Numeracia e Desenvolvimento Do Raciocinio Logico Matematico em Processos de Problematizacao
Numeracia e Desenvolvimento Do Raciocinio Logico Matematico em Processos de Problematizacao
Numeracia e Desenvolvimento Do Raciocinio Logico Matematico em Processos de Problematizacao
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Segundo Fonseca (2007), Numeramento, tradução do termo em inglês Numeracy, a exemplo
do que aconteceu com o termo Letramento (tradução de Literacy) é comumente usado no Brasil,
ao invés de Numeracia, num caso e Literacia, no outro, como o fazem os trabalhos produzidos
em Portugal. Neste texto, portanto, usaremos os termos numeracia e numeramento como
sinônimos.
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leitura e escrita que possibilitam ao sujeito engajar-se na cultura letrada. Assim,
a alfabetização deve ocorrer em práticas de letramento ou, ainda, deve-se
alfabetizar letrando. No caso da Matemática, poderíamos considerar o
letramento matemático. Não é nosso objetivo adjetivar o letramento, ou os
letramentos, como alguns autores explicitam, mas compreendermos que há uma
possibilidade de pensar que a Matemática contribui para uma leitura de mundo.
Nesse texto, não vamos diferenciar os termos numeracia, numeramento,
numeralização, literacia matemática (mathematics literacy), letramento(s)
matemático(s). Vamos trazer uma ideia geral acerca das significações que os
autores atribuem a eles, buscando relacioná-la ao raciocínio lógico. Para além
disso, vamos abordar a possibilidade de desenvolvimento do letramento
matemático escolar por meio de processos de problematização, como a
intervenção psicopedagógica por meio de jogos. Dividimos o texto em seções
para facilitar a discussão. Primeiramente vamos tratar acerca da numeracia e
outros conceitos próximos, em seguida, abordamos acerca do raciocínio lógico
e suas relações com a aprendizagem matemática. Na sequência abordamos
sobre processos de problematização no desenvolvimento do pensamento e da
linguagem da matemática, com enfoque à abordagem psicopedagógica do jogo
na aprendizagem matemática.
1. Numeracia(s), numeramento(s), literacia(s) matemática(s) e outros
Embora não tratando diretamente com a educação matemática de
crianças, Fonseca (2014, p. 01), buscando elucidar o significado da expressão
numeramento, traz algumas contribuições para esse debate. Segundo a autora,
Nas discussões sobre a inserção no mundo da leitura e da escrita,
gerou-se a necessidade de se distinguir o termo Letramento (usado
para caracterizar leitura e escrita como práticas sociais) do termo
Alfabetização (reservado para falar da aquisição do sistema
alfabético). Da mesma forma, na Educação Matemática surgem termos
como Numeramento, Numeracia, ou Letramento Matemático, para
tratar das relações com conhecimentos matemáticos como práticas
sociais, deixando-se as expressões Ensino de Matemática, ou mesmo
Alfabetização Matemática, associadas a uma abordagem voltada para
os aspectos mais técnicos do aprendizado matemático.
Para a autora, numeramento ou numeracia seriam termos utilizados para
tratar da circulação social de conhecimentos matemáticos, e não apenas da
aprendizagem das regras e convenções matemáticas que são ensinadas nas
escolas. Estar “numeralizado” seria fazer parte de um grupo de pessoas que,
não apenas compreendem algoritmos, fórmulas no âmbito da matemática
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escolar, mas também seriam capazes de incorporar os conhecimentos
relacionados a esses procedimentos mecânicos às suas vivências extramuros
da escola, melhorando suas capacidades de compreender e conviver no mundo.
Pensando de uma forma mais ampla, com a qual estamos em comum
acordo, a autora propõe outra perspectiva para compreender o numeramento.
Segundo ela, numeramento poderia ser tomado como uma dimensão do
letramento (Fonseca, 2014). Em outras palavras, conforme nossa compreensão,
o letramento seria uma categoria mais ampla e o numeramento (visto como uma
ideia ampla de letramento matemático) seria uma das suas interfaces, assim
como o letramento tecnológico, por exemplo, seria outra.
