estavam fazendo o repovoamento de quelônios. Todos os anos


iam buscar os ovos de tracajá. Uma vez viram eles [Mashco] na mesma hora
voltaram. Ninguém ficou para não dar problema. Depois os parentes viram os
rastros deles na mata. O Zezinho Manchineri viu o resto de anta que eles comeram
e o varadouro deles. Sempre os Manxineru estão vendo esses tipos de coisas”.

Em 2005, as discussões sobre as ameaças aos povos isolados apareceram durante


as oficinas de trabalho de Etnozoneamento da TI Mamoadate. Apoiados por programas
de órgãos governamentais e da sociedade civil, os Manxineru e Jaminawa iniciavam a
discussão sobre novos instrumentos de planejamento dos povos indígenas para a gestão
dos seus territórios, agora demarcados64. A publicação deste trabalho trouxe informações
importantes sobre as dinâmicas de deslocamento e uso dos recursos naturais pelos grupos
Mashco na fronteira internacional, e considerando o risco de possíveis encontros com os
indígenas contatados pelo Estado na terra indígena.

(...) os caçadores das aldeias Jatobá e Extrema acampam na beira do rio Iaco,
acima dos igarapés Moa e Glória, próximo à fronteira com o Peru. Esta região
constitui território dos índios isolados. Por isso, existe uma certa periculosidade
nos acampamentos localizados nesta área. Os Manchineri, das aldeias Peri e
Jatobá, também fazem acampamentos de caça nas margens dos igarapés
Katsluksuha (Abismo) e Marilene, por onde há indícios de trânsito dos índios
isolados. Estes acampamentos, talvez devido ao risco de se depararem com os
índios isolados, e certamente por causa da distância das aldeias, não são muito
utilizados pelos Manchineri. Eles caçam nestes locais quando necessitam de uma
grande quantidade de carne, para realizarem festas, adjunto (mutirões), grandes
reuniões, etc. Já os Jaminawa, por estarem suas aldeias distantes da área de trânsito

63
Informações levantadas em entrevista realizada em junho de 2017 com Marcos Antônio Góes, técnico e
representante da Secretaria de Extensão Agroflorestal e Produção Familiar (SEAPROF) do Estado do Acre,
no município de Assis Brasil.
64
O Etnozoneamento da TI Mamoadate foi realizado de forma participativa com os Manxineru e Jaminawa,
considerando a presença de “índios isolados”, com o propósito de contribuir com o processo de autonomia
dos povos indígenas, e levando em conta às especificidades de cada povo indígena, e produzindo e
sistematizando informações documentais, bibliográficas e empíricas consideradas relevantes por eles no
processo de gestão dos seus territórios e para tomadas de decisões. A escolha da TI Mamoadate se deu no
âmbito no componente indígena do Plano de Ações Mitigadoras dos impactos gerados pelas BRs 364 e 317
e dos indicativos do Zoneamento Ecológico Econômico (1a fase) do Estado do Acre. (Acre, 2006: 7-8)
89
dos índios isolados, praticamente não se deslocam até essa área para caçar (Acre,
2006: 43).

Na época, lideranças da TI Mamoadate reivindicaram a presença mais frequente


das expedições da FUNAI e a instalação de um posto de monitoramento, vigilância dos
seus territórios e dos seus “parentes isolados”, cada vez mais ameaçados pelas atividades
extrativas e ilícitas em seu entorno.

No lado peruano da fronteira, existem vários lotes que foram concedidos pelo
governo peruano para extração de madeiras. Como existem casos, no Estado do
Acre de TI invadida por madeireiros peruanos, eles temem que sua terra seja
invadida. Os limites da TI com o Peru é um local de difícil acesso, sendo também
uma área ocupada por índios isolados, denominados de Mashko pelos Jaminawa
e Manchineri. Por esse motivo, eles sentem a necessidade de uma maior
colaboração dos órgãos competentes, para acentuar a vigilância e a fiscalização
desses limites. Para eles, é necessário também que o governo peruano fiscalize as
concessões madeireiras (Acre, 2006: 79).

Desde 2001, políticas públicas interestatais articuladas ao setor privado, como a


Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e o Conselho
Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento da União de Nações Sul-Americanas
(Cosiplan/Unasul), têm promovidos projetos que visam ao desenvolvimento regional,
sem considerar de maneira adequada os impactos ambientais e as formas de vida e
particularidades culturais dos povos indígenas da região (CPI-Acre, 2016). A
pavimentação da estrada Interoceânica Sul, também conhecida como Transoceânica ou
Estrada do Pacífico, que liga o estado do Acre aos departamentos peruanos de Madre de
Dios, Cusco e Puno, conectando a Amazônia aos Andes e à costa do Pacífico no Peru, foi
iniciada em 2006 e finalizada em 2011.
Com a conclusão da obra, surgiram problemas relativos à concentração fundiária,
ao aumento do desmatamento, à migração desordenada, ao tráfico de drogas na tríplice
fronteira (Brasil, Bolívia e Peru), além de sérios problemas sociais e ambientais na região.
A facilidade de acesso gerada pela estrada, somada à subida do preço do ouro no mercado
internacional, intensificou o movimento de migrantes de diversas partes do Peru,
sobretudo dos Andes, em busca de trabalho nos garimpos ilegais de ouro nas florestas de
Madre de Dios (ibid.)
Em sua dissertação, Alessandra Severino S. Manchiney analisou, a partir de
entrevistas com lideranças do seu povo, como estão sendo implementados os programas

90
estatais, as políticas indigenistas e a implementação da IRSA na região fronteiriça entre
os três países. No lado brasileiro, observou que a estrada impactou direta e indiretamente
as Unidades de Conservação Estação Ecológica do Rio Acre, Parque Estadual Chandless
e Reserva Extrativista Chico Mendes, além das Terras Indígenas Alto Purus, Cabeceira
do Rio Acre, Jaminawa do Guajará, Mamoadate e Manchineri do Seringal Guanabara que
em muitas áreas a caça se distanciou como também há uma forte presença de madeireiros
nestes espaços. Também destacou que devido às instalações de estradas muitos povos em
isolamento voluntario estão em constantes ameaças (Manchinery, 2018: 176:177).
A construção da rodovia também impulsionou a projeção de outra via entre os
municípios peruanos de Puerto Esperanza, capital da Província de Purus, no
Departamento Ucayali, e Iñapari, em Madre de Dios, na fronteira com a cidade de Assis
Brasil, no Acre. O traçado proposto atravessa a RT Madre de Dios e o PN Alto Purus, no
Peru, além de passar a poucos quilômetros dos limites das TIs Cabeceira do Rio Acre e
Mamoadate, da Estação Ecológica do Rio Acre e do Parque Estadual Chandless, no
Brasil, áreas com presença confirmada de grupos isolados Mashco. Desde 2005, diversos
projetos de lei têm sido apresentados no Congresso da República do Peru com esse
objetivo. No entanto, es proposições foram sendo arquivadas, após pareceres negativos
de diversas instituições governamentais e não governamentais peruanas.
Em 2008, cerca de 28 pessoas foram apreendidas na aldeia Extrema pelos
Manxineru, quando passavam próximo ao igarapé Paulo Ramos, área habitada pelos
isolados. Haviam saído a pé de Puerto Esperanza, no Alto Purus, no Peru, mobilizadas
por um padre e políticos locais e seguindo o trajeto da proposta de estrada65.
Em fevereiro de 2011, José Samarrã Manchineri encontrou um acampamento com
36 tapiris, vestígios alimentares de um mês, e o início de uma trilha dos Mashco até o rio
Chandlees, pelo Igarapé Paulo Ramos. Os Manxineru da Extrema começavam a perceber
que, por conta das invasões dos seus territórios, os "parentes desconfiados" estão se
aproximando cada vez da comunidade e dos seus piques de caçada na mata. Hoje, seus
moradores estão mobilizados em um trabalho de monitoramento e vigilância territorial,
alertando para os órgãos públicos e aliados da sociedade civil organizada, sobre o risco
de situações de risco de contato e conflito. Também estão intercambiando conhecimento
e construindo uma aliança política com os seus parentes Yine de Monte Salvado, pois

65
Informações obtidas em um depoimento de Lucas Artur Brasil Manchineri, em outubro/novembro de
2010, publicado no “Informativo Dinâmicas Transfronteiriças Brasil-Peru”, organizado pela Comissão
Pró-Índio do Acre (Ano II/ Edição 2/ dezembro de 2010).
91
devido ao aumento das aparições dos Mashco-Piro na comunidade nos últimos anos,
tornaram-se os principais interlocutores entre esses grupos de indígenas isolados e os
agentes indigenistas do Estado peruano.

92
4. Políticas transfronteiriças

Como vimos anteriormente, a análise das relações entre povos "isolados" e seus
vizinhos "contatados" revelam um tipo de conhecimento e uma singularidade política que
permeiam as concepções e narrativas indígenas sobre essas populações que se negam a
interagir com as sociedades nacionais. Neste capítulo, veremos como alguns indígenas se
tornaram porta-vozes e interlocutores desses povos, em processos de negociação e/ou
confronto entre estratégias indígenas, práticas de intervenção não-governamental e
políticas estatais
Os Yine de Monte Salvado, e os Manxineru da aldeia Extrema, são hoje, não
somente agentes de "campo" altamente qualificados no trabalho de localização e
confirmação da existência de indígenas isolados, como também protagonistas de uma
aliança estratégica para a proteção e a gestão dos seus territórios compartilhados. Na
comunidade de Monte Salvado, algumas lideranças se tornaram especialistas em
mecanismos de monitoramento, prevenção e contingência em situações de contato com
indígenas isolados. Delegações de outros países, como Brasil e Paraguai, visitaram o seu
Posto de Controle e Vigilância para conhecer a experiência e, se possível, replicá-la
(Huertas, 2015: 170). Romel Ponciano, que trabalhou como coordenador da FENAMAD
no posto até 2015, foi contratado como funcionário do governo peruano, e passou a ser o
principal interlocutor dos primeiros encontros entre os agentes indigenistas do Estado
peruano e o grupo Mashco-Piro do alto Madre de Dios.
Desde 2011, os Manxineru, em acordo com os Jaminawa, destinaram uma área da
TI Mamoadate, acima do Igarapé Abismo, para uso exclusivo dos grupos isolados. Em
2020, criaram um coletivo de vigilância comunitária para registrar e mapear suas
evidências e aproximações da sua comunidade. Há 10 anos, Lucas Artur Brasil
Manchineri iniciou um trabalho de pesquisa sobre os “parentes desconfiados” que vivem
na região da fronteira Brasil-Peru. Ao participar em diversos espaços públicos de
discussão política e científica, a nível nacional e internacional, suas reflexões e conceitos
sobre esses povos e o trabalho para a sua proteção ecoaram no mundo.
O fato que não se pode negar é que os indígenas sempre estiveram presentes na
intermediação com outros povos, desde o início dos contatos com os primeiros
colonizadores que chegaram na América. No Brasil, participaram como intérpretes e
guias nos processos de consolidação do Estado nacional, bem como das expedições de
atração de índios “arredios”, nos séculos passados, promovidas pelo seu órgão indigenista

93
brasileiro, em uma política tutelar, marcada por invisibilidade e relações assimétricas
(Souza Lima, 1995). A atual demanda dos povos indígenas é por um novo status da
atuação indigenista oficial, onde possam ser reconhecidos como sujeitos fundamentais na
construção das políticas para a garantia dos seus direitos, como dos povos isolados.
A antropóloga e indigenista brasileira Luana Almeida estudou a participação dos
Jaminawa como intérpretes no processo de contato do Povo do Xinane", iniciado em
junho de 2014, no alto rio Envira, no Acre, apresentando os desafios e dilemas que se
apresentaram quando ainda “isolados” decidiram “sair da mata” e viver junto aos brancos,
e outros povos indígenas. Ela analisou que o papel do intérprete mostrou ir além de
traduzir mensagens, envolvendo trocas materiais, transmissão de conhecimento e de
novos hábitos, contribuindo para que os “índios do Xinane” viessem a se “acostumar”
com um novo modo de vida. Os Jaminawa terminaram ocupando uma “terceira posição”,
aquela do “intermediário”, que desestabiliza a dualidade que marca as descrições e
análises das situações de contato, na qual vigoram dois pólos opostos: índios e brancos.
Em sua pesquisa, destacou que esses mediadores, na maior parte das vezes silenciados ou
ocultos nos registros históricos, estiveram (e ainda estão) presentes em uma diversidade
de “primeiros encontros” envolvendo índios e brancos ao longo da história (2021: 236).
Hoje, o estabelecimento de diálogos simétricos entre as políticas públicas para
povos indígenas isolados e de recente contato, e as diferentes políticas indígenas que
pautam as relações com esses povos, vêm sendo discutidas em fóruns promovidos por
organizações indígenas e da sociedade civil, nas últimas duas décadas. Em um desses
espaços de debate66, Angela Kaxuyana, liderança da TI Parque do Tumucumaque, no
Brasil, afirmou que estamos em um novo momento, onde as comunidades, lideranças e
organizações indígenas estão trazendo suas próprias políticas de proteção e de
convivência com esses povos dentro dos territórios, pois “os isolados não são propriedade
do Estado”. A atual Coordenadora Tesoureira da organização indígena brasileira
(COIAB)67 defende a participação efetiva dos povos indígenas na definição da política, e

66
Nos dias 11 a 14 de junho de 2018, CTI e COIAB realizaram, em Brasília, o 2o Encontro Internacional
“Olhares Sobre as Políticas de Proteção aos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato”. O evento
contou a participação de representantes de organizações indígenas e da sociedade civil e de 27 povos
indígenas do Brasil, Colômbia, Paraguai, Peru, Venezuela, Equador e Bolívia, permitindo a troca de
informações sobre os desafios enfrentados nas regiões onde há povos isolados e de recente contato, bem
como a identificação de estratégias que fortaleçam a participação indígena nas políticas públicas de
proteção a esses povos.
67
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) é a maior organização
regional indígena do Brasil atuando em nove estados da Amazônia Brasileira. Fundada em 19 de abril de
1989, tem o objetivo de defender os direitos à terra, saúde, educação, cultura e sustentabilidade dos povos
94
não somente como mão-de-obra. “Nós sempre tivemos nossas políticas, nossos
protocolos, e nossas formas de conviver e proteger esses povos”. Para Angela, o desafio
do movimento indígena atual é fazer com que os Estados considerem as políticas
indígenas na construção das políticas públicas de promoção e defesa dos direitos dos
povos isolados. “O tema dos isolados é um tema nosso, quem deve discutir e precisa
participar das tomadas de decisões deste processo somos nós, indígenas. Muitas decisões
o Estado tomou sobre a vida de populações indígenas isoladas em Brasília sem a nossa
participação. Não foi levada em consideração a nossa vivência enquanto protetores de
fato dentro do território”.
Entre as reivindicações atuais dos Yine e Manxineru que vivem na fronteira
Brasil-Peru, está o reconhecimento das suas atuações como sujeitos políticos locais na
proteção aos povos isolados e de recente contato. Considerados subalternos na política
moderna, os vizinhos dos Mashco são fundamentalmente estratégicos na garantia dos
seus direitos, pois suas ações afetam diretamente seus territórios e modos de vida.
Hoje, na Amazônia, existem diversos exemplos de protagonismo político de
indígenas na proteção dos povos isolados. Diversas comunidades que compartilham
territórios e recursos naturais com esses indígenas têm buscado seus próprios acordos e
estratégias para garantir a sobrevivência e a autodeterminação desses povos, mas também
para lidar com situações que podem resultar em confrontos e mortes entre indígenas.
Um desses casos pode ser observado na TI Kaxinawá do Humaitá, no Acre. Desde
2009, os Huni Kuin estão realizando um trabalho de registro de informações sobre
encontros, vestígios e saques de isolados em suas aldeias. Os "brabos", como são
chamados por algumas lideranças, estão se aproximando cada vez mais em busca de
ferramentas e utensílios domésticos. Pensando em uma solução em reuniões com a
FUNAI e CPI-Acre, os Huni Kuin identificaram os deslocamentos dos isolados na região
fronteiriça e decidiram, assim como os Manxineru e Jaminawa da Mamoadate, a não
utilizar mais os recursos naturais nas áreas onde habitam os isolados. Além disso, criaram
uma casa de vigilância e monitoramento no alto rio Humaitá, para deixar ferramentas e
panelas para eles, como o objetivo de minimizar os saques nas aldeias e possíveis
encontros e conflitos com os isolados. Iniciaram ainda rodas de conversas de
conscientização com as comunidades não indígenas do entorno da TI sobre o direito

