Geetrz - Usos Da Diversidade
Geetrz - Usos Da Diversidade
Geetrz - Usos Da Diversidade
OS USOS DA DIVERSIDADE
Clifford Geertz
lnstitute of Advanced Studies, Princeton University – Estados Unidos
Abstract: Addressing “The Future of Ethnocentrism”, this article starts from the
premiss that, although globalization may have, in many cases, diminished the dif-
ferences which separate peoples, the prejudice and forms of discrimination which
accompany these differences have not diminished. Furthermore, cultural diversity,
in this scenario, is not confined to clearly delimited ethnic and national groups but
includes other factors such as gender, generation, sex and class. In such a context,
the pragmatic acceptation of one’s own parochialism or even the passive tolerance
of distant modes of life are attitudes which are not only intellectually dishonest but
morally reprehensible. It is in the uncomfortable encounters of variant subjectivities
within his own society that the anthropologist defines his role.
1
A antropologia, minha froliche Wissenschaft, esteve fatalmente envolvi-
da no decorrer de sua história (longa, se iniciada com Heródoto, ou bastante
curta, se com Tylor) com a ampla variedade de maneiras pelas quais homens
e mulheres tentaram viver suas vidas. Em alguns pontos, ela procurou lidar
com esta variedade capturando-a nalguma rede universalizante de teoria: está-
gios evolucionários, idéias ou práticas pan-humanas, ou formas transcenden-
tais (estruturas, arquétipos, gramáticas subterrâneas). Noutros, ela enfatizou
particularidade, idiossincrasia, incomensurabilidade – reis e repolhos. Mas,
recentemente, viu-se diante de algo novo: a possibilidade da variedade estar se
diluindo num espectro mais pálido e estreito. Nós podemos estar diante de um
mundo onde simplesmente não há mais caçadores de cabeça, matrilinearistas,
ou quem faça a previsão do tempo com os bofes de um porco. Haverá dife-
renças, com certeza – os franceses jamais comerão manteiga com sal. Mas os
bons velhos tempos de queima de viúvas e canibalismo foram-se para sempre.
Em si mesmo, enquanto questão profissional, este processo de diluição
do contraste social (supondo-o verdadeiro) talvez não seja tão perturbador. Os
antropólogos terão simplesmente de aprender a fazer alguma coisa com dife-
renças mais sutis, e seus escritos podem tornar-se mais argutos, embora menos
espetaculares. Mas ele levanta uma questão maior, moral, estética e cognitiva
ao mesmo tempo, que é muito mais problemática e está no centro da discussão
atual sobre como os valores hão de ser justificados: que chamarei, para ter um
título fácil de lembrar, O Futuro do Etnocentrismo.
Retomarei em breve a essas discussões mais genéricas, pois a elas dirige-
-se o grosso da minha preocupação; mas quero começar a abordagem do pro-
blema apresentando um argumento, que considero incomum e mais do que um
pouco desconcertante, que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss desen-
volve no início de sua recente coleção de ensaios, contenciosamente intitulada
(contenciosamente, pelo menos, para um antropólogo) O Olhar Distanciado
– Le regard éloigné.1
1
Claude Lévi-Strauss (1986), O Olhar Distanciado: todas as citações na seção 2 deste ensaio, com apenas
algumas grafias adaptadas ao português do Brasil, são da referida edição.
2
Em primeiro lugar o argumento de Lévi-Strauss surgiu como respos-
ta ao convite da UNESCO para pronunciar a conferência inaugural do Ano
Internacional de Combate ao Racismo e à Discriminação Racial, que, caso
vocês tenham perdido, foi 1971. “Fui escolhido”, ele escreve,
porque, vinte anos antes, eu tinha escrito um texto, Raça e História, também por
encomenda da UNESCO [no qual] eu enunciava […] certas verdades primeiras,
depressa me tendo apercebido de que apenas esperavam de mim a sua repetição.
Ora, já nessa época, para servir as instituições internacionais a que, mais do que
hoje em dia, me sentia obrigado a dar crédito, acabei por forçar um pouco a nota
na conclusão de Raça e História. Talvez devido à idade, certamente as reflexões
suscitadas pelo espetáculo do mundo, repugnava-me agora essa complacência
e convenci-me de que, para ser útil à UNESCO e poder cumprir honestamente
a missão que me era confiada, me deveria exprimir com a máxima franqueza.