Assim, da mesma forma que o
letramento envolve as condições para que o sujeito atenda às
demandas de uma sociedade grafocêntrica, para ser letrado, ele
precisará mobilizar conhecimentos diversos relevantes na vida social,
entre os quais se destacam conhecimentos matemáticos. Isso não só
por causa da recorrência de representações matemáticas nos diversos
textos que circulam nas sociedades grafocêntricas, mas também
porque os modos de conhecer, explicar, organizar, argumentar, decidir
e apreciar dessas sociedades baseiam-se muito fortemente em
critérios quantitativos, métricos ou classificatórios, que compõem o que
chamamos de conhecimentos matemáticos. Desse modo, mesmo um
leitor iniciante vai se deparar com textos em que aparecem preços,
medidas, quantidades, gráficos ou tabelas. São folhetos de promoções
em supermercados ou tabelas de preços de lanchonetes, rótulos de
produtos, fichas de acompanhamento médico de crianças ou adultos,
matérias no jornal ou na TV, divulgando fenômenos e pesquisas, e
tantos outros textos que já devem aparecer nas classes de
alfabetização. Eles trazem números, tabelas, gráficos, diagramas –
que um leitor também precisa aprender a ler, pois é com base nessa
leitura que muitas decisões são tomadas, tais como consumir ou não
um produto, escolher o que e onde se vai comprar, alterar um
tratamento de saúde, escolher um candidato. A preocupação em
entender os papéis dessa informação quantificada ou os efeitos de
sentido que conferem aos textos é o que nos faz compreender o
Numeramento como uma dimensão do Letramento (Fonseca, 2014, p.
01)
Na concepção de Fonseca (2009, p. 53) as práticas de numeramento são
práticas de letramento – até como forma de se valer dos estudos sobre
letramento. Assume-se, pois, que
a dimensão sociocultural do fazer matemático é reconhecida e levada
em conta, ou seja, quando esse fazer deixa de ser concebido como um
conjunto de comportamentos observáveis em decorrência do domínio
de certas habilidades e passa a ser analisado como prática social,
marcada pelas contingências contextuais e por relações de poder.
(p.53).
Mendes (2007, p. 25) também partilha da concepção de que não há como
dissociar as práticas de numeramento das de letramento. Segundo a autora:
Ao focalizarmos o numeramento, podemos nos reportar às diversas
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práticas sociais, presentes na sociedade, que moldam os eventos de
numeramento em contextos diversos. Na verdade, creio que, talvez,
não seja possível identificar um evento exclusivamente de
numeramento, pois de algum modo a escrita e a leitura podem estar
associadas à realização desses eventos. Indo além, as formas de
representação escrita nos diversos eventos de numeramento podem ir
além da escrita numérica, abarcando outras formas de representação
como, por exemplo, a visual (leitura de gráficos, representações
geométricas, representações de espaço, etc.). [...] as práticas de
numeramento podem ser entendidas a partir de padrões relacionados
a crenças, valores, concepções, papéis e atitudes que constituem os
eventos e são por eles constituídos. Existe uma relação de
complementaridade entre eventos e práticas.
Se os conceitos de letramento e numeramento fazem parte do cotidiano
de muitos pesquisadores, sabe-se que, principalmente o conceito de letramento,
também se faz presente na maioria dos cursos de formação inicial e continuada
dos professores que atuam nos anos iniciais. No entanto, pouco se sabe como
esses saberes teóricos são apropriados ou ressignificados pelos professores no
exercício da profissão docente ou, ainda, pouco se sabe, como os professores
teorizam suas práticas a partir dos saberes em ação. Além disso, sabe-se
também que o conceito de numeramento ainda não faz parte dos cotidianos
escolares.
Ao tomarmos o letramento como práticas matemáticas e de oralidade,
leitura e escrita relacionadas com práticas sociais é inevitável não considerar as
culturas escolares e as inúmeras cenas específicas de letramento que emergem
nesse espaço e que caracterizam a escola, como um espaço de produção e de
(re)significação de conhecimento sobre o mundo, conhecimento esse que é
produzido coletivamente através de múltiplas linguagens que permitem múltiplos
eventos de letramento. Segundo Bunzen (p. 107, 2010), é através da relação
com as múltiplas linguagens e instrumentos semióticos que os sujeitos vão
(re)construindo o conhecimento escolar nas interações. Portanto, adotamos o
conceito de letramento pautado nos diversos usos sociais da matemática em
práticas sociais específicas (Kleiman, 1995).
Embora a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), não apresente os
termos numeramento ou numeracia2, ao tratar sobre as “competências
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A BNCC usa a expressão “letramento matemático” em um sentido parecido àqueles de
numeramento ou numeracia utilizados por nós neste texto. No documento, letramento
matemático é definido segundo a Matriz do Pisa 2012, da seguinte forma: “letramento
matemático é a capacidade individual de formular, empregar e interpretar a matemática em uma
variedade de contextos. Isso inclui raciocinar matematicamente e utilizar conceitos,
procedimentos, fatos e ferramentas matemáticas para descrever, explicar e predizer fenômenos.