e organizações indígenas, considerando as suas diversidades e visando sua autonomia através de articulação
e fortalecimento político.
95
desses povos se manterem isolados, e sobre como devem lidar com sua presença na região
(CPI-Acre, 2015: 4-5).
As questões relacionadas à política indígena em contexto de vizinhança e
interação entre populações “não contatadas” e “contatadas” pelos Estados nacionais
também foi analisada pelo por Felipe Vander Velden. a partir das relações entre dois
povos indígenas em intenso contato com a sociedade envolvente - os Karitiana e os
Puruborá - e dois grupos em isolamento voluntário, no estado de Rondônia. Para o
antropólogo, o contato não remete apenas às experiências efetivas de encontros pessoais,
na floresta ou nas aldeias, entre indivíduos ou grupos. Trata-se, antes, de fazer referência
mais ampla à presença de certos grupos isolados na história recente e no que poderíamos
chamar de imaginário cotidiano desses povos indígenas já com algum tempo de convívio
com a sociedade envolvente e com instituições estatais.
Em seu artigo, Venden defende que os indígenas vizinhos aos isolados devem ser
considerados na formulação de políticas públicas que garantam a sua proteção. Suas
reflexões e opiniões acerca destes coletivos devem ser levadas em conta, pois, afinal, são
estes que vivenciam a questão bem de perto, e que podem ter papel crucial no
encaminhamento das relações interétnicas nas regiões (2016, 107, grifo do autor).
Conhecer os povos em isolamento, a partir da ótica de seus vizinhos, pode ter múltiplas
implicações para as políticas públicas. No caso analisado, “os dois grupos parecem
planejar estratégias de abordagem semelhantes no caso destes isolados se revelarem
mesmo seus “parentes”: o contato amigável e, paulatinamente, a incorporação e o
convívio, ainda que esses desejos, claro, não estejam isentos de múltiplos problemas”
(2016: 117). Dessa forma, Velden evidencia uma importante questão para esta pesquisa:
a dicotomia histórica entre os modos de pensar e atuar das sociedades indígenas e as
políticas dos Estados em seus territórios, e neste caso, entre fronteiras nacionais.
Em um artigo de 2018, Pimenta analisou as recentes alianças intraétnicas entre os
Ashaninka do Brasil e do Peru, privilegiando a sua dimensão política, e destacando o
protagonismo dos indígenas da aldeia Apiwtxa, do lado brasileiro da fronteira, no
processo. Desde a demarcação da sua TI no estado do Acre, a estratégia etnopolítica dos
indígenas do rio Amônia tem sido a construção de alianças com seus vizinhos, Ashaninka
ou não, indígenas e não indígenas, brasileiros e peruanos, em busca de alternativas
econômicas sustentáveis para essa região de fronteira ameaçada por atividades ilegais e
por políticas desenvolvimentistas estatais, baseadas em grandes projetos de infraestrutura
e integração comercial e na exploração predatória de recursos naturais. Hoje, enquanto
96
os Estados nacionais se articulam para além de suas fronteiras para atender aos interesses
do mercado, ameaçando os territórios indígenas, os Ashaninka fortalecem sua união
transfronteiriça para defender seus direitos, mas também para valorizar sua história e
cultura (2018: 296-197).
Na análise de Sarmiento Barletti (2014), que descreve as formas pelas quais os
Ashaninka do baixo Urubamba produzem sua subjetividade política, suas práticas e
saberes estão fundados tanto em práticas etnopolíticas (localizadas nas relações com o
Estado), como em práticas relacionais (que existem nas relações comunais). Pode-se
concluir então que sua estratégia política faz uso de ambos os argumentos (apud De la
Cadena e Peña, 2014). Nas palavras de Sarmiento, "quando se trata de compreender as
práticas políticas nas sociedades indígenas, há uma necessidade de olhar para além das
formas de política que são mais notáveis do exterior". O antropólogo afirma ainda que
"mesmo que as práticas mais evidentes tenham nos dado algumas respostas, como o
movimento político indígena, elas não são capazes de nos dar uma representação
equilibrada das práticas políticas indígenas". Ele concluiu que somente "remodelando
nossas ferramentas conceituais podemos compreender as prioridades dos povos
indígenas, abrindo espaço para análises dos atos políticos menos óbvios e das maneiras
como estes são expressos nos confrontos e no envolvimento criativo com o Estado, as
ONGs, as multinacionais e outros povos indígenas”.
Emprestando a noção de "cosmopolítica" proposta pela filósofa da ciência Isabelle
Stengers (2018 [2007]), e analisando diferentes textos de etnólogos da Amazônia e dos
Andes, como o citado acima, de Juan Pablo Sarmiento, De la Cadena e Peña (2014) fazem
uma pergunta estruturante para aprofundarmos essa discussão: "como as políticas
indígenas afetam a política?". A problematização dos autores apresenta a diferença
radical das práticas indígenas, enquanto que ocupam esferas da vida moderna, e quando
emergem em circunstâncias em que aqueles que não participam da radical diferença
compartilham. Eles explicam que a diferença é radical porque surge de circunstâncias que
não se conformam em divisões que separam a humanidade e seus outros (cultura e
natureza, o animado e o inanimado, material e espiritual) e normatizam o entendimento
da vida moderna.
Os autores propõem um caminho analítico que escapa de categorias (raça,
etnicidade, cultura ou natureza, e seus cognatos) que trabalham para explicar diferenças
de dentro de um mundo compartilhado. Enquanto campos parcialmente conectados da
vida, e compartilhando a esfera do Estado-nação, as formações indígenas participam na
97
política moderna em movimentos sociais e práticas governamentais, e recebendo o apoio
de organizações não governamentais aliadas. Mas o apoio das ONGs e a participação no
governo têm seus limites, colocados pelo que a política moderna pode reconhecer. E é
nesse ponto onde um tipo diferente de política começa revelando a discordância
fundamental que emerge da diferença ontológica: práticas que afastam mundos
simbioticamente, mas que também os conectam parcialmente, transparecendo, assim, a
complexidade da própria política. Explicam ainda que a multiplicidade de mundos revela
a questão principal: encolhemos os ombros em face desta vontade, e continuamos a
declarar um mundo igualitário que não o é, e não será como tal? Ou encaramos a
complexidade dos mundos parcialmente conectados e seguimos as políticas indígenas
enquanto elas se mostram de acordo com essa complexidade? (ibid.)
No caso analisado nesta pesquisa, observamos que as práticas dos Yine e
Manxineru, em duas comunidades vizinhas aos grupos de indígenas "isolados", e em
interface com a políticas indigenistas dos Estados e ONGs, desencadearam uma aliança
estratégica em defesa da vida desses povos e dos seus territórios, ultrapassando limites
nacionais, e desafiando as políticas modernas de um "mundo compartilhado" com suas
"cosmopolíticas".

4.1. Pesquisando os povos “isolados” na fronteira Brasil-Peru

"Caboré é um pássaro que canta de noite, que adivinha e avisa para a gente quando
tem uma pessoa perto ou longe", me ensinou o professor e pesquisador Lucas Artur Brasil
Manchineri, que há mais de uma década está estudando os "parentes desconfiados" que
vivem entre a fronteira Brasil-Peru. Ao comentar sobre a importância dos conhecimentos
e práticas do seu povo para o trabalho de proteção dos povos isolados, Lucas me explicou
que nesse papel de interlocutores entre dois "mundos", é importante compreender os
sinais da floresta e usar o "sotaque" certo, caso seja inevitável um encontro. Em suas
palavras: “Queremos fazer da nossa forma, com o protocolo Manchineri mesmo, porque
para fazer esse trabalho a pessoa tem que entender de espiritualidade, tem que entender o
caboré e as garças, tem que entender os ventos...”. Disse também que é preciso ter
"sabedoria" para o diálogo com os isolados, o que às vezes os mais jovens não têm. Em
uma entrevista realizada em junho de 2017, Lucas relatou:

98
Está tendo muito sinal deles agora no Alto Iaco. O Neguinho me falou: "'acho que
esse ano os parentes vão estar aí de novo". Os Manchineri escutaram muito caboré
deles. Então, quando começa a chegar muitos sinais, com certeza eles vão
aparecer naquela região. Quando sobem o rio Iaco, as pessoas encontram rastros,
vestígios e o tapiri deles. (...) Às vezes falta habilidade ao intérprete. Tem que ir
devagar. Tem que ser um intérprete que saiba conversar, dialogar. Se não o
parente, que já é desconfiado, fica mais desconfiado ainda. Tem que ter o tom
calmo para conversar com eles [isolados], e saber o jeito de perguntar. Você conta
uma história e aí depois ele conta uma também. Se você perguntar de cara, ele não
vai responder". (...) Muitos jovens falam com outro sotaque. Quando você
encontrar com o outro você tem que estar com o sotaque mais leve, não ficar
perguntando direto, tem que se preparar. (...) Uma sabedoria que não é todo
mundo que tem. Meu pai tem isso, tio Dionísio tem. Sabem conversar com as
pessoas. Esses mais velhos têm essa habilidade. Já os mais jovens não têm. (Lucas
Artur Brasil Manchineri, entrevista em junho 2017)

A liderança Manxineru também vem pesquisando os caminhos percorridos pelos


indígenas isolados e a sazonalidade das suas andanças, alertando ainda que muitos
madeireiros estão trabalhando atualmente na região fronteiriça, colocando os Mashco e
seu povo em perigo:

Tem uma rota que eles [isolados] vêm do Tahuamanu, baixam o [igarapé] Abismo
e sobem o rio Iaco, entram em um afluente do Iaco à direita. o Moa, e vão para o
rio Chandless. Todos os anos eles fazem isso, seguindo esse ciclo, esse calendário.
Acho que passam um ano no Chandless, depois voltam pelo mesmo caminho,
passam uns meses no Iaco, e depois voltam de novo para o Tahuamanu, pelo
mesmo caminho. Às vezes, ficam acima do rio Iaco mesmo. (...) O rio Acre é mais
uma passagem deles, em suas cabeceiras. Eles vêm do Tahuamanu e atravessam
o Acre para ir até o Iaco. Então, não tem aquela história deles saírem (na praia).
Agora, mais para cima, já é a área deles. Tahuamanu, Iaco e Abismo têm um fluxo
direto deles. Os meninos da aldeia Nova União [TI Cabeceira do rio Acre] vêem
rastros e vestígios e a passagem deles indo para o Iaco, e depois voltando para o
Tahuamanu. Tem muito madeireiro nessa região no lado peruano. Eles vão por
cima cortando. É perigoso você entrar. E os Mashco também estão em perigo.
(Lucas Artur Brasil Manchineri, entrevista em junho 2017)

Lucas também observa as características dos vestígios encontrados pelos isolados


na TI Mamoadate. Para ele e seu pai, Otávio Manchineri, existem dois grupos distintos
que andam em diferentes rotas no Alto Iaco. A diferença entre eles é o tamanho do rastro
deixado pelos seus indivíduos:

Eles vão ao encontro daquelas cabeceiras todas. E ali tem dois grupos, um do
rastro grande e um do rastro pequeno. O ano que o rastro pequeno passa, o rastrão
99
não passa. E o ano que o rastrão passa o do rastro pequeno não passa. Tem essa
diferença e alternância. Acho que eles já sabem quando os do pé grande passam.
Aí não vão. Às vezes eles já têm até alguma ligação, e aí não se encontram. (Lucas
Artur Brasil Manchineri, entrevista em junho de 2017)

No seu processo de pesquisa, além de conversar com o seu pai e outros Manxineru
mais velhos, Lucas começou a levantar informações obtidas com os seus parentes do lado
peruano da fronteira quando vinham ao Brasil. Eles sempre lhe contavam como os
isolados estavam cada vez mais se aproximando da comunidade e intensificando relações
de diálogo, troca, e também de conflitos com os Yine e invasores não indígenas. Em 2011,
Lucas teve a oportunidade de visitar a Comunidade Nativa Diamante no Peru, onde os
encontros com o grupo Mashco-Piro do Alto Madre de Dios começaram a se intensificar
por conta da entrada de madeireiros e garimpeiros em seus territórios. Na ocasião, Lucas
também registrou uma entrevista que realizou com Roy Roge Gomes Manchineri.
Transcrevo abaixo o diálogo transcrito, cedido para mim na época:

Lucas: Como era antes quando os parentes [Mashco Piro] não habitavam nesse
rio [Madre de Dios]?
Roy: Eles apareciam para os madeireiros, garimpeiros que subiam neste rio atrás
de madeira e ouro. Eles chegavam onde os isolados habitavam e eles apareciam
para uma dessas equipes à procura de objeto, isqueiro, terçado, machado. A equipe
tinha consciência para não violentar eles, davam o que eles pediam e algum objeto
a mais, como açúcar, sal, panela, espelho e outros, mesmo eles não entendendo a
fala dos isolados.
Lucas: Qual objeto eles levam para utilizar?
Roy: Isqueiro, terçado, machado, panela, espelho e outros objetos eles deixavam.
Lucas: Qual objeto eles mais gostam?
Roy: É o espelho, é uma maravilha para eles, eles se veem no espelho e ficam
rindo para o espelho vendo a sua própria imagem.
Lucas: Como os madeireiros e garimpeiros faziam?
Roy: Violentavam e expulsavam de seus territórios. Chegou até um dia que os
garimpeiros deram uma bomba para eles dizendo que era isqueiro, mesmo eles
não entendendo o espanhol. A bomba explodiu no meio da aldeia e matou muitas
pessoas, porque eles avançaram mais de perto das comunidades piro e ribeirinhas.
Lucas: Os isolados chegaram a atacar os Piro de forma violenta?
Roy: Sim, invadiram uma casa, mataram cachorro, galinha.
Lucas: O que eles levaram?
Roy: Nada.
Lucas: O que vocês fizeram com ele?
Roy: Nada fizemos, só nos afastar deles.
Lucas: Por que?
Roy: Porque eles são nossos parentes, eles falam igualmente a nossa língua
materna.

100
Lucas passou então a promover a ideia de intercâmbio entre os Manxineru do
Brasil e os seus parentes Yine do Peru, para se discutir a problemática dos indígenas
isolados com quem compartilham os seus territórios: “A questão dos índios desconfiados
é nossa. O que os Manxineru e os Yine estão pensando? As nossas alianças? Quais as
suas rotas nos territórios? Qual o futuro deles? Estou escrevendo bastante sobre isso
porque está bem complicado. Tem madeireiro, narcotraficante, poluição dos rios e
estradas. Isso nos afeta”.
Na conclusão da sua dissertação de mestrado, defendida no Centro de
Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, em 2017, Lucas explicou que,
para os Manxineru, "outros mundos estão entremeados dentro deste conhecimento, sem
que as barreiras possam ser distinguidas pelo conhecimento acadêmico e científico". Na
cultura Manxineru, "a floresta tem suas próprias leis construídas pelos poderes das
árvores, da terra, das águas e dos animais. Todos esses seres estão sendo afetados pelos
seres humanos com o desmatamento, a poluição de água, a poluição de terra, e eles já
estão doentes de tanto massacre, por isso que esses seres precisam limpar os seus corpos
para manterem as demandas dos seres humanos, que não conseguem enxergar os seus
deveres para com a natureza mãe". O pesquisador indígena refletiu ainda que "os seus
movimentos já estão afetando os seres humanos:

Os rios já estão secando e as plantações não estão crescendo de acordo com a


natureza. Por isso, nós, Manxineru, entramos em ação para ajudar a floresta. (...).
Sabemos que, agindo assim, a floresta vai nos proteger de várias coisas que estão
afetando a humanidade. (...). Assim é que o povo Manxineru vê outro mundo, é
através do movimento da natureza. Assim, trabalhamos para sobreviver, nos
adaptando, seguindo os movimentos da natureza e seguindo os movimentos que
a história atual nos impinge". (Brasil Manchineri, 2017: 92-93).