(p. 14).
Como de costume, isso acabou não sendo uma boa idéia, e o que se
seguiu foi de certo modo uma farsa. Funcionários da UNESCO ficaram abor-
recidos por “eu ter tocado num catecismo [cuja aceitação] lhes tinha valido a
passagem de um emprego modesto em qualquer país em vias de desenvolvi-
mento para o lugar, santificado, de funcionários de uma instituição interna-
cional” (p. 14). O então Diretor Geral da UNESCO, outro francês resoluto,
inesperadamente interveio para reduzir o tempo que Lévi-Strauss tinha para
falar e assim forçá-lo a fazer os cortes de “melhoramento” que lhe haviam sido
sugeridos. Lévi-Strauss, incorrigible, leu o seu texto inteiro, aparentemente
em alta velocidade, no tempo que ainda restava.
À parte tudo isso, um dia normal na ONU, o problema com a fala de
Lévi-Strauss foi que nela “insurgi-me contra o abuso de linguagem com que
se confunde cada vez mais o racismo… com atitudes normais, mesmo legíti-
mas, e, em qualquer caso, inevitáveis” (p. 15) – isto é, embora ele assim não
o denomine, etnocentrismo.
Etnocentrismo, argumenta Lévi-Strauss naquele artigo, “Raça e Cultura”,
e, um tanto mais tecnicamente, em outro, “O Antropólogo e a Condição
Humana”, escrito cerca de uma década mais tarde, não apenas não é uma
coisa ruim em si mesma, mas, desde que não acabe fora de controle, é uma
coisa bastante boa. A lealdade a um certo conjunto de valores torna as pessoas
inevitavelmente “parcial ou totalmente insensíveis a outros valores” (p. 15)
aos quais, outras pessoas, igualmente paroquiais, são igualmente leais. “Ele
não tem culpa alguma de que se ponha uma maneira de viver ou de pensar
acima de todas as outras, nem de que se sinta pouca atração (por outros valo-
res)”. Esta “incomunicabilidade relativa” não autoriza ninguém a oprimir ou
destruir os valores rejeitados ou aqueles que os sustentam. Mas, afora isto,
“ela nada tem de revoltante”.
Não obstante o que se pensar disso tudo, ou por mais surpresa que se te-
nha ouvindo-o de um antropólogo, não há dúvida de que a nota soa contempo-
rânea. As tentações da “surdez ao apelo de outros valores” e da abordagem tipo
relaxe-e-goze de quem se aprisiona na sua própria tradição cultural são cada
vez mais celebradas no pensamento social recente. Sem poderem abraçar nem
o relativismo nem o absolutismo – o primeiro porque incapacita o juízo e o se-
gundo porque retira-o da história – nossos filósofos, historiadores e cientistas
sociais se voltam para o tipo de imperméabilité nós-somos-nós e eles-são-eles
que Lévi-Strauss recomenda. Visto tanto como arrogância facilitada, precon-
ceito justificado, ou como a esplêndida honestidade eu-sou-assim de Flannery
3
São múltiplas as forças que vêm promovendo uma maior aceitação do
autocentrismo cultural nos últimos vinte e cinco ou trinta anos. Há aquelas
questões de “estado do mundo” às quais Lévi-Strauss alude, mormente o fra-
casso da maioria dos países de Terceiro Mundo em se manter à altura das
esperanças de mil flores presentes para eles logo antes e logo depois de suas
lutas de independência. Amin, Bokassa, Pol Pot e Khomeini nos extremos, e
Marcos, Mobuto, Sukarno e a Sra. Gandhi com menos extravagância, empres-
taram um certo arrepio à noção de haver mundos noutros lugares comparado
aos quais o nosso está sem dúvida doente. Há o repetido desmascaramento das
utopias marxistas – União Soviética, China, Cuba, Vietnam. E há o enfraque-
cimento do pessimismo do Declínio do Ocidente induzido por guerra mundial,
depressão mundial, e a perda do império. Mas há também, e acho não menos
importante, o aumento da conscientização de que o consenso universal-trans-
nacional, transcultural, até transclasse – sobre questões normativas não virá
num futuro próximo. Todo mundo – sikhs, socialistas, positivistas, irlandeses
– não se voltará para a mesma opinião sobre o que é e o que não é decente, o
que é e o que não é justo, o que é e o que não é lindo, o que é e o que não é
razoável; não em breve, talvez nunca.