Isso auxilia os indivíduos a reconhecer o papel que a matemática exerce no mundo e para que
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específicas de matemática para o Ensino Fundamental”, identificamos, dentre
elas, algumas que denotam preocupação quanto, nas palavras de Campetti e
Dornelis (2022, p. 323), “ao caráter funcional das competências matemáticas
necessárias para a vida em sociedade”. São elas:
Desenvolver o raciocínio lógico, o espírito de investigação e a
capacidade de produzir argumentos convincentes, recorrendo aos
conhecimentos matemáticos para compreender e atuar no mundo.
Fazer observações sistemáticas de aspectos quantitativos e
qualitativos presentes nas práticas sociais e culturais, de modo a
investigar, organizar, representar e comunicar informações relevantes,
para interpretá-las e avaliá-las crítica e eticamente, produzindo
argumentos convincentes.
Utilizar processos e ferramentas matemáticas, inclusive tecnologias
digitais disponíveis, para modelar e resolver problemas cotidianos,
sociais e de outras áreas de conhecimento, validando estratégias e
resultados.
Desenvolver e/ou discutir projetos que abordem, sobretudo, questões
de urgência social, com base em princípios éticos, democráticos,
sustentáveis e solidários, valorizando a diversidade de opiniões de
indivíduos e de grupos sociais, sem preconceitos de qualquer natureza.
Interagir com seus pares de forma cooperativa, trabalhando
coletivamente no planejamento e desenvolvimento de pesquisas para
responder a questionamentos e na busca de soluções para problemas,
de modo a identificar aspectos consensuais ou não na discussão de
uma determinada questão, respeitando o modo de pensar dos colegas
e aprendendo com eles (Brasil, 2017)
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trivial e tem como uma de suas principais subsidiadoras a capacidade de pensar
logicamente. É sobre essa capacidade que vamos tratar na próxima seção.
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exclusividade que esse tipo de conhecimento teria no que tange ao
desenvolvimento do raciocínio. Para o autor, o aprendizado de qualquer
conteúdo apresenta situações em que o desenvolvimento do raciocínio é
favorecido, seja da Física à Linguística, da Biologia à História, da Economia à
Literatura (Machado, 1990). Em um paralelo, ele afirma que um curso de História,
a depender da abordagem dada, pode se mostrar propício para desenvolvimento
do raciocínio, enquanto um curso de matemática, no qual os conhecimentos são
revelados de forma mágica, divorciados de qualquer aspecto histórico que
revelaria elementos de sua construção, muito pouco ou nada contribuirá para
aquela tarefa (Machado, 1990).
Para Machado (1990), há dois temas com características singulares
quando o assunto é o desenvolvimento do raciocínio: a Língua Materna e a
Matemática. A Língua Materna seria a fonte primária para o desenvolvimento do
raciocínio, ao passo que a Matemática seria a fonte secundária, não significando
que seja de menor importância, apenas que surge em segundo lugar, inclusive
sendo influenciada pela fonte primária.
Na argumentação ele afirma que, “em cada cultura, a forma como o
pensamento se organiza está diretamente relacionada com as estruturas básicas
da Língua correspondente “(Machado, 1990, p. 82). Assim, conclui o autor, a
importância do ensino da Língua Materna às crianças transcenderia em muito a
da própria Matemática.
A discussão subsidiada por Machado (1990) busca auxiliar na
compreensão do trabalho do professor no sentido do desenvolvimento do
raciocínio lógico. Percebemos que, se por um lado, o desejado raciocínio lógico
pode ser desenvolvido ante ao ensino e aprendizagem de qualquer componente
curricular, por outro, não está garantido que ocorra em nenhuma dessas
componentes, incluindo a própria matemática. Seu desenvolvimento depende do
nível de compreensão que as crianças vão adquirir ao se depararem com
conteúdos e conceitos matemáticos nas salas de aula. Queremos dizer que o
desenvolvimento da capacidade de pensar logicamente não está atrelado à
capacidade imediata de resolver determinada tarefa matemática. A seguir,
vamos exemplificar essa afirmação com um caso do ensino de aritmética.