4.2. Aliança indígena em defesa dos Mashco

Em 2011, os Manxineru da aldeia Extrema, no Brasil, e os Yine da Comunidade


Nativa Monte Salvado, no Peru, começaram a realizar encontros e reuniões68 para a troca
de conhecimentos e informações sobre as ameaças que os afetam, mas também impactam

68
Antes disso, em 2005, aconteceu um primeiro intercâmbio entre os Manxineru do Brasil e os Yine
moradores da Comunidade Nativa Diamante, no Peru, com a criação da MAPKAHA, Organização do Povo
Indígena Manchineri do Rio Iaco. (comunicação pessoal Lucas Artur Brasil Manchineri, 2017).
101
aos povos isolados com quem compartilham seus territórios. A organização indígena
peruana FENAMAD começou a apostar em novos espaços de articulação, incluindo as
organizações indígenas e governamentais e da sociedade civil do Brasil. Através da
parceria com a CPI-Acre, foi criada uma plataforma interinstitucional para o intercâmbio
e o monitoramento das ameaças na fronteira (Palacios, 2019: 190). As lideranças
indígenas brasileiras e peruanas começaram a alertar aos governos de Brasil e Peru sobre
os impactos do projeto de estrada Iñapari-Puerto Esperanza, a 10 quilômetros da divisa
brasileira-peruana, cortando ao meio o território dos isolados. Também passaram a
reivindicar a cooperação binacional para a fiscalização da exploração madeireira e do
crescente narcotráfico na região fronteiriça.
Uma reunião realizada na aldeia Extrema, em julho de 2011, marcou o início de
um diálogo mais sistemático entre yines e manxinerus e voltado para troca de
experiências e desafios encontrados ao compartilharem seus territórios com os isolados.
O encontro na TI Mamoadate contou com moradores de Monte Salvado, além de
representantes da FENAMAD, CPI-Acre e FUNAI. Na ocasião, os indígenas discutiram
as problemáticas que afetam os seus territórios em ambos lados da fronteira, como o
tráfico de drogas, a extração da madeira, e a construção de estradas. Lançaram ainda uma
carta buscando a proteção efetiva dos seus territórios e dos isolados.
Em uma carta de 11 de julho de 2011, os Manxineru afirmaram que os problemas
que se originam no lado peruano geram riscos à integridade física e territorial do seu
povo. Também exigiram providências imediatas dos órgãos responsáveis do governo do
Peru para o controle do trânsito de pessoas no Parque Nacional do Purus e na Reserva
Territorial Madre de Dios. Pediram ainda que o Estado brasileiro pressionasse as
autoridades peruanas para a fiscalização das atividades extrativistas na região de fronteira,
evitando consequências negativas, no lado brasileiro. Ao final da carta, solicitaram
novamente um posto de vigilância na aldeia extrema, com objetivo de controlar possíveis
atividades ilícitas na Terra Indígena Mamoadate, e para contribuir com a proteção das
populações isoladas que vivem na região.

102
Intercâmbio binacional sobre proteção dos povos isolados, realizado em 2011, na aldeia
Extrema, na TI Mamoadate, no Acre, no Brasil. (Foto: Acervo CPI-Acre)

Os participantes do intercâmbio também averiguaram os vestígios dos Mashco


em um acampamento encontrado por José Samarrã Manchineri, meses antes. Diante das
novas evidências, estabeleceram um acordo para que ninguém ultrapasse o Igarapé
Abismo, no Alto Iaco, diminuindo a pressão sobre os recursos utilizados pelos Mashco
em território brasileiro. Em uma entrevista em 2017, Lucas Manchineri me explicou que:

(..) do Abismo para cima é deles. Os Manchineri têm essa visão de proteção.
Qualquer Manchineri vai falar isso. Não adianta só eu defender e os outros
Manchineri não. Tenho essa autoridade de falar hoje porque todos os Manchineri
disseram numa reunião: "vamos ajudar os parentes e procurar recurso de quem
vai nos ajudar". Temos isso bem forte! (Lucas Artur Brasil Manchineri, entrevista
em junho de 2017)

Lucas me explicou ainda que, além do posto de vigilância na Extrema, desde


aquele momento as lideranças Manxineru já reivindicavam melhores condições para o
trabalho que estão realizando em defesa desses povos": “É um trabalho dos Manxineru.
Todos têm direito, mas principalmente quem está no trabalho em defesa dos parentes
desconfiados, pois estão arriscando a sua vida também”. Também afirmou que foi no ano
de 2011 que CPI-Acre, FENAMAD e FUNAI retomaram o diálogo interinstitucional para
trabalhar em parceria com os Manxineru: "Começa esse intercâmbio e se cria a aliança, a
força. Temos parentes isolados. Como vamos defendê-los? Então, precisa primeiro
sentar, conversar e se entender". Disse ainda que Teodoro de Monte Salvado, quando foi

103
na aldeia Extrema, convidou ele e outros Manxineru para visitarem a sua comunidade
para mostrar os mapas e falar dessa articulação entre eles. Para Lucas, as informações
geradas nesses intercâmbios entre as comunidades possibilitam a formulação de hipóteses
baseadas em suas próprias concepções sobre quem são os "isolados", como vivem, como
se organiza e onde possuem suas moradias na floresta:

São muitos grupos. Os meninos de Monte Salvado estavam explicando que tem
um grupo que fica ali no Lídia Grande, tem um grupo que fica em São Francisco,
e tem um grupo que fica no rio principal que é o Las Piedras. No verão, às vezes
esses grupos se juntam num canto só. São vários grupos que são conhecidos entre
eles. É igual a nós, Manchineri, tem na aldeia Extrema, na Lago Novo, na
Cumaru... A gente se encontra, mas não vive junto. (...) Segundo informações do
Teodoro e do Antônio Trigoso [indígenas Yine do Peru], eles têm a casa deles.
Eles andam, vão para outros lugares, que é o território deles, e depois voltam para
o mesmo local. É como os Manchineri, que vão e levam uma família, vão para a
cabeceira do rio Iaco, vão para o Abismo. Mas não significa que é nômade. Ele
está caçando, está dentro do seu território. Com o tempo, eles voltam para aquele
mesmo lugar”. (...) Os Mashco Piro não são nômades. Uns Manchineri que
subiram bem acima da Boca do Abismo me contaram que possivelmente no Iaco
eles têm a maloca deles. Lá que é o local deles cultivarem as suas coisas”. (Lucas
Artur Brasil Manchineri, entrevista em junho de 2017)

Para a liderança Manchineri, o início dos intercâmbios estimulou uma


comunicação permanente entre yines e manxinerus para qualquer situação de emergência,
bem como uma aliança política em defesa dos direitos dos seus “parentes” isolados:

Quando eles têm algum problema, quando os Mashco-Piro estão saindo, eles
ligam e avisam. A gente tenta ajudar eles também. Nós, do mesmo jeito, quando
a gente vê algum sinal, a gente avisa para eles também. (...). A gente tem esse link,
essa comunicação. Hoje, isso está bem forte e cada vez vai melhorar. (...) "Hoje,
posso falar de Monte Salvado e eles também podem falar da Terra Indígena
Mamoadate. Nós protegemos os parentes isolados e isso é uma forma de aliança.
(Lucas Artur Brasil Manchineri, entrevista em junho de 2017)

Julio Ricardo Cusurichi Palacios, liderança Shipibo e a atual presidente da


FENAMAD, explica que desde 2011, os Manxineru do Iaco, no Brasil, e os Yine, do Las
Piedras, no Peru, estão realizando encontros e reuniões e espaços políticos, onde as bases
para um diálogo orgânico e a colaboração entre populações indígenas de Peru e Brasil,
centrado em problemáticas comuns, e com ênfase na proteção transfronteiriça dos
Mashco-Piro, foram sendo consolidados (Palacios, 2019: 190).
Cayón (2014) nos ajuda a refletir sobre a evidente sofisticação política dos
indígenas, em promover ações diferenciadas segundo seus interesses e encontrando em

104
nossos conceitos do "mundo” uma forma de potencializar suas demandas e negociar
diversas realidades. Nesta pesquisa, observamos como as duas comunidades atuam, não
somente exigindo respostas mais rápidas e efetivas das instituições estatais e aliadas da
sociedade civil organizada, como criando alianças intra e interétnicas para seguirem
desenvolvendo em seus territórios um trabalho a partir dos seus conhecimentos e práticas.

Lucas Manchineri em intercâmbio na CN Monte Salvado, onde vive população Yine, no rio
Las Piedras, Peru, em 2012.
(Foto: Acervo Fenamad)

4.3. Emergências e intercâmbios no rio Las Piedras

No dia 24 de junho de 2013, em uma manhã seca de verão amazônico, um grupo


de aproximadamente 20 Mashco-Piro apareceu em frente à Comunidade Nativa Monte
Salvado, no Peru. Essa “visita dos isolados”, que iniciou uma série de eventos deste tipo,
inclusive em outras localidades dos rios Las Piedras e Tahuamanu, durou cerca de três
horas, gerando momentos de tensão e pânico, mas também de troca e confiança. O
encontro exigiu que os agentes de proteção do Posto de Controle e Vigilância (PCV)
atuassem na situação de emergência usando a "inteligência" construída pelo grupo ao
longo dos anos.

105
Em uma entrevista realizada em 2017, Ronal Ponciano me contou que estava em
sua casa tomando massato quando foi surpreendido pelo seu companheiro gritando:
"calatos, Mashco, Mashco!" As crianças que se banhavam no rio começaram a gritar, e
Romel, seu irmão e coordenador do PCV na época, que estava tomando banho mais
abaixo, correu para falar com eles e perguntar o que queriam. "Los Mashco dijeron que
querían plátano y una soga [corda]. Romel les dijo: dejen sus flechas allí y las daremos.
Luego dejaron sus flechas e vinieron a nuestro encuentro, eran veinte y dos" relatou o
agente de proteção.
Ronal disse ainda que, nesse momento, todos os moradores da comunidade foram
em suas casas buscar as bananas que tinham para dar aos Mashco-Piro. Romel entregou
os plátanos a eles, perguntando de onde vinham e onde estavam os outros. Eles
responderam que estavam a cinco voltas do Igarapé Lídia, e Romel então pediu para eles
irem embora. Os isolados disseram que iam, mas que voltariam no dia seguinte para
buscar corda. No outro dia, o grupo maior reapareceu com mais gente na praia e,
novamente, todos os moradores entregaram as bananas e frutas que tinham. Após algumas
horas, retiraram-se mais uma vez da comunidade. Às 7 horas da manhã do terceiro dia,
um grupo com mais de cem Mashco voltou à praia. Sobre esses encontros, em junho de
2013, Romel relatou:

El 2011, no hemos visto nada, el 2012 nada, hasta el 2013. El 24 de junio,


hablamos con ellos. Ya los vi por segunda vez. Ellos me preguntarán: "¿Quién
vive atrás? Vamos a entrar". Yo no entendía nada, detrás de nosotros no había
nadie. "Entonces, vamos a pasar", decían. Debajo de nosotros a tres horas está la
comunidad Puerto Nuevo. Ellos querían saber quiénes eran ellos. También nos
decían para llevarnos a un enfermo picado por la talla, y querían que nosotros lo
cuidemos. Nosotros no hemos aceptado. Hemos tenido miedo. Si uno cruza, todos
van a querer cruzar. Entonces, de ahí han estado por más 3 días. Hemos contado
más o menos 115 personas Mashco Piro. (Romel Ponciano Sebastian, entrevista
em junho de 2017)

Romel comentou que, no primeiro dia, os Mashco o apelidaram de “abuelo”, e o


convidaram para se juntar ao grupo, pois havia muita carne de caça subindo: "Vamos allá,
tenemos motelo, maquizapa, sachavaca, decían. Me invitaran a vivir con ellos, pero no
he podido contestar". Diante do convite, sua estratégia, e a da comunidade, foi se
esconder, todas as vezes que isolados retornavam à Monte Salvado nos dias seguintes:

106
(...) en 2013 me pusieron el sobrenombre de abuelo. Tu vas a ser abuelo, decían.
Y desde ahí la comunidad un poco me escondía, se van a ver los Mashco na van
a querer ir. Yo no salía, cuando me buscaban, no estaba, regresaban. Han estado
tres días. En el último día, ya no iban a salir. Querían que yo saliera para hablar
con ellos. Y los otros Yine decían, no salgas. Me van a ver y novan a regresar, no
van a querer irse. Van a querer hablar conmigo. Entonces, yo ya no salía, estaba
adentro. (Romel Ponciano Sebastian, entrevista em junho de 2017)

Ronal contou também que no terceiro dia, antes de irem embora, os Mashco
quiseram, sem sucesso, trocar uma criança do grupo por um cachorro da comunidade.
Como Romel, também comentou sobre a história do homem que estava doente, e do
pedido dos Mashco para curá-lo. Reafirmou ainda que a comunidade, e os sete agentes
de proteção do PCV, não aceitaram, pois isso implicaria uma relação maior com os
isolados, infringindo as regras de Monte Salvado e a política do "não contato". Na época,
a FENAMAD informou ao governo peruano e à imprensa que os agentes de proteção
adotaram um plano de contingência69 para evitar o contato, pois haviam sidos treinados
para atuar nesse tipo de situação, dando segurança aos membros da comunidade, e aos
isolados70. Dias após o ocorrido, a liderança Lucas Artur Manchineri enviou uma carta à
FUNAI pedindo apoio aos Yine do lado peruano fronteira, pois estavam vivendo uma
situação de emergência no rio Las Piedras:

Os nossos parentes isolados Mashco-Piro estão na sua comunidade Monte


Salvado pedindo alimento para eles comerem. (...) Para nós, Manchineri (Yine)
do Brasil, é muito importante cuidar dos isolados Mashco-Piro porque eles são
falantes da nossa língua e porque vivem, em determinada época do ano, no nosso
território. Inclusive, já encontramos diversas vezes seus vestígios. (Manxineru em
carta à FUNAI, 2013. Terra Indígena Mamoadate, Lucas Artur Brasil Manchineri
em 28/06/2013)

Lucas decidiu então realizar uma viagem à Monte Salvado para se reunir com os
seus moradores e debater sobre os riscos que estavam correndo. Na ocasião, todos
lançaram uma carta buscando o reconhecimento dos Estados como protagonistas de

69
Na CN Monte Salvado foram aplicados procedimentos estabelecidos em planos de contingência, onde o
princípio é não agredir, atrair ou contatar os indígenas e, pelo contrário, acalmar e pedir com calma que se
retirem. Os resultados desses procedimentos têm sido satisfatórios, porém, os limites entre calma e
violência nessas circunstâncias são muito frágeis e podem ser rompidos por qualquer ato que possa ser
interpretado como ofensivo por povos indígenas isolados (Huertas, 2015: 146).
70
"Perú: Más de cien indígenas en aislamiento piden alimentos en Monte Salvado". Notícia veiculada em
Servindi em 27 de junho de 2013. Disponível no endereço: https://www.servindi.org/actualidad/89837
107
políticas de proteção às populações isoladas e seus territórios, e reafirmando a aliança
iniciada em 2011, na aldeia Extrema, no lado brasileiro da fronteira.

Nosotros, Yine/Manchineri del Perú, junto con los Manchineri de Brasil,


comunicamos a través de este documento a todos las autoridades peruanas y
brasileñas la situación de extrema vulnerabilidad de nuestro pueblo y território.
(..). Con esta carta tenemos la esperanza de formar una nueva alianza para que el
pueblo Yine continúe luchando en la protección de nuestro bosque, preservación
de nuestra cultura y conocimientos tradicionales y respetando la forma de vida de
los hermanos en aislamiento voluntario. (Carta da Comunidade Nativa Monte
Salvado, anexa ao Relatório Expedição Comunidade Nativa Monte Salvado-Peru,
de Lucas Manchineri, 2013)

Em seu relatório sobre a viagem para Monte Salvado, realizada entre 30 de junho
e 08 de julho de 2013, Lucas fez uma alerta para a situação de risco do seu povo e dos
seus "parentes desconfiados", devido às diversas ameaças na região:

Atualmente os parentes Yine e os índios isolados do Peru estão com seu território
e sua forma de vida tradicional extremamente ameaçada, todo o entorno da terra
que pertence a eles estão sob jurisdição e concessões de empresas madeireiras e
de minérios, sem contar a questão do narcotráfico, tornando essas comunidades
extremamente vulnerareis e com grande risco de não existirem mais em um curto
espaço de tempo (Relatório “Expedição Comunidade Nativa Monte Salvado –
Peru”, 2013).