Se abandonamos (e é claro que nem todo mundo, talvez nem mesmo
a maioria, o fez) a idéia de que o mundo está indo em direção a um acordo
essencial sobre questões fundamentais, ou mesmo, como no caso de Lévi-
Strauss, que deveria, então cresce naturalmente o encanto do etnocentrismo
tipo relaxe-e-goze. Se os nossos valores não podem ser desembaraçados de
nossa história e nossas instituições, e nem os de ninguém mais das deles, aí
então parece que só resta fazer como Emerson, andar com os nossos próprios
pés e falar com a nossa própria voz. “Espero sugerir”, escreve Richard Rorty
num artigo recente (maravilhosamente intitulado ‘Liberalismo Burguês Pós-
modernista’), “como [nós liberais burgueses pós-modernistas] podemos con-
vencer nossa sociedade de que lealdade a si mesma é lealdade suficiente…
que ela precisa ser responsável apenas por suas próprias tradições…” (Rorty,
1983, p. 595).2 Aquilo que um antropólogo em busca das “leis consistentes
que sublinham a diversidade observável de crenças e instituições” (Lévi-
Strauss, 1986, p. 55) atinge pelo lado do racionalismo e da alta ciência, um
filósofo, convencido de que “não há ‘fundamento’ para [as nossas] lealdades
e convicções afora o fato de que as crenças, desejos e emoções que as ampa-
ram se sobrepõem aos sentimentos de muitos outros membros do grupo com
o qual nos identificamos para fins de deliberação moral e política…”, atinge
pelo lado do pragmatismo e da ética da prudência (Rorty, 1983, p. 586). A
semelhança é até maior apesar dos pontos de partida muito diferentes desses
dois sábios (kantianismo sem um sujeito transcendente, hegelianismo sem um
espírito absoluto), e dos fins mais diferentes ainda para os quais eles se incli-
nam (um mundo bem arrumado de formas transponíveis, outro desarranjado
de discursos coincidentes), porque Rorty, também, considera as distinções in-
sidiosas entre grupos não apenas naturais mas essenciais ao raciocínio moral:
2
Referência em português: Richard Rorty (1997, p. 266).
4
Não obstante suas diferentes posturas e diferentes causas (e confesso
que estou muito mais próximo do populismo desordenado de Rorty do que do
mandarinismo preciosista de Lévi-Strauss – o que talvez não passe de um viés
cultural da minha parte), essas duas versões de para-cada-qual-a-sua morali-
dade residem, pelo menos em parte, numa idéia comum de diversidade cultu-
ral: ou seja, que é importante porque nos dá, para usar a fórmula de Bernard
Williams, alternativas a nós em vez de alternativas para nós. Outros valores,
crenças e modos de levar a vida são vistos como valores que sustentaríamos,
crenças que teríamos e modos como levaríamos a vida se houvéssemos nasci-
do em época e lugar diversos de quando e onde realmente nascemos.
E assim, de fato, teria sido. Mas uma tal idéia parece dar muito mais
e muito menos importância do que deveria ao fato da diversidade cultural.