O ensino de matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental, via
de regra, tem apresentado foco central no ensino de algoritmos para as quatro
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operações aritméticas básicas (adição, subtração, multiplicação e divisão). Pelo
menos dois problemas podem ser identificados em decorrência disso. O
primeiro, é que as crianças têm apresentado, desde sempre, muitas dificuldades
na compreensão dos próprios algoritmos, dada, evidentemente, a sequência de
regras que precisam ser “decoradas” para levar a cabo a resolução de uma
operação. O segundo, é que mesmo que consiga compreender e memorizar os
“passos” para resolver o cálculo (a continha), não está garantido que a criança
seja capaz de transportar essa capacidade para lidar com a resolução de
problemas, reais ou inventados.
Como esses problemas quanto ao ensino de algoritmos para as
operações aritméticas fundamentais se relacionam ao desenvolvimento (ou não
desenvolvimento) do raciocínio lógico, afinal?
Kamii e Declark (1986) afirmam que as crianças pequenas reinventam a
aritmética. Segundo elas, as crianças não aprendem a partir de lições e de
descoberta (exceto os sinais convencionais como “=”, ou o sistema de notação
que constitui, segundo as autoras, a parte mais superficial da aritmética), mas a
partir de um processo de construção interna a cada uma delas. Isso se daria por
meio de sua interação dialética com o meio ambiente, com as outras crianças.
Reinventar a aritmética seria algo como desenvolver um tipo de
organização mental que permite à criança resolver determinada situação
problemática envolvendo uma operação aritmética por uma estratégia que ela
mesma criou e aperfeiçoou. Nesse sentido, Kamii e Housman (2002, p. 100)
defendem que o ensino de algoritmos seria prejudicial à aprendizagem
matemática das crianças, enumerando dois motivos: o primeiro é que o ensino
de algoritmos estimula as crianças a abandonarem suas estratégias próprias, já
que é muito comum ouvirmos relatos de crianças que reclamam que seus
professores não aceitem a resolução de “probleminhas” por estratégias próprias,
insistindo que usem o algoritmo que está sendo ensinado nas aulas. O segundo
motivo é que eles “desensinariam” a percepção do valor posicional, criando
obstáculos ao desenvolvimento do senso numérico pelas crianças. Isso ocorre
porque, segundo Kamii e Joseph (2005), crianças que usam estratégias
pessoais na aritmética básica normalmente operam da esquerda para a direita
(ao contrário daquelas que usam algoritmos de adição ou subtração, por
exemplo), lidando primeiramente com os algarismos que representam as
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maiores ordens numéricas, ou seja, aqueles que contam as maiores potências
de dez. Como não é possível usar esse mesmo tipo de raciocínio na resolução
algorítmica, a criança precisa abandonar convicções pessoais, passando a
depender de algo que não domina (Kamii; Rabioglio, 2007). “A criança
"desaprende" sobre valor posicional e não pensa no número como um todo, mas
em cada unidade isoladamente. Por essa razão, muitas vezes somam unidades
com dezenas e centenas, sem se darem conta do absurdo que estão fazendo”
(Kamii; Rabioglio, 2007, p. 51).
A preocupação das autoras exposta nos parágrafos anteriores mostra
como a carga cognitiva da aprendizagem das regras e procedimentos dos
algoritmos das quatro operações pode destruir a capacidade de pensar
logicamente. No final, resolver continhas usando um algoritmo, sem
compreender, de fato, o processo que está fundamentando a operação, ou como
o sistema de numeração funciona, por meio de agrupamentos e sistema
posicional, muito pouco, ou nada, contribui para o desenvolvimento do raciocino
lógico.
Por outro lado, a resolução decorada de uma operação matemática,
mesmo apresentando um resultado correto, não pode ser, necessariamente,
relacionada ao desenvolvimento do raciocínio lógico. Muitas vezes as crianças
são “treinadas”, a partir de infinitas repetições, a resolver corretamente cálculos
envolvendo as quatro operações aritméticas fundamentais. Nesses casos o
estudante segue passos predeterminados, muitas vezes promovendo ações
“mágicas”, sem questionar o funcionamento (por exemplo, repetir a primeira
fração e multiplicar pelo inverso da segunda, em atividades de divisão de
frações). Isso pode ser observado em escolas de apoio que seguem um modelo
parecido com o “Kumon”, por exemplo. Embora, em muitos casos, apresentem
alto índice de acertos nas atividades repetitivas, muitas vezes os estudantes não
são capazes de resolver um problema que exija coletar dados e decidir que
operação (ou operações) utilizar na resolução (Dockrell e McShane, 2000;
Cockroft, 1982), revelando certa limitação quanto à capacidade de raciocinar
logicamente. Para Dockrell e McShane (2000, p. 115), possivelmente, para
muitas crianças, “as operações matemáticas aprendidas na escola constituem
uma habilidade deslocada: pode ser aplicada na sala de aula, mas é de pouca
relevância para as situações de vida diária”.