No dia 17 de julho, os Mashco apareceram novamente nas praias do rio Las


Piedras, provocando novamente uma situação de emergência. Desta vez na comunidade
Puerto Nuevo, a três horas de descida de Monte Salvado. As mulheres, que na ocasião
estavam sozinhas, tiveram que escapar rio abaixo. Os Mashco saquearam as casas e
roçados levando panelas, terçados, bananas e mandiocas. Quando escutaram o motor dos
homens voltando para a aldeia ganharam mata adentro.
No ano de 2013, outros eventos desse tipo ocorreram no rio Tahuamanu: no Posto
de Controle do PN Alto Purus, sob gestão do SERNANP, em setembro, e na Comunidade
Nativa Nueva Oceanía Boca Shupiwi, em outubro. Desde então, os moradores de Monte
Salvado vêm discutindo a possibilidade de transferência da comunidade a jusante de sua
localização atual, dado o risco de desencadeamento de conflitos. Uma retirada temporária
da população de Monte Salvado e Puerto Nuevo ocorreu em dezembro de 2014, devido à
sucessivas entradas de grupos Mashco-Piro nas comunidades (Huertas, 2015: 75-77).
Em um desses eventos, Romel Ponciano conversou novamente com os Mashco,
que pediram banana e outros alimentos e objetos. Desta vez, também disseram que se

108
sentiam "molestos" porque "'nosotros"' estamos destruindo toda a floresta. Ronal, seu
irmão, recordou de uma vez que os moradores de Monte Salvado foram surpreendidos
pelos isolados chegando na comunidade quando estavam construindo a sua casa de
artesanato71. Lembrou ainda que, nessa ocasião, os Mashco ficaram bravos quando os
Yine entregaram as bananas para eles, inclusive, ameaçando com flecha alguns
moradores que estavam do outro lado do rio. Teodoro Sebastian comentou que nesses
encontros os Mashco sempre querem trocar os seus cuchillos feitos com dentes de animais
pelos machetes de metal da comunidade. A liderança de Monte Salvado refletiu ainda
sobre os dilemas nessas relações de troca de alimentos e objetos com os Mashco.

Como nosotros somos familia de ellos, le entendemos, y no le podemos engañar,


tenemos que darle, aunque hay un reglamento que dice que está prohibido darle.
Pero no es eso. Si tú le entienden bien, si ellos te hablan bien, ellos saben muy
bien que tú tienes esa posibilidad de traer machete, todo. Y ahí tú tienes que dar.
Así son ellos. Nosotros tenemos que darles. Así siempre nos dicen. Cuando no le
queremos dar, no tenemos nada, algo nos dice que tenemos que cumplir el
reglamento, no hay que darle por la contaminación, ellos dicen: "déjalo, déjalo".
Ahí vienen ellos "ricos", hasta cerca así, como usted. Pero no dejan más, no dejan
agarrar tu mano. No quieren, no quieren. Pero, sí, hacen cambio con su cuchillo.
Ellos tienen su propio cuchillo, con sus dientes de animales, así hacen sus flechas,
sus collares. Ellos siempre sacan y nos regalan y también piden los nuestros. Ellos
tienen su propio cuchillo hecho para hacer cambio. Hombres y mujeres tienen. Le
sacan y dejan en la playa. (Teodoro Sebastian, entrevista em janeiro de 2019)

O relato de Teodoro nos permite adentrar na complexa "fronteira" entre "isolados"


e seus vizinhos "contatados", onde suas relações são construídas ao longo dos anos, a
partir de encontros e diálogos na mesma língua, e baseadas em seus tradicionais sistemas
de convivência e intercâmbio na floresta.
Como observou Lévi-Strauss em outras situações etnográficas, fica claro nessa
escala de relações, a passagem do que era "quase um conflito" para o "comércio". Essa
"inspeção de reconciliação", como foi chamada pelo antropólogo, e identificada nesse
episódio em Monte Salvado, completa a passagem da hostilidade à colaboração, do medo
à amizade, da possível guerra ao mercado. Ou melhor: presentes recíprocos, muito mais
que transações comerciais que, posteriormente, podem ser pesados e avaliados e iniciar

71
A estratégia de trabalho da FENAMAD, além de manter postos de controle e agentes de proteção, é
apoiar a Associação de Artesãos Mashko Yine de Monte Salvado, criada em 2015 para promover a
fabricação e comercialização de tecidos com desenhos tradicionais Yine. Esta atividade tem como objetivo
emergir como alternativa económica para mulheres e homens, dada a presença frequente do Mashco-Piro
nas proximidades do Monte Salvado, visto que o artesanato é uma atividade que requer pouca intervenção
na floresta (Bisso, 2020: 295).
109
um novo conflito ou um mercado novamente (1949:145, tradução livre). Assim, nesses
controvertidos encontros, a política estabelecida nas relações entre indígenas que habitam
o rio Las Piedras vai influenciando as estratégias e ações de lideranças e agentes de
proteção da comunidade.
Para uma das mais antigas dirigentes da FENAMAD, Marlene Racua, falecida em
setembro do ano passado, o mais importante é sempre respeitar a autodeterminação dos
povos. Em entrevista, explicou que a posição que orienta o trabalho da organização
indígena e seus agentes de proteção é fundamentada no respeito a decisão dos Mashco
Piro:

La idea de nosotros, como Fenamad, es dejarlos que ellos decidan. Tampoco


Fenamad está diciendo: Ya, salgan, salgan. Le dejamos que ellos mismos decidan.
De repente ellos van a llegar de acá un rato, están saliendo, van a llegar y van a
querer asentarse conjuntamente, así como nosotros. Pero la idea de nosotros,
como Fenamad, es de no estar incentivando que ellos salgan. Como ahora están
conversando con Romel, es decir a ellos que se protejan para que ellos mismo
decidan. Nosotros como Fenamad no podemos decidir. (Marlena Racua,
entrevista em setembro de 2016).

Os registros audiovisuais dos encontros entre yines de Monte Salvado e isolados,


no rio Las Piedras, nos anos de 2013 e 2014, foram amplamente divulgados na época,
atingindo a opinião pública, e gerando manchetes na imprensa nacional e internacional.
Em 2015, Romel, que coordenava o PCV de Monte Salvado com o apoio da FENAMAD,
foi contratado como funcionário do Ministério da Cultura do Peru, que passou a atuar na
região após uma série de avistamentos e conflitos com outros grupos Mashco-Piro que
vivem na margem oposta do rio Manu, no alto Madre de Dios.

110
Grupos Mashco-Piro em encontros nas comunidades no médio rio Las Piedras, departamento Madre
de Dios, no Peru. (Fotos: Acervo Fenamad)

111
4.4. Políticas indigenistas: agenda regional e cooperação binacional

A América do Sul abriga hoje o maior número de povos indígenas isolados e de


recente contato do planeta. A maioria dessas populações vive na floresta amazônica72.
Um levantamento de 2019, feito por uma rede de organizações indígenas e indigenistas
de Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Venezuela, indicou a existência
de 185 registros sobre a presença de indígenas isolados nesses países, 66 deles
confirmados73, e de diversos povos considerados de recente contato na Amazônia e Gran
Chaco. Existem ainda relatos sobre povos em isolamento na região fronteiriça entre
Brasil, Guiana, Suriname e Guiana Francesa (Octavio el al: 2020: 344-347)
Nas últimas décadas, não podemos negar alguns avanços conquistados em
processos de construção de políticas e leis de proteção dos direitos desses povos nos
diferentes países, com o reconhecimento da sua existência e situação de vulnerabilidade,
o desenvolvimento de metodologias de trabalho74, e o estabelecimento de estratégias e de
marcos normativos, em âmbito nacional e internacional. Entretanto, muitos territórios
ainda não foram reconhecidos pelos Estados nacionais. Em alguns países, não foi possível
institucionalizar as políticas de proteção; em outros esses povos ainda são reconhecidos
oficialmente. A falta ou fragilidade dos mecanismos de participação indígena nas
políticas estatais é outro problema identificado pelas organizações indígenas e da
sociedade civil engajadas nesse debate (ibid).
A partir de meados da década de 2000, foram criados diferentes espaços para
promover o diálogo regional envolvendo diferentes atores estratégicos, como
organizações indígenas e da sociedade civil, órgãos governamentais e organismos
multilaterais, para tratar especificamente sobre os problemas e desafios que envolvem a
proteção desses povos75. Em diferentes encontros, foram produzidos documentos,

72
Há também grupos em situação de isolamento na região do Gran Chaco paraguaio e boliviano, um
registro não confirmado e um povo de recente contato no Cerrado brasileiro, além de quatro registros ainda
não confirmados em zonas de transição entre este bioma e a Amazônia, nos estados do Maranhão e
Tocantins.
73
Informe Regional Pueblos Indígenas en Aislamiento – Territórios y desarrollo en la Amazonía y Gran
Chaco, Land is Life (Antenor Vaz, 2019). Disponível no endereço: https://bityli.com/Rj5Kh .
74
Ao longo de décadas, a política do Estado brasileiro e suas metodologias de trabalho próprias voltada à
proteção de povos indígenas isolados e de recente contato tornou-se referência para outros países da
América do Sul e para a elaboração de recomendações e diretrizes internacionais.
75
Embora sem enfoque específico, diferentes espaços de discussão em âmbito internacional já faziam
menção à problemática dos povos indígenas isolados e de recente contato na América do Sul: Declaração
de Barbados (1971), a Declaração de San José – ou Declaração da Unesco sobre etnocídio (1981) e a
resolução do Congresso Mundial de Conservação da IUCN em Bangkok (2004). (Octavio el al, 2020: 346).
112
declarações, informes, entre outras publicações que foram influenciando a formulação de
propostas e diretrizes de políticas públicas e ações de proteção para esses povos a nível
regional, nacional e internacional (Huertas, 2015). Nesses espaços de intercâmbio, as
populações indígenas que vivem em áreas próximas da fronteira, e com presença de povos
isolados, começaram a debater sobre as ameaças aos seus territórios, e como evitar
conflitos com esses povos na atualidade.
Um marco foi o "Primeiro Encontro Internacional sobre Povos Indígenas Isolados
da Amazônia", realizado em Belém, no estado do Pará, no Brasil, em novembro de 2005,
pelo CTI, em parceria com a CGII da FUNAI. A "Declaração de Belém" alertou aos
governos dos países sobre a situação de extrema vulnerabilidade desses povos,
apresentando uma série de demandas e recomendações voltadas à sua efetiva proteção.
Na reunião, foi produzida ainda uma primeira sistematização regional sobre os povos
isolados, suas ameaças e seus direitos na Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Paraguai e
Peru76 (Octavio el al: 2020: 344-347).
Em 2005, a discussão sobre os impactos dos grandes projetos de infraestrutura na
região da fronteira entre Acre (Brasil) e Ucayali (Peru), desencadeou a criação do Grupo
de Trabalho para a Proteção Transfronteiriça da Serra do Divisor e Alto Juruá (GTT).
Organizações indígenas e da sociedade civil, brasileiras e peruanas77, começaram a
promover espaços de debate e cooperação sobre problemas e desafios na fronteira Brasil-
Peru. Criado para influenciar as políticas para o Alto Juruá, anos depois teve sua atuação
ampliada para o Alto Purus. Em diferentes encontros, foram formulados documentos
denunciando as atividades extrativistas e ilícitas na região fronteiriça. Informações
relativas às dinâmicas territoriais e vulnerabilidades dos povos indígenas isoladas
começaram a ser levantadas e sistematizadas por indigenistas e antropólogos do Acre.
Em novembro de 2006, foi realizado na Bolívia o "Seminário Regional de Santa
Cruz de La Sierra sobre Povos Indígenas em Isolamento e em Contato Inicial da
Amazônia e do Gran Chaco"78. No documento final "Llamamiento de Santa Cruz",
organizações indígenas e sociedade civil enfatizaram a responsabilidade dos Estados

76
Situación de los últimos pueblos indígenas aislados en América latina (Bolivia, Brasil, Colombia,
Ecuador, Paraguay, Perú, Venezuela) - Diagnóstico regional para facilitar estratégias de protección,
elaborado por Vincent Brackelaire (Brasília, 2006).
77
O Grupo de Trabalho Transfronteiriço (GTT), formado por organizações como a Apiwtxa, CPI-Acre e
SOS Amazônia já realizou mais de 30 encontros, mobilizando inúmeras organizações indígenas e
instituições governamentais de ambos os países.
78
O evento foi organizado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a
Confederação de Povos Indígenas da Bolívia (CIDOB), o Grupo Internacional de Trabalho sobre Assuntos
Indígenas (IWGIA, na sigla em inglês) e o Governo da Bolívia.
113
nacionais de adotar e implementar políticas específicas de proteção para esses povos, o
protagonismo dos povos indígenas e suas organizações, e a importância da cooperação
interinstitucional e técnico-científica nos diferentes níveis envolvidos nessa agenda
(Quique, 2006).
Durante a reunião em Santa Cruz de la Sierra, também foi criado o Comitê
Indígena Internacional para a Proteção dos Povos em Isolamento e em Contato Inicial da
Amazônia, Gran Chaco e da Região Oriental do Paraguai (CIPIACI). Atuante até 2012,
buscou articular iniciativas e esforços de organizações indígenas para a proteção desses
povos na América do Sul. Sob a coordenação da FENAMAD, o comitê incorporou a
problemática dos povos isolados da fronteira Madre de Dios-Ucayali-Acre em sua
agenda, realizando expedições em zonas críticas, como o Alto Juruá, e reuniões em
instâncias internacionais como o Alto Comissionado da ONU para os Direitos Humanos
(Huertas, 2015: 164).
Em parceria com o CTI, o CIPIACI também organizou na cidade de Pucallpa, no
departamento Ucayali, em 2008, o "Encontro Regional Para Garantir a Proteção e o
Respeito aos Direitos dos Povos Indígenas em Isolamento e Contato Inicial da Fronteira
Peru-Brasil". Representantes de organizações indígenas, indigenistas e órgãos
governamentais brasileiros e peruanos analisaram os impactos das políticas
governamentais sobre esses povos e seus territórios, propondo aos governos uma agenda
de compromissos com a questão.
No final de 2008, o Seminário “Índios Isolados e Dinâmicas Fronteiriças no
Estado do Acre: políticas oficiais e agendas futuras para sua proteção”, realizado pela
CPI-Acre reuniu dirigentes de organizações indígenas, funcionários da FUNAI e
representantes de organizações não governamentais na cidade de Rio Branco. Na
memória do Seminário, destaca-se que os Mashco-Piro vindos da RT de Madre de Dios
e do PN Alto Purus, no território peruano, estavam praticamente todos os anos adentrado
na TI Mamoadate, usando rotas tradicionais no Alto Iaco e igarapé Abismo: "Apesar de
encontros furtivos e de frequentes avistamentos, nenhum conflito ocorreu até hoje com
os Manchineri, durante as expedições que ambos realizam nas estações de verão no alto
rio Iaco para pescar, caçar e coletar ovos de tracajá". Durante o seminário, as lideranças
Manxineru manifestaram mais uma vez o desejo de implementar um posto de vigilância
na terra indígena (CPI-Acre, 2008).
A necessidade de informação qualificada e atualizada sobre as ameaças aos
territórios indígenas na fronteira Brasil-Peru deram origem, em outubro de 2012, ao
114
Grupo Técnico de Trabalho para o Monitoramento Georreferenciado de Índios Isolados
na região Acre-Madre de Dios”. O grupo, composto por representantes das Comunidades
Nativas Monte Salvado, Puerto Nuevo, do Peru, e das aldeias Extrema (TI Mamoadate)
e Nova União (TI Cabeceira do Rio Acre), do Brasil, organizações governamentais e não
governamentais (FUNAI, SEMA-AC, FENAMAD e CPI-Acre), buscou formular
estratégias de proteção transfronteiriças aos povos isolados a partir do mapeamento das
evidências de sua presença, monitoramento de ameaças, análise dos problemas
socioambientais que os afetam, e intercâmbio de informações geográficas. A execução
deste trabalho possibilitou a realização de reuniões de coordenação e de trabalho conjunto
entre comunidades indígenas e equipes técnicas de cada organização79.
Em março de 2014, foi assinado um memorando de entendimento para a
cooperação interinstitucional entre FUNAI e o recém criado Ministério da Cultura do
Peru80, para a promoção de atividades e o compartilhamento de experiências e
capacidades técnicas para a proteção dos direitos dos povos indígenas isolados e de
recente contato. O acordo teve validade de dois anos e foi um primeiro passo para
aproximação entre os órgãos indigenistas. Porém, após a assinatura do memorando, uma
série de situações de contato com grupos isolados, em ambos lados da fronteira,
demandou ações de emergência dos governos brasileiro e peruano. As equipes reduzidas
das duas instituições, ocupadas em aplicar seus próprios protocolos de contingência, não
encontraram as condições ideais para uma agenda de trabalho integrada.
A articulação interinstitucional entre FUNAI e Ministério da Cultura, e entre
outros órgãos governamentais cuja competência é garantir o combate a ilícitos na
fronteira internacional, é fundamental para a sobrevivência dos povos indígenas isolados

79
Outro espaço de debate e cooperação binacional criado em 2012 foi o “Grupo Transfronteiriço da
Amazônia Sul Ocidental”. Entre seus objetivos, a troca de informações geográficas para elaboração de
mapas temáticos sobre a região da tríplice fronteira Brasil-Bolívia-Peru. Em ambos os grupos, aconteceram
reuniões de trabalho que resultaram na produção de diversos documentos, informes e mapas sobre as
evidências da presença dos isolados na região da fronteira Brasil-Peru. Outro fruto dessa articulação foi a
parceria firmada entre CPI-Acre e FENAMAD, em junho de 2014, para a integração de dados geográficos
e unificação de mapeamentos e análises das dinâmicas transfronteiriças sobre povos isolados na região
Acre-Madre de Dios. O trabalho realizado pelas instituições vem influenciando a formulação de estratégias
e ações de proteção para esses povos nos dois países.
80
Em 2005, o Instituto Nacional de Desenvolvimento dos Povos Andinos, Amazônicos e Afro Peruanos
(Indepa) foi criado com o objetivo de implementar a política indigenista peruana. Ao longo dos anos, o
órgão estatal sofreu diversas reestruturações que contribuíram para a sua falta de autonomia, de recursos, e
de qualificação técnica. A incapacidade do Indepa em atender às principais demandas do movimento
indígena, somada à uma política agressiva dos governos em promover os territórios amazônicos para a
inversão privada e internacional, gerou conflitos sociais na Amazônia peruana. Em 2010 com a criação do
Ministério de Cultura do Peru, iniciou-se o enfraquecimento do Indepa. Em 2014, são transferidas
atribuições relacionadas às políticas indigenistas para o ministério, responsabilidade que vigora até o hoje.
115
e de recente contato na atualidade. No entanto, enquanto a agenda e os acordos entre os
dois países se restringirem aos projetos desenvolvimentistas e de infraestrutura regional,
os riscos continuam.