Muito mais, porque ela sugere que ter tido uma vida diferente do que real-
mente se teve é uma opção prática sobre a qual de alguma forma a pessoa tem
que se decidir (eu deveria ter sido um bororó? é ou não é sorte minha não ter
sido um hitita?); muito menos, porque ela obscurece o poder de tal diversida-
de, quando invocada pessoalmente, de transformar nossa percepção de o que
significa para um ser humano, bororó, hitita, estruturalista, ou liberal burguês
pós-moderno, acreditar, dar valor, ou prosseguir: qual é a sensação, como ob-
servou Arthur Danto (1984, p. 646-647), fazendo eco à famosa pergunta de
Thomas Nagel sobre o morcego, “de pensar que o mundo é plano, que eu
pareço irresistível nos meus trajes Poiret, que o reverendo Jim Jones me teria
salvado pelo seu amor, que os animais não têm sentimento ou que as flores
têm – ou que a onda é ser punk.” O problema com o etnocentrismo não é que
ele nos comprometa com os nossos próprios compromissos. Nós somos, por
definição, tão comprometidos, quanto somos com ter as nossas próprias dores
de cabeça. O problema com o etnocentrismo é que nos impede de descobrir
em que tipo de ângulo, como o Cavafy de Foster, nós nos postamos em relação
ao mundo; que tipo de morcego realmente somos.
Esta idéia – de que os enigmas postos pelo fato da diversidade cultural
têm mais a ver com a nossa capacidade de penetrar às apalpadelas nas sen-
sibilidades alienígenas, nos modos de pensar (rock punk e batas Poiret) que
não possuímos, e nem provavelmente vamos possuir, do que com a nossa
capacidade de aceitar ou deixar de preferir nossas próprias preferências – tem
uma série de implicações de mau agouro para a abordagem de coisas culturais
baseada em nós-somos-nós e eles-são-eles. A primeira delas, talvez a mais im-
portante, é que tais enigmas brotam não simplesmente nas fronteiras de nossa
sociedade, como seria de esperar sob uma tal abordagem, mas, por assim di-
zer, nas fronteiras de nós mesmos. O sentimento de ser estrangeiro não come-
ça à beira d’água mas à flor da pele. O tipo de idéia que tanto os antropólogos
desde Malinowski como os filósofos desde Wittgenstein tendem a alimentar,
de que, digamos, shiitas, sendo outro, dão um problema, mas torcedores de
futebol, sendo parte de nós, não dão, ou pelo menos não do mesmo tipo, e
simplesmente errado. O mundo social não se divide nas suas articulações em
transparentes “nós” com quem podemos ter empada, por mais que diferamos
com eles, e enigmáticos “eles”, com quem não podemos, por mais que defen-
damos até a morte o direito deles de diferir de nós. Os wogs começam muito
antes de Calais.
Tanto a antropologia recente do tipo Do Ponto de Vista do Nativo (que
eu pratico) como a filosofia recente do tipo Formas de Vida (que eu endosso)
foram levadas a conspirar, ou a parecer conspirar, para obscurecer este fato
através de uma má aplicação crônica de sua idéia mais poderosa e mais impor-
tante: a idéia de que o significado é socialmente construído.
A percepção de que significação, na forma de sinais interpretáveis -sons,
imagens, sentidos, artefatos, gestos – passa a existir apenas no bojo dos jogos
de linguagem, comunidades de discurso, sistemas intersubjetivos de referên-
cia, modos de construção de mundo; de que ele surge dentro do quadro da
interação social concreta na qual algo é um algo para um “você” e um “eu”, e
não numa gruta secreta qualquer da cabeça; e de que ele é histórico de ponta a
ponta, forjado no fluxo dos eventos, é interpretada com a implicação de que as
comunidades humanas são, ou deveriam ser, mônadas semânticas,
Wog, termo pejorativo com que um inglês se refere aos franceses; e
Calais, cidade portuária francesa no Canal da Mancha, ponto de desembar-
que usual na França para quem vem da Inglaterra por via marítima, quase
sem aberturas (o que, na minha opinião, nem Malinowski nem Wittgenstein,
e nem, por sinal, Kuhn ou Foucault quiseram dar a entender). Nós somos, diz
Lévi-Strauss, passageiros nos trens que são nossas culturas, cada qual moven-
do nos seus próprios trilhos, no seu próprio ritmo e na sua própria direção. Os
trens que rolam lado a lado, em direções semelhantes e velocidades não muito
diferentes das nossas, são pelo menos razoavelmente visíveis para nós quando
olhamos para fora de nossas cabines. Mas os trens em trilhos oblíquos ou pa-
ralelos rolando numa direção oposta não o são.