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Em resumo, toda a dedicação ao ensino de procedimentos algorítmicos
na escola pode não estar contribuindo significativamente para o
desenvolvimento do raciocínio lógico. Ao contrário, pode estar causando
obstáculos à vivência de crianças que conseguem raciocinar logicamente em
ambientes não escolares, mostrando uma boa capacidade de numeramento,
mas que não conseguem compreender como funcionam os algoritmos
ensinados na escola, conforme amplamente discutido em Carraher, Carraher e
Schliemann (1988).
Estamos propondo, dessa forma, que os algoritmos não sejam
ensinados? Não exatamente. Estamos afirmando que a exploração exacerbada
dos algoritmos da aritmética básica, com o objetivo de ensinar um conjunto de
regras operacionais que, na maioria das vezes, não faz sentido para a criança,
é mais negativa que positiva. É preciso que se consiga conciliar a aprendizagem
de algoritmos com o desenvolvimento de estratégias de cálculo que façam
sentido para a criança. Talvez esses algoritmos poderiam ser apresentados às
crianças a partir do terceiro ou quarto ano do Ensino Fundamental, dando tempo
à criança para sedimentar sua compreensão do sistema numérico Indo-Arábico
e dos conceitos relacionados aos campos aditivo e multiplicativo.
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que define o letramento escolar como um letramento dominante é a
valorização do conhecimento oferecido pela escola em detrimento ao
conhecimento “vernacular” ou não-formal.
A resolução de problemas em aulas de matemática tem sido a principal
metodologia que orienta o ensino de Matemática nos últimos 40 anos. Os
documentos curriculares defendem que as formas tecnicistas e repetitivas de
ensino de matemática não contribuem para uma compreensão conceitual em
matemática e nem mesmo para o desenvolvimento do raciocínio lógico. Em
discussões mais recentes acerca da resolução e proposição de problemas em
aulas de matemática, defendem-se processos de problematização, trazendo
sentidos a conceitos e habilidades (heurísticas de resolução de problemas) em
matemática.
Hiebert et al. (1997), defendem que a Matemática é vista como dando
sentido à resolução dos problemas. Ou seja, é possível a resolução de
problemas por diferentes estratégias e procedimentos, e a Matemática é um
caminho possível à resolução. Assim, a Matemática faz sentido na resolução do
problema. O objetivo não é restringir a aprendizagem a conceitos somente
“aplicáveis”, mas garantir que o conhecimento matemático produzido tenha, para
os estudantes, uma construção significativa e seja compartilhado em uma
comunidade de aprendizagem, a sala de aula de Matemática e/ou em suas
práticas sociais.
A proposta do fazendo matemática com sentido acontece em um
ambiente de problematização em que são considerados os seguintes aspectos:
a natureza da tarefa proposta, o papel do professor, os recursos didáticos, uma
cultura social de sala de aula de Matemática e a acessibilidade da Matemática
para todos os estudantes. Todos esses aspectos necessitam ser considerados
e intencionalmente planejado pelo educador matemático responsável pela ação
com os estudantes. No processo de problematização, na resolução dos
problemas de matemática, os estudantes experimentam a metareflexão.
A metareflexão, ou metacognição como se refere Walle (2009, p.78), está
relacionada a uma monitoração consciente, ou seja, é estar atento à maneira e
aos motivos pelo qual está fazendo uma determinada coisa. Está relacionada,
também, ao conceito de regulação, que consiste em optar por fazer ou modificar
algo do seu próprio processo de pensamento. Segundo Walle (2009, p.78), bons
resolvedores de problemas são capazes de tomar decisões conscientes para
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elaborar e mudar de estratégia, repensar o problema, buscar novos
conhecimentos (criatividade) que possam ajudar ou até recomeçar a resolução
do problema do início (Schoenfeld apud Walle, 2009, p.78). Há que se considerar
que o próprio movimento de compreensão do problema, criação de estratégias
de resolução, experimentação e análise de resultados é que possibilita
processos de “fazer matemática” com sentido na resolução do problema, seja
ele real ou interno à própria matemática. Percebam que nesse processo não
cabe procedimentos únicos e prontos. O próprio ato criativo de construção de
estratégias, análise de soluções e proposição de novos problemas é que
contribui para uma mobilização de conceitos e desenvolvimento do raciocínio
lógico matemático.