4.5. O cerco se fecha: dinâmicas territoriais, conflitos e contatos

Atualmente, o território dos grupos indígenas isolados conhecidos como Mashco


ou Mashco-Piro está situado no divisor de águas dos grandes rios Juruá, Madre de Dios,
Purus e Ucayali, em uma região composta por diferentes categorias de Áreas Protegidas,
que somam ao redor de 8 milhões de hectares, e constituindo-se como um importante
corredor socioambiental. A maior parte está em solo peruano, abarcando diversos rios e
igarapés em uma extensa área, desde os rios Juruá e Envira, ao norte, até o alto Madre de
Dios, ao sul, e desde as cabeceiras dos afluentes à direita do rio Manu, a oeste, até os altos
rios Tahuamanu, Las Piedras, Pariamanu, Chandless, Iaco e Acre, ao leste (Coelho, 2019:
174:175).
O Ministério da Cultura do Peru trabalha afirma hoje existirem ao menos dois
grandes grupos com cultura material e características físicas distintas. Um deles habita a
região da margem direita do rio Manu, no Peru, e a partir de 2015 passou estabelecer
contatos mais esporádicos com os agentes do Estado no alto Madre de Dios. O outro,
habita as cabeceiras dos rios Las Piedras, Tahuamanu, Acre, Iaco, Chandless, Purus e
Envira, na região da fronteira Brasil-Peru, adentrando o território acreano por rios
binacionais em áreas constituídas pelas Terras Indígenas Mamoadate e Kampa e Isolados
do Rio Envira, Estação Ecológica Rio Acre e Parque Estadual Chandless. No lado
brasileiro, seus deslocamentos costumam acontecer no verão amazônico, quando descem
igarapés e rios para a coleta de produtos da floresta (Aquino e Meirelles, 2014). Nos
últimos anos, seus vestígios e aparições se intensificaram nas TIs Mamoadate e Kampa e
Isolados do Rio Envira.
Entre os anos 2012 e 2014, a Base do Xinane da FPEE da FUNAI, na TI Kampa
e Isolados do Rio Envira, e próxima à fronteira com o Peru, ficou fechada após sucessivas
invasões do narcotraficante conhecido como Português81. Na época, o quadro de

81
No ano de 2011, a base do Xinane foi invadida duas vezes por Joaquim Antônio Custódio Fadista,
narcotraficante vindo do Peru conhecido como Português (FUNAI, 2011c). Na época, o governo brasileiro
enviou tropas da Polícia Federal, Força Nacional e do Exército à região. Em 2016, o narcotraficante foi
detido na base pela terceira vez. Desta vez, foi transferido da terra indígena para a delegacia da Polícia
116
servidores do órgão indigenista havia sido renovado, e a FPEE passava por um processo
de transição na sua coordenação. A base foi reativada em junho de 2014, após o contato
de um grupo que até então era identificado pela FUNAI como “Isolados do Xinane”. Uma
parte do grupo decidiu ir ao encontro dos Ashaninka da Aldeia Simpatia, a três horas de
barco da base. Nos primeiros diálogos com os servidores do órgão indigenista brasileiro,
realizado pela intermediação de intérpretes do povo Jaminawa, o grupo (pertencente à
família linguística pano) afirmou que estava sofrendo atos de violência por invasores.
José Correia Tunumã, cacique do povo Jaminawa, que atuou como intérprete nos
primeiros diálogos do contato com os agentes do Estado brasileiro, contou que os isolados
com quem conversou temiam ser alvo de novos ataques, lembrando dos encontros
traumáticos com madeireiros e narcotraficantes que resultaram na morte de muitos
indígenas. Hoje, também há evidências de que conflitos entre diferentes povos e grupos
de isolados nesta área de fronteira estão sendo potencializados pela ação de invasores.
Edson Pereira Jaminawa, que trabalhou para a FPEE como intérprete no processo de
contato com o “Povo do Xinane” 82, afirmou à imprensa em 2018, que o grupo decidiu
“sair da mata” porque "os peruanos matavam um bocado deles e os próprios índios
matavam eles. Por isso começaram a sair”83.
Três situações de conflito envolvendo os indígenas do Xinane e os Mashco foram
registradas pela FUNAI, no Alto Envira, entre os anos de 2015 e 2016, durante a estação
chuvosa, e resultando na morte de um indígena de recente contato. Em outubro de 2015,
três índios do Xinane subiram o rio Envira e foram surpreendidos com três flechadas dos
Mashco. Ninguém foi acertado. O grupo do Xinane voltou para a base com três flechas.
As equipes da FUNAI e SESAI, além dos indígenas colaboradores que estavam na base,
evacuaram rumo à aldeia Simpatia. Em janeiro de 2016, Tangoja, um Ashaninka morador
da aldeia Simpatia, e colaborador da FPEE, foi flechado de raspão no pé, enquanto
pescava com um indígena de recente contato, próximo à base. Após o incidente, uma
parte do grupo do Xinane decidiu ir ao encontro dos Mashco armados. Três dias depois
regressam à base com vários dos seus objetos: terçados, panelas, flechas e um colar de
dentes de animais que pesava 4,5 kg. Em maio de 2016, um novo conflito foi registrado.

Federal em Cruzeiro do Sul. O auxiliar da FPEE, Francisco de Assis Martins de Oliveira, afirmou, em uma
entrevista realizada em julho de 2017, que o Português lhe contou que encontrou com os Mashco.
82
“Evitando denominações equivocadas e apressadas, a FPE Envira tem chamado o grupo contatado de
Povo do Xinane” (FUNAI, 2017).
83
Notícia publicada em G1 no dia 30/03/2018. Disponível no endereço:
https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/indios-de-recente-contato-deixam-tribo-para-viver-em-bairro-na-
capital-do-ac-e-dizem-fugir-da-fome-e-dos-madeireiros-peruanos.ghtml
117
Desta vez, nas proximidades das malocas tradicionais do Povo do Xinane. Na ocasião, as
famílias do Tema, Kurunawa e Këyo foram buscar sementes e manivas de macaxeira, e
encontraram com os Mashco. Segundo relatos dos indígenas do Xinane, houve troca de
flechas. Durante a fuga, Këyo, de 26 anos de idade, foi flechado e morto pelos Mashco
(FUNAI, 2017; entrevistas com servidores da FPEE em julho de 2017).
De acordo com um indigenista da FUNAI, a mediação do intérprete Francisco
Jaminawa nesse episódio foi determinante para impedir outras mortes: “com seu jeito
contador de histórias conseguiu acalmá-los e fazê-los desistir de ir atrás dos Mashco”
(Almeida, 2021: 63) Em uma entrevista com a mediação da intérprete Raquel Jaminawa,
Shami, uma indígena de recente contato que esteve em Rio Branco para dar à luz, contou
sobre a relação conflituosa entre o seu povo e os Mashco que andam no Alto Envira. Em
seu relato, descreveu seus encontros violentos, antes do contato em 2014: "Em uma praia
grande do Envira, tinha um monte de casinha deles. O pessoal ia lá para matar eles e
traziam as flechas deles e o urucum que eles usavam. Minha família já matou dois Mashco
de lá. Flecharam eles, que caíram na água. Eles gritaram e choraram quando viram eles
mortos. Três vezes mataram, há uns 4,5 anos" (Shami, 2017).
Nos altos rios Acre, Chandless e Iaco não foram registrados conflitos, mas uma
série de evidências apontam novas formas de uso e deslocamento territorial dos grupos
Mashco. Em 2014, um acampamento foi encontrado pela primeira vez pelas equipes do
ICMBio e da FUNAI em uma área bem próxima à Base da Estação Ecológica Rio Acre.
Em 2015, uma expedição conjunta entre FUNAI e SEMA-AC, que contou com a
participação de indígenas Manxineru, confirmou a presença dos Mashco no Parque
Estadual Chandless84, atendendo a uma demanda antiga do órgão indigenista federal para
a qualificação da informação na Área Protegida sob gestão do Estado do Acre. Em 2017,
diferentes expedições da FUNAI identificaram a sua presença pelos altos rio Acre, Iaco

84
Em setembro de 2004, foi criado o Parque Estadual Chandless com uma área de 695.304 hectares. No
seu Plano de Manejo, publicado em 2010, está a recomendação de “uma assessoria antropológica para o
acompanhamento das atividades delineadas e implementadas, garantindo a efetiva proteção dos territórios
e dos recursos naturais utilizados tradicionalmente na área do Parque pelos grupos de índios isolados”.
Durante o zoneamento do PE Chandless, a área sul foi cogitada como “Zona Intangível”, para garantir o
usufruto exclusivo e a proteção territorial dos isolados. Entretanto, em decorrência da falta de informações
qualificadas, a mesma foi estabelecida como “Zona Primitiva”: “aquela onde ocorre pequena intervenção
humana, com espécies de fauna e flora e fenômenos naturais de grande valor científico” (Acre, 2010). No
Plano de Manejo, está indicado, ainda, que, após a comprovação da presença de isolados na área, o
zoneamento da UC deverá ser revisto, sendo indicada, em substituição da “Zona Primitiva”, a readequação
da área para “Zona Intangível” (Acre, 2010).
118
e Chandless85. Durante uma viagem ao alto Acre, a FPEE registrou vestígios na TI
Cabeceira do Rio Acre86, ultrapassando os limites da Estação Ecológica Rio Acre. Em
2017, foram registrados ainda relatos sobre avistamentos incomuns de isolados na TI Alto
Purus (Coelho, 2019: 174:175).
Nos últimos anos, tanto as comunidades vizinhas aos isolados, como os
indigenistas da FUNAI vêm observando que os Mashco estão ocupando cada vez mais o
território brasileiro. Outra mudança identificada foi o aumento na frequência das suas
aparições durante o inverno amazônico, meses que tradicionalmente ocupam as terras
altas das cabeceiras. Também observaram o uso de instrumentos de metal em seus
vestígios, o que não acontecia em décadas passadas. Possivelmente, essas alterações em
suas rotas e períodos de deslocamento sejam motivadas pela busca de espaços mais vitais
e em decorrência de conflitos com populações indígenas e não indígenas, com quem
compartilham territórios (ibid.).

Deuzimar Manchineri mostra a altura do arco dos Mashco encontrado na beira do rio Acre, em junho de
2017, quando caçava na TI Cabeceira do Rio Acre. (Foto: Maria Emília Coelho)

85
No alto Chandless, existem relatos de sua presença desde o início do século XX. Hoje, seus moradores
mais antigos, descendentes de peruanos que ocuparam a região na época do caucho, contam histórias sobre
encontros e lugares onde encontram seus vestígios. Também afirmam que os Mashco estão descendo cada
vez mais o rio e reocupando áreas que não frequentavam há mais de 20 anos (entrevistas realizadas em
agosto de 2017).
86
De acordo com informação da FUNAI, em 1986, os Jaminawa e Manchineri já relatavam a presença de
grupos isolados entre o Rio Iaco e as cabeceiras do Rio Acre. (Instituto Socioambiental. Disponível no
endereço: http://bit.ly/2L5bCSx)

119
4.6. Diálogos e dilemas do contato Mashco-Piro no Alto Madre de Dios

No Peru, as relações entre os Mashco-Piro que habitam a margem direita do rio


Manu e os moradores das Comunidades Nativas Shipetiari, do povo Matsigenka, e da
Comunidade Diamante, do povo Yine, tornaram-se mais intensas a partir de 2011,
gerando conflitos e mortes e expondo os isolados a diversas interações com madeireiros,
missionários, turistas e equipes de veículos de comunicação. Um grupo Mashco-Piro
passou a ser visto com frequência nas praias da margem esquerda do Alto Madre de Dios,
na zona de amortecimento do Parque Nacional do Manu, região de intensa atividade
turística e trânsito de embarcações que transportam passageiros e cargas. Em novembro
de 2011, um morador da CN Diamante, que mantinha desde 1980 uma relação de
comunicação e troca de objetos com os Mashco-Piro, foi atingido por uma flecha por um
membro do grupo e morreu87 (Huertas, 2020: 404).
O governo peruano chegou à região entre 2013 e 2014 com uma equipe de
funcionários do recém-criado DACI (Dirección de los Pueblos en Situación de
Aislamiento y Contacto Inicial), ligado ao Vice-Ministério da Interculturalidade, do
Ministério da Cultura do Peru. Entre 2011 e 2015, mais de 150 avistamentos de indígenas
Mashco Piro foram relatados na margem esquerda do Alto Madre de Dios pela
FENAMAD e Ministério da Cultura e Sernamp (Peru, 2016). Na época, a vice-ministra
Patricia Balbuena, afirmou que dariam início a um "contato controlado", devido aos
repetidos avistamentos e encontros entre isolados e comunidades vizinhas, e para se obter
mais informações sobre as causas que impulsionaram esse grupo a sair do seu isolamento.
Em uma declaração para um meio de comunicação estatal peruano, Balbuena disse: "En
esta situación estamos frente a una realidad en la cual existen elementos para poner y
mirar el objetivo principal que tenemos que es salvaguardar su vida y su integridad. Y
eso no la podemos garantizar si no entramos en una lógica de contacto controlado"88.

87
Em 1990, Shaco Nicolás Flores Carlos cruzou a floresta do Alto Madre de Dios até chegar à bacia do
Manu, no igarapé Panahua, onde três mulheres mashco-piro se estabeleceram desde 1980, em Pakitsa.
Comunicando-se em yine, que era sua segunda língua (matsigenka de sua língua materna), conseguiu levá-
los ao alto rio Madre de Dios. Mais de 25 anos depois, duas delas moram em um local distante da CN
Shipetiari. Flores procurava entrar em contato com o Mashco-Piro. Depois de 2000, comunicava-se com
eles. Em 2011, depois de cinco anos de conversas e trocas e acordos, um jovem Mashco-Piro atirou nele
com uma flecha (Bisso Smith, 2020: 294-295).
88
Informações coletadas a partir da notícia publicada em 16/05/2015: Disponível no endereço:
https://andina.pe/agencia/noticia-iniciaran-contacto-controlado-indigenas-avistamiento-inicial-
565947.aspx
120
A afirmação da vice-ministra foi fortemente criticada pelas organizações
indígenas peruanas AIDESEP e FENAMAD em diversos pronunciamentos e
denunciando que o Estado peruano não estava aplicando o princípio do não contato
durante a comunicação com os Mashco Piro no Alto Madre de Dios. Após as críticas,
Balbuena se retificou publicamente, sinalizando que a instituição não faria o "contato
controlado", mas que estabeleceria uma comunicação com os isolados para apurar as
causas das suas aparições. Pouco depois, anunciou a implementação do “Plan de Atención
Especial para indígenas Mashco Piro presentes en las playas del Alto Madre de Dios”
como medida de emergência89 (Huertas, 2020: 404).
Em fevereiro de 2016, os agentes do vice-ministério informaram que durante a
implementação do Plano foram contabilizados até 80 Mashco-Piro nas praias, em
momentos distintos. Em setembro do mesmo ano, quatro Mashco Piro cruzaram o rio
Madre de Dios até o posto de controle pela primeira vez. Ao vê-los, um grupo de
madeireiros disparou tiros de espingarda para o alto para assustá-los, fazendo com que
fugissem desesperadamente e voltassem para a margem oposta do rio, entrando na
floresta. Em sua análise, a antropóloga Beatriz Huertas afirma que a atitude desse grupo
de indígenas mudou após o ocorrido. "Eles pararam de seguir os barcos que apareciam na
área, e sabe-se até que alguns dos que haviam atravessado o rio para o posto de controle,
após fugirem, não apareceram novamente na praia. Os tiros dos madeireiros teriam lhes
causado medo, possivelmente lembrando das ameaças contra as quais se protegeram por
anos durante seu isolamento" (2020: 405).
Para a AIDESEP, a decisão do governo peruano de intensificar as interações com
os Mashco-Piro que estavam frequentando as praias do Alto Madre de Dios, entre os anos
de 2015 e 2016, desencadeou situações perigosas para ambas as partes devido à divisão
e competição que surgia dentro do grupo para obter os alimentos que eram fornecidos
pela instituição, paralelamente ao esgotamento e tensão entre os seus agentes de proteção
devido à frequência e horários das saídas da população isolada em direção às praias,
durante a madrugada (Aidesep, 2017). Contratado pelo Vice-Ministério da
Interculturalidade na época, Romel Ponciano foi o principal interlocutor entre o grupo do
alto Madre de Dios e os indigenistas do Estado peruano. Em uma entrevista realizada em
junho de 2017, a liderança Yine de Monte Salvado me contou sobre o seu trabalho como

89
Resolución Ministerial Nº 258-2015-C-Peru, de 5 de agosto de 2015.
121
agente de proteção, e o que pensa sobre as antigas e novas estratégias dos Mashco, a partir
dos seus diálogos no Alto Madre de Dios. Transcrevo abaixo trechos da nossa conversa:

Maria Emília: ¿Piensas que los Mashco están cambiando su comportamiento?