Dele não recebemos senão uma imagem confusa e depressa desaparecida, difi-
cilmente identificável, as mais das vezes reduzida a uma mancha momentânea
do nosso campo visual, que não nos dá qualquer informação sobre o próprio
acontecimento e que só nos irrita, porque interrompe a contemplação plácida
da paisagem que serve de pano de fundo aos nossos devaneios. (Lévi-Strauss,
1986, p. 30-31).
5
A história de qualquer povo separadamente e de todos os povos juntos,
e sem dúvida de cada pessoa individualmente, é a história da mudança de
mentalidade, vagarosa em geral, mais rápida às vezes; ou se o tom idealista
disso perturbar você (não deveria, não é idealista, e não nega nem as pressões
naturais do fato, nem os limites materiais da vontade), de sistemas de signos,
formas simbólicas, tradições culturais. Tais mudanças não foram necessaria-
mente para melhor, quiçá nem mesmo normalmente. Elas tampouco levaram
a uma convergência de pontos de vista, mas sim a uma mistura deles. Aquilo
que, voltando à sua bendita Idade neolítica, foi algo bastante semelhante ao
mundo de sociedades integrais em comunicação distante imaginado por Lévi-
Strauss, tornou-se algo mais parecido com o mundo pós-moderno de Danto,
de sensibilidades conflitantes em contato inevitável. Assim como a nostalgia,
a diversidade não é mais como a de antigamente; e o confinamento de vidas
em vagões de trem separados a fim de produzir renovação cultural ou o seu
espaçamento por efeitos de contraste a fim de liberar energias morais são so-
nhos românticos, não isentos de perigo.
A tendência geral que observei ao iniciar este artigo, do espectro cultural
tornar-se mais pálido e mais contínuo sem tomar-se menos discriminatório
(de fato, ele está se tornando provavelmente mais discriminatório na medida
em que as formas simbólicas se separam e proliferam), altera não apenas sua
relação com o argumento moral mas o próprio caráter de tal argumento. Nós
nos habituamos à idéia de que os conceitos científicos mudam com as mu-
danças nos tipos de questões com que se ocupam os cientistas – que não há
necessidade de cálculo para determinar a velocidade de uma carruagem ou de
energias quânticas para explicar o movimento de um pêndulo. Mas estamos
bem menos conscientes de que a mesma coisa é verdadeira para os instrumen-
tos especulativos (para tomar emprestado de I. A. Richard um velho termo que
exatamente aonde estava); nem sugerir que os valores dos médicos (isto é,
mais ou menos, os nossos), ou os do índio (isto é, mais ou menos, não os nos-
sos), ou algum julgamento entre as partes, tirado da filosofia ou antropologia e
sentenciado por um dos hercúleos juízes de Ronald Dworkin, deveriam preva-
lecer. Foi um caso duro e terminou de forma dura; mas eu não vejo como mais
etnocentrismo, mais relativismo, ou mais neutralidade poderia ter melhorado
as coisas (embora mais imaginação talvez pudesse). O ponto da fábula – não
estou certo de que ela tenha uma moral propriamente dita – é que é esse tipo
de coisa, não a tribo distante, dobrada sobre si mesma em coerente diferença
(os azande ou os ik que fascinam os filósofos apenas um pouco menos do que
as fantasias de ficção científica, talvez porque eles podem fazer as vezes de
marcianos sublunares e ser vistos como tal), que melhor representa, ainda que
com uma pitada de melodrama, a forma geral que o conflito de valores que
emerge da diversidade cultural toma hoje em dia.
Neste caso os antagonistas, se é que podemos chamá-los assim, não eram
representativos de totalidades sociais isoladas encontrando-se perigosamente
à beira de suas crenças. índios mantendo o destino à distância com álcool
fazem parte da América contemporânea tanto quanto médicos corrigindo-o
com máquinas. (Quem quiser saber exatamente como, pelo menos no que
diz respeito aos índios – acho que sobre médicos vocês já sabem – pode ler a
eletrizante novela de James Welch, Winter in the Blood, onde surgem efeitos
de contraste fora do comum.) Se houve alguma falha aqui, e, justiça seja feita,
é difícil mostrar o tamanho exato dela à distância, foi a falta de compreensão,
por ambos os lados, de como era estar do outro, e, logo, como era estar do seu
próprio lado. Ninguém, ao que parece, aprendeu grande coisa sobre si mesmo
ou quem quer que seja neste episódio, e nada, além das banalidades de desgos-
to e amargura, sobre o caráter do encontro que tiveram. Não é a incapacidade
das pessoas envolvidas de abandonar suas convicções e adotar o ponto de
vista de outrem que torna esta pequena fábula tão profundamente deprimente.