4. A abordagem psicopedagógica com jogos na problematização em
educação matemática
O uso de jogos como diagnóstico e intervenção psicopedagógica é
amplamente difundido na literatura, principalmente nos estudos do Laboratório
de Psicopedagogia (LaPp) do Departamento de Psicologia da Aprendizagem, do
Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo (IPUSP), que oferecem várias publicações que sustentam essa
prática (MACEDO, PETTY, PASSOS, 1997, 2000, 2005). Mais especificamente,
no campo da Educação Matemática, Grando (2000, 2004), inspirando-se nos
trabalhos desenvolvidos pelo LaPp, elabora um trabalho de intervenção
pedagógica com jogos, na perspectiva da problematização em matemática
escolar.
Nesse texto defendemos a possibilidade de uma intervenção
(psico)pedagógica com jogos, na perspectiva da problematização, para o
desenvolvimento de procedimentos e de raciocínio lógico matemático, com
vistas ao desenvolvimento do letramento matemático (numeramento) dos
estudantes.
Para tanto, apresentamos os momentos de jogo, propostos em Grando
(2000, 2004), que buscam trabalhar com esse recurso como um gerador de
situações problemas de matemática e as ações de intervenção propostas pelo
professor/formador, como desencadeadoras da aprendizagem matemática.
Descreveremos cada momento do jogo Matix e apresentamos algumas
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situações de intervenção com esse jogo em uma sala de aula de 2º ano do
Ensino Fundamental.
1° Momento - Familiarização dos alunos com o material do jogo
Neste primeiro momento, os alunos entram em contato com o material do
jogo Matix, identificando materiais conhecidos, como: peças com números
positivos e negativos, tabuleiro e experimentam o material através de simulações
de possíveis jogadas. É comum o estabelecimento de analogias com os jogos já
conhecidos pelos alunos.
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valores de 7 à 10, 3 peças de cada, 1 peça de valor 15; para os valores de –1 à
–5, 3 peças de cada; 2 peças com valor –10 e 1 estrela. Um tabuleiro
quadriculado de 8 x 8 (semelhante ao tabuleiro de xadrez)
Objetivo: fazer o maior número de pontos somando todas as peças de valor
positivo e negativo (adição de números inteiros)
Regras:
1- As peças são colocadas aleatoriamente no tabuleiro, com o número para
cima;
2- Jogadores jogam alternadamente.
3- O primeiro jogador escolhe se quer jogar no sentido vertical ou horizontal
e retira uma peça do jogo que esteja na direção escolhida em relação à
estrela (obs: sempre as duas peças mais próximas da estrela). Cada peça
retirada é substituída pela estrela.
4- O próximo jogador, retira no sentido diferente do adversário, a partir da
estrela. Portanto, em cada jogada, o jogador tem, no máximo, 2 opções
de retirada da peça;
5- O jogo termina quando acabarem todas as peças ou não houver mais
peças nas fileiras (vertical e horizontal) onde a estrela se encontra.
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3° Momento – O “Jogo pelo jogo”: jogar para garantir regras
Este é o momento do jogo espontâneo simplesmente, em que se
possibilita ao aluno jogar para garantir a compreensão das regras. Neste
momento, são exploradas algumas noções matemáticas contidas no jogo. O
importante é a apropriação das regras, pelos alunos. Joga-se para garantir que
as regras tenham sido compreendidas e que vão sendo cumpridas.
As estratégias que vão sendo desenvolvidas no decorrer das jogadas são
muitas, tais como: alguns alunos fazem o cálculo mentalmente dos pontos dos
adversários e dos seus pontos para verificar quem está vencendo, outros alunos
preferem fazer os cálculos das diferenças entre cada dupla jogada (uma jogada
dele próprio e outra do adversário), existem alunos que já conseguem fazer
previsões de 2 a 3 jogadas e constroem suas “árvores de possibilidades”, outros
preferem analisar suas jogadas considerando que uma jogada não muito boa
num determinado momento pode propiciar uma outra jogada ainda melhor.
4° Momento – Intervenção pedagógica verbal
Depois dos três momentos anteriores, os alunos passam a jogar agora
contando com a intervenção propriamente dita. Trata-se das intervenções que
são realizadas verbalmente, pelo professor, durante o movimento do jogo. Este
momento caracteriza-se pelos questionamentos e observações realizadas pelo
professor a fim de provocar os alunos para a realização das análises de suas
jogadas (previsão de jogo, análise de possíveis jogadas a serem realizadas,
constatação de “jogadas erradas” realizadas anteriormente, etc.). Neste
momento, a atenção está voltada para os procedimentos criados pelos alunos
na resolução dos problemas de jogo, buscando relacionar este processo à
conceitualização matemática (problematização).