Romel: Este es el comportamiento que tienen ellos. Han perdido el miedo que
tenían. Ahora ya no tienen miedo. Cuando escuchan algo, saben que es sonido de
motor, quieren ingresar.
Maria Emília: ¿Siempre llegan pacíficos a Monte Salvado?
Romel: Sí. Siempre llegan pacíficos. Y en alto Madre de Dios ya es una etapa de
diálogo. Ahí yo ya les he preguntado. ¿Qué quieren? ¿Qué desean? ¿Quieren estar
aquí afuera o quieren seguir viendo en el bosque? Si quieren estar acá afuera,
vamos hacer casa acá y van a vivir. Pero, "no", dicen. Hagan una casa para ustedes
porque nosotros vamos a continuar viviendo en el bosque. Lo vamos a visitar.
Maria Emília: ¿Ellos quieren nuestros utensilios?
Romel: Sí, el Nylon dura más, en cambio del natural. Ellos quieren soga de nylon
porque no se rompe.
Maria Emília: ¿Pero no quieren vivir acá?
Romel: No, no quieren. Y ahora en el Alto Madre de Dios están saliendo, están
durmiendo en las playas. Y no vienen de día. Por la noche pasan.
Maria Emília: ¿El grupo de Madre de Dios es el mismo que aparece en Monte
Salvado?
Romel: No, no son. Son otros. Me comentarán. He preguntado. “Si, han
escuchado, se han ido, están muy lejos. Son nómadas, te pueden matar.
Maria Emília: ¿Pero ellos se encuentran?
Romel: Sí, se encuentran
Maria Emília: los Mashcos también aparecen fuera de la reserva, no?
Romel: ¿Por qué están apareciendo? Ahora ya quieren, ya empezaron a agarrar
cosas. Escuchan sonido y ya se van. Saben que ellos (madereros) tienen.
Maria Emília: Están en busca de cuchillos, ¿no?
Romel: Sí. Lo que no hacían antes.
Maria Emília: Cuando empezaran a hacer eso en qué época?
Romel: En 2005 se cambia la idea.
Maria Emília: ¿Mashco es un término que la gente usa para designar a todos los
indígenas que están en el monte en la región?
Romel: Sí. Pero ellos sí entienden, cuando tu lo estas diciendo Mashco, tu lo estas
diciendo asesino, salvaje. No lo va a decir: tú eres Mashco.
Maria Emília: ¿Y cómo se autodenominan?
Romel: Mi papá ha tenido esa oportunidad de preguntarles: "Yo soy
Koshitshineru, y ustedes qué grupo son?". “Así como tú somos”. ellos han dicho
para mi papá en Monte Salvado. En el Alto Madre de Dios no quiero preguntarles.
No he preguntado. Porque cuando casi les preguntó, ellos no quisieron contestar.
Empiezan a hablar de matar. ¿De dónde han venido? "¿Por qué quieren saber?",
te dicen. Se molestan. Ellos no quieren que les pregunte. Ahora hablar de caza,
qué cosa han matado, eso sí les encanta. Pero se les pregunta, dónde viven y de
dónde vienen? Ellos no quieren hablar.

Nesse processo, as comunidades vizinhas e organizações indígenas peruanas


começaram a discutir as motivações externas e internas dos Mashco Piro do alto Madre

122
de Dios - e de outros grupos que habitam os rios Las Piedras e Tahuamanu - estarem se
aproximando e iniciando contatos mais frequentes nos últimos anos.

Grupo Mashco-Piro do alto rio Madre de Dios, fotografado em 2012, três anos antes do
primeiro contato com os agentes do Estado peruano. (Foto: Jean-Paul Van Belle)

4.7. Territórios transfronteiriços e gestão compartilhada

O contexto contemporâneo da fronteira Brasil-Peru, e a necessidade de efetivação


da proteção dos territórios dos povos indígenas isoladas e de recente contato, levaram as
organizações indígenas e seus aliados a empreender a identificação da totalidade dessas
áreas continuamente habitadas por esses povos, e a propor a sua proteção através de
corredores com enfoque transfronteiriço, e da articulação entre governos, povos indígenas
e suas organizações, e sociedade civil envolvida nesse trabalho (Huertas, 2020: 412).
Na última década, a organização indígena peruana FENAMAD têm desenvolvido
e apresentado propostas de trabalho em conjunto para os governos do Peru e Brasil,
orientando a implementação de medidas específicas de proteção na área da fronteira entre
o departamento peruano de Madre de Dios e o estado brasileiro do Acre, bem como o
fortalecimento da aliança Yine-Manxineru (Palacios, 2019: 191).

123
Entre 2012 e 2015, a "Plataforma de organizaciones para la protección de los
pueblos en aislamiento y contacto inicial", conformada pela AIDESEP e suas
organizações de base90, desenvolveu a proposta do "Corredor Territorial de Povos
Indígenas Isolados e de Recente Contato Pano, Aruak e outros". Seu objetivo é promover
a proteção integrada de uma área binacional de 890.000 hectares de floresta entre os
departamentos de Ucayali, Madre de Dios e Cusco, e o estado do Acre, onde habitam
esses povos. A iniciativa possibilitou a realização de espaços públicos de debate e
articulação política para a troca de informações entre organizações indígenas, instituições
governamentais e sociedade civil de Brasil e Peru. Por conta do caráter transfronteiriço
dos Mashco-Piro e de outros povos e grupos isolados, comunidades e lideranças indígenas
da fronteira demandam a implementação de estratégias e ações em conjunto entre os dois
países, bem como a ampliação da participação indígena, e suas organizações de
representação, na garantia dos seus direitos.
No Brasil, a confirmação pela FUNAI da presença de grupos isolados na Estação
Ecológica Rio Acre e Parque Estadual Chandless ampliou o debate sobre as estratégias
de proteção dos seus territórios, exigindo cada vez mais a construção de processos de
gestão compartilhada entre instituições governamentais federais e estaduais para o
monitoramento integrado das áreas de uso e ocupação dos isolados. No Peru, a presença
dos Mashco-Piro é registrada há pelo menos duas décadas pelos guarda-parques dos
Parques Nacionais Manu e Alto Purus, este último sobreposto à Reserva Territorial Madre
de Dios. Ou seja, muito antes do órgão indigenista peruano atuar na região. Além disso,
sua presença é confirmada em suas áreas adjacentes, concedidas por 40 anos às empresas
privadas para exploração florestal, e que faziam parte da proposta original da Reserva.
Assim, o fortalecimento de parcerias, acordos e entendimentos entre populações
indígenas, ou não, que vivem no entorno dos povos isolados, e entre instituições de
diferentes setores e níveis de governo, é fundamental para o monitoramento da presença
desses povos. Com suas dinâmicas próprias de uso e ocupação territorial, que ultrapassam
fronteiras institucionais e nacionais, a proteção dos direitos dos Mashco necessitam cada
vez mais de estratégias e ações integradas (Coelho, 2019: 176).

90
Organización Regional de Pueblos Indígenas del Oriente (ORPIO); Organización Regional AIDESEP-
Ucayali (ORAU); Federación Nativa del río Madre de Dios y Afluentes (FENAMAD); Consejo
Machiguenga del Río Urubamba (COMARU); e Coordinadora Regional AIDESEP-Atalaya (CORPIAA).

124
Como vimos anteriormente, há décadas os Manxineru e os Jaminawa que vivem
no alto rio Iaco, no lado brasileiro da fronteira, observam os deslocamentos dos grupos
Mashco-Piro que cruzam a TI Mamoadate durante o verão em direção às cabeceiras do
rio Chandless, nos limites do PE Chandless, no Brasil, com o PN Alto Purus, no Peru.
Mais recentemente, os vestígios deixados por este grupo se intensificaram e seus
acampamentos indicaram um número significativo de isolados se deslocando para o
Chandless (Ochoa e Silva, 2019: 160).
Em 2014, FUNAI e SEMA-AC elaboraram um projeto91 para suprir a lacuna de
informações sobre as formas de uso e ocupação dos Mashco no Parque Estadual
Chandless, o que dificultava o estabelecimento de diretrizes e estratégias para a sua
proteção. As ações do projeto, que teve dois anos de duração, visavam estreitar a relação
entre as duas instituições governamentais, os indígenas que residem no entorno da área
de proteção integral (TIs Mamoadate e Alto Purus) e os seus moradores (12 famílias),
para minimizar conflitos relacionados ao uso dos recursos naturais e qualificar as
informações em áreas com referências de deslocamento de grupos isolados Em 2015,
foram realizadas oficinas com os moradores das duas TIs e da UC para discutir e validar
acordos de gestão territorial entre indígenas, populações tradicionais e órgãos do
governo92. Em uma dessas oficinas, que serviu como uma preparatória para uma
expedição ao alto Chandless na região sul do Parque, limite com a TI Mamoadate, foi
realizado um intercâmbio com os agentes de proteção Yine de Monte Salvado, do Peru,
propiciando mais um momento de troca de experiências e conhecimentos sobre seus
“parentes isolados".
Nos anos 2015 e 2016, as discussões para a elaboração do Etnomapeamento e do
Plano de Gestão Territorial da TI Mamoadate, com o apoio da CPI-Acre, contaram
novamente com a presença de moradores de Monte Salvado. Neste processo, os
Manxineru reforçaram o acordo estabelecido com os Jaminawa para diminuir a pressão
sobre uso dos recursos nas áreas utilizadas pelos isolados, acima do igarapé Abismo: "Só́
poderiam passar aqueles que estivessem trabalhando para identificar a presença deles e
monitorar as invasões de terra e outras ameaças" (CPI-Acre, 2016: 16).

91
Amparado por um Acordo de Cooperação Técnica, FUNAI e Sema-AC executaram, entre os anos 2014
e 2015, o projeto “Proteção conjunta e resolução de conflitos socioambientais entre Parque Estadual
Chandless e as Terras Indígenas do entorno (Alto Rio Purus e Mamoadate)", realizado através de recursos
do Programa Áreas Protegidas da Amazônia (ARPA) do Ministério do Meio Ambiente.
92
A parceria possibilitou experimentos no monitoramento da presença de isolados a partir da análise de
focos de calor, imagens de satélite e informações prévias sobre os territórios de deslocamentos dos Mashco
na fronteira Brasil-Peru.
125
No mesmo período, também iniciadas oficinas para a elaboração de um Plano de
Monitoramento e Vigilância da TI Mamoadate. Com ações focadas no acompanhamento
dos avanços de ramais madeireiros na fronteira e no entorno da TI, bem como em
estratégias de gestão integrada, os indígenas buscaram envolver seus vizinhos não
indígenas, especialmente, os moradores da RESEX Chico Mendes, para sensibilizá-los
sobre os problemas comuns que enfrentam na região. Muitas informações foram
coletadas durante essas oficinas, além de atividades de monitoramento, como excursões
a locais por onde os Mashco-Piro costumam passar (Ochoa e Silva, 2019: 158-159).
Em uma dessas oficinas, realizada na aldeia Betel, em setembro de 2016, na qual
estava presente como assessora da CPI-Acre, os Manxineru e Jaminawa afirmaram mais
uma vez a aliança com as organizações indígenas peruanas com o objetivo de fortalecer
a defesa dos povos indígenas isolados e seus territórios na fronteira. Na oficina, estavam
presentes mais de 50 lideranças indígenas da TI Mamoadate, além de representantes da
FENAMAD, da ORAU (Organización Regional AIDESEP Ucayali), e da "Plataforma de
organizaciones indígenas para la protección de los Pueblos Indígenas en Aislamiento
Voluntario y en Contacto Inicial", do Peru.

Oficina para a elaboração de Plano de Monitoramento e Vigilância da TI Mamoadate, realizada na aldeia


Betel, em 2016, com a participação de Ronal Ponciano, agente de proteção Yine de Monte Salvado, e
Marlene Racua, dirigente da Fenamad (foto à esquerda).
(Fotos: Acervo da CPI-Acre)

126
Ao final do encontro, foi formulada a "Declaração da Terra Indígena
Mamoadate", onde todos os presentes se posicionaram novamente contrários à proposta
da estrada ligando Iñapari e Puerto Esperanza, no Peru93:

(...) continuaremos lutando, junto com os nossos parceiros de ambos os lados da


fronteira, para impedir a construção dessa estrada que passará muito próximo aos
limites da Terra Indígena Mamoadate, afetando todos os recursos naturais do
nosso uso tradicional, a flora, a fauna e as águas das cabeceiras dos rios
binacionais Acre, Iaco e Chandless, que usamos para a nossa sobrevivência.
Também estamos muito preocupados com os impactos da estrada sobre os nossos
modos de vida, porque irá trazer graves consequências para a nossa cultura e
organização social, ao favorecer o escoamento ilegal da madeira, entre outras
atividades ilícitas em curso na região da fronteira, atualmente, como o
narcotráfico, a caça e pesca ilegais e os garimpos de ouro. A estrada atravessará
áreas naturais protegidas e territórios indígenas garantidos por leis, em uma das
regiões de floresta mais conservada do mundo, impactando o Parque Nacional
Alto Purus, a Reserva Comunal Purus e a Comunidade Nativa Bélgica, no Peru;
além da Terra Indígena Cabeceira do Rio Acre, a Estação Ecológica do Rio Acre,
e o Parque Estadual Chandless, no Brasil. Os diversos grupos de índios isolados,
entre eles os Mashco-Piro, que vivem das atividades de caça e coleta entre os
territórios peruano e brasileiro, também serão afetados de forma grave e
irreversível. Através de uma aliança estratégica entre as organizações indígenas
brasileiras e peruanas, vamos lutar para a garantia dos direitos desses povos e para
o reconhecimento e a proteção do Corredor Territorial de Pueblos en Aislamiento
y Contacto Inicial Pano, Arawak e outros, localizado nesta região da fronteira
entre os departamentos de Madre de Dios, Cusco e Ucayali e o estado do Acre.
(...) Reafirmando o compromisso em realizar nosso plano de gestão, no tocante ao
monitoramento e vigilância de fronteiras e à proteção ambiental, solicitamos às
autoridades competentes providências no sentido da suspensão desse projeto de
estrada, que representa uma grande ameaça para a sobrevivência dos povos
indígenas que vivem na fronteira Brasil-Peru. (Trechos da Declaração da Terra
Indígena Mamoadate, Aldeia Betel, 26 de setembro de 2016).

Para Zarate Botía e López Urrego (2018: 133-134), o que os movimentos


indígenas atuais nessas regiões de fronteira amazônicas buscam evidenciar é a existência
de sociedades étnicas transfronteiriças, onde os limites nacionais são frequentemente
diluídos ou modificados continuamente. Trata-se de uma busca de reconhecimento de um
território étnico transfronteiriço, que só será possível quando houver políticas territoriais
fronteiriças compatíveis entre os países.