Nem tampouco o fato de lhes faltar uma regra moral não-corporativa – O Bem
Maior ou O Princípio da Diferença (que, na verdade, parece que daria aqui
resultados diversos) – à qual recorrer. É a incapacidade delas até mesmo de
conceber, em meio aos mistérios da diferença, como é possível contornar uma
assimetria moral absolutamente genuína. A coisa toda aconteceu no escuro.
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O que tende a acontecer no escuro – as únicas coisas que um conceito
de dignidade humana tipo “uma certa surdez aos apelos de outros valores” ou
uma “comparação com comunidades piores” parece permitir -, ou é o uso da
força para impor os valores dos que possuem a força; uma vácua tolerância
que, comprometida com nada, nada muda; ou, como neste caso, onde a força
não está disponível e a tolerância é desnecessária, uma trôpega chegada a um
ambíguo fim.
O fato é que há, sem dúvida, circunstâncias onde as alternativas práticas
realmente existem. Parece que não há muito o que fazer no caso do reverendo
Jones, depois de ele desembestar em busca de seus objetivos, a não ser pará-lo
fisicamente antes dele distribuir o refresco. Se as pessoas acham que o rock
punk é que está na onda, aí, pelo menos enquanto não o tocarem no metrô, o
ouvido é delas e o funeral também. E é difícil (alguns malucos são mais ma-
lucos do que outros) saber exatamente como se deve lidar com alguém que
afirma que as flores possuem sentidos e os animais não os possuem. O pater-
nalismo, a indiferença, até mesmo a petulância não são sempre atitudes inúteis
de se tomar diante da diferença de valores, inclusive as de maior consequência
do que estas. O problema é saber quando elas são úteis e a diversidade pode
ser deixada com segurança nas mãos dos seus connoisseurs, e quando, como
me parece ser cada vez mais frequentemente o caso, elas não são e ela não
pode, e é preciso algo mais: uma passagem imaginativa para (e reconhecimen-
to de) uma maneira “outra” de pensar.
Na nossa sociedade, o connoisseur por excelência das maneiras “outras”
de pensar tem sido o etnógrafo (o historiador também, até um certo ponto, e
dum modo diverso o romancista, mas eu quero voltar à minha própria reserva)
dramatizando a estranheza, exaltando a diversidade, e respirando a profusão
de pontos de vista. Sejam quais forem as diferenças em método ou teoria
que nos separam, em algo nos iguala: profissionalmente temos obsessão pelos
mundos distantes e por torná-los compreensíveis primeiro para nós mesmos
e depois, através de esquemas conceituais não muito diferentes dos dos his-
toriadores e de esquemas literários não muito diferentes dos dos romancistas,
para nossos leitores. E enquanto esses mundos estiverem realmente alhures,
são “aquelas em torno daqui”, não porque assuma que as pessoas são todas
iguais, mas porque sabe quanto elas não o são e como são incapazes, ainda as-
sim, de se desconsiderarem mutuamente. Mesmo que um dia tenha sido possí-
vel e mesmo que hoje provoque saudades, a soberania do familiar empobrece
a todos; enquanto ela tiver um futuro, na mesma medida, o nosso é tenebroso.
Não é que tenhamos de amar um ao outro ou morrer (se for assim – negros e
afrikaners, árabes e judeus, tamiles e singaleses – acho que estamos condena-
dos). Temos é de conhecer um ao outro, e viver com este conhecimento, ou
acabar como náufragos num mundo beckettiano de solilóquios em colisão.