5° Momento – Registro do jogo
É um momento que pode acontecer, dependendo da natureza do jogo e
dos objetivos que se têm com o registro. O registro dos pontos, ou mesmo dos
procedimentos e cálculos utilizados, pode ser considerado uma forma de
sistematização e formalização, através de uma linguagem própria que, no nosso
caso, seria a linguagem matemática. Para o professor o registro é um
instrumento valioso, pois permite a ele conhecer melhor os seus alunos. É
importante que o professor procure estabelecer estratégias de intervenção que
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gerem a necessidade do registro escrito do jogo, a fim de que não seja apenas
uma exigência, sem sentido para a situação de jogo.
O registro é um importante instrumento de que pode dispor o aluno, para
a análise de jogadas “erradas” (jogadas que poderiam ser melhores) e
construção de estratégias. Nossa experiência tem mostrado que, muitas vezes,
o fato de os alunos terem que registrar, sistematizar um raciocínio, por escrito,
contribuiu para uma melhor compreensão sobre suas próprias formas de
raciocínio e para o aperfeiçoamento na maneira de explicitação deste raciocínio,
agora não mais verbal (metacognição / metareflexão).
Na atividade desenvolvida em sala de aula com os estudantes de 1º ano
os registros surgiram por solicitação de alguns alunos quando questionaram se
não existia uma forma de saber quem estava vencendo o jogo, durante o jogo e
não somente no final. Resolveram realizar os registros parciais, a cada peça que
retiravam. O conflito surgiu quando a primeira peça retirada do tabuleiro, foi uma
peça negativa: - 6. O aluno questionou: - Eu tenho que tirar 6, mas de quanto se
não tenho nada ainda? O conflito se estabelece no grupo e é socializado pela
professora. Durante as discussões, algumas propostas surgiram: de que o aluno
retirasse sempre uma peça positiva antes, de que as peças negativas seriam
desprezadas no início do jogo, de que se considerasse positiva a primeira peça,
ou de que a peça fosse guardada até que uma peça positiva fosse retirada e,
depois realizasse o registro. Entretanto, um aluno propõe o seguinte raciocínio:
- Ele fica devendo esses pontos, como a gente fica devendo na cantina e depois
paga. É só escrever que tá devendo. Esta proposta é socializada. A maioria dos
alunos se apropria do raciocínio e passa a trabalhar com a linguagem do ganhar
e perder pontos. O registro, dessa forma, torna-se um importante aliado na
definição de estratégias da melhor jogada. Os alunos, nesse momento do
registro, passam a transpor para a linguagem matemática as noções de números
inteiros, representando um momento de construção dessa linguagem e
apropriação desse conceito.
6° Momento – Intervenção escrita
Trata-se da problematização de situações de jogo. Os alunos resolvem
situações-problema de jogo, elaboradas pelo professor ou mesmo propostas por
outros alunos. A resolução dos problemas de jogo propicia uma análise mais
específica sobre o jogo, em que os problemas abordam diferentes aspectos do
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jogo que podem não ter ocorrido durante as partidas. Além disso, trata-se de um
momento onde os limites e as possibilidades do jogo são resgatados pelo
professor, direcionando para os conceitos matemáticos a serem trabalhados
(aprendizagem matemática).
Na verdade, no decorrer da resolução das situações, surgem as análises
de possibilidades, as estratégias de resolução de problemas, os erros, as
sistematizações etc. Além disso, como os alunos geralmente respondem em
conjunto as situações, o processo de socialização na resolução caracteriza-se
por uma discussão matemática, com levantamento de hipóteses, argumentação
e produção do texto matemático (registro da resolução).
A seguir são apresentadas algumas situações-problema com o jogo Matix
que foram trabalhadas na sala de aula de 2º ano do Ensino Fundamental. As
situações-problema propostas objetivavam garantir a elaboração de algumas
estratégias de jogo, principalmente para aqueles alunos que insistiam em jogar
aleatoriamente, com pouca contribuição para a aprendizagem matemática.
1) Em cada jogada, poderíamos dizer que a melhor jogada é sempre tirar o
maior número? Por quê? Dê um exemplo.