93
A proposta foi apresentada em 2016 pelo parlamentar Carlos Turbino por meio de um Projeto de Lei ao
Congresso da República do Peru. A justificativa para sua construção baseou-se na “necessidade pública” e
no “interesse nacional”. No entanto, foi arquivada pelo Congresso após dura oposição por parte diversas
instituições da sociedade civil e do Estado peruano, pois afetaria diretamente as áreas protegidas. O PL
pode ser consultado na página do governo peruano, disponível no endereço: https://isa.to/31jNVKX
127
Nesta perspectiva, López Garcés observou em sua etnografia com os Tikuna que
as fronteiras externas e internas dos povos indígenas podem se intercruzar de tal forma
que a definição dos seus territórios depende das concepções e interpretações dos grupos
que estão envolvidos nelas (2014 [2000]: 307-308). Para muitos povos indígenas que
sobreviveram à violência do expansionismo europeu, os processos de construção dos
Estados-nação latino-americanos significaram o começo dos mais agudos e violentos
ataques jurídicos, políticos e ideológicos contra eles (ibid.: 292), e, por isso, devem ser
reinterpretados sob a visão dos povos transnacionais, com suas próprias dinâmicas e
cosmologias94.
López Palomino e Teófilo da Silva acreditam que um primeiro passo para esse
reconhecimento é conferir maior visibilidade à realidade dos povos indígenas das áreas
de fronteira internacional na América do Sul de modo a contribuir com os debates
nacionais e internacionais que buscam promover direitos indígenas em situações que
envolvem o diálogo, entendimento e cooperação entre dois ou mais países. Em artigo
recente, os autores explicam que a sistematização de um acervo etnográfico do que já foi
produzido sobre povos indígenas nessa situação poderia contribuir para indicar a
variedade e complexidade dos processos de resistência, acomodação, integração e
subordinação dos povos indígenas preexistentes à colonização e às nacionalidades
estabelecidas (2018:8-9).
Existem atualmente 17 povos indígenas nas situações de tríplice fronteira95, fato
que deveria ser relevante para assegurar uma política diferenciada de reconhecimento dos
direitos territoriais, assim como de articulação multilateral das políticas públicas para
promoção do bem-estar destes povos e ações humanitárias que priorizem o controle
epidemiológico, a contenção de invasões de territórios e destruição ambiental, assim
como que assegurem a autodeterminação e autonomia dos demais povos indígenas em
isolamento (ibid: 27).
Apesar das limitações políticas e jurídicas de Brasil e Peru para o reconhecimento
dos territórios e das populações indígenas transfronteiriças, nas últimas duas décadas,
comunidades e organizações indígenas brasileiras e peruanas, próximas à fronteira, estão

94
Os Yine do Peru e os Manxinerus do Brasil iniciaram uma discussão em busca da sua própria soberania,
como Nação Indígena. no I Encontro do Povo Indígena Yine, realizado em janeiro de 2019, na aldeia Santa
Teresita, no Peru, e com a presença dos Manxineru do Brasil. Um dos encaminhamentos políticos foi a
discussão e a defesa de uma proposta de reconhecimento de uma Nação Yine.
95
Os autores realizaram um primeiro mapeamento, e seus resultados evidenciam que os povos indígenas
que vivem ao longo da faixa de fronteira brasileira compõem um percentual expressivo de 39% do total
de 253 povos indígenas oficialmente reconhecidos no país.
128
debatendo problemas e desafios comuns, e pensando estratégias em conjunto para a
gestão dos seus territórios. Em espaços de diálogo e articulação política discutem sobre
os impactos dos grandes projetos de infraestrutura e das atividades ilícitas na região, bem
como a necessidade de estratégias transfronteiriças que assegurem a integridade dos seus
povos e daqueles que desconhecem os limites nacionais.

4.8. Protagonismo Manxineru na proteção dos "parentes desconfiados"

No dia 15 de agosto de 2017, alguns Manxineru subiram o Alto Iaco e


encontraram rastros e “quebradas” recentes dos Mashco. Quando retornaram às suas
aldeias, avisaram à FUNAI sobre o ocorrido. Duas semanas depois, uma equipe composta
por indígenas e um servidor da FPEE foi até o local, confirmando os vestígios dos
isolados acima da boca do Abismo. Depois, a equipe seguiu viagem até o ponto
tradicional de passagem dos Mashco, onde saem da floresta e continuam a caminhada
pelas praias do Iaco. Por esse trecho, observaram pegadas de apenas quatro pessoas,
indicando a possibilidade de terem adotado uma nova rota de deslocamento. Quando a
expedição chegou à boca do Moinha, encontraram vestígios "frescos" dos isolados. Todos
então decidiram regressar para evitar um encontro.
Otávio Manchineri me contou que nesse momento sentiu preocupação com a
possibilidade de alguns Mashco estarem seguindo o grupo da expedição. Na volta à aldeia
Extrema, foram realizadas conversas de sensibilização e esclarecimento a respeito das
áreas utilizadas pelos Mashco, e sobre as diferentes ameaças sobre os seus territórios no
lado peruano da fronteira. Em seu relatório da expedição, Lucas Manchineri destacou a
importância de todos os moradores das aldeias respeitarem o acordo de uso territorial
estabelecido entre Manxineru e Jaminawa, tendo o igarapé Abismo como o limite.
Em janeiro de 2018, os Manxineru encontraram novamente seus vestígios no
igarapé Paulo Ramos. Desta vez, a aproximadamente oito quilômetros em linha reta da
aldeia Extrema. Além de aparecerem durante o inverno, nunca haviam chegado tão
próximo, explicou-me Lucas Manchineri na época. No dia 11 de julho, um morador da
Extrema encontrou vestígios dos isolados enquanto caçava na região dos Três Lagos, no
alto Iaco, a apenas 10 voltas acima da aldeia.

129
Otávio Manchineri identificando rota e vestígios dos indígenas isolados
no Alto Iaco, no Brasil, em 2017. (Foto: Jeferson Lima/FUNAI)

No dia 18 novembro de 2018, um padre espanhol chamado Fernando López,


ligado ao CIMI, e três brasileiros foram detidos na Extrema. Os invasores passaram pela
boca do Abismo e seguiram até o limite com o Peru. Na volta, quatro dias depois, os
Manxineru decidiram deter o grupo, pois o padre não havia pedido autorização aos
indígenas e nem à FUNAI para entrar na área. Lucas Manchineri me explicou que o grupo
passou muito próximo dos isolados. Os Manxineru solicitaram à FUNAI e à Polícia
Federal a retirada dos invasores, que disseram fazer parte de uma expedição para
“vistoriar” os isolados e registrar seus vestígios e ameaças para a sua proteção. Para evitar
a fuga do grupo, os Manxineru da Extrema fizeram a vigilância dia e noite na aldeia, até
a chegada dos servidores do órgão indigenista dias depois do ocorrido.
Durante a minha viagem ao Alto Acre, em 2017, fiz uma entrevista com Izaías
Flores, um dos três brasileiros que haviam sido detidos pelos Manxineru na Extrema. Em
seu depoimento, a liderança extrativista explicou que o padre Fernando havia realizado
duas expedições em busca de vestígios de isolados nas cabeceiras do Acre, na Estação
Ecológica Rio Acre, nos anos de 2016 e 2017. Também contou que estavam preparando
uma terceira expedição com o mesmo objetivo para o alto Iaco. Dito e feito.
Neste episódio, ficou claro como o órgão indigenista, mesmo avisado da
possibilidade da invasão ao território habitado por grupos de indígenas isolados na TI
130
Mamoadate, não teve capacidade institucional de resposta para empreender uma rotina
de fiscalização na área, como está sendo solicitado pelos indígenas há décadas, e
prevenindo possíveis situações de contato. Porém, os Manxineru estavam lá, como
sempre estiverem, atuantes em seu trabalho de monitoramento e vigilância da área, e
defendo seus territórios contra invasores que colocam em risco a vida dos seus “parentes
desconfiados”.
No dia 22 de janeiro deste ano, após cinco dias viajando em uma canoa pelo rio
Iaco, oito indígenas Manxineru aportaram no município de Sena Madureira. Chegaram
no pequeno município acreano, a uma hora e meia de carro de Rio Branco, para pedir
apoio para instituições governamentais e da sociedade civil para solucionar a situação
preocupante que estão enfrentando atualmente na aldeia Extrema: os isolados estão muito
próximos, e se deslocando pelos piques de caçada dos moradores da comunidade.
Seguindo todos os protocolos de prevenção à COVID-19, dois dias depois me
encontrei com o grupo, formado em outubro de 2020 por moradores da Extrema, na praça
central de Sena Madureira, à beira do Iaco. Eles me pediram apoio para divulgar o
trabalho de monitoramento que estão realizando. Os indígenas me apresentaram diversas
imagens e relatos de campo, e um mapa desenhado em uma cartolina, identificando onde
haviam encontrado os vestígios mais recentes dos “isolados” em seis lugares diferentes
muito próximos da comunidade, e desde o início do ano passado.
"Eles andam agora abaixo da casa do Seu Epitácio, no seu pique de caçada. Já
viram a casa dele com certeza. A gente analisou os vestígios e achamos que vieram da
Estação Ecológica do Rio Acre. Estamos preocupados, pois estamos cercados!", afirmou
Mila Manchineri, um dos integrantes do grupo de monitoramento. A liderança explicou
que a construção do “mapa de identificação das andanças dos “desconfiados” é também
uma estratégia de conservação da floresta e de fortalecimento da cultura Manxineru:

A nossa floresta é a nossa mãe e a nossa vida, ela ajuda a gente e nós ajudamos a
preservá-la. Quando estamos fazendo o monitoramento estamos cuidando da
floresta, estamos vendo as árvores, os remédios tradicionais, as caças, as fontes
[de água] boas que têm dentro dela. Caso um dia eles tenham que sair, nós
aprenderemos mais sobre os remédios tradicionais. Com eles, a gente fortalece
mais a nossa cultura. (Mila Manchineri, entrevista em janeiro de 2021)

Mateus Manchineri me contou que foi essa preocupação que mobilizou um grupo
de indígenas da Extrema a se organizar recentemente para realizar expedições de
periódicas de monitoramento e a construir um posto de vigilância na aldeia, no final de
131
2020. Feito de madeira e palha, e denominado Pantshi Hoshahajane Yine
Hislahikolwaka, o posto é “a casa onde a gente trabalha para os parentes desconfiados”,
explicou. Levantado pelos indígenas, o local tem o propósito de concentrar a organização
do trabalho, como também impedir que os parentes das outras aldeias e invasores não
indígenas subam o Iaco e encontrem com os isolados.

Posto de vigilância na aldeia Extrema, construído no final de 2020 e denominado de Pantshi Hoshahajane
Yine Hislahikolwaka (Foto: Grupo de monitoramento Manxineru)

Em uma expedição realizada no igarapé Paulo Ramos, no início de janeiro de


2021, o grupo de monitoramento Manxineru percebeu que a situação tinha se agravado.
Maílson Manchineri, cacique da Extrema até junho deste ano, me contou que os
Manxineru encontraram, primeiro, vários sinais, como ossos de animais e ramos
quebrados. Depois, quando começaram a ouvir o assovio e o grito deles na mata, saíram
correndo para o barco e voltaram para a aldeia: “A gente não quer encontrar com eles,
são perigosos. Então, estamos evitando ir para lá, mas é muito perto!”. No período de

132
chuvas, quando o Iaco fica cheio, os indígenas levam cerca de uma hora de barco da
Extrema até o igarapé Paulo Ramos. Mila Manchineri explicou que os isolados estão
baixando mais o rio e se acercando das aldeias: “Eles habitam onde tem caça, alimento,
e não ficam em um lugar certo. Neste momento estão onde a gente caça mais, aí não tem
mais como a gente ir para lá. Estamos muito preocupados com essa situação, pois nosso
mercado é a floresta, a caça e os animais também”.

Tapiris dos Mashco encontrados pelos Manxineru da aldeia Extrema, em janeiro de 2021
(Fotos: Grupo de monitoramento Manxineru)

A partir dos vestígios encontrados no Paulo Ramos, Mateus afirmou que os


isolados comem a mesma comida que os Manxineru (jabuti, anta, macaco preto, veado).
Também contou que os “desconfiados” se comunicaram com eles através de sinais nos
ramos das árvores, como uma espécie de "tapagem":

133
Foi um aviso deles para a gente não passar dali. Aí fizemos o mesmo sinal para
eles não virem para o nosso rumo também. Agora, encontramos os seus tapiris
quando vamos caçar. Não é que a gente queira topar com eles, mas é onde
buscamos o alimento de cada dia. Esse igarapé é nosso território de caçada.
Depois que vimos os seus vestígios, avisamos aos parentes das aldeias para não
caçarem mais para esse lado. A gente tem uma varadouro de 4 horas da aldeia até
o Paulo Ramos e por isso estamos aperreados. Não sabemos o que eles [isolados]
pensam. A gente tem medo deles, e eles têm medo da gente. Eles podem pensar
que a gente quer fazer mal a eles. Então, para não acontecer um conflito, estamos
mostrando o nosso trabalho para os órgãos públicos e parceiros apoiarem a gente
nessa situação difícil. (Mateus Manchineri, entrevista em janeiro de 2019)

Em meio à pandemia, o posto de vigilância indígena funciona como uma barreira


sanitária, ainda que com uma estrutura precária, impossibilitando o trânsito de pessoas no
território dos “isolados”. “Se alguém com o coronavírus subir o rio e deixar alguma coisa
lá pra cima, os desconfiados podem pegar e se contaminar e morrer de uma doença que
eles nem conhecem”, alertou Mila, explicando que os casos da COVID-19 na aldeia
foram tratados, sobretudo, com remédio caseiro e medicina tradicional. Hoje, estão
vacinados com as duas doses.
Durante a nossa conversa, os indígenas frisaram a necessidade urgente da
instalação de uma rede de internet na Extrema (atualmente a aldeia conta com um telefone
público e com um sistema de radiofonia). Só assim poderão se comunicar com maior
agilidade em qualquer situação de emergência, como também repassar informações do
trabalho que realizam atualmente. Lamentaram ainda a falta da internet para uma
comunicação mais frequente com os seus parentes Yine de Monte Salvado. Mateus me
contou, em uma conversa pelo telefone96, que quando esteve na comunidade peruana,
Romel e outros yines do Peru lhe falaram que o “sotaque” dos isolados é igual aos dos
Manchineri e por isso os consideram seus parentes: “Quando fui para Monte Salvado
peguei experiência e hoje estou representando o meu povo nesse tema”
Os Manxineru solicitam apoio para a realização de mais intercâmbios entre os
moradores das duas comunidades: “Queremos pegar mais experiência com eles, para
saber o que fazer caso a gente tenha que receber esses isolados na nossa aldeia”, explicou
Mila. “Lá em Monte Salvado, eles [Mashco Piro] já apareceram, então já sabem trabalhar
mais do que a gente. Nossa dificuldade é tão grande, que a gente quer resolver, abraçar,
mas somos poucos, nossa equipe é muito pequena” afirmou Maílson.

96
Conversa realizada por telefone público da Aldeia Extrema no dia 15.12.2020
134
O grupo de monitoramento pediu ainda equipamentos para a ação de vigilância e
monitoramento, como barcos, motores e aparelhos de GPS (Sistema de Posicionamento
Global), e mais capacitação para continuarem realizando o monitoramento com as
condições adequadas, “pois se trata de um trabalho arriscado”. Explicaram que, a
princípio, haviam se organizado em dois subgrupos: um para monitorar a região na frente
da Extrema, na outra margem do rio, e o outro para andar no igarapé Paulo Ramos. Porém,
com a intensificação dos vestígios, fizeram uma reunião com a comunidade e decidiram
que deveriam realizar as expedições todos juntos. Mila Manchineri afirmou que nesse
momento é muito perigoso entrar na mata em duas, três, quatro pessoas: “Não é um caso
qualquer, respeitamos os parentes desconfiados, mas também temos medo. Então, a gente
se junta e vai todo mundo. Com nossa coragem, estamos aqui hoje falando com você,
Maria, deixando nossas famílias, porque a gente tem boa vontade de trabalhar e repassar
as informações para os órgãos públicos e parceiros”.
Há mais de uma década, os Manxineru do Alto Iaco vêm pedindo à FUNAI a
instalação de uma base física para a vigilância, fiscalização e monitoramento da terra
indígena. Em alguma medida, a FPEE vem realizando atividades e expedições em
parceria com as comunidades indígenas. Porém, nesse contexto de desmonte do órgão
indigenista, com o atual governo Bolsonaro, as ações são lentas e descontínuas, e não
atendem a urgência de um trabalho efetivo na área. Enquanto isso não acontece, seguem
as ameaças. “Sentimos a pressão dos madeireiros, narcotraficantes, pescadores e
caçadores, que invadem os nossos territórios. Acordarmos que iríamos proteger os nossos
parentes dessas ações que são promovidas por pessoas que querem fazer mal a gente”,
afirmou Mila antes de subir o rio Iaco de volta à Extrema. Ao se despedir, resumiu o
espírito do grupo: “Nós viemos até aqui com garra e confiança. Da mesma forma, vamos
voltar para aldeia e dar continuidade ao nosso trabalho”.
Sabemos que o Estado brasileiro historicamente não aloca recursos humanos e
financeiros suficientes para a plena realização da sua política indigenista para a proteção
dos povos isolados. Porém, o seu êxito depende também de um efetivo reconhecimento
do trabalho que as populações vizinhas estão realizando em seus territórios
compartilhados com esses povos, dando condições adequadas para a sua continuidade.
Depende ainda do respeito às diversas políticas indígenas que pautam as relações entre
esses povos. Esse diálogo é fundamental para o enfrentamento de novos e velhos desafios
relacionados à garantia dos direitos dos povos indígenas isolados – e para a superação de
assimetrias históricas nas relações entre Estados e povos indígenas (Octavio et al, 2020).
135
Como vimos ao longo desta dissertação, as concepções e políticas dos Manxineru
do alto rio Iaco, e dos Yine do médio rio Las Piedras, em relação aos seus vizinhos
"isolados" Mashco, são permeadas de relações diplomáticas e de guerra, saberes
ancestrais, antigos sistemas de intercâmbio, e estratégias de resistência e re-existência
seculares frente aos processos de colonização. Seus movimentos e atos políticos,
configurados em uma aliança estratégica transfronteiriça em defesa dos seus territórios e
modo de vida, desafiam a própria modernidade, nos fazendo compreender que um outro
"mundo" é possível.