A tarefa da etnografia, ou uma delas em todo caso, é sem dúvida forne-
cer, como fazem a história e as artes, narrativas e cenários para refocalizar a
nossa atenção; não, no entanto, os que nos tornam aceitáveis para nós mesmos
pela representação de outros reunidos dentro de mundos onde não queremos
e não podemos chegar, mas os que nos tornam visíveis para nós mesmos pela
representação de nós e todos os demais postos no meio de um mundo cheio de
estranhezas irremovíveis das quais não podemos nos manter distantes.
Até bem recentemente (a situação agora está mudando, em parte pelo me-
nos por causa do impacto da etnografia, mas principalmente porque o mundo
está mudando) a etnografia estava sozinha nisso, pois a história gastava muito
do seu tempo confortando a nossa auto-estima e apoiando a nossa impressão
de que estávamos chegando a algum lugar pela glorificação de nossos heróis
e a diabolização dos nossos inimigos, ou lamentando a grandeza extinta; o co-
mentário social de romancistas era na sua maior parte localizado – uma parte
da consciência ocidental segurando um espelho, plano à Trollope ou curvo à
Dostoievsky, para a outra; e mesmo a literatura de viagem, que pelo menos
tocava em superfícies exóticas (selvas, camelos, bazares, templos) usava-as
principalmente para demonstrar a resiliência, em árduas circunstâncias, de
virtudes adquiridas – o inglês mantendo-se calmo, o francês racional, o ame-
ricano inocente. Agora, quando já não está tão sozinha e as estranhezas com
que tem de lidar estão ficando mais oblíquas e nebulosas, menos facilmente
apartadas como anomalias selvagens – homens que se julgam descendentes de
cangurus ou crêem que podem ser assassinados com uma olhadela de viés –
sua tarefa, de localizar aquelas estranhezas e descrever suas formas, pode ser
de certa forma mais difícil; mas é dificilmente menos importante. Imaginar
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Mas meu propósito aqui não é defender as prerrogativas de uma
Wissenschaft caseira cuja patente sobre o estudo da diversidade cultural, se
um dia ela teve uma, expirou há muito tempo. Meu propósito é sugerir que
chegamos a um tal ponto da história moral do mundo (claro, uma história que
é tudo menos moral) que somos obrigados a pensar sobre tal diversidade de
uma maneira bem diferente da que estamos acostumados. Se for verdade que,
ao invés de estarem sendo separados em unidades cercadas e espaços sociais
com bordas bem definidas, modos de viver seriamente díspares estão se mistu-
rando em áreas mal definidas e espaços sociais de bordas soltas, irregulares e
difíceis de localizar, então a questão de como lidar com os quebra-cabeças de
julgamento que tais disparidades levantam assume um aspecto bem diferente.
Confrontar paisagens e naturezas-mortas é uma coisa; panoramas e colagens
é bem outra.
Parece claro por toda parte que nos dias de hoje nós confrontamos essas
últimas, que estamos vivendo cada vez mais no meio de uma enorme colagem.
Não é apenas no noticiário da noite onde assassinatos na índia, bombardeios
no Líbano, golpes na África, e tiroteios na América Central são distribuídos
entre desastres locais dificilmente mais legíveis e seguidos por sérias discus-
sões sobre a maneira japonesa de fazer negócios, formas persas de paixão, ou
estilos árabes de comerciar. É também uma enorme explosão de tradução, boa,
má, e insípida, de e para linguagens – tamil, indonésio, hebreu, e urdu – antes
consideradas marginais e recônditas; a migração de cozinhas, costumes, mo-
bílias e decorações (cafetãs em San Francisco, Colonel Sanders em Jogjakarta,
tamboretes de bar em Kyoto); o surgimento de temas para gamelão no jazz de
avant garde, mitos índios em novelas latinas, imagens de revistas em pintura
africana. Mas principalmente é que – a chance é quase a mesma – a pessoa que
encontramos na feira pode vir tanto da Coréia como de Iowa; no correio, da
Algéria como de Au vergne; no banco, de Bombaim como de Liverpool. Nem
mesmo cenários rurais, onde a semelhança tende a ser mais persistente, estão
Referências
DANTO, A. Mind as feeling; form as presence; Langer as philosopher. Journal
of Philosophy, n. 81, p. 641-647, 1984.