2) Um jogo está na seguinte situação:
-4 -3 15 5
-2 -2
-10 -4
-3 3 3
-2 5
5 0 * 3
a) O próximo jogador (A), retira na horizontal (→), qual a melhor jogada? Por
quê?
b) Jogando da melhor maneira possível, quantos pontos o jogador A vai
fazer a mais que o jogador B, nas próximas 3 jogadas de cada jogador?
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(retirar o 15). Na atividade 2 a estratégia de previsão de jogadas e contagem das
diferenças de pontos entre os jogadores é estimulada. Cabe ao professor
socializar as resoluções e auxiliar os alunos a sistematizarem as descobertas.
3) O Jogador A conseguiu as seguintes peças: 4 , -2 , 0 , 2 , -2. Quantos
pontos ele fez? Registre a sua conta.
4) O jogador A está com 23 pontos. O jogador B está com as seguintes
peças: 8 , -4 , 15 , 6 , -2 , -3 e –5. Quantos pontos faltam para o jogador B
retirar do tabuleiro para empatar o jogo?
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desafios em silêncio, embora participando e se envolvendo na ação, o que
prejudica o trabalho de socialização e resgate, pelo professor, de situações
construtivas na sala de aula. Cabe ao professor, muitas vezes, mais essa tarefa,
dentre tantas outras que necessita exercer: estar atento às distintas formas de
raciocínio dos seus alunos, saber intervir construtivamente e incentivar seus
alunos a manifestarem suas ideias, daí o incentivo ao registro do raciocínio
empregado, produzindo e socializando esse conhecimento produzido.
O registro exigiu dos alunos, durante a resolução das situações-problema,
uma análise sobre as suas próprias maneiras de pensar, uma definição de
estratégias de raciocínio sobre o jogo e um encadeamento lógico a partir das
regularidades observadas nas situações de jogo (metareflexão).
Finalmente, para o aluno, o objetivo de realizar tais atividades continua
sendo o de se aperfeiçoar para buscar uma vitória, ou seja, continua sendo o
jogo, pois o fator competitivo está garantido nesta ação. Disto decorre o fato de
retornarmos ao jogo, após a realização das situações-problema, o que
denominamos o momento de “jogar com competência”.
7° Momento – Jogar com “competência”
Um último momento representa o retorno à situação real de jogo,
considerando todos os aspectos anteriormente analisados (intervenções). É
importante que o aluno retorne à ação do jogo para que execute muitas das
estratégias definidas e analisadas durante a resolução dos problemas. Afinal, de
que adianta ao jogador analisar o jogo sem tentar aplicar suas “conclusões”
(estratégias) para tentar vencer seus adversários? Optou-se em denominar este
momento por “jogar com competência”, considerando que o aluno, ao jogar e
refletir sobre suas jogadas e jogadas possíveis, adquire uma certa “competência”
naquele jogo, ou seja, o jogo passa a ser considerado sob vários aspectos e
óticas que inicialmente poderiam não estar sendo considerados.
Buscamos com este último momento, estabelecer um processo de análise
do jogo e de intervenção realizados que pudessem fazer sentido, no contexto do
próprio jogo. Analisa-se para jogar melhor, para identificar estratégias
vencedoras e testá-las. Além disso, trata-se de um momento em que o
professor/educador pode avaliar a apropriação dos conceitos e habilidades
matemáticas pelos alunos (diagnóstico).
A apresentação dos momentos de intervenção (psico)pedagógica com o
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jogo Matix teve por objetivo exemplificar uma situação de problematização
matemática a partir do jogo. Percebam que, enquanto jogam os estudantes
explicitam seus modos matemáticos de pensar, levantam hipóteses,
experimentam jogadas, registram e, ao mesmo tempo pensam
matematicamente, tudo isso na tentativa de vencer. Dessa forma, ao mesmo
tempo que o jogo representa ao (psico)pedagogo instrumento de diagnóstico,
esse também possibilita a intervenção. Acreditamos que muitos dos conteúdos
matemáticos, necessários ao letramento matemático, podem ser explorados por
meio de jogos. Não é o nosso objetivo apresentar o jogo como um único recurso.
Defendemos, também, o uso de materiais manipulativos, na perspectiva da
problematização, como recurso de aprendizagem matemática, assim como o uso
da tecnologia, manipulação de situações-problema reais, dentre outros recursos.
Esperamos que a temática abordada nesse texto possibilite uma
ampliação na compreensão dos processos de construção do pensamento e da
linguagem característicos do fazer a aprender matemática, do letramento
matemático e/ou do numeramento.
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