136
5. Considerações finais

Nesta dissertação busquei adentrar na perspectiva de duas comunidades indígenas


amazônicas vizinhas aos “povos isolados”, para compreender as motivações pelas quais
os seus moradores estão empreendendo iniciativas voltadas à defesa da vida e dos direitos
desses povos na atualidade. Ao descrever e analisar suas narrativas, estratégias e ações
em relação a um “outro”, que também é seu “parente”, são reveladas as singularidades
das políticas indígenas entre povos que compartilham territórios e recursos, mas também
relações históricas. Debruçando-me sobre as histórias dessas comunidades, e de alguns
dos seus líderes comprometidos em uma aliança estratégica, procurei refletir sobre como
o protagonismo político dos povos indígenas emerge em processos de resistência frente
à invasão dos seus territórios, tornando-os interlocutores entre dois “mundos”.
Nesse caminho analítico, procurei, primeiro, seguir o percurso etnohistórico para
problematizar a própria ideia de situação de “isolamento” de povos e grupos indígenas,
observando como as suas estratégias podem ser traduzidas como “estratégias de
relacionamento" pois se originam a partir da gestão consciente e seletiva das suas relações
com o outro (Amorim e Yamada: 2018) nos processos de contato com o branco.
No primeiro capítulo, apresentei alguns resultados de pesquisas que tratam sobre
os períodos pré-colonial e colonial na Amazônia Sul Ocidental, e que apontam a
existência de populosas e múltiplas sociedades, articulando relações de aliança e guerra,
e vastas redes de comércio e intercâmbio, inclusive entre povos amazônicos e andinos.
Assim, analisei como a invasão europeia instalou um novo sistema político, econômico e
cultural, modificando profundamente as antigas fronteiras que separavam os povos
indígenas, e destruindo sistemas sociais que de forma alguma estavam isolados.
Ao revisar a literatura de diferentes viajantes, exploradores, cronistas,
missionários e científicos sobre a ocupação desta região da Amazônia nos últimos
séculos, atentei-me em localizar os conjuntos étnicos denominados como Mashco ou
Mashco-Piro, Yine ou Piro, Manxineru ou Manchineri, entre outros etnôninos, e suas
relações. Nesse mergulho bibliográfico, ficou evidente a profusão de nomes equivocados
que foram sendo produzidos com a chegada dos europeus, para se referir às populações
nativa e àquelas que se opunham bravamente a se integrar nas novas dinâmicas
econômicas, sociais e políticas.

137
Penetrando na história da colonização dessa região amazônica, destaquei o boom
da extração do látex, na virada dos séculos XIX e XX, e seus efeitos para os povos
indígenas, sobretudo, para as populações hoje ditas "isoladas", ou melhor dizendo,
“compulsoriamente isoladas" (Pando, 2013). Ao escaparem das perseguições,
refugiando-se em igarapés e lugares mais remotos da floresta, onde não havia borracha,
aspectos da sua vida social, econômica e cosmológica foram severamente abalados.
Sem dúvida, a febre da borracha na Amazônia provocou uma devastação de
lugares, corpos e cultura sem precedentes na região. Para obter a valorizada matéria prima
na floresta, muitos não mediram esforços para promover matanças organizadas contra
indígenas chamadas de “correrias”. Entre eles, o poderoso caucheiro peruano Fitzcarrald,
personagem fundamental para entender o massacre indígena no rio Manu. Ao descrever
com detalhes a sua "Batalla con los Mashcos", narrada e interpretada por diversos autores
(Reyna, 1942; Lozano, 1942 e 1944; Cunha, 1866-1909; Gow, 2011; Moore, 2020),
explico as possíveis causas do seu "isolamento".
Na revisão bibliográfica, também ficou claro que, em meio à corrida da borracha,
muitas dessas guerras aconteciam entre os diversos caminhos utilizados a milênios pelos
povos indígenas, e a medida que essas rotas eram descobertas pelos exploradores que
chegavam nesta região de cabeceiras de grandes rios amazônicos. É digno de nota o papel
dos nativos na orientação da movimentação dos caucheiros, viajantes e missionários por
rotas interfluviais no interior da mata. Este período de explorações, além de desencadear
a série de conflitos que determinou os limites territoriais entre Brasil, Peru e Bolívia,
inaugurou uma etapa de produção e registro de informações sobre o ambiente do lugar e
as diversas etnias da região.
No final do primeiro capítulo, expliquei como todos esses acontecimentos
determinaram o retiro de populações indígenas, emparentadas com os Yine e outros povos
que se relacionavam, às regiões de difícil acesso, após experiências traumáticas do seu
povo, e como uma “estratégia de sobrevivência”. Neste panorama, apresentei, ao final, os
Yine e os Manxineru como os seus principais interlocutores na atualidade, pois além de
falarem a mesma língua Arawak, compartilham territórios, recursos e relações históricas
com esses “isolados”.
No segundo capítulo, minha abordagem priorizou a história contada pelos povos
indígenas. Pude então explorar os relatos dos moradores das comunidades Yine e
Manxineru sobre os seus vizinhos “isolados”, descrevendo suas narrativas sobre aqueles
que conseguiram escapar das “correrias”, resistindo até hoje à novas perseguições e
138
massacres. Assim, recontei a história dos Mashco a partir dos depoimentos de líderes
yines e manxinerus, colocando em primeiro plano o ponto de vista das populações que
vivem no seu entorno e que mantêm relações intermitentes com os Mashco. Nesse
momento da escrita, debrucei-me sobre uma parte do material de entrevistas que realizei
durante os mais de 10 anos atuando como jornalista e indigenista na região.
Ao trazer as concepções dos indígenas vizinhos aos “isolados”, analisei como e
porquê estão propondo outros nomes e conceitos (“parentes desconfiados”, “povo
desconfiado”, “Yine Hosha Hajene) para se referir a esses povos. Ficou evidente a intensa
produção de significados que se originaram das interpretações Manxineru e Yine a
respeito do “isolamento” desses grupos, e baseadas nas memórias do contato do seu povo
com o branco. No caso dos Manxineru, eles afirmam hoje que se preocupam com o futuro
dos isolados, porque não querem que aconteça o mesmo que aconteceu com eles.
Relembro a frase de Mateus Manchineri (“Não queremos mais massacres!”), sobre sua
motivação no trabalho em defesa dos seus "parentes desconfiados". E também do
primeiro diálogo de Teodoro com os Mashco, onde os “isolados lhe contaram que suas
memórias ainda são marcadas pela violência da exploração do caucho. “¿Por qué no
salen? De repente ustedes nos van a explotar, de esa manera no queremos salir”.
Neste capítulo, além de apresentar brevemente a história de fundação das duas
aldeias, descrevi suas interações com os grupos isolados, mas também com vários atores
locais, como outras comunidades e organizações indígenas e instituições governamentais
e da sociedade civil. Mostrei, assim, o início da atuação indigenista nos rios Iaco, no
Brasil, e no rio Las Piedras, no Peru, em uma conjuntura marcada por diversos processos
que convergiram para uma maior abertura política para os povos indígenas nos dois países
Lideranças indígenas e seus aliados, iniciavam uma intensa mobilização na luta pelos
seus direitos. Nesse processo, destaquei as primeiras discussões sobre a situação de risco
e vulnerabilidade dos povos sem “contato”, e sobre a falência do modelo da “atração”
como forma de integração dos povos indígenas à sociedade nacional.
Em uma das seções do capítulo, vimos que, com a chegada da FUNAI no estado
do Acre, nos anos 1970, os vestígios, avistamentos e conflitos com indígenas “arredios”
começaram a ser registrados pelo Estado brasileiro a partir das informações coletadas
com os Manxineru e Jaminawa. Aqui destaco como o conhecimento indígena acerca
dessas populações, e de seus caminhos na fronteira internacional, produzidos a partir das
suas relações e encontros na floresta, foram, e ainda são, fundamentais para a
identificação da presença de povos isolados na região e, consequentemente, para a
139
garantia dos seus territórios. Não posso deixar de mencionar como o reconhecimento e a
regularização fundiária de terras indígenas empreendida pelo governo brasileiro a partir
dos anos 1980, e o trabalho iniciado pela FUNAI, pautado na mudança do paradigma do
“contato” para o “não contato”, enquanto premissa de ação indigenista, foram
determinantes para o aumento populacional de alguns povos e grupos de indígenas
isolados no estado acreano, e a reocupação de partes de seus territórios.
Aqui comparo brevemente processos de construção das políticas públicas voltadas
à proteção dos povos isolados no Brasil e Peru, algo que não me detive com profundidade
neste trabalho, mas que vislumbro em novos estudos e publicações. Enquanto no Brasil,
o Estado começava a implementar uma política diferenciada para esses povos, visando o
reconhecimento legal e ações para a proteção dos seus territórios, através do seu órgão
indigenista, no Peru, diante da ausência de uma agência estatal responsável em atender
as demandas e interesses desses povos, até 2013, os principais atores desse processo de
reconhecimento dos seus territórios foram as organizações não governamentais e,
sobretudo, as organizações indígenas (Nascimento, 2011).
No segundo capítulo, também destaquei o protagonismo da organização indígena
peruana FENAMAD, reconhecido hoje internacionalmente, no trabalho em defesa dos
povos isolados. Sua mobilização contra as atividades madeireiras no auge da extração do
mogno no Peru, na década de 1990, derivou na parceria estabelecida desde 2006 com a
população Yine que se fixou na região do médio rio Las Piedras, possibilitando a
construção de um Posto de Controle e Vigilância gerido pela comunidade, e dando as
condições necessárias para que seus moradores barrassem a entrada de madeireiros, como
de missionários, no território dos Mashco-Piro. Sua iniciativa em promover intercâmbio
e colaboração com organizações indigenistas brasileiras, também evidenciou o caráter
transfronteiriço dos Mashco, e a necessidade de políticas a nível binacional para a sua
proteção. Este trabalho influenciou ainda as comunidades indígenas do lado brasileiro da
fronteira a se mobilizarem para denunciar as invasões dos seus territórios, e a refletirem
sobre como a pressão das atividades extrativistas e ilícitas também afetavam os seus
“parentes desconfiados”.
Neste capítulo, analisei ainda como as relações entre povos "isolados" e seus
vizinhos "contatados" revelam um tipo de conhecimento e uma singularidade política que
permeiam as concepções e narrativas indígenas sobre essas populações que se negam a
interagir com as sociedades nacionais na atualidade.

140
No terceiro e último capítulo, adentrei no processo de construção de uma aliança
estratégica entre os Yine de Monte Salvado, e os Manxineru da aldeia Extrema, iniciada
no ano de 2011, e explorando a sua subjetividade política, a partir da descrição de diversos
acontecimentos nas duas comunidades: aproximações dos Mashco em suas aldeias,
situações de tensão e negociação em encontros e diálogos, além de reuniões e
intercâmbios de debate e posicionamento público sobre as ameaças em seus territórios na
fronteira internacional.
Assim, explorei a perspetiva de lideranças, pesquisadores e agentes de proteção
indígenas das duas comunidades, analisando como se tornaram porta-vozes e
interlocutores-chave desses povos, em processos de negociação e/ou confronto entre
estratégias indígenas, práticas de intervenção não-governamental e políticas estatais.
Além disso, ressaltei as suas reivindicações de reconhecimento como sujeitos políticos
locais, fundamentalmente estratégicos na construção de políticas públicas voltadas aos
direitos dos povos isolados, e em um contexto de luta do movimento indígena por um
novo status da atuação indigenista oficial, marcada por invisibilidades e relações
assimétricas, desde o período colonial até a atualidade.
Para aprofundarmos essa discussão, perguntei então: "como as políticas indígenas
afetam a política [indigenista]?" (De la Cadena e Peña, 2014, colchetes adicionados).
Hoje, os Yine de Monte Salvado e os Manxineru da aldeia Extrema são, não somente
agentes de "campo" qualificados no trabalho de identificação e comprovação da
existência de indígenas isolados, como também protagonistas da proteção e gestão dos
seus territórios compartilhados com esses grupos sem contato com o Estado. Assim,
observei como as duas comunidades atuam, não somente exigindo respostas mais efetivas
das instituições estatais e seus aliados da sociedade civil, como também mobilizados em
uma aliança transfronteiriça em defesa povos isolados, a partir dos seus conhecimentos e
práticas. E aqui o “transfronteiriço” tem um duplo sentido, pois não se refere somente aos
limites territoriais dos Estados nacionais, como também às fronteiras entre os povos
indígenas. No caso da comunidade Monte Salvado, ficou evidente as complexidades e
dilemas implicados dessa atuação, e como a "política estrangeira" (Lévi-Strauss, 1949),
estabelecida nas relações de vizinhança entre "contatados" e "isolados" no rio Las Piedras,
construídas ao longo dos anos, a partir de encontros e diálogos na mesma língua, e
baseadas em seus tradicionais sistemas de convivência e intercâmbio na floresta,
influencia as estratégias e ações das lideranças e agentes de proteção da comunidade em
suas atuações como indigenistas.
141
Neste capítulo, abordei também o papel dos povos indígenas e suas organizações
na proposição de espaços públicos de debate, formação e articulação política sobre a
temática dos povos isolados a nível regional e binacional, além de suas iniciativas
construídas a partir suas cosmovisões, experiências e estudos. A proposta de
reconhecimento e proteção de um corredor territorial entre Brasil e Peru, por conta do
caráter transfronteiriço dos Mashco-Piro e de outros povos e grupos isolados, evidenciou
mais uma vez o protagonismo de lideranças indígenas da região da fronteira Brasil-Peru
na construção de estratégias e na execução de ações que assegurem políticas diferenciadas
e uma articulação multilateral para a promoção dos direitos desses povos.
Hoje, em meio à pandemia da COVID-19, as duas comunidades funcionam como
uma barreira impedindo que invasores entrem seus territórios e coloquem em risco a vida
dos seus "parentes” isolados. Seus moradores e lideranças estão preocupados, pois os
Mashco estão cada vez mais se aproximando e aparecendo em suas aldeias. Também
estão mobilizados, buscando a efetivação das políticas públicas de proteção em seus
territórios e dos povos isolados, como também o reconhecimento do trabalho que estão
realizando.
Para terminar, trago algumas reflexões de Angela Kaxyuana, liderança da
Coordenação Executiva da COIAB, organização indígena na qual estou colaborando
atualmente em um programa voltado a promover os direitos desses povos: “O tema dos
isolados é um tema nosso, quem deve discutir e precisa participar das tomadas de decisões
somos nós, indígenas. (...) Muitas decisões o Estado tomou sobre a vida de populações
indígenas isoladas em Brasília sem a nossa participação. Não foi levada em consideração
a nossa vivência enquanto protetores dentro do território” 97. Espero que esta pesquisa
contribua para dar maior visibilidade aos conhecimentos, práticas e políticas dos povos
vizinhos aos isolados, e para a superação de assimetrias históricas nas relações entre
Estado e povos indígenas.

97
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2021 (no prelo)

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